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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A FORÇA DO ATRITO

Um estudo da música de , a propósito da sua ópera

La vera storia

João Lopes Madureira Silva Miguel

Outubro de 2016

A FORÇA DO ATRITO

Um estudo da música de Luciano Berio, a propósito da sua ópera

La vera storia

João Madureira

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais Históricas,

realizada sob a orientação científica da

Professora Doutora Paula Gomes Ribeiro

Apoio financeiro do Instituto Politécnico de Lisboa, no âmbito do

Programa de Apoio à Formação Avançada de Docentes do Ensino Superior Politécnico, PROTEC 2009.

às minhas filhas,

Teresa e Luísa

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Paula Gomes Ribeiro, pelo apoio incondicional em todas as fases de elaboração deste trabalho.

A Angela Carone, Angela Ida de Benedictis, Luca Logi, e Paul Roberts, pelos materiais e informações prestadas no decurso da minha pesquisa.

Aos docentes meus colegas do curso de Composição da Escola Superior de Música de Lisboa.

À Drª Paula Esperança, pelo seu inigualável humanismo e amizade.

Aos meus amigos Francisco Trovão, Guilherme Dutschke, Jeffrey Scott Childs, João Barrento, João Pereira Coutinho, Manuel Pedro Ferreira, Paulo Pires do Vale, Paulo Sarmento, Rui Miguel Ribeiro, Tomás Maia, e Vera San Payo de Lemos, pela sua generosidade e disponibilidade.

À minha família, em particular os meus pais, pelo seu ânimo e confiança.

A Cristiana Vasconcelos Rodrigues, companhia imprescindível na minha viagem.

RESUMO

O presente trabalho pretende ensaiar uma reflexão crítica sobre a música de Luciano Berio, focando em particular a sua ópera La vera storia, estreada em 1982 no Teatro alla Scala, em Milão. Esta reflexão crítica surge no âmbito da minha actividade de compositor, a partir de preocupações de ordem estética e ética quanto ao fazer artístico, encontrando no caso de Luciano Berio um campo oportuno para a sua consubstanciação. A música de Berio reclama ser estudada através do cruzamento de diferentes saberes, para além do isolamento dos múltiplos aspectos e traços de singularidade que a caracterizam. Porque Berio escreve a sua música, não em nome da exploração, fechada sobre si mesma, de certas possibilidades técnicas, tão pouco em nome de um determinado gosto estético, particularmente sensível na herança musical que cita ou nos poetas e escritores que inclui em algumas das suas obras. Os motivos em que radica o seu fazer musical, com as opções técnicas e estéticas que conhecemos, são determinados por preocupações de ordem ética que não devemos ignorar. Pensamos que é imperativo alargar o quadro de referências teóricas para além da análise musical no sentido mais estrito, convocando o pensamento filosófico de Gilles Deleuze e de Walter Benjamin e o pensamento estético de Italo Calvino para debater as implicações éticas da produção musical beriana. Este objectivo, no entanto, consolida significativamente o entendimento sobre a singularidade do fazer musical de Berio e a pertinência das suas propostas, integrando-se o presente estudo na reflexão já longa e prolixa dos estudos berianos. Por isso, vamos desenvolver de forma sistemática uma reflexão que cruza o aparato conceptual e estético dos nomes acima citados com os traços determinantes da estética de Berio. São eles, nomeadamente, uma nova articulação entre alturas e ritmo; a ubiquidade presente no seu discurso; os comportamentos aditivos e subtrativos que presidem ao seu fazer musical; o carácter múltiplo, e por isso em constante devir, do objecto sonoro beriano; o carácter para-funcional do seu discurso, radicado na articulação entre elementos distintos; e a direccionalidade do seu discurso, resultante da sua articulação. A fricção entre todos estes aspectos leva-nos a falar de uma singular concepção do objecto sonoro, na medida em que nos mostra de forma clara uma postura estética, e sobretudo ética, totalmente emancipada dos muitos espartilhos que tendem a ditar o fazer musical. Se nos habituámos a pensar que a música é a prova de que o uno é múltiplo, com a música de Berio somos levados a ver que o múltiplo é uno. Porque a música de Luciano Berio acolhe e reflecte a espantosa diversidade do mundo em que surge, devolvendo-lhe uma de muitas possibilidades de leitura. É essa a sua verdadeira história, é essa a força do seu atrito.

PALAVRAS-CHAVE: Berio, Deleuze, Benjamin, Calvino, para-funcional, ubiquidade, vectorialidade, transformação, La vera storia. ABSTRACT

This work aims at developing a critical reflexion on Luciano Berio's music, focusing in particular on his opera La vera storia, premiered in 1982 at Teatro alla Scala, in (Italy). This critical reflexion finds its roots in my own activity as composer, where certain issues related to ethical and aesthetic questions in artistic practice find in the case-study of Luciano Berio an opportune field for their development. Berio's music requires an approach that blends different knowledge fields, beyond the isolation of its multiple singular aspects. This is because Berio writes his music neither in the name of the exploitation, closed in itself, of certain technical possibilities, nor in the name of a certain aesthetic taste, particularly sensitive in the musical heritage he quotes or in the poets and writers he includes in some of his works. The motifs underlying under the options of his musical practice are determined by ethical concerns which cannot be ignored. We think it is imperative to enlarge the theoretical frame of reference beyond musical analysis in a strict sense, calling in our reflexion on the philosophical thought of Gilles Deleuze and Walter Benjamin as well as the aesthetic thought of Italo Calvino in order to debate the ethical implications of Berio's musical production. This objective, though, noticeably consolidates an understanding of the singularity of Berio's practice and the relevance of its proposals, integrating this study in the already long and prolific reflexion in the field of Luciano Berio studies. In the following pages a systematic reflexion is to be carried out by crossing a conceptual and aesthetic apparatus, drawn from Deleuze, Benjmain and Calvino, with the defining traces of Berio's aesthetics. These are, namely, a new articulation between pitches and rhythm; the ubiquity of his speech; the additive and subtractive behaviour that presides over his musical practice; the multiple character, and for that reason in permanent becoming, of his sound object; the para-functional character of his practice, based on the articulation of uneven elements; and the vectorial character of his discourse. The friction among all these aspects leads us to speak of a unique conception of the sound object in Berio's music, as it clearly reveals an aesthetic and above all ethical posture which is completely emancipated from the many constraints which tend to dictate musical composition. If there is a general consensus as to thinking that music proves that the "one" is multiple, with Berio's music we are lead to consider the multiple as one. Because Luciano Berio's music receives and reflects the amazing diversity of the world in which it emerges, giving in return one of many possible readings.That is its (their) true story, that is the strength of its (their) friction.

KEY-WORDS: Berio, Deleuze, Benjamin, Calvino, para-functional, ubiquity, vectoriality, transformation, La vera storia. ÍNDICE

Introdução Geral ...... 1 A nossa investigação ...... 1 A música de Luciano Berio ...... 7 La vera storia: o nosso caso de estudo ...... 11 Esta dissertação...... 20

I Pensar a Música de Berio ...... 25 Uma ponderação filosófica a partir de Gilles Deleuze ...... 25 Multiplicidade como unidade ...... 30 Rizoma ...... 33 Diferença e repetição ...... 38 Regime de signos ...... 44 Sensação ...... 47 Desterritorialização e Reterritorialização...... 52 Ciência Menor ...... 58

II A Prática Musical de Luciano Berio ...... 63 Contextualização ...... 63 La vera storia ...... 71 O objecto sonoro beriano ...... 76 Uno ...... 76 Múltiplo ...... 94 Flexível e Mutante ...... 122 Para-funcional e Mutante ...... 135 Estruturas simples ...... 144 1. Estruturas singulares ...... 144 2. Estruturas pseudo-binárias ...... 145 3. Estruturas circulares ...... 150 4.Estruturas sequenciais ...... 151 Estruturas combinadas ...... 152 1. Estruturas múltiplas por sobreposição ...... 153 2. Estruturas múltiplas por sucessão ...... 154 3. Estruturas múltiplas por mutação ...... 155 4. Estruturas múltiplas através de encaixe ...... 155 Estruturas impuras ...... 157 Suspenso e Não Centrado ...... 166 III A consciência do acontecer e a concepção da obra de arte ...... 171 A convulsão do devir histórico ...... 174 Conceber a obra de arte ...... 180

IV O que pode a música? ...... 199 Multiplicidade ...... 204 Leveza ...... 208 Rapidez ...... 211 Exactidão ...... 215 Visibilidade ...... 220 O lugar da arte ...... 230

Bibliografia ...... 237 Obras de Luciano Berio ...... 237 Textos de Luciano Berio ...... 238 Entrevistas ...... 238 Artigos e depoimentos ...... 239 Livros ...... 240 Notas de autor ...... 240 Literatura crítica sobre Luciano Berio ...... 241 Literatura sobre La vera storia ...... 248 Bibliografia geral ...... 251

Lista de Ilustrações ...... 263

Anexos ...... 266 Le origini di La vera storia si perdono nella mia storia personale, che è sempre stata attraversata dalla musica popolare (Quattro canzoni popolari, Folk Songs, Questo vuol dire che…, Coro, Il ritorno degli Snovidenia) e dal bisogno di scoprire ulteriori funzioni implicite in uno stesso fatto musicale (Chemins I-V e Corale). La vera storia è un po’ la sintesi di queste mie due preoccupazioni che tendono, assieme, alla ricerca di uno spazio musicale e drammaturgico aperto ma non vuoto, uno spazio cioè che possa essere abitato da figure e da protagonisti concreti sì ma anche mutabili: uno spazio che non sia abitato da fantasmi e da personaggi prigionieri di un libretto. Luciano Berio, Opera e no, nota de autor a La vera storia, publicada no programa da estreia no Teatro alla Scala, em Milão, em Março de 1982

INTRODUÇÃO GERAL

Uma afecção, que é paixão, deixa de ser paixão no momento em que dela formamos uma ideia clara e distinta. (Espinosa, Ética, V, Prop. III)

A nossa investigação

Com a presente dissertação debruçamo-nos sobre alguns aspectos da música de Luciano Berio, incidindo mais especificamente sobre a sua ópera La vera storia (estreada em 1982), que consideramos um eixo fundamental na sua produção musical, na medida em que, como veremos adiante, repensa um conjunto de questões da sua anterior prática musical, ao mesmo tempo que se abre à exploração de aspectos que vêm a cunhar a sua obra posterior. O presente estudo parte também da constatação de que não é possível encarar a criação musical beriana sem tomarmos em consideração aspectos filosóficos e histórico-políticos que subjazem à vertente puramente musical e estética que enforma a sua prática composicional, clarificando-a. Se, há cerca de 16 anos atrás, nos dedicámos ao estudo comparativo de aspectos morfológicos e sintácticos na obra de Luciano Berio, de Karlheinz Stockhausen e de Pierre Boulez (no contexto da nossa formação na Escola Superior de Música de Colónia1), hoje interessa-nos aprofundar a nossa reflexão sobre a música de Luciano Berio de um ponto de vista mais abrangente, reflexão esta que decorre, também, das preocupações fundamentais à nossa própria actividade de compositor.

O exercício de leitura da prática musical beriana a partir de considerações filosóficas e histórico-políticas (no sentido lato), que de seguida apresentamos, não estabelece qualquer hierarquia de parâmetros, tão pouco pretende fechar-se sobre si mesmo, mas tem como objectivo fundamental dar a ver a relação estreita que a música

1 MADUREIRA, João, Die Retorik der Musik - Vom Material zur Form [A Retórica Musical - Do Material à Forma], Dissertation zur Erlangung des Diploms "Künstler im Fach Komposition" der Hochschule für Musik Köln, 2000.

!1 de Luciano Berio tece com o mundo que a rodeia, uma relação de atrito e não de tradução ou de redução. Ao considerar a música de Berio, estamos perante um campo não hierárquico de mútua influência de diversas vertentes da acção humana, que vêem no atrito que a sua relação gera a possibilidade da sua consubstanciação, integrando um todo mutante, e por isso não completamente objectivável. Teremos ocasião de demonstrar, ao longo dos capítulos que se seguem, como La vera storia é um exemplo matricial desta relação. Com esta aproximação, estamos em crer, sobretudo, que o nosso contributo para os estudos berianos se alarga a dimensões ainda esparsamente afloradas. O que nos interessa sublinhar é: se é verdade que a filosofia (e, muito concretamente, o pensamento de Gilles Deleuze) contém elementos que nos permitem entender o objecto musical beriano de uma perspectiva mais vasta e não estritamente musical, também é verdade que a criação musical de Berio se constitui enquanto modo de pensar filosoficamente o mundo. Da mesma maneira, se a criação musical de Berio é fortemente marcada pelas ideias e acontecimentos políticos do seu tempo – é conhecida a sua estreita ligação aos movimentos do Maio de 68 ou ao Partido Comunista Italiano2; e La vera storia remete, em parte, para os acontecimentos de violência e do terrorismo que nos anos 70 assolaram Itália3 –, também constitui uma fonte concreta para se pensar politicamente o mundo num sentido alargado, ou seja, no quadro de uma postura perante a história, o tempo, que pretendemos aprofundar adiante, socorrendo-nos do pensamento de Walter Benjamin. Não se espere, contudo, que vamos proceder, nesta dissertação, a uma leitura do objecto artístico beriano a partir de um aparato conceptual exterior ao mesmo; o que nos interessa é dar a ver como a música de Luciano Berio dialoga de forma aprofundada com certos nomes de referência do pensamento filosófico do século XX, como acontece com Deleuze e Benjamin. Decerto não se esgota a estes

2 Cf. HANDER-POWERS, Janet, Strategies of Meaning: A Study of the Aesthetic and the Musical Language of Luciano Berio, Diss. Doutoramento em Music / Music Theory, Faculty of the Graduate School University of Southern California, Julho de 1988, p.46. 3 Cf. BRÜDERMANN, Ute, “Gewalt und Terror in La vera storia - «specchio d'un' epoca»”, in Das Musiktheater von Luciano Berio, Frankfurt/M., Peter Lang 2007, pp.333-338; DI LUZIO, Claudia, “Looking back on La vera storia. Critical and Documentary Introduction”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 - De «Passaggio» à «La vera storia», dir. de Giordano Ferrari, : L'Harmattan, 2016, p.424-425.

!2 nomes as possibilidades deste diálogo4, mas o nosso percurso de investigação encontrou neles a oportunidade de consubstanciar certas questões que nos são particularmente caras na nossa actividade de compositor. Deleuze, nomeadamente, dispõe o seu pensamento de forma aberta e em constante processo de actualização, sem estabelecer quaisquer hierarquias entre os conceitos que gera, nem tão pouco os fechar em si mesmos, o que lhes dá uma faculdade excepcional de se adaptarem aos fenómenos que tenta ler. De resto, não é inédita a aproximação do pensamento deleuziano à reflexão musicológica: os trabalhos recentes de Ronald Bogue, de Nick Nesbitt com Brian Hulse, de Ian Buchanan com Marcel Swiboda e de Edward Campbell consolidam de forma gratificante o nosso fundamento de fazer encontrar o pensamento de Gilles

Deleuze com a prática musical beriana5. Benjamin, por seu turno, mostra uma capacidade inaudita de pensar de modo orgânico, estabelecendo elos de sentido onde menos esperamos, e abrindo o nosso olhar a camadas de significado que, em boa verdade, estão presentes, se bem que por desvelar, nos fenómenos que lê.

É fundamental clarificar, portanto, qual a importância deste trabalho de investigação para a nossa actividade de compositor, ou seja, esclarecer com que postura e fundamentos nos aproximamos das questões trabalhadas nesta dissertação. É incontornável a encruzilhada em que necessariamente nos encontramos quando ambicionamos ler, de um ponto de vista teórico e de forma sistemática, a música de um

4 Por exemplo, o exercício de análise semiótica desconstrucionista, tal como o pensamento pós-estruturalista dela decorrente, levados a cabo por Jacques Derrida (1930-2004), assim como a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur (1913-2005), com todo o seu aparato conceptual de leitura que, sendo gerado da teoria narrativa, serve perfeitamente a análise musical, são referências a nosso ver importantes para se aprofundar a leitura da música beriana de um ponto de vista estético e sobretudo ético. Não é por acaso, de resto, que Susanna Pasticci, de cujo trabalho falaremos adiante nesta apresentação, escolhe entre as suas leituras de apoio alguns textos matriciais do pensamento de Paul Ricoeur (cf. adiante a secção “Esta dissertação”), que Paulo Pires do Vale apelida oportunamente de “estética hermenêutica”, descrevendo com minúcia os traços da mesma, a partir da experiência estética que só a obra de arte veicula, dando a ver uma verdade que o discurso filosófico só pode tentar esclarecer (VALE, Paulo Pires do, “Para uma estética hermenêutica. Notas sobre a essência e a função da obra de arte em Paul Ricoeur”. Estudos, N. S. 4 (2005), pp.311-322). 5 Cf. BOGUE, Ronald, Deleuze on Music, Painting and the Arts, New York and London: Routledge, 2003; HULSE, Brian, Nick Nesbitt (ed.), Sounding the Virtual. Gilles Deleuze and the Theory and Philosophy of Music, Surrey, Burlington: Ashgate, 2010; HULSE, Brian, “A Deleuzian Take on Repetition, Difference, and the ‘Minimal’ in Minimalism”, acessível em: http://www.operascore.com/ files/Repetition_and_Minimalism.pdf [consultado em 3 de Fevereiro de 2010]; BUCHANAN, Ian, Marcel Swiboda, Deleuze and Music, Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004; CAMPBELL, Edward, Music after Deleuze, London, New Delhi, New York, Sydney: Bloomsbury, 2013. Veja-se ainda a transcrição da sessão de Gilles Deleuze sobre música (3/5/1977), integrada nos cursos que Gilles Deleuze deu em Vincennes entre 1971 e 1977: http://www.webdeleuze.com/php/texte.php? cle=4&groupe=Anti%20Oedipe%20et%20Mille%20Plateaux&langue=1

!3 compositor, obrigando-nos, com isso, a sair do habitat natural em que nós próprios vivemos. Não é o caso de não ponderarmos diversas questões caras à teoria composicional e musicológica, simplesmente o olhar não pode deixar de ser um olhar a partir de dentro, inevitavelmente subjectivo, contaminado pela própria actividade de compositor, mais a mais quando temos como caso de estudo um compositor muito próximo da nossa sensibilidade estética. Vale a pena citar a resposta que Italo Calvino dá a Maria Corti, numa entrevista dada em 1985 (o ano da sua morte), quando esta aponta para a feliz convivência, ou “simbiose”, entre reflexão teórica e actividade criativa em Calvino:

Não me julgo porém com uma verdadeira vocação teórica. O divertimento de experimentar um método de pensamento como um gadget que impõe regras exigentes e complicadas poderá coexistir com um agnosticismo e empirismo de fundo; o pensamento dos poetas e dos artistas, creio que funciona quase sempre desta maneira. […] O rigor da filosofia e da ciência, sempre o admirei e amei muito; mas sempre um tanto de longe.6 Esta dissertação não apresenta, portanto, uma análise musicológica exaustiva de um caso particular da história da música erudita do século XX, nomeadamente dentro do campo operático. De resto, no percurso de leituras que viemos fazendo a propósito da investigação a que nos dedicámos, deparámos, a dada altura, com alguns enunciados de Luciano Berio sobre a análise musical, que foram suficientemente significativos para nos interpelar na nossa tarefa, ao mesmo tempo que se revelavam definidores, pela proximidade que deles sentimos, da postura que assumimos neste trabalho e com que expomos a reflexão nesta dissertação. São enunciados que se prendem com a última das lições de Harvard que Berio apresentou em 1993-94, e que está publicada naquele que consideramos ser o seu mais denso, e mais rico, conjunto de reflexões acerca da música e da sua recepção por parte do público em geral, mas também por parte dos estudiosos da música contemporânea7. Aí, o ensaio “Poetics of Analysis”8 tece a dada altura uma

6 CALVINO, Italo, “Entrevista de Maria Corti”, in Um Eremita em Paris. Páginas Autobiográficas, trad. de José Colaço Barreiros, Lisboa Teorema, p.250. 7 BERIO, Luciano, Remembering the Future, Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2006. 8 Ibidem, pp.122-141.

!4 ideia que importa reportar: Luciano Berio afirma que qualquer análise completa ou incompleta de qualquer obra é sempre, no caso dos compositores, uma auto-análise:

[…] composers will not be able to help projecting themselves, their own poetics, into the analysis of the work. The composer reveals himself on the couch of someone else's work […] the chief analytical instrument at the composer's disposal will always and in any case be his own poetics.9 É, portanto, a partir da experiência prévia de compositor que tecemos a reflexão que expomos nesta dissertação. Não pretendemos, no entanto, apenas esclarecer a nossa posição face à obra de Luciano Berio e ao conjunto de questões que evidencia. Pretendemos, também, pensar Berio em contexto, fazendo sobressair o que a Berio “pertence” no labirinto que é a produção musical da segunda metade do século XX, da qual somos, nós também, herdeiros e contemporâneos. Em primeiro lugar, porque pensamos que a fecundidade das questões levantadas pela busca beriana aparece na obra de outros compositores, e em segundo lugar, porque pensamos que não poderemos avaliar correctamente a deriva da obra de Berio se não a enquadrarmos num todo mais vasto. Por isso, não hesitaremos em chamar à colação a obra de outros compositores sempre que a sua posição contribua para o esclarecimento do lugar da música de Luciano Berio. Não se creia, contudo, que ao convocarmos outros compositores para pensarmos a música de Berio, façamos um levantamento exaustivo do contexto histórico e cultural em que esta surge10. Gostaríamos, em vez disso, de referir uma ideia fundamental do próprio Luciano Berio quando pensa a poética da análise e a natureza da obra de arte musical. Com efeito, para Berio devemos sempre pensar cada obra de

9 Ibidem, p.125. 10 Mesmo em trabalhos bem aprofundados e sistemáticos sobre a música de Luciano Berio, como por exemplo o excepcional contributo de Ute Brüdermann sobre a sua música teatral (op. cit.), este esforço de síntese e enquadramento é uma impossibilidade. Veja-se o longo capítulo dedicado ao panorama da sua produção teatro-musical, entre ideias de projectos e projectos cumpridos (“Musitheaterwerke und -projekte – ein Überblick”, op. cit., pp.21-215), e logo percebemos a s dificuldades e riscos de tal empresa. Ute Brüdermann cingiu-se a um trabalho sustentado na documentação existente no espólio, reservando muito pouco espaço para uma contextualização de todo este percurso beriano no tecido da produção musical do seu tempo. Também Pierre Boulez, num texto que publica num volume de homenagem a Luciano Berio dirigido por Enzo Restagno e publicado em 2000, fala sintomaticamente de “questões geracionais” ao tentar abraçar o tempo (histórico) que a sua música e a música de Berio atravessam, num difícil exercício de balanço que começa por definir como ilusório (“Questioni di Generationi”, in Sequenze per Luciano Berio, a cura di Enzo Restagno, Milano: Ricordi / Fondazione Umberto Micheli, 2000, pp.19-24).

!5 arte – e em específico a obra de arte musical – enquanto Texto11, que não deve ser encarado isoladamente, mas sim como sendo feito de outros textos:

A text is always a plurality of texts. Great works invariably subsume an incalculable number of other texts, not always identifiable on the surface – a multitude of sources, quotations, and more or less hidden precursors that have been assimilated, not always on a conscious level, by the author himself.12 A abertura à obra de outros compositores, que vem do facto de não podermos considerar as obras de Luciano Berio senão enquanto textos compósitos, fez-nos, por outro lado, perceber que as questões teóricas e filosóficas levantadas pelo seu legado – e sobre as quais nos propomos reflectir de seguida – ultrapassam, em muito, o conjunto de obras efectivamente compostas por Berio. Referimo-nos a todo o inesgotável universo de músicas que nos circunda, como, por exemplo, o rock, o pop e o jazz nossos contemporâneos, mas também à música de tradição popular e clássica europeia, e a todo o universo de músicas pertencentes a outros tempos e espaços geográficos que não o central-europeu, como o originário da ilha de Bali, o chinês, o indiano, o árabe, o afro-cubano, o espaço ibérico ou o espaço africano. Podemos verificar como a produção de Berio, apesar de circunscrita a um círculo geográfico e histórico do qual ele faz necessariamente parte, nos permite, no entanto, encarar legitimamente um todo mais vasto, com base no seu pensamento musical e no recurso ao pensamento dos dois nomes a que já aludimos acima: Gilles Deleuze, Walter Benjamin. Por “pensamento musical” referimo-nos à sua prática musical e não aos seus escritos sobre a música, que embora sejam definitivamente operativos de sentido na exposição da nossa reflexão, se pautam, a nosso ver, pelo seu carácter parcimonioso, evasivo e assistemático13.

11 Ao longo de Remembering the Future Berio não se cansa de referir a sua concepção da música enquanto Texto. Cf. BERIO, Luciano, op. cit., pp. 3, 4, 5, 8, 14, 49, 126, 132, e 134. 12 Ibidem, p.126. 13 Cf. a recente edição de todos os textos escritos por Berio sobre a música: BERIO, Luciano, Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, Intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013.

!6 A música de Luciano Berio

A música de Luciano Berio está entre a consideração de vertentes que subjazem à música de um John Cage, à música de um Pierre Boulez e à música popular ou tradicional. Paralelamente, a afinidade com Italo Calvino – o libretista de La vera storia – é evidente. Se pensarmos nas Cosmicómicas14, por exemplo, e no rigoroso exercício de antropomorfização dos relatos científicos cosmológicos, astronómicos, geológicos e biológicos, estamos perante uma mesma relação de atrito que, na música de Berio, vemos entre o popular e o erudito, pondo em causa visões internas destes postulados. Por seu turno, se na música de John Cage encontramos a consciência da estrutura subjacente ao material musical, na escrita de Italo Calvino este mesmo pendor autoreflexivo está presente, nomeadamente ao eleger o conto como forma matricial da sua obra — mesmo em obras mais extensas, como por exemplo Se numa noite de inverno um viajante15, ou As cidades invisíveis16, detectamos esta vertigem para a narrativa curta, sempre recomeçada e re-ensaiada. Finalmente, a música de Pierre Boulez aproxima-se da escrita de Italo Calvino pelas múltiplas formas que este último encontra de fazer proliferar um material a partir das suas características internas. Retornemos a Cosmicómicas para verificarmos como cada postulado científico citado no início de cada conto é explorado até às suas últimas consequências, afastando-se assim de uma antropomorfização ingénua, para ser encarado na sua essência. O que distingue, quanto a nós, a música de Berio – tal como a escrita de Calvino – é a consciência simultânea destes diferentes aspectos: à consideração das características internas de um material, tão idiomática num Pierre Boulez, junta-se a capacidade de encarar este mesmo material num contexto mais vasto, e portanto fora de si, tão própria de um John Cage. Esta é uma marca global da música de Luciano Berio, cujos traços específicos e cujas implicações profundas tentaremos descrever ao longo da presente dissertação. Como veremos, Italo Calvino será o terceiro nome a juntar aos de Deleuze e de Benjamin na nossa reflexão.

14 CALVINO, Italo, Cosmicómicas, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1993. Mais recentemente, Todas as Cosmicómicas, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 2009. 15 CALVINO, Italo, Se numa noite de inverno um viajante, trad. de Mº de Lurdes Sirgado Ganho e José Manuel de Vasconcelos, Lisboa: Vega, 1993. 16 CALVINO, Italo, As cidades invisíveis, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1996.

!7 Devemos encarar a poética de Berio de uma forma que nos leve a compreender a sua posição na história da música tanto temporal como geograficamente, e assim a distinguir as ideias resultantes do seu legado musical face às suas obras em particular. Pensamos que esta é a marca das grandes obras: indicar caminhos que as ultrapassam. Recorde-se, a este propósito, as palavras de David Osmond-Smith sobre a relação de Berio com Dallapiccola:

In [Dallapiccola’s] scores, Berio found a striking demonstration of the generative impetus that serial matrices can give to melodic invention. But he was never greatly enthralled by the impeccable musical geometries of the Webernian tradition ... Berio took on board the exigencies of serial orthodoxy only in as much as they suited his creative needs17. Tal como Berio viu nas partituras e materiais de Dallapiccola mais possibilidades de expressão do que as que efectivamente foram esgotadas por aquele que foi seu professor em Tanglewood (USA), podemos hoje, também, imaginar novos caminhos e proliferações para as suas ideias. Refira-se, a este propósito, que a linguagem de Luciano Berio resiste a uma classificação clara: é uma música nem tonal, nem atonal. Porque é as duas ao mesmo tempo! Consequentemente, pode praticar o convívio de linguagens distintas, pode servir como pivot entre “linguagens” diferentes, como por exemplo tonais, atonais livres, dodecafónicas, seriais e modais, ou simplesmente resultar da sua sobreposição. É uma música por vir: uma música em devir quanto à sua própria classificação.

Para além das características que acabamos de mencionar, o imperativo de multiplicidade que caracteriza as obras de Berio tem enormes consequências no devir musical para além da produção beriana. Poderá, por exemplo, conduzir a uma diversificação dos próprios materiais no interior de cada uma dessas linguagens. Uma diversificação de objectos, entre os quais se incluem o ruído, e uma enorme gama de dissonâncias e consonâncias, em que se incluem as oitavas, no extremo oposto. E para além disto, à sua semelhança, a prática musical de hoje pode obedecer àquilo que François Bernard-Mâche designa por “universais da música”18 e, através desses mesmos

17 David Osmond-Smith, Berio, Oxford/ New York: Oxford University Press, 1991, p. 4. 18 Cf. MÂCHE, François-Bernard, Musique au Singulier, Paris: Éditions Odile Jacob, 2001. Edição digital EAN: 978-2-7381-8037-7.

!8 universais, ter a ousadia de reunir o diverso. Se em Johann Sebastian Bach o uno via a sua possibilidade de existir no seu desdobramento em múltiplas facetas, em Luciano Berio a irredutibilidade do múltiplo dá a ver uma essência surpreendentemente una. Não se trata aqui de uma mera inversão formal de termos. Como veremos, a multiplicidade em Berio tem consequências mesmo na forma como se olha o passado, dando a ver o múltiplo que habita o que sempre pensámos como uno19. Porque o facto de Berio ter descoberto a possibilidade de constituir um todo uno a partir de materiais distintos20 inaugura de forma definitiva novos modos de encarar o fenómeno musical. E porque o facto de o mesmo Berio ter reconhecido nesses materiais o factor essencial da modernidade que eles continham, que é o de darem corpo à multiplicação de pontos de fuga, consubstanciada por exemplo na multiplicação de tónicas21 musicais, convida à consideração dessa mesma multiplicidade num nível sonoro mais vasto. Ou ainda porque a constituição de uma gramática de funçõess evolutivas por parte de Berio resulta inevitavelmente dos seus esforços composicionais. Uma evolução que poderemos levar ao ponto da destruição do seu material, rumo a uma simplicidade habitualmente ausente na sua obra. Tal como poderemos estabelecer a possibilidade de um continuum entre passado e presente, o popular e o erudito; ou experimentar o redimensionamento da noção de autor; ou ensaiar a diluição de certas fronteiras a partir da possibilidade de ser atonal com escalas modais e a possibilidade de construção de uma sintaxe em construção; ou ainda de verificar a possibilidade de consonância, de peso harmónico e consequentemente de polaridade num contexto mais vasto.

A abordagem de tais características leva, naturalmente, à aproximação a questões como a da ahistoricidade, a da fricção entre linguagens, e com elas a questão da existência de um sentido e significado musicais, a questão da operacionalidade de certos conceitos filosóficos e políticos para a composição e, finalmente, a abordagem daquilo que podemos designar de condições para a liberdade de criação e de audição.

19 Berio não está só neste aspecto; também na obra de um György Ligeti e de um Wolfgang Rihm vemos uma mesma mundividência. 20 O próprio Luciano Berio fala desta busca em “Formations”: “I personally was busy looking for harmonic coherence between diverse materiais” (in Remembering the Future, op. cit., pp.17-18). 21 Ainda Berio: “An essential factor of modernity has always been its ability to modify perspectives, to cancel or multiply the vanishing points, the "tonics" that indicate the "right" path” (in Remembering the Future, op. cit., p.22).

!9 Porque a enorme admiração que sentimos face à obra de Luciano Berio – pensamos nas suas Sequenze e Chemins, nas suas Folksongs, na sua Sinfonia, em Coro, nas suas obras electro-acústicas, em Points on a curve to find, no seu legado operático, entre tantos outros exemplos que constituem um vasto catálogo musical – não deve impedir-nos de ver as consequências incontornáveis do seu pensamento musical. São estas consequências que nos propomos explorar nesta dissertação, sem ter, contudo, quaisquer pretensões de sermos exaustivos. Porque, como dissemos atrás, a marca da grande arte inevitavelmente ultrapassa e se estende muito para além das obras que lhe deram origem.

Estamos, pois perante a constatação da impossibilidade e da impertinência de qualquer análise baseada no isolamento dos seus constituintes e no esforço de derivação a partir de cada um deles, de toda e qualquer novidade sonora que os habita. Porque essa novidade vem necessariamente de fora da obra, e mais ainda, de fora do compositor, porque o acto de compor é sempre um acto de estabelecimento de relações inauditas com, e entre, textos pré-existentes. É o próprio Berio que nos diz, em “The Poetics of Analysis”:

There are cases in which analysis is brought to bear on experiences which do not easily lend themselves to linear and numerical description. In such cases the creativity of the analyst may experience some difficult moments, especially when dealing with something that has no immediate meaning (a sound doodle or an accidental and indecipherable noise) but which can be made to mean something.22

22 BERIO, Luciano, Remembering the Future, op. cit., p.130.

!10 La vera storia: o nosso caso de estudo

Composta entre 1977 e 1980, e estreada em Março de 1982 no Teatro alla Scala, em Milão, a ópera La vera storia – por Luciano Berio denominada de “azione musicale” – é a segunda das cinco óperas que integram um conjunto vasto de peças que se consideram parte do recentemente estudado “teatro musical de Luciano Berio”23. Com libreto de Italo Calvino e de Luciano Berio, a ópera estrutura-se em duas partes, constituindo a segunda parte um eco da primeira, na medida em que os seus elementos musicais e textuais – distribuídos por diversos momentos que, numa leitura superficial, se ligam a um código operático relativamente comum, com alusões a Verdi (a ópera Il Trovatore, nomeadamente, é um modelo de referência), com duetos, trios e arie a compor a narração de uma série de episódios, com personagens centrais e secundárias contracenando no meio da multidão – são, na segunda parte, como que desmantelados e dispostos num conjunto de “cenas” sem progressão narratológica aparente, fazendo no entanto sobressair outras camadas de sentido, inauditas, da história ou histórias narradas anteriormente. Na sua nota de autor sobre La vera storia, sintomaticamente intitulada “Opera e no”, Berio diz, oportunamente, que a Parte II “pensa” a Parte I24. Claudia di Luzio sublinha a predominância do trabalho musical sobre o texto na sua segunda parte:

Thereby they are transposed reflexively in a virtual musical-dramaturgical formation predominantly determined by music and subversive relationships of space and time25. Diríamos que La vera storia, a partir do seu título, mas também na sua concretização textual e sobretudo musical, trabalha de modo muito pertinente e aprofundado o próprio sentido da história. Entre a primeira e a segunda parte não há só

23 Falamos das seis jornadas de estudos sobre o teatro musical de Luciano Berio, que tiveram lugar em Paris e Veneza entre 2010 e 2013, e cujos contributos foram muito recentemente coligidos numa publicação em dois volumes: Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 - De «Passaggio» à «La vera storia»; Tome 2 - De «Un re in ascolto» à «Cronaca del Luogo», dir. de Giordano Ferrari, Paris: L'Harmattan, 2016. 24 BERIO, Luciano, “Opera e no”, [nota de autor sobre La vera storia], in Scritti sulla musica, op. cit., p. 267. 25 DI LUZIO, Claudia, “Looking back on La vera storia. Critical and Documentary Introduction”, op. cit., p.412.

!11 um jogo reflexivo de subversões, no sentido das palavras de Di Luzio26 acima citadas, mas, mais do que isso, um jogo de espectros, uma magistral ponderação sobre o simulacro que é a história — não é só a Parte II que, aparentemente de contornos menos nítidos, nos revela um lugar de verdade que na Parte I não se vê; também a Parte I, na sua concretude inabalável, se revela uma ilusão ou “fantasmagoria” (inspirando-nos nas palavras de Berio na sua nota de autor); e no entanto oferece à Parte II toda a matéria que a faz, textual e musicalmente, ao mesmo tempo que, nesta segunda parte, se esvazia na sua superfície de nomes, identidades, gestos nítidos e acções. E, se podemos alinhar esta construção de simulacros no “ar dos tempos”, ou seja, no próprio contexto de produção artística de Berio e de Calvino – que poderia levar a nossa reflexão para a equação sobre uma estética pós-moderna ou uma “nova modernidade”27 em Berio (e em Calvino) – tal não é, contudo, a nossa intenção. Tão pouco pretendemos prolongar o já profundo debate sobre a herança operática e dramatúrgica de Berio – e, só mesmo para a situar em três nomes, convocamos Giuseppe Verdi, Richard Wagner e Bertolt

Brecht28 – inegavelmente determinante para entendermos algumas opções de carácter

26 Juntamente com David Osmond-Smith e Ute Brüdermann, Claudia di Luzio está entre os nomes que têm contribuído para a história genética de La vera storia, entre outras obras teatrais de Berio. Este trabalho tem vindo a dedicar-se a questões não só de ordem genética e monográfica, incluindo os estudos sobre a recepção desta obra, mas também de ordem genológica, nomeadamente quanto à própria reflexão que esta obra faz sobre a ópera, ou sobre a acção musical, ou sobre o teatro musical, e ainda sobre questões dramatúrgicas, que, como veremos, não são directamente chamadas à ponderação que fazemos sobre La vera storia nesta dissertação, mas que naturalmente são vitais ao estudo de base sobre esta obra. Destacamos, sobre La vera storia, os seguintes trabalhos: antes de mais, o contributo ímpar de BRÜDERMANN, Ute, Das Musiktheater von Luciano Berio, Frankfurt/M., Peter Lang 2007, onde se conceptualiza sobretudo o conceito de “Metatheater” quanto à obra de Luciano Berio, em particular La vera storia; depois, os contributos igualmente seminais de OSMOND-SMITH, David, “Berio's Theatre”, in Berio, Oxford: Oxford University Press, 1991, pp.90-118; “La vera storia”, in Autori Vari - Berio, a cura di Enzo Restagno, Torino, Edizioni di Torino, 1995, pp.88-97; ‘Nella festa tutto’? Structure and Dramaturgy in Luciano Berio's ‘La vera storia’, COJ, ix/3, 1997, pp.281–94; finalmente, o trabalho de DI LUZIO, Claudia, “Entstehungsgeschichte der Werke [sobre La vera storia]” [pp.118-131] e “La vera storia: Oper ja und nein” [pp.259-299], in Vielstimmigkeit und Bedeutungsvielfalt im Musiktheater von Luciano Berio, Mainz: Schott 2010. 27 A expressão é de Luciano Violante, num texto sobre Berio (“Breve viaggio intorno alla musica di un compositore amico”, in Sequenze per Luciano Berio, op. cit., pp.271-273 (também disponível em: http:// www.lucianoviolante.it/index.php?option=com_content&task=view&id=519&Itemid=26). 28 Não deixa de ser sintomático o facto de Berio convocar Wagner e Brecht na sua reflexão sobre Verdi, escrita poucos anos antes de compor La vera Storia: “Verdi?” [1974], in Scritti sulla musica, op. cit., pp. 121-128.

!12 dramatúrgico, libretístico e musical em La vera storia29. Também não serão tema aprofundado nesta dissertação as questões igualmente pertinentes de teor histórico-social e político que as histórias de La vera storia encenam30.

Interessante é, contudo, sublinhar que, pese embora o facto de Berio fazer de Il Trovatore um modelo a partir do qual concebe a sua “azione musicale” – e a literatura crítica traça a fundo essa mesma relação, uma relação motivada, muito provavelmente, pela instrumentalização de que este mesmo modelo poderia ser alvo face à gestão, por Berio, do horizonte de expectativa do público –, esta escolha não nos impede de ver para além da herança verdiana e de fazer remontar os motivos e temas abordados na Parte I a uma matriz cultural de fundo, que diríamos milenar e transversal a todas as artes e que arranca da circunstância espacio-temporal esses mesmos episódios narrados, elevando-os a uma categoria sem tempo nem espaço — se a Parte I já aponta definitivamente para isso31, a Parte II não nos abre outro caminho de leitura. Aqui, o contributo de Italo Calvino terá sido decisivo para que, entre a primeira e segunda partes desta ópera, reconheçamos de imediato os motivos/temas universais, pelo simples facto de estes sofrerem uma recontextualização. Não estamos, portanto, de acordo com Claudia di Luzio quando explica e remete para a herança de Verdi, e tão somente essa, a estruturação da primeira parte desta obra32, por muito que fosse esse o desejo expresso por Berio, por muito que Calvino o concretizasse, e sobretudo por mais que se possa

29 Sobre este debate, leia-se os contributos de STOIANOVA, Ivanka, “La vera storia”, in Luciano Berio. Chemins en musique, Paris: la revue musicale, triple numéro (375-376-377), 1985, pp. 301-331; GIRARDI, Michele, “Il trovatore nel 1982 secondo Berio-Calvino-Sermonti, ossia La vera storia”, in Verdi 2001. Atti del Convegno internazionale, Parma-New York- New Haven, a cura di Fabrizio Della Seta, Roberta Montemorra Marvin, Marco Marica, 2 voll., Firenze: Olschki, 2003, vol. II, pp. 443- 460; ZOPPELLI, Luca, “Dramaturgie structurale? Nouvelles observations sur le rapport entre La vera storia et Il trovatore”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1, op. cit., pp.479-500; e BRÜDERMANN, U. op. cit., pp.339-352 e pp.374-376. 30 Neste campo de reflexão remetemos para quatro trabalhos: GERASI, Toni, “Lisibilité de l'espace social dans La vera storia”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 op. cit., pp.467-478; RIBEIRO, Paula Gomes, “Sur un geste idéologique anti-totalitaire: La vera storia de Luciano Berio et Italo Calvino”, in Minority Theatre on the Global Stage. Challenging Paradigms from the Margins, ed. by Madalena Gonzalez and Hélène Laplace-Claveria, Newcastle upont Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012, pp.61-74; MILA, Massimo, “Feste-rivolte di Berio trovatore” [«La Stampa», 9 March 1982], in Massimo Mila alla Scala. Scritti 1955-1988, ed. por Renato Garavaglia e Alberto Sinigaglia, Milano: Rizzoli 1989, pp. 393-395; “Anche Milva nel' La vera storia” [«La Stampa», 11 Marzo 1982], in Massimo Mila alla Scala. Scritti 1955-1980, op. cit., pp. 396-398; e BRÜDERMANN, U., “Gewalt und Terror…”, op. cit., pp.333-338. 31 Não é por acaso que, com toda a pertinência, Ute Brürdermann convoca os textos seminais de Michail Bachtin para comentar a fundo as “Feste” que pontuam a Parte I de La vera storia, na sua análise exaustiva desta ópera: “Die Feste - «proposta d'una società diversa»”, op. cit., pp.353-369. 32 Cf. DI LUZIO, Claudia, “Looking back on «La vera storia»…”, op. cit., p.419-420.

!13 dissecar em detalhe a hiperpresença desse modelo operático que é Il Trovatore na Parte I de La vera storia.

As razões que encontramos para consolidar esta perspectiva são várias. Antes de mais, porque o próprio Verdi e seus libretistas devem a essa mesma matriz cultural, citando-a amiúde (tal seria, também o gosto cultivado na ópera do século XIX, ou, mais do que uma questão de gosto, terá sido uma opção estética não sem fundamento33) e remetendo para todo esse corpus atemporal com o intuito de trabalhar as questões que sempre foram caras à expressão artística e à reflexão sobre o humano34, e em particular à arte teatral no sentido lato — bastará olhar para os títulos da sequência de episódios narrados na Parte I para antevermos esses lugares universais, ou topoi, muito para além da citação verdiana: “La Condanna”, “Il Ratto”, “La Vendetta”, “Il Tempo”, “La Notte”, “Il Duello”, “La Preghiera”, “Il Grido”, “La Prigione”, “Il Sacrificio” e “Il Ricordo”. A reforçar esta ideia está o facto de Berio ter insistido nas suas leituras de Vladimir Propp e de Claude Lévi-Strauss, dois autores inegavelmente ligados ao trabalho detalhado sobre motivos, temas e discursos transversais a todo o fenómeno artístico, para justificar o seu projecto de uma ópera dividida em duas partes, com as marcas de singularidade que descrevemos acima35. E, finalmente, porque na escolha de dialogar com um compositor como Verdi está, também, a escolha de dialogar com a tradição, nomeadamente a tradição popular onde radica todo o mito e lenda, opção esta que,

33 O debate sobre esta questão não cabe nesta apresentação, dada a sua complexidade e inesgotabilidade. Prende-se com a perspectivação historiográfica da própria ópera, que encontra no prolixo século XIX um campo de pesquisa imenso. A nosso ver, contudo, pertence a todas as formas dramatúrgicas cultivadas pelas várias linguagens operáticas do século XIX trabalhar este imenso legado comum, tradicional, de narrativas elementares, ou seja, lendárias ou mitológicas — como, de resto, acontece em toda a história da ópera desde Monteverdi. 34 Importa referir aqui o contributo fundamental de Elisabeth Frenzel nos anos 50/60, quando fixa em dois volumes o levantamento deste mesmo corpus universal, numa perspectiva histórico-literária, que serve, contudo, todos os outros campos artísticos: FRENZEL, Elisabeth, Stoffe der Weltliteratur. Ein Lexikon dichtungsgeschichtlicher Längsschnitte, 8ª ed., Stuttgart: Kröner, 1992; FRENZEL, Elisabeth, Motive der Weltliteratur. Ein Lexikon dichtungsgeschichtlicher Längsschnitte, 4ª ed., Stuttgart: Kröner, 1992. 35 Numa entrevista que deu a Bruno Serrou (ResMusica), em 6 de Fevereiro de 1997, Luciano Berio diz: R.M.: Avez-vous réfléchi au concept opéra avec vos amis écrivains, Umberto Ecco, Edoardo Sanguineti et Italo Calvino Sanguinetti, tous de grands écrivains? L.B.: Non, j’ai inventé cela tout seul. Ma réflexion sur le théâtre musical est en fait en phase avec l’œuvre de Vladimir Propp et des structuralistes soviétiques, plus particulièrement le livre Origines du comportement fondamental. In “Un entretien inédit avec Luciano Berio”, por Bruno Serrou, publicado em 29 de Maio de 2003 na página da ResMusica: http://www.resmusica.com/2003/05/29/un-entretien-inedit-avec-luciano-berio/ [acedido em Dezembro de 2015]. Cf. ainda DI LUZIO, “Looking back on «La vera storia»…”, op. cit., p.415.

!14 como veremos, é uma das marcas mais visíveis da estética beriana36, que vai inteiramente ao encontro da sensibilidade artística de Calvino37. Por muito que a história documentada da génese desta ópera38 nos diga que Berio pensou quase tudo antes de convocar o seu amigo Italo Calvino a colaborar num libreto feito a dois – no rescaldo de um caminho cheio de avanços e recuos de cooperação com Edoardo Sanguineti, com Vittorio Sermonti, e com o argumentista Suso Cecchi d’Amico –, estamos em crer que o que desta colaboração resulta permite-nos projectar a nossa leitura da ópera muito para além do debate sobre a relação mais ou menos hierárquica entre música e texto, ou para além das questões que se prendem com o grau de influência de um campo (literatura) sobre o outro (música), ou mesmo para além da matéria de reflexão que se prende, de

36 Giorgio Pestelli descreve esta relação como “La facoltà di rappresentare una contemporaneità mentale di eventi diversi”, num trabalho onde revê o próprio conceito de “tradição”, ou, melhor, a relação dos compositores com a herança musical que perfilham e as profundas mudanças que esta sofre ao longo dos séculos XIX e XX (“Luciano Berio. Archetipi cancellati e avventura creativa”, in Luciano Berio. Nuove Prospettive. New Perspectives, a cura di Angela Ida De Benedictis, Firenze: Leo S. Olschki, 2012, pp. 17-33). Também Béatrice Ramaut fala de “mise en relation” (p.127) quanto à música de Berio, no seu aturado estudo comparativo da relação da música contemporânea com a tradição, focando em específico os casos de Lachenmann (a propósito de Accanto) e de Berio (a propósito de Opera) [“Deux mises en scène d'une conscience de la tradition”, Revue de Musicologie, 79/1 (1993), pp.109-141]. Faz parte deste gesto dialogante, feito da citação/"transcrição" e da intertextualidade, também um imenso corpus literário, que se estende entre a Antiguidade Clássica e a contemporaneidade: Sinfonia e Outis são dois, de muitos, exemplos claros desta tendência que diríamos "omnívora" da música beriana — um gesto de acolhimento da voz outra, que obriga, também, a uma necessária recolocação da própria voz. 37 Os estudos berianos têm vindo a dedicar-se, de resto, a este aspecto da remissão constante à tradição mítica literária em outras óperas, para não falar da sua restante obra. A título de exemplo, cf. HEILE, Björn, “Prospero’s Death: Modernism, Anti-humanism and Un re in ascolto”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome 2, op. cit., pp.145-160; CROSS, Jonathan, “How Do You Make an Opera Without a Narrative? Journeying with Ulysses and Outis”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome 2, op. cit., pp.201-223; COHEN-LEVINAS, Danielle, “«J’ai rêvé un théâtre…» Épiphanie ou complexe d’Orphée chez Luciano Berio”, in Omaggio a Luciano Berio, dir. par Danielle Cohen-Levinas, Paris, L’Harmattan, 2000, pp.35-52; FISCHER, Michel, “Un Re in ascolto: Cinq arias dévolues au silence intérieur de Prospero”, in Omaggio a Luciano Berio, op. cit., pp.54-95; JOOS, Maxime, “Outis: Morphologie du mythe”, in Omaggio a Luciano Berio, op. cit., pp.97-117; DI LUZIO, Claudia, “Reverberating History. Pursuing Voices and Gestures in Luciano Berio's Music Theatre”, in Luciano Berio. Nuove Prospettive…, op. cit., pp.267-289. 38 São muitas as fontes que ajudam a documentar a génese de La vera storia, entre correspondência de Berio, passando por cadernos de esboços e outros documentos do espólio de Berio (guardados na Fundação Paul Sacher), terminando em testemunhos de Berio, de Calvino e de outros nomes implicados no processo. Para além do aturado trabalho realizado pelos autores acima referenciados sobre a historiografia genética de La vera storia, apontamos para os seguintes textos que se centram mais em Calvino como libretista de Berio, além dos testemunhos de Sanguineti, a que tivémos acesso através de Ivanka Stoianova (“La vera storia”, op. cit.): BRÜDERMANN, U., “Suche nach neuen Mitarbeitern: Edoardo Sanguineti und Suso Cecchi D'Amico” [pp.303—304] e “«Puoi scrivermi le parole per…». Die Arbeit mit Italo Calvino“ [pp.308-319], op. cit.; HERSANT, Yves, “Calvino librettiste”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1, op. cit., pp.453-466; ARRUGA, Lorenzo, “Italo Calvino librettista” [entrevista], Musica Viva, Anno VI n.2, febbraio 1982; MELA, Cinzia, “La vera storia, La Storia Nascosta”, in Le collaborazioni fra Luciano Berio e Italo Calvino: i libretti d'opera, tesi di laurea in istituzioni di regia, Facolta' di Lettere e Filosofia, Universita' di Bologna, 2004/2005. pp.45-78; POLLOCK, Adam, “From Page to Stage”, The Guardian - Books, 29th June, 2002; acessível em: https:// www.theguardian.com/books/2002/jun/29/artsfeatures.italocalvino [acedido em 20/1/2016].

!15 novo, com a identidade genológica desta obra, suas opções dramatúrgicas, seu libreto e seus verdadeiros autores. La vera storia insere-se um continuum histórico que inevitavelmente ultrapassa estas questões: por mais que circunstancialmente as palavras sirvam a música, a uma escala temporal e espacial mais alargada elas não deixarão de ser encaradas como o eco dos grandes mitos do humano, de que inevitavelmente fazem parte. Calvino soube ver, também, qual o seu papel, por muito que se aponte para uma relação desigual entre o peso das suas palavras face ao peso da música de Berio, questão que, sublinhamos de novo, é a nosso ver menor face ao efeito que a obra realiza. O seu texto sobre La vera storia aquando da estreia da ópera mostra a lucidez com que recebeu o desafio de Luciano Berio: “[…] per ognuno di questi momenti [Berio] mi ha chiesto delle parole che, senza precisare troppo l'azione, diano la sostanza della comunicazione lirica”39. Ousaríamos mesmo dizer que Calvino viu para além das ideias bem precisas de Berio sobre La vera storia; percebeu que o que importaria escrever não seria posto em causa neste projecto. Os testemunhos que lemos no trabalho de Ivanka Stoianova, assim como a entrevista que Calvino dá a Lorenzo Arruga, em vésperas da estreia de La vera storia em Milão, são disso esclarecedores:

...Ce qui m'interesse beaucoup dans le travail avec Berio c'est que lui, il a toujours des idées très précises, il sait tout ce qu'il veut jusqu'au moindre détail. Pour l'opéra sur lequel on travaille actuellement il sait tout ce qui arrive, tout le côte proprement musical, ainsi que tout ce qui se passe sur la scène. Et il me demande d'écrire les mots. Je dois dire que je n'ai pas la moindre liberté. Eh bien, si l'on n'a pas de liberté du tout, on travaille très bien. Parce que la liberté dérange parfois, on ne sait pas quoi en faire ...... Être parolier — ça m'amuse beaucoup. J'aime beaucoup travailler sur commande. Et c'est parce que je pense que quand tout est prescrit et on a beaucoup de contraintes, il reste tout de même une grande liberté dans le cadre même de ces contraintes. C'est là que commence la liberté...40

39 CALVINO, Italo, “La vera storia”, in La vera storia, programma di sala della prima rappresentazione assoluta, Milano: Edizioni del Teatro alla Scala, 1982, p. 30. 40 Testemunhos de Italo Calvino em 15/6/1978, publicados por Ivanka Stoianova (op. cit., p.304). “Parolier” é o termo utilizado por Berio para designar o trabalho do poeta que põe as palavras à medida da música já composta, e sobre este papel Berio fala a Ivanka Stoianova (ibidem, p.304).

!16 Lorenzo Arruga: Bene, così è andata con Mozart41. E con Berio? Calvino: Con Berio siamo amici da molti anni. Nel '56, a Venezia, mi chiese di collaborare con lui per una cosa che si chiamava Allez-hop: si trattava di collegare attraverso un'azione scenica tre pezzi dati. E sempre in questi anni, da un aeroporto o da un altro, mi telefonava: «Puoi scrivermi le parole per ... ?». Ogni tanto ho provato. Lui è un musicista che ha sempre un'idea musicale precisa, vuole un testo, aspetta solo che le parole che scrivo si adattino perfettamente alla sua idea. […] Lorenzo Arruga: E in che cosa crede? Calvino: Eh, credo in quelli che credono nelle cose che fanno, e credo nelle cose fatte da quelli che ci credono.42 De resto, o que Luciano Berio denomina de “azione musicale” reflecte este tipo de cooperação na constituição do libreto de La vera storia. A partir das palavras que citamos abaixo, trata-se de um acontecimento musical que serve de elemento pivot para o trabalho cénico, dramatúrgico e literário que o acompanham:

R.M.: Pour quelqu’un qui dit que l’opéra est mort, vous n’arrêtez pas d’en composer et d’en parler! L.B.: Le dernier en date, Outis, n’est pas un opéra, mais une action musicale. C’est la musique qui tient ce petit monde, gère le tout, est la force motrice principale, y compris de la narration.43 Finalmente, como teremos ocasião de mostrar, a falta de liberdade de que Italo Calvino fala acima para trabalhar no texto de La vera storia não é um factor negativo, pelo contrário. Nas suas lições de Harvard, publicadas em Seis propostas para o próximo milénio44, Calvino dedica uma das suas lições à Visibilidade, ou seja, à estupenda capacidade de imaginarmos, ou de vermos por imagens, por muito condicionada que a nossa liberdade se encontre45. Este debate sobre a relação de Berio e Calvino na

41 Arruga refere-se à estreia de Zaide, uma ópera incompleta de Mozart para a qual Calvino escreveu um libreto e que estreou em 20 de Fevereiro de 1982 em Veneza. Adam Pollock dá-nos um interessante testemunho sobre este trabalho de Italo Calvino em “From page to stage”, op. cit. 42 Italo Calvino em entrevista a Lorenzo Arruga, op. cit. 43 Luciano Berio em entrevista com a ResMusica em 6 de Fevereiro de 1997 (op. cit.). Ressalvamos aqui o facto de não ser o nosso intuito discutir se Berio realiza, ou não, o que define como “azione musicale”. Citamos as suas palavras porque nos parecem suficientemente esclarecedoras da postura de coerência que assume face ao que projecta para o libreto de La vera storia e face ao modo como trabalhou com Italo Calvino. 44 CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milénio, 3ª ed., Trad. José C. Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1998. 45 ibidem, p.106.

!17 constituição do libreto de La vera storia só nos interessa, não para prolongar uma discussão já longa sobre a génese desta ópera, mas sim para mostrar uma afinidade estética e ética profunda entre o pensamento de ambos os autores, que terá decerto determinado a sua colaboração. Não é, de resto, por acaso que utilizaremos precisamente as Norton Lectures de Calvino para pensar as implicações éticas da produção beriana, no último capítulo da presente dissertação. E por muito que se encontre uma certa ironia e capacidade de distanciação nas palavras de Calvino face à colaboração com Berio no libreto de La vera storia (que tantos apontam como experiência negativa), diríamos, pelo contrário, que foi um trabalho plenamente cumprido, sem abdicar do que realmente é fundamental tanto para Luciano Berio como para Italo Calvino.

Três anos depois da morte inesperada de Italo Calvino, Luciano Berio dá testemunho do trabalho de colaboração que teve com o seu amigo em diversos momentos da sua produção. É um testemunho importante, na medida em que fala da musicalidade de Calvino e do seu papel determinante no trabalho de Luciano Berio. As palavras que de seguida citamos, não podendo nem querendo negar o que está documentado sobre a constituição do libreto de La vera storia, decerto contribuem para se trazer à luz o que é essencial reter desta mesma questão — o facto de Berio ter encontrado em Calvino um colaborador adequado, não só no que diz respeito à tarefa que lhe propôs propriamente dita, mas, mais do que isso, o que dela se pretendia extrair em sentido e em substância para a leitura de La vera storia:

Sarebbe lungo raccontare nei dettagli, spesso divertenti, le diverse tappe del mio lavoro con Italo. Un giorno qualcuno lo farà. Vorrei comunque ricordare che mi sento immensamente debitore con Italo non solo per quello che mi ha dato ma anche e proprio per quella sua esterna non-musicalità che mi ha aiutato a tenere i piedi per terra nell'esperienza della comunicazione verbale attraverso la musica e della comunicazione musicale attraverso la parola. Ma soprattutto gli sono grato per la sua opera che è, in effeti, una delle piú musicali nella letteratura di questo secolo, anche in virtú di quella moltitudine, di quella polifonia di livelli espressivi che lui aveva difficoltà a percepire nell'esperienza musicale. Il suo percorso creativo, con la mobilità di tutti i suoi livelli di realtà, è infatti idealmente

!18 paragonabile a una architettura musicale: come una costruzione di frammenti internamente partecipi di un processo musicale in continua trasformazione.46

46 BERIO, Luciano, “La musicalità di Calvino [1988]”, in Scritti sulla musica, op. cit., pp.328-331.

!19 Esta dissertação

O objectivo final da presente dissertação é a ponderação sobre as implicações éticas de uma estética que ousa relacionar o diverso. Porque, se é consensual na literatura crítica sobre a música beriana a sua constante remissão para outros suportes, sejam estes musicais, literários, ou cénicos; se é igualmente consensual, na literatura analítica, que a música de Berio – e também em La vera storia – privilegia o encontro com o outro e a convivência de múltiplas camadas díspares num mesmo momento musical; tal constatação carece de uma explicação sobre as consequências éticas de tal gesto ou traço estético. E se os estudos de teor analítico sobre La vera storia, por exemplo por, Ute Brüdermann, por David Osmond-Smith, e por Angela Carone47, são, sem dúvida, importantes para a constituição deste trabalho, também o estudo de Susanna Pasticci sobre a dimensão ética do pensamento criativo de Berio48 é fundamental para a consolidação dos nossos propósitos de reflexão. Pasticci escreve no resumo do seu artigo:

Luciano Berio's music is animated by a profound ethical tension: a vocation for ethos that is reflected not only in his comments or his writings on musical aesthetics, but also in his creative choices, his artistic practice and the sound worlds he created. Although it is urgent and indispensable, this tension has nothing of the ideological stance about it, nor is it emphasized or exhibited; it is more an attitude towards the world, and its ethical value can be traced only in the most hidden folds of his thought and his way of making music.49 Se é inegável a constatação de uma dimensão ética no fazer musical de Luciano Berio, a sua reflexão é, sem dúvida, uma tarefa que urge cumprir. Se Pasticci elege as Norton Lectures de Berio como caso de estudo para debater esta questão, este caminho está, no entanto, de algum modo incompleto, na medida em que é sobretudo na concretude do seu fazer musical (e não nos seus escritos) que esta dimensão ética se deixa descrever

47 Além dos trabalhos de Osmond-Smith e de Brüdermann (op. cit., com um aturado exercício comparativo entre o material textual e musical presente na primeira e segunda partes da ópera, pp. 360ss. e 370ss.), citados atrás, remetemos para o estudo de CARONE, Angela, “La vera storia: organizzazione dei materiali sonori”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 - De «Passaggio» à «La vera storia», dir. de Giordano Ferrari, Paris: L'Harmattan, 2016, pp.431-452. 48 PASTICCI, Susanna, “«In the meantime, we'll keep translating». The strength of the ethical dimension in the creative thought of Luciano Berio”, in Luciano Berio. Nuove prospettive…, op. cit., pp.459-475. 49 PASTICCI, Susanna, ibidem, p.459.

!20 em detalhe. Qualquer percurso artístico é, sem dúvida, portador de uma dimensão ética. E, se no caso de Luciano Berio, muitos são os estudos sobre a sua obra que se aproximam de interpretações estéticas contextualizadas no tecido histórico-social, no tecido político, no seu percurso biográfico e na relação com outros compositores e um mundo imenso de artistas, falta, no entanto, saltar do campo analítico aprofundado e tentar ler de um ponto de vista filosófico e ético a fenomenologia da sua música. Falta fazer encontrar o esforço analítico que os estudos berianos têm cultivado sobre a sua música com questões que, a nosso ver, estão intimamente implicadas no objecto sonoro beriano, se bem que lhe sejam aparentemente exteriores, pelo simples facto de pertencerem à esfera da sua relação com o mundo.

Assim, a reflexão de matriz histórico-filosófica e analítica que vamos de seguida desenvolver tem como intuito apontar para as implicações éticas que subjazem ao fazer artístico de Berio. La vera storia será o nosso caso de estudo, mas dadas as características da música beriana, será impossível não falar da obra anterior e posterior a esta ópera. E, se por um lado ensaiamos repensar a música de Luciano Berio dentro de um enquadramento conceptual filosófico, por outro este mesmo enquadramento não pode senão ser devidamente implicado na leitura analítica que de seguida apresentamos. O debate sobre questões harmónicas na música beriana será, assim, não só um contributo que dialoga com as leituras já existentes, mas também uma proposta de análise que se esforça por caminhar para fora de si mesma.

Esta é uma dissertação estruturada em quatro capítulos que têm como ponto de fuga a força do atrito que move a composição em Luciano Berio. Cada um dos quatro capítulos privilegia um dos seguintes aspectos: considerações de ordem filosófica (capítulo I), prática musical (capítulo II), questões de teor conceptual sobre a história e a arte (capítulo III) e preocupações políticas no sentido lato (capítulo IV).

O primeiro capítulo da nossa dissertação, intitulado «Pensar a Música de Berio. Uma ponderação filosófica a partir de Gilles Deleuze», tem a função de apresentar, antes de mais, o ponto de partida do nosso raciocínio. Ao mesmo tempo que tece uma reflexão geral e introdutória sobre a música de Luciano Berio, introduz de forma sistemática e operativa um conjunto de conceitos gerados pelo pensamento de Gilles

!21 Deleuze (em parte também com Felix Guattari) que ajudam a introduzir uma leitura de teor filosófico sobre o fazer musical de Luciano Berio.

Este aparato conceptual que decorre da nossa leitura dos textos de Gilles Deleuze, e que nos ajudou de forma decisiva na leitura da prática musical beriana, é de seguida revisto no contexto da análise do objecto sonoro beriano, que expomos no segundo capítulo, intitulado «A prática musical de Luciano Berio». Neste capítulo, a propósito de procedermos a uma análise harmónica e rítmica da obra de Berio, e em particular de La vera storia, pensamos o objecto sonoro beriano face ao campo musical em que se insere, sendo que entendemos por “campo musical” um corpo espacio-temporal alargado, que vai desde a produção musical de finais do século XIX e a contemporaneidade. Circunscrever este campo não pretende, contudo, defini-lo de forma exaustiva ou sistemática, como já esclarecemos acima. A nossa reflexão neste capítulo antecipa, além do mais, o que se desenvolve de seguida, no terceiro capítulo, na medida em que aflora alguns aspectos que decorrem da análise técnica da música beriana à luz das questões filosóficas anteriormente trabalhadas, aspectos estes que se ligam à concepção da obra de arte e à percepção da imanência a que esta pertence.

O terceiro capítulo, intitulado «A consciência do acontecer e a concepção da obra de arte» recorre a uma série de ensaios de Walter Benjamin sobre a História e sobre a obra de arte na época da possibilidade da sua reprodução técnica, pedindo emprestado o título de um desses mesmos textos50. Fazendo uma revisão da leitura filosófica e analítica da música de Berio, a nossa reflexão alarga-se a questões que, por contraste ao pensamento fenomenológico de Gilles Deleuze – que procede a uma leitura imanentista da obra de arte –, subjazem no tecido profundo do fazer musical de Luciano Berio e apontam para uma camada de leitura de teor mais sócio-político, no sentido lato. Neste capítulo tentamos, portanto, perceber o espírito político que subjaz ao fazer musical beriano, para finalmente ensaiarmos, no último capítulo, uma reflexão talvez mais destacada da progressão entre os três capítulos anteriores, na medida em que fecha o nosso raciocínio e tenta responder à pergunta que constitui o seu título: «O que pode a música?».

50 BENJAMIN, WALTER, "A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica", in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, ed. e trad. de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pp.207-241.

!22 Neste último e quarto capítulo procedemos a uma reflexão final sobre La vera storia de um ponto de vista ético, convocando aspectos que foram sendo desenvolvidos nos capítulos anteriores e trazendo à colação o pensamento estético – e ético! – de Italo Calvino, a nosso ver absolutamente fundamental para estruturar a nossa reflexão sobre as implicações éticas da música de Luciano Berio. Tentaremos, neste último capítulo, que as Norton Lectures de ambos os autores nos ajudem a consolidar este debate sobre as implicações éticas da música de Berio, fechando o nosso caminho no sentido de uma leitura plural sobre um fenómeno ele próprio também plural, ou em constante devir.

Resta uma nota final, que de algum modo retorna ao início desta apresentação geral. Se Gilles Deleuze, Walter Benjamin e Italo Calvino merecem uma atenção especial a partir de alguns dos seus textos para melhor pensarmos a música de Luciano Berio, já o debate em volta de alguns dos conceitos e algumas das noções que servem a nossa reflexão, fazendo todo o sentido dentro da especificidade dos estudos sobre a sua obra em termos estritos, não pode ter aqui um tratamento suficientemente cabal, sob pena de nos desviar do nosso intuito. Se porventura algumas das matérias merecem ser aprofundadas dentro do campo estritamente filosófico ou teórico em que surgem e são operativas, essa não é, de facto, a nossa tarefa neste trabalho. Acresce que, ao falarmos de “implicações éticas” da música beriana, não nos demoramos na definição desse horizonte de reflexão para onde a nossa exposição caminha, porque tal também decerto nos iria desviar do nosso interesse primeiro, que é o de consubstanciarmos algumas das preocupações que nos acompanham de forma construtiva e produtiva na nossa actividade de compositor.

Se pensarmos em La vera storia (1981) como uma consequência natural dos esforços composicionais de Sinfonia (1968) rumo ao múltiplo e rizomático (pensamos no seu terceiro e quinto andamentos), e se pensarmos na Sinfonia como naturalmente resultante de uma apropriação contemporânea da 9ª Sinfonia de Beethoven (1824) – ela própria resultado de um esforço composicional sediado na montagem (pensamos muito explicitamente no seu último andamento) –, percebemos que a consciência do múltiplo em Luciano Berio extravasa o seu próprio fazer e o seu próprio tempo e abraça compositores que se diriam “insuspeitos” quanto a determinados gestos ou linguagens,

!23 abrindo novos olhares de escuta e de leitura sobre a sua música. É exercitando uma certa rasura nos espartilhos que geralmente nos guiam como leitores da obra de outros compositores que ensaiaremos ler o fenómeno musical de Berio, cientes, no entanto, da dificuldade em não cairmos, nós próprios, em incoerência.

!24 I PENSAR A MÚSICA DE BERIO

In the meantine, we'll keep translating. (Berio, Remembering the Future)

Uma ponderação filosófica a partir de Gilles Deleuze

A música de Luciano Berio afirma-se, desde os seus primeiros trabalhos, como uma música de momentos inesperadamente sedutores e sensuais, traços, de resto, abundantemente referidos pela crítica em geral1. Se este facto é comummente referido, a sua raíz não é apenas o desejo de criação de momentos apelativos, mas algo de mais profundo. Na verdade, face ao comportamento indutivo de um Pierre Boulez – que parte

1 Desde logo, entre recensões críticas, artigos de jornal, entradas de dicionários e obituários, a sedução da música beriana é sempre referida. Por exemplo, David Osmond-Smith numa entrada sobre Luciano Berio: "This recuperation of harmonic gratification […] marks a further evolution in his most consistent and perennial preocupation: an intense and delighted exploration of the sensual impact of his sound materials" (in New Makers of modern Culture, ed. by Justin Wintle, vol. 1, London and New York: Routledge, 2007, p.137). Ou Eric Dahan, a propósito da récita de Outis em 1999, no Festival d'automne: "Parallèlement à cette conscience de plus en plus aiguë du monde, la matière orchestrale, l'invention mélodique s'affinent à un point de sensualité électrisante et apaisante, dont les détracteurs stigmatisent le caractère formel." («Outis», sensuel et électrique, Libération, 17 novembre 1999; http://next.liberation.fr/culture/ 1999/11/17/contemporain-le-festival-d-automne-propose-la-creation-francaise-de-l-opera-de-berio-outis- sensuel-e_289196). Ou ainda Catherine Laws a propósito da relação de música e texto em Berio: "The effect is sometimes purely musical, with sung tones or even short phrases appearing momentarily, and sometimes more purely semantic, with odd words or syllables suddenly soken clearly. Primarily, though, these works play with the relationships and limits of music and language, exploring fields of semiotic ambiguity. The listener is drawn into the sensual as well as the structural drama of the gradually evolving phonetic musical and semantic relationships." (in Headaches Among the Overtones - Music in Beckett / Beckett in Music, / New York, 2013, p. 226). E também Robert Carl, numa recensão do disco com música para de Berio em 2007: "Berio’s fellow countryman, the novelist Italo Calvino, wrote a brilliant essay on “lightness” in art, and these pieces are exemplars of that quality. One feels that an immense amount has been said in a manner that’s economical, but not austere. Even though it’s compact, the music remains sensual and seductive, and one remains hungry for more—but “more” would probably be too much, like a second serving of an exquisite dessert." (in http://www.arkivmusic.com/classical/ Name/Talia-Lucchesini/Performer/151716-2 [Recensão crítica ao CD: BERIO Sonata. 6 Encores. Rounds. Sequenza IV. 5 variazioni. Touch. 1 Canzonetta 1 • Andrea Lucchesini (pn); Valentina Pagni Lucchesini (pn) 1 • AVIE 2104 (61:32)]). Refira-se ainda as palavras de Mark Swed num obituário sobre Berio: "Still, it is probably the sheer sensuality of Berio's music, its Italianate lyricism, that may be its most memorable quality. A larger-than-life personality, Berio enjoyed fine wines (he had his own Berio label in Radicondoli), cigars and other luxurious indulgences, and that love of pleasure is unmistakable in his music." ("Luciano Berio, 77; Groundbreaking Italian Composer", Los Angeles Times, May 28, 2003: http://articles.latimes.com/2003/may/28/local/me-berio28/2). No seu aturado estudo comparativo entre Berio e Lachenmann, Béatrice Ramaut descreve o contraste entre os compositores no tratamento da tradição: “[…] l'un [Lachenamnn, com Accanto] donne à entendre une musique âpre, essentiellement tactile, l'autre [Berio, com Opera] une musique pleine qui séduit l'oreille” (“Deux mises en scène d'une conscience de la tradition”, Revue de Musicologie, 79/1 (1993), p.128). E, finalmente, Tom Service no The Guardian: "The effect of Berio's labyrinths of listening is nearly always immediate, pleasurable, and sensual." ("A guide to Luciano Berio's music", The Guardian,Monday 10 December 2012: https:// www.theguardian.com/music/tomserviceblog/2012/dec/10/contemporary-music-guide-luciano-berio).

!25 de um elemento gerador mínimo para a construção do todo2 – ou ao comportamento principalmente dedutivo de Karlheinz Stockhausen – que, ao contrário de Boulez, parte do todo para a construção dos elementos mínimos das suas obras3 –, ou ainda face à produção de um Luigi Nono, cuja música se alicerça na multiplicidade interna do objecto musical4, vemos surgir, com Luciano Berio, um outro modo de pensar o devir musical, que se concentrará na ideia de transformação. Esta transformação materializa- se na co-existência de objectos musicais distintos, e logo no estabelecimento de direccionalidades que permitem a inclusão de momentos diversos. Se bem que partilhe com Nono a consideração da multiplicidade do objecto musical, o que interessa a Berio são, mais do que as características do objecto que abraça ou a essência global do objecto que pretende compor, as suas possibilidades de mutação: “The real enriching experience is to be able to perceive processes of formation, transformation of changing things - rather than solid objects”5. É este o ponto de partida da sua deriva, que lhe permite a eclosão dos tais momentos inesperadamente sensuais que referimos no início deste parágrafo.

Entretanto, a consideração da multiplicidade e mutabilidade dos materiais reflecte-se na estrutura subjacente ao processo criativo — com isto, estamos perante um outro paradigma composicional. Concretizamos: a arquitectura do material é diferente da preconizada por Schoenberg, a propósito da sua concepção da série dodecafónica. Na música de Berio – mas também na de outros, como György Ligeti e Bruno Maderna, por exemplo –, a série ou sequência ou campo harmónico original poderão ser vistos como elemento regulador da convivência pacífica de objectos múltiplos e mutantes, e portanto cai definitivamente por terra a ideia de um material que é simultaneamente o

2 Por exemplo, em Le Marteau sans Maître (1955), Boulez constrói a peça toda a partir da utilização de uma só série dodecafónica. Ou em Répons (1980-1984), onde de novo vemos uma sequência inicial responsável pela geração do todo. 3 Por exemplo, em Gruppen (1955-1957), Stockhausen parte de uma ideia global da peça para a constituição de cada uma das suas partes. Cf. WÖRNER, Karl H., Stockhausen. Life and Work, introd., trad. e ed. de Bill Hopkins, Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1976, p.200. Mas também em Stimmung (1968) o mesmo processo pode ser identificado. 4 Como se pode ler no artigo de Gianmario Borio sobre Luigi Nono, no The New Grove Dictionary of Music & Musicians (Oxford University Press): "His notion of sound as a complex event with its own internal mobility, a notion that emerges explicitly in his last decade, is already evident in the early works which established his international reputation." 5 “Luciano Berio on New Music: An Interview with David Roth", Musical opinion, Septembre 1976, p. 549.

!26 elemento regulador do desenvolvimento musical e o objecto musical propriamente dito6. Concretizamos uma vez mais: uma série, para Schoenberg, é não só o instrumento que edifica o convívio dos materiais de uma peça, mas ela própria constitui esses mesmos materiais — este foi um dogma na construção da arquitectura harmónica de muita música do século XX, nomeadamente em compositores da primeira e da segunda metade do século XX!

Mas esta questão da eclosão de uma nova estrutura que, ao contrário da série dodecafónica de Schoenberg, se assume como estrutura multidimensional, surge acompanhada de uma outra, cuja importância não é demais realçar: falamos de uma leitura cinematográfica do material, ou seja, a acumulação progressiva de elementos numa paisagem sonora, como acontece no início da Sagração da Primavera (1913) de Stravinsky, ou na música de outro dos ídolos de Luciano Berio, Gustav Mahler, de que damos como exemplo o I Andamento da 9ª Sinfonia (1908-1909), ou ainda em Prélude à l'après-midi d'un Faune (1892-1894), de Debussy. Esta tendência não é, aliás, nova na história da música; ela é experimentada de forma acidental desde o advento do Lied e a aplicação de diferentes textos a um mesmo conteúdo musical. Um dos exemplos mais claros daquilo que queremos dizer é «Das Wandern» (do ciclo Die Schöne Müllerin, 1823), de Schubert. Mas se obviamente esta tendência acompanhou a música desde sempre, ela é agora potenciada em novos contextos harmónicos e não apenas limitada às suas formas de expressão mais tradicionais. Note-se que tudo isto é muito diferente do que nos habituámos a considerar quando estamos perante um todo musical: na verdade, não temos o objecto, mas sim uma visão do mesmo. Talvez sintamos, aliás, que aquilo que julgamos serem objectos artísticos são apenas visões de outros objectos originais, que não podemos ver — adiante neste trabalho iremos retornar a esta questão, com a ajuda do pensamento de Walter Benjamin sobre a obra de arte.

Se a ideia de transformação constitui um ponto de partida inicial da produção beriana, e se os procedimentos técnicos que adiante analisamos (no capítulo que se segue) nos ajudam a clarificar os modos como esta transformação se concretiza, tal não

6 Os estudos reunidos no volume organizado por Enzo Restagno sobre a música de Ligeti são profusos nos exemplos referentes a esta temática. Vd. RESTAGNO, Enzo (org.), Autori Vari - Ligeti, Torino: Edizioni di Torino, 1985. Quanto a Maderna, o trabalho de Raymond Fearn também nos faculta exemplos desta questão: Continuity and Change: The Music of Bruno Maderna, dissertação de doutoramento apresentada à University of Keele, Março de 1989 (The British Library Document Supply Centre, UK).

!27 explica, por si só, os fundamentos da produção de Luciano Berio, sendo importante uma reflexão prévia a essa mesma análise que contextualize a sua poiesis. Em que medida a fenomenologia da escrita musical beriana traduz o seu pensamento estético? Até que ponto esse mesmo pensamento estético aponta para uma postura política e ética que lhe subjaz? Que papel tem a ópera La vera storia na produção beriana? Que meios possuímos para explicar o fenómeno musical beriano, para além dos estritamente musicais, e em que medida a música de Berio reflecte questões que estão muito para além do fazer musical?

De facto, a quantidade e diversidade de questões implicadas na ponderação sobre a música de Luciano Berio não poderão ser compreendidas de forma global se não fizermos apelo a um enquadramento reflexivo mais vasto que lhe é contemporâneo. Nesse sentido, encontrámos em Gilles Deleuze um filósofo cujos conceitos são de uma extrema pertinência para percebermos os caminhos da técnica de Luciano Berio. Gilles Deleuze pensa a imanência. Com isto queremos apontar para a estupenda permeabilidade do seu pensamento ante o acontecimento, que se ramifica em conceitos que não só se definem como vão sendo pensados e transformados de livro para livro, em entrevistas, programas de televisão e no diálogo com outros pensadores, entre os quais se contam, por exemplo Félix Guattari e Claire Parnet. Um dos traços idiomáticos do pensamento de Deleuze é, sem dúvida, a citação e convocação não hierarquizada de tudo o que possa ser suficientemente ilustrativo e interessante para o seu fluxo de pensamento — um formigueiro tem tanta potência de ilustração como uma ideia de Espinosa, filósofo por demais constitutivo do pensamento imanentista de Gilles

Deleuze7. Outra das características que perpassa na leitura dos seus profusos escritos é a sua extrema sensibilidade à expressão e ao discurso filosófico que pratica – assentando muitas vezes sobre questões linguísticas e gramaticais para consolidar conceitos – a par da contradição de termos, se tal for o caso, para que possa concretizar uma ideia ou um conceito. Deleuze não se preocupa com o tratado, ou com a progressão sistemática de um pensamento conceptual, mas com a expressão, para ir ao encontro do fenómeno, do acontecimento filosófico que pretende descrever. Daí que muitos dos conceitos que de

7 A lista de possibilidades neste aspecto é imensa: Deleuze tanto fala do cinema, como de escritores e poetas, como de pintores, como de insectos, como de vivências da infância, como da psiquiatria e psicanálise, e assim por diante…

!28 seguida vamos convocar para introduzir a música de Berio não se encontram definidos de forma acabada num só texto, mas são clarificados a partir de um conjunto de enunciados, por vezes quase sem que o próprio Deleuze se aperceba da sua clarificação, diríamos.

A reflexão que apresentamos de seguida tem como intuito estrito convocar alguns desses conceitos para clarificar a deriva musical de Luciano Berio, numa primeira aproximação à sua música e ao que consideramos ser o que a singulariza. Não nos propomos, portanto, debater a fundo as questões que se prendem com o contexto em que Gilles Deleuze gera e pensa estes conceitos, tão pouco pretendemos explorar os meandros do debate prolixo que tais conceitos geraram nos estudos deleuzianos. O nosso intuito é tão somente mostrar a pertinência de sentido que o pensamento de Deleuze oferece para iluminar e ponderar em contexto a música de Berio. Mais: pensamos que não é possível encarar o surgimento das características estéticas e técnicas da música de Berio sem fazer uso de um jargão que seja aparentemente estranho ao campo8 musical. Deleuze, até certo ponto, constitui uma chave de leitura da música de Luciano Berio, e é essa chave de leitura que o presente capítulo pretende descrever. Estes conceitos – e são eles Multiplicidade, Rizoma, Diferença e Repetição, Regime de Signos, Sensação, Desterritorialização e Reterritorialização, e Ciência Menor – não serão, portanto, esgotados do ponto de vista filosófico, mas na sua afinidade crassa com as características da música de Luciano Berio, que constitui o nosso caso de estudo, nomeadamente no que toca a sua ópera La vera storia.

8 A conhecida fixação do termo "campo" por Pierre Bordieu, a propósito do "campo literário", norteia aqui também o nosso uso da palavra. Cf. BOURDIEU, Pierre, "Le champ littéraire", Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 89, 1991, pp.4-46.

!29 Multiplicidade como unidade

No livro fundador que escreveu sobre Nietzsche, Gilles Deleuze formula a seguinte ideia a propósito de Heraclito:

Le multiple est la manifestation inséparable, la métamorphose essentielle, le symptôme constant de l'unique. Le multiple est l'affirmation de l'un, le devenir, l'affirmation de l'être. L'affirmation du devenir est elle-même l'être, l'affirmation du multiple est elle-même l'un, l'affirmation multiple est la manière dont l'un s'affirme. «L'un, c'est le multiple.»9 Num outro passo do seu livro Diférence et Répétition, de 1968, e no contexto de uma longa ponderação do que significa a Ideia, voltamos a ler sobre o múltiplo, desta vez numa reflexão em que o termo é considerado um substantivo, e não meramente um atributo:

Le vrai substantif, la substance même, c'est «multiplicité», qui rend inutile l'un, et non moins le multiple. La multiplicité variable, c'est le combien, le comment, le chaque cas. Chaque chose est une multiplicité pour autant qu'elle incarne l'Idée. Même le multiple est une multiplicité ; même l'un est une multiplicité. Que l'un soit une multiplicité (comme là encore Bergson et Husserl l'ont montré), voilà ce qui suffit à renvoyer dos à dos les propositions d'adjectifs du type l'un-multiple et le multiple-un.10 A partir destes dois passos, podemos desde logo apontar para dois traços importantes inerentes ao conceito de Multiplicidade no pensamento de Deleuze (que, de resto, não se cansa, na fixação dos seus próprios conceitos, de citar e dialogar com outros filósofos). O primeiro traço é o de que a ideia de múltiplo não se desliga da de uno, ou seja, um e outro são constituintes de uma mesma entidade. O segundo traço é o de que a multiplicidade encarna a ideia, a substância, numa interessante reflexão sobre a valência gramatical do termo, rejeitando Deleuze a concepção de que o múltiplo aponta para uma unidade que lhe é anterior, posterior ou mesmo transcendente. Este traço clarifica-se com o passo que citamos de seguida, e que surge no contexto de uma

9 Nietzsche et la philosophie, PUF, 1962, p.27. 10 Diférence et Repetition, PUF, 1968, p.236.

!30 reflexão sobre a conjunção "e", no seu livro Dialogues, escrito em colaboração com Claire Parnet:

Le multiple n'est plus un adjectif encore subordonné à I'Un qui se divise ou à l'Etre qui I'englobe. Il est devenu substantif, une multiplicité, qui ne cesse d'habiter chaque chose. Une multiplicité n'est jamais dans les termes, en quelque nombre qu'ils soient, ni dans leur ensemble ou la totalité.11 A ponderação por Deleuze sobre a multiplicidade estende-se, de resto, por vários títulos da sua vasta obra12, mas clarifica-se em particular em passos onde Deleuze pondera uma outra coisa que não o conceito em si. Se a propósito de Heraclito lemos que o uno é o múltiplo (e vice-versa), na clarificação que faz dos termos Substância e Modo no pensamento de Espinosa voltamos a essa mesma concepção, que serve, como veremos, uma mais profunda compreensão de como a multiplicidade opera na música de Berio — falamos da ideia do múltiplo pertencer ao uno, ideia que aponta tanto para a complexidade endógena a uma multiplicidade como para a sua própria abertura à mutação ou transformação:

Pourtant subsiste encore une indifférence entre la substance et les modes: la substance spinoziste apparaît indépendante des modes, et les modes dépendent de la substance, mais comme d'autre chose. Il faudrait que la substance se dise elle- même des modes, et seulement des modes. Une telle condition ne peut être remplie qu'au prix d'un renversement catégorique plus général, d'après lequel l'être se dit du devenir, l'identité, du différent, l'un, du multiple, etc. (sublinhados nossos)13 Ao deparamos com momentos como a Parte I de La vera storia, constatamos, em primeiro lugar, uma enorme diversidade, não só estilística, como técnica. Com efeito, não só os procedimentos melódicos e harmónicos são distintos, como o material que está na sua génese é marcadamente diferente, e vemos surgir momentos claramente tonais a par de momentos vincadamente atonais. O libreto da ópera poderia, por si só,

11 DELEUZE, Gilles, Claire Parnet, Dialogues, Paris: Flammarion, 1996, p.71. 12 Cf., por exemplo, um dos mais conhecidos textos escritos com Félix Guattari, Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie (Paris: Éditions de Minuit, 1980), onde podemos ver de novo uma longa aproximação ao conceito de multiplicidade, a propósito da ponderação e definição do conceito de rizoma, nomeadamente na página 8 da edição inglesa desta obra, com tradução e introdução de Brian Massumi (A thousand plateaus. Capitalism and schizophrenia, Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 1987). Nesta dissertação vamos utilizar a edição inglesa. 13 DELEUZE, Diférence et Répétition, op. cit., p.59.

!31 justificar esta junção do diverso — como veremos adiante, trata-se de um texto vincadamente estruturado sob o signo da multiplicidade: de planos actanciais, de temas, de recorrências, de gestos, de figuras que se cruzam e cujo sentido se adensa na justa medida da mobilidade e da relação que os caracteriza. No entanto, tal não é o caso: este corpo múltiplo deve-se a razões puramente musicais, como teremos ocasião de demonstrar adiante — se bem que, na escrita de um Italo Calvino ou de um Edoardo Sanguineti Berio tenha encontrado naturais afinidades estéticas e mesmo políticas (lato sensu). Este é, aliás, um traço recorrente da produção musical de Berio, que é evidente, por exemplo, no terceiro andamento de Sinfonia (1968), ou em Naturale (1985). Porque é esta diversidade que garante a constituição de um corpo em que cada um dos seus elementos é indispensável para a sua caracterização global.

A prática beriana de multiplicidade como unidade tem, de resto, implicações diversas no seu universo musical: se tem, por um lado, implicações no comportamento musical de detalhe, tem também implicações na estruturação formal das obras constituídas, tem implicações na relação entre diferentes obras suas, e entre obras originárias de diferentes compositores ou mesmo obras de períodos distintos convocadas na sua própria obra, como acontece, para além das obras mencionadas acima, em Rendering (1990), em que se juntam esboços de uma sinfonia incompleta de Schubert através da escrita de Berio. Em qualquer destes casos, note-se como a justaposição de elementos diferentes não só muda a sua consideração de um ponto de vista externo, como influencia de forma radical a sua natureza interna. Deleuze poderia dizer da música de Berio o que diz da Ideia: “Une Idée est une multiplicité définie et continue, à n dimensions”14.

14 Ibidem, p.236.

!32 Rizoma

Estreitamente relacionado com o conceito de multiplicidade, que acabamos de descrever, está o conceito de Rizoma, aturadamente desenvolvido por Deleuze e Guattari em A thousand plateaus, de onde seleccionamos o excerto que se segue:

[…] any point of a rhizome can be connected to anything other, and must be. This is very different from the tree or root, which plots a point, fixes an order. […] There are no points or positions in a rhizome, such as those found in a structure, tree, or root. There are only lines.15 O rizoma aspira à consideração de elementos díspares na constituição de uma unidade. Esta ideia de unidade heterogénea, que tanta resistência levanta ao senso comum em relação a unidades de maior dimensão, não levanta qualquer tipo de resistência quando analisamos corpos de menores dimensões – pensemos, por exemplo, no corpo naturalmente compósito de elementos diversos como o do homem ou, mais radicalmente ainda, no corpo de um vulgar insecto, por exemplo uma mosca: quem se atreveria a contestar a unidade destes corpos, por mais que perceba a sua natureza composta de elementos diversos e por vezes sem qualquer ligação entre si, no que aos seus propósitos diz respeito? Mais: esta ideia de unidade na diversidade, ou na multiplicidade, radica, quanto a nós, nos postulados descritos por dois filósofos de reconhecida importância para o pensamento de Gilles Deleuze. Bento de Espinosa defende, quanto ao corpo humano: “I. O Corpo humano é composto de um grande número de indivíduos (de natureza diversa), cada um dos quais é, também, muito composto.” (II, prop. 13, postulado I16). Por seu turno, devemos relacionar esta ideia com a ideia de dobra leibniziana: como Gottfried Wilhelm von Leibniz não se cansa de referir, cada uma das mónadas responsáveis pela composição de um todo é radicalmente diferente e independente:

9. É necessário que cada Mónada seja diferente de cada uma das outras, porque jamais há na natureza dois seres que sejam perfeitamente um como o outro, e nos

15 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.7 e 8. 16 ESPINOSA, Bento de, Ética, Introdução e notas de Joaquim de Carvalho, trad. de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes, e António Simões, posfácio de Joaquim Montezuma de Carvalho, Lisboa: Relógio d'Água, 1992, p.219.

!33 quais não seja possível achar uma diferença interna, ou fundada numa denominação intrínseca.17 Cada uma das secções do rizoma representa um momento que não pode deixar de ser visto como exterior a todo o rizoma, de tal forma se diferencia dos restantes de modo intrinsecamente diverso e inaudito. O conceito de rizoma radica na consideração das diferenças dos elementos de um ponto de vista exterior, como se olhássemos para um mapa:

The rhizome is altogether different, a map and not a tracing. Make a map, not a tracing. The orchid does not reproduce the tracing of the wasp; it forms a map with the wasp, in a rhizome. What distinguishes the map from the tracing is that it is entirely oriented toward an experimentation in contact with the real. The map does not reproduce an unconscious closed in upon itself; it constructs the unconscious. It fosters connections between fields, the removal of blockages on bodies without organs, the maximum opening of bodies without organs onto a plane of consistency. It is itself a part of the rhizome. The map is open and connectable in all of its dimensions; it is detachable, reversible, susceptible to constant modification. It can be torn, reversed, adapted to any kind of mounting, reworked by an individual, group, or social formation. It can be drawn on a wall, conceived of as a work of art, constructed as a political action or as a meditation. Perhaps one of the most important characteristics of the rhizome is that it always has multiple entryways; in this sense, the burrow is an animal rhizome, and sometimes maintains a clear distinction between the line of flight as passageway and storage or living strata (cf. the muskrat). A map has multiple entryways, as opposed to the tracing, which always comes back “to the same”.18 No fundo, não nos interessa a diferença entre um elemento e aquele que o acompanha, mas sim a unidade que eles constituem, o mapa que desenham. Muito claramente, se um mesmo elemento musical for mudado de contexto, mudará, também, de natureza, não devido a quaisquer razões internas, mas porque a sua posição face a um todo externo diferente lhe mudará a natureza. Mais especificamente, se pensarmos na recorrência de temas em Mahler, ou de figuras e elementos musicais em Berio, deparamos com a metamorfose que tais elementos envolvidos sofrem, no que poderíamos designar como um ritornello de grandes dimensões. E se é possível atribuirmos um papel material ou

17 LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm von, Monadologia, trad. Miguel Serras Pereira, Madrid: Prisa Innova S.L. [Lisboa: Fim de Século], 2008, p.203. 18 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.12.

!34 puramente expressivo, ou ainda uma mistura dos dois, a cada um dos elementos do rizoma, deveremos uma vez mais fenomenologicamente considerar as suas características em relação ao contexto que as circunda ou como emancipação desse mesmo contexto — e a música de Berio merece ser contemplada como uma paisagem de elementos diversos sem que seja necessário estabelecer relações ou herarquias entre eles.

É decisiva, para a constituição do rizoma, não a ideia de subordinação hierárquica dos seus elementos – típica de toda a estrutura arborescente una – e sim a ideia de uma estrutura em que qualquer elemento pode afectar exteriormente os restantes:

There is no unity to serve as a pivot in the object, or to divide in the subject. There is not even the unity to abort in the object or "return" in the subject. A multiplicity has neither subject nor object, only determinations, magnitudes, and dimensions that cannot increase in number without the multiplicity changing in nature (the laws of combination therefore increase in number as the multiplicity grows).19 Um rizoma tem também com as estruturas clássicas a diferença de poder ser interrompido a qualquer momento. Este traço liga-se ao princípio que Deleuze e Guattari apelidam de “ruptura não singificante”:

A rhizome may be broken, shattered at a given spot, but it will start up again on one of its old lines, or on new lines. You can never get rid of ants because they form an animal rhizome that can rebound time and again after most of it has been destroyed. Every rhizome contains lines of segmentarity according to which it is stratified, territorialized, organized, signified, attributed, etc., as well as lines of deterritorialization down which it constantly flees. There is a rupture in the rhizome whenever segmentary lines explode into a line of flight, but the line of flight is part of the rhizome. These lines always tie back to one another. That is why one can never posit a dualism or a dichotomy, even in the rudimentary form of the good and the bad.20 Quer isto dizer que, no rizoma, não apenas os seus pontos de conexão são imprevisíveis, como os seus próprios limites são por natureza inesperados. Note-se que, uma vez mais, esta característica é decisiva para a consideração que o espectador fará de cada um dos

19 Ibidem, p.8. 20 Ibidem, p.9.

!35 elementos desta estrutura. As formas de existência variável da obra de arte por compositores como Boulez, Stockhausen, Cage, e do próprio Berio, são uma ilustração imediata deste fenómeno, em que se faz um apelo à existência rizomática mutante dos seus elementos. Quer isto dizer que o intérprete é chamado a fazer uma reordenação dos elementos constitutivos da obra, mas, mais do que isso, o ouvinte da mesma, face a duas interpretações diferentes e portanto a duas reordenações de um mesmo material, plasmará na sua consciência uma ideia que é, não a de qualquer das interpretações, mas sim a da sua possibilidade.

Estreitamente relacionado com rizoma, a propósito desta prática de junção do diverso na música de Luciano Berio, está a ideia de assemblage, ou, em português, montagem, que tem com o conceito de rizoma uma relação perpendicular, já que os elementos díspares são simultâneos na assemblage e sucessivos no rizoma:

An assemblage has neither base nor superstructure, neither deep structure nor superficial structure; it flattens all of its dimensions onto a single plane of consistency upon which reciprocal presuppositions and mutual insertions play themselves out.21 Se podemos convocar o conceito de rizoma perante a Parte I de La vera storia, Naturale ou Rendering – onde encontramos a sucessão de elementos diversos, conduzindo a um todo maior –, já no caso do terceiro andamento de Sinfonia ou mesmo no caso de diversos momentos isolados de La vera storia (como teremos ocasião de analisar) – onde convivem elementos diversos em simultâneo – devemos considerar o conceito de assemblage.

O rizoma, por tudo o que foi dito até aqui, está muito estreitamente relacionado com o conceito de obra aberta, fixado por Umberto Eco22. Não é, de resto, por acaso que, no trabalho que Eco faz de fixação deste conceito, convoca quatro nomes da música do século XX – Stockhausen, Berio, Pousseur e Boulez – para descrever precisamente a natureza rizomática de algumas obras da sua produção23. De facto, como

21 Ibidem, p.90. 22 Umberto Eco, Obra Aberta, trad. João Rodrigo Narciso Furtado, Lisboa: Difel, 2009. 23 Cf. "A poética da obra aberta", in Eco, op. cit., pp.65-94. Sobre a relação deste conceito de Eco com a obra de Luciano Berio, cf. o estudo recente muito oportuno de Gianfranco Vinay: “Berio: Le chant des sirènes et la poétique de l'œuver «ouverte» aux résonances”, in Omaggio a Luciano Berio, dir. Danielle Cohen-Levinas, Paris, L’Harmattan, 2006, pp.24-34.

!36 impedir a interpretação múltipla por parte do ouvinte face a uma estrutura com as características como as que enunciámos? E como proceder à composição de obras completas na sua incompletude, que resulta inevitavelmente destes postulados? Como veremos adiante, esse é um dos grandes desafios da praxis musical beriana.

!37 Diferença e repetição

Uma outra característica recorrente da prática musical beriana é a inexistência de procedimentos de justaposição de materiais diversos através da sua semelhança em qualquer parâmetro musical: Berio não ambiciona normalmente juntar materiais diferentes através das suas características internas comuns, mas sim pela sua irredutível diferença. De igual modo, a repetição exacta, tão cara ao pensamento de compositores do período barroco, do período clássico, e mesmo do romantismo, é-lhe radicalmente estranha. É assim que um mesmo motivo presente em “La Condana”, de La vera storia (Parte I) não ocorre nunca em repetições exactas. O mesmo acontece, aliás, se pensarmos no segundo e quarto andamentos de Sinfonia: embora a sequência de notas de cada um destes andamentos se repita, ela nunca é sujeita aos mesmos valores rítmicos. Note-se que, paradoxalmente, esta é a única forma de repetição efectiva do ponto de vista fenomenológico: se repetíssemos a mesma sequência de notas com os mesmos valores rítmicos, perderíamos o ineditismo da primeira das suas eclosões. Não estaríamos de facto ante o mesmo efeito musical, visto que se trataria de uma recorrência.

Estes aspectos que acabamos de apontar quanto à música de Berio encontram correspondência, de novo, em dois conceitos importantes no pensamento de Gilles Deleuze. Falo, nomeadamente, dos conceitos de Diferença e Repetição. Não pretendemos perder o fluxo da nossa reflexão sobre Berio com a descrição minuciosa da ponderação deleuziana sobre estes dois termos — de facto, no seu livro seminal Différence et Répétition, Deleuze debate estes conceitos com grande profundidade filosófica, a ponto de podermos dizer que toda a história da filosofia é aqui repensada do ponto de vista de alguns dos seus mais salientes filões: a filosofia da representação, a filosofia da diferença, e por aí fora. Depois, em boa verdade, é o conceito de repetição que sofre um tratamento sistemático, sendo o de diferença convocado para o iluminar, chegando-se, no final desta reflexão filosófica, a uma anulação dos sentidos mais

!38 comuns destes dois termos, e dando-se a ver a sua estreita complementaridade24. Desde logo, na nota prévia deste livro Deleuze aponta para este mesmo intuito:

Ces deux recherches se sont spontanément rejointes, parce que ces concepts d'une différence pure et d'une répétition complexe semblaient en toutes occasions se réunir et se confondre. A la divergence et au décentrement perpétuels de la différence, correspondent étroitement un déplacement et un déguisement dans la répétition.25 Antes de mais, Deleuze pretende distinguir aquilo a que chama diferença em si do conceito tradicional de diferença, que está habitualmente sujeito ao que Deleuze chama as quatro ilusões da mediação: identidade, oposição, analogia e semelhança26. A diferença só ocorre, para Deleuze, se não houver identidade alguma entre os objectos, ou seja, se for considerada fora de uma realidade que lhe pré-existe, de uma representação que a aponte como 'diferente'. Quer isto dizer: se estivermos a falar de duas realidades realmente distintas, que não parecem ter qualquer ponto de contacto, e que seriam, por isso, no pensamento comum simplesmente incomparáveis:

Toutes les identités ne sont que simulées, produites comme un «effet» optique, par un jeu plus profond qui est celui de la différence et de la répétition. Nous voulons penser la différence en elle-même, et le rapport du différent avec le différent, indépendamment des formes de la représentation qui les ramènent au Même et les font passer par le négatif.27 A radicalidade desta noção de diferença terá, como veremos, enormes consequências na produção de outros conceitos filosóficos deleuzianos e só se compreende integralmente através do conceito de repetição em si. A ideia de repetição em si contrasta com a ideia de generalidade, ou seja, de fenómeno físico ou de outra ordem que se verifique sempre que se repitam as mesmas condições de partida28:

La répétition n'est pas la généralité. La répétition doit être distinguée de la généralité, de plusieurs façons. Toute formule impliquant leur confusion est fâcheuse […]. Répéter, c'est se comporter, mais par rapport à quelque chose

24 Cf. DELEUZE, Gilles, "Conclusion: Différence et répétition", op. cit., p.337ss. 25 Ibidem, p.2. 26 Ibidem, p.44-45, 48 e de novo 337ss. 27 Ibidem, pp.1-2. 28 Ibidem, p.10.

!39 d'unique ou de singulier, qui n'a pas de semblable ou d'équivalent. Et peut-être cette répétition comme conduite externe fait-elle écho pour son compte à une vibration plus secrète, à une répétition intérieure et plus profonde dans le singulier qui l'anime. […] On peut toujours «représenter» la répétition comme une ressemblance extrême ou une équivalence parfaite. Mais, qu'on passe par degrés d'une chose à une autre n'empêche pas une différence de nature entre les deux choses.29 Para Deleuze, a repetição só acontece verdadeiramente se houver alguma diferença. No limite, se o objecto for integralmente repetido, no sentido vulgar, ele é diferente fenomenologicamente, porque deixa de ter entre as suas características principais a sua percepção primeira. Numa referência muito pessoal, poderíamos dizer que é isso exactamente que acontece na música minimal repetitiva de Steve Reich, que foi, de resto, aluno de Luciano Berio: por mais que constatemos a repetição material de um objecto, a sua percepção não cessa de mudar30. Por isso, a repetição fenomenológica de um objecto só acontece realmente se houver, a nível do material, alguma diferença. Neste contexto, acrescentamos para efeitos de clarificação destes dois conceitos, que há quase como que uma inversão do seu significado em relação ao que é mais corrente no discurso comum: uma coisa só é diferente da que a precede se não tiver nada a ver com esta (diríamos que não são simplesmente comparáveis); e uma coisa só é igual (e portanto só se repete) quando apresenta diferenças sensíveis face à coisa que a precede:

En considérant la répétition dans l'objet, nous restions en deçà des conditions qui rendent possible une idée de répétition. Mais en considérant le changement dans le sujet, nous sommes déjà au-delà, devant la forme générale de la différence.31 Deleuze parte desta noção original de repetição para estabelecer três sínteses distintas do tempo, cuja essência, na opinião do filósofo, está a ela ligada. A primeira delas é a “síntese passiva” e corresponde à mutação de um objecto que associa à sua repetição o seu inevitável devir:

Une succession d'instants ne fait pas le temps, elle le défait aussi bien; elle en marque seulement le point de naissance toujours avorté. Le temps ne se constitue

29 Ibidem, pp.7-8. 30 Considere-se, por exemplo, Music for 18 Musicians (1974-1976), onde a repetição é literal, e no entanto, paradoxalmente a recepção de uma mesma figura não cessa de mudar. 31 DELEUZE, Gilles, Différence et Répétition, op. cit., p.97.

!40 que dans la synthèse originaire qui porte sur la répétition des instants. Cette synthèse contracte les uns dans les autres les instants successifs indépendants. Elle constitue par là le présent vécu, le présent vivant. Et c'est dans ce présent que le temps se déploie. C'est à lui qu'appartiennent et le passé et le futur […] Le présent n'a pas à sortir de soi pour aller du passé au futur. Le présent vivant va donc du passé au futur qu'il constitue dans le temps, c'est-à-dire aussi bien du particulier au général, des particuliers qu'il enveloppe dans la contraction, au général qu'il développe dans le champ de son attente […]. Cette synthèse doit, à tous égards, être nommée: synthèse passive.32 É isto que acontece no segundo e quarto andamentos de Sinfonia, já referidos acima: quando, nomeadamente, uma mesma melodia é distorcida ritmicamente na sua repetição.

A segunda delas é a “síntese activa”, que, em oposição à primeira, é mais distanciada a nível temporal e representa uma interferência humana na passagem do tempo.

La première synthèse du temps, pour être originaire, n'en est pas moins intratemporellc. Elle constitue le temps comme présent, mais comme présent qui passe. Le temps ne sort pas du présent, mais le présent ne cesse pas de se mouvoir, par bonds qui empiètent les uns sur les autres. Tel est le paradoxe du présent: constituer le temps, mais passer dans ce temps constitué. Nous ne devons pas récuser la conséquence nécessaire: Il faut un autre temps dans lequel s'opère la première synthèse du temps. Celle-ci renvoie nécessairement à une seconde synthèse. […] Mais ce qui fait passer le présent, et qui approprie le présent et l'habitude, doit être déterminé comme fondement du temps. Le fondement du temps, c'est la Mémoire. On a vu que la mémoire, comme synthèse active dérivée, reposait sur l'habitude: en effet, tout repose sur la fondation. Mais ce qui constitue la mémoire n'est pas donné par la. Au moment où elle se fonde sur l'habitude, la mémoire doit être fondée par une autre synthèse passive, distincte de l'habitude. […] L'Habitude est la synthèse originaire du temps, qui constitue la vie du présent qui passe; la Mémoire est la synthèse fondamentale du temps, qui constitue l'être du passé (ce qui fait passer le présent). […] La synthèse active a donc deux aspects corrélatifs, quoique non symétriques: reproduction et réflexion, remémoration et récognition, mémoire et entendement. […] Cette synthèse active

32 Ibidem, p.97.

!41 de la mémoire se fonde sur la synthèse passive de l'habitude, puisque celle-ci constitue tout présent possible en général.33 Em contraste com a síntese passiva, esta é uma interferência intencional no devir de um material, e constituirá, por oposição à primeira, a ideia de memória e não de simples sujeição ao devir mecânico do material. Novamente, encontramos exemplos claros de uma prática musical que se pode fazer corresponder com esta noção se pensarmos nas semelhanças do final do primeiro andamento de Sinfonia com o seu início. É também, uma vez mais, o que acontece com as diversas “Ballate” de La vera storia (Parte I).

Mais surpreendente é, talvez, encontrarmos uma correspondência na prática beriana com a terceira e mais complexa destas noções: a noção de repetição enquanto “síntese estática do tempo”, ou “forma vazia do tempo”34:

Il n'en reste pas moins que l'Idée est comme le fondement à partir duquel les présents successifs s'organisent dans le cercle du temps, si bien que le pur passé qui la définit elle-même s'exprime nécessairement encore en termes de présent, comme un ancien présent mythique. Telle était déjà toute l'équivoque de la seconde synthèse du temps, toute l'ambiguïté de Mnémosyne. Car celle-ci, du haut de son passé pur, dépasse et domine le monde de la représentation: elle est fondement, en-soi, noumène, Idée. Mais elle est encore relative à la représentation qu'elle fonde. Elle exhausse les principes de la représentation, à savoir l'identité dont elle fait le caractère du modèle immémorial, et la ressemblance dont elle fait le caractère de l'image présente: le Même et le Semblable. Elle est irréductible au présent, supérieure à la représentation; et pourtant elle ne fait que rendre circulaire ou infime la représentation des présents (même chez Leibniz ou chez Hegel, c'est encore Mnémosyne qui fonde le déploiement de la représentation dans l'infini). C'est l'insuffisance du fondement, d'être relatif à ce qu'il fonde, d'emprunter les caractères de ce qu'il fonde, et de se prouver par eux. C'est même en ce sens qu'il fait cercle: il introduit le mouvement dans l'âme plutôt que le temps dans la pensée. De même que le fondement est en quelque sorte «coudé», et doit nous précipiter vers un au-delà, la seconde synthèse du temps se dépasse vers une troisième qui dénonce l'illusion de l'en-soi comme étant encore un corrélat de la représentation. L'en-soi du passé et la répétition dans la réminiscence seraient une sorte «d'effet», comme un effet optique, ou plutôt l'effet erotique de la mémoire elle-même.

33 Ibidem, pp.108-110. 34 Ibidem, p.119 e 120.

!42 Que signifie: forme vide du temps ou troisième synthèse ? […] On distingue alors un passé plus ou moins long, un futur en proportion inverse, mais le futur et le passé ne sont pas ici des déterminations empiriques et dynamiques du temps: ce sont des caractères formels et fixes qui découlent de l'ordre a priori, comme une synthèse statique du temps. Statique forcement, puisque le temps n'est plus subordonné au mouvement; forme du changement le plus radical, mais la forme du changement ne change pas.35 Como tal, trata-se de uma noção de repetição que se torna temporalmente omnipresente, e em que a própria noção de tempo e da sua passagem não é apenas condicionada, mas é suspensa. Trata-se de sair do tempo através da reiteração e mutação de uma figura, cujo comportamento foge a qualquer previsibilidade comportamental. Por isso, Deleuze fala, um pouco paradoxalmente, diríamos nós, de tempo vazio. É isto, justamente, o que acontece no quinto andamento de Sinfonia, em que reiterações de andamentos anteriores se sucedem de forma caótica e sem qualquer previsibilidade possível.

35 Ibidem, p.119 e 120.

!43 Regime de signos

Este mesmo efeito de imprevisibilidade que acabamos de referir a propósito da terceira síntese temporal deleuziana, constante nos conceitos de repetição e diferença, está presente na prática artística de Berio em obras como Sequenza III (1966), para além do caso constituído pela Parte I de La vera storia. Acerca de Sequenza III Berio descreve minuciosamente aquilo que é um processo de imanência de sentido (ou sentidos), resultante do conflito entre gesto vocal e texto dito36. O processo descrito por Berio aproxima-se de forma flagrante do conceito de Gilles Deleuze de Regime de signos, hiperpresente no livro escrito em colaboração com Félix Guattari, Mille Plateaux. Este conceito representa a possibilidade de induzir sentido num signo através da sua constante recontextualização, e não apenas pela exploração das suas características internas:

There is a simple general formula for the signifying regime of the sign (the signifying sign): every sign refers to another sign, and only to another sign, ad infinitum. That is why, at the limit, one can forgo the notion of the sign, for what is retained is not principally the sign's relation to a state of things it designates, or to an entity it signifies, but only the formal relation of sign to sign insofar as it defines a so-called signifying chain. The limitlessness of signifiance replaces the sign.37 Bruce Quaglia, numa reflexão que vem muito a propósito da nossa pesquisa, descreve o modo como Deleuze caracteriza estes regimes semióticos:

Deleuze describes several traits of a regime of signs: among these, “circularity” and “expansion”. A fog of meaning and interpretation is thus imposed by the mere “formal redundancy” of the regime. It spirals outward from a central nexus: a core in which signs not only loop back upon themselves, but also simultaneously move outward to connect with other new circles of signification.38

36 Cf. BERIO, Luciano, “Forgetting Music”, in Remembering the future, Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2006, pp.68-71. 37 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.112. 38 QUAGLIA, Bruce, "Transformation and Becoming other in the Music and Poetics of Luciano Berio", in Sounding the Virtual. Gilles Deleuze and the Theory and Philosophy of Music, ed. by Brian Hulse and Nick Nesbitt, Surrey, Burlington: Ashgate, 2010, pp.234-235.

!44 Na citação que acabamos de fazer, gostaríamos de realçar a referência a três aspectos decisivos na constituição do discurso beriano, e que representam uma outra face dos processos de transformação através do múltiplo a que temos feito menção ao longo desta reflexão. Estas três características correspondem aos termos que Quaglia cita de Deleuze: circularidade, expansão e redundância (traço ligado à recontextualização de que falamos acima). E são elas que permitem a constituição de um discurso que, ao mesmo tempo que não impõe uma leitura única do seu desenrolar, não desiste de sugerir a presença de um sentido ou de múltiplos sentidos escondidos. Note-se que o processo descrito por Berio sobre Sequenza III não é um processo estranho à percepção humana. É um processo muitíssimo comum, que tem a ver com uma certa distracção, em que apreendemos múltiplos sentidos à nossa volta, que tendemos a remeter para um segundo plano, para que não interfiram no primeiro plano da percepção. A música de Berio privilegia essa potencial multiplicidade de planos de sentido. Na obra de Berio – e, nomeadamente, em La vera storia – estes momentos são frequentes, como teremos ocasião de demonstrar adiante. Vemos, assim, que aquilo que significa cada signo depende de um processo, que embora pareça por vezes votado à entropia, apenas prefigura a infinitude de um labirinto de significação em constante expansão. O criador de uma tal estrutura encontra-se perante o desafio de impedir uma leitura entrópica dos seus compostos, embora saiba que os todos arbóreos não hierárquicos que pratica são susceptíveis de diversas interpretações. Por isso, Bruce Quaglia tem razão quando diz que “This process overcomes the inherent entropy of the system of signs and ensures the growth of the regime itself – it is an essentially arboreal organization that facilitates the regime’s growth outward from a central core.”39. Nós falaríamos antes, a propósito da música de Berio, em todos rizomáticos, mesmo que gerados a partir de unidades arbóreas. No caso de Berio, este processo de constante e recursiva recontextualização não pára onde chega a entropia, mas sim onde a virtualidade infinita dos seus caminhos se torna clara para o ouvinte. Não se trata, pois, de um processo de desconstrução, mas de contemplação de uma paisagem ainda por construir, e cujos contornos por natureza são inacessíveis. Teremos ocasião, no próximo capítulo, de ver em detalhe como todos

39 Ibidem, p.235.

!45 estes traços acontecem na produção de Berio, e no último capítulo desta dissertação faremos a ponderação sobre as consequências éticas deste mesmo procedimento.

!46 Sensação

Esta organização complexa, típica dos regimes de signos, baseia-se, contudo, na constituição de entidades de natureza inequívoca, na medida em que não necessitam de ser descodificadas racionalmente na sua recepção. Note-se que o contraste entre estas diferentes entidades é algo especialmente permitido pelo cunho da multiplicidade que habita a música de Berio, que assim se expõe na sua incontornável plasticidade. Este contraste é o que permite a criação de sensações, seja este provocado por elementos efectivamente presentes no tecido musical de contornos assumidamente diversos, ou pela simples expectativa gerada no ouvinte. A este propósito, poderíamos dizer que Berio é um compositor que se dedica, antes de mais, à Sensação, reflectindo a sua concepção de arte, e aproximando-se, uma vez mais, da concepção que dela tem Gilles Deleuze, e que Daniel Smith e John Protevi descrevem do seguinte modo:

For Deleuze, the task of art is to produce “signs” that will push us out of our habits of perception into the conditions of creation. When we perceive via the recognition of the properties of substances, we see with a stale eye pre-loaded with clichés; we order the world in what Deleuze calls “representation.” In this regard, Deleuze cites Francis Bacon: we're after an artwork that produces an effect on the nervous system, not on the brain. What he means by this figure of speech is that in an art encounter we are forced to experience the “being of the sensible.”40 Note-se, antes de mais, a transição entre um acto de percepção para a vivência de uma experiência, fundamental na fruição da obra de arte. A arte, neste sentido, não é objecto de percepção, mas sim de sensação. A esta afirmação acrescentamos nós que uma das principais características da música de Luciano Berio é o facto de sermos forçados a repensar conceitos antigos através da sensação musical em acto; será esta uma das tarefas propostas para o segundo capítulo desta dissertação. Uma vez mais, ponderamos a importância ética da consideração deste processo no último capítulo da nossa dissertação.

40 SMITH, Daniel and Protevi, John, "Gilles Deleuze", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = consultada em 21 de Setembro de 2015.

!47 Sensação representa, pois a condição sine qua non de todo o processo artístico. Este conceito – definido por Gilles Deleuze no seu último livro, escrito em colaboração com Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?41 – integra-se, de resto, numa percepção mais ampla da acção humana, que Deleuze e Guattari separam em três áreas distintas: a filosofia, a ciência e a arte. Se a filosofia se vota à criação de conceitos e a ciência à criação de funções, a arte dedica-se à criação de sensações42. Estas sensações são, segundo Deleuze, compostas de “perceptos” e “afectos”, sendo o objecto de arte irredutivelmente independente do homem, seja este o seu criador ou o seu receptor:

Ce qui se conserve, la chose ou l'œuvre d'art, est un bloc de sensations, c'est-à- dire un composé de percepts et d'affects. Les percepts ne sont plus des perceptions, ils sont indépendants d'un état de ceux qui les éprouvent; les affects ne sont plus des sentiments ou affections, ils débordent la force de ceux qui passent par eux. Les sensations, percepts et affects, sont des êtres qui valent par eux-mêmes et excèdent tout vécu. Ils sont en l'absence de l'homme, peut-on dire, parce que l'homme, tel qu'il est pris dans la pierre, sur la toile ou le long des mots, est lui-même un composé de percepts et d'affects. L'œuvre d'art est un être de sensation, et rien d'autre: elle existe en soi.43 Deleuze e Guattari não chegam a isolar uma definição clara de percepto e afecto44, embora se trate de termos (sobretudo o segundo) que ocupam um lugar importante no jargão filosófico, ao qual Deleuze não é alheio, nomeadamente45. Percepto e afecto são, contudo, debatidos ao longo de uma ponderação que se sustenta na enumeração de múltiplos artistas e objectos de arte (da literatura à pintura e

41 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris: Les Éditions de Minuit, 2005 (1991). 42 "Nous ne disposons encore que d'une hypothèse très large : des phrases ou d'un équivalent, la philosophie tire des concepts (qui ne se confondent pas avec des idées générales ou abstraites), tandis que la science tire des prospects (propositions qui ne se confondent pas avec des jugements), et l'art tire des percepts et affects (qui ne se confondent pas davantage avec des perceptions ou sentiments)", in Qu'est-ce que la philosophie?, op. cit., p.29. Cf. ainda a este propósito pp.109ss. Pese embora as distinções bem claras ao longo deste livro entre os vários termos que se ligam a cada uma destas áreas, Deleuze e Guattari apontam também para a sua proximidade ou afinidade (vd. pp.64s., 124ss. e 187s.). 43 Ibidem, p.154-155. 44 A dada altura lemos que estes termos não são fáceis de fixar, chegando Deleuze e Guattari a falar de "enigma" (p.159): "Nous ne pouvons guère développer ces déterminations, parce que le statut des percepts et des affects purs nous échappe encore, renvoyant à l'existence des arts.". In Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p.126. 45 O afecto, nomeadamente, é profusamente debatido em vários dos seus livros, também no contexto da sua recepção de Espinosa, como é sabido.

!48 escultura, passando pela música)46, que ilustram de forma mais concreta os modos como se articulam estes dois termos da sensação, além de se clarificar, também, o lugar da arte, da ciência e da filosofia47. Na verdade, percepto e afecto são faces de uma mesma moeda, que se articulam na fenomenologia do corpo que é o objecto artístico. Visto desta perspectiva, no contexto de um corpo que acontece, que está em devir, percepto e afecto são os modos de articulação deste devir que é a sensação, num movimento que até certo ponto faz eco da dinâmica das sínteses do tempo de que falámos atrás. Suportando-se em Cézanne, Deleuze e Guattari escrevem:

La sensation ne se réalise pas dans le matériau sans que le matériau ne passe entièrement dans la sensation, dans le percept ou l'affect. Toute la matière devient expressive. […] Le but de l'art, avec les moyens du matériau, c'est d'arracher le percept aux perceptions d'objet et aux états d'un sujet percevant, d'arracher l'affect aux affections comme passage d'un état à un autre. Extraire un bloc de sensations, un pur être de sensation.48 C'est l'énigme (souvent commentée) de Cézanne: «l'homme absent, mais tout entier dans le paysage». Les personnages ne peuvent exister, et l'auteur ne peut les créer, que parce qu'ils ne perçoivent pas, mais sont passés dans le paysage et font eux-mêmes partie du composé de sensations. […] Les affects sont précisément ces devenirs non humains de l'homme, comme les percepts […] sont les paysages non humains de la nature.49 Il s'agit toujours de libérer la vie là où elle est prisonnière, ou de le tenter dans un combat incertain. La mort du porc-épic chez Lawrence, la mort de la taupe chez Kafka, sont des actes de romancier presque insoutenables; et parfois il faut se coucher par terre, comme le peintre le fait aussi pour atteindre au «motif», c'est-à-dire au percept. Les percepts peuvent être télescopiques ou microscopiques, ils donnent aux personnages et aux paysages des dimensions de

46 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, Quest-ce que la philosophie?, op. cit., pp.154ss. 47 "La différence entre les personnages conceptuels et les figures esthétiques consiste d'abord en ceci: les uns sont des puissances de concepts, les autres, des puissances d'affects et de percepts. Les uns opèrent sur un plan d'immanence qui est une image de Pensée-Etre (noumène), les autres, sur un plan de composition comme image d'Univers (phénomène). Les grandes figures esthétiques de la pensée et du roman, mais aussi de la peinture, de la sculpture et de la musique, produisent des affects qui débordent les affections et perceptions ordinaires, autant que les concepts débordent les opinions courantes. […] L'art et la philosophie recoupent le chaos, et l'affrontent, mais ce n'est pas le même plan de coupe, ce n'est pas la même manière de le peupler, ici constellations d'univers ou affects et percepts, là complexions d'immanence ou concepts. L'art ne pense pas moins que la philosophie, mais il pense par affects et percepts." In Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p.64. 48 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, Quest-ce que la philosophie?, op. cit., p.157-158. 49 Ibidem, p.159-160.

!49 géants, comme s'ils étaient gonflés par une vie à laquelle aucune perception vécue ne peut atteindre.50 L'affect ne dépasse pas moins les affections que le percept, les perceptions. L'affect n'est pas le passage d'un état vécu à un autre, mais le devenir non humain de l'homme.51 Ensaiemos, então, a circunscrição dos conceitos tão bem emanados por Deleuze e Guattari. O percepto é o resultado da organização de uma paisagem por parte de um determinado emissor, com vista a uma possível recepção. O afecto é o efeito determinado por parte de um emissor através da constituição de perceptos com vista ao seu processamento por parte de um hipotético receptor. Fazendo eco da ponderação longa por Deleuze e Guattari, podemos avançar com os seguintes exemplos, a partir da pintura de Cézanne e de Bacon e da música de Messiaen: na pintura, as paisagens de Cézanne são perceptos (nós acrescentaríamos que são também afectos, na medida em que são pintadas de forma particular) e as cabeças humanas em transformação para cabeças animais, de Bacon, são afectos. Na música, as paisagens sonoras de Messiaen seriam perceptos, enquanto a evolução dos cantos das aves nas mesmas partituras se constituiriam enquanto afectos. Novamente, chamamos a atenção para o facto de não ser possível a organização de perceptos, como nas paisagens sonoras de Messiaen, sem que haja emanação de afectos, embora naturalmente com importâncias diferentes.

Na nossa opinião, os perceptos e afectos são algo de decisivo na compreensão da especificidade da criação musical de Luciano Berio. Se pensarmos nas paisagens sonoras de Messiaen aludidas por Deleuze e Guattari, ou no canto das aves e na sua transformação posterior, temos a constituição de percepto e afecto em estruturas distintas, enquanto que em Berio a constituição de estruturas sintácticas simples e para- funcionais (de que falaremos em detalhe no próximo capítulo) permite a emanação simultânea de perceptos (como sucessão entre dois acordes) e de afectos (como o número de notas e cores de cada um desses acordes), ao contrário da generalidade da música contemporânea52. A este propósito, repare-se como, na música do período

50 Ibidem, p.162. 51 Ibidem, p.163. 52 Veremos adiante como a identificação dos próprios acordes envolvidos nesta sucessão que apelidaremos de pseudo-bipolar não é, de modo nenhum, uma tarefa simples, já que muitas vezes entidades diferentes representam a mesma tensão acústica.

!50 barroco, do período clássico e mesmo do romantismo, os preceptos são as cadências e frases mais comuns amplamente repetidas e o afecto é a inversão particular de cada acorde, a nota da melodia, e também a relação entre frases. Se pensarmos numa obra como Rituel (1974-1975), de Pierre Boulez, o percepto é o refrão, pouco a pouco desvendado, e o afecto é a sua glosa. Dérive 1 (1984), por seu turno, representa um caso particular na obra deste compositor, na medida em que consegue, tal como na produção de Luciano Berio, a simultaneidade na geração de percepto e afecto. Note-se, ainda, que em muita música moderna, e particularmente em grande parte da música dodecafónica, a produção de perceptos permanece enigmática, enquanto que a produção de afectos é indesmentível. O que acabamos de afirmar é, sem dúvida, extremamente paradoxal, porque embora os compositores da Segunda Escola de Viena não cessem de produzir perceptos facilmente isoláveis pelo analista, quando o ouvinte é posto perante os mesmos deparará com afectos, e é nesta sua condição que a sensação tem lugar. Uma situação paradoxal, face à qual os compositores da geração de Luciano Berio terão de pensar a sua arte, os seus fundamentos e as suas consequências mais profundas.

!51 Desterritorialização e Reterritorialização

Os conceitos de que temos vindo a falar – multiplicidade, rizoma, diferença e repetição, regime de signos, e sensação – caracterizam entidades que, na sua relação entre si, obedecem a uma dinâmica de Desterritorialização e Reterritorialização, conceitos fixados por Deleuze e Guattari em L'Anti-Œdipe (1972)53. Esta questão é, mais uma vez, basilar para o entendimento da produção beriana e liga-se estreitamente à necessidade da multiplicidade como ponto de partida para a constituição da sua obra de arte musical. Porque, para Berio, na música dodecafónica de um Webern ou de um Schoenberg, a existência de um único elemento de desenvolvimento do material foi sempre uma das questões mais difíceis de resolver:

L'idéologie de l'industrie culturelle tend à figer l'expérience dans des schèmes et des manières: la formation devient la Forme, un instrument: un Gadget; une idée sociale: un Parti; les poétiques de Schönberg et Webern: le Système Dodécaphonique. Pour moi, par contre, il est essentiel que le compositeur soit capable de prouver la nature relative des processus musicaux: leurs modèles structuraux, basés sur l'expérience du passé, engendrent non seulement des règles, mais aussi la transformation et la destruction de ces mêmes règles.54 Note-se, a este respeito, como também para Bruno Maderna um material inicial da composição é constituído por mais do que uma sequência de sons, e é o trajecto entre estas diferentes entidades que constitui o seu processo criativo55.

53 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, L'Anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie, Paris: Les Éditions de Minuit, 1972. Trata-se do primeiro volume de dois, que resultam da colaboração de Deleuze e Guattari, dedicados ao tema "capitalismo e esquizofrenia", sendo o segundo Mille Plateaux. Será, de resto, a partir do uso destes conceito em Mille Plateaux que faremos a clarificação dos mesmos no contexto da nossa reflexão sobre a música de Berio, dado que em L'Anti-Œdipe eles são revistos à luz de um debate que não se nos afigura pertinente aqui. Estes conceitos, de resto, vieram a ser adoptados e transformados noutros campos, como o da antropologia, reflectindo, de resto, o próprio espírito deleuziano na tendência para se afastar de um uso rigoroso das definições que fixa, privilegiando, como dissémos atrás, a clarificação do objecto sobre o qual reflecte e sacrificando, se necessário, uma definição primeira dos conceitos que usa para esse efeito. 54 BERIO, Luciano, “Méditation sur un cheval de douze sons”, Contrechamps nº 1, Séptembre 1983, p. 47. Texto escrito em 1965 e apresentado pela primeira vez na Juilliard School of Music em Nova Iorque («Meditation on a twelve-tone horse»). Editado em 1980 e coligido, na versão em italiano, no recente volume sobre os escritos de Berio («Meditazione su un cavallo a dondolo dodecafonico», pp.37-41), volume este que ainda apresenta uma versão de 1968 do mesmo texto (vd. pp.434-439): BERIO, Luciano, Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, Intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013. 55 Cf. FEARN, Raymond, op. cit.

!52 Quando falamos de desterritorialização e reterritorialização, falamos de dois termos de um mesmo processo: desterritorializar é o primeiro passo para construir um novo território, aqui entendido como um conjunto de relações que, através de fenómenos como o ritornello (de que falamos adiante), é tornado habitável pelo corpo. Trata-se de um processo progressivo que pode significar a mudança de um determinado estado arborescente ou rizomático para outro estado também arborescente ou rizomático, mas com diferentes características:

How could movements of deterritorialization and processes of reterritorialization not be relative, always connected, caught up in one another? The orchid deterritorializes by forming an image, a tracing of a wasp; but the wasp reterritorializes on that image. The wasp is nevertheless deterritorialized, becoming a piece in the orchid's reproductive apparatus. But it reterritorializes the orchid by transporting its pollen. Wasp and orchid, as heterogeneous elements, form a rhizome.56 Há que notar, no entanto, que este processo pode ser repetido ad aeternum: o território construído a partir da destruição de um outro será, depois, sujeito a nova destruição, e assim por diante. Aliás, o carácter recorrente deste gesto impede, logicamente, que se possa falar de territorialização de forma definitiva. Este é sempre um gesto com duas valências, simultâneo ou sucessivo, de des- e de re-territorialização. O carácter de percepção global de um determinado movimento de larga escala é o que mais impressiona aqui:

Deterritorialization must be thought of as a perfectly positive power that has degrees and thresholds (epistrata), is always relative, and has reterritorialization as its flipside or complement. An organism that is deterritorialized in relation to the exterior necessarily reterritorializes on its interior milieus. A given presumed fragment of embryo is deterritorialized when it changes thresholds or gradients, but is assigned a new role by the new surroundings. Local movements are alterations. Cellular migration, stretching, invagination, folding are examples of this. Every voyage is intensive, and occurs in relation to thresholds of intensity between which it evolves or that it crosses. One travels by intensity; displacements and spatial figures depend on intensive thresholds of nomadic deterritorialization (and thus on differential relations) that simultaneously define complementary, sedentary reterritorializations. Every stratum operates this way:

56 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.10.

!53 by grasping in its pincers a maximum number of intensities or intensive particles over which it spreads its forms and substances, constituting determinate gradients and thresholds of resonance (deterritorialization on a stratum always occurs in relation to a complementary reterritorialization).57 E quando Berio fala, no seu livro Remembering the Future, de que há milhões de formas de esquecer a música, e de que está interessado nos modos activos deste esquecer, Berio está simultaneamente a falar da construção de um todo novo58. Mesmo que, por exemplo, esse todo novo seja a música do silêncio ou do pseudo-silêncio de John Cage – cuidadosamente construída através da destruição do tecido musical a que tínhamos assistido –, é, no entanto, a afirmação de um outro som que não nos deve passar despercebida59. Mas podemos continuar: talvez devêssemos perceber neste silêncio a preparação para aquilo que pensamos ser um outro evento isolado. Porque não há eventos isolados, mas apenas a existência de um monstruoso ritornello que não cessará de nos abraçar.

A Parte II de La vera storia apresenta nove cenas distintas, que traduzem de forma muito clara este ímpeto de desterritorialização e reterritorialização, de que temos vindo a falar. E, ao mesmo tempo que cada um destes momentos representa este esforço composicional, o conjunto constituído por estes diferentes momentos é também um exemplo, a uma escala temporal maior, do mesmo fenómeno de constante transformação de um objecto inicial, cujo final é, naturalmente, deixado em suspenso, porque o processo que inicia é algo que pode terminar apenas provisoriamente:

The plane of organization is constantly working away at the plane of consistency, always trying to plug the lines of flight, stop or interrupt the movements of deterritorialization, weigh them down, restratify them, reconstitute forms and subjects in a dimension of depth. Conversely, the plane of consistency is constantly extricating itself from the plane of organization, causing particles to spin off the strata, scrambling forms by dint of speed or slowness, breaking down functions by means of assemblages or microassemblages. But once again, so

57 Ibidem, p.54. 58 BERIO, Luciano, Remembering the future, op. cit., pp.61-62. 59 Não é demais fazermos referência à antologia dos escritos de John Cage sobre o silêncio, em Silence, Lectures and Writings by John Cage, New England, Hanover: Wesleyan University Press, 1973 [1961]. Acresce a esta referência o estudo fundamental de James Pritchett sobre a música de John Cage: The Music of John Cage, Cambridge: Cambridge University Press, 1996 (1993).

!54 much caution is needed to prevent the plane of consistency from becoming a pure plane of abolition or death, to prevent the involution from turning into a regression to the undifferentiated.60 Este processo de transformação, subtil e complexo, é acompanhado pelo retorno reiterado do que poderíamos designar como refrão, ou ritornello, cuja designação Gilles Deleuze e Félix Guattari, não por acaso, resgatam do âmbito musical. O que isto significa, antes de mais, é que a descrição de um paradigma mental humano se faz de forma mais clara através de um processo musical. Isto acarreta, portanto, duas consequências: por um lado, a extrema adequação deste conceito filosófico à prática musical (talvez não exclusivamente de Luciano Berio, e talvez não exclusivamente contemporânea), por outro lado, a extrema adequação de um modo de pensar musical à reflexão filosófica. O refrão, ou ritornello, surge trabalhado por Deleuze e Guattari em Mille Plateaux61, e vem mais tarde a ser também recuperado, a propósito de “Ópera”, em L’Abécédaire de Gilles Deleuze, a série televisiva produzida por Pierre-André Boutang, com um conjunto de conversas de Deleuze com Claire Parnet entre 1988 e

198962.

O refrão é um instrumento através do qual se habita o caos, contaminando-o, e se define, provisoriamente que seja, um território:

I. A child in the dark, gripped with fear, comforts himself by singing under his breath. He walks and halts to his song. Lost, he takes shelter, or orients himself with his little song as best he can. The song is like a rough sketch of a calming and stabilizing, calm and stable, center in the heart of chaos. Perhaps the child skips as he sings, hastens or slows his pace. But the song itself is already a skip: it jumps from chaos to the beginnings of order in chaos and is in danger of breaking apart at any moment. […] Sometimes chaos is an immense black hole in which one endeavors to fix a fragile point as a center. Sometimes one organizes around that point a calm and stable "pace" (rather than a form): the black hole has become a home. […] We always come back to this "moment": the becoming- expressive of rhythm, the emergence of expressive proper qualities, the formation of matters of expression that develop into motifs and counterpoints. We therefore

60 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.270. 61 Ibidem, pp.310-350. 62 L'abécédaire de Gilles Deleuze, dirigido por Pierre-André Boutang e Michel Pamart, com Gilles Deleuze e Claire Parnet, DVD, ASIN: B0001JZP3C, 1996 (7h30m).

!55 need a notion, even an apparently negative one, that can grasp this fictional or raw moment. The essential thing is the disjunction noticeable between the code and the territory. The territory arises in a free margin of the code, one that is not indeterminate but rather is determined differently.63 Sublinhe-se que a resistência de Deleuze e Guattari a descrever este termo de forma puramente filosófica é manifesta — estamos com certeza, perante algo de extrema importância na condição humana. Porque, como forma de habitar o desconhecido, é natural no homem o esforço de repetição de um mesmo lugar. Um lugar em que quem está é ele mesmo. Em que quem é, é ele. O refrão é muito mais do que algo apenas musical. É uma necessidade humana. Por isso, na Parte II de La vera storia deparamos com uma melodia que é repetida, um seu segmento, ou apenas uma das suas notas. Ou talvez um ritmo. Um acorde. Ou qualquer elemento que se reconheça como familiar. Porque, face ao constante devir e à indeterminação que ele causa, assistimos à repetição de um mesmo refrão. Podemos ir mais longe e mais fundo, e dizer que a Parte II de La vera storia desafia a nossa percepção sobre o que está realmente em causa na ópera, ou melhor, sobre que história se está de facto a contar — está-se a contar a nossa história; de todos e de cada um de nós. O libretto como que estilhaça os textos e os episódios narrados na Parte I, cruzando-os e tecendo-os para formar cenas segundo critérios que se afastam radicalmente dos que imperam na construção da Parte I. Na Parte II, a partir da reordenação dos mesmos materiais, ou da mesma matéria que nos é apresentada na Parte I, aponta-se para um enunciado-outro que subjaz ao texto e que chama a nossa atenção para questões intrinsecamente humanas, muito para além dos episódios inicialmente narrados; ou melhor, dando a ver o que neles há de mais fundo e lhes é comum, o que os une. Neste contexto, na Parte II de La vera storia, o refrão, seja este constituído em cada uma das suas cenas, seja repetido entre cenas, seja através da citação de outra obra do mesmo compositor (Sequenza IXa per Clarinetto [1980]), envolve e dá perspectiva às questões fundamentais debatidas nesta ópera, que são, afinal, as questões fundamentais da condição humana.

63 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., pp.311-322.

!56 Se pensarmos numa outra dimensão, verificamos, aliás, que apenas uma nota é, no fundo, evocação de todos os múltiplos contextos em que ela já surgiu. Percebemos, assim, melhor, quando Lorenzo Arruga diz de Berio:

L'idea di Berio, invece, è che nella musica ci sia sempre la memoria del suono, al punto che se un musicista per esempio fa suonare una campana non può non evocare tutte le campane che abbiamo sentito, né escluderne il significato che vi abbiamo conferito: naturalmente la stessa attivazione avviene nei processi più complessi64. Ou quando o próprio Berio, a propósito de Schubert e Schoenberg, afirma nas suas lições de Harvard:

A melody by Schubert or a musical configuration by Schoenberg are not the pieces of a musical chessboard; they carry within themselves the experience of other melodies and other configurations, and their transformations are inscribed, so to speak, in their genetic code.65 Finalmente, estes processos – a desterritorialização / reterritorialização e o refrão – podem afectar-se mutuamente: eu posso ter a repetição de um mesmo processo de desterritorialização / reterritorialização, que se torna, assim, num enorme refrão – os inícios da quarta e sexta cenas da Parte II de La vera storia são particularmente ilustrativos deste fenómeno. Ou posso ter a repetição de um refrão, que primeiro é sentido como momento excepcional num processo de desterritorialização, para depois, pela sua repetição gradualmente obsessiva, tornar-se, ele próprio, autónomo em relação ao território, que assim se abre ao processo de transformação – a quinta cena da Parte II de La vera storia é particularmente ilustrativa deste fenómeno. A arquitectura musical beriana regerá a sobreposição destes conceitos, a sua transição e a sua abertura ao universo.

64 "Per ascoltare Berio", in Berio, a cura di Enzo Restagno, Torino, Edizioni di Torino, 1995, p.33 (31-50). Teremos ocasião de desenvolver no próximo capítulo a questão do refrão, a propósito da praxis musical beriana. 65 BERIO, Luciano, Remembering the future, op. cit., p.11.

!57 Ciência menor

É muito importante pensar num patamar temporal e espacial perpendicular àquele que está envolvido na consideração da desterritorialização / reterritorialização e do refrão / ritornello, e constatarmos que a música de Berio constitui, sem dúvida, um ensejo particularmente oportuno para vermos, como diz Brian Hulse, a teoria musical como uma “ciência menor”66, fazendo apelo às noções de posição maioritária e minoritária, tal como definidas por Deleuze e Guattari em Mille Plateaux67. Este conceito de Ciência menor, recordêmo-lo, é oriundo do livro destes dois autores sobre Franz Kafka, onde falam de uma “literatura menor”:

Le problème de l'expression n'est pas posé par Kafka d'une manière abstraite universelle, mais en rapport avec les littératures dites mineures — par exemple la littérature juive à Varsovie ou à Prague. Une littérature mineure n'est pas celle d'une langue mineure, plutôt celle qu'une minorité fait dans une langue majeure. Mais le premier caractère est de toute façon que la langue y est affectée d'un fort coefficient de déterritorialisation. […] Le second caractère des littératures mineures, c'est que tout y est politique. Dans les «grandes» littératures au contraire, l'affaire individuelle (familiale, conjugale, etc.) tend à rejoindre d'autres affaires non moins individuelles, le milieu social servant d'environnement et d'arrière-fond; si bien qu'aucune de ces affaires œdipiennes n'est indispensable en particulier, n'est absolument nécessaire, mais que toutes «font bloc» dans un large espace. La littérature mineure est tout à fait différente: son espace exigu fait que chaque affaire individuelle est immédiatement branchée sur la politique. L'affaire individuelle devient donc d'autant plus nécessaire, indispensable, grossie au microscope, qu'une tout autre histoire s'agite en elle.68 A ideia de uma ciência menor, ou de uma prática musical menor, não tem nada de pejorativo. Pelo contrário, refere-se a todos os esforços de revolução levados a cabo por diversos criadores, sem dúvida decisivos no devir da arte. Significa, muito concretamente, o esforço de uma determinada posição estética, que se constitui

66 HULSE, Brian, "Thinking musical difference: music theory as a minor science", in Sounding the Virtual…, op. cit., pp.23-50. 67 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., pp.105-106. 68 DELEUZE, Gilles Félix Guattari, Kafka. Pour une Litterature Mineure, Paris: Les Éditions de Minuit, 1975, pp.29-30.

!58 alojando-se nos quadros operativos de outra entidade. Este processo de desterritorialização de um quadro pré-existente que é visto como maioritário, é, como dissemos acima a propósito deste conceito, também um processo de reterritorialização. Temos, assim, que a posição primeiramente minoritária pode chegar a constituir-se enquanto posição maioritária.

Neste contexto, Bruce Quaglia fala de Berio de forma exemplar, ao ler na sua prática de transformação do material uma prática minoritária:

[…] considering Berio’s own practice of transcription and transformation in music […] Berio's position that music is always configured as a network of relationships between texts may now be recast into terms that specifically avoid recourse to sign systems and their corresponding regimes. […] Berio forgets the past by transforming the blocks of sensation that are extracted from it. He takes the language of the past and makes it stutter by using it in an intensive and asignifying manner. He is not sentimental about the musical past, but instead his relationship to it is both open and pragmatically dynamic.69 Iríamos mais longe, para dizer que esta dinâmica de reterritorialização – que é, para Deleuze, inerente a qualquer processo de desterritorialização – parece ser sistematicamente recusada por Luciano Berio. De facto, a constituição de uma prática maioritária seria, por natureza, incompatível com a estética e ética berianas, como teremos ocasião de aprofundar adiante nesta dissertação. E isto nota-se em toda a sua produção, mas muito claramente em processos criativos como aqueles que são corporeizados pelas suas Folk Songs (1964), pelas suas adaptações dos Beatles, pela sua incursão no campo da música ligeira com «Autostrada» e «Ore mi alzo», integradas em Allez Hop (1959), ou pelas citações do terceiro andamento da sua Sinfonia. Porque, acima de tudo, Berio pretende recusar a existência de uma interpretação unívoca e, num contexto mais alargado, de um domínio cultural e político de uns – os maioritários – sobre outros – os minoritários. O processo não poderá, pois, ser fechado, mas deverá ficar em suspenso, reflectindo o enorme caldeirão cultural dos nossos dias. É muito interessante, a este propósito, pensarmos nas palavras de Brian Hulse em Sounding the Virtual:

69 QUAGLIA, Bruce, "Transformation and Becoming other in the Music and Poetics of Luciano Berio", in op.cit., pp.244-245.

!59 Genre amounts to a porous totality at best. It is shot through with subterranean flows, noise, and rogue communications — what constitutes part of a genre’s chemistry but which is foreign, autonomous, arising elsewhere. Generally, these transient or unauthorized migrations are suppressed by scholars in order to support certain kinds of historical or ethnographic projects.70 Esta afirmação, de resto, vai ao encontro dos estudos feitos por Michael Tenzer sobre a teoria das músicas do mundo71, que aliás Brian Hulse cita no capítulo a que pertence o excerto acima transcrito72. Ora, o trabalho de Tenzer alicerça-se, por seu turno, nas pesquisas efectuadas por François-Bernard Mâche sobre os “universais” da música, no seu livro Musique au Singulier73. Estes universais são genotipos (conjunto das informações genéticas), tais como a repetição, a simplificação, a alternância, a evolução, e o conflito74. Estes genotipos podem materializar-se em fenotipos, tais como, por exemplo, o ostinato, accellerandos e rallentandos, a alternância harmónica, ou em estrututras em forma antifonal75. Finalmente, Mâche afirma ainda que estes fenotipos poderão constituir um conjunto de arquétipos, entre os quais se contam, por exemplo, a elaboração de um estado inicial de caos, a elaboração de um fluxo energético, a elaboração resultante do princípio aditivo de Bergson, o princípio da dialéctica hegeliana (tese, antítese e síntese), e a quaternidade dramática mitológica de Jung: presente, passado, novamente presente, mas desta vez rumo a um futuro76. A estes juntam-se, naturalmente, momentos como o acontecimento inesperado, sem causa aparente, e estranho ao tecido onde surge subitamente, tão comum em tantas estruturas formais de Luciano Berio77.

70 HULSE, Brian, "Thinking musical difference: music theory as a minor science", op. cit., p.42. 71 TENZER, Michael, “Analysis, Categorization and Theory of the musics of the world”, in Analytical Studies in World Music, ed. by Michael Tenzer, Oxford: Oxford University Press, 2006, pp.3-38. 72 HULSE, Brian, op. cit., p.43. 73 MÂCHE, François-Bernard, Musique au Singulier, Paris: Éditions Odile Jacob, 2001. Para o presente trabalho utilizámos a edição digital deste livro, com a identificação: EAN: 978-2-7381-8037-7. 74 Cf. cap. 5, "Génotype", op. cit., edição digital EAN: 978-2-7381-8037-7, localização 1177-1345 de 5981. 75 Ibidem. 76 Cf. cap. 2, "Archétype", op. cit., edição digital EAN: 978-2-7381-8037-7, localização 499-697 de 5981. 77 O compositor Ivan Fedele apelida estas ocorrências de hapax, a propósito da sua própria música e da de compositores seus contemporâneos, no contexto dos seminários a que assistimos em 2000-2002 em Estrasburgo.

!60 Nunca será demais realçar a importância destes universais de Mâche na estética de Berio, já que eles permitem entender a citação de músicas oriundas de um determinado reportório que poderíamos apelidar de tradicional como estruturas mentais e não como curiosidades etnológicas e, assim, encaradar esta mesma citação como componente essencial de um processo de devir musical, que, de resto, atravessa estas músicas na sua organização interna. A importância destes universais estende-se, pois, a obras como o primeiro andamento de Sinfonia, onde não há vestígios de citação, mas em que a consideração destes universais se revela essencial para a sua compreensão.

Não se confunda, porém, o reconhecimento destes universais com qualquer esforço de unificação da imensa diversidade musical que habita o mundo. Berio é um compositor que não cessa de sublinhar aquilo que é diferente nesta imensa diversidade. A ilusão da possibilidade de uma gramática universal resulta sempre na constituição do domínio de uma linguagem sobre outra. E se não queremos ignorar a existência destes universais, por um lado, pensamos que é na aceitação da singularidade irredutível de cada elemento em encontro no múltiplo que podemos vislumbrar uma unidade realmente abrangente. É, portanto, na força do atrito entre estas duas tendências – o pendor para o isolamento de universais e o pendor para a aceitação do diverso – que se constitui em parte a estética beriana, mas também e sobretudo que compreendemos o seu pensamento ético. E ainda a ambição beriana de construir uma “música de músicas”:

Now and then music sends out hesitant cues as to the existence of innate organisms which, if fittingly translated and interpreted, may help us pinpoint the embryos of a universal musical grammar. I do not think that such a discovery can be useful to musical creativity, nor to the utopian prospect of a perfect, common musical language that will enable musicians to speak and be unanimously spoken. But I do think that it could contribute to exploring musical experience as a "language of languages", establishing a constructive interchange between diverse cultures and a peaceful defense of those diversities. I hope so. In the meantime, we'll keep translating.78

78 BERIO, Luciano, Remembering the Future, op. cit., p.60.

!61 !62 II A PRÁTICA MUSICAL DE LUCIANO BERIO

Creating music implies the desire to give. (Luciano Berio, em conversa com Theo Muller [1995])

Contextualização

A compreensão do objecto sonoro em Berio não poderá ser feita sem se perceber previamente uma questão fundamental. Enquanto, na música tonal, ou modal, ou medieval, ou mesmo anterior (pensamos na música da Antiguidade), face aos seus axiomas de base, os teóricos arranjaram uma forma de codificação do seu comportamento, com extrema discricionaridade no que às notas diz respeito, vemos que, com os compositores em torno do início do século XX o mesmo não é possível. Assistimos aí à constituição de um axioma de base que impede ter uma visão pré-determinada das notas que se vão usar. Isto deve-se, quanto a nós, a um imperativo de multiplicidade que é visto como garante de unidade. Se este imperativo constitui um horizonte de expectativa de teor filosófico na produção musical, a forma de o concretizar do ponto de vista técnico e estético dependerá, a nosso ver, de três questões fundamentais que caracterizam, em torno do início do século XX, a música de compositores tão diversos como os do modernismo alemão (pensamos, entre outros, em Gustav Mahler, Richard Strauss, Arnold Schoenberg, Alban Berg, e Anton Webern), os do modernismo francês (pensamos em Claude Debussy, Maurice Ravel, Erik Satie, Gabriel Fauré), os do modernismo russo (pensamos em Modest Mussorgsky, Nikolai Rimsky-Korsakov, Igor Stravinsky, Sergei Prokofieff), naturalmente em compositores de outros países do Leste europeu (Béla Bartók, Zoltán Kodály), e em tantos outros, que seria impossível enumerá-los com exactidão — no espaço italiano, pensamos ainda em

Giacomo Puccini, em Giorgio Federico Ghedini e mesmo em Luigi Dallapiccola1; no

1 O recente trabalho de Ben Earle merece uma menção particular neste âmbito: EARLE, Ben, Luigi Dallapiccola and Musical Modernism in Fascist Italy, Cambridge University Press, 2013.

!63 espaço ibérico, também temos fenómenos semelhantes, como Isaac Albéniz e Luís de Freitas Branco.

A primeira destas questões é a da “emancipação da dissonância”, reinvidicada por Arnold Schoenberg num ensaio de 1926:

‘The emancipation of the dissonance’. That is to say, it [dissonância] came to be placed on an equal footing with the sounds regarded as consonances (in my Harmonienlehre the explanation of this lies in the insight that consonance and dissonance differ not as opposites do, but only in point of degree […].2 Esta questão da emancipação da dissonância não se refere só à música alemã ou austríaca, tão pouco é exclusiva da Segunda Escola de Viena, antes se refere a toda uma conquista de novos sons e à ausência da obrigatoriedade de resolução das dissonâncias numa das consonâncias clássicas, que foi levada a cabo pelos compositores acima citados.

A segunda questão comum a todos os compositores citados acima, embora de forma mais ou menos explícita, é a da ubiquidade musical, descrita por Berio a propósito da modernidade:

An essential factor of modernity has always been its ability to modify perspectives, to cancel or multiply the vanishing points, the "tonics" that indicate the "right" path, and to construct something from the remains of what has been transformed, sublimated, and even destroyed.3 Esta questão liga-se, antes de mais, a uma ideia que percorre toda a Europa no início do século XX — essa ideia é a da ubiquidade, que mais tarde, nos anos 30, veio a ser primeiramente pensada por escrito pelo poeta Paul Valéry4, e pouco tempo depois também por Walter Benjamin5. Note-se que esta ubiquidade será, no campo estritamente

2 “Opinion or Insight?”, in SCHOENBERG, Arnold, Style and Idea: Selected Writings of Arnold Schoenberg, Ed. Leonard Stein, New York: St. Martins Press; London: Faber & Faber., 1975, p.260. (pp. 258-264). 3 “Formations”, in Remembering the Future, Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2006, pp.22-23. Corporeizada na divisão da oitava em partes iguais, e concretizada muitas vezes em materiais próximos de escalas octatónicas, de escalas de tons inteiros, de modos simétricos, ou de modos como os de Messiaen, esta questão não deve ser confundida com a sua materialização particular. 4 "La conquête de l’ubiquité" (1928), in Œuvres. Pièces sur l’art (tome II), Nrf, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1960, pp.1283-1287. 5 "A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica", in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, ed. e trad. de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pp.207-241.

!64 musical, o garante da involução harmónica6, tão praticada pelos compositores que acima citámos.

A terceira questão tem a haver com a polaridade que, embora muito praticada no início do século XX, só foi mais explicitamente teorizada por Henri Pousseur (1929-2009)7 em meados do século. Esta é, no entanto, mais uma vez uma questão transversal a todos os compositores que citámos acima. Ela pode-se traduzir muito simplesmente pelo facto de haver notas que são atraídas por outras, que funcionam para elas como pontos gravitacionais8.

A constatação da impossibilidade de se ter uma visão pré-determinada das notas a usar, para fazer jus aos axiomas de base da técnica musical praticada, foi, pois, experimentada desde o início do século XX, revelando-se extremamente complexa, porque as questões que acima levantámos surgem, não de forma isolada, mas sim através da sua acumulação. Por isso, facilmente muitas ocorrências ditas idiomáticas a alguns destes compositores poderão revelar-se úteis na compreensão da deriva composicional de outros deste mesmo tempo, sendo comuns a compositores de estéticas diversas. Por isso, também, importa perceber o horizonte de expectativa que norteia o fazer musical desta época, e que constitui, para nós, o elemento fundamental para se dar o devido contexto à fenomenologia artística da música do século XX, de que Luciano Berio constitui um de muitos casos singulares. Veja-se o enorme contraste deste state of the art que nos dá a ver esse mesmo horizonte da multiplicidade como unidade com o denominado “período da prática comum”9 que moldou a pedagogia musical americana (e também a europeia, acrescentamos nós), e que Dmitri Tymoczko descreve do seguinte modo, a nosso ver suficientemente esclarecedor:

The eighteenth and nineteenth centuries are often called the “common practice period” in Western music. The term suggests a compositional consensus

6 Por involução harmónica referimo-nos ao estabelecimento de uma harmonia em que a mudança de notas dos acordes não implica uma verdadeira alteração das suas fundamentais. 7 POUSSEUR, Henri, Écrits Théoriques (1954-1967), choisis et présentés par Pascal Decroupet, Collection «Musique-Musicologie» dirigée par Malou Haine, Hayen: Pierre Mardaga éditeur, 2004. 8 Trata-se de um processo em que, numa segunda fase, estas notas deixam progressivamente de ser atraídas. Dá-se, então uma terceira fase: passam a ser elas os pontos de atracção gravitacional (vd. Ex. 42 adiante, onde se apresenta uma transcrição da tabela de polaridade de H. Pousseur). 9 Termo fixado por Walter Piston em 1941 no seu manual de harmonia: PISTON, Walter, Harmony, New York: W. W. Norton & Company, 1941.

!65 transcending national and temporal boundaries: Italian music of 1720, it is claimed, is quite similar to the German music of the 1880s, and both styles are quite different from any of the music composed prior to 1700 and subsequent to 1900.10 Tymoczko afirma ainda com toda a pertinência, a propósito do início do século XX:

Arnold Schoenberg and Walter Piston both observed that theirs was an age marked by the proliferation of styles. Like many of their contemporaries, they despaired of trying to synthesize these diverse trends into a coherent body of knowledge, explaining that they were too close to the developments they surveyed. […] Instead, both prophesied that there would come a time in which the various developments of the early twentieth century would be clarified, coalescing into a coherent musical language. I find it marvelous to reflect that these prognostications were essentially correct.11 Mas se esta radical não previsibilidade de um material a usar numa peça de música esteve presente desde o início do século, depois dos anos 50 ela expressa-se de forma muito mais explícita, porque o parâmetro do ritmo ganha uma nova importância, fazendo distinguir a música serial da música dodecafónica clássica e dando origem a peças de enorme complexidade como as Klavierstücke (entre 1954-55 e 1961), de Karlheinz Stockhausen ou as três Sonatas para piano (entre 1946 e 1963), de Pierre Boulez. Junte-se a isto uma nova importância dada ao parâmetro da dinâmica e do timbre e facilmente chegaremos à conclusão de que a complexidade destas obras face às do início do século é enorme. E chegamos a este contra-senso: o material, na sua constituição, nega a sua própria existência para melhor servir os seus axiomas de base12. Acrescente-se que, nesta época, Boulez e Stockhausen são os nomes maiores da música na Europa, mimetizando, curiosamente, o eixo franco-alemão que ditará a paz do pós-guerra13. Note-se que ambos são herdeiros da tradição germânica da Segunda Escola de Viena e que esta herança vem, diríamos, contaminada pelo ensino de Olivier

10 TYMOCZKO, Dmitri, A Geometry of Music. Harmony and Counterpoint in the Extended Common Practice, Oxford: Osford University Press, 2011, p.224. 11 Ibidem, pp.387-388. 12 Veja-se, a este propósito, o estudo crítico sobre o Serialismo tradicional pelo compositor alemão York Höller: Fortschritt oder Sackgasse? Kritische Betrachtungen zum frühen Serialismus, Saarbrücken: PFAU, 1994. 13 ROSS, Alex, “Brave New World - The Cold War and the Avant-Garde of the Fifties”, in The rest is noise. Listening to the twentieth century, New York: Picador, 2007, pp.386-446.

!66 Messiaen, que constituirá a matriz de todo o pensamento musical do pós-guerra na Europa, juntando a música de Debussy14 à música da Segunda Escola de Viena.

Só depois ganha especial destaque a música de Luciano Berio e do seu contemporâneo húngaro György Ligeti, marcada pela adopção de materiais mais simples do que aqueles praticados por Boulez e Stockhausen, e caracterizada por uma maior economia de material, pela sua para-funcionalidade15, pela inclusão da consonância (tão refutada pelos compositores do eixo franco-alemão16), e, consequentemente, por uma ainda maior importância dos parâmetros rítmico, dinâmico e tímbrico na constituição do objecto sonoro — porque o parâmetro das alturas, por ser mais simples, deixa de ser considerável isoladamente, para ser moldável pelo seu convívio com outros parâmetros musicais, com especial relevo para o ritmo. De tal modo, que passa a fazer mais sentido falar de “objecto musical” e encarar estes parâmetros globalmente, embora com especial importância dos parâmetros das alturas e das durações.

A isto junta-se a adopção de técnicas isoladas por Walter Benjamin a propósito do cinema no seu ensaio «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica»17. Estas técnicas, do ponto de vista estritamente musical, estão relacionadas com o facto de um objecto musical poder ser encarado de forma parcelar. E se no cinema este axioma de base se reflecte no facto da câmara filmar parcelarmente certo

14 Messiaen afirmava saber de cor a ópera de Debussy Pelléas et Mélisande, fenómeno do qual se teria apercebido durante a sua prisão no campo de concentração de Stalag VIII A, em Görlitz (Silésia). MESSIAEN, Olivier, Traité de Rythme, de couleur, et d’ornithologie (1949-1992), Tome VI, Paris: Editions Musicales Alphonse Leduc, 2001. 15 Sobre o carácter para-funcional da música de Berio dedicamos uma secção no presente capítulo. 16 Diga-se, a este propósito, que a esta distância temporal e tendo vivido há uns anos atrás na cidade alemã de Colónia e me apercebido da destruição de 90% desta cidade pelos bombardeamentos dos aliados nos anos 40, sabendo que Stockhausen foi enfermeiro de guerra, sabendo a miséria da vida do cidadão comum francês durante os anos da guerra e no pós-guerra, não espanta, pois, o espartanismo cultivado de forma tão explícita por estes compositores. Espartanismo que estará radicalmente ausente da música de Berio e de Ligeti. Porque entretanto, nesta Europa quase integralmente desfeita e dilacerada pela Segunda Guerra Mundial, vive-se um baby-boom cultural preparado um pouco por toda a parte, mesmo nos territórios que estiveram em guerra. E, curiosamente, nos seus anos mais amargos. De resto, a exposição que se apresenta neste início de capítulo pretende tão-somente apontar para alguns dos aspectos que consideramos chave para o entendimento da prática musical beriana, e não redesenhar a história da música do século XX, de que Berio será um expoente na Europa. Em boa verdade, a música do século XX não se basta a 4 ou 5 nomes, e bastaria falarmos de um Giacinto Scelsi (1905-1988), ele próprio formado pelo dodecafonismo de que se afastou (e cuja música, de resto, só foi descoberta tal como a conhecemos hoje nos anos 80), para sublinharmos que se trata, aqui, de um exercício de contextualização prévia de algumas questões analíticas que nos são caras para a análise que se segue. 17 In A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, op. cit., pp.207-241.

!67 actor ou paisagem, na música o mesmo axioma reflecte-se na presença de objectos musicais de forma parcelar, como através de séries defectivas (pensamos em Kammerkonzert, de Ligeti [1969-70]) ou de acordes incompletos (pensamos em Sinfonia, de Berio [1968]). Estes compositores, nos primeiros anos da sua produção, à semelhança de Boulez e de Stockhausen, revelam um enorme fascínio pelas novas formas de organizar o devir musical, sobretudo através da herança germânica de Schoenberg, Berg e Webern (pensamos, por exemplo, em obras como Due Pezzi per violino e pianoforte [1951] e Circles [1960], de Berio, ou em „Chromatische Phantasie“ [1956], de Ligeti). Mas logo depois o fascínio pela performance, pelo som e pela cor, invadirá a Europa18 (pensamos em obras como Streichquartett Nr. 2 [1968], Ramifications [1968–69], de Ligeti, ou em obras como Laborintus II [1965], e Sequenza III per voce femminile [1966], de Berio). E surge uma nova revolução: por um lado, temos o minimalismo americano e o seu imperativo de clareza, por outro temos, na Europa, a resposta a esta corrente, que em traços gerais se caracteriza também por uma maior clareza e contenção de meios. É assim que surgem obras como Melodien (1971), Clocks and Clouds (1973), Monument, Selbstporträt, Bewegung (1976), e a ópera Le grand macabre (1978), de Ligeti, ou Recital I (for Cathy) (1972), Sequenza VIII per violino (1975), Coro (1976), e "points on the curve to find..." (1974), de

Berio19. Podemos dizer que, com estas obras, chegou a força da sedução à música contemporânea na Europa. Tudo isto se revelará de forma mais acentuada ainda nos anos 80, em que arriscaríamos a dizer que a Europa faz as pazes com o seu passado recente. É nesta altura que surge La vera storia (1981), com libreto de Italo Calvino e do próprio Berio. Com esta ópera consolida-se uma nova prática melódica, harmónica e rítmica na música de Luciano Berio, caracterizada pela sua recusa de um total cromático a atingir, que devolve uma transparência inaudita aos processos musicais constantes

18 Uma breve nota de referência ao trabalho excepcional de Florence de Mèredieu merece ser aqui feita, no sentido em que a arte do século XX, não só a musical, se enche deste mesmo fascínio pelo fazer artístico plural que atravessa todo o século XX de modo especialmente epidérmico: Histoire matérielle et immatérielle de l’art moderne & contemporain, Paris: Larousse, 2008. 19 Entre a vastíssima bibliografia sobre a música ocidental do século XX, faço especial referência aos seguintes títulos: DELIÈGE, Celestin, Cinquante ans de Modernité Musicale. De Darmstadt a l’IRCAM. Contribution historiographique à une musicologie critique, Haye: Pierre Mardaga éditeur, 2003. TARUSKIN, Richard, The Oxford History of Western Music, vol.s 4 e 5: Music in the early Twentieth Century, Music in the Late Twentieth Century, Oxford University Press, 2010. ROSS, Alex, The Rest is Noise. Listening to the twentieth Century, New York. Picador, 2008. FOUSNAQUER, J-E, C. Glayman, C. Leblé, Musiciens de notre temps depuis 1945, Paris: Éditions Plume et SACEM, 1992.

!68 nesta obra, embora não se abdique do axioma original da imprevisibilidade da prática musical do início do século XX.

Este permanece um tema em aberto neste início do século XXI em que vivemos, porque se trata do cruzamento de várias dimensões e da impossibilidade de descodificação de uma só prática, mesmo que sintamos uma maior proximidade com ela. Por isso, a enorme complexidade das questões relativas ao objecto sonoro envolvidas na música de Berio tem sido resolvida pela literatura crítica de duas formas principais que são, quanto a nós, embora não erradas, notoriamente incompletas: ou se ignora a harmonia e se concentra a análise no gesto, ou se procede a uma análise meramente descritiva dos materiais em questão. Isto nota-se de forma particularmente gritante no número da revista Contrechamps sobre Berio20, para dar um exemplo, sabendo nós que se trata aqui de um marco particularmente importante nos estudos berianos. Mas nota-se também nos vários trabalhos de uma referência incontornável sobre a música de Luciano Berio, David Osmond-Smith21. A extrema sensibilidade das questões que estamos a abordar, a minúcia que elas requerem, e o pensamento, caso a caso, que elas exigem, levam um compositor como Luciano Berio, de indiscutíveis dotes harmónicos, rítmicos e melódicos, a recusar qualquer postulado prévio sobre o processo criativo. Porque apenas em “tal situação”, e com uma série de infindáveis condições, “tal coisa” pode acontecer... Muitas vezes chegamos, pois, ao paradoxo do “só se eu ouvir é que sei como é que é!”, dada a subtileza das questões técnicas envolvidas22. É nossa convicção, no entanto, de que é possível desenhar os caminhos da

20 AA.VV., Luciano Berio - Contrechamps, nº 1, Septembre 1983, Édition L’Âge d’Homme, Paris. 21 Fazemos aqui menção a alguns dos notáveis trabalhos de Osmond-Smith sobre Berio: Playing on Words: a Guide to Luciano Berio's ‘Sinfonia’, London: Royal Musical Association, 1985.; “›Nella festa tutto‹? Structure and Dramaturgy in Luciano Berio's La vera storia”, Cambridge Opera Journal, Vol. 9, No. 3, 1997, pp.281–94; ‘Berio and the Art of Commentary’, The Musical Times, Vol. 116, N0.1592 (Oct. 1975), pp.871–2; ‘La mesure de la distance: “Rendering” de Berio’, InHarmoniques, no.7, 1991, pp.147-52; Berio, Oxford: Oxford University Press, 1991; "'Here Comes Nobody': A Dramaturgical Exploration of Luciano Berio's Outis", Cambridge Opera Journal, Vol. 12, No. 2 (Jul., 2000), pp.163-178; ‘From Myth to Music: Lévi-Strauss's “Mythologiques” and Berio's “Sinfonia”’, The Musical Quarterly, Vol. 67, No. 2 (Apr., 1981), pp. 230-260; "Berio, Luciano" Grove Musics Online, 1999. 22 Diga-se, de resto, que nas entrevistas que deu, nos textos que publicou sobre música, ou nas notas de autor a propósito das estreias às suas obras, Luciano Berio se mostra particularmente avesso à tentativa de fixação da sua música. Cf. Luciano Berio. Entretiens avec Rossana Dalmonte, trad. Martin Kaltnenecker, Paris: Éditions Jean-Claude Lattès, 1983. Veja-se ainda os escritos coligidos sobre a sua própria música em "II. «Fare»", in BERIO, Luciano, Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, Intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013, pp.173-307. Considere-se, também, a revista Contrechamps, nº 1, Septembre 1983.

!69 aventura harmónica e rítmica da música de Luciano Berio. É esta a tarefa que nos propomos fazer de seguida: descrever o objecto sonoro beriano – um objecto orgânico, em que os diversos parâmetros apresentam um grande nível de elaboração e de interacção –, sem que esse procedimento o venha a desvirtuar.

Para a reflexão que de seguida apresentamos foi fundamental a definição da hierarquia de parâmetros envolvida no fazer musical de Berio. Pese embora a enorme importância do aspecto tímbrico, espacial e dinâmico, esta não esconde que os elementos mais importantes da sua música são as alturas e as durações, porque, de facto, a percepção que temos da hierarquia harmónica em Berio se deve muito ao ritmo, que ganha na sua produção uma importância que nunca teve nas músicas tonal, atonal e serial dos anos 50. Por isso, decidimos privilegiar uma reflexão sobre estes dois últimos aspectos quanto a La vera storia; naturalmente que este estudo recai também sobre a produção anterior e posterior a esta ópera, que consideramos fundamental para a sua compreensão cabal23. Pese embora o rigor e a minúcia que pretendemos almejar com a análise que se segue no presente capítulo, estamos em crer, contudo, que a mesma ganha consolidação com recurso à reflexão de teor mais filosófico que expusémos no capítulo anterior. Assim, a par da análise harmónica e rítmica da música de Luciano Berio iremos fazer a articulação com os sete conceitos deleuzianos isolados no capítulo anterior: multiplicidade como unidade, rizoma, diferença e repetição, regime de signos, sensação, desterritorialização e reterritorialização, e ciência menor.

23Não é por acaso que o compositor Giulio Castagnoli elege a harmonia e o tempo como parâmetros fundamentais na prática musical beriana, referindo-se em concreto à sua escrita, a partir dos esboços guardados na Paul Sacher Stiftung, em Basileia (“Berio, il tempo e l’armonia”, in Sequenze per Luciano Berio, a cura di Enzo Restagno, Milano: Ricordi / Fondazione Umberto Micheli, 2000, pp.105-116).

!70 La vera storia

A ópera La vera storia (1981), de Luciano Berio, representa um dos momentos culminantes da sua prática musical, pois aí vemos traduzidas as preocupações maiores que o nortearam durante toda a vida. Mais, La vera storia apresenta um conjunto de materiais e de processos musicais que perfazem simultaneamente uma súmula da sua obra anterior e o inaugurar de um novo olhar sobre os modos do devir musical, que irá marcar a sua produção posterior. Por isso, representa um momento privilegiado para a elaboração de um inventário das suas técnicas de escrita. Como David Osmond-Smith afirma:

Part I of La vera storia could almost be taken as an encyclopaedia of Berio's melodic techniques. Leonora's aria, Il Tempo starts from a highly differentiated fixed field, with typical gaps around which the voice must jump (Ex. VII.6a), and progressively fills them until the full chromatic gamut is available. The duet Il Grido for Leonora and Ada is constructed with exemplary parsimony by exploring the possible interactions between two constantly repeated wave-form sequences sharing four common pitches (Ex. VII.6b). And Il Ricordo, with which Ada concludes both Parts, is an eloquent example of Berio's rewriting of pre-established melodic lines24. O mesmo David Osmond-Smith afirma ainda, num outro trabalho sobre La vera storia:

[…] he brings to bear the full gamut of techniques of melodic elaboration to be found in his work of the sixties and seventies – slowly evolving pitch fields ('Il Tempo'), fixed fields ('Il Grido'), the gravitational use of fixed pitches ('La Prigione'), the reworking of pre-established pitch lines by varying contour and rhythm ('Il Ricordo') – so that each number has its own internal consistency on a technical level.25 A nosso ver, contudo, para além de uma enciclopédia das técnicas melódicas de Berio, La vera storia pode também ser considerada uma enciclopédia das suas técnicas harmónicas, como enumeramos de seguida, dando exemplos retirados da Parte I da

24 OSMOND-SMITH, David , Berio, op. cit., pp.106-107. 25 OSMOND-SMITH, David , “'Nella festa tutto'? Structure and Dramaturgy in Luciano Berio's La vera storia”, op. cit., p.286.

!71 ópera: (i) constituição de chaconnes de acordes, como em “Seconda festa” ou “Quarta festa” (Parte I), (ii) transformação de um campo harmónico por transposição de oitava dos seus constituintes, como se pode observar em “Prima festa” (Parte I), (iii) criação de estruturas para-funcionais, como em “La condanna” (Parte I), (iv) criação de harmonias centrípetas capazes de agregar o todo harmónico em que se inserem, como em “Il duello” (Parte I), (v) criação de um material harmónico consistente, mas em constante mutação como em “Il ratto” (Parte I), (vi) criação de notas atractivas ou de suporte, como em “Il tempo” (Parte I). As técnicas que acabo de enumerar contribuem, como veremos, para a constituição de tecidos harmónicos aparentemente complexos, mas que possuem ao mesmo tempo uma extrema simplicidade no que aos seus fundamentos diz respeito. Novamente citamos as palavras de Osmond-Smith:

For all its rich surface detail, Berio's music tends to root itself in processes that are relatively simple, and can thus offer access to the newcomer without starving the experienced listener of fresh discoveries. The student of his scores will soon discover that even this diversity of surface detail is often achieved by such long-established cornerstones of musical craftsmanship as the transformation of pre-established materials, or the permutation of limited resources. Berio's music owes much of its impact to this ability to engage the interest of all sorts and conditions of musician.26 Para além disso, se La vera storia constitui uma excelente oportunidade para estudar os materiais de suporte harmónico do discurso beriano – devido à maior simplicidade que a música para teatro lírico pede ao seu compositor, em contraste com a música instrumental de grande parte da sua produção –, esta ópera constitui ainda uma enciclopédia de técnicas rítmicas, como (i) a concepção de níveis rítmicos interdependentes numa mesma camada e a consequente criação de hierarquias rítmicas fora do contexto tonal (“Il ratto”, Parte I), (ii) a utilização de arquétipos rítmicos, prévios à invenção rítmica, e a sua integração num discurso dilatado (como na “Scena V”, Parte II), (iii) a sobreposição de camadas (“Il grido”, Parte I), (iv) a inserção de motivos e a consequente consideração de valores rítmicos fundamentais e de valores rítmicos agregados num nível temporal mais alargado (“Il duello”, Parte I), e (v) a articulação clara entre segmentos rítmicos facilmente identificáveis, com tempos fortes

26 OSMOND-SMITH, David , Berio, op. cit., p.1.

!72 e fracos, embora irregulares (“La vendetta”, Parte I), ou a oposição entre valores regulares e irregulares (“Prima festa”, Parte I) marcando decisivamente o discurso rítmico beriano e distinguindo-o de forma clara face ao dos seus contemporâneos. Note-se que se mantêm as características básicas do ritmo beriano, que especificaremos adiante neste capítulo e que lhe permitirão, aliás, a contribuição para o complexo melódico-rítmico a que fazemos alusão também adiante neste capítulo.

Consideramos que a técnica musical de La vera storia só pode ser estudada se se obedecer a uma metodologia que reflicta a interacção de diferentes vértices composicionais presentes simultaneamente no seu pensamento musical. Assim, quer para o estudo da harmonia, quer para o estudo do ritmo em La vera storia, debruçar-nos-emos sobre alguns vértices fundamentais da concepção musical de Luciano Berio. Estes vértices são, nomeadamente:

1) O carácter uno de um discurso musical baseado em objectos multidimensionais, resultante da consciência de que uma mesma entidade pode ser vista de várias perspectivas, sem perder a sua unidade. Pode estar explicitamente presente ou apenas implicitamente, e pode ser ou não um material ordenado. Se pensarmos num cubo e nas várias perspectivas com que o podemos olhar, chegamos facilmente à conclusão de que a multiplicidade de visões que podemos ter deste objecto é resultado das suas características e não põe em causa, de forma nenhuma, a unidade deste sólido. Como veremos, este aspecto liga-se de forma pertinente com os conceitos deleuzianos de multiplicidade como unidade e, a um nível mais dilatado, de rizoma.

2) O carácter múltiplo do discurso, contendo elementos musicais diversos (unos e múltiplos), resultante da consciência de que entidades distintas podem revelar-se compatíveis quanto a facetas das suas características em determinados contextos. Novamente, se pensarmos num conjunto de sólidos de formas claramente distintas, como o são o cubo, a pirâmide e o paralelipípedo, e os encararmos sempre com o seu lado quadrangular voltado para nós, facilmente percebemos o que pretendemos dizer:

realidades diferentes são, sob determinadas perspectivas, totalmente semelhantes27.

27 Diga-se, a propósito: este pensamento, que não tem apenas em consideração a natureza do objecto, mas acrescenta-lhe a perspectiva sob a qual ele é olhado, faz-nos, imediatamente, pensar em Sigmund Freud, ou, se quisermos, num parâmetro mais artístico, em M. C. Escher ou no cubismo de Pablo Picasso.

!73 Este aspecto, como veremos, representa uma segunda conclusão dos conceitos deleuzianos de multiplicidade como unidade e de rizoma.

3) O carácter flexível e mutante, porque sensível à polaridade tal como a definiu Pousseur e logo passível de mudança dos seus elementos musicais, reflectindo-se numa constante transformação, ou devir, que é da natureza do próprio objecto – tal como a multiplicidade de vários objectos não é, de modo nenhum, a contestação da

sua unidade28. Esta é uma terceira concretização dos conceitos deleuzianos de multiplicidade como unidade e de rizoma.

4) O carácter para-funcional e mutante do devir musical, baseado no estabelecimento de oposições, sequências, expectativas, evoluções, e na destruição de materiais como forma da sua interpolação com materiais distintos. Estas narrativas podem ser mais ou menos complexas, podendo constituir-se através da sobreposição de várias velocidades do devir musical. Ganha aqui especial relevância a adopção de objectos impuros, baseados na sobreposição de características unas e múltiplas, contrapondo-se ao uso de objectos cristalizados, que caracterizou grande parte da música do século XX, nomeadamente a música dodecafónica tradicional e o serialismo dos anos 50. Revemos aqui os conceitos deleuzianos de diferença e repetição, de regime de signos (quanto à organização interna), de sensação, e de desterritorialização e reterritorialização (em relação à sua mutabilidade externa).

5) O carácter suspenso e não centrado do objecto musical beriano nas suas possibilidades de convívio com outros de diferentes características internas. Este vértice como que resulta da análise dos vértices enumerados acima, guardando-se uma certa distância dos aspectos harmónicos e rítmicos, para se olhar de um ponto de vista exterior a prática musical beriana. Liga-se de forma particular ao conceito

28 Torna-se extremamente difícil pensar nesta ideia sem nos recordarmos imediatamente das definições, por Espinosa, de Substância e Atributo: "Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa, do qual deva ser formado. / Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela." (Ética, I, Def. III e IV; in ESPINOSA, Bento de, Ética, trad. Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes, António Simões, Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1992, p.100). Acrecentamos nós que há determinadas mudanças em acordes – pensemos na diferença entre um vulgar acorde de dominante e um acorde de dominante com sétima – que, embora impliquem a mudança de atributo, não implicam, de forma nenhuma, a mudança da substância – em termos musicais, o acorde é e continuará a ser sempre um acorde de dominante. Como veremos, casos equivalentes se passam a nível rítmico; basta pensar nos diferentes textos aplicados a uma mesma melodia nas canções de Schubert.

!74 deleuziano de ciência menor, porque é na sua incompletude que o objecto revela as suas características de expansão contextualizada num todo maior e mais diverso.

Estas cinco vertentes aqui enumeradas não são sucessivas no processo criativo, nem pretendem ser exaustivas ou estanques, mas complementares. Constituem uma estrutura composicional onde a mútua influência – ou afecção, pedindo a palavra emprestada a Espinosa – é constante. Apenas por razões de maior clareza analítica os abordamos faseadamente. Da mesma maneira, a escolha de alguns dos conceitos de Deleuze (e Guattari) para clarificar alguns destes vértices, em detrimento de outros, não significa que outros conceitos não sejam também oportunos. Por exemplo, os primeiros dois vértices – o uno e o múltiplo – podem ser pensados também através dos conceitos deleuzianos de regime de signos e de diferença e repetição. Do mesmo modo, o último vértice – o carácter suspenso e não centrado – pode ser lido à luz do conceito de sensação. A disciplina que um exercício de análise e consequente exposição exige não se compadece com as múltiplas ligações que se poderão estabelecer entre um filósofo rizomático, como é o caso de Deleuze, e um compositor orgânico, como é o caso de Berio. Esperamos, ainda assim, conseguir atingir o objectivo que norteia a nossa análise: contribuir para uma melhor compreensão da prática musical beriana.

!75 O objecto sonoro beriano

Se, para compreender em profundidade a harmonia e o ritmo em La vera storia, é necessária uma contextualização das suas características no conjunto da obra de Berio, o contrário também é verdade: para compreender o conjunto da obra de Berio é extremamente útil o estudo de La vera storia. Por isso, não hesitámos em acompanhar cada um dos exemplos de La vera storia com um exemplo da prática musical de Luciano Berio em obras que lhe são anteriores ou posteriores.

Uno

«Le multiple est la manifestation inséparable, la métamorphose essentielle, le symptôme constant de l’unique.»29

Uma das características principais de La vera storia é a sua constituição a partir de objectos multidimensionais a nível das alturas. Esta deriva surge em duas categorias de organização sonora, recorrentes na música de Berio: i) música baseada em séries dodecafónicas ou sequências melódicas, caracterizadas por um uso cuidadosamente distribuído do total cromático; ii) música baseada na sucessão de campos harmónicos ou na exploração progressiva de um campo harmónico pré-definido (e portanto, tendo origem num material não ordenado), dando origem a contextos de atonalismo livre marcados, tal como o dodecafonismo, pelo seu carácter múltiplo. Estas duas categorias são moldadas, embora de forma discreta, como veremos, pela presença das durações. O seu estudo é, por isso, essencial para a percepção do objecto sonoro beriano, e embora nos parecesse inevitável a sua apresentação posterior, temos para nós que a sua eclosão é simultânea.

Resta-nos dizer que o que singulariza La vera storia não é o atingir do total cromático, mas é sobretudo a construção harmónica e rítmica da sua ubiquidade como garante da unidade, pese embora a sua diversidade (em detrimento da dissonância e

29 DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, PUF, 1962, p.27.

!76 polaridade). Como veremos nas secções que se seguem, em que procedemos à descrição dos materiais de base de cada uma destas morfologias, este esforço de unidade está patente na própria concepção desses materiais. Uma extrema unidade, sem a qual não seria possível a diversidade que é tantas vezes referida a propósito da música de La vera storia, e, mais globalmente, da música de Luciano Berio30.

A concepção de séries dodecafónicas ou de sequências melódicas de matriz involutiva, estática, harmonicamente transparentes e claras, e com um carácter uno embora impuro, é um dos elementos mais fortemente caracterizantes de La vera storia. Consideremos o campo harmónico que David Osmond-Smith descreve quanto à primeira parte da ópera31:

Ex. 1: La vera storia, Parte I, campo harmónico.

!

Osmond-Smith descreve este campo harmónico de forma brilhante:

The crucial characteristic of this pitch differentiation that it provides between an area of chromatic saturation (A to C#) and an area of highly differentiated intervals — of which the most prominent is the leap from C# to E. Such a feature makes for immediately discernible relations between melodic lines32. Não fala, no entanto, na proximidade deste campo harmónico com a escala octatónica, comum, aliás, a tantas séries dodecafónicas de Luciano Berio.

Ex. 2: escala octatónica 1 - 2 em Dó.

!

Esta proximidade confere a este campo harmónico um carácter multipolar, já que esta escala é, simultaneamente, a escala octatónica de [Do], a escala octatónica de [Re#], de [Fa#], ou mesmo a escala octatónica de [La]. Dá, assim, origem àquilo a que chamamos de harmonia involutiva.

30 Veja-se, por exemplo, o estudo de Philippe Albèra, «Introduction aux neuf Sequenzas» (Contrechamps, nº 1, Septembre 1983, pp.91-122), onde se destaca, sobretudo, o poder da invenção múltipla do compositor. 31 In Berio, op. cit., p.104. 32 Ibidem, p.104.

!77 Assim, importa não só descrever como Berio se distingue, na sua linguagem idiomática, digamos, dos seus contemporâneos – descrição essa muito bem feita por Osmond-Smith –, mas é vital, a nosso ver, que o gesto beriano seja contextualizado historicamente, para que seja compreendido de forma aprofundada e crítica33. Se quisermos, para melhor entendermos de onde vem este gesto, e para onde aponta.

Como é sabido, a escala octatónica é muito comummente utilizada por Bartók, Stravinsky, Rimsky-Korsakov, entre outros, e é até possível remontar a sua origem à vulgarização do uso de relações de mediantes na música romântica, tal como Charles Rosen fixou no seu conhecido estudo sobre a geração romântica34. Diga-se, de resto, que o próprio Berio noutras obras utilizou esta escala para a constituição de um total cromático subjacente às suas séries dodecafónicas (vd. nas próximas páginas os exemplos 3., 4., 5. e 6.). O que é francamente inovador é o facto de, à transparência harmónica herdada da escala octatónica, se associar uma marca de impureza através da omissão de um dos seus componentes (a nota Mi) e da inserção da 5ª Perfeita do seu terceiro elemento (a nota Si). Esta busca de impureza, que é característica de La vera storia, juntamente com a manutenção das características acima referidas, e que resultam do uso da escala octatónica, foi sempre uma preocupação de Luciano Berio, embora se lhe juntasse a preocupação do preenchimento do total cromático e não apenas a preocupação com o estabelecimento da ubiquidade harmónica. Diga-se, a este propósito, que esta ubiquidade harmónica é responsável pela multiplicidade do objecto sonoro beriano, cujas características vivem da relação do parâmetro das alturas com o parâmetro do ritmo, da dinâmica e do timbre.

Por isso, podemos dizer que a presença de materiais próximos dos modos simétricos octatónicos não é apenas uma característica marcante de La vera storia. Ela é uma constante na obra de Luciano Berio, seja na constituição de séries, seja na

33 Embora tenhamos tentado encontrar um interlocutor para discutir as razões internas da possibilidade de junção do diverso na música de Berio, o que encontrámos foi sobretudo a constatação deste facto e nunca a sua explicação. Veja-se, por exemplo, os trabalhos publicados no recente volume sobre as Sequenze de Luciano Berio, mais concretamente nas suas segunda e terceira partes, dedicadas ao processo composicional de Berio e à análise de algumas das suas peças: Berio’s ‘Sequenzas’. Essays on Performance, Composition and Analysis, ed. by Janet K. Halfyard, introd. by David Osmond-Smith, Hampshire, Burlington: Ashgate, 2007 34 ROSEN, Charles, «Formal Interlude - Mediants», in The Romantic Generation, Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1995, pp.237-257.

!78 constituição de sequências. Essas séries são involutivas, porque não dão a sensação de progressão; estáticas, porque resultam da justaposição de dois blocos unos e harmonicamente transparentes; claras, porque resultam da utilização de modos simétricos; e unas, porque através da união de duas metades semelhantes garantem a eclosão de um terceiro modo com as mesmas características. A série do quarto andamento de Sinfonia (1968) é um dos exemplos mais claros do que acabamos de referir, explorando o total cromático através da sucessão de dois blocos octatónicos incompletos ([REb-MIb-MI-SOL-LA-SIb] e [DO-FA-RE-SI-FA#-SOL#]):

Ex. 3: Sinfonia IV, série.

! Por seu turno, «Points on the curve to find…» (1974) apresenta uma série dodecafónica muito semelhante à do quarto andamento de Sinfonia (1968), mas lida a partir do seu quarto elemento: esta série de caraterísticas octatónicas é, pois, constituída pela justaposição de seis notas iniciais pertencentes à escala octatónica [RE-MI-FA- SOL-SOL#-LA#-SI-DO#] e seis notas pertencentes à escala octatónica [DO-RE-MIb- FA-FA#-SOL#-LA-SI] lidas a partir de [RE].

Ex. 4: «Points on the curve to find…». Série preliminar

! Série final

! Também Sequenza IXa per Clarinetto (1980), que é, aliás, citada em “Scena VII” da Parte II de La vera storia, tem como base uma série dodecafónica idêntica, mas, desta vez, lida a partir do seu segundo elemento. A série é, uma vez mais, constituída através da sucessão de dois blocos octatónicos incompletos: um primeiro de cinco notas pertencente à escala octatónica [RE-MI-FA-SOL-SOL#-LA#-SI-DO#] e um segundo pertencente à escala octatónica [DO-RE-MIb-FA-FA#-SOL#-LA-SI] lidas a partir de [FA].

!79 Ex. 5: Sequenza IXa per Clarinetto (1980). Série preliminar

!

Série final

! Mesmo uma obra tão precoce como Nones (1954) apresenta características semelhantes. Esta obra tem como base uma sequência de 13 notas, constituída por dois segmentos octatónicos incompletos, e, no meio destes, uma nota comum aos dois. Posteriormente, a sua sexta e oitava notas serão trocadas, dando origem à sequência, tal como a conhecemos.

Ex. 6: Nones (1954) Sequência preliminar

! Sequência final

! Para além dos casos que acabamos de mencionar, os exemplos de séries dodecafónicas ou sequências melódicas resultantes da reunião de modos simétricos abundam na obra de Luciano Berio. Não pretendemos, no entanto, levar a cabo o seu levantamento exaustivo. Em vez disso, queremos testar a pertinência das nossas observações, confrontando as características destes materiais com as características dos materiais de Luigi Dallapiccola, seu professor em Tanglewood (EUA), cujas séries se encontram extensamente estudadas por Brian Alegant e sobre as quais o octatonicismo

!80 não parece gerar polémica35. E observando estes materiais, verifica-se que são totalmente idênticos aos materiais berianos, como podemos observar nas séries de

Cinque Canti (1956) e Il prigionero (1944/1948)36:

Ex. 7: séries dodecafónicas de Dallapiccola (isoladas por B. Alegant); marcadas a negro estão as notas constituintes de um dos acordes diminutos que pertencem à escala octatónica. a) Cinque Canti (1956).

! b) Il prigionero (1944/1948).

! Esta extrema afinidade entre as séries de Berio e as de Dallapiccola leva-nos a afirmar, sem reservas, o octatonicismo das séries de Berio. O que é importante para nós, no entanto, não é esta mera constatação, mas sim o que ela implica: a existência de uma organização unificante do devir musical a nível das alturas. E, se esta organização está baseada em séries dodecafónicas semelhantes às de Dallapiccola, tal não visa o objectivo de constituição de um todo formal fechado sobre si mesmo e coerente, quer a nível local, quer a nível global. O que Berio reconhece neste objecto que, como acima dissemos, é involutivo, estático, harmonicamente transparente e claro, e com um carácter uno, é o facto de ser um objecto harmónico aberto devido à sua multipolaridade e à sua pregnância. É flagrante, aqui, o contraste que se estabelece na recepção de um mesmo objecto por parte de Berio e de Dallapiccola. Onde este último via o garante de uma extrema coerência do seu objecto composicional de partida – e, nomeadamente, a hipótese de fazer jus às heranças de Schoenberg, por um lado, e por outro, de Stravinsky e Bartók –, o outro vê a hipótese de criar um objecto impuro e, por causa dessa impureza, aberto ao diverso. Enquanto Dallapiccola vê na série um ponto de chegada,

35 Cf. ALEGANT, Brian, “Cross-Partitions as Harmony and Voice Leading in Twelve-Tone Music Author(s)”, Music Theory Spectrum, Vol. 23, No. 1 (Spring 2001), pp. 1-40 [URL: http://www.jstor.org/ stable/10.1525/mts.2001.23.1.1, consultado em: 04/08/2012 06:58]; ALEGANT, B, John Levey, “Octatonicism in Luigi Dallapiccola's Twelve-Note Music”, Music Analysis, 25/i–ii (2006), pp.39-87; ALEGANT, Brian, The Twelve-Tone Music of Luigi Dallapiccola, Rochester: University of Rochester Press, 2010. 36 Tal como as séries de Sex carmina alcaei, Ciaccona, Intermezzo e Adagio for solo, e Quatro liriche di Antonio Machado, de Dallapiccola.

!81 tentando que nada ponha o seu reconhecimento em causa – e daí a obcessão com o seu uso canónico, as simetrias, entre outros aspectos – Berio vê nela um ponto de partida, como que a dinamite que lhe permite explodir os limites eventualmente impostos pelo material, permitindo-lhe expandir infinitamente o seu objecto. Berio olha para a série de Schoenberg, Webern, e Alban Berg, e vê na série, para além de um lugar de unidade, um lugar de multiplicidade. A ubiquidade do objecto harmónico constituído é, também, oportunidade da inclusão do ritmo como parte integrante ab initio do objecto sonoro.

De resto, este olhar diferente perante a série dodecafónica foi recentemente estudado por Nicholas Jurkowski, no contexto da produção beriana dos anos 50, e nomeadamente do período directamente relacionado com as aulas de Dallapiccola. Suportando-se nas considerações pertinentes de Osmond-Smith sobre a utilização não canónica da série por parte de Berio, e concluindo que este comportamento desviado se explica em nome de uma visão artística própria, Jurkowski oferece-nos uma leitura, que, baseando-se na escolha de um corpus de análise tão restrito, não consegue responder cabalmente à pergunta que coloca na conclusão do seu estudo:

One larger question remains, however. Why did Berio use such a loose adaptation of serial techniques, particularly when Dallapiccola, his model for twelve-tone technique at the time, used a brand of serialism that relied far more heavily on unaltered row forms? Given that one of the primary advantages of twelve-tone technique (the granting of internal structure to atonal music) is undermined when the technique is used so loosely, one must wonder why Berio chose to use the twelve-tone technique at all.37 Na nossa opinião, não é suficiente explicar este gesto somente a partir da constatação de uma visão poética diferente – como o tenta fazer Jurkowski quanto às peças dos anos 50, sustentando esta tese na recepção de Berio face à escrita de James Joyce. Também não é suficiente dizer, como Osmond-Smith, que Berio usa o legado que herda em função da suas necessidades criativas:

Indeed, Dallapiccola's pervasive use of canon was a feature that Berio found positively alienating. Therefore in those works produced between 1951 and 1954

37 JURKOWSKI , Nicholas, Berio’s early use of serial techniques: An analysis of «Chamber Music», dissert. Mestrado, Graduate College of Bowling Green State University, Dezembro de 2009, p.62. [URL: https://etd.ohiolink.edu/!etd.send_file?accession=bgsu1251044362&disposition=inline; acedido em Novembro de 2012]

!82 in which Dallapiccola's melodic influence was most strongly felt, Berio took on board the exigencies of serial orthodoxy only in as much as they suited his creative needs.38 Se é consensual, na crítica, que existe um idiomatismo próprio na linguagem musical de Luciano Berio, tal não é suficiente para explicar os muitos desvios conhecidos na utilização da série dodecafónica. Neste sentido, o nosso esforço de explicação trilha dois caminhos que se encontram: um primeiro, que tenta uma compreensão mais abrangente destes gestos a partir de um quadro de reflexão política (lato sensu) que os contextualize (esforço este que encetámos no capítulo I deste trabalho, mas que pretendemos continuar nos capítulos subsequentes); e um segundo, que, a partir da análise da própria matéria prima do fazer musical beriano, consiga dizer que não se trata de “desvio”, ou de “desobediência”, mas da extracção das consequências mais profundas do material, tentando abrir um pouco a malha da classificação. Esta malha só poderá ser aberta pela admissão da impureza do próprio material — trata-se, em Berio, de dar a ver a impureza que a série dodecafónica sempre guardou, e que infelizmente tantas vezes é perturbada por um ensino académico inconsequente, porque não leva até ao fim a reflexão a que se propõe39. Berio sempre foi um inimigo de qualquer tipo de ortodoxia, e podemos arriscar dizer que ele veria a presença desta ortodoxia no modo de ver as séries dodecafónicas octatonicizantes por parte de Dallapiccola. Porque se trata, para Berio, de uma questão política, da responsabilidade do compositor, como ele muito bem defende no que consideramos ser um dos testemunhos mais significativos da sua postura como compositor, perante a música e o homem, Meditazione su un cavallo a dondolo dodecafonico (escrito 1965, revisto em 1968, e publicado em 198040). Na sua tradução para francês, editada em 1983, lemos que o compositor:

38 In Berio, op. cit., p.6. 39 Em “Berio, son sérialisme et son style”, Jacopo Baboni-Schilingi, relata um episódio revelador passado em Novembro de 2002: perguntando Berio ao seu interlocutor Baboni-Schilingi o que pensavam os jovens compositores da sua geração sobre a música beriana, ouve esta resposta: “Maestro, ils sont convaincus que vous êtes un compositeur de recherche de nouvelles expériences musicales et pas un compositeur sériel”, ao que responde, atónito, Luciano Berio: “Quoi? Moi, je suis un compositeur sériel.” (in COHEN-LEVINAS, Danielle (ed.), Omaggio a Luciano Berio, Paris, L’Harmattan, 2006, p. 175). 40 Os escritos de Luciano Berio foram recentemente coligidos e editados em BERIO, Luciano, Scritti sulla musica, op. cit.. Este texto, em particular, surge nas pp.37-41 [1965] e 434-439 [1968].

!83 …est tenu de résister à la capitulation face aux préjugés de la Théorie, et de se préparer à affronter les caractères multiples de l'expérience. Il doit trouver des schèmes conceptuels suffisamment ouverts pour lui permettre de sélectionner, de traiter, de combiner les nombreux aspects de la réalité, en gardant toujours à l'esprit le fait que toute idée musicale significative n'est pas le résultat d'une procédure néo-positiviste mais un système d'inter-relations en mouvement.41 O uso de materiais não lineares está presente em materiais não dodecafónicos, mas seriais, ou similares, de Luciano Berio. Estes materiais, não ordenados e portanto claramente mais livres do que os materiais estudados nos parágrafos anteriores, reflectem, no entanto, muito claramente, as mesmas preocupações de unidade do todo que as séries estudadas acima. E essa unidade é maioritariamente conseguida através da manufactura destes campos harmónicos a partir de materiais originários de modos simétricos ou de estruturas deles resultantes.

Este uso de estruturas harmónicas distintas – não lineares – para, a partir delas, atingir o total cromático ou a ubiquidade harmónica é muito claro na Parte I de La vera storia, “Seconda Festa”:

Ex. 8: acordes de base de “Seconda Festa” (isolados por David Osmond-Smith42).

!

Observando o exemplo acima, uma vez mais, constatamos o propósito de preservar a ubiquidade harmónica resultante do uso da escala octatónica [DO-DO#- RE#-MI-FA#-SOL-LA-SIb]. Acontece que esta preocupação de ubiquidade, presente no primeiro e no terceiro acordes, é a oportunidade para o surgimento do acorde central, que é um acorde diatónico, nomeadamente um acorde resgatado da escala de MIm. Novamente, queremos realçar como Berio, importando o octatonicismo de toda a sua

41 BERIO, Luciano, “Méditation sur un cheval de douze sons”, Contrechamps nº 1, Séptembre 1983, pp.49-50. 42 OSMOND-SMITH, David , Berio, op. cit., p.105.

!84 prática musical anterior, o aproveita para inserir um acorde estranho a esta lógica ubíqua.

Esta preocupação de ubiquidade, embora acompanhada da preocupação em usar o total cromático, está, de novo, muito presente em obras anteriores de Luciano Berio. O primeiro andamento de Sinfonia (1968), por exemplo, contém na sua base materiais octatónicos. Assim, e embora não seja possível desvendar qualquer série ou sequência no início do primeiro andamento, a organização hexacordal octatónica, característica das séries dodecafónicas berianas, marca presença na concepção de cada um dos dois acordes presentes. O primeiro acorde contém no seu registo central as notas [RE-LA- DO-MIb-FA#-SIb-DO#-MI], que pertencem, com excepção do [RE], à escala octatónica [DO#-RE#-MI-FA#-SOL-LA-SIb-DO], e são os primeiros elementos do acorde a serem apresentados. A estes juntam-se, nos extremos inferior e superior do registo, as notas [SOL-FA-SOL#-SI] que completam o total cromático e pertencem integralmente à escala octatónica [RE-MI-FA-SOL-SOL#-LA#-SI-DO#].

Ex. 9: Sinfonia (1968), 1º acorde.

!

O segundo acorde contém no seu registo central as notas [DO-MIb-SOL-SI], que pertencem, com excepção de [SOL], à escala octatónica [DO-RE-MIb-FA-FA#-SOL#- LA-SI], e às quais se juntaram mais tarde [SOL#-LA] e [RE], pertencentes à mesma escala octatónica. Só então, com esta última nota, se juntam no extremo superior do registo as notas [DO#-MI-FA-SOLb], que completam o total cromático e pertencem com excepção do [FA] à escala octatónica [DO#-RE#-MI-FA#-SOL-LA-SIb-DO].

Ex. 10: Sinfonia (1968), 2º acorde.

!

!85 Naturalmente, na constituição destes dois grupos harmónicos de 12 notas, desempenha um papel crucial a pregnância do material octatónico (queremos referir-nos à sua capacidade de absorção de notas que lhe são estranhas, reinterpretando-as como parciais dos seus constituintes), o seu carácter cêntrico (capacidade de manter a sua polaridade inalterada na presença de notas estranhas), e a potenciação destas características através da sua colocação no registo central. Novamente, embora a descrição, por Osmond-Smith, seja de uma enorme exactidão e pertinência, ela não constitui, quanto a nós, uma verdadeira análise do fenómeno em questão, já que se limita a descrever a partitura de forma sumária:

Such a harmonic simplicity allows for a rich play of textures. They are of no such great complexity, for the constant superpositions all derive fram quavers and triplet quavers; but again they provide simple examples of devices that will constantly recur.43 Note-se que, de modo nenhum pomos em causa as palavras de Osmond-Smith. Apenas achamos que são insuficientes para uma análise cabal do passo em questão.

A concepção de espaços harmónicos claramente diferenciados, espaços não ordenados serialmente, sendo neste caso um destinado à melodia e outro ao fundo harmónico, e perfazendo em conjunto o total cromático, está também presente em O King (1968). E, tal como no primeiro andamento de Sinfonia (1968), a divisão do total cromático nesses dois espaços é feita através da constituição de dois grupos octatónicos incompletos complementares. Neste caso, porém, o segundo destes hexacordes (destinado à melodia reproduzida mais abaixo) importa o [La] do primeiro segmento.

Ex. 11: O King (1968), divisão do total cromático e sequência melódica de base

a) divisão do total cromático em dois segmentos octatónicos complementares.

! b) importação do [La] do primeiro para o segundo segmento.

!

43 OSMOND-SMITH, David , Playing on Words…, op. cit., p.16.

!86 c) sequência melódica de base.

! Sobre a sequência melódica de base em O King escreve Osmond-Smith: The pitch set consists of seven pitches, [FA - LAb - LA - SIb - SI - DO# - RE], each used three times. It is divided in three sections, by the consistent coupling of [FA] and [LA].44 Novamente, embora David Osmond-Smith descreva com invulgar pertinência as propriedades do pitch set de O King, gostaríamos que tivesse ido mais longe. Nomeadamente, gostaríamos que tivesse explicado o surgimento da sequência melódica de base que isola, porque pensamos que é este processo que garante o carácter centrípeto do material, tão desejado pelo compositor.

A Sequenza VII per (1969) apresenta uma sucessão de campos harmónicos – ou a evolução lenta de um único campo harmónico – em que a unidade do todo cromático é conseguida através de uma série dodecafónica que, embora nunca esteja efectivamente presente, regula a entrada de cada uma das alturas a fazer parte do campo harmónico usado. E é esta preocupação de unidade do todo que determina que a Sequenza esteja baseada numa série que resulta da troca entre duas notas de uma série em tudo semelhante às séries que analisámos acima, explorando o total cromático com base numa série preliminar apresentando a sucessão de dois blocos octatónicos incompletos.

Ex. 12: Sequenza VII per Oboe solo (1969), série de base e série preliminar.

!

44 Ibidem, p.22ss.

!87 A descrição, por Phillippe Albèra, do comportamento material nesta Sequenza é magnífica45. Mas é completamente omissa quanto à sua génese. E por isso cremos nós, é também omissa quanto às razões desse comportamento. Diz Albèra:

Les hauteurs nous apparaissent donc distribuées en fonction de ce Si central, selon les trois registres du hautbois: grave, médium, aigu. A l'exception du Si central, totalement fixe, les autres sons jouent sur deux ou trois niveaux de la tessiture. Cependant, chaque son à une tessiture privilégiée, principale, à partir de laquelle se construit progressivement l'espace sonore de la pièce.46 Acrescentamos nós que este comportamento de deslocação dos sons pela tessitura do instrumento se devem ao octatonicismo que preside à elaboração do seu material de base. Infelizmente, Albèra é completamente omisso em relação a este fenómeno. Ora, o octatonicismo provoca que a simples deslocação de oitava de um elemento soe de uma forma completamente diferente, do que se essa deslocação de oitava for efectuada com material de características diversas. Concordamos que, ao longo desta Sequenza aquilo a que assistimos é ao desmembrar de uma série de base, como podemos inferir da análise de Albèra. Mas acrescentamos que, simultaneamente, é esta série, encarada agora como entidade não definitivamente ordenada – ou seja, como constelação –, que promove a unidade do todo através da pregnância e do carácter cêntrico da justaposição de escalas octatónicas, cuja multiplicidade é uma das características principais. Neste sentido, não admiraria que Berio se considerasse um compositor serial47. A questão seria o que ele entenderia por tal designação.

E se, no caso da Sequenza VII, é uma linha melódica – uma série – que regula a revelação de um campo harmónico, em Formazioni (1987), na melodia da secção 3, assistimos ao desenvolver de uma linha com base na sua divisão em duas entidades harmónicas complementares, articuladas por uma terceira entidade harmónica que é a escala octatónica (indicada a tracejado):

45 ALBÈRA, Philippe, “Introduction aux neuf Sequenzas”, op. cit.. Sobre a Sequenza VII, nomeadamente, cf. pp.109-112. 46 ALBÈRA, idem, pp.109-110. 47 Cf. nota de rodapé 38, atrás neste capítulo.

!88 Ex. 13: Formazioni (1987), melodia da secção 3. Exemplo por nós isolado, a partir da análise de Pascal Decroupet48.

! O pensamento harmónico de Berio partilha com o pensamento serial a busca de unidade na exploração do todo cromático ou da ubiquidade harmónica. Mas essa unidade está marcada pela multipolaridade inerente aos modos simétricos, concretamente a escala octatónica e a escala de tons inteiros. Esta busca tem como raiz a exploração das possibilidades de articulação destes modos, através da localização no registo dos seus componentes (Sinfonia), da sua localização temporal (Sequenza VII), ou da sua progressiva revelação ao serviço do desenvolvimento de uma linha, cuja existência se dá em função das características harmónicas que provoca (Formazioni). Mas a multipolaridade harmónica do objecto sonoro provoca o facto de não ser possível a consideração harmónica do objecto sem ter em conta as características rítmicas deste mesmo objecto.

Todas estas diferentes soluções têm, no entanto, em comum a possibilidade de um pensamento vertical uno no contexto da utilização do total cromático ou da ubiquidade harmónica. Talvez resida aqui uma das maiores riquezas do pensamento musical beriano, que marca de forma indelével o seu discurso. Note-se, a este propósito, que a utilização do total cromático implica, na prática musical dallapiccoliana e beriana, a ubiquidade harmónica. No entanto, a consideração da ubiquidade harmónica não implica de forma nenhuma a utilização do total cromático. É precisamente a consciência

48 DECROUPET, Pascal, “Formazioni: A Sketch Study and Speculative Interpretation of Berio’s Compositional Strategies”, in Luciano Berio. Nuove Prospettive. New Perspectives, a cura di Angela Ida De Benedictis, Firenze: Leo S. Olschki, 2012, pp.133-162.

!89 deste facto e das suas consequências que conferem um cunho especial a La vera storia, no contexto da produção beriana. É, então, a exploração de materiais escalares e quase tradicionais que marcará parte da produção de La vera storia, abrindo caminhos ainda pouco explorados no diálogo com música de origem tradicional49.

Interessa falar ainda da vectorialidade do ritmo na música de Berio como o traço fundamental que confere coerência e unidade às suas obras, dentro da evidente multiplicidade e irregularidade que as cunham50. Esta questão é de enorme importância, pese embora o facto de, nos estudos berianos, não ser trabalhada como o é a multiplicidade rítmica. Ora, para melhor entendermos esta última, há que referir como é que a vectorialidade acontece. Trata-se da utilização de arquétipos rítmicos, responsáveis (i) pela criação de previsibilidades e expectativas musicais, (ii) pela emergência de um discurso dilatado no tempo, e (iii) pela concretização do floating rhythm beriano, herdado da prática musical de Luigi Dallapiccola51. Muito concretamente, falamos do accelerando e do ritardando escritos, recorrentes na sua prática musical. Assim, por muito que se queira dar pouca importância à análise de detalhe rítmica, a verdade é que esta nos ajuda a entender como se realiza e concretiza o acontecimento musical de cada obra beriana. Daí ser fundamental, quanto a nós, a fixação de todos estes aspectos, mesmo os que são menos óbvios.

A ideia de progressão, concretizada ora num contínuo de valores gradualmente menores, resultando num accelerando escrito, ora num contínuo de valores gradualmente maiores, resultando num ritardando escrito, ou até mesmo na sucessão dos dois contínuos, surge de forma particularmente clara em Six Encores per pianoforte (1990):

49 Sobre o diálogo de Luciano Berio com o reportório tradicional leia-se o recente contributo de Giorgio Pestelli: “Luciano Berio. Archetipi cancellati e avventura creativa”, in Luciano Berio. Nuove Prospettive. New Perspectives, op. cit., pp.17-33. 50 Steve Reich (1936) e Ivan Fedele (1953) são compositores que usam estes mesmos processos na sua música. 51 Cf. ALEGANT, B., The Twelve-Tone Music of Luigi Dallapiccola, op. cit.

!90 Ex. 14: Six Encores per pianoforte: “Leaf”, início52.

! Ex. 15: Six Encores per pianoforte: “Brin”, final53.

! O mesmo fenómeno acontece um pouco por toda a sua obra, como por exemplo na Sequenza VII per oboe, ou em O King, ou na primeira frase da Sequenza IV per pianoforte (1965), ou ainda em Concerto per due pianoforti e (1973) e em Linea per 2 pianoforti, marimba e vibrafono (1973). A análise descritiva rigorosa de David Osmond-Smith sobre o ritmo e a métrica de O King na Sinfonia54 não aponta, contudo, para este aspecto quanto a nós fundamental na irregularidade beriana, ou seja, o facto de o ritmo ser vectorial.

“Le multiple est l'affirmation de l'un, le devenir, l'affirmation de l'être”55. É curioso pensar como esta afirmação de carácter filosófico profundo é tão facilmente compreensível face a um modo simétrico de Debussy ou de Stravinsky. Um modo octatónico ou de tons inteiros destes compositores só o é, e só é uno, graças à multiplicidade de tónicas possíveis que apresenta. A indesmentível proximidade do conceito filosófico de Gilles Deleuze com a realidade musical do início do século XX é desarmante. Tal terá pensado Luciano Berio. Se lhe juntarmos os muitos modos de Messiaen e se não tivermos apenas uma multiplicidade, mas um conjunto de multiplicidades, e se cada multiplicidade for aberta ao devir, por contaminação com as restantes multiplicidades, teremos abarcada filosoficamente a realidade musical de Luciano Berio. E entretanto não há que esquecer que La vera storia como que

52 BERIO, Luciano, 6 encores for piano - “Leaf”, Wien: Universal Edition (ue 19918), 1990, p.4. 53 BERIO, Luciano, 6 encores for piano - “Brin”, op. cit., p.3. 54 Cf. Playing on Words, op. cit., pp.26ss. 55 DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p.27.

!91 conceptualiza esta realidade de uma forma realmente abrangente, ao criar uma estrutura melódica multipolar responsável pela articulação de muitas outras estruturas. Quanto ao ritmo, não é difícil perceber que a sua natureza vectorial, e, logo, múltipla, lhe garante a unidade:

[…] Une telle condition ne peut être remplie qu'au prix d'un renversement catégorique plus général, d'après lequel l'être se dit du devenir, l'identité, du différent, l'un, du multiple, etc.56 Terminamos dizendo que, na nossa opinião, o facto desta realidade ser tão facilmente pensável e abarcável musicalmente tem consequências inevitáveis na forma como pensamos o mundo, “esse desconhecido que nos acompanha”, nas palavras de Maria

Gabriela Llansol57.

“[…] any point of a rhizome can be connected to anything other, and must be”58. Basta pensarmos na Sequenze III per voce femminile (1965) ou no Ricercar (1935), de Anton Webern, para percebermos como aquilo que pensamos irredutivelmente diferente é, afinal, conectável. No caso de Berio, as interjeições vocais em voz falada, no caso de Webern, instrumentos habitualmente considerados na sua diferença que surgem abraçados num mesmo tema.

Perhaps one of the most important characteristics of the rhizome is that it always has multiple entryways […] A map has multiple entryways, as opposed to the tracing, which always comes back "to the same."59 Não é à toa que é um dos mais obedientes discípulos de Schoenberg e da sua noção dodecafónica clássica – que prevê que o original forme uma unidade com a sua inversão, o seu retrógrado, ou mesmo a inversão do seu retrógrado –, quem, orquestrando o clássico de Bach, se apercebe do facto de este poder ser lido como mapa. Porque instrumentá-lo de modo dodecafónico lhe garante a essência de um todo multipolar habitualmente reservada à série dodecafónica. Esta característica é, no entanto, levada até consequências mais vastas por Berio na sua Sequenza III per voce

56 Deleuze, Diférence et Répétition, PUF, 1968, p.59 57 LLANSOL, Maria Gabriela, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações, Lisboa: Relógio d'Água, 2002, p.67. 58 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, trad. Brian Massumi, Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 1987, p.7. 59 Ibidem, p.12.

!92 femminile, através da aparentemente inconsequente junção do diverso, porque não tardamos em perceber que o que nos parece diferente é, afinal, comum, simplesmente visto de outra perspectiva, e é visitável pela nossa memória de ouvintes em sentidos antes insuspeitados. E o ritmo, devido à sua condição essencialmente vectorial, é visitável em todas as direcções e, como tal, deve também ser ouvido em direcções plurais — como algo que, através da cronologia, da passagem do tempo, desse mesmo tempo se liberta. Não se trata, pois, de nos apercebermos de uma direcção apenas, mas de termos consciência que a nossa memória musical será sempre revisitável de diferentes direcções.

!93 Múltiplo

Ensaiemos uma permuta de termos na frase de Deleuze, citada no início da secção anterior: l’unique est la manifestation inséparable, la métamorphose essentielle, le symptôme constant du multiple. Quer isto dizer que, se uma das características principais de La vera storia é a sua constituição a partir de objectos de natureza distinta, esta faz-se pela enorme convicção de Berio de que é precisamente esta multiplicidade que garante coerência ao seu objecto artístico. Se na secção anterior focámos os nossos esforços na análise do uno enquanto objecto, nesta secção iremos focar a nossa atenção no aspecto múltiplo desse mesmo objecto musical. Obviamente, eles reflectem-se mutuamente, mas merecem ser considerados isoladamente para melhor entendermos a filigrana musical de Berio. São aspectos que, mais do que funcionarem como atributos que nos ajudam a classificar este fazer musical, funcionam operativamente na leitura que podemos fazer do mesmo, permitindo-nos, por outro lado, e a par dos restantes aspectos que focamos ao longo deste capítulo, compreender melhor como é que, no detalhe, se pensam questões fundamentais, de teor político e cultural mais alargado.

De facto, a constatação da possibilidade de construção de um discurso coerente a partir de um conjunto de materiais diversificados é uma das evidências mais importantes do pensamento musical de Berio, como ele mesmo afirma na primeira das suas conferências de Harvard:

All of this occurred a long time ago, in the “roaring fifties”, when I personally was busy looking for harmonic coherence between diverse materials, in a musical context made of sounds and not only of notes.60 Esta abertura ao imperativo da multiplicidade, tão característico dos anos 60 e 70, não é exclusivamente beriana e está claramente presente, por exemplo, nas obras de Luigi Dallapiccola, de Bruno Maderna ou de John Cage, a quem esta conferência de Berio é dedicada61.

60 “Formations”, in Remembering the Future, op. cit., pp.17-18. 61 Ibidem, p.17.

!94 “Get yourself out of whatever cage you find yourself in” — este imperativo de abertura ao diverso, expresso por John Cage numa resposta sumária a uma pergunta de um jornalista62, corresponde à adopção do múltiplo na prática musical escrita de Luciano Berio. Mais concretamente, corresponde à forma particular como Berio olhou para os desenvolvimentos da série dodecafónica emanada por Schoenberg. Aliás, como veremos adiante, esta mesma forma de convívio como múltiplo desafiará a organização do tempo como chronos. Porque é a existência do múltiplo num mesmo tempo que nos faz duvidar sobre a aparente sucessão dos tempos. Tal como, no mesmo sentido, deixa de ser possível olhar a sucessão do múltiplo, e o seu aparente devir sem causa e sem objectivo, como algo de meramente cronológico. Temos, assim, que, se uno e múltiplo são a manifestação de uma mesma realidade, o mesmo acontece às categorias de sucessivo e simultâneo. Esta ideia percorrerá a música de Luciano Berio e, face a ela, procuraremos demonstrar que instrumentos concretos ele usou para garantir a sua realização musical.

Entretanto, para além de todas as considerações filosóficas que esta adopção do múltiplo representa na música de Berio, ela representa, também, algo de muito prático e sedutor: a direccionalidade resultante da progressiva invasão de um campo musical por outro. Se efectivamente localizarmos a deriva teórica de Luciano Berio no seu tempo, verificamos que uma das principais novidades de Dallapiccola ou de Maderna63 face a Schoenberg consiste na adopção de materiais plurais: em vez de apenas uma série a garantir a unidade do material musical de uma obra teremos duas ou mais séries, como sucede na ópera Il Prigionero, de Luigi Dallapiccola. É claro que Berio irá muito mais longe, porque, para ele não se trata apenas de evitar qualquer concepção da obra como resultado de uma única fonte (como seria o caso se usasse apenas uma série), mas de olhar essa própria série como uma multiplicidade em potência e em acto, ou seja, como algo que poderá ser sujeito a um processo de instauração de direcções e sentidos.

É de extrema pertinência citar Ivanka Stoïanova a este propósito, ao analisar Laborintus II:

62 CAGE, John, W: Writings '79-'82, New England / Hanover: Wesleyan University Press, 1983, p.159. 63 Duas referências interessantes sobre Bruno Maderna: Bruno Maderna: documenti, a cura di Marie Baroni e Rossana Dalmonte, Milano: Edizioni Suvini Zerboni, 1985; e FEARN, Raymond, Continuity and Change: The Music of Bruno Maderna, dissert. doutoramento, The University of Keele, 1989.

!95 Dans la multitude de strates imbriquées les procédés de structuration se multiplient. La séquence n’est pas supprimée, mais infinitisée: elle se reproduit différemment dans des registres mimétiques connotés, en échappant sans cesse aux forces centripètes d'uniformisation. L'énoncé multiple procède par transmutation permanente qui implique la possibilité ouverte de changement de niveau, de passage d'un système d'énonciation à un autre. Cette transmutation, jeu manipulateur qui mobilise les dispositifs à l'intérieur de l'énoncé multiple, s'effectue dans le successif et dans le simultané conformément aux lois, inventées pour l'occurrence, d'une figurabilité technique musicale. Elle comporte l'ensemble de principes, de structuration et d’articulation, spécifique pour chaque niveau de l’énonciation plurielle. L'espace-temps de l'énoncé multiple est le lieu d'interférence de différents processus, la scène qui met en évidence la condensation de différentes chaînes associatives. Tout en étant dispersé dans la pluralité de ses matières concurrentes, l'énoncé multiple est régi, de façon au premier abord paradoxale, par le fonctionnement de la condensation qui additionne et intensifie les charges énergétiques appartenant aux différents réseaux de relations.64 As palavras de Stoïanova são de uma percepção musical notável. Atrever-nos-íamos, no entanto, a concretizar os esforços compositivos rumo ao múltiplo, a que se alude na citação acima. Alguns exemplos concretos deste esforço apresentam-se de seguida.

“Dans la multitude de strates imbriquées les procédés de structuration se multiplient” – esta frase significa, do ponto de vista do compositor, muito concretamente três coisas: (i) materiais de polaridade múltipla são facilmente acumuláveis, sem perder a sua singularidade; (ii) da sua acumulação nascerá obviamente uma nova estrutura, que convive em absoluta liberdade com cada um dos seus constituintes; (iii) não é possível determinar o número de possibilidades de relação entre os elementos envolvidos, porque o ouvido humano isola de forma intuitiva cada uma das parcelas imbricadas.

“Cette transmutation, jeu manipulateur qui mobilise les dispositifs à l'intérieur de l'énoncé multiple, s'effectue dans le successif et dans le simultané conformément aux

64 STOÏANOVA, Ivanka,“Multiple”, in Luciano Berio - Chemins en Musique, Paris: la revue musicale, triple numéro (375-376-377), 1985, pp. 16-17. Sobre Laborintus II, vd. ainda, da mesma autora, “Berio narrateur: Laborintus II”, in COHEN-LEVINAS, Danielle (ed.), Omaggio a Luciano Berio, Paris, L’Harmattan, 2006, pp.119-141.

!96 lois, inventées pour l'occurrence, d'une figurabilité technique musicale.” – novamente, esta frase contém em si dois sentidos que tentaremos desvelar: (i) a extrema importância das figuras musicais enunciadas influencia, de forma definitiva, o jogo manipulador que mobiliza os dispositivos no interior do enunciado múltiplo; (ii) aquilo que é, aparentemente, apenas simultâneo influencia de forma irredutível o que lhe sucede, e mesmo (vd. o próximo capítulo desta dissertação) o que o antecede.

“L'espace-temps de l'énoncé multiple est le lieu d'interférence de différents processus, la scène qui met en évidence la condensation de différentes chaînes associatives.” – pretendendo, uma vez mais, proceder a uma tradução estritamente composicional (se é que tal é possível), diríamos que a convicção de Berio é que, ao proceder com os elementos musicais que permitem a eclosão do enunciado múltiplo, perde-se qualquer noção cronológica do tempo. Porque aquilo que acontece em simultâneo poderia acontecer sucessivamente, ou vice-versa, neutralizando-se a passagem do tempo e mesmo a própria percepção do binómio simultaneidade/sucessão. Acrescente-se que este fenómeno acontece com qualquer grupo de free jazz. Refira-se, a este propósito, a forma extremamente aberta como Berio se referiu à sua possibilidade de interpretação pelos alunos de universidades americanas, onde teve a oportunidade de dirigir Laborintus II:

Laborintus II est, dans sa substance, une pièce pédagogique (qui ne présene pas de difficultés pédagogiques excessives). En effet, quand il m’est arrivé de la répéter et de la diriger dans quelques grandes universités américaines – où il n’y a aucune difficulté pour trouver tous les éléments nécessaires – il m’a semblé en pouvoir mieux réaliser le véritable esprit que dans le cadre formel d’un concert.65 Claro que o aspecto múltiplo presente nesta obra de Berio, sobre o qual Ivanka Stoïanova fala, não se esgota aqui. Há toda uma relação da música com o texto (de Edoardo Sanguineti) que Stoïanova disseca de forma brilhante no seu estudo, iluminando as muitas facetas do múltiplo, que é também a marca constitutiva do libreto de Sanguineti: nele assomam as vozes de Dante Alighieri, , de T. S. Eliot e da Bíblia.

65 Luciano Berio. Entretiens avec Rossana Dalmonte, op. cit., p.142.

!97 Ex. 16: Laborintus II.

!

O contraste do terceiro andamento da Sinfonia (1968) de Luciano Berio (“In ruhig fliessender Bewegung”) com Laborintus II é gritante. Podemos até dizer que o caso do terceiro andamento de Sinfonia constitui um segundo patamar na consideração do múltiplo na obra beriana. De facto, aqui, em vez de se considerar a acumulação de materiais multipolares, ensaia-se a sobreposição destes materiais a um material unipolar, porque tonal, que funciona como base da sua elaboração. Concretizando: sobre o scherzo da 2ª Sinfonia de Mahler serão encastrados diversos materiais oriundos de Schoenberg, Boulez, Debussy, Berlioz, Ravel, Mahler, Strauß, Beethoven, Stockhausen, Brahms, Stravinsky, Hindemith, Berg, Bach, entre outros, incluindo materiais do

!98 próprio Berio66. E é curioso notar que os materiais que não têm características multipolares, num contexto em que os materiais multipolares marcam o desenvolvimento musical, ganham uma nova identidade. De facto, comportam-se como se fossem meros agentes de um todo multipolar. Quanto ao scherzo, embora de forma tensa, passa-se o mesmo fenómeno: de entidade indiscutivelmente polar passa a entidade multipolar. Podemos, assim, dizer que a sua natureza tonal é transmutada numa nova natureza, porque passa a ser um agente de um todo, que não obedece às suas regras internas. Note-se que esta possibilidade de junção de materiais distintos em relação ao seu carácter atonal ou tonal-modal, a possibilidade de um todo constituído por elementos diversos, é conseguida através da criação de um fundo coerente, sobre o qual são encastrados esses materiais de natureza distinta, em obras menos conhecidas como Questo vuol dire che… (1968).

Ex. 17: Schoenberg, Mahler e Debussy, a partir da análise de Peter Altmann67.

!

Ex. 18: Scherzo da 2ª Sinfonia de Mahler, a partir da análise de Peter Altmann68.

!

Gostaríamos de destacar as palavras de Peter Altmann na análise minuciosa que faz ao terceiro andamento de Sinfonia. Destaque-se, nomeadamente a enumeração de

66 Sobre este andamento de Sinfonia fazemos referência a alguns trabalhos, entre a já vasta bibliografia disponível: OSMOND-SMITH, David, Playing on Words, op. cit.; HEAP, Matthew, “Keep Going”. Narrative continuity in Luciano Berio’s ‘Sinfonia’ and Dillinger:?An American Oratorio’, dissert. doutoramento, Royal College of Music, 2005; Michael HICKS, "Text, Music, and Meaning in the Third Movement of Luciano Berio's «Sinfonia»", Perspectives of New Music, Vol. 20, No. 1/2 (Autumn, 1981 - Summer, 1982), pp. 199- 224. 67 ALTMANN, Peter, «Sinfonia» von Luciano Berio. Eine analytische Studie, Universal Edition 26225, Wien: Universal Edition, 1977, p.27. 68 Ibidem, p.19.

!99 citações dos compositores acima referidos, e a sua aturada e rigorosa localização na obra. Apesar de reconhecermos todos os méritos de tal exercício, não podemos estar em maior desacordo com Altmann quando este indaga sobre os motivos deste andamento ser tão famoso, questionando se se deve atribuir a sua fama à colagem propriamente dita ou à familiaridade que inspiram os temas citados junto do ouvinte:

Mit seiner Collage hat Berio dem Fischpredigt-Thema neue, zeitbezogene Aspekte verliehen. Sollte das Geheimnis der Aufführungserfolge (die hundertste Aufführung ist inzwischen längst überschritten — ein wohl einmaliger Erfolg eines “experimentellen” Musikwerkes!) bloß einem gewissen Bildungs-Appeal des Hörers zu verdanken sein, wie Georg Krieger und Wolfgang Martin Stroh in ihrem Aufsatz “Probleme der Collage in der Musik” (Musik und Bildung 6/1971) andeuten? (“Das Auffinden von Zitaten… gibt dem ‘Kenner’ die gleiche Art außermusikalischer Befriedigung, die einem Wagnerianer beim Wiedererkennen der Leitmotive gewährt wird.”)69. De igual modo, também não podemos estar de acordo com Altmann quando este conclui sobre o pessimismo inerente à transformação dos temas citados:

Dagegen spricht wohl die bewußte Verschleierung der einzelnen Motive, oder, wie Berio erklärt, das “Nichtvollständig-Hörbare” möge als wesentlich für das Werk selbst betrachtet werden. Die also angestrebte Unbestimmtheit und Unsicherheit wirkt einer gedanklichen Demontage entgegen, weshalb die Formanalyse auch nicht zum eigentlichen Kern der Komposition vordringen, sondern lediglich die Kunstfertigkeit der Material-Kombinationen registrieren kann. Die Isolation der einzelnen Zitate aus ihrer gewohnten Umgebung bewirkt im Hörer unbewußt einen neuen, meist mehrschichtigen Sinnzusammenhang, der öfter ins Wanken kommt, wenn die Materialien deformiert werden. Damit gerät aber auch die historisch bestimmte Relation von Material und Verarbeitung durcheinander, um sich zu einer neuen Wirklichkeit zu formieren. Daß diese Wirklichkeit Berios von tiefem Pessimismus gekennzeichnet ist, steht in merkwürdigem Kontrast zu der eher humorigen “Verpackung” dieses Satzes70. Na verdade, o que pensamos é que Altmann ignora todas as questões harmónicas que levantámos anteriormente, nomeadamente quando realçámos o facto de a natureza destes excertos tonais ser, voltamos a escrevê-lo, transmutada numa outra natureza, porque passa a ser um agente de um todo, que não obedece às suas regras internas. Ora,

69 Ibidem, p.46. 70 Ibidem, p.46.

!100 é justamente esta transformação do material citado, precisamente a cópia deturpada do material original metodicamente descrita por Altmann – e que o leva a justificar uma análise formal que não pode ir além de um registo aturado de todas as ocorrências desta colagem, ou montagem –, o que nos motiva a, pelo contrário, querer indagar sobre as razões profundas deste mesmo comportamento. Não nos admira, pois, que o próprio Berio diga, na nota de autor sobre Sinfonia, que o seu terceiro andamento é talvez a música mais experimental que escreveu:

The third section of Sinfonia requires a more detailed comment because it is perhaps the most “experimental” music I have ever written. It is a tribute to Gustav Mahler (whose work seems to bear the weight of the entire history of music of the last two centuries) and in particular to the third movement - the Scherzo - of his Second Symphony (Resurrection). Mahler is to the totality of the music of the third part of my Sinfonia as Beckett is to the totality of the text. The result is a kind of voyage to Cythera made on board the Scherzo of Mahler’s Second Symphony. The Mahler movement is treated like a generator - and also as a container - within whose framework a large number of musical characters and references is proliferated; they go from Bach to Schoenberg, from Brahms to Strauss, from Beethoven to Stravinsky, from Berg to Webern, to Boulez, to Pousseur, to myself and others. The different musical characters are always integrated into the flowing harmonic structure of Mahler’s Scherzo. They interact and transform themselves - as it happens with those familiar objects or faces that, placed in a different light or in a new context, suddenly acquire a different meaning. The combining and the unifying of different and often unrelated musical characters may be the main motivation for the third part of Sinfonia, for this meditation on a Mahlerian objet trouvé.71 Diríamos ainda mais do que o próprio Luciano Berio: se é verdade que podemos ver o andamento de Mahler como gerador de todas as outras citações, que sofrem alterações quando postas em relação com ele, podemos, também, pensar que a natureza do scherzo mahleriano se altera, porque passa a ser vista sob a égide das citações que suscita. Passa a ser vista de forma nova, porque surge recontextualizada. Na verdade um olhar atento descortinará uma efectiva e indesmentível mudança no próprio schrezo

71 Excerto da Nota de Autor escrita por Luciano Berio aquando da estreia absoluta de Sinfonia, acessível em: http://www.lucianoberio.org/node/1494?1683069894=1 [acedido em Setembro de 2014]

!101 mahleriano, como se este “encontro inesperado do diverso” (Maria Gabriela Llansol72) obrigasse a uma necessária transformação dos seus vários elementos. Para isso contribui, sem dúvida, o facto de Berio mudar também o texto original de Mahler, como está bem anotado por Catherine Losada73:

!

Catherine Losada realça o requinte dos dispositivos usados neste processo de modulação, que são, aliás, comuns a outras peças de Luciano Berio, que não têm qualquer citação de materiais exteriores. Porque este encontro do múltiplo se dá primariamente devido a razões musicais, como as da direccionalidade e da sua progressividade:

Overall, these various illustrations may be understood to confirm the ways in which the techniques of overlap, chromatic insertion and rhythmic plasticity are capable of fashioning convincing links between disparate source materials. Indeed, these techniques interact to traverse the space between contrasting musical languages, creating relationships which are akin to the sophisticated types of modulatory techniques that operate in tonal music on both local and large-scale levels.74 Acrescentaríamos que este requinte é decisivo para o processo de transfiguração a que aludimos acima. Estamos, assim, perante uma multiplicidade de materiais que podem estar em sucessão, e em que a unidade de uma peça pode ser o resultado de um

72 Expressão emprestada de um dos títulos desta escritora: Lisboaleipzig 1: o encontro inesperado do diverso (Rolim, 1994; Assírio & Alvim, 2014). 73 LOSADA, Catherine, “The Process of Modulation in Musical Collage”, Music Analysis, 27/ii-iii (2008), pp.295-336. 74 Ibidem, p.324.

!102 processo que traça um trajecto entre realidades musicais distintas. Ou uma multiplicidade de materiais harmónicos que coexistem simultaneamente e que, tal como o discurso musical das suas Sequenze, resulta da sobreposição de diferentes camadas musicais, constituindo-se como discurso pluridimensional. Estes materiais podem ser semelhantes ou distintos em relação ao seu carácter atonal ou tonal-modal, em relação à sua morfologia, ou simplesmente em relação à sua organização interna, e esta coexistência de materiais diversos pode materializar-se de diversas formas: na sucessão, através da (1) pluralidade de materiais atonais idênticos, da (2) inserção de materiais de natureza distinta num mesmo fundo coerente, da (3) inclusão de materiais multipolares e plurais num discurso heterogéneo; e na simultaneidade, através da (4) sobreposição de materais multipolares, e da (5) sobreposição de materiais distintos em relação ao seu carácter atonal ou tonal-modal.

As primeiras sete Sequenze de Berio (escritas entre 1958 e 1969) são obras que, por serem escritas para instrumentos solo, fazem da multiplicidade do seu gesto a única possibilidade de serem polifónicas. Por isso, é certeira a ideia de que estando em busca de uma polifonia implícita, Berio chegou à concretização do gesto múltiplo. Reproduzimos abaixo um excerto da Sequenza III:

Ex. 19: Primeira página de Sequenza III per voce femminile (1966)75.

!

75 Universal Edition, nr.3723 mi, 1968.

!103 Como podemos ver no exemplo acima, os vários desenhos que a voz faz, e que foram primeiramente pensados para funcionar como três linhas melódicas, acabam por constituir uma só linha múltipla.

As duas experiências de multiplicidade a que aludimos – Laborintus II e o terceiro andamento de Sinfonia – são acompanhadas de muitas outras experiências de multiplicidade. Por exemplo, as primeiras sete Sequenze (cf. acima o exemplo 19), partilham com Laborintus II as características da multiplicidade que este contém; de igual modo, o número final de Sinfonia, que normalmente não é citado a propósito do diverso, na realidade tem presente as mesmas características que o seu andamento central, se bem que com materiais originais dos outros andamentos de Sinfonia:

Ex. 20: Sinfonia (V), início. A flauta tem elementos do primeiro andamento; o piano recorda momentos do primeiro andamento; a voz recorda momentos do quarto andamento76.

!

O primeiro andamento é, pelo contrário, um momento importantíssimo de acumulação do múltiplo nas suas formas mais simples, mas ainda assim mais contido. Quanto aos números II e IV desta obra, eles também são momentos de multiplicidade, embora esta seja aí mais discreta, como se estivesse contida à espera dos andamentos que lhes sucedem – são momentos de repouso expectante e não de pura stasis. Vejamos a primeira página do quarto andamento:

76 BERIO, Luciano, Sinfonia, London: Universal Edition UE 13783, 1972, p.103.

!104 Ex. 21: Sinfonia (IV), primeira página. O carácter expectante deste andamento reflecte-se nas figuras repetidas que acompanham as vozes77.

! Na verdade, podemos dizer que qualquer dos momentos da produção de Berio que possamos isolar contém esta presença mais ou menos discreta do múltiplo, sempre associado, porém, à questão da perspectiva; ou seja, associado à existência de elementos que, pelo seu carácter ou pela sua dinâmica, ou ainda pela especificidade da audição do ouvinte, surgem em primeiro plano, em contraste com elementos que surgem em planos

77 Ibidem, p.97.

!105 secundários. Muito dependerá da “competência” de escuta do ouvinte. Relacionado com esta questão da perspectiva na audição musical – que, repetimos, permite a eclosão do múltiplo –, temos outro fenómeno, que é o da introdução de velocidades múltiplas simultâneas. A esse respeito, nada é mais claro do que o quarto andamento de Sinfonia, (cf. acima o exemplo 21). A questão da velocidade está sempre presente, mesmo em andamentos em que a exuberância e profusão das figuras seja, por momentos, impeditiva do seu reconhecimento. Relemos as nossas palavras e percebemos como a matéria de que falamos se aproxima radicalmente da arte cinematográfica, não só ao nível da sua recepção, junto do espectador, mas sobretudo ao nível da produção, onde a montagem, a perspectiva e a velocidade são questões decisivas no seu fazer. Uma arte que tanto impressionou Walter Benjamin e que foi, como se sabe, também sobejamente pensada por Gilles Deleuze78.

A esta enumeração de duas componentes essenciais do múltiplo – perspectiva e velocidade – não queremos deixar de juntar três variáveis, que se cruzam de forma perpendicular com estas questões e que pensamos serem constantes na obra de Berio, oferecendo sempre resultados diversos. São elas a questão do fundo (que pode ser homogéneo, heterogéneo, ausente, etc…), a questão da presença, ou não, da simultaneidade, e a questão da similitude de materiais, presentes ou não – pensamos, a este propósito, nos variadíssimos critérios que podem decretar esta similitude.

La vera storia é, sem dúvida, o exemplo maior de multiplicidade na obra de Berio, embora a maior simplicidade dos materiais que a compõem torne esse facto menos explícito. Desde logo, reencontramos os traços da multiplicidade já descrita antes neste capítulo, a partir dos exemplos de Laborintus II. Consideremos o dueto “Il Grido” (Parte I), de La vera storia:

78 DELEUZE, Gilles, A Imagem-Movimento. Cinema 1, trad. de Sousa Dias, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004; DELEUZE, Gilles, A Imagem-Tempo. Cinema 2, Lisboa: Documenta, 2015.

!106 Ex. 22: La vera storia, “Il Grido” (Parte I), vocal score79.

! Ex. 23: sequências de base de La vera storia, “Il Grido” (Parte I).

!

Como se pode observar, os materiais devem ao seu carácter múltiplo o facto de poderem em conjunto constituir um todo coerente. Um dos exemplos precedentes a La vera storia mais claros deste fenómeno acontece no Concerto per due pianoforti e orchestra (1973), em que é justamente o facto de cada pianista fazer acordes multipolares o que permite a constituição de um todo coerente.

79 Luciano Berio, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), testo di Italo Calvino, riduzione per canto e pianoforte (a cura di Ludovico Einaudi e Luca Francesconi), Vienna, London, New York: Universal Edition UE 16818, 1981, p.185.

!107 Ex. 24: Concerto per due pianoforte e orchestra (1973), página inicial80.

!

O mesmo acontece em toda a série de Chemins (1964-1992) – e em Corale (1981) –, compostos a partir das suas Sequenze, em que as características internas do material harmónico inicial permitem a adição de novas camadas.

80 Luciano Berio, Concerto per due pianoforte e orchestra, Vienna, London, New York: Universal Edition UE 15781, 1973, p.7.

!108 Ex. 25 : Corale per violino, due corni e archi81.

!

Já em relação a “Scena IV” de La vera storia temos um fenómeno próximo de Sinfonia, com a diferença apenas de os objectos diversos incluídos não serem do reportório clássico tradicional, mas estilizações do reportório popular contemporâneo. É, assim, que ao lado de produção original surge uma valsa e um tango.

Ex. 26: La vera storia, “Scena IV” (Parte II), excertos82.

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81 Luciano Berio, Corale [su “sequenza VIII”, per violino solo] per violino, due corni e archi, Milano: Universal Edition UE 17545, 1982, p.59. 82 Luciano Berio, La vera storia - Opera in due parti, testo di Italo Calvino e Luciano Berio, Parte II, spartito (di Ludovico Einaudi e Luca Francesconi), Universal Edition UE 16818, 1981, pp. 36, 38, 40, e 47.

!109 !

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Situações como a presente na primeira linha do exemplo acima dão, naturalmente, azo a ambiguidades, em que a articulação binária do discurso não deixa de aludir a um material musical que, de facto, se encontra ausente. Semelhante a este é o caso de Requies (1984), ou de Outis (1995-96), e de grande parte da sua produção a partir da década de 80, cujas obras, pela proximidade com sonoridades tonais e modais e pela articulação binária que oferecem, se constituem enquanto receptáculos ideais para acolher um discurso discreta, mas efectivamente diverso. Um dos exemplos mais claros desta articulação binária encontra-se já na Sequenza VIII (1975), em que, a partir da citação da chaconne da segunda partita para violino de Bach, Berio desenvolverá um discurso musical em torno da alternância [LA] e [LA-SI], parafraseando a passagem de [RE] para [RE-MI], que se verifica nos primeiros compassos da partita.

!110 Ex.27: Chaconne da segunda Partita para violino de Bach, início.

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Ex. 28: Sequenza VIII per violino de Berio, início83.

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Finalmente, uma terceira recorrência do múltiplo em La vera storia é a sobreposição de enunciados atonais com enunciados tonais, como se pode verificar no exemplo abaixo, retirado da “Ballata V - Che il canto faccia” (Parte I). Esta sobreposição dá-se através do esvaziamento de originais tonais até ao ponto em que eles possam ser enriquecidos com notas cromaticamente adjacentes, que provocarão formações verticais típicas da música atonal, criando assim um contexto em que o convívio entre linguagens pode ser efectuado, ou o aproveitamento dos recursos harmónicos tonais para a constituição de um discurso atonal, como em Folk Songs (1964), Recital I for Cathy (1971), Coro (1975-76), Voci (Folk Songs II, 1984), e Naturale (1985). Porém, o que sucede na “Ballata V” é precisamente o contrário: o atonalismo é esvaziado ao ponto de apenas restarem eixos que, estes sim, serão preenchidos pela melodia tonal que é cantada pela voz.

83 Luciano Berio, Sequenza VIII per violino, Milano: Universal Edition UE 15990, 1977, p.1.

!111 Ex. 29: La vera storia,“Ballata V - Che il canto faccia” (Parte I)84.

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Já com o início de Coro o que sucede é a sobreposição de dois caminhos divergentes, que se unirão nos momentos de cadência, como se pode verificar no último compasso do exemplo abaixo:

Ex. 30: Coro per voci e strumenti, I “Indiano (Sioux)”85.

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Não nos iludamos, porém: a multiplicidade do discurso beriano, longe de ser contraditória com a unidade que estudámos na secção anterior, é apenas outra forma de uma mesma realidade. E se esta possibilidade do diverso permite uma articulação

84 Luciano Berio, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), op. cit., p.191. 85 Luciano Berio, Coro per voci e strumenti, Milano: Universal Edition UE 15044, 1976, p.1.

!112 formal clara, acessível ao ouvinte menos preparado, é também o alicerce fundamental para a construção da obra aberta que tão fortemente caracteriza a produção musical de Berio e que exerce um enorme poder sedutor junto do ouvinte mais experimentado. A questão aqui presente leva-nos, pois, a dissociar claramente intertextualidade de metalinguagem – nem o tonalismo pode explicar o atonalismo, nem o atonalismo poderá explicar os momentos tonais da obra. Ambos contribuem para a formação de uma constelação sonora que escapa a esta malha arquetípica demasiado apertada para podermos verdadeiramente entender tanta da música contemporânea. Lembremo-nos das palavras de György Ligeti, que nos parecem adequadas:

What I am doing now is neither ‘modern’ nor ‘postmodern’ but something else. […] I don’t want to go back to tonality or to expressionism or all the ‘neo’ and retrograde movements which exist everywhere. I wanted to find my own way and I finally found it. […] I have found certain complex possibilities in rhythm and new possibilities in harmony which are neither tonal nor atonal.86 A linguagem tonal é vista em Berio como uma de várias metalinguagens de uma pré-linguagem sem nome, diríamos, de uma hiper-linguagem ou omni-linguagem cujos caracteres múltiplos ganham importância e novos matizes em função das linguagens particulares em que estão traduzidos. A enorme liberdade que preside à técnica musical de Luciano Berio está intimamente relacionada com três constatações tão importantes quanto desarmantes pela sua simplicidade: (i) se juntar materiais múltiplos posso com eles constituir um todo coerente; (ii) na presença de materiais múltiplos, mesmo um material aparentemente uno revelará a sua multiplicidade; (iii) materiais múltiplos são facilmente acumuláveis, sem perder a sua singularidade.

Embora a música de Berio não seja, à partida, uma música que pareça dar grande importância ao ritmo (como acontece, por exemplo, com Stravinsky ou com o seu contemporâneo Iannis Xenakis), há uma revolução rítmica – discreta, mas poderosa – que perpassa as suas obras. A nível histórico, não custa perceber este lado quase não rítmico da linguagem de Berio — pensemos, por exemplo, em Bellini (a aria “Casta diva”, da ópera Norma) para ver como o tempo parece simplesmente acontecer e não ser montado ou composto. Em Berio, por vezes o ritmo é a manifestação da

86 DUFFALO, Richard, Trackings: Composers Speak with Richard Duffalo, New York: Oxford University Press, 1989, p.334-335.

!113 multiplicidade harmónica a acontecer no tempo. Uma manifestação tão calma como inelutável — pensemos no começo de Sinfonia, ou em Requies (1983-85), por exemplo. Outras vezes, o ritmo nasce da sobreposição de gestos (pensamos em Sequenza VII per oboe), e aí é galopante. Num e noutro caso, o seu aspecto múltiplo está presente porque a aparente dimensão única de Requies é um estampar progressivo de algo que, na memória, será visto como simultâneo. Tal como o galope frenético de ritmos em peças como a Sequenza VII, é a tradução temporal de um estado de alma que não é descritível de outra forma. O mesmo acontece, aliás, com a sua Sequenza III per voce femminile (cf. acima o exemplo 19), ou com a sua Sequenza I per flauto, porque o ritmo em Berio é normalmente uma consequência do gesto, e as implicações humanas que isso tem são muito mais profundas do que comummente nos atrevemos a pensar: “Something meaningless doesn't make any sense, but something that doesn't make any sense can be meaningful”87.

Esta revolução da sobreposição e da possibilidade do múltiplo dá-se em relação à herança weberniana e às práticas mais académicas do serialismo integral: o ritmo deixa, com Luciano Berio, de ser entendido como um contorno de durações, para ser percebido como o resultado da fricção entre os seus diferentes níveis. Um exemplo muito claro desta fricção, que resulta da sobreposição de diversas camadas rítmicas, é-nos oferecido pela “Scena II” da Parte II de La vera storia, ou pelo terceiro andamento de Sinfonia.

Ex. 31 : La vera storia, Parte II “Scena II”88.

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87 BERIO, Luciano, Remembering the Future, op. cit., p.71. Neste passo, Berio fala a propósito de Sequenza III. 88 BERIO, Luciano, La vera storia - Opera in due parti (Parte II), op. cit., pp.10-11.

!114 Ex. 32: Sinfonia, III: “In ruhig fliessender Bewegung”89.

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Note-se que, em ambos os casos, Berio atinge a ubiquidade rítmica que deseja pela acumulação de informação e nunca pela sua falta. Se em La vera storia se sobrepõe o ritmo da solista ao ritmo das restantes vozes, em Sinfonia sobrepõe-se o ritmo do

89 BERIO, Luciano, Sinfonia, op. cit., p.34s.

!115 scherzo de Mahler ao ritmo das suas citações. Esta prática, está, aliás, presente, embora de forma menos explícita, em muitos outros momentos da sua obra.

Outro aspecto múltiplo do ritmo beriano é a inclusão de tempos fortes e fracos, banida na música serial mais académica, e que ressurge em obras de Luciano Berio como O King. Ela está também muito presente na “Scena V” (Parte II) de La vera storia. Tanto na ópera (cf. adiante exemplo 36) como em O King (cf. ilustração abaixo), estamos na presença de tempos fortes e fracos. Esta prática, banida da música serial tradicional, é repescada num contexto em que, quer a métrica, quer as durações efectivas, são irregulares, mantendo por isso o seu carácter claramente distinto do da música tonal tradicional.

Ex. 33: O King, início90.

! A revolução da sobreposição de diversas camadas como forma de atingir a ubiquidade é, sem dúvida, um traço importantíssimo da música de Luciano Berio. Mas a partir de Sequenza VIII per violino (1975) e da Sequenza IX per clarinetto (1980) ganha corpo uma segunda revolução beriana, revolução esta em que o ritmo é interior à pulsação, contrastando fortemente com a anterior prática de sobreposição de diversos níveis como forma de garantir a ubiquidade desejada pelo compositor.

Esta segunda revolução está particularmente clara nas “Scena VII”, “Scena VIII” e “Scena IX” da Parte II de La vera storia (cf. adiante o exemplo 44). Descrevendo em detalhe, Berio herda a estrutura rítmica do tonalismo e do modalismo – uma estrutura

90 BERIO, Luciano, O King, London: Universal Edition UE 13781, 1970, p.1.

!116 em que estão presentes os níveis da hipermétrica (correspondendo à duração de frases e períodos), da métrica (correspondendo ao tipo de compassos), da pulsação (ritmo implícito), e das durações (correspondendo ao ritmo efectivamente escrito) –, estabelecendo, no entanto, novas relações entre estes elementos, graças à irregularidade de cada um deles. Na segunda revolução, as durações tornam-se dependentes da pulsação, que aqui assume uma regularidade inédita.

Considerando o esquema abaixo, verificamos que na primeira revolução rítmica Berio herda a não submissão weberniana entre os diferentes níveis rítmicos. Ou seja, em vez de erradicar níveis de consideração rítmica, Berio torna-os simultaneamente operantes, seguindo uma lógica de acumulação. Por seu turno, na segunda revolução rítmica, pulsação e durações tornam-se dependentes entre si, mantendo o imperativo de ubiquidade rítmica que marca a produção musical beriana, mas simplificando-o ao fazer corresponder dois níveis rítmicos.

Tonalismo Herança Primeira revolução Segunda revolução weberniana beriana beriana hipermétrica: regular hipermétrica: regular hipermétrica: hipermétrica: ou irregular irregular irregular métrica: regular métrica: inexistente métrica: irregular métrica: irregular pulsação: regular pulsação: pulsação: pulsação: regular tendencialmente tendencialmente inexistente inexistente ou irregular durações: obedecendo durações: irregulares durações: irregulares durações: obedecendo à pulsação e à métrica à pulsação

Dando um exemplo de como esta multiplicidade é conseguida, com base nos instrumentos fornecidos pela segunda revolução beriana, consideremos a “Scena VII”, da Parte II de La vera storia, baseada na Sequenza IX per clarinetto, onde o ritmo se organiza da seguinte forma: a hipermétrica é irregular e corresponde a cada letra de ensaio; a métrica é irregular e corresponde a cada uma das frases; as durações escritas são neste caso, ao contrário de todos os exemplos anteriores, menores do que a pulsação que implicam; a pulsação, finalmente, é completamente regular, embora seja tornada ligeiramente instável pela interpretação que o compositor pede e por momentos de ocasional inserção de notas de metade do seu valor.

!117 Ex. 34: Sequenza IXb per sassofono contralto (1980), início91.

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É a combinação destes dois níveis (pulsação e durações) que permite que um determinado ritmo possa ser simultaneamente qualitativo (como um ritmo tonal ou modal tradicional) e quantitativo (como um ritmo atonal tradicional). A enorme dilatação do tempo atonal operada por Berio e a consideração do objecto musical em profundidade resultante da incrustação de motivos, considerados habitualmente apenas do ponto de vista meramente teatral, é outra das características fundamentais do pensamento rítmico beriano. Mais uma vez, o conjunto das Sequenze dá-nos vários exemplos destes motivos, cuja repetição é sempre variada mas de forma a que sejam reconhecíveis na sua essência. São gestos rítmicos solúveis (no exemplo acima em apojatura) – porque nem sempre apresentados com a mesma dimensão –, mas especialmente pregnantes e, assim, essenciais na articulação do discurso.

Na Sequenza VII per oboe (1969), a função destes motivos é marcar os períodos irregulares do devir rítmico – e não os “compassos” da sua organização –, garantindo assim a pluralidade de tempos de organização do material musical: a hipermétrica de 21,6'' é constante ao longo de 13 repetições92, apenas com desvios pontuais, resultantes de suspensões; a métrica é irregular, constituída pela sucessão de 13 compassos identificados pelos segundos de duração como 3'' - 2,7'' - 2'' - 2'' - 2'' - 2'' - 1,8'' - 1,5'' -

91 BERIO, Luciano, Sequenza IXb per sassofono contralto, Milano, Wien: Universal Edition, 1980, p.1. 92 Cf. o estudo de ALESSANDRINI, Patricia, “A Dress or a Straighjacket? Facing Problems of Structure and Periodicity Posed by the Notation of Berio’s Sequenza VII for Oboe”, in Berio’s ‘Sequenzas’. Essays on Performance, Composition and Analysis, ed. by Janet K. Halfyard, op. cit., pp.67-81. Neste estudo alude-se igualmente à multiplicidade inerente a compassos e figuras incrustadas, salientando-se ainda a hipermétrica regular.

!118 1,3'' - 1,3'' - 1'' - 1'' - 1''; as durações escritas são irregulares e não obedecem à métrica; finalmente, a pulsação não está textualmente presente.

Ex. 35: Sequenza VII per Oboe, início das linhas 1 a 493.

! A importância da incrustação de motivos na criação de hierarquias que previnem a complexidade de um só nível é um dos factos mais caracterizantes das Sequenze de Berio, mas não se limita, naturalmente, a estas obras; em Sinfonia, por exemplo, o texto falado tem a mesma função, na constituição de um todo que se assume, ele próprio, como a parte tangível de um total maior.

Talvez como consequência da experiência da música vocal, com música electro-acústica ou com meios tradicionais, em obras como Thema (Omaggio a Joyce) (1958), Visage (1961), Passaggio (1963) e Laborintus II (1965), a ideia de objecto rítmico múltiplo é fundamental em Berio. Mas para além da pluralidade de tempos, resultante da sobreposição de várias vozes, podemos assistir a este fenómeno “transcrito” para uma só voz. É isto que acontece na Sequenza VII per oboe, em que a sobreposição de três níveis – compassos, o seu preenchimento por tempos fracos regulares ou irregulares e, finalmente, a sobreposição de uma camada não coincidente assinalada por motivos – é feita para constituir um objecto rítmico múltiplo. Note-se que a irregularidade de todas partes é fundamental para que este objectivo seja conseguido.

93 BERIO, Luciano, Sequenza VII per Oboe solo, London: Universal Edition (UE 13754), 1971, página única.

!119 Neste contexto, em que parece haver uma diluição do ritmo para se conseguir a multiplicidade do discurso, vale a pena recordar as palavras de Berio numa intervenção de 1985, intitulada, com o humor que lhe é próprio, de Che tempo fa:

Non mi sembra cosí importante, nella musica di oggi, il riferimento a una organizzazione ritmica e metrica del tempo. È certamente piú significativo, invece, il desiderio e la possibilità di controllare dimensioni di tempo molto diversificate e non omogenee fra loro. Invece di cercare di sintetizzare e semplificare la natura di questo desiderio — dietro il quale si nasconce e preme la storia della musica nella sua totalità — mi sembra piú opportuno ricordare che la relazione del compositore con la dimensione e le funzioni del tempo ha compiuto una transformazione importante attraverso le prime esperienze di musica elettronica94. Estando completamente de acordo com esta posição, não podemos, no entanto, deixar de fazer notar alguns aspectos recorrentes na sua prática, que lhe permitem, aliás, a eclosão do múltiplo, porque, se estamos perante a eclosão de algo que não conseguimos controlar, temos que lhe dar condições para que ele aconteça, na obra de arte. O ritmo ressurge a várias escalas temporais, à maneira da talea da música medieval. Mas o seu surgimento dá-se num quadro onde a medida humana ainda o pode pensar.

“[…] l'affirmation du multiple est elle-même l'un, l'affirmation multiple est la manière dont l'un s'affirme. «L'un, c'est le multiple.»”95. É indispensável, para uma correcta recepção das inovações de Luciano Berio face às alturas e face ao ritmo, a percepção de que é este carácter múltiplo em simultâneo que garante, a mais das vezes, a sua efectiva existência e coerência. Concretizamos: uma insistência em apenas um carácter levaria o ouvinte a rapidamente o desmontar em duas realidades e, assim, a torná-lo naquilo que poderíamos classificar de politonal. Ora, o que se passa com Berio é radicalmente diferente, porque, ao estabelecer mais do que um nível de leitura simultânea, o que está a fazer é confrontar o ouvinte com a sua própria capacidade de recepção. Embora pensemos nisto sobretudo tendo em conta as alturas, o mesmo se pode passar com as durações, e é certeira a observação de que há uma revolução rítmica

94 In “Che tempo fa”, in Scritti sulla musica, op. cit., pp.71-72. 95 DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p.27.

!120 em Berio, muitas vezes ignorada em favor de outros factores mais evidentes. Ora, nas camadas de escuta menos visíveis ou óbvias reside uma importante chave de decifração e de leitura. Porque é mergulhando nas características internas do objecto que melhor o podemos compreender exteriormente, numa postura de análise que não pretende estabelecer hierarquias entre os seus parâmetros, aproximando-se do seu objecto de análise como face a um rizoma. A importância do que acabamos de dizer, do ponto de vista político, não pode ser mais sublinhada: a realidade é múltipla, é politicamente diversa, e não devemos privilegiar um dos parâmetros sob o imperativo de coerência. Cada parâmetro ou cada nível do discurso deve ser coerente consigo mesmo, cada pessoa deve ser honesta consigo própria, mas radicalmente independente face às demais

— “There is no unity to serve as a pivot in the object, or to divide in the subject.”96

Mas podemos e devemos ir mais longe. Devemos aceitar que se estabeleçam alianças improváveis entre elementos que não abdicam da sua irredutível singularidade. Admitir o múltiplo é também, ou talvez seja sobretudo, admitir a multiplicidade de relações e de possibilidades. Por isso, não hesitamos em classificar de rizomática a prática musical de Berio; como bem diz Deleuze, “[…] the laws of combination therefore increase in number as the multiplicity grows”97. E o papel do compositor muda radicalmente, porque este passa a ser o papel de alguém que prevê a coexistência do conjunto e não o de alguém que submete esse conjunto a uma qualquer lógica.

96 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.8. 97 Ibidem.

!121 Flexível e Mutante

Ex. 36: La vera storia, Parte II, “Scena V”98.

! No exemplo acima vemos o início da “Scena V”, que é, talvez, o exemplo mais claro de mutação em La vera storia. Com efeito, depois deste início, em que podemos observar um ataque staccatissimo do coro, juntamente com a repetição de uma nota, a que se junta uma melodia acompanhada pela sua transcrição por parte da flauta, veremos desenrolar-se um processo em que, para além da junção de mais uma voz, aquele que era um ataque isolado do coro se irá tornar o elemento mais marcante da

98 BERIO, Luciano, La vera storia - Opera in due parti (Parte II), op. cit., p.54.

!122 cena, após um processo de contínua aceleração. Ao mesmo tempo, este ataque sem notas irá tornar-se um todo harmónico, que condicionará toda a segunda parte desta cena.

O carácter flexível e mutante do ritmo, porque simultaneamente vectorial (uno) e sobreposto (múltiplo), é mais uma das marcas de singularidade da música de Luciano Berio. A capacidade de transformação de um corpo está ligada umbilicalmente aos caracteres uno e múltiplo descritos nas secções anteriores. Considerando ainda o exemplo da "Scena V" (Parte II) dado acima, este carácter de mutação constante reflecte-se na assumpção do fenómeno de transcrição e na adaptação particular da isorritmia medieval, que permite a constante evolução rítmica – como em O King – ou a sua reordenação e reapresentação – como em Sequenza VII per oboe e Sequenza IX. Finalmente, a eclosão de um ritmo articulado, marcado por uma superfície musical passível de ser dividida pelo ouvinte numa sequência de eventos distintos99, é um dos fenómenos mais presentes em La vera storia (veja-se o exemplo abaixo), mas também em obras como Il ritorno degli Snovidenia per violoncello e piccola orchestra (1977):

Ex. 37: La vera storia, Parte I, aria “Il Ratto”, compassos iniciais100.

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99 Cf. LERDAHL, Fred, “Cognitive Constraints on Compositional Systems”, Contemporary Music Review, Vol. 6, Part 2, 1992, pp.97-121. 100 BERIO, Luciano, La vera storia - Opera in due parti (Parte I), op. cit., p.66.

!123 Ex. 38: Transcrição rítmica de Il ritorno degli Snovidenia, por Angela Carone101.

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Juntamente com a ideia de múltiplo e de uno, a ideia de contínua mutação é um dos aspectos centrais a considerar na análise da música de Berio. Acontece que essa mutação não é uma forma-processo102, mas surge da ideia de transcrição constante, tão claramente exposta na Sequenza VII per Oboe: uma transcrição que pode abranger diversos aspectos, conter diversas velocidades e processos, e que se permite recorrer sobre si própria (cf. o exemplo 35 atrás neste capítulo).

Inerente à ideia de materiais mutantes e de devir enquanto característica interna do objecto está a concepção do material enquanto constelação ou campo de possibilidades. Um material cujas apresentações são encaradas como momento de reformulação ou de (re)composição, ou simplesmente como aparições parcelares de um todo por-revelar. Podemos dizer que o material é, portanto, a sua estrutura inicial e o seu comportamento, que não tem de ser desta derivado. Mas tantas vezes será repetida esta releitura, que acabaremos por pensar que aquilo que julgávamos ser o material de base desta peça mais não é, afinal, do que, ele mesmo, uma releitura de um material que não conhecemos nem nunca iremos conhecer. A magia deste momento é, pois, o confronto com a nossa condição humana. Não podemos deixar de, a este propósito, recordar a noção espinosiana de Substância e de Atributo, que começámos por evocar no início

101 CARONE, Angela, “When the Returns Take Shape: Some Observations on the Genesis and Structure of Luciano Berio ́s Ritorno degli Snovidenia”, Ex tempore, A Journal of Compositional and Theoretical Research in Music, Vol. XV/1: Spring/Summer 2010, pp.97-117. 102 Cf. FRITSCH, Johannes, "Prozeßplanung", in Improvisation und neue Musik, hrsg. von Reinhold Brinkmann, Institut für Neue Musik und Musikerziehung Darmstadt 20, Mainz: B. Schott's Söhne, 1979, pp.108-117.

!124 deste capítulo, quando introduzimos, precisamente, o carácter flexível e mutante da música de Berio. Mas não conseguimos, também, deixar de pensar nas palavras de T. S. Eliot, no segundo poema dos seus The Four Quartets (1940): “In my beginning is my end […] In my end is my beginning”, um dos textos citados por Edoardo Sanguineti em A-Ronne (1974-75).

Esta concepção do material é a sua própria desaparição, porque é o seu próprio devir. Daí falarmos de constelação ou campo de possibilidades, porque não estamos a falar de um objecto determinado, mas da sua mutação, obedecendo a um critério que não ponha em causa a sua substância fundamental. Um exemplo particularmente adequado para a percepção do que queremos dizer é, sem dúvida, o prelúdio Voiles, de Debussy. Por mais que se percepcione uma mudança de notas, elas pertencerão sempre à mesma escala de tons inteiros, e como este modo divide a oitava em partes iguais – ao contrário do que sucede com os modos tonais tradicionais – nunca teremos a sensação de transferência de peso que marca a música tonal:

Ex. 39: Claude Debussy, “Voiles” (início), Préludes, Premier Livre103.

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103 DEBUSSY, Claude, Préludes. Premier Livre, Paris: Durand & Cie., 1910, p.3.

!125 O fenómeno beriano que acima referimos – a desaparição do material – pode concretizar-se através da permuta de notas, da sua inserção e transposição, ou muito comummente através da combinação destas formas de mutação. No caso da permuta de notas, esta pode concretizar-se entre notas sucessivas ou notas não-contíguas. Pode ainda ser direccionada – rumo a um só sentido – ou não. Dois exemplos claros desta permuta estão dispostos abaixo: um pertence à ópera Outis (1996) e outro a Formazioni (1987).

Ex. 40: Outis, esquisso melódico104 da autoria do compositor, onde se pode observar a permuta de notas.

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Ex. 41: Formazioni, secção 3, melodia dos metais. As linhas juntam as notas permutadas. Exemplo composto a partir da análise de Pascal Decroupet105.

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104 Esta imagem encontra-se reproduzida na capa do volume com vários estudos sobre a música de Luciano Berio, editado por Enzo Restagno: Berio, Torino: EDT, Edizioni di Torino, 1995. 105 DECROUPET, Pascal, “Formazioni: A Sketch Study and Speculative Interpretation of Berio’s Compositional Strategies”, op. cit., pp.133-162.

!126 Quanto à inserção, omisssão e transposição de notas fora do campo harmónico inicial, ela obedece a um conjunto de critérios, entre os quais se incluem a deslocação ou não do centro harmónico, o aumento ou não da dissonância e a transformação abrupta ou não da cor do acorde (através da introdução de notas mais distantes a nível do registo), ou ainda a consideração da sua pertença a um conjunto harmónico como a escala de tons inteiros ou a escala octatónica. Não há regras definidas à partida, mas apenas a observação de critérios que têm subjacentes os conceitos de polaridade e consonância — não espanta, pois, que na opinião de Paul Roberts, assistente de Berio nos seus últimos anos de vida, “the selection of new pitches ‘outside the basic pitch field’ might be for a question of register, or might depend on the musical situation rather than for a specific ‘rule’”106.

Para a clarificação destes conceitos será importante observarmos a tabela de polaridade de Henri Pousseur (compositor que colaborou com Berio nos anos 50 e 60107):

Ex. 42: Tabela de polaridade de Henri Pousseur (transcrição nossa a partir dos escritos de Pousseur coligidos por Pascal Decroupet).

! Observando a imagem acima, verificamos um máximo de consonância à esquerda, a sua progressiva extinção até ao centro – que contém um máximo de dissonância – e o ressurgir dessa consonância à medida que atingimos o extremo direito. Simultaneamente, verificamos um máximo de polaridade da díade [DO-DO] à esquerda, e um decréscimo desta característica até ao atingir da díade [DO-FA], e é então que assistimos a um aumento repentino da polaridade, com o atingir da díade [DO-DO]. A propósito da observação deste quadro, parece-nos fundamental realçar a liberdade que

106 Esta observação de Paul Roberts foi-nos gentilmente dada numa troca de mensagens de correio electrónico em 10 de Novembro de 2011 (Cf. Anexo 1). 107 Tanto os escritos de Pousseur, coligidos por Pascal Decroupet, como os de Berio, coligidos por De Benedictis, atestam e testemunham esta colaboração. Cf. POUSSEUR, Henri, Écrits Théoriques (1954-1967), op. cit.. BERIO, Luciano, Scritti sulla musica, op. cit.

!127 dele advém: o compositor é confrontado com múltiplas opções possíveis e é a ele que cabe a eleição da hipótese escolhida.

É tendo em consideração os princípios subjacentes a esta tabela que é composta a série que dá origem aos momentos iniciais da Sequenza VII. Por isso, as notas com maior carga antipolar ([SOL] e [MI]) são evitadas, enquanto a nota com maior carga polar [FA#] está presente, tal como a sua terceira menor [RE], a sua sétima menor [LA] e a sua nona menor [DO]:

Ex. 43: Sequenza VII, primeiras seis notas da série.

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Só então, depois destas primeiras seis notas, são apresentadas as restantes seis notas da série, que, no contexto de maior número de alturas em que são presentes, têm a sua força antipolar diminuída.

Ex. 44: Sequenza VII, últimas seis notas da série.

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Muitos outros exemplos de inserção de notas abundam na obra de Luciano Berio. Essencialmente estas notas são feitas por critérios semelhantes àqueles que acabámos de ilustrar com a Sequenza VII, pelo que julgamos redundante a sua enumeração108. Neste contexto, dá-se a inserção de motivos, transposições internas, desvios cromáticos, ritmos ou até acordes, que marcam muito fortemente La vera storia. O conjunto de possibilidades a que este procedimento dá acesso é imenso: o conjunto de notas inseridas poderá formar um corpo de notas destacadas das notas originais através do seu registo, timbre, identidade harmónica ou espacialização, coerentes entre si.

O procedimento de acrescentar notas fora do campo sonoro inicial pode ser expandido através da constituição de uma polifonia em torno de um material inicial,

108 O estudo de Philippe Albèra, «Introduction aux neuf Sequenzas» (op. cit.) descreve a emergência destas figuras, sem, contudo, apontar as razões que terão presidido à escolha das novas notas, permitindo a mutação do objecto inicial.

!128 resultando em novas obras de que é exemplo o conjunto de Chemins (1964-2001)109, compostos em torno das respectivas Sequenze. Note-se que, neste último caso, não se trata apenas de acrescentar novos elementos a um material inicial, mas da inserção de novas camadas que com ele possam estar mais ou menos remotamente relacionadas. É também isto que acontece com “Scena VII” de La vera storia (Parte II), cujo comentário à Sequenza IXa per Clarinetto (1980), assenta nas técnicas de inserção mencionadas acima.

Ex. 45: La vera storia,“Scena VII” (Parte II). Como se pode ver, o acorde do piano, logo no início do compasso, é uma inserção em relação à Sequenza IXa per Clarinetto original.110

!

Tão importante como a inserção de notas para a técnica beriana é a omissão de notas. E, tal como no primeiro caso, aqui não há regras definidas à partida, mas apenas a observação de critérios que têm subjacentes os conceitos de polaridade e consonância. Considere-se a ilustração que se segue:

Ex. 46: Luftklavier, início e excerto da 2ª página. Como se pode observar na ilustração, a figura que começa por ser repetida de forma obcessiva vê as suas notas omitidas na segunda página111.

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109 Paul Roberts escreveu um estudo sobre o conjunto de Chemins que Berio compôs, onde faz uma sistematização muito interessante dos procedimentos composicionais de Berio para a expansão das Sequenze. Cf. “The Chemins Series”, in Berio’s ‘Sequenzas’. Essays on Performance, Composition and Analysis, op. cit., pp.117-136. 110 BERIO, Luciano, La vera storia - Opera in due parti (Parte I), op. cit., p.121. 111 BERIO, Luciano, 6 encores for piano - “Luftklavier”, op. cit., pp. 10-11.

!129 !

Na ilustração acima, retirada de Luftklavier (1985), a proximidade com Voiles, de Debussy, pese embora todas as diferenças entre estas duas peças para piano, ressalta de forma particularmente evidente.

A recusa do carácter estático dos seus grupos harmónicos, que acabamos de verificar em relação à presença ou omissão de novas alturas, verifica-se também com a sua transposição, e particularmente em relação à mudança de oitava das suas notas. É isto que acontece com o momento inicial de La vera storia, no qual o agregado inicial é explorado através da deslocação de oitava de alguns dos seus elementos:

Ex. 47: La vera storia, “Prima Festa” (Parte I). Conjunto de notas citado por David Osmond-Smith112.

!

Ex. 48: La vera storia, “Prima Festa” (Parte I). Deslocação por oitava de notas.

!

Esta simples deslocação de oitava altera enormemente as relações de polaridade entre as suas notas: do primeiro para o segundo acorde, o acorde parece ter sido transposto por trítono descendente: [DO-MI-SOL-SI] com as notas agregadas [DO#-FA#-LA-LA#] é transposto para o acorde [FA#-LA#-DO#-MI-SOL] com as notas agregadas [DO-LA- SI]:

112 OSMOND-SMITH, D., Berio, op. cit., p.104.

!130 Ex. 49: La vera storia,“Prima Festa” (Parte I). Primeiros dois acordes.

!

O mesmo fenómeno se passa com os acordes finais de O King (1968), que podem ser interpretados como acordes de diferentes fundamentais ou características – pensamos em [DO, FA#, DO e DOm]:

Ex. 50: O King, acordes finais.

! Esta polaridade mutante resulta da proximidade que ambas as estruturas harmónicas pantenteiam em relação à escala octatónica – cuja multipolaridade resulta do facto de repetir uma mesma sequência de intervalos a partir de diferentes notas.

Ex. 51: escala octatónica.

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Mas nada obriga a que seja exclusivamente através de um dos métodos que acabamos de referir, ou através de um modo simétrico como a escala octatónica, que o constante devir do material tem lugar. Se encararmos a expansão melódica contida numa obra como a Sequenza I per flauto (1958), percebemos que aquilo que, hipoteticamente, seria uma linha cromática descendente, é simultaneamente transformado por inserção, omisssão e transposição de notas:

!131 Ex. 52: Sequenza I per flauto, início113.

!

O resultado da sobreposição destas transformações é um momento de onde são banidas quaisquer sequências que tornem o movimento melódico previsível e que impeçam qualquer leitura deste movimento melódico limitada aos modos tradicionais – maior e menor – ou aos modos modernos – como os de Messiaen. Este mesmo exemplo pode ser visto como resultado da ornamentação de segmentos octatónicos [LA-SOL#-FA#] [SOL-FA-MI-DO#] [RE#-RE-DO-SI] [LA-MIb-FA] segundo os critérios de polaridade mencionados acima. Mas também pode ser visto como a ornamentação de uma linha pertencente à escala de tons inteiros:

Ex. 53: Sequenza I per flauto - escala de tons inteiros deduzida da sequência inicial.

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Esta situação, em que qualquer uma das hipóteses acima indicada – cromatismo, escala de tons inteiros e escala octatónica – é igualmente válida, explica a extrema mobilidade do objecto resultante e a sua enorme eficácia. Ela explica, também, o carácter improvisatório desta peça, que resulta da recusa beriana em aceitar os interditos do dodecafonismo clássico de Schoenberg, mas também da concepção beriana do material enquanto rede dinâmica de forças. Recordemos as palavras de Berio em entrevista com David Roth: “The real enriching experience is to be able to perceive processes of formation, transformation – of changing things – rather than solid objects”114. Por este motivo, não podemos acompanhar o caminho traçado por Irna

113 BERIO, Luciano, Sequenza per flauto solo, Milano: Edizioni Suvini Zerboni, 1958, p.1. 114 In “Luciano Berio on New Music: An Interview with David Roth”, Musical opinion, septembre 1976, p. 549.

!132 Priore num recente estudo que faz sobre esta Sequenza115, tentanto descobrir nela traços do serialismo dodecafónico, quando o que interessa é saber a relação que as várias negações do dodecafonismo presentes na obra estabelecem entre si. Seria, pelo contrário, interessante pegar nos conceitos de Diferença e Repetição, tal como Deleuze os pensa, e ver de que forma eles se reflectem nesta Sequenza, numa mesma linha de aproximação que Bruce Quaglia faz num trabalho pertinente em que avança para questões poéticas na música de Berio a partir de conceitos deleuzianos116.

Neste sentido, vale a pena tentar um oportuno exercício de cruzamento com os conceitos deleuzianos expostos no capítulo anterior, podemos dizer que a multiplicidade é a condição da mutabilidade de que o objecto sonoro beriano é capaz. Por que ela constitui o sintoma mais epidérmico de que afinal não é o objecto em si que prende a atenção do ouvinte, mas a sua transformação. Compreendemos, assim, as palavras de Deleuze e Guattari quando afirmam:

A multiplicity has neither subject nor object, only determinations, magnitudes, and dimensions that cannot increase in number without the multiplicity changing in nature.117 E podemos dizer: o objecto, que não tem começo nem fim, não tem entidade enquanto todo que não seja a afirmação das suas possibilidades de devir através da negação do carácter definitivo de cada um dos seus constituintes. Tudo é mutante; o próprio todo resultante desta mutação o é também:

There is a rupture in the rhizome whenever segmentary lines explode into a line of flight, but the line of flight is part of the rhizome. These lines always tie back to

115 Cf. “Vestiges of Twelve-Tone Practice as Compositional Process in Berio’s Sequenza I for Solo ”, in Berio’s ‘Sequenzas’. Essays on Performance, Composition and Analysis, op. cit., pp.191-208. 116 Cf. “Transformation and Becoming Other in the Music and Poetics of Luciano Berio”, in Sounding the Virtual. Gilles Deleuze and the Theory and Philosophy of Music, ed. by Brian Hulse and Nick Nesbitt, Surrey, Burlington: Ashgate, 2010, pp.227-248. A propósito da relação de Deleuze e Berio, vale a pena transcrever a pequena carta que Deleuze escreveu ao compositor depois de se encontrarem em Paris, um inédito publicado neste mesmo estudo de Quaglia, depositado na Fundação Paul Sacher, onde o espólio do compositor se encontra: Dear Berio, Once again I must tell you of my admiration. It was a joy to have heard you, and I do believe that I owe much thanks to you. Regarding this subject, I have worked a small part of the night as you have made something new possible for me. You are perhaps the only musician who has found a means to maintain the joy. Something urgent: can you please tell Clément Rosset if your composition “Visage” is available on disc and if there is also a text of your presentation. If you have time on the 16th, call me or else I can call you at IRCAM. Your dear friend, Gilles Deleuze 117 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.8.

!133 one another. That is why one can never posit a dualism or a dichotomy, even in the rudimentary form of the good and the bad.118

118 Ibidem, p.9.

!134 Para-funcional e Mutante

Para além da enorme coesão garantida pela simplicidade do seu material, descrita na secção sobre o Uno, para além da diversidade que exibe e que descrevemos na secção dedicada ao Múltiplo, e para além da enorme quantidade de desenvolvimentos particulares que mostrámos na secção sobre o carácter Flexível e Mutante, a música de Berio assenta numa organização sintáctica dos seus materiais, que lhe permite uma enorme assertividade — esta assertividade sintáctica liga-se ao carácter para-funcional e mutante da sua música. É necessário explicar o que queremos dizer com este termo: uma música que se rege pela alternância entre pontos de repouso e de tensão, normalmente usando notas que não têm uma função definida e cujos aspectos rítmicos fogem da previsibilidade a que aludem, e, por isso, uma música que caracterizamos como para-funcional. Note-se que não a caracterizamos como quasi-funcional, como acontece com muita música medieval e renascentista119, tão pouco a caracterizamos como funcional, como acontece nos períodos Barroco, no Clássico e Romântico, não a caracterizamos como pós-funcional, como acontece com tanta música dodecafónica ou serial, mas caracterizamo-la como para-funcional, ao não almejar a constituição de funções cristalizadas, sem no entanto se demitir de aludir a uma qualquer forma de articulação de sentido. Resta-nos dizer que esta característica está estreitamente ligada com o carácter flexível e mutante que estudámos na secção anterior.

A preocupação com a sintaxe é um dos traços mais distintivos da poética beriana, permitindo-lhe abarcar meios muito diferentes de produção musical, com materiais sonoros muitíssimo distintos — da música electroacústica à música coral, ou da música de alturas indefinidas (como no início de Laborintus II) à música orquestral de Sinfonia. Acresce que esta sintaxe é filha do seu tempo e quer rejeitar qualquer exclusividade de lógicas binárias: como diz Umberto Eco, no seu texto «Poética da forma aberta», “a lógica binária do verdadeiro/falso, ou da coisa e do seu contrário,

119 Richard Taruskin recupera este termo no seu estudo sobre Stravinsky, in Stravinsky and the Russian Traditions: A Biography of the Works Through Mavra, vol. 2, Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1996, p.1601.

!135 deixou de ser o único instrumento para o conhecimento”120. É assim que vemos a constituição de estruturas singulares, binárias, circulares, sequenciais e plurais conviverem num todo que não cessa de surpreender pela sua enorme versatilidade. Pretende-se, de seguida, estudar de forma particular cada uma destas formas de articulação do discurso musical, a sua sobreposição, e, finalmente, a sua interacção. Como veremos abaixo, a importância destas articulações não se limita à articulação harmónica, mas é decisiva no convívio entre diferentes expressões musicais praticado por Berio. Mais, ela permite a existência de modos de expressão comuns entre linguagens distintas, como o tonalismo, o modalismo ou o atonalismo. Acresce que estes modos constituem um quadro vasto, que inclui comportamentos harmónicos mais oscilantes, lógicas involutivas, ou realidades harmonicamente estáticas.

Este aspecto do estabelecimento de estruturas de articulação do discurso musical não é, curiosamente, alvo de realce por parte da literatura crítica. Embora David Osmond-Smith acabe por lhe fazer referência no seu livro Playing on Words…, não lhe dá qualquer tipo de importância na organização material beriana:

The deliberately parsimonious musical materials deployed during the vocal parts of the movements simply underline this tripartite division. They also establish a harmonic language that is to permeate much of the score, a language based upon accumulations of thirds121. Gostaríamos de partilhar a nossa divergência com Osmond-Smith, pelo facto de este caracterizar a linguagem de Luciano Berio apenas no tipo de objectos, que são, diz ele com muita razão, objectos baseados na acumulação de terceiras. Não tem, porém qualquer palavra em relação ao facto de ele usar apenas dois acordes, e portanto uma estrutura harmónica binária.

Mas se pensarmos, aliás, na análise musical de obras desde o início do século XX122, ou mesmo em obras anteriores, verificamos o mesmo tipo de fenómeno: apesar de haver uma descrição minuciosa do objecto artístico, nada é dito sobre a sintaxe das obras analisadas. E no entanto, se pensarmos na Sinfonia op. 21 de Anton Webern

120 ECO, Umberto, Obra Aberta, trad. João R. N. Furtado, Lisboa: Difel, 1989, p.15 (ed. italiana: 1962). 121 OSMOND-SMITH, David , Playing on Words…, op. cit., p.15. 122 Cf., a este propósito, BAILEY, Kathryn, The Twelve-Note Music of Anton Webern: Old Forms in a New Language, Cambridge University Press, 1991.

!136 (1927/28) veremos como a preocupação com a articulação sintáctica é algo que parece ter norteado a produção deste compositor.

Ex. 54: Anton Webern, Sinfonia op. 21, início123.

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No exemplo acima, podemos observar que o [LA] inicial da Trompa II (cc 1) é sucedido por uma nota diferente (cc 2) e de seguida é reiterado (cc 3), antes de voltar a ser sucedido por outra nota diferente (cc 4). De igual modo, o [SI] da Trompa I (cc 5) é sucedido por um conjunto de notas diferentes (cc 6), para ser outra vez reiterado pelo Clarinete (cc 7), antes de ser sucedido por outro conjunto de notas diferentes no compasso seguinte. Esta estrutura no total dá, portanto:

A - B - A - C D - E - D - F O que vemos claramente quando observamos este exemplo é que existe sempre uma alternância entre o [A] e qualquer coisa que não conhecemos, que é, mais tarde, seguida, por uma alternânica entre o [D], cujo regresso reconhecemos, emparelhados por notas que desconhecemos. Esta estrutura é, aliás, sublinhada ritmicamente. Claro que Webern pensava sobretudo num canon ao uníssono por movimento contrário, mas

123 WEBERN, Anton, Symphonie, op.21, for chamber ensemble, Universal Edition, s.d., p.1.

!137 tal não anula a pertinência das observações que acabamos de fazer do ponto de vista sintáctico. Estamos, assim, perante uma estrutura binária124.

Também Alban Berg na segunda cena da sua ópera Wozzeck (1914-22) faz suceder dois acordes para lhes dar uma articulação binária.

Ex. 55: Alban Berg, Wozzeck, início do Acto I, Cena 2125.

! Como se pode observar no exemplo acima, nos compassos 1, 2, e 3 apenas estão presentes dois acordes em sucessão. Mais uma vez estamos perante a lógica binária da elaboração do discurso musical.

Com Igor Stravinsky, se pensarmos no segundo número da Sagração da Primavera (1913), passa-se exactamente o mesmo fenómeno:

124 Não resistimos a contar que foi depois de ouvirem esta obra de Webern em Nova Iorque, 1950, e de decidirem sair do concerto (que iria continuar com uma peça de Rachmaninoff), que John Cage e Morton Feldman se conheceram. Cf. REVILL, David, The Roaring Silence: John Cage – a Life, Arcade Publishing, 1993, p.101; FELDMAN, Morton. "Liner Notes”, in Give My Regards to Eighth Street: Collected Writings of Morton Feldman, Ed. B. H. Friedman, Cambridge: Exact Change, 2000, p.4. 125 BERG, Alban, Wozzeck, op.7, Klavierauszug von Fritz Heinrich Klein, s. editor, s.d., p.9.

!138 Ex. 56: Igor Stravinsky, A Sagração da Primavera, início do segundo número da Primeira Parte126.

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! Como se pode observar pelo exemplo acima, também é a sucessão binária entre um acorde repetido e o seu arpejo que é fonte de emanação de sentido.

Béla Bartók tem também em muitas das suas obras esta articulação. No exemplo abaixo, veja-se a sucessão clara entre momentos como os dos compassos 1 a 6, que voltam nos compassos 12 a 16, e momentos como os dos compassos 6 a 11, que são reiterados nos compassos 16 a 21:

126 STRAVINSKY, Igor, The Rite of Spring,CD Sheet Music (tm), s.d., p.8.

!139 Ex. 57: Béla Bartók, Concerto para Orquestra (1943), início127.

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O conjunto de exemplos desta articulação no reportório atonal é infindável e abrange um número considerável de compositores, não só da primeira metade do século XX. Citemos, a esse propósito, Rituel in memoriam Bruno Maderna, de Pierre Boulez (na ilustração que se segue), onde esta sucessão binária está igualmente presente, primeiro na oposição entre momentos verticais e momentos horizontais, mas também na oposição entre momentos onde só ouvimos percussão e momentos melódicos. Esta organização sintáctica, que faz do seu aspecto binário um elemento unificador, está também presente em todas as séries de Luigi Dallapiccola e ainda do próprio Luciano Berio, embora neste último caso não de forma tão explícita. Os exemplos que apresentámos atrás, na secção dedicada ao carácter uno do discurso beriano, das séries de Cinque Canti (1956) e Il prigionero (1944/1948) de Dallapiccola (vd. o exemplo 7 atrás neste capítulo), e ainda da série da Sequenza IX de Luciano Berio (vd. o exemplo 5 atrás neste capítulo) são particularmente elucidativos a este respeito.

127 BARTÓK, Béla, Concerto for Orchestra, piano score by the composer, ed. György Sándor, Boosey & Hawkes Music Publishers, 2001, p.3.

!140 Ex. 58: Pierre Boulez, Rituel in memoriam Bruno Maderna, início128.

! A lista de exemplos desta articulação binária não tem fim. Mas não é comum a todos os esforços composicionais do reportório musical do século XX. Pensemos no início do Concerto de Câmara de Alban Berg (1923-25), ou no início das Bagatelas de Webern (1911), ou ainda no início do Concerto de Piano de Arnold Schoenberg (1942), e rapidamente chegaremos à conclusão de que, apesar destas obras terem em comum a mesma técnica com as que falámos anteriormente no que ao material diz respeito, são radicalmente diferentes destas no que concerne a articulação do discurso.

Esta articulação binária é tão comum na música tonal, que se naturalizou; neste sentido, foi encarada pela crítica, quando presente em obras atonais, como simples

128 BOULEZ, Pierre, Rituel in memoriam Bruno Maderna, London, Universal Edition (UE 15941), 1975, p.1.

!141 reminiscência de um hábito tonal, ou, se quisermos, como “fraqueza” face ao sistema. Urge, pois, na nossa opinião, praticar uma hermêutica “desmemoriada” (Maria Gabriela

Llansol129), digamos, que de algum modo dispa os gestos e as tendências poetológicas da música no tempo para exercitar um olhar que as redescubra a operar novos sentidos, que ajudem a actualizar o aparato musicológico disponível. A música de Luciano Berio — e, de forma muito explícita, a Parte I de La vera storia — constitui um excelente ensejo para a abertura a “novas perspectivas” (pedindo a expressão emprestada ao título de um dos volumes mais recentes publicados sobre a música beriana130), não só sobre todo o conjunto da sua prática musical, como sobre o reportório musical tradicional. Por isso, não surpreende que se assista cada vez mais ao cruzamento de áreas do saber distintas, no sentido de se ajudarem na renovação do jargão teórico da análise musical.

Falamos, muito concretamente, de nomes como Tom Stuttclife131, que estabelece para a harmonia uma visão em que a sintaxe, embora aplicada por Stuttclife exclusivamente à música tonal (clássica e contemporânea), tem um papel principal na explicação da organização dos sons. Não nos iludamos, pois, o que está aqui em causa é uma nova visão da harmonia e mesmo da linguagem, isto é, o pensar a linguagem a partir de princípios estruturalistas, digamos, naquilo que este termo tem de estudo das estruturas mentais subjacentes. Sendo mais concretos, se existe em determinada sonata de Mozart ou de Beethoven, ou numa canção dos Beatles, uma passagem que apenas contém o I e o V graus da tonalidade, provavelmente estaremos perante uma sucessão binária, porque apenas podemos usar dois acordes. Se, pelo contrário, na mesma passagem estivermos em presença de três acordes, como I, IV e V, o número de sucessões que poderemos fazer é virtualmente infinito; podemos fazer I - IV - I, depois I - IV - V - I, depois IV - V - I - V - IV - V - I, e assim por diante… quanto maior for o conjunto de acordes, mais infinito é o conjunto de hipóteses possíveis. Este aspecto fundamental na organização musical é frequentemente descurado, porque ao aspecto da quantidade de acordes se

129 Em O Jogo da Liberdade da Alma (Lisboa, Relógio d’Água, 2003) surge uma figura feminina, a “rapariga desmemoriada”, que se encontra com Spinoza e com o sujeito de enunciação, entrando num jogo de linguagem e a reaprendizagem da fala, de nomeação, que nos interpela precisamente sobre o peso do que pensamos como natural e dos hábitos que temos como se fossem constitutivos da natureza humana, quando são apenas hábitos adquiridos. 130 Cf. BENEDICTIS, Angela de (ed.), Luciano Berio. Nuove Prospettive. New Perspectives, Firenze: Leo S. Olschki, 2012. 131 STUTTCLIFE, Tom, Syntactic Structures in Music, base de dados de harmonia acessível em www.harmony.org.uk (versão 2.7, de Abril de 2014).

!142 associa automaticamente o aspecto da quantidade de articulações, mas tal não tem de ser necessariamente verdade. Por exemplo, a sucessão I - V - I - IV - I - II - I - V - I - VI - I - III - I - IV - I… é uma sucessão binária, na medida em que o acorde de I grau surge em articulação com todos os outros (cf. a este propósito o exemplo 54, acima neste capítulo). Mesmo que façamos notar que existem seis acordes diferentes presentes na sequência, tal não nos impede de demonstrar a simplicidade que preside à organização sintáctica do fenómeno musical. Porque a consideração da não evidência, ou da não visibilidade de gestos naturalizados é uma abertura necessária a mais um nível de análise, que pensamos ser fundamental para o aprofundamento da mesma. A música de Mozart, por exemplo, é mais sofisticada do que a de muitos dos seus contemporâneos, não por causa do conjunto de acordes que se possa isolar, mas por causa da fineza sintáctica que este pratica. É, portanto, com imenso prazer que vemos em mais um recente volume de estudos sobre a música de Berio, coordenado por Janet K. Halfyard, um trabalho de Didier Guigue e Marcílio Fagner Onofre sobre a Sequenza IV per pianoforte, onde são focadas questões que abordam a sintaxe musical132. Como, aliás, o faz Thomas Gartmann no seu estudo sobre a Sequenza XIII (Chanson), no mesmo volume133.

Outros estudiosos, como Brian Kane, não hesitam em falar de “quasi-functional harmony” a propósito de compositores como Morton Feldman134, cuja produção se aproxima, na sua assertividade, de forma radical à produção de Luciano Berio, tal como, aliás, à de outros compositores italianos (pensamos em Franco Donatoni). Considerar a busca harmónica de Berio num contexto mais alargado do que aquele que tradicionalmente se pratica, um contexto que pode até incluir realidades como o free jazz, é algo de muitíssimo importante. A realidade e a sua diversidade são enormes e não podemos, de facto, etiquetá-las da mesma forma como antes o fazíamos. É um esforço

132 Cf. “Sonic Complexity and Harmonic Syntax in Sequenza IV for piano”, in Berio’s ‘Sequenzas’. Essays on Performance, Composition and Analysis, op. cit., pp.209-232. 133 Cf. “… and so a cord consoles us: Berio’s Sequenza XIII (Chanson) for Accordion”, in Berio’s ‘Sequenzas’. Essays on Performance, Composition and Analysis, op. cit., pp.275-290. 134 Cf. “Of Repetition, Habit and Involuntary Memory: An Analysis and Speculation upon Morton Feldman’s Final Composition”, artigo disponível no seguinte URL: http://browsebriankane.com/of- repetition-habit-and-involuntary-memory-an-analysis-and-speculation-upon-morton-feldmans-final- composition/ [acedido em Setembro de 2015]

!143 inglório, pois, enumerar todas as hipóteses sintácticas possíveis. Limitamo-nos a identificar algumas das mais recorrentes em La vera storia.

Chegados aqui, gostaríamos de reflectir sobre a possibilidade de olhar uma obra de arte a partir dos objectos que esta dispõe, ou a partir das relações sintácticas que preconiza. Na verdade, são esforços complementares que estabelecem uma relação dialéctica, na medida em que estes dois campos se descrevem de forma misteriosa: a sintaxe ilumina os objectos, e os objectos iluminam por seu turno a sintaxe. Mais, a introdução de um novo objecto muda as leis da sintaxe e a introdução de uma nova regra sintáctica muda a quantidade dos objectos.

ESTRUTURAS SIMPLES

1. Estruturas singulares

Estas são estruturas cuja constituição multipolar permite a sua manutenção dilatada no tempo, isoladamente ou em alternância com elementos que lhe são estranhos. Esta estrutura está particularmente clara, por exemplo, na primeira parte de “Prima Festa” (pp 1-10, até à letra de ensaio F) de La vera storia (Parte I).

Ex. 59: “Scena I” (Parte I) de La vera storia, início135.

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135 BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I),op. cit., p.1.

!144 !

Mas encontramos estruturas singulares um pouco por toda a obra de Luciano Berio, como, por exemplo, em O King (cf. acima o exemplo 50).

2. Estruturas pseudo-binárias

Um dos aspectos mais característicos da música de Berio é a constituição de sucessões binárias, que, ao contrário das alternâncias da música tradicional, envolvem acordes complexos, causando com isso o alargamento do tipo de articulação harmónica para além dos limites e classificações do pensamento tonal — daí preferirmos apelidá- las de pseudo-binárias. Esta sucessão pseudo-binária está presente de forma particularmente evidente na “Scena VII” da ópera (Parte II), mas também em diversos outros números da Parte I da ópera, tais como “La Condanna”, “Il Ratto”, “La Vendetta”, “La notte”, “Il Duello”, “La Preghiera”, “Il Grido”, “Ballata V”, “Terza Festa”, e “Ballata VI”, entre outros. No exemplo abaixo, podemos observar a “Scena VII”, em que dois grupos de caraterísticas diferentes – um transpondo as suas notas por oitava e outro com o registo fixo – constroem em conjunto um discurso contínuo. Ex. 60: “Scena VII” (Parte II). de La vera storia, baseada na Sequenza IX per clarinetto.

! Uma vez mais, a importância desta estrutura na constituição do discurso musical não se limita a La vera storia. No primeiro andamento de Sinfonia, por exemplo, ela surge combinada com uma lógica aditiva.

!145 Ex. 61: Sinfonia, I, acordes.

! Igualmente muito presente na música de Berio está a ideia de contraste, e, mais do que isso, a ideia de relação entre duas entidades distintas como forma de melhor as conhecermos. Sublinhe-se, aqui, a evidente distância desta postura com a atitude serial mais académica, em que a multiplicidade de objectos rítmicos gerados encontra a sua raíz numa única célula inicial. Em Berio, o carácter para-funcional e mutante é normalmente constituído através de oposições pseudo-binárias, por exemplo entre ritmo regular e irregular, e entre todos os matizes contidos a partir destes conceitos de base:

Ex. 62: La vera storia, Parte II “Scena VI”136.

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136 Luciano Berio, La vera storia - Opera in due parti (Parte II), op. cit., p.102.

!146 Como se pode ver nos exemplos abaixo, de Sinfonia, o ritmo irregular que observamos opõe-se ao ritmo regular que lhe sucede, criando com ele uma estrutura para-funcional e mutante:

Ex. 63: Sinfonia, I137.

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Ex. 64: Sinfonia, I138.

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A ideia de regularidade instável marca o início de La vera storia e opõe-se às notas rápidas que o percorrem de forma mais lenta. Juntos, fazem, assim, uma estrutura pseudo-binária para-funcional, como se pode observar no exemplo abaixo.

137 BERIO, Luciano, Sinfonia, op. cit., p.2. 138 BERIO, Luciano, Sinfonia, op. cit., p.1.

!147 Ex. 65: La vera storia, “Prima Festa” (Parte I)139.

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A Sequenza VIII per violino pode ser descrita como a oposição entre um ritmo regular lento e um rimo rápido. A esta alternância pseudo-binária sobrepõe-se uma outra: a alternância entre momentos em que só estão presentes notas [LA] e momentos em que esta está acompanhada por outras notas.

139 Luciano Berio, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), op. cit., p.1.

!148 Ex. 66: Sequenza VIII per Violino140.

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Quanto à Sequenza III para voce femminile (1966), devemos descrever o seu início como a alternância entre um ritmo rápido (falado) e um ritmo lento (cantado), constituindo, assim, mais uma alternância pseudo-binária para-funcional.

Ex. 67: Sequenza III per voce femminile141.

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140 BERIO, Luciano, Sequenza VIII per violino, op. cit., p.1. 141 BERIO, Luciano, Sequenza III per voce femminile, op. cit., p.1.

!149 Simultaneamente, é esta questão da para-funcionalidade e mutabilidade da prática musical beriana estabelecida através de alternâncias pseudo-binárias o que permite a eclosão da inserção de comentários, tão característica de Berio142. É o que acontece com os momentos melódicos da Sequenza VIII per violino.

Ex. 68: Sequenza VIII per violino143.

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3. Estruturas circulares

Estruturas circulares são estruturas de pequena dimensão que podem ser harmónicas, como em “Seconda Festa” (Parte I), ou melódicas, como acontece com o baixo de “Ballata I” (Parte I). Ao mesmo tempo que não cessam de fazer referência a um arquétipo, não deixam de o alterar constantemente, ou por reordenamento dos seus elementos (como em “Seconda festa” – cf. o exemplo 8 atrás neste capítulo), ou por inserção (como no baixo de “Ballata I”).

Os exemplos de estruturas circulares abundam na ópera, fazendo a sua aparição principalmente a propósito de cada um dos momentos apelidados de Festa ou de cada um dos momentos designados por Ballata. É curioso ver, a propósito destes últimos,

142 Cf. David Osmond-Smith, “Commentary Techniques”, in Berio, op. cit., pp.42-59. 143 BERIO, Luciano, Sequenza VIII per violino, op. cit., p.2.

!150 como a estrutura tonal ou quasi-tonal destes momentos surge a uma nova luz sintáctica, no contexto desta sua inserção: eles não surgem como os momentos tonais da ópera, mas como os momentos de estruturas circulares. Mais uma vez, citamos dois exemplos para além de La vera storia – O King e “Fiamma (Nicolodi)”, de Duetti per due violini (1983).

Ex. 69: O King, três trechos melódicos em rotação.

! Ex. 70: Duetti per due violini, “Fiamma (Nicolodi)”144.

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4.Estruturas sequenciais

Estas estruturas são de maior dimensão do que as estruturas circulares, não têm que ter um retorno, ou esse retorno não tem de ser necessariamente reconhecível, porque as próprias estruturas não são necessariamente reconhecíveis em relação aos seus elementos, mas sim em relação ao movimento harmónico que geram. “Quarta Festa” (Parte I) de La vera storia constitui um destes casos.

144 BERIO, Luciano, Duetti per due violini, “Fiamma”, vol.1, Universal Edition UE 17757, s.d., p.40.

!151 Ex. 71: La vera storia, “Quarta Festa” (Parte II), acordes isolados por David Osmond- Smith145.

!

Ex. 72: Sequenza VI per (1967), início146.

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ESTRUTURAS COMBINADAS

Estas estruturas são fundamentais na compreensão da música de Luciano Berio. E, se as estruturas múltiplas por sobreposição são responsáveis pela enorme variedade do discurso musical beriano, se as estruturas múltiplas por sucessão são responsáveis pela enorme expectativa face aos momentos que se seguem uns aos outros, e se as estruturas múltiplas por mutação são responsáveis pela enorme delicadeza da sucessão destes momentos, na nossa opinião são as estruturas múltiplas por encaixe que

145 OSMOND-SMITH, David, Berio, op. cit., p.105. 146 BERIO, Luciano, Sequenza VI per viola sola, London: Universal Edtition UE 13726, 1970, p.1.

!152 caracterizam mais fortemente a música de Berio. Isto, porque estabelecem de imediato diversos níveis do discurso musical, que, como temos vindo a verificar, é uma das preocupações maiores deste compositor. Com isso, Luciano Berio, consciente ou inconscientemente, estará a abdicar da suspensão que cunha a superfície musical de um Morton Feldman, ou de um Anton Webern. Num artigo que dedica à música de Feldman, no seu guia de música contemporânea, Tom Service fala do equívoco de Berio ao descrever a música do compositor americano:

Luciano Berio once said that the quietness of Feldman's music expressed a kind of existential terror of going off the map lest he encounter those regions where there be monsters – as if Feldman were frightened of loud music (despite the fact that one of his most important influences was the genius noise-artist Edgard Varèse). It's a mis-hearing of Feldman's music.147 Percebemos muito bem a frase de Tom Service. No entanto, confessamos que também compreendemos a frase de Berio, porque, se a Feldman interessa o som, a Berio interessa o discurso. Por isso, a ideia de Luciano Berio sobre Feldman ignora o facto de Morton Feldman recusar conscientemente a multiplicidade de níveis que caracteriza a música de Luciano Berio. Arriscar-nos-íamos a falar de um certo classicismo da percepção temporal das suas peças finais. Porque, tal como em Mozart, Beethoven e grande parte dos músicos do chamado “common practice period”, na música final de Luciano Berio é possível distinguir claramente várias etapas de construção. O que queremos realçar , no entanto, é este carácter articulado do discurso, mesmo em fases anteriores do seu percurso, que resulta da consciência de diversos níveis na sua elaboração.

1. Estruturas múltiplas por sobreposição

Neste tipo de estruturas, deparamos com uma simultaneidade que pode envolver apenas uma linguagem, ou que pode envolver várias linguagens. Estas podem simplesmente resultar de um contraponto das várias estruturas expostas anteriormente. “Che il canto faccia” (“Ballata V”; vd. exemplo 29 atrás neste capítulo), de La vera

147 SERVICE, Tom, “A Guide to Morton Feldman's music” Classical Music - a guide to contemporary classical music, The Guardian, 12 november 2012; URL: http://www.theguardian.com/music/ tomserviceblog/2012/nov/12/morton-feldman-contemporary-music-guide [acedido em 5/2/2016].

!153 storia (Parte I) é um desses exemplos, em que, por um lado, tem uma estrutura tonal e, por outro, tem uma estrutura atonal no seu acompanhamento. Esta sobreposição de estruturas não é, aliás, inédita na obra de Berio, encontrando-se também no início de Coro per voci e strumenti (vd. exemplo 30 acima neste capítulo).

2. Estruturas múltiplas por sucessão

Quando consideramos este tipo de estruturas, verificamos que a constituição de um discurso musical não é mais do que a sucessão e retorno destas diferentes formas de articulação. Isto mesmo pode ser verificado quando consideramos o índice da Parte I de La vera storia como um todo:

Prima festa; La Condanna; Seconda Festa; Il ratto; «Se sai cos’ è un figlio» (Ballata I); La vendetta; Il tempo; «Quando ricordiamo» (Ballata II); La notte; Il duello; La preghiera; «Nessuno sa» (Ballala III); «Fratelli avversi» (Ballata IV); Il grido; «Che il canto faccia» (Ballata V); La prigione; Terza festa; «Scende la sera» (Ballata VI); Il sacrificio; Quarta festa; Il ricordo. Mas também podemos encontrar o mesmo caso em Naturale (1985), onde a trechos atonais se sucede uma inclusão de trechos tonais e de origem tradicional:

Ex. 73: dois trechos de Naturale148.

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!

148 BERIO, Luciano, Naturale (su melodie siciliana), Universal Edition UE 32634, 1985, p.1.

!154 3. Estruturas múltiplas por mutação

A constituição de alternâncias binárias por acordes multipolares crescentes, e portanto mutantes em relação ao seu centro harmónico, influencia a avaliação da própria alternância. Podemos, assim, falar de estruturas binárias, evoluindo para outro tipo de estrutura. A aria “Il tempo” (Parte I) apresenta um exemplo deste tipo de casos:

Ex. 74: La vera storia, “Il tempo” (Parte I)149.

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4. Estruturas múltiplas através de encaixe

Estas estruturas sintácticas, para além de se sucederem, podem relacionar-se por encaixe (usando um termo comum na linguística significando o nesting, a que Douglas

Hofstadter faz alusão no seu livro Gödel, Escher, Bach150). Podemos, nestes casos, ter uma oposição binária de oposições binárias; uma oposição binária de uma estrutura sequencial versus uma estrutura singular; uma sequência de oposições binárias de estruturas sequenciais versus uma estrutura circular de oposições binárias… é possível fazer múltiplos encaixes de encaixes num caminho que, de facto, não tem fim. Um dos exemplos mais claros deste gesto encontra-se na Sequenza I per flauto (cf. acima o

149 BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), op. cit., p.101. 150 HOFSTADTER, Douglas, Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid. A metaphorical fugue on minds and machines in the spirit of Lewis Carroll, Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1979.

!155 exemplo 53). Já o início de Outis (1995-1996) oferece muito claramente uma estrutura pluridimensional:

Ex. 75: Outis, redução para piano, página inicial com pequenas incisões nos compassos 6 e 8151.

! Pouco depois estas incisões tornar-se-ão mais notórias152:

!

Estabelece-se, assim, um discurso com mais do que um nível, resultante da concepção beriana de estruturas por encaixe. Algo que, como veremos, é um elemento essencial na caracterização da prática musical de Luciano Berio.

151 BERIO, Luciano, Outis - azione musicale in due parti; testo di Dario Del Corno e Luciano Berio, Riduzione per canto e pianoforte a cura di Paul Roberts e Nicholas Hopkins, Milano: Ricordi, 1996, p.1. 152 Ibidem, p.2.

!156 ESTRUTURAS IMPURAS

Comecemos por pensar La vera storia, de Berio, face às heranças (i) de Stravinsky e Bartók, e (ii) de Schoenberg, Webern e Alban Berg, face à relação que estabelece (iii) com os seus contemporâneos e (iv) com sua própria obra. Caracterizemos também a obra beriana pela adopção que faz de objectos que classificamos de impuros, e que são cada vez mais recorrentes, sobretudo a partir da sua obra Sinfonia. De facto, tendo herdado de Stravinsky e Bartók, e também de Alban Berg, o fascínio pelos objectos impuros, Berio herda o gosto pelo total cromático de Schoenberg, faz acompanhar a subalternização do objecto à sua função, explorando caminhos que abarcam a própria percepção humana, juntamente com os seus contemporâneos, e, por fim, tende cada vez mais a estabelecer um campo harmónico claro para as suas alturas, marcado por objectos de mais simples classificação e reconhecimento por parte do ouvinte.

Sendo mais concretos, Berio herda de Berg, Stravinsky, e Bartók a utilização de objectos impuros (cf. os exemplos 55, 56 e 57 citados acima), mas recusa a sua utilização de forma quase primitivista, digamos, por Stravinsky e Bartók (que estabelecem alternâncias binárias) e o carácter pós-romântico de Alban Berg. Em vez disso, prefere abraçar a tradição dos anos 60, pondo em causa a própria capacidade de reconhecimento humana, mas aplicando-a a um contexto de pendor mais diatónico. Retomando os exemplos 71 e 72, citados acima, note-se como, apesar de estes exemplos serem semelhantes em relação à sua organização interna (falamos, nomeadamente, da sua estrutura sequencial) eles são claramente distintos em relação aos objectos que os compõem: no caso de “Quarta Festa” composto por objectos tonais ou quase tonais, no caso de Sequenza VI composto por objectos tendencialmente possíveis apenas em contextos atonais.

A adopção de objectos impuros, baseados na sobreposição de características unas e múltiplas, contrapõe-se, como dissemos no início deste capítulo, ao uso de objectos cristalizados, que caracterizou grande parte da música do século XX, em particular a música dodecafónica tradicional (cf. o exemplo 54 citado acima), e está presente nas restantes estruturas. Pensamos, assim, que determinados gestos próprios

!157 destas estruturas impuras pertencem, pelas suas características internas, a mais do que um contexto. Não podem ser, por isso, classificados de tonais, modais, ou atonais de forma definitiva. Pensamos, muito concretamente, nos exemplos de Stravinsky e Berg que demos (cf. os exemplos 55 e 56): o primeiro acorde de Stravinsky é a dominante de LAb [SOL - SIb- REb-MIb] com a apojatura não resolvida das suas notas uma 2ª menor acima. Estes gestos afastam-se claramente de uma definição acabada da sua condição. São, por isso, objectos em devir, e é esta sua condição de ser-em-devir que entra em contradição com o facto de pertencerem a uma qualquer linguagem pré-definida. Por isso, pertencem a estruturas impuras. Voltemos a Stravinsky e lembremo-nos das inúmeras discussões sobre se este acorde é tonal, modal, e portanto uma expansão do acorde octatónico, ou simplesmente atonal153. Na nossa opinião, este acorde é tudo isso ao mesmo tempo, e é isso que o faz singular.

Em “La notte” (Parte I), por exemplo, onde deparamos com três personagens – Leonora, Luca e Ivo –, deparamos também com três linguagens que se distinguem claramente entre si, embora discretamente. Que esta penumbra linguística ou estilística aconteça a propósito de um momento que se chama “La notte”, é algo que não nos podemos impedir de mencionar. No entanto, preferiríamos realçar o modo como esta presença de diferentes nuances linguísticas reflecte, antes de mais, a consideração por parte de Berio da natureza da obra de arte de uma forma radicalmente diferente da de muitos dos seus contemporâneos. Referimo-nos, muito concretamente, às consequências que tem para todo o pensamento musical e filosófico de Luciano Berio a consideração de uma forma radicalmente nova da natureza da obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica, tal como Walter Benjamin a pensou num dos seus mais conhecidos ensaios154. Esta questão, que abordaremos em detalhe no

153 Cf. TOORN, Pieter C. van den, The Music of Igor Stravinsky, New Haven and London: Yale University Press, 1983; TYMOCZKO, Dimitri, “Octatonicism Reconsidered Again” Music Theory Spectrum 25 (2003), pp.185-202; TARUSKIN, Richard, “Chez Petrouchka: Harmony and Tonality ‘chez’ Stravinsky”, 19th Century Music, Vol. 10, Special Issue: Resolutions I (Spring 1987), pp.256-286, URL: http://www.jstor.org/stable/746439, acedido em 13 de Fevereiro de 2005; e, finalmente, um trabalho interessante que convoca a teoria interpretativa de Harold Bloom para melhor clarificar o modo como a tradição musical é recebida na música do século XX, centrando-se o seu autor em Stravinsky, para além de outros compositores da primeira metade do século XX: STRAUS, Joseph N., “The 'Anxiety of Influence' in Twentieth-Century Music”, The Journal of Musicology, Vol. 9, No. 4 (Autumn, 1991), pp. 430-447. 154 In A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, op. cit., pp.207-241. Berio, de resto, demonstra conhecer a fundo este texto; cf. Remembering the Future, op. cit., p.66.

!158 próximo capítulo, tem como seu principal vector a questão de que as características internas de um objecto deixam de poder ser encaradas de forma que diríamos ingénua, ao não contemplarmos a subjectividade de quem as enuncia. Mais concretamente, em qualquer filme estaremos ante o olhar do realizador em face de determinado objecto, e ante o objecto propriamente dito. As consequências desta constatação são imensas: na verdade, embora possamos dizer que esta alteração radical da forma de perceber o objecto artístico tem a sua eclosão ainda em meados do século XIX (com a invenção da fotografia), as consequências no domínio da arte musical não se fizeram sentir tão cedo como noutros campos artísticos, em particular o das chamadas belas-artes. Mas regressemos brevemente ao exemplo de “La notte”. Neste número, cada personagem apresenta a sua nuance linguística, a ponto de considerarmos que a linguagem caracteriza a personagem. Ao mesmo tempo, a extrema fineza desta nuance leva-nos a considerarmos que a sua percepção dependerá irredutivelmente da nossa consciência linguística, no que à arte musical diz respeito.

Ex. 76: La vera storia, Parte I “La notte”155

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A adopção de objectos impuros é, talvez, uma das características da música beriana que mais equívocos poderá fazer surgir na sua recepção. Esta construção de objectos impuros pode, nomeadamente, ser encarada como não intencional.

155 BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), op. cit., p.136.

!159 Especificamos: o compositor seria vítima da sua própria intuição e, assim, em vez de fazer um objecto puro e verdadeiramente atonal, construía um objecto que, apesar de ter características inegavelmente modernas, era vítima do peso da tradição, que assim simultaneamente também o caracterizaria. Pensamos que tal visão não é rigorosa. Queremos, aliás, a este propósito, falar da concepção da história da música inerente a esta prática artística. Na verdade, quando um compositor como Berio adopta um gesto carregado de significações históricas, tem como primeira intenção inserir a sua produção no imenso caldeirão cultural que caracteriza as nossas sociedades, evitando, deste modo, qualquer visão mais puritana do fazer artístico: “We can refuse history, but we cannot forget about it, even with the new technologies […]”156. Porque assim seria sempre o caso, por mais que qualquer compositor o tentasse evitar.

Devemos, pois, com certeza pensar na questão da relação da produção musical contemporânea com a tradição sob uma perspectiva dupla: se, por um lado, a tradição tenderá a esmagar a produção contemporânea, contextualizando-a num todo que esta última tende a rejeitar, por receio de que a primeira lhe imponha significados que ela não deseja, por outro lado, o resgate, pela produção contemporânea, de determinados gestos da tradição poderá ser precisamente um modo de os encarar na sua leveza original, sem preconceito, permitindo que sobressaia, acima de tudo, uma potência de ser que lhes é natural157. Esta última possibilidade encontra-se de forma particularmente clara no primeiro andamento de Sinfonia (primeiro sistema da página 1; cf. o exemplo 64, acima neste capítulo), em que os tempos fortes são claramente os que se sucedem a cada pausa, e os tempos fracos são a sua subdivisão, sugerindo uma subdivisão do tempo conforme à tradição tonal. Considerando agora o seu segundo sistema, a mesma atitude também se encontra de forma clara: o ritmo é constituído por uma sucessão de tempos regulares marcados pela percussão (embora esta não faça exclusivamente isso) face à qual os cantores inserem notas fora do tempo:

156 BERIO, Luciano, Remembering the Future, op. cit., p.67. 157 Não podemos deixar de fazer referência ao artigo de David METZER sobre o modo como Luciano Berio e John Cage lidam, precisamente, com a tradição: “Musical Decay: Luciano Berio's "Rendering" and John Cage's "Europera 5"”, Journal of the Royal Musical Association, Vol. 125, No. 1 (2000), pp. 93-114.

!160 Ex. 77: Sinfonia, I, segundo sistema158.

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Inerente a este procedimento estão dois níveis de criação rítmica: a criação dos tempos fortes — regulares ou irregulares —, e a criação das durações que preenchem esses tempos — também elas regulares ou irregulares. Esta atitude face à história atravessa, aliás, toda a produção beriana: para além do já citado exemplo da “Scena VII”, baseado na Sequenza IX per clarinetto (cf. o exemplo 45 atrás neste capítulo), não queremos deixar de incluir nesta enumeração de objectos impuros a Sequenza VIII per violino, com a sua acumulação de diferentes níveis rítmicos, como se pode confirmar no exemplo 68, acima neste capítulo.

Não podemos deixar de fazer referência ao lado eminentemente político da opção – aparentemente apenas estética – de se incluirem objectos puros ou impuros no fazer musical. Ao mesmo tempo, gostaríamos de realçar a forma como Luciano Berio vê o mundo de hoje: um mundo plural, em expansão, e não apenas em mutação no que ao devir das suas ideias diz respeito. E portanto um mundo que se relaciona de forma

158 BERIO, Luciano, Sinfonia, op. cit., p.1.

!161 singular com a pluralidade da sua história. Em conversa com Rossana Dalmonte, Berio afirma:

Non, la tabula rasa, en musique surtout, n’existe pas. Mais cette tendence a travailler avec l’Histoire, à extraire et à transformer consciemment des «minerais» historiques et à les absorber dans les processus et par des matériaux qui ne sont pas marqués par l’Histoire — cette tendence reflècte le besoin qui m’acompagne depuis longtemps, d’intégrer l’une dans l’autre différentes «vérités» musicales, afin de pouvoir également ouvrir le dévelopment musical sur différents degrés de compréhension, pour en amplifier le dessein expressif et les niveaux de perception.159 “Níveis de percepção” estes que estarão de modo particularmente evidente na complexa forma de La vera storia.

Chegados aqui, importa falar do papel do ritmo num contexto de harmonia multipolar. Poderíamos falar de ritmo enquanto harmonia (como podemos falar de dinâmica, timbre e até de espacialização enquanto harmonia) — em “Brin” (de Six Encores per pianoforte), por exemplo, a evolução harmónica tem mais a haver com a presença maior ou menor de certas notas do que com a sua existência. A própria concepção de um ritmo irregular associado à multipolaridade é uma característica fundamental da música de Berio — é o ritmo que caracteriza esta multipolaridade, dando peso e expressão a cada um dos componentes da harmonia que o acompanha.

Ao mesmo tempo, é a existência de pensamento e ritmo harmónicos o que permite a complexidade sintáctica e rítmica berianas com poucos meios, ou seja, podemos sempre considerar pelo menos dois níveis rítmicos na música de Luciano Berio: um primeiro, que é o ritmo propriamente dito, e um segundo, que corresponde à introdução das notas da harmonia, que classificamos como ritmo harmónico. Este fenómeno é extremamente claro no exemplo da Sequenza V per (1966).

159 Luciano Berio. Entretiens avec Rossana Dalmonte, op. cit., p.92.

!162 Ex. 78: Sequenza V per trombone160.

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Mas a articulação entre ritmo e harmonia é também, em Luciano Berio, um elemento fundamental para a viabilização do contraponto de funções sintácticas, conjugando diversidade e integração na tradição. Delicado, subtil e no entanto decisivo. La vera storia representa um momento muito particular na produção beriana, marcado pela emergência de figuras que se repetem com a mesma duração (como que coaguladas) e cuja posterior elaboração respeita a duração da figura original, respeitando a pulsação que lhe está subjacente. Um ritmo claramente marcado pela sua articulação à semínima (ou seus múltiplos) e pelo uso do contratempo. A aria “La Vendetta” (Parte I) é um dos muitos exemplos do que acontece em todas as arie da ópera.

Ex. 79: La vera storia, “La Vendetta” (Parte I)161.

!

Mas a articulação de ritmo e harmonia, ou do ritmo com a melodia, é um fenómeno que se repete em diversos momentos de La vera storia, como, por exemplo,

160 Luciano Berio, Sequenza V per trombone, London, Wien: Universal Edition UE 13725, 1968, p.1. 161 BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I),op. cit., p.85.

!163 na “Ballata I: se sai cos’è un figlio” (Parte I). De facto, a articulação entre melodia e ritmo evita a não previsibilidade do ritmo atonal irregular, porque o ouvinte que está perante ele antecipa o seu desenrolar. O mesmo fenómeno acontece com a peça “Fiamma (Nicolodi)”, de Duetti per due violini (1983; vd. o exemplo 70 atrás neste capítulo).

Tanto o fenómeno das alturas como o do ritmo reflectem, quanto a nós de forma singular, dois conceitos deuleuzianos. E são eles o conceito de diferença e repetição e de regime de signos. Porque a diferença em si não é o negativo do mesmo, e porque a repetição em si não confirma a generalidade, estamos perante a relação entre singularidades absolutas na música de Berio.

Nous voulons penser la différence en elle-même, et le rapport du différent avec le différent, indépendamment des formes de la représentation qui les ramènent au Même et les font passer par le négatif.162 E, entretanto, num mundo em constante devir, repetir não é confirmar, é garantir a reiteração da mesma sensação num contexto diferente:

Répéter, c'est se comporter, mais par rapport à quelque chose d'unique ou de singulier, qui n'a pas de semblable ou d'équivalent.163 Se a diferença e a repetição em si permitem uma integração relativa, digamos, dos objectos num todo, que os salvaguarda de serem esquecidos, paralelamente percebemos que a mútua afecção (no sentido espinosiano) dos objectos em relação é que confere sentido ao objecto sonoro beriano. Por isso Deleuze é oportuno em apontar para uma infinitude de sentidos na constituição do regime de signos:

[…] what is retained is not principally the sign's relation to a state of things it designates, or to an entity it signifies, but only the formal relation of sign to sign insofar as it defines a so-called signifying chain. The limitlessness of signifiance replaces the sign.164 Tudo isto se conjuga, quanto a nós, com o conceito, bem mais simples, de sensação. A sensação que habita o objecto artístico constitui o garante de suspensão de

162 DELEUZE, Gilles, Différence et répétition, op. cit., pp.1-2. 163 Ibidem, pp.7-8. 164 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.112.

!164 todo e qualquer aparato teórico que possa estar a montante do mesmo, consciente ou inconscientemente. Na música de Berio, em particular, e na sequência do que acabamos de descrever em detalhe quanto à articulação sintáctica dos seus elementos, não há uma percepção intelectual do que acontece, mas um imperativo de sensação para o qual somos inelutavelmente conduzidos.

E se sensação diz respeito ao instante imediato, no que ao objecto artístico se refere, temos que a mesma simplicidade acontece com a desterritorialização e reterritorialização, num tempo mais dilatado. Toda a arte beriana deve ser percebida, na verdade, como resultante de algo que é antes de mais sensorial, intuitivo. Concretizamos: quando falamos de desterritorialização, falamos do sentimento de afastamento de um objecto; e quando falamos de reterritorialização, falamos da aproximação de um outro objecto, ou do mesmo sob uma outra forma, seja ele em estruturas simples ou mais complexas. Não se trata, portanto, de uma qualquer laboração teórica, mas de uma música que parte desta dinâmica de sensações para construir o seu aparato e se constituir como objecto artístico junto do seu público.

!165 Suspenso e Não Centrado

Chegamos, por fim, ao último aspecto a salientar quanto ao objecto sonoro beriano: o seu carácter suspenso e não centrado. A descrição deste aspecto liga-se a uma perspectiva mais distanciada deste mesmo objecto, e tendo como pano-de-fundo desta perspectivação todos os aspectos anteriomente apontados, ligados a uma análise harmónica e rítmica mais detalhada. Na nossa opinião, longe de se entender como fragmento, é o carácter rizomático da sua música o que Berio procura, consubstanciado nas características de suspensão e não centramento, porque esta ambiciona integrar-se no todo histórico de que inevitavelmente faz parte. Diríamos melhor: no todo da imanência que norteia o pensamento filosófico deleuziano, e a que Berio não é alheio. Assim, por suspensão entendemos também a da própria História na sua música, no sentido em que os gestos e traços da música no tempo são, em Berio, matéria contemporânea, digamos. Por não centramento entendemos também o facto de o objecto sonoro beriano se ver antes de mais como ponto de partida, como potência de ser, num todo onde se integra, e não como algo que constitua um ponto privilegiado de observação desse mesmo todo. O objecto sonoro beriano é suspenso e não centrado, por assumir uma postura distraída de si mesmo, ao abraçar objectos-outros e ao se sedimentar na relação que cultiva com os mesmos; na escuta, o ouvinte também é chamado a distrair-se do que ouve, ao concentrar a sua atenção não num só corpo, mas num corpo plural em transformação contínua. Por isso, para se ponderar, este aspecto suspenso e não centrado não se deixa descrever num só exemplo ou conjunto de exemplos, mas alicerça-se em todos os exemplos dispostos ao longo da análise neste capítulo.

De facto, como já o afirmámos acima, compreender o objecto sonoro beriano não se basta à constatação da sua matriz fragmentária. Diríamos antes que o fragmentário na escrita de Berio é a condição necessária para a sua consideração de um todo rizomático que é da sua natureza — um pouco na linha da “exigência fragmentária” de que Maurice Blanchot fala no conhecido ensaio L'écriture du

!166 désastre165. E, assim, o objecto sonoro beriano comporta-se como rizoma, multiplica-se em gestos de diferença e repetição, desdobra-se em multiplicidades e assenta na montagem para se retratar em lógicas de combinações ou regimes de signos, desterritorializando-se para se reterritorializar, constituindo um portador de sensação a que definitivamente não somos indiferentes.

Como começámos por dizer no início deste capítulo, o carácter suspenso e não centrado do objecto sonoro beriano liga-se de forma particular ao conceito deleuziano de ciência menor, porque é na sua incompletude que o objecto revela as suas características de expansão contextualizada num todo maior e mais diverso. Recordemos as palavras de Deleuze e Guattari a propósito da noção de literatura menor:

La littérature mineure est tout à fait différente: son espace exigu fait que chaque affaire individuelle est immédiatement branchée sur la politique. L'affaire individuelle devient donc d'autant plus nécessaire, indispensable, grossie au microscope, qu'une tout autre histoire s'agite en elle.166 Considerando estritamente o caso de Luciano Berio, a incompletude do objecto sonoro que gera constitui, proporcionalmente, a sua capacidade de significação e, repita-se, de integração num todo maior.

Após esta já longa análise de detalhe e de cruzamento com o pensamento deleuziano, percebemos agora melhor como a prática musical de Berio se pode equacionar face aos universais da música167, ao mesmo tempo que se distancia de qualquer visão acabada deste conceito. Por exemplo, a multiplicidade harmónica pode ser encarada, numa perspectiva mais distante daquela que temos vindo a fazer, como uma ideia de movimento harmónico que é comum a diversas culturas, tradicionais ou eruditas. Também o desejo de unidade que atravessa a música de Luciano Berio pode ser visto como o desejo de macro-harmonia que, mais uma vez, atravessa diversas

165 BLANCHOT, Maurice, L'écriture du désastre, Paris: Gallimard, 1980. Não só neste livro, mas um pouco por todo o seu pensamento, a questão do fragmentário em Blanchot é vasta e aturada. No entanto, encontramos no título acima mencionado a seguinte ideia, que parece ir ao encontro do que queremos dizer a propósito do fragmentário em Berio: “L’exigence fragmentaire nous appelle à pressentir qu’il n’y a encore rien de fragmentaire, non pas à proprement parler, mais à improprement parler” (p.102). Não podemos deixar de fazer menção ao ensaio de João Barrento recentemente publicado sobre o fragmento: O Género Intranquilo. Anatomia do Ensaio e do Fragmento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010. 166 DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, Kafka. Pour une Littérature Mineure, Paris: Les Éditions de Minuit, 1975, pp.29-30. 167 MÂCHE, François-Bernard, Musique au Singulier, Paris: Éditions Odile Jacob, 2001.

!167 culturas. O próprio conceito de mutação, que realçámos como distintivo da música de Berio, pode ser encarado numa perspectiva mais vasta, como o acto de transcrição inerente a toda a música. Finalmente, a adopção de objectos impuros, a que fizemos referência nesta reflexão, deve na nossa opinião ser encarada como algo inescapável na história da música. Porque esta é sobretudo feita da acumulação de camadas, e não da sua eliminação por camadas sucessivas.

Resta-nos dizer que a própria filosofia de Gilles Deleuze poderá, na nossa opinião, ser vista num contexto mais alargado, que inclui outros pensadores fundamentais para o seu pensamento. Com efeito, Espinosa é um dos filósofos matriciais na produção de Gilles Deleuze e revela-se pertinente, em alguns dos seus conceitos, para uma compreensão mais aprofundada da técnica musical de Luciano Berio. De Espinosa, pensamos que dois dos conceitos a convocar nesta reflexão são Substância e Atributo168, já citados no capítulo anterior. Como vimos no primeiro capítulo desta dissertação, a distinção entre estes conceitos é fulcral para a compreensão do próprio material beriano, que desde o início assume esta dupla natureza de constituição de um todo segundo princípios que não norteiam os atributos de cada um dos seus elementos. Isto também é fundamental para compreender a inserção de motivos sem a confundir com o ritmo primeiro de uma obra. Sim, deus sive natura169, mas não, não é possível descortinar a natureza desta substância primordial através da análise de cada um dos seus elementos ou atributos. Gostaríamos de, a este propósito, realçar o contraste flagrante desta premissa de base com o dodecafonismo tradicional praticado por compositores como Arnold Schoenberg e Anton Webern. O que se passa aqui é dizer que cada um dos atributos da realidade não reflecte de forma imediata a substância que lhe dá origem, embora possa contribuir para a sua expressão170. O material pode ser heterogéneo, não analisável e até inclassificável, porque no seu conjunto obedece a um desígnio discursivo maior. E isto é válido harmónica ou ritmicamente, quando estudamos a música de Berio.

168 Espinosa, Ética I, Def. III. e Def. IV., op. cit., p.100. 169 Espinosa, Ética IV, Prop.IV, dem, op. cit., p.363. 170 Fazemos aqui alusão a um dos títulos mais importantes na recepção, por Deleuze, da filosofia espinosiana: Spinoza et le problème de l’expression, Paris: Les Éditions de Minuit, 1968.

!168 Relacionado com esta ideia de diferenciação entre Substância e Atributos está a ideia de encararmos a constante mutação destes atributos como algo que não põe em causa os elementos primordiais que norteiam a sua origem. Por isso, qualquer objecto, para Berio, é mutante, e, nessa mutação, aponta para uma existência virtual que não cessa de ultrapassar o seu devir concreto — é a afirmação de uma potência do ser que apenas poderemos compreender de forma integral se, de novo, recorrermos à filosofia de Espinosa para o seu aprofundamento: “Ninguém, na verdade, até ao presente, determinou o que pode um Corpo”171. É aqui, aliás, que ao ouvinte é reservado um papel particularmente importante. Estamos em presença de um objecto mutante, ou talvez, mais do que isso, estamos em presença da mutação enquanto objecto.

A estes dois conceitos — diferenciação entre Substância e Atributos, consideração da potência de ser de determinado objecto/corpo e consequentemente da sua existência virtual — junta-se um terceiro, fundamental na filosofia de Espinosa, que é o conceito de mútua afecção entre os corpos. Espinosa diz-nos a dada altura que a existência de uma coisa não o é senão na afecção mútua com uma outra, que também o é na afecção directa de uma terceira, o que nos leva a dizer que nada pode ser pensado senão na relação de afecção com outra coisa172. Sublinhamos que isto não se reflecte na organização do todo, nem sequer no devir constante resultante da potência de um corpo. Esta é a ideia de uma mútua afecção entre corpos, que não cessa de existir, independentemente de quaisquer previsões que possamos estabelecer. É aqui que a relação entre ritmo e harmonia desempenha um papel especial. Porque é na relação do diverso que reside a verdade última das coisas. Recordamos as palavras de Berio, que vão ao encontro deste princípio relacional que preside à sua música:

Penso a un processo musicale fatto di piani di diversa natura e complessità, simile a una collettività fondata sulla coesistenza di culture diverse e identificabili: ognuno di quei piani, di quegli strati, può ruotare su se stesso, può avvicinarsi agli altri con tempi diversi e può immedesimarsi negli altri. Ma vorrei poter salvaguardare i diversi gradi di riconoscibilità di quegli strati, di quelle lingue e di quei dialetti, per quanto complesso possa essere l'apparato musicale in movimento. E vorrei anche superare l'idea di un tempo uguale per tutti: di un

171 Espinosa, Ética III, Prop. II, escólio, op. cit., p.270. 172 Espinosa, Ética, II, Prop. IX, op. cit., p.206.

!169 tempo metronomico, cronometrico, lento, veloce, discontinuo, liscio, ondulato, lungo e noioso, meditativo, eccitante e di un tempo cosí cosí. Vorrei insomma costruire un'architettura di idee e di processi musicali cosí complessa e diversificata che chi ascolta non è piú in grado di fare distinzione fra la cosa in sé e le sue caratteristiche particolari. Vorrei infine far sorgere il sospetto, nella mente di chi ascolta, che il tempo musicale non è un’allegoria del tempo che passa, con la freccia e l'orologio, e che è perfettamente inutile chiedere “che tempo fa” dal momento che i tempi sono infiniti, stratificati e sempre diversi.173

173 BERIO, Luciano, “Che tempo fa”, in Scritti sulla musica, op. cit., p.73.

!170 III A CONSCIÊNCIA DO ACONTECER E A CONCEPÇÃO DA OBRA DE ARTE

E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado. (Walter Benjamin, Escavar e Recordar)

Após a reflexão de teor filosófico que encetámos no primeiro capítulo desta dissertação, e no seguimento da análise da prática musical beriana, disposta no segundo capítulo, uma questão urge ser debatida, relacionada com o que apelidamos aqui de “consciência do acontecer” em Luciano Berio, com o intuito de alargar a reflexão sobre o papel da música contemporânea, e em particular o da música de Berio, no tempo e no espaço a que esta pertence. Referimo-nos a uma consciência do acontecer que abraça a própria essência da música, independentemente de cada tempo e espaço e das circunstâncias particulares em que ela se dá — cada qual, com as marcas que o singularizam, revelando qualquer coisa sem tempo e sem espaço. Referimo-nos a uma consciência do acontecer como plataforma para pensar a obra de arte fora do seu contexto espacio-temporal. Como tentaremos ponderar ao longo deste capítulo, há como que uma relativização do aspecto cronológico do tempo e do aspecto geográfico do espaço na música de Berio, para nos dar a ver a dimensão puramente humana do acontecer e o mundo imenso em que ela se dá.

Como veremos, há na música de Berio como que uma consciência cinematográfica do real, em que o tempo deixa de ser o plano sobre o qual tudo acontece, para passar a ser mais um actor desse mesmo acontecer. Por isso, em Coro per voci e strumenti (1975-1976), por exemplo, o folclore não é revisitado como curiosidade etnológica, mas enquanto produto da estrutura do acontecer humano. E, se musicalmente é tremendamente útil a reunião num mesmo espaço de vozes e de instrumentos, há qualquer coisa de ético nesse encontro, que extravasa a dimensão puramente musical deste fenómeno. As palavras de Emmanuel Levinas vêm muito a

!171 propósito desta dimensão ética que queremos realçar: “Quando o homem aborda verdadeiramente Outrém, é arrancado à história”1.

Para além disso, há a enorme convicção em Berio de que não podemos arrumar no tempo e no espaço o pensamento humano. Por isso, Laborintus II (1965), por exemplo, com texto de Edoardo Sanguineti – feito das vozes de Dante, de Pound, de Eliot, de textos bíblicos, para além da voz de Sanguineti, ele próprio – convoca vozes pertencentes a diferentes tempos e espaços num enunciado musical que acontece em partilha de um só pensamento, diríamos. Não espanta, pois, que Berio diga na nota de autor sobre esta obra, reflectindo essa mesma pluralidade de vozes:

The instrumental parts are developed mainly as an extension of the vocal actions of singers and speakers, and the short section of electronic music is conceived as an extension of the instrumental actions.2 Novamente, realçamos o carácter profundamente ético de tal disposição, que se adensa ainda mais quando chegamos ao fim desta mesma nota de autor:

Laborintus II is a theatre work; it can be treated as a story, an allegory, a documentary, a dance. It can be performed in a school, in a theatre, on television, in the open air, or in any other place permitting the gathering of an audience.3 Porque Laborintus II compreende na sua constituição um só plano de pensamento e reúne no seu conceito de obra não só uma perspectiva plural do ponto de vista formal como também a presença imprescindível do público no seu acontecer. Para melhor clarificar o que queremos dizer, convocamos as palavras de Maria Gabriela Llansol: “[…] quem pensa, dispõe-se a um infinto de realidades para além de si mesmo”4. É esta nova consciência do acontecer que singulariza a música de Luciano Berio. Não é à toa, de resto, que Luciano Berio cita o filósofo romano Boécio (séc. VI) nas suas

1 LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, trad. de José Pinto Ribeiro, Lisboa: Edições 70, 2000, p.39. 2 BERIO, Luciano, [Nota de autor a:] Laborintus II, acessível em: http://www.lucianoberio.org/node/ 1510?872698753=1 [Centro Studi Luciano Berio]. 3 Ibidem. 4 LLANSOL, Maria Gabriela, Um Falcão no Punho. Diário I, Lisboa: Relógio d'Água, 1998 [1985], p.146.

!172 conferências de Harvard (1993-1994)5, que constituem, a nosso ver, o seu testamento musical e político. Porque a possibilidade que nos é dada para vermos a realidade de hoje em dia com olhos do século VI não escapa a Berio.

Todo o tempo deve ser visto de forma alargada. Mais, todo o tempo deve ser visto como uma linha sem chronos. E esta forma de entender o tempo faz com que tudo se torne repentinamente múltiplo. Diríamos que escutar a música de Berio é estar na presença de uma dupla valência de multiplicidade: uma valência espacial, em que, num mesmo momento do devir se encontram diversas linguagens que tenderíamos a olhar de forma estanque, e uma valência temporal, em que cada uma destas linguagens traz consigo uma memória, ou a história, de um caminho particular e diverso. Berio convoca esta multiplicidade na sua música, sendo esta uma das mais distintivas marcas da sua poética – uma poética da simultaneidade dos tempos e da contemporaneidade dos espaços. La vera storia – cujo libreto, de Italo Calvino e de Berio, cita, de resto, o mesmo Boécio – é um caso particularmente ilustrativo desta consciência da multiplicidade do devir, que aí encontra expressão através de um novo paradigma na forma de encarar a obra de arte. Por isso, é vital neste capítulo fazer cruzar dois textos matriciais de Walter Benjamin, que constituem uma chave de ponderação aprofundada sobre estes dois aspectos, a história e a obra de arte. Falamos das teses Sobre o Conceito da História6 e de A Obra de Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução

Técnica7.

5 BERIO, Luciano, “Formations”, in Remembering the Future, Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2006, pp.6-8 e 24; mas também volta a Boécio em “Poetics of Analysis”, op. cit., pp.135-136. 6 BENJAMIN, WALTER, “Sobre o Conceito da História”, in O Anjo da História, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/4, ed. e trad. de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp.9-20. 7 BENJAMIN, WALTER, "A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica", in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, ed. e trad. de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pp.207-241.

!173 A convulsão do devir histórico

Na Parte I de La vera storia, Berio inclui momentos próximos da música do início do séc. XX — como a aria “Il ratto” (onde se aproxima de Igor Stravinsky) ou o dueto “La vendetta” de Ugo e Ivo (onde se aproxima de Alban Berg). Acontece que estes dois momentos, muito contrastantes entre si, revelam a sua afinidade quando intercalados pela “Ballata I”, momento assumidamente popular. “Il ratto” desempenha, de resto, um papel particular, ao servir de ponte entre a “Seconda festa”, de cunho assumidamente contemporâneo, e “Ballata I”. O mesmo acontece, por seu turno, com “La vendetta”, que é a ponte entre o estilo popular da “Ballata I” a aria “Il tempo”, assumidamente contemporânea. Realce-se o papel de ponte que todos estes momentos têm em relação aos que os precedem e aos que os sucedem. Temos, assim, que a música aparentada com a linguagem da Segunda Escola de Viena surge como pivot entre a música de expressão popular tradicional e a música erudita contemporânea, fazendo-se encontrar desta forma mundos habitualmente separados. Ao mesmo tempo, temos também que a música popular é o elemento que permite a convivência de estilos tão diversos como os de “Il ratto” e de “La vendetta”. Mistérios da montagem, que rege os conceitos deleuzianos de rizoma e assemblage, que visitámos enquanto conceitos filosóficos matriciais para o entendimento da música de Berio.

Queremos, a este propósito, sublinhar o papel que a presença da música tradicional tem no sentimento de dilatação temporal. Porque esta música não pertence verdadeiramente a nenhum tempo; ela tanto pode preceder qualquer um dos exemplos que enumerámos acima, como lhes pode suceder. Além do mais, este momento marcado pelo seu carácter de kairós, esta marca fora-do-tempo, que empresta um misterioso poder aglutinador à sucessão de momentos operáticos da Parte I, deve esse mesmo papel às suas características estilísticas periféricas. Por seu turno, qualquer um dos momentos operáticos, se ouvidos isoladamente, soaria como pertencente ao seu tempo original. Mas aqui a sua função é diferente, porque não se trata de uma mera citação dessas linguagens, mas sim de uma actualização do seu potencial expressivo para que dois universos distintos se façam cruzar. O que se concretiza aqui é, então, uma inaudita

!174 volumetria neste duplo encontro entre linguagens de tempos diversos (início do séc. XX e os anos 80, acompanhados pelo olhar atento de uma música fora do tempo, cantada pela Cantastorie) e linguagens de universos distintos (o popular e o erudito), neutralizando-se o que mais as distingue, para serem singulares no encontro múltiplo que constituem.

Esta atitude acarreta simultaneamente duas perspectivas: por um lado, somos levados a constatar como quase geográfica a diferença estilística entre arie mais aparentadas ao início do século e arie próprias do estilo da música da segunda metade do século XX; por outro, passamos a ver a diferença geográfica efectiva entre a música da “Ballata I” e a música da aria “Il tempo” como pertencentes à inevitável amálgama dos tempos. Como disse Ezra Pound, “é perfeitamente óbvio que nem todos nós vivemos no mesmo tempo”8. Dizemos nós: o tempo é múltiplo e a melhor forma de o encarar é perceber que a diferença entre as suas diversas camadas não deve ser ultrapassada. Antes deve ser encarada como característica da sua forma própria de ser.

Para esta convulsão da forma de olhar o devir histórico são, certamente, muito importantes as ideias de Walter Benjamin sobre a história, das quais poderíamos destacar algumas, que consideramos de importância fulcral para a compreensão da música de Berio. A primeira ideia que gostaríamos de salientar é a de que:

[…] a verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento. […] é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela.9 Isto significa duas coisas: (i) o passado passa sem que nos apercebamos disso e na verdade (ii) ele não passa verdadeiramente, porque forma o presente que vivemos. É, pois, na nossa opinião, impossível conhecer o passado como ele efectivamente foi. A única forma de reproduzirmos o seu acontecer é imaginar a sua eclosão de um modo que sabemos inevitavelmente contaminado pelo nosso presente. E isto põe em causa naturalmente, a veracidade do presente que acreditamos estar a viver, porque

8 POUND, Ezra, A Arte da Poesia – Ensaios Escolhidos, São Paulo: Edusp & Editora Cultrix, p.101. 9 BENJAMIN, Walter, “Sobre o Conceito da História”, op. cit., p.11

!175 acreditamos que vivemos um presente consequente de um passado que na verdade não existiu. Esta impossibilidade de conhecer o passado tal como este efectivamente foi aproxima-se, de resto, do testemunho de Berio em Remembering the Future, quando este afirma que, face à passagem do tempo:

There are a thousand ways of forgetting music, and I am mostly interested in the active ways of forgetting rather than the passive and unconscious ways. In other words, I am interested in voluntary amnesias, although the desire to possess and remember the history of all times and all places is an integral part of modern thought, and the practical means of satisfying this desire are certainly available in our day and age. […] conservation of the past also makes sense in a negative way, becoming a way of forgetting music.10 A esta ideia da impossibilidade de um verdadeiro conhecimento do passado, junta-se uma outra, que é a da destruição do nexo causal entre passado e presente, que nos habituámos a ver na historiografia positivista tradicional. De facto, talvez o passado não seja a causa do presente, mas, em vez disso, o presente seja a causa do passado, na medida em que este presente é a expectativa legítima daquilo que o precedeu: “[…] existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa. Então, fomos esperados sobre esta Terra.”11.

Se considerarmos a música do período clássico e a virmos enquanto ilustração prática desta convulsão dos tempos a que aludimos, podemos afirmar, que, de facto, não há na forma sonata um primeiro tema sem a expectativa de um segundo tema. As consequências desta visão da história são ainda mais decisivas quando consideramos a música de Berio. Porque, de facto, quando encaramos obras como os seus Chemins (1964-1996), vemos que aquilo que vem antes apresentado para o ensemble que acompanha o instrumento solista foi, na verdade, composto posteriormente à Sequenza em que está baseado. É assim que, depois de descrever com minúcia os procedimentos que levaram à composição dos seus vários Chemins, Berio nos confia que

[…] the implications of this proceeding, although quickly described, can be quite far-reaching. This is a position that we can also adopt with regard to history, not just musical history; in this perspective we are invited to renew our perception of

10 BERIO L., Remembering the Future, op. cit., pp.61-62. 11 BENJAMIN, Walter, “Sobre o Conceito da História”, op. cit., p.10.

!176 history, maybe to re-invent it so that, fully responsible, we can accept the idea of a history that is exploring us and we can give ourselves, again and again, the possibility of remembering the future.12 Uma terceira ideia de Walter Benjamin é a de que qualquer discurso sobre o passado é necessariamente um discurso sobre o presente que olha esse mesmo passado: “A história é objecto de uma construção cujo lugar é constituído, não por um tempo vazio e homogéneo, mas por um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit)”13. Como diz Cristiana Vasconcelos Rodrigues sobre esta dimensão do Agora no pensamento de Walter Benjamin:

Ao transpôr o fenómeno circunscrito no passado, no tempo que foi, para o que chama de Jetztzeit – o tempo do agora do sujeito, do eu em acção de rememoração, e não um qualquer presente indeterminado –, Benjamin aponta para a antecipação presente do tempo futuro, o tempo por-vir, evitando, assim, a concepção do tempo como já preenchido ou por preencher. […] Com esta noção de tempo não vazio, Benjamin repudia a imposição de uma só verdade enquanto preenchimento do vazio, e abre o discurso do presente – que não é já só recordação ou lembrança (Andenken), mas rememoração ou presença (Eingedenken) – à expectativa de uma multiplicidade de implicações no gesto de aproximação a essa verdade.14 Novamente, a questão do turbilhão dos tempos, que acompanha qualquer esforço criativo, está aqui presente. Acrescentaríamos que a própria percepção não pode ser vista senão como uma contínua reactualização do passado, que na verdade não vivemos, mesmo que só o percebamos depois.

Paralelamente a estas três ideias anteriormente enunciadas, pensamos que Benjamin quis denunciar também o equívoco da ideia de relação causa e efeito apenas entre factos temporalmente sucessivos. Na verdade, pensamos que um acontecimento de há centenas de anos ou milénios pode ser, talvez, a causa de um evento que lhe é muito posterior. Não espanta, pois, que Brecht diga sobre as teses de Benjamin: “Benjamin

12 BERIO, Luciano, “Translating Music”, in Remembering the Future, op. cit., p.45. 13 BENJAMIN, Walter, “Sobre o Conceito da História”, op cit., p.17. 14 RODRIGUES, Cristiana Vasconcelos, O atrito do mundo. Espinosa e Hölderlin pela mão de Llansol, diss. doutoramento, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2006, pp.96-97.

!177 insurge-se contra a ideia da história como processo contínuo”15. Note-se ainda como esta ideia está presente nas três sínteses do tempo (síntese passiva, síntese activa, e síntese estática) enunciadas por Gilles Deleuze, de que falámos no primeiro capítulo desta dissertação, a propósito dos conceitos de diferença e repetição. E note-se, também, como o próprio funcionamento da memória envolvido na nossa escuta musical pode ser manipulado por uma concepção temporal não linear.

A estas quatro ideias fundamentais de Walter Benjamin junta-se uma outra sobre a ilusão da história universal, nas reflexões soltas publicadas no aparato crítico às suas teses:

A ideia de uma história universal está ligada à do progresso e à da cultura. Para que todos os momentos na história da humanidade possam ser alinhados na cadeia do progresso, têm de ser reduzidos ao denominador comum da cultura, do esclarecimento, do espírito objectivo, ou como se lhe queira chamar.”16. Inerente a esta observação está a constatação, na nossa opinião justíssima, de que qualquer história universal é redutora, negando o seu próprio conceito e vocação, no limite — porque necessariamente esquece, ou seja, trai o seu próprio intuito. Aqui, o papel de Berio, como representante de uma tradição musical que não foi erigida enquanto modelo da música clássica canónica, ganha uma nova dimensão. De facto, o devir do tempo não é unificável, nem os seus caminhos são redutíveis a um só caminho.

Face às anteriores constatações do carácter enigmático, descontínuo, descentrado, e reversível, da história, ganha importância uma nova ideia, que é a da sua não progressão: podemos encará-la enquanto simultaneidade, e não como sucessão. Ora, implicada nesta visão da história está a concepção de um presente “que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou.”17. Resgatar o homem do contínuo da história é, assim, para Walter Benjamin, o grande papel do historiador. E um papel decisivo para todo o artista, acrescentamos nós. A urgência da consideração de uma convulsão dos tempos inaudita, está, aliás, bem patente na leitura, por Benjamin, do Angelus Novus, de Paul Klee (1920), reforçando uma leitura messiânica dos tempos:

15 Apud Rolf Tiedermann e Hermann Schweppenhäuser, [Comentário/Aparato crítico a:] “Sobre o Conceito da História”, op. cit., p.151. 16 BENJAMIN, Walter, [Aparato Crítico a:] “Sobre o Conceito da História”, op. cit., p.155. 17 BENJAMIN, Walter, “Sobre o Conceito da História”, op. cit., p.18-19.

!178 Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos seus olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele voltou costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.18

18 Ibidem, pp.13-14.

!179 Conceber a obra de arte

As questões relativas às ideias de Walter Benjamin sobre a história, que acabamos de enunciar, apenas são plenamente atingidas no quadro de um esforço de concepção da obra de arte, também ensaiada e ponderada por Benjamin em A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica19:

Por volta de 1900 a reprodução técnica tinha alcançado um nível em que não só começou a transformar em seu objecto a totalidade das obras de arte do passado e a submeter a sua repercussão às mais profundas transformações, como também conquistou um lugar próprio entre os modos de produção artística. Nada de mais elucidativo para o estudo desse nível do que o modo como as suas duas diferentes manifestações – a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica – se repercutem sobre a arte na sua forma tradicional.20 De facto, neste famoso ensaio equacionam-se questões relativas, não apenas à fotografia – e à perda de aura21 que esta possibidade de reprodução acarreta –, mas também à introdução do elemento novo na produção artística que é a câmara e as suas possibilidades de condicionamento da percepção humana do objecto que filma.

Como veremos, estas ideias são fundamentais para a compreensão da música de Berio, porque se, por um lado, na sua música está muitas vezes presente a ideia de re-evocação de um objecto claramente pertencente a outros contextos produtivos (à imagem daquilo que acontece, quer com o fotógrafo, quer com aquele que filma), por outro há simultaneamente a ideia de percepção parcelar de um todo que se vai pouco a pouco revelando, visto que qualquer fotografia ou filme não é mais do que um testemunho parcial de uma realidade. Acrescentamos que esta possibilidade de

19 BENJAMIN, Walter, “A Obra de Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica”, op. cit., pp.207-241. Este ensaio, cuja 3ª versão traduzida para português por João Barrento, data de 1936/37, começa por fazer referência ao conhecido ensaio de Paul Valéry, «La conquête de l’ubiquité», de 1928, que constitui uma primeira reflexão importante sobre o tema da reprodução técnica da obra de arte. 20 Ibidem, p.209. 21 Sobre o conceito de “aura” no pensamento benjaminiano, cf. MOLDER, Filomena, “Aura e Vestígio”, in Semear na Neve, Lisboa: Relógio d'Água, 1999, pp.55-59; BENJAMIN, Walter, “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”, in A Modernidade, op cit., pp.103-148; e “Parque Central”, in A Modernidade, op. cit., pp.149-187; TACKELS, Bruno, “La question de l’art ou de la technique”, in Petite introduction à Walter Benjamin, éditions l’Harmattan, 2001, pp.61-77; BARRENTO, João, “Ritos de Passagem: Retrato de Walter Benjamin”, in A Palavra Transversal. Literatura e Ideias no século XX, Lisboa: Livros Cotovia, 1996, pp.191-201.

!180 reprodução técnica será também a possibilidade de gravação, que acarreta consigo a diluição das fronteiras bem delineadas do presente, misturando erudito e popular, velho e novo, contemporâneo e antigo, e portanto a era da reprodução técnica não é apenas algo que distingue o tempo moderno do tempo anterior, mas é algo que muda de tal forma a ideia do tempo, que faz jus a uma noção dilatada da sua passagem, afastando-se do frenesim que tanto marca a modernidade.

Debrucemo-nos na questão fundamental no ensaio de Benjamin que é a aura perdida de um objecto artístico, quando este é reproduzido fotográfica ou cinematograficamente. Como diz Benjamin, “por mais perfeita que seja a reprodução, uma coisa lhe falta: o aqui e agora da obra de arte — a sua existência única no lugar onde se encontra”22. É neste aqui e agora que está contida a aura do objecto artístico, segundo Benjamin. Na nossa opinião, a questão referente à aura, que Benjamin tão bem descreve, também se poderia pensar como a questão da aura de um objecto artístico perdido do seu contexto original. E esta relação com o conceito de aura é, a nosso ver, uma das mais relevantes marcas da produção musical de Luciano Berio, quer no que diz respeito a momentos como o terceiro andamento de Sinfonia (1968), quer no que se refere a peças como Rendering (1990), ou ainda à sua peça electro-acústica Visage (1961). Nesta última, nomeadamente, estabelece-se um curioso percurso, que se inicia (i) na descontextualização de sons do seu contexto original – como resulta da decomposição silábica de um texto –, continua (ii) na sua apropriação musical – a constituição de crescendos, accelerandos e ritardandos, por exemplo – e termina (iii) no isolamento de certos fragmentos seus, subitamente portadores de sentidos extra- musicais. São três momentos de recontextualização, que implicam um redimensionar da aura que lhes era imanente. Citamos, a este propósito, as palavras de Benjamin sobre a imagem fotografada, que julgamos iluminarem de forma substancial aquilo que acabamos de descrever acerca do processo musical beriano:

Pode dizer-se, de um modo geral, que a técnica da reprodução liberta o objecto reproduzido do domínio da tradição. Na medida em que multiplica a reprodução, substitui a sua existência única pela sua existência em massa. E, na medida em

22 BENJAMIN, Walter, “A obra de arte…”, op. cit., p.210.

!181 que permite à reprodução vir em qualquer situação ao encontro do receptor, actualiza o objecto reproduzido.23 Note-se que não há nada de pejorativo nesta perda da aura. Benjamin, aliás, fala de actualização do objecto reproduzido. Ora, todos nós conhecemos as virtudes polissémicas desta palavra: actualização significa tornar contemporâneo, mas também significa tornar vivo e cheio de futuro. E nós, com Bruno Tackels24, acrescentamos que a aura desaparece com a reprodução técnica, mas que é também o aparecimento desta possibilidade de reprodução que, mostrando a sua ausência, revela essa aura em pleno:

L'aura n'existe pas avant la reproduction, qui en serait comme le moment de destruction. L'aura ne prend véritablement forme… que dans son épuisement, généré par l'essor inéluctable des techniques de reproduction. C'est au moment où le reproductible envahit le champ anciennement habité par l'aura, c'est au moment de sa destruction radicale que l'aura peut apparaître et devenir visible pour l'œil moderne.25 Ora, esta reflexão sobre a perda e redimensionamento da aura de um objecto reproduzido conduz-nos necessariamente ao título da ópera que constitui o caso de estudo nesta dissertação: La vera storia. O título desta ópera encerra, em si, um debate interessante sobre a noção de história e de verdade. Questiona, nomeadamente, de que história se está a falar nesta obra, entre as possíveis duas ou mais histórias cruzadas, e mesmo num plano mais abstracto da acção, qual o olhar sobre a história que é evocada e citada, em muitos dos momentos a que vamos assistindo. Por outro lado, questiona sobre a verdadeira história, a real história que aqui se narra, e, a ser verdadeira, de que verdade estamos a falar, se a da história, no seu conceito, ou a da história verdadeira que aqui se encena. No limite, questiona ainda sobre a verdade que perpassa várias histórias ou as verdades que uma só história contém, e sobre a possibilidade de as reconhecermos.

Uma segunda característica realçada por Walter Benjamin surge na secção VIII deste mesmo ensaio, na reflexão que faz sobre o actor no cinema. Benjamin diz aí:

23 Ibidem, p.211. 24 TACKELS, B., op. cit. 25 Ibidem, p.69.

!182 A arte do actor [de teatro] é apresentada ao público definitivamente através da sua própria pessoa; o actor de cinema, pelo contrário, apresenta-se ao público através de todo um conjunto de aparelhos. Isto tem duas consequências. A aparelhagem que leva ao público a arte do actor de cinema não é obrigada a respeitar esta arte como totalidade. Sob a orientação do operador, ela toma continuamente posição perante esta arte. E continua:

A segunda consequência reside no facto de o actor de cinema, que não apresenta a sua arte directamente ao público, perder a possibilidade, facultada ao actor de teatro, de ir adaptando a sua arte ao público durante a representação. Assim, o público assume o papel de perito, papel esse que não é prejudicado por qualquer contacto pessoal com o actor. O público só se identifica com o mundo do actor na medida em que se identifica com a aparelhagem. Assume, portanto, a atitude desta: a atitude de quem avalia capacidades.26 Nas duas reflexões que acabamos de ler está presente algo que podemos encontrar de forma reiterada em muitas peças de Berio. Se Walter Benjamin no primeiro excerto menciona a subalternização do actor a partir do momento em que estamos perante um objecto cinematográfico, também na música de Berio acontece a subalternização de temas e motivos musicais a uma lógica que lhes é externa e, por força das circunstâncias, naturalmente posterior. A enorme diferença da música de Berio face à música que lhe é anterior consiste, nestes casos, na adopção deste procedimento artístico de combinar material pré-existente segundo um critério independente do mesmo. Dando como exemplo o terceiro andamento da sua Sinfonia, podemos dizer que os excertos musicais usados e adaptados por Berio para constituirem o seu todo não seguiram nenhum critério demasiado rigoroso ou coerente com a lógica que preside à sua combinação. Não interessa tanto o que é ou está (os temas e materiais escolhidos) mas o contexto em que este ser ou estar aparecem (a constituição do todo). Quanto ao papel do espectador ou ouvinte, concordamos totalmente com Walter Benjamin: tal procedimento artístico leva inevitavelmente a uma promoção do papel do receptor. Consequentemente, o espectador ou ouvinte do terceiro andamento de Sinfonia de Berio é convidado a partilhar um lugar a seu lado.

26 BENJAMIN, Walter, “A obra de arte…”, op. cit., p.221-222.

!183 Ora, em La vera storia somos igualmente convidados a assumir um papel activo na recepção desta ópera. Consideremos exclusivamente o libreto, desenhado por Italo Calvino e Luciano Berio. Para além da invenção da história que o libreto contém, há a quase contínua citação e evocação de lugares, temas, motivos da literatura ocidental, entre os mitos da herança greco-latina, as narrativas míticas judaico-cristãs, e os próprios lugares, muitos, de reverberação deste material cultural de base, chegando aos núcleos dramáticos do reportório operático. Na Parte I, entre os enunciados das personagens que participam directamente no drama narrado, e os comentários das Cantastorie, que repetem parte desses mesmos enunciados, há já uma antecipação do que depois se vê de forma mais clara na Parte II, a uma outra escala. O que se passa aí é que a repetição de certos enunciados, num contexto diverso daquele em que surgem e acontecem primeiramente (sobretudo ligados a personagens específicas e a episódios particulares da acção), não só desacelera a progressão do narrado e marca um ponto de reflexão, como torna o enunciado duplamente actuante: (i) no tecido próprio do drama e do que acontece, mas também (ii) na reflexão sobre o mesmo. No início da Parte II, reconhecemos fragmentos dos mesmos enunciados, em cenários e aparentemente cenas diferentes, como se de uma outra história se tratasse, mas as palavras que se repetem da primeira parte, e que ligamos a uma acção diversa, uma vez recontextualizadas, ganham uma volumetria inaudita, no significado que contêm. Da mesma maneira, as figuras que assomem na Parte I são de tal forma recontextualizadas, e assim carregadas de uma concretude e espessura tais, que se torna impossível aceitar que se trate aqui de um singelo exercício de citação ou intertextualidade. Palavras e figuras – que evocam quadros, motivos e temas da cultura ocidental – servem, portanto, várias possibilidades de história, servem, em potência, vários dramas, reverberam em sentidos vários, nunca abdicando, contudo, da sua mensagem nuclear, matricial, que se mantém invulgarmente imaculada, se consolida a cada novo contexto, e dele se emancipa, servindo a reflexão de fundo a que assistimos. Não é estranho, em Calvino, este exercício da potência de um texto, mensurada de forma prolixa e generosa, mas uma vez em contacto estreito com a música – igualmente prolixa – de Berio, reflecte, em certa medida, a poética beriana e o modo como esta se relaciona com o reportório musical.

!184 Uma terceira característica também realçada por Walter Benjamin é o tipo de discurso que o advento do cinema permite. Como se pode ler na secção XIII:

Por contraste com a pintura, é a indicação incomparavelmente mais precisa da situação que aumenta a possibilidade de análise da acção apresentada no filme. Confrontando com o teatro, o que torna as realizações cinematográficas mais facilmente analisáveis é a possibilidade, aqui maior, de isolar acções.27 Diz ainda Benjamin na mesma secção do seu ensaio:

[…] o cinema promete-nos, por outro lado, um horizonte gigantesco e inesperado! Os nossos bares e avenidas das grandes cidades, os nossos escritórios e os nossos quartos mobilados, as nossas estações de caminhos-de-ferro e fábricas pareciam querer encerrar-nos num universo sem esperança e sem saída. Veio então o cinema, que fez ir pelos ares este mundo de cárceres com a dinamite do décimo de segundo, de modo que agora, abandonados no meio dos seus escombros espalhados por todo o lado, nos lançamos serenamente em viagens aventurosas. Com o grande plano alarga-se o espaço, com o retardador o movimento.28 E termina:

Aqui intervém a câmara com os seus meios auxiliares, plongés e contreplongés, interrupções e imobilizações, retardador e acelerador, ampliação e redução.29 Novamente, o paralelo com as preocupações estéticas de Luciano Berio é evidente. Mas enquanto, no caso de um realizador, serão as potencialidades da câmara que lhe fornecem a possibilidade de constituição de um discurso, ao mesmo tempo variado e subtil, no caso de Berio é a variedade rítmica e harmónica – estudadas no capítulo anterior – o que lhe permite conseguir um alargamento de meios expressivos, impossível no quadro de outras músicas, e que incluem a lentificação e a aceleração do discurso musical, ou a enorme consonância e dissonâncias que este mesmo discurso consegue albergar. Estamos, assim, particularmente em La vera storia, perante uma enorme dilatação temporal do material e perante a introdução de outros modos de apreciação do discurso musical, que passa a ser encarado de forma semelhante à do discurso cinematográfico, na medida em que não tem apenas importância a consideração do objecto em si, mas ganham um papel determinante todos os elementos

27 Ibidem, p.232. 28 Ibidem, p.233. 29 Ibidem, p.234.

!185 que modificam a perspectiva sobre o objecto — orquestração ou timbre, ritmo ou durações, dinâmica, mas também as diferentes vozes e modos de cantar que contém.

Uma quarta característica do cinema realçada por Benjamin, cuja inclusão nesta lista parecerá, sem dúvida, surpreendente, é a característica da distracção suscitada pelo cinema, que Benjamin encara como algo de positivo gerado por este discurso. Lemos na secção XV:

[…] aquele que se concentra diante da obra de arte mergulha nela; é absorvido por essa obra, como aconteceu, segundo a lenda, a um pintor chinês ao ver o seu quadro concluído. Pelo contrário, as massas, pela sua própria distracção, mergulham a obra de arte em si. E continua:

Também a pessoa distraída se pode habituar. Mais: conseguir ultrapassar certas dificuldades na distracção prova que criamos o hábito de as resolver. Através da distracção que a arte oferece pode facilmente controlar-se até que ponto novas tarefas colocadas à percepção consciente puderam ser solucionadas. Como, de resto, subsiste no indivíduo a tentação de evitar tais tarefas, a arte encarregar-se-á das mais difíceis e importantes sempre que puder mobilizar massas. Fá-lo presentemente no cinema. A recepção na distracção, que se faz notar com ênfase crescente em todos os domínios da arte e é um sintoma de transformações profundas da percepção consciente, encontrou no cinema o seu campo de experiência próprio. Com o seu efeito de choque, o cinema vem ao encontro desta forma de recepção.30 Esta ideia de recepção na distracção é uma ideia que consideramos fundamental para a arte contemporânea, e que a singulariza. A ideia de que a percepção global de um fenómeno artístico assenta, não numa sua dissecação em pequenos elementos que lhe dariam coerentemente forma, mas justamente na sua integração num todo mais vasto, parece-nos altamente produtiva para compreendermos a essência da arte. A indeterminação do detalhe, a falta de importância de considerações que o envolvem, é, a nosso ver, aqui essencial. Tudo se passa como se filmássemos uma cidade em grande plano, com todos os seus pormenores negligenciáveis, enquanto determinantes da imagem global que queremos transmitir. A este propósito, importa falar da suspensão do tempo que todo o acto de distracção subentende, e do enorme efeito de dilatação do

30 Ibidem, pp.238-239.

!186 espaço que permite. Não se trata aqui de uma alienação, mas sim de um acto de suspensão.

Esta mesma questão da percepção na distracção leva-nos a uma outra, que está presente de forma mais ou menos explícita em todas as Sequenze de Luciano Berio. Trata-se da possibilidade de análise, por parte do ouvinte, de determinados mecanismos de constituição de um todo musical. O que está, assim, em causa, não é o material musical propriamente dito, mas a sensação que transmite ao seu ouvinte e o apelo que pratica através do seu multifacetado império de espelhos. A música de Berio não é sempre clara, nem o quer ser. Ela quer ter diversos momentos de percepção, e é esse o desafio a que nos submete. Não admira, pois, que a “Scena VII” da Parte II de La vera storia seja constituída pelo cortar do material da Sequenza IX per clarinetto segundo um critério que lhe é essencialmente estranho. De facto, todo o critério que preside à sua composição não é um critério local expandido coerentemente para um todo a constituir, mas a ideia de um todo de pormenores difusos e indefenidos, que fazem desta sua condição o elemento necessário para a sua constituição.

Finalmente, relacionada de forma diagonal com a questão que acabamos de referir, gostaríamos de abordar a questão do consumo de massas como possibilidade de apreciação, a um outro nível, da obra de arte. E se esta possibilidade advém da consideração do fenómeno cinematográfico, em que nos habituámos a pensar a sua percepção como naturalmente diferente de grupo social para grupo social, na música, e particularmente na música de Berio, ela faz uso de um esforço de tradução entre erudito e popular que tem sempre um sentido múltiplo. Por exemplo, aquele que ouve as Folksongs (1964) e é adepto de música popular verá os seus breves episódios atonais como uma expansão do material tonal que abraçou; por seu turno, o adepto de música atonal não deixará de receber a mesma música tonal como um esforço de tradução para este contexto de uma realidade que lhe é fundamentalmente estranha.

De igual modo, em La vera storia, podemos ver cada uma das “Ballate” (Parte I) como o ponto culminante e mais nítido de uma deriva musical, consubstanciada nos outros números e arie; mas também as podemos ver como um dos possíveis pontos de fuga de um material que essencialmente os transcende. Ligada a esta constituição de um

!187 discurso de natureza heterogénea está naturalmente a questão do consumo de massas. Porque, nos seus momentos mais acessíveis, a ópera La vera storia pode ser até assobiada distraidamente pelas ruas da cidade – como desejava Schoenberg que acontecesse com a sua música31. E esta possibilidade da múltipla recepção de um objecto artístico acarreta consigo de forma definitiva a erecção de uma dimensão política tantas vezes esquecida na música contemporânea. Esclareçamos: aquilo de que falamos é a possibilidade de, ao se constituir um objecto múltiplo, este mesmo objecto ser passível de várias recepções, incluindo a recepção popular e mais imediata — e portanto, ser passível de conter várias verdades. Neste sentido, parece-nos pertinente citar, de novo, Walter Benjamin:

«Aproximar de si» as coisas, espacial e humanamente, representa tanto um desejo apaixonado das massas do presente como a sua tendência para ultrapassar a existência única de cada situação através da recepção da sua reprodução. De dia para dia se torna mais irrefutável a necessidade de nos apoderarmos de forma muito directa do objecto, através da imagem, ou, melhor dizendo, da cópia e da reprodução.32 A existência múltipla do objecto artístico, que é esta ópera, talvez seja o melhor garante da sua unidade e do conjunto necessariamente multifacetado dos seus receptores. Relendo as nossas palavras a propósito da citação acima, de Walter Benjamin, não conseguimos evitar pensar de imediato em Gilles Deleuze, quando diz “[…] l’affirmation multiple est la manière dont l'un s’affirme”33. A coincidência é gritante, e significará, com certeza, que urge cumprir-se uma compreensão humana, como aquela que propõe Benjamin, ao falar da obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica, e não apenas uma compreensão filosófica académica no sentido estricto. Estamos, de facto, a falar de uma obra que reflecte de uma forma maior a necessidade de traduzir o real. Talvez maior do que em qualquer realismo; por isso, poderíamos ousar dizer que estamos perante uma obra que tem

31 “But there is nothing I long for more intensely (if for anything) than to be taken for a better sort of Tchaikovsky – for heaven’s sake: a bit better, but really that’s all. Or anything more, then that people should know my tunes and whistle them.” — excerto de uma carta enviada a Hans Rosbaud, de Los Angeles, em 12 de Maio de 1947. In Arnold Schoenberg Letters, ed. by Erwin Stein, University of California Press, 1987, p.243. 32 BENJAMIN, Walter, “A obra de arte…”, op. cit., p.213. 33 DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, PUF, 1962, p.27.

!188 momentos sem dúvida de maior abstracção, mas em que essa abstracção visa transmitir a complexidade do real. E Luciano Berio quer evitar qualquer forma cristalizada de narrativa, porque já codificada — como acontece com a narrativa simbolista ou realista. Não espanta, pois, que Berio evite falar de símbolo, e prefira a palavra “emblema” para se referir aos números da Parte I de La vera storia:

C’est… dialectique. C’est un texte avec un chemin d’histoires qui est vu de façon opposé. […] La première partie c’est moins mélangé; c’est plus dur, plus directe, plus vite. La première partie tout est presentée d’une façon emblématique: l’emblème de l’amour, l’emblème de la mort, l’emblème de… la voix du tenor, du sopran… des chansons populaires, si vous voulez. Tandis que la deuxième partie, ce n’est plus un emblème, c’est une espèce de… de verité, si vous voulez.34. A propósito das palavras que acabo de citar, e que conferem aos episódios da Parte I o estatuto de “emblema” (e não de símbolo), interessa reflectir sobre o seu carácter global. Porque, apesar do aspecto tradicional que esta primeira parte apresenta, com a sua sucessão de episódios fechados, este carácter ganha a sua verdadeira dimensão apenas com a existência da segunda parte, onde, como diz Berio, estamos perante uma “espécie de verdade”. Porque aí percebemos que aquilo de que se falava não era do caso particular de cada história, mas algo de muito mais profundo – poderíamos dizer que o que está, aqui, em causa, é a reflexão sobre a condição humana. Este é também o modo de conceber a obra de arte em Berio.

O facto de Berio e Calvino, na Parte I de La vera storia, tecerem o libreto com alusões ao texto original de Il Trovatore não contamina, pois, a nossa visão de La vera storia, confundindo-a com uma simples paródia de uma narrativa realista. Pelo contrário, muda de forma definitiva a nossa visão da ópera de Verdi, levando-nos a integrá-la num fluxo contínuo de ponderação do humano, que data desde sempre e que é de todos os tempos. Não se trata, pois, de recuperar um objecto que remete, por seu turno, para um momento específico da história da ópera (por exemplo), mas de resgatar dele uma carga de sentido essencial e, se quisermos, sem tempo histórico, que deixámos, de algum modo, de vislumbrar. Toda a construção do libreto da Parte I de La vera storia lembra, pois, no gesto, mais a ideia de alegoria, do que a ideia de qualquer

34 “Milva et Luciano Berio parlent de «La vera storia» (1985)”, vídeo publicado no Youtube: http:// youtu.be/EHYWXiaGTqU, visitado em 23/1/2016

!189 intenção de construção simbólica. Neste contexto, vale a pena demorarmo-nos brevemente sobre a distinção entre símbolo e alegoria, pois tal distinção ajuda, de forma clara, a entender o modo plural e aberto como La vera storia se constrói.

Comecemos por dizer que a intenção de leitura simbólica parte do plano da história para o plano da natureza mítica. Ajudados pela leitura pertinente de Roland Barthes, o símbolo nasce da atribuição de um conceito “grávido de situação”35 a um fenómeno contingente, transfigurando-o ou sublimando-o. O gesto alegórico, pelo contrário, opera do mesmo modo uma deslocação de sentido à contingência histórica, mas não a transfigura nem a sublima. Antes faz dela ícone, emblema cujos objectos, no seu conjunto, apontam para esse sentido deslocado. Se o símbolo pede, do seu leitor, identificação, a alegoria exige, do seu leitor, uma postura dinâmica de construção do sentido, sempre tensa e dialéctica. Se o mito, directamente relacionado com a origem do símbolo, se constitui como “fala despolitizada”36, a leitura alegórica da contingência histórica, ou dos tempos, exige um comportamento activo e intencional do seu interpretante, ou seja, profundamente político (lato sensu). Entende-se melhor, agora, o que Luciano Berio quer dizer com “espécie de verdade”, referindo-se à Parte II. Porque nessa parte não se procura estabelecer uma verdade una e dominadora sobre as demais, mas expor a radicalidade múltipla do real. Da sucessão de “emblemas” alegóricos dos vários temas que a ópera introduz, na Parte I, vemos surgir, na Parte II, um corpo fragmentário e múltiplo feito de restos, diríamos, dos vários textos da parte anterior, devolvendo a esta última uma espécie de verdade, ao mesmo tempo que se concentra nesta mesma reflexão do humano. A nota de autor publicada aquando da estreia de La vera storia (1982) reflecte o que acabamos de dizer, ou seja, a relação de tensão e de complementaridade de ambas as Partes desta ópera:

La vera storia è in due parti. Nella Parte I viene esposta per sommi capi una vicenda, un paradigma di conflitti elementari, espressi e rappresentati coi mezzi familiari di un teatro ove le cose si raccontano cantando: arie, duetti, cori ecc. Il testo della Parte II è identico a quello della Parte I ma è distribuito e segmentato in maniera diversa. Nella Parte II viene dunque proposta una trasfigurazione e, per

35 Barthes, Roland, “O mito, hoje”, in Mitologias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, p.219 36 Ibidem, p.242.

!190 certi aspetti, un’analisi di quel paradigma di conflitti elementari, in una prospettiva musicale e drammaturgica sostanzialmente diversa. La Parte I è un’opera (invece dei “recitativi” ci sono delle ballate), la Parte II no. Parte I e II espongono in maniera diversa la stessa cosa, come se due cantastorie proponessero una diversa versione dello stesso fatto dando una diversa funzione a una stessa struttura narrativa. Si potrebbe pensare a una delle due parti come al ritornello variato e anche la parodia dell’altra. Ma per quanto la Parte I tenda ad assumere le immagini e le scansioni di un racconto popolare, la Parte II tende a non raccontare più nulla: pensa alla Parte I. Nella Parte I, fatta di pezzi chiusi, predomina l’azione scenica: nella Parte II predomina l’azione musicale. Nella Parte I ci sono dei protagonisti, nella Parte II ci rimane solo la loro eco. Nella Parte I ci sono dei personaggi vocali (la voce del baritono, del soprano, del cantastorie ecc.), nella Parte II c’è una collettività vocale. La Parte I è reale e concreta, la Parte II è sognata. La Parte I abbraccia la scena operistica, la Parte II la respinge. La Parte I è ‘orizzontale’, la Parte II è ‘verticale’. La Parte I è estiva e all’aria aperta, la Parte II è invernale e in città. E cosí via.37

Fig. 1: Relação entre texto e música das Partes I e II de La vera storia38.

!

37 BERIO, Luciano, “Opera e no” [1982], [nota de autor a:] La vera storia [1977-1982], in Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013, pp. 267-268. 38 Contracapa da edição do Libreto de La vera storia: La vera storia. Opera in due parti, Livret D’Italo Calvino et Luciano Berio, Théâtre National Opéra de Paris, Paris: Gerard Billaudot Editeur, 1985.

!191 E se podemos dizer que Berio estabelece, com a Parte II, uma reflexão musical sobre a Parte I, não nos iludamos — estejamos conscientes de que esta reflexão musical não é uma reflexão artística destacada do real e do seu devir. Na sua aparente intangibilidade, ela reflecte uma posição humana face à ópera que relata. E é a esta luz que vale a pena revisitar os conceitos filosóficos de Gilles Deleuze, que começámos por enumerar no primeiro capítulo desta dissertação. Porque estes não são conceitos fechados em qualquer sistema auto-referencial, mas são a encarnação musical possível de um modo particular de olhar o real. Não espanta, pois, que, longe de ter um sistema filosófico fechado, Deleuze tenha optado pela criação de conceitos isolados, que no seu conjunto produzem um todo tão contraditório como fragmentário. É esta a sua unidade. E é esta a nossa unidade. Urge, por isso, compreender o conceito de multiplicidade e unidade, e a sua tradução musical, como um projecto ético e humano. Como urge, também, perceber o conceito de rizoma ou assemblage como algo que tem, acima de tudo, raízes numa visão particular do mundo e do seu devir, que não abdica de, sobre ele, tomar uma posição. Múltipla. Composta. Não unitária. Mas definitivamente comprometida. Como se deve, na nossa opinião, compreender os enunciados deleuzianos de diferença e repetição, ou de regime de signos, ou a ideia benjaminiana de distração que o advento do cinema permite, como testemunhos da incapacidade, e no entanto vontade, de englobar toda a diversidade e complexidade do mundo.

Por isso, a Parte II de La vera storia não renega qualquer elemento da Parte I. Incluindo a voz de Milva, a cantora que habitualmente canta música popular e não erudita. Nem há oposição alguma entre um esforço mais popular na Parte I e um carácter mais erudito da Parte II. Há um aprofundar, que se percebe antes de mais, de forma epidérmica, no gesto, quase despojado, de se repetir, como quem cita, partes do texto do libreto e da música da Parte I. E simultaneamente reconhecemos um lamento profundo (por exemplo, considere-se a “Scena V” da Parte II) pela desterritorialização que está envolvida neste rememorar estruturado pelo ritornello, ao longo de toda a Parte II, lamento este que nos diz que o real se escapa, restando ao artista reinventá-lo na obra de arte. Por isso, também, a Parte II já não é emblemática, mas contém “une espèce de… de vérité” (cf. citação acima). Esta “verdade” liga-se ao reconhecimento de uma dimensão não explícita, mas presente, da condição humana. Por isso, a Parte II de La

!192 vera storia é um momento catártico explícito, através do qual reconhecemos que a Parte I tinha, também ela, sido um momento catártico fundamental.

Ao mesmo tempo, é esta consciência do real como todo complexo impossível de abarcar pelo artista que conduzirá as intenções de Luciano Berio para um poliestilismo que se teima em ver como ponto de chegada, quando na realidade constitui um ponto de partida. Sim, toda a sedução da música tradicional está presente; mas não, essa sedução não é o fim último do compositor. Talvez seja uma forma mais profunda de compreender a sedução imanente em cada um dos seus momentos constitutivos aquilo que guia o seu criador. O que está em Verdi, em Debussy, em Mahler, e em tantos outros! Não espanta, pois, que Luciano Berio, compositor erudito dedicado à criação de uma arte para tantos inacessível, fale de Kurt Weil como passamos a citar, a partir de um artigo publicado em 31 de Janeiro de 2000 no jornal La Repubblica, intitulado “Kurt Weill il rivoluzionario”39:

È stato detto e ridetto che il mercato musicale e l'industria culturale tendono a proteggersi con l'imitazione e con l'adeguamento allo stile. È in parte vero, suppongo, ma siccome non posso permettermi di guardare all' industria culturale con grande partecipazione, mi piace pensare che il significato e l'identità di un' opera musicale traggano invece una solida ragione di esistere, anche al di fuori del mercato, proprio da un non adeguamento allo stile e da un fare costantemente i conti con le diversità. […] Penso che la modernità di Kurt Weill, nella sua costante ricerca dell' "altro" e dell' "altrove", non risieda solo nella sua concezione del "teatro epico" (certamente teorizzato da Brecht ma prefigurata musicalmente dallo stesso Weill) ma anche nell' uso e nella definizione dei suoi ingredienti specifici. […] Lui stesso è sempre un "altro" e le sue canzoni non sono mai "la cosa in sé", non diventano mai mercanzia e trasmettono sempre segnali più o meno espliciti di consapevolezze ulteriori, non solo musicali. Le rivoluzioni si fanno anche cantando le canzoni. Ebbene, le canzoni di Weill sono rivoluzionarie perché si rivolgono innanzi tutto all' ascoltatore di musica e non al consumatore di musica che vuole acquistare evasioni. Le canzoni di Weill non hanno ovvie radici nel

39 Artigo disponível em: http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2000/01/31/kurt-weill- il-rivoluzionario.html [visitado em 11 de Maio de 2011].

!193 folclore e, nella maggior parte dei casi, neanche nella tradizione delle ballate popolari, e quindi non sono sempre narrative. Sono spesso un dialogo: ma un dialogo di solitudini anche quando i protagonisti parlano fra loro. È la musica stessa che implica, in quanto musica, un dialogo virtuale e tende a trasformare l' ascoltatore in narratore. L' ascoltatore riconosce i "gesti" e gli ingredienti ready made che sono parte integrante delle canzoni, come fossero relitti di un altro mondo oppure come fossero cari e vecchi amici che si rifanno vivi colmi di ricordi non sempre allegri. Questi ingredienti vengono però assimilati all' "altro" e allo stesso tempo distanziati, acquistando essi stessi, a loro volta, funzioni allenanti. Un confronto diretto e frontale fra i due "altri" non avviene quasi mai, come nel celebre Liebeslied del Dreigroschenoper quando, dopo la parodia di un recitativo operistico, le regolamentari trentadue battute dei Walzer-Boston si incamminano su un percorso armonico molto "illegittimo" e, anche per questo, seducente. I "vecchi amici" vengono dunque filtrati sottilmente da caratteri e da funzioni diverse (soprattutto armoniche) che, distanziandoli, ne modificano il senso originale, un po' come le didascalie della scena brechtiana che interrompono l' azione e impediscono elementari identificazioni emotive. Nella musica di Kurt Weill - che si tratti o no di canzoni - non si creano conflitti elementari e inconciliabili ma prende forma invece una sorta di instabile complementarità, una coesistenza dialettica, vorrei dire, un dialogo metaforicamente un po' beckettiano, che si svolge fra caratteri e funzioni musicali geneticamente distanti. Questo dialogo fra gesti musicali diversi è, nel percorso creativo di Kurt Weill, il segnale concreto di una ricerca dell' essenzialità o, come direbbe Adorno, dell' intermittenza drammaturgica e strutturale; ma diventa anche, di fatto, il segnale di una rinuncia stilistica e, in quanto tale, come suggerivo all' inizio, un atto esemplare di moralità musicale. Da longa citação que acabamos de fazer extrai-se, de forma clara e inequívoca, a matéria fundamental para entendermos o fazer musical a que Berio é particularmente sensível: um fazer plural, dialogante ou dialéctico, que transforma o seu ouvinte de forma subtil, mas revolucionária, deixando sobressair o atrito causado pela diversidade que abraça. Por isso, Berio refuta a utilização do termo “colagem” para caracterizar o terceiro andamento da sua Sinfonia, porque não se trata de unir o diverso, mas de reconhecer, no irredutível diverso, o que é semelhante e comum. Falamos da capacidade de criar relação: “Todos os corpos convêm em certas coisas.”40. E utilizamos a palavra

40 ESPINOSA, Bento de, Ética, II, Prop.XIII, Lema II, p.214: introdução e notas de Joaquim de Carvalho, trad. de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e António Simões, posfácio de Joaquim Montezuma de Carvalho, Lisboa: Relógio d'Água, 1992.

!194 “comum” com uma dupla valência: a de que os objectos, na sua singularidade e dispostos em relação sob uma determinada perspectiva, se reconhecem como semelhantes ou de natureza mútua, mas também a da sua pertença ao uso livre e comum, a da sua potência de ser. Sublinhe-se, pois, que o poliestilismo beriano é um ponto de partida e não de chegada, na medida em que cumpre com uma expectativa: “Então, fomos esperados sobre esta Terra”41.

Acrescente-se, de resto, que a citação de objectos externos de que temos vindo a falar a propósito de La vera storia se afasta radicalmente da noção de kitsch, com a qual se poderia caracterizar esta prática musical. Dizemos isto, porque os objectos que Berio convoca fazem parte de um discurso que obedece a uma lógica posterior, em permanente actualização, e portanto impondo-lhes um movimento que, mesmo que não tenha as suas raízes internas – e muitas vezes, sim, o movimento dos objectos berianos tem uma raíz interna –, tem uma raíz externa que os muda internamente. A este propósito, vale a pena citar as ideias de Berio sobre Stravinsky, nomeadamente num artigo em que fala da “morte de um grande criador” (publicado pela primeira vez em 1982) e nas suas conferências de Harvard (em 1993-94):

Il nous a certes laissé un merveilleux et séduisant collier d'œuvres, mais sa plus grande œuvre a été sa façon de les agencer, en un mot sa poétique. Il s'agit d'une poétique dessinée avec les traits d'une forme classique, fermée, comme toute forme classique, et se posant le problème d'un but et d'un équilibre formels. Une poétique en tant qu'oeuvre consciemment conclue, donc, non troublée par l'angoisse expressionniste de l'avancée à tout prix. La poétique stravinskyenne exhale une invitation au calme et, implicitement, invite à ne pas surévaluer les œuvres, à ne pas les considérer comme fétiches. Elles sont ce qu'elles sont et il ne faut pas les déranger. Plutôt que d'en déchiffrer le contenu, Stravinsky semble nous suggérer d'en observer la nouveauté et la facture et — c'est nous qui le suggérons — de reconnaître leur place réelle, non chronologique, dans ce merveilleux collier. […] Agon (1957) est le premier requiem. C'est l'œuvre la plus complexe et sans doute la plus remarquable de la maturité. C'est avec Agon que la «forme Stravinsky» commence à pivoter sur elle-même, à se scruter de l’intérieur.42

41 BENJAMIN, Walter, “Sobre o Conceito da História”, op. cit., p.10. 42 BERIO, Luciano, “Igor Stravinsky: Sur la mort d'un grand créateur.” Contrechamps nº 1: Septembre 1983, Paris: Édition L’Âge d’Homme, pp.57-58.

!195 Gostaríamos de realçar, nas palavras acima citadas, o facto de Berio compreender a forma totalmente nova como Stravinsky vê o objecto musical, não o considerando sob uma perspectiva fetichista. Acrescentamos nós que, na forma complexa que Agon assume, nos seus múltiplos espelhos formais, estes objectos como que se actualizam para assumir um comportamento novo, criador de um objecto por vir, uma nova figura. Dispõem-se à metamorfose de um corpo ausente. Por isso, é de uma enorme beleza o reconhecimento de Agon como sendo o primeiro requiem de Stravinsky. Continuemos a citar Berio, ainda sobre Stranvinsky, passados 11 anos sobre a citação acima:

Agon is above all a container in which Stravinsky has placed a miniature collection of precious objects of various kinds, of different character and provenance, and of great beauty, along with copies of the same objects. Some of them live side by side with their reproductions – they are, in other words, repeated, without, however, suggesting the idea that Agon is a commentary on the French rondeau. […] Agon is not a dance suite, not even a parody of it. In Agon there's a little bit of everything: diatonic pieces, chromatic, atonal, canonic, tonal, serial, polytonal, neo-Baroque pieces, references to Webern's Concerto op. 24, and also chamber music scattered in a large symphony orchestra that never plays all together. But there are also real developments and proliferations of the material which spill out of the polite formal ceremonials: they spread out, in other words, beyond the perimeters of the individual pieces, placing the symmetries and the repetitions in an ever-new light, and not always a polite one. And then there are self-contained events (like the Sarabande-Step and the Branle Gay) which do not communicate with each other or with the rest-real "happenings", short-lived and gentle. Thus Agon proceeds on three different levels: repetition, development, and the insertion of unrelated episodes. But however it may proceed, in its own meta- and hyper-Stravinskyan referential labyrinth, Agon is a work characterized by lightness. Lightness, because ir communicates at every moment the sensation of having stripped and reduced to the bare essentials of their functions, to pure gesture, to a symbol of their expressivity, some of the frequently cumbersome bodies of the musical legacy.43 Lemos as palavras de Berio sobre Stravinsky, Agon e a “leveza” de um corpo reduzido à sua matéria essencial, e não podemos deixar de recordar a consciência dos tempos que o pensamento de Benjamin emana:

43 BERIO, Luciano, Remembering the future, op. cit., pp.75-76.

!196 A imagem dialéctica é um lampejo momentâneo. Assim, como uma imagem que lampeja no agora que a torna reconhecível, deve ser fixada a imagem do passado […]. A salvação que assim, e apenas assim, se consuma, só se pode obter a partir da percepção daquela outra que se perde irremediavelmente.44 Berio não é kitsch, porque ao haver uma apropriação de materiais estranhos, há simultaneamente a constituição de uma lógica composicional paralela que impede que cada um destes elementos seja visto como apenas decorativo e, pelo contrário, a sua justaposição cria uma lógica de “Verfremdung”, a distanciação de que Berio fala a propósito de Kurt Weill, na citação acima. O que se passa é um gesto continuado de profanação, tal como esta é pensada por Giorgio Agamben:

Pura, profana, liberta dos nomes sagrados é a coisa devolvida ao uso comum dos homens. Mas o uso não aparece, aqui, como qualquer coisa natural: é mais o facto de só se lhe aceder através de uma profanação. […] Profanar significa: abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência que ignora a separação [entre humano e divino], ou, melhor, faz dela um uso particular.45 Realçamos, nas palavras de Agamben, o gesto “não natural”, “especial” e “particular” do acto de profanar. Estamos, assim, muito distantes do uso kitsch. Porque, longe de se querer um uso utilitário, arbitrário e tornado natural, de um qualquer objecto, independentemente do carácter estético que emana, o que se procura fazer aqui é abrir a possibilidade de atribuição de novos significados a um objecto vítima de uma interpretação cristalizada e historicizada — aproximamo-nos, assim, da "salvação" de que fala a citação de Benjamin acima. Assim, no curso da reflexão que temos vindo a fazer ao longo deste capítulo, Luciano Berio oferece-nos uma visão particular do objecto artístico, que nós caracterizaríamos como finalmente liberta da melancolia do anjo da história benjaminiano – tal como este aparece descrito na sua 9ª tese sobre o conceito da história46, a partir de um excepcional exercício de écfrase sobre o quadro bem conhecido de Paul Klee, Angelus Novus.

Inaugura-se, assim, um novo tempo composicional, por comparação com o tempo imediatamente precedente, mas talvez não tão novo, se pensarmos em toda a

44 BENJAMIN, Walter, “A obra de arte…”, op. cit., p.178. 45 AGAMBEN, Giorgio, “Elogio da Profanação”, in Profanações, trad. de Luísa Feijó, Lisboa, Cotovia, 2006, pp.104-106. 46 BENJAMIN, Walter, “Sobre o Conceito da História”, op. cit., pp.13-14.

!197 história humana e na relação que esta estabeleceu com a sua condição – e La vera storia, como temos vindo a demonstrar ao longo desta dissertação, destaca-se de forma cada vez mais evidente como momento-chave desta percepção, em toda a obra de Berio. Por isso, não resistimos a recordar as palavras de Berio sobre Stravinsky e a sua vasta obra, que tende a ser sempre lida por espartilhos temporais e estilísticos, que urge combater:

C'est un travail encore a faire qui aidera enfin I'Histoire a ne plus retenir son souffle autour de Stravinsky et a eviter qu'on dise que Le Pere Igor «se divise en trois parties» (la russe, la neo-classique et la serielle).47 La vera storia é, quanto a nós, o expoente máximo de tendências e preocupações que se encontram presentes em toda a carreira artística de Luciano Berio, antes e depois. Sempre.

47 BERIO, Luciano, “Igor Stravinsky: Sur la mort d'un grand créateur.”, op. cit., p.59.

!198 IV O QUE PODE A MÚSICA?

O cosmos também pode ser procurado dentro de cada um de nós, como caos indiferenciado, como multiplicidade potencial. (Italo Calvino, Começar e Acabar)

No final de uma dissertação que se debruçou sobre a música de Luciano Berio, em particular a sua ópera La vera storia (1982), convocando aspectos filosóficos num primeiro momento, aspectos analíticos de seguida, e finalmente aspectos históricos e artísticos num terceiro capítulo, cabe-nos agora, num quarto capítulo, explicar de que forma estes diferentes temas se cruzam para a constituição daquelas que são as suas implicações éticas. Sim, a música de Berio tem implicações éticas fortísssimas, e quando este cita música popular ou orquestral tradicional, tal tem a ver com a sua integração num continuum1 de que nunca abdicou, paralelamente à exploração de novos espaços expressivos na sua música, e por razões não apenas artísticas mas políticas lato sensu. Assim, quando abraça reportório como o das Folksongs ou quando Milva canta as Ballate em La vera storia, mais próximas da tradição popular, as consequências éticas da sua integração são inegáveis. Porque se trata aqui de um modo particular de receber um corpo sonoro multifacetado e de entrar em diálogo com o mesmo, prolongando-o nas suas múltiplas possibilidades.

As implicações éticas envolvidas neste exercício incidem não só sobre esta mesma herança – que se torna leve e dialogante, e não pesada e impositiva –, como sobre a própria noção de autor – cujo rosto/cuja voz se faz também dos rostos/das vozes que herda/cita e com os quais se relaciona –, como, finalmente, sobre o ouvinte – que passa a ser uma espécie de cúmplice, directamente implicado num mesmo exercício de diálogo com a sonoridade múltipla que recebe. E isto é tão definitivamente verdade para a sua produção mais popular – como é o caso de Naturale (1985) –, como para as suas composições aparentemente mais eruditas — pensamos, nomeadamente, na Sequenza XIV per violoncello (2002) e em Stanze per baritono, tre cori maschili e orchestra (2003), que não estabelecendo uma relação ostensiva com outros reportórios, não

1 Curiosamente, Berio tem uma peça intitulada Continuo per orchestra (1991).

!199 deixam, por isso, de estar por eles contaminadas. Não espanta, pois, que Berio afirme, a propósito de Naturale:

L’atto della trascrizione, come quello della traduzione, può implicare tre diverse condizioni: una identificazione del compositore con il testo musicale originale, l’assunzione del testo come pretesto di sperimentazione e, infine, la sopraffazione del testo, la sua decostruzione e il suo abuso filologico. Penso che si dia una soluzione ideale quando queste tre condizioni coesistono. È solo allora, credo, che la trascrizione diventa un atto realmente creativo e costruttivo.2 (sublinhados nossos) Diríamos, a este propósito, que toda a transcrição é um acto compositivo. Mais, todo o acto compositivo é, afinal, uma transcrição, por mais que o compositor não esteja disso consciente. E gostaríamos de acrescentar, ainda, que toda a transcrição/composição tem uma vertente ética, na medida em que acolhe o mundo e o devolve ao seu devir. Na medida em que se sente pelo mundo acolhido e não abdica de o projectar para os seus contemporâneos e as gerações vindouras.

Ainda antes de passar à enumeração daquelas que pensamos serem as características éticas da música de Luciano Berio, habitualmente não contempladas nos estudos berianos3, gostaríamos de abordar a questão do significado musical da sua produção. É conhecida a lucidez com que Berio nos fala da linguagem musical — ou não seria filho do seu século, o século da profunda transformação hermenêutica. Muitos são os lugares desta reflexão nos seus escritos e depoimentos; citamos as suas palavras numa entrevista com Theo Muller, em vésperas do festival ConSequenze, organizado em Roterdão em 1995:

T.M.: When using the term 'semantics', you still seem to refer to an explicit, linguistic sort of meaning. L.B.: Not a specific sort of meaning, neither explicit nor specific: I am afraid that these are attributes that do not readily belong to musical experience, nor to

2 Excerto retirado da nota de autor sobre Naturale (1985), acessível em: http://www.lucianoberio.org/ node/1396?1228729248=1 (acedido em Setembro de 2015). 3 No volume recentemente publicado com estudos sobre a música de Berio, organizado por Angela Ida De Benedictis, encontramos um trabalho interessante de Susanna Pasticci sobre a dimensão ética do pensamento criativo beriano, que, contudo, não cobre as questões que se reflectem neste capítulo. Cf. “«In the meantime, we'll keep translating». The strength of the ethical dimension in the creative thought of Luciano Berio”, in Luciano Berio. Nuove prospettive / New Perspectives, a cura di Angela Ida De Benedictis, Firenze: Leo S. Olschki, 2012, pp.459-475.

!200 language. These are impossible subjects. You can walk around them, trying to penetrate them through many different doors. The doors will be sealed or the rooms will be empty. Anyway, the process of trying is certainly more rewarding than the result. […] language and music share the obvious fact that for both the relation of sound and meaning – whatever that means – is arbitrary, based on conventions, on a set of codes that we may accept or refuse. […] T.M.: Like Joyce, you attach great value to the multi-layered character of a work of art. L.B.: For me, this notion includes not only the process of composition but also of listening. The combination of layers, which are present in different degrees without obliterating each other, can create a very interesting magma. If these layers have real functions – harmonically, timewise, in terms of density – their coexistence creates an implicit 'drama' that can be very meaningful.4 De facto, a música não significa nada de concreto, mas tem múltiplos significados que importa considerar na sua recepção. De resto, nada é puramente autoreferencial, por muito que sejamos confrontados, por exemplo, com inúmeras notas de autor onde se detalham questões técnicas e somente essas… Esta é uma questão decisiva, diríamos mesmo, que até em situações onde esses significados se revelam contraditórios, não devem deixar por isso de ser contemplados. No limite, poderemos até pensar na pura contradição de termos como operante de sentido na música. Vale a pena, a este propósito, citar as palavras de Berio nas suas lições de Harvard, que, de resto, se dedicam por inteiro a buscar o significado da música a propósito das muitas e diversas questões aí trabalhadas:

Something meaningless doesn't make any sense, but something that doesn't make any sense can be meaningful; without this basic awareness, there would be little point in developing, extracting, and inventing musical experiences from […] a vocal sound body.5 Acrescentaríamos nós, por mais que o sintamos desnecessário: de qualquer corpo sonoro. A não mera autoreferencialidade da música de Luciano Berio está, de resto, ligada umbilicamente a toda a sua produção musical, mesmo em obras não

4 In “'Music is not a solitary act': Conversation with Luciano Berio”, Tempo, New Series, No.199 (Jan. 1997), pp.16-18. 5 BERIO, Luciano, Remembering the future, Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2006, p.71

!201 teatrais — pensamos, por exemplo, em Sinfonia (1968). Nas suas lições de Harvard, Berio fala do “código genético” que radica em qualquer fazer musical e que “abre” a música para um plano de significação, independentemente de qualquer processo ou técnica que a possa explicar:

This self-sufficiency gives musical experience an enormous associative and semantic openness, of such an uncoded nature that a semiologist may be able to come to grips only with interpretive codes implied in listening and (more important) in re-listening, rather than with creative and structuring processes.6 As palavras de Berio, que sublinham o carácter não codificado – e não codificável –, do significado musical, vão ao encontro das de Italo Calvino, nas suas Seis propostas para o próximo milénio, a propósito de uma dessas propostas, a Visibilidade7. É curioso que esta questão do significado não concreto e, portanto, vago, também não levanta qualquer dilema para Calvino:

[…] ao idear um conto a primeira coisa que me vem à cabeça é uma imagem que por qualquer razão se me apresenta carregada de significado, mesmo que eu não saiba formular este significado em termos discursivos ou conceptuais.8 A partir das palavras citadas acima importa sublinhar, finalmente, que o plano de significação que a música nos dá é anterior e posterior ao objecto artístico, embora o atravesse e seja, por ele, actualizado, e é naturalmente condição sine qua non para a consideração ética da música.

A reflexão que se segue procede, justamente, a uma releitura das «Norton

Lectures» de Italo Calvino, em Harvard (1984-85)9, com aquele que a nosso ver é o testamento estético e político de Luciano Berio, e que constitui igualmente as suas «Norton Lectures» (1993-94), coligidas em Remembering the Future10. A nossa convicção sobre a escolha de Calvino e das suas reflexões para o próximo milénio, embora surja reforçada pelo facto de ser ele o co-autor do libreto de La vera storia, não

6 BERIO, Luciano, op. cit., p.11. 7 CALVINO, Italo, “Visibilidade”, in Seis propostas para o próximo milénio, 3ª ed., Trad. José C. Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1998, pp.99-119. 8 CALVINO, op. cit., p.109. 9 As Norton Lectures de Calvino estão reunidas em Seis propostas para o próximo milénio, op. cit.. Estas conferências nunca chegaram a ser apresentadas por Calvino, que faleceu pouco antes de partir para Harvard. 10 BERIO, Luciano, Remembering the future, op. cit.

!202 encontra o seu motivo maior nesse facto, mas sim na pertinência e no alcance das reflexões, elas mesmas tecidas poucos anos depois da estreia desta ópera.

Nestas conferências, curiosamente, Calvino aproxima-se de quatro temas que surgem estreitamente ligados a La vera storia. São eles a Leveza, a Rapidez, a Exactidão e a Visibilidade. Claro que não resistimos a pensar nos seus contrários. E se os dois primeiros se revelam fáceis de concretizar, contrapondo o peso à leveza e a lentidão à rapidez, os dois últimos são definitivamente qualidades mais complexas, porque a própria definição de exactidão, uma vez implicada nas reflexões de Calvino sobre a linguagem (poética), se “encosta”, diríamos, ao vago e impreciso; por seu turno, a visibilidade de que Calvino fala relaciona-se estreitamente com a imaginação, e portanto, com aquilo que não é facilmente evidente.

As conferências de Calvino incluem, ainda, um tema que é especialmente caro à reflexão que temos vindo a tecer ao longo desta dissertação: a Multiplicidade. Seria, sem dúvida, um excelente modo de “começar e acabar” este trabalho (pedindo emprestado o título de outro texto de Calvino, publicado juntamente com as suas conferências11). Esta convicção ainda cresceu mais quando pudemos constatar que o tema da sua última conferência em Harvard – que nunca chegou a escrever, por ter entretanto falecido – era o da Consistência. Ora, se podemos pensar que a multiplicidade se refere à consideração interna de uma entidade, a consistência refere-se muito comummente à integração de um determinado objecto no contínuo temporal e vivencial que o precede e lhe sucede, ou seja, os seus limites exteriores. Devemos acrescentar que os três últimos temas que aqui enumerámos – visibilidade, multiplicidade e consistência – ligam-se também de forma particularmente incisiva a La vera storia. Mas, reconheçemos, ligam-se mais fortemente ainda àquelas que são as nossas preocupações estéticas. Ousaríamos, até, desdobrá-las: diríamos consistente, porque múltiplo; múltiplo, porque visível; visível, porque consistente. E reafirmaríamos: a multiplicidade é, para nós, um valor inalienável.

11 “Começar e Acabar”, in Seis propostas para o próximo milénio, op. cit., pp.147-167.

!203 Multiplicidade

Quando escolhemos La vera storia como objecto de estudo desta dissertação, pensámos, antes de mais, na forma como nesta ópera se consegue dar consistência a um todo marcado pela sua multiplicidade. E essa multiplicidade não se deve ao seu libreto, mas a um modo de compor que marca a obra de Berio e que tem na diversidade de materiais o ponto inicial da sua deriva. Isto tem consequências muitíssimo profundas, uma das quais é o primado da ideia que preside à composição enquanto elemento que lhe dá objectivo e unidade, e não o primado da exploração de determinado material (ou materiais) ou de determinada técnica (ou técnicas). Concretizamos: Berio faz da exploração de materiais diversos não um fim em si mesmo, mas o ponto de partida para um caminho que serve uma ideia musical exterior a qualquer dos sistemas que articula.

É curioso que a ideia de multiplicidade e as suas possibilidades de organização constitui, como já apontámos atrás, uma das seis conferências pensadas por Italo Calvino para as suas «Norton Lectures». No livro que resultou deste convite diz Calvino, a propósito de uma das possíveis concretizações da multiplicidade na literatura:

Há o texto unitário que se desenvolve como o discurso de uma única voz, e que se revela interpretável a vários níveis. Aqui o primado da invenção e do tour-de-force cabe a Alfred Jarry com L'amour absolu (1899), um romance de cinquenta páginas que pode ser lido como três histórias completamente diferentes: 1) a espera de um condenado à morte na sua cela na noite anterior à sua execução; 2) o monólogo de um homem que sofre de insónias e que na sua vigília sonha que foi condenado à morte; 3) a história de Cristo.12 Sublinhamos a proximidade desta possibilidade de organização do múltiplo com aquilo que Berio pratica em La vera storia. Cada momento musical tem o seu estilo particular, mas faz parte de um “acorde” que domina toda a Parte I da ópera, como já tivémos oportunidade de apontar atrás neste trabalho (vd. capítulo II). Este acorde viabiliza a multiplicidade de camadas sem que a consistência do todo se ponha em causa. David Osmond-Smith, de resto, descreve este acorde como sendo um “código”:

12 CALVINO, Italo, “Multiplicidade”, in Seis propostas para o próximo milénio, op. cit., p.139.

!204 The actions that we see and the words that we hear give theatrical focus to a drama that is quintessentially musical. But to draw the listener into the oneiric drama that lies beyond story-telling can only be done within the framework of an established code. The clear-cut musical and dramatic expositions of Part I provide that code. And if in Part II materials are folded into each other to create new musico-dramatic configurations, this is possible because all the major materials of the opera are related more or less directly to an eight-note pitch group, [which] is presented in the first bar of the work. 13 A consciência da multiplicidade do objecto musical é, por parte de Berio, ainda anterior. Berio vê a música como algo de intrinsecamente plural:

[…] anything can become music as long as it can be musically conceptualized, as long as it can be translated into different dimensions. Such conception, such translation is possible only within the notion of music as Text, a multi-dimensional Text that is in continuous evolution.14 Nós poderemos acrescentar que a significação que aparenta ser estritamente musical tem sempre implicações mais vastas, porque a música é sempre parte de um todo maior do que a sua exclusiva pertença a um género ou a um grupo, a uma classe, a um território específico, a uma língua…. Sim, a música é um texto multidimensional, porque tem implicações várias no evento que ela própria constitui. Não podemos deixar de citar as palavras de Calvino a propósito da imaginação literária, onde encontramos uma permeabilidade à diversidade do mundo que potencia o fazer artístico que dele faz parte intrínseca:

Digamos que há diversos elementos que concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação directa do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura aos seus vários níveis, e um processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização como na verbalização do pensamento.15 Dito isto, pensamos que o próprio admitir da possibilidade de conjugação entre entidades diferentes é uma atitude eminentemente política. A música de Berio recusa

13 OSMOND-SMITH, David, Berio, Oxford, New York: Osford Universit Press, 1991, pp.103-104. 14 BERIO, Luciano,“Translating Music”, in Remembering the Future, op. cit., p.49. 15 CALVINO, Italo, “Visibilidade”, in op. cit., pp.114-115.

!205 uma chave una de leitura, podendo ser lida com critérios diversos e podendo ser utilizada para apontar para realidades também diversas. Convocando a multiplicidade, a música de Berio dá-nos uma dupla dimensão de reflexão: por um lado, a multiplicidade resiste a leituras que se impõem com uma só chave dicotómica, podendo abrir o olhar a múltiplos planos de leitura e possibilidades de tradução; por outro, a multiplicidade impede que nos fechemos numa redoma, ou voltemos as costas à diversidade do mundo, alegando resistir à sua voracidade uniformizante. Ao não professar o academicismo de um só sistema ou linguagem, ou técnica, Berio não cai na banalidade ou na facilidade do gesto, antes reflecte uma postura de abertura à diversidade de um real que vê como em contínua gestação e mutação, e portanto sem ambicionar travar ou cristalizar esse processo. Convocamos as palavras de Silvina Rodrigues Lopes no seu ensaio sobre “A Literatura como Experiência”, que vêm ao encontro deste imperativo ético da multiplicidade:

É na relação com o outro, no ser-em-comum, que se afirma o não-comum da singularidade, aquilo que não depende de nenhum modelo, critério ou valor, mas é a única garantia de não sucumbirmos diante do «império da necessidade», isto é, da redução da vida à esfera do económico e social. Trata-se de, através da construção de formas discursivas ou outras, preservar o potencial de mudança, de diferenciação infinita, acolher o exterior sem o reduzir a um «ser como», sem anular nele o excedente, a sua mudez e as possibilidades infinitas de relação que nela se abrem. É neste sentido que a arte abriga a infância e o conflito — sem medida absoluta que as anule em sistemas rígidos de equivalências, as coisas continuam a desencadear-se em múltiplas aparições, o mundo reordena-se sem fim.16 Mas, mais do que um imperativo que constituiria um garante para a não uniformização, como defende Silvina Rodrigues Lopes no seu ensaio, estamos em crer que a multiplicidade é a via necessária, o caminho possível, se queremos de algum modo integrar a música no devir do mundo, se queremos, com a música, permanecer no continuum do mundo. E aqui importa apontar para o olhar incisivo de Italo Calvino no seu ensaio sobre a multiplicidade, quando cita Robert Musil, cuja escrita descreve como

16 LOPES, Silvia Rodrigues, “A Literatura como Experiência”, in Literatura, Defesa do Atrito, Lisboa: Edições Vendaval, 2003, p.12.

!206 “fluente, irónica e controlada. Uma matemática das soluções individuais […]”17. As palavras de Musil, retiradas de O Homem sem Qualidades, não podem ser mais clarividentes desta questão:

Mas ele tinha ainda outra coisa a dizer: devia falar dos problemas matemáticos que não permitem uma solução geral mas sim soluções particulares cuja combinação nos faria aproximar-nos da solução geral.18 Ou, recorrendo às palavras de Maria Gabriela Llansol, cuja escrita vai, em muitos aspectos, ao encontro do fazer musical de Luciano Berio, “um homem-só não pode modelar uma paisagem”19.

17 CALVINO, Italo, “Multiplicidade”, in op. cit., p.131. 18 Robert Musil, apud CALVINO, Italo, op. cit., p.131. Na recente tradução por João Barrento para português este passo está no vol. I, p.476 (O homem sem qualidades, trad., pref. e notas de João Barrento, 2ª ed., Lisboa: D. Quixote, 2008). 19 LLANSOL, Maria Gabriela, Lisboaleipzig 1. O Encontro Inesperado do Diverso, 2ª edição, com xilogravuras de Ilda David’, Lisboa: Assíro & Alvim, 2014, p.44.

!207 Leveza

Tendo reflectido sobre a multiplicidade como imperativo e necessidade ética na música de Luciano Berio, importa agora falar de uma outra característica, a Leveza. A leveza é objecto de ponderação tanto por Calvino como por Berio, ligando-se, em ambos, ao imperativo do esquecimento inerente ao fazer artístico, seja musical ou literário20. A leveza é como que a profundidade num sentido inverso, ou seja, a possibilidade que algo tem de encontro com outro aparentemente distinto, que se revela surpreendentemente próximo. Este encontro de realidades nudificadas, digamos assim, tornadas leves e portanto sem o peso da memória, tem o efeito de estarmos perante a promessa de um (re)começo, ou seja, perante a possibilidade de uma revelação, por provisória que seja. Vale a pena recordar as palavras de Hannah Arendt sobre a noção de liberdade como faculdade do começo, que Silvina Rodrigues Lopes cita no ensaio acima mencionado21:

No nascimento de cada homem este começo original é reafirmado porque em cada caso qualquer coisa de novo aparece num mundo já existente que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. É porque ele é um começo que o homem pode começar; ser um homem e ser livre são uma só e mesma coisa.22

Na sua conferência sobre esquecer a música23, Berio faz uma longa desconstrução do discurso historiográfico sobre a música, sublinhando a possibilidade que nos é dada para manipularmos a memória de forma salutar24, e fazendo depois referência à conferência de Calvino sobre a leveza, citando as suas palavras iniciais:

[…] a minha operação foi na maioria das vezes uma subtracção de peso; tentei tirar peso ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; sobretudo tentei tirar peso à estrutura do conto e à linguagem.25

20 Cf. CALVINO, Italo, “Leveza”, in Seis propostas…, op. cit., pp.15-44; BERIO, Luciano, “Forgetting Music”, in Remembering the future, op. cit., pp. 61-78. 21 LOPES, Silvina Rodrigues, op. cit., pp.11ss. 22 Hannah Arendt, apud LOPES, Silvina Rodrigues, op. cit.. p. 12. Tradução por Silvina R. Lopes, a partir do artigo em francês: Hannah Arendt, “Qu'est-ce que la liberté”, in La crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972, pp.188-220. 23 “Forgetting Music”, in Remembering the future, op. cit., pp.61-78. 24 Ibidem, pp.71-72. 25 CALVINO, Italo, “Leveza”, in op. cit., p.17.

!208 Berio acrescenta ainda a este exercício de desmemória (pedindo uma vez mais a palavra emprestada a Maria Gabriela Llansol) um outro de renúncia, como quem liberta o objecto que cria:

One of the conditions of lightness, I would like to add, is knowing how to withdraw respectfully, without rhetoric, from things, and knowing also how to voluntarily forget them, when the right time comes — "on tiptoe," Calvino would have said of one of his characters who departs headed for who knows where (as he himself sadly did, and all too early).26 Saber renunciar, saber esquecer voluntária- e discretamente não é uma postura de demissão face ao objecto que se cria, mas de entrega responsável da obra de arte ao seu caminho próprio, de pertença ao mundo. Este caminho é também o da sua recepção, que se reflecte numa mesma experiência estética do encontro enquanto recomeço, audição também ela despojada de memória e aberta ao novo. Não nos iludamos, não se trata de um exercício ligeiro, uma vez que também o arsenal de leitura, de escuta, a que estamos habituados não é suficiente para receber o que se desconhece. Daí que a leveza se ligue de forma inexorável a uma determinada forma de profundidade, ou fecundidade, que nos desinstala e obriga a olhar de outro modo para o objecto artístico: “a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca”27.

Tanto a desmemória, ou o tirar o peso da memória das coisas, como a renúncia, ou a entrega das coisas ao seu próprio caminho, só são possíveis com uma noção muito clara da economia, que reflecte, ela mesma, uma sabedoria no modo como se lida com o objecto artístico, não o desvirtuando na sua integridade. Porque o objecto de arte nos interpela, na sua construção e na sua recepção, obrigando-nos, na sua construção, a praticar a medida justa, e na sua recepção, a descobrir a medida justa. É esta noção de leveza que Calvino demonstra quando fala do mito de Perseu, o herói que corta a cabeça à monstruosa Medusa:

Sinto logo a tentação de descobrir neste mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do método a seguir ao escrever. Mas sei que todas as interpretações empobrecem o mito e o sufocam: com os mitos não podemos ter pressas; é melhor deixarmos que eles se depositem na memória, determo-nos a

26 BERIO, Luciano, “Forgetting Music”, in op. cit., pp.76-77. 27 CALVINO, Italo, “Leveza”, in op. cit., p.26.

!209 meditar em todos os pormenores, meditar neles sem sair da sua linguagem de imagens. A lição que podemos extrair de um mito assenta na literalidade da narrativa, não no que lhe acrescentarmos nós de fora.28 Em La vera storia há uma assinalável economia de meios, que se traduz num princípio de leveza que preside ao objecto sonoro e que garante o facto de poder voar, ou seja, de se poder transformar. Sublinhamos: a transformação de que o objecto sonoro beriano é capaz é um modo da leveza — e, visto sob uma outra perspectiva, a leveza é a condição sine qua non para a transformação do objecto sonoro beriano. E, se entre a primeira e a segunda parte do libreto da ópera podemos dizer que há uma redução significativa da informação que envolve os episódios, sendo a matéria disposta de um outro modo para nos levar a ver o que realmente importa, tornando-se cada vez mais leve – e, naturalmente, mais profunda! –, na música encontramos, desde logo na Parte I e de igual modo ao longo de toda a ópera, uma extraordinária leveza – ou faculdade de transformação – que preside aos diversos momentos que a constituem.

Ora, o aprofundamento que decorre desta sábia economia feita de desmemória e renúncia conduz-nos ainda ao aspecto da “gravidade sem peso” que habita a “multiplicidade das coisas”29 – ou o mundo – em La vera storia, podendo nós dizer desta ópera o que Calvino diz da melancolia de algumas das personagens de Shakespeare:

Assim, não é uma melancolia compacta e opaca, mas sim um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma poeira de átomos como tudo o que constitui a substância última da multiplicidade das coisas.30

28 Ibidem, p.18 29 Ibidem, p.34 e 35. 30 Ibidem, p.35.

!210 Rapidez

Outra das características que se ligam à ponderação ética da obra de Berio é a Rapidez. Começamos por citar Calvino, que comenta o seguinte, a partir de uma lenda sobre o imperador Carlos Magno, fixada de forma breve por Barbey d'Aurevilly:

Há uma sucessão de acontecimentos, todos fora das normas, que se encadeiam uns nos outros: a paixão de um velho por uma jovem, uma obcessão necrófila, uma propensão homosexual, e no fim tudo se resolve numa contemplação melancólica: o velho rei absorto à vista do lago. […] O que mantém esta corrente de acontecimentos é uma ligação verbal, a palavra "amor" ou "paixão" que estabelece uma continuidade entre diversas formas de atracção, e uma ligação narrativa, o anel mágico, que estabelece entre os vários episódios uma relação lógica, de causa e efeito.31 A rapidez anula o tempo, ou melhor, dispensa-o para dar o espaço necessário a uma determinada ansiedade que habita o objecto artístico e que desencadeia o movimento e agilidade com que as suas partes se desdobram, conferindo-lhes um carácter de imprevisibilidade que viabiliza a surpresa na recepção. A rapidez confere à experiência estética uma certa forma de intensidade, em que só parece acontecer o presente, e a memória – passada e futura – parece ser por ele cancelada. Pela imprevisibilidade e intensidade que o habita, o objecto artístico densifica-se, tanto na sua constituição como na sua recepção. Novamente, é flagrante a ligação com uma prática composicional comum na produção musical de Berio: falamos da forma aberta e do facto de, nela, a sucessão de acontecimentos, por mais lógica e consequente que seja do ponto de vista do compositor, não deixar de surpreender o receptor. Esta forma aberta, conceito gerado, como sabemos, por Umberto Eco, está muito bem documentada na conferência intitulada “O alter Duft”32. Dela diz Berio:

A conception of musical form that tends toward openness implies the desire – if not exactly the possibility – to follow and develop formal pathways which are alternative, unexpected, non-homogeneous, and most important, not linear.33

31 CALVINO, Italo, “Rapidez”, in op. cit,, p. 48. 32 BERIO, Luciano, “O Alter Duft”, in op. cit., pp.79-98. 33 Ibidem., p.80.

!211 A rapidez é co-responsável por este efeito de sucessão de que Berio fala, pois através dela o tempo parece contrair-se e dilatar-se de uma forma imprevisível. Citamos novamente Berio no mesmo ensaio, ainda na sua reflexão sobre a forma aberta (de que cada uma das suas catorze Sequenze são o exemplo mais claro34):

We have on the one hand a virtual and indecipherable "macroform", and on the other an easily perceptible and segmentable "microform". Let us imagine that it is our intention to relate, not by simple superposition, those two distant and mutually indifferent worlds which are governed internally by chance. Let us imagine, on the one hand, reading the macroform with the help of the homogeneous segmentations and details of the microform; and on the other hand, imposing the chaotic and frenetic pace of the video-clip on the microform — that is, on the impassive face. Among the various imaginable outcomes, there is one which promises to be more interesting and more expressive than the others: by means of the exchange of the two temporal dimensions, the two worlds, not in the least similar, meet and join hands, giving musical sense to temporary openings and closings, confirming, if it were necessary, that the musical sense lies above all in the entente, in the meeting, even if entrusted to chance, between macro and micro dimensions.35 Na citação acima, onde dois mundos irredutivelmente diversos se revelam construtores de significado no momento do seu encontro, encontramos um duplo apelo: i) para encararmos o tempo fora dos limites da nossa experiência pessoal; e ii) para percebermos que, claramente, a sucessão de eventos no mundo nos excede. E quando falamos de forma aberta, falamos de duas coisas: o seu fazer e a sua leitura. Esta última é algo de fundamental na mensagem ética de obras como, por exemplo, Sequenza I per flauto (1958), porque, nesta obra está, sobretudo, uma imagem de tempo nova, e não uma qualquer complexificação de um todo uno, corporeizada num tempo cronológico — uma imagem da simultaneidade dos tempos para onde aponta a citação de Berio acima, portanto. Quando lemos Berio a falar da forma aberta na sua conferência de

34 Gostaríamos, a este propósito dizer como urge considerar obras como Laborintus II sob este prisma da obra aberta e tendo como ponto obrigatório de referência as Sequenze. 35 Ibidem, pp.96-97.

!212 Harvard, parece-nos que está a comentar esta sua peça, que, aliás, é um dos exemplos de obra aberta dados por Umberto Eco no seu conhecido livro Opera aperta (1962)36.

De resto, tanto a Parte I como a Parte II de La vera storia são uma lição de rapidez, num sentido muito diferente da Sequenza I per flauto — os objectos são instrumentos do devir constante que marca esta ópera. E, se na Parte I presenciamos a sucessão de pequenos episódios isolados e naturalmente rápidos, na Parte II vemos a transformação rápida de objectos noutros objectos, praticada com invulgar mestria por Luciano Berio, de que é exemplo a “Scena VII”, que cita e reduz a Sequenza IX per clarinetto. Uma mestria análoga à de Xerazade, sobre a qual Calvino diz:

A arte que permite a Xerezade salvar a vida todas as noites reside no saber encadear uma história na outra e no saber interromper-se na altura certa: duas operações sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo. É um segredo de ritmo, uma captação do tempo […].37 E acrescenta, ainda sobre a importância do ritmo como um dos traços fundamentais da rapidez:

Todos conhecem a sensação de mal-estar que se experimenta quando alguém pretende contar uma anedota sem ser capaz, falhando os efeitos, ou seja, sobretudo os encadeamentos e os ritmos.38 Este aspecto do ritmo discursivo é, em Berio, algo de absolutamente decisivo, pois dá a ver uma consciência do tempo que habita as coisas, independentemente do seu conteúdo particular. A consciência de que, para além daquilo que se pretenda dizer musicalmente, o tempo que essa mensagem musical ocupa é, em si mesmo, portador de significado. Se em John Cage esta questão do tempo se tornará decisiva, tendo a sua maior concretização em obras como 4'33" (1952), em Luciano Berio a sua estreita relação com os materiais sonoros, que ditam a sua característica de leveza discursiva, é algo que nunca será demais sublinhar.

36 A edição em portugês desta obra: Obra Aberta, trad. João R. N. Furtado, Lisboa: Difel, 1989. A este propósito, poderíamos recordar uma ideia expressa por Luciano Berio sobre Webern, num seminário integrado num curso de composição de Franco Donatoni que frequentámos na Accademia Chigiana em Siena em 1995. Berio descreveu um novo modo de ouvir que é inaugurado com Webern, e que é o modo da simultaneidade divergente, não cronológica. Este modo de ouvir é levado a outras consequências quando estamos perante uma forma aberta, porque uma entidade pode iluminar a outra. 37 CALVINO, Italo, “Rapidez”, in op. cit,, p. 53. 38 Ibidem, p.53.

!213 Rapidez e leveza perfazem, assim, dois princípios activos na constituição da obra de arte enquanto começo, no sentido em que ao objecto artístico é dada a vocação de fazer parte desse turbilhão que é o mundo — porque, como refere com toda a pertinência Silvina Rodrigues Lopes, “um começo é isso – não a origem, mas o devir enquanto força de disrupção dos contextos, das referências, das destinações”39.

39 LOPES, Silvina Rodrigues, “A Literatura como Experiência”, in op. cit., p.32.

!214 Exactidão

E com estas palavras, passamos ao princípio da Exactidão. Se nos princípios anteriores vemos já o exercício pleno da prática da contradição, para melhor iluminar as suas propostas40, aqui Italo Calvino vai mais longe e prefere começar pelo elogio do vago, a partir de Leopardi, para melhor descrever esta proposta41. Retomando o que escrevemos atrás, a exactidão e a visibilidade são princípios que se encostam irremediavelmente aos seus contrários. No entanto, vago e exacto não são propriamente atributos opostos, sendo um absolutamente necessário para que o outro exista. Melhor, a sua eventual conflitualidade, por serem contrários, não os torna mutuamente exclusivos, antes faz sobressair a sua reciprocidade. Escreve Calvino:

Assim Leopardi, que escolhi como contraditor ideal da minha apologia da exactidão, revela-se uma testemunha decisiva a meu favor... O poeta do vago só pode ser o poeta do preciso, que sabe captar a sensação mais subtil com olhos, ouvidos e mãos prontos e seguros.42 É curioso verificar como a estupenda permeabilidade ao mundo, ou melhor, à imanência, dita igualmente a capacidade de o dizer em detalhe. E no entanto, o que advém deste processo, o objecto artístico, não pode deixar de ter significados imprecisos. Parece uma contradição de termos pensar-se no mergulho que constitui o processo de formação do objecto artístico, com todo o rigor e precisão que este exige, e presenciar, de seguida, como que um desdobramento de sentidos não completamente identificáveis. Mas, assim como Calvino convoca o vago para poder falar do preciso / exacto, também Berio, na sua primeira conferência de Harvard, faz uma longa reflexão a que dá o nome de “Formations”43, e que dificilmente se consegue resumir num ou dois temas, tal é a profusão de questões que se vão levantado e encadeando num caminho que desde o seu início se mostra sem rumo aparente. No entanto, Berio aborda, aqui mais do que em qualquer outra lição, o fazer musical na sua mais elementar concretude,

40 A propósito da Leveza, Calvino começa por descrever aturadamente o modo como procurou subtrair o peso das coisas, descrevendo também esse mesmo peso; e a propósito da Rapidez, Calvino termina com uma deliciosa narrativa, muito curta, sobre o tempo que levou Chuang-Tsu a desenhar um caranguejo a pedido do rei: num instante, num único traço, e no entanto antecipado por dez anos de espera. 41 CALVINO, Italo, “Exactidão”, in op. cit., pp.71-97. 42 Ibidem, p.78. 43 In Remembering the Future, op. cit., pp.1-30.

!215 para concluir que, entre o fazer e o ouvir, a música compreende processos objectivos e exactos, na certeza absoluta, porém, de que constrói, com isso, significados não verbalizáveis, e portanto, não objectiváveis, ou seja, vagos. A exactidão e o vago estão no coração da música.

Não espanta, pois, que Berio descreva o processo de construção de uma prática musical enquanto revê todas as consequências, que nós diríamos infinitas, deste processo, parando a sua descrição processual no momento em que o seu resultado se realiza; e, aí, fala de “gesto”, “fusão”, “ruído”, “acontecimento”, terminando numa analogia com o cinema, e falando de “linhas de movimento” — nada mais vago, portanto:

Let's imagine a pitch-cell, for instance, or a pitch-sequence that generates melodies, figures, phrases, and harmonic processes. A rhythmic configuration shapes those melodies and generates patterns, time glissandos, and discontinuous or even statistical distributions of those same melodies and figures. Dynamic layers, instrumental colors and techniques, can nullify or enhance the individual characters of each process, the nature of their evolution, and the degree of their independence. […] To think out music entails separating those processes but, also, cultivating an inner, implicit dialogue among them, a polyphony made of varying degrees of interaction which, on occasion, can explode and absorb everything in a dazzling, synthetic gesture. Simple, neutral, and periodic pitch and time relations, situated in a homogeneous timbric and dynamic texture, will fuse into transparent events, colored by the given harmonic relations. Complex and discontinuous intervallic and rhythmic relations, distributed among very diversified instrumental forces, will fuse into a noise. These explosions, these all-embracing gestures, are analogous to the speeding up of a visual sequence in a film, where specific details will be transformed and blend into lines of movement.44 Esta citação, que parece ser a descrição do início de Formazioni (1987) ou um manual de composição ao estilo de Luciano Berio, com toda a multiplicidade envolvida, pára onde encontra a significação do objecto musical, porque não é possível delimitar esse significado. Ou seja, ele existe, mas não é possível descrevê-lo em rigor. Podemos, por

44 BERIO, Luciano, “Formations”, in op. cit., pp.13-14. Veja-se, por analogia, a descrição por Calvino do seu processo de escrita na conferência sobre a Visibilidade, onde, curiosamente, Calvino 'padece' de um mesmo rigor que encontra os seus limites no corpo vago e inexacto que é a imagem de onde parte para a escrita (cf. CALVINO, Italo, “Visibilidade”, in op. cit., pp.108-110).

!216 isso, dizer que o objecto musical beriano é a concretização do que Calvino quer dizer quando descreve a exactidão e o vago: quanto mais exacto é o objecto, mais vagas são as suas consequências. As implicações éticas desta constatação são enormes, a começar pela própria relação do compositor com a sua obra, que em Berio se pode dizer que é marcada pela despossessão, palavra magistralmente aplicada por Silvina Rodrigues Lopes à escrita de Maria Gabriela Llansol45, mas que aqui se nos afigura igualmente oportuna. Falar de despossessão é falar da humildade que inevitavelmente habita o seu criador: “Mesmo quando o autor se arroga o papel do ditador, se a obra existe ela resiste a essa arrogância”46.

E é precisamente um mesmo espírito de despossessão presente na relação do escultor Rui Chafes com a sua obra que o leva a redigir a sua biografia nos seguintes termos:

Nasci em 1266, numa pequena aldeia, que já não existe, na Francónia, na Baviera. Os meus Pais eram muito pobres, de uma família de camponeses e artesãos, e a vida era extremamente difícil, tal como hoje a vida continua a ser difícil […]. Esse abade não só me deu condições para desenvolver o meu talento artístico […]. Aprendi a ler apenas aos 18 anos, com muito esforço […]. Entretanto, tinha começado a trabalhar em várias oficinas de escultura […]. Com 20 anos fui trabalhar nas esculturas que estavam a ser realizadas para a ala oeste da Catedral de Naumburg. Fui encarregado, pelos Mestres, de trabalhar na execução das duas estátuas de dois dos patronos fundadores daquela Igreja: “Ute e Ekkehard II”. […] dirigi-me a Itália onde em Lucca, por volta de 1406 a 1407, tive a enorme ventura de trabalhar na execução do Túmulo de Ilaria del Carretto, do Mestre Jacopo Della Quercia. […] Regressando à minha origem, a Francónia, retomei o meu caminho […]. Procurava ardentemente um Mestre, alguém que me mostrasse qual o sentido da minha busca […]. Um dos grandes Mestres desse tempo, que admirava com o fervor infinito com que ainda hoje admiro, era Tilman Riemenschneider, o Mestre de Würzburg. O meu sonho de jovem era poder um dia trabalhar com ele e, sorte minha, com a influência do meu protetor no seio do Clero da Francónia, consegui ser contratado pelo Mestre. […] Por volta de 1530, […] dirigi-me para França, onde estavam em curso grandes realizações de arquitetura e de escultura. […] Entre os muitos escultores […] encontrava-se um

45 LOPES, Silvina Rodrigues, Teoria da Des-Possessão (ensaio sobre textos de Maria Gabriela Llansol), Lisboa: Black Sun Editores, 1988. 46 LOPES, Silvina R., “A Literatura como Experiência”, op. cit.. pp.31-32.

!217 famoso Mestre florentino […] Jean Juste (Giovanni di Giusto Betti). […] Depois de algumas diligências, consegui ser aceite por ele para trabalhar na sua oficina na execução do túmulo de Louis XII e de Anne de Bretagne. […] Depois de terminada essa obra, ainda tive o privilégio de trabalhar com o grande Mestre francês Germain Pilon na execução do primeiro túmulo de Henri II e Catarina de Médicis, terminado em 1570. […] Dirigi-me pois, como muitos alemães já o fizeram, a Roma. […] Quis, no entanto, o destino que, de forma inesperada, eu me cruzasse com a oficina de Gian Lorenzo Bernini, provavelmente o mais genial de todos os geniais artistas daquele tempo. […] Trabalhei na sua oficina, por volta de 1622 e 1623, na dificílima realização da escultura “Apolo e Dafne”. […] Só por volta de 1795 senti que, finalmente, estava a encontrar de novo o caminho que tinha perdido. Esses eram os anos da “revolução romântica” e todo um grupo de filósofos, pensadores, poetas e artistas […]. Entre eles havia um jovem engenheiro de minas, muito entusiasmado e sensível, que parecia ser uma aparição de um outro mundo. Chamava-se Georg Philipp Friedrich von Hardenberg mas escolheu o nome Novalis para renascer para o Mundo. […] Tendo permanecido na Alemanha, abraçado para sempre a essa “Mãe pálida”, ainda trabalhei com Philip Otto Runge, em 1808, na elaboração dos desenhos e gravuras do seu longo projeto “As horas do dia”. […] Nestes últimos anos tenho, finalmente, tentado trabalhar em coisas minhas, depois de tantos anos a trabalhar para os outros artistas. […] Depois de tantos anos a trabalhar com grandes Mestres, estou em situação de, pelo menos, ter esperança de conseguir fazer alguma coisa minha, de conseguir criar um dia alguma escultura válida. […] No entanto, não estou angustiado. Sei que estamos todos entre o céu e a terra. E, seja como for, “estamos sós com tudo aquilo que amamos”, como escreveu Novalis. Muito obrigado a todos!47 O longo passo que acabamos de citar reflecte de modo claro as implicações éticas de que estamos a falar: um nome nunca está só nem vive uma só vida, ou seja, numa só vida reverberam uma míráde de tempos e espaços. Esta simultaneidade, ou contemporaneidade firmada por Chafes na sua biografia, constrói-se não só a partir da linhagem de nomes que acima reproduzimos, mas também da sua descrição minuciosa (que aqui, por motivos óbvios de economia de redacção, não citamos). Rui Chafes não abdica de nos falar com todo o rigor do fazer escultórico presente nesta linhagem biográfica, tal como acima vemos acontecer na citação de Berio. Regressamos, de novo, ao imperativo da exactidão. Uma exactidão que ultrapassa qualquer noção de realidade

47 CHAFES, Rui, Entre o Céu e a Terra (História da minha vida), Lisboa: Documenta, 2012. Texto proferido no ciclo 100 Lições, pelos 100 anos da Universidade de Lisboa, em 2011; acessível em: http:// www.snpcultura.org/rui_chafes_entre_o_ceu_e_a_terra.html

!218 tal como a encaramos comummente, para percebermos que afinal são esses “existentes-não-reais” (Maria Gabriela Llansol48) que nos integram verdadeiramente no devir do mundo.

É este o mundo em que vivemos. Um mundo que é o mesmo de homens que nos dizem que são nomes do passado, como se a realidade pudesse ser encarada como algo em evolução e como se o tempo só pudesse ter uma direcção — diríamos, com Silvina Rodrigues Lopes: se a obra de arte existe, ela resiste a esta voracidade do tempo e do espaço. Vale a pena, neste contexto, remeter de novo para o pensamento de Walter Benjamin sobre a história, debatido no capítulo anterior, e sublinhar a sua proximidade com a noção que Berio cultiva do tempo e do espaço na sua música, aturadamente confirmada ao longo das suas «Norton Lectures». No prefácio à edição das mesmas, não é por acaso que Talia Pecker Berio nos diz o seguinte:

This interplay of past and present, of remembering and forgetting, is ever present in the following pages, but it is always underpinned by an unshakable faith in the future, and in the power of music to cross distances, to give voice and shape to that interplay and faith.49

48 LLANSOL, Maria Gabriela, Lisboaleipzig 1. O Encontro Inesperado do Diverso, op. cit., p.129. 49 BERIO, Talia Pecker, “Preface”, Remembering the Future, op. cit., p.VII.

!219 Visibilidade

E, pela mão de Italo Calvino, chegamos à última das características que temos vindo a debater neste capítulo: a Visibilidade. Estas características, sublinhamos mais uma vez, têm implicações de ordem ética que nos interessa aqui debater, para além de questões de ordem meramente estética ou teórica. De resto, o debate que possamos fazer sobre questões estéticas ou teóricas só é íntegro se atendermos aos aspectos éticos que as norteiam. Calvino começa a sua conferência ligando, sem quaisquer rodeios, a visibilidade à fantasia, inspirando-se, para tal, num verso enigmático retirado do Purgatório (Divina Comédia) de Dante Alighieri: “A minha conferência de hoje partirá desta constatação: a fantasia é um lugar onde chove lá dentro”50. Isto significa duas coisas: por um lado, a fantasia é algo de muito rápido, que parece escapar ao controlo daquele que a tem; por outro lado, a fantasia é feita da associação de elementos cujo contorno não é nítido e cuja origem está para além de quem imagina. A reflexão aturada que Calvino faz na sua conferência sublinha alguns aspectos fundamentais para se entender como a visibilidade se clarifica pela fantasia. Esses aspectos são, nomeadamente, que i) a fonte da fantasia brota em qualquer contexto, que ii) nos é dada, incondicionalmente, a faculdade de fantasiar, por mais condicionada exteriormente que esta seja, que iii) a força de fantasiar transcende o seu sujeito, e que iv) não é totalmente visível a fonte de onde brota a imaginação (remetendo Calvino, neste aspecto, para Douglas Hofstadter51):

[Traduzindo os versos que cita de Dante:] Ó imaginação, que tens o poder de impor-te às nossas faculdades e à nossa vontade e de nos arrebatar para um mundo interior roubando-nos ao mundo externo, de modo que mesmo se soassem mil

50 CALVINO, Italo, “Visibilidade”, in op. cit., p.101. É curiosa a proximidade desta afirmação com a constatação inicial de Ettore Finazzi-Agrò sobre a memória, numa conferência que deu nos Cursos da Arrábida em 1996 sobre a memória na Idade Média, desta feita inspirada em Baudelaire: “A memória é um lugar onde chove dentro”. Cf. “«Sylvae».Os (des)caminhos da memória e os lugares da invenção na Idade Média”, in A História: Entre Memória e Invenção, org. de Pedro Cardim, Lisboa:Publicações Europa-América, 1998, p.61. 51 “Think, for instance, of a writer who is trying to convey certain ideas which to him are contained in mental images […] But does he know where it all came from? Only in a vague sense. Much of the source, like an iceberg, is deep underwater, unseen — and he knows that.” — esta citação das palavras de Hofstadter por Calvino (p.107) surgem em Gödel, Escher, Bach: An eternal golden braid. A metaphorical fugue on minds and machines in the spirit of Lewis Carroll, Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1979, p.713.

!220 trombas não daríamos por isso, donde provêm as mensagens visuais que recebes, quando não são formadas por sensações depositadas na memória? (p.102) Donde provêm as imagens que “chovem” na fantasia? Dante tinha muito correctamente um elevado conceito de si mesmo, de modo a não ter escrúpulos em proclamar a directa inspiração divina das suas visões. Os escritores mais próximos de nós […] estabelecem ligações com emissores terrestres, como o inconsciente individual ou colectivo, o tempo reencontrado nas sensações que afloram do tempo perdido, as epifanias ou concentrações do ser num único ponto ou instante. Em resumo, trata-se de processos que mesmo não partindo do céu transbordam das nossas intenções e do nosso controlo, assumindo em relação ao indivíduo uma espécie de transcendência. (pp.106-107) [Sobre os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola:] Aqui também o ponto de partida e o de chegada já estão anteriormente determinados; no meio abre-se um campo de possibilidades infinitas de aplicação da fantasia individual, na figuração de personagens, lugares, cenas em movimento. (p.106) […] o discurso por imagens típico do mito pode nascer em qualquer terreno: até da linguagem mais afastada de qualquer imagem visual, como a da ciência de hoje. (p.109) O princípio da visibilidade inerente à obra de arte realiza-se plenamente, portanto, quando precisamente a camada não visível e menos manobrável do fazer artístico entra em diálogo com todo o aparato técnico e estilístico da escrita, interferindo nele. Mais uma vez, é curioso notar que o procedimento composicional de Luciano Berio está estreitamente relacionado com a visibilidade de que Calvino fala nas suas propostas. Nomeadamente, ao ser permeável a uma intuição, que, a par do rigor da sua prática musical, tece um objecto onde a diversidade de materiais e de técnicas composicionais são relacionados e postos a operar numa obra cunhada pela sua forma aberta. Sim, falamos de novo da forma aberta, que tanto acompanhou Berio desde as suas primeiras obras. La vera storia não é, de todo, alheia a este aspecto, pese embora a maior simplicidade de materiais que patenteia, por contraste a outras obras deste compositor (como, por exemplo, as suas Sequenze). Não é de admirar, portanto, que David Osmond-Smith fale de um “código” onde são como que encrustadas diversas técnicas e diferentes materiais composicionais, acabando Berio por mergulhar num mundo em que estes só são relacionáveis através da pura intuição:

!221 In a musical construction, local and momentary disorders must be able to interact with equally temporary regularities, synchronies, recurrences, and symmetries — just as, in language, sounds on the one hand and noises on the other, vowels and consonants, periodicity and statistical distribution, interact and interpenetrate with each other. Just as, finally, the idea of open form must be able to compete, not to say alternate, with the idea of closed form. Certainly, they are conflicting experiences, but they are also complementary, for better or for worse they are inseparable, and, more often than might be expected, they may need each other. The "unfinished" in music is an ambiguous and contradictory dimension. Maybe it doesn't exist. It is contradictory because it conflicts with the desire to complete and, temporarily at least, to conclude a musical work. It is ambiguous because, though it may be the child of chance, though it may dwell within an "open form", it cannot dispense with the experience of "closedness".52 Não espanta, por isso, que Berio alerte para o lado marcadamente pedagógico de se saber lidar com a forma aberta, cuja importância extravasa o aspecto epocal, estético e formal, a que normalmente é associada:

For example, it can educate children toward purposeful listening; it can give them practice in making choices, in reacting spontaneously, in distributing the bricks and mortar of music, which can be transformed and combined according to different criteria.53 Esta pedagogia não está só ligada ao aspecto da recepção, mas também ao próprio fazer musical:

[…] "open form" can become a useful substitute for or a complement to the ancient exercises of keyboard bass harmonization, or an extension of certain aspects of jazz improvisation. I am not saying this as a provocation or out of a taste for paradox.54 Mas depois de realçar os seus aspectos pedagógicos, Berio não hesita em sublinhar o seu aspecto profundamente ético. Por isso, acrescenta:

I believe that the experience of "open form," of the "work in progress," of the "unfinished" may only contribute to recovering an ephemeral, lucid, and transitory dimension of musical experience – setting aside all aspiration to an idea of eternity – and educating us instead to think of the work as an agglomeration of

52 BERIO, Luciano, “O Alter Duft”, in op. cit., pp.88-89. 53 Ibidem, p.97. 54 Ibidem, p.97.

!222 events, without any prearranged center; events which nonetheless find, locally and sometimes surprisingly, their connections, their necessities, and, occasionally, their beauty.55 A forma aberta associa-se, portanto, a uma postura ética, a um princípio de necessidade, e não apenas a um traço estético ou formal ou de teoria composicional que se trabalha em cada nova obra. Trata-se de um princípio que norteia o modo de fazer e de ler o objecto artístico, o possível para Luciano Berio, se queremos que o objecto artístico se integre no tecido político de onde brota, se queremos que esteja no mundo de onde nasce. Calvino também não é alheio a esta abertura do objecto artístico, quando diz do seu processo de escrita, sublinhando de novo a primazia da experiência sobre o espartilho do sistema, e reflectindo inteiramente a relação entre carácter aberto e fechado da obra de arte, descrita com rigor por Berio na citação que fizemos acima.:

[…] o que eu faço é tentar estabelecer os significados que podem ser compatíveis, e os que não podem sê-lo, com o desígnio geral que eu queria dar à história, deixando sempre uma certa margem de alternativas possíveis.56 Dadas estas questões que acabamos de debater sobre a visibilidade no objecto artístico, não podemos deixar de convocar, de novo, o conceito de Sensação de Gilles Deleuze e Félix Guattari (vd. capítulo I). Porque pensamos que tudo o que acima se diz sobre o carácter não completamente discernível ou manobrável do poder da imaginação, sobre o seu traço transcendente – e que tem lugar tanto no processo do fazer artístico, como é despoletado no processo de recepção do objecto que dele resulta – se liga definitivamente à sensação que caracteriza o campo da arte. Tendo como pano de fundo este conceito, entendemos de uma outra forma as palavras de Calvino a propósito do poder da imaginação:

Contudo, as soluções visuais continuam a ser determinantes, e por vezes chegam inesperadamente a decidir situações que nem as conjecturas do pensamento nem os recursos da linguagem conseguirão resolver.57 E, na mesma linha de raciocínio, Berio escreve, referindo-se à linguagem analítica:

55 Ibidem, pp.97-98. 56 CALVINO, Italo, “Visibilidade”, in op. cit., p.109. 57 Ibidem, p.110.

!223 I don't believe that thought is a form of silent speech: we can think and conceptualize music without referring to speech. Music evades verbal discourse and tends to spill over the edges of any analytical container. […] In language, a word implies and excludes many different things, said and unsaid, and the name of a thing is not the thing itself. Whereas the musical "word", the musical utterance, is always the thing itself.58 Outro aspecto que importa aqui trabalhar, a propósito da visibilidade nas propostas de Calvino, é o da concepção do sistema que preside ao fazer artístico em Luciano Berio. La vera storia representa um momento fulcral nesta concepção do sistema, nomeadamente naquilo que propõe como forma de articulação de diferentes sistemas. Mas, mais do que a fuga ao sistema dodecafónico herdado de Schoenberg, e que é objecto de reflexão no seu texto Meditazione su un cavallo a dondolo dodecafonico59, cremos que Berio refuta a existência de qualquer sistema como exclusivo, cristalizado, na constituição do objecto sonoro, recusa esta que é axial para entendermos a sua estética. Portanto, o sistema deve ser algo em construção e deve permanecer aberto. Concretizamos: não é o resultado que deve redundar numa forma aberta, mas sim o sistema que deve, graças à sua incompletude e complexidade particulares, redundar em algo que, por definição, e uma vez mais por questões éticas, não pode estar concluído ou fechado. Algo com o qual a única forma de procedimento é aquela baseada na imaginação e na intuição.

Temos, portanto, que, se há uma concepção de sistema em Schoenberg que propicia uma luta entre o criador e o sistema por ele erigido, há uma concepção de sistema em Berio que favorece a potenciação da liberdade humana. Esta concepção de sistema não implica, naturalmente, qualquer crítica a compositores que optam pela criação de sistemas, mas é algo de fulcral em Berio, que o estimulará no diálogo com outras artes, músicas, e não em qualquer tipo de diálogo consigo próprio e com o seu sistema. Mas é também aquilo que mais perplexidades levanta em relação à sua prática musical, que parece muitas vezes ser assistemática e inclassificável. É precisamente neste ponto que devemos pensar num outro modo de ler a música beriana, seguindo

58 BERIO, Luciano, “Formations”. in op. cit., pp.10-11. 59 BERIO, Luciano, Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, Intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013. Este texto, em particular, surge nas pp.37-41 [1965] e 434-439 [1968].

!224 pressupostos que possam ir ao encontro desta fenomenologia do diverso que a caracteriza, e onde a busca de definição e classificação do(s) sistema(s) eventualmente praticado(s), pretendendo com tal o estabelecimento de hierarquias, resultará num equívoco. Esta superação do próprio conceito de sistema não se faz por defeito, mas por excesso. Não existe, portanto, uma ausência de sistemas, mas uma articulação de práticas musicais que se evita que sejam petrificadas por qualquer sistema. Esta ideia tem sido defendida ao longo do nosso trabalho, onde temos tentado encontrar uma outra chave de leitura do objecto sonoro beriano e suas implicações políticas e éticas. O sistema é visto, assim, como chemin (pedindo o termo emprestado a um dos nomes que marca várias das suas obras) para a possibilidade de não haver sistema ou de presenciar a sua dissolução.

Ainda na linha de reflexão sobre a concepção do fazer musical em Berio – por natureza sem um só sistema que o designe –, diríamos que o objecto sonoro beriano se comporta como algo que, feito do encontro de materiais aparentemente díspares e muito diversos, sob um certo prisma considerados inconciliáveis, se move no entanto como um corpo intrinsecamente uno e coerente, se bem que extrinsecamente em constante devir, e portanto de definitiva incompletude — e, por isso mesmo, um corpo que não impõe uma só possibilidade, nem exclui uma miríade de possibilidades de ser. Ora, vale a pena apontarmos para a razão espinosiana que subjaz a este comportamento; um comportamento de natureza relacional, e onde se pratica o que Espinosa apelida, no seu Tratado da Reforma do Entendimento o “conhecimento reflexivo” (entre os parágrafos 38 e 4160):

[…] Se, por conseguinte, existisse algo na Natureza sem qualquer relação com as outras coisas, e se dessa coisa existisse uma essência objectiva – que teria de ajustar-se totalmente com a formal – estaria também sem qualquer comércio com as outras ideias, isto é, dela nada poderíamos concluir. Pelo contrário, as coisas que têm relação com outras, como são todas as que existem na Natureza, serão compreendidas e as suas essências objectivas terão a mesma relação com outras ainda: desta forma se desenvolverão os instrumentos para avançar mais. [parágrafo 4161]

60 ESPINOSA, Bento de, Tratado da Reforma do Entendimento e do Caminho para se Chegar ao Verdadeiro Conhecimento das Coisas, tradução de Abílio Queirós, Lisboa: Edições 70, 1987, pp.42-44. 61 Ibidem, p.44.

!225 Mas Espinosa vai mais longe na consideração do que é a adequação e verdade da ideia, permitindo que mesmo a ficção, ou melhor, a força da imaginação, possa servir a ideia verdadeira, que é o mesmo que dizer a integração do ser na natureza. No seu Tratado… a dada altura Espinosa dá o exemplo da ideia de esfera a partir de uma ficção (feita do encontro entre a ideia do semicírculo, a ideia de movimento e a ideia de quantidade), esclarecendo que não é matematicamente desse modo que a natureza concebe a ideia de esfera (entre os parágrafos 71 e 7262). Quando é a conjugação entre vários elementos díspares que resulta na ideia verdadeira de determinada realidade ou objecto, Espinosa demonstra que a mente humana, mais do que meramente abstrair ou operar raciocínios matemáticos consequentes, consegue ir mais longe na sua reflexão. Sublinhe-se, o intuito do Tratado… de Espinosa, assim como o da sua Ética, é que o ser humano saiba entender com rigor a realidade que o envolve num caminho de encontro à beatitude, tentando denunciar os tremendos mal-entendidos em que a razão humana cai, sofrendo com isso — é uma questão ética que move o pensamento de Espinosa, e portanto a sua tese relacional é um caminho ostensivamente proposto para servir este mesmo intuito, e não uma questão a debater entre matemáticos e filósofos do seu tempo. Espinosa valoriza a potência do entendimento, ou melhor, opera um “tridimensionamento” da ideia (Cristiana Vasconcelos Rodrigues), de consequências imprevisíveis. Citamos as palavras de Cristiana Vasconcelos Rodrigues a este propósito:

Com este salto, Espinosa viabiliza toda a ficção que remeta para a natureza e para a simultaneidade de todas as coisas, ao contrário do movimento da abstracção (parágrafo 102). Espinosa deixa bem claro, de resto, que não se trata, ali, de abstrair a esfera da sua natureza verdadeira, mas de potenciar o entendimento sobre a esfera, e aprofundar assim o seu conhecimento real e verdadeiro, operando uma forma de intelecção não meramente lógica e racional, mas radicada no retorno constante aos “elementos primeiros de toda a natureza” (parágrafo 75), verdadeiros e simples, e ficcionando, ou usando a imaginação no sentido dessa mesma verdade.63

62 Ibidem, pp.66-68. 63 RODRIGUES, Cristiana Vasconcelos, O atrito do mundo. Espinosa e Hölderlin pela mão de Llansol, diss. doutoramento, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2006, p.198.

!226 Estamos, portanto, de novo muito próximos da ideia de Italo Calvino sobre qualquer terreno poder fazer brotar a fantasia64:

A mente do poeta, assim como em certos momentos decisivos a mente do cientista, funcionam de acordo com um procedimento de associações de imagens que é o sistema mais rápido de associar e escolher as infinitas formas do possível e do impossível. A fantasia é uma espécie de máquina electrónica que tem em conta todas as combinações possíveis e escolhe as que correspondem a uma finalidade, ou simplesmente que sejam as mais interessantes, agradáveis e divertidas.65 Não querendo levar a uma antítese maniqueísta a nossa reflexão (que, de resto, não acolhe de bom grado opostos binários, pois muitas vezes escamoteiam a natureza complexa de todas as coisas), poderemos considerar Luciano Berio um compositor mais próximo de uma intelligentia espinosiana, por contraste com uma razão mais sistemática que se deve a Descartes e à sua dúvida metódica. Sobre Descartes escreveu Peter Sloterdijk com surpreendente perspicácia:

Enquanto criador do mito analítico, Descartes como que criou a metafísica da criação de máquinas, ao começar por dividir tudo o que existe nas mais pequenas e simples partes e procurar dar a conhecer as regras que regem os compostos dessas mesmas partes. Na medida em que obrigou o pensamento a andar de lá para cá, entre a análise e a síntese, tornou a própria razão conforme ao engenheiro e retirou-lhe o antigo ócio contemplativo. Os pensamentos tornaram-se então formas interiorizadas de trabalho, e a própria vida do espírito foi posta na via de produção de objectos úteis.66 Atrever-nos-íamos a acrescentar que, ao longo do século XX e na música em particular, esta herança positivista e mecanicista de Descartes – que, recordêmo-lo, se baseia na submissão dos elementos menores aos maiores, cuja exclusividade se afasta do “conhecimento reflexivo” de Espinosa –, ainda reverberou na obra de muitos compositores.

Cabe-nos, finalmente, focar um último aspecto que a reflexão sobre a visibilidade de Italo Calvino nos inspira. Falamos do novo, ou seja, da possibilidade que

64 CALVINO, Italo, “Visibilidade”, in op. cit., p.109ss. 65 Ibidem, p.111. 66 SLOTERDIJK, Peter, Temperamentos Filosóficos. Um Breviário de Platão a Foucault, tradução de João Tiago Proença, Lisboa: Edições 70, 2012, p.42.

!227 a obra de arte tem de constituir algo de novo nos nossos dias, centrando uma vez mais este debate no nosso caso de estudo. E começamos outra vez com Calvino, já que na sua conferência se questiona, precisamente, sobre a possibilidade de a imaginação operar num tempo (quase) totalmente dominado pela imagem:

[…] perguntemo-nos como se forma o imaginário de uma época em que a literatura já não faz referência a uma autoridade ou a uma tradição como sua origem ou fim, mas sim toma como mira a novidade, a originalidade e a invenção. […] qual será o futuro da imaginação individual na que se costuma chamar “civilização da imagem”? Se incluí a Visibilidade na minha lista de valores a salvar é para advertir do perigo que corremos de perder uma faculdade humana fundamental: o poder de focar visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas da partir de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros numa página branca, de pensar por imagens.67 É o próprio Calvino quem responde a estas preocupações, apontando precisamente para a potência geradora da imagem que, na fantasia, nunca assume contornos plenamente definidos:

Mas há outra definição em que me reconheço plenamente, que é a da imaginação como repertório do potencial, do hipotético, do que não é nem foi nem talvez seja alguma vez, mas que poderia ser. […] Ora eu creio que para todas as formas de conhecimento é indispensável atingir este golfo da multiplicidade potencial.68 Ao apontar, e bem, para o “perigo” de perdermos a faculdade de “pensar por imagens”, na verdade a preocupação de Italo Calvino dirige-se mais para o modo como olhamos o objecto artístico, conduzindo a sua reflexão para um patamar ético — Calvino fala aqui do objecto de arte enquanto acontecimento, enquanto portador do novo nos dias de hoje, denunciando o equívoco da “novidade” e da “originalidade”. O novo aponta para a possibilidade de começo e para a condição de liberdade humana de que Hannah Arendt fala na citação que Silvina Rodrigues Lopes nos traz e que reproduzimos acima a propósito da leveza (vd. citação atrás neste capítulo) — porque o novo nos dá a ver como podemos ser singulares sem o sermos naquilo que imediatamente identificamos como ruptura, quando na verdade não estaremos a identificar mais do que uma falsa

67 CALVINO, “Visibilidade”, in op. cit., pp.106, 111 e 112. 68 Ibidem, p.111.

!228 ruptura destinada a ser como que engolida por aquilo que é o sistema dominante. Ora, também Silvina Rodrigues Lopes distingue entre “novo” e “novidade”, indo não só ao encontro desta mesma preocupação, como também ao encontro dos termos com que Calvino define o princípio da visibilidade e, portanto, ao encontro do que caracteriza a música de Luciano Berio e mesmo do conceito de diferença e repetição de Gilles Deleuze:

O novo só é pensável como aquilo que não tem qualidades e por isso introduz a relação de infinita estranheza, experimentada perante o não dominável, ou domável, algo que resiste à catalogação justamente porque não se deixa fixar: o novo só existe no tempo, em mudança, sendo por isso a própria possibilidade de início enquanto diferenciação, e não ruptura. Todo o início é, como diz Blanchot, ressassement éternel, eterna agitação que constitui o único na sua unicidade. Novo é o que se dá na diferença de uma repetição alterante, sem que alguma vez seja possível fixá-lo, circunscrevê-lo. Por isso o novo é da ordem do acontecimento, que rompe a lógica da factualidade, a do "foi", que é o tempo petrificado, causa de niilismo e ressentimento.69

69 LOPES, Silvina Rodrigues, “A Literatura como Experiência”, in op. cit., p.37.

!229 O lugar da arte

O que pode a música e, em particular, o que pode a música de Berio? Esta pergunta relaciona-se com o lugar da arte contemporânea e a interrogação da sua vocação ética. Diríamos que, entre os dois pólos igualmente negativos de como se tende a encarar a obra de arte – como produto de consumo, ou então esgotada nas quatro paredes do circuito museológico –, há a consideração da arte como acontecimento político (lato sensu). Sim, Luciano Berio tem razão quando cita Beckett no terceiro andamento da sua Sinfonia: “It can’t stop the wars, can’t make the old younger, or lower the price of bread”70. E no entanto, como diz Marianne Kielian-Gilbert, “music and music experience express modes of becoming in ways specific to their expressive language and suggestive for ways of experiencing and thinking about the world”71.

Um aspecto de não somenos importância na ponderação da pergunta sobre o que pode a música é a atenção, precisamente, que lhe votamos. Ou seja, o modo como a obra de arte convive com todos e cada um de nós, no campo que lhe é próprio, na comunidade ou comunidades que serve, na travessia de que é capaz para além desse mesmo campo, no caminho que trilha enquanto acontecimento sempre novo, para além do tempo e do espaço, e de quaisquer representações que norteiem a nossa relação com ela — como, por exemplo, em Rui Chafes o Túmulo de Henri II e Catarina de Médicis (de Germain Pilon, terminado em 1570) reverbera em múltiplos sentidos72, que não podem ser compreendidos dentro das paredes tradicionais da história da arte. Queremos afirmar que há um fundo ético que desafia a compreensão do tempo, tal como Walter Benjamin o faz, mas que também desafia a compreensão da filosofia, como Gilles Deleuze o faz, e também desafia a própria compreensão da harmonia tonal ou não tonal, tal como Luciano Berio o faz.

70 BERIO, Luciano, Sinfonia. For 8 voices and orchestra, London: Universal Edition, 1972 (UE nr. 13783), p.89. 71 KIELIAN-GILBERT, Marianne, “Music and the Difference in Becoming”, in Sounding the Virtual. Gilles Deleuze and the Theory and Philosophy of Music, ed. by Brian Hulse and Nick Nesbitt, Surrey, Burlington: Ashgate, 2010, pp 200-201. 72 Cf. CHAFES, Rui, Entre o Céu e a Terra (História da minha vida), op. cit.; acessível em: http:// www.snpcultura.org/rui_chafes_entre_o_ceu_e_a_terra.html

!230 Este convívio da obra de arte com quem a contempla – seja na sua produção, seja na sua recepção – é algo que influencia a nossa vivência política com o outro, mesmo que ele não tenha acesso a essa informação. É algo que ultrapassa as fronteiras da obra de arte per se e que nos dá uma nova experiência do mundo. Por isso, não se realiza sob o prisma do entretenimento, que tantas vezes é atribuído à música de Luciano Berio. Um entretenimento mais ou menos erudito, que queremos não deixar de rebater em favor de outro termo que adoptaríamos em relação à sua música e à multiplicidade de músicas com que insiste em conviver para melhor se integrar no mundo e refutar qualquer gaveta onde a queiram arrumar. O modo que propomos é, por isso, o modo da distracção, que é um modo que, pela sua complexidade, não poderíamos analisar aqui, mas que pensamos ser essencial à obra de arte. Se considerarmos o entretenimento num sentido lato, verificamos que, ao contrário do que acontece com este, é precisamente pela distracção que a obra de arte acontece, antes de mais porque o objecto artístico é parte de um todo mais vasto, que é um todo político e ético e portanto que é algo que lhe dá uma consistência que não deve deixar de ser considerada.

A distracção é uma forma especial de atenção — distracção de si, para se abrir ao outro, distracção do detalhe para melhor ver em contexto, distracção na contínua mutação, para experimentar uma certa forma de transcendência. As implicações desta distracção na consideração ética da música são várias, recorrendo nós a Walter Benjamin, uma vez mais, para falar dos modos da distracção nesta ponderação. Um deles é o que já descrevemos no capítulo anterior, e que fala da distracção a que a imagem em movimento na tela do cinema nos conduz (uma vez que é impossível concentrar o olhar num ponto), distracção esta que Walter Benjamin também pondera quanto ao Dadaísmo. Esta distracção não é um alheamento; pelo contrário, é uma profunda alteração da percepção do objecto na sociedade moderna. Distraímo-nos necessariamente do detalhe para atender a uma outra (ou outras) camada de sentido:

De facto, as manifestações dadaístas asseguravam uma extrema distracção, na medida em que faziam da obra de arte o centro de um escândalo. Ela tinha de satisfazer sobretudo uma exigência muito concreta: causar indignação pública.

!231 De tentação para a vista ou sedução para o ouvido, a obra de arte tornou-se um projéctil nas mãos dos dadaístas. Espectador e leitor eram atingidos por ele.73

O que Walter Benjamin diz da profunda alteração da “percepção consciente”74 com a possibilidade de reprodução técnica da obra de arte é a experiência que vivemos, por exemplo, ao contemplar um quadro de Gerhard Richter como Stadtbild PL

(1970), que só conseguimos apreender se, de facto, nos distrairmos do seu detalhe75 — embora sejam múltiplas as suas possibilidades de leitura. Ou seja, percebemos que qualquer percepção que tenhamos não é a percepção verdadeira do objecto artístico, mas sim a visão da nossa história de relação com o objecto artístico — assim é, também, com a música de Berio. O que de seguida lemos de Walter Benjamin sobre o cinema (e que já citámos no capítulo anterior) poder-se-ia dizer por inteiro das cidades de Richter:

Os nossos bares e avenidas das grandes cidades, os nossos escritórios e os nossos quartos mobilados, as nossas estações de caminho-de-ferro e fábricas pareciam querer encerrar-nos num universo sem esperança e sem saída. Veio então o cinema, que fez ir pelos ares este mundo de cárceres com a dinamite do décimo de segundo, de modo que agora, abandonados no meio dos seus escombros espalhados por todo o lado, nos lançamos serenamente em viagens aventurosas. Com o grande plano alarga-se o espaço, com o retardador o movimento.76 Um outro modo de distracção articula-se com o que acabamos de descrever, nomeadamente no aspecto, precisamente, da interpelação de que o objecto artístico é capaz. Ora, no seguimento do que já descrevemos no capítulo anterior sobre a aura benjaminiana, se a alteração profunda na forma de encararmos a obra de arte de que Benjamin fala a propósito da fotografia e do cinema nos distrai do seu “aqui e agora”,

73 BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica”, in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, ed. e trad. de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.236. 74 Ibidem, p.232. 75 Stadtbild PL, óleo sobre tela, 170X170, 1970 (obra nº 250). Este quadro encontra-se reproduzido em Gerhard Richter. Uma Colecção Privada / A Private Collection, Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa, 2004, p.47. Uma nota explicativa sobre esta série de telas sobre algumas cidades diz que esta obra, em particular, é uma de várias versões da cidade de Paris — in: https:// www.gerhard-richter.com/de/art/paintings/photo-paintings/townscapes-24/townscape-pl-5706 [visitado em 2 de Janeiro de 2016]. 76 BENJAMIN, Walter, op. cit., p.233.

!232 da sua “autenticidade”77, ela conduz-nos, por outro lado, a experimentar o novo, na medida em que nos envolve activamente nessa mesma percepção. Diríamos, mesmo, que a experiência aurática, tal como a descreve Walter Benjamin num dos seus ensaios sobre Charles Baudelaire, se renova, ela mesma, na distracção que renova o nosso olhar ante o corpo múltiplo que se desdobra aos nossos olhos. A definição de aura por Benjamin, que lemos em mais do que um dos seus textos, reflecte por inteiro a interpelação de que falamos: “Podemos defini-la como o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja”78. Não estamos a lidar, aqui, com questões meramente teórico-estilísticas que resultem na clarificação do fenómeno artístico, mas sim do acontecimento que constitui esse mesmo fenómeno, e a quase contradição de termos com que Benjamin descreve a aura é sintomática disso mesmo. Pelos traços que temos vindo a descrever quanto ao objecto sonoro beriano e ao efeito da sua música, poderíamos defender que a música de Berio aproxima-se da atenção distraída do objecto de arte contemporâneo, que acontece não para entreter, ou para ser consumido, ou para consumir o tempo que passa, mas para nos mergulhar numa outra dimensão do tempo:

Aquilo que se sentia com o lado inumano, e mesmo mortal, da daguerreotipia era o olhar para dentro do aparelho (e durante muito tempo) uma vez que o aparelho absorve a imagem do homem sem lhe devolver o olhar. Mas no olhar vive a expectativa de ser correspondido por aquele a quem ele se oferece. Quando esta expectativa é correspondida (e, no pensamento, ela tanto pode aplicar-se a um olhar intencional da atenção como ao olhar puro e simples), o olhar vive plenamente a experiência da aura. “A capacidade de percepção é uma forma de atenção”, escreve Novalis. Esta capacidade de percepção não é outra senão a da aura. A experiência da aura assenta, assim, na transposição de uma forma de reacção corrente na sociedade humana para a relação do mundo inerte ou da natureza com o homem. Aquele que é olhado, ou se julga olhado, levanta os olhos. Ter a experiência da aura de um fenómeno significa dotá-lo da capacidade de retribuir o olhar.79

77 Ibidem, p.210 e 211. Não queremos aqui demorar-nos pela leitura sociológica para que Benjamin vai tecendo nos seus escritos quanto a esta questão, mas apontamos, ainda assim, para a alteração do “valor de culto” e da “autoridade” do objecto artístico para um “valor de exposição” e para uma certa “função” que se passa a atribuir ao mesmo (cf. pp.210ss.). 78 Ibidem, p.213. 79 BENJAMIN, Walter, “Charles Baudelaire. Um poeta na Época do Capitalismo Avançado”, in op. cit., p. 142.

!233 Aquilo que nos atrevemos a considerar é que Walter Benjamin faz um apelo ao seu leitor para que este não desista de procurar a profunda coerência e consistência que surgem sempre que nos atrevemos a ter uma posição infinitamente pessoal sobre algo que nos excede. Sempre que nos atrevemos a encarar com consistência o mundo que nos rodeia e a perceber as profundas consequências éticas e políticas que estão presentes no seu borbulhar. É talvez esta forma suprema da Consistência, que vemos nomeada por Italo Calvino nas suas Seis Propostas… e que, infelizmente, nunca poderemos ver dissecada por ele. Mas podemos falar da consistência das propostas que escreveu. E, mais do que isso, podemos falar de como as características sobre as quais escreveu se articulam consistentemente para a construção do nosso mundo.

Iniciando com as três características talvez mais ligadas a aspectos de detalhe – leveza, radipez e exactidão –, somos, pela mão de Calvino, levados a passear pelo imenso mundo que os poetas ditaram, passeio este que termina nas duas propostas que em boa verdade versam sobre o mesmo imenso mundo – visibilidade e multiplicidade –, e que sublinham sobretudo tanto a sua materialidade mais elementar (ou imanência) como a sua irredutível transcendência. A cada nova proposta, revemos as restantes, não sendo umas equacionáveis sem as outras. Trata-se de um conjunto de propostas que teria, talvez, na consistência, a sua articulação sempre provisória e reactualizável, uma consistência que se ditaria, sobretudo, pelo seu carácter incompleto e em aberto, se bem que intrinsecamente coerente e, neste sentido, uno. Permitimo-nos adivinhar este caminho, tendo em conta as pistas deixadas por todos os outros.

Regressando ao que atrás começámos por afirmar, multiplicidade, visibilidade e consistência são três aspectos que se afectam mutuamente na gestação da obra de arte: a consistência deve às outras duas a sua força, diríamos, sendo a leveza, a rapidez e a exactidão virtudes imprescindíveis para conter o mundo, ou melhor, para nele permanecer. Não se queira, contudo, estabelecer qualquer hierarquia entre os termos destas propostas. Podemos, sim, tentar no encontro entre elas antever linhas de sentido (ou linhas de fuga, pedindo emprestada a expressão a Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mille Plateaux), um pouco ao modo do “conhecimento reflexivo” de Espinosa:

!234 consistente, porque múltiplo, porque suspeitamos que Ada e Leonora são a personificação de dois aspectos de um personagem imaginário, que não sabemos quem é. E esta mesma bipolaridade ilusória poder-se-ia reflectir entre Ugo e Luca, cuja rivalidade talvez não seja mais do que o reflexo das diferenças entre Ada e Leonora, ou das diferenças entre Ivo e 'o condenado'. E entretanto, somos confrontados com a distanciação que nos dá a Cantastorie, a cantora popular que podemos, ou talvez devamos, encarar sob um outro prisma, porque ela nos dá a distância em relação ao mundo, focalização essencial que a arte tem e que tantas vezes teimamos em ignorar. Esta mesma ideia está, afinal, presente nos vários 'transeuntes' que estão em cena e que são nossos companheiros, e que, afinal de contas, são alguém como nós, e que, nessa sua condição nos levam a reconsiderar o que é uma personagem.

Dizemos, portanto, consistente com o mundo, porque múltiplo. E visível no mundo que nos rodeia, naquele que não está na obra, mas que poderíamos abarcar no processo inverso; ou seja, poderíamos partir de nós e perceber que afinal somos como que uma cantora que, afinal, é como que um condenado, ou um irmão rival, ou alguém que sofre e que não percebe as razões últimas do que sofre. Visível, portanto, porque a causalidade directa do sofrimento de cada uma das personagens em cena esconde uma verdade comum, que perpassa todas elas e as transcende, que nos é dado vislumbrar no momento em que tudo acontece novamente na Parte II de La vera storia. Ou talvez devamos dizer múltiplo, porque leve. Porque há uma ideia de leveza que perpassa cada uma das personagens, desde 'o condenado', que sabemos que, no fundo, não vai morrer, ao filho que, no fundo, não foi raptado, à vingança que não existe, e ao tempo que permanece o grande mistério das nossas vidas. Tudo isto é tornado claro na Parte II da ópera, em que se dá ver o carácter profundamente arquetípico da realidade de cada uma destas personagens. Uma Parte II, acerca da qual Berio diz, não por acaso: “[…] la deuxième partie […] c’est une espèce de… de verité, si vous voulez.”80. Ou múltiplo, porque rápido, porque consciente da convulsão dos tempos, em que o tempo lento (a Parte II de La vera storia) só é pensável através do tempo rápido (a Parte I de La vera storia). Concretizamos: o tempo de milénios que habitamos só é por nós suportado

80 “Milva et Luciano Berio parlent de «La vera storia» (1985)”, vídeo publicado no Youtube: http:// youtu.be/EHYWXiaGTqU, visitado em 23/1/2016.

!235 quando consideramos o tempo de uma vida; como o tempo rápido que não conseguimos abarcar na sua infinita capacidade de desdobramento é também só apenas pensável quando considerado num panorama aleatório e definitivamente maior do que a sua existência real. E múltiplo, porque exacto, visto que luta contra a dimensão cronológica do tempo. Nesse sentido, é um imperativo de exactidão que leva a que numa Parte I da ópera a distinção clara entre as personagens caminhe, afinal, para a constituição de uma unidade sem rosto e definitivamente em construção como verificamos na Parte II da ópera. As linhas de sentido que podemos aprofundar a partir destas categorias de Italo Calvino sobre La vera storia são infinitas e a sua essência é indefinível. Mas existe. E isso é decisivo.

!236 BIBLIOGRAFIA

Apresentamos de seguida exclusivamente os materiais utilizados na redacção desta dissertação, organizados de forma temática e, onde tal se justifica, ordenados cronologicamente.

Obras de Luciano Berio

- Sequenza per flauto solo [1958], Milano: Edizioni Suvini Zerboni, 1958.

- Sequenza III per voce femminile [1966], London: Universal Edition (3723 mi), 1968.

- Sequenza V per trombone [1966], London, Wien: Universal Edition UE 13725, 1968.

- Sequenza VI per viola sola [1967], London: Universal Edtition UE 13726, 1970.

- O King [1967], London: Universal Edition (UE 13781), 1970.

- Sinfonia. For 8 voices and orchestra [1968], London: Universal Edition, 1972 (UE nr. 13783).

- Sequenza VII per Oboe solo [1969], London: Universal Edition (UE 13754), 1971.

- Concerto per due pianoforte e orchestra [1973], Vienna, London, New York: Universal Edition (UE 15781), 1973.

- Sequenza VIII per violino [1975], Milano: Universal Edition (UE 15990), 1977.

- Coro per voci e strumenti [1976], Milano: Universal Edition (UE 15044), 1976.

- Duetti per due violini [1979-1983], “Fiamma”, vol.1, Universal Edition UE 17757, s.d.

- Sequenza IXb per sassofono contralto [1980], Milano, Wien: Universal Edition, 1980.

- La vera storia [1981], Opera in due parti [Libreto de Italo Calvino e Luciano Berio], Théâtre National Opéra de Paris, Paris: Gérard Billaudot Editeur, 1985.

- La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), testo di Italo Calvino, riduzione per canto e pianoforte (a cura di Ludovico Einaudi e Luca Francesconi), Vienna, London, New York: Universal Edition (UE 16818), 1981.

!237 - La vera storia - Opera in due parti (Parte II), testo di Italo Calvino e Luciano Berio, spartito (di Ludovico Einaudi e Luca Francesconi), Vienna, London, New York: Universal Edition (UE 16818), 1981.

- Corale [su “sequenza VIII”, per violino solo; 1981] per violino, due corni e archi, Milano: Universal Edition (UE 17545), 1982.

- Naturale [su melodie siciliana; 1985], Universal Edition UE 32634, 1985.

- 6 encores for piano [1990], Wien: Universal Edition (ue 19918), 1990.

- Outis [1995-1996] - azione musicale in due parti; testo di Dario Del Corno e Luciano Berio, Riduzione per canto e pianoforte a cura di Paul Roberts e Nicholas Hopkins, Milano: Ricordi, 1996.

Textos de Luciano Berio

Entrevistas:

- “Luciano Berio on New Music: An Interview with David Roth", Musical opinion, September 1976, p. 549.

- Luciano Berio. Entretiens avec Rossana Dalmonte, trad. Martin Kaltnenecker, Paris: Éditions Jean-Claude Lattès, 1983.

- “Milva et Luciano Berio parlent de «La vera storia» (1985)”, vídeo publicado no Youtube: http://youtu.be/EHYWXiaGTqU [acedido em 23/1/2016].

- “'Music is not a solitary act': Conversation with Luciano Berio” [Agosto de 1995, com Theo Muller, Tempo, New Series, No.199 (Jan. 1997), pp.16-20. Entrevista disponível em: http://www.jstor.org/stable/945526 [acedido em 5 de Janeiro de 2010].

- “Un entretien inédit avec Luciano Berio” [6/2/1997], entrevista a Bruno Serrou, publicada em 29 de Maio de 2003 na página da ResMusica: http:// www.resmusica.com/2003/05/29/un-entretien-inedit-avec-luciano-berio/ [acedido em Dezembro de 2015].

!238 Artigos e depoimentos:

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- “Che tempo fa” [1985], Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013, pp.71-73 [primeira edição: “Luciano Berio: in musica che tempo fa? Tutti e nessuno”, Panorama mese, IV (1985), nº 1, pp.74-75].

- “La musicalità di Calvino” [1988], in Scritti sulla musica, a cura di Angela Ida De Benedictis, intro. di Giorgio Pestelli, Piccola Biblioteca Einaudi 608, Torino: Giulio Einaudi Editore, 2013, pp.328-331 [primeira publicação: in Italo Calvino. La letteratura, la scienza, la città, Atti del Convegno nazionale di studi di Sanremo (28-29 novembre 1986), a cura di G. Bertone, Genova: Marietti, 1988, pp.115-117].

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!262 LISTA DE ILUSTRAÇÕES

A lista que se segue refere-se às ilustrações apresentadas no capítulo “A prática musical de Luciano Berio”, antecedidas pela página onde se encontram.

77 Ex. 1: La vera storia, Parte I, campo harmónico. 77 Ex. 2: escala octatónica 1 - 2 em Dó. 79 Ex. 3: Sinfonia IV, série. 79 Ex. 4: «Points on the curve to find…». Série preliminar e série final. 80 Ex. 5: Sequenza IXa per Clarinetto (1980). Série preliminar e série final. 80 Ex. 6: Nones (1954). Série preliminar e série final. 81 Ex. 7: séries dodecafónicas de Dallapiccola. 84 Ex. 8: acordes de base de “Seconda Festa”. 85 Ex. 9: Sinfonia (1968), 1º acorde. 85 Ex. 10: Sinfonia (1968), 2º acorde. 86s. Ex. 11: O King (1968), divisão do total cromático e sequência melódica de base. 87 Ex. 12: Sequenza VII per Oboe solo (1969), série de base e série preliminar. 89 Ex. 13: Formazioni (1987), melodia da secção 3. 91 Ex. 14: Six Encores per pianoforte: “Leaf”, início. 91 Ex. 15: Six Encores per pianoforte: “Brin”, final. 98 Ex. 16: Laborintus II. 99 Ex. 17: Schoenberg, Mahler e Debussy, a partir da análise de Peter Altman. 99 Ex. 18: Scherzo da 2ª Sinfonia de Mahler, a partir da análise de Peter Altman. 103 Ex. 19: Primeira página de Sequenza III per voce feminile (1966) 104 Ex. 20: Sinfonia (V), início. 105 Ex. 21: Sinfonia (IV), primeira página. 107 Ex. 22: La vera storia, “Il Grido” (Parte I), vocal score 107 Ex. 23: sequências de base de La vera storia, “Il Grido” (Parte I). 108 Ex. 24: Concerto per due pianoforte e orchestra (1973), página inicial. 109 Ex. 25: Corale per violino, due corni e archi. 109s. Ex. 26: La vera storia, “Scena IV” (Parte II), excertos.

!263 111 Ex. 27: Chaconne da segunda Partita para violino de Bach, início. 111 Ex. 28: Sequenza VIII per violino de Berio, início. 112 Ex. 29: La vera storia,“Ballata V - Che il canto faccia” (Parte I) 112 Ex. 30: Coro per voci e strumenti, I “Indiano (Sioux)” 114 Ex. 31 : La vera storia, Parte II “Scena II” 115 Ex. 32: Sinfonia, III: “In ruhig fliessender Bewegung” 116 Ex. 33: O King, início. 118 Ex. 34: Sequenza IXb per sassofono contralto (1980), início. 119 Ex. 35: Sequenza VII per Oboe, início das linhas 1 a 4. 121 Ex. 36: La vera storia, Parte II, “Scena V”. 123 Ex. 37: La vera storia, Parte I, aria “Il Ratto”, compassos iniciais. 124 Ex. 38: Transcrição rítmica de Il ritorno degli Snovidenia, por Angela Carone. 125 Ex. 39: Claude Debussy, “Voiles” (início), Préludes, Premier Livre. 126 Ex. 40: Outis, esquisso melódico da autoria do compositor. 126 Ex. 41: Formazioni, secção 3, melodia dos metais. 127 Ex. 42: Tabela de polaridade de Henri Pousseur. 128 Ex. 43: Sequenza VII, primeiras seis notas da série. 128 Ex. 44: Sequenza VII, últimas seis notas da série. 129 Ex. 45: La vera storia,“Scena VII” (Parte II). 129s. Ex. 46: Luftklavier, início e excerto da 2ª página. 130 Ex. 47: La vera storia, “Prima Festa” (Parte I). 130 Ex. 48: La vera storia, “Prima Festa” (Parte I). Deslocação por oitava de notas. 131 Ex. 49: La vera storia,“Prima Festa” (Parte I). Primeiros dois acordes. 131 Ex. 50: O King, acordes finais. 131 Ex. 51: escala octatónica. 132 Ex. 52: Sequenza I per flauto, início. 132 Ex. 53: Sequenza I per flauto - escala de tons inteiros deduzida da sequência inicial. 137 Ex. 54: Anton Webern, Sinfonia op. 21, início. 138 Ex. 55: Alban Berg, Wozzeck, início do Acto I, Cena 2. 139 Ex. 56: Igor Stravinsky, A Sagração da Primavera, início do segundo número da Primeira Parte. 140 Ex. 57: Béla Bartók, Concerto para Orquestra (1943), início. 141 Ex. 58: Pierre Boulez, Rituel in memoriam Bruno Maderna, início.

!264 144s. Ex. 59: “Scena I” (Parte I) de La vera storia, início. 145 Ex. 60: “Scena VII” (Parte II). de La vera storia, baseada na Sequenza IX per clarinetto. 146 Ex. 61: Sinfonia, I, acordes. 146 Ex. 62: La vera storia, Parte II “Scena VI” 147 Ex. 63: Sinfonia, I. 147 Ex. 64: Sinfonia, I. 148 Ex. 65: La vera storia, “Prima Festa” (Parte I) 149 Ex. 66: Sequenza VIII per Violino. 149 Ex. 67: Sequenza III per voce feminile. 150 Ex. 68: Sequenza VIII per violino. 151 Ex. 69: O King, três trechos melódicos em rotação. 151 Ex. 70: Duetti per due violini, “Fiamma (Nicolodi)”. 152 Ex. 71: La vera storia, “Quarta Festa” (Parte II). 152 Ex. 72: Sequenza VI per viola (1967), início. 154 Ex. 73: dois trechos de Naturale. 155 Ex. 74: La vera storia, “Il tempo” (Parte I). 156 Ex. 75: Outis, redução para piano, página inicial. 159 Ex. 76: La vera storia, Parte I “La notte” 161 Ex. 77: Sinfonia, I, segundo sistema. 163 Ex. 78: Sequenza V per trombone. 163 Ex. 79: La vera storia, “La Vendetta” (Parte I).

!265 ANEXOS

Anexo 1

Correspondência electrónica com Paul Roberts, assistente musical de Luciano Berio entre Outubro de 1989 e Maio de 2003, para a Universal Edition de Viena, Áustria.

Uma curta troca de emails, em que Paul Roberts responde a algumas perguntas, no contexto da investigação para elaboração desta dissertação. O anexo tem duas páginas: a página onde se podem ler as nossas perguntas e a página com a resposta de Paul Roberts.

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