Poéticas das vozes incendiárias: percussões dos corpos livres nas poesias de Solano Trindade e França Poéticas de las voces incendiarias: percusiones de los cuerpos libres en las poesías de Solano Trindade y França

José Juvino da SILVA JÚNIOR 1

Resumo : Poesia como ato de resistência aos massacres físicos e simbólicos de atos racistas entranhados no cotidiano, poesia de luta pela "emancipação dos negros de todas as cores" e também propiciadora da diversão do ritmo e do aprendizado dos movimentos dos corpos e mentes livres. Ao aproximarmos as poéticas de Solano Trindade (1908-1974) e do poeta França (1955-2007), para este estudo, poderemos averiguar afinidades e sutilezas incrustadas em poemas que abordam vivências da cultura negra brasileira ao longo do século vinte. Neste sentido, orientamos nossa atenção para questões importantes que atravessam e informam estas poéticas, tais como: a atenção ao corpo na liberdade da performance, a recuperação e repercussão das raízes africanas, o amor como princípio de liberdade, a voz do canto poético como amplificadora das potências contra as interdições que ainda persistem nos caminhos e vidas dos afro-brasileiros. Por fim, encontraremos esta poesia como dispositivo estético capaz de agenciar mananciais da memória negra ancestral, desdobrando- os em vozes subversivas e criativas, políticas e divertidas, na construção de uma realidade, simbólica e efetiva, mais justa, dançarina e amorosa. Palavras chave : Poesia. Negritude. Voz. Solano Trindade. França.

Resumen: La poesía como un acto de resistencia a las masacres físicas y simbólicas de los actos racistas arraigados en la vida cotidiana, la poesía de la lucha por la "emancipación de los negros de todos los colores" y también por la diversión del ritmo y del aprendizaje de los movimientos de los cuerpos y las mentes libres. Cuando nos acercamos a la poética de Solano Trindade (1908-1974) y del poeta França (1955-2007) para este estudio, investigamos afinidades y sutilezas incrustadas en los poemas que abordan experiencias de la cultura negra brasileña durante todo el siglo XX. En este sentido, orientamos nuestra atención hacia las cuestiones importantes que se cruzan e informan estas poéticas, tales como: la atención al cuerpo en la libertad de la performance, la recuperación y la repercusión de las raíces africanas, el amor como principio de la libertad, la voz del canto poético como una amplificadora de los poderes contra las prohibiciones que aún persisten en los caminos y en la vida de los afro-brasileños. Por último, nos encontramos con esta poesía como un dispositivo estético capaz de agenciar manantiales de la memoria negra ancestral, desdoblándolos en voces subversivas y creativas, políticas y divertidas, en la construcción de la realidad, simbólica y efectiva, más justa, bailarín y amorosa. Palabras clave : Poesía. Negritud. Voz. Solano Trindade. França.

É relativamente fácil encontrar, numa pesquisa em sites de busca da internet, uma fotografia do poeta França junto à estátua do poeta Solano Trindade – obra que fica no Pátio de São Pedro, no e integra o Circuito de Poesia, feita pelo escultor Demétrio Albuquerque. Solano Trindade é o único poeta negro representado entre as estátuas do Circuito de Poesia, projeto de homenagem realizado pela Prefeitura da Cidade do Recife e que conta com nomes como João Cabral de Melo Neto, Carlos Pena Filho, Manuel Bandeira, Mauro Mota, entre outras figuras. Numa das fotografias, o poeta França sorri ternamente, como que próximo de um amigo de velha data. Sobre Solano Trindade, França escreveu:

1 Doutorando em Teoria da Literatura | UFPE Poéticas das vozes incendiárias: percussões dos corpos livres nas poesias de Solano Trindade e França José Juvino da Silva Júnior

Falar sobre Francisco Solano Trindade (1908-1974) é para mim uma atividade cotidiana. Eu, basicamente, vivo Solano. Gosto de imaginá-lo como o “grande avô” da negritude brasileira em todas as suas expressões culturais. Outros negros houve que se dedicaram a uma atividade política ou que deram a sua vida pela causa do negro nas Américas. Solano Trindade, no entanto, fez da sua trajetória um alinhavado de ações que transformaram as relações raciais do seu tempo, abrindo caminho para esta espécie de “orgulho de ser negro” que as gerações atuais carregam consigo hoje, e, por que não dizer, esta tendência à eliminação dos preconceitos raciais que caracteriza o imenso universo dos jovens de hoje. 2

Solano Trindade, nascido no bairro de São José, no Recife, no começo do século XX, foi um sujeito de múltiplas expressões, tendo enveredado pela poesia e por áreas como teatro, cinema e pintura. Foi operário, trabalhou no comércio e colaborou na imprensa, além de realizar importantes mobilizações de resistência da cultura afro, como os congressos Afro- Brasileiros e ter fundado, junto com outros artistas, a Frente Negra Pernambucana e o Centro Cultural Afro-Brasileiro. Solano publicou os livros: Poemas d’uma vida simples (1944), Seis tempos de poesia (1958) e Cantares ao meu povo (1961). Após seu falecimento houve o lançamento de alguns títulos, entre reedições e antologias. Sua obra poética chegou a ser reunida em “ Solano Trindade – o poeta do povo ”, pela Cantos e Prantos, uma pequena editora de São Paulo, em 1999. Mas, devido às limitações estruturais da editora, a obra não 2 teve grande circulação, não chegando a ser lançada em , por exemplo. Valdemilton Alfredo de França nasceu em 1955, na área rural da cidade do Cabo de Santo Agostinho, no Engenho Pirapama. Desde criança, esteve em trânsito entre o Cabo e Olinda, onde morava Carolina, sua avó. Primogênito, era bastante articulado nos espaços que frequentava: escola, igreja, trabalho. Foi o único da família a realizar estudos acadêmicos. Passou por Psicologia, Economia, sem concluir. Chegou às Artes Cênicas, lá na Universidade Federal de Pernambuco, onde participou da colação de grau in memoriam, depois de seu falecimento, em 2007, como uma forma de homenagem e reconhecimento da Universidade por suas contribuições como ator, encenador, arte-educador e poeta, nas ruas e nos palcos. Lúcido, consciente dos valores e determinações sociais oriundos da opressão e do preconceito racial, França soube entrar nos circuitos para subverter expectativas e papéis predeterminados, mostrando-se como sujeito capaz e inventor de sua própria jornada. E em sua jornada, em sua caminhada no presente em direção ao futuro, não se esqueceu de

2 “Uma vida em negrito”, artigo de França sobre Solano Trindade, Portal Interpoética.

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trazer junto de si os ecos e presenças das histórias ancestrais. Neste quesito, França entendia, entre outras coisas, sua atuação poética como uma missão de reverberação, de desdobramento, de permanência e pertinência das forças da cultura negra em anos sem fim de vivência e transmissão. E este entendimento não é um ato intelectual, apenas. Ao contrário, engloba o corpo, enraíza-se na experiência física, biológica. Assim, o corpo é um vetor de atualização da memória e da história negra, ativo no desmonte das estruturas simbólicas que sustentam cada privilégio: Desarme-me dos meus olhos / se não sustentarem seu olhar / Da minha boca, se não o delatar / Das minhas mãos, se o adularem / E do meu sexo, “para não enrabar sua filha”. // Mas, me devolva a Língua-Mãe / A minha cultura, o meu baseado / A minha caneta e o meu papel / Pois eu tenho o dever de / Registrar a minha história (FRANÇA, 2011, p. 87).

E no registro desta história, no encontro com seus antepassados, França deu atenção e destaque para Solano Trindade. Como afirma Rafaela Valença Gomes, pesquisadora da obra de França e editora de sua obra reunida, na apresentação de Poeminflamado – a voz tridimensional do poeta França : O artista teceu sua filosofia de vida e sua arte na organicidade da conexão entre voz, corpo e território, sempre partindo de um fértil processo de construção de 3 suas localizações identitárias no plano do gesto e do corpo. Foi buscar na cultura de seus ancestrais africanos a articulação simbólica da corporalidade com a territorialidade. Adotou como intercessores diretos Solano Trindade e Zumbi dos Palmares. E foi viver a experiência corporal como uma forma de conhecimento intuitivo, direto sobre o mundo. Entender seu corpo como um microcosmo do mundo e como parte integrante da natureza, não como seu contraponto. Experimentou em seu próprio corpo a sua cultura, sua memória, as relações com o divino, a sua luta e a resistência: no cabelo e na filosofia Rasta, nos movimentos da capoeira, na poesia falada (GOMES in FRANÇA, 2011, p. 10).

Este ano completaram-se quarenta anos da morte de Solano Trindade e a oferta de livros com seus textos em livrarias e bibliotecas é parca diante da importância das contribuições de seu canto poético de resistência. Frente a isso, conseguir estabelecer contato com sua obra poética é um feito, um gesto de força contra o esquecimento. E obter informações sobre suas atividades culturais favorece uma visão crítica dos embates e lutas contra a discriminação e o racismo contra negros e negras brasileiras ao longo do século XX e possibilita também reconhecer as potências e articulações em defesa da cultura negra e na afirmação das raízes ancestrais africanas.

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Uma vez feito o contato, percebemos que sua obra poética extrapola a leitura silenciosa, clamando pela voz e atualização de sua fala, com poemas repletos de musicalidade e ginga. E este contato é primordial e precisa ser desdobrado, uma das intenções deste pequeno artigo, ao trazer também para perto a obra do poeta França, fomentando reverberações para ambas as produções poéticas e seus temas. Vejamos o diálogo, o intertexto entre os poemas “lá vem ela”, de França e “Tem gente com fome”, de

Solano Trindade: - lá vem ela! / - ela quem, home? / - a fome! / lá vem ela! / ela quem, home? / - a fome! // A fome vem descendo a Ladeira da Misericórdia / sem misericórdia nenhuma / a fome come / e alimenta outras carências / a fome come / e cada vez mais elimina as diferenças / entre seres humanos e animais // e o pobre homem / - de tão pobre, de tão humilde, / impertinente - / encontra um santo padre descendo a ladeira e diz: // - valei-me, meu padim, que eu já não acredito mais em Deus / nem nessa ave-maria que eu ouvi cantar. / porque não há mais em quem acreditar / do que o feijão carroz do meu dia a dia, / já que fósforos e sal eu guardo na rodia / e gravetos eu faço com o santo e com o altar. / me diga mais uma vez, uma vez só, meu padim: / se o homem é a semelhança de Deus / quais dos que eu conheço que circulam entre nós / que não seja branco e muito rico e bem sorridente? / ou será, meu padim, / será que, por acaso, esse Deus tem parte com o cão? / porque será que os da minha cor / lavam a latrina dessa multidão? (FRANÇA: 2011, p. 133) 4 Trem sujo da Leopoldina, / correndo correndo, / parece dizer: / tem gente com fome, / tem gente com fome, / tem gente com fome... // Piiiiii! / Estação de Caxias, de novo a correr, / de novo a dizer: / tem gente com fome, / tem gente com fome, / tem gente com fome... // Vigário Geral, / Lucas, Cordovil, / Braz de Pina / Penha Circular, / Estação da Penha, / Olaria, Ramos, / Bom Sucesso, / Carlos Chagas / Triagem, Mauá, / Trem Sujo da Leopoldina, / correndo correndo / parece dizer: / tem gente com fome, / tem gente com fome, / tem gente com fome... / tantas caras tristes, / querendo chegar, / em algum destino / em algum lugar ... // Trem sujo da Leopoldina / correndo correndo, / parece dizer: / tem gente com fome, / tem gente com fome, / tem gente com fome. // Só nas estações, / quando vai parando, / lentamente, / começa a dizer: / se tem gente com fome, / dai de comer... / se tem gente com fome, / dai de comer... / mas o freio de ar, / todo autoritário, / manda o trem calar: / Psiuuuuu... (TRINDADE: 2008, p. 60).

Ambos os poemas são calcados na experiência da privação, na exclusão imposta pela fome, e se materializam num ritmo que se aproxima, ora do diálogo, da conversa informal, ora dos movimentos mecânicos do deslocamento do trem. Em seu poema, Solano ainda se apropria e inverte com sarcasmo o famoso “trem de ferro”, poema de Manuel Bandeira. Diferente do “café com pão”, que emula as maquinações e evoluções da locomotiva, o “trem sujo de Leopoldina” diz que “tem gente com fome” e não há, no poema, quem possa dizer “café com pão é muito bom”.

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O sarcasmo também comparece no poema de França. Fazendo uma apropriação irônica de um topônimo da cidade de Olinda, a Ladeira da Misericórdia, que é também um dos atributos da divindade católica, o poema culmina numa sugestão de que este Deus católico “tem parte com o cão”, pois os sujeitos de cor negra “lavam a latrina” da multidão. Os poemas funcionam como dispositivos estéticos que abrem horizontes éticos e políticos, trazendo para a discussão, dentro de suas formas textuais, as estruturas coercitivas do mundo do trabalho e da religião católica: num caso, um diálogo entre um pobre e um padre, um faminto e um bem nutrido pela Igreja; noutro caso, uma massa anônima, um amontoado de “caras tristes” que abarrota os trens urbanos, atravessando estações, mas sem chegar num destino, num lugar. Aqui cruzam-se as referências a locais físicos, geográficos, mas também a “lugares sociais”, papéis e direitos. Estes poemas acentuam os embates, as ambiguidades e dinâmicas da realidade social, indicando como as relações humanas se pautam no domínio. Mas os poetas não ficam aqui, não se restringem ao reconhecimento da pobreza e do opróbrio que acometem uma multidão de pessoas, de sujeitos de voz desconhecida e massacrada pela história oficial. Ao contrário, indicam que uma poética de celebração da 5 vida, do corpo, do pensamento crítico, enseja a liberdade, movimenta diálogos e torna possível outra história. Outra história prenhe de potências para, além de revelar práticas culturais e relações de poder, fornecer elementos capazes de transtornar, de fazer caducar, os esteios que amparam uma ideologia racista e de dominação de homens sobre homens. Segundo Rafaela Valença Gomes, França se colocou na brecha, deslocou-se nos espaços imprevistos pelo poder hegemônico para pessoas negras, derrubando interdições: O corpo, a voz, a cultura e a memória do negro interditados. Mas França não silenciou. Ele acreditava que o poeta negro tem a missão de expor as feridas da sociedade: não transformando essas feridas em obra de arte (forjando, talvez, uma estética do oprimido), mas sim assumindo o papel de porta-voz de seu povo, de personagem da História (GOMES, in: FRANÇA, 2011, p. 11).

Neste sentido, é importante compreender que existe na obra de França e de Solano Trindade uma aguda consciência histórica, uma problematização e reconhecimento da tragédia, uma ciência das brutais violações, físicas e simbólicas, a que foram e a que ainda estão submetidas pessoas negras. Mas, ao invés desta recuperação histórica se traduzir numa poética de lamúria e murmúrio, acaba por se converter, na poesia de França e de

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Solano Trindade, num riso libertador, num canto glorioso que não desconhece massacres, mas que apesar de tudo é muito leve, muito solto, liberto de amarras. Assim, pode França dizer: “ Danço a dança que / a Morte me / ensina / para que / não me / machuque / a dureza

/ da vida!” (FRANÇA, 2011, p. 170). E assim, Solano expôs sua missão de poeta: Irei atrás / da amada perdida // Irei em busca da paz / do alimento e do abrigo / para quem trabalha / e assim cumprirei / a minha missão de poeta // Não construirei / um poema / que me imortalize / Nem passarei para a história / como um grande artista / ficarei com o povo / na sua canção / e assim cumprirei / a minha missão de poeta (TRINDADE, 2008, p. 116).

É preciso atenção para captar a força dos versos “ficarei com o povo / na sua canção”. Ao invés da cultura livresca, da imortalidade através de uma obra impressa, Solano registra que permanecerá vivo nos corações e mentes do povo, eternizado no movimento sempre vivo e inventivo das tradições orais. A festa aparece aqui como um corte epistemológico nos discursos de poder, como um desvio da norma e possibilidade sempre aberta de invenção e reinvenção. Em Solano, convivem a criação poética e o engajamento político. O poeta aponta para uma concepção de poesia que amplia a atuação do poeta para uma intervenção nos discursos oficiais, o poeta como agente de um território de heranças das culturas negras 6 para a subversão do esquecimento historicamente constituído pelos poderes ideológicos (mas também econômicos, bélicos...) das elites brancas privilegiadas. Como indica a professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da , Florentina Souza:

Solano declama os seus poemas, publica-os, mas, além disso, desenvolve uma série de outras atividades que transcendem os limites da produção poética. Talvez optando por culturas em que vida cotidiana e arte não se encontram separadas em unidades isoladas, ele compreende o trabalho do escritor e do intelectual de modo similar a estudiosos contemporâneos, como Stuart Hall: esforço de atuação e de intervenção nos vários setores da vida cultural de seu tempo (SOUZA, 2004, p. 287).

A poesia está na rua, na fala do povo, e o amor, a paz, o alimento e o abrigo são elementos que informam um poeta participante de seu tempo, sujeito com os pés no chão da linguagem e no coração da vida. Assim podemos ver também em poemas de Solano Trindade como “Advertência”, “Quem tá gemendo?”, “Civilização Branca”, “Batucada”, “Canto de liberdade”, entre outros. Em todos eles, transparece o grito de beleza e força, um rompante de libertação. Libertação estética, como queria Manuel Bandeira, mas libertação também política. Na poesia de Solano Trindade, não existe separação entre o encanto do

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poema e o barulho das ruas. E assim também é neste poema de França, em que se lança um canto de congregação, um chamado de ajuntamento de toda comunidade, memória de quilombos e anúncio de novas comunidades possíveis: Como as plantas / criemos raízes / na nossa casinha / façamos a nossa própria comida / somos artífices / não precisamos trabalhar para ninguém / só para nós / vendendo / comprando / plantando / fazendo / limpando / lavando / só para nós / trabalhando / capoeirando / cá entre nós / estudando / buscando o / sonho dos nossos avós: / o centro da terra (FRANÇA, 2011, p. 159).

Existem documentários sobre Solano Trindade, que chegou, inclusive, a ser homenageado num samba-enredo pela escola de samba Vai-Vai, de São Paulo, em 1976. Houve ressonância de sua obra entre seus contemporâneos na primeira metade do século XX e início da segunda metade, com nomes de peso na cena literária nacional, como Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Milliet e Otto Maria Carpeaux, além de circulação e certa repercussão no exterior, mesmo assim sua obra padece de reduzida atenção e fortuna crítica. Isto não constitui uma surpresa, se levarmos em consideração que

No arquivo da literatura brasileira construído pelos manuais canônicos, a presença do negro mostra-se rarefeita e opaca, com poucos personagens, versos, cenas ou histórias fixadas no repertório literário nacional e presentes na memória dos 7 leitores. Sendo o Brasil uma nação multiétnica de maioria afrodescendente, tal fato não deixa de intrigar e suscitar hipóteses em busca de seus contornos e motivações. E já de início se configura de modo inequívoco um dado fundamental para esta reflexão: o fato de o negro estar presente muito mais como tema do que como voz autoral . Uma evidência desta magnitude demanda que se investiguem suas causas e implicações. De imediato, vislumbra-se no passado histórico de escravização e preconceito motivos para esta redução a objeto da escrita alheia (DUARTE, 2013, p. 146).

Então, é preciso fazer circular este criador que favoreceu diálogos, com sua vida, obra e atividades culturais, interferindo nos modos de pensar, nos gostos e sistemas de valores da sociedade brasileira, desconstruindo estereótipos a respeito do homem e da mulher negra. Assim, ele pode escrever um poema que desde o título já escancara a afirmação da identidade negra, cujo texto também aponta os laços com os antepassados, representados nas figuras familiares combativas de seus avós:

Sou negro

Sou negro / meus avós foram queimados / pelo sol da África / minh’alma recebeu o batismo dos tambores / atabaques, gonguês e agogôs. // Contaram-me que meus avós / vieram de Loanda / como mercadoria de baixo preço / plantaram cana pro senhor do engenho novo / e fundaram o primeiro Maracatu. // Depois meu avô

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brigou como um danado / nas terras de Zumbi / Era valente como quê / Na capoeira ou na faca / escreveu não leu / o pau comeu / Não foi um pai João / humilde e manso // Mesmo vovó / não foi de brincadeira / Na guerra dos Malés / ela se destacou. // Na minh’alma ficou / o samba / o batuque / o bamboleio / e o desejo de libertação (TRINDADE, 2008, p. 162-163).

Afirmação da negritude, sem concessões, sem vergonha, nenhum ressentimento ou cabeça baixa, em suma, estratégia estética de reversão de sentidos negativos acumulados na palavra negro por séculos de opressão. O sujeito do poema, que diz a plenos pulmões que é negro e foi batizado no ritmo encantatório das percussões africanas, sabe da história de seu povo em suas múltiplas manifestações, tanto na dor quanto na alegria. A nomeação da coisificação sofrida pelos povos negros, transformados pela escravidão e tráfico negreiro em “mercadoria de baixo preço”, é seguida pela indicação dos processos como trabalhadores das lavouras de cana de açúcar, que por sua vez é seguida pela menção ao “primeiro Maracatu”. Assim, o poeta mostra que apesar do processo brutal de humilhação e violência, apesar do trabalho compulsório, a criatividade, a alegria e a força guerreira não abandonaram o povo negro, estando entranhada no sangue. E o papel do poeta é, ao 8 repercutir esta energia e força, libertar, despertar potências adormecidas, fazer soar uma multidão de vozes, prontas para uma guerrilha diária. É o que vemos também no poema abaixo, de França: Guerreiro de onde vens / de onde vens, pra onde vais / Dizes teu nome, teus feitos. / Enleva-me com cantigas de teus pais / solta a voz, estronda o peito / Satisfaz os teus desejos / Reina em nós teus ancestrais. // Guerreiro para que vens / Dize-nos e conduzirás / Nossos carros, nossas lendas. / Aumentais nosso panteão / És filho dos Orixás / Bem-vindos filhos e netos / Bisnetos, tataranetos / Toda linhagem real // Eu reino sobre mim mesmo / Sobre ti não haverá ninguém na terra / Sendo assim sucederás / Os que por aqui passaram / Seja na guerra ou na paz / Guerreiro me conta logo / De onde vens, / pra onde vais (FRANÇA, 2011, p. 97).

No poema de Solano, o poeta, como um velho Griô sábio das tradições orais, anuncia sua filiação combativa, seu sangue perfumado na luta de seus ancestrais, seus avós “valentes”. Em França, seu poema é atravessado por guerreiros de uma linhagem real. No seio dessa comunidade mística e viva de bravios lutadores, o poeta deixa claro um jogo dialético de autodeterminação: existe o reinado e importância dos ancestrais, da tradição, ao mesmo tempo em que o sujeito poético anuncia “eu reino sobre mim mesmo”.

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É importante notar que o ciclo da história dos povos negros se atualiza no peito do poeta, do sujeito inscrito nestes versos, pois em sua alma estão inscritos os dispositivos da batalha contra as injustiças raciais e sociais: samba, batuque e bamboleio são um complexo de referências de sistemas culturais comunitários que extrapolam a ordem do lúdico, indicando a potência guerreira da cultura envolvida na música, na religião e na dança, tudo embebido num “desejo de libertação”. É este mesmo desejo que vemos atravessar e inflamar a poesia de Valdemilton Alfredo França. Vejamos:

Elegem um negro e dizem: Você é o nosso rei. / Desde que nos diga que é rico / E a eles que é branco! / Cabe-nos fazer alarido para despertar Zumbi / O Zumba que hoje dorme em cada um de nós. / Fazer uma guerra, sem tréguas, sem bombas, sem par / Uma guerra na rua, no trabalho, na escola, na casa: / OLHAR COM ALTIVEZ! E NUNCA NA VIDA A CABEÇA BAIXAR (FRANÇA, 2011, p. 145).

Não é muito difícil percebermos a disposição de guerrilha, de infiltração no cotidiano que o poeta aventa como tarefa para si e para os outros. É preciso, como disse , estar atento e forte. França aponta que a voz da comunidade pode se transformar num alarido capaz de fazer despertar Zumbi – irmanar-se numa luta em comum, tradução da possibilidade de enfrentamento às vicissitudes advindas do racismo e da desigualdade racial. 9 Podemos ler nas entrelinhas a indicação de que na voz poética do presente, de sujeitos que partilham um projeto de combate por justiça e beleza, faz-se encarnado o espírito ancestral de resistência. No posfácio ao Poeminflamo – a voz tridimensional do poeta França, o pesquisador e também poeta André Telles do Rosário destaca este caráter de enfrentamento às injustiças presente na vida e obra de França:

(...) Falar de França, além do multiartista, é principalmente dizer da sua negritude combativa e impassível. Do mundo de hoje, onde ainda se vê que a escravidão não acabou, que seus efeitos continuam – e da luta cada vez maior e mais ativa por real igualdade espalhada pelo Planeta. É falar por isso da Capoeira, do Candomblé, dos Afoxés. De seus anos de estudo e luta, de sua pesquisa sobre Solano Trindade (ROSÁRIO, in: FRANÇA, 2011, p. 177).

A performance poética atualiza o mito, recupera para nosso instante o que está decantado no inconsciente dos indivíduos. A ressurreição de Zumbi é tanto um acontecimento individual quanto coletivo. O barulho da comunidade e a guerrilha dos sujeitos são faces de um mesmo movimento de resistência, de uma “guerra, sem tréguas” tanto nos espaços públicos e institucionais (rua, trabalho e escola), quanto no ambiente

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doméstico, contra o embrutecimento, a humilhação e o menosprezo oriundos do preconceito racial. A voz poética que emana dos dois textos destacados mostra orgulho e altivez por sua negritude, cabeça erguida toda a vida para cantar a cultura negra e a sensação de pertencimento às raízes de sua história, em toda deriva. Vale destacar que a figura de zumbi comparece nos dois poemas. E é fundamental frisarmos que Solano Trindade aponta sua identificação com a história de Palmares antes mesmo de Zumbi tornar- se símbolo de luta dos movimentos afro-brasileiros. O guerreiro Zumbi dos Palmares não é das poucas afinidades entre os poetas Solano Trindade e França. Ambos transitaram com bastante propriedade no teatro, o que talvez seja um dos esteios para a importância em que a vocalização dos poemas obtivesse tanto destaque na obra poética dos dois. França fundou o Teatro de Amadores de Olinda, Solano criou o Teatro Popular Brasileiro, entre outros. França, que teve um bar chamado Sociedade dos Poetas Vivos, organizou diversos encontros e recitais, favorecendo a formação de novos poetas e de leitores, além de que o mesmo servia como espaço de convívio afetivo e trocas de saberes. Solano fomentou congressos, encontros, conversas, ambos, numa postura de aliança entre o prazer da palavra e a força da presença, encampando desconstruções dos 10 estereótipos de passividade e submissão dos negros, que permeiam o sistema hegemônico de representações, num país cujo racismo se mostra ora escancarado, ora cínico (não precisamos ir longe no tempo, vejamos os recentes casos de racismo envolvendo o goleiro de futebol Mário Lúcio Duarte Costa, conhecido como “Aranha” e as imagens estereotipadas de “mulatas sensuais” no seriado “O sexo e as Nega”, da TV Rede Globo). Solano Trindade teve quatro filhos: Raquel, Liberto, Godiva e Francisco. França teve quatro filhos: Felipe, Carolina, Danilo e Pedra. E filhos e netos e bisnetos seremos todos nós que, atentos aos cantos de liberdade e celebração da poesia, percebendo e nos irmanando nas lutas de resistência poética contra as tiranias de toda ordem, trouxermos estas leituras para nossa vivência. Encerraremos esta breve incursão nas poéticas de França e Solano Trindade, salientando a importância de poéticas vocais que mostram que o poema, por mais coberto de princípios e gestos de vanguarda e experimentação estética, é sempre um movimento ancestral. A poesia neste sentido traduz o corpo em comunhão com os movimentos

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cósmicos, com os cantos de outras espécies, como pássaros e baleias. A poesia não está circunscrita ao papel, à página, mas grita como deseja, e aí reside sua graça e força. Não houve sociedades humanas sem poesia. Não haverá. E aqui nós continuamos, ouvindo a chuva e sabendo que todo gesto poético nos enraíza na história e nos faz saltar para fora do tempo. Assim, com Solano Trindade e com França podemos aprender e apreender as energias eróticas da palavra poética, embebida no amor como princípio de libertação, inclusive para corpo, inclusive para a alma. Poesia, folha que cura, mistério e minério da memória. Fiquemos com Solano Trindade e sua poesia que escuta a chuva, que serve de gatilho para a canção, que serve de gatilho para uma viagem ao Congo:

Pingo de chuva, / que pinga, / que pinga, / pinga de leve / no meu coração. / Pingo de chuva / tu lembras a canção, / que um preto cansado, / cantou para mim, / pingo de chuva, / a canção é assim // Congo meu Congo / aonde nasci / jamais voltarei / disto bem sei / Congo meu Congo / aonde nasci (TRINDADE: 2008, p. 145).

Referências 11

DUARTE, Eduardo de Assis. O negro na literatura brasileira . Revista Navegações . v. 6, n. 2, p. 146-153, jul./dez. 2013 FRANÇA, Valdemilton Alfredo de . Poeminflamado: a voz tridimensional do poeta França . Recife: FUNDARPE, 2011. TRINDADE, Solano. Poemas antológicos . São Paulo: Nova Alexandria, 2008. SOUZA, Florentina. Solano Trindade e a produção literária afro-brasileira . Revista Afro-Ásia. n. 31, p. 277-293, 2004.

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