ALINE STORTO PEREIRA

LITERATURA E DEBATE PÓS-COLONIAL EM A HISTÓRIA DO BANDO DE KELLY , DE PETER CAREY

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura).

Orientadora: Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes

São José do Rio Preto 2006 2

Pereira, Aline Storto. Literatura e debate Pós-Colonial em A história do bando de Kelly , de Peter Carey / Aline Storto Pereira. - São José do Rio Preto : [s.n], 2006. --- f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Giséle Manganelli Fernandes Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista,

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas

1. Literatura australiana - História e crítica - Teoria, etc. 2. Literatura australiana - Pós-colonialismo. 3. Carey, Peter, 1943- . - A história do bando de Kelly - Crítica e interpretação. I. Fernandes, Giséle Manganelli. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título..

CDU – 821.111.72.09

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COMISSÃO JULGADORA

Titulares

Profª. Drª. Gisele Manganelli Fernandes - Orientadora Profª. Drª. Laura Patricia Zuntini de Izarra Prof. Dr. Peter James Harris

Suplentes

Prof. Dr. Thomas Bonnici Prof. Dr. Álvaro Luiz Hatthner

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Aos meus pais e ao meu irmão

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Agradecimentos

A Deus, pelas pessoas e oportunidades que semeou em meu caminho.

Aos meus pais, base sólida, exemplo de vida e princípio de tudo.

Ao meu irmão, por apoiar-me em todas as fases de construção desta pesquisa, por compartilhar dificuldades e alegrias, e por estar, desde muito cedo, sempre a meu lado.

Aos meus amigos, em especial à Ana Rachel, ao André Maia e à Fabiana Gonzalis.

A todos os amigos da graduação, sobretudo Naomi, Keila e Érica.

À Valéria, pois sem seu incentivo, não teria sequer preparado o pré-projeto.

Aos companheiros da pós-graduação, principalmente Ana Cristina, Ellen, Dinorá, Daniela e

Artur.

À Professora Doutora Giséle Manganelli Fernandes, pela amizade, pela orientação competente e pelo apoio.

Ao Professor Doutor Álvaro Luiz Hattnher, pelas sugestões, pelo empréstimo de materiais, pela amizade e pelo incentivo em todos os momentos.

Ao Professor Doutor Peter James Harris, pelo empréstimo de materiais, pelo interesse e auxílio a este trabalho e pelas contribuições no exame de qualificação.

À Professora Doutora Carla Alexandra Ferreira, pela valorosa contribuição durante o exame de qualificação.

Aos amigos que conquistei na Austrália, entre eles Denise Miles, pelo incentivo, e Cynthia

Grant, pelo interesse e prontidão em ajudar.

Ao governo da Austrália, pela bolsa do Endeavour Programme, que me permitiu a ida à

Austrália e o acesso a uma quantidade muito maior de informações sobre o assunto pesquisado e que certamente contribuiu para que esse trabalho fosse mais completo.

Ao Professor Doutor Bill Ashcroft, professor da University of New South Wales, por receber- me como pesquisadora na universidade e por apoiar-me em meu trabalho. 6

“Los países dan y reciben, con cambios y zigzags de lo uno a lo otro, a lo largo de su historia. Luego, desaparecen; surgen otras culturas, otras nacionalidades recomienzan el inacabable juego. La fuerza creadora, la fuerza inventora, está en el siempre incansable corazón de la Humanidad .” (Damaso Alonso, La novela española y su contribución a la novela realista, Cuadernos del Idioma , 1965, p.43, in Fabiana Vanessa Gonzalis, Machado de Assis e Pérez Galdós: uma fantasia realista )

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Sumário:

Introdução p.10

I – Capítulo 1: A Austrália colonial p.15 1.1. Da descoberta da Austrália e do estabelecimento de uma colônia penal a p.15 1.2. O fora-da-lei mais famoso da Austrália: Ned Kelly p.31 1.2.1. A figura histórica: uma breve biografia p.31 1.2.2. Ned Kelly e a cultura australiana p.39

II – Capítulo 2: Peter Carey e a literatura australiana p.48 2.1. O desenvolvimento da literatura australiana p.48 2.1.1. Os aborígines p.50 2.1.2. A poesia p.51 2.1.3. O teatro p.59 2.1.4. A prosa p.61 2.2. Peter Carey p.72

III – Capítulo 3: História, literatura e pós-colonialismo p.77 3.1. História e literatura p.77 3.2. Pós-colonialismo p.82 3.2.1. Da dominação européia à formação das sociedades pós-coloniais p.82 3.2.2. A teoria pós-colonial p.90 3.2.3. Colonialismo, pós-colonialismo e identidade cultural p.100 3.2.4. O pós-colonialismo e a idéia de nação p.104

IV – Capítulo 4: A história do bando de Kelly , de Peter Carey p.108 4.1. Estrutura, linguagem e tradução p.108 4.2. Enredo p.114 4.3. Antecipação p.118 4.4. As mulheres na narrativa p.120 4.5. O narrador p.124 4.6. A humanização da personagem principal p.131 4.7. A questão da verdade p.136 4.8. Debate pós-colonial em A história do bando de Kelly p.143 4.8.1. O texto como espaço de debate p.143 4.8.2. Os aborígines em A história do bando de Kelly p.160

Considerações finais p.164

Bibliografia p.169

Anexo: Mapa político da Austrália p.179

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Resumo

O escritor australiano Peter Carey promove, em seu romance True History of , cuja primeira publicação ocorreu em 2000, a reinterpretação de um período histórico e também de um personagem da época, que se tornou uma figura forte na cultura australiana. A tradução desta obra foi publicada no Brasil em 2002 com o título A história do bando de Kelly . Esta dissertação tem como objetivo analisar os efeitos que o estabelecimento de uma colônia penal causou na cultura e na literatura australianas, e a utilização do texto literário — sobretudo esta obra de Carey — como espaço de debate sobre a identidade nacional e de questionamentos ou respostas à antiga metrópole. Para tanto, este trabalho traça, em primeiro lugar, um panorama da história da Austrália, até a época em que viveu Ned Kelly, um fora-da- lei que se tornou herói popular e ícone nacional, e do desenvolvimento da literatura no país. Em segundo lugar, são analisados alguns aspectos deste romance, entre os quais a crítica ao sistema colonial britânico, a oposição centro-margem representada pelo conflito entre as autoridades e o bando de Kelly, e o uso da variante australiana do inglês. Desta forma, procuramos mostrar que, neste romance, parte da história da Austrália — em especial o período colonial e o sistema de degredo, cuja influência ainda se faz sentir nos dias de hoje — são problematizados e colocados em discussão.

Palavras-chave: pós-colonialismo; literatura australiana; Peter Carey; Ned Kelly.

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Abstract

The Australian writer Peter Carey reinterprets, in his novel True History of the Kelly Gang , whose first publication took place in 2000, a historical period and also a character of that time who has become a strong figure in Australian culture. The translation of this book was published in Brazil in 2002, with the title A história do bando de Kelly . This Master’s Degree Thesis has the objective of analyzing the effects that the settlement of a penal colony had on Australian culture and literature, and the use of literary texts — especially this work by Carey — as a space for debate on national identity and for questioning or striking back at the former centre. In order to do so, this work firstly presents a panorama of Australian history, up to the time Ned Kelly, an outlaw who became a popular hero and a national icon, lived, and a survey of the development of Australian literature. Then, some aspects of this novel are analyzed, such as the critique of the British colonial system, the opposition centre-margin represented by the conflict between the authorities and the Kelly gang, and the use of the Australian variant of English. Thus, it is possible to show that, in this novel, part of Australian history — particularly the colonial period and the transportation period, whose influence can still be felt nowadays — is questioned, discussed and reevaluated.

Key-words: post-colonialism; Australian literature; Peter Carey; Ned Kelly.

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Introdução

Recentes estudos de historiografia e crítica literária têm apontado semelhanças e interseções entre essas duas áreas de conhecimento, resultantes do aspecto textual, isto é, da forma narrativa, que compartilham ao organizar o pensamento.

Embora a metodologia de pesquisa literária se diferencie um pouco da utilizada pela

História, as obras literárias que (re-)utilizam eventos ou personagens históricos realçam e, de certa forma, problematizam, as inter-relações entre as duas áreas, uma vez que ambas se valem da escolha de fatos para compor o texto.

Esse poder de selecionar e re-aproveitar fragmentos da História pode ser empregado por escritores pós-coloniais para (re-)abrir discussões em torno de temas como a oposição centro-margem, geralmente representada por (ex-)colônias e (ex-)metrópoles, ou a posição de grupos marginalizados na sociedade atual, como é o caso das mulheres, dos povos nativos, entre outros.

A teoria pós-colonial trata das relações entre ex-metrópoles e suas antigas colônias, dos efeitos do colonialismo no desenvolvimento de culturas nacionais em diversos países, da situação dos grupos marginalizados em diferentes nações, e das novas relações de poder e do imperialismo cultural. O pós-colonialismo propõe uma re-valorização das culturas nativas, tidas e tratadas como inferiores no período colonial, e do hibridismo que caracteriza as chamadas sociedades pós-coloniais, formadas pela mescla de influências de diferentes povos.

Os textos escritos por artistas pós-coloniais configuram, portanto, um espaço de resposta ou de resistência ao colonialismo e ao imperialismo, de questionamento dos valores impostos, de conflitos e contradições, e de emergência do potencial criativo que advém da pluralidade de vozes.

No caso da Austrália, muitos escritores revelam-se interessados pela revisão de momentos históricos como meio de questionar a colonização britânica no continente e de 11

compreender a formação de seu país e dos elementos constituintes da sua identidade cultural.

Esse aproveitamento da história e da cultura australianas como tema central em obras literárias sugere que a literatura pode ser vista como meio de auto-afirmação, ou ainda como espaço de discussão e palco de debate do nacional, do social, do histórico, do plural, das várias Austrálias sendo escritas por diferentes pontos de vista.

Um dos escritores a debater o imperialismo, não só o britânico, mas também o americano, em algumas de suas obras, desde os contos até os romances, é o australiano Peter

Carey. Em seu True History of the Kelly Gang (2000), Carey revive uma personagem histórica e herói popular em seu país, Ned Kelly, e questiona, por meio dessa voz, o governo colonial, a situação de imigrantes e latifundiários e das propriedades de terra na segunda metade do século XIX , bem como a ação das autoridades coloniais. Nesta dissertação, utilizaremos a tradução do romance para o português, A história do bando de Kelly , publicada em 2002, não só por se tratar de uma norma do programa de pós-graduação desta universidade, que estabelece que as citações sejam em língua portuguesa, mas principalmente por acreditarmos que assim a contribuição oferecida por esta pesquisa será mais significativa, pelo fato de possibilitar uma maior divulgação da obra do autor, uma vez que seu trabalho estará acessível a mais leitores, inclusive aos que não têm proficiência na língua inglesa.

Ao verificarmos a falta de informações mais detalhadas sobre a literatura produzida por escritores australianos, aliada à busca infrutífera por livros ou artigos sobre este assunto em português, podemos afirmar que a área de estudos das literaturas em inglês nos meios acadêmicos brasileiros ainda ressente-se da falta de pesquisas em literatura australiana.

Esta dissertação objetiva analisar os efeitos do tipo de colonização utilizado pela Grã-

Bretanha na Austrália — o desenvolvimento de uma colônia penal para onde foi enviado o excedente de presos, que se tornaram também expatriados — no processo de formação do país em termos literários e culturais. 12

Pretendemos também analisar a utilização da história australiana na literatura como meio de reinterpretação de eventos históricos e como meio de debate e afirmação da identidade nacional.

Nossa opção por Carey, escritor contemporâneo de renome dentro e fora da Austrália, duas vezes ganhador do Booker Prize (um dos prêmios literários mais importantes para textos escritos em língua inglesa), deve-se ao fato de que o questionamento sobre a influência do passado colonial, o imperialismo e a identidade são relevantes em sua escrita.

Com o intuito de aprofundar nossos conhecimentos sobre a literatura e cultura da

Austrália, participamos, no segundo semestre de 2004, de um processo de seleção de bolsas de estudo do governo australiano, o Endeavour Programme , destinado a alunos de pós- graduação que desejam realizar pesquisas no país. Fomos selecionados pelo programa, o que nos possibilitou passar seis meses na cidade de no ano de 2005, na University of New

South Wales, sob a orientação do Professor Doutor Bill Ashcroft, especialista em pós- colonialismo. Essa experiência nos proporcionou, por um lado, o acesso a uma grande quantidade de livros e artigos de revistas especializadas, tanto sobre Ned Kelly quanto sobre

Peter Carey. Por outro lado, permitiu-nos também uma vivência cultural importante: notamos que Ned Kelly é conhecido em todo o país, mas sua história tem mais força e relevância no estado de Victoria. As leituras realizadas neste período, bem como a aquisição de dicionários de gíria australiana, contribuíram também para uma nova sensibilidade e percepção sobre o uso que Peter Carey faz da variante australiana do inglês.

Na Austrália, tivemos ainda a oportunidade de participar de algumas palestras do evento literário Sydney Writer’s Festival , que ocorreu no período de 23 a 29 de maio de 2005, e ouvir os comentários de escritores e tradutores e, desta forma, aprender um pouco mais sobre a literatura infantil neste país, a poesia, o mercado editorial, as traduções de autores australianos para outros idiomas e as traduções de obras estrangeiras feitas por australianos. 13

No presente trabalho, tratamos da história australiana até a época em que viveu Ned

Kelly, e do desenvolvimento da literatura nesse país; apresentamos também alguns dos conceitos relacionados à teoria pós-colonial, sobretudo aos aspectos tratados pelos críticos australianos Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Hellen Tiffin, e pelo crítico indiano Homi

Bhabha; procuramos analisar o modo como o escritor dá voz à personagem Ned Kelly, que também narra a história; analisamos o processo da crítica ao colonialismo, o movimento de humanização dessa figura histórica, o uso da linguagem, com o aproveitamento da variante local do inglês, alguns aspectos da narrativa, como a antecipação e as personagens femininas, a relação do título com a questão da verdade e alguns aspectos da tradução para o português.

No primeiro capítulo, descrevemos a descoberta do continente australiano, o início de sua colonização pelos ingleses, o degredo de criminosos de toda a Grã-Bretanha e o surgimento dos , ou ladrões de estrada, sobretudo em partes mais remotas, próximas às minas de ouro, bem como a vida de Ned Kelly e sua participação na cultura popular australiana.

No segundo capítulo, apresentamos um panorama do desenvolvimento da literatura australiana, desde os primeiros textos escritos e publicados sobre o continente até a criação de uma literatura nacional, da qual Peter Carey é um expoente contemporâneo, tendo recebido prêmios importantes e tendo sido traduzido para vários idiomas, alguns de seus romances inclusive para o português.

No terceiro capítulo, tratamos dos estudos que apontam semelhanças entre a escrita historiográfica e a literária, do surgimento das sociedades e literaturas pós-coloniais, da crítica pós-colonial (ASHCROFT et al ., 2002; BHABHA, 1996, 1999, 2003) e de seu posicionamento em relação a temas como o cânone literário e as idéias de nação, identidade cultural e consciência nacional. 14

No quarto capítulo, analisamos aspectos do romance A história do bando de Kelly , tais como o título original [ True History of the Kelly Gang ] e sua relação com a questão da verdade, alguns aspectos da tradução para o português (que omite do título o adjetivo

“verdadeira”), a mescla de um narrador em primeira pessoa com alguns momentos de narrativa em terceira pessoa, o re-aproveitamento pós-colonial da figura de Ned Kelly, a crítica ao período colonial, e o movimento de humanização da personagem principal.

Citamos, em alguns momentos, o original em inglês, para ilustrar como Peter Carey vale-se de expressões típicas do inglês australiano em seu romance.

Com este trabalho, pretendemos contribuir para a divulgação da literatura australiana no Brasil, bem como para os estudos culturais e o pós-colonialismo, ao debater a relação entre diversos povos na formação de uma cultura nacional, a da Austrália.

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I – A Austrália colonial

I bore the heat, I blazed the track — Furrowed and bloody Upon my back.

I split the rock I felled the tree The nation was — Because of me ! (Mary Gilmore, “Old Botany Bay”, in David Malouf, Made in England, Quarterly Essay , 2003, p. 39)

1.1. Austrália: do estabelecimento de uma colônia penal a Ned Kelly

Para os padrões ocidentais, a Austrália é uma nação jovem. No entanto, é também um continente antigo. De acordo com testes de carbono, o continente tem sido habitado há pelo menos cinqüenta mil anos pelos aborígines, que provavelmente atingiram terras australianas no último período glacial, ocupando primeiro o norte e depois espalhando-se para o sul, quando a barreira de gelo recuou. Os povos aborígines desenvolveram um tipo muito especial de relação com a terra, que seria considerada árida e misteriosa pelos primeiros colonizadores brancos.

A Austrália tornou-se parte da história européia no século XVI , no período das grandes navegações. Entretanto, já fazia parte do imaginário europeu há séculos, desde a Grécia

Antiga. Os filósofos gregos acreditavam que a esfera era a forma perfeita e que a perfeição requeria equilíbrio. Para que o planeta fosse perfeito, deveria haver equilíbrio, o que tornaria necessária a existência de um continente de grandes proporções no hemisfério sul, a fim de contrabalançar os territórios do norte. Portanto, o fato de haver um continente como o australiano foi previsto antes mesmo de ser comprovado. A crença em um território no sul inspirou autores de vários textos, que o chamavam de Antípoda e o descreviam como um lugar onde tudo era contrário. Para alguns, a Antípoda era cheia de aberrações; para outros, 16

era o paraíso terrestre, um lugar cuja sociedade utópica não tinha problemas políticos ou econômicos.

Mas os europeus não foram os únicos interessados em novas terras. Povos asiáticos alcançaram o Timor e as Molucas em sua expansão marítima, embora não tivessem conseguido atingir a Austrália por pobreza material, escasso desenvolvimento das embarcações, além da existência de crenças e superstições sobre o mar (CLARK, 1995).

No final do século XV e início do XVI , os europeus haviam atingido grandes melhoras na construção de navios. Outros fatores que impulsionaram a expansão marítima européia foram a descrença nas lendas sobre o mar, a confiança em si mesmos e em seus valores, sua ganância por bens materiais e a necessidade de expandir o cristianismo (CLARK, M., 1995, p.3-4).

Historiadores portugueses afirmam que embarcações lusas descobriram a Austrália durante suas navegações pelo Pacífico Sul, mas, embora alguns vestígios da presença portuguesa tenham sido encontrados, os documentos sobre esta descoberta, se existiram, desapareceram com o terremoto de Lisboa em 1755. Não há, portanto, provas conclusivas sobre a descoberta portuguesa.

Os espanhóis passaram pelo estreito que leva o nome do capitão da frota, Torres, ao norte da Austrália, enquanto viajavam para Manila passando pelas Molucas, mas as cartas escritas na época não fazem referência a nenhuma terra ao sul do estreito.

Os navegadores holandeses atingiram diversos pontos ao norte e ao oeste da costa australiana. O capitão holandês Abel Tasman descobriu uma ilha ao sul, à qual deu o nome de

Van Diemen’s Land, em homenagem a seu patrono, e que seria posteriormente renomeada como Tasmânia, em sua homenagem. Descobriu também as duas ilhas que formam a Nova

Zelândia. Entretanto, sua viagem foi considerada um fracasso, uma vez que ele e sua tripulação não ficaram impressionados nem com a terra, que não lhes pareceu uma provável 17

fonte de lucro, nem com seus habitantes, com quem pensavam que não fosse possível comercializar.

Em 1688, o capitão inglês William Dampier também chegou à costa oeste da

Austrália, e em suas cartas descreveu a terra seca e seus habitantes, os aborígines, de maneira desfavorável.

Oitenta anos mais tarde, o capitão inglês James Cook foi enviado ao Pacífico Sul, junto a um astrônomo, para observar um fenômeno, o Trânsito de Vênus, a partir do Taiti.

Entretanto, a viagem era também exploratória. Cook circunavegou as duas ilhas da Nova

Zelândia e atingiu a costa leste do continente australiano, o qual ele descreveu de maneira muito mais positiva do que Dampier. Teve pouco contato com os aborígines e, em certo ponto, foi ameaçado por dois guerreiros de uma tribo com suas lanças. Apesar disso, em comparação com os maoris da Nova Zelândia, os nativos da Austrália pareciam mais tímidos, pacíficos e mal-armados, o que provavelmente influenciou a decisão sobre qual ilha ocupar.

Ele navegou um pouco mais para o norte, tomou posse da nova terra em nome do rei da

Inglaterra e deu-lhe o nome de Nova Gales do Sul.

Em 1779, Sir Joseph Banks, um botânico que havia viajado com Cook em 1768, sugeriu a fundação de uma colônia penal no novo continente tanto como solução para o problema de superlotação das cadeias britânicas como para o problema dos criminosos condenados ao degredo, pois, após a guerra de independência, eles não podiam mais ser enviados à América. Lord Sydney anunciou, em 1786, que o rei Jorge III havia concordado em fundar uma colônia em Botany Bay, e o comandante naval aposentado foi escolhido como primeiro governador.

O povoamento do continente australiano baseou-se, em grande parte, na idéia de que era um continente vazio, de que a terra não era ocupada, uma vez que o aborígine não tinha 18

noção de propriedade. Essa idéia foi propagada desde o começo da história colonial e foi ensinada nas escolas até mais ou menos 1960.

Transformada, de início, em uma prisão além-mar, cujas muralhas seriam o próprio mar e a distância do país de origem, a Austrália deveria resolver um problema inglês e ser o receptáculo, de acordo com as crenças da época, de seres imorais. Ao contrário do que se acreditava então, essas pessoas eram levadas ao crime não por pertencer a uma classe criminosa nata, mas sim por uma crise sócio-econômica que abateu a Inglaterra no fim do século XVIII e começo do XIX .

A crença em uma classe criminosa, que gerava e amplificava o preconceito moral, na verdade mascarava problemas sérios, como o do próprio sistema judicial inglês. A força policial centralizada só foi estabelecida na Inglaterra em 1829. Até então, a lei e a ordem nas ruas eram mantidas por guardas, que podiam ser facilmente subornados, e os juízes contavam com a ajuda de uma rede de informantes da classe baixa. Além disso, a classe trabalhadora inglesa do século XVIII enfrentava dificuldades, como salários ruins, péssimas condições de moradia e de trabalho nas fábricas, e exploração de trabalho infantil. Órfãos e crianças pobres começavam a trabalhar aos seis anos de idade. Outro fator importante era a falta de prisões para comportar todos os criminosos condenados em julgamentos. O número de criminosos tornava-se ainda mais alto quando se aplicava a “misericórdia real”, que transformava penas de morte em vários anos de prisão ou exílio (HUGHES, 1987).

Há ainda outros possíveis motivos para a ocupação da Austrália: a madeira, bastante utilizada na indústria naval da época, cuja extração viria a fracassar nas primeiras décadas de povoamento da colônia penal, a proximidade com o Oriente, bem como a presença estratégica nos mares do sul, uma vez que a Holanda declinava como potência naval.

O degredo foi retomado e a assim chamada Primeira Frota, comandada por Phillip, partiu da Inglaterra no dia 13 de maio de 1787, com mais de setecentos presos a bordo, e em 19

20 de janeiro de 1788 chegou a Botany Bay, que o comandante considerou uma região muito seca e imprópria para o povoamento. Ele decidiu seguir um pouco mais ao norte e encontrou, adentrando Port Jackson, um bom lugar, ao qual deu o nome de . Quando estava pronto para voltar ao mar e ir ao encontro dos demais navios da frota, Phillip viu dois navios, que descobriu serem franceses, e teve uma conversa cordial com seu capitão, Jean-François de la Pérouse. Dias depois, os franceses reiniciaram sua viagem, para nunca mais serem vistos, pois sofreriam, em meio às ilhas do Pacifico, um naufrágio sem sobreviventes.

No dia 26 de janeiro, data em que hoje se comemora o Dia da Austrália, os presos foram levados para a praia de Sydney Cove, e o primeiro povoamento branco foi estabelecido em solo australiano. Em seguida, Phillip ordenou que um navio com prisioneiros fosse a

Norfolk Island, a fim de iniciar a extração de madeira. Todo o continente transformou-se em

“um novo experimento colonial, nunca tentado antes, nunca repetido desde então”1

(HUGHES, 1987, p.1).

Em seu primeiro encontro com os aborígines, no local escolhido para iniciar a nova colônia, os brancos europeus foram recebidos com gritos de “ warra , warra ”, que significava

“vá embora”. As ordens do governo britânico em relação aos nativos da terra eram a de estabelecer contato amistoso e tratá-los bem. A relativa paz inicial foi garantida por meio de presentes, mas não durou muito. Além de sofrerem com as doenças dos brancos, os aborígines começaram a entrar em conflito, primeiro com os prisioneiros, que os odiavam porque eram livres, tinham status superior na colônia e nunca eram punidos sob nenhuma circunstância, depois com outros colonos. Esses conflitos seriam, mais tarde, perpetuados por colonizadores em todo o continente e levariam muitas tribos ao extermínio.

Quanto aos criminosos, a maioria havia sido condenada ao degredo por pequenos roubos. No entanto, os juízes ingleses costumavam ser severos com ladrões de gado e muitos

1 “…a new colonial experiment, never tried before, not repeated since.” 20

deles foram enviados à nova colônia por terem suas penas de morte comutadas pelo exílio.

Nenhum entre eles havia sido condenado por assassinato, estupro ou prostituição (HUGHES,

1987).

Entre os degredados, havia pouca mão-de-obra especializada, como, por exemplo, pedreiros, jardineiros e pescadores, o que dificultou o início do estabelecimento da colônia em

Sydney Cove. Aparentemente, o único critério de seleção utilizado pelas autoridades para escolher, entre os fracassados da sociedade britânica, os criminosos a serem degredados, foi o da juventude. “E havia uma classe geral de vigarista não representada na Primeira Frota: os bem-sucedidos.” 2 (HUGHES, 1987, p.75)

O caos inicial logo deu lugar à ordem e à sistematização. Os presos começaram a trabalhar não só como castigo por seus crimes, mas também como meio de prover o povoamento com comida. As ferramentas de que dispunham eram de má qualidade e o local era afetado às vezes por uma seca prolongada, às vezes por enchentes. As primeiras colheitas, portanto, fracassaram, e em 1790 a colônia estava ameaçada pela fome.

Phillip enviou mais prisioneiros a , mas a situação da ilha não era muito diferente daquilo que enfrentava o povoamento na parte continental, pois tanto a extração de madeira quanto as colheitas haviam fracassado. O primeiro governador da colônia mandou também um navio à África para trazer provisões. A ajuda chegou com o navio Lady Juliana , que trazia suprimentos e mais de duzentas criminosas. Pouco depois, os demais navios da

Segunda Frota, com mais prisioneiros a bordo, chegaram a Port Jackson em meados de 1790.

A ameaça de fome nunca se repetiria na história da colônia.

A Segunda Frota havia levado à Austrália um grupo de policiais especialmente treinados para o trabalho no novo povoamento. No entanto, com ela haviam vindo mais criminosos, muitos dos quais estavam doentes e não tinham condições de trabalhar. De

2 “And there was one general class of crook not represented on the : the successful ones.” 21

qualquer forma, todos teriam de ser alimentados. Essa nova fonte de preocupação levou

Phillip a escrever uma carta ao governo britânico, mas antes que ela chegasse a Londres, a

Terceira Frota aportou em Sydney, outra vez com vários prisioneiros doentes.

O governador decidiu conceder terras a oficiais e a emancipacionistas, como eram chamados os presos que já haviam cumprido suas penas. Muitas das fazendas de ex- prisioneiros falharam, mas alguns deles obtiveram sucesso. Em 1792, a colônia tornou-se auto-suficiente.

Phillip voltou à Grã-Bretanha e a colônia passou a ser administrada pelo Major Francis

Grose, oficial da Unidade de Nova Gales do Sul, que encorajou os oficiais a cultivar a terra e também a comercializar com navios vindos da Ásia, Inglaterra e Estados Unidos. Embora alguns presos houvessem começado a cultivar a própria terra nesse período, a maior parte da riqueza do povoamento concentrava-se nas mãos de poucos oficiais, que enriqueceram rapidamente e estabeleceram um monopólio na venda de mercadorias.

Um desses oficiais, John Macarthur, estabeleceu uma fazenda modelo em , uma região fértil próxima a Sydney, na qual ele plantava vinhas, grãos e árvores frutíferas, além de produzir lã de boa qualidade. Ele foi um dos primeiros a perceber que a nova colônia poderia ser explorada de acordo com os interesses econômicos da Grã-Bretanha.

Nos anos 1800, havia grande necessidade de mão-de-obra prisioneira para o trabalho nas fazendas e na construção de estradas. O trabalho prisioneiro era complementado pelo de trabalhadores livres, tais como ex-presos e filhos de criminosos, por exemplo. Os povoamentos de Sydney e Parramatta começaram a expandir e a receber presos irlandeses a partir de 1791. Os irlandeses também trouxeram para a colônia uma outra religião, o catolicismo, e quando os católicos começaram a chegar em grandes números, os protestantes ficaram alarmados. Eles temiam que a religião e o modo de vida diferentes, bem como a luta entre irlandeses e ingleses na Grã-Bretanha, pudessem causar problemas. 22

Os irlandeses eram considerados pelas autoridades coloniais uma classe especial de criminosos e sofriam vigilância mais acirrada e punições mais severas. “Desde o princípio, os irlandeses na Austrália viam a si mesmos como um povo duplamente colonizado” 3

(HUGHES, 1987, p.181).

Também os crimes políticos eram punidos com degredo, pois, se as autoridades evitassem enforcar esses homens, evitariam que se tornassem heróis e exemplo para o povo.

Além disso, ninguém lhes daria ouvidos em uma colônia recém-fundada, tão distante do governo central.

No início dos anos 1800, os franceses estavam explorando o litoral sul do continente e, para evitar o estabelecimento de povoamentos franceses, o governo britânico enviou grupos de presos para fundar colônias em outras partes de Nova Gales do Sul. Também foi fundado um povoamento em Van Diemen’s Land, devido à sua posição estratégica como porto para as atividades pesqueiras, cujos principais produtos eram o óleo de baleia e as peles de foca. Mais ou menos na mesma época, em 1802 e 1803, o Tenente Matthew Flinders circunavegou a

Austrália e descobriu que Nova Holanda e Nova Gales do Sul não eram ilhas separadas, mas partes do mesmo continente.

Nesse momento, os aborígines já haviam percebido que os colonizadores brancos tinham vindo para ficar e sua resistência a esse fato tornou-se clara quando começaram a matar animais, queimar casas e até mesmo matar alguns dos brancos. Os colonizadores decidiram revidar e, geralmente, expulsavam os aborígines dos lugares onde havia ocorrido alguma atrocidade, além de dar-lhes farinha envenenada, e capturá-los ou matá-los.

Em pouco tempo, a Unidade de Nova Gales do Sul e seus oficiais tornaram-se tão poderosos que os governadores que sucederam Phillip tiveram problemas. Em 1808, oficiais depuseram o governador e a colônia foi administrada por uma junta militar

3 “From the outset, the Irish in saw themselves as a doubly colonized people.” 23

durante dois anos. Enquanto isso, Norfolk Island, a ilha onde os castigos eram mais severos e as humilhações mais intensas, tornou-se o pior lugar da colônia para um criminoso.

Em 1813, durante o governo de , Norfolk Island foi abandonada e suas casas e edifícios destruídos, devido ao fracasso da extração de madeira. Nesse mesmo ano, Gregory Blaxland, William Charles Wentworth e William Lawson cruzaram as

Montanhas Azuis, abrindo caminho para novas pastagens. De imediato, uma estrada para carros de boi foi construída e as novas terras logo passaram a ser ocupadas.

Nas palavras de Manning Clark, “o desenvolvimento econômico tanto em Nova Gales do Sul quanto na Tasmânia afastou ambos os povoamentos cada vez mais de seu objetivo inicial” 4 (CLARK, M., 1995, p.45).

Os povoamentos começaram a exportar com sucesso produtos como lã, óleo de baleia, peles de foca, e os habitantes nascidos na colônia começaram a diferenciar-se dos migrantes.

Eles desenvolveram uma pronúncia própria, originada pela linguagem falada pelos presos, e começaram a olhar para o país com amor, e não como estranhos, à maneira dos primeiros colonizadores.

Nos anos de 1830, o poder econômico, político e social da colônia pertencia ao mesmo grupo, composto principalmente de grandes fazendeiros e mercantes bem-sucedidos.

O governo britânico começou a encorajar a migração para Van Diemen’s Land e para

Nova Gales do Sul, e mais tarde para a região sul do continente. Muitos homens viam a migração e o estabelecimento de fazendas na Austrália como uma oportunidade de enriquecer, mas a migração também significava que haveria menos terras de boa qualidade para os brancos nativos, o que gerava um sentimento de xenofobia contra os imigrantes.

Em 1824, o governo de Nova Gales do Sul mandou que dois exploradores fossem a regiões mais ao interior do país a fim de descobrir mais terras de qualidade para possíveis

4 “…economic developments in both New South Wales and Van Diemen’s Land were taking both settlements further and further away from their original purpose…”

24

colonizadores. Eles encontraram um rio, o Rio Murray, e também terras férteis ao redor dele.

Essas viagens foram muito importantes e deram início à expansão dos povoamentos tanto em direção ao sul, área que mais tarde se tornaria a colônia de Victoria, quanto em direção ao norte, que mais tarde se tornaria a colônia de Queensland.

No ano seguinte, o governador Darling proclamou a independência de Van Diemen’s

Land da colônia de Nova Gales do Sul. A nova colônia, agora independente, teria uma constituição e um governador próprios.

Nessa época, emancipacionistas como William Charles Wentworth começaram a exigir julgamento por júri e um corpo legislativo. Em 1828, como resultado do “Ato para

Prover a Administração da Justiça em Nova Gales do Sul e na Tasmânia” [ Act to Provide for the Administration of Justice in New South Wales and Van Diemen’s Land ], haveria um conselho legislativo cujos membros seriam apontados pelo secretário de estado e escolhido entre os donos de terras e mercadores da colônia; e, em casos civis, a Corte Suprema poderia ordenar um julgamento por júri, se ambas as partes o requisitassem.

Uma nova colônia foi fundada em 1829. A fundação da Austrália Ocidental — que era uma parceria entre um mercador emancipacionista e um londrino — excluía os presos bem como o uso de sua mão-de-obra. No entanto, o solo inadequado e o tipo de vegetação transformaram o início do novo povoamento em um fracasso, e em 1846 o governo britânico declarou-o uma colônia penal.

Em todas as colônias, havia uma grande diferença entre o número de homens e mulheres. O casamento inter-racial tornou-se comum, uma vez que o casamento entre classes sociais distintas não era aceito.

Em 1834, o Parlamento Britânico aprovou um ato para transformar a Austrália do Sul em uma província. Após a descoberta do Rio Murray, havia a expectativa de encontrar terras férteis e produzir bens exportáveis, tais como carvão, madeiras e peles de foca. Tendo em 25

vista que a nova colônia excluía presos, ela deveria receber colonizadores livres, comerciantes e jovens de ambos sexos em proporções quase iguais.

Ao mesmo tempo, John Batman, proprietário de terras em Van Diemen’s Land, comprou dos aborígines mil acres de terra na porção continental da Austrália, ao redor de Port

Phillip, região do atual estado de Victoria, e pagou com cobertores, facas, camisas, farinha e outros produtos. Ele e outro proprietário de terras de Van Diemen’s Land, John Fawkner, estabeleceram fazendas no nordeste dessa região em 1835. A cidade de Melbourne seria planejada e fundada próximo a Port Phillip em 1839.

O governo britânico sempre ordenou que os aborígines fossem bem tratados e que os colonizadores evitassem qualquer tipo de problema com os nativos da terra. Seu interesse em defendê-los e integrá-los à sociedade levaram o governo a declarar, em 1839, que os aborígines deveriam ter protetores, que seriam ao mesmo tempo professores e missionários, em especial no recém-criado distrito de Port Phillip. A intenção de proteger os aborígines também foi demonstrada em um julgamento em 1838: um grupo de colonizadores brancos, que havia matado alguns aborígines, foi acusado de assassinato e levado a julgamento; sete deles foram considerados culpados, sentenciados à morte e enforcados. Entretanto, a atitude em relação aos assassinos foi motivo de controvérsia na colônia e muitos colonos ficaram revoltados com a decisão judicial que prejudicara os brancos. Ambas as atitudes do governo, a de enviar missionários e a de condenar brancos por crimes cometidos contra aborígines, mostraram-se ineficientes, pois nem as missões conseguiram integrar totalmente os nativos, nem as poucas punições evitaram que mais crimes fossem praticados, sobretudo nas regiões mais afastadas dos centros administrativos.

Em 1831, introduziu-se um preço mínimo para a distribuição de terra, o que diminuiu as desavenças entre brancos nativos e imigrantes. Esses dois grupos também encontraram 26

interesses comuns em assuntos que afetavam a ambos, como a venda de terras da coroa, o degredo e imigração.

Enquanto a imigração crescia e a indústria pastoral expandia, o governo britânico e os colonizadores livres discutiam se o sistema de colônia penal funcionava. Alguns dos colonizadores livres achavam que o país havia alcançado um nível de riqueza que lhe permitia ser povoado por imigrantes, mas nem todos concordavam. O degredo para Nova Gales do Sul e Van Diemen’s Land foi abolido em 1840.

No período de 1840 a 1843, a especulação de terra e gado levou a colônia a uma crise, e as taxas de falência e desemprego cresceram. Em 1844, o governador Gipps propôs uma nova política latifundiária, de acordo com a qual os grandes proprietários teriam que pagar uma taxa de licença anual. Essa nova política causou uma renovada agitação a favor de um governo próprio.

No ano de 1847, o governo das colônias havia dividido a terra em três categorias diferentes — as povoadas, as intermediárias e as não-povoadas — e ao estabelecer um preço mínimo de uma libra por acre, tornou a aquisição de terra mais difícil e garantiu a acumulação de grandes propriedades nas mãos de poucos.

Também no início da década de 1840, devido à falta de mão-de-obra, houve uma proposta para a introdução de trabalhadores indianos na Austrália. A fim de preservar seu padrão de vida, os trabalhadores brancos opuseram-se ao uso de trabalhadores de cor e defenderam a idéia de uma Austrália Branca.

A agitação pela falta de mão-de-obra causou um debate sobre a possibilidade de re- estabelecer o degredo, uma idéia adotada de imediato e defendida pelos latifundiários em

Nova Gales do Sul. Em 1849, uma multidão reuniu-se em Circular Quay, o porto de Sydney, para protestar contra a chegada do Hashemy , um navio que trazia novos presos de Londres. 27

Os presos foram então levados a distritos como , que agora faz parte do estado de Queensland, onde não havia uma classe de trabalhadores que se opusesse à sua presença.

Em 1850, o “Ato de Governo das Colônias da Austrália” [ Australian Colonies

Government Act ] foi aprovado pelo parlamento. Esse ato incluía cláusulas sobre a separação de Port Phillip de Nova Gales do Sul e sobre o estabelecimento de conselhos legislativos para as quatro colônias. A notícia foi recebida sem muito entusiasmo em Sydney, Hobart e

Adelaide, mas foi celebrada por uma semana em Melbourne, pois a independência da colônia, que se chamaria Victoria, significava progresso político e material.

Nas cidades, nessa época, igrejas protestantes e católicas tendiam à utilidade pública, tentando confortar as pessoas e reduzir vícios como a prostituição e o jogo. Enquanto isso, os trabalhadores do campo desenvolveram uma série de valores diferentes. Isolados das cidades e do consolo da religião, eles encontraram conforto no companheirismo.

No dia 15 de maio de 1851, o jornal Sydney Morning Herald anunciou a descoberta de ouro em Bathurst, na colônia de Nova Gales do Sul. Em agosto do mesmo ano, ouro foi encontrado em maiores quantidades em Ballarat e Geelong, na colônia de Victoria. Muitos trabalhadores e marinheiros abandonaram as cidades e seus empregos e correram às minas, onde as condições de vida eram primitivas. Uma administração para as minas foi improvisada: havia delegados em todas as minas e os mineiros deveriam pagar uma licença.

Por volta de 1853, os mineiros reclamavam por não conseguirem pagar suas licenças, por não poderem investir o lucro em fazendas e por não terem direitos políticos. Em novembro de 1854, em Victoria, 10.000 mineiros exigiram mudanças na administração das minas, e o governo em Melbourne enviou, como resposta, tropas para organizar uma caça às licenças. Essa tática gerou uma revolta e os mineiros começaram a construir um forte em

Eureka, na cidade de Ballarat. As tropas cercaram o forte por vários dias e aos poucos os 28

revoltosos foram abandonando suas posições. No dia 3 de dezembro do mesmo ano, os 150 homens restantes no forte foram atacados pelas tropas e vinte e cinco mineiros foram mortos.

Por volta de 1855, imigrantes chineses, em sua maioria homens, começaram a chegar em Victoria em grande número. Suas atividades bem-sucedidas em minas abandonadas causaram um sentimento de xenofobia e levaram a revoltas, sendo a mais violenta delas a que aconteceu em Lambing Flat, em 1861.

Os debates sobre um governo próprio continuavam, mas o estabelecimento de uma constituição colonial causou sentimentos contrários, pois alguns queriam que ela fosse semelhante à americana, enquanto outros queriam que fosse uma perpetuação da colônia.

Em Nova Gales do Sul, conservadores e liberais não conseguiam chegar a uma proposta comum, porque aqueles queriam que seus interesses econômicos fossem representados na constituição, enquanto estes preocupavam-se com o povo. No final, os interesses econômicos prevaleceram: a constituição aprovada defendia idéias conservadoras e os eleitores da assembléia legislativa seriam qualificados por propriedade.

Em Victoria, os fazendeiros e a burguesia associaram-se contra as exigências dos mineiros. O conselho legislativo aprovou uma constituição que poderia receber, a qualquer instante, emendas por maioria absoluta no Parlamento.

Algo semelhante aconteceu em Van Diemen’s Land, que, em 1856, teve seu nome alterado para Tasmânia, em homenagem a Abel Tasman, o primeiro descobridor europeu a passar pela ilha.

A Austrália do Sul teve uma constituição que representava tanto os interesses econômicos dos conservadores quanto os interesses do povo, e todos os homens maiores de vinte e um anos que houvessem estado na lista eleitoral por seis meses antes da eleição poderiam votar. 29

Como podemos ver, a descoberta de ouro teve influência permanente na história da

Austrália: ela trouxe progresso material para a colônia, o que beneficiou, entre outras coisas, as artes, em especial a arquitetura e a literatura, e fortaleceu o movimento pela democracia.

Durante os anos de 1860, a burguesia defendia a igualdade de direitos à terra e argumentava que o monopólio dos latifundiários atrasava o progresso das colônias. A reforma agrária também estava sendo discutida nos parlamentos, embora os latifundiários se opusessem a ela de maneira feroz.

Em Nova Gales do Sul, um novo decreto sobre propriedades rurais foi adotado a partir de 1862. De acordo com o novo decreto, qualquer pessoa poderia comprar terras da coroa a uma libra por acre. Políticas semelhantes foram adotadas em Victoria, Queensland e Austrália do Sul, o que ocasionou uma guerra de classes entre os latifundiários e os pequenos proprietários em algumas colônias. A área cultivada dobrou, mas isso se deveu à expansão das propriedades dos latifundiários, e não à compra de terras pelos pequenos proprietários. Como os latifundiários compravam sempre as faixas de terra mais férteis, a nova lei, embora tivesse sido alimentada por ideais democráticos, não conseguiu desfazer o monopólio dos grandes fazendeiros nem a revolta das classes mais baixas (MARSH, 2001, p.60).

Enquanto isso, os pequenos proprietários viviam na miséria e lutavam contra a seca, o solo pouco fértil e as políticas que favoreciam os latifundiários. Seu modo de vida melhoraria apenas no século XX , com a introdução de maquinário nas fazendas e, em especial, durante a

Segunda Grande Guerra, quando os produtos agrícolas atingiram um preço alto. No século

XIX , o roubo de gado tornou-se prática comum e representava, para alguns pequenos proprietários, a chance de sobreviver e de fazer justiça à sua maneira.

Essa era a situação no interior de Victoria na época em que viveu Ned Kelly — que se tornaria ícone cultural como o ladrão de estradas 5 mais famoso da Austrália. Os primeiros

5 Bushrangers , no original. Os bushrangers , ou ladrões de estrada coloniais, eram prisioneiros fugidos das autoridades que assaltavam pessoas ou diligências nas estradas ou casas em propriedades rurais para sobreviver. 30

ladrões de estrada da colônia apareceram na Tasmânia, que na época ainda se chamava Van

Diemen’s Land, por volta de 1810. Durante uma crise causada pelo fracasso das colheitas, o governo distribuíra armas a alguns criminosos, para que caçassem cangurus, que serviriam de alimento para todos. Quando as colheitas voltaram a dar bons resultados e a carne de canguru não era mais necessária, esses criminosos armados começaram a roubar ovelhas dos grandes fazendeiros e vendê-las aos pequenos proprietários. Esses ladrões tinham a simpatia dos que estavam descontentes com o sistema de degredo e com a administração da colônia. Mas a expansão das áreas povoadas em uma ilha relativamente pequena como a Tasmânia reduziu os refúgios naturais dos criminosos. Isso, aliado à oferta de recompensas pela captura dos ladrões, pôs fim aos assaltos de estrada na ilha.

Esses assaltos foram reprimidos na Tasmânia, mas floresceram no continente, onde, ao contrário da crença popular, a maioria das pessoas roubadas era pobre. As atitudes do governo ao tentar controlar esse tipo de crime contribuíram para que a simpatia do povo por estes ladrões aumentasse e passasse a ser expressa em baladas. A origem do culto aos ladrões de estrada é explicada por Robert Hughes, quando descreve a relação entre o povo e um desses criminosos, Jack Donohoe, que era

uma projeção daquela parte até então subjugada e silenciada de suas vidas em uma liberdade vingativa, atirada contra a neutra tela cinzenta do sertão. As lendas de sua liberdade aliviavam a insatisfação dos australianos com a conformidade de suas próprias vidas, e essa tem sido a raiz do culto dos ladrões de estrada mortos desde então. 6 (HUGHES, 1987, p.240)

Entre os últimos desses criminosos a serem presos pela polícia está Ned Kelly, filho de irlandeses pobres. As atitudes de Kelly, como a formação de um bando de foras-da-lei e o

Alguns deles tornaram-se heróis populares porque eram vistos como os amigos violentos do homem pobre ou como Robin Hoods australianos (DAVEY; SEAL, 2003, p.55). 6 a projection of that once-subjected, silent part of their own lives into vengeful freedom, thrown against the neutral gray screen of the bush. The legends of his freedom relieved Australians’ dissatisfaction with the conformity of their own lives, and this has been the root of the cult of dead bushrangers ever since. 31

assassinato de três policiais, causaram reações contraditórias: para os latifundiários, ele era um bandido que deveria ser punido; para os pequenos proprietários e para os pobres em geral, ele transformou-se em um herói popular, pois todos lutavam contra a pobreza e contra a injustiça. Os latifundiários e a burguesia atribuíam as ações do bando de Kelly ao novo decreto sobre propriedades rurais adotado em Victoria, que havia facilitado a compra de terras pelos pobres, enquanto os pobres atribuíam-lhe o status de um Robin Hood australiano. Kelly simbolizava a experiência do branco nativo na colônia. Considerado culpado, Kelly foi enforcado em 1880, mas a lenda continua. Os sentimentos que ele causou são bem explicados por Manning Clark em seu texto A Short :

Mas a partir do dia do atentado uma lenda começou a crescer entre os pequenos fazendeiros, os que procuravam ouro, os descendentes de prisioneiros e os irlandeses pobres e exilados que, como Ned, haviam tentado ganhar o sustento de forma honesta naquele país de vida dura e amarga, mas haviam falhado. 7 (1995, p.176)

1.2. O fora-da-lei mais famoso da Austrália: Ned Kelly

1.2.1. A figura histórica: uma breve biografia

Edward Kelly nasceu provavelmente em dezembro de 1854. Ele era o terceiro filho (e o segundo a viver, pois a irmã mais velha havia morrido ainda bebê) e primeiro varão de John

“Red” Kelly, um ex-prisioneiro condenado ao degredo por roubo, e de Ellen Quinn, uma imigrante irlandesa. Ele pertencia a um clã problemático, pois tanto os Kelly quanto os Quinn, e também seus parentes próximos, os Lloyd, tinham freqüentes problemas com a polícia.

Aos dez anos de idade, Ned salvou um menino, Richard Shelton, que estava se afogando no rio Hughes, na cidade de Avenel, em Victoria, e recebeu da família Shelton como prova de agradecimento uma faixa de seda verde, que ele somente usava em ocasiões

7 “But from the day of the outrage a legend began to grow amongst the cocky farmers, the fossickers for gold, the descendants of the convicts and the poverty-stricken Irish exiles, who, like Ned, had tried but failed to earn a living by lawful means in that hard and bitter country.” 32

especiais. Ned usaria a faixa quinze anos mais tarde, na cidade de Glenrowan, naquele que se tornaria o momento mais marcante de sua vida.

Em 1866, Red Kelly faleceu, deixando a viúva Ellen Kelly com sete filhos. Aos doze anos de idade, Ned tornou-se o homem da família. Ellen foi para Wangaratta com os filhos menores e deixou Ned com suas irmãs. Em 1868, ela foi morar em uma pequena propriedade em Eleven Mile Creek 8, próximo a Greta, região onde viviam muitos membros da família

Quinn, e reuniu os filhos.

No mesmo ano, Ned tornou-se aprendiz do famoso ladrão de estradas , que lhe ensinou como se esconder e sobreviver no sertão australiano 9. Voltou para casa alguns meses depois, e essa primeira experiência parece tê-lo assustado. No regresso, conheceu o amante da mãe, o inglês Bill Frost, que a abandonaria pouco tempo depois do nascimento da filha do casal.

Em 1869, Ned Kelly teve seu primeiro envolvimento com a polícia. Ele foi acusado de assalto violento contra um chinês chamado Ah Fook, mas a acusação foi retirada.

No ano seguinte, ele acompanhou Harry Power novamente e ajudou-o em alguns assaltos de estrada. Mais tarde, foi reconhecido como o ajudante de Power, foi preso e acusado de assalto à mão armada. Foi mantido na prisão enquanto a polícia procurava e prendia o famoso assaltante. A acusação contra Kelly foi retirada e muitos o culparam por trair Harry. Os verdadeiros traidores, no entanto, foram seus tios Jack Lloyd e Jimmy Quinn.

8 Ellen beneficiou-se do sistema conhecido como selection , cujas regras sofreram várias alterações ao longo dos anos de governo colonial. A legislação vigente nessa época, resultado do descontentamento popular com relação à classe latifundiária, ou squattocracy , permitia que se escolhesse uma propriedade rural pequena, entre os territórios do governo colonial, conhecidos como crown land , e se pagasse parte do valor no momento da escolha, e o restante com o trabalho realizado na própria terra. Embora tivesse intenção democrática, o sistema proposto pelos Selection Acts não resolveu o problema do monopólio dos latifundiários, que, para proteger seus interesses, compravam as faixas de terra mais férteis e próximas aos rios (CLARK, 1995). 9 O sertão australiano, ou bush , compreende uma região intermediária entre a faixa litorânea e o remoto interior do continente, o outback . Desde cedo foi considerado um elemento típico do país, que representava, ao mesmo tempo, as dificuldades enfrentadas pelos colonizadores e brancos nativos, e os ideais de liberdade, companheirismo e oportunidade (embora esta fosse, muitas vezes, frustrada pelas condições climáticas). A mitologia do sertão australiano é, no entanto, uma celebração masculina, e ignora ou despreza o aborígine (DAVEY; SEAL, 2003, p.48-50). 33

No mesmo ano, Ned foi condenado a seis meses de prisão em Beechworth, três dos quais com trabalho forçado, por comportamento indecente. Ele foi acusado de agredir

Jeremiah McCormack e de entregar à senhora McCormack um pacote com testículos de um novilho e uma mensagem obscena.

Poucos meses depois, em 1871, Kelly foi acusado de receptar um cavalo roubado e foi considerado culpado. Foi condenado a três anos de prisão e trabalho forçado, os quais ele cumpriu em Pentridge Jail, em Melbourne, e em um navio-prisão, em Port Phillip. Isaiah

“Wild” Wright, que havia na verdade roubado o cavalo, foi condenado a apenas dezoito meses de prisão e trabalho forçado.

Enquanto Ned estava na prisão, assim como seu cunhado Alex Gunn, sua irmã mais velha, Annie Gunn, envolveu-se com o policial Ernest Flood, que era casado. Annie teve um bebê no final de 1872, mas morreu um dia depois. Sua filha, Anna, morreu de difteria pouco mais de um ano depois, e foi enterrada ao lado da mãe. No início de 1873, outro dos irmãos

Kelly teve problemas com a polícia: Jim Kelly foi condenado a cinco anos de prisão por roubo de gado.

Quando saiu da prisão, Ned conheceu o novo amante de Ellen Kelly, o californiano

George King, poucos anos mais velho que ele próprio. O rapaz foi testemunha da mãe, que se casou com King em uma igreja protestante na cidade de Benalla. Depois disso, levou uma vida honesta por três anos, trabalhando como lenhador, trabalhador rural e supervisor de uma serraria nos Wombat Ranges. Nessa época, Ned Kelly ganhou uma luta de boxe a punho descoberto contra Wild Wright e tornou-se o campeão não-oficial de boxe do nordeste de

Victoria.

Enquanto isso, , o irmão mais novo de Ned, tornou-se parte de um grupo de jovens cavaleiros conhecido como o Greta Mob. Os membros desse grupo seriam mais tarde simpatizantes do bando de Kelly e, como tal, ajudariam os fugitivos a se esconder na mata e a 34

escapar da polícia, além de manter o bando informado sobre os passos dos policiais e sobre o que acontecia nas cidades da região.

Durante o ano de 1877, Ned Kelly e seu padrasto George King lideraram um bando de rapazes em uma bem sucedida ação interestadual de roubo de gado e de cavalos. O bando incluía Dan Kelly, Wild Wright, e seu amigo , entre outros, e geralmente roubava gado em Victoria, atravessava para a colônia de Nova Gales do Sul, dividia-se em dois grupos, que fingiam conhecer-se em uma fazenda, onde um grupo venderia cavalos para o outro e, com a ajuda do dono da fazenda, feliz em testemunhar o negócio, obteria notas legais para a transação. O gado, ou os cavalos, seriam vendidos em outra cidade, na maioria das vezes em Melbourne.

No mesmo ano, Ned Kelly foi preso por bebedeira e desordem. Ele também foi acusado de resistir à prisão, pois se envolveu em uma briga contra quatro policiais na loja de um sapateiro em Benalla antes de ser levado para a prisão. Em seu julgamento, declarou-se culpado e foi apenas multado.

Em 1878, o policial Alex Fitzpatrick foi à casa dos Kelly para prender Dan. Algumas horas depois, Fitzpatrick, cheirando a conhaque e com o pulso enfaixado, contou ao sargento

Whelan uma história estranha: ele havia tentado prender Dan, mas fora impedido pela Sra.

Kelly, que o acertou com uma pá, e por Ned, que lhe deu um tiro. De acordo com a família

Kelly e outras testemunhas, Fitzpatrick havia tentado beijar Kate Kelly à força, e Dan tentara impedi-lo. Em uma carta escrita tempos depois, a Carta de Jerilderie, Ned afirma ter estado a milhas de distância de casa essa noite.

A verdade sobre o incidente envolvendo Fitzpatrick permanece um mistério. No entanto, Ned, Dan, a Sra. Kelly, Brickey Williamson, um amigo da família, e Bill Skilling, cunhado de Ned, foram acusados de tentativa de assassinato. Ned e Dan fugiram para a mata.

Como não conseguiu encontrar os irmãos Kelly, a polícia prendeu a Sra. Kelly, que foi 35

condenada a três anos de prisão, e Bill Skilling e Brickey Williamson, que foram condenados a seis. Acredita-se que o episódio Fitzpatrick e a prisão da Sra. Kelly tenham desencadeado os atos criminosos de Ned e seu bando.

Kelly fez uma proposta para o juiz Alfred Whyatt por meio de seu tio Pat Quinn: ele e o irmão se renderiam se a mãe fosse solta. A contra-oferta não foi nada prometedora: se os irmãos Kelly se rendessem, o juiz faria tudo o que estivesse ao seu alcance para libertar Ellen.

Ned e Dan continuaram a ser fugitivos, escondendo-se em uma cabana em Bullock

Creek. Dois amigos, Joe Byrne e , faziam-lhes freqüente companhia. Tanto Joe quanto Steve encontravam-se lá no dia em que os irmãos Kelly viram dois policiais em

Stringybark Creek, próximo ao lugar onde estavam. Os quatro rapazes foram ao acampamento policial, onde encontraram apenas dois policiais, Thomas McIntyre e Thomas Lonigan, e tentaram rendê-los. McIntyre cedeu, mas Lonigan aparentemente correu em direção a um tronco de árvore e atirou em Ned, que atirou também e matou o policial. O grupo, que seria a partir de então conhecido como o bando de Kelly, tentou render os outros dois membros do grupo de busca, Michael Scanlan e Michael Kennedy, quando estes voltaram para o acampamento. Ambos os policiais tentaram alcançar a arma, e Scanlan foi baleado. Kennedy correu para a mata, enquanto McIntyre fugia do acampamento a cavalo. Ned Kelly atirou e matou Kennedy.

Ned ditou uma carta para Joe. Ela deveria ser enviada para o superintendente Sadleir e para o Sr. Donald Cameron, que havia perguntado no parlamento sobre a origem da insurreição dos Kelly, e continha a versão detalhada de Ned sobre os assassinatos de

Stringybark Creek. A carta, conhecida como a Carta Cameron, foi copiada em Euroa, durante o primeiro assalto a banco do bando, em 1878. Ned confundiu a manobra política de Cameron com boa-vontade. 36

O bando, agora composto por Ned e Dan Kelly, Joe Byrne e Steve Hart, os quatro rapazes que estavam em Stringybark Creek, assaltou uma fazenda próxima a Euroa, onde manteve algumas pessoas presas, e cortou as linhas do telégrafo. No dia seguinte, foi até o

National Bank, roubou o dinheiro e levou o gerente e sua família até a fazenda que havia assaltado. Algum tempo depois, eles libertaram os prisioneiros e foram embora.

Após esse ousado roubo, a recompensa pela captura de Ned, bem como pela dos demais membros do bando, foi duplicada, e mais policiais foram enviados para o nordeste de

Victoria para participar dos grupos de busca e tentar prender os fora-da-lei.

O dinheiro do assalto ao banco de Euroa foi distribuído entre os familiares e simpatizantes do bando, e também foi usado para pagar um advogado para defender os simpatizantes e conhecidos da família Kelly que haviam sido presos pela polícia. As prisões foram uma medida impopular por dois motivos: por não haver acusações contra nenhum deles e por ser época de colheita, pois os pequenos proprietários presos não podiam trabalhar em suas terras.

Enquanto isso, Aaron Sherritt, o amigo de longa data de Joe Byrne, tornou-se um agente duplo. Ele dava informações falsas para a polícia e levava os soldados a lugares onde não poderiam encontrar nada, ao mesmo tempo em que informava o bando de Kelly sobre as investigações e planos da polícia.

No começo de 1879, o bando roubou outro banco, levando a cabo um plano audacioso.

Eles mantiveram sob controle uma delegacia de polícia, tendo dois policiais como prisioneiros, em Jerilderie, na colônia de Nova Gales do Sul. Mais uma vez, cortaram os fios do telégrafo. Dan Kelly, vestindo o uniforme da polícia, e Steve Hart, vestindo roupas comuns, acompanharam a esposa de um dos prisioneiros até a igreja, para evitar suspeitas dos demais habitantes da cidade. Dois dias depois, o bando de Kelly assaltou o Bank of New

South Wales. Novamente, Ned trouxe uma carta, que ele queria publicar. Ele não publicou a 37

Carta de Jerilderie, como agora é chamada, porque não conseguiu encontrar o editor do jornal da cidade em casa, mas deixou-a com a esposa do editor para que fosse publicada mais tarde.

A carta foi entregue à polícia e não alcançou o público que Ned havia almejado na qualidade de fora-da-lei. O assalto em Jerilderie constrangeu a polícia, cujas demoradas ações pela captura do bando eram freqüentemente criticadas pelos jornais.

A essa altura, a família Byrne havia começado a suspeitar das atitudes de Aaron e a destruir a confiança de Joe em seu amigo. Além disso, os rapazes do bando de Kelly tinham outro plano. Eles haviam começado a roubar arados de fazendas da região para construir as armaduras que se tornariam o símbolo do bando e da captura de Ned em Glenrowan.

Os novos planos do bando começavam com o assassinato de Aaron Sherritt, a quem consideravam, nesse momento, um traidor. O assassinato de um informante da polícia atrairia

à cidade de Beechworth um trem especial, carregado de policiais, que certamente passaria por

Glenrowan no caminho. Em determinado ponto dessa cidade, os trilhos estariam quebrados, o que causaria um acidente e mataria grande parte dos policiais. Os possíveis sobreviventes seriam mortos pelo bando de Kelly, cujos membros estariam usando as armaduras.

Joe Byrne matou seu amigo Aaron Sherritt e foi para o hotel Glenrowan Inn com Dan

Kelly. Ned e Steve já estavam lá e haviam mantido como prisioneiras, no hotel, várias pessoas da cidade. No entanto, os policiais que estavam com Aaron demoraram muito para informar a polícia sobre o assassinato, o que causou um atraso nas ordens para enviar tropas a

Beechworth. Esse atraso fez o bando de Kelly ficar esperando pelo trem mais de vinte e quatro horas sem dormir. Além disso, Ned permitiu que o professor Thomas Curnow saísse do hotel e fosse para casa ver a esposa. Thomas parou o trem e avisou a polícia.

A polícia cercou o hotel e começou a atirar. O bando de Kelly atirou também. Alguns dos que estavam no Glenrowan Inn ficaram feridos. Ned saiu do hotel para conversar com os simpatizantes, que esperavam por sinal nas colinas ao redor da cidade, e evitar que se 38

juntassem ao bando, uma vez que o plano inicial havia falhado. Enquanto isso, Joe Byrne foi baleado na virilha e morreu. Os reféns começaram a fugir. Ned, que já havia sido baleado nos braços e pernas e perdido muito sangue, voltou para o Glenrowan Inn em uma última tentativa de resgatar seus companheiros. Ele começou a atirar nos policiais, que revidaram e feriram-no várias vezes. Após perder sangue, desde os primeiros ferimentos, por aproximadamente cinco horas, e receber um total de vinte e oito ferimentos de bala, Ned caiu e foi, por fim, capturado.

Depois disso, a polícia ateou fogo no hotel, supostamente queimando os corpos de Dan Kelly e Steve Hart. O corpo de Joe Byrne foi retirado do fogo a tempo, e foi mais tarde amarrado a uma porta para que os repórteres pudessem fotografá-lo.

Ned Kelly foi levado para a cadeia Melbourne Gaol, onde cuidaram de sua saúde e curaram suas feridas. Ele foi julgado, considerado culpado e condenado à morte. Recebeu permissão para ver a família apenas duas vezes: uma durante o julgamento e outra após ter recebido a sentença. Embora sua irmã Maggie Skilling e seu primo Tom Lloyd, com a ajuda de membros do movimento contra a sentença de morte, tivessem reunido mais de 32.000 assinaturas, não conseguiram alterar a sentença de Ned. Ele foi enforcado em Melbourne Gaol no dia 11 de novembro de 1880, e diz-se que suas últimas palavras foram “é a vida”. 10

O irmão de Ned e Dan, Jim Kelly, estava preso no período em que o bando de Kelly esteve em ação, e foi solto pouco antes do cerco aos rapazes em Glenrowan. É provável que sua prisão tenha evitado que ele se tornasse membro do bando e que partilhasse o destino dos irmãos.

Os corpos de Dan e Steve foram levados pelos familiares e foram enterrados. Ned foi decapitado após a morte e sua cabeça foi entregue a médicos para ser estudada 11 . Tanto o

10 “Such is life ”, em inglês. As supostas últimas palavras de Ned tornaram-se o título de um dos livros de Joseph Furphy, considerado o primeiro romance realmente significativo e representativo da literatura australiana (DAVEY; SEAL, 2003). 11 Nessa época, acreditava-se que o estudo do cérebro dos criminosos poderia revelar o que levava um homem a cometer um crime. Decapitar prisioneiros condenados à morte era prática comum nesse período da Austrália colonial (JONES, 2003). 39

corpo de Ned quanto o de Joe foram levados pela polícia e nunca foram devolvidos às famílias para um enterro cristão.

1.2.2. Ned Kelly e a cultura australiana

Pretendemos discutir aqui a importância que a história de Ned Kelly adquiriu na

Austrália e alguns dos motivos que podem ter ocasionado o enorme movimento em torno dessa figura histórica.

Ned Kelly tornou-se um homem maior do que a própria vida, e está presente na cultura australiana até hoje, seja causando debates em busca de uma (im)possível verdade, seja inspirando criações nas manifestações culturais erudita, popular e de massa, que vão desde pinturas ao desfile de abertura dos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000, de baladas a personagens literários, de séries de televisão a projetos cinematográficos. Sua influência estende-se também à cultura aborígine: Ned tornou-se personagem do “tempo do sonho”, ou dreamtime 12 , aborígine, e representa a luta contra a injustiça, ao passo que o capitão James

Cook é associado ao roubo da terra das diversas tribos (MARTIN, 2004).

Apesar de tudo o que foi dito pelos jornais no período de seus atos criminosos, ele é considerado por grande parte da população um herói e um exemplo de revolta contra a injustiça. Ned tem um plano, mas fracassa; ele tem, portanto, o perfil do típico herói popular australiano, cuja celebração tem raízes históricas e inicia-se com as fugas nem sempre bem sucedidas de prisioneiros e, em especial, com os primeiros ladrões de estrada da colônia, sobretudo os que atuavam nos povoamentos continentais. Essa característica da identidade australiana foi alimentada ainda pelas histórias de exploradores que não voltaram para casa,

12 O dreamtime aborígine representa o ciclo de vida dos povos, que inclui vida como ser humano, morte e reencarnação, como ser humano ou animal; iniciou-se no passado e continua existindo, e está em constante movimento. Embora tivéssemos encontrado esse termo em algumas leituras, o sentido da expressão ficou mais evidente no período que passamos na Austrália, quando perguntamos a um aborígine do estado de Victoria sobre seu significado.

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que pereceram no interior do país ao tentar atravessá-lo, como é o caso de Leichhardt, Burke e

Wills. O imaginário australiano favorece o perdedor; o fracasso é visto, antes de mais nada, como o resultado de uma batalha, uma batalha em que existiu um esforço, mesmo que frustrado.

A associação de Ned Kelly a um arquétipo corrente no país desde os tempos coloniais não é, porém, o único fator a explicar sua rápida popularização e profundo enraizamento na cultura australiana, bem como sua grande participação na indústria cultural até os dias atuais.

Entre esses fatores encontram-se também os problemas sócio-econômicos da colônia de

Victoria, a própria personalidade do fora-da-lei, e sua formação irlandesa, partilhada por muitos outros colonos. A cultura irlandesa foi, com o passar dos anos, assimilada em parte pela australiana, da qual é importante elemento formador; dessa maneira, muitas das histórias populares e tendências políticas, sobretudo antiimperialistas, foram espalhando-se para além dos lares de irlandeses e generalizando-se.

Um dos fatos que moldaram o ponto de vista de Ned e que, conseqüentemente, influenciaram suas ações, foi sua formação irlandesa. Ele parece ter acreditado que os padrões de dominação inglesa haviam sido trazidos para a Austrália e estavam sendo repetidos nas leis que protegiam os grandes proprietários e no sistema judiciário. Nesse caso, como foi discutido por Manning Clark em Ned Kelly: Man and Myth (Cave et al., 1968), o rapaz estava dividido entre uma educação católica e a sensação de que roubar de um antigo inimigo não era crime.

Seu senso de injustiça nas colônias também foi influenciado pela decepção que os imigrantes irlandeses sentiram uma vez estando na Austrália, pois pensaram que teriam uma vida melhor, mas descobriram que a terra na nova colônia pertencia ao mesmo tipo de pessoas que a possuíam na Irlanda. A diferença de classes era causada não só por motivos econômicos mas também por motivos tradicionais — tais como a causa nacional, que perpetuava na 41

Austrália a luta entre ingleses e irlandeses, comum na Grã-Bretanha, e a causa religiosa, que opunha católicos irlandeses e grandes proprietários de terra protestantes.

Outra influência importante da formação irlandesa de Ned estava relacionada ao fato de alguns policiais em Victoria serem irlandeses também. Esses policiais eram vistos como traidores porque vestiam o uniforme da polícia da colônia e obedeciam e honravam leis criadas pelos ingleses, os invasores de seu país. É natural que os irlandeses, dominados pelos ingleses na Grã-Bretanha, trouxessem para a Austrália um desejo de resistência e, ao mesmo tempo, desprezassem os irlandeses que decidiam fazer parte da polícia, compactuando assim com a ideologia dominante. O assunto é discutido por Albert Memmi em seu Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador :

Os representantes da autoridade, quadros, “caides”, policiais, etc., recrutados entre os colonizados, formam uma categoria de colonizados que pretende escapar à sua condição política e social. Mas, tendo escolhido, devido a isso, colocar-se a serviço do colonizador e defender exclusivamente seus interesses, acabam por adotar sua ideologia, mesmo em relação aos seus e a eles próprios. (MEMMI, A., 1989, p.30)

Ao longo de sua vida, Ned desenvolveu um extravagante ódio pela polícia de Victoria, que ele considerava como opressora. É interessante notar que os três policiais assassinados em

Stringybark Creek eram irlandeses.

A forte união de Ned com a família também é vista como um fator que contribuiu para a revolta dos Kelly. Acredita-se que o episódio Fitzpatrick tenha sido provocado pelos modos desrespeitosos do policial para com Kate Kelly, irmã de Ned e Dan. O tratamento que a polícia dispensava à família Kelly, sobretudo às mulheres, quando Ned ou os irmãos não estavam em casa, é mencionado com freqüência em suas cartas. A prisão da mãe, a quem ele idolatrava, parece ter sido considerada por Ned como a pior das injustiças, e o fato de que sua proposta, de render-se se ela fosse libertada, foi recusada, deve ter causado grande efeito nele. 42

As alianças de Ned explicam sua participação no folclore australiano. Nas palavras de

Anne Marsh:

Ned Kelly fazia parte dessa revolução do homem pobre: suas lealdades eram para com a família, os amigos e os simpatizantes republicanos. Sua ascendência e história estavam impregnadas na mitologia das rebeliões irlandesas contra os britânicos. No folclore australiano, Ned Kelly tornou-se um ícone devido a suas lealdades e sua história. 13 (MARSH, 2001, p.61)

Pobreza, solos pouco férteis e secas periódicas transformaram o roubo de gado, ovelhas e cavalos em uma maneira mais fácil de viver para alguns pequenos proprietários e suas famílias. Roubar também era um ato aceitável de acordo com o relativo senso moral da

época: se os grandes proprietários podiam apropriar-se de mais terra do que a área a que tinham direito, roubar desses mesmos proprietários não poderia ser considerado uma ofensa grave. Além disso, na metade do século XIX e, em especial, no interior do país, o cavalo era a posse mais valorizada por um homem, porque simbolizava a liberdade. Um homem a cavalo podia fazer qualquer coisa e ir a qualquer lugar.

A relação do bando com a terra é outro fato notável a acrescentar à sua inserção no imaginário popular: os quatro rapazes eram grandes cavaleiros e conhecedores do ambiente em que viviam, e seu conhecimento sobre o nordeste de Victoria foi decisivo para fugir e esconder-se da polícia. Embora houvesse um elemento irlandês na revolta, o bando representava o modo de vida do nativo australiano, de todas as pessoas que lutavam contra a terra árida da Austrália.

De acordo com T. Mitchel (In: Cave et al ., 1968), o bando de Kelly, e sobretudo Ned, que era um líder nato, tornou-se uma forte presença no imaginário popular tanto porque eles estavam entre os últimos bushrangers quanto porque os elementos que tiveram de enfrentar eram mais difíceis do que as condições vividas por seus antecessores: uma força policial

13 Ned Kelly was part of this poor man’s revolution: his loyalties were to family, friends and republican sympathizers. His ancestry and history were steeped in the mythology of the Irish rebellions against the British. In Australian folklore Kelly became an icon because of his loyalties and his history. 43

melhor, com melhores montarias, e os rápidos meios de comunicação, tais como o telégrafo e as ferrovias.

O código de honra dos ladrões de estrada, segundo o qual apenas os ricos deveriam ser roubados e as mulheres deveriam ser bem tratadas, também parecia ser seguido por Ned

Kelly. Conta-se que, em uma ocasião, ele devolveu a um sacerdote o relógio que Steve Hart havia roubado, e que distribuía dinheiro entre os simpatizantes que eram pobres e tinham dívidas. Além disso, ele foi descrito como gentil para com as mulheres em seus assaltos, e diz-se que nunca utilizava expressões grosseiras diante delas. Nas palavras de Glen Tomasetti,

Kelly “elevou-se acima de sua situação pela rebeldia, mostrando assim uma das qualidades das quais uma lenda é feita. Ele tornou-se um símbolo de revolta até a morte contra circunstâncias graves 14 ” (In: Cave et al ., 1968, p.93).

A participação no imaginário popular cresceu ainda mais ao longo dos anos, quando alguns aspectos heróicos de seu caráter e sua força física começaram a ser ressaltados. Tanto em suas cartas quanto em suas declarações durante o julgamento, Ned sempre procurava incriminar-se e não dividia a responsabilidade dos assassinatos de Stringybark Creek com os demais membros do bando, o que lhe dá um ar de nobreza. A força e resistência que demonstrou em Glenrowan, em que ele foi capturado somente após de ter sido ferido vinte e oito vezes e perdido sangue por horas enquanto usava uma armadura pesada, também conferem-lhe uma dimensão sobre-humana.

O caráter de Ned não foi o único elemento que contribuiu para que se tornasse parte integrante da cultura nacional. Novas interpretações de seus atos, assim como possíveis intenções, como a de fundar uma república — um ponto a respeito de Kelly que nunca foi esclarecido — foram acrescentadas ao imaginário popular. O que permanece forte é o fato de que a vida de Ned e seus feitos oferecem a possibilidade de re-discutir e re-avaliar o passado,

14 “rose above his situation by defiance, thereby showing one of the qualities from which legend is made. He became a symbol of rebellion to the death against harsh circumstance.” 44

porque ocorreram em uma época de conflitos, em que as oposições entre classe dominante e classe dominada e entre imperialistas e anti-imperialistas acirravam-se, e também quando uma consciência nacional australiana começava a emergir.

Ao usar a palavra escrita para dar seu testemunho em duas cartas, que apareceram no período em que era considerado um fora-da-lei, Ned compreendeu que isso lhe permitiria alcançar outro público e outros tempos e manteria em debate os atos do bando. Segundo Anne

Marsh, Ned Kelly “entrou no simbólico mundo da linguagem de propósito. Ele entendeu o poder da palavra escrita e seu status histórico 15 ” (MARSH, 2001, p.62).

A influência de Ned Kelly nas artes australianas, e em especial na literatura, é impressionante. No entanto, pesquisar todos os textos inspirados pelo fora-da-lei e por seus atos seria uma tarefa monumental. Os primeiros textos inspirados na história de Kelly foram as baladas comumente escritas no sertão australiano, as bush ballads 16 , muitas das quais foram compostas enquanto ele ainda estava vivo, no período em que assaltou bancos, algumas tendo sido atribuídas a um dos membros do bando, Joe Byrne.

Logo após sua morte, Ned passou a ser idolatrado pelos australianos. Os primeiros exemplos de sua influência na literatura são encontrados em textos do século XIX: The Kelly

Gang (1898), de Reg Rede, e The Newest Woman, Destined Monarch of the World (1895), de

Millie Finkelstein. A peça de teatro escrita por Reg Rede, The Kelly Gang , é um exemplo do melodrama escrito em Melbourne no final do século XIX . O ladrão australiano dessas peças era baseado em grande parte no ladrão de estradas do drama inglês, e as interpretações romantizadas do passado recente escritas nesse período contribuíram para a superação da origem prisioneira e para o retrato de uma nação dignificada. O romance futurístico de

15 ...purposefully entered the symbolic world of language. He understood the power of the written word and its historical status. 16 O termo bush ballads refere-se a poemas ou canções populares, em sua maioria anônimas, comuns no folclore australiano até hoje e imortalizadas também por escritores importantes, como A. B. “Banjo” Paterson e Henry Lawson (DAVEY; SEAL, 2003, p.50). 45

Finkelstein faz uma inversão sexual dos papéis e apresenta Ned na pele de uma ladra de estradas, Kate Keely (WOLF, G., 2004, p.73).

Outra versão feminina da história de Kelly foi escrita por Jean Bedford em 1982. Com seu romance Sister Kate , a escritora transforma em ficção a vida de Kate, uma das irmãs de

Ned, e inclui um romance da moça com outro membro do bando, Joe Byrne, bem como alcoolismo e tentativa de suicídio.

Ned Kelly tornou-se, nos séculos XX e neste início do XXI , parte da indústria cultural australiana, e muito mais romances inspirados em sua vida foram escritos, dos quais alguns dos mais conhecidos são Ned Kelly and the City of Bees, de , publicado em

1978, Our Sunshine , de , publicado em 1991, e True History of the Kelly Gang

[A história do bando de Kelly ], de Peter Carey, publicado em 2000 e inspirado na carta de

Jerilderie, escrita pelo rapaz em um assalto a banco.

A história de Kelly também influenciou outros campos nas artes australianas. Entre

1946 e 1947, Sydney Nolan pintou a assim chamada série Kelly, na qual ele fez sua interpretação de parte da vida do bando, enfatizando a figura de Ned Kelly, a quem o pintor considerava um rebelde e um herói nacional (MARSH, 2001). A representação que Nolan fez de Ned inspirou os organizadores dos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000 e na abertura desfilaram vários Neds, usando armaduras estilizadas semelhantes aos desenhos do pintor.

A história de Ned Kelly também foi contada em quadrinhos, em várias séries de televisão e em filmes. Em 1969, foi lançado o filme Ned Kelly , que estrelava Mick Jagger no papel principal e incluía canções que narravam parte da história. A produção cinematográfica mais recente, Ned Kelly , de 2003, dirigido por Gregor Jordan, baseia-se no romance de Robert

Drewe, e estrela atores australianos de sucesso internacional, como , no papel de

Ned, além de Naomi Watts e Geoffrey Rush. 46

Our Sunshine , de Robert Drewe, promove uma colagem de fragmentos (fatos e lembranças) de um Ned Kelly que narra ora em primeira, ora em terceira pessoa, e mistura imagens de violência, carnavalização e morte. O pronome possessivo our — nosso — confere ao título um tom nacionalista e reclama sua inserção no corpo de textos sobre Ned Kelly

(HUGGAN, 2001-2002).

O filme, diferente do romance de Drewe — que entremeia os fatos presentes do bando de Kelly no hotel da Sra. Jones em Glenrowan, como conversas com os reféns, com lembranças de pessoas e acontecimentos passados — apresenta a história dos quatro rapazes em ordem cronológica.

O romance de Drewe, como o de Carey, mistura fatos reais, como o salvamento de um menino que se afogava, quando Ned é criança, o assassinato de policiais, os assaltos a banco e o tiroteio final, e ficção, como a existência de uma amante, quando Ned trabalhava em uma fazenda, e de uma trupe de circo — o que inclui um macaco e um leão — entre os reféns em

Glenrowan. O filme apresenta as mesmas características, embora não mencione alguns dos irmãos de Ned, como é o caso de Annie, Maggie e Jim (aparecem, como personagens, somente Kate, Grace, Dan e o bebê Ellen). Há momentos de humor, com os galanteios de Joe e os xingamentos dirigidos aos policiais da colônia e baseados em aspectos de animais australianos, alguns deles sugeridos pelos próprios reféns em um assalto a banco. Há também um elemento de revolta contra os desmandos das autoridades coloniais e de perseguição e tratamento injusto da polícia e mesmo da rainha britânica.

Com relação à linguagem, o filme se vale, nas falas de diversas personagens, sobretudo as de origem mais humilde, do sotaque típico da região onde Kelly viveu. Também o romance de Peter Carey, True History of the Kelly Gang (2000), apresenta um refinado trabalho com a linguagem das personagens, aspecto que será abordado mais adiante neste trabalho. 47

Esses fatos evidenciam que esta complexa figura histórica australiana está presente em vários segmentos da cultura de seu país: da cultura popular passou à erudita por meio da pintura e da literatura, e dessas duas passou à cultura de massa e é intensamente comercializada pela televisão e pelo turismo.

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II – Peter Carey e a literatura australiana

“mythical Australia, where reside All things in their imagined counterparts .” (James McAuley, “Terra Australis”, in Veronica Brady, Can These Bones Live? , 1996, p.10)

2.1. O desenvolvimento da literatura australiana

Os primeiros textos produzidos sobre a Austrália foram as cartas de descoberta, escritas pelos vários exploradores que navegaram o Pacífico Sul e alcançaram diferentes pontos do litoral australiano. Esses eram textos descritivos que se referiam, em sua maioria, ao solo, aos habitantes, à fauna e à flora da terra recém-descoberta.

Os aspectos do novo local também constituíram um tema principal de muitos textos escritos no início da colonização. A geografia e as condições do solo ocupavam boa parte dos diários escritos pelos exploradores que se aventuravam continente adentro à procura de novas pastagens, rios, e até de um suposto “mar interior”. A fauna e a flora faziam parte das primeiras descrições escritas por botânicos e cientistas que foram ao continente tanto com a

Primeira Frota quanto mais tarde, com outros navios, atraídos pelo crescimento da colônia e pelo estabelecimento de novos povoamentos em uma terra ainda pouco explorada. Não apenas a impressão geral da terra, sua fauna e flora, mas também o modo de vida durante as primeiras décadas de colonização foram descritos por viajantes, capitães de navios, oficiais militares e suas esposas em diários e cartas.

Os criminosos condenados ao degredo trouxeram consigo uma rica literatura oral e a tradição inglesa, escocesa e irlandesa das baladas populares, que logo se espalharam pela colônia. Muitas dessas baladas foram adaptadas de seus originais europeus a situações coloniais e passaram a ser transmitidas oralmente, e tinham muito do protesto irlandês, bem como do senso de perseguição comum aos criminosos. Seu tema principal era o sistema de 49

degredo, embora também passassem a incluir, com a expansão dos povoamentos e progresso das colônias, temas como os ladrões de estrada e a vida no sertão australiano.

Durante parte do século XIX, alguns escritores australianos tentaram difundir, com seus textos, sobretudo na prosa e no teatro, a idéia de que o degredado enviado à Austrália era inocente e havia sido condenado a um castigo injusto, ou que havia cometido um único erro na vida e pago caro por isso. Esses textos resgatavam os antepassados criminosos dos australianos de forma romantizada.

Essa aura de inocência, aliada a uma descrição romântica da paisagem local, tentava ainda conferir ao país o status de paraíso na terra que a colonização, ao contrário do que ocorreu nas Américas, não lhe havia conferido.

A descoberta do ouro trouxe avanços democráticos, tecnológicos e culturais à colônia.

Nas artes, as áreas mais beneficiadas foram a literatura e a arquitetura, com inúmeros edifícios e construções de tendências várias sendo erguidos nas capitais.

Também no século XIX, mas já nas últimas décadas, outro fator importante para a literatura australiana foi a publicação da revista literária The Bulletin , que reunia escritores com ideais antiimperialistas e nacionalistas e garantia-lhes um público dentro da própria colônia. A revista foi responsável pela publicação de uma literatura verdadeiramente voltada, pela primeira vez, para o australiano, bem como pela criação do tipo sertanejo, presente na poesia e na prosa. No entanto, a revista não era de todo democrática, e seus diretores e muitos de seus membros aliavam aos ideais nacionalistas os ideais machistas e mesmo os racistas, como a defesa de uma Austrália branca, que ganharia força entre os australianos e daria origem à Política Branca de controle da imigração em boa parte do século XX.

As duas grandes guerras mundiais trouxeram à Austrália benefícios econômicos e a noção de nacionalidade, e os debates em torno do assunto atingiram também a literatura. A partir do século XX, os escritores australianos experimentaram novas técnicas, correntes na 50

Europa, como o fluxo de consciência, e escreveram textos mais politizados e complexos. É nesse século que surgiu o primeiro grande escritor australiano reconhecido no exterior, Patrick

White, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1973.

A partir da década de 1970, o governo australiano passou a investir mais nas diversas artes. Na literatura, isso se tornou evidente com a criação de companhias teatrais do próprio governo e de festivais de teatro, além da criação de revistas e vários prêmios literários. Uma nova geração de talentosos escritores surgiu e a atuação de muitos deles, como David Malouf e Peter Carey, na prosa, e de Les Murray, na poesia, recebeu destaque na Austrália e em outras partes do mundo, sobretudo em alguns países da Europa, como é o caso da Alemanha, em que a tradução da poesia de Murray tem recebido críticas favoráveis 17 .

2.1.1. Os aborígines

Os primeiros textos escritos pelos aborígines em alfabeto romano foram cartas ditadas ou textos escritos em colaboração com um colonizador branco. No período colonial, a escrita foi usada pelos brancos como instrumento de controle, ao passo que foi utilizada pelos aborígines como meio de comunicação com parentes em lugares distantes, bem como veículo de resistência e negociação política. A escrita tornou os membros das comunidades aborígines mais integrados, pois os jovens tinham a habilidade para escrever, mas somente os mais velhos tinham autoridade para negociar o que seria dito e reivindicado.

A primeira revista voltada para os aborígines de todo o país foi The Abo Call , publicada em 1938, com duração de seis edições. Nessa revista, tratava-se da situação dos aborígines nas várias reservas criadas pelo governo e contestava-se a idéia de que a colonização da Austrália havia sido pacífica.

17 Tivemos a oportunidade de ouvir duas palestras com a presença de Les Murray e de seu tradutor para o alemão, Thomas Eichhorn, durante um evento literário na Austrália, o Sydney Writer’s Festival. Eichhorn, que ganhou um prêmio por sua tradução de Freddy Neptune , comentou, sobre este trabalho, que transformou o texto de Murray — escrito em inglês, mas com germanismos — em um texto em alemão, com alguns australianismos. 51

As primeiras obras aborígines de ficção só foram publicadas a partir da terceira década do século XX por William Ferguson, que narrou uma história contada por outro aborígine, e por David Unaipon, que recontou histórias tradicionais e também escreveu uma autobiografia.

A tradição oral aborígine sobreviveu ao longo dos anos e muitas de suas canções e histórias tradicionais foram publicadas em antologias em diversos momentos. No entanto, a fase contemporânea da literatura aborígine inicia-se em 1964, com a publicação da primeira coleção de poemas de Oodgeroo Noonuccal (Kath Walker), We Are Going . Embora os escritores aborígines tenham enfrentado muito preconceito, sobretudo dos críticos, esse livro abriu um novo canal de transmissão que permitia que a classe dominante ouvisse o que os aborígines tinham a dizer.

No Bicentenário da Colonização Britânica, as autobiografias escritas por aborígines tornaram-se bastante populares. Essas autobiografias diferem do padrão ocidental: elas tendem a ser menos introspectivas e a apresentar a vida do autor como uma viagem. Algumas delas têm dois autores, o que as torna mais dialógicas que as autobiografias ocidentais. Esse é o caso do livro Auntie Rita (1994), escrito por Rita Huggins e sua filha Jackie Huggins, que conta a história da família mesclando as percepções de duas gerações diferentes.

Outra escritora aborígine importante é Sally Morgan, que já publicou autobiografia, livro infantil e relatos de outros aborígines. Seu livro My Place , publicado em 1987, narra a descoberta da ascendência aborígine da autora, que sempre acreditara ser indiana, pois era o que lhe diziam a mãe e a avó, e a verdadeira história dos membros de sua família.

2.1.2. A poesia

Entre os criminosos escritores do período colonial, havia dois baladistas: Francis

McNamara, que escreveu poemas sobre a vida dos prisioneiros, e Michael Massey Robinson, que além das baladas, também era conhecido pelas odes de aniversário. 52

A poesia do início do período colonial era bastante influenciada pelo pensamento e pelas formas literárias vigentes na Europa, embora alguns dos poetas que escreviam na

Austrália nesse período começassem a prestar atenção ao novo ambiente que os rodeava.

A primeira pessoa nascida em solo australiano a publicar algum poema foi William

Charles Wentworth, filho de uma prisioneira e de um médico. Ele publicou alguns poemas enquanto estudava em Cambridge e um livro em 1806.

O livro First Fruits of Australian Poetry (1819), de Baron Field, foi o primeiro livro publicado na Austrália, embora a publicação tenha sido paga pelo próprio autor e tenha circulado entre amigos.

Outro filho de criminosos degredados, Charles Harpur, dedicou-se ao projeto de fundar uma poesia australiana. As publicações de seus poemas eram, muitas vezes, pagas por ele mesmo, e seus versos descreviam a paisagem australiana, sobretudo sua luz e solidão.

Henry Kendall, outro poeta dos tempos coloniais, foi influenciado por Harpur, mas escreveu em um estilo mais próximo ao vitoriano. Ele escreveu poemas líricos e não narrativos ou épicos, e descreveu tanto a natureza de Nova Gales do Sul quanto seus próprios sentimentos.

Adam Lindsay Gordon, um inglês expatriado, escreveu poemas sobre temas locais, tais como a vida de trabalhadores rurais temporários que viajavam de cidade em cidade em busca de serviço. Suas baladas eram muito conhecidas, mas seus livros não vendiam. Ele cometeu suicídio no dia do lançamento de sua última publicação, Bush Ballads and Galloping

Rhymes (1870), que se tornou um sucesso.

Outros poetas do período colonial, já em fins do século XIX, tinham forte influência européia: Christopher Brennan, que tinha grande afinidade com o simbolismo, voltou-se para o pensamento poético ocidental e escolheu como tema principal a oposição entre corpo e alma, enquanto poetas como Hugh McCrae e Norman Lindsay usaram imagens gregas em 53

seus poemas. McCrae, que publicou obras também no início do século XX, evitou o tema da flora e da fauna, típico das baladas, deixando seus versos em uma esfera meio arcádica, meio de devaneio.

John Shaw Neilson teve pouca escolaridade, mas complementou-a com leituras diversas e foi encorajado por A.G. Stephens, editor do The Bulletin . Neilson tinha também um problema de vista, uma vida de trabalho pesado e pouco tempo para dedicar-se à literatura, o que influenciou sua poesia: seu ritmo era mais simples, a fim de que ele pudesse guardá-los na memória até que tivesse a oportunidade de escrevê-los, e seus versos se concentravam em temas como a morte e a escuridão.

Entre esses poetas, Christopher Brennan e John Shaw Neilson, que trabalharam diferentes temas e formas de simbolismo, são considerados os precursores do modernismo australiano.

Entre as mulheres a escreverem poesia no fim do período colonial e início da federação, destaca-se Louisa Lawson, fundadora da primeira revista feminista da Austrália.

Embora os últimos anos do século XIX fossem anos de agitação a favor do sufrágio universal e de um divórcio mais fácil, a mulher ainda era relegada a um papel secundário, inclusive na literatura, pois pouca atenção era dada à sua produção e as personagens femininas, por exemplo, eram sempre passivas e não agentes. Os versos de Louisa foram, portanto, rapidamente esquecidos.

Entre as escritoras da época, Lesbia Harford foi a poetisa do amor e do desejo sexual.

Seus poemas refletiam sua crença de que havia diferenças irreconciliáveis entre os homens, que possuíam o conhecimento técnico, e as mulheres, que tinham uma atitude aberta e natural.

Outra poetisa de destaque foi a socialista Mary Gilmore. Ela deixou o emprego de professora e juntou-se à comunidade utópica de William Lane no Paraguai. Publicou seus primeiros livros ao voltar para a Austrália, mas sentia-se dividida entre os papéis de mãe e 54

esposa e seu espírito empreendedor e a literatura. Ela foi a poetisa de mais destaque da época.

Seus trabalhos elogiados, no entanto, foram aqueles que celebravam os pioneiros, a vida no campo ou os soldados de guerra, e não aqueles que exploravam a diferença sexual, contrastando os pontos de vista masculino e feminino. Gilmore também retratou em sua poesia os aborígines, descrevendo sua cultura como forte e de valor antes da chegada do homem branco com suas atitudes predatórias.

Também nesse período, e no início da federação, as baladas tornaram-se muito populares. O cenário local tornou-se então um indicador crucial da “australianidade”. Os baladistas do período inspiraram-se na tradição oral colonial e não na tradição européia e suas baladas foram marcadas pela sátira e pela insubmissão aos valores e modo de vida ingleses, bem como pelo senso de sofrimento e dificuldade. Henry Lawson, filho de Louisa Lawson, escreveu contos e romances, e celebrava em suas baladas os habitantes pobres das cidades, enquanto A.B. “Banjo” Paterson, outro grande baladista, celebrava nelas a vida e os valores do campo.

Kenneth Slessor, cuja adolescência foi marcada pela depressão que se seguiu à

Primeira Guerra Mundial, impregna seus poemas de frustração e retrata uma luta obsessiva da mente humana contra a aniquilação.

Nas décadas de 1930 e 1940, os dias de influência do Bulletin já haviam passado. Três escolas poéticas estavam em disputa: os Jindyworobaks, os Angry Penguins e os estudantes e poetas radicais que publicavam versos na revista Hermes . Os Jindyworobaks propunham a junção das tradições branca e aborígine para formar uma civilização australiana. O grupo foi satirizado, mas reacendeu os debates em torno da causa aborígine. A revista Hermes dependia da aptidão do corpo discente da Sydney University. No entanto, atraiu poetas talentosos, como James McAuley e Harold Stewart, entre outros. Os Angry Penguins defendiam valores 55

modernistas. Um de seus membros, Max Harris, escrevia uma poesia provocativa, que combinava a técnica do fluxo de consciência e o tema do desejo sexual.

A grande rivalidade entre os poetas de Sydney e os Angry Penguins, de Melbourne e

Adelaide, culminou no caso Ern Malley. Criado por McAuley e Stewart, Malley era um suposto mecânico falecido que havia deixado manuscritos, encontrados pela irmã, que os enviou a Max Harris por não saber julgar seu valor. Harris anunciou Malley como um grande talento e publicou seus versos na revista Angry Penguins . O plano dos poetas de Sydney ─ que criaram as obras de Malley escolhendo frases aleatórias tiradas de diversos materiais a fim de criar uma poesia sem sentido e criticar o bom senso dos Angry Penguins ─ foi relatado no tablóide Sunday Sun . Harris retrucou dizendo que os poemas continham um material melhor do que os autores poderiam supor. O debate acerca do valor daqueles poemas persiste, pois, embora compostos a partir de frases desconexas, o exercício poético anterior de

McAuley e Stewart conferiam-lhes uma surpreendente coerência.

De acordo com Elizabeth Webby, a influência positiva do caso Malley “foi libertar a poesia australiana de modelos dogmáticos e criar um ambiente em que talentos ecléticos pudessem florescer” 18 (WEBBY, 2000, p.91).

Entre os poetas dos anos 1950, destacam-se, entre outros, A.D. Hope e Rosemary

Dobson, que continuaram publicando nas décadas seguintes. Stewart e McAuley deram as costas à tradição modernista de expressão da experiência subjetiva e voltaram-se para a Ásia e o Pacífico em seus poemas. Stewart focalizou a civilização sino-japonesa, enquanto McAuley voltou-se para a Papua Nova Guiné.

Nos anos de 1960, destaca-se o trabalho de Judith Wright, conhecida também por sua luta pela ecologia e pelos povos aborígines. Em suas poesias, ela se volta para o próprio país: seu trabalhador do campo e a terra finalmente tornam-se um só. Seus poemas refletem ainda

18 ...was to free Australian verse from dogmatic models and create an environment in which eclectic talents could flourish. 56

uma outra crença, reforçada pela guerra: a de que o homem fez as escolhas erradas e que cabe ao poeta oferecer uma alternativa.

As poetisas cujas obras apareceram nessa década, como Gwen Harwood, ainda enfrentavam, a exemplo de Mary Gilmore, conflitos entre a dedicação à poesia e o trabalho no lar.

Os poemas de Harwood oscilam entre a metafísica e a sátira social, e apresentam também queixas contra a vida doméstica, os filhos e o marido. A poetisa publicou diversos trabalhos usando pseudônimos masculinos porque recebiam mais atenção dos editores e acabou por criar personas distintas, como os professores Eisenbart e Kröte.

Outra poetisa a publicar sua primeira obra na década de 1960 foi Kath Walker, ou

Oodgeroo Noonuccal. A escritora aborígine, ativista dos direitos de seu povo, via a poesia como meio de protesto e educação.

O crescimento populacional pós-guerra e o acesso dos jovens a uma melhor educação, a tecnologia, as drogas, o rock’n’roll e a influência da poesia americana abriram caminho para a chamada Geração de 68 da poesia australiana que, embalada pelas revoltas estudantis e políticas ocorridas em todo o mundo naquele ano, experimentaram formas alternativas de publicação e diversos estilos. O verso livre, a poesia concreta e o uso consciente da tipografia floresceram nos trabalhos dos poetas do grupo, que valorizavam a sensibilidade, o frívolo e o imediato e que, por isso, foram associados a um tipo de neo-romantismo.

Entre seus maiores expoentes estão Michael Dransfield e Charles Buckmaster, que, como outros poetas românticos, tiveram mortes prematuras; Jennifer Mainde, uma das poucas mulheres do movimento e talvez o membro mais politizado do grupo; e J.S. Harris, que valorizava temas filosóficos.

Entre os poetas contemporâneos da Geração de 68 destaca-se o grupo conhecido como

Escola de Canberra, formado por poetas mais jovens que propõem uma volta a valores 57

europeus e que, devido a seu interesse pela ciência, descrevem a natureza sem sentimentalismo. Entre os poetas mais conhecidos do grupo estão Kevin Hart, que explora o tema da negatividade e da ausência em ambientes domésticos, e Geoff Page, que mostra interesse pela metafísica e trata da guerra e seus efeitos nos australianos.

Alguns dos poetas que iniciaram suas carreiras nos anos 1960 aproximaram as experimentações poéticas dos anos posteriores cada vez mais a técnicas pós-modernas, tais como o uso de expressões tipicamente australianas, paródia, ironia, novas abordagens de temas como nacionalismo e identidade, e grande interesse na textualidade e na forma, que se expressou na utilização de diversas formas poéticas, como sonetos, odes, elegias, poemas narrativos, sátira e poema em prosa, entre outros.

A assim chamada Geração de 79 valorizava o emprego dessas técnicas, sobretudo as que se relacionavam à forma. Alguns dos poetas mais conhecidos do movimento são Laurie

Duggan, um poeta satírico que também utilizava em seus poemas técnicas como a bricolagem e um tipo de autobiografia não-confessional; John Tranter19 , influenciado pelas técnicas do cinema e interessado por temas como a infância, a cultura popular e a violência; e John A.

Scott, preocupado com a natureza obsessiva da escrita e o jogo de significados. Também são descritos como membros desse grupo a poetisa Dorothy Porter, que desenvolve temas como a violência e a sexualidade e que demonstra interesse em poesia narrativa, e John Kinsella, poeta interessado em poemas longos e ligado à tradição da poesia pastoral australiana, que mescla o lírico e o avant garde e explora temas como a violência. Todos os poetas da Geração de 79 continuaram publicando seus trabalhos nos anos 1980 e 1990.

Entre os poetas que continuavam a publicar seus versos nessa época, destaca-se

Rosemary Dobson, que começa então a explorar temas como a busca da essência e a oposição

19 John Tranter iniciou um projeto de mapeamento da poesia australiana, denominado Australian Poetry Resources Internet Library , ou APRIL , que recebeu, recentemente, uma verba do governo do país. Informações sobre o projeto, que deverá constar de dados biográficos, fotos e poemas de todos os poetas australianos, podem ser encontradas no site de Tranter: http://johntranter.com/. 58

continuidade x impermanência e enriquece suas elegias com o uso intertextual da literatura chinesa antiga.

A poesia pastoral contemporânea australiana é um gênero ambivalente e autocrítico.

Ela é central ao trabalho de poetas como Les Murray, para quem há uma oposição ─ reconciliável, como crê o autor ─ entre o campo e a cidade, o rural e o urbano. A obra de

Murray também é marcada por uma violência de estrutura e de imagem. O livro Freddy

Neptune (1998), longo poema narrativo que atingiu reconhecimento internacional, conta a trajetória de um australiano, descendente de alemães, que perde os cinco sentidos ao testemunhar um grupo de mulheres turcas sendo queimadas vivas na Primeira Guerra

Mundial.

Outros poetas que têm tido destaque, a partir de 1970, são Robert Gray, cuja poesia realista é inspirada na filosofia zen; Vivian Smith, um escritor que aliou a carreira de professor à de poeta e que valoriza o regionalismo e a poesia pastoral; e o aborígine Lionel G.

Fogarty, que rejeita o inglês standard e utiliza a linguagem híbrida de seu povo Murri.

Durante os anos 1980, as feministas, já mais articuladas, promoveram tanto o resgate de poetisas que haviam sido quase esquecidas nas décadas anteriores quanto a divulgação de novas poetisas, como Kate Llewellyn, com a publicação de antologias com os poemas das escritoras.

Entre os poetas que iniciaram suas carreiras em décadas anteriores e continuam a publicar nos anos 1980 e 1990, os mais renomados são John Kinsella e Les Murray, já mencionados, e Chris Wallace-Crabbe, historiador literário e poeta, ligado também às artes visuais, que mescla natureza humanista e técnicas pós-modernas, como riqueza léxica e pluralidade de registros e que desconstrói, em alguns de seus trabalhos, as noções de centro e margem. Nos últimos anos, a poesia australiana tem recebido ainda contribuições de imigrantes e membros de minorias étnicas, como é o caso do poeta Ouyang Yu, da China, que 59

tem interesse em temas como voz e exílio e que também atua como tradutor, de Dimitris

Tsamoumas e de Ania Walwicz, entre outros.

2.1.3. O teatro

No período colonial, havia pouco espaço para autores australianos no teatro. A primeira performance teatral européia na Austrália foi a montagem de uma peça desconhecida no navio Scarborough , da Primeira Frota, no dia 2 de janeiro de 1788.

O romance de Rolf Boldrewood, (1888), foi adaptado para o teatro com sucesso e seu tema, o abuso da polícia e a simpatia generalizada pelos criminosos, tornou-se um dos grandes temas do século XIX . Durante esse século, porém, a maioria dos espetáculos de teatro era baseada em peças de Shakespeare, e grande parte dos artistas que os encenavam eram estrangeiros. Essa situação persistiu até o início do século XX , com algumas exceções: as pantomimas intensamente locais e com referências satíricas, comuns entre 1860 e os primeiros anos do século seguinte.

Entre os anos de 1920 a 1960, houve o colapso do drama comercial e o início de uma indústria teatral subsidiada pelo governo. Nessas décadas, adaptações de romances das escritoras australianas Katharine Susannah Prichard e Dymphna Cusack foram levadas ao palco por companhias de teatro amador, mas foram ignoradas porque as romancistas eram comunistas.

No final dos anos 1940 e nos anos 1950, surgiram algumas peças importantes, como

Rusty Bugles , de Summer Locke Elliot, que estreou em 1948 e que trata da solidão e da falta de esperança de soldados do exército australiano, e Summer of the Seventeenth Doll , de Ray

Lawler, peça sobre uma relação alternativa ao casamento entre um homem e sua namorada, que foi encenada em 1956. 60

A partir dos anos 1960, o teatro australiano começou a refletir uma sociedade mais complexa. Uma das peças de destaque da década, entre outras, é The Ham Funeral (1961), de

Patrick White, com sua linguagem inovadora e expressionista. Também nessa década começaram a aparecer peças de teatro escritas por aborígines. A primeira delas, The Cherry

Pickers , escrita em 1968 por Kevin Gilbert (que também escreveu poemas e textos políticos), foi publicada em 1988. Novas traduções de peças famosas e interpretações de trabalhos estrangeiros à luz da cultura australiana passaram a ser encenadas então e continuam até o presente momento.

Alguns dos fatores que contribuíram para o crescimento do teatro foram a criação de festivais nacionais de teatro aborígine e de festivais multiculturais, a evolução na infra- estrutura e nos sistemas de apoio e, principalmente, a fundação de escolas de teatro, como o

Instituto de Artes Dramáticas ( National Institute of Dramatic Arts ─ NIDA).

O mais conhecido dos locais de apresentação de teatro e música de todo o país — e também importante ícone arquitetônico — é a Sydney Opera House. Para projetá-la e construí-la, o governo do estado de Nova Gales do Sul [New South Wales] lançou, em 1956, uma competição internacional, da qual foi ganhador, em 1957, o dinamarquês Jørn Utzon. O local escolhido para a construção foi Bennelong Point — ponto próximo ao Jardim Botânico, a Circular Quay e ao bairro The Rocks — que deve seu nome a um aborígine que aprendeu inglês, no início da colonização, e que, na tentativa de compreender dois mundos e participar de duas culturas, acabou não fazendo parte de nenhuma delas de maneira completa 20 .

As obras, que começaram em 1959, duraram 14 anos, e sua realização enfrentou vários problemas: a transposição do desenho radical para ferro e concreto, a mudança de governo, a troca de arquitetos (Utzon deixou o projeto após nove anos), e o aumento do orçamento.

20 As informações sobre Bennelong foram obtidas no Museum of Sydney por meio de textos escritos e fotos colocadas nas paredes. 61

A Sydney Opera House foi inaugurada oficialmente no dia 20 de outubro de 1973, embora a primeira apresentação de uma ópera tivesse ocorrido quase um mês antes, no dia 28 de setembro. A Sydney Opera House tem influenciado as artes desde então: a temporada de

óperas na cidade, que, antes de sua abertura era de oito semanas, passou a ser de oito meses.

Com quatro espaços para performances (Concert Hall, Opera Theatre, Playhouse e The

Studio), o local oferece uma programação variada, que inclui formas não-tradicionais de arte e artistas de outros países 21 .

2.1.4. A prosa

Os romances do início do período colonial tratavam de assuntos como o sistema de degredo, as vidas das pessoas que moravam em fazendas no interior e alguns outros aspectos da experiência colonial.

O primeiro romance publicado na Austrália foi Quintus Servinton , escrito pelo prisioneiro , e publicado na Tasmânia em 1830-1831. As histórias sobre criminosos degredados teriam uma versão feminina com The Broad Arrow , de Caroline

Leakey, publicado em 1859, sobre a vida de uma mulher condenada ao degredo e enviada para a colônia.

Durante esse período, Charles Rowcroft tentou promover a imigração para a nova colônia com sua versão romantizada da vida colonial, Tales of the Colonies (1843), enquanto

Alexander Harris escreveu um texto mais realista da vida na Austrália em seu Settlers and

Convicts (1847).

A corrida do ouro e a abundância do metal precioso trouxeram uma crescente difusão da cultura, com a construção de novas bibliotecas, uma maior demanda por literatura e um renovado interesse na Austrália, tanto por parte do público quanto por parte dos editores.

21 Todas as informações sobre a construção da Sydney Opera House foram retiradas de um folheto distribuído no local. 62

Em 1854, Catherine Helen Spence escreveu Clara Morison , cujo cenário é a Austrália do Sul. O romance trata de pretensões sociais e descreve a corrida do ouro como fonte de problemas políticos e sociais.

Os romances sobre a vida no campo foram estabelecidos, na literatura australiana, pelo inglês Henry Kingsley, com seu livro The Recollections of Geoffrey Hamlyn , publicado pela primeira vez em 1859. Muito do que Kingsley escreveu revelava um senso de nostalgia pela

Inglaterra.

O jornalista Marcus Clarke publicou His Natural Life em 1874, um período em que o sistema de degredo já havia se tornado parte do passado, e enfatizou em seu romance seus efeitos psicológicos.

Em 1882, Rolf Boldrewood publicou em série seu Robbery under Arms , que foi lançado em forma de livro em 1888. No romance, a Austrália é retratada como um lugar para pioneiros, e não como nação, e os criminosos são vistos com simpatia.

Rosa Praed, que nasceu em Queensland, mas viveu a maior parte de sua vida no exterior, escreveu muitos romances sobre a Austrália. Seu Policy and Passion (1881) diz respeito aos descontentamentos e pretensões da sociedade colonial.

Em 1894, Ethel Turner publicou Seven Little Australians , um livro infantil ofensivamente australiano que desafiou o tom machista e imperialista da ficção infantil do período.

De 1880 até a primeira metade do século XX , uma nova revista mudou o cenário literário na Austrália. The Bulletin reunia vários escritores em um movimento nacionalista e deu-lhes, ao mesmo tempo, um mercado e um público australiano, colonial. Os escritores desse grupo passaram a escrever para os leitores da revista, seus compatriotas, e não mais para os leitores britânicos. 63

Muito da literatura produzida no final dos anos de 1880 e 1890 tinha um tom democrático, de classe baixa. Os escritores do período começaram a sentir-se australianos, acreditavam em coletivismo em vez de individualismo e tinham em mente as vidas dos trabalhadores, que eles consideravam os verdadeiros “batalhadores australianos”, ou Aussie battlers . Nessa época, o movimento pela federação fortaleceu-se, e muitos escritores e editoras também começaram a privilegiar o tema do sentimento de nação. O nacionalismo tornou-se tema comum nos textos literários dos primeiros anos de 1900, conhecidos como os anos da Federação, então recém-fundada.

Dois importantes escritores da revista, Henry Lawson e Joseph Furphy, estabeleceram as convenções do bush realism , ou realismo do sertão, que retratava a vida do homem do campo, visto como o verdadeiro australiano. Os livros escritos por Lawson e Furphy são considerados por muitos como os primeiros clássicos da literatura australiana.

O romance Such is Life , de Joseph Furphy (ver nota na página 37), escrito em 1896 e publicado em 1903, narra uma experiência australiana: a vida do ponto de vista de um camponês. Em seu romance, o autor contrasta o local com o inglês, e suas caricaturas dos tipos ingleses são uma maneira de demonstrar seu anticolonialismo.

A ficção de Henry Lawson tem um tom de voz intimista e, embora também tenha escrito poemas e romances, é mais famoso por seus contos, muitos dos quais publicou no

Bulletin . Seu tema principal é a vida no campo, o camponês e o companheirismo e apresenta a vida no sertão como ruim para o casamento. Uma de suas obras mais conhecidas é The

Drover’s Wife (1892).

Outra escritora do período a tratar da vida no sertão é Stella Maria Sarah Miles

Franklin, conhecida simplesmente como Miles Franklin, que publicou seu primeiro livro, My

Brilliant Career (1901), com prefácio de Henry Lawson, aos dezenove anos. Nele, a autora associa feminismo e nacionalismo e explora as oposições amor/ambição, 64

estagnação/movimento, e amor pela terra/desejo pela vida cultural das cidades. Franklin também celebra os pioneiros em uma série de romances, como em All That Swagger (1936), sobre um imigrante irlandês de sucesso.

No entanto, alguns escritores das décadas de 1880 e 1890 não pertenciam ao grupo do

Bulletin e não compartilhavam dos mesmos ideais nacionalistas e antiimperialistas e de seu tom machista. Um desses escritores era Steele Rudd, seguidor da tradição das histórias do campo. Seu romance mais conhecido é On Our Selection , publicado em 1899.

Em seu Bush Studies (1902), Barbara Baynton utilizou o sertão como cenário e retratou a mulher como vítima dos homens da própria família e do ambiente em que viviam.

A única experiência positiva para a mulher, no romance de Baynton, é a maternidade.

Henry Handel Richardson, cujo nome verdadeiro era Ethel Florence Richardson, também não pertencia a esse grupo e não tinha nenhum interesse na formação de uma literatura australiana. Sua obra teve grande influência do naturalismo europeu e seu trabalho mais conhecido é a trilogia de romances históricos The Fortunes of Richard Mahoney , publicada entre 1917 e 1929, em que a escritora trata de temas complexos, como casamento e dinheiro, deslocamento, emigração, o significado de “lar”, nacionalidade e morte.

Em 1928, o editor do Bulletin ofereceu um prêmio e prometeu publicação para o romance vencedor. O prêmio foi dividido entre Coonardoo , de Katharine Susannah Prichard, e A House is Built , de M. Barnard Eldershaw. No entanto, nenhum dos dois foi publicado na

Austrália aquele ano, mas sim na Inglaterra, como vários outros romances escritos por australianos, pois a publicação no próprio país era difícil e a influência dos editores sobre o original ainda era muito grande.

Entre os escritores a explorar o romance histórico estão Katharine Susannah Prichard,

M. Barnard Eldershaw e Xavier Herbert. Prichard deixa de lado o modo romântico de seu primeiro romance, The Pioneers (1915), ao publicar a trilogia de romances históricos sobre as 65

minas e a indústria do ouro na Austrália Ocidental, composta de The Roaring Nineties (1946),

Golden Miles (1948) e Winged Seeds (1950). A House is Built , colaboração de Marjorie

Barnard e Flora Eldershaw, publicado sob o nome de M. Barnard Eldershaw em 1929, narra a história de uma família que estabelece um negócio na cidade e conquista uma fortuna e apresenta uma crítica à vida restrita e à dependência econômica das mulheres de classe média do século XIX . Capricornia (1938), de Xavier Herbert, explora as relações entre raças no

Território do Norte, revela ansiedades quanto à miscigenação e às crianças mestiças e questiona os valores e práticas sociais do início do século XIX .

Entre as mulheres ativas no meio literário da época está Christina Stead. A escritora nasceu em Sydney em 1902, mudou-se da Austrália ainda jovem, para acompanhar o marido, e viveu na Europa e nos Estados Unidos. Voltou para o país com mais de sessenta anos e morreu em 1983, nove anos após o retorno. De toda a sua obra, apenas dois romances se passam em Sydney. Um dos temas centrais para a escritora, que é conhecida por explorar a técnica do fluxo de consciência, é a questão da autonomia da mulher. Um de seus romances mais conhecidos é Seven Poor Men of Sydney (1934). A reputação de Stead permanece pequena, apesar das recentes críticas positivas quanto à variedade de estilo, tema e gênero em sua obra.

Jungfrau (1936), de Dymphna Cusack, e Ride on Stranger (1943), de Kylie Tennant, são romances que tratam de problemas femininos e das conseqüências da liberdade sexual, envolvendo temas como gravidez indesejada e aborto.

A escritora Eleanor Dark também utiliza temas históricos, bem como o da relação entre brancos e aborígines, em sua trilogia, composta por The Timeless Land (1941), Storm of

Time (1948) e No Barrier (1953). Em uma das cenas da trilogia, a autora descreve a chegada dos europeus da Primeira Frota do ponto de vista dos aborígines. 66

A Town like Alice (1950) e On the Beach (1957), ambos transformados mais tarde em filmes, são alguns dos romances mais conhecidos de Nevil Shute, engenheiro e escritor britânico que migrou para a Austrália após a Segunda Guerra Mundial. Entre os temas recorrentes em sua obra estão a ameaça nuclear, o declínio do Reino Unido e o racismo.

The Tree of Man (1955), quarto romance de Patrick White, torna psicológica e poética a experiência do pioneirismo, usando a imagem de um casal inocente em um Jardim do Éden antípoda, mas deixa de lado, nessa narrativa, os aborígines. Em 1957, White publica Voss , baseado na vida do explorador Ludwig Leichhardt. Seu Riders in the Chariot , de 1961, traz uma personagem aborígine marcada pela pobreza material, que é contrastada por sua condição de artista e por sua rica vida espiritual. Outras de suas obras são os romances The Vivisector

(1970), The Eye of the Storm (1973), (1976), The Twyborn Affair (1979) e a novela Memoirs of Many in One (1986).

A reputação de White na Austrália foi consolidada por um artigo de Marjorie Barnard, escritora de grande influência no meio literário da época, publicado na revista Meanjin . O artigo tratava dos quatro primeiros romances do escritor, que havia sido bem aceito nos

Estados Unidos, mas que havia recebido críticas negativas do conterrâneo A.D. Hope e ainda não era muito conhecido em seu próprio país. Alguns dos temas presentes na obra de White são a crítica social, a ênfase na capacidade individual em detrimento da idéia de comunidade, a consciência individual e a transcendência da diferença cultural. Patrick White tornou-se o primeiro escritor australiano amplamente conhecido e lido no exterior e o reconhecimento de seu trabalho lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1973.

Uma das escritoras de carreira mais sólida na literatura australiana, e que só recebeu atenção da crítica, é Thea Astley, conhecida pela sátira social e pelo estilo elaborado. Em

1960 publicou A Descant for Gossips , em que associa malícia e estupidez a valores conservadores. A autora, cuja obra tem influências de Patrick White, recebeu o prêmio Miles 67

Franklin Award por The Well Dressed Explorer , em 1962, e por The Slow Natives , em 1965.

Seu It’s Raining in Mango (1987) narra uma saga de quatro gerações com uma estrutura narrativa fragmentada.

Até a década de 1970, havia poucos escritores aborígines publicando textos literários.

A representação de aborígines na prosa e a discussão de questões importantes sobre sua cultura são feitas, em sua maior parte, por escritores brancos. O primeiro romance a tratar do aborígine de maneira mais profunda é The Desert Horizon (1923), de E. L. Grant Watson.

Coonardoo , de Katharine Susannah Prichard, trata de uma relação amorosa entre um branco e uma aborígine e tenta mostrar o ponto de vista e a cultura aborígine como válidos; porém, o destino da personagem principal, uma mulher aborígine, é determinado pelo homem branco.

Nos anos de 1960, o único romance publicado por alguém identificado como aborígine foi

Wild Cat Falling (1965), de Mudrooroo.

O romance de representação aborígine mais subversivo, no entanto, é Trap (1966), de

Peter Mathers. O livro subverte a idéia da política de assimilação, segundo a qual a miscigenação e a inclusão eliminariam a cultura aborígine, por meio da história da personagem principal, um aborígine descendente de aristocratas brancos, e transforma o elemento aborígine marginalizado em central.

Em 1967, Thomas Keneally publica Bring Larks and Heroes , romance em que explora a idéia de inferno e danação ligada ao degredo dos criminosos ingleses e o uso da Austrália como local de punição.

A Austrália tem passado por um crescimento em sua produção literária contemporânea. Isso se deve, entre outros fatores, à proliferação de festivais e de prêmios literários ─ financiados tanto pelo governo como por fontes particulares. No entanto, o período também é marcado pelo pequeno crescimento do número de leitores e pelo interesse de americanos no mercado editorial australiano. 68

A economia global, com seu mercado internacional de livros, traz questões sobre a extensão da influência desse fenômeno na atividade criativa e sobre quem deve ser classificado como escritor australiano. Escritores como Shirley Hazzard, que passaram a maior parte da vida fora da Austrália, são comercializados como escritores australianos.

Thomas Keneally, por sua vez, tem utilizado temas de interesse internacional em seus últimos romances, como por exemplo o holocausto, em seu Schindler’s Ark , publicado em 1982, que lhe valeu prêmios literários internacionais e que mais tarde se tornaria um filme de grande sucesso. Há, portanto, uma tensão entre o contexto ou tradição nacional e os interesses do mercado internacional (SALTER, 1995).

Em seu artigo “ What makes Australian Literature Australian ”, o professor John Salter discute o assunto. Para ele, o local de nascimento de um escritor ou de publicação de sua obra não define a que literatura nacional deve filiar-se, nem se deve pensar que “literatura australiana” é uma subdivisão do conjunto “literatura internacional”. Ao contrário, o que define uma literatura nacional como tal são práticas de leitura de uma atividade cultural em constante movimento: “Interessam-nos as práticas de leitura que reconhecem a legitimidade da ‘literatura australiana’ de outra forma. Basicamente, a literatura australiana precisa ser entendida, do modo mais radical, como processo 22 ” (SALTER, 1995, p.15).

No mesmo artigo, Salter reforça a idéia da literatura australiana como processo utilizando a metáfora da corda, cuja força vem do entrelaçamento de fibras, e não de uma fibra central, empregada por Wittgenstein para explicar o princípio de “semelhanças de família”: “É uma estrutura do tipo de uma corda que não tem centro e que existe de forma completa em virtude das ‘semelhanças de família’ de que é constituída 23 ” (SALTER, 1995, p.22).

22 We are concerned with reading practices that recognize the legitimacy of “Australian literature” in another way. Basically, Australian literature needs to be understood, in the most radical way, as process . 23 It is a rope-like structure that has no center and exits wholly by virtue of the “family resemblances” of which it is constituted. 69

A relação com o mercado internacional também se reflete nas indicações aos prêmios de literatura. Após Patrick White, que recebeu o Prêmio Nobel em 1973, outros autores, como

Thomas Keneally, Peter Carey e David Malouf, foram indicados e receberam importantes prêmios fora da Austrália, e vários escritores passaram a ter suas obras traduzidas e vendidas em outros países.

Entre os autores contemporâneos mais conhecidos está David Ireland, que começou a publicar nos anos 1970 e que segue a tradição da ficção realista australiana, apresentando um discurso politicamente ativo, com histórias centradas na classe operária, e criticando a sociedade e a cultura de seu país, bem como as injustiças governamentais, burocráticas e industriais. De acordo com Delys Bird, “Ireland reconhece a influência de Laurence Sterne e do escritor sul-americano do realismo mágico do século XIX, Machado de Assis 24 ” (WEBBY,

2000, p.189), bem como da literatura de seu próprio país 25 .

Em 1972, Frank Moorhouse, Carmel Kelly e Michael Wilding fundaram a revista

Tabloid Story , cujo objetivo era promover a inovação literária e publicar trabalhos que não seriam aceitos por outras revistas. Um dos escritores a publicar seus primeiros contos na revista foi Peter Carey, cujas histórias evocavam uma realidade bizarra e retratavam os fracassados como vítimas do sistema.

Nessa época, vários textos começaram a tratar do imperialismo político e cultural norte-americano e da relação entre Estados Unidos e Austrália. Entre esses textos estão a série de contos The Americans, Baby (1972), de Frank Moorhouse, e o conto “American Dreams”, de Peter Carey.

Já David Foster explora a prosa satírica e condena qualquer tipo de pretensão social. A desordem em sua narrativa representa a desordem da sociedade em que vivemos. Entre seus

24 Ireland acknowledges the influence of Laurence Sterne and the nineteenth-century South American magic realist writer, Machado de Assis… 25 Embora nos pareça interessante e digno de nota, não nos aprofundamos nesta questão aqui neste trabalho. Acreditamos, no entanto, que a influência de Machado de Assis na obra de Ireland requer mais estudos. 70

romances mais conhecidos estão Dog Rock: a Postal Pastoral (1985), The Pale Blue Crochet

Coathanger Cover (1988) e The Glade within the Grove (1996), todos contados pelo mesmo narrador.

Land of the Golden Clouds (1998), do escritor aborígine Archie Weller, é uma narrativa futurística épica em que o planeta foi devastado por um holocausto nuclear e várias tribos guerreiam entre si. O autor segue uma tendência de escritores aborígines e descendentes de estrangeiros não-falantes de língua inglesa, que utilizam o realismo como veículo de protesto.

David Malouf, romancista e poeta reconhecido no exterior, iniciou sua carreira nos anos 1970. Tanto seu An Imaginary Life (1978) quanto seu The Conversations at Curlow

Creek (1997) utilizam o estilo meditação pessoal. The Conversations at Curlow Creek traz duas histórias: a do enforcamento de um criminoso e as memórias do homem que irá enforcá- lo.

A Austrália passa também por um recente renascimento do romance histórico. Entre os escritores que adotaram o gênero com maior interesse está Peter Carey, que escreveu Oscar and Lucinda (1988), romance em que questiona as noções tradicionais de história, Jack

Maggs (1997), em que o autor retoma a personagem Magwitch, de Charles Dickens, um criminoso degredado que cumpriu a pena na Austrália, e reescreve sua história, e True History of the Kelly Gang (2000), em que narra a vida do herói popular Ned Kelly em primeira pessoa.

A escritora Elizabeth Jolley teve seu trabalho rejeitado várias vezes, até que seus contos começaram a ser publicados por pequenas editoras alternativas. Jolley associa valores humanistas a um modernismo de fim do século XX e alguns de seus livros mais conhecidos são Mr. Scobie´s Riddle (1983), uma coleção de contos, e The Orchard Thieves (1995), uma novela. 71

O crescimento da produção literária australiana também foi acompanhado pelo aparecimento de novas editoras, sobretudo regionais. As mais conhecidas delas são a Outback

Press, a Fremantle Arts Centre Press e a University of Queensland Press.

Entre as mulheres que mais tem se destacado no período estão ainda Beverly Farmer e

Helen Garner. Farmer demonstra uma preocupação com as experiências e os significados da sexualidade feminina e apresenta de forma realista o tema da violência doméstica. Garner trata da vida doméstica com um estilo simples, que evoca minúcia, às vezes denominado como realismo doméstico, e explora temas como o desejo da mulher e as relações familiares.

Entre seus livros mais conhecidos estão Monkey Grip (1977), que retrata a busca de uma mulher por uma alternativa à vida em família, Cosmo Cosmolino (1992), sobre a desolação dos que não têm família, e The First Stone (1995), em que mescla ficção e jornalismo para relatar um caso de assédio sexual na Melbourne University.

Outros escritores contemporâneos de destaque são Robert Drewe e Tim Winton.

Drewe, que escreveu vários romances baseados em eventos históricos, alguns deles não tão distantes no tempo, utiliza-se do gênero realista e trata da política australiana de modo irônico. Entre seus romances mais conhecidos estão Our Sunshine (1978), em que cria sua versão sobre os momentos finais da vida de Ned Kelly, e The Bodysurfers (1983), em que inscreve a praia como um espaço mais importante para o australiano do que o sertão. Winton preocupa-se com temas como a interação entre pessoas e ambientes, as relações sexuais e as relações familiares. Sua obra é influenciada por escritores do sul e do oeste dos Estados

Unidos e está fortemente ligada à região em que vive, o sul da Austrália Ocidental.

Cloudstreet (1991) narra a história de duas famílias que dividem uma casa na cidade de Perth.

72

2.2. Peter Carey

Peter Carey nasceu em Bacchus Marsh, no estado de Victoria, em 1943. Seu pai tinha uma concessionária de carros e esse tipo de negócio apareceria mais tarde em um dos seus romances, The Tax Inspector (1991). O autor estudou em uma escola primária freqüentada pelos filhos da classe operária, e depois foi mandado para uma escola particular elitista, a

Geelong Grammar, onde foi um estudante bem sucedido, embora descreva esse período como de pressão social.

Carey começou a estudar Ciências na Monash University, mas foi reprovado no exame do primeiro ano e deixou a universidade. Ele começou então a trabalhar em uma companhia de publicidade, o que teve grande influência em sua carreira como escritor. Nessa época, e em boa medida por conta de seu emprego, Carey entrou em contato com alguns escritores e começou a ler autores que o influenciariam mais tarde, tais como Jorge Luis Borges, Gabriel

García Márquez, Samuel Beckett e William Faulkner, entre outros. A publicidade se tornaria, tempos mais tarde, um dos elementos de seu romance Bliss (1981).

Em 1989, ele se mudou com sua mulher, Allison Summers, e seu filho Sam, nascido em 1986, para Nova York, e atualmente dá aulas na New York University. Seu segundo filho,

Charley, nasceu em 1990.

Muitos dizem que Carey começou sua carreira como contista, mas antes de publicar uma coleção de contos, ele escreveu três romances. Seu primeiro romance, The Futility

Machine , escrito em 1966, foi recusado e permanece inédito. Seu segundo romance, Wog , escrito entre 1967 e 1970, oferecido a um editor inglês e considerado muito avant garde , também foi rejeitado. Tanto seu terceiro romance, Adventures Aboard the Marie Celeste , escrito entre 1970 e 1973, e seu volume de contos The Fat Man in History , foram aceitos para publicação na mesma época. Como ele já havia publicado alguns contos, ato que o tornou mais conhecido e que havia atraído a atenção dos leitores, e talvez considerando também que 73

a publicação de duas obras muito diferentes em um curto espaço de tempo afetaria a recepção de ambas, Carey cancelou o contrato de publicação do romance, que permanece inédito.

Seu primeiro volume de contos, publicado em 1974, foi recebido de maneira contraditória pelos críticos dos jornais, mas tornou-se um sucesso e, dois anos depois, começou a ser estudado em cursos universitários de literatura. Nessas histórias, às vezes descritas como ficção científica, Carey começa a explorar um de seus temas favoritos: o da prisão ─ em um lugar, em uma situação ou dentro de si mesmo ─ e a dificuldade ou impossibilidade de se libertar.

Em 1979, ele publicou seu segundo volume de contos, War Crimes , que lhe garantiu um prêmio literário, o New South Wales Premier’s Award , em 1980. Esse segundo livro trouxe algumas mudanças na imagem de Carey: sua relação com a publicidade, vista até então como um ponto negativo em sua vida, tornou-se elemento vendável, pois passou a conferir- lhe uma aura de homem do mundo, conhecedor da sociedade atual. Também houve mudanças na recepção do livro: os críticos de jornal se concentraram nas próprias histórias e não as classificaram mais como ficção científica. Eles consideraram ainda os contos de War Crimes como mais humanos, em comparação aos de The Fat Man in History . Carey já tinha uma forte reputação literária na Austrália quando os jornais começaram a mostrar a recepção positiva de seus contos no exterior.

Bliss (1981) foi o primeiro romance publicado por Peter Carey e deu-lhe alguns prêmios importantes na Austrália em 1982: o New South Wales Premier’s Award , o Miles

Franklin Award , e o National Book Award . A experiência de Carey no campo publicitário ajudou-o a compor o cenário e o tema deste romance, que focaliza o poder e os negócios, ligando-os à imoralidade.

O segundo romance publicado de Carey, que apareceu em 1985, foi Illywhacker . Nele, o escritor explora verdades e mentiras sobre a história australiana por meio do narrador 74

Herbert Badgery, que se confessa um mentiroso, e retoma o tema da prisão, relacionado sobretudo à arquitetura (as casas construídas por Badgery e a loja de seu filho, que mais tarde será a galeria de seu neto, por exemplo). A galeria do neto de Badgery, Hissao, e sua exposição permanente dos tipos humanos australianos, representam também a colonização da

Austrália, que passou do domínio da Inglaterra para o dos Estados Unidos e do Japão. O texto questiona ainda a mentira que fundamentou toda a ocupação inglesa das terras australianas: a de que o continente não era ocupado. Com este romance, Carey ganhou alguns prêmios, como o Age Book of the Year Award , o NBC Banjo Award , e o Barbara Ramsden Award , entre outros, na Austrália, e foi indicado ao Booker Prize , no Reino Unido. Ironicamente, o romance foi publicado primeiro na Inglaterra, e as resenhas escritas no exterior foram usadas para sua publicidade na Austrália.

Em 1988, o ano da celebração do Bicentenário da Colonização Branca, Carey publicou Oscar and Lucinda (traduzido para o português sob o título Oscar e Lucinda ). O romance, que narra as trajetórias de duas pessoas que não se encaixam nos padrões da sociedade da época, questiona a colonização britânica, sobretudo a idéia corrente de que o continente não estava ocupado. É significativo que o livro publicado no ano do bicentenário de ocupação britânica contenha uma cena que narra o massacre de um grupo de aborígines por exploradores brancos, mostrando assim que a história australiana não é livre de violência.

Esse livro ganhou importantes prêmios na Austrália, como o Talking Book of the Year , em

1988, e o Foundation for Australian Literary Studies Award , o e o

NBC Banjo Award em 1989, entre outros. O livro também garantiu ao escritor seu primeiro

Booker Prize .

O romance The Tax Inspector foi publicado no ano de 1991 e trata de três gerações da família Catchprice, seu negócio e seu segredo: um histórico de abuso sexual. A realidade e 75

atualidade do tema narrado é incômoda e o romance é considerado o trabalho de maior relevância social da carreira de Carey até o momento.

Em 1994, o escritor publicou The Unusual Life of Tristan Smith , romance em que explora a relação entre dois países vizinhos, Efica e Voorstand, ambos colonizados no passado, mas com diferentes níveis de desenvolvimento no presente. A situação dos dois países e o imperialismo cultural de Voorstand, identificado por alguns críticos com os Estados

Unidos, vai desnudando-se por meio de seu narrador, Tristan, personagem de corpo deformado que deixa sua pequena Efica e parte para Voorstand em busca do pai e deslumbra- se com sua cultura. O livro ganhou o The Age Book of the Year Award em 1994.

No ano seguinte, Carey publicou um livro infantil, The Big Bazoohley . O tema do livro

é correr riscos e a personagem principal, um garoto chamado Sam, tenta ganhar um prêmio de uma companhia de cosméticos para salvar os pais da falência.

Em 1997, o escritor publicou Jack Maggs (publicado em português sob o mesmo título), romance em que re-visita , de Charles Dickens, e dá outra interpretação à vida da personagem Magwitch, o criminoso condenado ao degredo na

Austrália, do autor inglês, na pele de Jack Maggs. Ao passo que Magwitch busca vingar-se da sociedade inglesa ao voltar para Londres, Maggs procura retomar seu lugar nela, mas descobre que isso não é possível porque, uma vez degredado, nunca será aceito de volta.

Além disso, Carey coloca o próprio Dickens na pele do escritor Tobias Oates, que tenta roubar, por meio de hipnose, a história de Maggs, e assim escrever seu novo livro. O romance ganhou o Miles Franklin Award , o Commonwealth Writers Prize e o The Age Book of the

Year A ward.

Em 2000, Carey publica True History of the Kelly Gang (traduzido para o português sob o título A história do bando de Kelly ), romance em que re-visita a história australiana mais uma vez para reconta a vida de Ned Kelly, herói popular de seu país, sobretudo no 76

estado em que viveu no século XIX , Victoria. O livro foi indicado ao Miles Franklin Award e ganhou o Commonwealth Writers Prize e o segundo Booker Prize para seu autor.

Em 2003, o escritor publica seu romance My Life as a Fake (traduzido para o português como Minha vida, uma farsa ). Dessa vez, Carey trata da problemática relação entre criatura e criador em uma re-leitura de um acontecimento histórico-literário que se tornou um grande escândalo na Austrália dos anos 1940, o caso Ern Malley. Malley, o suposto poeta morto antes de ser revelado no meio literário, e sua irmã, que envia cartas ao editor de uma importante revista australiana com os poemas do irmão morto, foram inventados por dois poetas que queriam protestar contra os rumos que a poesia da época tomava. No romance, a criatura, Bob McCorkle, baseada em Ern Malley, persegue seu criador, o poeta Christopher

Chubb, até a Malásia, seqüestra sua filha e informalmente adota a menina. A relação entre criador e criatura é testemunhada, em seus momentos finais, pela narradora, Sarah, editora de uma revista literária britânica. Esse livro foi indicado ao Miles Franklin Award e ao

Commonwealth Writers Prize em 2004.

Entre os elementos recorrentes na obra de Carey estão narradores que problematizam a questão de sua (não) confiabilidade, a meta-ficção, o imperialismo cultural, político e econômico americano, o poder e os negócios, a verdade, a questão dos aborígines, as relações pai-filho, a colonização e seus efeitos, e a tentativa de entender a psique australiana por meio da história.

Além de contos e romances, Peter Carey também escreveu alguns roteiros para cinema e publicou, ao longo de sua carreira, textos de não-ficção, como A Letter to Our Son (1994), sobre a perda de um filho em seu primeiro casamento, 30 Days in Sydney : a Wildly Distorted

Account (em português, 30 dias em Sydney ), Letter from New York (2001), sobre o ataque terrorista às Torres Gêmeas nos Estados Unidos, e Wrong About Japan (2004).

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III – História, Literatura e Pós-colonialismo

“Day 1, mourning; Day 2, rage; Day 3, Royal Visit; Day 4, celebrate the land itself; Day 5, bury the past; Day 6, imagine ourselves a nation — a day of contemplation .” (Peter Carey, “An Imaginary Bicentennial”, apud Karen Lamb, The Genesis of Fame , 1992, p.45)

3.1. História e Literatura

Alguns teóricos contemporâneos, entre os quais destacamos Hayden White, Linda

Hutcheon e Márcio Seligmann-Silva, têm levantado questões interessantes quanto ao estudo da História. Hayden White problematiza a objetividade que se associa ao estudo da História.

Para ele, essa associação se dá devido ao status da narrativa histórica, que seria capaz de tratar de fatos ocorridos há muito tempo sem exercer sobre eles qualquer influência ou controle.

White problematiza a questão da objetividade ao reforçar que a estrutura que dá suporte à narrativa histórica — o texto — é a mesma forma que sustenta a literatura.

Ao contrário da oposição radical entre história e ficção defendida por alguns críticos,

White considera que a narrativa histórica tem a função de familiarizar o leitor com uma série de fatos, conferindo-lhes um sentido por meio do texto, e que, para escrever uma história plausível, o historiador suprime alguns detalhes e realça outros, “técnicas que normalmente se espera encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça” (WHITE, 1994, p.100). Dessa forma, o historiador pode configurar o texto como irônico, romântico, satírico ou cômico, de acordo com sua vontade.

Ao tratar de fatos históricos, “o historiador impõe a esses eventos o significado simbólico de uma estrutura de enredo compreensível” (WHITE, 1994, p.108). Portanto, para alcançar a coerência histórica, faz-se necessária uma adaptação dos fatos às exigências do texto. A narrativa histórica, assim como a literária, é um sistema de signos que aponta tanto para os acontecimentos narrados como para o tipo de texto que se constrói, e depende das técnicas da linguagem figurativa para criar sentido. De acordo com White, o relato histórico 78

assemelha-se à metáfora: não reproduz os eventos que descreve, mas sim lembra imagens das coisas que indica (WHITE, 1994, p.108).

Segundo White, em sua busca pela re-familiarização de acontecimentos passados, os maiores historiadores trataram dos eventos mais traumáticos na História de suas culturas, precisamente porque eles ainda têm significação na vida atual.

Em seu texto “A história como trauma”, Márcio Seligmann-Silva aponta o fato de que o mundo está impregnado de catástrofe e que a onipresença do choque tem conseqüências devastadoras. Esse fato leva a uma reflexão sobre a própria impossibilidade de representação da catástrofe:

Com a nova definição da realidade como catástrofe, a representação, vista na sua forma tradicional, passou ela mesma, aos poucos, a ser tratada como impossível; o elemento universal da linguagem é posto em questão tanto quanto a possibilidade de uma intuição imediata da ‘realidade’. (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.75)

Essa dificuldade de representação estaria ligada, por um lado, à impossibilidade de dividir realidade e descrição (ou seja, há um questionamento da idéia de que o conhecimento representa a realidade) e, por outro, ao excesso que caracteriza a catástrofe. Um exemplo desse excesso é a Shoah , o extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial, acontecimento

único e impossível de ser reduzido ao meramente discursivo. A catástrofe é, portanto, irrepresentável porque não tem limites e não pode ser assimilada por completo:

O historiador da Shoah fica preso a esse duplo mandamento contraditório: por um lado, a necessidade de escrever sobre esse evento, e, por outro, a consciência da impossibilidade de cumprir essa tarefa por falta de um aparato conceitual ‘à altura’ do evento, ou seja, sob o qual ele poderia ser subsumido. (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.78)

Segundo Freud (apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p.84), o trauma relaciona-se à incapacidade de recepção de um evento que vai além dos limites da percepção humana e que 79

não se pode comparar a nenhum outro acontecimento. Eventos passados, como a Shoah , e as inúmeras catástrofes cotidianas sofridas no presente levam Seligmann-Silva a pensar a

História como trauma.

As reflexões sobre a Shoah e a tentativa de escrever sobre ela deixaram como importante legado o questionamento da neutralidade da escrita histórica: “a historiografia do

Holocausto pôs em questão o dogma da neutralidade da escrita da história: ela assume-se agora como trabalho transferencial, como necessidade de dominar um trauma”

(SELIGMANN-SILVA, 2000, p.89).

A escrita histórica é vista aqui como possibilidade terapêutica, como forma de esquecimento e fuga: “O historiador trabalha no sentido da libertação do domínio de uma imagem do passado que foge ao nosso controle; esse passado deve ser incorporado dentro de uma memória voltada agora também para o futuro” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.89).

No entanto, é impossível separar os movimentos de memória e esquecimento. É preciso escrever para esquecer. De acordo com alguns teóricos, entre eles Márcio Seligmann-

Silva, para descrever o elemento inacreditável da catástrofe é preciso lançar mão da arte.

Na leitura que Homi Bhabha faz de uma idéia de Walter Benjamin — a de que vivemos, no momento atual, em estado de emergência — a palavra emergência adquire duplo sentido e dá margem à possibilidade de criação e debate: “E o estado de emergência é também sempre um estado de emergência [de vir à tona]” (BHABHA, 2003, p.72).

Outra crítica a questionar a narrativa histórica e seu status é Linda Hutcheon. Para ela, a separação absoluta entre o literário e o histórico é contestada na teoria e na arte pós- modernas, elementos que fazem parte de uma postura que confronta paradoxos como o da representação fictícia/histórica, ou do presente/passado, entre outros, explorando os dois lados da dicotomia. 80

O relato escrito, sobretudo o histórico, tornou-se um meio fundamental de organizar o pensamento humano: “o processo de narrativização veio a ser considerado como uma forma essencial de compreensão humana, de imposição do sentido e de coerência formal ao caos dos acontecimentos” (HUTCHEON, 1991, p.160). Assim, segundo Hutcheon, todo conhecimento humano, inclusive seu conhecimento do passado, é inevitavelmente textual, e seu valor e limitação advém da condição de forma discursiva. Para ela, é a forma textual que liga História e Literatura: “O passado realmente existiu, mas hoje só podemos ‘conhecer’ esse passado por meio de seus textos, e aí se situa seu vínculo com o literário” (HUTCHEON, 1991, p.168).

Hutcheon aponta ainda o fato de que a narrativa histórica e o romance influenciaram- se mutuamente: no passado, muitos autores tentavam convencer seus leitores de que suas obras não eram inventadas. Além disso, historiadores e escritores inspiravam uns aos outros com freqüência. Ela também problematiza a questão da objetividade da História ao lembrar que muitas vozes, entre elas a das mulheres, foram silenciadas nos relatos históricos, o que os torna parciais e incompletos.

Ao tratar da arte e da literatura, Hutcheon aponta que a arte cria sua própria realidade e que, por isso, não deve ser considerada verdadeira ou falsa. Para ela, o uso de fatos históricos em obras ficcionais tem como objetivo manter esses fatos em debate: “A ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é — em ambos os casos — revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (HUTCHEON,

1991, p.147). Para Umberto Eco, os romances históricos buscam no passado causas para o que acontece no presente e procuram compreender o processo que as levou a gerar seus efeitos (apud HUTCHEON, 1991, p.150).

O tipo de relação com a História é apontado como outro fator importante para a ficção histórica, definida por Hutcheon “como aquela que segue o modelo da historiografia até o 81

ponto em que é motivado e posto em funcionamento por uma noção de história como força modeladora (na narrativa e no destino humano)” (HUTCHEON, 1991, p.151).

Na “metaficção historiográfica”, expressão que Hutcheon emprega para descrever romances em que há elementos da História, o autor utiliza tanto as informações quanto as lacunas que caracterizam os eventos históricos, aproveitando-se das duas, em maior ou menor grau, de acordo com seu interesse. Ocorre um retorno à História de maneira crítica, que promove uma reavaliação.

O questionamento do status da narrativa histórica e a revelação de que ela se utiliza, durante o processo de escrita, de técnicas próprias do romance, aproximam duas áreas de estudo, a da História e a da Literatura, e mostram que ambas têm algo em comum. Por outro lado, a idéia de História como trauma, que acarreta a de catástrofe como excesso de difícil representação, leva-nos a traçar paralelos com os inúmeros textos literários que tratam da colonização. Isso porque esse evento histórico de grandes proporções, que transformou o mundo para sempre, pode ser visto, ao mesmo tempo, como uma experiência de certo modo traumática e como nascimento: situação traumática, devido à dominação dos povos nativos, à violência física e psicológica e ao deslocamento forçado de milhares de pessoas; nascimento, devido à formação de sociedades culturalmente híbridas, enriquecidas por diversas influências. Se, para Hayden White, os historiadores mais importantes trataram dos eventos traumáticos que abateram suas sociedades porque eles têm relação com o presente, também é válido dizer que, pelo mesmo motivo, os romancistas têm re-aproveitado os mesmos eventos em suas obras literárias. Considerando ainda três das idéias de Hutcheon — a de que a

História é uma força modeladora, a de que vozes foram silenciadas em relatos históricos e a de que o uso de fatos históricos em romances pode mantê-los em debate — podemos pensar no romance histórico como um dos espaços de reflexão em que as vozes silenciadas podem ressurgir e mostrar o passado sob novas perspectivas. Dessa forma, por meio do texto literário 82

e da nova experiência que a linguagem permite, povos outrora dominados e culturas antes consideradas marginais encontram uma maneira de expressar-se, contestar os valores que lhe foram impostos e discutir o hibridismo 26 que os caracteriza.

3.2. Pós-colonialismo

3.2.1. Da dominação européia à formação das sociedades pós-coloniais

A expansão marítima européia ocasionou o encontro com um “outro” geográfico, histórico e cultural e o descobrimento de coisas até então inimagináveis para um europeu. O resultado desse encontro foi a colonização do continente americano, e mais tarde também a do continente africano, do asiático e da , com o intuito de explorar as riquezas naturais dos novos territórios e dominar os povos nativos.

Esse movimento para além dos horizontes conhecidos pelos europeus até então tornou-se possível devido aos avanços tecnológicos, que permitiram a construção de navios capazes de viajar por longas distâncias, e a uma série de fatores de ordem política, econômica, religiosa e cultural, entre os quais se destacam a necessidade de expandir o cristianismo, o surgimento de países com fronteiras definidas e governos centralizados, e o imperialismo.

Em seu livro Nação e consciência nacional , Benedict Anderson destaca que a nação é uma “comunidade política imaginada — e imaginada como implicitamente limitada e soberana” (ANDERSON, 1989, p.14). A nação é imaginada como comunidade porque é concebida como profundo companheirismo, o que explica o sacrifício de morrer pela pátria em tempos de guerra. No entanto, há, em cada uma delas, relações de desigualdade e exploração. De qualquer forma,

26 Hibridismo é um termo ambíguo e polêmico, que foi relacionado, sobretudo na América Latina, ao sincretismo cultural e à miscigenação. A idéia de híbrido passou a ser usada em outras áreas e originou estudos por vezes conflitantes. É usado por pensadores como Paul Gilroy e Homi Bhabha, entre outros, para definir o espaço ambivalente em que as identidades — sempre instáveis, mutáveis e incompletas — são construídas. No entanto, a popularização do termo levou outros críticos a questionarem seu uso como forma de disfarçar desigualdades sociais e econômicas (COSER, 2005). 83

se historiadores, diplomatas, políticos e cientistas sociais estão bastante familiarizados com a idéia do “interesse nacional”, para a maior parte das pessoas comuns de qualquer classe, a característica global da nação é ser ela desprovida de interesse. Exatamente por essa razão, ela pode exigir sacrifícios. (ANDERSON, 1989, p.157)

Para Anderson, o início da era do nacionalismo está relacionado com o declínio das línguas sagradas, como o latim, o árabe e o chinês, a fragmentação de grandes comunidades e o declínio da idéia da legitimidade divina das monarquias. Entretanto, o autor aponta que as mudanças mais importantes do período foram a ascensão de várias línguas vulgares, o desenvolvimento do capitalismo e a criação da imprensa. A substituição do latim pelas línguas vulgares como línguas oficiais contribuiu para o declínio da comunidade imaginada cristã em detrimento de unidades políticas. À medida que essas línguas tornavam-se novas línguas de poder (condição conquistada por sua valorização política e por seu uso pela imprensa), elas ganhavam status e eram tidas como modelos, enquanto outras variantes faladas nos reinos perdiam prestígio. O crescimento da alfabetização, do comércio e da indústria também impulsionaram a unificação das línguas vulgares em cada país. O surgimento de formas como o jornal e o romance foi responsável pela geração e disseminação de novas idéias. As novas formas escritas criavam ainda públicos leitores que poderiam ser mobilizados, mais tarde, para fins político-religiosos. A nascente indústria editorial também atribuiu fixidez à língua e criou um novo espaço de intercâmbio, uma vez que os leitores tornaram-se conscientes de que milhares de pessoas estavam unidas por um mesmo campo lingüístico. Essa nova descoberta configurava um “embrião da comunidade nacionalmente imaginada” (ANDERSON, 1989, p.54).

A idéia de nação é abstrata, e mesmo a noção de um passado além da continuidade histórica teve de ser inventado. Para Timothy Brennan, a literatura exerce uma função muito importante em meio a esse processo: “Assim, as nações são construções imaginárias que 84

dependem, para sua existência, de um aparato de ficções culturais no qual a literatura imaginativa desempenha um papel decisivo. E o desenvolvimento do nacionalismo europeu coincide em especial com uma forma de literatura — o romance 27 ” (BRENNAN, 1999, p.49).

Na Europa, o desenvolvimento de nacionalismos no século XIX esteve ligado às atividades intelectuais, como estudos e pesquisas sobre língua, feitos por gramáticos, lexicógrafos e literatos, e ao aumento da produção literária. Em países como a Finlândia e a

Noruega, entre outros, os movimentos nacionalistas foram liderados por escritores, professores e historiadores.

Segundo Anderson, as comunidades do continente americano são as primeiras a desenvolverem uma consciência nacional, resultado do enrijecimento do controle metropolitano e da disseminação de idéias iluministas e de independência, com o exemplo dado pelas Treze Colônias da América do Norte.

Benedict Anderson afirma que as jornadas (ou peregrinações) — grande deslocamento de pessoas de um lugar a outro e, portanto, de uma realidade a outra, comuns durante a colonização tanto em viagens intercontinentais quanto no movimento de estudantes ou trabalhadores aos centros coloniais — são uma experiência criadora de significados.

Nas colônias, a jornada em busca de melhores postos de trabalho era refreada pelos representantes metropolitanos, de forma que o ponto máximo atingido por um crioulo — termo usado por Anderson para nomear os filhos de europeus nascidos nas Américas — era a capital de sua unidade colonial. Assim, o nascimento trans-Atlântico destinava os crioulos, e também o crescente número de mestiços, a uma posição inferior e à subordinação. No entanto, essa barreira conscientizou os habitantes das colônias de um fato importante: se, por um lado, os nascidos no continente americano não podiam ser considerados verdadeiros europeus, os nascidos na Europa também não podiam ser considerados verdadeiros americanos. O embate

27 Nations, then, are imaginary constructs that depend for their existence on an apparatus of cultural fictions in which imaginative literature plays a decisive role. And the rise of European nationalism coincides especially with one form of literature — the novel. 85

entre crioulos e peninsulares metropolitanos antecipou o aparecimento da consciência nacional nas Américas.

A formação de comunidades imaginadas no continente americano também se deve ao desenvolvimento de públicos leitores pelos jornais no século XVIII , que veiculavam notícias dos dois mundos.

Outro fator relevante na formação do nacionalismo foi a difusão dos modelos da

Revolução Francesa e do movimento de independência dos Estados Unidos e dos conceitos desenvolvidos durante essas revoltas, que se espalharam e foram copiados em outros territórios.

Devido ao grande prestígio adquirido pela idéia nacional na Europa, as dinastias européias, que até o momento, devido aos casamentos entre diferentes casas reais, tinham um caráter extra-territorial, começaram a atribuir nacionalidades a si mesmas. A naturalização das dinastias originou os “nacionalismos oficiais” (ANDERSON, 1989), um movimento de reação aos nacionalismos populares que se proliferavam no continente europeu e que procurava valorizar a idéia de império e tornar a monarquia atraente com novas roupagens, mantendo assim seu prestígio e poder. A aliança do nacionalismo oficial e do conceito de nação era, no entanto, contraditória e problemática, pois um mesmo país defendia a dominação de outros povos e a liberdade para si mesmo. Essa contraditoriedade fica evidente também no fato de que os agentes do governo colonial não eram representantes democráticos do povo, mas sim de um sistema que reafirmava os direitos da metrópole, do dominador, para o qual a colônia era somente um território, não o espaço de um grupo de pessoas que formava um povo.

Ainda segundo Anderson, o nacionalismo oficial se mantém presente até hoje. Isso porque os revolucionários sempre herdam algo — rede de comunicação e funcionários, entre 86

outros — do regime anterior e, dessa forma, o nacionalismo oficial acaba por introduzir-se nos estilos de liderança pós-revolucionária e propagar-se através dos tempos.

A dominação de povos tão diversos quanto os índios na América, os aborígines na

Austrália e os vários grupos étnicos na África, entre outros, baseava-se, portanto, na pressuposição de que a cultura e as línguas européias eram superiores. Essas idéias, e o discurso colonial imperialista que as apoiava, procuravam justificar e autorizar as estratégias de ocupação do colonizador.

Outro fator ligado à dominação européia, e característico da atitude imperialista, é o racismo, que se originou a partir das ideologias de classe. O racismo colonial procurava legitimar o imperialismo, impor novas fronteiras geográficas e explorar novos territórios por meio da generalização de um princípio de superioridade inata e hereditária (ANDERSON,

1989). De acordo com Memmi (1989), o racismo é dirigido a todos e estende-se à colônia: os valores negativos atribuídos aos colonizados se estendem à sua língua e cultura, e mesmo aos aspectos geográficos e climáticos de seu país, assim como os valores positivos atribuídos aos europeus se estendem a todas as características das nações metropolitanas. Para ele, o colonizador insiste em seus méritos e rebaixa o colonizado a fim de justificar seus privilégios ilegítimos, uma vez que toma o lugar dos membros do povo dominado em postos de trabalho e iniciativas privadas e obtém, com isso, enormes vantagens econômicas, lucros (conseguidos

às custas desse povo), melhor qualidade de vida e status social mais alto do que teria se estivesse na metrópole.

Como vimos, a língua tem lugar especial no surgimento das consciências nacionais.

Por meio dela, “constituem-se os passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se futuros”

(ANDERSON, 1989, p.168). Para Anderson, as línguas devem ser tratadas como elemento capaz de gerar comunidades imaginadas. A nação é concebida “pela língua, não pelo sangue” 87

e “qualquer um pode ser ‘convidado a entrar’ para a comunidade imaginada” (ANDERSON,

1989, p.159), daí a prática de naturalização nos dias de hoje.

O poder da língua torna-se evidente também na situação colonial. Os povos dominados, vítimas da violência física e de um novo sistema cultural, viram-se forçados a aprender as línguas européias. No entanto, isso representou, ao mesmo tempo, uma invasão da privacidade do colonizador. Com o tempo, esses povos descobriram que a nova língua, como organismo vivo, poderia sofrer influência de outras e passar a servir aos seus propósitos.

Aos poucos, o crescente número de europeus nascidos em outros continentes, os filhos mestiços gerados pelo encontro de diferentes raças, os nativos dominados que tiveram contato com outra cultura e os imigrantes formaram sociedades híbridas, transformando os costumes europeus e criando novas culturas. A luta pela independência mobilizou vários países em diversos continentes e períodos da história. Em cada país, ela mobilizou também intelectuais e escritores, que utilizavam seus textos para questionar o status da cultura e das línguas européias, descolonizar as mentes dos ex-colonizados e valorizar a heterogeneidade que caracterizava suas nações. Dessa forma, a linguagem, usada no período colonial como ferramenta de controle e dominação, transforma-se em ferramenta de contestação e, uma vez modificadas pelos povos dominados, passam a gerar novas comunidades imaginadas.

Ainda sobre a formação das sociedades pós-coloniais, afirma Eliana Lourenço de

Lima Reis que “as transformações ocasionadas pela experiência do colonialismo foram tão profundas que a descolonização significou apenas uma etapa no processo de libertação”

(1999, p.30).

A associação entre eurocentrismo e capitalismo permitiu que a Europa conquistasse novos territórios e impusesse seus valores. Para legitimar o colonialismo, a ideologia capitalista baseou-se em três idéias: valorização da racionalidade européia; imposição da história, das línguas e culturas européias como valores superiores; e incapacidade dos demais 88

povos de alcançar desenvolvimento econômico (REIS, 1999). A situação colonial, marcada pela dicotomia colonizador-colonizado, à qual se aliam outras dicotomias, como verdadeiro- falso, branco-negro, ocasiona uma mistificação do colonizador que desarma quaisquer tentativas de oposição aos dominadores.

A difusão dessas idéias se dava por meio do sistema educacional das colônias e acarretava a desvalorização de tudo o que fosse colonial, ao mesmo tempo em que alienava os povos dominados e os condenava à incerteza. No entanto, as colônias também foram, em grande parte, construídas pela literatura, pelos relatos de viagem, diários de representantes do governo colonial e livros de ficção, nos quais a alteridade do colonizado era capturada e desvalorizada. Tanto as escolas quanto a literatura européia da época ajudaram a impor a noção de universalidade e a de que as boas obras literárias eram as que lidavam com temas universais. Segundo Homi Bhabha, as grandes narrativas do historicismo do século XIX

(evolucionismo, utilitarismo e evangelismo) foram usadas pelo imperialismo como ferramentas e justificativa para a dominação (BHABHA, 1996).

O colonialismo transformou o modo de vida dos colonizados e acabou por ocasionar o surgimento de um novo sujeito cultural, resultado de uma negociação entre a cultura nativa e a européia. O imperialismo ocidental iniciou um processo que culminou, no final do século

XX e início do XXI , na globalização 28 , movimento que levou a um apagamento da idéia de centro e margens, uma vez que todos os países estão ligados, e a um hibridismo cada vez maior, já que ocasiona a migração acelerada de pessoas entre as diversas nações. A

28 Um dos críticos a tratar da globalização é Fredric Jameson, que a divide em cinco níveis que se inter- relacionam (o tecnológico, o político, o cultural, o econômico e o social). Ele questiona a globalização como forma de influência da economia e do poderio militar americanos, que gera, por sua vez, resistência por parte dos demais países. As áreas que poderiam resistir ao imperialismo americano, como o Japão e a Europa, estão implicados no projeto de mercado livre dos Estados Unidos. Nessa nova ordem mundial, o cultural e o econômico dissolvem-se um no outro. O que caracteriza a pós-modernidade e estrutura a globalização, para Jameson, é a confluência entre os níveis do econômico, do cultural e do político. O mundo globalizado é marcado ainda pelos investimentos estrangeiros, pela especulação financeira, pela sociedade de consumo e pela contraditória instalação do mercado livre, que envolve grande intervenção governamental. (JAMESON, 2001) 89

globalização inaugura uma era de cultura internacional, atenua o conceito de espaço local e, com sua onda de deslocamentos, altera a idéia de “comunidade imaginada” de Anderson.

Dessa forma, também o sujeito cultural contemporâneo, de qualquer parte do mundo, é formado por contatos, negociações e conflitos. As identidades na sociedade atual são complexas, fragmentadas, provisórias, compostas também pela presença do outro, estão em constante metamorfose e se definem pela interação. Nesse caso, o escritor ou o artista pós- coloniais, também eles sujeitos híbridos, relacionam-se tanto com a cultura nativa quanto com as demais culturas a que têm acesso.

Nas palavras de Reis:

Na sociedade babélica que sucedeu a expansão imperial já não há mais lugar para as noções de origem e pureza. Se o sujeito colonial criou-se à imagem do colonizador através da aculturação , o sujeito pós-colonial forma-se pela transculturação , ou seja, pelo processo dinâmico através do qual duas ou mais matrizes culturais interagem (apesar das posições desiguais de poder). (REIS, 1999, p.217)

Quanto às línguas européias, sua apropriação pelos povos dominados transformou-as, tornou-as híbridas e apagou sua origem, de tal forma que não podem mais ser reconhecidas como a língua da metrópole. Não são mais européias; pertencem a inúmeros países espalhados por continentes diversos.

Para Reis, a descolonização da cultura e da língua metropolitana adotada não se faz pela recusa da cultura colonial, mas por sua assimilação “insubordinada, antropófaga” e pela escolha de um terceiro lugar enunciativo, negociado: o entre-lugar 29 (REIS, 1999, p.105).

29 O entre-lugar, também chamado de terceira margem, entre outros termos, configura um espaço de mediação entre diferentes referências culturais que abriga relações de desigualdade, dominação, subordinação e troca (HANCIAU, 2005). Refere-se ao espaço liminar que combina temporalidades e histórias ambivalentes, heterogêneas, e que articula e separa, associa e desassocia. Neste espaço, o sujeito cultural híbrido transita entre diferentes culturas e nações, passado e presente, mediando mundos (REIS, 1999). 90

3.2.2. A teoria pós-colonial

Embora os impérios criados pelas grandes potências européias do século XIX tenham se dissolvido e dado origem a diversos países, ainda restam cicatrizes da expansão colonialista. Nesse contexto, a língua e as formas de literatura trazidas da Europa passam a ser usadas pelos povos ex-colonizados “para denunciar e expor as estratégias de colonização e para retrucar ao Outro” (BONNICI, 2000, p.1). As próprias obras de literatura que promovem denúncias contra o imperialismo, valorização do hibridismo cultural e releitura ou reescrita de clássicos do cânone europeu acabaram por originar uma nova teoria literária capaz de compreender e discutir essas propostas sob uma perspectiva diferente: a teoria pós-colonial.

As línguas européias foram utilizadas para ajudar a construir o império e negar o valor da periferia, ou seja, de todas as colônias e países que eram considerados marginais em relação ao centro metropolitano. Qualquer valor periférico que ameaçasse as reivindicações exclusivistas da metrópole era rapidamente incorporado e neutralizado. Além disso, durante a colonização, a variante metropolitana da língua foi instituída pelo poder imperial como norma, e todas as variantes faladas nas colônias acabaram sendo consideradas impuras.

Assim, embora as literaturas das diversas sociedades pós-coloniais sejam muito diferentes entre si, elas compartilham uma mesma origem, apresentam uma tensão com o poder imperial, apropriam-se dos idiomas europeus e criam variantes locais para eles — ou recuperam os idiomas nativos, valorizando-os — e enfatizam diferença e pluralidade culturais.

É por meio das obras literárias que os antigos povos colonizados recuperam a voz que lhes havia sido negada no período colonial: em algumas delas, os escritores fazem uso de uma linguagem com marcas locais e de expressões próprias de seus países; em outras, promovem releituras ou reescritas de textos canônicos europeus, desta vez sob o ponto de vista de uma das personagens marginalizadas (muitas vezes, das personagens femininas ou das que 91

representam minorias e colonizados); entre outras estratégias. Entre as reescritas, destacam-se

Foe (1986), do sul-africano J.M. Coetzee, baseado em Robinson Crusoe , do inglês Daniel

Defoe, e Wide Sargasso Sea (1966), da dominicana Jean Rhys, baseado em Jane Eyre , de

Charlotte Brönte, entre outros. No entanto, mais que retomar uma personagem e re-escrever sua história sob outra perspectiva, essas reescritas questionam o campo discursivo por meio do qual esses textos operam (TIFFIN, 1989).

Foi a produção variada de obras literárias dessas sociedades que instigou o surgimento da chamada teoria pós-colonial, que procura analisar o imperialismo e seus efeitos nas literaturas contemporâneas das ex-colônias, recuperar e valorizar as culturas nativas como fontes de criatividade e inspiração, e estudar esse outro lugar possível de enunciação que resulta da herança cultural deixada pelo colonialismo. Além disso, alguns teóricos pós- coloniais foram influenciados também por textos sobre a situação colonial e seu impacto na identidade cultural dos povos subjugados, notadamente os de Frantz Fanon.

O pós-colonialismo é uma teoria que estuda a descolonização das culturas e literaturas das antigas colônias, efetuada por meio do desmantelamento dos códigos europeus, da subversão das idéias e valores impostos como superiores — subversão que pode ser feita por meio das ambivalências e brechas que constituem o discurso colonial — e da apropriação da língua e dos modos narrativos. No entanto, a descolonização não pretende substituir os antigos valores por novos valores dominantes, mas sim questioná-los: “a descolonização é um processo, não um fim; ela invoca uma dialética em curso entre sistemas centristas hegemônicos e sua subversão periférica 30 ” (TIFFIN, 1989, p.32).

Em outro trecho, Tiffin reforça a intenção de manter em debate certos conceitos:

As inversões pós-coloniais das formações imperiais [...] são deliberadamente provisórias; elas não subvertem ou invertem o dominante para tornar-se, por

30 Decolonization is process, not arrival; it invokes an ongoing dialectic between hegemonic centrist systems and peripheral subversion of them. 92

sua vez, dominante, mas para questionar os fundamentos de ontologias e sistemas epistemológicos que veriam tais estruturas binárias como inescapáveis 31 . (TIFFIN,1989, p.49)

As perspectivas pós-coloniais surgem, portanto, nos países em desenvolvimento, antes chamados de países do Terceiro Mundo, e entre as minorias dos países desenvolvidos. O pós- colonial envolve a idéia de cultura como espaço de hibridismo, indeterminação, conflito, criatividade e negociação, em que as crenças de prioridade cultural são contestadas: “A crítica pós-colonial é testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e social dentro da ordem do mundo moderno” (BHABHA, 2003, p.239). A crítica pós-colonial envolve, portanto, debates em torno de minorias como a dos povos nativos de países como Canadá, Austrália e Nova

Zelândia, entre outros, que são duplamente marginalizados, porque representam um grupo em desvantagem em um país que, por sua vez, já vivenciou a dominação.

A colonização foi uma tentativa das metrópoles de banir a “inexistência” da cultura na vida dos colonizados e de apresentar a “verdadeira” cultura, a européia. A ênfase pós-colonial sobre a cultura nacional é uma reação a essa negação. Segundo Thomas Bonnici, “a literatura pós-colonial, respaldada nas teorias sobre a cultura, oferece ao ex-império um conjunto de narrativas para provar que jamais houve o vazio cultural e que jamais os países colonizados estiveram numa ‘longa noite de selvageria’” (BONNICI, 2000, p.32).

A crítica pós-colonial insiste ainda que a formação das identidades cultural e política implica um processo de alteridade e procura rasurar as noções de polaridade e oposição binária. O questionamento das oposições binárias pode ser observado também na relação pós- colonial com a história, em que o passado histórico é “revalorizado como uma forma de

31 Post-colonial inversions of imperial formations […] are deliberately provisional; they do not overturn or invert the dominant in order to become dominant in their turn, but to question the foundations of ontologies and epistemological systems which would see such binary structures as inescapable. 93

anterioridade 32 ” (BHABHA, 1996, p.443), mas não tem prioridade sobre o presente.

Nenhuma parte da história é descartada: elas são transformadas de maneiras infinitas. A cultura pré-colonial, que nunca chegou a ser erradicada por completo pelos colonizadores, é uma parte importante no processo de descolonização da cultura e da literatura.

Usando o termo “o estado de estar-junto” (ou “estar-junto”, na tradução do termo togetherness no livro O local da cultura , de Homi Bhabha para o português), de Hannah

Arendt, que se refere à idéia de uma comunidade em que as pessoas estão umas com as outras

— nem a favor nem contra — Homi Bhabha trata da possibilidade de subversão das sociedades pós-coloniais, modificando, por sua vez, o sentido que Arendt confere ao termo:

o estar-junto humano pode vir a representar as forças da autoridade hegemônica; uma solidariedade baseada na vitimização e no sofrimento pode, de forma implacável, às vezes violenta, voltar-se contra a opressão; uma agência subalterna ou minoritária pode tentar interrogar e rearticular o ‘inter-esse’ da sociedade que marginaliza seus interesses. (BHABHA, 2003, p.265)

Muito se tem debatido sobre a expressão “pós-colonial”. Os críticos australianos

Ashcroft, Griffiths e Tiffin, no livro The Empire Writes Back (publicado pela primeira vez em

1989), usam o termo para “cobrir toda cultura afetada pelo processo imperial do momento da colonização até hoje 33 ” (ASHCROFT et al. , 2002, p.2), enfatizando que o prefixo “pós” não indica, nesse caso, algo que sucedeu o colonialismo, mas sim algo que se iniciou com ele.

Como aponta Eliana Lourenço de Lima Reis (1999), muitos autores e países pós-coloniais ainda sofrem influência dessa nova forma de controle exercida, hoje em dia, pelos países desenvolvidos , o neo-colonialismo. Assim, a literatura pós-colonial pode ser entendida, nas palavras de Thomas Bonnici, “como toda a produção literária dos povos colonizados pelas potências européias entre os séculos XV e XX ” (BONNICI, 2000, p.10).

32 …revalued as a form of anteriority… 33 to cover all the culture affected by the imperial process from the moment of colonization to the present day. 94

Para Ashcroft et al ., o estudo dessas literaturas, a partir da teoria pós-colonial, deve englobar a análise dos efeitos do imperialismo europeu na literatura contemporânea de vários países. A questão do colonialismo continua sendo importante porque as ferramentas usadas para dominar os povos nativos e estabelecer a hegemonia cultural européia não desapareceram. Entre elas, a idéia de cânone literário e a de variante standard dos idiomas, que geralmente privilegia a versão européia, permanecem influentes e colocam as culturas pós-coloniais em posição marginal, assim como o faziam nos tempos de colônia.

Ainda segundo os críticos australianos, o desenvolvimento das literaturas pós- coloniais passou pelas seguintes etapas: os primeiros textos literários que se referem a esses países são cartas, diários e relatos de viagem produzidos por metropolitanos a serviço do centro; em seguida, alguns dos representantes nativos começam a produzir textos, orientados por representantes do governo central ou da cultura metropolitana (ou seja, o potencial subversivo dessa atividade ainda é, em grande parte, controlado); e, por fim, os textos escritos nas colônias e ex-colônias começam a diferenciar-se dos textos europeus e libertar-se dos valores impostos e da noção de norma.

A ênfase dos teóricos pós-coloniais na linguagem — sobretudo na escrita, uma vez que, no período colonial, esta assume significação de autoridade por ser considerada e imposta como superior em relação à oralidade — deve-se ao fato de que o controle imperial e o sistema escolar estabeleceram a variante da metrópole como norma e as variantes coloniais como impuras, inferiores. Dessa forma, a “língua torna-se um meio de controle por meio do qual a estrutura hierárquica de poder é perpetuada, e o meio pelo qual concepções de

‘verdade’, ‘ordem’ e ‘realidade’ são estabelecidas 34 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.7).

O colonialismo provocou a alienação de escravos, nativos dominados e mesmo de colonizadores livres. Essa alienação podia ser sentida, nos tempos coloniais, em relação à

34 Language becomes the medium through which a hierarchical structure of power is perpetuated, and the medium through which conceptions of ‘truth’, ‘order’ and ‘reality’ become established. 95

experiência de lugar: há uma lacuna entre o novo lugar que passam a habitar e a linguagem para descrevê-lo, seja porque o idioma é inadequado para essa descrição ou porque, no caso dos escravos e dos nativos, sua língua está sendo destruída. A tendência, nas colônias, é a busca por uma identidade alternativa e a apropriação do idioma europeu, que passa a ser usado de maneira diferente e torna-se adequado para descrever a nova paisagem e o tipo de experiência cultural do povo que a habita.

As vozes pós-coloniais rejeitam o poder exercido pelas ex-metrópoles e a idéia de centro e, com ela, as noções de superior e inferior e de centro e margem. O movimento que leva as sociedades pós-coloniais à negação do domínio político e cultural europeu fica claro nas palavras de Ashcroft et al .:

Em outras palavras, o processo de alienação que inicialmente havia servido para relegar o mundo pós-colonial à “margem” virou-se contra si mesmo e contribuiu para levar esse mundo através de um tipo de barreira mental a uma posição a partir da qual toda experiência poderia ser vista como descentrada, pluralista e multíplice. Assim, a marginalidade tornou-se uma fonte de energia criativa sem precedentes 35 . (ASHCROFT et al ., 2002, p.12)

De início, as literaturas das ex-colônias foram consideradas ramos da “literatura-mãe” metropolitana, o que valorizava a antigüidade da tradição literária escrita européia e implicava as mesmas distinções que a idéia de centro e margem. Aos poucos, essa comparação mãe- filho ou rio-tributário passou a ser questionada pelas literaturas pós-coloniais, que, com isso, reivindicavam uma voz própria e distinta da ex-metrópole.

O desenvolvimento de literaturas e críticas literárias nacionais é fundamental para os estudos pós-coloniais. No entanto, “teorias e modelos de literaturas pós-coloniais não

35 In other words the alienating process which initially served to relegate the post-colonial world to the ‘margin’ turned upon itself and acted to push that world through a kind of mental barrier into a position from which all experience could be viewed as uncentred, pluralistic, and multifarious. Marginality thus became an unprecedented source of creative energy. 96

poderiam emergir até que as colônias separadas fossem vistas em uma estrutura centrada em suas próprias tradições literárias e culturais 36 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.17).

O surgimento de literaturas pós-coloniais também ocasionou o questionamento sobre a descolonização da cultura. De acordo com alguns críticos e escritores, como Ngugi wa

Thiongo, essa etapa só se torna possível com a recuperação das línguas e tradições pré- coloniais ( apud Ashcroft et al ., 2002). Esse argumento tem sido muito comum nos debates sobre os rumos da literatura africana, uma vez que há, em todo o continente, idiomas falados por um grupo considerável de pessoas e que configuram uma alternativa viável de substituição das línguas européias. Outros críticos e escritores, como Wole Soyinka, defendem a valorização do hibridismo e apontam que um texto, mesmo que escrito em língua nativa, apresentaria traços da cultura européia e seria, portanto, um produto híbrido ( apud

Ashcroft et al ., 2002).

Para o escritor guianense Wilson Harris (apud ASHCROFT et al ., 2002), a literatura é o espaço em que o oprimido pode libertar-se da dominação. O texto pode ser visto, portanto, como meio de expressão, questionamento, debate, disputa e contestação. Essa tendência subversiva dos textos pós-coloniais é apontada no seguinte trecho:

Uma característica das literaturas dominadas é uma inegável tendência à subversão, e um estudo das estratégias subversivas empregadas pelos escritores pós-coloniais revelaria tanto as configurações da dominação quanto as respostas imaginativas e criativas a esta condição 37 (ASHCROFT et al ., 2002, p.32).

A luta para valorizar o hibridismo e a pluralidade em detrimento da pureza é característica das sociedades pós-coloniais: “no mundo pós-colonial, o encontro cultural

36 Theories and models of post-colonial literatures could not emerge until the separate colonies were viewed in a framework centred on their own literary and cultural traditions. 37 A characteristic of dominated literature is an inevitable tendency towards subversion, and a study of the subversive strategies employed by post-colonial writers would reveal both the configurations of domination and the imaginative and creative responses to this condition. 97

destrutivo está transformando-se em uma aceitação da diferença em termos iguais 38 ”

(ASHCROFT et al ., 2002, p.35).

Segundo os críticos australianos, a escrita pós-colonial modifica a língua em um discurso adaptado ao local colonizado por meio de dois processos: a ab-rogação, que nega o privilégio da variante européia da língua, e a apropriação, que remodela os idiomas da ex- metrópole para novos usos e estabelece um discurso que anuncia sua diferença. A ab-rogação, fundamental para descolonizar a língua, é seguida, na maioria das sociedades pós-coloniais, pelo processo de apropriação, que permite que os idiomas europeus expressem, de inúmeras maneiras, experiências culturais amplamente variadas. No entanto, nas ex-colônias de povoadores, a ab-rogação raramente é total: a variante européia e a local convivem lado a lado como vernácula e standard . Para a teoria pós-colonial, há ainda uma outra apropriação que é fundamental:

Mas a apropriação que teve o significado mais profundo no discurso pós- colonial foi a da própria escrita. É por meio da apropriação do poder investido na escrita que o discurso pode apoderar-se da marginalidade imposta a ele e tornar o hibridismo e o sincretismo a fonte da redefinição literária e cultural 39 . (ASHCROFT et al ., 2002, p.77)

Notamos, portanto, que a língua — ferramenta versátil e mutante — é um ótimo veículo para transmitir tanto a complexidade cultural dessas sociedades de raízes múltiplas quanto a complexidade do organismo vivo que ela é. Por meio dela, as literaturas pós- coloniais “negociam uma lacuna entre mundos 40 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.38) e

“significam diferença 41 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.50), o que pode ser entendido como a entrada de uma nova cultura no texto em idioma europeu, e anulam o privilégio das antigas

38 The post-colonial world is one in which destructive cultural encounter is changing to an acceptance of difference on equal terms. 39 But the appropriation which has had the most profound significance in post-colonial discourse is that of writing itself. It is through an appropriation of the power invested in writing that this discourse can take hold of the marginality imposed on it and make hybridity and syncreticity the source of literary and cultural redefinition. 40 …negotiate a gap between worlds. 41 ..signify difference… 98

metrópoles. Os limites da língua correspondem aos limites de nossa percepção: “os mundos existem por meio das línguas, seus horizontes estendendo-se até onde os processos de neologismo, inovação, tropos e usos imaginativos geralmente permitam que os horizontes da própria língua sejam estendidos 42 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.43).

As palavras e línguas não possuem uma essência cultural própria. As noções de identidade, de diferença e de realidade cultural indecifrável são construídas no texto.

Diferentes usos da palavra podem ser feitos e, dessa forma, a referência cultural pode ser alterada, e é isso que permite que as línguas dos ex-colonizadores se tornem as línguas dos ex- colonizados. De início, essas variantes locais do idioma são atacadas pelo centro como sendo coloquialismos ou dialetos, mas a língua acaba por ser apropriada e passa a descrever e constituir também essa nova experiência e esse novo lugar. As palavras de Ashcroft et al . sobre o inglês podem ser estendidas a qualquer outro idioma europeu que tenha sido apropriado por uma ex-colônia: “o que torna um inglês caracteristicamente indiano, australiano ou trinitário não é a incorporação de algum tipo de essência cultural, mas o uso da linguagem em um local e tempo particulares 43 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.70).

Para Pêcheux, os sujeitos são criados, ou construídos, por meio de práticas ideológicas, e “o significado não reside na língua em si , mas o significado lingüístico tem um caráter material produzido pela posição da língua como significante na luta social, política e cultural 44 ” (apud ASHCROFT et al ., 2002, p.169).

Durante muito tempo, a idéia de cânone também foi usada para dominar: ela consagrava as obras literárias produzidas pelo centro como superiores em detrimento das obras escritas nos países periféricos e marginalizava os escritores das colônias e ex-colônias.

42 Worlds exist by means of language, their horizons extending as far as the processes of neologism, innovation, tropes, and imaginative usage generally will allow the horizons of the language itself to be extended. 43 ...what makes a characteristically Indian, Australian, or Trinidadian english is not the embodiment of some kind of cultural essence, but the use of language in a particular place and time. 44 ...meaning does not reside in language in itself , but linguistic meaning has a material character produced by the position of the language as a signifier in social, political, and cultural struggle. 99

No entanto, o cânone não é apenas um conjunto de obras literárias, mas uma noção que envolve, sobretudo, uma série de práticas de leitura, relacionadas ao sistema educacional e à rede de publicações. Por isso, alguns defendem que o pós-colonialismo, em sua tentativa de subverter o cânone, deveria ser visto como uma prática de leitura.

Nossas idéias de literário, literatura e cânone tem sido alteradas pelos novos usos de língua e novas formas de estrutura narrativa presentes nos textos, bem como pelas críticas e posicionamentos pós-coloniais. Dessa forma, atualmente, “os gêneros não podem ser descritos por características essenciais, mas por um entrelaçamento de aspectos, uma ‘semelhança de família’ que nega tanto a possibilidade de essencialidade quanto a de limitação 45 ”

(ASHCROFT et al ., 2002, p.179)

Notamos que a língua é elemento fundamental para dominar e para contestar. Ainda sobre a dominação, segundo Tzvetan Todorov, a característica chave da opressão colonial era o controle dos meios de comunicação: “o controle sempre se manifestou pela autoridade imposta de um sistema de escrita , quer a escrita já existisse na cultura colonizada ou não 46 ”

(apud ASHCROFT et al ., 2002, p.78). O problema do colonialismo foi, portanto, a dominação de um tipo de comunicação, a escrita — que fixa os eventos passados e torna a realidade objetiva, permitindo a distinção entre história e mito — sobre outro, a oral — que pressupõe que as palavras dão vida às coisas.

Nas colônias, o intérprete exercia uma função ambígua, uma vez que adquiria conhecimentos da nova língua para preservar sua antiga cultura, e ocupava uma posição perturbadora, pois se encontrava entre dois discursos. Ashcroft et al . compara o intérprete colonial ao escritor pós-colonial: “o papel do intérprete é como o do escritor pós-colonial,

45 ...genres cannot be described by essential characteristics, but by an interweaving of features, a ‘family resemblance’ which denies the possibility of either essentialism or limitation. 46 ...control is always manifested by the imposed authority of a system of writing , whether writing already exists in the colonized culture or not. 100

preso no conflito entre a destruição e a criatividade 47 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.79). É essa sensação de deslocamento ou de ser-sem-casa que motiva, nos povos dominados, “a reconstrução do mundo social e imaginativo na escrita pós-colonial 48 ” (ASHCROFT et al .,

2002, p.81).

A importância da escrita nas discussões sobre colonialismo e teoria pós-colonial deve- se ao fato de que ela “não inscreve a mensagem falada ou representa o evento da mensagem simplesmente, ela torna-se um novo evento 49 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.184).

Ainda sobre o texto colonial, afirmam Ashcroft e seus colaboradores: “o texto pós- colonial não ‘cria significado’ por meio do mero ato de inscrevê-lo, mas, ao contrário, indica um horizonte potencial e mutável de significados possíveis 50 ” (ASHCROFT et al ., 2002, p.184).

3.2.3. Colonialismo, pós-colonialismo e identidade cultural

O crítico indiano Homi Bhabha tem tratado, sobretudo a partir de suas leituras do trabalho de Frantz Fanon, da questão da identidade cultural colonial e pós-colonial. Para ele, a construção da identidade é um processo conflitante e ambíguo, sempre negociado, nunca acabado, no qual se baseia o discurso colonial de supremacia. Assim, a cultura configura uma produção incompleta de significado e valor, “produzida no ato da sobrevivência social 51 ”

(BHABHA, 1996, p.438). O problema da identidade torna-se, portanto, um dos temas mais recorrentes e relevantes nas obras literárias e nas teorias pós-coloniais, aparecendo como questionamento persistente do espaço da representação.

47 The role of the interpreter is like that of the post-colonial writer, caught in the conflict between destruction and creativity. 48 ...the reconstruction of the social and imaginative world in post-colonial writing. 49 Writing does not merely inscribe the spoken message or represent the message event, it becomes a new event. 50 The post-colonial text therefore does not ‘create meaning’ through the mere act of inscribing it, but rather indicates a potential and shifting horizon of possible meanings. 51 …produced in the act of social survival. 101

Fanon aponta a duplicidade da identidade colonial, evidenciada no desejo ambivalente e contraditório do colonizado pelo lugar de seu outro colonizador, o que implicaria, para o colonizado vingativo, ocupar, ao mesmo tempo, dois lugares, o de vítima e o de dominador.

Nas palavras de Bhabha, o desejo pelo outro é duplicado na linguagem, “que fende a diferença entre Eu e Outro, tornando parciais ambas as posições, pois nenhuma é auto- suficiente” (BHABHA, 2003, p.84).

Para Bhabha, o fato de a identidade nunca ser um produto acabado vem da noção de que ela é uma tentativa problemática de acesso a uma imagem de totalidade. Essa tentativa refere-se não só à auto-imagem, mas também ao desejo de fixar o outro e sua diferença cultural em um objeto tangível. O problema do conceito de imagem é que ela requer a negação da idéia de originalidade, uma vez que torna presente algo que está ausente e que, portanto, é sempre uma substituição metafórica, um signo de perda.

O discurso colonial, base da noção de supremacia imposta e propagada pelos europeus, depende desse conceito de uma identidade fixa para manter e justificar o controle exercido pela metrópole. Ele procura, contraditoriamente, produzir o colonizado como um outro visível, como se sua identidade pudesse ser tida como completa e pré-estabelecida e apresentá-lo “como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 2003, p.111). No entanto, essa representação é paradoxal: implica rigidez e característica imutável, mas também desordem e degeneração (o negro é tido, ao mesmo tempo, como selvagem e obediente, simplório e manipulador).

A inflexibilidade que se atribui à identidade do povo dominado, representada sobretudo pelo estereótipo, encontra-se sempre entre o que já se conhece e o que deve ser repetido (como se não pudesse ser comprovado no discurso). 102

O estereótipo constitui uma simplificação porque representa um traço de forma fixa.

No entanto, a completude desse modo de representação está sempre ameaçada pela falta, pela característica não fixa, que é mascarada e ocultada de modo constante, a fim de que o estereótipo cumpra seu objetivo: ele facilita as relações coloniais e “estabelece uma forma discursiva de oposição racial e cultural em termos da qual é exercido o poder colonial”

(BHABHA, 2003, p.121). Os efeitos discriminatórios do discurso colonialista não se referem a uma única pessoa, mas a um traço — repetido como diferente — do que é recusado.

É no contexto do estereótipo e da dominação que surge a estratégia da mímica, definida por Bhabha como um acordo irônico entre a demanda pela identidade e a contrapressão pela mudança, um olhar deslocador que perturba a autoridade do discurso colonial. A mímica é uma estratégia ambivalente de semelhança, que não é completa, que não

é identificação total, que se transforma em incerteza e fixa o sujeito colonial como presença parcial e incompleta.

A exposição do hibridismo, assim como a mímica, desestabiliza o mito originário do poder colonialista. O hibridismo não resolve tensões, mas mantém o questionamento: os saberes negados infiltram-se no discurso dominante, modificando e tornando estranha a base de sua autoridade. Os saberes da então “autoridade cultural”, agora destituídos de sua presença plena, podem ser confrontados:

Ver o cultural não como fonte de conflito — culturas diferentes — mas como o efeito de práticas discriminatórias — a produção de diferenciação cultural como signos de autoridade — muda seu valor e suas regras de reconhecimento. O hibridismo intervém no exercício da autoridade não meramente para indicar a impossibilidade de sua identidade, mas para representar a imprevisibilidade de sua presença. (BHABHA, 2003, p.166)

Embora o discurso colonialista trate o colonizado como portador de características fixas, imutáveis, o sujeito se constrói na alteridade e é sempre dividido, multifacetado. Para o escritor guianense Wilson Harris, a catástrofe — que pode ser também a da colonização — 103

possibilita a regeneração psíquica, pois a criatividade vem da energia envolvida nos atos violentos. Ele também acredita que a miscigenação transforma os ancestrais de diferentes povos em ancestrais de todos, o que garante a esses indivíduos mestiços acesso a várias tradições. Torna-se necessário, portanto, que o outro seja visto como uma negação de uma identidade primordial e original, o que permite que o cultural venha a ser “significado como realidade lingüística, simbólica, histórica” (BHABHA, 2003, p.86).

As culturas, por sua vez, são representadas “em virtude dos processos de iteração e tradução através dos quais seus significados são endereçados de forma bastante vicária a — por meio de — um Outro. Isto apaga qualquer reivindicação essencialista de uma autenticidade ou pureza inerente de culturas” (BHABHA, 2003, p.95).

Na situação colonial, produz-se uma crença múltipla e contraditória, resultado de atitudes contrárias e independentes que envolvem a cisão em torno dos fetiches e símbolos nacionalistas da metrópole, como a bandeira e os aparatos militares sempre expostos, que preparam os nativos tanto para a imobilidade quanto para o contra-ataque. Para Bhabha, a crença múltipla também causa ambivalência: “O momento enunciatório de crença múltipla é tanto uma defesa contra a ansiedade da diferença como ele mesmo produtor de diferenciações” (BHABHA, 2003, p.189). Portanto, podemos pensar na cultura, e também no texto pós-colonial, como um campo de batalhas e disputas e na história como uma forma de guerra, uma vez que envolve relações de poder em diversos momentos.

O espaço estratégico de enunciação produzido nesse contexto — nem um nem outro

— coloca o colonizado “naquele momento de enunciação, que tanto Benveniste como Lacan descrevem, onde dizer ‘Estou mentindo’ é estranhamente dizer a verdade ou vice-versa”

(BHABHA, 2003, p.192). Dessa forma, o sujeito colonizado acaba por produzir ele próprio uma falta de verdade que implica uma forma estranha de verdade. 104

A associação do cultural ao nacional, sobretudo quando ligados à literatura, pode ser bastante problemática e mesmo perigosa. Entretanto, as palavras de Helen Tiffin a respeito desse envolvimento da cultura e da nacionalidade com a literatura inglesa — que podem ser estendidas às demais ex-colônias e suas literaturas — mostram que essa conexão pode ser importante na luta contra o imperialismo cultural:

Com freqüência, também, a construção “essencialmente” nigeriano ou do “essencialmente” australiano invoca sistemas exclusivistas que repetem os paradigmas universalistas imperiais. Por todos esses motivos, estratégicos e filosóficos, penso que os modelos nacionais mostram, no fim, ser insatisfatórios, embora seja de posições nacionais que muito do apoio ativo ao estudo das literaturas em inglês haja vindo. E são as associações literárias e indivíduos baseados na idéia de nação que ainda lutam a boa luta contra a hegemonia continuada da literatura britânica e da cultura européia em nossas universidades. 52 (TIFFIN, 1989, p.36) 53

Homi Bhabha sugere ainda, com base em idéias de Goethe, uma maneira de aliar os estudos literários à questão da identidade como ela tem sido colocada pela crítica pós- colonial: “O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem através de suas projeções de ‘alteridade’” (BHABHA, 2003, p.33).

3.2.4. O pós-colonialismo e a idéia de nação

A nação emergiu como uma idéia histórica poderosa, a partir das tradições do pensamento político e da linguagem literária. Desde então, os nacionalistas têm tentado produzir a idéia de nação como uma narrativa contínua de progresso nacional. No entanto, essa idéia é ambivalente, transitória e indeterminada, mas inspiradora:

52 Frequently too, the construction of the ‘essentially’ Nigerian or the ‘essentially’ Australian invokes exclusivist systems which replicate imperial universalist paradigms. For all these reasons, strategic and philosophical, I think national models do ultimately prove unsatisfactory, though it is from national positions that much of the active support for the study of literatures in English has come. And it is nation-based literary associations and individuals who still fight the good fight against the continuing hegemony of British literature and European culture in our universities. 53 É interessante notar que Hellen Tiffin usou, nesse trecho, “ fight the good fight ”, expressão que coincide com um trecho da bíblia em sua versão britânica autorizada pelo rei Jaime (a conhecida King James Authorized Version), “ Fight the good fight of faith ” (“ chapter” 6, versicle 12 ), da epístola de Paulo a Timóteo. 105

Porque a nação, como forma de elaboração cultural (no sentido gramsciano), é um agente da narração ambivalente que mantém a cultura em suas posições mais produtivas, como uma força ‘tanto para subordinar, fraturar, difundir, reproduzir, quanto para produzir, criar, coagir, guiar. 54 (BHABHA, 1999, p.3-4).

Ernest Renan aponta que a formação das nações muitas vezes envolve guerras e massacres, mas também as glórias passadas e o desejo de realizar mais coisas em conjunto no presente são as forças que criam um povo. A nação é, portanto, um princípio espiritual que se encontra no passado (legado de memórias) e no presente (desejo de perpetuar esse legado).

Dessa forma, o que articula o povo-nação é a vontade da nacionalidade, não as idéias de raça, língua ou território.

Ainda segundo Renan, essa vontade requer o esquecimento da história do passado e da violência do estabelecimento do território como país para começar a narrativa da nação. No entanto, a necessidade do esquecimento problematiza a totalização da vontade nacional e abre novas possibilidades: “Ser obrigado a esquecer se torna a base para recordar a nação, povoando-a de novo, imaginando a possibilidade de outras formas contendentes e liberadoras de identificação cultural” (BHABHA, 2003, p.226-227).

Para Homi Bhabha, a idéia de nação preenche o vazio causado pelos deslocamentos, migrações e desenraizamentos ao redor do mundo, “transformando esta perda na linguagem da metáfora” (BHABHA, 2003, p.199), que transporta o sentido de casa por meio da distância. A sombra da nação, portanto, projeta-se sobre a condição do exílio. A construção cultural de nacionalidade é uma forma de afiliação social e textual.

O conceito de povo emerge como movimento narrativo duplo. Isso porque o povo consiste em “objeto” histórico e em “sujeito” de um processo de significação que deve

54 For the nation, as a form of cultural elaboration (in the Gramscian sense), is an agency of ambivalent narration that holds culture at its most productive positions, as a force for ‘subordination, fracturing, diffusing, reproducing, as much as producing, creating, forcing, guiding’. 106

obliterar a presença anterior para afirmar-se como contemporaneidade. Surge uma tensão entre o povo como presença histórica e o povo como performance da narrativa, do presente enunciativo. Essa duplicidade conceitual ambivalente da sociedade moderna torna-se o “lugar de escrever a nação ” (BHABHA, 2003, p.207).

A sociedade da nação é caracterizada por uma natureza imaginária ou mítica, reforçada por uma identificação do povo com uma entidade nacional transcendente. Essa identificação, que se dá em uma linguagem de duplicidade que advém da divisão entre passado histórico e presente performativo da enunciação, sugere o povo como uma simultaneidade através do tempo que não é possível, que não existiu.

A narrativa nacional e o próprio conceito de nação podem ser utilizados tanto pelo discurso nacionalista, que procura ocultar as diferenças entre estado-nação e comunidade local e produzir uma sensação de homogeneidade, quanto pelo discurso pós-colonial, que problematiza essas idéias:

O povo não é o princípio nem o fim da narrativa nacional; ele representa o tênue limite entre os poderes totalizadores do social como comunidade homogênea, consensual, e as forças que significam a interpelação mais específica a interesses e identidades contenciosos, desiguais, no interior de uma população. (BHABHA, 2003, p.207)

A nação — ambivalente, indeterminada, cuja história é transitória — configura um espaço de significação marcado pelos discursos das minorias e das autoridades antagônicas, o que desestabiliza a idéia de povo e nação como homogêneos e contesta as noções de pureza ou de supremacia cultural: “As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras — tanto reais quanto conceituais — perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem identidades essencialistas” (BHABHA, 2003, p.211). 107

A representação do povo é marcada pela liminaridade, uma vez que ele não está mais contido no discurso do anonimato de indivíduos, do tempo homogêneo das narrativas sociais e da visibilidade historicista da modernidade, e não se resume àquelas características óbvias e aos estereótipos atribuídos a ele.

Os estudos pós-coloniais, bem como os trabalhos de Frantz Fanon e Julia Kristeva, citados por Bhabha em seu O local da cultura (2003), procuram questionar a linguagem da coletividade e da coesão nacionais e “redefinir o processo simbólico através do qual o imaginário social — nação, cultura ou comunidade — se torna o sujeito do discurso e o objeto da identificação psíquica” (BHABHA, 2003, p.221-222). É a instabilidade da significação cultural permite que a cultura nacional seja articulada como dialética de temporalidades diversas: moderna, colonial, pós-colonial, nativa (BHABHA, 2003).

Nas relações coloniais e pós-coloniais, o suplemento — termo de Homi Bhabha — é aquilo que não soma, mas que altera o cálculo. O espaço colonial é suplementar ao centro e está em relação subalterna, mas não engrandece a presença do Ocidente: ao contrário, ele redesenha seus limites. Na metrópole de limites redesenhados, a cidade é o local privilegiado do retorno pós-colonial, que “oferece o espaço no qual identificações emergentes e novos movimentos sociais do povo são encenados” (BHABHA, 2003, p.237).

Após estas considerações teóricas, passaremos, no próximo capítulo, à discussão de aspectos do romance, como a estrutura, a antecipação, as personagens femininas, a questão da verdade, o narrador, o movimento de humanização, a tradução, os usos da linguagem e a crítica ao sistema colonial.

108

IV – A história do bando de Kelly , de Peter Carey

“All fiction is invention. Sometimes the realism persuades us of its truth. Sometimes we are duped by its untruth. Some writers play on our disbelief. These are the Liars, celebrating the artifice of fiction. The Liars are flaunting the Lie .” (Helen Daniel, Liars: Australian New Novelists , 1988, p.4)

4.1. Estrutura, linguagem e tradução

O romance A história do bando de Kelly , de Peter Carey, é narrado, na maior parte do tempo, em primeira pessoa, mas há também trechos de narração em terceira pessoa. Os efeitos desta característica da narrativa serão discutidos oportunamente neste trabalho.

O texto é apresentado como uma série de manuscritos encontrados pela polícia em sua campanha pela captura de Ned Kelly e como pertencente à Biblioteca Pública de Melbourne, e é introduzido por um relato sobre os últimos momentos do tiroteio contra o fora-da-lei. Cada um dos capítulos é mostrado como sendo um dos “pacotes” encontrados e contém uma breve descrição do tipo de papel e do conteúdo do manuscrito. Dois outros relatos, o primeiro deles apresentado como parte da coleção da Biblioteca Mitchell, de Sydney, sobre o tiroteio e o enforcamento do fora-da-lei finalizam o romance.

Ao escrever A história do bando de Kelly , Peter Carey procurou recriar o estilo do próprio Ned, que deixou marcas de seu discurso nas cartas Cameron e Jerilderie, ambas escritas e recolhidas pela polícia na época dos assaltos a banco. Nas cartas, estas características do discurso pessoal de Ned consistiam de erros gramaticais, que refletiam a pouca escolaridade do rapaz, e de argumentos, em que ele criticava o modo como as autoridades tratavam os irlandeses, ameaçando os possíveis informantes da polícia e dando sua versão dos fatos.

Para dar caráter de veracidade ao texto, Carey inicia o romance com o relato de um policial sobre o último confronto das autoridades contra Ned Kelly e sua subseqüente captura.

Esse texto também revela que, junto com o criminoso, foram apreendidos alguns manuscritos, 109

que serão entregues a uma biblioteca e apresentados pelo escritor logo em seguida. Dessa forma, o leitor é levado a acreditar, desde o início, que se trata de algo sério e que os manuscritos realmente existem e estão catalogados em uma biblioteca. A sensação de veracidade é complementada pelo primeiro parágrafo do primeiro capítulo, em que Ned promete contar somente a verdade para sua filha. É como se o leitor tivesse acesso aos sentimentos íntimos do rapaz.

Vários elementos da língua escrita são utilizados por Carey para caracterizar Ned como alguém que teve pouca escolaridade e assim reforçar a veracidade de seu relato. Entre eles, estão marcas de informalidade, tais como abreviações de medidas ou de algumas palavras, como podemos observar no seguinte trecho:

Na sala de jantar encontrei um delicioso fogo e um indivíduo vestido com uma roupa de 3 pç. atacando um prato de ovos com bacon mas além dele o aposento estava vazio. A sra. Shelton me colocou sentado à mesa perto do fogo que estava arrumada com reluzentes facas & garfos & galheteiro & sal & pimenta & um açucareiro com uma colher encurvada. Eu sabia que minha mãe ia gostar muito daquilo. (CAREY, 2002, p.43)

Outra característica do discurso escrito de Ned é o uso de frases longas sem nenhuma vírgula ou pausa, o que denota oralidade e, sobretudo, pouca escolaridade. Por outro lado, a torrente de palavras sem pausa ao longo da narrativa corresponde à violência de lembranças e sentimentos e à urgência da escrita, causada pelo que o motiva — escrever para a filha, para que ela conheça seu ponto de vista, é importante para Ned — e pela falta de tempo — a escrita se dá em meio a fugas e assaltos a banco. A falta de pontuação pode ser observada em todo o texto, tanto em momentos de felicidade quanto de ação, como podemos verificar no seguinte trecho:

As libélulas no riacho as mariposas à noite em volta do lampião e todas as outras coisas vivas nos diziam que era hora de semear e todos os dias levantávamos cedo e íamos tarde para a cama eu sonhava com árvores e 110

tocos intermináveis. Estava resolvido que teríamos uma fazenda mas eu a enxergava apenas com a visão de um louco era uma fantasia tão verdejante que nunca seria possível naquela geografia e também com uma grande propriedade rural um riacho correndo mesmo durante a estiagem e nem um só monte de folhas secas queimando e nenhuma árvore morta ou com a casca anelada. (CAREY, 2002, p.129-130)

Os diálogos do romance não são introduzidos por nenhum tipo de marcação no original em inglês, elemento que foi mantido na tradução para o português, como podemos notar no seguinte trecho, que mostra o diálogo entre James Kelly, cunhado de Ellen, acusado de queimar sua casa, e o juiz:

Eu me casarei com a sra. Kelly. Mas e senhor tem algo a dizer em sua defesa? Sim eu me casarei com ela. E isso é tudo? Sim meritíssimo. (CAREY, 2002, p.64)

Outra marca bastante interessante da narrativa é a omissão parcial de palavrões. O narrador, tendo em mente que escreve para uma menina, suaviza a leitura ao colocar apenas a primeira letra do xingamento, ou a primeira e a última, sem omitir, no entanto, a linguagem característica das pessoas à sua volta, nem a expressão de sua raiva: “Ela gritou Eu mataria esses s ─nas se fosse homem juro por Deus. Ela usava muitas expressões grosseiras e não vou escrevê-las aqui. Era f isso e p aquilo e soltava para fora tudo quanto era adjetivação”

(CAREY, 2002, p.16).

Não nos cabe tratar aqui com detalhe da tradução da obra de Carey para o português, embora saibamos que esse poderia ser um excelente tema de pesquisa, talvez mais apropriado até para os estudos de lingüística e teoria da tradução. No entanto, em alguns momentos, pareceu-nos adequado, e mesmo necessário, apontar certas opções do tradutor, a fim de discutir pontos de interesse para este trabalho. Assim, optamos por apresentar um panorama 111

geral da tradução do romance, uma vez que retomaremos algumas de suas características mais adiante.

Quanto ao livro A história do bando de Kelly , versão brasileira de True History of the

Kelly Gang , não há um prefácio que introduza a obra ou a história australiana. Isso ocorre por meio de um texto introdutório na capa do livro, que traz uma breve apresentação de Ned

Kelly, menciona os prêmios Booker Prize conquistados por Peter Carey e, por fim, resume o enredo do romance. Ao final, um pouco destacado deste texto, aparece uma nota sobre onde nasceu e onde vive o autor.

Como aponta Rici (2005), embora não possa ter acesso real a eles, o tradutor estabelece parâmetros para realizar seu trabalho, criando, para isso, imagens sobre o contexto de chegada da tradução, o objetivo do texto (para o qual contribuem também as orientações da editora, as quais, nesse caso, desconhecemos), e o leitor potencial. A imagem do leitor, convencionada pela comunidade interpretativa da qual o tradutor também faz parte, é complexa, dinâmica e imprecisa, podendo ser alterada ao longo do tempo. De qualquer forma, a criação de parâmetros é importante:

a imagem construída pelo tradutor, mesmo que provisória, atende à necessidade de posicionar-se diante do texto para que possam ser norteadas as escolhas entre uma ou outra opção e, por fim, traçar estratégias que sejam coerentes com os parâmetros estabelecidos para a tradução. (RICI, 2005, p.19-20)

A tradução para o português omite, no título, o adjetivo “verdadeiro” (true ), fato que será retomado em outro momento neste trabalho. Apresenta apenas uma nota de rodapé, que esclarece um trocadilho entre o sobrenome de um policial, Flood, e a palavra inundação

(CAREY, 2002, p.221), ambos considerados uma praga por Ellen Kelly, mas não há nenhuma nota ou expressão explicativa, por exemplo, para a expressão “ ”, que assumiu um caráter diferente e específico na Austrália e que aparece em meio ao texto sem aspas ou 112

itálico, como podemos observar no seguinte fragmento: “Todos nós observamos o bushranger pousar sua carabina na mesa ela era uma arma aterrorizante o seu buraco com uns 2,5 cm a coronha cortada ao 1/2 e o cano bastante encurtado” (CAREY, 2002, p.72).

O fato de inserir pouquíssimas notas de rodapé (que interromperiam a leitura) e nenhuma expressão explicativa em alguns pontos deixa o leitor mais livre, uma vez que não direciona sua leitura, mas não introduz alguns dos aspectos da história australiana. Isso pode indicar, por um lado, a imagem que o tradutor faz do público leitor deste romance, talvez a de um público acostumado à literatura estrangeira e interessado em pesquisar mais, ou mesmo procurar algo no dicionário, quando necessário. Por outro lado, a falta dessas explicações poderia também desencorajar um leitor que não tenha conhecimentos prévios sobre a

Austrália, ou que não saiba inglês.

Segundo Hattnher, durante o processo tradutório, devem ser levados em consideração todos os aspectos formadores do texto, o que inclui o léxico, a sintaxe, a semântica, a apresentação gráfica e as referências culturais, que costumam configurar obstáculos particularmente difíceis para os tradutores:

Não há forma de resgatar determinados componentes culturais de um texto. Ainda que se possa falar em universais culturais, é impossível traduzir traços específicos de determinados contextos culturais. A cultura deve ser vista como uma somatória de signos (ou agrupamentos semióticos) com valores autônomos no interior e no exterior dos sistemas lingüísticos. Daí a impossibilidade de se encontrar ‘equivalências absolutas’ no processo de tradução de elementos culturais. (HATTNHER, 1991, p.4)

Domingos Demasi (2002) encontrou, na maior parte desse texto de Carey, um narrador em primeira pessoa com um discurso bastante peculiar, pessoal, que apresentava elementos característicos, tais como marcas de oralidade e erros gramaticais, bem como expressões típicas do inglês australiano. Esses elementos podem dar mais trabalho ao tradutor se ele decidir recuperar seus efeitos estilísticos. 113

Em A história do bando de Kelly , notamos que algumas dessas características são recuperadas pelo tradutor em todo o texto, como é o caso das abreviações, dos palavrões incompletos e da falta de marcas de diálogo e de vírgulas. Todos esses elementos podem ser observados nos exemplos dados acima.

Os erros de concordância verbal, que são comuns no texto original, desaparecem na tradução para o português. O seguinte trecho do original apresenta um erro de concordância entre o pronome “ we ” e o verbo no passado “ was ” e outra vez entre a palavra “ attention ” e o verbo “ were ”: “ Yet when we was finally permitted entry all my attention were taken not by the blazing fire but by a huge red jowled creature the Englishman who sat behind the desk ”

(CAREY, 2001, p.8). A mesma frase em português apresenta concordância verbal: “Quando finalmente permitiram a nossa entrada toda a minha atenção foi voltada não para o fogo incandescente mas para uma figura ruiva queixuda o inglês sentado atrás da escrivaninha”

(CAREY, 2002, p.14). Se, por um lado, isso parece deixar o discurso de Kelly mais correto, do ponto de vista da gramática normativa, em português, por outro, impede que sua leitura fique truncada, tendo em vista que esses erros de concordância aparecem em todo o texto, e evita uma possível identificação do narrador com uma personagem “caipira”, tipo brasileiro ao qual já se atribui um estereótipo, o que também poderia, de certa forma, direcionar a leitura da obra. Assim, o uso de concordância verbal, em detrimento de “erros” de gramática, pareceu-nos uma maneira de fazer a leitura fluir sem grandes estranhamentos.

Em outras passagens, o narrador imprime oralidade ao discurso quando utiliza pronomes pessoais do caso reto em lugar de pronomes do caso oblíquo nos objetos diretos.

Embora esse elemento não esteja presente no original, ele mantém uma das características principais do texto de forma bastante natural e pareceu-nos uma opção interessante e acertada.

Podemos notar o uso desse recurso na seguinte passagem: “Eu não ia trair ela e dei a volta na mesa e parei do lado dela” (CAREY, 2002, p.18), ou ainda em: “É para eu servir ele 114

perguntou Maggie atônita as mãos sujas de terra sobre os largos e fortes quadris” (2002, p.222).

4.2. Enredo

A narrativa inicia-se com lembranças da infância de Ned, período em que sua família era humilhada por policiais. Seu pai é acusado de travestismo, fato confirmado pelo menino ao encontrar, no quintal de casa, um baú com um vestido. Seu pai, preso por roubo, morre alguns dias depois de sair da prisão e o garoto de doze anos torna-se o homem da casa.

Algum tempo após a morte do marido, Ellen Kelly leva os filhos para um sítio. O famoso assaltante de estradas Harry Power torna-se seu amante. Harry leva Ned consigo e o rapaz participa de seu primeiro assalto de estrada. Depois disso, Ned volta para casa. No caminho de volta, ele ouve o grito da banshee , a Mensageira da Morte do folclore irlandês.

Sua mãe vê a criatura e acredita que ela veio buscar Ned. No dia seguinte, o rapaz encontra um minerador morto. De volta a casa, descobre que a mãe tem um novo amante, o inglês Bill

Frost, e está grávida, e que seu cunhado e seu tio haviam sido presos. O rapaz é detido pela primeira vez como assaltante de estradas.

Após ser solto, Ned desentende-se com o amante da mãe e ameaça-o de morte. Bill desaparece. Harry manda chamar o rapaz e conta-lhe que Bill tem outra mulher. Ned fere

Frost, mas Harry o faz pensar que o homem está morto. Algum tempo depois, o rapaz encontra Bill e descobre que Harry havia mentido. Ned volta para casa e fica sabendo que o tio havia sido preso por assalto e que a polícia procurava por seu primo, acusado de ser o ajudante.

Ned é preso e interrogado sobre Harry. Ele é levado a Melbourne, mas nega-se a entregar Power. No entanto, a polícia consegue a informação de um tio de Ned, Jack Lloyd. 115

Dias depois, o rapaz é posto em liberdade e é acusado por sua família de haver traído Harry.

O rapaz discute com a mãe e prova que o tio era o culpado.

A família Kelly tenta devolver um animal perdido a seus donos, mas é ofendida por eles. Um mascate conhecido da família embrulha os testículos de um bezerro, escreve uma nota obscena e pede a Ned que entregue ao casal. Interrogado pela polícia, o rapaz não revela o autor da brincadeira. Ele permanece por seis meses na prisão.

Pouco depois de sair da cadeia, Ned é condenado a três anos por posse de animal roubado. Seu irmão Jem é preso por roubo de gado. Ellen Kelly casa-se com o americano

George King. Ned consegue emprego como lenhador, vence uma luta de boxe e torna-se amigo de Joe Byrne, que lhe dá o livro Lorna Doone 55 .

A perseguição da polícia leva Ned a roubar cavalos com o padrasto. O rapaz conhece o guarda Alex Fitzpatrick, que o apresenta à Mary Hearn. Ned apaixona-se por ela. O rapaz apresenta Mary à família, mas a moça é recebida com frieza. Ned é drogado e preso por

Fitzpatrick e paga uma multa. George King abandona Ellen Kelly. Pouco tempo depois, a polícia tem mandados de prisão contra Ned, Dan e Jack Lloyd por roubo de cavalos.

Fitzpatrick visita a família e desrespeita Kate Kelly. Ellen bate em Fitzpatrick com uma pá e ele tenta reagir, mas Ned atira em sua mão. Ned deixa-o ir.

Ned e Dan fogem. Ellen é presa. Mary foge para a casa dos Kelly. A polícia faz um acampamento próximo à cabana onde os rapazes se escondiam. Ned, Joe, Dan e seu amigo

Steve decidem tomar as armas dos policiais. Ned ordena que os dois policiais no acampamento levantem as mãos. Um deles se rende e o outro aponta uma arma para Dan. Ned

55 Em Lorna Doone , escrito por R.D. Blackmore e publicado em 1869, John Ridd, filho de um respeitável fazendeiro, vê seu pai ser assassinado pelo clã dos Doone, uma família de foras-da-lei de origem nobre. John apaixona-se por Lorna e ajuda-a a fugir de sua família. Descobre-se que a moça é filha de uma senhora nobre que havia sido assaltada e morta pelos Doone. Lorna vai a Londres. Os Doone, aliados do Duque de Monmouth, filho ilegítimo do rei, envolvem-se em uma batalha pelo trono após a morte de Carlos II, e são derrotados. John, que havia sido capturado e é inocente das acusações que lhe fazem, vai a Londres para limpar seu nome. Depois, lidera um ataque aos Doone. A maioria deles morre. Lorna volta a Exmoor. No dia de seu casamento com John, Carver Doone entra na igreja e atira na noiva. John o persegue e confronta. Carver afunda em um atoleiro e morre. Lorna sobrevive. 116

mata o policial em defesa do irmão. Os outros dois policiais chegam, reagem e acabam mortos pelo rapaz. Dan revela ter sido ferido. Aaron Sherritt os esconde e Ned fecha a ferida do irmão com ferro quente. No dia seguinte, o bando continua a fuga. A polícia ameaça Kate,

Mary Hearn e seu bebê.

Mary revela que está grávida e pede a Ned que escreva sua versão dos fatos. Enquanto isso, seus companheiros fogem da polícia às pressas. A polícia traz aborígines para seguirem os rastros do bando. Joe aproxima-se e conversa com os rastreadores, que prometem não levar os guardas até os rapazes. Eles se reúnem a Ned e Mary e ela explica a todos o que faziam os irlandeses rebeldes que colocavam os vestidos de suas mulheres, que Steve Hart tentava imitar. Para conquistar apoio popular, Ned precisa de dinheiro e resolve assaltar bancos. Mary dá idéias sobre o assalto. Com um plano bem pensado e executado, o bando realiza seu primeiro roubo na cidade de Euroa. Antes de partir, Ned conta a seus reféns sua versão sobre os assassinatos dos policiais. Joe Byrne escreve uma carta para o parlamentar Cameron.

A polícia prende, sem acusação nenhuma, vinte e um homens que conheciam Ned. O bando divide parte do dinheiro do assalto entre seus familiares e paga um advogado para libertar esses homens presos. Mary pede a Ned que fuja com ela para os Estados Unidos, mas o rapaz diz não poder abandonar a mãe na prisão. A moça o abandona. Ned escreve outra carta e o bando prepara mais um assalto. O novo plano, mais ousado que o primeiro, é outra vez bem executado e um banco de Jerilderie é assaltado. Depois, Ned tenta imprimir sua carta, mas não consegue porque não encontra o editor do jornal da cidade. Ele deixa uma cópia com a mulher do editor e paga pela impressão. O tipógrafo e a mulher entregam a carta

à polícia.

Durante o inverno, Ned recebe notícias do nascimento da filha por meio de um telegrama. O bando e seus simpatizantes comemoram. Joe revela ao grupo que Aaron pretende traí-los. Inicia-se a construção da primeira armadura da Quadrilha Kelly. Depois de 117

pronta, é testada e aprovada por Joe e outras três começam a ser confeccionadas. O bando escreve uma carta ameaçando os informantes da polícia e envia uma cópia para cada um deles. Dan traz a notícia de que Aaron havia dito que pretendia atirar em Joe e ele decide matar o amigo.

Aaron é assassinado. Um trem cheio de policiais é enviado para prender o bando. Ned e Steve obrigam dois homens a retirar trechos dos trilhos, na cidade de Glenrowan, a fim de causar um acidente com o trem. O bando reúne reféns no hotel da senhora Jones. Um deles, o professor Thomas Curnow, vê que Ned está escrevendo algo e se oferece para corrigir os erros de gramática. Os prisioneiros começam a cantar e o professor recita versos de uma das peças de Shakespeare, comparando os rapazes ao Rei Henrique V56 . A narrativa é interrompida bruscamente.

Seguem-se aos capítulos dois relatos. O primeiro deles narra os acontecimentos no hotel da senhora Jones. Ned entrega seus manuscritos a Curnow e deixa-o partir. O professor pára o trem e avisa a polícia sobre os Kelly. O bando veste suas armaduras. Os guardas cercam o hotel e Ned atira, atingindo o comandante Hare. Ned é baleado no braço e no pé. Os reféns tentam sair, mas são recebidos pela polícia com tiros. Joe é baleado e morre. Ned sai do hotel para que a polícia o siga, mas vê que Dan ainda está lá e decide voltar. Os guardas atingem e dominam o fora-da-lei e ateiam fogo no hotel. Kate e Maggie Kelly buscam os corpos carbonizados de Dan e Steve. Curnow não tem muito reconhecimento e trabalha por alguns anos nos manuscritos de Ned. O segundo relato narra o enforcamento do rapaz na

Prisão de Melbourne.

56 Nesta peça, William Shakespeare retrata a batalha entre o exército do rei inglês Henrique V contra o exército da França. Embora tivesse um número bem menor de soldados, a Inglaterra saiu vitoriosa. 118

4.3. Antecipação

Segundo Christer Larsson, “é da natureza de uma antecipação prometer ou prever um fechamento ou alguma forma de crise 57 ” (1999, p.179). No romance A história do bando de

Kelly — assim como em outros dos romances de Carey, como apontado por Christer Larsson

(1999) — há várias referências a acontecimentos futuros. Há também juízos de valor sobre acontecimentos presentes que repercutirão em outro momento, o que se explica pelo fato de o narrador ter começado a escrever o texto já na fase adulta de sua vida. Algumas dessas referências têm aspecto positivo e mostram um Ned esperançoso, enquanto outras são negativas e aproximam-se mais do destino do bando.

No início de um parágrafo do primeiro capítulo, por exemplo, Ned parece não saber ao certo qual será seu destino, pressente que pode morrer, mas demonstra esperança em conhecer a filha: “Deus queira que eu viva para ver você ler estas palavras” (CAREY, 2002, p.13). Esse mesmo sentimento aparece em outros momentos, como no seguinte trecho, em que Ned se sente confiante e acredita que poderá utilizar alguns de seus esconderijos de novo: “Agora os

Warbies nos envolviam como uma mãe e dormimos protegidos por eles cujos nomes não vou revelar pois existem lugares que ainda poderemos voltar a utilizar” (CAREY, 2002, p.338).

Mas o rapaz por vezes também se entrega ao pessimismo e vislumbra a possibilidade de ter seus planos frustrados. Esta passagem, dirigida à filha, surge de uma conversa de Ned e

Mary, aflita por não saber se seu bebê conheceria o pai: “Você pode estranhar por que a conversa dela não me deixou abatido estava claro que a sua mãe tinha razão eu seria assassinado pelo governo e você jamais saberia que homem fui eu” (CAREY, 2002, p.348).

O juízo de valor do Ned narrador em relação ao garoto que era aos quinze anos, protagonista da parte inicial da história, fica claro no seguinte trecho, em que conta a própria história momentaneamente em terceira pessoa: “Depois de cada um tomar um caneco de leite

57 It is in the nature of a prolepsis to promise or foresee a closure or some form of crisis. 119

azedo partiram para o sertão bravio conhecido por Wombat Ranges. O garoto nem percebeu que lhe estava sendo ensinado o caminho de sua vida” (CAREY, p. 91).

Por vezes, as reflexões do protagonista se estendem às vidas de seus companheiros do bando, uma vez que trilham o mesmo caminho. A narrativa de Ned também traz uma antecipação fatalista e trágica do destino de seu amigo Joe: “Ele era um homem duro conhecido como Olhos de Cobra e Olhos de Bala mas quem lhe deu esses apelidos não olhou nos olhos dele para ver um rapaz de 24 a. de idade encarando o cano de sua própria destruição” (CAREY, 2002, p.313).

No entanto, a antecipação mais interessante do destino de Ned ocorre logo no início da narrativa, quando a banshee , figura do folclore irlandês que representa a morte, passa perto da casa dos Kelly e desespera Ellen:

Quem é você? Mas ela já sabia a resposta era a banshee e recuou para a porta e portanto os seus filhos estariam a salvo atrás dela. Quem você quer? A banshee não respondeu minha mãe sabia desde a infância que não se deve interferir com a Mensageira da Morte e sabia do homem cuja mão foi queimada e de outro que ficou grudado à parede de sua casa durante toda a noite e sabia que a sorte nunca brilhava sobre quem molestava uma banshee mas ela estava em outro país longe de onde a banshee deveria estar portanto quando levantou o lampião a banshee mudou de direção e deu uma espécie de tremor como o que se vê nos que têm um mau temperamento. Ela era um bucho velho e feio mas agora revelou seu longo cabelo dourado que passou a pentear como para se acalmar. Minha mãe conhecia todas as histórias do pente ela conhecia as de pente de osso & pente de aço & pente de ouro & agora via o terrível apetrecho se mover pelo cabelo e sabia que o que tinha a fazer era ir para a cama e fechar os olhos mas minha mãe era uma Quinn e esse não era o seu caráter. Me diga o que você quer gritou minha mãe. [...] Minha mãe perguntou É Ned não é? É o meu pequeno Neddy que você quer. A banshee não respondeu e então minha mãe pegou o machado de lascar madeira que Jem tinha deixado apoiado contra a porta e o girou com ambas as mãos como um escocês e depois o lançou sibilante através da escuridão na direção dela. (CAREY, 2002, p.118-119)

120

A expectativa do leitor resolve-se, neste momento, com o fato de que quem aparece morto e é encontrado por Ned, que estava a caminho de casa, é um minerador que morava nas proximidades de Eleven Mile Creek: “O uniforme era muito velho e Tom Buckley estava morto um solteiro velho sem esposa ou filhos para pranteá-lo. Sem saber o que fazer peguei emprestado o cavalo dele e segui para casa o mais depressa que pude” (CAREY, 2002, p.120). No entanto, resta-lhe a sensação de que algo ruim pode vir a acontecer a Ned Kelly.

4.4. As mulheres na narrativa: Ellen Kelly x Mary Hearn

A narrativa é toda contada do ponto de vista de Ned e seu caráter é um tanto homofóbico e marcadamente masculino, o que fica bastante evidente em sua reação ao transvestismo de Steve Hart e do irmão.

Embora esteja rodeado de mulheres — Annie, a irmã mais velha, Maggie, a irmã favorita, Kate, motivo do desentendimento com Fitzpatrick, Ellen, a mãe, Mary, a namorada, e a filha, entre outras —elas são sempre descritas pelo olhar masculino de Ned. Muitos dos atos do protagonista são determinados, ainda que de maneira indireta, por duas delas: sua mãe, Ellen Kelly, e sua amante, Mary Hearn.

Não podemos nos esquecer de que há uma terceira mulher que o influencia muito no romance: a filha. Entretanto, a esfera de influência da menina, que, no início do texto, ainda não nasceu, restringe-se ao ato da narrativa: ela é o motivo pelo qual Ned escreve. No entanto, ela não fala, não dá sua versão nem conta seus sentimentos porque somente é leitora, como atesta Susan Martin:

Isso inclui e exclui o feminino ─ inteiramente dirigido a uma mulher, que, como na famosa leitura de Frankenstein por Gayatri Spivak como um texto imperial, nunca responde [...]. Mas ela é também excluída: leitora, não 121

atuante nos eventos, prova constitutiva da masculinidade do protagonista sem afetar a sua própria 58 . (MARTIN, 2004, p.37)

As outras duas mulheres atuam um pouco mais sobre o rapaz. Elas são o motivo pelo qual ele toma certas decisões, como roubar bancos, escrever cartas e enfrentar a polícia, que constituem, por sua vez, alguns dos acontecimentos mais importantes da narrativa.

A personagem principal deste romance, que também narra a história, tem uma relação muito forte e próxima com a mãe, semelhante à descrita no complexo de Édipo de Freud. Ned nunca consegue libertar-se por completo da influência materna. Desde criança, o narrador procura defendê-la. Após a morte do pai, essa proteção passa a englobar, além do cuidado com a polícia, a crítica a novos amantes da mãe e a tentativa de afastar alguns deles. No trecho a seguir, podemos observar sua antipatia como relação ao irmão de seu pai, quando este a corteja com palavras desrespeitosas: “Eu ao ia permitir que ele falasse daquele jeito com minha mãe e então corri e pulei e cima dele agarrei a sua barba com ambas as mãos”

(CAREY, 2002, p.59).

Quando não é possível afastá-los, o rapaz demonstra seu descontentamento com os pretendentes da mãe descrevendo-os de maneira nada lisonjeira, embora, no trecho seguinte, revele a preferência por um deles:

Joanetes inflamados e veias intumescidas foi uma coisa estranha ver os enormes pés chatos de um estranho saindo da extremidade do cobertor de minha mãe na manhã seguinte e para ser honesto confesso que gostaria muito que ela não convidasse nenhum marido novo para a sua cama mas como não podia alcançar esse desejo então preferi que fosse o velho Harry Power. Nenhuma mulher jamais ficou em pior estado por me conhecer me disse ele certa vez e mesmo levando em conta os seus pés e tripas ele era muito superior aos outros sujeitos que vieram trotando pela névoa quente da trilha para visitar a viúva p. ex. Turk Morrison de Laceby e aquele elegante inglês Bill Frost. O velho Turk gostava de cantar canções de amor para a minha mãe mas Bill se sentava à nossa mesa entupindo o ouvido dela sobre como superar a falta de chuva. Ele não era nada melhor do que um cavaleiro sofrível mas se imaginava um grande especialista em questão de agricultura

58 This is both inclusive and exclusive of the feminine ─ entirely addressed to a woman, who, as in Gayatri Spivak’s famous reading of Frankenstein as an Imperial text, never answered back [...]. But she is also excluded: reader, not actor in the events, constitutive proof of the protagonist’s masculinity without any affect of her own. 122

dizia que os australianos não cultivavam a terra de forma correta e eram inferiores e ignorantes etc. etc. (CAREY, 2002, p.76)

O apego de Ned pela mãe leva Dan, e mais tarde também os demais habitantes da cidade, a zombar do irmão, dizendo que ela é sua namorada:

Você tem uma namorada escarneceu. Observando o largo sorriso do guarda Farrell coloquei o meu irmão de pé e o conduzi pela rua. Já sei disse Dan você não volta para casa é porque finalmente arrumou a porcaria de uma vadia. Cale a boca. Você tem uma namorada. Você sabe que não tenho mulher nenhuma Dan. É verdade disse ele a sua mãe é a sua mulher como todo mundo sabe. Cale a boca. Nana nana naaa Mamãe é a sua namorada. (CAREY, 2002, p.247)

Por outro lado, Mary Hearn representa a primeira e única experiência amorosa de Ned:

“Ela disse que se chamava Mary Hearn e tinha vindo da aldeia de Templecrone há apenas um ano disse ela que eu fui um aluno excelente alguém já aprendeu passos de dança com tanta rapidez? Subitamente eu me senti mais feliz do que jamais tinha desejado ser” (CAREY,

2002, p.267). De acordo com Susan Martin, ela também resgata a sexualidade “normal” de

Kelly, tanto por dar-lhe uma filha quanto por explicar o significado do travestismo do pai e do irmão.

A influência da moça sobre Ned, e sobre o bando, também é evidenciada por sua ajuda no primeiro assalto a banco, que foi executado de acordo com o que ela havia planejado, como vemos na seguinte passagem:

E como vai ser isso. O seu olhar era tão claro e direto. Não sabia que assalto a banco era uma arte que interessasse às mulheres. É um assunto que se tornou mais do que interessante para mim. Por exemplo você pretende entrar pela porta da frente? Acredito que seja uma porta tão boa quanto qualquer outra. E vai assaltar o banco quando ela estiver aberta ou fechada? Quando estiver aberta. 123

Aberta? Isso não a satisfaz madame? Eu certamente não chegaria quando o banco estivesse aberto disse a garota surpresa. Eu não ia querer ter a dificuldade de lidar com clientes e também com os escreventes. Ah você não ia querer? Eu iria depois das 3 horas quando eles estivessem contando a féria e bateria na porta e teria um cheque na mão que precisava ser descontado com urgência. Mary falei você já deve ter assaltado um banco antes. (CAREY, 2002, p.380)

A oposição entre as duas mulheres é ocasionada por dois homens. Mary não é bem recebida por Ellen quando Ned apresenta a namorada à família. Pouco depois disso, o rapaz descobre que o bebê de sua amada é filho de George King, o atual marido de sua mãe, e compreende o ocorrido. No entanto, o verdadeiro objeto da indireta e silenciosa disputa de influência entre as duas é Ned. O rapaz planeja os assaltos e escreve as cartas para poder distribuir dinheiro entre os simpatizantes e obter mais aliados, a fim de prolongar sua luta e libertar a mãe. Mary percebe que o principal objetivo do amado é tirar Ellen da cadeia, e não fugir com ela, ou seja, a moça percebe que se trata de uma escolha entre as duas, como podemos notar no seguinte diálogo:

Expliquei a ela que o dinheiro logo seria gasto pois não seria barato tirar minha mãe da Prisão de Melbourne. Mas agora você pode dar à sua mãe o que qualquer outra mãe deseja de um filho. E o que seria isso? A sua própria segurança. Não está querendo dizer que eu devo fugir está? A melhor coisa que pode fazer para a sua mãe é ficar o mais distante possível de tudo que possa afetar você. Você não me conhece falei & me senti bastante ofendido por ela pensar que eu era um egoísta covarde. É verdade que você a ama mais do que a mim? Não é a mesma coisa. [...] Mas você prometeu comprar a sua passagem depois que o banco fosse assaltado. Não posso abandonar a minha mãe Mary você saber disso. E quanto a mim? E quanto a você? 124

Eu esperei você assaltar o banco mas não vou esperar para ver você morto. (CAREY, 2002, p.404)

Depois disso, Mary decide pegar parte do dinheiro de um dos assaltos e fugir para a

Califórnia, mesmo sem a companhia de Ned. Pouco tempo mais tarde, a moça envia um telegrama para avisar que a filha nasceu, ao passo que Ned, a fim de libertar a mãe, encaminha-se para a morte certa.

4.5. O narrador

Quanto ao narrador, temos, em primeiro lugar, um relato doado a uma biblioteca, contado por um narrador em terceira pessoa, que trata de maneira breve da captura de Ned.

Em seguida, há treze capítulos ou “pacotes”, contado por um narrador em primeira pessoa que se diz comprometido com a verdade:

Eu perdi meu pai aos 12 a. de idade e sei o que é ser criado com mentiras e silêncios minha querida filha você ainda é muito nova para entender alguma palavra do que escrevo mas esta história é para você e não vai conter uma só mentira e que eu queime no inferno se falar uma falsidade. (CAREY, 2002, p.13)

O texto é constantemente dirigido à filha e o narrador promove várias pausas para dar algum conselho a ela ou fazer-lhe um pedido. Ao mesmo tempo, o leitor é lembrado de que, embora tenha acesso à narrativa, ela não foi escrita para ele, o que reforça a idéia de compromisso com a verdade revelada pelo narrador, pois dá a impressão de que o texto é despretensioso e sem artifícios. Neste trecho, notamos a preocupação do narrador com a idade da filha quando lesse os relatos ao dar detalhes sobre seu encontro com Mary Hearn:

Minha filha não posso adivinhar com quantos anos você está por isso peço que só leia isto depois que tiver filhos seus ou mesmo por essa ocasião 125

talvez você seja como eu e não deseje olhar para o interior da porta dos seus pais. Mas não queime nem destrua o que se segue quero guardar isso para mim mesmo para me lembrar que alegria é se apaixonar. (CAREY, 2002, p.268)

Ned também usa as pausas na narrativa para afirmar seu valor ou o valor das pessoas pobres, como notamos em “Espere para ver minha filha há muito mais para ouvir pois no final nós a gente ignorante se tornará nobre no fogo” (CAREY, 2002, p.336), bem como para pedir desculpas pela letra ou pelos erros de gramática, como vemos em “Como dizia o sr. Zinke o tempo é a essência filha me desculpe estas garatujas” (2002, p.444).

Em determinados trechos, Ned acrescenta relatos escritos ou narrados por seu amigo

Joe. Logo após a discussão com Fitzpatrick, Joe anota o diálogo que ocorreu entre Ned e o policial baleado:

Joe serviu rum para ele eu extraí a bala de sua mão e depois fiz um curativo no ferimento e quando ele finalmente partiu de nossa cabana parou na soleira da porta e me agradeceu com o seguinte discurso que Joe Byrne conseguiu anotar e que agora transcrevo aqui como prova. FITZPATRICK: Tenho a dizer que você é o homem mais decente que já conheci e quero que saiba que eu sei que salvou a minha vida esta noite e não mereci que a minha vida fosse salva lamento bastante por você ter perdido o respeito por mim pois não há nenhum outro homem que eu preferiria que tivesse respeito por mim. Assim que ele se foi Joe registrou o seguinte diálogo. E. KELLY: O que achou do discurso dele? J. BYRNE: Que ele asse no ferro em brasa o s—na vai entregar todos nós. E foi o que aconteceu. (CAREY, 2002, p. 298-299)

Outra intervenção da voz de Joe ocorre no momento em que a luta contra Wild Wright

é descrita, uma vez que Ned diz não se lembrar de nada e escreve no papel a versão dada pelo amigo. A versão de Joe também está em primeira pessoa:

Não me recordo de nada da luta mas ouvi Joe Byrne me contar a história umas 50 vezes e ela é a seguinte. Nós achávamos que você estava perdido e derrotado no instante em que passou pelo galinheiro e Wild lhe deu aquele potente golpe na cabeça e você caiu no chão antes mesmo de pisar no risco. Como se tratava de um pub de 126

bíblias ninguém ligava p nenhuma para o que acontecia com um hóstia eles planejavam beber o seu sangue. Wild tinha ouvido falar que você andou zombando de Dummy e agora estava disposto a matar. Wild cortou o seu supercílio e a sua mãe gritou grande porcaria de covarde Wild voltou a investir ele nem mesmo esperou você se levantar. Eu mal conhecia você naquela ocasião mas qualquer um podia perceber que aquele soco não tinha sido licito eu gritei chamando o juiz mas Eddie Rogers era o juiz e também o agenciador de apostas e tinha apostado todo o dinheiro dele em Wild Wright. (Carey, 2002, p.236)

Ned transcreve, em seus manuscritos, artigos de jornal e correções, publicadas em itálico no romance, feitas por ele mesmo ou por Mary Hearn, que teve a idéia de corrigir trechos das notícias para que sua filha saiba a verdade sobre o pai:

Fitzgerald continuou comendo o seu jantar, mas como a porta de sua cabana se encontrava aberta ele viu o nativo acenar para algumas pessoas a distância. Quando Fitzgerald estava terminando o jantar, ele viu dois sujeitos de aparência rude se juntarem ao nativo. Eles conduziam quatro excelentes cavalos, em ótimas condições. Eram quatro baios.

3 baios e um cinza

O nativo então seguiu para a propriedade.

Ele era muito bonito, com mais de um metro e oitenta de altura, físico bem proporcionado

A esposa do sr. Fitzgerald, nessa ocasião, estava ocupada na cozinha com os seus afazeres domésticos. A velha senhora ficou um tanto quanto surpresa por ver o nativo entrar sem ser convidado, e perguntou quem ele era e o que desejava. (CAREY, 2002, p.382)

Entre esses artigos colados e os comentários escritos por Mary, há uma anotação de natureza descritiva entre colchetes, que poderia ter sido feita por um bibliotecário, uma vez que os manuscritos são dados como pertencentes a uma biblioteca no início do romance:

“Várias linhas aqui se encontram completamente apagadas”. (CAREY, 2002, p.387)

Ao final da narrativa, nos relatos colocados após os capítulos, revela-se ao leitor que outra pessoa além de Ned teve acesso a esses manuscritos. Primeiro, Ned os entrega a

Curnow: 127

Thomas Curnow havia entrado no covil do dragão, o cerne deslustrado de tudo que é repelente e ignóbil. Dançou com o diabo em pessoa e o lisonjeou e foi bem-sucedido em ludibriá-lo como o herói de qualquer conto de fadas e agora carregava debaixo do braço a prova, o troféu, o sujo e repulsivo ninho de papel. Esses maculados “manuscritos” eram repugnantes ao toque e a própria pele dele se contraía por causa da presunção e da ignorância ali contidas; entretanto, era um homem triunfante. Ele arrancara o coração sangrento da criatura e agora a condenaria ao inferno. (CAREY, 2002, p.449)

Depois da captura de Ned Kelly pela polícia, o professor Thomas Curnow dedicou alguns anos de estudo ao texto, como fica evidente no seguinte trecho: “A evidência demonstrada pelo manuscrito sugere que nos anos seguintes ao Cerco a Glenrowan ele continuou trabalhando a construção das frases do morto, e foi ele quem fez aquelas marcas cinzentas a lápis com as quais o manuscrito original foi agraciado” (CAREY, 2002, p.458).

Isso também indica que a anotação descritiva entre colchetes citada acima, que aparece após os textos de jornal e os comentários de Mary, poderia ter sido feita por ele, e não por um bibliotecário.

Assim, somente no final do livro o leitor é informado de que o texto já havia sido tocado e aparentemente corrigido por outra pessoa. Outro ponto problemático na questão do narrador são os textos que antecedem e encerram o texto principal. O relato inicial parece ter sido narrado por alguém presente no local nos momentos finais do tiroteio e poderia ter sido feito por um guarda ou por um jornalista que ouviu as palavras de Ned, quando vestia sua armadura, embora não haja nenhuma indicação de quem o escreveu. Trata-se de um texto anônimo entregue à biblioteca proprietária dos manuscritos de Ned. Já o primeiro dos relatos finais completa as explicações parciais do texto inicial e contém elementos apresentados por um narrador desconhecido e onisciente, como a descrição dos acontecimentos dentro do hotel e as falas dos membros do bando e dos reféns:

128

Atire neles, Ned. Detenha os s—nas! Farei isso, farei isso. Ele se pôs de pé com um violento impulso e cambaleou de volta pelo corredor até o bar. Dan? Steve? Abriu a porta do aposento da frente onde ele estivera, um pouco antes, trabalhando confiante e sua história. Naquele momento, voltaria a ver sua filha. Naquele momento, libertaria a mãe. Naquele momento, as pessoas ocupariam a sua própria terra sem medo ou favor, mas agora o mundo era um lamaçal sujo e confuso. Dan? Eles se foram, disse uma voz na escuridão. Não foram baleados? O seu irmão e o parceiro dele nos abandonaram. Você precisa deter os tiras, companheiro, você precisa deter eles agora, pois estão nos assassinando. Farei isso. (CAREY, 2002, p.449)

Este narrador tem acesso até mesmo às sensações de Ned, como a de dor, e a seus sentimentos não confessos, como a preocupação com Dan, em seus últimos momentos de luta, como veremos a seguir:

Cambaleou para a porta dos fundos e saiu para o início do alvorecer. Pretendendo atrair para si os disparos da polícia, montou em seu cavalo, embora com considerável dificuldade. Ao cavalgar para o flanco da polícia, ouviu tiros vindos da varanda da frente. Girou dolorosamente o corpo na sela e então percebeu que Dan não havia ido embora. Ele e Steve Hart estavam de pé, lado a lado, na varanda da taberna, disparando loucamente contra os inimigos. Ele não tinha força. O braço esquerdo estava inutilizado. Passou a deslizar lentamente pelo estribo, mas caiu pesadamente do chão. Caminhou dolorosamente na direção do irmão, sem mais se permitir buscar proteção ou se esconder. Martelou a coronha do revólver contra o peito para permitir que Dan ouvisse que ele estava vindo em seu socorro. Eu sou o f—do d Monitor, pessoal. Mas ele não era o Monitor, era um homem de pele e osso, este fraturado com sangue se derramando na bota. As balas do Martini-Henry ricocheteavam nele, fazendo-o sacolejar e estremecer, a cabeça martelando para os lados, mas não se detinha. (CAREY, 2002, p.455-456)

No último parágrafo do exemplo acima, o narrador insere uma opinião sobre os acontecimentos (“era um homem de pele e osso”) e, ao fazê-lo, contribui para o clima dramático do desfecho. 129

O segundo dos relatos finais, mais curto que o primeiro, trata da execução de Ned na

Prisão de Melbourne e também é contado por um narrador onisciente, que descreve seus

últimos instantes de vida:

Precedido pelo crucifixo, que era mantido à sua frente pelos padres celebrantes, Kelly foi então conduzido para a plataforma. Ele não tinha sido barbeado nem tivera o cabelo cortado, mas vestia o uniforme da prisão. Parecia calmo e controlado, porém mais pálido do que o normal, embora esse feito pudesse ser causado pelo capuz branco que fora colocado sobre sua cabeça, mas que ainda não havia sido baixado para lhe cobrir o rosto. Ao pisar no alçapão, ele comentou baixinho: “É a vida”. O carrasco, então, passou a justar a corda, e os sacerdotes, enquanto isso, liam a prece da Igreja Católica apropriada para ocasiões como aquela. O prisioneiro deu um leve sobressalto ao primeiro contato da corda, mas rapidamente se recuperou e baixou a cabeça para facilitar o trabalho de Upjohn em ajustar o nó na posição correta. Assim que o nó foi preso, e sem que o prisioneiro tivesse a chance de dizer qualquer outra coisa mais, o sinal foi dado; o carrasco então baixou o capuz, recuou, soltou a trava e executou o seu serviço. (CAREY, 2002, p.460)

A narrativa em A história do bando de Kelly constitui, pois, um texto em que várias vozes se entrecruzam. Se, por um lado, a introdução das vozes de Joe e de Mary é anunciada pela do narrador principal, há também, por outro lado, vozes não identificadas, cuja proveniência não é conhecida, como aquela que aparece entre colchetes à página 387, explicando que um trecho do texto não pode ser lido (“Várias linhas aqui se encontram completamente apagadas”), ou a do relato descritivo inicial, em que um observador conta o que viu e ouviu (como à página 10: “Instantes depois, um tosco capacete de aço parecido com um balde foi arrancado dos ombros de um homem caído. Era Ned Kelly, uma fera feito gente”), ou ainda a voz onisciente dos dois relatos finais, que descreve atos e sentimentos

(como na descrição de seu enforcamento, à página 460, citada acima).

Se o relato inicial e as vozes de Joe e Mary corroboram com o adjetivo “verdadeiro” do título original, as demais vozes e a revelação de que o professor Curnow teve acesso ao texto o desestabilizam e o problematizam. 130

Há ainda outra característica interessante quanto ao narrador em A história do bando de Kelly : no início dos manuscritos, um Ned mais maduro, o que escreve, observa as ações de um Ned mais jovem, o que age. Podemos verificar esse fato no seguinte trecho: “Depois de cada um tomar um caneco de leite azedo partiram para o sertão bravio conhecido por Wombat

Ranges. O garoto nem percebeu que lhe estava sendo ensinado o caminho de sua vida”

(CAREY, p. 91).

A distância entre os dois Neds diminui ao longo do texto e, finalmente, os dois convergem e tornam-se um só, participando de ações que ocorrem em velocidade vertiginosa e de maneira desenfreada, como podemos notar no seguinte trecho, em que o bando já tem reféns no hotel da senhora Jones, em Glenrowan:

...mas Joe não deu nenhum crédito ao professor. Para minha informação disse que a sua armadura não estava boa já o vinha cortando & causando bolhas ao montar e que tudo se danasse se ia lutar vestido com ela pois não conseguia enxergar para atirar direito. Em seguida valha-me Deus Joe começou a chorar e falou que era errado matar e que com certeza iria para o inferno. De repente percebi que havia m. silêncio no bar as pessoas estavam ouvindo. Colocando o dedo nos meus lábios falei cochichando que os reféns deviam ser incentivados a fazer algo para se divertirem. (CAREY, 2002, p.444)

A urgência da escrita e dos sentimentos do narrador também evidencia-se na frase final do “pacote” 13, última parte do manuscrito de Ned, em que a frase ainda inacabada é abandonada, sem pontuação: “Ele ficou esperando. Não havia tempo” (CAREY, 2002, p.447).

Dessa forma, Kelly conta suas lembranças ao mesmo tempo em que configura o

“protagonista trágico de sua aventura herói-cômica 59 ” (HUGGAN, 2001-2002, p.146).

Essa divisão inicial, nem sempre clara, do narrador em agente e em observador, assemelha-se de certo modo ao conceito de narrador pós-moderno de Silviano Santiago, que

59 ...tragic protagonist of his (mock-) heroic quest. 131

é, para ele, o narrador que “vê”, que conta acontecimentos alheios a si, e o tipo de sabedoria que transmite decorre da observação dos demais.

Santiago acrescenta ainda que a narração pós-moderna “é basicamente a experiência do olhar lançado ao outro” (SANTIAGO, 2002, p.51). Neste tipo de narração, o narrador identifica-se com o leitor, e subtrai-se da narrativa porque a experiência passa a valer menos e o objeto de admiração passa a ser a juventude. Afinal, o que faz o narrador Ned Kelly, em determinados momentos, e o que fazem Joe, Mary e as vozes desconhecidas, é observar a força e o furor da juventude de Ned.

Portanto, o entrecruzamento de vozes e olhares problematizam a questão da verdade do conteúdo narrado, sempre mencionada pelo narrador principal, Ned Kelly, e abrem espaço, em alguns trechos, como postula a idéia de narrador pós-moderno de Santiago, para a observação dos atos do jovem Kelly, nesse momento personagem e objeto de atenção de todos, inclusive de si mesmo, tempos depois.

4.6. A humanização da personagem

Buscaremos mostrar, a seguir, o modo como Peter Carey humaniza sua personagem

Ned Kelly, ao atribuir-lhe sentimentos com relação à família e a uma mulher e ao relacionar seus ataques a policiais à legítima defesa.

Em A história do bando de Kelly , Peter Carey procura explorar, na personagem de

Ned Kelly, seu lado mais humano e menos retratado pelos historiadores. O objetivo do escritor ao ressuscitar Ned foi o de, segundo Dowling, “descobrir o homem por trás da máscara e descrever a vida interior daquela figura vazia que olha a partir dos famosos quadros de Sidney Nolan — capturar o indivíduo por trás do ícone 60 ” (2001-2002, p.250). Mas o que a

60 …to discover the man behind the mask and to describe the inner life of that empty figure who stares out of Sidney Nolan’s famous paintings — to capture the individual behind the icon. 132

narrativa capta é a percepção que Carey tem de Kelly, e a repetição de certos detalhes de seu caráter que, como veremos a seguir, humanizam-no 61 .

Antes do primeiro capítulo ou “pacote”, o leitor depara-se com o relato de um policial acerca do último confronto entre polícia e bandido e sobre sua captura, junto com alguns manuscritos. No início do relato, Ned Kelly, ainda não reconhecido pelos policiais, é descrito como uma figura sobre-humana, invencível, cujo corpo repele as balas dos rifles sem dificuldades:

Ao amanhecer, pelo menos a metade dos membros da quadrilha Kelly estava gravemente ferida, e foi então que a criatura surgiu por trás do cordão da polícia. Não era nada humana, isso era muito evidente. Não tinha cabeça, mas um pescoço muito grosso e comprido e um peito imenso, e caminhou com um andar lento e desajeitado diretamente para a saraivada de balas. Tiro após tiro foi disparado sem efeito, e a figura continuou avançando em direção à polícia, parando de vez em quando para mover de um lado para outro, mecânica e lentamente, o pescoço sem cabeça. (CAREY, 2002, p.9)

Aos poucos, a figura sobre-humana vai se aproximando do nível humano. A narrativa promove essa transformação quando a “criatura” é atingida por algumas balas no confronto com a polícia: a figura que causava medo, de repente grita de dor, cai exausta e, depois que tiram seu capacete, revela ser um homem:

A criatura levantou a pistola e disparou, e o homem com chapéu de tweed ajoelhou-se friamente diante dela. Ele então levantou a sua espingarda e fez dois disparos em uma rápida sucessão. Minhas pernas seu cachorro. A figura vacilou e cambaleou como um bêbado, e em poucos momentos caiu perto dos galhos. Instantes depois, um tosco capacete de aço parecido com um balde foi arrancado dos ombros de um homem caído. Era Ned Kelly, uma fera feito gente. Ele tremia e parecia fantasmagoricamente pálido, o rosto e as mãos lambuzadas de sangue, o tronco e os quadris enfiados em uma maciça armadura de chapas de aço com meio centímetro de espessura. (CAREY, 2002, p.9-10)

61 Não vamos tratar, neste trabalho, da questão autoral. 133

Enquanto veste a armadura, Ned Kelly é associado ao sobrenatural. Sua descida à condição de humano inicia-se, nessa narrativa, quando recebe tiros e cai, e completa-se quando tiram seu capacete. A humanização de Ned também pode ser mostrada no seguinte trecho do relato final, que se segue ao manuscrito, apresentado por um narrador desconhecido, onipresente:

Mas ele não era o Monitor, era um homem de pele e osso, este fraturado com sangue se derramando na bota. As balas do Martini-Henry ricocheteavam nele, fazendo-o sacolejar e estremecer, a cabeça martelando para os lados, mas não se detinha. (CAREY, 2002, p.455-456)

Carey realiza, em um primeiro momento, uma humanização de Ned Kelly, visto agora como filho, marido e pai, e confere às suas atitudes uma aura heróica. A ambivalência da re- escritura promovida por Carey, bem como da realizada por Robert Drewe em seu romance

Our Sunshine , também sobre Ned Kelly, já que ambos colocam em xeque a própria noção de

História, mas não a sexualidade da personagem, é apontada por Susan Martin:

Carey e Drewe jogam com, ironizam, questionam e desconstroem a figura de Ned como herói nacional de todas as maneiras, mas como parte disso eles estabilizam aspectos de sua identidade na verdade muito mais fluidos em encarnações anteriores ─ sua sexualidade incerta e em mudança, por exemplo. 62 (2004, p.37)

No entanto, o escritor reafirma, ao longo do texto, os valores do caráter de Ned que foram propagados ao longo do tempo e que o tornaram um a figura tão importante na cultura australiana, como o apego à família e o fato de ter assassinado policiais em legítima defesa. A estas idéias contrapõem-se as mentiras e desmandos da polícia e dos latifundiários, o que define o ambiente em que vivia o rapaz como injusto e dá apoio a suas atitudes.

62 Carey and Drewe play with, ironize, question, and deconstruct the figure of Ned as national hero in all sorts of ways, but as part of this they stabilize aspects of his identity actually much more fluid in earlier incarnations ─ his shifting and uncertain sexuality, for instance. 134

Aos momentos de presença quase sobrenatural opõem-se os inúmeros trechos que ilustram a dedicação do rapaz à família e aos amigos. Sua relação problemática com o pai — envolvendo momentos positivos e negativos — mostra que Ned comporta-se como outros rapazes de sua idade. O seguinte trecho revela o desgosto que sentiu ao confirmar os rumores sobre o travestismo de Ruivo Kelly:

Peguei a pá da mão dela e cavei até dar com uma coisa preta e dura que media 1 x 0,60 m. Estava tão funda que eu precisei forçar com uma alavanca e logo arrastei para a luz do dia um baú de lata amassado. Foi dentro desse baú que encontrei a coisa que desejaria nunca ter visto. Havia um vestido de mulher m. sujo de terra na barra e as flores eram exatamente como o sgto. O’Neil tinha falado. Havia também máscaras pintadas com tinta vermelha e guarnecidas de penas. Eu mal olhei para aquilo o vestido me embrulhou o estômago e fui tomado por uma grande raiva. (CAREY, 2002, p.27)

De qualquer forma, embora tenha uma certa mágoa do pai, que percebeu o afastamento do filho e não tentou reatar os laços entre os dois, o narrador reconhece que a influência do pai se faz e sempre se fará sentir em sua vida:

Até aquele momento eu tinha sido a sua sombra nunca perdendo uma chance de estar com ele. Na mata ele me ensinou os nós que eu uso para amarrar a manta no arção da minha sela também a posição para usar uma plaina de carpinteiro e o truque de se pegar peixe com uma mosca e um pedaço de couro cru essas coisas são como marcas escuras nos anéis do tronco de grandes árvores aprisionadas para sempre em meu dia-a-dia. (CAREY, 2002, p.29)

Quando o pai morre, Ned assume na família uma posição de responsabilidade e sente- se no dever de cuidar dos irmãos e sustentá-los. Seu papel de protetor fica bastante evidente quando sai em defesa das irmãs, importunadas por policiais. Sua preocupação com Dan, o varão mais novo e, talvez, o que sente mais falta do pai, pode ser notada no seguinte trecho:

“Vê-lo assim privado e abandonado despedaçou o meu coração” (CAREY, 2002, p.246). 135

Sua relação um tanto edipiana com a mãe é mais complexa e mais profunda. Eles representam, um para o outro, o ponto de equilíbrio, uma vez que têm em comum os mesmos problemas e a mesma vontade de trabalhar pela família. Na seguinte passagem, podemos observar a amizade e o crescimento conjunto que os une:

Não faça nada pediu volte para o emprego. Já me demiti do emprego mãe eu vim roubar os cavalos deles como a senhora queria. Minha mãe soltou um estranho e suave gemido e em seguida estava toda em meus braços senti o seu pobre corpo endurecido abalado por soluços. Eu nunca pretendi que você seguisse o caminho do mal não quero que roube nada. Shhh shhh fiz eu e foi somente quando a abracei daquele modo que percebi o quanto eu a amava profundamente nós 2 crescíamos juntos como dois galhos de uma velha glicínia. (CAREY, 2002, p.255)

Retratado como bom filho e rapaz trabalhador em parte considerável do texto, Ned, como qualquer outra pessoa, sente raiva, intensificada ao longo da narrativa, após a prisão de sua mãe: os dois são tão fortemente ligados que esse evento aumenta a ira de Ned contra o sistema policial e judicial da colônia e torna-se o motivo de seus assaltos e de seu último plano de assassinato de guardas e investigadores da polícia. Observemos a seguinte passagem:

Mas eu estava tão irado que ela não conseguiu me consolar as minhas palavras tinham sido roubadas de minha própria garganta. A sua mãe perguntou se eu gostaria de dar uma caminhada o que me surpreendeu pois ela não gostava do calor mas na verdade eu não estava prestando muita atenção em sua mãe mas cozendo no meu próprio caldo e tramando uma vingança contra os que estão por cima e nos oprimem. (CAREY, 2002, p.403)

Os sentimentos de Ned em relação à amante e à filha também são salientados no romance. No seguinte trecho, o protagonista revela-se um homem apaixonado: “Eu a coloquei no chão onde ágil & esguia ela ficou pisando num pé e noutro como numa espécie de jiga.

Então isso é o amor pensei” (CAREY, 2002, p.270). A comemoração do nascimento da filha 136

complementa a ênfase dada ao lado humano do rapaz e o estende aos demais membros do bando:

Minha filha era você. Você tinha nascido. Você estava em terra estranha mas a salvo no seio de sua mãe eu brami como um touro minha respiração irrompeu & congelou naquele limpo ar australiano. Galopei em círculos no pasto e depois desenhei um 8 fiquei de pé sobre a égua as pistolas nas mãos e todos os rapazes me olhavam pensando que o melancólico capitão tinha finalmente enlouquecido. Ele é pai gritou Kate. Então que espetáculo de cavalgada eles deram para lhe oferecer as boas vindas e que arrasta-pé se seguiu imediatamente apesar de o mingau já estar borbulhando na panela da choça. Os Kelly estão aqui. Meninos descalços correram pelo chão gelado uma garota montou um pônei do Timor e partiu para levar a notícia aqueles eram os nossos amigos. O nosso dinheiro suado escorria como trigo de um saco furado. Os policiais estavam em todas as colinas & cidades em volta mas a região não era deles e não faziam a mínima idéia da comemoração que agora se espalhava como o tojo amarelo pelas colinas. Joe Byrne cantou Rose O’Connell e sua forte voz de barítono ecoou pelos pastos e até mesmo a ovelha arisca e o asno estrábico souberam que você tinha nascido. Steve dançou uma jiga no meio da trilha ele era lépido & adorável como um pônei. Dan ficou logo bêbado ele escreveu o seu nome na palma da mão e fez um juramento de partir e trazer você de volta ao lugar a que pertencia. (CAREY, 2002, p.423)

O romance torna Ned Kelly mais humano ao dar à personagem, que também narra a história, sentimentos, atitudes, pensamentos, uma namorada e uma filha. No entanto, para alcançar esse resultado, o escritor recorre a uma repetição das características propagadas ao longo do tempo que tornaram essa figura tão importante entre os australianos.

4.7. O título e a questão da verdade

A busca por um conceito de verdade tem ocupado os homens há muito tempo e tem se mostrado uma de nossas preocupações de solução mais complexa. Segundo Fernández-

Armesto:

A natureza da verdade se esquiva de nós; não temos uma definição satisfatória à nossa disposição, nenhuma técnica harmônica ou confiável de 137

reconhecimento da verdade; mas temos em funcionamento algumas pressuposições sobre a confiabilidade de nossos sentimentos, de nossos sentidos, de nossos poderes de raciocínio ou da autoridade de nossas fontes de consulta ou de inspiração 63 . (1998, p.11)

As diferenças entre grupos humanos são resultado de “hábitos refinados pela experiência, impostos pela cultura e moldados por determinadas línguas 64 ” (FERNÁNDEZ-

ARMESTO, 1998, p.19).

Em seu livro Truth : a History and a Guide for the Perplexed (1998), Felipe Fernández-

Armesto divide os tipos de crença na verdade em quatro categorias. A primeira delas — a verdade que sentimos — refere-se à nossa percepção da verdade e à nossa busca por coerência.

A verdade que nos contam relaciona-se à idéia de verdade como algo que não é diretamente acessível, mas que pode ser alcançado por mediação, ou seja, por meio de sonhos, oráculos, aparições, livros sagrados de diferentes religiões e comunicação dos espíritos.

A verdade que pensamos por nós mesmos envolve a razão, que tem preponderado em relação às duas formas anteriores e que implica o que chamamos de pensamento lógico: um sistema de raciocínio e regras para que a veracidade seja julgada. Embora a lógica não seja característica exclusiva do pensamento ocidental, ela adquiriu, no ocidente, grande importância, sobretudo nos séculos XVII e XVIII , marcados por movimentos como o absolutismo, o iluminismo, a colonização e as primeiras lutas pela independência nas colônias do continente americano.

A verdade que percebemos por meio dos nossos sentidos refere-se à crença na confiabilidade dos sentidos para revelá-la. Durante o Renascimento, houve um repúdio à autoridade — que muitas vezes havia decidido o que deveria ser considerado verdade — a

63 The nature of truth eludes us; we have no satisfactory definition at our disposal, no agreed or reliable truth- recognition technique; but we have some working assumptions about the reliability of our feelings, our senses, our powers of reason or the authority of our sources of counsel or of inspiration. 64 …habits refined by experience, imposed by culture and shaped by particular languages. 138

favor daquilo que era observável, o que gerou o empirismo. Ao longo dos anos, a ciência demonstrou que há coisas que não podem ser captadas pelos sentidos, e eles passaram a ser vistos como ilusórios e enganadores. No entanto, embora essa ascendência dos sentidos não tenha durado muito, ela conferiu à ciência enorme prestígio e influência social.

Atualmente, vivemos um período de recuo da verdade, uma crise de valores, um momento em que muitas certezas foram destronadas. A era pós-moderna é uma era de incredulidade. As incertezas que marcam o século XX ficam evidentes também em movimentos artísticos como o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo, que refletem o mundo como um lugar de incoerências e imperfeições.

O efeito devastador da dúvida atingiu até mesmo a ciência: os cientistas, bem como os historiadores, antropólogos, sociólogos, lingüistas e estudiosos da literatura, reconhecem-se agora implicados em suas próprias descobertas. No caso da história, a falta de objetividade “é mais difícil de contemplar porque os historiadores ficaram sem nenhuma outra justificativa para o que fazem 65 ” (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 1998, p.191).

As idéias dos lingüistas também ajudaram a minar a extrema confiança que se tinha nos textos. Para Saussure, o significado ou efeito produzido pela escrita provinha das relações de cada termo com os demais, que nunca são completas. Assim, para Fernández-Armesto, “o significado está além do controle autoral 66 ” (1998, p.196). Para Derrida, não podemos atribuir um significado objetivo a um texto, mas sim interpretações subjetivas, de forma que toda interpretação é também um mal-entendido. Segundo Wittgenstein, entendemos a língua não por sua relação com a realidade, mas porque obedece a regras de uso (apud FERNÁNDEZ-

ARMESTO, 1998).

No entanto, a idéia de que não haja verdade incomoda os seres humanos. Felipe

Fernández-Armesto conclui que, embora as técnicas de dizer a verdade variem com o tempo,

65 …is harder to contemplate because historians have left themselves with no other justification for what they do. 66 …meaning is beyond authorial control. 139

os indivíduos não tenham garantias da autenticidade das asserções (mas tenham o direito de fazê-las), e as línguas tenham limitações, essas mudanças de conceitos ocorrem dentro de um limite.

Fernández-Armesto apresenta observações importantes sobre a verdade, quando relacionada à arte. No século XIX , a diversão ( play ) passou a ser considerada como um momento em que as pessoas são verdadeiras para consigo mesmas. No entanto, havia também objeções quanto a seu uso filosófico, pois a distinção entre divertimento e não-divertimento é falsa, uma vez que tudo o que nos dá prazer é diversão. Para Friedrich von Schiller, a arte pela arte era sua mais pura forma (apud FERNÁNDEZ-ARMESTO, 1998). Ainda sobre a ligação entre arte e verdade, Fernández-Armesto faz a seguinte ressalva:

A doutrina nos obrigaria a admitir que a ficção, se boa o suficiente para ser qualificada como arte, seria mais verdadeira que o fato; as pessoas admitem isso prontamente, mas, em geral, apenas com a qualificação de que querem dizer “verdade” em um sentido especial para arte 67 . (1998, p.173)

Notamos, portanto, que a arte é considerada um dos âmbitos em que é possível buscar a verdade, mas a verdade que nela se encontra é de um tipo diferente, mais subjetivo, que não pretende mostrar provas palpáveis ou documentos, mas sim debater e apontar diversas possibilidades.

Anatol Rosenfeld trata do mesmo assunto, relacionando a verdade das obras literárias

à autenticidade, à verossimilhança (na acepção dada por Aristóteles), ou à coerência interna:

O termo “verdade”, quando usado com referência a obras-de-arte ou de ficção, tem significado diverso. Designa com freqüência qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); ou à verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido; ou a coerência interna no que tange ao mundo

67 The doctrine would oblige us to admit that fiction, if good enough to qualify as art, was more true than fact; people readily make this avowal, but usually only with the qualification that they mean “truth” in a sense special to art. 140

imaginário das personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão profunda — de ordem filosófica, psicológica ou sociológica — da realidade. (1964, p.13)

Antonio Candido (1964) aponta que a verossimilhança depende da articulação das palavras e da unificação de traços fragmentários para a organização do texto. Ao unir fragmentos, o escritor precisa selecionar detalhes e, ao fazer isso, cria um mundo próprio.

A questão da verdade também é importante no romance A história do bando de Kelly , de Peter Carey. O uso do adjetivo “ true ”, ou verdadeiro no título original do romance ( True

History of the Kelly Gang ) confere-lhe um valor ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que afirma ser verdade o que está escrito, sobretudo em comparação a outros textos a respeito do bando de Kelly, também provoca dúvidas quanto a esta veracidade, e este é um dos papéis do ficcionista: causar críticas e discussões sobre fatos acontecidos.

O narrador desse romance compromete-se a contar sua verdadeira história, como podemos observar no seguinte trecho: “mas esta história é para você e não vai conter uma só mentira e que eu queime no inferno se eu falar uma falsidade” (CAREY, 2002, p.13). A verdade, no entanto, é sempre algo multifacetado, não podendo ser encontrada por completo em nenhuma parte, e essa declaração mais uma vez chama a atenção para o caráter ficcional da obra.

A tradução do título para o português, A história do bando de Kelly , omite o adjetivo

“verdadeira” do original [ True History of the Kelly Gang ] e, desta forma, retira a palavra que tornava explícito o ar provocativo — tanto em relação ao próprio romance quanto em relação aos demais textos, literários e históricos, escritos por outros autores — que demanda uma certa comparação ao mesmo tempo que incita questionamentos. A falta do adjetivo

“verdadeira” na versão brasileira deixa de explicitar a ambivalência e a problemática causada pela dicotomia história x ficção. No entanto, a tradução do título conta com a palavra

“história”, que apresenta, em língua portuguesa, uma ambigüidade e uma duplicidade de 141

sentido que o termo original em inglês não possui, uma vez que tem sido utilizada para referir-se a fatos históricos e à ficção. A versão brasileira traz ainda o artigo definido “a”, acréscimo que pode devolver ao título em português, junto à palavra “história”, mesmo que de maneira implícita, um pouco da ironia do original, pois o artigo definido pode indicar, séria ou ironicamente, o valor e a excelência da característica apontada pelo termo seguinte na frase.

De acordo com Bruce Woodcock, títulos de romances com a expressão “verdadeira história”, que de início referiam-se a textos parcialmente verídicos, tornaram-se parte de uma longa tradição literária:

A tradição datava dos modelos clássicos, como a Verdadeira História de Luciano de Somosata, que se tornou uma inspiração para Rabelais e para As viagens de Gulliver , de Swift, e foi incorporada nestes trabalhos baseados em história, como em A mirour for magistrates: being a true chronicle historie of the untimely falles of such unfortunate princes and men of note [Um espelho para magistrados: uma crônica histórica verdadeira sobre a queda prematura de príncipes desventurados e homens distintos], de George Ferrers, do ano de 1559. Muitos desses relatos eram uma mistura de fato e ficção, e a “verdadeira história” tornou-se um elemento no desenvolvimento do romance moderno. Um dos primeiros exemplos foi The Unfortunate Happy Lady : A True History [A desventurada senhora feliz: uma história verdadeira, escrito antes de 1685 e publicado em 1698 ou 1700], de Aphra Behn, e a forma foi usada durante os séculos XVIII e XIX, geralmente mesclada com os gêneros picaresco e o epistolar. True History of the Kelly Gang ( A história do bando de Kelly ) usa essas formas também: os “pacotes” de Ned são cartas endereçadas à filha, então sua história é contada de um modo epistolar, enquanto o enredo do romance segue suas aventuras cronologicamente desde a infância, misturando o picaresco com o bildungsroman autobiográfico. Usando todos esses gêneros, True History of the Kelly Gang ( A história do bando de Kelly ) não apenas reescreve um ícone nacional; ele efetivamente reescreve os elementos fundadores da tradição do romance inglês. 68 (WOODCOCK, 2003, p.145-146)

68 The tradition dated from classical models like the True History of Lucian the Somosatenian that formed an inspiration for Rabelais and Swift’s Gulliver’s Travels , and became incorporated into such historically-based works as George Ferrers’s A mirour for magistrates: being a true chronicle historie of the untimely falles of such unfortunate princes and men of note of 1559. Many such accounts were a mixture of fact and fiction, and the ‘true history’ became one element in the development of the modern novel. An early example was Aphra Behn’s The Unfortunate Happy Lady: A true History (wr. Pre-1685; pub 1698 or 1700), and the form was used through the eighteenth and nineteenth centuries, often mixed with picaresque and epistolary genres. True History of the Kelly Gang uses these forms too: Ned’s ‘parcels’ are letters addressed to his daughter, so that his story is told in epistolary fashion, while the plot of the novel follows his adventures chronologically from childhood, blending the picaresque with the autobiographical bildungsroman . Using all these genre modes, True History of the Kelly 142

Ao comentar o título, Susan Martin (2004) apontou também que, além da questão da tradição literária, ele deve ser lido como um sinal da transformação de Ned Kelly em mercadoria cultural e da busca por uma versão autêntica de sua história.

Sheila Dias Maciel (2001) aponta que o diário é uma maneira de salvar-se da morte.

De certa forma, as cartas ficcionais de Ned Kelly à filha no romance de Carey mantém essa figura da história australiana vivo e em debate. Ainda sobre diários, Maciel afirma que, tanto nos diários pessoais quanto nos ficcionais, deve haver um “eu” que se desnuda e que expõe algo de si, e relaciona esse tipo de escrita não à verdade, mas à sinceridade, que, junto à ilusão de espontaneidade e de imediatismo, pode constituir um artifício literário. Assim, a sinceridade — ou ilusão de sinceridade — no texto de Carey configura uma de suas estratégias narrativas para a urdidura da trama. Helen Daniel (1988) aponta que verdade, ilusão, realidade e mentira se misturam nos textos ficcionais e reforça que a obra de Carey é marcada não só por esse mescla, mas também por um interesse no processo narrativo e pela sobreposição de camadas de realidade.

Peter Carey já afirmou, em uma de suas palestras, que os romances históricos são tão ficcionais quanto textos de ficção científica (DOWLING, 2001-2002). O adjetivo

“verdadeiro” no título de A história do bando de Kelly ( True History of the Kelly Gang ) assume um tom irônico e torna-se parte de um jogo literário, e o fato de Ned Kelly nunca ter tido uma filha e nunca ter escrito um manuscrito como o apresentado no romance serviu para contrabalançar uma possível expectativa do leitor por alguma nova revelação sobre esse ícone da cultura popular australiana. Em uma de suas entrevistas, publicada na revista Antipodes , o escritor aponta:

Gang not only re-writes a national icon; it effectively re-writes the founding elements of the English novel tradition. 143

E eu sempre pensei que se você chama um livro de “Verdadeira história”, cada palavra questiona a outra, e para um público literário todos vão saber qual é o jogo, mas para um público menos literário também pensei que, uma vez que tem uma filha — bem, não há uma filha na história, então achei que isso estabilizaria sua parte “verdadeira”. 69 (O’REILLY, 2002, p.164)

No entanto, um público internacional que desconheça esta parte da história australiana e a dimensão da influência de Ned Kelly em sua cultura teria que contar apenas com as palavras narradas para entrar no “jogo” de Peter Carey. O leitor estrangeiro não saberia, por exemplo, que a Biblioteca Pública de Melbourne, detentora dos manuscritos de Ned, é uma invenção do escritor, pois não há nenhuma biblioteca com este nome na Austrália.

Notamos, portanto, que a questão da verdade no romance de Carey também é ambivalente. Se, por um lado, ao selecionar fatos para um romance, o escritor cria um mundo próprio — e, no caso deste autor australiano, essa escolha cria um contexto de crítica a determinados acontecimentos da história da Austrália, sobretudo o degredo — por outro, alguns dos aspectos desse jogo podem não ser tão óbvios par ao leitor estrangeiro e a ironia do título pode passar despercebida.

4.8. Debate pós-colonial em A história do bando de Kelly

4.8.1. O texto como espaço de debate

A escrita do texto histórico tem estratégias em comum com a literária, uma vez que a narrativização é um suporte fundamental para organizar o pensamento humano e que o conhecimento do passado é inevitavelmente textual (HUTCHEON, 1991).

Sheila Dias Maciel (1995) aponta que a distinção entre Literatura e História já foi baseada na idéia de verdade, ou seja, considerava-se que o relato histórico narrava os fatos verdadeiros, ao passo que o ficcional não tinha nenhum compromisso com fatos

69 And I always thought that if you call a book “True History”, each word calls the other into question, and for a literary audience everyone is going to know what the game is, but for a less literary audience I also thought that having a daughter — well, there’s no daughter in the story, so I thought that stabilized the “True” part of it. 144

comprovados. No entanto, Maciel observa ainda que o historiador recorta a realidade que quer narrar e seleciona episódios, trabalhando, pois, com uma noção particular de realidade, uma vez que não seria possível abarcar todos os acontecimentos em um mesmo estudo. Por outro lado, os escritores também podem fazer uso de eventos históricos em sua obra, o que contraria essa antiga distinção. Assim, a história se diferencia da literatura pela metodologia de estudo e pesquisa, mas se aproxima dela pela forma de registro: a narrativa. Outra diferença entre as duas áreas seria a limitação, sobretudo porque a literatura cria seu próprio universo e tem liberdade para utilizar fatos verificáveis e imaginados.

O aproveitamento da história na ficção — bem como os novos textos sobre a História, que resgatam eventos pouco debatidos ou lançam novas perspectivas sobre um assunto — impedem que ela seja conclusiva, revelando muitas vezes as vozes que haviam sido silenciadas. Para Hutcheon, a ficção histórica é motivada pela noção de passado como força modeladora, o que certamente é verdadeiro com relação a Peter Carey e às suas obras. A idéia de Umberto Eco, de que esses romances buscam compreender as causas dos acontecimentos do passado e seus efeitos no presente, também vão ao encontro do projeto ficcional de Carey, interessado na invenção ou descoberta de seu país, ou, pelo menos, de parte desse projeto.

Essas idéias são corroboradas pelo seguinte trecho de sua entrevista à Folha de São Paulo :

Tanto “Jack Maggs” como “Kelly Gang” lidam com o fato de a Austrália ter sido construída, no início, por condenados ingleses. Dentro da história européia, meu país surge como uma grande colônia penal, que aos poucos vai se transformando em uma nação. Além de contar histórias, estes livros tentam também levantar a discussão sobre as conseqüências que essa colonização trouxe para a cultura e as seqüelas disso na nossa sociedade atual [...]. (COLOMBO, 2001, p.4)

Em várias de suas obras, o escritor mostra grande preocupação com os efeitos do degredo de criminosos para o continente australiano, transformado em colônia penal, para a formação de uma identidade nacional australiana. Para Alan Lawson, o problema da 145

identidade nacional é um problema estrutural e colonial em países como a Austrália e o

Canadá. Como aconteceu com os imigrantes que passaram a viver no continente australiano, a criação de uma nova identidade em um novo contexto fez-se necessária:

“Quem sou eu quando sou um degredado?” é uma inevitável questão colonial e em países onde o clima, a paisagem e os habitantes nativos contribuíam pouco para criar uma sensação de continuidade, onde a sensação de distância, tanto dentro quanto fora, era tão grande, o sentimento de que uma nova definição de si — metafísica, histórica, cultural, lingüística e social — era necessária, era, e é, irresistivelmente persuasivo 70 . (LAWSON, 1999, p.168)

Ainda segundo Lawson (1999), houve, entre os escritores coloniais, uma responsabilidade psicológica de buscar e adequar uma linguagem que pudesse descrever o novo lugar e a nova realidade correspondentes ao país em formação, e essa preocupação em encontrar imagens de identidade passou a ser considerada por alguns como uma das tarefas dos escritores. Outros fatores importantes quanto à identidade cultural são a importância que o espaço físico adquire e as transformações pelas quais o idioma do colonizador passa.

Peter Carey preocupa-se também com os efeitos da influência de diferentes poderes econômicos em seu país e em sua cultura. Em suas críticas, questionamentos e busca por uma identidade nacional, o escritor muitas vezes explora momentos, eventos e personagens históricos australianos.

Para Graham Huggan, o re-aproveitamento de personagens e eventos históricos por meio da literatura pode estruturar o processo de memória coletiva e individual e pode ainda dar (nova) forma a certos aspectos da cultura nacional:

A história do assaltante de estradas irlandês-australiano Ned Kelly tornou-se paradigmática para o recontar seletivo da história como lenda popular, e

70 ‘Who am I when I am ?’ is an inevitable colonial question and in countries where the climate, the landscape and the native inhabitants did little to foster any sense of continuity, where the sense of distance, both within and without was so great, the feeling that a new definition of self — metaphysical, historical, cultural, linguistic and social — was needed, was, and is, overwhelmingly persuasive. 146

para os processos ideológicos pelos quais a memória social pode ser re- trabalhada na construção dos mitos culturais de uma nação. 71 (2001-2002, p.142)

Ainda de acordo com Huggan, esse boom do re-aproveitamento da história em textos literários é causado por uma tentativa de lidar com traumas pessoais e coletivos, pela crença no valor terapêutico da memória coletiva contra os excessos da história, pela centralidade da memória nos discursos de identidade pessoal e cultural, muitas vezes ligados a grupos sociais marginalizados, e pela transformação da memória em produto em nossa sociedade capitalista

(HUGGAN, 2001-2002, p.150).

A memória pode ser re-inventada de várias maneiras e tornar-se, a cada re-invenção, mais próxima do presente:

A memória continuamente se re-inventa em uma multiplicidade de representações diferentes, e essas representações são, ao mesmo tempo, uma poderosa força criativa para a transformação do passado no presente, e um lembrete do grande número de posições diferentes que podemos ocupar em relação às nossas próprias histórias e às dos outros. 72 (HUGGAN, 2001- 2002, p.151)

Por fim, Huggan aponta o uso pós-colonial da memória, sobretudo por meio da literatura, como forma de reavaliar os ícones nacionais, responder a necessidades coletivas do presente, revelar injustiças do passado e explorar aspectos culturais construídos em tensão com o passado imperial (HUGGAN, 2001-2002, p.152-153).

O aproveitamento da história em textos literários tem sido, de acordo com Ralph J.

Crane, um terreno fértil na Austrália e na Nova Zelândia, em que o desafio ao centro “tem se manifestado, com freqüência, em forma de ficção histórica revisionista, que, ao reinterpretar a

71 The story of the Irish Australian bushranger Ned Kelly has become paradigmatic for the selective retelling of history as folk legend, and for the ideological processes by which social memory may be reworked into the fabric of a nation’s founding cultural myths. 72 Memory continually reinvents itself in a multiplicity of different representations, and these representations are at once a powerful creative force for the transformation of the past in the present, and a reminder of the large number of different positions we may inhabit in relation to our own, as well other people’s, histories. 147

história, seja tomando a perspectiva da periferia ou incluindo a perspectiva da periferia, efetivamente desafia ou subverte o centro hegemônico 73 ” (CRANE, 1996, 25).

No caso de Peter Carey, a tradição de crítica ao imperialismo começa com alguns contos, como “American Dreams”, que apareceu em seu primeiro livro publicado, Fat Man in

History (1974), e integra também a temática de alguns de seus romances, mais notadamente de Illywhacker , Oscar e Lucinda , Jack Maggs e A história do bando de Kelly . Enquanto o romance Illywhacker trata do poder exercido pela Inglaterra e em seguida pelos Estados

Unidos e termina com a possível substituição das metrópoles de língua inglesa pelo Japão, por meio do poder econômico e do turismo, os três outros romances se referem, de diferentes formas, ao imperialismo colonial inglês.

Em A história do bando de Kelly , o escritor australiano Peter Carey revive Ned Kelly, uma personagem histórica de vida extra-textual comprovada, mesclando, no romance, fatos reais, como a formação de um bando, os assaltos a banco, o tiroteio final com a polícia e o enforcamento de Kelly, e fatos imaginados, como a existência de uma namorada e de uma filha, e mesmo os sentimentos e diálogos entre as várias personagens, aos quais o escritor certamente não teve acesso. Por meio desse texto, Carey dá nova forma a uma importante figura da cultura nacional e mantém aceso o debate sobre um momento crucial da história australiana de embate e desacordo entre povo e autoridade colonial.

A re-invenção de Kelly reaproxima passado e presente e permite que o escritor faça um uso seletivo e pós-colonial dessa figura histórica. Esse uso é seletivo porque Carey dá sua interpretação dos fatos e, para tanto, atenua bastante a violência das palavras de ameaça de

Ned em suas cartas. Como apontado por Alex McDermott, alguns historiadores contestam que o bando de Kelly e seus simpatizantes, que roubavam gado, fossem representativos da população de pequenos proprietários de terra e afirmam que as cartas de Ned continham

73 …has often manifested itself in the form of revisionist historical fiction, which, in reinterpreting history, either by taking the perspective of the periphery or by including the perspective of the periphery, effectively challenges or subverts the hegemonical center. 148

avisos para aqueles que o contrariassem, e não a voz do oprimido. Por outro lado, a história de vida de Kelly e sua posterior transformação em ícone nacional e símbolo contra o império a

Peter Carey a oportunidade de rever um período relevante na história e na formação da identidade nacional em seu país e configuram uma ferramenta importante e poderosa para denunciar os desmandos da autoridade colonial e revelar antagonismos de classe e injustiças do passado. Nesse romance, o degredo aparece como uma sombra sobre a vida da família

Kelly e de outras personagens, e a união entre latifundiários, policiais e juízes se mostra particularmente opressora.

Em A história do bando de Kelly , o narrador afirma, de maneira constante e veemente, que o degredo foi uma grande injustiça histórica contra seu pai e contra os pobres e criminosos irlandeses e ingleses. A primeira destas afirmações aparece no início do primeiro capítulo: “Deus queira que eu viva para ver você ler estas palavras para testemunhar o seu assombro e ver os seus olhos negros se arregalarem e o seu queixo cair quando finalmente entender a injustiça que nós os pobres irlandeses sofremos nesta época presente” (CAREY,

2002, p.13).

A crítica ao sistema colonial australiano é reforçada por uma quadrinha inserida em meio ao texto, sem maiores explicações, pelo narrador: “Não é a pobreza o que mais abomino/ nem a eterna servidão/ mas os insultos que nela germinam/ que nem mesmo sanguessugas conseguem curar” (CAREY, 2002, p.15)

A influência dos atos da metrópole penetra as vidas de Ned e seus familiares, e torna- se muito presente e viva na figura do pai, Ruivo Kelly, e alquebra seu espírito:

Você pode achar estranho um homem conseguir sobreviver à deportação e aos horrores da Terra de Van Diemen e depois ser destruído em uma cadeia da região mas não podemos imaginar as torturas que os nossos pais sofreram na Terra de Van Diemen ─ Port Macquarie ─ Toongabie ─ Norfolk Island ─ Emu Plains. A cadeia de Avenel foi a gota d’água para o seu avô e ele não pronunciou mais do que uma dezena de palavras desse dia até a sua morte. (CAREY, 2002, p.49) 149

A experiência colonial e o peso do degredo marcam as palavras do narrador sobre a morte de Ruivo Kelly: “Nós entramos juntos na cabana os nossos pés descalços sujos de terra e os chapéus ainda na cabeça e vimos ali o nosso pobre pai caído morto sobre a mesa da cozinha protuberante com todos os venenos do Império sua pele cinzenta e brilhosa na penumbra” (CAREY, 2002, p.50).

Para explicar esses fatos à filha, o narrador recorre a uma mescla de história, folclore irlandês e uma espécie de ameaça velada contra os colonizadores e opressores. O seguinte trecho mostra, além dessa mistura, a crescente revolta e ira de Ned Kelly com relação aos ingleses:

Quando nossos corajosos parentes foram arrancados da Irlanda como dentes de uma boca e de sua própria história e de cada coisa querida e familiar foi abandonada nas docas de Cork ou Galway ou Dublin a banshee subiu a bordo dos amaldiçoados navios de condenados o ROLLA e o TELICHERRY e o RODNEY e o PHOEBE DUNBAR e nenhum olho inglês conseguiu enxergá-la mais do que um olho inglês consegue ver o fogo que vai descer sobre essa raça em um tempo que virá. A banshee se sentou na proa e penteou o cabelo durante todo o percurso de Cork a Botany Bay ela transitou entre os nossos parentes sob aquela bandeira estrangeira 3 cruzes pregadas uma em cima da outra. (CAREY, 2002, p.120)

A crítica ao tipo de colonização realizado na Austrália e ao tratamento dispensado aos degredados pode ser notada quando o narrador se refere ao objetivo da colônia penal australiana: “... mas você também deve ter em mente que os seus ancestrais não se submetiam a ninguém e isso era uma característica rara numa colônia criada especificamente para fazer os pobres se curvarem diante de seus algozes” (CAREY, 2002, p.201).

Em outro trecho, Ned demonstra, ao descrever o mascate Ben Gould, que os efeitos do sistema colonial não afetam somente os irlandeses, mas a todos aqueles considerados criminosos, mandados à prisão e transportados para além-mar:

150

Se olhássemos bem dentro de Ben Gould veríamos uma conhecida fúria no centro de sua alma pois apesar de não ser irlandês transmitia o mesmo tipo de fogo ou seja aquele fogo que o governo inglês acende nas entranhas de um pobre homem toda vez que o faz usar os grilhões de condenado. (CAREY, 2002, p.208)

Para o narrador, a agonia e o sofrimento causados pelo degredo ocasionam um silêncio entre pais e filhos e o fato de não tocarem no assunto gera ignorância e distancia a nova geração das origens de seus antepassados, como podemos verificar no seguinte trecho: “Essa

é a agonia das Grandes Imigrações pois os nossos pais preferem esquecer o que houve antes e nós os jovens atuais somos deixados na ignorância como girinos gerados em charcos sob a lua” (CAREY, 2002, p.366).

A perseguição aos irlandeses, a origem de um novo povo, o australiano, e a injustiça do sistema se misturam e se confundem no momento em que Ned descreve o efeito de seu discurso a um grupo de reféns. O efeito do degredo se estende a todos os habitantes da colônia e se mostra como forte influência na formação de seu caráter. A “memória histórica” os une e identifica:

O seu bebê foi tirado dela falei e eles não responderam. Eis uma coisa sobre esses homens eles eram australianos e conheciam muito bem o terror da lei inflexível a memória histórica da INJUSTIÇA estava no sangue deles e um homem podia ser um escrevente de banco ou um supervisor e nunca ter sido preso mas mesmo assim ele sabia de cor o que era ser forçado a vestir o capuz branco na prisão sabia o que era ser açoitado por olhar um carcereiro nos olhos e mesmo um sujeito de fala elegante como Mariposa tinha respirado aquele ar e portanto a noção da injustiça estava bem arraigada em seus ossos e na medula. Na cabana em Faithfull’s Creek vi a prova de que um homem podia contar a sua história para os australianos e que podiam acreditar nele essa foi a visão mais clara que eu jamais tive e logo Joe também a teve. (CAREY, 2002, p.393)

A mescla de referências à Irlanda, sua cultura e história, e à Austrália, sua paisagem e modo de vida, demonstram o processo de formação de um novo povo. A identificação da personagem principal com os irlandeses é entremeada de expressões que marcam a mistura com esse novo elemento que ainda está sendo criado, o australiano. Assim, nos primeiros 151

capítulos, a herança cultural irlandesa ganha destaque: “Deus queira que eu viva para ver você ler estas palavras para testemunhar o seu assombro e ver os seus olhos negros se arregalarem e o seu queixo cair quando finalmente entender a injustiça que nós os pobres irlandeses sofremos nesta época presente” (CAREY, 2002, p.13).

No decorrer do texto, entretanto, o nativo australiano é mencionado e elogiado por

Ned, como podemos observar no seguinte trecho, em que o narrador descreve o amigo de Joe:

“Quando ele voltou a boca zombeteira de Aaron sorria para nós como se ele soubesse de coisas que não ia revelar. E contudo e todavia e apesar disso eu não podia censurar Aaron

Sherritt ele era duro como um prego um grande nativo” (CAREY, 2002, p.370). O narrador também coloca os australianos ao seu lado no inconformismo contra a maneira como a justiça

é conduzida na colônia: “Eles vão imprimir a minha carta e então você verá o que vai acontecer os australianos não vão tolerar uma mãe inocente encarcerada” (p.405).

A identificação do bando com os australianos e a exaltação mais eloqüente do povo aparecem na descrição da tomada do hotel em Glenrowan, enquanto o professor Thomas

Curnow lê um texto de Shakespeare — obra produzida pela cultura que oprime, cuja leitura

Ned toma por comparação elogiosa, como apontado por Graham Huggan (2001-2002).

Vejamos a passagem:

O guarda Bracken estava com a cara amarrada mas entre os outros rostos a expressão era de assombro pois apesar de o significado não estar claro eles podiam ver que um homem instruído podia nos comparar com um rei & quando no meio do poema Dan & Joe entraram para passar a noite todos os olhos fitaram com reverência aqueles homens blindados. Aqueles rapazes eram a verdadeira nobreza de estirpe australiana. (CAREY, 2002, p.446- 447)

Em meio à crítica contra o sistema e contra a injustiça, a forma como a colônia é administrada é comparada ao funcionamento de uma prisão: “Toda a colônia podia ver que 152

isso era injusto nós estávamos sendo governados por carcereiros não havia mais justiça como nos dias de antigamente” (CAREY, 2002, p.400).

As situações por que passa em meio à revolta de seu bando leva Ned a clamar o valor dos degredados: “porque nós éramos eles e eles eram nós e a gente tinha mostrado ao mundo o que sangue condenado é capaz de fazer. Nós provamos que não havia mácula a gente era o sangue puro e autêntico e belamente nascido” (CAREY, 2002, p.424).

Estas citações mostram que o Ned Kelly de Peter Carey vê o sistema de degredo, tanto da perspectiva pessoal quanto da histórica, como uma ferida aberta, ao mesmo tempo dor e ofensa. A injustiça da administração colonial estende-se a outros traços que caracterizam o ambiente criado pelo governo, tais como o sistema judicial falho, a polícia corrupta e os latifundiários e seus desmandos.

No início do romance, Ned trata do poder concentrado nas mãos dos policiais e de como abusam desse poder. Aos poucos, a crítica engloba o sistema judicial como um todo, com julgamentos baseados em perjúrios, e a associação dos latifundiários com a polícia e os juízes.

Quando ainda é uma criança, Ned é confrontado com o poder da polícia quando vai com sua mãe visitar o tio que estava preso, e isso lhe causa grande impacto:

Quando finalmente permitiram a nossa entrada toda a minha atenção foi voltada não para o fogo incandescente mas para uma figura ruiva queixuda o inglês sentado atrás da escrivaninha. Eu não sabia o seu nome só que era o homem mais poderoso que já tinha visto e ele podia destruir minha mãe se assim desejasse. (CAREY, 2002, p.14)

Durante toda a narrativa, Ned trata da perseguição da polícia aos membros de sua família, quer com falsas acusações, que muitas vezes não conseguem comprovar, quer com ofensas. Um dos primeiros indícios dessa perseguição aparece no segundo capítulo: “Também presenteei minha mãe com uma bela égua mestiça com um vestígio de raça árabe. Certa vez 153

foi montada nela à missa em Benalla onde a polícia tentou alegar que era roubada mas não tendo como provar ficaram depois 1/2 desencorajados para insistir nisso” (CAREY, 2002, p.70).

O maior atrito do rapaz com os guardas da colônia, representantes do governo imperial, inicia-se com as traições e falcatruas do policial Alexander Fitzpatrick, que o faz acreditar na amizade entre os dois. Embora diga que é amigo de Ned, ele o droga e o prende por bebedeira e desordem. Finalmente, é a última e maior afronta de Fitzpatrick à família que desencadeia a formação da quadrilha Kelly e todos os seus atos, uma vez que é por conta deste acontecimento que Ellen Kelly é presa e acusada de tentativa de assassinato:

Vi Fitzpatrick puxar violentamente a minha irmã para cima de seu joelho no que me dizia respeito essa foi a porcaria da gota d’água e surgi na porta claramente à vista. Dê o fora ordenei. Apesar de ter visto o meu revólver o policial desobedeceu e alisou a mão da minha irmãzinha. Quanto à minha mãe ela ignorou a afronta abriu a porta do forno e retirou 2 fôrmas de pão de casca com uma pá de cabo comprido. Tire a minha irmã da p do seu colo. Fitzpatrick suspirou Está vendo o que preciso tolerar daqueles a quem protejo? Você não deve se preocupar disse Kate o meu irmão será mais gentil quando ele souber que vamos nos casar. Ora sua vadia tola ele não pode se casar com você. Fitzpatrick empurrou-a para fora do colo e vi sua mão se dirigir para o revólver a minha já estava sobre o Colt. Que história é essa ele perguntou. Você já é conhecido por isso seu cachorro. Isso atraiu a atenção de minha mãe. Ele está noivo de uma vadia e tem outra grávida em Frankston. Minha mãe não hesitou levantou a pá e atingiu Fitzpatrick na cabeça o capacete caiu e ele cambaleou sacando o seu .45. Disparei o .31 atingindo-o no pulso o revólver dele caiu ruidosamente no chão. (CAREY, 2002, 296- 297)

A partir desse momento, Ned e seus companheiros são caçados por policiais em toda parte. Como resultado da perseguição, o rapaz mata quatro guardas e, com a ajuda de seu bando, assalta bancos. Essa situação culmina em um tiroteio entre a polícia e o bando de

Kelly, que são, por fim, derrotados. 154

O narrador também aponta, ao ver o gado de uma família de sitiantes, como seria a vida na colônia sem as injustiças cometidas contra os pobres: “O pequeno rebanho bovino era gordo e reluzente e uma coisa dessas tão adorável de se ver era a prova da satisfação que a colônia poderia atingir se sempre houvesse justiça” (CAREY, 2002, p.146).

O momento em que Ned dá à polícia uma informação sobre Harry Power para que retire a acusação contra seu primo serve de ponto de partida para uma crítica ao sistema judiciário: “Então eu lhe dei uma certa informação coisa sem muita importância. Mais tarde naquele mesmo dia ele foi à minha cela para rasgar na minha presença o mandado contra

Tom. Era assim que se aplicava a lei na colônia de Victoria” (CAREY, 2002, p.185).

Justiça e polícia são outra vez criticados, desta vez de maneira mais grave, pois envolve o perjúrio do latifundiário McBean, que havia visto claramente o rosto de Ned em um assalto, na descrição do julgamento do rapaz:

Os superintendentes nunca mencionaram para mim as £500 eles forneceram outros incentivos para a traição. Levaram o sr. McBean como testemunha à corte de Benalla onde vi com espanto o latifundiário jurar sobre a Bíblia que de modo algum tinha sido eu o garoto que o havia assaltado. Nicolson falou para mim Veja o que podemos fazer se você cooperar. No dia seguinte estávamos todos no tribunal quando mais uma vez Hare e Nicolson brincaram com a justiça eles fizeram isso e aquilo com ela torceram & distorceram e a Coroa retirou mais 2 acusações. (CAREY, 2002, p.186-187)

A corrupção e o abuso do poder dos policiais é atestado também por um policial irlandês que conhece Ned quando o rapaz é levado a Melbourne pela primeira vez, para o interrogatório sobre Harry Power: “Calado calado eu cuspo e juro como eles vão nos fazer de criados na porcaria dos jantares deles embora isso não seja permitido pelo regulamento esses e─tos não ligam a mínima eles são os mandachuvas da p da colônia” (CAREY, 2002, p.193).

A ligação entre latifundiários e autoridades é atestada por Ned ainda em outro trecho:

“Joe e eu vivíamos no mundo real sabíamos que a nossa dura situação era causada por Whitty 155

e McBean que arrancavam os olhos da região com a conivência dos políticos e da polícia”

(CAREY, 2002, p.259).

Este outro trecho demonstra que a sensação de ser perseguido e oprimido por policiais e latifundiários é comum a outros sitiantes:

Não preciso escrever o nome da família que nos abrigava apenas que levava uma vida dura nos contrafortes rochosos da cordilheira e não era melhor do que poderia ser essas pessoas sabiam o que era ter a polícia atormentando-as os latifundiários espremendo-as e tomando toda a terra de uso comum para uso particular. (CAREY, 2002, p.345)

A insatisfação generalizada com o sistema colonial e as marcas deixadas pelo degredo, pelo sofrimento e pela desvantagem em relação aos ricos e poderosos garante ao bando de

Kelly muitos aliados:

O Império Britânico não deixava de me fornecer uma grande quantidade de candidatos eram homens que tinham tido negado um arrendamento de terras por nenhum outro crime além de serem nossos amigos homens forçados a plantar trigo estragado depois pela ferrugem homens mutilados no triângulo da Terra de Van Diemen homens com filhos na prisão homens que viram a sua terra obtida com suor ser tomada por latifundiários homens que sofreram perjúrio e foram aprisionados sob falsas acusações homens cansados de terem a cada dia & sem descanso os seus animais apreendidos. (CAREY, 2002, p.430)

Desta forma, percebemos que a oposição Inglaterra x Irlanda/Austrália encontra eco, na narrativa de Carey, nas oposições polícia x bando de Kelly e latifundiários x pequenos sitiantes. Todas elas se misturam em uma crítica ao sistema de degredo e à administração da colônia, que oprimem a camada mais pobre da sociedade.

Outro uso pós-colonial de Peter Carey nesse romance é o da linguagem. A língua, que foi extremamente importante na formação do estado-nação europeu e na conquista de povos e territórios em todo o mundo, deixou de ser européia e, tendo sido modificada, passou a pertencer a vários países em outros continentes. A língua e as formas literárias trazidas da 156

Europa passaram a ter um uso subversivo como espaço de resposta ao Outro e veicular denúncias sobre os abusos da colonização. Em A história do bando de Kelly , Carey se vale não só de uma linguagem que demonstra a pouca escolaridade de seu narrador, mas também de gírias e expressões, algumas de origem britânica, mas utilizadas na Austrália no século

XIX, e outras típicas do inglês australiano, valorizando, dessa maneira, a variante local da língua que veio da metrópole. Citaremos alguns exemplos do texto original, acompanhados de uma explicação sobre o termo apontado e colocaremos a tradução publicada em português em nota de rodapé.

Uma das gírias mais recorrentes em toda a narrativa é a palavra traps , que se refere a policiais coloniais e tem origem nas gírias dos criminosos degredados para a Austrália, como podemos notar em: “ My 1st memory is of Mother breaking eggs into a bowl and crying that

Jimmy Quinn my 15yr. old uncle were arrested by the traps 74 ” (CAREY, 2001, p.7). Entre as expressões relacionadas ao universo policial, encontram-se ainda as palavras coppers , gíria de origem britânica amplamente utilizada na Austrália no século XIX para referir-se a policiais, como observamos em “ The coppers dropped about a chain behind us 75 ” (CAREY, 2001, p.195), e fizgig , gíria australiana para informante da polícia, presente no seguinte trecho: “ But

I aint a fizgig I said 76 ” (CAREY, 2001, p.143). Ainda com relação a delatar alguém, as personagens do romance utilizam a expressão dob in , como em: “ We know you dobbed in

Harry Power 77 ” (CAREY, 2001, p.152). Há também os termos bolt ou bolted , expressão típica dos criminosos australianos que se referia à fuga, que podemos observar no trecho a seguir, embora aqui não esteja relacionado a uma fuga da polícia (nesse caso, o marido de

Ellen a abandona): “ He bolted said she I could not stop the b----r78 ” (CAREY, 2001, p.227).

74 Minha 1 a lembrança de Mamãe é ela quebrando ovos numa tigela e chorando porque Jimmy Quinn o meu tio com 15 a. tinha sido preso pelos guardas. 75 Os guardas estavam a uma boa distância de nós dois... 76 Mas não sou um alcag üete falei... 77 Nós sabemos que você entregou Harry Power. 78 Ele fugiu disse ela não consegui deter o s—na. 157

No momento em que um policial vai à propriedade dos Kelly e acaba prendendo

Ruivo Kelly pelo roubo de uma novilha, que, na verdade, havia sido morta por Ned, aparece uma expressão australiana relacionada a roubo de gado, duff : “ It is a law John it says that if you duff another fellow’s heifer then you’re going to go to adjectival gaol 79 ” (CAREY, 2001, p.24).

Aparecem, em toda a narrativa, vários diminutivos e abreviações, como littlies ou kiddies , para crianças, ou nightie , para roupa de dormir, ou ainda proddy , gíria para protestante, usada especialmente por crianças católicas, como é o caso da maior parte das famílias irlandesas: “ Them scholars was all proddies they knew nothing about us 80 ” (CAREY,

2001, p.28). Outro termo usado é comfy , para confortável, como podemos observar no seguinte trecho, em que Harry Power dá um par de botas a Ned:

There was nothing for me to do but sit down to pull the boots on. My feet must of grown for now they pinched my toes. Comfy? Yes Harry 81 . (CAREY, 2001, p.113)

Com relação à religião, além do termo proddy , que já discutimos, Carey utiliza a palavra tyke , gíria australiana desde 1900 que significa católico, no seguinte fragmento: “ Here eat some breakfast poor tyke 82 ” (CAREY, 2001, p.123). Há também a expressão strewth , forma abreviada de God’s truth , equivalente a “Meu Deus!”, como notamos em: “ Strewth yes 83 ” (CAREY, 2001, p.66).

79 É uma lei John que diz que se você furta a novilha de outro sujeito você vai para a porcaria da prisão... 80 Os alunos de lá eram todos bíblias [sic] e nada conheciam a nosso respeito... 81 Nada me restou a fazer a não ser me sentar e calçar as botas. Os meus pés deviam ter crescido pois agora elas beliscavam os dedões. Comfortável? Sim Harry. 82 Tome coma o seu desjejum criança. 83 Por Deus sim. 158

Há ainda algumas gírias relacionadas a partes do corpo, como é o caso de gob , para boca, como verificamos em: “ My mother told her shut her gob 84 ” (CAREY, 2001, p.53), e pizzle , para pênis, como podemos observar em: “ But this pizzle has been very troublesome to you Bill 85 ” (CAREY, 2001, p.121).

Quanto ao universo feminino, são usadas gírias como sheila , nome comum entre garotas irlandesas no século XIX que passou a ser utilizado por homens para referir-se a mulheres, como observamos em “ Some sheila no doubt said she looking towards the home paddock 86 ” (CAREY, 2001, p.229), e também o termo donah , já um tanto obsoleto e que se refere a uma moça ou namorada, como verificamos em “ She’s your donah Joe 87 ” (CAREY,

2001, p.260).

Com relação a tipos de comportamento ou de personalidade, ocorrem expressões como sap , relacionada a pessoas bobas ou fracas, como observamos em: “ Theres no adjectival warrant you sap 88 ” (CAREY, 2001, p.219), ou ainda top dog , que significa líder ou alguém que está em melhor situação, como podemos verificar em: “ You always think yourself a top dog said he 89 ” (CAREY, 2001, 221). Outro desses termos utilizados por Carey é cobber , que quer dizer companheiro ou camarada, como notamos em: “ Whats the story cobber 90 ?”

(CAREY, 2001, p.257).

Entre as gírias utilizadas no romance, há termos de origem britânica que tiveram seu uso bastante difundido em solo australiano. É o caso de expressões como coppers , já citado acima, bloke , palavra de ordem geral para referir-se a um homem, grog , gíria para bebida alcoólica, usada na Austrália desde 1830. Há também termos como shanks’s pony (grafada no romance como shanks’ pony ), usada para andar a pé, como no seguinte fragmento: “ I were

84 Minha mãe mandou que ela fechasse a matraca. 85 Mas esse membro tem causado muitos problemas para você Bill. 86 É uma moça jovem sem dúvida disse ela olhando na direção da cerca da casa... 87 Ela é a sua namorada Joe. 88 Não tem porcaria nenhuma da [sic] mandado seu tolo... 89 Você sempre se acha o maioral comentou... 90 Qual é a história amigo? 159

released out into Ford Street on a sunny March morning I took shanks’ pony home to Eleven

Mile Creek 91 ” (CAREY, 2001, p.166-167). A expressão higgledy-piggledy , que se refere à confusão ou a algo em desordem, ocorre no trecho a seguir: I called cooee but it were long abandoned the walls was rough adzed slabs but inside some houseproud shepherd had plastered the slabs with mud then papered the walls with pages of THE ILLUSTRATED

AUSTRALIAN NEWS not glued all higgledy-piggledy but v. neat 92 ” (CAREY, 2001, p.134).

As expressões de uso freqüente na Austrália incluem também palavrões, como é o caso de mongrel , grande insulto australiano, já obsoleto na Grã-Bretanha, espalhado por toda a narrativa, como em “ You’re spoken for already you mongrel 93 ” (CAREY, 2001, p.233), e bugger , de origem britânica, que pode significar pessoa chata ou, em alguns contextos, pode referir-se a qualquer pessoa, como observamos em “ Isaiah Wright is a mad bugger of course you must know that 94 ” (CAREY, 2001, p.184).

Entre as várias expressões que descrevem a realidade australiana, está a palavra tucker , que significa comida (CAREY, 2001), billabong , originária de uma língua aborígine, que se refere a um braço de rio ou lago que aparece somente na época de chuva, como em “ The

Murray is a maze of swamps and billabongs 95 ” (CAREY, 2001, p.260), ou a palavra cooee , termo de origem aborígine usado como meio de comunicação no sertão australiano, como observamos em “ At this crucial moment come a loud cooee from up the road 96 ” (CAREY,

2001, p.85), ou ainda o termo larrikin , que se refere a jovens de boa índole, independentes, de espírito livre, que dão pouca importância às autoridades, e que às vezes descreve também

91 Fui solto na rua Ford em uma manhã ensolarada de março e ia seguir a pé para casa em Eleven Mile Creek... 92 Chamei por alguém mas a cabana tinha sido há muito tempo abandonadas paredes eram tábuas toscamente desbastadas com enxó mas no interior um pastor orgulhoso de sua casa havia emboçado as tábuas com barro e depois coberto as paredes com páginas do ILLUSTRATED AUSTRALIAN NEWS quase todas coladas desordenadamente mas com m. capricho. 93 Você já é conhecido por isso seu cachorro. 94 Isaiah Wright é um sujeito maluco é claro que você deve saber disso. 95 O Murray é um labirinto de pântanos e afluentes de águas estagnadas... 96 Nesse momento crucial ouviu-se acima da estrada um grito alto e estridente... 160

delinq üentes, como podemos verificar em “ You was always a larrikin said she 97 ” (CAREY,

2001, p.258). A palavra bullocky , termo específico da Austrália e da Nova Zelândia, que se refere ao responsável por levar o gado de um lugar a outro em busca de pastagens, é aproveitado no texto de Carey, como podemos verificar em: “ To me he give a Bowie knife I thanked him but didnt pay very much attention because we had a paying visitor a boozy old bullocky who were playing me at draughts 98 ” (CAREY, 2001, p.60).

Todas essas expressões utilizadas por Peter Carey enriquecem a narrativa, dando ao discurso de Ned um caráter ainda mais coloquial e garantem ao romance, junto ao tema e ao re-aproveitamento de uma figura histórica, um sabor marcadamente australiano.

4.8.2. Os aborígines em A história do bando de Kelly

O reaproveitamento de Kelly tem sido feito de acordo com a versão da história transmitida pelos brancos em detrimento do uso aborígine que se fez da vida do fora-da-lei.

Segundo Susan Martin, o fato de alguns escritores colocarem heróis como Kelly e o explorador Leichhardt, ambos transformados em personagens literários, em uma posição marginal, tem um outro efeito:

Possivelmente, pois, o oposicionismo de Kelly e Leichhardt, sua representação como heróis marginais à ou em oposição à sociedade dominante conservadora mascara sua centralidade aos interesses da ideologia dominante em celebrar formas particulares de masculinidade e brancura. 99 (MARTIN, 2004, p.32)

Para a autora, os argumentos sobre a inferioridade racial irlandesa e seu atraso religioso, muito comuns durante a colonização, marginalizam os irlandeses e os conectam ao

97 Você sempre foi um desordeiro disse ela… 98 Para mim ele deu uma faca Bowie eu agradeci mas não dei muita atenção porque tínhamos um freguês um bode velho bêbado que estava jogando damas comigo. 99 Arguably, then, the oppositionality of Kelly and Leichhardt, their figuration as heroes marginal to or in opposition to conservative mainstream society masks their centrality to the interests of the dominant ideology in celebrating particular forms of masculinity and whiteness. 161

mesmo tipo de discurso racista dirigido aos aborígines. Sobre a alteridade do herói branco de origem irlandesa, ela diz:

A qualidade de irlandês de Kelly é um tipo de negritude “branca” que pode ser transformada em brancura? Eu sugiro que Kelly é uma figura que ainda pode ser transformada em Outro para a identidade australiana e, portanto, inocente das transgressões australianas contra a terra e a propriedade dos aborígines. Ele é quem pune o establishment branco, na verdade, mas que pode ser recuperado por parte deste establishment. Ele é uma forte presença física ─ porque ele representa a diferença que é associada com o corpo na divisão cartesiana ─ criminalidade, negritude, classe operária, catolicismo, feminilidade. 100 (MARTIN, 2004, p.35)

Embora a narrativa de Carey promova uma crítica ao sistema colonial inglês e celebre a vida e o fracasso de uma personagem forte australiana, os aborígines, os que mais sofreram com as atitudes dos ingleses, tanto das autoridades quanto dos degredados, têm pouco espaço no texto. Aqui, a oposição focalizada é aquela entre ingleses e irlandeses ou nativos brancos australianos.

Uma das primeiras menções aos primeiros habitantes do continente ocorre em uma história de Ruivo Kelly e representa a revolta dos aborígines contra a invasão dos brancos, geralmente levada a cabo por grupos pequenos:

Um negro perverso de Sidney de nome Warragul havia formado uma quadrilha constituída por remanescentes de diferentes tribos e meu pai não tinha feito nada contra Warragul mas quando ele chegou ao rio Murray perto de Barnawatha uma chuva de lanças foi disparada dos arbustos e matou o jumento embaixo dele. Meu pai puxou a carabina do coldre da sela e usando com todo o cuidado a pólvora restante conseguiu manter afastada a quadrilha de Warragul até o anoitecer. Em seguida recuou para uma cabana abandonada montou barricadas na porta e nas janelas e imaginou que estava a salvo mas de madrugada ele acordou. O telhado estava em chamas e a cabana cercada por selvagens aos berros. Ele usou o que restava da pólvora para atirar nos rostos dos negros que bisbilhotavam pelas brechas entre os troncos das paredes mas quando a

100 Is Kelly’s Irishness a kind of “white” blackness, transformable to whiteness? I suggest Kelly is a figure who can still be made as Other to Australian identity, and therefore innocent of Australian transgressions against land and the property of Aborigines. He is a punisher of the white establishment in fact, but recuperable to one strand of that establishment. He is a physicalized figure ─ because he represents the otherness that is associated with the body in the Cartesian divide ─ criminality, blackness, working classness, Catholicism, femininity. 162

pólvora acabou ele não tinha mais nada a fazer a não ser esperar a morte e começou a rezar enquanto os negros enfiavam as suas lanças pelas brechas. Pedaços do telhado em chamas já começavam a desabar quando Papai parou de rezar o tempo suficiente para perceber que as lanças só estavam entrando pela parte da frente. Removeu a barricada da janela dos fundos e com os negros vigiando apenas um dos lados de sua pira funerária ele conseguiu sair pelo lado contrário à direção do vento e depois se escondeu durante 2 dias em um tronco oco até que foi encontrado pelo sr. Henry Buckley em pessoa e assim finalmente levado a Gnawarra. (CAREY, 2002, p.24-25)

O uso de aborígines como rastreadores da polícia também é citado no texto. Eles eram os únicos com habilidade para encontrar o bando e, por isso, representavam perigo. Esta situação fica evidente quando Joe, Dan e Steve fogem de um grupo policial que se aproxima do local onde estão:

Além de um renque de eucaliptos havia uma área plana e limpa recoberta de grama e foi onde a tropa se reuniu juntando mais cabeças do que na Hidra havia agora 30 homens todos armados até os dentes. Dan reconheceu o superintendente Nicolson o mesmo que havia prendido Harry Power porém o mais alarmante eram 2 sujeitos negros que estavam conversando com o sup. Crioulos ciciou Steve Hart eu não tenho medo de crioulos. (CAREY, 2002, p.351)

O texto mostra, de maneira breve, como os aborígines eram vistos pelos brancos, com um misto de desprezo e medo. No entanto, este grupo de marginalizados não tem voz, nem a violência contra eles é denunciada ou criticada, como ocorre em outras obras de Carey, notadamente Oscar e Lucinda , em que há a descrição do massacre de um grupo de aborígines, ou Illywhacker , em que o narrador chama a atenção para o fato de a ocupação britânica ter sido pautada em uma mentira: a de que o continente australiano não era ocupado (conceito conhecido, no período colonial, como terra nullius ).

Notamos, portanto, que as semelhanças entre o texto histórico e o literário e o recorte da realidade comum a historiadores e escritores se fazem sentir também no texto de Carey: a linguagem da ficção foi inspirada na carta histórica de Ned Kelly, e os fatos escolhidos para a 163

narrativa corroboram com a crítica ao sistema colonial, embora o faça sob uma perspectiva branca que, mesmo marginalizada, não faz menção ao ponto de vista aborígine sobre a história. Verificamos ainda que a idéia de passado como força modeladora parece influenciar a escrita de textos históricos revisionistas, que apontam para dois fatores: a tentativa de lidar com traumas, e a possibilidade de participar na estruturação da memória coletiva. A re- invenção da história, que tem sido uma tendência na Austrália, chama a atenção para as múltiplas posições que podemos assumir em relação a um mesmo assunto. A posição pós- colonial adotada por Carey nesse romance mostra-se, de maneira mais evidente, nas passagens em que o narrador menciona o degredo, a administração da colônia, o favorecimento dos latifundiários, e os juízes e policiais corruptos, reforçando as marcas que deixaram na alma do australiano.

164

Considerações finais

A análise do romance A história do bando de Kelly , de Peter Carey, levou-nos a constatar que a revisão crítica da História pela Literatura, de acordo com a proposta de Linda

Hutcheon em sua teoria sobre a “metaficção historiográfica”, pode ser aplicada de uma forma muito específica, para realizar uma crítica pós-colonial.

O autor re-aproveita, em seu romance, uma figura histórica — o herói popular Ned

Kelly torna-se personagem principal e narra sua história — mas esse re-aproveitamento é seletivo: o escritor utiliza um ícone cultural e trata de um momento histórico relevante em sua cultura, o que lhe permite criticar alguns aspectos do período colonial em seu país, como o degredo, os desmandos da polícia e dos juízes e a maneira como estes e as leis favoreciam os latifundiários, tornando difícil a vida dos pequenos proprietários de terra. No entanto, Carey omite detalhes que poderiam identificar Ned como desnecessariamente violento, como as ameaças que fazia a informantes da polícia.

Esta pesquisa teve como fundamentação teórica a crítica pós-colonial, que propõe o resgate das culturas nativas relegadas a segundo plano pelo colonialismo e a valorização do hibridismo cultural, da pluralidade de vozes que caracterizam as sociedades atuais e da criatividade que advém dos contatos, conflitos e contradições em relação ao outro, situações vividas e expressas por essas comunidades, em que as identidades dos indivíduos que as compõem são complexas, fragmentadas e provisórias. O livro de Carey, escrito em um contexto pós-colonial, analisado neste trabalho também em um contexto pós-colonial, revela a preocupação do autor com a questão da identidade híbrida australiana — para a qual concorrem, na obra, elementos ingleses, irlandeses e o australiano em início de formação — expressa sobretudo pelo questionamento dos efeitos da administração colonial promovido pela vida e pela voz que dá a Ned Kelly. 165

Durante a colonização, um dos elementos usados para a conquista e dominação de outros povos e construção de impérios foi a língua. As línguas européias, impostas durante a expansão do império que as metrópoles pretendiam construir, passam por um processo de apropriação, uma vez que, quando transplantadas, não correspondem à nova realidade, e necessitam ser adaptadas e transformadas. Os idiomas, que não tem uma essência cultural própria, assumem, dessa forma, um uso particular em um tempo e lugar específicos.

A língua, utilizada para dominar outros povos e impor valores e modos de organização social e intelectual no período da colônia, transforma-se, com o desenvolvimento das sociedades pós-coloniais, em veículos que transmitem a complexidade cultural. A literatura assume uma nova posição como espaço de libertação, de questionamento dessa antiga ordem das coisas — inclusive da idéia de cânone literário — e de reconstrução.

É por meio da língua e da criação literária que o escritor australiano promove sua crítica ao sistema colonial, a partir de personagens que se referem, com freqüência, às idéias de injustiça no tocante ao degredo e ao tratamento dado aos criminosos levados à Austrália, bem como aos desmandos de latifundiários, sempre protegidos por policiais e juízes corruptos. O trabalho com a língua expressa-se ainda no aproveitamento de gírias australianas e expressões de origem britânica de uso corrente no país, que dão ao romance uma atmosfera característica e um tom coloquial, ao mesmo tempo em que lembram que o idioma foi transformado, ou apropriado, para usar um termo da teoria pós-colonial, de forma que pudesse descrever o novo ambiente, tão diferente da Europa, seu local de origem.

Nesta tentativa de analisar o romance, notamos, além da crítica pós-colonial e do sofisticado trabalho com a língua, uma mescla de vozes entrecortadas/ entrecruzadas, que desestabilizam a idéia de narrador confiável, ou mesmo a de um único narrador, contrabalançando, assim, as falas iniciais de Ned Kelly e seu comprometimento em contar a verdade. Por sua vez, a verdade, que, precisamente por suas várias faces, não pode ser encontrada em parte alguma, e, no caso do contato (pós)colonial, nem na margem nem no 166

centro, configura outro ponto de destaque no romance, que é evidenciado sobretudo pelo uso irônico do adjetivo verdadeiro no título original. Este recurso também remete à transformação de Ned Kelly em mercadoria cultural, que acarretou o surgimento de inúmeras versões da história, muitas das quais pretendem ser a verdadeira. O romance de Carey configura, portanto, uma das escritas possível sobre Kelly, à qual ainda serão acrescentadas outras escritas e outras camadas, que tornarão esse ícone nacional e os usos de sua figura mais complexos.

O movimento entre humanização da personagem principal promovido no texto pelo escritor também corrobora com a questão da indústria cultural criada em torno de Ned Kelly e suas várias histórias por vezes conflitantes, pois, embora o escritor tenha tentado atribuir ao jovem um aspecto mais humano, revelando seu relacionamento com os familiares e permitindo à personagem ter uma paixão e uma filha, o fato de reproduzir algumas das características que o tornaram um ícone nacional levam-no de volta à esfera mítica.

Dessa forma, há várias perspectivas de estudos relacionadas à literatura australiana, uma área ainda pouco explorada no Brasil, com possibilidades que vão desde a pesquisa desta e de outras obras de Carey, tanto por meio da crítica pós-colonial quanto por meio de outras teorias, a estudos sobre vários outros autores, de origem australiana, aborígine ou não- australiana, incluindo os imigrantes e seus descendentes, bem como sobre a participação das mulheres na literatura, as discussões sobre cultura e diversos tipos de relação entre escrita e sociedade.

As preocupações com a identidade cultural e com a crítica pós-colonial presentes neste romance relacionam-se também à noção de entre-lugar, isto é, o espaço em que o sujeito pós- colonial híbrido articula diferentes culturas e relações de desigualdade. A partir desse lugar, tanto nós brasileiros quanto os australianos e, entre eles, Peter Carey, tentamos compreender quais são os elementos que compõem nossa identidade. Nessa tentativa, encontramo-nos com 167

sentimentos ambivalentes em relação ao colonizador: isso se deve à contradição inerente ao colonialismo, que proporcionou, ao mesmo tempo, uma parte relevante e considerável de nossa herança cultural, base da qual partem as experimentações e misturas definidoras do pós- colonial, e o enfrentamento dessas mesmas culturas para a formação da nossa.

Certamente, as nações que formamos, Brasil e Austrália, não existiriam como as conhecemos hoje sem os europeus. Por outro lado, os atos contra os povos nativos e o preconceito contra as variantes lingüísticas das colônias constituem parte de nossa memória coletiva. A ambivalência dessa posição também se reflete nos vários discursos veiculados sobre a herança cultural britânica na Austrália: enquanto Peter Carey usa seus romances para denunciar algumas das estratégias coloniais, como o conceito de terra nullius , que desconsiderava a ligação entre os aborígines e o continente, e questionar a relação entre australianos e britânicos, outro escritor australiano, David Malouf, reafirma, em seu artigo

Made in England: Australia’s British Inheritance , os laços que unem ambos os povos, representados pela tecnologia que a Grã-Bretanha levou à Austrália, pela língua, e pelos elementos culturais, tais como as baladas e canções folclóricas e os autores lidos por boa parte dos cidadãos de ambos os países. As relações entre a realidade atual e o que poderia ter sido, ou que havia sido planejado para ser, evidencia-se na afirmação de Malouf: “Quando olhamos para os britânicos vemos tanto aquilo com o que deveríamos começar quanto o que acabamos por não ser. Também vemos o modo como eles nos vêem 101 ” (2003, p.5).

Faz-se necessário aqui apontar alguns fatos: por um lado, a colonização realmente implicou uma melhoria geral na saúde da população local por trazer novos conhecimentos sobre medicina, que continuam sendo atualizados em todas as partes do mundo até os nossos dias; por outro, ela significou uma mudança radical, nem sempre pacífica, de estilo de vida, e de incorporação de valores que antes não faziam parte dessas sociedades, como o do lucro.

101 When we look at the British we see both what we were to begin with and what we have turned out not to be. We also see the way they see us.

168

Ora, o colonialismo não foi um processo homogêneo: acarretou diferenças entre colônias, que podem ser constatadas pela comparação entre países colonizados pela mesma potência, como

é o caso de Austrália, Estados Unidos e África do Sul, por exemplo, além de divergências dentro do próprio império, entre governantes da metrópole e colonizadores, como no caso da

Austrália, cujo tratamento respeitoso aos aborígines estipulado pelo governo não foi seguido à risca.

Tudo isso aponta para os conflitos constitutivos do entre-lugar. Em um mundo no qual literaturas como a brasileira e a australiana ainda ocupam um pequeno espaço e recebem menos atenção comparadas com as produções de países hegemônicos, acreditamos que as relações entre ex-metrópoles e ex-colônias não deveriam ser de superioridade, mas de possibilidades, e de anterioridade temporal, e não de prioridade.

Nossas inquietações e questionamentos a respeito da identidade brasileira (ou das identidades brasileiras, no plural, se pensarmos que, embora os feitos passados e os objetivos comuns unam os habitantes de um país, a nação sempre reúne grupos dominantes e marginalizados com interesses contrários) relacionam-se às angústias no tocante à identidade australiana. A conjunção desigual de forças promovida pela colonização tornou-nos híbridos e enriqueceu-nos com o acesso a várias tradições; no entanto, deixou-nos também a difícil tarefa de lidar com essa desigualdade, comprovar o valor de nossas conquistas e produções artísticas e lutar contra a idéia de cânone. Habitantes eternos do entre-lugar, buscamos compreender, utilizando essa língua antropófaga e criativamente adaptada às nossas circunstâncias, a hibridez de nossa condição.

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Anexo

Mapa da Austrália

Fonte: Almanaque Abril 2005