A Emigração De Austríacos Para O Brasil (1876-1938)
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Ursula Prutsch A emigração de austríacos para o Brasil (1876-1938) Na primavera de 1919, um grupo de ex-oficiais do exército austro-húngaro, que tinham ficado desempregados quando este foi dissolvido no fim da Primeira Guerra Mundial, reuniu-se na Estação Ferroviária do Oeste, em Viena, para dar início à sua emigração para o Brasil, um país a respeito do qual tinham uma idéia muito vaga, marcada pelo exotismo, comumente ligado a ele naqueles tempos. Alguns deles anunciaram que iriam se tornar rapidamente “proprietários de uma grande plantação de café e senhores de dúzias de negros”, tal como escreve Friedrich Wenger em suas memórias; os que não os acompanharam teriam lhes pedido para trazer, quando voltassem, “uma indiazinha bem bonitinha”.1 A identidade dos oficiais tinha sido fortemente abalada pelas reviravoltas políticas e sociais causadas pela derrocada da monarquia dos Habsburgo. Aposentadorias compulsórias e o empobrecimento causado pela exiguidade das indenizações só podiam contribuir para turvar o seu relacionamento com o novo Estado, que era incapaz de lhes oferecer possibilidades de identificação. Eles esperavam chegar agora, no Brasil, a atingir rapidamente um bem-estar que lhes permitiria, passados poucos anos, retornar ao seu país de origem revestidos de uma aura que infundisse novo respeito. O Brasil era, para todos eles, uma terra incógnita; porém graças a numerosos relatos de viagem, imaginavam que apresentasse uma alteridade exótica e erótica. As palavras de Wenger refletem um sentimento de superioridade européia; a idéia de uma existência de proprietário, digna dos feácios, com poder e autoridade sobre grupos de povos oprimidos, deveria compensar o opróbrio sofrido pela derrota na Grande Guerra. Esses oficiais, membros da “operação de emigração Gamillscheg“, não foram, de modo algum, os primeiros austríacos a emigrarem ao Brasil. Imigrantes austríacos começaram a chegar ao país a partir de 1824; contudo, a sua quantidade, a sua distribuição geográfica e as suas profissões e carreiras dificilmente podem ser reconstruídas. Os motivos para tanto residem na percepção, ou melhor, na falta de percepção dos austríacos, tanto na historiografia brasileira quanto naquela escrita em língua alemã. Os austríacos2 eram frequentemente subsumidos nas categorias de “alemães”, “italianos” ou “poloneses”, apagando-se assim as categorias culturais e nacionais. Apenas a partir do ano 1876 as autoridades da monarquia austro-húngara passaram a fazer registros estatísticos sistemáticos. As representações diplomáticas instaladas no Brasil 1 Friedrich WENGER, Auswanderererlebnisse, manuscrito não publicado, São Paulo, sem data, pág. 1 ss.. 2 Com essa denominação eu me refiro, resumidamente, aos habitantes dos reinos e países representados no “Reichsrat”, ou seja, aos originários da “Cisleitânia”, isto é, a porção austríaca do Império Austro-Húngaro. tentavam pesquisar da melhor forma possível o local de residência e a carreira dos seus compatriotas austríacos. De um total de 3,5 milhões de emigrantes que saíram da Áustria- Hungria para ultramar entre 1876 e 1910, aproximadamente 64.540 foram para o Brasil, dos quais 55.860 eram oriundos da metade austríaca do império. Estima-se que por volta de 1914 viviam no Brasil perto de 150.000 austríacos, incluindo nesta cifra os seus descendentes. 3 De acordo com as estatísticas brasileiras, a Áustria ocupava o quarto lugar entre os países dos quais mais imigrantes tinham chegado ao Brasil, atrás da Itália, Portugal e Espanha. 4 Mas quais são os motivos pelos quais os emigrantes do império austro-húngaro geralmente não são mencionados nas publicações sobre as migrações, embora esse império contasse entre as nações européias nas quais a emigração, entre 1880 e 1918, se transformou num “movimento de massas”? O que significava “Áustria”, antes de 1918, em termos de território e de etnia? O império austro-húngaro era multiétnico e multicultural. Essa heterogeneidade não significava uma “vizinhança” entre culturas nacionais; as fronteiras étnicas não correspondiam exatamente às linguísticas e às territoriais. Elas estavam entrelaçadas entre si, interpenetravam-se umas com as outras – mormente nos centros urbanos. Após a conclusão da assim chamada “compensação” com a Hungria, no ano de 1867, o Império Austro-Húngaro foi transformado numa monarquia dupla. Ambas as metades do império tornaram-se Estados independentes, com igualdade de direitos. Ambas estavam unidas sob o poder de um único Chefe de Estado (Francisco I era Imperador da Áustria e Rei de Hungria), sob uma única política de relações exteriores, tinham unidade em suas Forças Armadas, assim como naquelas áreas da fazenda pública que se referiam à monarquia comum. Em 1910 constituíam o segundo maior Estado da Europa, atrás apenas da Rússia. Sua extensão era de mais de 676.000 km2 e sua população era de aproximadamente 53 milhões de pessoas. 5 A metade austríaca do Império (também chamada de Cisleitânia) abrangia no ano de 1920 quinze “províncias pertencentes à Coroa”: A Áustria abaixo do rio Enns (Baixa Áustria), a Áustria acima do rio Enns (Alta Áustria), Estíria, Caríntia, Salzburgo, Tirol, Vorarlberg, Carniola, a área costeira (Gorizia-Gradisca, Trieste, Ístria), Dalmácia, Boêmia, Morávia, Silésia Austríaca, Galícia e Bukowina. Estas províncias estavam habitadas por onze nacionalidades reconhecidas como tais: as de língua alemã (35,5% em 1910), magiares, tchecos, eslovacos, croatas, poloneses, rutenos (= ucranianos), romenos, 3 Cf. Karl Ritter von ENGLISCH, Die österreichische Auswanderungsstatistik, in: Statistische Monatszeitschrift 18, N.F. (1913), S. 122. Cf. os resultados do censo de 31.12.1910 nos países representados no “Reichsrat”, 2, N.F.3, 1912. S. 40. Este cálculo corresponde aos relatórios enviados pelo Consulado Austríaco em 1916. 4 Cf. ENGLISCH, Auswanderungsstatistik, p. 119. 5 http://www.aeiou.at/aeiou.encyclop.o/o818181.htm [último acesso: 40.01.2010]. Os países da „sacra coroa húngara de Santo Estevão“ (Transleitãnia) eram Hungria, Siebenbürgen, Croácia, Eslavônia e Fiume; faziam parte ainda da Áustria-Hungria antigas províncias turcas: Bósnia e Herzegowina, que foram ocupadas em 1878 pela monarquia austro-húngara, incorporadas em 1908 como „Reichsland“ e administradas pelo mesmo Ministério das Finanças. eslovenos, italianos e judeus. A população era composta de 77% de católicos, 8,8% de evangélicos, 8,7% de cristãos ortodoxos, 4% de judeus e 0,8% de seguidores de outros credos. 6 Estas “províncias da Coroa” mantiveram até 1918 as suas tradições administrativas e constitucionais específicas; concorriam entre si nas áreas da língua e da educação. Justamente devido a esta convivência crescentemente marcada, em algumas regiões, por crises e conflitos, assim como por motivo dos crescentes nacionalismos, o governo austríaco esforçava-se em cultivar a consciência de que a Áustria significava o Estado como um todo, para além das fronteiras étnicas e regionais. 7 Esta “austro-consciência” constituía-se graças à coexistência de diferentes fatores: os grupos portadores de uma noção de lealdade, como as Forças Armadas, a aristocracia próxima à corte, o funcionalismo público e o clero. Eles criavam uma “instância de socialização”, a fé na lealdade pelo monarca, ou seja, pela figura integradora do “bom Imperador”, Francisco José I. Também faziam parte dos mecanismos de integração a uniformização das técnicas administrativas, o uso de uma moeda comum, o sistema escolar, assim como – diferentemente do caso do Império Alemão – a existência de um mesmo centro marcante ao longo de vários séculos: a grande capital, Viena. Os esforços em prol de um Estado unificado foram justamente transferidos também para o nível cultural. Formas de expressão cultural como a música, a arquitetura, as iguarias de uma nacionalidade ou de uma etnia, difundiam-se também em outras partes do Império, através de processos de interação. Valsas, polcas e marchas também eram a expressão musical da identidade de um único Estado. Esta “austro-consciência” certamente não estava enraizada uniformemente em todas as camadas sociais. Os poloneses e os rutenos da Galícia, uma das mais pobres “províncias da Coroa”, na metade austríaca do Império, que eram em sua maioria analfabetos e viviam longe de Viena, do centro do poder, presumivelmente não devem ter percebido muito dessa política de identidade supranacional. Aqueles que tinham alguma formação escolar estavam socializados como austríacos, tinham aulas de história austríaca e lhes era transmitida uma sensação de identidade supranacional. Problemas relativos à detecção de emigrantes austríacos no Brasil Pela constituição austríaca de 1867, somente o dever de prestar o serviço militar limitava o direito à emigração do Império Austro-Húngaro. Deste modo, deixavam de existir informações estatísticas das autoridades provinciais; a “Real e Imperial Comissão Central 6 A parte austríaca do império chamava-se oficialmente “os reinos e províncias representadas no Reichsrat”, mas também Cisleitânia, isto é, os territórios a oeste do rio Leitha, que demarca a fronteira entre Áustria e Hungria; o nome Áustria entrou na linguagem oficial até 1915 apenas no título geral de “Monarquia Austro-Húngara” e no título do monarca como “Imperador da Áustria”. A partir de 1915 falava-se em “Estados Austríacos” Cf. Erich ZÖLLNER, Geschichte Österreichs, Oldenbourg 1990, 412s. A Cisleitânia tinha uma superfícies de 300.000 km2 e, em 1910 uma população de 29 milhões de pessoas. 7 Cf. Moritz CSÁKY, Die Vielfalt der Habsburgermonarchie und die