Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

O YOUTUBE COMO APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA: A EXPERIÊNCIA DA

ONDA CONSERVADORA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Felipe Bezerra de Andrade

Natal/RN

2021 2

Felipe Bezerra de Andrade

O YOUTUBE COMO APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA: A EXPERIÊNCIA DA

OFENSIVA CONSERVADORA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Dissertação elaborada sob orientação da Prof. Dr. Isabel M.

F. Fernandes de Oliveira e apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título

de Mestre em Psicologia.

Natal/RN

2021 3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Andrade, Felipe Bezerra de. O Youtube como aparelho privado de hegemonia: a experiência da onda conservadora no Brasil contemporâneo / Felipe Bezerra de Andrade. - Natal, 2021. 187f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2021. Orientadora: Profa. Dra. Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira.

1. Neoconservadorismo - Dissertação. 2. Youtube - Dissertação. 3. Crise de Hegemonia - Dissertação. I. Oliveira, Isabel Maria Farias Fernandes de. II. Título. Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9:32(81)

4

SUMÁRIO

RESUMO...... 04

ABSTRACT...... 05

CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO E MÉTODO ...... 06

1.1 – Introdução...... 06

1.2 – Alinhamento Metodológico...... 14

1.3 – Método...... 19

CAPÍTULO II – ESTADO, LUTA DE CLASSES E CRISE...... 23

2.1 - Estado Ampliado e Aparelhos Privados de Hegemonia...... 23

2.2 - As demandas da classe dominante e as transformações do Estado Capitalista no século

XX: Até onde vai a democracia burguesa?...... 38

2.3 - Neoliberalismo e Imperialismo: A Periferia no Capitalismo...... 63

2.4 - A crise de Hegemonia no Brasil: O que aconteceu depois de junho...... 82

CAPÍTULO III – APRASENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS...... 114

3.1 – Apresentação de Dados...... 114

3.2 – Análise de Dados...... 165

REFERÊNCIAS...... 181 5

Resumo: A dinâmica do Estado Ampliado opera instituições que gerem a luta de classes continuamente através de um consenso estabelecido por uma Hegemonia. Tal dinâmica pode também ser alterada a partir das disputas que ocorrem no âmbito da Sociedade

Civil e das demandas da reprodução do capital. Quando a reprodução é dificultada, ocorrendo uma crise econômica, ou a condição da luta de classes se altera, é possível que o consenso se desgaste, ocorrendo uma Crise de Hegemonia, momento no qual um novo consenso é estabelecido, mas não sem a resolução de disputas operadas pelos Aparelhos Privados de

Hegemonia. O Brasil atravessa uma Crise deste tipo que eclodiu em junho de 2013, derrubando um consenso estabelecido desde o final da ditadura que se baseava em democracia e Direitos Humanos. Neste momento se popularizaram também as ferramentas virtuais, que foram rapidamente politizadas e transformadas em formas de organização e divulgação por diversos setores da direita, que às ocuparam de forma exitosa, com especial atenção para o

Youtube. A partir disto, buscamos discutir sobre a função social do Youtube na crise de hegemonia que se estabeleceu no Brasil na derrocada do projeto socialdemocrata petista. Para isto analisamos 55 vídeos de 11 canais, separados em quatro grupos: “Homens de Fé”,

“Liberais”, “Jornalistas” e “Patriarcas”, buscando analisar como estes canais representam projetos de sociedade e de que forma se deu a amalgama de tais projetos na onda conservadora qual no Brasil. Vimos que tal união perdeu força depois da vitória de Bolsonaro, mas que os diferentes setores ainda estão fortes separadamente, operando seus aparelhos privados de hegemonia e se reorganizando de acordo com as demandas do capital, que ditam todas as políticas estatais e, diante de sua crise estrutural, exige cada vez mais.

Palavras –Chave: Neoconservadorismo; Youtube; Crise de Hegemonia; Bolsonaro.

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Abstract: The dynamics of the Extended State operates institutions that continuously manage the class struggle through a consensus established by a Hegemony. Such dynamics can also be changed based on the disputes that occur within the scope of Civil Society and the demands for the reproduction of capital. When reproduction is hindered, starting an economic crisis, or the condition of the class struggle changes, it is possible that the consensus wears out, leading to a Hegemony Crisis, at which time a new consensus is established, but not without the resolution of disputes operated by the Private Devices of Hegemony. is going through a crisis of this kind that broke out in June 2013, overturning a consensus established since the end of the dictatorship that was based on democracy and human rights.

At this time, virtual tools also became popular, which were quickly politicized and transformed into forms of organization and dissemination by various sectors of the right, which occupied them successfully, with special attention to Youtube. Based on this, we seek to discuss the social role of Youtube in the crisis of hegemony that was established in Brazil in the collapse of the PT socialist democratic project. For this, we analyzed 55 videos from 11 channels, separated into four groups: “Men of Faith”, “Liberals”, “Journalists” and

“Patriarchs”, seeking to analyze how these channels represent projects of society and how the amalgamation of such projects in the as in Brazil. We saw that such a union lost strength after Bolsonaro's victory, but that the different sectors are still strong separately, operating their private devices of hegemony and reorganizing themselves according to the demands of capital, which dictate all state policies and, in the face of their structural crisis, demands more and more.

Key words: Neoconservatism; Youtube; Hegemony Crisis; Bolsonaro.

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1 – Introdução e Método

1.1 - Introdução

O Brasil está atravessando um intenso processo de avanço do conservadorismo nos

últimos anos, tanto no âmbito político quanto no cotidiano. Durante mais de uma década um projeto de conciliação de classes direcionou as políticas públicas e prioridades do governo brasileiro. Este projeto tenta minimizar os contrastes entre as classes fundamentais do capitalismo, sendo elas a burguesia, classe que detém os meios de produção, e o proletário, classe que tem apenas a sua força de trabalho para vender. A forma de gestão do estado derivada deste projeto é chamada de Social-Democracia.

Durante a gestão do Partido dos Trabalhadores, este projeto foi aceito por setores majoritários da população, visto que ele busca ações que privilegiem tanto a grande burguesia quanto a classe trabalhadora. O governo do Partido dos Trabalhadores soube utilizar bem o crescimento causado pelo processo neodesenvolvimentista atravessado pelo Brasil, assim como a conjuntura favorável em terreno internacional, para expandir o padrão de vida da população pobre sem mudar negativamente a margem de lucro e crescimento da parte mais rica da população (Sampaio Jr, 2012).

O neodesenvolvimentismo é um conjunto de reformas institucionais e políticas econômicas que visam aumentar a renda per capita de países subdesenvolvidos. Este conjunto de ações é baseado em valores da sociedade burguesa e não leva em conta a relação de exploração entre os países subdesenvolvidos e os países centrais. A leitura utilizada aqui é que, em determinado momento, quando tais reformas já foram aplicadas, a velocidade de crescimento diminua, surgindo a demanda de que agora políticas de cunho neoliberalista sejam aplicadas (Sampaio Jr, 2012). 8

E foi quando o ciclo neodesenvolvimentista alcançou os seus limites estruturais que o período de bonança econômica foi desacelerando, o que evidencia as contradições entre capital e trabalho e faz com que diversos setores que antes eram favoráveis à gestão Petista do estado agora questionassem suas práticas e chegassem até mesmo a exigir a sua retirada.

Daremos especial atenção à pequeno-burguesia, classe que se encontra no meio do caminho entre burguesia e proletário, posição que a faz ter elementos e interesses de ambas as classes.

Ela abraça as promessas da ideologia e valores burgueses de forma totalmente idealista, porém ainda carrega demandas da classe trabalhadora tais como salário mínimo e previdência

(Konder, 2009).

Então, durante um certo período a pequena burguesia teve muito a ganhar com a gestão Petista, o que levou seus setores mais progressistas a apoiarem o governo. Neste primeiro momento, até mesmo setores da grande burguesia fazem alianças estratégias com o

Partido dos Trabalhadores e contribuem para garantir a sua governamentabilidade. Porém, o fim do crescimento econômico fez com que os setores mais reacionários da pequena burguesia ganhem força e se afastem do projeto socialdemocrata. Esta guinada à direita é decorrência do crescimento econômico e do ganho de direitos da classe trabalhadora, o que retirou da pequena burguesia parte do seu poder de consumo de serviços. Esse desconforto se intensifica quando as consequências da crise de 2008 chegam no Brasil, havendo uma queda no padrão de vida em geral da população. (Haddad, 2017)

Este cenário é aproveitado pela grande burguesia nacional, cujos diversos setores se reúnem em torno da aplicação de políticas neoliberais. Com o objetivo de iniciar um processo de corte de direitos da classe trabalhadora ela investe nos incômodos da pequena burguesia, com quem forma uma aliança estratégica. Tal aliança, com apoio também da mídia e de diversos setores da burguesia internacional, culminaria no golpe parlamentar de 2016. Agora 9

vive-se sobre um governo formado sobre os desejos da burguesia e que já produziu retrocessos significativos em diversos setores como nos direitos trabalhistas, no setor educacional e na previdência. O ataque à classe trabalhadora por parte do estado é quase diário, sendo camuflado por uma ótima relação com a grande mídia, que também tem o papel de direcionar os desconfortos da pequena burguesia, cuja participação na política aumentou consideravelmente e que adquiriu o caráter de base social do golpe, contra qualquer ameaça real ao sistema vigente, criando um clima de anticomunismo e antiesquerdismo em geral.

Porém, o projeto político de conciliação de classes ainda não foi abandonado por grande parte da população, que insiste em pautá-lo como resposta para as contradições desta sociedade. Assim, ocorre uma gestão pautada pelo liberalismo enquanto ainda persistem várias práticas políticas e instituições com uma lógica que contribui para deslegitimar este mesmo plano. Há também o fato de que os diversos setores da burguesia estão disputando ente si a hegemonia deste novo bloco histórico. As instituições políticas, fragmentadas por esta contenda, acabam por perder a sua autoridade com a população e, durante o período aonde há a transição de um bloco histórico para outro, se instaura uma situação de “crise orgânica”, uma crise do Estado em seu conjunto. (Gramsci, 2011; Castelo, 2013)

Estes momentos de crise, quando as contradições sociais se tornam mais evidentes, costumam ser um terreno fértil para práticas políticas cada vez mais radicais, tanto à esquerda quanto à direita. Na nossa conjuntura, a crise encontra uma pequeno-burguesia já incomodada pelos avanços do proletário além de uma burguesia fortalecida por investimentos e proteção estatais, situações decorrentes do projeto socialdemocrata e suas tentativas de “revoluções passivas”, aonde se busca romper com certas partes do sistema político sem alterar as estruturas de produção. Desta forma, presenciamos uma aceitação das ideias de direita no

Brasil atual (Gramsci, 2011; Castelo, 2013; Konder, 2009; Silva, 2015). 10

Observa-se o aumento no número de pessoas que estão se organizando politicamente para defender as ideias conservadoras e vemos como consequência disso a luta contra o debate de igualdade de gênero nas escolas, linchamentos coletivos, aumento no número de agressões à população LGBT e cancelamento de exposições de arte “esquerdista”, entre outras coisas, todas as pautas restauradoras parecem aproveitar o momento para se posicionar ofensivamente. É digno de nota que as classes abastadas no Brasil sempre foram relacionadas a um brutal conservadorismo, não vendo problema nenhum em se unir às facetas mais extremas da direita quando as condições histórias forem favoráveis (Silva, 2015).

Este cenário de avanço da direita não é inédito, se assemelhando a diversos outros momentos chaves do século XX e chegando até a mimetiza-los em alguns momentos devido à utilização de armas já clássicas da direita, como o chauvinismo e o anticomunismo, por exemplo. Além disto, tais momentos sempre surgem durante processos que revelam dinâmicas semelhanças da relação capitalismo-democracia. Porém, as devidas particularidades de cada momento histórico fazem com esta dinâmica se desenvolva de formas diferentes. Enquanto a Europa pós-primeira guerra percebeu um avanço do fascismo, a

Inglaterra da era Tatcher promoveu uma onda de corte de direitos trabalhistas e ataque neoliberal. Apesar da situação inglesa nos ser mais semelhante, ainda temos elementos que provocam a existência de consequências próprias à nossa realidade como o atual estado do imperialismo e o nosso processo de formação e desenvolvimento nacional. (Gramsci, 2011;

Konder, 2009).

Acreditamos então que não devemos mergulhar em conclusões apressadas acerca das possibilidades de evolução da atual conjuntura nacional, mas sim tentar entender quais elementos da dinâmica entre estrutura e superestrutura estão produzindo este fenômeno e como eles interferem no processo de formação da consciência dos seus atores políticos. 11

As redes sociais, por exemplo, são uma tecnologia recente e que adquiriu papel relevante em movimentações sociais ao longo do mundo na última década, sendo utilizada para facilitar a organização e articulação de levantes populares como os da Tunísia, Egito e

Espanha. No Brasil, internet revela pela primeira vez a sua possibilidade de dialogar com atos de rua durante as jornadas de junho de 2013, quando o Movimento Passe Livre utilizou o

Facebook tanto para convocar os atos de rua quanto para divulgar a repressão violenta da polícia Paulista. A reação da população foi grande, havendo um aumento rápido no número de confirmações para os atos na mesma rede social, havendo um aumento de mais de dez vezes entre uma semana e outra. Isto marca um momento em que as redes sociais passaram a ser também utilizadas para disputar a leitura da realidade, não mais havendo uma exclusividade da velha imprensa neste papel (Silva, 2015).

Claro, ainda há grande influência das empresas de comunicação na formação de opinião até mesmo na internet, as postagens mais compartilhadas ainda eram de páginas como

O Estado de São Paulo e O Globo. Porém, neste momento adquirem relevância páginas de esquerda que conseguem capitalizar em certos vácuos formados por este novo espaço, como o

Mídia Ninja e demais coletivos de mídia independente, além, claro, da página do próprio

Movimento Passe Livre (Silva, 2015).

O mês de junho de 2013 vai se desenrolando nesta disputa pela narrativa hegemônica em torno das movimentações de rua daquele momento. Algo que começa como uma resistência ao aumento do preço da passagem de ônibus na Cidade de São Paulo baseada de argumentos que levavam em conta a dinâmica da sociedade capitalista acabou por se transformar em um ato pautado por valores burgueses e moralistas, como a justiça em geral, uma ideia de melhoria de vida ligada ao consumo e o combate massivo à corrupção. Isto ocorre por conta de um processo de disputa de consciência que ocorreu tanto em veículos 12

tradicionais da mídia como televisão e jornais impressos quanto nas redes sociais. Com o crescimento de páginas de direita que também capitalizaram muito bem o clima das manifestações, percebemos como as páginas tradicionais de notícias diminuem sua influência ao longo do mês enquanto páginas de memes ganham cada vez mais atenção e compartilhamentos. Às pautas já citadas soma-se também um ataque constante às prioridades de investimento do governo de conciliação de classes, não mais condizentes com os anseios da classe média naquele momento. O senso comum da época, mais condizente com o pensamento de direita, abre espaço para que haja a divulgação massiva dos pensamentos de toda uma gama de facetas reacionárias, indo desde as notícias da revista Veja até as ideias de

Jair Bolsonaro e , todas atravessadas por um ódio ferrenho às ideias de esquerda. Claro, é importante apontar que não é só a pequena burguesia que dá avanço a este processo, ele só pode ocorrer por conta de uma dinâmica que envolve setores de várias classes. O papel especial desta classe se deve a forma como a burguesia a transformou na base social deste projeto. (Silva, 2015)

As eleições de 2014 encontram este cenário mais amadurecido. Há uma atuação ainda maior de profissionais de comunicação em páginas humorísticas patrocinadas pelos partidos, mostrando que estes grupos não ignoram a relevância do ambiente virtual na formação de opinião dos brasileiros. Além disto, o Facebook criou formas de divulgação das postagens baseadas em dinheiro, reestabelecendo dinâmicas verticais e controle através do poder econômico típicos da mídia tradicional. Porém é importante entender que as redes sociais ainda se organizam de forma muito horizontal e dinâmica do que a mídia tradicional, o que permite que ideias antigas pareçam revolucionárias e renovadas por se apresentarem com uma nova roupagem. Isto causou muitas dificuldades para o Partido dos Trabalhadores que, 13

mesmo tendo vencido por pouco no Executivo acabou sofrendo uma grande derrota nos resultados da ocupação do poder legislativo (Silva, 2015).

Mesmo assim o processo de ataque aos projetos de esquerda continua em 2015. Agora ainda mais focados no combate à corrupção e já preparando o terreno para o golpe parlamentar do ano seguinte. A atual crise orgânica, assim como a própria dinâmica de horizontalidade das redes sociais, permite que setores mais reacionários da direita consigam alcançar mais pessoas, chegando, assim, ao cenário atual, quando presenciamos crescimento e grande adesão das páginas de direita, utilizadas para organizar a população em torno de pautas restauradoras que vão desde a perseguição às minorias até o retorno da ditadura. Mesmo que algumas estas pautas não sejam majoritariamente aceitas pela população, é digna de nota a sua rápida popularização nos últimos anos. (Silva, 2015)

A internet, por se estabelecer como um novo espaço social de comunicação, possibilita várias ferramentas de divulgação ideológica para além do Facebook. Chamaremos atenção também para a importância do Youtube, uma das maiores plataformas de divulgação de vídeos do mundo, contando com mais de um bilhão de usuários. Assim como o Facebook, o

Youtube tem visto um grande crescimento nas páginas de direita nas suas várias dimensões tanto no Brasil quanto no exterior. O caráter que estas páginas assumem no youtube, entretanto, é distinto, visto que apresenta elementos muito mais personalistas do que na maioria das páginas do outro site. Aqui vemos os youtubers em suas próprias casas, formando suas narrativas de forma muito mais pessoal e alguns deles chegam até mesmo a desenvolver uma relação com os seus seguidores. (Souza, 2016)

Mesmo não havendo uma concordância total entre todos os youtubers de direita, ainda podemos perceber que tais sujeitos são em grande parte membros da pequena burguesia, que, ao entrar em contato com esta mudança nas formas de produção e divulgação da comunicação 14

audiovisual, a utiliza para compartilhar sua leitura da realidade e se apropriar desta ferramenta na batalha das ideias. Ao mesmo tempo em que os vídeos da plataforma têm esta função, gostaríamos de não secundarizar as suas possibilidades enquanto narrativas que permitem melhor analisar como se deu este processo de guinada à direita da consciência de parte da população evitando que tudo seja entendido apenas como um processo mecânico e automático de relação entre classes aonde os apoiadores de retrocessos políticos são reduzidos às imagens caricatas de “coxinhas”. (Souza, 2016)

Retomando categorias Gramscianas, o Youtube vem se estabelecendo enquanto um aparelho privado de hegemonia, construindo significações possíveis para a crise de hegemonia atravessada pelo Brasil. Os elementos específicos do youtuber, assim como do próprio meio de comunicação em rede, entretanto, nos fazem pensar sobre como pode se dar a atualização de tais categorias para a atualidade. Entendendo o potencial político de tais ferramentas, que têm se revelado fundamentais para a disputa de ideias no século XXI, cabe nos questionarmos sobre a relação da popularização - pensada como parte de um processo muito maior e que não se resume ao Youtube - de determinadas ideias no período posterior ao

Golpe. (Gramsci, 2011)

Compreendemos a significação dos eventos na mídia como um terreno chave na disputa pelo consenso. Terreno aparentemente fragmentado nas redes sociais pelo fato de lidar com diversos operadores, que muitas vezes chegam até a discordar entre si, mas cujas alianças se tornam mais evidentes quando pensamos nas suas relações de classe. Tais sujeitos não têm como objetivo enganar a classe trabalhadora, pois eles mesmos acreditam em tais leituras guiados por suas experiências de classe ou pela identificação com os valores da classe dominante. Entender as possibilidades do Youtube enquanto aparelho privado de ideologia nos parece um ponto de partida que coloque no centro da questão os meios obscuros através 15

dos quais a classe operária é traga por tais processos, sendo que ela não compartilha das experiências que constroem a leitura ideológica da classe dominante. Utilizamos desta perspectiva para buscar compreender como o Youtube pode ser utilizado para legitimar as operações do poder estatal e participar dos processos de construção do consenso em relação com outras formas de imprensa.

Escolhemos youtubers de direita por estes terem uma carga ideológica diretamente relacionada com a classe dominante, o que parece revelador o potencial que tal ferramenta tem para passar alguma idéia mesmo quando ela se apresenta como tão distinta das experiências da maioria da população. É importante lembramos que o consenso não se resume

à mesma forma de interpretação da realidade, mas também envolve projetos societários e propostas que muitas vezes vão totalmente de frente aos interesses da classe trabalhadora.

Desta forma, procuramos acumular a discussão acerca da atual conjuntura de avanço do conservadorismo a nível global e nacional, pensando em ferramentas e práticas que possam permitir que os setores mais liberais da sociedade consigam disputar mais ativamente a consciência da classe proletária.

1.2 – Alinhamento Metodológico

Este trabalho é de orientação marxista, o que demanda uma análise dos dados rigorosamente baseada em um materialismo que opere dialeticamente, compreendendo as limitações tanto do positivismo quanto do idealismo, fortes correntes das ciências sociais. Tal perspectiva parece tão central no pensamento marxista que Lukács chega cogitar que o núcleo do que ele define como Marxismo Ortodoxo, antes mesmo de serem as conclusões marxianas sobre a sociedade burguesa, é o seu método, são as ferramentas de construção do conhecimento que Marx nos legou. (Lukacs, 2003) 16

A construção do conhecimento em Marx é alinhada com uma concepção teórico- metodológica na qual, como não poderia deixar de ser para uma ciência dialética, o próprio objeto da pesquisa direciona a forma como a sua crítica se dará, tudo isto a partir de um movimento em espiral de duplo desenvolvimento, pois à medida que novos conhecimentos sobre o objeto vão sendo apreendidos amadurece também a compreensão sobre a forma como nos aproximamos dele. O novo elemento em Marx vem da percepção que a construção dos conceitos para leitura da realidade não é derivada de um puro vaivém dialético entre ideias, mas sim um movimento que não pode deixar de passar pela materialidade que cerca o sujeito.

(Netto, 2011)

Diante de tal unidade teórico-metodológica, são raros os momentos da obra de Marx em que ele trata especificamente sobre questões de método, estando a maioria das suas aproximações com o tema inserida dentro de uma reflexão que tomava em conta o próprio conhecimento enquanto objeto. Nestas discussões, Marx se aproxima do conhecimento teórico enquanto um tipo específico de conhecimento distinto da arte e do conhecimento do cotidiano, por exemplo, pois ele busca capturar o real com máxima fidelidade para o plano ideal, dos pensamentos. Devemos admitir, até aqui nada de radicalmente novo para as discussões sobre o que é o saber. (Netto, 2011)

Marx, a partir de sua influência hegeliana, sublinha a necessidade de um papel ativo do pesquisador neste processo de passagem do plano material pra o plano das ideias, visto que, por compreender o corpo social enquanto uma totalidade na qual o sujeito que pensa está inserido, este deve se aproximar de forma crítica dos objetos que estuda. Não devemos, então, pensar no papel do pesquisador como alguém inerte, participando de um processo de tradução automática entre o real e o ideal, mas como um sujeito ativo, que devera se utilizar de diversas ferramentas para poder revelar a verdadeira essência do objeto de estudo, que se encontra em 17

sua estrutura e dinâmica, nunca evidentemente aparentes. Afinal, caso essência e aparência fossem indistinguíveis não haveria nem mesmo a necessidade de se construir pesquisas.

(Marx, 2008; Netto, 2011)

O papel ativo do pesquisador também é advindo da crença marxista em uma impossibilidade de se colocar de forma neutra diante da produção do conhecimento, diferente do posicionamento das ciências positivistas. O pesquisador é construído na mesma sociabilidade que seu objeto, devendo se aproximar criticamente também de suas próprias implicações para que possa se posicionar diante das contradições com que lidará. Na sociedade atual, como exemplo e embasamento de discussões posteriores, podemos falar na luta de classes, o que anula qualquer sonho de uma ciência social que possa se colocar enquanto “neutra”. (Marx,

2008; Netto, 2011)

Tais apontamentos evidenciam a direção da crítica de Marx à construção do conhecimento, que buscava evidenciar seus fundamentos e limites como ponto de partida. Não como crítica de valor, mas como forma de entender sua estrutura, sua dinâmica, procurando pensar em formas de capturar a realidade de forma o mais fiel e comprometida o possível, principalmente por entender a responsabilidade de quem, não mais seguindo a tradição filosófica de apenas interpretar o mundo, buscava transformá-lo. (Marx, 2008; Netto, 2011)

A partir deste esboço de crítica, surge a questão: Quais então os fundamentos marxianos para a apreensão da realidade? Como podemos nos aproximar do objeto, com quais ferramentas e pressupostos?

Partimos aqui da interpretação que entende o método em Marx como uma tentativa exitosa de reler a dialética hegeliana a partir de elementos materialistas e históricos. Importante dizer, o objetivo de estudo de Marx é a sociedade burguesa, na qual ele estava inserido. Ele se propõe 18

a entender sua estrutura e dinâmica dentro de uma totalidade complexa, construída historicamente pelas ações individuais dos sujeitos que em conjunto constroem a história da humanidade, do gênero humano. (Marx, 2008; Netto, 2011)

Esta história se concretiza em relações materiais entre os sujeitos, relações que continuam a existir de forma independente de cada sujeito individual, existindo em relação com a sua dinâmica coletiva. Há então, um critério da verdade para o pensamento marxiano, não estando esta dependente da perspectiva do sujeito que a pensa. Este critério é a prática social embasada em uma materialidade histórica do gênero humano. (Marx, 2008)

A história não se constrói em uma tautologia, mas em um movimento de contradições que engendram e são engendradas pela materialidade de uma complexa totalidade – que é diferente de um todo formado por partes diversas – formada por outros complexos que interagem incessantemente entre si afirmando e lidando com contradições que os impulsionam à mudança. (Marx, 2008; Netto, 2011)

Tais complexos por diversas vezes são pensados de forma abstrata, separados da totalidade social que atravessa todos os seus momentos. Marx de fato acredita que, em determinado momento, se faz necessária a abstração do objeto de pesquisa de forma a pensado isoladamente e perceber quais suas categorias principais, mas faz questão de sublinhar o fato de que tais categorias sempre são historicamente determinadas e transitórias, não havendo leis eternas na sociedade, mas construções mutáveis e correlatas com sociabilidades específicas. É necessário, então, sempre um caminho de volta, no qual as implicações e tendências históricas são levadas em conta para entendermos como a estrutura e a dinâmica do objeto de estudo se desenvolvem e materializam no momento da pesquisa. Isto é real tanto para a dinâmica do trabalho quanto para complexos mais intangíveis, como a cultura e seus aparelhos. Para Marx, 19

concreto não é algo sólido, mas sim algo pleno determinações, distinto das abstrações necessárias nos primeiros momentos da pesquisa. (Marx, 2008)

Cabe então, nas ciências sociais, sempre pensarmos em qual momento histórico o objeto de pesquisa se concretiza, quais tendências lhe atravessam e como ele se encaixa dentro da totalidade de uma sociedade em constante luta de classes em torno dos espólios da produção

Isto, em si, já é parte da pesquisa, pois evidencia determinadas implicações que ajudarão a pensar o objeto de forma concreta.

É importante sublinhar, para encerrar esta breve discussão acerca do método em Marx, que as contradições que, em conjunto com as ações humanas, operam a história na concepção marxista, não se apresentam em relações diretas, mas através de mediações que articulam os distintos complexos de totalidades que constroem a totalidade mais elaborada que é a sociedade burguesa. São tais mediações que permitem que a sociedade burguesa seja uma totalidade tão diversa e variada, protegida de suas próprias contradições. (Netto, 2011)

Evidentemente, Marx não pensou em uma metodologia tal qual exigida pelas associações científicas de nossos tempos, este não poderia nem mesmo ser um objetivo seu, mas em seus escritos percebe-se uma rigorosa atenção pra com a relação e o trato de seu objeto a partir de categorias que amadurecem durante os mais de 50 anos de escrita que ele nos legou. O que cabe ao pesquisador contemporâneo que busca se apropriar de sua leitura da realidade é estar ciente das mudanças que a sociedade atravessou desde o fim do século XIX e refletir sobre como as tendências históricas influenciam as categorias pensadas não só pelo próprio Marx, mas também pelos seus leitores e comentadores, número de pessoas que não é pequeno, devido às inquietações provocadas pelas suas ideias. Devemos, então, nos tornamos cientes dos desafios de nossos tempos e utilizar a teoria marxista como uma ferramenta de lida com tais desafios, sempre cientes da prática necessária para mudar o mundo, que não pode ser 20

pensada em nenhum outro momento além daquele no qual as próprias contradições da sociedade emergem.

MÉTODO

A partir disto, nosso objetivo geral é discutir sobre a função social do Youtube na crise de hegemonia que se estabeleceu no Brasil na derrocada do projeto socialdemocrata petista.

Para concretizar tal objetivo, a pesquisa tem os objetivos específicos de discutir sobre as determinações que levaram a tal crise e ao golpe de 2016; pensar o Youtube na da dinâmica de disputa de hegemonia engendrada pelas relações sociais dentro da lógica neoliberal; analisar a relação entre os discursos dos grupos de canais do Youtube que participam ativamente desta disputa com os argumentos defendidos tradicionalmente pelas diversas faces da direita.

A presente pesquisa tem inspiração no método desenvolvido por Marx, o Materialismo

Histórico, e trata-se de uma pesquisa documental, analisando documentos audiovisuais a partir de categorias que nos permitiram entender o contexto em que as falas foram produzidas e sua função social para que posteriormente pudéssemos analisar os documentos audiovisuais dentro deste contexto, deste conjunto de relações sociais. Acreditamos que tal tipo de estudo pode estabelecer uma percepção mais profunda e interpretativa com o tema estudado.

Categorias como Classes, Estado, Sociedade Civil, Liberalismo e Conservadorismo foram retiradas da literatura marxista e têm como fundamento a compreensão da realidade a partir de uma dinâmica dialética e materialista, elas não foram as únicas utilizadas, havendo uma expansão nas categorias que fundamentaram o trabalho à medida que fomos entendendo esta necessidade. 21

Utilizaremos como fonte de informação, vídeos disponíveis no Youtube em 31 de outubro de

2019, data da coleta de dados para a pesquisa. Com o objetivo de analisar vídeos alinhados com o espectro político da direita, buscamos uma variedade nos discursos, analisando a defesa de diferentes frações do conservadorismo. Partimos de conceitos estabelecidos pela literatura para entender as diferentes faces deste grupo, que não se apresenta como homogêneo, principalmente em um período de disputa de hegemonia, aonde todas as frações disputam entre si.

Baseados também no número de seguidores e no número de compartilhamento de vídeos, de início selecionando os seguintes canais como possíveis objetos para a pesquisa: Nando

Moura, com 2.260.038 seguidores; Mamãe Falei, com 1.334.775; Eguinorante, canal com

646.671 seguidores; Ideia Radicais, que conta com 415.706; MBL, com 339.938 seguidores;

Padre Paulo Ricardo, que apresenta 380.153 seguidores; Bernardo P Küster: canal que tem

237.280 seguidores; Gosto de Armas, com 204.296 seguidores; e Bob Nunes, um canal com

118.489 seguidores.

Com o tempo esta lista foi se modificando, retiramos o canal Eguinorante, pois ele é um canal de reações, que não produz conteúdo próprio e tem o alcance dos outros, retiramos o canal do

Padre Paulo Ricardo, pois Bernardo P Küster já trazia falas baseadas no catolicismo e tinha relação mais íntima com , e, por fim, retiramos também o canal Gosto de

Armas, por ser um canal que trata mais de reviews de armas de fogo, e o canal Bob Nunes pelo reduzido número de seguidores.

A lista final de canais, com o número de seguidores que apresentava em 31 de outubro de

2019, foi: Nando Moura, com 3,33 milhões de seguidores; Mamãe Falei, com 2,62 milhões de seguidores; Jair Bolsonaro, com 2,6 milhões de inscritos; MBL, com 1,27 milhões; Joice

Hasselmann TV, com 1,08 milhões; Giro de Notícias, com 1 milhão de seguidores; Olavo de 22

Carvalho, com797 mil inscritos; Bernardo P Küster, com 796 mil seguidores; O Antagonista, com 597 mil seguidores; Ideias Radicais, com 581 mil inscritos; e Dois Dedos de Teologia, com 475 mil inscritos.

Os vídeos canais foram sendo adicionados a partir de sua popularidade, das relações que estabelecem uns com os outros e do tipo de discurso que levantam, pois procuramos evitar o uso de muitos canais que representassem o mesmo setor da direita. O próprio número de seguidores já nos revelou um dado importante, pois enquanto o menor dos canais tem 475 mil seguidores, os canais de esquerda alcançam um número bem menor. Discutindo páginas de partidos, o PT alcança 154 mil inscritos, enquanto o PSOL tem 9 mil. Sobre editoras: a editora Boitempo tem 266 mil seguidores e a Expressão Popular tem 3,27 mil. Nem mesmo os maiores Youtubers de esquerda como Jones Manoel, com 139 mil seguidores, e Sabrina

Fernandes, com 354 mil, alcançam o último canal da lista, o que nos mostra o quando a direita conseguiu sucesso na ocupação deste espaço e no engajamento de seguidores.

A partir de tais canais, buscamos entender como se organiza a rede de representantes ideológicos do projeto societário vigente no Brasil atual, os separando em grupos e procurando, sempre em diálogo com a literatura, entender quais os argumentos que os sustentam e como estes se relacionam com a materialidade em disputa. Estes grupos originalmente se apresentavam como “saudosos da ditadura”, “ultraliberais”, “cristianismo conservador”, “empreendedorismo autoajuda”, mas durante a pesquisa eles se rearticularam em “Jornalistas”, “Liberais”, “Homens de Fé” e “Patriarcas” a partir da função social que ocuparam na disputa de Hegemonia. Cabe dizer que mesmo distintos eles ainda compartilham alguns argumentos centrais na defesa do projeto de restauração do poder da classe dominante, como um exacerbado ódio a tudo que lembre direitos trabalhistas, apoio ao projeto 23

imperialista estadunidense e defesa do protagonismo do capital em todas as esferas da vida social.

O próprio processo de escolha dos vídeos já se apresenta enquanto momento de acúmulo de dados, visto que exigiu uma análise extensa de tais documentos audiovisuais e não deixou de desencadear reflexões por parte do pesquisador, aonde as categorias acumuladas na etapa teórica serão reelaboradas a partir do objeto de estudo. Por conta da alta produtividade de cada canal, escolhemos apenas cinco vídeos de cada um para serem analisados, cada um deles escolhido entre os 10 mais populares do canal à época que a colheita de dados foi feita, buscando variedade de temas e maior intervalo temporal entre cada um deles.

A análise da relação entre as categorias apresentadas por cada vídeo e suas relações com os deslocamentos de grandes massas para posições mais conservadoras do que se deu em períodos anteriores, tal como a recente popularização do anticomunismo, não se dará com o

ímpeto de acreditar ser possível encontrar em tais vídeos as raízes únicas de tal mudança, mas de discutir como estes canais se encaixam e existem dentro de uma totalidade dinâmica que levanta diversas demandas para seus atores e serve de cenário para uma disputa constante entre as suas classes fundamentais.

Utilizamos também a página socialblade.com, para entender com o número de seguidores e visualizações destes canais se alterou durante o tempo, articulando estas flutuações com os acontecimentos históricos que permearam cada momento.

Este é o caminho pelo qual pretendemos seguir sobre as questões aqui levantadas, acreditando ser possível que a partir dele consigamos apontar para possíveis respostas em consonância com as demandas do tempo as quais vivemos e pensamos. Dito isto, partamos ao corpo texto sem mais delongas. 24

2 – Estado, Luta de Classes e Crise

2.1 – Estado Ampliado e Aparelhos Privados de Hegemonia

Marx e Engels são implacáveis ao tratarem do Estado em seu Manifesto do Partido

Comunista, afirmando que “O Executivo no Estado Moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. A despeito desta obra ter à sua disposição um tamanho muito aquém do necessário para tratar deste tema com profundidade, fato decorrente de seu objetivo primariamente panfletário, acreditamos ser possível encontrar nele diversos conceitos centrais do pensamento marxiano, mesmo que ainda em caráter embrionário por conta do momento em que se encontrava a maturação do pensamento de seus autores. Tais conceitos e suas implicações foram desenvolvidos de forma mais aprofundada nas suas obras posteriores, mas já vemos revelada nesta afirmação uma percepção reveladora da função e dinâmica do Estado dentro da sociedade de classes. (Hobsbawn, 2013; Marx &

Engels, 2005)

Esta afirmação marxiana denota uma divergência radical em relação aos apologistas do Estado Burguês. Através de um conjunto de argumentos que buscam naturalizar a sociedade de classes e sua organização no modo de produção capitalista, estes autores tentam legitimar a democracia burguesa, acreditando na possibilidade de um Estado que, em sua atuação, não penderia a favor de nenhum grupo social, como classes ou raças. Muitos chegam até a defender que o Estado que não deve levar em conta a existência de classes e suas especificidades, argumentando que esta separação teria um caráter ideológico e antiproducente, criando interferências artificiais no Mercado e impedindo que o capitalismo se desenvolvesse totalmente. O Estado Moderno, então, existiria para além da luta de classes, unificando todos os seus membros - seus cidadãos - de forma idêntica, universal, como no 25

exemplo da Constituição brasileira, na qual todos são, afinal, iguais perante a lei de forma que nenhuma distinção deverá ser levada em conta. (Brasil, 1988; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015)

Ainda de acordo com a tradição de pensamento liberal, as diferenças entre as pessoas se dariam por consequência de decisões individuais, sejam suas ou de quem lhes cercam. A função do Estado se resumiria garantir os direitos mínimos para que todos os seus membros encontrassem à sua disposição a possibilidade de sucesso financeiro, forma principal como a qualidade de vida é acessada dentro de uma sociedade capitalista. Tal discurso centrado no indivíduo em tal nível de independência do social encontra abrigo no pensamento de diversos grupos políticos, estando presente até mesmo no pensamento de grupos que se identificam com teóricas sociais críticas, como em setores mais liberais da “esquerda”. Nestes casos, a disputa com os conservadores se dá em torno da definição e limites destes “direitos mínimos”, não havendo real interesse na reformulação radical do Estado e da sociabilidade que o retroalimenta. (Engels & Kautsky, 2012; Gruppi, 1996; Souza, 2016)

Isto deriva de um entendimento liberal da realidade, concepção esta em que o sujeito é visto como potencialmente livre na sociedade capitalista, havendo apenas a interferência externa, principalmente do Estado, nesta liberdade. Pra legitimar tal visão de mundo, na qual os espaços externos à instituição estatal, ou a sociedade civil, seriam a arena da liberdade, é preciso que o Estado seja entendido como uma esfera que existe aparte, ou até mesmo em oposição, da sociedade civil. O Estado, para os liberais, não apenas não serve aos interesses da burguesia como muitas vezes age diretamente contra estes interesses. Esta visão continua sendo apoiada por diversos atores políticos na atualidade, sustentando, por exemplo, comentários cada vez mais comuns de que qualquer intervenção estatal seria prova deste ser um Estado socialista. (Jr, 2017; Mascaro, 2013; Oliveira, 2018) 26

Aqui é importante sublinharmos que esta divergência entre liberais e marxistas, assim como a disputa de projeto societário que ela ilustra, não se dá puramente no campo das ideias, mas principalmente em um conjunto de práticas sociais concretas que legitimam as mesmas.

No caso do pensamento liberal, a divulgação e aceitação de suas ideias se intensificaram com a ascensão do neoliberalismo notada nas últimas quatro décadas do século XX, nas quais o mote carregado desde a revolução francesa por “Liberdade, Fraternidade e Igualdade” não teve mais necessidade de carregar vestígios de um momento em que a burguesia precisou se aliar com as classes subalternas e se tornou apenas o grito por “liberdade”, com o adendo de que liberdade no discurso neoliberal apenas faz sentido quando associada ao direito por propriedade tal qual é concebido dentro da lógica capitalista. (Boschetti, Behring, Santos &

Mioto, 2010; Marx & Engels, 2007; Mészáros, 2011)

A intensificação dos elementos de produção de valor da sociabilidade capitalista desencadeada pelo neoliberalismo foi também a intensificação de sua reprodução social, sendo esta cada vez mais afirmada pelos ideólogos da burguesia como a forma “natural” de se organizar as relações humanas, o que teve intensas consequências no âmbito do senso comum e no caldo cultural da atualidade. Nesta interpretação, é estritamente na sociedade civil que o ser humano poderia seguir seus instintos naturais, sua liberdade, longe das restrições impostas pelo Estado em nome de uma coletividade não natural. Dentro desta lógica, a determinação por parte do Estado de questões como salário mínimo ou teto do tempo de trabalho semanal é entendida um ataque à liberdade dos cidadãos. Entendimento que coincide perfeitamente com as intenções da burguesia de intensificação da expropriação do valor produzido pelos trabalhadores e do fortalecimento do poder da classe dominante. (Boschetti et al., 2010;

Gruppi, 1996; Marx & Engels, 2007) 27

Importante dizer: a concepção liberal do Estado pode se concretizar de diversas maneiras distintas, que podem até mesmo ser impulsionadas projetos societários que disputam entre si, desde social-democratas, que entendem que o Estado pode ser transformado sem uma mudança radical no modo de produção, até extremos como grupos anarcocapitalistas, que defendem a redução total do Estado, deixando até mesmo que a garantia das necessidades básicas de sobrevivência obedeça às “leis naturais do mercado”, que seriam reguladas naturalmente pela “mão invisível”. Entre estes dois posicionamentos existe todo um diverso leque de grupos políticos que fazem as mais distintas leituras da sociedade e da função do

Estado, mas sempre compartilhando da compreensão de que o Estado e da sociedade civil são esferas, em menor ou maior grau, independentes uma da outra. (Boschettiel al., 2010; Gruppi,

1996)

Em contraste a isso, no referencial marxista buscamos superar a naturalização de elementos historicamente produzidos de nossa sociedade, entendendo o Estado e a Sociedade

Civil modernos como distintos momentos de um mesmo processo histórico de produção e reprodução da sociabilidade decorrentedo modo de produção capitalista. Assim, mesmo que cada um tenha uma função específica neste processo e se utilize de diferentes instituições e ferramentas para concretizá-la, eles não poderiam existir de forma independente ou inerentemente antagônica, sendo necessário o entendimento da função social de ambos dentro de um processo global para que possamos compreender de que forma se dá, concretamente, a dinâmica desta relação. (Gramsci, 2011; Marx, 2005; Mascaro, 2013)

É a partir deste debate sobre a dinâmica entre Estado - ou, na definição Gramsciana,

Sociedade Política - e Sociedade Civil na reprodução do capitalismo que pretendemos iniciar nossadiscussão. Buscamos um acúmulo teórico que nos permita refletir sobre tal relação enquanto discutimos como a lógica capitalista atravessa a estruturação e atuação de ambos, 28

assim como as possibilidades e limites de sua autonomia e influência mútua. É a partir de tais elementos que poderemos nortear os debates levantados nos tópicos seguintes.

O Estado Moderno se apresenta falsamente como um “ente terceiro” na luta de classes, não representando - pelo menos formalmente - nenhuma das classes fundamentais desta sociedade. Isto é algo único na história dos governos e gestões da vida social das sociedades divididas por classes, pois a classe dominante sempre exercia controle direto sobre a sociedade. Tal especificidade leva alguns autores, como Alysson Mascaro, a considerarem que as formas de controle e gestão sociais anteriores não eram Estados em si, entendendo apenas o Estado Moderno a forma verdadeira de Estado, sendo que seu reaproveitamento de antigas instituições, como prisões, parlamentos, conceito de nação, etc... não garantiriam por si uma continuidade das antigas concepções de governo. (Mascaro, 2013)

Não há espaço neste trabalho para discutir os prós e contras da afirmação de Mascaro, mas o fundamental aqui, ainda de acordo com a tradição marxista, é que o Estado tem uma função muito clara e que não se resume a produzir práticas sociais que legitimem a visão de mundo da classe dominante através de práticas coercitivas, e sim que ele existe como uma resposta à contradição entre as classes fundamentais do modo de produção de forma que suas instituições são criadas para “harmonizar” a sociedade, reduzindo os atritos causados pela exploração consequente de cada modo de produção. Grosso modo, enquanto a sociedade for cindida em classes é necessária a existência de um Estado que institucionalize e faça a gestão da dinâmica desta exploração, permitindo a sua existência prática. (Engels, 2012; Gruppi,

1996; Marx, 2005; Mascaro, 2015)

Desta forma, o Estado, ao ser uma esfera que exerce seu controle diretamente sobre a população, é lido por autores das tradições mais diversas como a raiz do problema sobre o poder. As revoluções burguesas compartilham desta visão ao centralizarem a origem de seus 29

problemas sociais na relação do Estado absolutista com a Sociedade Civil evidenciando a construção histórica do Estado, mas naturalizando a divisão da sociedade por classes, acreditando que o fim da história se dá no momento em que se estabelece um Estado que atue de forma coerente com os interesses da burguesia. Porém, na atualidade a questão do poder ainda persiste na Sociedade Civil, na qual as distinções neste sentido são vistas como consequências das diferenças individuais entre os sujeitos, legitimando, a partir da “opinião pública”, inclusive os exercícios de poder por parte do Estado. A emancipação na sociedade capitalista, dentro desta lógica, não pode ser total, pois se resume apenas à emancipação política, enquanto acreditamos que a verdadeira emancipação humana só poderia ser alcançada por uma sociedade sem classes sociais que não mais necessitasse de nenhuma instituição que lhe sustentasse com mecanismos coercitivos. (Boschetti et al., 2010; Gramsci,

2011; Marx, 2010)

A partir disto, acreditamos que o Estado Moderno ainda ocupa a função social do

Estado tradicional, que possibilita a exploração de classes subalternas pela dominante a partir de aparelhos de estruturação e gestão das contradições inerentes à esta exploração, porém, apresentando especificidades na forma como ele se concretiza e na forma como ele será ocupado. Tais especificidades encontram-se na já citada e inédita não-ocupação direta do

Estado pela classe dominante, que faz com que ele se apresente como um campo neutro, contando com a sua aparente disputa, em igualdade de condições, por grupos de “cidadãos livres”, mônadas individuais que se unem em torno de projetos societários, e que será eventualmente ocupado através do rito democrático pelo grupo que conseguir representar às demandas da maioria da população. Desta forma, o Estado pretende unir todas as classes sob a identidade de cidadão, sob a bandeira da nação, que busca o melhor para todos e, ato contínuo, ignora a exploração e as contradições inerentes às sociedades divididas por classes. 30

O Estado dos Senhores que existia até o absolutismo toma agora a forma de um Estado Sobre

Todos. (Gramsci, 2011; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015)

A superação da visão liberal do Estado, desvelando a função social desta esfera, nos parece um bom começo para a resposta à questão de “Como pode o Estado Moderno ser um comitê para gerir os negócios de toda a classe burguesa se sua gestão pode também ser ocupada pelo proletariado?”, porém, tal resposta não se esgota apenas neste contra- argumento, havendo muito ainda a ser discutido no que diz respeito à dinâmica do Estado capitalista na atualidade e nas suas diferentes possibilidades de estruturação, seja Fascismo,

Laissez Faire ou Estado de Bem-Estar Social, por exemplo.

O surgimento das estratégias com as quais o Estado Moderno cria e desenvolve o seu conceito de emancipação só faz sentido quando pensado dentro do leque de soluções possíveis para um burguês construindo sua crítica à sociedade medieval a partir de suas práticas sociais de classe e das concepções que lhes sustentam. No momento em que a sociedade europeia começa a se modificar em direção a um conjunto de relações sociais hegemonicamente burguesas, a forma estatal absolutista - que floresceu na Idade Média sob o domínio da nobreza feudal - e sua estrutura de leis revelaram sua incapacidade de permitir o desenvolvimento de uma forma de produção tão dinâmica como o capitalismo - assim como o estabelecimento de uma classe dominante que não a nobreza -, se tornando um verdadeiro empecilho para a burguesia enquanto esta ocupava o papel de classe revolucionária. Assim, o controle estatal pautado em uma hierarquia social tão estagnada estava limitando os negócios burgueses, sendo visto pelos principais porta-vozes da ideologia burguesa como um inimigo da liberdade. Desta forma, é a partir das questões levantadas pela burguesia enquanto classe revolucionária sobre o Estado Medieval que é concebido o Estado Moderno. (Boschetti et al.,

2010; Gruppi, 1996; Mascaro, 2013) 31

Então, assim como mesmo os atos humanos que parecem mais insensatos são sempre motivados por concepções da realidade e conceitos que lhe justificam, o que faz Gramsci retomar a ideia Croceana de que “todo homem é um filósofo”, a sociabilidade capitalista é embasada em uma cosmovisão que germinou as suas instituições. Cosmovisão esta que condiz com a concepção de mundo produzida de forma a legitimar as práticas burguesas, a partir de então universalizadas como uma verdade para todos os círculos da sociedade, mesmo os não burgueses. O Estado moderno compartilha das mesmas raízes ideológicas que a visão de mundo burguesa, elegendo a partir daí aquilo que será transformado em lei, naturalizando e cristalizando as relações sociais na forma como elas se dão para esta classe. (Gramsci, 1999;

Gramsci, 2011; Mascaro, 2013)

A burguesia, ocupando o papel social de classe revolucionária, não encontra outra alternativa no combate à sociedade feudal do que criar um mundo a sua imagem e semelhança. O mercador tradicional, diante da tarefa de construir um estado a partir de suas demandas, lê toda a sociedade através da forma social da mercadoria, onde tudo pode ser vendido, inclusivea força de trabalho, e nada poderá escapar de ter um valor, de se tornar útil

à reprodução do capital. Não à toa,é na mercadoria que Marx encontra a forma irredutível no capitalismo, questão que revela sua verdadeira dimensão quando pensamos na relação desta centralidade na mercadoria em sociedades capitalistas com a necessidade de reprodução social contínua encontrada em qualquermodo de produção. (Boschetti et al. 2011; Marx, 2013;

Mascaro, 2013)

Neste primeiro momento deteremos especial interesse na maneira como a forma mercadoria atravessa o direito e as leis, sendo este um conjunto de instituições notadamente relevante no debate a que nos propomos. O conjunto de leis burguês seria, assim como o

Estado que o legitima, centrado na forma mercadoria, tendo como pedra fundamental o fato 32

do cidadão livre poder vender e comprar bens, inclusive a força de trabalho, a quem lhe interessar. Junto a isto se somam diversos outros pressupostos para o desenrolar adequado das relações capitalistas que sustentam o direito de venda e troca e formam o núcleo jurídico do

Estado burguês, como o direito à propriedade individual dos meios de produção e a representação individual dos sujeitos em “pessoas jurídicas”. É dentro dos limites deste núcleo central de direitos que todos os outros se desenrolam, sempre secundários. A supremacia do direito de que tudo pode ser transformado em mercadoria acima do direito à direitos básicos como alimentação, educação e moradia pode ser vista em diversos momentos do mundo capitalista, sempre defendida pelos apologistas do sistema. (Marx, 2010; Mascaro,

2013)

O sistema jurídico capitalista é, então, centrado nos direitos do cidadão enquanto indivíduo que venderá ou comprará força de trabalho. Não poderia haver um sistema capitalista sem que houvesse também um conjunto de leis que permitissem que a mais-valia fosse extraída desta forma. A exploração do homem pelo homem através do modo de produção capitalista encontra seu imprescindível arcabouço jurídico no Estado Moderno, cujas próprias raízes de concepções de mundo e sujeito já se encontram impregnadas pelo fundamento ideológico do capitalismo. (Engels, 2012; Marx, 2010; Mascaro, 2013; Mascaro,

2015)

O Estado materializa tal fundamento ideológico através de um conjunto de instituições que moldam a vida social humana e direcionam as interpretações de suas relações. É através de suas experiências e ações individuais que o sujeito vai experimentar sua relação com a sociedade, é através também da troca de mercadorias que ele vai ocupar diversos espaços que atravessam a formaçãode sua subjetividade. São estas leis que vão mediar a sua existência com a realidade, estabelecendo suas ações dentro de um conjunto de possibilidades e limites. 33

Assim, as leis ao produzirem práticas sociais também reproduzem as crenças que a legitimam, construindo condições sociais de existência que nunca se contradizem com suas raízes ideológicas nem com as formas de propriedade que compartilham destas mesmas raízes, reforçando e naturalizando a lógica das relações capitalistas de tal forma que, como disse

Marx (2015): “ergue-se toda uma superestrutura de sensações, ilusões, modos de pensar e visões da vida diversos e formados de um modo peculiar (...) o indivíduo isolado, a quem afluem por tradição e educação, pode imaginar que constituem os verdadeiros princípios determinantes e o ponto de partida do seu agir.”(Mascaro, 2013; Marx & Engels, 2007)

Então, o arcabouço jurídico do Estado Moderno é uma das principais ferramentas para que este possa criar e gerir as relações sociais que favoreçam o capitalismo, uma das suas funções centrais. Desta forma, mesmo que com a aparência de um ente terceiro e neutro na luta de classes, o Estado Moderno acaba por funcionar como legitimador da visão de mundo da burguesia, lhe dando ferramentas que permitem que esta classe explore o trabalho do proletariado através de todo um conjunto de ritos legais que moldam a sociabilidade capitalista. A harmonia entre as classes que o estado democrático burguês propõe nada mais é do que a harmonia de cada uma com o papel que deve assumir para que persista a reprodução social do capital. (Gramsci, 2011; Mascaro, 2013)

Neste ponto é necessário sublinharmos outra diferença entre o Estado Moderno e arranjos anteriores de dominação e gestão institucional da vida social, que éo fato de certos aparelhos ideológicos não se encontrarem mais sobre o controle exclusivo e imediato do

Estado, apesar de ainda estabelecerem uma relação orgânica com o mesmo. Durante o estabelecimento do Estado Burguês, antigos aparelhos sob tutela do Estado, tais como igrejas e escolas, se tornam os modernos Aparelhos Privados de Hegemonia ao mesmo tempo em que surgem aparelhos totalmente originais e típicos desta nova forma de dominação, tais como os 34

partidos em sua forma contemporânea. Com este rearranjo a democracia burguesa se baseia na divisão metodológica e jurídica entre o Estado e a Sociedade Civil, apesar de tal divisão não chegar a ser orgânica, pois ambos apresentam a mesma função social, no caso, materializar as ferramentas necessárias para a reprodução da sociabilidade capitalista, o que nos leva a entender a dinâmica unificada de ambos como o “Estado Ampliado”. (Coutinho,

2011; Gramsci, 2011; Mascaro, 2013)

Na sociabilidade capitalista, o estado ampliado é bem mais dinâmico que nos antigos modos de produção, não podendo ser reduzido a um espaço institucional como o Estado, que representa uma tentativa de cristalizar os costumes de determinado momento histórico no formato de leis que se legitimam através da repressão. Se o Estado, não sendo mais algo natural ou da vontade de Deus, é agora construído historicamente por homens e mulheres de seu tempo, então é através dos “costumes” que ele encontrará legitimidade para exercer as suas ações, principalmente quando elas forem coercitivas. É no âmbito da Sociedade Civil que os costumes e senso comum se formam, ocorrendo processo de produção da cultura através de disputas pela hegemonia da sociedade. De tal forma, a classe dominante precisa também ser a classe dirigente na resolução das disputas pela hegemonia da Sociedade Civil, não podendo sustentar a sua dominação sem este controle. (Gramsci, 2011; Netto, 2006)

A Sociedade Civil, por conta de sua função dentro da dinâmica do Estado ampliado, é o espaço fundamental da luta de classes. Nela ocorre a disputa pela hegemonia que subsidia as ações da Sociedade Política. Os indivíduos, mesmo quando atomizados pelo sistema jurídico burguês, encontram na Sociedade Civil a possibilidade de se identificar enquanto classes e grupos sociais específicos com interesses em comuns e desenvolver suas agendas políticas, dialogando, disputando ou se aliando com outros grupos que também tenham interesse em garantir (ou em contestar) a legitimidade desta formação social, assim como do seu Estado. A 35

Sociedade Civil funciona como uma esfera intermediária entre o Estado, pretenso representante de toda a população, e os indivíduos atomizados do mundo da produção.

(Coutinho, 2011; Gramsci, 2011)

O capitalismo, assim, inaugura esta separação ideológica manifesta entre Sociedade

Civil e Sociedade Política, pois precisa dela para que os indivíduos atuem em um conjunto de relações independente do Estado, pelo menos ao nível do discurso, adquirindo a liberdade necessária para vender e comprar força de trabalho, materializando através de relações sociais um elemento fundamental da exploração sob os moldes capitalistas, a saber, a redução do sujeito à uma mercadoria definida pelo seu valor de troca. O empecilho deste arranjo é que os comportamentos humanos não podem mais ser controlados de forma direta e puramente coerciva pela classe dominante, mas ainda precisam ser produzidos de forma homogênea e baseada nos mesmos princípios para que esta sociabilidade continue a sua reprodução. Desta forma, privatizam-se as instâncias ideológicas, agora falsamente estabelecidas enquanto espaços de disputa independentes dos caminhos do Estado. Não à toa, é no momento em que a burguesia se fortalece enquanto classe que surge a ciência política clássica, atuando também nesta disputa de hegemonia e pretendendo pensar o funcionamento do Estado enquanto espaço separado da Sociedade Civil. A ciência política clássica surge como a tradução para o plano das ideias do projeto societário defendido pelas práticas da classe burguesa. (Coutinho,

2011; Gruppi, 1996; Marx, 2013; Mascaro, 2013)

Através da Sociedade Civil se estabelecem relações sociais de hegemonia, de direção político-ideológica, que complementam e legitimam a dominação estatal, garantindo o consenso dos dominados através de uma esfera relativamente autônoma em relação ao Estado.

Isto ocorre em uma materialidade social própria, na qual podemos notar um conjunto de organismo e objetivações sociais que são distintas tanto daquelas do Estado como as da esfera 36

puramente econômica. Na Sociedade Civil lidamos com o campo da organização da cultura, não havendo um sem a outra, sendo a cultura de uma sociedade resultado desta trama complexa e pluralista da qual é formada a própria Sociedade Civil. Todo um sistema de instituições de disputa ideológica que funcionam nesta esfera serve para disputar e materializar o papel da cultura, do senso comum, na construção do consenso. Assim, a produção da cultura é também a sua própria reprodução. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011)

A Sociedade Civil tem importância central na dimensão “ética” do Estado Moderno, capturando as outras classes para os valores e a concepção de mundo burguesa, não havendo mais a separação manifesta das classes em castas com diferentes relações com o Estado, mas reforçando uma dinâmica social aonde se entende a população, mesmo que separada em sujeitos individuais, enquanto um grupo homogêneo em que os sujeitos individuais estão sempre se movendo. A concepção burguesa da realidade, desta forma, propõe uma “vontade de conformismo” que seja condizente com a história ético-política criada por esta classe, aquela que naturaliza as relações pensadas sobre sua lógica de atuação. Na leitura liberal, a

única casta seriam os membros do próprio Estado, que existiriam em antagonismo à população em geral, pensada, como já apontado, de forma homogênea e individualista, sem especificidades de classe, raça ou gênero. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011)

Neste conjunto complexo de relações há destaque especial para os “Intelectuais”, cuja função social seria intervir na disputa de hegemonia enquanto dirigentes políticos. Com a introdução dos Aparelhos Privados de Hegemonia na dinâmica social, os intelectuais- que anteriormente se encontravam em uma situação ainda bastante dependente do Estado – podem agora atuar em instituições menos dependentes de sua dinâmica, testemunhamos o surgimentodos intelectuais de sindicatos, partidos e da imprensa, além de outros, podendo atuar até mesmo de forma contrária à logica do Estado, procurando despertar na população a 37

percepção sobre as limitações do Estado Burguês. Claro, o Estado e a classe dominante continuam elegendo e produzindo os seus intelectuais, que estão sempre dispostos a levantar argumentos apologéticos em relação à sociabilidade capitalista. Importante dizer que, mesmo que agora proliferem no espaço da sociedade civil - dito como privado - por conta da forma como a luta de classes se materializa nas relações dentro da mesma, não há intelectual ou ideia desorganizada dentro da totalidade social, surgindo daí o conceito de “intelectual orgânico”. Todo intelectual apresenta, logo, uma relação orgânica com a disputa pela hegemonia dentro da perspectiva de luta de classes. Basicamente, não há produção neutra de conhecimento. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011)

Os intelectuais da burguesia, que estão interessados em defender a sociabilidade capitalista e a estrutura de exploração inerente à mesma, por mais que tenham argumentos muitas vezes subversivos, são profundamente reacionários, se colocando muitas vezes como conservadores exatamente pelo interesse de que tais relações sociais sejam conservadas, independente dos constantes fracassos e tragédias decorrentes da sociedade de classes. Muitas vezes eles conservam também outras esferas de dominação, se apegando a elas por razões variadas. Chamaremos os intelectuais alinhados com os interesses da classe dominante de

“direita” neste trabalho e aqueles que buscam combater os valores que sustentam esta sociabilidade de “esquerda”. (Gramsci, 2011; Konder, 2009)

Acreditamos que esta discussão sobre o funcionamento do Estado Ampliado possa nos ajudar a entender por quê Marx e Engels afirmarem que o Estado não passa de um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. Ele se revela, a priori mesmo de sua atuação, como uma necessidade da sociabilidade capitalista, criando e gerindo diversos aparelhos que permitam que este sistema se desenvolva e continue o seu processo de reprodução social. Desde a concepção de direito centrada no indivíduo até a forma específica 38

deste momento histórico da relação entre Sociedade Política e Sociedade Civil, todos os seus elementos são pensados dentro da lógica da burguesia. Os debates sobre o maior ou menor tamanho do Estado não passam de debates sobre como a gestão da sociabilidade capitalista se dará, não se estabelecendo jamais, pelo menos enquanto se limitar aos elementos do Estado, enquanto um risco imediato para a mesma. Claro, ainda há um grande espaço de manobra dentro desta lógica, podendo inclusive se utilizar os aparelhos ideológicos do próprio Estado para disputar a hegemonia com a classe dominante, entretanto, a verdadeira ruptura com a sociabilidade capitalista só poderá se concretizar quando as instituições do Estado, e eventualmente o próprio Estado, forem repensadas a partir da ótica de uma classe que tenha as condições materiais e subjetivas de elaborar uma crítica radical às relações capitalistas: o proletariado. (Coutinho, 2011; Engels &Kautsky, 2012; Lukács, 2003; Gramsci, 2011; Marx

& Engels, 2005; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015)

Entretanto, tal debate não deve ser feito de forma tão abstrata, correndo o risco de se tornar dogmático e distante da realidade social que o pensa. Cabe então pensarmos como se dá tal disputa na contemporaneidade, no momento de avanço ferrenho do neoliberalismo por todo o mundo. O avanço do nacionalismo, neoconservadorismo e neofascismo por todo mundo se apresenta como elemento que, mesmo retomando enquanto farsa símbolos de tragédias passadas, se materializa de forma una com a conjuntura política e econômica sobre as quais as bases de tais processos históricos estão enraizadas. O cenário vivido agora veio de uma longa transformação que modificou, com maior ou menor radicalidade, diversos dos mecanismos e aparelhos de disputa hegemônica utilizados pela classe dominante, não podendo mais ser possível que as ideias de Gramsci e Marx sejam aplicadas sem uma leitura histórica mais específica. 39

Cabe então, neste ponto, buscamos um apanhado da atual dinâmica global do capitalismo, os caminhos de sua transformação, como a disputa pela hegemonia foi feita ao longo do século XX, quais as semelhanças e distinções que seus momentos centrais encontram entre si e, mais enfaticamente, como as transformações políticas, econômicas, culturais e tecnológicas – tecnologia cujo caminho de maturação nunca é independente de alguma forma de ideologia – influenciaram o formato atual dos Aparelhos Privados de

Hegemonia e de sua inserção na luta de classes.

2.2 - As demandas da classe dominante e as transformações do Estado Capitalista no século XX: Até onde vai a democracia burguesa?

Continuando a discussão do tópico anterior, se o Estado não é aqui entendido como um espaço neutro e separado da sociedade cuja única função é produzir de forma neutra as leis e da justiça, mas sim como parte de um complexo que tem como função social a reprodução das condições sociais necessárias para a reprodução do modo de produção capitalista, cabe a nós entender de que forma ele se relaciona com a Sociedade Civil, qual sua relação com as demandas da base e como ele atua na construção da totalidade social.

Como os modos de produção que organizam a sociabilidade são condições históricas, não natas, eles necessitam que determinadas concepções da realidade, costumes, valores, papeis sociais, determinada ética, se materializem em relações sociais que possam justificar a sociabilidade necessária para que cada modo de produção possa se reproduzir. É em tais esferas que a ideologia se manifesta e, sendo as esferas da produção, do capital e do trabalho a

Estrutura de determinada sociabilidade, as esferas que surgem a partir das necessidades destas são chamadasde Superestruturas. (Gramsci, 2011; Hall et al., 1978) 40

As formas iniciais que as superestruturas tomam são construídas a partir das necessidades da esfera da produção, tendendo a alcançar diferentes níveis de complexidade em coerência com tais demandas, inclusive podendo - como presenciado em situações revolucionárias - interferir na própria estrutura que a produziu, em uma relação que é muito mais de transformação mútua do todo social do que de construção unilateral. É a partir desta perspectiva do Estado enquanto Superestrutura que entendemos que o Estado Burguês é uma forma política própria do capitalismo, pois surgiu em consonância com as necessidades específicas desta forma de produção. (Hall et al., 1978; Mascaro, 2015)

A dominação estatal na atualidade, pela sua função social de dar suporte e ferramentas para que a classe dominante possa continuar explorando a classe trabalhadora, se revela como uma forma da dominação burguesa. Esta é uma dominação em constante transformação, visto que a natureza dinâmica e mutável do capitalismo e da luta de classes neste sistema faz com que as formas de exercer o poder de classe precisem sempre estar se atualizando, abrindo mão de antigas instituições, produzindo novas, reciclando antigas, lhes dando uma nova roupagem e fazendo todo tipo de malabarismos conceituais e práticos a fim de amenizar as contradições do modo de produção e anular as possibilidades da luta de classes na direção da libertação total dos trabalhadores. (Engels, 2012; Hall et al., 1978; Marx, 2005; Marx & Engels, 2007;

Mascaro, 2013)

As instituições das quais o Estado irá dispor, assim como a forma como a luta de classes irá se manifestar em cada momento histórico, são construídas em decorrência de um complexo processo histórico de disputa ideológica, uma disputa de hegemonia, na qual diversas superestruturas, entre elas o próprio Estado, irão tentar direcionar a população para um consenso possível em torno de termos unificadores como Nação, Raça, Civilização, ou qualquer outra palavra de ordem que os operadores dos aparelhos ideológicos hegemônicos 41

conseguirem gerenciar para unir a porção majoritária da classe dominante e que forem devidamente aceitos pelas massas, legitimando as ações do Estado. (Gramsci, 2011; Hall et al., 1978; Mascaro, 2015)

É fundamental frisar que tais disputas nunca são puramente ideológicas, funcionando enquanto mediação entre as demandas da esfera da produção e a produção da legitimidade necessária para que o Estado possa aplicar as reformas necessárias para que estas demandas sejam respondidas e a lógica capitalista continue se reproduzindo. (Gramsci, 2011; Hall et al.,

1978)

Este processo de tradução das crises da esfera da produção para as esferas da superestrutura através de mediadores ideológicos não é racional ou consciente, mas se desenrola de forma orgânica através dos deslocamentos do Bloco Histórico, o movimento conjunto de Estrutura e Superestruturas, sempre lidando com as contradições internas decorrentes da dinâmica própria de cada uma de suas esferas e buscando encontrar equilíbrio social mínimo para a continuidade da reprodução do capital diante de tais contradições.

(Gramsci, 2011; Hall et al., 1978)

Importante assinalar ainda a importância da ação humana na construção destas mudanças, pois o desenvolvimento da história não está limitado ao comportamento automático da dinâmica de atuação das diferentes esferas sociais, mas é engendrado a partir dos movimentos da luta de classes, que, mesmo naqueles momentos históricos em que toma uma forma cuja aparência seja de passividade, jamais deixa de ser o motor da história e de produzir e demonstrar as contradições das sociedades divididas em classes. (Gramsci, 2011;

Mascaro, 2015) 42

Diante de tal explanação, reafirmamos que, na dinâmica social do capitalismo, o interesse do estado burguês e das demais superestruturas é garantir as condições sociais necessárias para a reprodução social do capital. Especificamente sobre o Estado, este objetivo se baseia fundamentalmente em dois elementos: A divisão das classes e demais grupos sociais em mônadas individuais no formato de sujeitos de direito livres para vender e comprar mercadorias, entre elas a sua força de trabalho, e aparência da estrutura jurídica enquanto ente terceiro na luta de classes, legitimando as suas intervenções, muitas vezes coercitivas, enquanto ações neutras e justas que visem o bem maior da população. (Mascaro, 2015)

Por mais que a democracia burguesa seja necessária em certo nível de desenvolvimento das superestruturas a fim de legitimar suas intervenções, especialmente aquelas de natureza coercitiva, ela não nos parece fundamental para que a estrutura capitalista continue a se reproduzir, pelo menos não na forma tal como foi concebida pelos pensadores burgueses que lhe idealizaram a partir das demandas decorrentes da limitação do Estado que tinham à sua disposição naquele momento histórico. (Boschetti et al., 2010; Mascaro, 2015)

As formas da democracia foram bastante alteradas ao longo do desenvolvimento deste sistema, sendo até mesmo completamente limitadas em momentos nos quais foi impossível se conseguir o consenso - a hegemonia do bloco histórico - por maneiras tradicionais. A democracia, por sua dependência para com as instituições do Estado, é influenciada pela lógica das superestruturas, se transformando a partir da atuação da luta de classes dentro das necessidades levantadas pela esfera da produção. (Mascaro, 2015)

Faz-se mister, então, a discussão sobre como se deu o desenvolvimento na prática desta dinâmica, assim como a maturação das ferramentas de controle e disputa hegemônica que a burguesia e a classe trabalhadora encontraram à sua disposição para a mediação da luta de classes. Buscaremos apontar dois momentos de virada e crise no capitalismo no século 43

XXI que forçaram o Estado a se reinventar, compreendendo que os elementos de disputas, mesmo que locais, acabaram por desenvolver aparelhos e dinâmicas por parte do Estado que tiveram influência na gestão global da vida social.

O primeiro processo histórico que nos interessa debater aqui será o Fascismo Clássico, principalmente a partir de sua interpretação por Leandro Konder. Este marxista não limita a análise do Fascismo à sua aparência ou às suas principais personalidades, mas leva em conta suas implicações de classe e relações com a esfera produtiva, o que permite que o fenômeno seja pensado a partir da totalidade social e a dinâmica da disputa do Bloco Histórico. Para

Konder (2009), o fascismo foi uma tendência surgida na fase imperialista do capitalismo e que procurou se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de

Estado, tendo a sua expressão através de uma política que favoreça a crescente concentração do capital.

Chamamos atenção para a definição de “tendência” utilizada por Konder, afinal os rumos da superestrutura não se resumem às demandas da estrutura, mas também a forma como a luta de classes está se manifestando em cada período específico. Como dito anteriormente, a Sociedade Civil é o espaço da disputa de hegemonia na qual os grupos políticos disputam o controle dos aparelhos ideológicos, dialogam com os outros elementos da superestrutura a fim de se fortalecer, procuram formas de intervir na produção e, através da forma como a luta de classes se dá, procuram também mudar esta própria forma, nunca desconectados de uma perspectiva de classe. (Gramsci, 2015; Konder, 2009)

Pelo fato da Sociedade Civil ser um espaço de disputa, nela encontramos a todo o tempo diversas “tendências” - propostas de gestão da luta de classes e consequente forma estatal - e, mesmo que cada tendência surja através de elementos muito próprios de cada momento histórico, elas não se limitam ao formato tomado em seu surgimento, mas se tornam 44

elas mesmas parte do movimento de construção da história, buscando fortalecer condições, políticas, elementos culturais, em suma, diversas características das superestruturas e da estrutura, que lhes sejam favoráveis. Mas claro, se o grupo hegemônico do bloco histórico interfere na organização e forma das superestruturas ele também intervém na dinâmica da luta de classes. Desta forma, percebe-se que a mesma base econômica não implica necessariamente no mesmo arranjo estatal, podendo o capital servir-se de diversas formas para atingir seus fins. (Gramsci, 2015; Hall et al., 1978)

É a partir destes elementos que buscamos pensar as transformações estatais que ocorreram durante o Fascismo Clássico, assim como as demandas a que ele respondeu. Esta forma de estruturar o estado burguês surge durante a fase imperialista do capitalismo, em um momento de profunda crise política na Itália. Mesmo estando no grupo vencedor da I Guerra

Mundial, uma guerra interimperialista, este país não colheu os louros que esperava, se encontrando em uma grande de crise econômica ao fim deste conflito. Ao mesmo tempo, a recente revolução socialista na Rússia dominava o imaginário social, deixando a burguesia europeia em pavorosa com o risco de que algo nos seus moldes poderia se repetir em seus respectivos países. (Konder, 2009)

A Itália atravessou uma intensa crise econômica no começo da década de 20, o que fez com que, ainda em setembro de 1920 houvessem diversas tomadas de fábricas e usinas pelos trabalhadores. No entanto, os setores social-democratas do movimento logo traíram este levante, recuando e impedindo o avanço do movimento, se utilizando para isto de diversas concessões. Trotsky (2019) entende a interrupção destes levantes como o fator mais importante para o crescimento do fascismo, pois em novembro já ocorreu a primeira grande manifestação fascista, ocorrida em Bolonha, na qual a posse do novo prefeito foi recebida por 45

camisas-negras, os membros tradicionais do fascismo, armados e resultou em um tiroteio que deixou dez mortos e cem feridos.

Sem possibilidades de alcançar o nível de crescimento presenciado pelos outros países vencedores da primeira guerra mundial, o proletário e a pequeno-burguesia Italiana procuram por formas de reagir às conseqüências da crise capitalista, precisando reinventar o seu modelo de crescimento. O movimento da pequeno-burguesia trazia um programa confuso, típico de sua condição intermediária de classe, buscando tanto interesses pseudorevolucionários como conservadores das condições sociais que permitiam a exploração burguesa. Rapidamente este programa se modificou, pois com o apoio do grande capital o fascismo pode tomar o seu formato mais maduro de guardião armado da sociabilidade capitalista quando o estado já não mais conseguia cumprir esta função. Do lado oposto estavam os socialistas, que traziam uma proposta revolucionária cujo combate se tornou o principal foco da social-democracia.

(Konder, 2009; Thalheimer, 2009; Trotsky, 2019)

Neste cenário de dissenso estabelecido ocorre o que chamamos de “crise de hegemonia”, quando as grandes massas se destacam das ideologias hegemônicas na gestão da luta de classes ainda sem que uma nova tendência surja com uma interpretação dos fatos que consiga estabelecer um novo consenso e garantir as condições sociais necessárias para que o capital continue sua reprodução com mínimo de distúrbios. Nas belas palavras de Gramsci

(2011): “o velho morre e o novo não pode nascer”. O nascimento deste “novo”, quando em situações não-revolucionárias, envolve uma reorganização das superestruturas capitalistas em favor da classe dominante, buscando seu retorno também ao papel de classe dirigente. Quando os limites de determinado consenso são atingidos não resta outra saída à burguesia que não seja o reajuste violento da relação dominante de forças. 46

A nova ideologia dominante, na medida em que disfarça as reais determinações do fenômeno que é a crise social que lhe impulsiona, necessita pelo menos estabelecer um vínculo com os acontecimentos na medida em que pretende estabelecer uma grande aceitação de suas significações pelas massas. Foi assim que se deu na Itália do entreguerras, aonde a contradição inerente à uma sociedade aonde há produção coletiva dos bens e sua apropriação individual – o que ao nível das superestruturas é traduzido em questões como “por quê trabalhamos tanto e somos tão pobres?” – foi explicada através de uma crítica mutilada ao imperialismo que entendia a Itália como uma país “proletário” que estava sendo explorado pelos países burgueses, os imperialistas. Assim a proposta fascista forçou a união da Itália em torno de um conceito abstrato de “nação” e do chauvinismo consequente de tal interpretação ao mesmo tempo em que naturalizou a luta de classes, entendendo a realidade social como uma disputa constante, decorrente da própria natureza humana. (Hall et al, 1978; Konder,

2009)

Os comunistas foram demonizados como inimigos da união nacional italiana, aqueles que criam uma separação artificial entre classes e causam empecilhos para que a nação alcance a sua vocação enquanto um grande país, possível apenas através do trabalho conjunto de todo o povo Italiano. Tais conceitos de “povo” e “nação” só foram tão bem aceitos por se proporem a ocupar o lugar da comunidade idealizada e buscada por sujeitos que experienciam a vida de forma tão individualista e lidam com a intensa solidão que é como o modo de produção capitalista é sentido ao nível das superestruturas. Isto não ocorreu do dia para a noite, antes do estabelecimento do fascismo no Estado a Itália já podia testemunhar o surgimento de diversos “fachos de combate” como uma forma de organização comunitária e o

Partido Nacional Fascista soube se aproveitar muito bem das ideias originais deste grupo para criar a sua ideia de identidade nacional. (Konder, 2009) 47

A valorização fascista das concepções de nação e povo é bastante retórica e historicamente se apoiou na imagem de um inimigo interno e externo de forma a poder se sustentar e alcançar uma dimensão pragmática que permita ações no cotidiano. O fascismo então, se apropria de críticas válidas ao imperialismo para legitimar seus abusos. Tais abusos vinham na roupagem de algo novo, de uma mudança contra tudo o que havia sido feito até então, uma necessária ventilação na velha política, se apresentando como uma terceira via tanto ao capitalismo quando o comunismo, chamando-se “corporativismo”. Tudo isto não passava de uma nova roupagem para o tradicional modo de produção capitalista, não lhe causando ameaça alguma, o que leva Gramsci (2011) a chamar este comportamento de subversismo reacionário. (Konder, 2009)

Eventualmente, a classe operária, também se aproximou do fascismo, pois vinha atravessando seguidas derrotas políticas, desgastada por conta do combate com a social- democracia e testemunha das vitórias do fascismo, mas é importante sublinharmos que foi a pequena burguesia quem garantiu a sua base social. Este arranjo em torno da ideologia de unidade nacional com o objetivo de um crescimento conjunto em detrimento da ideia da luta de classes foi bastante efetivo na Itália, conseguindo a restauração de uma hegemonia necessária para estabelecer reformas com o objetivo de retomar os níveis de reprodução pré- crise do capital. O agenciamento da população em torno da ideia de unidade nacional tem sido utilizado até hoje de forma bastante efetiva pela burguesia, não sem contradições e dificuldades, como se evidencia no desgaste do neoliberalismo puro diante de movimentos de liberais nacionalistas, mas à época de Mussolini ele foi útil e o fascismo conseguiu praticamente destruir o movimento sindical e as organizações trabalhistas, iniciando uma tendência que, com os devidos arranjos, foi seguida pela Alemanha logo depois. (Harvey,

2008; Konder, 2009) 48

Lá também podíamos encontrar um governo de coalização social-democrata após a

Primeira Guerra Mundial. Na crise que se seguiu à derrota deste país, a classe operária apresentou uma grande organização política com intenso aumento no número de sindicalizações. Isto assustava os partidos de direita, que para tentar dialogar com estes setores chegaram até mesmo a falar na socialização de alguns setores da economia em suas propostas políticas, enquanto a social-democracia, percebendo o incomodo da burguesia com a organização da classe operária, repetia o exemplo italiano e buscava garantir o consenso através de repressões brutais contra a esquerda revolucionária. (Konder, 2009)

É neste cenário que surge o partido nazista, buscando fazer sua base social nos militares frustrados com a derrota na guerra. Com grande influência do fascismo italiano, ele também abraça propostas chauvinistas na perseguição de uma retórica irracionalista e pragmática contra aqueles que em sua visão dividiam a nação alemã: os comunistas e os judeus. Com um programa inicialmente confuso, também influenciado pelos interesses da pequeno-burguesia, o partido nazista foi se modificando e substituindo os aspectos mais anticapitalistas de seus discurso por palavras de ordem contra seus inimigos, que considerava os verdadeiros culpados pela pobreza alemã. Vale notar que na Alemanha, diferente da experiência italiana, elementos de teor racial foram fortemente agenciados pelo partido

Nazista, aonde os judeus compartilharam com a classe trabalhadora organizada a culpa pela crise. Foi esta guinada à extrema-direita que fez com que movimento liderado por Hitler caísse definitivamente nas graças do capital financeiro, que a esta altura já estava definitivamente estabelecido na Alemanha. (Konder, 2009)

Por conta das exigências dos vencedores da Primeira Guerra, a economia do país na

época era dependente da economia estadunidense, o que fez com as consequências da crise de

29 fossem especialmente perversas para a Alemanha. Com isto, a possibilidade de uma gestão 49

do Estado em torno da conciliação de classes se enfraqueceu e o governo social-democrata perdeu a sua razão de ser, não conseguindo mais sustentar a hegemonia do bloco histórico.

(Konder, 2009)

Durante esta crise, os elementos mais reacionários do capital financeiro se fortalecem, seguindo uma tendência de avanço da direita que já se percebia em toda a Europa e que via com bons os olhos o fascismo desde que a experiência italiana havia “acabado com as greves” e feitos às reformas necessárias para a implantação do capital monopolista na Inglaterra.

Assim, quando em 1932 os nazistas sofrem uma derrota nas eleições legislativas, os principais nomes do capital financeiro não o deixam cair, enviando uma carta para o Presidente

Hidemburg e pedindo que ele nomeie Hitler como Chanceler. Diante da pesada crise de hegemonia que a Alemanha passava - que levou o presidente até mesmo a dissolver o parlamento por duas vezes neste ano – e do forte apoio de massas que o nazismo havia alcançado, sua ascensão se apresentou como única forma de estabelecer o consenso necessário para que as mudanças demandadas para a implantação do capital monopolista fossem colocadas em prática. (Konder, 2009)

Neste período, o rádio ganha grande importância política, pois a sociedade de consumo já estava se estabelecendo durante os anos 20 e o debate político seguiu esta lógica, se aproveitando das novas ferramentas tecnológicas para disputar a hegemonia da Sociedade

Civil. Este avanço foi especialmente útil para a extrema-direita, cuja dinâmica unilateral e o grande alcance das rádios casava muito bem com seus longos discursos autoritários cheios de retórica vazia acerca de um inimigo a ser combatido. (Konder, 2009)

Os desrespeitos com os direitos humanos por parte dos fascistas em seus respectivos países não causaram nenhum incomodo exagerado aos demais países capitalistas, sendo inclusive visto com discreta - e em certos momentos escancarada - admiração pela burguesia 50

internacional. Entretanto, a retórica fascista demandou respiradouros bélicos para que pudesse se sustentar por mais tempo, o que levou a Alemanha e a Itália a iniciarem o empreendimento que eventualmente se tornou a Segunda Guerra Mundial. A “lógica do inimigo” que ajudou na popularização do fascismo acabou sendo a sua derrocada e, depois da derrota na segunda guerra, o fascismo não era mais imediatamente necessário para as reformas, havendo perdido sua capacidade de liderar o bloco histórico junto com sua base de massas, ficando assim também sem a sua razão de existir e perdendo o apoio das classes dominantes. (Konder, 2009)

O fascismo clássico chegou ao fim, porém, a história é um processo de diversas continuidades e rupturas, que não apaga seus processos, mas os supera, os conservando enquanto os suprime. As reformas feitas nas superestruturas por estes movimentos deixaram suas marcas no desenvolvimento da sociabilidade capitalista e, mesmo quando foram novamente reformadas, ainda resultaram em esferas construídas sobre as suas ruínas, não podendo nunca retornar ao estágio que se encontrava anteriormente. O Estado capitalista adquiriu dimensões militarizadas que iriam apenas se fortalecer no processo neoliberal, no qual a única forma política possível para garantir a reprodução do capital parece ser o Estado de Exceção. (Hall et al., 1978; Konder, 2009; Valim, 2017)

Importante dizer: o fenômeno nazifascista contem uma complexidade muito maior do que a discutida aqui, porém, buscamos apontar apenas os elementos que pretendemos utilizar na nossa reflexão em torno da atuação política da classe dominante em momentos de crise de hegemonia. Chama nossa atenção também os argumentos que se repetem, muitas vezes como farsa, em torno principalmente do argumento da ordem como solução para o caos social, sem discutir o fato de que este caos encontra as suas raízes no próprio sistema que se procura proteger. Assim, o argumento da ordem é utilizado de forma bastante efetiva ao longo da história para legitimar ações coercivas contra grupos que questionam o status quo do sistema. 51

As razões de tal efetividade se alteram ao longo do tempo, sendo melhor discutidas adiante, mas cabe dizer que muitas vezes elas se viram contra mudanças na superestrutura demandadas pelo próprio processo de reprodução do capital, como no processo de capitalização de estilos de vida que desviam da moral tradicional, por exemplo. (Hall et al., 1978; Harvey, 2008;

Marx, 2015)

Com a Segunda Guerra nossos arranjos imperialistas se estabeleceram e o capitalismo encontraram uma precária harmonia em propostas keneysianas que não tardaram a se esgotarem, porém, as experiências de conciliação de classes baseada em políticas públicas como estratégia de superação das contradições do capital reinventaram o papel do Estado

Burguês, agora muito mais atuante do que nos anos anteriores, não se apagaram totalmente do

Estado neoliberal na atualidade, mas acabaram influenciando sua formação, não havendo de fato uma ruptura, mas uma transição na qual um modelo de Estado Burguês foi arrancado das entranhas do outro guardando alguns de seus elementos. (Boschetti et al., 2010; Hall et al.,

1978; Harvey, 2008)

A Inglaterra foi local aonde as políticas socialdemocratas amadureceram e se tornaram referência para o “pacto kenesiano” que se tornou tendência por todo o mundo, com as devidas diferenças regionais em sua real aplicação, até a sua exaustão e o posterior estabelecimento do neoliberalismo. Acreditamos então que um estudo do cenário de derrocada deste pacto - que foi o maior consenso social-democrata do século XX - e do processo de recrudescimento do autoritarismo do Estado que o seguiu, assim como das mudanças culturais instigadas pelos atores políticos deste processo e da atuação dos aparelhos privados de hegemonia para isto pode ser revelador sobre as atuais ferramentas que possui o

Estado expandido para as suas intervenções. (Boschetti et al., 2010; Hall et al., 1978; Harvey,

2008) 52

A Inglaterra ao fim da Segunda Guerra Mundial se encontrava praticamente destruída, com grande parte de sua indústria e infraestrutura perdida no conflito, cujas consequências para a sua economia foram devastadoras. Além disto, o esgotamento das possibilidades da proposta do Laissez-Faire de gestão do capitalismo exigia outros arranjos para lidar com as contradições deste sistema. Soma-se a isto o reajuste das relações imperialistas na guerra, que estabeleceram definitivamente os Estados Unidos como núcleo central do imperialismo e inseriram o mundo no processo chamado de Guerra Fria. (Hall et al., 1978)

Com o fascismo clássico ainda recente e com a inserção da Inglaterra no bloco capitalista contra o bloco socialista na guerra fria, os reajustes necessários para a reconstrução da Inglaterra foram impulsionados principalmente pelas ideias de democracia parlamentar e crescimento produtivo relacionado com o livre mercado, além da forte ideia de direitos humanos que tomou o mundo depois de presenciar o genocídio judeu. Neste momento de força da URSS, a burguesia inglesa estava disposta a fazer concessões na direção da garantia de direitos mínimos para a classe trabalhadora para que assim pudessem proteger a estrutura essencial de exploração capitalista. Novamente, a organização trabalhista assusta a grande burguesia, agora sem à sua disposição a possibilidade de uma ruptura democrática como no caso do fascismo, pelo menos em países centrais. É colocada em prática, então, a proposta do

WelfareState. (Hall et al., 1978)

É na gestão do Partido Trabalhista - ocorrida imediatamente após a guerra - que são feitos os arranjos que estabelecerão o consenso seguido pela Inglaterra das duas décadas seguintes, com momentos de maior ou menor estabilidade. O estado inglês constrói todo um conjunto de políticas públicas que garantem o mínimo de qualidade de vida - e também de consumo, algo fundamental para evitar crises de superacumulação - para parte considerável da população inglesa. Esta tendência reestabelece a relação da Sociedade Política com a 53

Sociedade Civil, encontrando-se agora um Estado que defende um discurso bem mais intervencionista na economia em resposta às demandas do capital monopolista. Na fase tardia do capitalismo, o Estado adquire importância central no processo de realização do capital, pois os baixos salários e o desemprego, formas tradicionais de exploração e controle da classe trabalhadora, não funcionam mais de forma ideal, visto que o consumo é fundamental para que a exploração da mais-valia continue. (Hall et al., 1978; Boschetti et al., 2010)

Na resolução proposta pelo Keneysianismo - o que veio a embasar o Welfare State - as contradições do capitalismo não são resolvidas em sua raiz de exploração, mas a partir do aumento da capacidade de consumo da classe trabalhadora e do abafamento da questão social através da garantia mínima de direitos fundamentais a partir da intervenção estatal. Esta proposta se encaixa na lógica social-democrata, pois busca a resolução de problemas estruturais sem alterar a estrutura de exploração burguesa, fundamentada em uma ideologia que tenta disfarçar a dinâmica da luta de classes nesta sociedade. A socialdemocracia é a representante perfeita da pequeno burguesia e de seus temores, pois ela não entra nunca em contraste com a concepção de mundo capitalista, ou, nas palavras de Marx (2015), ela “não ultrapassa nas ideias os limites que esta não ultrapassa na vida”, tendo grande poder de agregação de massas. Tal ideologia, como a história do século XX prova repetidas vezes, costuma ter consequências nefastas para a classe trabalhadora. (Hall et al., 1978; Boschetti et al., 2010)

Assim, o processo de implementação do WelfareState, chamado no Brasil de Estado de Bem-Estar Social, não deve ser reduzido a uma simples vitória da classe trabalhadora, que, de fato, passa a ter acesso a uma qualidade de vida muito maior neste arranjo da gestão da crise capitalista, mas deve também ser percebida a dimensão da política social que busca impedir que a questão social gerada pelas contradições do capitalismo constitua uma ameaça 54

real ao modo de produção. O WelfareState, então, é entendido pelo marxismo também como uma forma de salvar o capitalismo, garantindo tanto o retorno do crescimento das taxas de lucro quanto o apoio de grande parte da classe trabalhadora. Na Inglaterra da década de 1950

é esta a proposta que vai estabelecer uma nova hegemonia, o que permite inclusive que seja o partido conservador que colha os frutos do crescimento proporcionado por tal arranjo, sem romper em momento algum com o que foi estabelecido pelo Partido Trabalhista no fim dos anos 1940. De fato, o Partido Conservador ocupou a cadeira de Primeiro Ministro entre 1951 e 1964 e não houve nenhuma séria ameaça ao consenso do WelfareState durante este período.

(Boschetti et al., 2010; Hall et al., 1978)

A década de 50, em especial, foi um momento de maturação das consequências do estabelecimento do Capitalismo Tardio. A ideologia da “sociedade sem classes”, reforçada por diversos ideólogos burgueses, leva à responsabilização do indivíduo como raiz de todo e qualquer empecilho na sua vida, desconectando-oda construção histórica e coletiva da sociedade, neste cenário cresce sem dificuldades o individualismo no que veio a se desenvolver como “ideologia da prosperidade”, na qual um comportamento que se adequasse com a moral da sociedade capitalista levaria sempre à riqueza, fazendo com que os pobres fossem percebidos não apenas como um peso para a sociedade como também pessoas moralmente inferiores. Outra consequência da “sociedade sem classes” é a maturação de um grande mal-estar, pois consenso algum alcança a todos, especialmente quando o modelo de reprodução do capital começa a se esgotar apresentando queda nas taxas econômicas. (Hall et al., 1978)

Nesta década, com o surgimento de uma “juventude” enquanto categoria consumidora de produtos separados daqueles da infância e da vida adulta – o que acarretou o consequente desenvolvimento de uma “cultura jovem” – e com políticas cada vez mais violentas por parte 55

do imperialismo em países africanos causando uma onda de imigrantes na Europa, os temores sobre o futuro da Inglaterra giravam em torno dos jovens e dos negros. Qualquer problema estrutural, principalmente o aumento da criminalidade, era lido por parte da imprensa e do

Estado como relacionado com os imigrantes, anulando a possibilidade de críticas ao capitalismo. Há também a questão da homossexualidade, cuja discussão sobre sua descriminalização começa a tomar forma nesta década, sendo vista como degeneração da sociedade por parte da população.( Hall et al., 1978)

Com estas contradições se intensificando, a força do consenso em torno do Welfare

State sustentado pela ideologia da prosperidade se enfraquece consideravelmente, saindo debilitada da crise econômica que se instaurou na Inglaterra durante a década de 60. A

Inglaterra conseguiu reestruturar o seu mercado interno, mas não o bastante para que pudesse competir no mercado internacional, o que diminui o crescimento nesta década e fez com que a população inglesa “redescobrisse” a pobreza. Rapidamente, a crise econômica se espalha para diversas esferas da sociedade, estabelecendo-se uma crise de hegemonia no momento em que a proposta do Welfare State atinge os seus limites. A década de 60, na Inglaterra e no mundo, será marcada pela impossibilidade de se ignorar a luta de classes, sendo um forte período de disputa. Por parte da mídia, a crítica ao sistema foi novamente anulada e se transforma em crise moral especialmente em 61, quando o escândalo sexual entre John Profumo, Secretário de Estado da Guerra, e Christine Keeler, abalou com a confiança da população em Harold

Mcmillan, então Primeiro Ministro, que acabou renunciando algum tempo depois. Assim, vemos os primeiros sinais do fim do consenso social-democrata na Inglaterra e o consequente reajuste do Estado na direção das novas tendências históricas, neste momento ainda a serem definidas. Neste ínterim, o que se testemunha é o mergulho da Inglaterra em uma profunda crise de hegemonia. (Hall et. All, 1978) 56

Ironicamente, cabe ao Partido Trabalhista, na figura de Harold Wilson, dar início ao desmonte das políticas sociais estabelecidas nos 10 anos anteriores na Inglaterra. O Partido

Trabalhista, depois de 12 anos na oposição, consegue apoio neste momento por ter uma boa relação com a classe trabalhadora, já não tão dócil como nos anos 50. Surgem então diversos argumentos, tanto por parte do Estado quanto da imprensa, em favor de uma mudança nacional no sentido da modernização, traduzindo a crise – cuja raiz é a estrutura capitalista - em aspectos técnicos. O Partido Trabalhista propõe um grande acordo nacional aonde todos fariam sacrifícios para recolocar o país no caminho do crescimento. Este novo contrato social entre classes desiguais mais uma vez se legitima na pretensa neutralidade do Estado, que ocuparia o papel de mediador. (Hall et al., 1978; Mészáros, 2011)

O corte de políticas sociais que beneficiavam a classe trabalhadora não passou despercebido, principalmente com o fortalecimento da crise que se torna constante nessa década. A transformação das instituições estatais nesta conjuntura exigiu uma intensificação do papel da violência na gestão da luta de classes. Com o novo papel do Estado na economia demandado pelo capitalismo tardio, a reprodução da vida social – assim como das disputas que a permeiam numa sociedade de classes – torna-se intensamente institucionalizada, surgindo todo um conjunto de instituições estatais cujo objetivo é o de regular a questão social. Com o policiamento do Estado tais instituições também se reajustam, tornando-se também estruturas que fortalecem o aparelho repressor. Novamente o discurso da luta de classes como tentativa de traição da união nacional e empecilho da chegada da nação em seu merecido e justo lugar de sucesso no capitalismo mundial. O Partido Trabalhista tenta combater greves através deste discurso, encontrando grande apoio da imprensa quando utiliza violência neste processo, mas este apoio não é de todo efetivo, tal estratégiaenfraquece cada 57

vez mais os argumentos de “sociedade sem classes” e afastando o partido do papel de representante da classe trabalhadora no imaginário social. (Hall et al., 1978)

Somando isto à escalada da violência extra-estatal por conta da desigualdade social cada vez maior, o clima dos anos 60 é o de uma ininterrupta escalada na direção da tensão social na qual qualquer estopim estoura o pânico social. As alas mais conservadoras da classe dominante entendem esta situação como consequência da “sociedade pornográfica” e da

“degeneração moral” relacionadas com a escalada das lutas pelos direitos das mulheres e da população LGBT nesta década e na anterior, o que se fortaleceu com a descriminalização da homossexualidade em 1967. Tais alas encontraram apoio na mídia e dialogaram bem com parte da população que não se sentia representada pelas propostas centradas na responsabilidade social do Welfare State. Hall et al. (1978), chamam este processo de uma

“Espiral de Significação” na qual diversos temas desconexos são interpretados como um projeto uno e conciso de uma “agenda” da esquerda, focada na destruição dos valores nacionais – atualmente se tornou bastante comum o conceito de “valores ocidentais” – como plano para a tomada do poder por comunistas. Assim, até mesmo a fragmentação interna da esquerda é vista como uma ameaça, pois esta se apresentaria como uma hidra conspiratória, com várias cabeças centradas em um único objetivo que muda dependendo das possibilidades de cada momento histórico, mas é sempre algo perverso e revoltante para o senso comum.

Esta espiral de significação estabelece um “Pânico Moral” na população, facilitando o surgimento de comportamentos extremistas e da perseguição de minorias políticas, culpabilizadas pelos males da sociedade. Podemos ver exemplos deste processo em diversos momentos históricos, como a campanha contra os judeus empreendida pelos Nazistas ou os argumentos contra o “Marxismo Cultural” que possibilitaram a vitória presidencial de Jair

Bolsonaro no Brasil em 2018. 58

Tal desconforto, cuja raiz os conservadores acreditam e propagam estar sempre em consonância com um movimento de ataque ao sistema social em que vivem, na verdade encontra sua raiz muitas vezes na reação das superestruturas à movimentos da própria base da produção material da vida. Isto só é possível pelo fato de a totalidade da vida social ser um complexo de complexos e por isso poder produzir contradições internas. Estas lhe impulsionam à mudança, fazendo com que ela exista enquanto um processo dinâmico de atualização constante. Desta forma, movimentos impulsionados pelo próprio capital - como uma certa tolerância para com grupoos políticos tradicionalmente marginalizados, desde que estes se coloquem enquanto consumidores - podem bater de frente com estruturas hegemonizadas deste própriosistema. Tais movimentos não são padronizados, podendo ser mais ou menos politizados dependendo de suas implicações. Nos anos 60 muitos destes movimentos reagiram contra a própria superestrutura, acreditando, muitas vezes como continuidade das ideologias individualistas tratadas anteriormente, que os espaços de reprodução da vida social deveriam ser centrais na disputa por mudanças estruturais. No caso inglês, tal fenômeno vem na onda que se segue depois de maio de 1968. (Lukacs, 2009; Hall et al., 1978)

A onda da contracultura inglesa vem, como muitos dos fenômenos recentes da fase imperialista do capitalismo, dos Estados Unidos, especialmente no exemplo dos hippies, vivendo e divulgando o “liberalismo dos costumes”. Ela reage à institucionalização da vida social por parte do Estado que é, novamente, típica do capitalismo tardio, e que neste momento ainda exige uma forma muito específica de vida. O capitalismo, em contínua expanção, não demora a tentar capturar tais estilos alternativos de vida, o que pode ter diferentes consequências dependendo da conjuntura. A própria formação destes estilos de vida depende do local aonde ocorre tal reação. Na Inglaterra muitodisto foi impulsionado pela 59

segunda geração de imigrantes, já mais politizada que os seus pais e seguindo o exemplo das lutas raciais que ocorriam no momento em todo o mundoquando conflitos em torno da questão negra se tornaram mais comuns depois da morte de Martin Luther King, também em

1968, o que cria uma convergência no imaginário inglês, e mundial, entre a população negra e a violência. (Hall et al., 1978)

Com a politização da contracultura, revoltas estudantis surgiram na Inglaterra, denunciando a separação entre vida pessoal e política, especialmente nas disputas contra o machismo. A mídia atuou novamente abafando a discussão em torno da discussão de injustiças sociais, simplificando todas estas ações políticas em termos de violência, lida como algo sem motivações reais, praticada pelo simples ato de provocar destruição. Esta retórica da

“violência pela violência” renovou o pânico moral em relação à raça, principalmente pelo fato de que os imigrantes de segunda geração fazerem constantes denúncias das contradições do sonho da “ideologia da prosperidade” vivido durante os pontos altos da conciliação de classes.

A Espiral de Significação se montou de forma que todas as ansiedades da crise foram lidas como culpa da população negra, que separava o país ao lutar contra um racismo que não existiria. (Hall et al., 1978)

A reação da direita -também mais organizada politicamente, neste casoem torno de seus porta-vozes- neste momento de politização da contraculturafoi de uma contrarrevolução contra o inimigo principal do “liberalismo dos costumes”, retomando temas já conhecidos em torno de uma ameaça invisível à própria ordem social. Chegou-se ao ponto aonde permissividade era entendida como sinônimo de fim da civilização. A mídia mostrava os militantes como poucos extremistas isolados e a sociedade britânica aparecia como em estado de cerco, ameaçada pelos diversos ataques de seu inimigo interno. Movimentos e atos contra imigrantes, negros e qualquer outra coisa que “ameaçasse” a sociedade britânica se tornaram 60

comuns ao fim dos anos 1960. Os reacionários da lei e da ordem se organizaram com diversos matizes da direita, recebendo inclusive apoio aberto de Skinheads neofascistas. A politização da contracultura neste momento de acentuação da crise do capital havia de fato causado rupturas que mataram definitivamente o sonho de uma sociedade justa e sem lutas internas.

(Hall et al., 1978)

As eleições de 1970 são tomadas por este clima conservador com forte impulso da mídia. É um momento de convergência total da paranoia antissocialista que enxerga o inimigo em todos os lugares da vida social. Cada vez mais comumente tornava-se prática o discurso de ódio da paranóica extrema direita, que contava com diversas colunas na imprensa. Neste cenário a “Cruzada da Lei-e-Ordem” conseguiu articular o sentimento de diversos membros da “maioria silenciosa” diante da crise de hegemonia em ações que reforçavam estruturas sociais capitalistas. Estas eleições marcaram oficialmente a mudança no modelo de gestão da luta de classes por parte do Estado, que não está mais em um consenso em exaustão, mas em um momento de estabelecimento de um novo consenso, quando a crise de hegemonia ainda não foi resolvida, mas na verdade aprofundando-se, havendo disputa aberta entre as tendências políticas que disputam a hegemonia da sociedade. O Partido Conservador, cada vez mais à direita, venceu e tanto a crise de hegemonia quanto a gestão da luta de classes neste ponto se alteraram qualitativamente na mesma direção. (Hall et al., 1978)

O que ocorreu a seguir foi o fortalecimento do Estado em torno dos temas de união nacional e da autoridade, pois neste momento o contrário da violência não é visto como paz, igualdade, mas sim como a lei. O nacionalismo aparece como resolução dos problemas causados pela crise,ideia que produz uma identificação entre a população e o estado, legitimando todas as suas ações como ações do povo inglês. Há uma grande mobilização da lei no sentido do fortalecimento das estruturas sociais do capitalismo, criminalizando todas as 61

práticas contrárias ao novo arranjo de sua gestão e legalizando qualquer forma de contenção da população. Os usos antecipatórios da lei tornam-se cada vez mais comuns no combate aos

“esquerdistas”. Novas leis criminalizam diversas formas de protestos e um aparelho repressor se monta a partir da união da lei com a forte repressão “informal” por parte de membros da extrema direita (Hall et al., 1978)

Tudo isto não se deu de forma unilateral e direta, mas sim em um processo dialético marcado por diversos avanços e recuos decorrentes dos caminhos tomados pela luta de classes. O governo de Edward Heath encontrou uma classe trabalhadora extremamente ativa e amadurecida das experiências da década de 60, já totalmente desperta do sonho da sociedade sem classes. É nesta gestão também que o Estado adquire sua face mais opressora contra os movimentos trabalhistas, inclusive com apoio de parte considerável da população. A luta de classes se revela como incontornável em 1970. (Hall et al., 1978)

A gestão Heath começa com uma greve de carteiros e de trabalhadores do setor energético que foi duramente atacada pela mídia, que, articulada com o Estado, derrubou os trabalhadores do setor energético e isolou os carteiros. A mídia, neste momento, se revela mais conservadora do que nunca, seguindo e impulsionando tendências reacionárias em outras esferas da Superestrutura através de ataques diários às organizações de classe, que taxa de extremistas. O ano de 1971 é marcado pelo surgimento de novas leis contra imigração com o objetivo de combater a população mais politizada e se aproximar ainda mais da extrema direita. É neste ponto que a classe trabalhadora começa a desenvolver novas estratégias de luta, como ocupações em fábricas, o que faz aumentar o grau de engajamento dos trabalhadores diante do fechamento de estatais. (Hall et al., 1978)

Seguindo o exemplo de guerrilhas que surgem pelo mundo nesta década e na anterior, o grupo chamado de “Angry Brigade” fez atos mais radicais na Inglaterra, mas a conjuntura 62

conservadora acabou isolando estas ações do conjunto de lutas da classe trabalhadora, tendo como maiores consequências a intensificação da repressão estatal, que procura se “justificar” com o argumento de que havia risco de mais ataques por parte de grupos semelhantes. Houve grande erosão das liberdades individuais e forte corrupção do Estado, com poder centralizado em poucos. Em 72, que ficou conhecido como “Ano do Terrorismo Internacional”, a violência deixou de ser exclusiva dos países periféricos e houve um aumento na militarização da vida cotidiana em países centrais do capitalismo. Para o Reino Unido, o ano começa com o

Domingo Sangrento, quando há um massacre na Irlanda durante um ato contra a ocupação inglesa. (Hall et al., 1978)

Na gestão Heath são destruídas as últimas esperanças de se entender o Estado enquanto ente terceiro durante aquele momento da luta de classes, o que, somado aos constantes ataques à classe trabalhadora por parte da mídia e à escalada da repressão informal, leva a uma guinada à esquerda por parte da classe trabalhadora, que consegue lutar contra o governo sem lideranças tradicionais, especialmente depois da greve de mineiros, e até mesmo do Partido Trabalhista. A vitória dos movimentos da classe trabalhadora deu nova vida ao acordo Social-democrata, que vencem as eleições de 74, mas com cuja resolução novamente baseada na conciliação de classesé extremamente instávelneste momento de crise. (Hall et al.,

1978)

Tal resolução se torna ainda mais impossívelno ano seguinte, quando ocorre uma crise global sincronizada do capitalismo com profundas e mortais consequências ideológicas, aumentando ainda mais o fanatismo da extrema direita. Começam-se também a sentir as consequências da repetida mobilização do Estado entre coerção e conciliação, além de seu nível de corrupção, que cresce em conjunto com a repressão. Basicamente, a confiança no 63

governo britânico está mais deteriorada do que em qualquer outro momento. Nesta recessão, novamente paga pelos trabalhadores, os temas mais agressivos retornaram. (Hall et al., 1978)

A crise de hegemonia só foi superada de fato com a atuação de Margereth Tatcher, que personificou a união da população britânica em um novo consenso culminando na vitória das eleições de 1979, com vitória do Partido Conservador, com a ala da extrema direita à sua frente pela primeira vez desde 1945. Seu programa político, continuando a tendência dos altos níveis de abstração que já davam o tom do neoliberalismo, abunda de temas conspiratórios, o que casou bem com a forte individualidade e a popularização da ideologia pequeno-burguesa decorrentes da recessão. (Hall et al., 1978)

A resposta para a crise do Welfare State se deu em um período de transição e reajuste do estado britânico que durou décadas e teve participação fundamental da mídia na sua concretização, novamente não havendo problema algum para a burguesia em flertar com a extrema direita e até mesmo com grupos neofascistas para recuperar o crescimento das taxas de lucro. A resposta, mas não necessariamente a solução, das demandaslevantadas neste momento do capitalismo e que deu o tom dos Estados contemporâneos é baseada em uma agenda muito mais bárbara e abertamente a favor das classes dominantes do que os antigos arranjos, agenda chamada de Neoliberalismo. (Hall et al., 1978; Harvey, 2008;)

O neoliberalismo e suas conseqüências serão discutidos a fundo no tópico seguinte. O objetivo aqui foi discutir a plasticidade da democracia burguesa. O Estado capitalista pode representar os interesses da classe dominante de diversas formas, seja através do fascismo clássico, momento no qual utilizou de um movimento iniciado na pequeno-burguesia pra combater o enfraquecido movimento operário, seja através do Estado de Bem-Estar Social, com suas políticas públicas fortes, se aproveitando do sucesso temporário de seu modelo de crescimento para estabelecer uma falsa ideia de conciliação de classes. O que a história nos 64

mostra é que, sempre que a burguesia pode ou precisa retirar direitos da classe trabalhadora, todo um conjunto de aparelhos ideológicos são colocados em ação e elegidos à um local de atenção pela classe dominante, estabelecendo um novo consenso que possa apaziguar as contradições do capitalismo. (Zetkin, 2019; Hall et al., 1978)

Nestes dois exemplos, apenas alguns entre muitas possibilidades de arranjo do Estado burguês, podemos ver a impossibilidade da dicotomia entre Estado e Vida Privada baseada na falsa ideia de que a economia precisasse de um Estado reduzido para continuar com seu processo. O que ocorre na realidade é o contínuo rearranjo dos aparelhos estatais na direção do aumento das possibilidades de reprodução da classe dominante. Além disso, é notável como estes arranjos e suas respectivas críticas marcaram o modelo que a gestão da luta de classes tomou no século XXI, especialmente pela forma como guiaram as possibilidades da reestruturação para o Neoliberalismo, processo histórico que será discutido de forma mais complexa a seguir.

2.3 – Neoliberalismo e Imperialismo: A Periferia no Capitalismo Tardio

As alterações no arranjo da gestão da luta de classes e da dinâmica de reprodução do capital por parte do Estado capitalista vieram a se sintetizar na experiência, aplicada de forma diversificada dependendo da inserção do país na dinâmica global de produção de valor, do neoliberalismo. Este novo arranjo social surge das entranhas do anterior, tendo em seus fundamentos uma crítica a tudo o que o Estado de Bem Estar Social representa, como qualquer intervenção impulsionada por mecanismos democráticos na reprodução do capital que pese em favor da classe trabalhadora. (Harvey, 2008)

É no processo de maturação e esgotamento das possibilidades do Wellfare State que o projeto neoliberal ganha força, apoiado por diversas instituições que ocuparam e ocupam a 65

função de Aparelhos Privados de Hegemonia, como a Mont Pelerin Society, fundada pelos grandes pensadores desta corrente que veio a amalgamar as teses do livre mercado, como

Hayek, Popper, Mises e Friedman. Este tipo de grupo, os Think Tanks tão comuns hoje em dia, conseguiu se organizar de forma a aproveitar a crise do modelo anterior para estabelecer a hegemonia global do neoliberalismo, acumulando o apoio de diversas ferramentas de dominação, privadas e estatais, da classe dominante, cujos interesses apontavam para o mesmo horizonte. (Harvey, 2008; Netto, 1993)

O Wellfare State enquanto forma de “domar” os aspectos mais violentos do capitalismo, marcados nas tendências antidemocráticas da concentração de renda, na pauperização da classe trabalhadora e na aplicação da violência contra qualquer ato que ameace os interesses da classe dominante, já surge carregando em si as raízes de seu esgotamento. Isto decorre da irracionalidade inerente ao modo de produção capitalista, cuja

única prioridade é sua auto-reprodução, mais lucro que se transformará em mais capital a ser investido. Esta não é uma decisão individual de capitalistas específicos e degenerados, de homens gananciosos, mas uma tendência intrínseca à forma como o valor é produzido no capitalismo, havendo a necessidade contínua de expansão para que o sistema consiga realizar suas mercadorias em capital e recomeçar o ciclo. A outra opção enfrentada pelos burgueses enquanto classe seria uma radical redução na sua taxa de lucro, o enfraquecimento do capitalismo e de seus instrumentos de controle. Resumindo, o fenecimento do poder de classe da burguesia. (Netto, 1993)

A única forma da burguesia aceitar este arranjo é quando confrontada com forte mobilização social ou risco de um esgotamento intenso no consumo, arriscando a derrubada de todo o sistema capitalista de da própria estrutura de exploração que sustenta a burguesia, estando ela disposta a “abrir mão dos anéis para não perder os dedos”. O arranjo do Wellfare 66

State busca abafar as tensões causadas pela exploração e rearranjar a luta de classes de uma forma que não evidencia os seus conflitos, moldando a sociedade em uma dinâmica de conciliação de classes. Tal gestão da luta de classes não a anula, sendo necessário um grande investimento por parte do Estado para que os conflitos sejam resolvidos dentro de sua lógica, o que exige uma reprodução ainda maior do modo de produção, sendo possível apenas em momentos de intenso crescimento econômico. (Netto, 1993)

Isto significa dizer que a crise do Wellfare State é também o esgotamento de determinada dinâmica de expansão do capital, uma dinâmica que buscava amenizar as contradições da luta de classes, uma tentativa de trazer vantagens para duas classes antagônicas enquanto dava continuidade à dinâmica de exploração de uma pela outra. Vale dizer, o processo de esgotamento das propostas do Wellfare State durou várias décadas, sendo também o processo de estabelecimento da hegemonia neoliberal, e, mesmo em seu apogeu, o

Estado de Bem Estar Social nunca conseguiu cumprir totalmente os seus objetivos, estando sempre inserido em uma condição inerentemente contraditória. Por isso, acreditamos que para entender a mudança no Estado capitalista seja preciso apontarmos alguns dos elementos de como se dá a produção de valor dentro da lógica capitalista. (Harvey, 2008; Netto, 1993)

De forma simplificada, a dinâmica da produção de valor no capitalismo envolve a centralidade na produção de “mercadorias”, a forma que o capital industrial toma quando no momento de sua “realização”, quando é vendido, recuperando a forma de capital-monetário, dinheiro, carregando em si um valor superior ao investido inicialmente, sendo esta diferença representada no lucro. Para se dar início a este processo, é preciso uma quantidade de capital a ser investida nos meios de produção (trabalho morto) e na força de trabalho (trabalho vivo) que irá operá-los, exercendo de fato o trabalho que irá produzir a mais-valia, a produção extra que irá desembocar no lucro no momento de sua realização. É no processo de atuação do 67

trabalho vivo sobre o trabalho morto que se produzem as mercadorias posteriormente vendidas no espaço do mercado. O dinheiro se transforma em mercadoria que se transforma em uma quantidade superior de dinheiro. (Piqueras & Dierckxsens, 2018)

Dentro desta lógica se desenvolve a tendência à concentração de renda e de poder de classe na mão dos burgueses, visto que é necessária uma grande quantidade de capital para dar início à esta reprodução. Outra necessidade que se evidencia e que intensifica a tendência

à concentração de renda é a necessidade constante de expansão do sistema. Se a realização das mercadorias em capital é fundamental para a reprodução do capital, uma sociedade industrializada e que produz bens que não são esgotados no memento do consumo, como móveis, eletrodomésticos, meios de transporte e roupas, entre outros, há uma tendência a diminuição do consumo ao longo do tempo, reduzindo intensamente o lucro. É daí que surgem as “crises de superprodução”, quando uma indústria impulsionada pelo momento crescimento do consumo inicial continua a sua produção, tendo o lucro reinvestido com objetivo de expansão, mas acaba por não conseguir realizar as suas mercadorias, impossibilitando o fechamento do ciclo e o consequente lucro. (Piqueras & Dierckxsens,

2018)

Esta tendência às crises foi resolvida a nível global com a estratégia de abertura de novos mercados durante o século XX, inserindo países periféricos na lógica do capitalismo com uma velocidade surpreendente, mimetizando em décadas processos que duraram séculos nos países centrais do capitalismo. Isto significou uma grande industrialização e urbanização destas formações estatais, assim como a consequente alteração dos estilos de vida dos povos periféricos. A necessidade era que se formassem sociedade de consumo, focadas na ideologia da prosperidade representada mundialmente pelo American Way of Life, o que não raras vezes trouxe resistência por parte da classe trabalhadora, exigindo também o desenvolvimento 68

de tecnologias de controle nestes Estados, como mais organização na violência estatal em favor do capital ou formas de apaziguar os incômodos causados nos sujeitos, como o desenvolvimento da mídia e da psicologia. No Brasil um momento marcante desta estratégia foi a política dos “50 anos em 5” e suas consequências. Com isto, os países centrais evitaram a crise exportando suas necessidades de consumo, podendo continuar o processo de expansão do capital e diminuindo os conflitos com a classe trabalhadora local, que também tem a ganhar com a exploração dos países periféricos, o que veio a causar sérios problemas para a solidariedade da classe trabalhadora a nível global. (Valim, 2017; Netto, 1993; Piqueras &

Dierckxsens, 2018)

A abertura de países para a dinâmica de reprodução do capitalismo exigia também mudanças na estrutura legislativa dos países periféricos, dando mais liberdade para que o capital pudesse se reproduzir. Novamente, este foi um processo que durou décadas, se desenvolvendo a partir de instrumentos e argumentos muito mais sutis hoje em dia, ou pelo menos até os anos finais da década inicial do século XXI, mas podemos encontrar uma intensificação a partir dos anos 40, e especialmente 50, no século passado, marcado pela abertura de mercados de consumo e industrialização massiva de diversos países ao longo do mundo. Esta estratégia, entretanto, começou a dar sinais da impossibilidade do esgotamento das suas possibilidades de contínua expansão quando os novos mercados por sua vez também ficaram sobrecarregados, não conseguindo mais alcançar as demandas da produção, sempre em constante expansão. A queda da União Soviética, decorrente da crise do socialismo real, permitiu que nos anos 90 diversos novos mercados se abrissem para o capitalismo, permitindo que tal estratégia se renovasse por um breve momento, mas a diminuição de sua eficácia já se fazia sentir nos anos 60, exigindo que os países centrais do capitalismo buscassem novas 69

estratégias de dar continuidade à expansão capitalista. (Valim, 2017; Netto, 1993; Harvey,

2008)

Evidentemente, por seguir a lógica do capitalismo, tal estratégia carregou em si diversas contradições até mesmo em seu momento de maior sucesso. A quantidade de capital necessária para o investimento internacional fez com que apenas grandes empresas pudessem participar deste mercado, sendo um dos fatores que aumentou a concentração de renda até um ponto em que poucas empresas tinham controle de todo o mercado local, podendo facilmente quebrar outras menores e intensificando a tendência monopolista da reprodução do capitalismo. Outro ponto foi o amadurecimento considerável das ferramentas e estratégias imperialistas neste momento, havendo uma articulação muito maior entre os países pela lógica do capitalismo, criando uma estrutura que dá continuidade às ações imperialistas do fim do século XIX e que iria ser fundamental para as ações que permitiram a rápida e violenta popularização do neoliberalismo. Tais acontecimentos foram especialmente interessantes para as burguesias locais - que se formaram ou se desenvolveram neste ponto, normalmente dando continuidade a estruturas de poder anteriores - que foram facilmente traduzidas com resultados que interessaram tanto ao capital internacional quanto às burguesias locais, encargadas de gerirem a luta de classes na periferia. Isto deu a cada processo características específicas, fazendo deste, assim como de todas as transformações globais impulsionados pelo imperialismo, um desenvolvimento desigual e ao mesmo tempo combinado. (Harvey, 2008)

Outra tendência que levou à redução da taxa de lucros e à necessidade do capitalismo reinventar sua dinâmica de reprodução foi a de aumento da quantidade de trabalho morto em relação a trabalho vivo no processo de produção de mercadorias. O desenvolvimento tecnológico no modo de produção capitalista é impulsionado pela necessidade de criar novos tipos de mercadoria, deixando as anteriores obsoletas e criando a necessidade de novo 70

consumo por parte da população. Além disso, outro elemento que impulsiona o desenvolvimento tecnológico no capitalismo é a competitividade decorrente das tendências monopolistas do modo de produção capitalista. Inclusive, a competitividade é vista pelos liberais como o único impulsionador da tecnologia, entendendo o avanço presenciado no capitalismo como algo que só poderia acontecer neste sistema. Não podemos negar que o capitalismo proporcionou uma estrutura de produção com capacidade nunca antes vista, mas também é cada vez mais evidente que os interesses desta produção não pode ser o bem estar humano, como evidenciado de forma direta por indústrias como a farmacêutica e agrária ou de forma indireta pela grande velocidade com que os aparelhos tecnológicos se tornam obsoletos, muitos até programados para apresentarem falhas depois de determinado tempo.

(Piqueras & Dierckxsens, 2018;)

A necessidade constante de avanço tecnológico dos meios de produção também é um fator fundamental para entendermos as quedas da taxa de lucros no século XX e o arranjo social que se propôs como solução, o neoliberalismo. O avanço tecnológico produz máquinas cada vez mais dispendiosas, aumentando a quantidade de trabalho morto no processo de produção. É importante lembrarmos, apenas o trabalho vivo produz valor e consequentemente mais-valia a ser extraída. Quanto menor a porcentagem de trabalho vivo nos gastos do processo de produção menor será a porcentagem do lucro. Evidentemente, o lucro pode ser uma quantidade de valor bruto maior que anteriormente se houver investimento maior, o que muda é o valor total. Isso ainda é interferido pela expansão da produção permitida pelo avanço tecnológico, o que leva a uma taxa ainda menor de trabalho vivo na produção do valor, exigindo que a classe proletária seja ainda mais explorada pra que as taxas de lucro voltem a crescer ou ao menos não diminuam. (Piqueras & Dierckxsens, 2018) 71

A rápida mudança nos meios de produção ainda faz também com que o trabalho morto não alcance todo o seu potencial produtivo, sendo descartado antes do fim de sua vida útil para que um produto mais moderno entre no mercado. Isto também é influenciado pelo rápido aumento no preço destas máquinas, intensificando o monopólio, pois cada vez menos sujeitos conseguem acumular o capital necessário para adentrar na indústria. Esta é outra forma com que a necessidade de avanço tecnológico diminui a taxa geral de lucros. (Piqueras &

Dierckxsens, 2018)

Isto fez com que Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) se tornasse uma indústria autônoma, produzindo patentes e as transformando em mercadoria, o que causa uma expansão na produção de valor como forma, mas não necessariamente enquanto conteúdo, fazendo com que novas patentes sejam comercializadas antes que as antigas se tornem irrelevantes. O avanço desta indústria faz com que a criação de novas patentes supere as demandas do mercado, precisando que novos nichos e necessidades sejam criados artificialmente através de um intricado conjunto de estruturas sociais, um exemplo gritante de tal prática é a relação da indústria farmacêutica com as criações de novas patologias por parte da psicologia, patologias estas cuja “cura” não raro havia sido já anteriormente descoberta e patenteada. (Piqueras &

Dierckxsens, 2018)

O estabelecimento de um mercado global permite que tecnologias já superadas dos países centrais possam ser replicadas e encontrar nova vida como mercadorias na periferia do capital, estendendo a vida útil dos meios de produção e combatendo a queda na taxa de lucros.

Um mercado em constante expansão também é necessário pelo fato de que os avanços tecnológicos dos modos de produção são muito constantemente acompanhados por avanços na produtividade, o que exige um mercado grande o suficiente para embarcar esta nova demanda e impedir crises de superprodução. (Harvey, 2008; Piqueras & Dierckxsens, 2018) 72

O período de hegemonia do Wellfare State não foi um período sem crises, mas as intervenções estatais no sentido de evitar a pauperização absoluta nos países centrais ao mesmo tempo em que criavam processos de industrialização e criação de mercados nos países periféricos levaram a uma diminuição considerável das manifestações da crise nos países centrais, sendo também um período de segurança. (Harvey, 2008)

Para a fomentação da criação de um mercado global integrado, foram criados nos anos próximos a 1945 o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização das Naçõess Unidas (ONU) que desenvolveram a prática de fazer empréstimos que possibilitassem a industrialização dos países periféricos quanto de gerir as disputas geopolíticas decorrentes da intensificação das relações globais. O mercado global integrado apenas no neoliberalismo consegue atuar de forma mais ou menos completa, dando também nova cara para as instituições citadas, que assumem um papel muito mais agressivo nas exigências que fazem para os empréstimos, abertamente neoliberais. (Harvey, 2008; Netto,

1993)

O fato é que durante o século XX a taxa de lucro global do capitalismo não parou de cair, se recuperando de crises mas jamais recuperando o tamanho do crescimento anterior. Tal tendência diminuiu a riqueza relativa e o consequente poder de classe da burguesia, diminuindo até os efeitos das tendências monopolistas do capital, que diante das regulações estatais não podiam funcionar a todo o vapor tal qual pretendido pelos adeptos do livre mercado. Esta redução na taxa de lucros levou à crises constantes, desemprego, recessão de um mercado agora global e altas taxas de inflação. O Wellfare State no fim das contas não conseguiu domar as tendências destrutivas do capitalismo, especialmente no momento de sua intensificação decorrente do estabelecimento de um mercado globalmente conectado, o que esgotou as possibilidades de sua estratégia produtiva. A partir do fim dos anos 60 esta 73

proposta se torna insustentável e a classe dominante começa a se organizar em dinâmicas qualitativamente distintas. É a partir daí que começa a se materializar o que veio a ser conhecida como ofensiva neoliberal. (Netto, 1993; Harvey, 2008)

O liberalismo é um movimento ideológico que sintetiza as críticas da burguesia ao

Estado absolutista. Mesmo que tal Estado tenha contribuído para a maturação dos mecanismos de acumulação primitiva do capital e consequente fortalecimento da burguesia, o capitalismo exigia um conjunto de estruturas muito mais dinâmicas do que as permitidas pelo estagnado Estado absolutista. A partir de pensadores como Locke e Adam Smith uma doutrina econômica que propunha a diminuição radical da intervenção Estatal na economia, o

Estado do Deixa Fazer ou Laissez Faire, foi criada e se tornou hegemônica no mundo capitalista, impulsionando os primeiros momentos das práticas imperialistas que agora funcionam de forma central no modelo de reprodução do capitalismo global. Esta corrente teórica entende o mercado como regulador social fundamental, mercado cujas potencialidades poderiam apenas ser alcançadas por indivíduos que atuassem em total liberdade. O mercado teria uma dinâmica ativa, aumentando a qualidade dos produtos e estabelecendo preços justos por si só, como se uma mão invisível o regulasse. (Harvey, 2008; Netto, 1993)

Esta expansão era, novamente, uma necessidade estrutural do capitalismo, o deixando totalmente vulnerável a crises, como se viu em 1929, quando a diminuição da demanda

Europeia depois da reconstrução de suas indústrias nacionais após a primeira guerra mundial foi insuportável para o sedente mercado americano. Isto deu início a intervenções estatais mais comuns na economia, como o New Deal, pacote de incentivos e assistências proposto como resposta a crise. Mesmo que muitos pensadores do mundo ainda defendam sua relevância na atualidade, 1929 é marcado como o ano em que as contradições do projeto de reprodução do liberalismo se tornaram insuportáveis, acabando com o sonho do Estado do 74

Deixa Fazer. Mesmo que as ideias continuem as mesmas, as dinâmicas do capital foram qualitativamente alteradas, fazendo com que as formas com que elas se aplicam já não possam ser as mesmas. O Estado do Deixa Fazer não é mais possível a partir do alcance de seus limites de reprodução, exigindo que novas ferramentas sejam elaboradas, agora muito mais intervencionistas do que o ideal para o liberalismo.(Netto, 1993; Harvey, 2008)

Mas o liberalismo não é apagado enquanto corrente teórica, muito pelo contrário, um novo time de pensadores marca o século XX ao tentar recuperar as mesmas ideias defendidas pelo liberalismo, agora trazendo elementos que carregam uma crítica às outras organizações estatais do século XX: Estado de Bem Estar Social, Socialismo e Fascismo, vistos todos como uma coisa só, os diferentes momentos de um Estado forte, cuja única função seria aprisionar os cidadãos livres e os movimentos do mercado. Esta inclusive é a tese defendida na obra que inicia esta onda do liberalismo, entendida como neoliberal, o livro “O Caminho da Servidão”, obra de Friedrich Hayek publicada em 1944, um ano antes de Karl Popper publicar “A

Sociedade Aberta e Seus Inimigos” que segue a mesma linha de pensamento. É neste mesmo momento em que surgem instituições como Banco Mundial, FMI e ONU, que tiveram papel fundamental na industrialização do mundo e estabelecimento da hegemonia capitalista global, montando grande parte dos arranjos geopolíticos do século XX e concretizando o projeto construído na conferência de Bretton Woods. Nos momentos finais da Segunda Guerra interimperialista os países centrais do capitalismo chegam a um consenso que rearranja as relações imperialistas para a criação de Estados mais intervencionistas que pudessem garantir uma mínima proteção contra as crises, levando a uma subtração considerável do poder político que os defensores do liberalismo haviam gozado nas décadas passadas e que já apresentava sinais de seu fenecimento desde 1929. (Harvey, 2008) 75

Estes pensadores se reuniram na já citada sociedade do Mont Pelegrin e a partir dela continuaram a disputar a hegemonia do mundo capitalista, especialmente nos espaços de produção de conhecimento, como as universidades de economia. Ao primeiros sinais de enfraquecimento do crescimento nos países centrais do capitalismo e diante da constante queda na taxa de lucro global diversas teses retornam, com obras como “A Miséria do

Historicismo”, lançado ainda em 1958 por Popper, a trilogia “Lei, Legislação e Liberdade” lançada por Hayek entre 1973 e 1979. Também há produção intelectual de novos pensadores, como Milton Friedman, que lançou “Capitalismo e Liberdade” em 1962, obra com especial influência sobre a América Latina. É importante dizer que nenhum destes pensadores se identificou como neoliberal, usando sempre a alcunha de liberais, não mudando em nada o pensamento dos pensadores liberais, apenas lhe dando uma continuidade e atualização necessárias para as críticas ao Estado de Bem Estar Social. (Harvey, 2008; Netto, 1993)

O momento pioneiro no ciclo neoliberal se deu no Chile no começo dos anos 1970, quando o golpe que derrubou um governo democraticamente eleito deu inicio a um programa de reformas que iriam desregular a economia, causar uma grande onda de desempregos, perseguir sindicatos, redistribuir a renda em favor dos ricos e impulsionar ondas de privatização. No Chile a influência foi mais norte-americana que austríaca, tendo como operadores um grupo de ex-alunos de Friedman conhecidos como “Chicago Boys”. (Harvey,

2008)

Este foi o cenário de experiências iniciais do neoliberalismo, com fortes choques de privatização e uma mudança completa no estilo de vida da população. As altas taxas de inflação somadas a salários menores e grande desemprego produziram diversas ondas de crises, fazendo com que experiências posteriores não fossem mais tão radicalmente liberais, mas desenvolvessem ferramentas de controle das economias, mesmo que sutis, além de 76

estratégias de proteção direta para as empresas com poder político o suficiente para pressionarem os governos nacionais, popularizando a prática de Lobby e alterando qualitativamente a sua função social no modelo de reprodução neoliberal. (Harvey, 2008)

Apenas no final da década, em 1979, o neoliberalismo começou a ser aplicado nos países centrais do capitalismo, com a vitória eleitoral de Teatcher em 1979 na Inglaterra e de

Ronald Reagan em 1980 nos Estados Unidos da América. As ditaduras ficaram limitadas, quando possível, a países periféricos. Alemanha, Dinamarca, França, Australia, Nova

Zelandia, Bolívia, México Argentina, Venezuela, Peru e diversos outros países passaram por ondas de neoliberalização impulsionadas pelas relações de endividamento estabelecidas pelo

FMI e pelo Banco Mundial, que a esta altura já haviam se tornado ferramentas explícitas do neoliberalismo. As diversas crises do período aprofundaram as necessidades dos empréstimos de tais entidades, que agora exigiam pesadas reformas e desregulação da economia a fim de que o capital possa se reproduzir em velocidade máxima ao custo que for. As exigências de tais instituições argumentavam no sentido de tornar os países mais competitivos para o capitalismo globa e envolviam basicamente o desmonte dedireitos trabalhistas e de regulações que limitassem a reprodução do capital, como os ambientais. (Harvey, 2008; Netto, 1993)

A necessidade de desregulação da economia é fundamental para a nova estratégia de reprodução do capitalismo. A queda da taxa de lucros resultante do aumento da porcentagem de trabalho morto utilizado no processo de produção de mercadorias exigiu uma profunda rearticulação no mundo do trabalho. As dívidas se tornaram mercadorias por si, sendo revendidas e produzindo complexos derivativos que por fim significaram a autonomização do capital-fictício em relação as outras formas de capital-industrial. O mercado das dívidas cresceu a uma quantidade assustadora, superando a produção real do planeta. Isto produziu bolhas que, ao estourarem produziam prejuízos que foram rapidamente transferidos para a 77

classe trabalhadora dos países centrais ou, mais comumente, mas os países periféricos como um todo. Esta rearticulação trouxe profundas mudanças na organização do trabalho, criando novos operadores e estabelecendo a hegemonia política de uma elite financeira global. A solução para o capital diante das baixas taxas de lucro decorrentes das contradições da produção foi eliminar a produção real do seu processo de reprodução através de um processo de financeirização do capitalismo global. Podemos ver isto no papel que as dívidas públicas ocupam na atual dinâmica da reprodução do valor, com as dívidas dos países, especialmente periféricos, passando por uma escalada monumental desde o final dos anos 60. (Netto, 1993;

Harvey, 2008; Piqueras & Dierckxsens,2018)

A construção teórica do que chamamos de Neoliberalismo só se torna possível quando ignoramos várias das contradições do sistema capitalista, assim como da dinâmica da construção material da vida social como um todo. A redução total das ações do Estado faz com que ele não consiga cumprir sua função de apaziguador das tensões de classe decorrentes da exploração inerente ao modo de produção. A tendência ao monopólio, por exemplo, não apenas não é combatida pelo Estado que segue a lógica neoliberal, como na verdade é impulsionada, com o desenvolvimento de várias estratégias e ferramentas que criam uma

única prática nunca vista entre setor público e privado na busca pela reprodução do capital, principalmente fictício. A influência política acumulada pelas elites financeiras faz com que o

Estado mais do que nunca esteja ao seu serviço, estando mais interessado em garantir a expansão dos lucros do que em dar segurança para o sistema capitalista como um todo.

(Harvey, 2008)

O argumento de que as práticas neoliberais levam a uma retomada do crescimento é uma das maiores falácias do neoliberalismo, legitimada apenas pela forte campanha ideológica empreendida por um número cada vez maior de aparelhos privados de hegemonia a 78

partir dos anos 50. Somadas à entrada do capitalismo em sua fase “tardia”, com os seus limites estruturais pressionando as suas contradições, e à ficcionalização massiva da produção a nível global, como nenhum valor real sendo produzido, as práticas neoliberais não podem garantir o crescimento real dos mercados, dependendo basicamente de estratégias de realocação de recursos e de uma centralidade cada vez maior no capital fictício no formato de títulos de dívidas e seus derivativos para permitir que o capital se acumule numa velocidade nunca antes vista. O que vemos são ondas de crises que forçam o desmonte de políticas públicas nos países periféricos, além da redução de salários e direitos trabalhistas, aumentando o lucro dos donos dos meios de produção e permitindo que uma parcela maior dos fundos públicos seja transferida para eles. Apenas a partir da neoliberalização dos países periféricos, e suas consequentes crises, os países centrais voltam a crescer, alcançando níveis de exploração muito mais altos do que os da fase anterior. Este é o único crescimento possível no neoliberalismo: o crescimento da exploração e da concentração de renda. (Harvey, 2008)

Isto não deve ser entendido como um acúmulo puramente financeiro, pela forma como o dinheiro funciona no capitalismo, esta é uma concentração de poder de classe. O poder da classe dominante acompanha o crescimento da concentração de renda, já retornando em alguns países, como nos EUA, a níveis anteriores a 1929. Este monopólio do poder político é evidente nas experiências periféricas do capitalismo, onde a classe produtora raras vezes teve voz nas tomadas de decisões sobre a gestão dos fundos públicos. Raro o país que não passou por uma ditadura ou por uma gestão violentamente associada com as classes burguesas no seu processo de neoliberalização. O assalto às classes populares comumente tem como consequência o aumento da mobilização social, exigindo forte repressão por parte do Estado, que adquire características cada vez mais violentas à medida que a neoliberalização avança.

Não raramente esta violência é construída em cima de estruturas racistas, acompanhando os 79

elementos de dominação da classe trabalhadora. No Brasil isto é evidenciado com a escalada do genocídio da população negra das últimas décadas. (Harvey, 2008; Valim, 2017)

Tais contradições do pensamento neoliberal impedem que sua proposta seja aplicada sem nenhuma alteração. Os Estados neoliberais raramente colocam a liberdade acima de tudo, como direito primordial do qual todos os outros derivam, pois a assimetria de poder de seus cidadãos estabelece uma hierarquia muito mais limitadora do que a experienciada no Wellfare

State para a maior parte da população. Os únicos, de fato, que terão mais liberdade no neoliberalismo são os burgueses, cuja perspectiva é a única considerada nas discussões dos defensores do capitalista. Qualquer um que quiser ter opinião na gestão da sociedade deverá antes ganhar dinheiro e se tornar um burguês. Como dito antes, a classe trabalhadora nem sempre concorda com as mudanças neoliberais, especialmente quando da mercantilização total da vida social, na qual seres humanos, meio ambiente, direitos básicos, são todos reduzidos ao papel de mercadoria, sendo inseridos na dinâmica de produção do capital, seguindo uma lógica autônoma aos interesses dos seres humanos. (Harvey, 2008)

O silenciamento dos interesses reais da classe trabalhadora é fundamental para o avanço do neoliberalismo, podendo se dar através de Aparelhos Privados de Hegemonia ou pelo uso direto da violência, mas comumente consistindo de uma amálgama de ambos. É importante considerarmos que diante dos arranjos imperialistas dos quais o neoliberalismo representa uma nova fase tal dominação não se dá apenas a nível de classe dentro dos países, mas em conjunto com a dominação de uma elite financeira global, desta forma as burguesias locais funcionam como representantes da burguesia imperialista, raramente indo contra os interesses dela. (Harvey, 2008; Valim, 2017)

O papel ativo que os Estados capitalistas assumem na reprodução capitalista é um fator que, em conjunto com as mobilizações da classe trabalhadora, faz com que até hoje 80

nenhum país ainda tenha conseguido a redução do Estado como planejado pelos operadores do neoliberalismo. O que foi visto no final do século XX e começo do século XXI foi muito mais uma transformação dos Estados com menor assistência para os pobres, diminuindo o seu poder de barganha, e maior assistência para os ricos, permitindo que se persigam lucros de forma cada vez mais irresponsável com a certeza de que o Estado absorverá os saldos negativos no momento de um possível crash, como presenciado com a crise do Subprime de

2008. Isto passa longe de um enxugamento do Estado. Já as mobilizações da classe trabalhadora são uma materialização mais evidente da luta de classes, exigindo que o Estado continue com políticas públicas que tratem da Questão Social e demais consequências negativas desta sociabilidade. Tais mobilizações têm tido êxito variado dependendo de diversos elementos conjunturais, mas causando sempre consideráveis dificuldades para a aplicação de práticas neoliberais como a privatização total, especialmente de setores

“estratégicos” para a soberania nacional, exigindo que a democracia burguesa perca seu verniz de igualdade. Cada vez mais os apologistas do capital adotam argumentos que naturalizam as relações sociais com forte apreço pela hierarquia. A democracia é francamente atacada pelos defensores do sistema capitalista e a liberdade já não cabe, se é que algum dia coube, no neoliberalismo. (Harvey, 2008; Netto, 1993; Valim, 2017)

O que chamamos de “Estado Neoliberal”, então, encontra sua prática histórica em um processo extremamente violento, impulsionando o Imperialismo e forçando reformas através de ditaduras ou estados democráticos genocidas por todo o mundo. O Estado que se estabelece é uma ditadura do mercado que pode até formalmente se apresentar enquanto democracia, mas cujo sistema político e jurídico já atua de forma completamente diferente do que se espera no discurso tradicional sobre a democracia burguesa. A intervenção das forças imperialistas na reformulação de Estados está sempre se reinventando, podendo se dar através 81

de Instituições já tradicionais para isso como FMI e Banco Mundial pressionando por mudanças legislativas ou de formas mais evidentemente jurídicas, como golpes jurídicos ou militares. Inclusive estabelecendo ocupações e bases militares com a desculpa de espalhar a

“democracia” pelo mundo, sustentando um imenso complexo militar que está sempre a postos para obedecer aos interesses antidemocráticos do imperialismo, como vemos ocorrer com cruel cotidianidade em países do Oriente Médio como o Iraque. (Harvey, 2008; Netto, 1993;

Valim, 2017)

Existem outras formas de perseguir países que resistem ao avanço do imperialismo, como sansões econômicas que são especialmente poderosas diante do arranjo de integração global do ciclo de produção capitalista, mas chamamos atenção para as guerras por conta de seu papel chave na atual dinâmica de reprodução do capital. A guerra é uma indústria por si só, sustentando o setor mais lucrativos do mundo. Além da estrutura física que é necessária para as guerras, como armamentos e todas as ferramentas e utensílios dos soldados, há também o argumento para impulsionar os setores de P&D ainda mais do que já é exigido pela reprodução capitalista, produzindo uma associação com a indústria civil que expande sua velocidade mas que limita a lógica das novas invenções. A destruição também é lucrativa, pois abre espaço para que empreiteiras e demais empresas de infraestrutura possam reconstruir as zonas de guerras a partir do momento em que os conflitos se encerram, ou até mesmo durante eles, reconstruindo as mesmas zonas diversas vezes e movimentando a economia. Se no campo da forma a produção do valor é contínua, no campo do conteúdo é irreal, pois nada de novo é criado, havendo na verdade uma empresa da destruição, que destrói cidades, culturas e vidas com o objetivo de aumentar a velocidade do ciclo do capital.

Mesmo nos países onde não há ocupação militar massiva, a vida cotidiana se tornou cada vez mais militarizada durante o processo de neoliberalização, com direitos civis 82

consideravelmente cerceados. Com tantos papeis na reprodução capitalista, o fim da guerra representaria uma crise imediata e sem solução no capitalismo, o que significa que enquanto houver capitalismo precisaremos assistir à parada bélica de uma guerra após a outra. (Piqueras

& Dierckxsens, 2018)

O defensores do liberalismo podem dizer que a lógica e práticas descritas neste texto são interessantes por trazerem liberdades civis, pois permitem que gays, negros e mulheres adquiram direitos básicos. Isto é uma referência à busca constante de novos mercados pelas empresas nesta fase do capitalismo, disputando nichos de mercando anteriormente ignorados, ou até mesmo criando novos nichos. Com isto a propaganda e a mídia como um todo se tornaram mais “sensíveis” aos interesses de grupos marginalizados na sociabilidade capitalista. Evidentemente, tais grupos ainda não vistos como humanos, sendo reduzidos ao papel de consumidores. Isto reduz diversas culturas de resistência a suas caricaturas mercadológicas, deixando seu discurso raso e o adaptando aos interesses da classe dominante, o que é comumente aceito pela esquerda socialdemocrata, ansiosa por humanizar o capitalismo. Algo nunca antes visto, especialmente em sua periferia, cuja função não pode ser outra além de ser explorada e sustentar os países centrais. (Netto, 1993; Harvey, 2008)

O neoliberalismo, então, surge da crise do Wellfare State, se aproveitando dela e utilizando uma extensa rede de Aparelhos Privados de Hegemonia para se apresentar como solução para a retomada do poder de classe por parte de burguesia, agora guiada pela elite financeira global. As tendências a queda da taxa de lucro geral do sistema capitalista fizeram com que a produção de valor desenvolvesse mecanismos autônomos à esfera de produção, estabelecendo a centralidade do capital fictício na integração global da produção. Esta mudança exigiu reformas nacionais em todos os países do mundo, o que foi impulsionado por instituições globais como FMI e Banco Mundial e por uma política bélica cada vez maior por 83

parte dos países centrais do capital. A abertura completa dos mercados e redução dos Estados periféricos rearranjou sua posição na produção de valor, fazendo com que eles fossem ainda mais explorados em benefício dos países centrais. Assim, democracias em todo o mundo se rendem, abertamente ou não, aos interesses das finanças globais, soberanas a qualquer opinião popular e tendo os exércitos nacionais prontos para defender os seus interesses contra qualquer manifestação da classe trabalhadora. É neste cenário que se fomenta um golpe contra a relativamente recente democracia brasileira. (Harvey, 2008, Netto, 1993; Valim, 2017;

Piqueras & Dierckxsens, 2018)

2.4 - O A crise de Hegemonia no Brasil: O que aconteceu depois de junho

Nos países que historicamente ocuparam um papel periférico na geopolítica imperialista, a crise estrutural do capitalismo tem conseqüências específicas de acordo com a conjuntura que encontra em cada momento de tensão. Por isso, a frágil democracia capitalista está sempre em risco de acordo com os interesses da burguesia global e do capital financeiro representados institucionalmente pelo governo dos Estados Unidos. O Brasil viu as conseqüências da Crise de 2008 desembocarem na nossa conjuntura de forma mais evidente apenas em 2013, quando o cenário de oportunidades políticas mudou de forma inequívoca. No entanto, o papel dos atores e as condições históricas que permitiram esta mudança não se encerram neste ano, sendo fomentando nas décadas anteriores e eclodindo uma crise de hegemonia que até hoje ainda se encontra ativa, sem perspectivas de resolução para o futuro próximo. (Harvey, 2008; Solano, Ortellado & Ribeiro, 2019; Almeida, 2019)

Defendemos aqui que a crise de hegemonia eclodida em 2013 teve seu ponto de virada no desgaste do consenso estabelecido ao fim da ditadura militar e que teve nas gestões presidenciais do Partido dos Trabalhadores (PT) sua mais completa concretização, razão pela qual suas contradições se tornaram evidentes e eventualmente insustentáveis. 84

Quando Lula venceu as eleições em 2002, sua proposta era de conciliação de classes, o que foi necessário para que o PT conseguisse o apoio de setores da burguesia brasileira que se encontravam desgastados depois de duas gestões com Fernando Henrique Cardoso (PSDB) colocando em prática políticas neoliberais com forte resistência dos movimentos sociais, especialmente o PT, que à época era a maior oposição ao governo. A mudança feita no discurso petista renovou o consenso pós-ditadura no Brasil, que adquiriu uma dimensão mais focada na justiça social, mas sem abrir mão do crescimento econômico e do controle da burguesia sobre a economia. Lula, então, deu continuidade ou aprofundou diversas políticas de FHC, como contenção de gastos públicos, estabelecimento de câmbio flutuante e políticas sociais que focassem na garantia de direitos atravessada pelo consumo para a população mais vulnerável aos efeitos das recessões. Assim, a burguesia brasileira aceita “perder alguns anéis para não ficar sem dedos”. (Miguel, 2018; Macieira, 2019)

Por mais que o PT tenha se utilizado de sua influência sobre as massas para convencer partes fundamentais da burguesia acerca da necessidade de que ele se tornasse o mediador institucional da luta de classes através da gestão do Estado, um consenso no sentido que tratamos aqui não significa que toda a população está de acordo ou até mesmo inserida nesta visão de sociedade, mas sim que, na disputa da luta de classes, determinado grupo conseguiu movimentar e representar os interesses de setores o suficiente da população em geral para que conseguisse ocupar, quando tratamos da democracia burguesa, o papel da direção do Estado.

É importante lembrar que a luta de classes é constante e não haverá estabilidade completa enquanto vivermos em uma sociedade fundada sobre tal contradição, havendo uma dinamicidade continua nesta disputa, especialmente por atores sociais que não se sentem representados pelo consenso hegemônico, se aproveitando e criando todas as oportunidades 85

possíveis para tentar mudar o cenário político e estabelecerem uma nova hegemonia. (Miguel,

2018; Gramsci, 2011)

No caso do consenso estabelecido com a vitória do PT, diversos setores da sociedade eram contrários ao arranjo proposto, seja por razões morais - como fundamentalistas religiosos que entendiam em Lula a representação literal do diabo - como setores mais liberais da economia, que eram contra as intervenções estatais materializadas nas políticas públicas que se popularizaram no partido, além, evidentemente, de partes do exército que não se sentiam confortáveis em ver um partido que lutou ativamente pelo fim da ditadura ocupar a cadeira presidencial. Estes setores ainda não haviam sido reformulados e amalgamados na

“onda conservadora” que presenciamos hoje no Brasil, se encontrando bastante debilitados, seja pelo pequeno número de liberais que ainda lutavam contra o Estado depois de duas gestões de FHC e de diversas concessões do PT, pela influência da esquerda no universo religioso cristão através da Teologia da Libertação, do descrédito que os militares tinham com a população em comparação com hoje em dia ou do simples fato de que o PT estava em seu momento de maior popularidade. (Rocha, 2019; Miguel, 2018)

No entanto, as décadas seguintes foram de enfraquecimento do PT, e consequentemente do consenso estabelecido em torno do mesmo, através de ataques constantes da mídia, que transformou periodicamente casos de corrupção em escândalos midiáticos, como o Mensalão e o Dossiê dos Aloprados em 2006, O caso Erenicegate em

2010 e a corrupção dentro da gestão da Petrobras em 2014. Esse enfraquecimento, em uma gestão de coalização como a do PT, aumentou o “preço” de seus aliados, eventualmente sendo necessário fazer cada vez mais concessões para os membros mais conservadores da burguesia, que nesta década não pararam de crescer. (Miguel, 2018; Telles, 2019) 86

É importante chamar atenção para o fato de que a relação política do PT com os seus eleitores também se alterou nos 14 anos ininterruptos de sua gestão presidencial. O militante do PT que anteriormente era mobilizado por lutas sociais contra medidas neoliberais de repente viu o seu partido colocando em prática estas mesmas políticas enquanto alterava as instituições do Estado para que a participação popular se desse dentro da lógica da democracia burguesa, sem mais representar um embate efetivo para a mesma. Pode-se dizer que o militante tradicional se tornou um “cliente” das políticas públicas de conciliação de classes, assumindo uma postura muito mais passiva na dinâmica de luta do que nos governos anteriores. Eventualmente isto enfraqueceu a relação das massas com o partido, criando um vácuo que foi ocupado por outros atores políticos, principalmente os que não faziam parte prioritária do consenso hegemônico e souberam capitalizar esta posição para se vender como contrários ao sistema quando as contradições deste arranjo se tornaram evidentes. (Pinto,

2019; Rocha, 2019)

Entre estes grupos, um dos que melhor utilizou este papel de anti-hegemônicos, ou de

“contrapúblico”, e as ferramentas tecnológicas que se popularizam na mesma época, foram os

Libertários. Think Tanks liberais existem no Brasil desde os anos 80, não sendo inédita a existência de grupos que buscavam divulgar e traduzir as ideias de autores pró-mercado, como o Instituto Liberal, fundado em 1983, o Instituto de Estudos Empresariais, fundado em

1984 e responsável pelo Fórum da Liberdade, um dos principais eventos liberais brasileiros, o

Grupo de Instituições Fundações e Empresas e o Instituto Ethos de Empresas e

Responsabilidade Social, fundados no começo dos anos 90, e com grande participação na articulação de ONGs e outras instituições sem fins lucrativos que buscavam construir organicamente práticas na direção de uma visão liberal de sociedade, fortalecendo o processo 87

de “empresariamento” das funções sociais do Estado que ocorreu nesta época. (Rocha, 2019;

Casimiro, 2018)

Think Tanks liberais como estes buscavam articular empresas e mobilizar grande capital econômico e simbólico para produzir um consenso em torno de reformas neoliberais colocadas em prática principalmente por Collor e FHC, o que fez com que no começo dos anos 2000 eles se encontrassem bastante enfraquecidos, pois grande parte da burguesia brasileira entendia que as reformas necessárias já haviam sido aplicadas e que o novo arranjo do PT já não representava uma ameaça real a tal estrutura estatal. Com isto, foi possível que outras correntes do liberalismo pudessem disputar de maneira mais efusiva as suas bases sociais, inclusive chamando atenção de novas bases através do uso efetivo das redes sociais, em especial o Orkut, que em janeiro de 2006 era frequentado por 75% de brasileiros. (Rocha,

2019)

Antes de tratarmos da história da radicalização dos liberais e da ascensão dos libertários no Brasil cabe diferenciá-los. Das correntes em disputa dentro do liberalismo, é a neoliberal que tem sido mais aplicada na gestão dos Estados capitalistas desde os anos 80, seja por atuação de mecanismos ideológicos e associação com setores mais conservadores da sociedade, seja através da pressão de ferramentas internacionais como o Banco Mundial e o

FMI ou, em casos extremos, de golpes abertos de Estado. Esta corrente sugere reformular as instituições estatais desenvolvidas pelo Estado de bem Estar Social na direção de um aparato jurídico-legal que fomente o funcionamento saudável do livre-mercado, como a competitividade e o crescimento econômico, evitando crises enquanto dá o espaço necessário que o mercado siga o seu próprio caminho. (Harvey, 2008; Casimiro, 2018; Rocha, 2019)

Por outro lado, os libertários, influenciados principalmente pela escola austríaca, rejeitam o Estado de forma mais efusiva, pregando Estado Mínimo e acreditando que o 88

mercado deve ser regulador da desigualdade, pois é o único mecanismo justo de conseguir a autonomia dos sujeitos. Todos os direitos para eles são reduzidos ao direito à propriedade, do qual desembocariam o direito à liberdade e à segurança. Para eles, a igualdade é contrária à liberdade, pois as pessoas são naturalmente diferentes. Teoricamente separam política de economia, entendendo que estas duas instâncias podem e devem existir separadamente. A discussão sobre a destruição total do Estado ainda não é concluída entre eles, havendo alguns grupos que acreditam que é necessário um estado mínimo para garantir instituições como exército, por exemplo, enquanto outros entendem que o mercado deve ser o único regulador e que qualquer Estado é opressor, independente da forma como ele se articula. O que diferencia libertários de liberais em geral, além da discussão sobre o papel do Estado na economia, é que os libertários não se resumem a discussões teóricas centradas na economia, mas expandem seus temas também para a ordem filosófica e moral, na qual entendem que o Livre Mercado seria moralmente superior a qualquer outra forma de arranjo social, independente de suas conseqüências. (Miguel, 2018; Rocha, 2019)

Esta visão mais radical do liberalismo e dos defensores do Livre Mercado começa a se popularizar na primeira década do século XXI, também através da internet. Foi a partir de comunidades como “Liberalismo (verdadeiro)”, fundada em 2006, que os defensores desta perspectiva conseguiram se reconhecer e encontrar um local onde podiam discutir este temas, visto que espaços acadêmicos não abriam espaço para apologias ao sistema capitalista do modo como eles buscavam. Estas comunidades se tornaram também ambientes de acolhida, onde aqueles que se viam perseguidos pelas pessoas de esquerda, que rejeitavam seus ideais, encontraram outras dispostas a ouvi-los e discutir com eles, criando também uma identidade em torno da ideia do libertarianismo. Outra conseqüência foi a formação de Think Tanks como o Instituto Mises Brasil, fundado em 2007 e consequência direta da “Liberalismo 89

(Verdadeiro)”, O Instituto Millenium, fundado em 2005, e a tentativa da formação de um partido libertário, o “Liber” em torno de 2009 e que, por mais que não tenha sido efetivado, mobilizou adeptos do libertarianismo por todo o país e fortaleceu sua rede, sendo fundamental para o processo de institucionalização e maturação da organização destes grupos, descentralizando e capilarizando sua militância. (Rocha, 2019; Casimiro, 2018)

Os militantes organizados em torno do Líber desenvolveram grande experiência atuando nas redes sociais, Youtube e sites próprios dedicados ao tema. Os anos seguintes foram marcados por uma mobilização destes militantes em torno da disputa por espaços historicamente ocupados pela esquerda, especialmente Centros Acadêmicos e Universidades

Públicas em geral, com projetos apoiados pelos Think Tanks já estabelecidos no Brasil.

Iniciativas como o “Liberdade na Estrada”, financiada pelo grupo Localiza e abrigada pelo

“Instituto Ordem Livre”, organizou palestras pró-mercado em quase 50 universidades em mais de 30 cidades nas suas primeiras cinco edições. A circulação de tais ideias em círculos universitários foi também fortemente impulsionada pela criação do “Estudantes Pela

Liberdade” (EPL) por membros do Líber na edição de 2012 do Fórum da Liberdade e com o objetivo de operar como uma versão brasileira do “Students For Liberty”. Estes grupos ajudaram a popularizar motes como “Não Exite Almoço Grátis”, “Imposto é Roubo” e

“Menos Marx, Mais Mises”, especialmente a partir das Jornadas de Junho de 2013 e das eleições de 2014, quando o setor de atuação militante política e ideológica do EPL, o

“Movimento Brasil Livre” (MBL), ganhou notoriedade entre largos setores da população.

(Rocha, 2019; Casimiro, 2018)

Existem também outros setores conservadores da população, especificamente evangélicos e militares, que ajudaram a estabelecer a onda conservadora que vivenciamos hoje no Brasil. Tais setores não rejeitaram o consenso estabelecido nos doze anos de governo 90

do Partido dos Trabalhadores, muitas vezes fazendo parte da gestão e cobrando alto por isso.

No entanto, eles foram relegados a papel secundário na construção de um consenso social e utilizaram deste tempo para crescer em influência política, seja isto parte de seu projeto ou não, o que eventualmente os levou a romper com este partido. Tais grupos sempre estiveram presentes na gestão de políticas sociais no governo dirigido pelo PT, o que garantiu que diversas pautas conservadores as quais eles defendem não sumissem do senso comum da população. (Miguel, 2018; Pinto, 2019)

O fundamentalismo religioso não representa a única relação possível com a fé, nem mesmo entre os evangélicos, seus principais representantes do Brasil recente. No entanto estes setores estão fortes e organizados o bastante para conseguirem ter uma influência marcante nos acontecimentos políticos da atualidade, o que faz necessária uma análise mais aprofundada do que eles representam e de como se organizam. Este segmento tomou força no

Brasil a partir dos anos 90, quando igrejas neopetencostais iniciaram projetos de investimento na eleição de seus pastores. Costuma-se definir políticos que lutam seus interesses em

“Bancada Evangélica”, o que é um termo guarda-chuva problemático, pois ignora que existem católicos conservadores e evangélicos progressistas ocupando os mesmos espaços. (Miguel,

2018)

O controle de grandes redes midiáticas e de diversas congregações por seus pastores permitiu que eles, através de um discurso moldado pelo seu senso de oportunidade, adquirissem considerável capital político que lhes permitiu negociar com vantagem com as gestões do PT, assustadas pelo seu poder de mobilização. A Rede Record conseguiu diversos incentivos por parte do governo federal através deste método, mas as vantagens não pararam por aí: pastores que afirmavam que Lula era literalmente o Satanás eventualmente o apoiaram diante de sua inegável popularidade e capacidade de conciliação, ganhando espaço no 91

governo e conseguindo até a ocupação do Ministério de Pesca e Aquicultura na pessoa de

Marcelo Crivella. (Miguel, 2018)

Ainda assim, alguns dos representantes do fundamentalismo religioso neopetencostal continuaram na oposição e foram fundamentais para que a direita pudesse disputar as bases que se afastaram de seu projeto por conta das políticas de assistência social do PT. Com a derrocada na popularidade deste partido nas gestões , os setores neopetencostais que os apoiaram se tornaram menores e mais caros, o que eventualmente se tornou insustentável e fez com que eles rompessem definitivamente com o PT, cuja perspectiva de uma religião centrada em caridade já não dialogava mais com a visão mais popularizada entre os evangélicos da “Teologia da Prosperidade”, que faz uma releitura das escrituras sagradas cristãs sob uma perspectiva pró-mercado e se tornou comum a partir dos anos 80. (Miguel, 2018; Almeida, 2019)

Esta perspectiva encontrou terreno fértil em uma sociedade gerida pela conciliação de classes, na qual dinâmica inerentemente exploradora de nosso modo de produção foi ignorada em troca de um discurso mais palatável de que o Estado poderia resolver as contradições do capitalismo dando oportunidades para que todas as pessoas pudessem ser bem sucedidas e garantir sua qualidade de vida, responsabilizando elas mesmas por qualquer fracasso.

Enormes setores da sociedade se aproximaram da teologia da prosperidade na última década, especialmente a classe média, que, fora dos extratos mais “vulneráveis” economicamente, não conseguiram aproveitar diretamente diversas das políticas públicas colocadas em práticas para aquecer a economia. Isto causou um incômodo e a percepção de que outras pessoas estavam com mais direitos do que eles, algo que se materializou em uma crítica generalizada ao setor público através de argumentos de ordem moral. Isto atraiu liberais que já não conseguiam apoio popular unicamente com seus argumentos econômicos e formou exércitos de pessoas 92

que se entendiam como “liberais na economia e conservadores nos costumes”. Em países centrais da economia capitalista já vemos este processo em um estágio mais avançado há algumas décadas, nas quais o neoliberalismo produziu fenômenos neoconservadores. (Hall et al., 1978; Almeida, 2019)

Os fundamentalistas religiosos neopetencostais também disputam elementos de ordem cultural, entendendo que diversos setores degenerados da sociedade apresentam um risco para a existência da família, para as crianças, para o tecido social como um todo. Assim, tentam conter a lógica secular (ainda com a religião católica como base) adotada pelo Estado com maior intensidade nas últimas décadas, buscando transformar a sua religião em sentido regulador do mundo. Esta lógica do inimigo adotada por tais grupos os leva a defender também a bandeira da intensificação da repressão por parte do Estado. Propostas como redução da maioridade penal, revisão da lei do armamento, lei antiterror e fortalecimento da política de encarceramento formam uma perspectiva punitivista que têm recebido grande apoio na população em geral e é cada vez mais capitalizada pela direita em períodos eleitorais. (Almeida, 2019)

Elementos como a crença no punitivismo e a crítica à gestão do Estado dialogam muito bem com setores das Forças Armadas, que ganharam força na ascensão da Onda

Conservadora que tomou conta do Brasil nos últimos anos. Este fortalecimento foi inclusive legitimado institucionalmente pela ocupação das cadeiras de Presidente e Vice-Presidente por dois militares a partir das eleições de 2018. Mas muito antes disto já se podia ouvir gritos de

“Intervenção Militar” por parte dos manifestantes de direita como uma proposta de solução à crise que se estabeleceu no Brasil a partir de 2013. (Almeida, 2019; Telles, 2019)

Até mesmo grupos que defendem o Estado Mínimo costumam aceitar que a necessidade de um exército nacional é fundamental para a defesa contra “Inimigos Externos”, 93

normalmente povos e tradições considerados uma ameaça à chamada “Cultura Ocidental”.

Soma-se a isto a pauta do “Anticomunismo”, que foi requentada da Guerra Fria sob a faceta do “AntiPetismo” e que embasa a maioria das apologias à ditadura militar instaurada no

Brasil no golpe de 1964 e que nos teria livrado de um terror maior ainda, uma ditadura comunista. (Carapanã, 2018; Miguel, 2018)

A direita não tem consenso sobre uma intervenção militar, com os grupos que defendem ela sendo muitas vezes excluídos de atos e relegados a papeis secundários em suas construções. No entanto, através da via democrática a imensa maioria da direita apoiou um candidato militar de extrema direita levados pelo argumento do Antipetismo e por teorias da conspiração envolvendo um golpe comunista que estaria sendo gestado por meio do “Foro de

São Paulo”, organização de esquerda que utilizaria da estratégia do “Marxismo Cultural” para corromper os valores da sociedade ao defender práticas como homossexualidade, drogas, globalismo, música pop, politicamente correto, cotas e praticamente qualquer coisa que puder ser útil e aproveitada pelos conspiradores como um bode expiatório. (Carapanã, 2018;

Messenberg, 2019; Almeida, 2019)

Depois da vitória de Hugo Chavez e da criação de uma nova constituição para a

Venezuela se popularizou o termo “Bolivarianismo” para descrever nações latinoamericanas que questionavam o neoliberalismo e o consenso de Washington, então mesmo Lula, com seu governo de práticas centristas e ótimas relações com o governo dos EUA, era entendido como um risco à democracia ao apoiar “ditaduras socialistas”. Na visão da extrema direita, diante de um risco tão grande de um golpe comunista no Brasil, que para muitos já havia ocorrido, e da corrupção generalizada que haveria tomado conta do governo, apenas uma instituição forte e pretensamente neutra como as Forças Armadas poderia resolver a situação do Brasil. Essa crença se fortaleceu à medida que a crise política se espalhou por todos os espaços da 94

sociedade e aumentou os clamores pelo punitivismo como resolução das conseqüências sociais da intensificação da desigualdade. (Messenberg, 2019; Miguel, 2018; Almeida, 2019)

Ainda que estes grupos compartilhem certas crenças, ultraliberais, fundamentalistas religiosos e setores mais conservadores das Forças Armadas não concordam em tudo, o que estabelece a “Onda Conservadora” como uma mobilização de massas dinâmica, repleta de contradições e disputas internas com momentos de maior ou menor proximidade e coerência organizativa entre os grupos. Podemos dizer que ela tomou o seu formato e estabeleceu seus principais atores quando a Crise de Hegemonia se instaurou em 2013, alterando as oportunidades políticas e permitindo que sujeitos e grupos relegados ao papel de contra- hegemônicos ou secundários na política nacional por décadas pudessem viver uma ascensão com grande apoio das massas. Os grupos dirigentes da onda foram se alterando ao longo do tempo, e foi nas eleições de 2018 que apresentou maior unidade, quando todos os atores do movimento se uniram em torno da imagem de Jair Bolsonaro. Para entender como isto foi possível é preciso entender os interesses de classe que mobilizaram as ações da direita durante os protestos de 2013, as eleições de 2014 e o Golpe de 2016. (Rocha, 2019; Almeida, 2018)

É consenso entre os autores que 2013 foi um ano fundamental para a política brasileira, eclodindo uma crise de hegemonia que alteraria o discurso histórico oficial desde o fim da ditadura. No entanto, o novo discurso oficial não veio pronto e, apesar de ser possível perceber suas bases em 2013, foi necessário todo um processo de disputa de hegemonia para que ele pudesse ocupar o lugar que encontrou atualmente na organização social da vida no

Brasil. (Almeida, 2019; Solano, Ortellado & Ribeiro, 2019)

O discurso de conciliação de classes e de expansão de direitos dentro da lógica capitalista proposto pelo PT já se encontrava desgastado ao fim do segundo governo Lula.

Além do aumento das conseqüências da desigualdade para a população mais pobre, o 95

resfriamento da economia internacional conseqüente da crise internacional de 2008 e a perda da legitimidade das instituições políticas depois de diversos casos de corrupção transformados em escândalos por uma mídia que tinha como interesse aumentar sua influência sobre o governo federal, houve o desgaste do próprio modelo de crescimento neodesenvolvimentista operado pelo partido em suas gestões. O que diminui as possibilidades de garantir que a burguesia continuasse com o padrão de crescimento da última década enquanto a classe trabalhadora usufruísse de políticas sociais de garantia de direitos. (Pinto, 2019; Telles, 2019;

Solano, Ortellado & Ribeiro, 2019)

A tudo isso se soma o fato de que o atual estágio da economia capitalista evoca a necessidade de rearranjo do Estado na direção de uma maior repressão e da operacionalização do sistema judiciário no sentido de um discurso antiminorias, de intolerância e de hiperindividualismo que legitime as relações sociais demandadas pelo modo de produção, especialmente em países periféricos na geopolítica global. (Harvey, 2008, Almeida, 2018)

Foi neste cenário que ocorreram os atos de 2013, que ficaram conhecidos como

“Jornadas de Junho” e, no entanto, começaram bem antes deste mês. Ainda em fevereiro já haviam grandes manifestações puxadas pelo grupo “Bloco de Lutas” em Porto Alegre contra o aumento da passagem. Durante o primeiro semestre do ano houve maior articulação nacional até que os atos puxados pelo Movimento Passe Livre em São Paulo impulsionassem manifestações nas maiores cidades do país, levando a atos históricos que chegaram a colocar mais de um milhão de pessoas nas ruas. (Pinto, 2019)

O Movimento Passe Livre (MPL) teve bastante êxito em chamar a população de São

Paulo para os atos contra o aumento de vinte centavos da passagem de ônibus que havia sido anunciado naquele ano. No entanto, isto se deu menos pela pauta ou pela organização do movimento em si do que pela conjuntura de desgaste do governo federal somada à influência 96

da conjuntura internacional recentemente marcada por grandes atos contra o Estado, especialmente as experiências de 2011 na Europa. (Pinto, 2019)

O fato do MPL ser um movimento apartidário, mas não antipartidário, fez com que os atos puxados pelo movimento não carregassem uma bandeira pré-definida além da pauta dos vinte centavos, podendo bater de frente com o prefeito de São Paulo, à época o petista

Fernando Haddad, e atraíssem uma diversidade de vozes. Rapidamente a pauta da passagem foi esquecida, com a frase “não é só pelos vinte centavos” dando o tom dos protestos e eventualmente afastando o próprio MPL de sua organização. (Pinto, 2019;)

Este ecletismo de vozes nos protestos se deu também pelo uso massivo das redes sociais na sua convocação e na disputa que se desenrolou por todo o mês de junho sobre os seus temas e viés ideológico. Isto permitiu a sujeitos políticos que historicamente não haviam se aproximado de lutas sociais fácil acesso às movimentações, as quais acabaram sendo guiadas pelo senso comum da época, deslegitimando os partidos, que foram expulsos de muitos destes atos, e consumindo argumentos liberais na crítica ao Estado. Não à toa o

Movimento Brasil Livre faz seu primeiro post no Facebook em junho de 2013 e a partir daí começa a se mobilizar de forma mais incisiva. (Pinto, 2019; Messenberg, 2019)

A multiplicidade de vozes e o fato de o movimento ter em grande parte pessoas sem formação política é perceptível pelos cartazes da época como “o povo unido não precisa de partido”, “ou para a roubalheira ou paramos o Brasil”,“saímos do Facebook”, “desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil”; “o gigante acordou”, “ato médico”, “cura gay”,

“mensalão na cadeira”, “voto aberto”, “meu partido é meu país”. (Pinto, 2019);

Os Black Blocks se popularizaram durante estes atos e são uma estratégia de ação que pretende atacar os símbolos do capital, apedrejando bancos e estátuas, por exemplo,e que 97

ganhou atenção especial da mídia, que os definia como “vândalos” e os separadam do

“cidadão de bem”, que estava nos atos lutando contra corrupção. Grande parte da esquerda que participou dos atos também rejeitou os Black Blocks, buscando adquirir alguma legitimidade com a população em geral. (Pinto, 2019);

A falta de uma pauta específica que conseguisse dialogar com todos os participantes dos atos impediu que seus atores orgânicos conseguissem direcionar estas mobilizações para uma pauta específica, tornando-se uma afirmação de descrença generalizada nas possibilidades do sistema político vigente. Isto foi muito bem operado pelos atores da direita nas redes sociais, que, diante da incapacidade do governo em reagir aos atos com um discurso popular, direcionou as frustações para o PT, como sempre havia tentado fazer, mas encontrando um êxito inédito desta vez. A popularidade de Dilma, que encontrava 65% de

Bom e Ótimo em março, alcançou apenas 30% nestes índices em Junho. No entanto, os ataques aqui ainda não estavam centrados totalmente à presidenta ou ao PT, mas à categoria política como um todo. (Pinto, 2019; Rocha, 2019)

Nos atos contra a Copa em 2014, a situação foi um pouco diferente. Por mais que houvessem se organizado através das redes sociais, especialmente Facebook, e fossem dirigidas por grupos à esquerda do PT, fazendo críticas à decisões de uma gestão do partido, desta vez a nível nacional, os atos atraíram um número menor de pessoas e foram bem mais direcionados do que os de 2013, conseguindo manter até o final a sua pauta contra a Copa do

Mundo realizada no Brasil naquele ano. (Pinto, 2019;)

Os altos preços dos ingressos impediram grande parte da população de participar dos jogos, enquanto a má fase da seleção brasileira fazia com que os brasileiros em geral não estivessem empolgados com a Copa. Soma-se a isto o fato de que a Copa acabou unificando vários dos pontos fragmentados levantados durante as Jornadas de Junho como gastos 98

desnecessários, corrupção e incompetência em geral do governo, o que eventualmente se tornou sinônimo da Copa do Mundo de 2014 e do governo Dilma Rousseff. (Pinto, 2019)

O PT, impossibilitado de participar dos atos contra seu próprio governo, acabou se afastando ainda mais dos movimentos sociais e perdendo parte de sua possibilidade de mobilização. Então, o partido teve como principal estratégia o fortalecimento da repressão diante de mobilizações contra as conseqüências da própria Copa, como as pautas levantadas pelo “Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa”, envolvendo projetos de lei de fortalecimento da PM e do exercito, restrição do direito de manifestação, ataque a direitos de moradia, ao trabalho ambulante e a intensificação da exploração sexual, processos impulsionados pela

Copa. (Pinto, 2019)

No entanto, estas pautas não atingiram as massas sob uma perspectiva de luta por direitos, mas sim como um ataque ao PT e o estabelecimento do antipetismo como conhecemos hoje. Os “Não Vai Ter Copa”, diferente dos Comitês Populares, elaboravam suas críticas de forma rasa exigindo Educação e Saúde “Padrão Fifa”, associavam o PT ao comunismo e à Cuba, acreditavam que o Bolsa Família não passava de uma estratégia eleitoreira do PT e deram cada vez mais espaço para figuras como o deputado e pastor neopetencostal Marco Feliciano. Foi este grupo que acabou recebendo mais atenção e conseguindo dirigir o discurso político da época, com grande apoio da mídia, que trazia denúncias constantes sobre casos de corrupção e superfaturamento envolvendo as obras da

Copa. (Pinto, 2019)

É neste cenário, quando o nome de Dilma foi anunciado na abertura da Copa, que gritos obscenos especificamente contra sua pessoa explodiram por todo o estádio, com ponto de origem nas cadeiras dos setores VIPs, custando cerca de 450 dólares. Este pode ser pensado como o momento de inauguração do discurso conservador que se fortaleceu durante 99

o impeachment, no qual ataques pessoais, palavras de baixo calão e até o uso pornográfico da imagem da presidenta foram ostensivamente utilizados pela alta classe média. Pela primeira vez, desde a ditadura militar, a direita consegue tomar a frente explorando um sentimento anti-governo e construindo um discurso popular que direcionasse a pauta aos seus interesses.

Não mais direcionado contra os políticos em geral, o discurso agora era contra Dilma

Rousseff. (Pinto, 2019)

As eleições de 2014, que ocorreram alguns meses depois, também foram marcadas por mais ataques à presidenta e fortalecimento do conservadorismo, estabelecendo definitivamente a polarização ideológica que daria tom da crise a partir daí. O candidato do

PSDB, Aécio Neves, fez toda sua campanha centrada no tema da corrupção e da necessidade de retirar o PT do governo para poder devolver o Brasil aos brasileiros, utilizando temas nacionalistas e defendendo pautas conservadoras, como a redução da maioridade penal. Já

Dilma Rousseff, candidata à reeleição pelo PT, chegou bastante desgastada à esta eleição, com eleitores que já não eram mais os tradicionais militantes, mas em grande parte usuários de políticas que melhoraram a qualidade de vida de grande parte da população brasileira, sem no entanto formá-los e inseri-los politicamente. Ciente da reação de grande parte da esquerda

às suas políticas e diante do clima de polarização, o PT prometia uma “guinada à esquerda”.

(Telles, 2019; Pinto, 2019)

Uma análise das relações e discursos das principais páginas do Facebook visitadas pela direita pode nos ajudar a entender os argumentos e bases da sua proposta societária, que tomou força entre a direita brasileira a partir de 2014 e se estabeleceu institucionalmente em

2018 com a vitória de Jair Bolsonaro.

Entre as páginas mais visitadas pelos anti-petistas estão aquelas com conteúdo anticorrupção, como “Movimento Contra a Corrupção” e “MBL”. Com grande relação com 100

elas vemos páginas de quadros e partidos de oposição durante os governos petistas, como

“Carlos Sampaio” do PSD e “ACM Neto” do DEM. Sem tanta relação com as últimas, mas também de considerável sucesso, estão as páginas liberais como “Socialista de Iphone” e

“Partido Novo”. Os liberais também interagem muito com as páginas que apoiam a atuação da

PM, como “Amigos da Rota”, “Coronel Telhada” e “Sargento Fahur”. Se ignorarmos as páginas anticorrupção e as de políticos tradicionais, novos grupos se estabelecem. O primeiro deles é formado por páginas patriotas, como “Mobilização Patriota” e “Patriotas do Brasil”, páginas que interagem intensamente com o grupo de apoio à polícia e com os conteúdos anticorrupção. Outro grupo que surge desta análise e vale a pena ser apontado aqui é formado tanto por páginas liberais, como “Instituto Mises Brasil”, “Instituto Liberal” e “Liberalismo da Zoeira”, como por páginas conservadoras, tais como “Eu Sou de Direita”, “Sempre

Família” e “Jovens de Direita”. A união destes tipos de página em um só grupo revela grande proximidade de suas comunidades. Há também um grupo central que funciona como porta de entrada para este cenário e interage com todas as outras páginas, apresentando a cosmovisão da onda conservadora. Estas páginas são “Jair Bolsonaro”, “”, “Kim

Kataguiri” e “MBL”. (Ribeiro, 2018)

A partir destas páginas podemos entender a cosmovisão que define a nova direita no

Brasil. Para o conservador moderno, a sua segurança é ameaçada por vagabundos que não devem ter direitos, pois optaram pelo crime, cuja única proteção vem dos policiais, que devem ser tratados como heróis. Para evitar que as crianças optem pelo crime ou pela promiscuidade

é necessário uma educação rigorosa. A defesa dos direitos humanos é defender o crime e a promiscuidade, colocando a inocência das crianças em risco, especialmente de serem vítimas de pedofilia. Para os conservadores apenas “esquerdopatas” poderiam defender algo assim, por isso eles são inimigos do Brasil, interessados em manter a população ignorante e 101

dependente de programas sociais que permitem que a gangue liderada por Lula continue no poder. Lula manda no judiciário, nos movimentos sociais e sindicatos, se preocupando apenas em enviar dinheiro para ditaduras da América Latina com o objetivo de conseguir apoio na implantação do comunismo no Brasil, que seria o maior risco de todos e do qual fomos livrados pelo exército em 1964. Entendemos que esta cosmovisão define o processo que chamamos de Onda Conversadora. (Ribeiro, 2018; Telles, 2019)

As eleições de 2014 também marcam um retorno do MBL, que havia enfraquecido depois dos atos de 2013. A militância liberal que havia se estabelecido em torno do Líber, agora reunida sob o nome Renovação Liberal, recebeu grande atenção nacional por conta da campanha do “Raio Privatizador” em torno da figura de Paulo Batista, candidato a deputado estadual em São Paulo pelo Partido Republicano Progressista. Nos vídeos da campanha Paulo era visto voando, atravessando vários países comunistas e os transformando através do poder de seu “Raio Privatizador”. Além dos vídeos, a campanha também consistia em atos, como um protesto com participação do Partido Novo no qual levaram um caminhão de paletes e papel higiênico para a porta da embaixada da Venezuela, uma carta convite entregue aos comitês do PT e PCdoB na qual pediam papel higiênico para o mesmo país e a entrega de um bote no Consulado de Cuba. A campanha fez um sucesso na internet e Paulo Batista chegou a ser entrevistado no programa de Danilo Gentilo, mas não venceu, conseguindo apenas 17 mil votos. (Rocha, 2019)

No entanto, a conseqüência mais duradoura da campanha foi a rearticulação do

Renovação Liberal, que adotou o seu antigo nome: “Movimento Brasil Livre” e desenvolveu o seu método de militância através de memes em 2014. Nos anos seguintes o MBL teria papel fundamental na construção do golpe que acabou por derrubar Dilma Roussef. Além disso, a campanha também ajudou mobilizando diversas organizações ultraliberais do país em torno 102

de um apoio pragmático a Aécio Neves com o objetivo de evitar a vitória de Dilma. (Rocha,

2019)

Diante deste cenário, pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, vimos a direita dando o tom das ruas durante as eleições, com um relativo silêncio dos eleitores do PT. Isto gerou um clima muito otimista entre eleitores do PSDB, políticos de oposição, antipestistas e conservadores em geral. No entanto, mesmo que o PSDB tenha conseguido o seu melhor resultado nas urnas desde 1998, quem saiu vencedora destas eleições foi Dilma Roussef, o que fez com que a equipe reunida em torno de Aécio questionasse a legitimidade das eleições imediatamente, abrindo ações públicas que buscavam levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas e exigiam recontagem dos votos. (Pinto, 2019; Telles, 2019)

Seis dias após o segundo turno, Paulo Batista convocou o primeiro protesto pró- impeachment, contando com o apoio de Olavo de Carvalho e mobilizando 2500 pessoas, apesar de contar com mais de 100 mil confirmações em evento cadastrado no Facebook. Os adversários políticos tradicionais do PT, especialmente os partidos de oposição, achavam a pauta irreal, não construindo os atos de início, o que permitiu que páginas do Facebook funcionassem como movimentos, convocando para os atos ao mesmo tempo em que divulgavam cartazes e vídeos com propaganda contra o PT. (Rocha, 2019)

Diversas páginas do Facebook foram criadas neste momento com o objetivo de capitalizar em cima dos atos, postando também convocações para os mesmos, mas três receberam notoriedade à nível nacional, direcionando o movimento e atuando para além da

época dos protestos, elas são “MBL”, “Revoltados On-Line” e “Vem Pra Rua”. Já falamos bastante do MBL, mas as outras duas também não surgiram do nada. O Revoltados On-Line existia desde 2010 e, em sua descrição, se definia como uma página de combate aos

“corruPTos do PODER”, sempre apoiou Jair Bolsonaro e ajudou a popularizar o apelido 103

“Bolsomito” e a filosofia de Olavo de Carvalho, que chamam de “professor” e “oráculo”. Já o

“Vem Pra Rua” havia organizado três protestos contra a corrupção e o PT em outubro de

2014, mês no qual foi criada, e foi importante para na popularização da discussão sobre o tema, além de questionar sobre a legitimidade das pesquisas que apontavam uma vitória de

Dilma durante o segundo turno. Vale registrar também que o MBL lançou o documentário

“Não Vai Ter Golpe” no final de 2019, no qual registra sua visão deste momento histórico, se entendendo como protagonista do processo. (Rocha, 2019; Telles, 2019; Messenberg, 2019)

Com estes atores tomando a dianteira, os protestos, que ocorreram majoritariamente em 2015, foram os primeiros puxados desde o seu início pela direita, sem nenhuma ocupação ou disputa por parte dos militantes de esquerda, que foram os principais participantes de manifestações desde o fim da ditadura. Muito disto se deu pela pauta em si, que já não tratava de uma descrença no sistema político como um todo ou de uma rejeição ao PT: a pauta era focada no Impeachment, eram protestos por um Golpe contra Dilma Roussef. A pauta estava agora aliada diretamente aos interesses da burguesia, que já não conseguiam ser realizados sob a gestão petista, por mais que o partido estivesse disposto a fazer concessões, a nova conjuntura os tornava descartáveis para a classe dominante, que não precisava mais de sacrifícios para manter o seu poder político. (Souza, 2018; Telles, 2019)

Esta não foi a única mudança destes protestos em relação aos anteriores. Além da mudança estética, na qual os manifestantes apareciam em sua maioria com camisas da seleção brasileira de futebol e fortaleceram o verde e amarelo como as cores do movimento, houve uma mudança mais indicativa dos interesses de classe destes atos, a geográfica. A concentração dos atos pela primeira vez ocorria em bairros de classe média alta, pois eram a quem as manifestações eram direcionadas. Sujeitos políticos que não estavam acostumados a terem seus interesses priorizados por políticas públicas e perspectivas de mundo hegemônicas 104

no último ciclo finalmente estavam sendo ouvidos, lutando pelo seu direito à segregação e autoritarismo, práticas que nunca deixaram de ser exercidas, mas que se tornaram contra- hegemônicas no caldo cultural socialdemocrata que tomou conta do Brasil na primeira década do século. (Pinto, 2019; Telles, 2019; Carapanã, 2018)

Os principais momentos das manifestações foram em 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto de 2015. Em manifestações por todo o país víamos cartazes como “Fora PT”, “A

Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”, “Fora Dilma”, “Basta de Paulo Freire”, “Chega de

Doutrinação Marxista” e “O PT é o Câncer do Brasil”. Havia também disputas internas ainda neste momento, quando movimentos que apoiavam uma intervenção militar traziam faixas em inglês e até de qualidade de produção profissional no caso do movimento “SOS Forças

Armadas”. Mas estes movimentos não deram o tom das manifestações, que obtiveram grande sucesso especialmente nos pólos principais da oposição Petista: São Paulo e Minas Gerais. O maior deles ocorreu na Avenida Paulista, em 15 de março, e reuniu um milhão de pessoas de acordo com a Polícia Militar, e 250 mil de acordo com o Datafolha. (Pinto, 2019;

MESSENBERG, 2019; Rocha, 2019)

De acordo com Telles (2019) em sua pesquisa feita na manifestação de 12 de Abril em

Minas Gerais, os participantes eram em sua maioria brancos, com alto grau de escolaridade, renda média superior a cinco salários mínimos e utilizavam principalmente a internet para se informar sobre política. Eles foram convocados pelas redes sociais para os atos e compartilhavam o conteúdo das páginas, mas não conheciam os líderes as manifestações.

Enquanto 91% deles acreditavam que o PT fez um grande mal ao Brasil, 81% viam em Lula um dos principais malfeitores do Brasil, a mesma porcentagem havia votado em Aécio Neves e 24% acreditavam que Jair Bolsonaro seria um bom presidente. A maioria dos manifestantes acreditava que o principal problema do país era a corrupção, ligada diretamente ao PT, e 105

apoiava a intervenção militar para retirar Dilma do poder. Além disso, 77,8% deles discordava de programas de inclusão social como Bolsa Família, acreditando que eles deixam as pessoas mais preguiçosas. A maioria defendia o direito à propriedade como fundamental, eram contra cotas, reprovavam os médicos cubanos, acreditava que as pessoas mais pobres são desinformadas na tomada de decisões políticas e achava que os nordestinos eram menos conscientes na hora de votar do que o restante do país. Por fim, eles eram fortemente anticomunistas e acreditavam que o Brasil estava a caminho de se tornar uma Venezuela.

Estes elementos formavam a visão de mundo dominante da maioria dos manifestantes.

Estas manifestações, massivamente divulgadas pelos canais de televisão, somadas à exposição diária de matérias sobre a Operação Lava-Jato - o que aumentava a percepção da população sobre corrupção - fez com que a aprovação de Dilma pela população caísse de 42% de Bom ou Ótimo em dezembro de 2014 para apenas 13% em março de 2015, quando a porcentagem de pessoas que considerava o governo Péssimo foi de 24% para 60% no mesmo período. O medo do agravamento no quadro econômico fortalecido por agentes e páginas liberais também fez com a que a simpatia por Dilma Rousseff diminuísse. O PT venceu nas urnas em 2014, mas o discurso nas ruas e na internet estava sendo majoritariamente construído pelos seus opositores. (Pinto, 2019 ; Telles, 2019)

Assim, os interesses da burguesia conseguiram legitimidade o suficiente para que o golpe que fez jus aos mesmos conseguisse o disfarce constitucional de Impeachment. Meios de comunicação em massa, grandes empresários, Poder Legislativo apoiado pelos EUA e o

Supremo Tribunal Federal venderam esta como a única saída para a crise. A votação da câmara que afastou Dilma e transformou o Vice-Presidente Michel Temer, do PMDB, em presidente interino aconteceu em 17 de abril de 2016 com transmissão em rede nacional. O

PMDB foi muito importante neste processo, pois tinha liderança política na câmara dos 106

deputados e no Senado na época. Em 31 de agosto do mesmo ano, Dilma Rousseff foi definitivamente afastada sob o pretexto de Crime de Responsabilidade Fiscal. Este processo seguiu uma tradição de golpes contra governos da América Latina que não seguissem o interesse dos Estados Unidos. Entendemos ser importante reafirmar que a burguesia sempre esteve no poder no Brasil e que o regime de conciliação de classes e presidencialismo de coligação seguido pelo PT permitiu que o conservadorismo e a direita já avançassem institucionalmente muito antes do golpe ser concretizado. Ainda assim, o governo Temer nos permitiu presenciar nível e velocidade nunca vistos no desmonte de políticas públicas. (Souza,

2018; Macieira, 2019)

O Governo Temer divulgou nos primeiros dias do golpe a “Ponte para o Futuro”, um projeto político radicalmente diferente da plataforma que o fez ser eleito. A Ponte defendia o

Estado Mínimo e a ideia de que a única forma de acabar com a desigualdade seria através do incentivo ao crescimento econômico e à competitividade. Ela tinha como objetivo a transformação do Brasil em um país conectado com as demandas atuais do capitalismo, que são as mesmas da burguesia, o que depois da crise de 2008 se tornaram demandas violentas por desregulamentação governamental e desconstrução de direitos. (Macieira, 2019)

Nos quase três anos que marcaram seu governo vimos a extinção do Ministério das

Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, a transformação do Ministério da Cultura em uma secretaria do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Desenvolvimento Social, a aprovação do teto dos gatos na forma da Ementa Constitucional 55 de 2016, a redução de gastos com saúde, educação, assistência social, o fim de programas como Ciência Sem

Fronteiras e Farmácia Popular e a formalização da Reforma Trabalhista com a lei 13.467 de

13 de julho de 2017, na qual foi central a argumentação em torno da modernização e flexibilização das relações de trabalho sem contrapor a precarização que marca o trabalho 107

contemporâneo. Por razões como estas, além da própria forma como se deu o golpe, “Fora

Temer” se tornou a principal bandeira da esquerda nesta época, ainda sem grande adesão das massas. (Macieira, 2019; Souza, 2018)

Antes de tratarmos das eleições de 2018, faz-se mister entender que, por mais que tenha encontrado distintas possibilidades de se materializar em cada país em processos regulados pela dinâmica que a luta de classes encontra em cada local, o avanço do neoconservadorismo é um processo histórico global de rearranjo dos mecanismos de gestão estatais a partir das demandas recentes do capitalismo e se utilizando de argumentos moralistas para se popularizar. A vitória de Donald Trump em 2016 e o fortalecimento e concretização do Brexit são fortes sinais de crescimento da extrema-direita, esta ala ideológica também ganhou peso nos últimos anos nos governos da Polônia, Áustria, Hungria e Itália. Globalmente, o termo utilizado para explicar os movimentos mais recentes de retrocesso nas políticas sociais e revolta das classes médias tem sido “recessão democrática”.

A democracia têm se tornado um empecilho cada vez maior para o capitalismo em seu atual estado. (Harvey, 2008; Carapanã, 2018; Almeida, 2019)

Mesmo nesta conjuntura e com o Brasil havendo experimentado um golpe apenas alguns anos antes, havia uma forte crença de que as eleições de 2018 poderiam ser um momento de repactuação nacional, com o retorno de um presidente eleito que representasse a maioria da população depois da instabilidade que se seguiu à saída de Dilma Rousseff. As análises mais otimistas viam em Lula o vencedor da corrida eleitoral que viria, pois o ex- presidente estava viajando com sucesso pelo país na reconstrução de uma imagem positiva na

“Caravana Lula Pelo Brasil”. A conjuntura tinha outra opinião. (Almeida, 2019)

Em 16 de fevereiro, Temer assinou um decreto de intervenção federal a partir do qual a segurança pública do estado do Rio de Janeiro passou para o controle dos militares, o que 108

ajudou a legitimar a idéia de secundarização da democracia em nome dos resultados e da lógica punitivista. Março foi marcadopelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco

(PSOL) e do seu motorista, Anderson Gomes, um caso brutal que até hoje ainda é uma das principais bandeiras da esquerda, sem que os culpados tenham sido encontrados. A rede de mentiras da direita foi rapidamente mobilizada com ataques em diferentes graus contra

Marielle e quem lutava pelas investigações. Antes que março acabasse a Caravana Lula Pelo

Brasil foi alvo de tiros quando passava pelo Paraná e, no começo de Abril, ele foi preso.

Antes de sua prisão, quando do julgamento de seu Habeas Corpus, o General Eduardo Villas

Boas, Comandante do Exército Brasileiro, fez ameaças veladas em seu Twitter de uma intervenção militar caso o Supremo Tribunal Federal concedesse liberdade a Lula. Maio foi marcado por uma greve nacional de caminhoneiros que foi considerada por grande parte da esquerda um locaute puxado por empresários, mas cuja discussão do tema a fundo não caberia aqui, o que nos interessa neste trabalho é que a greve foi também palco de diversas manifestações a favor de uma intervenção militar. (Almeida, 2019; Souza, Kakovcis & Roxo,

2018; Valente, Fernandes & Ballousier, 2018)

Mesmo preso, Lula continuava crescendo nas pesquisas de opinião de votos e foi lançado como candidato pelo PT, com Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, como seu

Vice-Presidente. Ainda assim, uma forte campanha na grande mídia e nas redes sociais mobilizava a população contra o partido, tencionando a situação de polarização vista nos anos anteriores. Neste processo vimos a conhecida midiatização da corrupção, com atuação especial do juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, que divulgou delações de Antonio Palocci dias antes do primeiro turno, mas também houve papel central de redes sociais como, Twitter,

Whatsapp e Youtube, que se tornaram ferramentas de divulgação muito mais livres que a mídia tradicional, podendo ser utilizadas massivamente na divulgação de mentiras. Tais redes 109

se tornaram forte palco para as chamadas fakenews – notícias falsas feitas com o propósito de enganar - que iam desde histórias já conhecidas, como a crença de que o filho de Lula seria dono da Friboi, que o grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC) seria braço armado do PT e que um Kit Gay que seria distribuído nas escolas, até novas mentiras centradas em Haddad, especialmente no segundo turno, quando se popularizou a crença de que ele haveria ordenado a distribuição de mamadeiras em formato de pênis nas creches de

São Paulo. (Almeida, 2019; Recuero & Gruzd, 2019)

Este cenário poderia ser muito favorável ao PSDB, no entanto, este partido passou por muitas dificuldades por conta de disputa interna entra sua ala história, representada por

Alckmin, e elementos de flerte com a extrema direita que ganhavam força no partido, como a ala representada por João Dória e que eventualmente apoiou Jair Bolsonaro. (Almeida, 2019);

Mais importante que isso, depois de tantos anos de deslegitimação da política, a população estava em busca de um candidato que estivesse desconectado deste cenário, mesmo que, no caso do vencedor das eleições, fosse um político tradicional. Jair Bolsonaro conseguiu se aproveitar muito bem deste sentimento, mas a vitória de João Dória e Marcelo Crivella em suas respectivas candidaturas também foi sinal deste processo. Além disso, quase 50% das vagas da Câmara dos Deputados foi de novos mandatos, enquanto no Senado apenas 8 das 54 vagas foram ocupadas por reeleições. Além disso, candidatos desconhecidos e com discursos anti-sistémicos conseguiram grande crescimento e reconhecimento popular, especialmente o

Cabo Daciolo, candidato pelo Partido Patriota (PP), e João Amoedo, candidato do Partido

Novo. (Almeida, 2019);

Se não foi vista uma unidade entre os partidos defensores do liberalismo selvagem e do conservadorismo moral no primeiro turno, tampouco a esquerda encontrou tal unidade.

Com diversos partidos disputando as tradicionais bases ideológicas e eleitores desta linha, 110

como o ensaio de uma candidatura própria do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no nome de Manoella D’Ávilla (que alguns dias antes do segundo turno, com a saída oficial de Lula da corrida eleitoral, se tornou a Vice de Haddad). Mas talvez o caso mais marcante do clima das eleições tenha sido o de Ciro Gomes, candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT) que buscava ocupar um papel de centro ou centro-esquerda e se tornar o candidato oficial de setores da burguesia nacional com um projeto de crescimento para o país, mas que, diante de diversas estratégias do PT para isolá-lo, como o apoio ao candidato a governador do Partido

Socialista Brasileiro (PSB) em Pernambuco, acabou perdendo força na reta final do primeiro turno. (Almeida, 2019)

Jair Bolsonaro, candidato do Partido Social Liberal (PSL),fez sua campanha se aproveitando do antipetismo fomentado nos anos anteriores, da busca por rostos diferentes e do crescente moralismo para construir toda a sua eleição em torno do discurso de oposição à

“velha política”. Para isso ele se utilizou da promessa de combater a corrupção, representada pelo PT, uso intenso das cores verde de amarela, lemas nacionalistas como “Meu Partido é o

Brasil” e “Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos” e base de sustentação nas Forças

Armadas, principalmente depois de decidir o General Hamilton Mourão como seu Vice. Além disso, foi o principal candidato a utilizar fakenews em sua campanha, havendo inclusive uma condenação contra o seu filho, o que o obrigou a retirar determinadas postagens sobre Haddad de seu Twitter e acessoria de Steve Banon, estrategista da campanha de Donald Trump, que também se utilizou massivamente de mentiras espalhadas pelo WhatsApp. (Almeida, 2019);

No entanto, o principal trunfo de Jair Bolsonaro, ironicamente, foi o atentado contra a sua vida realizado em 6 de setembro 2018. Este acontecimento foi fortemente trabalhado em torno de um discurso político-religioso e acabou o blindando de ataques por partes dos outros candidatos ao mesmo tempo em que o impedia de participar de debates na televisão, 111

momentos nos quais podia ser confrontado por outros candidatos. Isto aumentou a importância das redes sociais, seu terreno favorecido, para a campanha. (Almeida, 2019);

O primeiro turno foi decidido no dia sete de outubro, estabelecendo Jair Bolsonaro e

Fernando Haddad como candidatos no segundo turno. A onda Bolsonarista se fortaleceu tanto neste processo que a discussão entre seus eleitores não era mais sobre se ele venceria ou não, mas sim qual seria a margem da vitória. Bolsonaro chegou a ameaçar um golpe caso não vencesse, com discursos que deslegitimavam cada vez mais a segurança das urnas eletrônicas

à medida que o dia das eleições se aproximava. (Almeida, 2019)

O tema do segundo turno foram os argumentos morais, com Bolsonaro trazendo a questão da corrupção e do risco de uma ditadura comunista pairando sobre o Brasil e Haddad batendo na tecla da tortura na ditadura militar, a qual Bolsonaro demonstrou apoio repetidas vezes. Haddad chegou a trazer pessoas que foram torturadas para dar depoimento em seu horário eleitoral. Isto teve pouco efeito na rejeição à Bolsonaro, que rebatia trazendo memes comparando tortura ao aborto enquanto atacava direitos LGBTs e fomentava pânico moral em torno da ideia de ideologia de gênero. (Almeida, 2019)

O resultado destas eleições foi a vitória de Jair Bolsonaro e a volta dos militares ao poder. É importante entendermos que isto não encerra o processo iniciado em 2013, pois, por mais que um novo arranjo do Estado brasileiro e de sua gestão da luta de classes tenha sido aprovado pelas massas, isto não significa que a crise se encerrou. Com a vitória de Bolsonaro o país ainda se encontrava em forte polarização política e sem perspectiva de alteração deste quadro. (Almeida, 2019)

No primeiro ano do governo Bolsonaro, vimos a concretização da sua promessa de retirar direitos da classe trabalhadora como saída para a crise, tudo de acordo com os 112

interesses do grande capital. Alterações nas leis trabalhistas na direção de uma “maior flexibilidade” e menos intervenção do Estado na liberdade dos empresários, o que, somado às reformas do governo Temer, acabou expandindo consideravelmente os níveis de trabalho informal, que em fevereiro de 2020 atingiu níveis recordes representando 50% dos empregos em 11 estados brasileiros. Neste primeiro ano também ocorreu a reforma da previdência, com aumenta da idade mínima e redução no valor da aposentadoria, funcionando como um estímulo para que os fundos de previdências privadas, ao molde do Chile, ocupassem o local deste direito anteriormente garantido pelo Estado. (G1, 2019; Garcia, 2020; UOL, 2019)

O campo do trabalho não foi o único atingido pelo governo Bolsonaro, que busca ainda diversas outras formas de capitalizar os direitos básicos e aumentar os lucros da empresas privadas, utilizando a já conhecida ferramenta do sucateamento dos serviços públicos através de corte de gastos. Estes cortes envolveram principalmente as áreas de saúde, educação e segurança. A educação, por exemplo, sofreu redução de R$3,2 bilhões no investimento, isto sem considerar o Teto dos gastos, que retirou R$9 bilhões da saúde.

Enquanto isso, o governo perdoou R$1 bilhão de dívidas de igrejas e pretende perdoar R$1,9 de dívidas das empresas para com a união, dando continuidade ao seu pacto entre os setores mais conservadores do cristianismo e a burguesia. (Fernandes, 2002; Martello, 2020;

Tomazelli, 2020; Diário do Comério, 2019)

O desmonte continuou também no que tange ao meio ambiente, o que deve ser discutido levando em conta o forte papel que o agronegócio representa na burguesia nacional.

Com desmonte da Funai, paralisação da reforma agrária e cumplicidade com agentes que incendiaram milhares de quilômetros quadrados da Amazônia e Pantanal, o governo

Bolsonaro serviu como um agente direto dos interesses das elites agrárias. (Bragon, 2020) 113

Consciente do poder da cultura na disputa social, Bolsonaro fez cortes também no

Ministério da Cultura, deixando a maioria da produção nacional na mão de empresas privadas e transformando o próprio ministério em uma Secretaria Especial sem recursos próprios.

Além disso, Bolsonaro têm escolhido pessoalmente a gestão desta Secretaria, o que causou o emblemático caso no começo de 2020, no qual o secretário Roberto Alvim, ao discutir os planos nacionalistas e conservadores para a cultura do governo Bolsonaro, se utilizou de simbologias e trechos de discursos de Joseph Goebbels, que atuou como Ministro da propaganda na Alemanha nazista. (G1, 2020; Resende & Brant, 2019)

As mudanças de 2020 foram impossíveis de ser previstas por qualquer analista político. A pandemia do novo coronavírus, o COVID-19, causou uma tragédia a nível global, o que, em conjunto com os desmontes de direitos que vinham ocorrendo no Brasil causou mais de 200 mil mortos no país. O desemprego e os desmontes nas políticas assistenciais potencializaram o contágio, com diversas trabalhadoras e trabalhadores impossibilitados de realizar o distanciamento e vivendo em locais sem as condições de saúde necessárias para evitar o contágio. (Granemann, 2021)

O presidente e sua equipe se tornaram garotos propaganda do coronavírus, encaminhando projetos de desmonte do Sistema Único de Saúde, minimizando a gravidade da situação, distribuindo soluções medicamentosas não comprovadas, participando de aglomerações e afirmando em diversos momentos que as mortes não lhe dizem respeito.

(Granemann, 2021)

O que vimos no Brasil foi que, diante da necessidade de grande parte da população ficar em distanciamento físico, houve um avanço nos ataques contra a classe trabalhadora, impossibilitada de se mobilizar em grandes atos. A tragédia sanitária que atingiu milhares de 114

vidas foi metamorfoseada em uma oportunidade de intensificação acumulação do capital.

(Granemann, 2021)

A conjuntura que havia permitido a vitória do conservadorismo não se alterou, mas se complexificou com a gestão de fato de Bolsonaro, que já não consegue agregar tantos apoiadores, perdendo aliança de importantes setores da direita. Além disso, em 2020 o planeta passou por uma pandemia e a gestão da saúde por parte de Bolsonaro foi explicitamente genocida, incentivando a anticiência e alcançando mais 200 mil mortos no país e rejeição constante por parte do presidente de levar a situação com a seriedade devida, o que seria um retrocesso no seu processo de desmonte do Estado brasileiro, especialmente no que diz respeito ao Sistema Único de Saúde. Cabe entendermos como as ferramentas ideológicas utilizadas pela direita têm se portado desde a vitória do presidente e o que elas podem indicar sobre as estratégias propostas pelos setores que constroem o atual e frágil consenso no Brasil, a fim de entendermos quais as demandas e movimentos futuros podem vir por parte de tais setores.

115

3 – Apresentação e Análise de Dados

3.1 - Apresentação dos Dados

O processo histórico da crise de hegemonia que tomou conta do Brasil e colapsou o nosso sistema político ocorreu no mesmo momento em que o Youtube estava adquirindo popularidade por aqui, de forma que a capacidade destas redes em amplificar discursos foi, desde muito cedo, utilizada para massificar posições e narrativas políticas das mais variadas.

(Fischer & Taub, 2019; Reis et al., 2020)

Tudo isso mudou muito de 2005, ano de lançamento do Youtube, até hoje. Se na época de sua criação o site funcionava como um depósito de vídeos formado principalmente por comerciais antigos, filmes e cenas do cotidiano – uma plataforma de passagem na qual as pessoas entravam principalmente para ver links indicados em outros sites -, hoje o site já desenvolveu uma linguagem própria, construída no Brasil principalmente por pioneiros como

Felipe Netto, Kéfera, PC Siqueira e Christian Figueiredo, que foram os primeiros Vloggers, enviando vídeos falando sobre sua vida ou de temas variados que lhes interessavam. Com isto o Youtube foi se transformando em uma plataforma de destino, na qual as pessoas entram para procurar atualização dos canais que seguem e passam tempo consumindo conteúdo produzido especificamente para o site. (Mello & Abibe, 2019)

O crescimento do site foi rápido, havendo um aumento de 135% no consumo de vídeos no Brasil entre 2014 e 2018, ano no qual o Youtube se tornou o segundo maior destino para consumos de vídeos no país, perdendo apenas para a Rede Globo. Neste ano 77% dos brasileiros acompanhavam pelo menos um canal no Youtube, com 73% sabendo o que era um

Youtuber. Dentre as pessoas que responderam saber o que era um youtuber, eles ficaram em terceiro lugar como formadores de opinião, atrás apenas de família e amigos. A isto se soma o 116

fato de que, no país, 87% das notícias são obtidas nos meios online e 64% nas redes sociais

(Marinho, 2018; Mello & Abibe, 2019; Reis et al., 2020)

A relação do Youtube no Brasil com a política tem ficado mais intensa, com o primeiro debate presidencial de 2018 apresentando a maior audiência ao vivo no Youtube

Brasil até a data. Além disso, uma onda de youtubers de direita concorreu a diversos cargos em 2018, vencendo muitas vezes por margens históricas. Maurício Martins, vice-presidente do PSL em Niteroi, chegou a creditar a maior parte do recrutamento do partido ao Youtube, inclusive o seu próprio. (Marinho, 2018; Fischer & Taub, 2019);

Certamente, a conjuntura e a atuação dos diversos atores políticos envolvidos neste processo foram muito importantes para definir a linha política dos discursos que se popularizam neste período, especialmente a partir da ótica escolhida para este trabalho, mas é preciso considerar também o papel das recomendações do Youtube e seu logaritmo. Estas recomendações têm o objetivo de aumentar o engajamento, trazendo vídeos cada vez mais extremos a medida que o usuário vai adentrando em suas opções. Além disso, é levada em conta também a popularidade do vídeo. Este dois elementos levaram a uma popularização de vídeos conspiratórios da extrema-direita, como no exemplo do Zikavírus, no qual o youtube foi importante palco para a popularização de teorias nas quais se afirmava que a microcefalia era causada por vacinas e pelos próprios inseticidas utilizados para combater o mosquito, levando a um agravamento na crise de saúde pública decorrente do vírus. A predominância da recomendação de vídeos da extrema-direita se tornou tão intensa que, durante as eleições de

2018, ao pesquisar o termo “Lula” no canal, a maioria dos vídeos que apareciam eram propagandas elogiosas sobre Jair Bolsonaro ou seu projeto de governo. (Fischer & Taub,

2019; Reis et al., 2020) 117

A Extrema-Direita se popularizou também em linchamentos virtuais, com sérias ameaças contra a vida de militantes e pesquisadores de esquerda. Jair Bolsonaro foi um dos pioneiros desta técnica, já em 2012 acusando diversos acadêmicos de tentarem forçar as escolas a distribuírem o chamado “Kit Gay” para seus alunos. Alguns anos depois as ameaças contra a vida da pesquisadora Débora Diniz, militante pelo direito do aborto, a deixar o Brasil, o que foi “alegremente” comentado por Bernardo P Kuster, que acusa as organizações feministas de receberem financiamento estrangeiro dentro de uma conspiração global.

(Fischer & Taub, 2019)

Com isto, os espectadores destes canais não assumiam um papel passivo como o público da televisão. Além disso, em canais do Youtube o público é construído do zero, decidindo participar e acompanhar aqueles canais e montando sua própria “programação”, de forma mais engajada e orgânica, se identificando com o que é produzido e fazendo parte de uma comunidade interativa, o que levou muitos movimentos sociais a desenvolverem centrais de criação voltadas especificamente para o Youtube, como no caso do MBL, que entendeu o grande potencial do site como agregador de discursos contra-hegemônicos (Fischer & Taub,

2019; Mello & Abibe, 2019)

Com isto posto e entendendo a importância do Youtube para o atual cenário político brasileiro, agora iremos analisar os vídeos apresentados na metodologia da pesquisa, especificamente vídeos dos 11 canais escolhidos através de nossa apuração. Haverá um breve momento de discussão de cada canal, que separamos em quatro grupos:

“Jornalistas’,“Homens de Fé”, “Liberais” e “Patriarcas” seguido de uma análise mais complexa, na qual compararemos o que foi levantado pelo discurso geral de cada canal com temas discutidos ao longo desta dissertação, buscando chegar a alguma conclusão a partir dos objetivos apresentados na introdução deste trabalho. 118

OS JORNALISTAS

Este grupo é formado por canais que têm como tema a discussão de notícias e fatos, com diferentes níveis de realidade, para, a partir daí, elaborarem seu discurso. Para a análise desse momento, escolhemos os canais “O Antagonista”, “ O Giro de Notícias” e “JOICE

HASSELMANN TV” como representantes do jornalismo mais tradicional e de um setor mais adepto de teorias da conspiração. Mesmo que canais como “Pingo nos Is” tenham mais seguidores, ele é um canal que pertence à Jovem Pan enquanto “O Antagonista” é um canal independente, o que nos levou a escolhê-lo. No caso do Giro de Notícias e de Joice

Hasselmann, os canais foram escolhidos por sua proximidade com Jair Bolsonaro.

No geral, este tipo de canal gira em torno da utilização de notícias com o objetivo de criar a imagem de um inimigo que deve ser combatido sob risco de roubar dinheiro, liberdade e direitos em geral da população. Costumam imitar a estética do telejornalismo tradicional, buscando com isto alcançar legitimidade. O clima de “imparcialidade” pode ou não ser utilizado, mas na maior parte das vezes eles se comportam como se as notícias falassem por si só e qualquer discordância fosse Fakenews, falha de caráter ou mais uma prova do quanto a esquerda pode ser manipuladora.

119

O ANTAGONISTA

No final de 2014, os jornalistas Mario Sabino, redator chefe da revista VEJA até 2011, e Diogo Mainardi, cujas colunas na mesma revista sobre o mensalão renderam o livro “Lula É

Minha Anta”, deram início a um projeto de jornalismo independente e pretensamente livre das

“amarras” da mídia tradicional com a criação do perfil “O Antagonista” no Youtube.

Devido ao prestígio de ambos em círculos de jornalistas conservadores, o grupo cresceurapidamente, principalmente com a entrada de Felipe Moura Brasil, que ganhou reconhecimento ao organizar o livro “O Mínimo que Você Precisa Saber Para Não ser um

Idiota”, seleção de escritos de Olavo de Carvalho lançada em 2013. Moura Brasil, inclusive, foi participante do primeiro vídeo do canal a alcançar mais de um milhão de visualizações: “O

Antagonista Entrevista Ricardo Felício – Íntegra: ‘Aquecimento Global é Fraude’ ”, lançado em 11 de julho de 2017 e gravado nos estúdios da TV Antagonista como parte de um projeto de entrevistas no canal.

Com o apoio enfático de Moura Brasil, Ricardo Felício, grande nome do negacionismo climático brasileiro, fala sobre o por quê do aquecimento global ser uma farsa e como políticos, ONGs e mídia se utilizam dele para um grande projeto de poder com apoio da

ONU, que cria “painéis científico-políticos“, como o Rio 92, com o objetivo de divulgar esta ideia pelo mundo.

No ano seguinte, “O Antagonista” fez coro com o restante da direita na tentativa de evitar que partidos de esquerda saíssem vitoriosos da corrida eleitoral. O canal continuou com seus constantes ataques ao PT e midiatização dos escândalos de corrupção, como no vídeo de janeiro “TRF-4 Confirma Condenação de Lula – Abertura e voto do relator João Pedro

Gebran Neto” e em setembro com “PALOCCI NO SEGUNDO TURNO/O Antagonista nas 120

Eleições”, nos quais eles defendem a tese de que o PT é a maior ameaça existente à democracia. Neste ano também foi lançada a revista Crusoé, um periódico virtual também fundado por Diogo Mainardi e Mario Sábino, contando com diversos colunistas e apoiadores e que funciona em constante parceria com "O Antagonista”.

Em 6 de setembro, dia do atentado contra a vida de Bolsonaro, eles lançaram o vídeo “Bolsonaro na UTI: ‘Obrigado, Brasil’ ”, que contou com 584 mil visualizações. Este vídeo, o primeiro de Bolsonaro depois do atentado, foi gravado no leito do hospital e tenta mostrar o então candidato de forma fragilizada, reforçando tudo o que foi construído até aquele momento da campanha.A ideia de família como algo central aparece no discurso de

Bolsonaro, há também comentário de uma “missão de Deus” para o então candidato e comentários nacionalistas sobre os médicos e enfermeiros de todo o Brasil, a quem ele agradece no vídeo. E, ainda, há ainda o uso do seu lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.

Ainda em 05 de outubro, antes do primeiro turno é lançado o vídeo “RESUMÃO

ANTAGONISTA: A disparada de Bolsonaro”, com 530 mil visualizações, no qual Felipe

Moura Brasil fala sobre o “Ele Não” – Manifestação ocorrida contra Jair Bolsonaro, no último sábado de setembro que fez parte de um movimento que durou por todo o período eleitoral -, e como ela impulsionou o “Ele Sim”, um movimento oposto ocorrido no domingo seguinte.

Comentam também sobre o Anexo da delação de Palocci, que foi liberado por Moro na mesma época. É lembrado que a Bancada Evangélica, A Frente parlamentar Agropecuária, e as Associações comerciais e empresariais do Brasil, além de diversos candidatos a governador proclamam apoio por Bolsonaro. Este vídeo é tanto uma ferramenta do crescimento da “Onda

Bolsonarista” no período que antecedeu o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, quanto um documento deste mesmo processo. 121

Em 11 de outubro, “O Antagonista” postou o vídeo “VAZOU A PROPAGANDA

ELEITORAL DE BOLSONARO”, com 1,5 milhões de visualizações. Este vídeo, que foi massivamente divulgado por diversos canais e meios, traz um resumo das teorias mais comuns da extrema esquerda, como discussões sobre o Foro de São Paulo e como ele teve conseqüências terríveis para o mundo e o Brasil, que está, segundo o vídeo, na “maior crise

ética, moral e financeira da sua história”. Além disso, o vídeo afirma que corrupção e desemprego acabaram com o Brasil e a culpa é do PT, afirmando que “PT Nunca Mais”, pois

“Nosso Partido é o Brasil”.

Apenas depois de dois minutos vemos Bolsonaro. Uma breve biografia o vende como alguém de família, que passou a vida servindo ao País. O narrador, então, fala sobre o atentado contra sua vida e diz que chegaram até aqui com “a verdade, com opiniões firmes e com Deus acima de tudo”. Em seguida, Bolsonaro fala sobre como sua filha é seu xodó, evidente reposta à reação negativa por ter falado em palestra na Hebraica em 2017 que ter uma filha foi “uma fraquejada”, pois todos os seus outros filhos são homens. O vídeo termina com o slogan que foi repetido massivamente durante a eleição: “Brasil Acima de Tudo e Deus

Acima de Todos”.

No começo de novembro de 2018, o vencedor das eleições convidou Sergio Moro para que ele assumisse o ministério da Justiça, o que levou a uma mudança na Lava Jato, que foi assumida temporariamente pela juíza Gabriela Hardt. Com isto ocorreu um novo depoimento de Lula sobre o tema. Este depoimento foi intensamente capitalizado pela direita, pois se fazia necessária a afirmação de que a vitória de Bolsonaro deveria unificar o país em torno do combate à velha política, que já há muito havia se tornado sinônimo de corrupção.

Vimos diversos vídeos como “Lula e Juíza trocam farpas em interrogatório” da Band

Jornalismo, “URGENTE: Lula tenta avacalhar Juíza durante depoimento sobre sítio e é 122

confrontado por ela”, do canal Folha Política, “Os pitis de Lula diante da substituta de Moro” do canal Os Pingos nos Is e “MAIORES MITADAS DA JUÍZA: DEPOIMENTO DO LULA

(CASO DO SÍTO DE ATIBAIA) Felipe Ferreira” do canal O Jacaré de Tanga, entre outros.

“O Antagonista” dividiu o depoimento em diversas partes e o vídeo “DEPOIMENTO DE

LULA A GABRIELA HARDT – (Parte 1)”, lançado em14 de novembro e sendo hoje o mais visualizado do canal e que ao fim de 2019 constava com 1,4 milhões de visualizações.

Atualmente, “O Antagonista” parece ter rompido com Bolsonaro, trazendo críticas constantes ao presidente e à sua família, falando inclusive que ele se tornou um aliado da esquerda ao atuar a favor da corrupção. Também criticam Trump e são defensores de medidas de segurança contra a COVID-19, sendo bem menos adeptos de teorias conspiracionistas do que nos seus primeiros anos. Algo sintomático da nova fase d’O

Antagonista é que, atualmente, eles chegam a defender o meio ambiente e criticar a política ambiental de Bolsonaro e do seu ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, havendo apagado a entrevista sobre aquecimento global com Ricardo Felício canal. Apesar disso, ela ainda pode ser encontrada no canal do próprio professor e no canal “Católico de Missão”.

O que percebemos atualmente n’O Antagonista é a disputa por um nicho da direita pretensamente racional, contra o que chamam de “Direitismo Bolsonarista”. O canal tenta capitalizar no tipo de discurso pretensamente intelectual defendido por atores como Moro, que em abril de 2020 rompeu com Bolsonaro e que dois meses depois se tornou colunista da

Revista Crusoé. Ainda, vemos no canal uma crítica geral aos políticos e ao Estado enquanto defendem a propriedade privada. Assim, eles conseguem se afastar da impopularidade do governo Bolsonaro enquanto ainda resistem na luta por um mundo mais conservador e liberal e contra os seus inimigos dos diversos setores da esquerda.

123

O GIRO DE NOTÍCIAS

Por muitos anos, Alberto Silva criou blogs e sites para combater “a doutrina do PT”, posteriormente migrando ao Youtube com o fortalecimento e legitimação da extrema-direita em torno da figura de Jair Bolsonaro no Brasil. Ele foi um dos que reagiram à demanda por comunicadores que legitimassem sua perspectiva, momento em que surge um boom de teorias da conspiração que se retroalimentou com a onda bolsonarista.

O comunicadores desta linha são adeptos de FakeNews e defensores ferrenhos de Bolsonaro, fazendo parte de um grupo chamado “Youtubers de Direita”, que chegou a se encontrar com o presidente em julho de 2020, mesmo mês em que vários deles, inclusive

Alberto Silva, foram alvo de investigação e apreensão de computadores e HDs por suspeita de organização de “atos antidemocráticos” contra o Supremo Tribunal Federal. Neste mesmo mês, mais de 200 vídeos foram deletados do Giro de Notícias, grande parte deles com crítica ao STF.Contudo, isso não diminuiu o ritmo de Alberto Silva. Com cerca de cinco vídeos lançados diariamente, ele tem crescido rapidamente em seguidores, já contando com mais de um milhão.

Alberto Silva utiliza este crescimento para defender um Brasil conservador, patriota e capitalista. Em seus vídeos,é típico o uso de linguagem popular, na qual um homem aparamente indignado com a situação do Brasil comenta notícias políticas, enquanto faz conexão de diversas teorias da direita que sempre chegam à conclusão de que a esquerda é uma ameaça que deve ser extinta da forma que for necessária. A seu fundo, vemos um escritório coberto de livros de direita, como os do Professor Olavo de Carvalho, e ao lado um painel com fotos de Lula e Dilma, além de diversas notícias amarradas com alfinetes e barbantes mostrando suas conexões. 124

O tema de teorias é muito forte não só no cenário, mas também no conteúdo e até na forma como as notícias chegam a Alberto, pois “O Giro de Notícias” conta com uma extensa rede de Fakenews criada em torno do canal e que, em 14 de janeiro de 2019, girava em torno de 26 grupos no Whatsapp.

O canal do Giro de Notícias no Youtube foi criado no começo de 2015, sendo inicialmente utilizado para facilitar a indexação de vídeos nos sites de Alberto Silva, em que ele escrevia editoriais apoiando a Direita e atacando o PT. Foi apenas em 15 de setembro de

2018, em meio ao clima da eleição presidencial, com maior participação da extrema direita no

Brasil desde o fim da ditadura, que ele começou a produzir vídeos especificamente para o canal, na época ainda com menos de 100 seguidores.

Nos primeiros dias como youtuber, Alberto Silva conseguiu grande sucesso com o

único vídeo de seu top 10 que não é de 2019: “APURAÇÃO EM TEMPO REAL – Eleições

2018”, lançado em 7 de outubro de 2018 e contando com 927 mil visualizações. Em outubro de 2020, ele consistia no único deste canal entre os analisados aqui que não havia sido deletado.

O próximo vídeo do canal a ter um número massivo de visualizações foi lançado em seis de janeiro de 2019 e se chama “LULA CHORA, JOGA A TOALHA E DECRETA O

FIM DO PT”, com 909 mil visualizações, funcionando como um documento do clima de euforia que tomou conta da direita nas primeiras semanas do governo Bolsonaro.

O vídeo gira em torno da notícia de que o “ex-presidente, líder da quadrilha, presidiário” Lula havia decretado o fim do PT pela impossibilidade de continuar seus planos de “roubalheira, de falcatrua, de mentiras para enganar o povo” no governo Bolsonaro. Entre vários insultos contra Lula e ao legado do PT, ele compartilha as teorias de que 125

GleisiHoffman é amante de Lula, que Lula disse que o PT acabou pois sabe que nunca vai sair da prisão, pegando no mínimo 50 anos de cadeia e que o Brasil vai viver 40 anos em 4.

Alguns dias depois, em 9 de janeiro, ele lança dois vídeos que também entraram na lista de mais vistos do canal: “CENAS FORTES – Força Nacional parte pra cima no Ceará”, com quase 800 mil visualizações, e “SERGIO MORO ACABA COM A VIDA DOS

SINDICATOS: ‘PETEZADA’ CHORA” com mais de 750 mil visualizações.Ambos são uma defesa de Sérgio Moro, o primeiro falando sobre a necessidade de uma política de segurança pública mais violenta contra “os vagabundos” e o segundo tratando da escolha do delegado da

Polícia Federal Alexandro Patury para comandar a área de Registro Sindical, agora atrelada ao ministério da Justiça. Alberto comemora que com a “Nova Era” as coisas já estavam mudando no Brasil e aproveita o tema para destrinchar mais um conjunto de ideias da extrema-direita, desta vez girando em torno da necessidade de que os sindicatos acabem, pois na visão de Alberto eles servem apenas para que o PT roube empresas e trabalhadores.

Em 14 de janeiro de 2019, foi lançado o vídeo mais visto do canal no período de coleta desta pesquisa: “Por vídeo PCC manda recado a Bolsonaro”, com quase um milhão e meio de visualizações. Aqui ele discute um vídeo que circulou pelas redes sociais, especialmente

WhatsApp, onde homens encapuzados e armados enviam um recado para o governo, falando que lutarão contra seus opressores.

O objetivo do vídeo é assustar, Alberto Silva diz que o exército irá nos proteger, pois ele agora está à frente do Brasil. Também implica que há conexões entre o vídeo e Lula estar fazendo uma convocação dos governadores do Brasil. Encerra falando que a única forma de tranqüilizar a sociedade é uma resposta rápida e imediata do Governo Federal e faz um apelo ao general Heleno e a Sérgio Moro em nome da sociedade brasileira: “Temos que ter tolerância zero ou vamos virar uma Síria”. 126

Em 6 de agosto, é lançado o vídeo “URGENTE: AD3LIO BISPO RESOLVE ABRIR

A B0CA E CONTAR TUDO”, com 798 mil visualizações. O vídeo trata da notícia de que

Adélio teria chamado o SBT e a Veja para “contar tudo o que sabe” depois que Bolsonaro deu uma declaração falando “que o melhor seria ele contar”, mas o Tribunal Regional Federal da

3ª região proibiu a entrevista de Adélio Bispo enquanto estivesse preso.

Alberto aproveita para compartilhar algumas teorias sobre o caso, falando que o fato da defesa questionar sobre a sanidade dele é uma forma de calar a boca do que ele tem a dizer, que Adélio Bispo não quer tomar remédio pois ele sabe que será envenenado. Além disso, afirma que a esquerda tem poder, pois mitigaram a liberdade de expressão de Adélio Bispo enquanto “o pudim de pinga do Lula” pode fazer diversas declarações e ninguém o impede.

Por fim, ainda em agosto de 2019 foi lançado o vídeo “URGENTE: DISCOVERY

WHO’S FIREING AMAZONIA”, com 949 mil visualizações, no qual se apontou como as

ONGs incendiaram a Amazônia para forçar o governo a dar mais dinheiro para elas.

Hoje, Alberto Silva continua fortalecendo seu papel como grande defensor do

Bolsonarismo, cujas opiniões são sempre ecoadas pelo canal. Suas posições mais recentes foram a favor de Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, consideradas por ele uma farsa da esquerda apoiada pela mídia também esquerdista. Além disso, defende a cloroquina e todas as posições de Bolsonaro sobre o coronavírus, alertando sobre os riscos da vacinação em massa.

127

JOICE HASSELMANN TV

Joice Hasselman é uma das principais jornalistas da nova organização da direita no

Brasil. Nascida no Paraná, ela passou por importantes veículos conservadores, como sua atuação enquanto âncora na Bandnews FM, Rede Massa (SBT) e RIC TV(Record), fundando ainda a TVeja, núcleo audiovisual da Revista Veja focado na internet.

Sempre fazendo um jornalismo abertamente político e conservador, a experiência acumulada nestas funções e a capitalização em torno da onda antipetista que se fortaleceu depois das jornadas de junho permitiu que ela migrasse para o Youtube com relativo sucesso em 2016, mesmo ano em que lançou a biografia “Sérgio Moro: A História do Homem por

Trás da Operação que Mudou o Brasil” pela editora Universo dos Livros. Além disso, em

2017 ela foi âncora do programa Pingo nos Is da Jovem Pan e lançou o livro “Delatores: A ascensão e a queda dos investigados na Lava Jato”, pela mesma editora que seu livro anterior.

O sucesso do canal fez com que Joice recebesse o troféu Influenciadores Digitais da revista Negócios da Comunicação em 2017 e 2018. Foi também 2018 o ano em que ocorreu o maior crescimento de seu canal e foram lançados os seus vídeos de maior sucesso, como o vídeo “ENTENDA A JOGADA DA GLOBO NO CASO MARIELLE”, lançado em 16 de março.

O vídeo, que conta com 682 mil visualizações, é uma live gravada logo depois da morte de Marielle e apresenta muitos dos argumentos da direita na época. Evitando divulgar várias das Fakenews que saíram à época sobre a vereadora, o vídeo foca em como Joice acredita que a esquerda politizou o fato, “sambando” em cima do cadáver de Marielle e ignorando todas as outras vítimas da violência no Rio de Janeiro. Para Hasselmann, o caso 128

Marielle só recebeu tanta atenção por quê ela defendia pautas que interessam à rede Globo de televisão

Em 3 de abril de 2018 ela lançou o vídeo “O RECADO DAS FORÇAS ARMADAS

AO STF NO CASO LULA”, outra live, onde comenta sobre o post no Twitter feito pelo

General Eduardo Villas Boas, no qual ele ameaçava o STF caso fosse concedido o habeas corpuspreventivo de Lula, votado em sessão realizada no dia 4 do mesmo mês.

O vídeo, com 1,2 milhões de visualizações, é uma evidente ameaça ao STF, seguindo a linha do que foi postado pelo General Villas Boas. Hasselmann defende a ideia de que o exercito tem a obrigação de intervir caso o desejo da população, a prisão de Lula, seja desrespeitado. Quando este vídeo foi gravado a relação entre a extrema direita e o STF já estava bastante desgastada e percebemos isto na desconfiança por parte de Joice de que o STF tentaria um “golpe” no caso Lula e a necessidade levantada por ela de considerarmos uma intervenção militar.

Em 17 de maio do mesmo ano, com Lula já encarcerado, ela lançou “JUSTIÇA

CORTA MAMATAS DE LULA! “Imprensa” esconde a verdade. #JornalDaJoice”, com 2,3 milhões de visualizações. Neste vídeo se discute a suspensão do cartão corporativo de Lula enquanto ele estivesse na prisão eJoice aproveita isso pra falar também que a mídia de direita

é censurada pelo Facebook e Youtube, além de ser silenciada pela “Grande Imprensa”.

Em 20 de setembro de 2018 vemos o lançamento do vídeo “ALOOO ANITTA,

BRUTA ET MOÇOILAS. #Elesim! APRENDAM!”, com 1 milhão de visualizações, onde ela critica o movimento #EleNão, que mobilizou protestos contra Bolsonaro durante as eleições presidenciais daquele ano.A discussão do vídeo é um recado direto para as artistas que se posicionaram a favor do #EleNão, que Joyce acusa de saberem apenas mostrar a bunda e de 129

não entenderem nada de política, se envolvendo só pelos ganhos da Lei Rouanet. Para Joyce,é uma hipocrisia uma cantora de funk acusar alguém de machismo. No vídeo percebemos o quanto Joyce está preocupada com as conseqüências destes posicionamentos para o futuro do

Brasil, que teria em Bolsonaro a única possibilidade de se livrar de políticos de esquerda, o que justificou a grande unidade da direita testemunhada naquele ano.

O último vídeo analisado foi lançado alguns dias depois, em 25 de setembro de 2018, e se chama “DETALHES DA ARMAÇÃO MILIONÁRIA CONTRA BOLSONARO! DE

ONDE VEIO O $??? #Joice Federal1771”, com 738 mil visualizações e é também uma reação aos ataques contra Jair Bolsonaro, desta vez voltada em desmoralizar a mídia tradicional. No video, é apresentada a teoria de que há uma grande articulação com o objetivo de desgastar a imagem de Bolsonaro. A articulação seria mobilizada por um grupo de partidos que teria interesse em roubar o Brasil e entendem a derrota de Bolsonaro como único caminho para que isto se realize. Joyce acredita que a esquerda manipularia urnas para vencer e que a mudança da opinião popular sobre Bolsonaro operada pela grande mídia seria muito importante para legitimar este processo.

A ideia de que as urnas não seriam confiáveis se popularizou entre a extrema-direita no segundo turno, havendo inclusive ameaças de golpe caso Bolsonaro não encontrasse um resultado favorável nas eleições.

Em 2018, ela foi convidada por Bolsonaro para ser candidata ao Senado pelo PSL, o que acabou se tornando uma candidatura à Câmara dos Deputados que contou com mais de um milhão de votos, sendo a mulher mais votada da Câmara.

No começo de 2019, foi escolhida por Bolsonaro como líder do governo no Congresso

Nacional, mas foi retirada do cargo em outubro do mesmo ano, quando Bolsonaro rompeu 130

com o PSL devido à uma disputa pela liderança do partido na qual ele tinha interesse que seu filho Eduardo ocupasse o papel. Hasselmann ficou contra Bolsonaro nesta disputa e teve discussões públicas com os filhos de Bolsonaro e foi atacada massivamente por várias mídias apoiadoras do presidente, além de ter centenas de mensagens anônimas a ofendendo nas redes sociais.

Em 2020, ela foi candidata a prefeita de São Paulo, mas acabou tendo menos de 100 mil votos, apenas 1,84% deles. Parte deste enfraquecimento se deve a sua ruptura com

Bolsonaro, momento em que seu canal perdeu 110 mil seguidores, perdendo nos meses seguintes entre dez e trinta mil.

Atualmente, continua fazendo a divulgação das ideias e teorias da direita, especialmente no que diz às pautas liberais na economia e conservadoras nos costumes, apesar de eventualmente trazer posições que não dialogam com o consenso entre a direita, como no caso Mari Ferrer, no qual Joice se posicionou contrariamente à sentença de “estupro culposo”. Ela dialoga também com grupos que romperam com Bolsonaro, principalmente com Sergio Moro, mas seu canal é utilizado menos como jornalista e mais para discutir o seu papel na Câmara dos Deputados, além de ter sido um centro importantíssimo para sua campanha aprefeitura. A história de Joice se atravessa com a história da direita que somou forças para eleger Bolsonaro em 2018, mas posteriormente rompeu com o mesmo, estabelecendo diferentes frentes na luta contra a esquerda.

131

OS LIBERAIS

Os youtubers agrupados neste tópico compartilham a discussão da economia como seu ponto central. Sabemos que todos os canais analisados neste trabalho defendem um estado menos intervencionista, a diminuição das políticas públicas e uma maior liberdade no mercado, no entanto discriminamos este grupo por estes serem canais que constroem todo o seu discurso em torno deste tema. Estes canais defendem não só uma superioridade teórica mas também uma vantagem moral e ética do livre mercado como guia para a organização das liberdades individuais na vida em sociedade, isto quando acreditam em sociedade. São os mais “acadêmicos” dos canais analisados aqui, sendo influenciados pela militância universitária e por estudos teóricos, muitas vezes trazendo discussões mais elaboradas e muitas vezes embasadas em teóricos da área com seu objetivo de revelar o quanto a esquerda

é ignorante e despreparada. Escolhemos os Canais “Mamãe Falei”, “MBL - Movimento Brasil

Livre” e “Ideias Radicais”. Mesmo entendendo que o Mamãe Falei é alinhado com o MBL, acreditamos que pelo número de seguidores e importância no cenário político eles deveriam ser analisados separadamente. Já o Ideias Radicais, mesmo com um número pequeno de seguidores quando comparado com os outros canais, traz uma metodologia que nos permite entender melhor o pensamento e as propostas de mudança social da escola austríaca, o que nos levou a analisá-lo pela relevância que esta linha teórica tem adquirido na última década no

Brasil. Por fim, vale dizer que eles não concordam em tudo, pois os anarcocapitalistas como o

Ideias Radicais buscam uma destruição completa do Estado, enquanto o MBL, como representante de uma corrente mais difundida do ultraliberalismo, classificação utilizada por

Rocha (2019) para definir os leitores da Escola Austríaca no Brasil, em algum nível ainda crê na importância do Estado, como no caso de exércitos, por exemplo.

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MAMÃE FALEI

Em seu perfil no Site da Assembleia Legislativa de São Paulo, Arthur do Val se define como a maior página de política do Brasil, na mesma página diz que “Seu objetivo é transmitir os princípios liberais e a defesa dos interesses dos indivíduos a mercê do agigantamento do estado.”

Tais ideais não são distantes do que acreditava em 2015, quando lançou o canal

“Mamãe Falei”, ele não se diferenciava de outros canais no método de fazer seus vídeos.

Desde sempre um defensor do Livre Mercado, do fim das cotas raciais, de uma diminuição do tamanho do Estado e demais pautas conservadoras como a diminuição da maioridade penal e da liberação das armas para a população, o método dos vídeos ainda era o tradicional naquela

época, com ele argumentando de forma séria diretamente com os espectadores de seu canal.

Neste momento já vemos uma diferença dele até mesmo contra posições tradicionais da direita, puxando sempre para uma concepção ultraliberal, ainda que não tão aprofundada como em suas discussões posteriores.

Foi apenas em 2016 que ele adotou o método que o fez ser conhecido quando lançou o vídeo “Testando a Militância Petista na Manifestação pró-governo do dia 18 de março”, um vídeo que ele mesmo nos comentários diz que mudou a sua vida. Neste vídeo ele questiona vários participantes da manifestação sobre “O que faz o ministro da Casa Civil”, tentando mostrar que a esquerda é totalmente acrítica e despreparada.

Ainda em 2016 ele conheceu lideranças do MBL e começou a militar pelo movimento, eventualmente se tornando uma de suas lideranças nacionais. São do final deste ano os vídeos

“Ocupação de Escola – PARTE 2 DENTRO DA ESCOLA”, com quatro milhões de visualizações e “UFRGS – Parte 2 Economia”, com três milhões. 133

Ambos são visitas de Arthur à ocupações contra a PEC 241. Ignorando o ataque aos direitos básicos de estudantes que esta Emenda Constitucional propunha, Arthur ataca os estudantes de ensino médio e superior, trazendo o foco da discussão para direitos individuais, pois ele não consegue entrar e ter voz nas ocupações, e fazendo deboche dos estudantes que não sabem as respostas para suas perguntas e das estudantes que se dizem atacadas por atitudes que consideram machistas e que denunciam assédio sexual.

Todo este momento do canal pode ser resumido pela sua tese de que “expor ao ridículo também é uma forma de questionamento”. Para Arthur, propor a retirada de direitos básicos de certa parte da população em nome de uma lógica meritocrata é apenas isso, um questionamento. É neste ano também que ele começa a colocar o símbolo do MBL em seus vídeos.

Outro argumento que ele repete nestes vídeos é que os manifestantes são uma minoria que impede o direito da maioria de ter aulas e de ir e vir nos prédios públicos.

Em 10 de fevereiro do ano seguinte ele lança o vídeo “Confusão na Câmara dos

Vereadores – Juliana Cardodo (PT) agride Fernando Holiday (MBL)”, com quatro milhões de visualizações. Neste vídeo vimos o método de militância mostrado anteriormente, mas dessa vez com uma certa legitimidade. Agora não mais atacando militantes desconhecidos na rua ou em ocupações, o alvo é Lindbergh Farias, então senador pelo PT, que se nega a falar com

Arthur em uma situação que se escala até que este último tenta entrar na sala sala da liderança do PT durante uma reunião interna do partido. Deputados estaduais do PT denunciam o caso na câmara dos deputados e a situação quase parte para a violência física, com contínuo tensionamento de Arthur. Há ainda uma parte final do vídeo na qual os militantes do PT vão no gabinete do Vereador Fernando Holiday, momento em que o vídeo encerra e Arthur diz que precisou fugir para não ser agredido. 134

Arthur continua mostrando tudo como um grande exagero da esquerda contra alguém que só quer dar sua opinião, sem entender o peso que representa um dos maiores apoiadores nacionais do Golpe contra Dilma tentar entrar num espaço como este com o objetivo de ridicularizar as pessoas.

É importante dizer, em todos estes momentos a esquerda sempre é pintada de antidemocrática, pois não concorda com as opiniões dele e não permite sua participação em seus espaços.

A demonização deste aspecto firme em suas posições que a esquerda apresenta nestes vídeos fica evidente na discussão do vídeo lançado em 21 de março de 2017: “15 MINUTOS

COM JAIR BOLSONARO”, com mais de quatro milhões de visualizações, que hoje já se encontra deletado de seu canal, mas pode ser visto no perfil “InDireita Brasil”.

Aqui ele encontra Bolsonaro num corredor da Câmara dos Deputados e aproveita para ter uma conversa breve com ele. Neste curto tempo eles falam sobre Nióbio, uma das bandeiras de Bolsonaro à época, sobre a melhor estratégia para privatizar todas as estatais, pois o Estado é inerentemente corrupto e sobre a impossibilidade de que todas as pessoas sejam iguais.

O vídeo de fato é um documento da época, pois gira em torno da questão de que, mesmo discordando em alguns pontos, é possível um diálogo entre a Direita, o que a esquerda autoritária nunca aceita e por isso, e este é o ponto chave do vídeo, a direita deve parar de se fragmentar e combater seus inimigos com unidade.

O vídeo mais recente a ser analisado aqui foi lançado em 27 de junho de 2018 e se chama “Manuela D’Ávila em 40 segundos, com dois milhões e quatrocentos mil visualizações. O vídeo foi lançado à época da entrevista ao programa Roda Viva concedida 135

por Manuela D´Ávila, que ainda considerava sua candidatura à presidência da República na

época.

Nesse vídeo ele utiliza o dia em que Manuela D’Ávila disse que ele além de feio era fascista, o que Arthur apresenta como prova como ela é um agente do ódio e uma feminista hipócrita, pois atacou uma característica física dele. Além disso, ele aponta que a mãe dela é tem um alto salário e por isso ela é uma hipócrita ao criticar milionários na política.

Neste mesmo ano ele foi eleito Deputado Federal pelo Democratas (DEM), sendo o segundo mais votado de São Paulo, atrás apenas de Janaina Paschoal. A relação dele com o

DEM não durou, pois ele foi expulso do partido no ano seguinte por posturas que não condiziam com o mesmo.

Nas eleições municipais de 2020 Arthur foi candidato a prefeito de São Paulo pelo partido Patriota e teve 9,78% dos votos, ficando em quinto lugar.

Ainda no final de 2019, ele e o MBL fizeram parte dos setores da direita que romperam com Jair Bolsonaro por criticas à sua forma de gestão e à lentidão de suas reformas. O canal Mamãe Falei continua como uma plataforma potente na divulgação das ideias liberais, com mais de 2,5 milhões de seguidores e se diferenciando do resto da direita ao se posicionar sempre a favor o libertarianismo mais extremo, mesmo que precise romper alianças para isso. Isto mostra que tal perspectiva se fortaleceu, não precisando mais ir na esteira de outras correntes da direita e tem grandes perspectivas de crescimento, como ficou evidente pelo resultado eleitoral.

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MBL - MOVIMENTO BRASIL LIVRE

O Movimento Brasil Livre como um todo já foi bastante discutido em outros setores deste trabalho, portanto a este tópico caberá a análise do seu canal no youtube. O canal é entendido como uma das principais ferramentas de comunicação do movimento, mas sempre lembrado como algo que depende de outros setores do mesmo para funcionar, atuando inclusive no papel de também impulsionar estes outros setores.

Com vídeos que pretendem discutir política de forma irreverente que dialogue melhor com a juventude, seu público alvo, a página do MBL foi criada em 17 de outubro de 2014, alguns dias antes da eleição para o segundo turno. Mesmo que o movimento tenha sido criado ainda em Junho de 2012. Foi em torno da campanha de Paulo Batista, dois anos depois, que o

MBL se reorganizou e tomou o formato que conhecemos hoje, se tornando o braço no movimento estudantil da aliança conservadora que operou o golpe contra Dilma Roussef e a ascensão de Jair Bolsonaro.

A maioria dos vídeos do canal consiste em debates que mostram o quando Kim

Kataguiri é uma pessoa que destrói seus inimigos com o poder dos seus argumentos, inclusive com títulos como “Kim destrói...”, “Kim Kataguiri leva platéia ao delírio...” e “...Kim não perdoa”. A ideia é que, através de cenas editadas de debates, seja mostrado o quanto Kim e os ultraliberais são superiores aos militantes de esquerda, que são enganados, ignorantes e também moralmente inferiores, utilizando sempre argumentos rasos que podem ser quebrados facilmente por alguém como Kim Kataguiri.

A retórica do MBL é muito baseada na ideia de que existe um inimigo, a esquerda, a ser combatido. E o formato dos vídeos reforça isso constantemente, sempre com algum esquerdista sendo combatido pelos argumentos de Kim. As discussões são também carregadas 137

de argumentos morais, onde Kim defende elementos pétreos da crença ultraliberal, como e a crença de que desrespeito à propriedade privada perpetrado por tantos movimentos sociais é uma prática de vagabundos imorais.

A análise específica dos vídeos ajuda também a entender como o MBL se posiciona em relação a determinados debates e como ele tenta passar esta ideia aos consumidores do canal.

Um bom exemplo é o vídeo “Kim destrói professor prepotente e defensor de doutrinação”, postado em 23 de maio de 2017 e com dois milhões e 300 mil visualizações.

Neste vídeo de 5 minutos vemos um professor falando sobre a Escola sem partido por 4 minutos, enquanto Kim o critica por 1 minuto. O foco do vídeo é mostrar como as ideias dele são falhas e contraditórias, diferente de Kim, que está sempre pronto para refutar esquerdistas.

Ao fim do vídeo há uma montagem de Kim dançando “Can’t Touch This” do rapper Mc

Hammer.

Em 26 de fevereiro de 2018, já no clima do debate eleitoral daquele ano, foi lançado o vídeo “FOI DEFENDER LULA E OLHA NO QUE DEU”, com 1,4 milhões de visualizações.

Nele vemos um debate em uma rádio onde um defensor de Lula argumenta que estão tentando prendê-lo porque ele vai ganhar as eleições se estiver solto e os operadores do golpe não querem que ele vença.

Kim rebate falando que Lula nunca vencerá pois 51% dos brasileiros querem Lula preso e que o PT é corrupto por isso não pode argumentar contra quem apoiou o

Impeachment, pois eles são os verdadeiros golpistas. O sucesso de Lula, nos olhos do MBL, se deu por um momento de crescimento conseqüente das políticas neoliberais dos anos 90 e do “boom das commodities”. O PT, ao invés de usar esse crescimento para o bem do Brasil, 138

apenas roubou todo o país e se transformou numa seita. O vídeo termina com uma montagem de Kim andando de Skate sem skate.

Em 14 de setembro daquele ano foi postado o vídeo “Kim Kataguiri leva platéia ao delírio em debate com Carina Vitral (de novo)”, com 2,6 milhões de visualizações. O vídeo é um pedaço especialmente positivo para Kim de um debate travado com Carina Vitral, então presidente da UNE, onde Kim responde uma pergunta fácil cuja oportunidade é aproveitada para atacar Carina. A legenda do vídeo opera a favor de Kim, indicando que a platéia está sempre aplaudindo Kim e rindo e vaiando Carina, especialmente quando ela diz que a política do MBL é fazer meme. No fim do debate Kim diz que quando ela fala o meme já vem pronto, o MBL só divulga, e diz que ela deve se formar porque o pai dela não agüenta mais pagar. O vídeo termina com uma montagem de Kim Kataguiri usando óculos escuros.

Este tipo de vídeo parece ser comum nessa época, pois o MBL está sempre disposto a fazer debates, mesmo que depois vá utilizar de montagens e edições para ridicularizar quem estiver debatendo com eles. Assim eles conseguiram se pintar de um viés democrático enquanto se aproveitaram do tamanho e da legitimidade de outros grupos para fomentar seu próprio crescimento.

Outro exemplo disso é o vídeo lançado em 21 de setembro de 2018, de título

“militantes do PSOL atacam o MBL novamente mas Kim não perdoa” e com 2,4 milhões de visualizações. Desta vez o debate é na câmara dos vereadores de São Paulo, onde Sâmia

Bonfim, à época vereadora eleita pelo PSOL, e Isa Penna, militante do mesmo partido, continuam uma discussão iniciada em outro vídeo.

Neste vídeo Kim Kataguiri desvia de todas as perguntas feitas por elas atacando o

PSOL, defendendo que o fortalecimento da máquina pública proposto pela esquerda leva 139

apenas ao aumento da corrupção. Também aponta que com as privatizações propostas pelo

MBL o Brasil teria dinheiro para financiar a educação pública por vinte anos. Depois de ataques da edição contra Isa Penna, o vídeo termina com uma montagem do Kim como Goku, do anime Dragon Ball Z.

O último vídeo desta lista foi lançado em nove de outubro de 2018 e se chama “Os planos de governo de Haddad e de Bolsonaro”, com 1,6 milhões de visualizações.

Este é um vídeo de tom bem mais sério, com Kim dialogando diretamente com quem assiste. Aqui vemos Kim contrapondo as ideias de Bolsonaro e Haddad e defendendo a importância para o Brasil de que haja uma vitória de Bolsonaro, uma derrota do PT, pedindo que quem assistir use o vídeo para convencer seus amigos a apoiarem Bolsonaro.

Ao discutir a diferença entre o plano de Bolsonaro e de Haddad, que ele chama de

“Lula e Haddad” e às vezes só de Lula, sobre “ideologia de gênero”, Propriedade, privada,

Impostos, imprensa, Lava-Jato, Segurança Pública, Sindicatos, Agronegócios e Médicos

Cubanos, Kim diz que, mesmo tendo discordâncias com Bolsonaro, ele é a melhor opção para o Brasil, pois não irá incentivar movimentos que o MBL considera terroristas como o MST nem apoiar ditaduras com o dinheiro do povo, como o PT fazia, além de respeitar a liberdade da imprensa, as investigações contra a corrupção e a propriedade privada.

Atualmente o MBL passa por uma importante reconstrução, ao romper com a parte da direita mais organizada em torno de Jair Bolsonaro. Em 2019 eles continuaram estabelecendo uma identidade própria, se diferenciando de apoiadores de ocupação militar e capitalizando em cima do trabalho feito pelos principais setores da direita, inclusive eles mesmos, de divulgação do liberalismo.

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IDEIAS RADICAIS

Raphaël Lima é o rosto e criador do canal Ideias Radicais, no qual busca trazer formações e discussões sobre os ideiais do anarcocapitalismo, uma perspectiva que considera que não tem espaço por ser radical demais. As ideias discutidas nos seus vídeos giram em torno de conceitos basilares para a corrente teórica, como o princípio da não agressão e o direito à propriedade privada acima de todas as coisas, principalmente a propriedade privada sobre o próprio corpo, entendo no Estado uma ameaça constante e violenta à autonomia dos sujeitos.

Para Raphaël, uma forma racional de superar o Estado e organizar sujeitos verdadeiramente livres seria um tecido social baseado nas leis do livre mercado, a única opção possível de vida moral e ética onde as pessoas respeitariam suas escolhas. Pois Mercado é

Ordem, Estado é Caos.

Por levar ao extremo o princípio da não violência, Raphaël é um dos youtubers neste trabalho que melhor entendem o papel fundamental que a formação e a comunicação carregam na disputa social. O objetivo dele é permitir que as pessoas entendam os princípios da filosofia anarcocapitalista e possam se tornar autônomas de suas ideias, atuando de forma organizada para que o mundo possa mudar e espaços verdadeiramente livres sejam criados, sem a interferência ou fortalecimento do Estado, a raiz de tantas crises. Ele baseia suas discussões na escola austríaca, especialmente Ludwig Von Mises, Murray Rothbard e

Frederik Hayek.

O primeiro vídeo desta lista, lançado em 23 de maio de 2015 e que conta com 455 mil visualizações se chama “Por que o Brasil parou? Quem é o Culpado? Como Reverter a crise?” e traz um bom exemplo da compreensão do canal sobre a economia e as crises. 141

Diferente de perspectivas críticas ao capitalismo, que entendem as crises como parte de um processo de acumulação, para este canal as crises são causas por repetitivas intervenções do Estado na dinâmica natural da economia, especialmente através de políticas públicas baseadas em ideologias intervencionaistas.

No vídeo ele explica que os governos forçam os bancos a emprestarem a taxas baixas de juro, o que impede que os juros custem o que deveriam custar se deixarmos apenas o mercado regular o seu valor. Desta forma é produzido dinheiro sem que seja produzida também riqueza, o que causa inflação e cria mercados sem que haja consumidores para eles, eventualmente gerando uma crise.

Raphaël aponta que todas as crises do Brasil desde Lula foram resolvidas com a criação de mais crédito, quando a verdadeira solução seria que o governo parasse e permitisse que a crise aconteça e regule toda essa situação. Porém, ele acredita que o governo nunca fará isso por ser algo que não dá votos.

Em 16 de agosto de 2015 ele lançou o vídeo mais visto do canal, chamado “O que é

Fascismo?”, onde ele defende que o fascismo gira em torno de dois elementos: O apelo ao coletivismo na lógica do “Nós contra o Indivíduo” e o controle estatal indireto da economia.

O vídeo explica detalhadamente como cada um dos dois elementos se concretiza, decorrendo também sobre como o fascismo tem “diferentes sabores” e pode aparecer de diferentes formas em cada Estado e momento histórico. Ao elencar estes dois elementos como definidores do fascismo, ele aponta elementos fascistas na saúde estatal, no socialismo, na

Venezuela, no governo de Hitler, Mussolini, Lenin, Dilma, Putin e Trump, no New Deal, na

CLT, na Petrobras e no BNDS. 142

O ponto é que o fascismo vive e quem defende ideias fascistas é porque quer o seu dinheiro.

Em 27 de setembro de 2015 Raphaël lançou o vídeo “Por que o Socialismo é

Impossível?”, que conta com 526 mil visualizações. O vídeo, baseado no livro “Socialismo” de Ludwig Von Mises, defende que o socialismo altera artificialmente o preço dos produtos e explica como isto causa uma crise a partir da perspectiva da Escola Austriaca.

Todo o vídeo é uma explicação sobre o que é o preço para Mises, não se resumindo a um valor arbitrário dado às mercadorias, mas consistindo, na verdade, em um pedaço de informação sobre o quanto aquele bem é escasso, qual a oferta e demanda que existe em torno dele. Interferir no preço de algo é perigoso, pois impede que haja uma informação racional sobre como bens finitos devem ser realocados. Raphaël defende que sem preço e sistema financeiros a necessidade e demanda dos sujeitos é ignorada e tudo o que sobra são relações de poder e de influência, impedindo que a decisão mais racional seja tomada. Assim, uma

“alocação irracional de recursos” ocorre, causa das “milhões de mortes” por fome nas nações socialistas.

Menos de um mês depois, em 18 de outubro de 2015, foi lançado o vídeo “Por que a teoria da Mais-Valia é FURADA”, com 427 mil visualizações e que deu continuidade às críticas ao marxismo sob a luz da teoria austríaca do vídeo anterior.

Na explicação dele, há um conjunto de fatores temporais e riscos que fazem com que o empregador tenha gastos reais no presente, lucrando apenas no futuro. Além disso, há todo o tempo gasto economizando e os sacrifícios feitos para abrir o negócio. A única forma de resolver isso de maneira justa seria se os trabalhadores ficassem anos sem receber salário, correndo os mesmos riscos e fazendo os mesmos investimentos que o empregador. Mas 143

deixar de receber agora seria morrer de fome, que de acordo com Raphaël é o que os socialistas gostam. O canal aponta que todos estes são elementos que Marx não considerou ao pensar sobre Mais-Valia.

Em 06 de fevereiro de 2016, respondendo a pedidos, ele grava o vídeo “Vamos falar do Bolsonaro”, que tem 558 mil viualizações. Neste vídeo ele aponta que Bolsonaro não é libertário, que suas declarações são contraditórias e mesmo se colocando como defensor da liberdade, em vários momentos ele também defende a intervenção estatal na economia.

Na época do vídeo a família Bolsonaro estava passando por uma guinada liberal, estudando mais sobre estes temas e os defendendo publicamente. Mas Raphaël apontou como o apoio de Bolsonaro ao livre mercado era genérico, sem especificar o que ele quer privatizar.

A lição do vídeo é que política não é a solução e nunca vai ser, ela é o problema, o Estado é o problema, não sendo possível resolver o problema com mais problema. O que precisamos é o fim do Estado, de um livre mercado, a única opção moralmente defensável.

Nos anos seguintes Raphaël adotou uma posição mais estratégica em relação á ocupação do Estado. Ele entende que a redução do Estado deve se dar também através da ocupação do mesmo e da organização da sociedade civil e tem apoiado alguns candidatos a vereador, especialmente nas eleições de 2020.

Importante dizer que o Ideias Radicais não apoiou Bolsonaro nas eleições e faz constantes críticas ao seu governo, que não considera liberal de fato, além de críticas ao próprio comportamento do presidente. O foco do canal tem sido funcionar enquanto um thinkthank, incentivando que grupos liberais se formem pelo Brasil e qualificando indivíduos para a disputa que uma reorganização social deste nível demanda.

144

HOMENS DE FÉ

Os youtubers enquadrados neste setor são aqueles que constroem a sua identidade em torno da religião. Existem muitos canais que poderiam ter se encaixado aqui, como o “Padre

Paulo Ricardo” ou o “Pastor Antônio Junior”, havendo inclusive outros canais apresentados aqui que poderiam se encaixar nesta linha, como o Olavo de Carvalho. No entanto, escolhemos utilizar apenas “Bernardo P Küster” e “Dois Dedos de Teologia” por entender que suas relações com outros comunicadores da direita e as ideias apresentadas por ambos já eram suficientes para termos um mapeamento de como os conservadores cristãos organizam suas ideias e discursos na disputa de hegemonia decorrente à crise engatilhada pelas Jornadas de

Junho.

Vemos, neste tópico, youtubers que discutem temas da atualidade, da cultura pop às decisões da política institucional, a partir das escrituras cristãs, entendendo-as como algo indiscutível, que deve ser tomado a priori de qualquer discussão terrena. O mundo humano, para eles, não devem nunca tentar ocupar o lugar do reino de Deus, que é o único sem sofrimento.

É importante apontar também, como podemos perceber nas discussões sobre Teologia da Libertação e Marxismo Cultural, que as igrejas são uma das áreas em disputa na atualidade, com fortes vozes em defesa dos direitos humanos e de demais pautas

“progressistas”, não sendo justo considerar que estes canais representam a totalidade das opiniões cristãs no Brasil. O que se pretende neste tópico é entender qual é o discurso religioso que ajudou a construir a nova hegemonia reunida em torno de pautas liberais e conservadoras que se institucionalizou com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018.

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BERNARDO P KÜSTER

Bernardo Pires Küster é um dos maiores youtubers católicos do Brasil. Se identificando como ex-protestante, ele utiliza o seu canal para discutir política a partir de suas crenças, que acredita que devem ser seguidas pelo Estado brasileiro pois vivemos em um país majoritariamente católico.

Aluno de Olavo de Carvalho, ele acredita que devemos, pelo menos, considerar e discutir ideias como Antivacina, Terra Plana, Nova Ordem Mundial e outras que seriam consideradas “teorias da conspiração”, o que já o levou a discutir com o MBL em alguns vídeos, especialmente quando o movimento parou de apoiar Jair Bolsonaro.

Ele é dono também da Livraria do Bernardo, na qual vende obras cristãs e conservadoras que corroboram com a visão do canal, ajudando na propagação de tais ideias no Brasil. Além disso, sua disputa se localiza especialmente na arena da igreja católica, que considera estar em risco por conta da infiltração da esquerda a partir da Teologia da

Libertação.É este, inclusive, o tema do vídeo mais visto de seu canal, lançado em 26 de janeiro de 2018 e chamado “PT E A IGREJA – A “NOVA” ESTRATÉGIA DA ESQUERDA

(Marxism in theChurch)”, com 802 mil visualizações.

O vídeo, lançado dois dias depois que Lula foi condenado em segunda instância, se apresenta como uma grande denúncia sobre o 14º Encontro Intereclesial das Comunidades

Eclesiais de Base, cujo tema foi “CEBs e os Desafios do Mundo Urbano”. Para Küster, Dom

GeremiasSteinmetz, o Arcebispo da cidade onde foi realizado o encontro, Londrina, seria um agente da extrema-esquerda que teria utilizado de sua influência para politizar a discussão religiosa e perseguir padres conservadores que seguissem fielmente as doutrinas da igreja católica. 146

Ainda, Kuster diz que um ovo da serpente está sendo chocado pelos seguidores da

Teologia da Libertação e arriscando a própria igreja católica, que pode ser transformada numa ferramenta de doutrinação da esquerda. O tema é recorrente no canal e foi rediscutido com maior profundidade no vídeo “CNBB NO BANCO DOS RÉUS: grana, poder e heresia”, lançado em 23 de fevereiro do mesmo ano.

Em 31 de julho de 2018 foi lançado o vídeo “RODA VIDA: JORNALISMO FAJUTO

E VERMELHO”, com 673 mil visualizações. O vídeo foi uma resposta à entrevista de

Bolsonaro no programa Roda Viva, como parte de um conjunto de entrevistas com todos os candidatos a presidência. Bernardo fez dois vídeos, um só sobre Bolsonaro e este, sobre os jornalistas, que teve muito mais visualizações.

Se trata de um conjunto de denúncias sobre os jornalistas que entrevistaram

Bolsonaro, pois Bernardo considera que são todos esquerdistas e incompetentes que destilaram seu ódio em cima de Bolsonaro. O vídeo vende a ideia de que o jornalismo brasileiro é preguiçoso e mal intencionado, sempre se utilizando de mentiras para perseguir a direita e propagar a agenda esquerdista. Na argumentação do youtuber, jornais como Folha de

São Paulo, Estado de São Paulo, Valor Econômico, e até a revista Veja, seriam um “bando de comunistas” que controlam as informações e perseguem qualquer um que ousar discordar.

Em 19 de março de 2019, já na gestão de Jair Bolsonaro, Bernardo lança o vídeo

“Bolsonaro Envergonha o Brasil”, com 548 mil visualizações. O título do vídeo é uma ironia que permite que ele parta para o ataque contra quem defende este argumento, escancarando a dimensão bélica de seus argumentos.Isto é uma prática recorrente e pode ser vista em outros vídeos do canal, como “Bolsonaro acabará com as universidades”, “O melhor jornal é o

Estadão” e “BOLSONARO ME ENGANOU”. 147

“Bolsonaro Envergonha o Brasil” é sobre como Bolsonaro facilitou a entrada de estrangeiros no Brasil liberando o visto para estadunidenses e como isto foi criticado pela esquerda como sinal de imperialismo. O vídeo, como todos aqueles nos quais Küster fala de

Bolsonaro, é uma defesa sem limites do presidente, afirmando que existem brasileiros que ficam ilegalmente nos Estados Unidos e por isso devem ser proibidos de entrar no país, além disso, Bernardo afirma que como os Estados Unidos (EUA) são um país mais sério que a

China e que o Foro de São Paulo, além de apontar como o estreitamento das relações entre o

Brasil e os EUA é um indicativo de que estamos num momento maravilhoso, com recordes históricos no Ibovespa e grande animação por parte do mercado.

Em 24 de abril de 2019, diante do crescente atrito entre o vice-presidente e Jair

Bolsonaro, Bernardo lança o vídeo “General Mourão: O traidor?”, com 685 mil visualizações, no qual ele utiliza a metáfora de um filho que responde aos pais para discutir sobre como

Mourão tem discordado publicamente de Bolsonaro. Para Küster, o fato da mídia não criticar

Mourão como critica o Presidente é um alerta, por ela estaria tentando derreter a credibilidade de Bolsonaro sem tocar no vice, o que para Küster é especialmente perigoso quando lembramos que Bolsonaro foi eleito combatendo a mídia.

Ainda defende que Mourão ter sido neutro quanto ao aborto, crítico quanto aOlavo de

Carvalho, positivo sobre Chico Mendes e sobre Supremo Tribunal Federal (STF), crítico à privatização dos Correios e ainda ter se reunído com o presidente da Central Única de

Trabalhadores (CUT), ter falado que nazismo não foi de esquerda e ter criticado a

“despetização” do governo, são prova de que ele enganou todo mundo ao se alinhar com

Bolsonaro. Existem diversos outros posicionamentos de Mourão criticados no vídeo, mas o tema é que ele deve se calar, mas não sair do governo, pois isto colaria Rodrigo Maia como 148

vice-presidente. Os militares que Mourão representa devem desistir de ideias de poder, pois eles já erraram e abriram espaço para que os comunistas tomassem o país.

O último vídeo do canal analisado aqui é de 17 de junho de 2019 e se chama

“GREENWALD – Show do Pavão analisado (veja até o fim)”, com 621 mil visualizações.

Este vídeo trata da conta no Twitter chamada “Pavão Misterioso”, que foi criada à época das denúncias do Intercept sobre os interesses que Sergio Moro, à época Juiz da Lava Jato, teria com a condenação de Lula, além de suas relações com os procuradores do processo, especialmente DeltanDallagnol. O Pavão Misterioso soltou diversas informações sem provas de que Glenn Greenwald teria trabalhado com hackers russos para invadir o celular de Sérgio

Moro, além de ser socialista e amigo de neonazistas. Podemos perceber que todas as

Fakenews do Pavão são discutidas com seriedade por Bernardo, que se diz preocupado e que tudo deve ser pelo menos analisado, pois as várias provas de que aquilo seria falso são duvidosas demais.

Em maio de 2020, Küster foi um dos youtubers que sofreu busca e apreensão por parte da Policia Federal como parte do inquérito das Fakenews contra o STF. Hoje, Bernardo continua como um apoiador incontestável de Jair Bolsonaro, expandindo suas ferramentas de comunicação, sendo diretor do Brasil Sem Medo, definido como o maior jornal conservador da internet brasileira, que também tem como uma das lideranças o próprio Professor Olavo de

Carvalho.

Além disso, está na fase final da produção do documentário “Eles Estão no Meio de

Nós”, que pretende denunciar a Teologia da Libertação e a infiltração da esquerda na igreja católica. O filme já conta com site, trailer e está com mais de 70% na sua meta de financiamento coletivo. 149

DOIS DEDOS DE TEOLOGIA

Além de youtuber, Yago Martins é pastor da Igreja Batista, autor de livros e professor de economia, sendo a partir da junção entre as discussões da teologia cristã e de linhas econômicas apologistas ao capital que ele elaborou os temas de seus vídeos, buscando analisar temas da vida cotidiana a partir destas ferramentas.

O seu canal é muito organizado e divide seus vídeos em programas, como o “Dois

Dedos de Teologia”, focado especificamente na discussão da palavra de Deus, o “Mundo

Cópia”, que fala sobre as contribuições do cristianismo para a vida a partir da cultura pop, e o

“De Olho no Texto”, que discute diretamente as escrituras sagradas cristãs. Além disso, também vale a pena citar o programa “Em Cima do Muro”, onde ele entrevista grandes nomes da direita brasileira, como , Felipe Moura Brasil, Pyong Lee e Nando

Moura, para citar os últimos.

Quando o canal foi lançado, em 2014, a grande maioria de seus vídeos consistia em hinos sagrados, alguns deles continuando até hoje como os mais vistos do canal, como o vídeo lançado em 12 de feveiro de 2017 “FOI NA CRUZ (Hino 396/ Cegueira e vista –

Cantos Cristão)” com 861 mil visualizações.

Apesar do sucesso, pouco a pouco, outro tipo de vídeo foi tomando conta do canal, como vemos ainda em 14 de agosto de 2017 com o vídeo “Entenda o que é Marxismo

Cultural”, no qual ele faz uma discussão que trata de como Gramsci reinterpretou os conceitos marxianos de superestrutura e infraestrutura para criar um plano de aplicação do marxismo em países ocidentais, que apresentaram maior resistência a estas ideias por conta de suas estruturas de direito melhor formuladas. 150

Ele diz também que Gramsci haveria proposto a necessidade de formadores de opinião ao invés de uma revolução violenta como defendida por Marx, estas ideias foram abraçadas pelo PT, que pensava em uma educação das massas a partir de uma pedagogia política. Yago denuncia como hoje Marx não pode ser negado nas universidades brasileiras e todo pensamento científico nacional é baseado no marxismo. Autores tentam aplicar Marx na pedagogia, geografia, religião e em todas as áreas da ciência e da vida cotidiana. O marxismo representa o que é normal, o que desvia é inaceitável na intelectualidade.

Em 22 de agosto de 2018 o canal já estava com seus programas estabelecidos e lançou, pelo “Mundo Cópia”, o vídeo “O ABSURDO DA VIDA SEM DEUS EM RICK AND

MORTY”, com 441 mil visualizações. O vídeo trata, como o título sugere, de uma análise da série “Rick e Morty”, que para Yago é um exemplo de como a vida sem Deus é uma vida sem propósito, sem razão, regida apenas por leis naturais impessoais, sem moralidade. Segundo o youtuber, isso seria uma prova de que o ser humano precisa de Deus e da imortalidade para que sua vida tenha sentido, já que a morte tira o sentido de todas as coisas e a própria imortalidade só tem valor com Deus.

A tese do vídeo é que é impossível viver levando ateísmo a sério, pois para isso se precisaria abraçar a loucura e o absurdo. O abandono de Deus, para Yago, é a falta de moral, não há valor da vida. A conclusão é que o cristianismo nos dá as respostas para todas estas perguntas e por isso deve ser seguido centralmente na vida, sendo a outra opção uma vida sem sentido, moralidade e até mesmo sanidade.

Em 5 de setembro de 2018, dois dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais, é lançado o vídeo “NÃO VOTEM NO HITLER”, com 770 mil visualizações.

No vídeo, cujo título é também uma resposta sobre as denúncias de apoio à ditadura e ao fascismo por parte de Jair Bolsonaro, se utiliza o exemplo de Hitler, que diminuiu 151

consideravelmente o desemprego na Alemanha, apesar de eventualmente seguir práticas socialistas, e melhorou bastante a situação econômica do país, mas que mesmo assim não se deveria votar nele por conta do holocausto.

A partir deste exemplo, Yago defende que não podemos votar em quem apóia o maior holocausto da história: o aborto, sendo inclusive apoiados pelas universidades. O canal defende que aborto é assassinato de crianças e que precisamos de um presidente que faça de tudo para impedir que esta prática seja legalizada. Só depois de responder o que o candidato pensa sobre aborto é que poderemos pensar sobre outras pautas políticas. Para Yago, só há escolha entre os candidatos pró-vida e o resto deveria ser preso por incitação ao crime.

Alguns dias depois, em resposta a um texto de Olavo de Carvalho, o Dois Dedos de

Teologia lança o vídeo “POR QUE NÃO SOU OLAVETE (RESPOSTA AO “POR QUE

NÃO SOU EVANGÉLICO”)”, com 476 mil visualizações. O vídeo gira em torno de contra argumentos ao que foi levantado por Olavo de Carvalho, comparando o que ele disse com textos bíblicos e com as práticas de grupos protestantes, tendo como ponto central a tese de que Olavo atacou um “espantalho”. Este vídeo teve uma resposta de Bernardo P Küster, mas a discussão não se acirrou, pois ocorreu em um período de relativa unidade de pautas políticas por parte da direita em torno da necessidade de retirar o Partido dos Trabalhadores da corrida eleitoral e da vitória de Jair Bolsonaro. O próprio Yago ao fim do vídeo diz que tem muito respeito por Olavo como pensador, mesmo com tais discordâncias em torno de pontos teológicos.

Sobre as suas publicações, Yago já havia lançado diversos livros discutindo as escrituras e em 2019 lançou o livro “A Máfia dos Mendigos: Como A Caridade Aumenta a

Miséria” pela Editora Record. O livro é conseqüência de sua experiência de um ano se passando por sujeito em situação de rua com o interesse de entender como as “estruturas de 152

mendicância” funcionavam. Nesta “pesquisa” ele descobriu que muitos dos sujeitos tinham casa e não eram doentes, estando na rua por razões mais complexas que estas, por isso ele acredita que dar ajuda material para estas pessoas é incentivar que elas fiquem na rua e usem drogas. Para ele, caridade irrestrita não ajuda e cria "parasitas da miséria". O que devemos fazer é se engajar com as pessoas, para entender como de fato ajudá-los a sair daquela situação. Dar comida a estas pessoas é tirar a chance delas saírem desta situação, é ser paternalista e ensinar a pessoas a continuarem vulneráveis.

Atualmente, Yago já não é um defensor de Bolsonaro, apesar de ainda acreditar que o voto nele foi necessário para impedir que o PT roubasse mais. As principais críticas a

Bolsonaro giram em torno da pandemia, pois a cidade de Yago, Fortaleza, sentiu intensamente os efeitos da Covid-19. Devido às suas defesas do Livre Mercado e críticas ao

Estado e aos impostos, tem também se aproximado do MBL, de quem é um parceiro em várias discussões.

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OS PATRIARCAS

Este grupo é formado por páginas que articulam o discurso da extrema-direita de forma a conseguir centralizar todas as suas vertentes com o objetivo de estabelecer uma unidade organizativa. Sem estes canaisnão haveria a forte articulação em torno de Jair

Bolsonaro como candidato para as eleições de 2018. Seja por meio do forte trabalho de revisionismo histórico e popularização de teorias da conspiração, seja através da junção destas teorias com propostas liberais, permitindo que setores chave da burguesia nacional se aproximassem destas pautas. Mesmo que outros canais tenham alcançado mais seguidores ou visualizações, foram estes canais que moldaram a amalgama ideológica que tomou as ruas e se transformou na onda conservadora que vemos hoje. Articulando argumentos sobre geopolítica conspiracionista e direitos humanos, a ameaça da esquerda, pedofilia e socialismo, eles conseguiram estabelecer a cosmovisão da extrema-direita, como no caso de Olavo de

Carvalho, ajudar à divulgá-la, como no caso de Nando Moura, e permitir que ela se tornasse uma política oficial do Estado, como no caso de Jair Bolsonaro. Cada um deles teve papel central neste processo e, com a análise de seus vídeos, acreditamos que poderemos ter insumos necessários para concluir esta parte de nosso estudo.

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NANDO MOURA

Auto-proclamado “o maior youtuber conservador do Brasil” e, definitivamente, o canal com maior número de seguidores analisado nessa pesquisa, contando com 3,3 milhões no final de outubro de 2019, Nando foi um dos principais apoiadores da plataforma de

Bolsonaro à época das eleições presidenciais de 2018.

Seu canal foi criado em 2011 com o objetivo de divulgar sua banda, Pandora 101, com músicas de teor anticomunista e conservador, mas ao longo do tempo foi tratando de outros assuntos envolvendo música e cultura pop, até que se aprofundou em temas conservadores a partir de 2014. Se popularizou rapidamente ao atacar grandes youtubers da época, como Cauê

Moura, PC Siqueira, JoutJout e Felipe Neto, construindo sua fama com o espaço que eles tinham e fazendo da postura bélica sua marca registrada.

Inicialmente um discípulo de Olavo de Carvalho, se vê como um pensador anti- establishment que valoriza a alta cultura, odeia música popular e acredita que sem religião a vida não tem propósito e podemos chegar apenas à loucura. Defensor do capitalismo, chegou a ministrar um curso de negócios chamado “Mestres do Capitalismo”, que se tornou um livro atualmente disponível inclusive em sua livraria online.

O vídeo mais antigo a ser analisado aqui foi postado em 29 de janeiro de 2016 e se chama “Vai votar no Bolsonaro???”, com mais de 2 milhões de visualizações. O vídeo é o primeiro momento no qual Nando se posiciona como eleitor de Bolsonaro para as eleições de

2018 e surge como resposta a um ato do Levante Popular da Juventude (LPJ) no qual jogaram purpurina no então deputado federal em Porto Alegre.Entre ataques à Jean Willys, que não estava presente no ato, o youtuber defende que Bolsonaro, a quem já havia criticado em 155

vídeos anteriores, seria o único candidato realmente conservador e de direita que o Brasil tinha, por isso seus apoiadores, como Olavo de Carvalho, são crucificados.

A partir de então o apoio de Nando a Bolsonaro só se fortaleceu, com seu canal sendo uma grande plataforma para sua candidatura, mesmo que esta não houvesse ainda se oficializado. Nesta tendência, menos de um mês depois, em 26 de fevereiro, foi lançado o vídeo “Conversa: Nando Moura e Bolsonaro – Parte 1”, que teve mais de 2,5 milhões de visualizações.

A entrevista foi separada em algumas partes nas quais vemos os dois conversando tranquilamente em um sofá no gabinete de Bolsonaro. Atrás deles uma bandeira do Brasil e outra de São Paulo. Eles conversam sobre o temor a Deus, a oposição ao PT, o crime de responsabilidade e a necessidade de um impeachment contra Dilma Rousseff, a carreira de

Bolsonaro no exército, ideologia de gênero, relativização da pedofilia por parte da esquerda e sobre como o agronegócio é a locomotiva da economia brasileira, que precisa ser defendida contra os “grilhões supranacionais” que querem impedir o crescimento do país com reservas indígenas e áreas quilombolas. No total, o vídeo é um bom exemplo da amálgama de teorias da conspiração e do liberalismo nacionalista que guiaria o discurso do Bolsonarismo nos anos seguintes.

O vídeo seguinte a ser analisado aqui é um documentário postado em 12 de abril de

2017 e intitulado “O Preço da Ignorância”, com mais de 2,4 milhões de visualizações. O vídeo hoje em dia está apagado do canal de Nando e foi feito pela Brasil Paralelo. Esta produtora áudio visual foi fundada em 2016 e tem um canal próprio no youtube com mais de

1,5 milhões de seguidores, sendo uma das maiores divulgadoras das ideias da extrema direita no Brasil, conhecida por compartilhar e reforçar teses revisionistas de nossa história e atualmente associada com a TV Escola. 156

O documentário funciona como um manifesto das releituras da história nacional e é baseado em entrevistas de Olavo de Carvalho, Luiz Felipe Pondé, Rogério Marinho, Joice

Hasselmann, Felipe Moura Brasil e Rodrigo Constantino, entre outros. No vídeo se defende que o comunismo é o maior genocídio que já assolou a humanidade e que, nos anos recentes, sua vertente mais popular foi a do Socialismo Fabiano, que eles busca se infiltrar nos estados a partir das ideias de Gramsci e fazer uma transição gradual para o socialismo. Isto é feito através do controle cultural, especialmente das escolas e da mídia, e tem sido feito no Brasil desde a ditadura militar, com agentes como Fernando Henrique Cardoso e os governos

Petistas neste processo, operando através do Foro de São Paulo e com apoio das FARC. Na discussão as principais pautas unificadoras da extrema direita à época são defendidas, vemos argumentos em favor de visões conservadoras das teses sobre o Politicamente Correto, ONGs, a lei Rouanet, a importância da Escola Sem Partido e como o desarmamento é uma ferramenta comunista pra controlar a liberdade das pessoas.

Já em 09 de outubro de 2018, alguns dias depois do primeiro turno das eleições, ele lança o vídeo “KÉFERA tenta HUMILHAR a própria MÃE!!!”, que teve 1,9 milhões de visualizações. O vídeo é uma reação de Nando a um vídeo do canal New York Treta, seguindo a tradição do Youtuber de servir como plataforma de divulgação de novos canais de direita. Aqui ele comenta sobre um story gravado pela também youtuberKéfera, no qual ela chora pela vitória de Bolsonaro e o compara com Hitler.

Nando Moura ataca a youtuber, rindo de sua aparência física e falando que a mãe dela apóia Bolsonaro e é um desrespeito que ela fale isso de alguém defendido pela sua mãe.

Depois o vídeo se torna uma defesa de Bolsonaro, repetindo ideias comuns na época entre os bolsonaristas, como a possibilidade de fraude nas urnas e o risco do Brasil se transformar numa Venezuela com a vitória do PT. 157

As eleições de 2018 foram um momento de grande crescimento para o canal, com aumento de 200 mil seguidores no mês de outubro. Isto não foi exclusivo dele, mas sim um fenômeno compartilhado por vários canais bolsonaristas do Youtube.

Em 24 de maio de 2019,é postado o vídeo “O MBL – Arthur (Mamãe Falei) x Nando

Moura”, com mais de 2 milhões de visualizações, no qual ele confronta Arthur Do Val pela negativa do MBL em construir e participar do ato que seria realizado no dia 26 de maio chamado “Reformas Já” e com forte teor de apoio a Bolsonaro. Este ato representou um racha na direita, pois muitos dos grupos que apoiaram o presidente nas eleições se negaram a construí-lo, especialmente o MBL, que perdeu quase 200 mil seguidores neste processo. Este foi o primeiro de muitas das separações entre os apoiadores de Bolsonaro, havendo muitos que hoje já não dialogam em favor do presidente e são inclusive seus detratores. Para Nando representa também uma transição ao lado de setores mais liberais da economia e menos fundamentados em teorias da conspiração. Marca disto é o fato de que o vídeo “O Preço da

Ignorância” é o único desta lista deletado de seu canal.

Em 2019 ele rompeu totalmente com Bolsonaro e com Olavo de Carvalho, não vendendo mais os livros do último em sua livraria. Além disso, tem defendido a quarentena e criticado o uso de cloroquina e da ciência para lidar com os efeitos do Novo Coronavírus, indo em defesa de Mandetta, Moro e demais desavenças de Bolsonaro.

158

OLAVO DE CARVALHO

O “Professor Olavo”, como ficou comum chamá-lo, é um educador carismático que começa seus vídeos com um singelo “Alô Pessoal” e se tornou o parteiro de uma nova onda da extrema direita no Brasil. O ex-jornalista e ex-astrólogo é um filósofo autodidata cujas teses conspiracionistas divulgadas em seu canal desde 2007, e em seus livros desde os anos

1990, foram intensamente divulgadas por seus alunos, chegando a influenciar o atual presidente da república, que estava com um de seus livros na sua primeira live enquanto presidente.

Com livros publicados desde os anos 1980, ele se auto-exilou no estado norte- americano da Virgínia, o filósofo, que é também um ex-militante de esquerda, se sustentou através da venda de cursos nos quais questiona heliocentrismo, defende que a Pepsi utiliza células de fetos abortados como adoçante, nega o aquecimento global e a existência de combustíveis fósseis e cogita a possibilidade de que a terra seja plana. Sua influência sobre personalidades como Nando Moura, Bernardo P.Kuster e a produtora Brasil Paralelo, além da própria família Bolsonaro, fez com que suas ideias ficassem bastante conhecidas no Brasil na

última década, o que foi impulsionado pela publicação em 2013 da coletânea de escritos “O

Mínimo que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota”, bestsellerincontestável organizado por Felipe Moura Brasil.

O primeiro de seus vídeos analisado aqui foi publicado em 15 de novembro de 2015 e

é uma análise de conjuntura chamada “O Brasil perante a nova ordem mundial”, com 844 mil visualizações e cujas ideias se tornaram bastante influentes nos anos seguintes. No vídeo, ele faz uma análise de conjuntura sobre a situação do Brasil naquele momento. Ele se mostra preocupado com a pressão internacional, defendendo que 80% de nossas leis vêm prontas da

ONU e que tudo é um plano de controle da Nova Ordem Mundial. Além disso, ele acredita 159

que este é o verdadeiro problema do país, muito maior do que a corrupção do PT, pois a partir disto nossa cultura é controlada através de uma estratégia gramsciana, dominando a mídia e os estabelecimentos de ensino que repetem um discurso uniforme.

Olavo de Carvalho diz que o golpe de 1964 foi culpa dos comunistas e que os militares não souberam lidar com isto, suprimindo a política e focando suas discussões apenas em economia, o que acabou com a direita no Brasil e deixou campo aberto para que a esquerda se infiltrasse em vários espaços. Ele também afirmaque tenta avisar sobre isso desde os anos

1990, mas foi ignorado, pois apenas a ideologia comunista tinha e tem espaço na mídia brasileira. Olavo acredita que no Brasil apenas a internet permitiu que a verdade se revelasse, pois jornais e televisão são o reino do silêncio e da mentira.

No final do vídeo, Olavo diz que é tudo um plano globalista, apoiado especialmente por comunistas e islâmicos, contra a cultura ocidental, que procura acabar com todos os países. Para ele é preciso uma reformulação do Estado brasileiro em direção dos interesses do povo, que é majoritariamente conservador. O vídeo é uma grande demonstração de sua capacidade de falar por horas sobre temas conspiracionistas e também uma demonstração concisa de seu projeto de recuperação da sociedade brasileira. Além disso, funciona como um apanhado geral das teorias globalistas que atualmente guiam a política externa oficial do governo brasileiro.

Depois deste vídeo, todos os outros de seus 10 mais visualizados foram lançados entre

2018 e 2019, por isso o segundo que trataremos aqui foi lançado bem depois e é “Bolsonaro e os assassinos coitadinhos”, lançado em 7 de setembro de 2018 e que contava com 733 mil visualizações em outubro de 2019.O vídeo é sobre o atentado contra a vida de Jair Bolsonaro no dia anterior, um momento altamente capitalizado por conspiracionistas de todos os tipos e se trata de uma análise que se pretende objetiva de diversas conversas de WhatsApp de grupos 160

de esquerda a que Olavo teria acesso. Ele diz que várias pessoas exaltaram o assassino e traziam planos para matar Bolsonaro há muito tempo. Para Olavo tudo se trata de uma vasta trama contra Bolsonaro, que nunca defendeu violência, mas sim legítima defesa contra

“ladrões, assassinos e estupradores”. O professor conclui lembrando de sua crença de que ninguém matou tanto na história quanto comunistas e afirma que foi a elite universitária que planejou o atentado.

Em 21 de setembro de 2018 ele postou o vídeo “Olavo de Carvalho – O aviso mais importante que já dei aos brasileiros”, com 1,9 milhões de visualizações. O vídeo discute como o Brasil e suas instituições estão na mão dos comunistas, com órgãos de comunicação apoiando Adélio Bispo e a política sendo proibida de soltar informações sobre o atentado, pois isto ajudaria Bolsonaro. Em poucos minutos ele resume todas as suas teorias sobre o

Foro de São Paulo, as FARC, o comunismo como uma rede internacional, a democracia brasileira ser uma farsa por não representar majoritariamente os conservadores e como não existe liberdade de expressão no país. O vídeo é um aviso de que a única forma de não perdemos o Brasil para o “banditismo organizado” é elegermos Bolsonaro, que punirá estes que ele entende como genocidas.

Alguns dias depois, em 26 de setembro, é lançado o vídeo “Ele sim, porra!”, no qual ataca artistas que apoiaram o movimento “Ele Não”, afirmando que nenhuma crítica a

Bolsonaro é real e foi tudo inventado pela elite de artistas que não trabalha e só vivem de

“festas, suruba e cocaína”, tudo pago com dinheiro público recebido por ajudarem a esconder a aliança do PT com as FARC. Para o Professor, estes artistas são agentes que ocuparam os canais de comunicação para silenciar todas as vozes conservadoras e que devem ser responsabilizados pelo grande apoio que deram para que Chávez, Maduro e Terroristas

Islâmicos entrassem no Brasil. 161

Com a vitória de Jair Bolsonaro, as teorias de Olavo de Carvalho se tornaram a visão de mundo oficial do governo brasileiro, embasando diversas de suas políticas externas e internas, havendo inclusive indicação por parte do professor de três ministros para Bolsonaro:

Ricardo Velez, Ernesto Araújo e .

Isso consolidou o espaço que Olavo tinha recebido da grande mídia nos anos anteriores, exemplo disto é o último vídeo analisado aqui, postado em 11 de abril de 2019 e se chama “ENTREVISTA AO PEDRO BIAL – 10 ABRIL 2019”, alcançando 1,3 milhões de visualizações. O vídeo é uma entrevista ao programa “Conversa com Bial”, na qual o professor é entrevistado em sua casa e reafirma sua crença de que os comunistas controlam a cultura brasileira, defendendo que o poder intelectual é o de maior duração. Seu objetivo de vida não é a política do dia, mas um projeto de décadas que visa restaurar a cultura brasileira, que ainda não foi reformada, mesmo que o PT tenha caído. Ele fala também sobre os ataques que a cultura ocidental tem sofrido nos últimos 200 anos, como os conservadores sempre foram silenciados e que as redes sociais permitiram que o povo finalmente fosse ouvido.

Olavo diz também que a direita acabou de surgir no Brasil e que ainda tem que amadurecer, por isso carrega a esperança de que os seus livros ainda sejam lidos por muitos séculos.

Atualmente, Olavo continua com seus vídeos e cursos, havendo recentemente afirmado que não houve nenhuma morte por Coronavírus registrada no mundo. Ao final de

2019 lançou o jornal virtual “Brasil Sem Medo”, dirigido por Bernardo P.Kuster. Continua apoiando Jair Bolsonaro, apesar de eventuais atritos e de acreditar que os seus inimigos o estão impedindo de agir e que uma ação mais agressiva por parte do presidente é necessária.

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JAIR BOLSONARO

Atual presidente do Brasil, Bolsonaro foi um dos políticos que melhor utilizou o

Youtube e as redes sociais de acordo com seus interesses, divulgando seus vídeos na plataforma desde 2009. O capitão reformado do exército tem uma longa carreira política, iniciada com a ocupação do cargo de vereador no Rio de Janeiro em 1988 e posterior eleição para deputado federal em 1990, cargo que ocupou até 2018, quando cumpria seu sétimo mandato consecutivo.Apesar da longa carreira, suas posições divergentes dos políticos tradicionais, especialmente por discordarem de argumentos que embasam o discurso oficial da democracia brasileira, fizeram com que ele assumisse uma imagem de externo ao cenário político. Isto permitiu que ele capitalizasse intensamente no ambiente anti-político que vinha sendo fomentado no Brasil desde as jornadas de junho.

Foi nos setores mais conservadores e reacionários da sociedade que o discurso de

Bolsonaro conseguiu força, principalmente a partir do momento em que ele percebeu na internet um espaço livre das limitações que a mídia tradicional lhe colocava, permitindo que

Bolsonaro se transformasse em um “Mito”, a única esperança dos conservadores que não se sentiam representados nem pelos partidos de direita.

O vídeo “BOLSONARO PRESIDENTE: IMPERDÍVEL” postado em seu canal em 12 de fevereiro de 2014,durante sua campanha para presidente da Comissão de Direitos

Humanos da Câmara dos Deputados, foi um dos primeiros momentos em que o seu canal ganhou visualizações massivas, alcançando mais de 3,2 milhões. O vídeo é uma entrevista com diversos veículos de imprensa na qual em poucos minutos ele articula diversas teorias da conspiração e suas ideias sobre direitos humanos. O vemos dizer que, se eleito, irá lutar para reduzir a maioridade penal, modificar políticas de planejamento familiar e revogar o estatuto do desarmamento para permitir que o cidadão se defenda de grupos como o MST. No vídeo 163

ele está irritado, gritando com a imprensa e diz se sentir pressionado por ela. Diz que o governo do PT estimula crianças a virarem homossexuais na escola, que homossexuais querem ser semideuses e ter mais direitos, que presídios no Brasil são ótimos e não devem ter luxos.

Vale destacar que nas eleições deste ano ele foi o deputado mais votado da Câmara, se tornando cada vez mais conhecido e apoiado pelo público. Ainda no final do ano, em 9 de dezembro, foi publicado o vídeo “BOLSONARO ESCOVA MARIA DO ROSÁRIO”, com quase 2,5 milhões de visualizações, que se trata de uma fala na câmara dos deputados, na qual, aos gritos, Bolsonaro continua uma discussão que teve com Maria do Rosário e na qual ele disse que não a estuprava porque ela não merecia, no sentido que não estaria a altura de ser estuprada por Bolsonaro. Em sua fala, ele faz ataques à Comissão da Verdade, diz que no

Brasil direitos humanos só defendem vagabundos e criminosos de todos os tipos e diz que o

PT cometeu o maior roubo da história do Brasil e que isso matou dezenas de milhares de pessoas. Além disso, Bolsonaro afirmaque o PT está se misturando com a escória da América

Latina e que vários cubanos e haitianos entraram no país para traficar armas e drogas e encerra falando que a urna eletrônica é uma forma de perpetuar este governo através de fraudes.

Bolsonaro soube se utilizar de confrontos e do crescente antipetismo, construindo a imagem de alguém que falava o que pensava de forma direta e sincera. Em 2016 chamou atenção ao dedicar o seu voto em 17 de abril de 2016 pelo impeachment de Dilma Rousseff à

Ustra, um coronel que carrega diversas acusações de tortura durante a ditadura. Isto levantou diversas críticas a ele, o que o fez produzir o vídeo “O BRASIL PRECISA QUE A

VERDADE SEJA DITA!” em 26 de abril, com 1,2 milhões de visualizações. Neste vídeo ele fala de forma mais calma, diretamente com seu eleitorado, a quem chama de “família 164

brasileira”, que acredita ter sido desrespeitada pelo governo do PT. O vídeo é uma defesa da ditadura e um ataque aos grupo Ação Popular Marxista Leninista, que ele aponta que o pai de

Felipe Santa Cruz, presidente da OAB teria sido membro. Para Bolsonaro, o grupo foi treinado por Pequim para aterrorizarem o Brasil e aponta Ustra como um dos defensores da pátria que combateu estes terroristas, indicando o livro “A Verdade Sufocada”, escrito pelo próprio Coronel. Bolsonaro aponta que estudamos Marx nas escolas e Marighella é visto como herói, mas defender Ustra é entendido como um crime contra a humanidade. Encerra com “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

O próximo vídeo foi lançado durante o segundo turno das eleições de 2018, em 16 de setembro e se chama “Após atentado Bolsonaro fala ao público pela primeira vez”, com 954 mil visualizações. Foi uma live gravada pelo seu filho Eduardo no hospital Albert Einstein alguns dias depois de sua cirurgia para descolar o intestino. Bolsonaro, ainda muito debilitado, diz que o que está em jogo não é seu futuro, mas de todos os brasileiros, pois acredita que Lula irá fraudar as eleições através das urnas eletrônicas para garantir o retorno do PT, não só com a corrupção, mas com algo mais grave, a questão ideológica. Ele encerra com “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”

Bolsonaro, se colocando como candidato externo ao cenário político e representando parcelas conservadoras que não eram ouvidas há décadas no Brasil, acabou vencendo as eleições de 2018 e fez diversas reformas liberais no Estado, passando boa parte do primeiro semestre sendo entrevistado por redes que lhe apoiavam, como Record, SBT e Band, tentando convencer a população da necessidade das reformas propostas.

No entanto, diversas acusações de corrupção e relação com milícias surgiram no primeiro ano de seu mandato e o último vídeo desta pesquisa foi lançado poucos dias antes que este apanhado fosse registrado por nós, em 29 de outubro de 2019, com o título “Mais 165

uma matéria porca da Globo. Caso Marielle.” E contando com 946 mil visualizações.No vídeo, vemos um Bolsonaro irritado, novamente pressionado pela mídia, falando sobre um depoimento do porteiro de seu condomínio que disse que o Presidente foi visitado por um dos suspeitos de executar Marielle Franco no dia do assassinato da vereadora. Ele diz que se sente perseguido e que estão inventando mentiras sobre sua família, que investigaram até parentes distantes seus e que a Globo é aliada do PT, mas que em 2022 ela precisará renovar sua licença e ameaça que não irá dar esta permissão. O vídeo também marca sua tensão com o governado do Rio de janeiro, Wilson Witzel, que fez campanha em conjunto com Bolsonaro, mas rompeu com o Presidente por conta desta época.

Por volta deste período, diversos aliados de Bolsonaro romperam com ele, o que se intensificaria em 2020, com a saída de até mesmo Moro de seu governo. No entanto, uma análise do perfil do presidente no Youtube mostra que ele não passou por nenhum momento de grande perda de seguidores, mas que isto ocorreu com diversos de seus desafetos. Isto intensificou o discurso de que Bolsonaro é perseguido e não consegue fazer suas reformas por estar com as mãos atadas.

No final de 2019, ele chegou a sair do PSL e ficou sem partido, situação que continua até a data de publicação desta dissertação, no início de 2021. Em 2020 perdeu diversos apoiadores por conta de seu comportamento relativo à pandemia do Coronavírus, estabelecendo um racha definitivo entre seus seguidores e vendo surgir novas articulações da direita nacional, agora não mais centradas em torno de sua figura.

166

3.2 - Análise de Dados

A partir dos 55 vídeos aqui analisados, separados em 11 canais, acreditamos ser possível discutir de que forma se organiza a onda conservadora no processo de disputa de hegemonia em curso no Brasil. Para tal análise, consideraremos os conceitos gramscianos trazidos anteriormente, assim como a relação entre os discursos destes atores e as posteriores transformações do Estado Brasileiro, além dos processos geopolíticos impulsionados pelas demandas do capital internacional. A seguir serão desenvolvidas discussões em torno dos eixos “A Nova Era”, “A Nova Direita” e “O Novo Normal”. Entendemos que os argumentos dos canais são comumente atravessados por mais de um destes eixos, havendo diversos momentos em que um único canal pode embasar mais de uma discussão. Além disso, os próprios eixos se influenciam enquanto mantêm suas particularidades.

A Nova Era

Este trabalho foi construído, desde o primeiro momento, com a concepção gramsciana de Estado Ampliado como uma das bases de nossa leitura da realidade. Entendemos que nenhuma transformação ocorre no Estado sem que ela esteja intrinsecamente relacionada com um processo de mudança societária que atravesse todo um conjunto de espaços não institucionais e modifique a própria dinâmica da luta de classes. Este processo, normalmente ocorrendo em ocasião de uma Crise de Hegemonia, é atravessado também pela disputa que irá estabelecer um novo consenso social. Neste eixo procuramos entender como os interesses da burguesia atravessaram diversos dos discursos levantados pelos canais aqui analisados e como estes discursos dialogam com as transformações societárias impulsionadas pela onda conversadora. (Gramsci, 2011) 167

As propostas de sociedade levantadas pela maioria dos canais envolvem adefesa da liberdade de propriedade privada como única reguladora social necessária; a valorização dos empresários como fórmula para o crescimento nacional; a diminuição de regulações estatais no tocante ao meio ambiente e aos direitos trabalhistas; a liberação de armas; o aumento da repressão policial contra aqueles considerados uma ameaça; menos direitos para grupos oprimidos da sociedade como incentivo da meritocracia e do empreendedorismo; combate a movimentos sociais e sindicatos; defesa do agronegócio como locomotiva da economia brasileira; mimetização do estilo de vida estadunidense; intensificação da relação econômica com grandes países imperialistas e rejeição das relações com países latino-americanos e diminuição dos “privilégios” dos funcionários estatais. Em resumo, um estado mínimo, o que acreditam ser sinônimo de eficiência.

Esta proposta societária é defendida, em menor ou maior intensidade, por todos os canais, havendo alguns que podem até discordar de certos pontos, como “Os Homens de Fé” e

“Os Patriarcas”, que não defendem a propriedade privada como única reguladora social, mas também argumentam que valores judaico-cristãos ou sua versão de tradições ocidentais devem ser também bases para a vida em sociedade. No entanto, por apoio de outros setores liberais para além da extrema-direita, mas que têm interesse em um Estado reduzido, a maioria das reformas recentes neste âmbito envolve a economia e a diminuição da intervenção do Estado na economia, o que faz com que até críticos de Bolsonaro apóiem as mudanças operadas por seu Ministro da Economia, o “Chicago Boy” Paulo Guedes. Assim, os canais que podem nos dar um melhor horizonte desta reestruturação são aqueles do grupo “Os

Liberais”.

No entanto, como já foi afirmado em outros pontos deste trabalho, estas não são ideias novas, sendo defendidas há pelo menos 40 anos, desde antes que as primeiras experiências do 168

neoliberalismo fossem colocadas em prática. A sua transição de pano de fundo de uma conjuntura internacionalmente neoliberal para um projeto abertamente defendido pelo governo e grandes parcelas da sociedade, incluindo massiva quantidade de membros da classe trabalhadora, foi recente e difícil. Isto se deu também pelo sucesso das políticas sociais dos governos petistas, o que levou a população a desenvolver uma percepção positiva da intervenção estatal, com até partidos de direita evitando atacá-las diretamente. (Netto, 1993)

Com isto, foi necessário um processo que argumentasse por outras vias que não a econômica, pelo menos em um primeiro momento, para mudar a opinião popular na direção de reformas estatais em favor da classe dominante. Para isto, todo um conjunto de teorias da conspiração e Fakenews que se espalharam facilmente com a ajuda de novas ferramentas tecnológicas como o Facebook, WhatsApp e Youtube. Por isso, não devemos achar que o que se passa no Brasil agora com uma simples intensificação do neoliberalismo, mas sim uma transformação impulsionada por uma reação conservadora na direção de uma crítica ultraliberal à políticas que foram operadas durante os governos anteriores e que haviam guiado o consenso desde a democratização. Desta forma, seguimos a tendência global de utilizar nossos elementos culturais mais conservadores e violentos para formar um

“neoconservadorismo” que os mesclasse com os interesses ultraliberais. (Harvey, 2018; Netto,

1993; Teles, 2019; Ribeiro, 2018)

Para a formação desta nova hegemonia foram fundamentais os canais dos grupos “Os

Jornalistas” e “Os Homens de Fé”, apesar de todos contribuírem na divulgação de Fakenews e teorias da conspiração que legitimassem o fim do governo do PT e de políticas de esquerda.

Tal processo foi formado por crenças na negação do aquecimento global, a ideia que Gleise

Hoffmann é amante de Lula, que o PT operou o maior caso de corrupção da história da humanidade, que as ONGs colocaram fogo na Amazônia, que o PSOL contratou um assassino 169

para matar Bolsonaro, que o PT é a entrada das FARC no Brasil, que artistas globais facilitaram a entrada de terroristas do Oriente Médio no país, que Fernando Henrique Cardoso

é um agente comunista, que existe uma conspiração globalista interessada em destruir os valores ocidentais, que o Foro de São Paulo é uma organização que pretende implantar o comunismo por meio de uma revolução violenta no Brasil, que não existe partido de direita aqui, que a esquerda quer legalizar a pedofilia, que o maior genocídio da história são os abortos, que os sindicatos são inúteis e existem apenas para ameaçar trabalhadores, que os comunistas e o PT mandam na igreja católica, que Glenn Greenwald foi pago pela Russia para divulgar as conversas de Sergio Moro, que as escolas públicas ensinam as crianças a serem homossexuais, que Lei Rouanet é uma ferramenta para divulgar apenas artistas comunistas, que o BNDS tem elementos fascistas, que o PT tentaria fraudar as eleições de 2018 e que

Haddad iria transformar o Brasil na Venezuela, para citar alguns exemplos dos vídeos aqui analisados.

Todas estas Fakenews, por mais desconectadas da realidade que possam parecer, na verdade legitimam os interesses do mercado e a proposta societária apontada acima através de argumentos fundados em mentiras. As denuncias de corrupção do PT ajudaram a colaborar para a ideia de que o Estado é inerentemente corrupto, o que, somado às teorias sobre uma conspiração globalista e ditaduras comunistas, ajudou a estabelecer a ideia de que apenas o

âmbito privado seria justo e seguro. As notícias sobre sindicatos ameaçando trabalhadores e sobre a esquerda em geral desrespeitar a liberdade, apoiando criminosos para fortalecer o seu braço armado, deslegitimou diversas lutas sociais para a população, com isto, grupos LGBT, negros e feministas que lutavam pelos seus direitos eram vistos como oportunistas que queriam ter mais direitos do que os outros. Isto também foi legitimado pelas teorias globalistas, que entendem tais movimentos como atentados contra os valores ocidentais. 170

Todo este ódio contra movimentos sociais dialogou muito bem com cosmovisões individualistas, que entendem que as pessoas são totalmente independentes e dependem apenas de suas decisões pessoas para vencer na vida, o que popularizou consideravelmente argumentos meritocratas entre a população. Com isto, a ideia de uma sociedade em conjunto começa a se diluir e vai se aproximando da visão de Tatcher de que não somos uma sociedade, mas sim indivíduos, ou, no máximo, famílias, cabendo a cada família se defender daqueles que tentam ameaçar a sua segurança, o seu bem estar físico e econômico, em outras palavras, sua propriedade privada. A ideia de que as FARC e terroristas islâmicos estariam infiltrados no Brasil, além de que o governo do PT haveria favorecido criminosos contra a população contribuiu para um pânico social e moral em conjunto com uma descrença na segurança estatal que já vinha sendo impulsionada por programas midiáticos especializados em divulgar cenas violentas do cotidiano. (Hall et al., 1978)

Com isto, a ideia de ter uma arma se tornou muito popular e a proibição das armas foi vista como mais uma ação violenta por parte do Estado, que tiraria nossas liberdades. Os canais aqui analisados fazem questão de afirmar que isto é um plano globalista para nos impedir de lutar contra o comunismo, associando esta intervenção estatal a diversas outras como regulações ambientais, direitos trabalhistas mais básicos e demarcações de terras indígenas e quilombolas. Qualquer ação que vá contra o livre mercado é rapidamente encaixada na teoria da conspiração globalista que quer impedir que o Brasil cresça e que o seu povo seja livre. Para a maioria dos canais aqui, a única forma de nos protegermos disto é com um estado mínimo que deixe que os empresários operem da forma que lhes for mais interessante, sendo regulados apenas pela vontade de seus consumidores, que decidirão tudo da forma mais justa. 171

Assim, através de medo, preconceito e mentiras, se forma a visão da “Nova Direita” no Brasil, um discurso que teve conseqüências massivas para a população, alterando consideravelmente a gestão da luta de classes por parte do Estado. Cabe também discutir especificamente como ela se organiza.

A Nova Direita

Como apontado à exaustão, a direita não é um conjunto unificado de atores políticos, mas sim diversas propostas societárias que tendem para o conservadorismo de diversas estruturas sociais baseadas em relações hierárquicas, desenvolvendo diversos argumentos para legitimá-las. Tende-se a chamar de “Nova Direita” o refluxo conservador que atualmente tem perseguido professores e liberdade de cátedra, repudiado o bem público, defendido exacerbadamente o mercado e atacado concepções progressistas através do discurso de ódio sobre minorias, sindicatos e movimentos sociais. (Casimiro, 2018)

A “Nova Direita” rejeita os atores que representaram a direita tradicional desde a redemocratização, pois estes ainda tentavam dialogar com a hegemonia social-democrata com elementos neoliberais estabelecida na nova democracia, enquanto os novos atores buscam uma rejeição completa da tentativa de humanização pela qual passou o capitalismo brasileiro nos últimos 30 anos, acreditando que tudo não passa de uma conspiração globalista. Isto foi especialmente interessante para personagens como Jair Bolsonaro, que haviam sido regulados ao segundo plano do cenário político e que puderam se colocar como elementos novos neste momento. Acreditamos que todos os canais desta lista se encaixam nesta descrição, pois apresentam ideias que foram massivamente rejeitadas por muitas décadas no Brasil, apenas agora encontrando formas de serem ouvidas pela população em geral, na qual encontraram grande acolhida. 172

Por conta disto, vemos canais como Nando Moura e Olavo de Carvalho proclamarem que não existe partido de direita no Brasil ou que a direita surgiu apenas agora no nosso país.

Isto não deve ser confundido como uma autofagia, mas sim uma postura bélica necessária para que seus argumentos se sustentem. Apenas a partir da ideia de que a esquerda controlou a sociedade e apagou todas as vozes divergentes é possível legitimar que suas ideias tenham sido ignoradas por tanto tempo. Isto também dialoga muito bem com suas teorias da conspiração, pois cria a ideia de que todos os problemas do mundo estão sob o leque de um inimigo em comum: a conspiração globalista comunista. Esta postura bélica também alimenta um senso de necessidade moral às suas pautas, pois o que há é uma guerra de dois lados simples: o bem e o mal. Isto é reforçado por diversos dos canais aqui analisados, que repetidamente afirmam que a esquerda ou algum de seus símbolos, é sinônimo de coisas ruins. Vale especial atenção para “Os Jornalistas”, que afirmam constantemente que a esquerda é formada por criminosos, e “Os Liberais”, que entendem as leis do mercado e o respeito máximo à propriedade privada e às liberdades individuais como a única forma moralmente adequada de existir.

Assim, não há só a defesa de um argumento, mas também a deslegitimação total de seus “inimigos”, o que reforça a ideia de que “minorias” são um problema e não devem ter mais direitos, que cotas e leis contra a homofobia transformariam estas pessoas em semi- deuses, como dito por Bolsonaro no seu vídeo “BOLSONARO PRESIDENTE:

IMPERDÍVEL”. Desta forma, os movimentos sociais são apresentados como inimigos em uma guerra, uma ameaça direta à liberdade e agentes do globalismo, o que incentiva também maior repressão e violência contra estes grupos, como o MST, a quem consideram um grupo terrorista, ou os homossexuais, que em sua maioria consideram uma ameaça às crianças. 173

Esta “lógica do inimigo” também os leva a não ter respeito nem mesmo pela democracia burguesa, que serve aos seus interesses. Vimos grupos defenderem abertamente a intervenção militar, como no vídeo “O RECADO DAS FORÇAS ARMADAS AO STF NO

CASO LULA”, enquanto Olavo de Carvalho e IDEIAS RADICAIS, cada um por suas razões, defende que é preciso um governo de poucos, pois as massas são, em geral, burras ou não lucrativas. Jair Bolsonaro também defende em seu canal que as minorias devem apenas respeitar a maioria. De uma forma ou de outra, parece haver um consenso de que aqueles que não dialogam com os seus interesses devem ser silenciados politicamente, pois seriam uma ameaça para o bem estar da sociedade.

Desta forma, o que se convém chamar de “Nova Direita”, nos parece ser apenas a extrema direita, como seu liberalismo, homofobia, preconceito de classe e demais características conservadoras elevados à máxima potência e que, de acordo com as demandas da conjuntura, foi alçada ao primeiro plano do campo político, conseguindo a possibilidade de mobilizar imensas parcelas da população e adquirindo apoio direto e indireta de setores da mídia tradicional que haviam também sido tomados pelo conservadorismo ou pelo menos pelo anti-petismo que se tornou mola propulsora destes setores.

Vale dizer: não foi apenas a conjuntura que possibilitou esta mudança. Como apontado anteriormente, a Extrema Direita soube utilizar-se de forma muito efetiva da internet, onde conseguia argumentar a favor de sua visão de mundo com pouco ou nenhum confronto com a esquerda. Isto se deu por alguns fatores, o primeiro deles foi o fato de que a Extrema Direita foi pioneira na ocupação destes espaços, organizando discussões e formações desde o Orkut, enquanto os principais atores da esquerda ainda ocupavam prioritariamente locais tradicionais da disputa de hegemonia, como universidades. Além disso, na internet se podia aplicar a visão de mundo que mais lhe interessasse, sem necessidade de fundamentar suas ideias com fatos 174

legitimados como ocorre na academia ou, em certo nível, na mídia, permitindo que eles fossem muito mais livres em criar sua realidade e fortalecessem suas teses revisionistas. Por fim, há o maior alcance que estas ferramentas possibilitam, não estando mais limitados por um vestibular ou nem mesmo a necessidade de sair de casa, todas as teses da Extrema Direita estão na palma da sua mão. (Rocha, 2019; Almeida, 2018; Telles, 2019)

Evidentemente, eles não ficaram apenas na internet. Sua militância orgânica, na forma como vemos hoje, se formou entre 2013 e 2015, desenvolvendo novas estratégias de organização e apresentando uma atuação muito competente na atração de pessoas que nunca haviam se aproximado de política antes e que agora encontraram uma rica fonte de formação intelectual direcionada para a cosmovisão da Extrema Direita. Canais como “Nando Moura” e

“Mamãe Falei”, os maiores aqui analisados, foram fundamentais para a divulgação de outras vozes do mesmo setor, criando um ambiente extenso de youtubers de direita com alcance nacional, dos quais esta pesquisa recortou apenas uma ínfima, porém relevante, parcela.

Todos os canais aqui tiveram importância neste processo, organizando seus respectivos setores e permitindo que diversos argumentos fundamentados em uma quantidade igualmente diversa de perspectivas pudessem fundamentar e legitimar a Extrema Direita em sua guerra contra a esquerda e o PT, mas no tocante à organização, é importante chamarmos atenção para “Os Liberais”, que repetidas vezes falam sobre a necessidade de disputar a sociedade e o Estado em conjunto com seus pares.

Esta característica nos parece vir do fato de que este é o grupo, entre os analisados aqui, que apresenta uma proposta de sociedade mais definida e com projetos concretos de transformação do Estado. Enquanto os outros grupos costumam, em sua maioria, se limitar à críticas à esquerda e à ideia abstrata de que o governo Bolsonaro é bom pois fará o Brasil crescer, são os elementos liberais do discurso, espalhados por toda a direita, que têm 175

encontrado maior possibilidade de operacionalização, como apontado acima. Isto fez com que este fosse o grupo que mais tem mostrado crescimento, chegando a articular vários candidatos a vereador e prefeito pelo Brasil nas eleições de 2020.

Os grupos que formam a Extrema Direita costumam ser mais coerentes com seus princípios do que os grupos de Centro-Direita, estando dispostos a ir na contramão das ideias hegemônicas para defenderem as suas ideias e acreditando que encontrarão um nicho que os fortalecerá mesmo que batam de frente com grupos que consideram poderosos. Por isso eles também cedem menos, o que somado à sua postura bélica os leva a desenvolverem diversos conflitos internos, que serão melhor desenvolvidos no próximo eixo.

Mas vale dizer que, mesmo com esta característica, eles conseguiram, através de uma unidade estratégica e de apoio de setores chaves da burguesia, alcançar um número suficiente de pessoas para eleger um deles como Presidente da Republica em 2018, fazendo com que ultraliberalismo, fundamentalismo religioso e teorias da conspiração fossem legitimados a nível institutioncal e ditassem os novos arranjos do Estado e a gestão da luta de classes por parte deste.

O Novo Normal

O antigo consenso, estabelecido após a redemocratização e responsável por direcionar a lógica da sociabilidade e da luta de classes desde então, chegou ao fim. Argumentos que antes faziam parte do senso comum como respeito aos direitos humanos, a importância da democracia, a validade dos sindicatos e a defesa do meio ambiente, entre outros, foram competentemente destruídos. Isto, como não poderia deixar de ser à medida que a crise de hegemonia avançou e se aproxima de sua conclusão, se deu nos dois níveis do Estado

Expandido: A Sociedade Civil e a Sociedade Política. (Carapanã, 2018; Gramsci, 2011) 176

Na Sociedade Civil, vemos um país com uma considerável escalada no conservadorismo quando comparado com as décadas anteriores. Não há razão para acreditar que o país não fosse conservador anteriormente, mas o consenso em torno de direitos humanos e democracia que existia foi dissolvido, não podendo mais ser retornado sem um longo processo histórico. Vimos isto tanto nos vídeos de Bolsonaro, d’O Giro de Notícias e nos de Olavo de Carvalho, quando eles atacam direitos humanos e o que chamam de

Minorias, chegando a defender conhecidos torturadores da Ditadura Militar, como Ustra.

Ideias de empreendedorismo, com uma visão de que o capitalismo é o arranjo social superior no âmbito moral, também se fortaleceram, em parte impulsionadas pela crise econômica, em parte pelo discurso de intelectuais orgânicos alinhados com a burguesia.

O mundo como conhecíamos não existe mais, sendo substituído por um neoconservadorismo cujo fim, considerando as demandas do capitalismo tardio em sua crise estrutural, nos parece impossível sem que uma ruptura ao nível da reprodução material da sociedade seja organizada.

No campo da Sociedade Política, o mesmo cenário permanece, sendo que formado por elementos institucionais. Ultraliberalismo e teorias da conspiração dão o tom da atual gestão do governo federal. As busca de um Estado mínimo no que diz respeito aos direitos trabalhistas, às políticas públicas, e à qualquer tipo de regulação à economia teve conseqüências genocidas para a população. Vemos a decisiva caminhada para o tipo de sociedade proposto pelo grupo d’Os Liberais.

Ao mesmo tempo, a cultura, a educação e as relações exteriores são intensamente influenciadas pelas teorias globalistas que “Os Patriarcas” deste trabalho defendem. Países que tinham relações econômicas históricas com o Brasil, como a China, agora estão cada dia mais afastados, alvos de diversas teorias da conspiração, enquanto no país se reorganizou no 177

mapa geopolítico enquanto um representante dos EUA na América Latina. A universidade e a liberdade de cátedra são minadas, se não por ataques diretos, pelo menos por cortes cada vez mais intensos nos orçamentos das pesquisas, direcionando o foco do ensino para formação básica de profissionais que não produzem conhecimento, sendo incentivados a entrar no mercado de trabalho o mais rápido possível.

Foi neste cenário que surgiu a pandemia da COVID-19 que ocorreu em 2020, causando centenas de milhares de mortos no país, e sendo negada constantemente por

Youtubers como Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Bernardo P.Kuster e O Giro de Notícias, que minimizaram os seus riscos constantemente, sempre em nome da economia e com argumentos de que seria um a mentira da esquerda global. O caso se torna especialmente grave quando entendemos que estes são os Youtubers com maior influência nas políticas estatais, havendo inclusive um presidente entre eles, o que teve consequências nefastas que se desenrolam até hoje para o Brasil.

É notável: estes foram praticamente os únicos canais desta pesquisa que não sofreram nenhum momento de perda massiva de seguidores. Todos os outros, com exceção do Ideias

Radicais, que nunca apoiou abertamente Bolsonaro, em algum momento romperam com o

Presidente e perderam uma quantidade massiva de seguidores por conta disso.

Assim, entramos em 2021 com a unidade da Extrema Direita em torno de Jair

Bolsonaro já desmantelada. Vimos desde a saída de membros de seu governo, entre os quais o mais grave foi o ministro Sergio Moro, até a ruptura de antigos aliados, como os canais

Nando Moura e O Antagonista, que chegaram a apagar vídeos de teor mais conspiracionista.

O apagamento destes vídeos podem indicar a direção que estes setores estão tomando. Agora buscando discursos mais “racionais” e menos embasados em teorias da conspiração, afastando-se da influência de Olavo de Carvalho. Esta Extrema Direita racional busca as 178

mesmas políticas desumanas que estão sendo colocadas em prática pelo governo Bolsonaro, mas sob outros argumentos, agora se aproximando dos ultraliberais e da tese da superioridade moral do capitalismo.

Se ainda há alguma disputa de hegemonia em 2021, ela parece ser radicalmente diferente do que vimos nas últimas décadas, com a disputa entre direita e direita. No entanto, uma semelhança persiste: O Estado capitalista continua sendo a mesa de negócios da burguesia.

Considerações Finais

Nos anos em que esta pesquisa durou, pudemos presenciar muitas mudanças no Brasil.

Vivemos, afinal, durante uma crise de hegemonia que ainda não dá sinais de estar rumando para o seu fim, apesar das constantes vitórias da burguesia. Na crise estrutural do capitalismo, com tentativas de golpes até mesmo em países centrais, como ocorreu em janeiro de 2021 nos

EUA, e avanço da Extrema Direita por todo o mundo, nos perguntamos constantemente se será possível nos recuperarmos desta barbárie.

Este trabalho não tem pretensão de responder esta questão, afinal, acreditamos que nenhuma reflexão teórica poderá dar respostas que serão solucionadas apenas através dos atos das pessoas vivendo em seu tempo histórico. O que buscamos aqui é entender que tipo de discursos impulsionaram este processo de intensificação da desumanização, de destruição dos antigos consensos sociais, de vitória do ódio e do medo como formas principais de se fazer política.

Para isso, buscamos analisar youtubers, os entendendo como forma privilegiada de disputa de hegemonia na atualidade, se utilizando das possibilidades da internet sem necessariamente abrir mão de espaço e tempo como outras redes, com Facebook, Instagram e 179

WhatsApp, não permitiriam, tanto pelas ferramentas disponíveis quanto pela própria dinâmica destas redes. No entanto, pretendemos minimizar o valor das mesmas como importante ferramenta de agitação ideológica, sendo fundamentais na disputa de hegemonia que se estabeleceu na última década.

Década esta que viu o surgimento e estabelecimento dos canais aqui citados, sendo todos eles criados entre 2007 e 2015. As lutas sociais ainda continuam nas ruas, nos espaços de trabalho, nos espaços institucionais tradicionais, no entanto não pode ser ignorada a força que as novas ferramentas acumularam, chegando a disputar discursos contra aparelhos privados de hegemonia anteriormente inabaláveis, como a própria mídia tradicional. Também não podemos deixar de citar as escolas e universidades, que perderam seu espaço e função social de produtoras de conhecimento para se transformarem, na visão de grande parte da sociedade, em espaços de alienação e de uma verdadeira “lavagem cerebral”, a chamada doutrinação comunista.

O próprio papel social ocupado pela ciência entra em risco quando tratamos do neoconservadorismo ou de determinadas necessidades do neoliberalismo. O processo de decadência ideológica da produção do conhecimento na sociedade burguesa certamente não é novo, mas foi capitalizado de forma bastante acelerada nesta década, com os espaços virtuais sendo utilizados para criar verdadeiras realidades alternativas a partir da possibilidade de massificar Fakenews dentro de uma cosmovisão que aceita desde a ideia de que a terra seja plana até a negação do aquecimento global, tudo fundamentado em crenças extremistas que entendem qualquer limitação na liberdade de reprodução do capital como um esquema maligno e globalista, mesmo quando a outra opção é perder o planeta para uma catástrofe ambiental. 180

Não é só o planeta que está em risco, apesar de este nos parecer o mais grave. A sociabilidade capitalista demanda um ódio e medo constante de sua classe trabalhadora, como forma de controlá-la e legitimar os novos arranjos do Estado, especialmente em países periféricos, apesar de já vermos o quanto a democracia burguesa tradicional têm se tornado insustentável até mesmo em economias centrais. Tudo isto demanda um desrespeito generalizado por Direitos Humanos, direitos trabalhistas em geral e avanços sociais fundamentais para a nossa sociedade e que pareciam pedras fundamentais da vida em sociedade, como os limites de exploração do meio ambiente, as políticas públicas de distribuição de renda e luta contra miséria e a própria concepção moderna de democracia, que, com todas as suas limitações, ainda nos parece mais interessante do que o que podemos vislumbrar no futuro próximo.

Estas mudanças foram massivamente apoiada pelos Youtubers discutidos neste trabalho, que muitas vezes não conseguem esconder o ódio que sentem dos pobres, da população LGBT e das mulheres e negros que ousam se colocar em uma posição divergente dos mesmos. Acreditamos que estes canais são aparelhos privados de hegemonia que atuam na defesa dos interesses das elites e de conseqüente divulgação do neoconservadorismo em vários graus de evidência e profundidade, afinal, nas palavras de Almeida (2018): “Só pessoas capazes de articular um discurso de violência contra minorias, de intolerância e de hiperindivdualismo podem dar conta de justificar o estágio atual da economia capitalista”.

É importante dizer: este processo de avanço da barbárie, de mergulho no mundo dominado pelas leis do mercado e pela lógica de que qualquer outro é um inimigo, pelo medo de movimentos sociais e pela luta pelo direito de oprimir não é apenas um processo teórico e abstrato. Trouxemos aqui muitos dos tristes acontecimentos que acompanharam a Onda

Conservadora que levou Jair Bolsonaro à presidência, mas eles foram apenas uma parte de um 181

processo histórico que foi, na falta de uma palavra mais adequada, doloroso de ser atravessado.

Apesar do foco em Jair Bolsonaro, este processo não se inicia ou se encerra nele, sendo que sua triste figura é apenas um sintoma de um processo histórico muito maior do que o retrato individual de um único sujeito, por mais mesquinho, patético e repugnante que ele possa parecer. Acompanhamos um processo de disputa de hegemonia que durou por quase uma década, envolvendo diversos operadores com diferentes perspectivas cuja aproximação se deu em graus variantes a depender das possibilidades e demandas políticas da conjuntura.

Esta mudança societária não ocorreu apenas por que Bolsonaro é alguém especialmente perverso ou manipulador, como a historiografia burguesa gosta de retratar estes momentos, mas sim por uma crise econômica e, por isso mesmo, também societária, que demandou uma intensificação da barbárie inerente ao capitalismo. Para entendermos este processo devem ser analisadas principalmente os interesses da burguesia e as demandas globais de reprodução do capital, assim como essas demandas foram trabalhadas em cada país a partir de seus elementos culturais e de seu papel na dinâmica global do imperialismo.

Acreditamos neste trabalho que o capitalismo atravessa a sua crise estrutural, estando fadado a causar mais destruição do que produção de bens materiais para que sua lógica social continue se reproduzindo. Isto não causa apenas miséria e concentração de bens generalizados, mas também demanda justificativas cada vez mais desligadas da realidade e ferramentas de controle social progressivamente mais violentas e menos democráticas.

Alienação, violência e concentração de poder, é isto o que o capitalismo têm nos prometido para este novo século e, caso não haja uma mudança radical da dinâmica do modo de produção, podemos prever apenas um mergulho na barbárie do livre mercado cujos sinais cada dia se fazem mais presentes em nosso cotidiano. 182

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