O Culto Dedicado À Marielle Franco: a Luta Pelos Direitos Humanos Na Igreja Da Comunidade Metropolitana Do Rio De Janeiro (ICM) 1
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O culto dedicado à Marielle Franco: a luta pelos direitos humanos na Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro (ICM) 1 Pedro Costa Azevedo (UENF) Introdução Esta comunicação busca compreender de que forma o discurso religioso da Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro (ICM) mobiliza sua atuação política sob a perspectiva dos direitos humanos. Para isso, este trabalho analisará o culto ecumênico após o assassinato da vereadora Marielle Franco no ano de 2018, onde foi destacada a pauta dos direitos humanos presente em sua trajetória pessoal e política. O pano de fundo desse acontecimento-chave foi marcado pelo apoio de lideranças religiosas pentecostais à campanha de Jair Bolsonaro no pleito eleitoral desse ano. O receio do retrocesso no campo dos direitos humanos, sobretudo quanto aos direitos sexuais e reprodutivos, colocou em disputa os valores e práticas da ICM-Rio em relação à agenda política dos parlamentares e lideranças do campo religioso e político brasileiro. Assim, este trabalho consiste em elucidar as disputas em torno dos valores da atuação religiosa da ICM-Rio em vista das controvérsias no referido contexto político. Em 2018, quando me dirigi ao trabalho de campo, a ICM-Rio encontrava-se2 na Rua do Senado no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Em uma sala comercial na área térrea do Edifício Liazzi as portas de enrolar3 erguidas indicavam a realização de atividades e cultos dominicais da ICM, que costumavam ocorrer em uma frequência de uma a duas vezes por semana4. Como a instituição fica em uma região central, a acessibilidade aos cultos e atividades torna-se mais viável para pessoas que venham de diferentes bairros e das cidades situadas na região metropolitana, sobretudo, pela proximidade com a Estação Central do Brasil. Cabe enfatizar o modo com que a ICM-Rio apresenta-se em seu website: como uma igreja protestante5, ecumênica e inclusiva. O segundo termo, ecumenismo, tem 1 Trabalho apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT36 - Religião, política, direitos humanos: reconhecimento e intolerâncias em perspectiva. 2 Atualmente a ICM-Rio encontra-se na Rua do Resende no bairro Lapa. 3 Portas comerciais que se recolhem em sentido vertical em forma de rolo em sua parte superior. 4 Os cultos dominicais e eventos que geralmente ocorrem no sábado, dentre eles: seminários, orações, cine debates, saraus literários e ponto de encontro para manifestações populares. 5 Em linhas gerais, pauta-se em uma doutrina empreitada pela Reforma Protestante no século XIX, a doutrina de Martinho Lutero da ”Salvação pela Graça Somente”, o “Sacerdócio Universal de todos os 1 como entendimento o diálogo inter-religioso cristão com a Igreja Ortodoxa, a Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Anglicana e outros grupos religiosos, além de marcar o respeito com as manifestações e crenças de outras matrizes religiosas. Esse diálogo constituiu uma posição inclusiva pautada no entendimento das relações e posições de gênero, sexualidade e outras formas de injustiça social, assumindo-se como “uma igreja radicalmente dos direitos humanos”. A ideia de justiça social, para esta instituição, está diretamente relacionada à composição de um movimento que engloba a multiplicidade de temas importantes para a contemporaneidade. As “pessoas espirituais e sexualmente diversas” são convidadas, conforme as lideranças da igreja, a completar seu “chamado profético inacabado”, interrompidos pelas denominações que condenavam suas orientações e identidades sexuais. A missão da instituição preconiza uma prática e um discurso religioso voltado para um “evangelho libertador de Jesus Cristo” na modificação das estruturas que excluem as chamadas minorias sociais. No percurso do trabalho de campo no doutorado, por meio da observação participante, acompanhei o culto ecumênico pela morte da vereadora Marille Franco, aqui entendido como acontecimento-chave para a compreensão de um sistema simbólico permeado pela visão de mundo, valores e práticas acerca do contexto político e social de 2018. Denomino esse culto como acontecimento-chave inspirado no trabalho de Isadora Lins França (2010)6, que considerou os espaços de sociabilidade e consumo voltados para o público homossexual na cidade de São Paulo como lugares de interseccionalidades e diferenças. Para tanto, mobilizo essa reflexão para compreender de que maneira a ICM-Rio se constitui pela “vida real” emaranhada de “sentido”, “identidade”, “poder” e “experiência” (Geertz, 2001). De acordo com Paul Freston (2011) a partir do Vaticano II, no ano de 1961, o posicionamento da igreja católica na América Latina pautou-se na “consciência da sociedade” dando voz aos marginalizados. O pluralismo religioso e as complexidades da democracia formal demarcaram o contexto de atuação da “Nova Evangelização” da igreja católica que passou a elaborar campanhas nas “esferas civil, social e econômica, dimensões dos direitos humanos” (Freston, 2011, p. 107, tradução do autor) No caso crentes” e de um dos Cinco Soles, credos teológicos da reforma elaborados por João Calvino que indica a Graça Divina (Sola grata). Os discernimentos teológicos e a mediação entre Deus e o homem é feita somente por Jesus Cristo e não pelo sacerdote, de modo que a “Graça Divina, através da qual Deus, em sua infinita soberania, escolhe os seus filhos e as suas filhas para a Salvação Eterna, gratuitamente". Disponível em: http://www.icmrio.com/a-igreja/quem-somos/.Acessado em: 12/12/2019. 6 Entendido como lugar-chave pela autora. 2 dos grupos protestantes, estes estiveram alinhados com as pautas dos direitos humanos na América Latina dada as suas afiliações com movimentos ecumênicos transnacionais, ao passo que algumas vertentes do protestantismo rejeitaram aos os valores dos direitos humanos. Maria Machado das Dores (2018b, p.179) faz uma importante reflexão: “as religiões podem proteger ou ajudar na construção de uma identidade política de minorias, mas também podem causar opressões e intolerâncias”. As modificações na “atuação pública dos grupos religiosos cristãos” indica para as controvérsias em relação à agenda dos militantes seculares em prol dos direitos reprodutivos e sexuais. Os grupos religiosos, dentro dessa relação de forças, disputam o poder sobre “os significados de direito, sexualidade, gênero e família no modelo ético-normativo” (2018b, p 179) Por outro lado, os grupos religiosos que legitimam as pautas do movimento LGBTQIA+7, como a ICM, podem provocar “rachaduras no pentecostalismo” (Machado, 2018a; 2018b; 2013). Nesse sentido, observa-se que as igrejas inclusivas, como um exemplo dessa fissura, aproximam as pautas do ativismo secular, oriundo das minorias sexuais, em seus discursos e mobilizações na ampliação do debate na esfera pública (Machado, 2018a; 2018b; Natividade, 2016). O culto ecumênico dedicado à Marielle Franco: a luta pelos direitos humanos No dia 21 de março de 2018, o microfone no culto ecumênico na ICM-Rio “estava aberto” para pronunciamentos acerca da execução da vereadora Marielle Franco, do Partido Socialismo Liberdade (PSOL), e de seu motorista, Anderson Gomes, ocorrida no dia 14 de março, semana anterior ao culto em questão. Moradora de um uma área periférica da cidade, apresentava-se como “cria da Maré”, local que integrou um curso de pré-vestibular comunitário que a possibilitou ingressar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), no curso de Ciências Sociais. Mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), apresentou a dissertação “UPP- A redução da favela a três letras: uma análise da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, onde analisou a política de segurança pública das Unidades de Polícia Pacificador (UPP) como um modelo que reafirmava a lógica do Estado Penal. (Franco, 2016) 7 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais e outras possibilidades de expressão das identidades sexuais. 3 Marielle Franco atuou ainda na frente de organizações da sociedade civil na Brasil Foudation e no Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM), e em sua atuação parlamentar dirigiu o grupo de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ).Em sua primeira candidatura se elegeu com expressiva votação (46.502 votos) para a cadeira legislativa municipal do Rio de Janeiro. De acordo com Lilia Schwarcz (2019, p. 149), a figura da parlamentar tornou-se um “símbolo de luta das minorias para um país mais cidadão e inclusivo”. A execução da parlamentar tomou projeções nacionais e internacionais e passou a ser encarada enquanto “crime político”, em contrapartida ao “anonimato que costuma encobrir casos de pessoas que têm a mesma cor, gênero e origem social que ela, mas não obtiveram tal visibilidade política”. (Schwarcz, 2019, p. 149) No ano de 2018, militantes, figuras públicas e políticas homenagearam Marielle Franco como símbolo de luta pelas minorias sociais. Dentre essas formas de manifestar a crueldade no assassinato da parlamentar, foram confeccionadas mais de mil placas de rua com os dizeres “Rua Marielle Franco (1978-2018) - vereadora, defensora dos direitos humanos e das minorias, covardemente assassinada.” 8 Um ato em sua homenagem foi organizado, onde fixou a placa sobre um poste na Praça Floriano, conhecida como Cinelândia, no centro da cidade do Rio de Janeiro. As palavras de ordem “Marielle Presente”, “O luto transformado em luta” e “Quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes?” 9, fizeram parte de diferentes manifestações, no Brasil e em diferentes países do mundo, denunciando e ecoando pedidos de justiça sobre o caso. No âmbito internacional, temos como exemplo o jornal The Washington Post, que noticiou o ocorrido como um símbolo que ficou conhecido globalmente na luta pela opressão racial, além de pontuar as homenagens do Parlamento Europeu e de manifestações em Nova York (EUA), Paris (França), Munique (Alemanha) Estocolmo (Suécia) e Lisboa (Portugal)10. Até o momento de escrita deste texto, o assassinado de Marielle Franco e Anderson Gomes ainda encontra lacunas no âmbito das investigações, mesmo com a 8 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/album/2018/10/14/mil-placas-em-homenagem-a-marielle- franco.htm?mode=list&foto=2.