O Cortejo Festivo E Sensibilidades Urbanas: As Marchas Populares Em Lisboa
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TEORIA E CULTURA TEORIA E CULTURA O cortejo festivo e sensibilidades urbanas: as marchas populares em Lisboa Renata de Sá Gonçalves* Resumo As marchas populares de Lisboa são associações recreativas e festivas, ligadas aos bairros conhecidos como aqueles mais “populares” e “tradicionais” da cidade. Nas festas dos santos em junho, tais associações saem às ruas de Lisboa, exibindo suas roupas e temas típicos, “estilizados” em torno de uma apresentação pública de dança e canto. As marchas populares retratam uma idéia do “bairro” como um lugar singular na cidade e renovam performaticamente tal experiência ano a ano a partir de seus desfiles nas ruas. Palavras-chave: bairro, experiência urbana, festa popular, marchas populares, Lisboa The festive parade and urban sensibilities: the popular marches in Lisbon Abstract The Lisbon popular marches are recreational and festive groups, associated to those more “popular” and “tra- ditional” neighborhoods. During the Feasts in honor of catholic saints in June, such associations display their clothes and typical themes and perform their dance and song. The popular marches depict an idea of “neigh- borhood” as a singular place in the city and performatively renew this experience every year from their pa- rades in the streets. Keywords: neighborhood, urban experience, popular party, popular marches, Lisbon Em Lisboa, o mês de junho é o mês das “festas pública de dança e canto a ser realizada na noite da cidade”, quando o aniversário da cidade é do dia 13 de junho, de modo a trazer à tona celebrado. Nesse período do ano, inaugurando o representações pitorescas dos bairros populares início do verão, concentram-se grande número de Lisboa. de concertos, mostras de cinema e exposições Na capital portuguesa, os clubes de bairro festejando a cidade e os santos populares. Os que organizam as marchas promovem atividades “arraiais”, decorações e estruturas para abrigar a recreativas durante o ano. As associações visita de pessoas aos bairros, são montados em culturais ou coletividades da capital portuguesa vários pontos da cidade de modo a organizar a marcam a afluência de um ciclo anual de venda de bebidas e comidas, música e “bailaricos”. encontros e afazeres sociais, como a organização Paralelamente aos arraiais, há também, os ensaios de jantares, festas e jogos. São essas coletividades e a apresentação das marchas populares. as responsáveis por promoverem e divulgarem a As marchas populares são associações inscrição dos marchantes, 48 jovens moradores recreativas e festivas, ligadas aos bairros dos bairros, para cada grupo. conhecidos como aqueles mais “populares” Neste artigo, defenderei o argumento de e “tradicionais” de Lisboa, organizadas por que o cortejo público pelas ruas em Lisboa por coletividades (que são clubes, sociedades e associações recreativos de bairro a partir das quais centros de cunho musical, recreativo, esportivo se organizam as marchas populares, produzem ou cultural). Nas festas dos santos (em especial, um “enquadramento”1 (GOFFMAN, 1986) ritual Santo Antônio) tais associações saem às ruas de central no contexto urbano estudado, por meio Lisboa, exibindo suas roupas e temas típicos, do qual os sujeitos organizam determinadas “estilizados” em torno de uma apresentação representações e experiências dos bairros da *Professora Doutora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]. 29 Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 29 a 38, jan./jun. 2013 cidade tidos como mais “tradicionais”. “O São João é uma festa pública e coletiva, Minha sugestão é que o cortejo, forma interessando as comunidades totais ou significante que ultrapassa os limites da festa parciais. Em nenhuma outra como nesta, dos santos juninos, nela encontrou uma forma especialmente nos casos citadinos, ela atinge especial de promovê-la. De modo criativo e o nível da totalidade prática da população, inventivo, os cortejos não apenas encerram que nela participa com alegria, exuberância e apropriações e representações simbólicas da espontaneidade” (OLIVEIRA, 1995: 124). cidade, como também produzem meios de TEORIA E CULTURA efetivamente experimentá-la. O ciclo anual Atreladas ao calendário cristão, as festas em junino, desse modo, se direciona rumo a uma Portugal partilham semelhanças e abrigam forte vivência festiva das ruas, da qual emergem relação com as festividades de origem ibérica campos de experiência e sensibilidades urbanas (BAROJA, 1979). Compõem um calendário que que produzem visões e experiências sobre alguns etnógrafos portugueses classificaram os bairros tidos como tradicionais, das quais em “rituais de inverno” e “rituais de verão” trataremos ao longo do texto. (OLIVEIRA, 1995). Suponho portanto que as marchas populares As origens das marchas populares são retratam uma idéia do “bairro” como um polêmicas. A sua primeira exibição deu-se em lugar singular na cidade (CORDEIRO, 1997) e um concurso organizado pelo animador cultural renovam performaticamente tal experiência ano Leitão de Barros, em 1932, respondendo à a ano. Cordeiro diz que encomenda apoiada por jornais e empresas para a ocupação do popular recinto de espetáculos ... se perguntar a qualquer lisboeta quais são Parque Mayer2. Ainda alguns dias antes de os bairros populares de Lisboa, a resposta estrearem, a imprensa na época anunciava a esclarecerá que são aqueles que vão nas “revivescência” das marchas populares que marchas populares. Santos populares e bairros nas noites festivas dos santos populares se populares confundem-se no imaginário e no encontravam no chafariz da antiga Rua Formosa ciclo anual de vida da capital; ambos marcam (atual Rua do Século no Bairro Alto). Naquele a identidade de Lisboa e esclarecem-se ano, participaram três marchas bairristas mutuamente na sua história e nos seus temas. (Campo de Ourique, Bairro Alto e Alto do Pina) (Cordeiro, 1997: 23). ainda designada por “ranchos”, termo utilizado para classificar os agrupamentos festivos. O seu Falarei das “marchas populares”, tendo nome derivou do fato do concurso ali promovido como base bibliográfica central os trabalhos ter se chamado “Marcha dos Ranchos” e do fato de Cordeiro (1997) e Melo (2003), pesquisa de futuramente desfilarem ao som de tambor etnográfica que realizei nos meses de abril a ou caixa (MELO, 2003: 51). Devido ao enorme junho de 2007 e o acompanhamento de notícias sucesso, uma segunda edição foi organizada publicadas na mídia impressa e televisiva nos no mesmo mês com o dobro de participantes últimos cinco anos. Acompanhei, nesse período, (CORDEIRO, 1997; MELO, 2001). o ciclo de ensaios e preparação para o desfile A problematização subjacente coloca em dessa marcha que têm como ápice a apresentação xeque o seu caráter “tradicional” que as caracteriza no Pavilhão e na Avenida da Liberdade quando como “produções genuinamente populares”. integram um processo competitivo amplo. Em um nível, a tradição teria sido forjada a uma realidade patrimonial da cultura popular A CIDADE DE LISBOA A PARTIR DAS de Lisboa vinculada à propaganda do regime MARCHAs – invençÃO? salazarista, reservando-lhe uma conotação mais conservadora e submetida às “normas” do poder As festas juninas se destacaram na capital público. Em outro nível, teria sido uma invenção portuguesa. Elas abrangem as celebrações em que recuperou antigos folguedos populares dos torno dos “santos populares” – Santo Antônio, santos de junho, os combinando com influências São João e São Pedro e abrem o verão. O etnógrafo das cegadas carnavalescas, dos arraiais, da português Ernesto Veiga de Oliveira destaca que: 30 Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 29 a 38, jan./jun. 2013 TEORIA E CULTURA TEORIA E CULTURA animação dos mercados públicos, das marches em associações e instituições formalizadas. aux flambeaux e do teatro de revista (CORDEIRO, Tais redes de solidariedade e vizinhança que se 1997; MELO, 2001). Por fim, a tradição teria sido mobilizam para a organização de festas de ruas inventada por um indivíduo, o Leitão de Barros, são recorrentes na cidade de Lisboa (CORDEIRO, e não pela espontaneidade de fundo coletivo. Os 2001: 13). modos mais familiares de organização aliados Seus limites não se restringiram à cidade ao fato das marchas não terem sido plenamente de Lisboa. As marchas desenharam um certo integradas a uma indústria cultural, fizeram com modelo que se estendeu à realização de outras que fossem incluídas muitas vezes no domínio marchas, organizadas sem muita regularidade, do “folclore” ou da “tradição”. Tal conotação, nos concelhos contíguos à capital, e mesmo em atualizada ano a ano pela performance dos casais outros municípios. Além disso, as marchas de marchantes “tipicamente” trajados, permite Lisboa, em alguns casos, também se apresentam uma nova aproximação ao complexo campo da fora dos festejos de junho, e mesmo fora do país. cultura popular. Apresentando um modelo consolidado, Tais associações e os clubes de bairros as marchas populares se configuram a partir surgem na década de 1930 com sedes e uma de interações sociais diferenciadas em dois organização muito regrada e conservadora, momentos: o arraial e a marcha descritos por tendo sido fundamentais para a formação e Cordeiro (CORDEIRO, 1997: 297-301). O organização dos clubes de fado, dos arraiais arraial caracteriza-se pelas ruas enfeitadas, juninos e das marchas populares. Não havia especialmente decoradas, com música, comida muita mobilidade e não entravam novos grupos. e bebida, abrindo-se como um convite aos As chamadas “coletividades”