Revista Brasileira 69

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Revista Brasileira 69 Culto da Imortalidade Humberto de Campos Murilo Melo Filho Ocupante da Cadeira 20 na Academia Brasileira de Letras. ão cheguei muito alto, nem muito perto, porque vim “N de muito baixo e de muito longe”. Assim se definia o terceiro ocupante da minha Cadeira 20, nesta Academia Brasileira de Letras, Humberto de Campos Veras, um maranhense nascido na Cidade de Miritiba, que hoje tem o seu nome, e que era uma doce vila, edificada sobre um pequeno rio, não longe do Oceano e distan- te apenas algumas horas de São Luís. Humberto viveu um pouco sob a obsessão de sua cidadezinha natal. E evocou-a em verso: É o que me lembra: uma soturna vila, Olhando um rio sem vapor e sem ponte; Na água salobra, a canoada em fila Grandes redes ao sol, mangais defronte. 5 Murilo Melo Filho De um lado e do outro, fecha-se o horizonte Duas ruas somente, a água tranquila, Botos na preamar. A igreja. A fonte. E as grandes dunas onde o sol cintila. Desde o berço, Humberto fica órfão de pai. A pobreza ronda o lar, onde uma humilde mulher luta heroicamente para dar de comer aos filhos. Praticante de alfaiate, caixeiro de loja, lavador de pratos, balconista de mer- cearia, aprendiz de tipógrafo, foi também um poeta parnasiano, da escola de Bilac, de Raimundo Corrêa e Alberto de Oliveira, que reagiu contra o lirismo romântico e que passou a cultivar uma poesia impessoal e erudita, com grande apuro da forma; autor de sonetos maravilhosos, mas nostálgicos, pessimistas e melancólicos, foi saudado efusivamente por Carlos de Laet e Medeiros e Albuquerque, no Brasil, além de Guerra Junqueiro e Fialho de Almeida, em Portugal. Fez longas excursões pelo Baixo Amazonas, entrando em contato direto com a vida de homens infelizes, os seringueiros explorados, humilhados e trucidados. Revoltou-se contra aquele mundo de Dostoiévski e versejou: E eu, sem rei. Eu, sem Deus. Eu, sem dama. Nestas cruzadas, qual o cavaleiro Que não crê, que não serve, que não ama? Ninguém: que, em febre, nesta doida lida, De alma queimada, numa ignota chama. Sou, miserável, o único na vida, Que não crê, que não serve, que não ama! Seus versos têm uma musicalidade perfeita, com a ciência do ritmo, clara métrica e impecáveis rimas. Autodidata e grande ledor, dotado de talento fértil, acumulou vasta eru- dição. 6 Humberto de Campos Foi depois prosador, contista, memorialista, poeta, crítico, biógrafo e jor- nalista, em O Imparcial, ao lado dos confrades Coelho Neto e Osório Du- que-Estrada, adotando o pseudônimo de “Conselheiro XX”, um cronista licencioso, fescenino, lascivo, “rabelaisiano”, quase obsceno, com livros de grande êxito, bem ao gosto do público de então, que se esgotavam em tiragens surpreendentes e incomuns para a época: Grãos de areia, Seara de Booz e Mealheiro de Agripa, com 10 mil exemplares, cada; Um sonho de pobre, 14 mil; A bacia de Pilatos, 15 mil exemplares; Gansos do Capitólio, 17 mil; A serpente de bronze, 18 mil: Car- valhos e roseiras e Tonel de Diógenes, 20 mil exemplares, cada; À sombra das tamareiras, 21 mil; Destinos e sombras que sofrem e Os párias, 28 mil exemplares, cada; Memórias inacabadas, 30 mil; o 1.º volume de suas Memórias, com 51 mil exemplares ven- didos. Todos esses livros foram publicados pelo Editor José Olympio. Essas Memórias foram escritas já num tempo de muito sofrimento físico, com pinceladas de tristeza e a saga de um homem atingido pela desgraça, após alcançar a glória por esforço próprio e honesto, numa verdadeira lição que o público compreendeu e apoiou. Seu impressionismo era opiniático, fazendo uma crítica literária com afir- mações pessoais. Acompanhava a leitura dos livros, com observações, digres- sões e meditações sobre o texto criticado, além de comentários sobre o enre- do, os personagens e o tema. Suas crônicas, de tanto sucesso, estão repletas de paisagem, de doçura e de cor, deixando que em seus textos vazasse um pouco de suas lágrimas. Seu estilo é um dos mais corretos da literatura brasileira, com o sabor de- licioso dos autores clássicos, na escola de Manuel Bernardes, Dom Francisco Manuel de Melo e Frei Luís de Souza. Segundo Graça Aranha, Humberto era o mais aristocrático dos escritores brasileiros. Contador de histórias bem-humoradas e inventor de anedotas galantes, co- nhecia bem o seu ofício de escritor, enquadrando-se na observação de Mon- taigne, segundo o qual cada um deve escrever apenas sobre o que sabe. O Diário secreto, publicado depois de sua morte, teve enorme repercussão por causa da irreverência e malícia em relação aos seus contemporâneos. 7 Murilo Melo Filho No auge do seu prestígio intelectual, Humberto de Campos elege-se para esta nossa comum Cadeira 20, há 89 anos, no dia 30 de outubro de 1919, nesta efeméride que justamente hoje se comemora, tendo como patrono Joa- quim Manuel de Macedo e como fundador Salvador de Mendonça. Tinha apenas 33 anos de idade e foi um dos nossos mais jovens acadêmicos. Carlos de Laet, que dez anos antes já previra a sua entrada nesta Academia, foi, por uma feliz coincidência do destino, o presidente da sessão de sua posse, dia 8 de maio de 1920. Saudado depois por Luís Murat, Humberto fez então o elogio do seu antecessor direto, Emílio de Menezes, a quem chama de “um terrível poeta, um homicida da palavra, simultaneamente, um leão e um cordeiro. Feria ou elogiava. Alternava a brutidão e a meiguice. Sua espada era de aço ou uma pluma. Sua estátua, se algum dia viesse a ter, deveria, como a de Harmódio em Atenas, trazer um punhal e um ramalhete”. Os críticos de Emílio diziam que ele era mais um caricaturista implacável do que um humorista talentoso, sem a graça de um Miguel de Cervantes, de um Jonathan Swift, de um William Tackeray, de um Thomas Carlyle, de um Décimo Juvenal ou de um Homero. Segundo Humberto de Campos, a verdade é que Emílio de Menezes era um curitibano, excêntrico no ser e no trajar, com roupas e sapatos de cores berrantes, gravata borboleta, bigode abundante e louro, rosto redondo e ver- melho, gordo, barrigudo e flácido, mordaz, malicioso e satírico. Mas era ao mesmo tempo modesto, terno, magnânimo e compadecido. Não via defeitos nos amigos, mas também não vislumbrava virtudes nos inimigos. É extenso e variado o repertório de Humberto de Campos com epigramas, sátiras e ironias de Emílio de Menezes. Certo dia, ouvindo exagerados elogios a um escritor, Emílio comparou-o a alguns edifícios da avenida Rio Branco: “Tem muita frente e pouco fundo”. E apontando para um desafeto, famoso porque não pagava suas contas, Emí- lio comentou: “Ele parece até um botão. Não paga nem a casa em que mora”. Noutra ocasião, segundo narra Humberto de Campos, um conterrâneo do Paraná convidou Emílio: “Vamos tomar um aperitivo. Quero dar-te a honra 8 Humberto de Campos da minha companhia”. E Emílio, impiedoso: “Mas logo honra? Queres dar-me justamente uma coisa da qual tanto precisas?” Certo dia, Emílio era o quarto passageiro no banco de um bonde, e uma artista muito conhecida e muito volumosa tentou sentar-se ao seu lado, quan- do, no banco traseiro, havia apenas três passageiros, além de uma vaga. E Emílio protestou: “Oh! Atriz atroz, atrás, há três.” Noutra tarde, segundo Humberto conta ainda, Emílio estava novamente num bonde da Light, viajando para o Meier, quando entraram duas senhoras suficientemente gordas para fazerem o banco dianteiro desabar com tanto peso. E Emílio, inclemente: “É a primeira vez, na minha vida, que vejo um banco quebrar por excesso de fundos.” Devo concluir, dizendo ainda que Humberto de Campos foi também um pioneiro na luta pela reforma agrária, contra os latifúndios, a favor da distri- buição de terras, de mais escolas e hospitais; da participação nos lucros e da distribuição de rendas. Dizia: “A Justiça traz na mão uma espada, quando deveria trazer um co- ração. Não nasci para ser amigo dos opressores, mas para companheiro dos desgraçados”. Aos 40 anos, em 1926, viu-se eleito deputado federal pelo Maranhão, mas a Revolução de 30 o cassou, juntamente com Coelho Neto, seu conterrâneo e grande ídolo. Para compensá-lo, o governo o nomeou fiscal de ensino e o primeiro diretor da Casa de Rui Barbosa, um antecessor aqui do nosso estimado confrade Lêdo Ivo. E ele agradeceu ao presidente Getúlio Vargas, enviando-lhe um exemplar de suas Memórias, com uma dedicatória e os versos de Luiz de Gôngora: Por tu espada e tu trato Me has cautivado dos veces. De novo, no ostracismo e já pobre, sobrevieram-lhe um tumor no cérebro, que lhe atrofiou a hipófise e uma acromegalia: gigantismo de crescimento nos ossos da face e nas extremidades dos dedos. 9 Murilo Melo Filho Ficou cego de um olho, à semelhança de Milton, Castilho e Camões. Escreveu, então: “Manhãs neurastênicas. Noites sofridas. Síncopes dos nervos, do cérebro e da vontade. Ânsias de choro. Desejos de sono”. E adaptou para si os versos do poeta Scarron: O homem cansado da lida. Não inveje deste a sorte. Ele conheceu a morte. Mil vezes dentro da vida. Quem por aí se afoite. Não faça barulho enorme. Pois esta é a primeira noite, Que Humberto de Campos dorme. Essa fase da vida foi-lhe simplesmente tenebrosa, como um gênio sofredor e iluminado. Viu serem açulados contra ele animais tão ferozes quanto as lo- bas do Inferno de Dante. Mas para aliviar as dores e padecimentos de doenças cruéis e incuráveis, impe- rava nele o espírito do nordestino forte, que deixou uma imorredoura mensagem de simpatia, de amor à vida e de otimismo, até mesmo diante do impossível.
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