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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Orientadora: Professora Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha.

Universidade Federal do Rio de Janeiro Março de 2016 2

CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Orientadora: Profª. Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Aprovada por:

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Presidente: Profa. Dra. Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha - UFRJ

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Prof. Doutor Auto Lyra Teixeria - UFRJ

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Profª. Doutora Glória Braga Onelley - UFF

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Prof. Doutor Ricardo de Souza Nogueira - UFRJ

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Prof. Marcos José de Araújo Caldas - UFRRJ

______

Profª. Tania Martins Santos - UFRJ, Suplente

______

Profª. Maria Regina Candido - UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

2016 3

Gonçalves, Alex Fabiano Campos

CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO /Alex Fabiano Campos Gonçalves

Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2016.

257 f.; 31cm.

Orientadora: Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras/Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, 2016.

Referências Bibliográficas: f. 249-57

1. Grécia arcaica. 2. Poesia grega arcaica. 3. Escatologia homérica. 4. Concepções Escatológicas na poesia grega arcaica: de Homero a Píndaro. I. Peçanha, Shirley Fátima Gomes de Almeida. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas. III. Título.

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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Orientadora: Profª. Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Os Gregos, desde o período micênico, mantinham com os mortos uma relação que só pode ser compreendida com base na crença de que, mesmo depois de morto, sepultado ou cremado, existia um elemento humano que sobreviveria de modo autônomo e consciente no mundo dos mortos. Sobre essa concepção assentam-se as proposições dessa tese na qual foram discutidos os principais aspectos da escatologia grega arcaica, desde a morte, destino final de todos os homens, até a condição existencial post-mortem da psykhé, depois da realização dos ritos funerários, condição necessária para o ingresso definitivo no . Teorias foram confrontadas a fim de maiores esclarecimentos sobre o tema em questão, estando sempre no centro da discussão, no entanto, o texto literário grego, que serviu de base aos argumentos apresentados.

Palavras-chave: Poesia arcaica. Psykhé. Escatologia. Post-mortem. Homero. Hesíodo. Píndaro.

Rio de Janeiro 2016 5

CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Orientadora: Profª. Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

The Greeks since the mycenean times kept a relationship with the deads which only can be understood based on the belief that even in the death, after dead, buried or cremated, there was a human element that would survive autonoumusly and conscious in the world of deads. On this conception place the propositions of this thesis in which were discussed the main aspects of the of the archaic greek eschatology since the death, destiny of all men, to the existecial condition post-mortem of psyche after the realization of funerary rites, necessary condition to get in the Hades definitively. Theories were confronted in orde further clarification about the theme, however the literary Greek text is always in the center of discussions, which and are the basis for the arguments.

Keywords: Archaic Poetry. Psykhe. Eschatology. Post-mortem. Homer. . Pindar.

Rio de Janeiro 2016

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A meus pais e antepassados, aos quais devo minha existência, dedico este trabalho.

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A Deus, pela criatividade e inspiração; a Lucia, minha esposa, e a Eulália, minha filha, pelo apoio e pela paciência; à professora Drª.

Shirley, pela orientação dedicada; à CAPES, pela bolsa concedida durante o tempo de pesquisa; ao Programa de Pós-graduação em

Letras Clássicas em que sempre encontrei apoio e tranquilidade para desenvolver esse trabalho; aos colegas de estudo com quem, muitas vezes, partilhei experiências; aos amigos que suportaram minhas reclamações nos momentos difíceis, agradeço de coração.

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“ w2 po/poi, h] r9a/ ti/v e0sti kai\ ei0n 0Ai+/dao do/moisi yuxh\n kai\ ei1dwlon, a0ta\r fre/nev ou0k pa/mpan:

Il. XXIII, 104-5

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SINOPSE

Os fundamentos da escatologia grega. O post-mortem na épica homérica e na poesia hesiódica. O mundo dos mortos. A condição existencial da psykhé no reino de Hades. A escatologia na poesia não hexamétrica.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...... 11 2. PRESSUPOSTOS DA ESCATOLOGIA GREGA...... 25 2.1 Um passado glorioso...... 25 2.2 O povo micênico...... 28 2.3 Os Micênicos e o mundo dos mortos...... 39 2.3.1 O culto dos mortos...... 43 2.3.2 Evidências arqueológicas...... 43 2.3.3 Evidências literárias...... 49 3. A ESCATOLOGIA NOS POEMAS HOMÉRICOS...... 57 3.1 Seres efêmeros destinados à morte...... 58 3.1.1 A mansão de Hades: o destino final de todos...... 61 3.1.2 A localização do mundo dos mortos ...... 69 3.2 Os rituais funerários e o culto dos mortos...... 76 3.2.1 Os ritos de sepultamento...... 83 3.2.2 O funeral de Pátroclo e o culto dos mortos...... 104 3.3 Os habitantes do mundo dos mortos...... 124 3.3.1 A consciência da psykhé dos mortos...... 124 3.3.2 Duas teses e um problema...... 137 4. A ESCATOLOGIA NA POESIA HESIÓDICA...... 161 4.1 Hesíodo e o destino final dos homens...... 162 4.2 Hesíodo e o Oriente Próximo...... 162 4.2.1 O Destino dos homens no Mito das Cinco Raças...... 171 4.2.2 Herança homérica...... 188 5. CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA NÃO HEXAMÉTRICA E NÃO DRAMÁTICA...... 193 5.1 O conceito de psykhé em poemas não hexamétricos...... 197 5.2 Elementos das religiões de mistérios e a vida post-mortem na poesia de Píndaro...... 213 6. Conclusão...... 245 7. Referências bibliográficas...... 249 11

1 INTRODUÇÃO

Esta tese de doutoramento versa sobre a escatologia na poesia grega arcaica, tema já iniciado na dissertação de mestrado A psykhé nos Poemas Homéricos. Enfatizaram-se neste estudo a morte física do homem, fenômeno comum a todos, compreendida como a dissolução dos elementos que o constituem, e a condição da psykhé do morto depois de encerrada definitivamente no Hades, destino final comum de todos os mortais. Sabe-se que a psykhé do morto é tratada, tradicionalmente, como uma sombra desprovida de consciência e de vontade, um ente que vagueia pelo reino de Hades sem qualquer lembrança do mundo dos vivos. Os autores1 que fazem essa afirmação, valendo-se da Nékya em Odisseia XI, asseguram que somente o sangue das vítimas sacrificadas pelo herói Odisseu restaurava, por um momento, as lembranças das psykhaí. Essa interpretação tradicional é, parcialmente, verdadeira. Evidenciou-se, na referida pesquisa de mestrado, que há, nos Poemas Homéricos, duas concepções sobre a condição da psykhé no Hades, ou seja, ora ela é apresentada desprovida de consciência, ora consciente, sendo esta última concepção a mais comum nos poemas. O conceito de psykhé provida de consciência foi fundamentado segundo a teoria defendida por Christiane Sourvinou-Inwood2 em seu livro Reading the Death to the end of the 8th Century. Aos passos dos Poemas Homéricos utilizados pela autora, a fim de ratificar suas afirmações, somaram-se comentários filológicos desenvolvidos pelo autor da dissertação. Assim, após a exposição e a comparação dos argumentos empregados na defesa de ambas as teorias, julgou-se pertinente corroborar a tese da mencionada autora, ainda que não esteja ela amplamente divulgada e aceita por todos os estudiosos. Pretende-se, na presente pesquisa, ampliar a reflexão sobre a escatologia estudada na dissertação de mestrado à poesia hesiódica e à poesia que floresceu entre os séculos VII a. C. e a primeira metade do século V a. C, período denominado, em geral, arcaico.

1 Ao longo do texto, serão apresentadas as posições de autores como Walter Burkert, Emily Vermeule, e, principalmente, as proposições de Erwin Rohde sobre o tema. 2 Confira as principais linhas de argumentação da autora em nossa dissertação de mestrado no item A psykhé do Morto, em A yuxh/ do Morto nos Poemas Homéricos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. 12

Há de se observar, contudo, que há um sério problema quando se trata de conceituar o período grego arcaico acentuando que existe uma historiografia da Grécia arcaica que influencia com vigor a denominação do período literário em questão, sendo, pois, preciso diferenciar a literatura grega desse período da história da Grécia porque ambas são realidades distintas que encerram dificuldades específicas e devem ser estudadas com métodos e objetivos diferentes. A mencionada dificuldade é manifesta em obras de autores consagrados que escreveram manuais de história da literatura grega, como, por exemplo, Albin Lesky (1995) e J. A. López Férez (2008). O primeiro autor adota uma posição menos determinada quando analisa a época arcaica sem definir-lhe os limites precisos. Observa-se que Albin Lesky (op. cit., p.115) divide o período arcaico em duas fases distintas, uma na qual estavam inseridas a épica homérica e a hesiódica e outra na qual a lírica desabrocha. O autor inclui Hesíodo na primeira fase porque o poeta beócio apresenta em seus poemas características homéricas, embora existam elementos culturais diversos que diferenciam sua poesia da épica heroica tradicional. A segunda fase, para a qual o autor não propõe um limite cronológico, compreende a lírica arcaica. Ao contrário de Albin Lesky, no manual de história da literatura grega organizado por J. A. López Férez, Carles Miralles (2008, p. 10), ao mencionar a periodização da literatura grega, propõe a seguinte divisão: “Existe uma época assim chamada de arcaica que compreende três períodos distintos: o homérico; o propriamente arcaico e o tardio-arcaico. Essa primeira época se inicia a cavalo entre os séculos VIII e sétimo e apresenta limites confusos quanto ao seu final.” (Tradução nossa). Assim, os autores desse manual discorrem sobre a história da literatura grega seguindo essa orientação cronológica que norteia outros manuais sobre o tema. Essa tendência de periodização, anota José Alsina (1991, p. 105), ganhou força com o historicismo que triunfou como orientação metodológica de pesquisa no âmbito dos estudos clássicos divididos em época arcaica, clássica e helenístico-romana, divisão, na opinião do autor, praticamente indiscutível. O referido pesquisador (op. cit., p. 106) pondera, no entanto, que o conceito de período é equivocado porque parte de categorias oriundas de fatos culturais distintos, procedimento que torna o conceito indefinido e pouco adequado à análise de realidades diversas. O conceito de arcaico, segundo o autor, foi elaborado com base no estudo da arte antiga, principalmente no estudo da escultura. Pode depreender-se, portanto, pelas afirmações do pesquisador, 13

que a periodização da literatura grega se fundamenta em postulados frágeis que dificultam sua apreensão como um fenômeno específico. As observações de José Alsina sobre a influência do historicismo na periodização da literatura grega podem ser comprovadas em obras de autores como, por exemplo, Bruno Snell (2012, p. 55), segundo o qual os gêneros literários se teriam desenvolvido um após o outro. Assim, para esse autor, na Grécia antiga, a existência de gêneros distintos, como a épica, a lírica e o drama, alcançaram a mais alta expressão numa sucessão temporal, ou seja, em períodos distintos. Ao intitular um capítulo de seu livro A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu de O despertar da individualidade na lírica grega arcaica, Bruno Snell parece considerar a expressão “grega arcaica” de modo autoevidente na determinação do período histórico em questão, tendo em vista não ter tido a preocupação de explicar qual o critério utilizado para determinar o espaço temporal no qual a lírica grega arcaica estaria inserida. José Alsina (1991, p. 124) observa, ainda, que Hermann Fränkel pode ser citado como outro escritor cujas teses foram influenciadas pela corrente historicista e que adotou concepções semelhantes àquelas de Bruno Snell, diferenciando-se deste autor somente em um momento posterior quando, depois de ser criticado por seus procedimentos metodológicos, analisou a época arcaica observando suas características culturais particulares3. Com o sugestivo título “A armadilha da terminologia”, John K. Davies (2009, p. 3) acentua que a modernidade situa o começo do período arcaico em 776 a. C, data da fundação dos Jogos Olímpicos em Élis. O pesquisador observa que a denominação da época como arcaica encerra uma contradição porque o termo arcaico, no dicionário, é utilizado de modo incisivo para se referir às características de um período anterior associado às velhas formas, ao primitivo e ao antiquado. Ao ser aplicado, porém, a um determinado período da história da Grécia, “arcaico” passa a significar algo excepcional, uma época de efervescência cultural que se expandiu com extraordinária velocidade. Esses significados não correspondem, conforme o autor, àqueles dos dicionários, e devem ser compreendidos apenas como uma metáfora em referência à Grécia.

3 O procedimento metodológico adotado por Hermann Fränkel é observado de modo muito claro no livro Early Greek Poetry and Philosophy, tradução inglesa publicada em 1973 e citada na bibliografia. 14

A historiografia da Grécia antiga é, segundo John K. Davies (op. cit. p. 4), produto de três estilos distintos que, em um processo incongruente, convergem. O primeiro está baseado em informações históricas e geográficas legadas por historiadores gregos mais antigos e por outros de um período posterior que reconstituíam o passado do povo grego valendo-se de fontes literárias, como a épica e a lírica. O segundo estilo pauta-se na história cultural que procura saber como as instituições culturais antigas, tais como os hábitos, o culto e a mitologia, podem ser interpretadas. O terceiro estilo consiste em uma reflexão arqueológica que se ocupa em estabelecer cronologias relativas ou absolutas de alguns fatos fundamentando-se em uma variedade de artefatos. O problema é tão complexo que vale evocar as palavras do autor (op. cit. p. 3): “Naturalmente, todos os historiadores precisam decidir onde começar e onde terminar.” (Tradução nossa). Conclui-se, portanto, que o critério de periodização é determinado pela subjetividade do pesquisador. A complexidade acerca da periodização da Grécia arcaica está bem ilustrada no apêndice4 do livro A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo de Claude Mossé (1989, p. 211) que resume, de maneira satisfatória, esse problema ao considerar que: “Para quem quer que estude a época arcaica, é praticamente impossível estabelecer uma cronologia segura dos acontecimentos políticos ou os feitos civilizatórios”. A expressão poesia grega arcaica, que compõe o título dessa tese, é utilizada na acepção apresentada por José Ribeiro Ferreira: A época arcaica – cujas datas de início e final é costume situar em 776 e em 480 a. C, respectivamente a data tradicional dos primeiros Jogos Olímpicos e o ano da Batalha de Salamina – a época arcaica, dizia eu, é um período de grande vitalidade, de inovações, crises e transformações. (Ribeiro Ferreira 1992, p. 41)

4 Confira as palavras do autor: “Para quem quer que estude a época arcaica, é praticamente impossível estabelecer uma cronologia segura dos acontecimentos políticos ou feitos civilizatórios. À parte alguns episódios da história de Atenas no século VI, datados pela menção do nome do arconte anual – e mesmo em tais datações não se pode ter total certeza – , todos os outros factos relatados pelas nossas fontes literárias ou não estão datados ou, caso o estejam, estão-no de forma muito vaga. Heródoto, em particular, preocupa-se pouco com questões de coerência cronológica quando relata acontecimentos respeitantes a esta ou àquela cidade-estado grega ou aos reinos com que elas estavam em contacto. Donde também a elaboração de <> ou de <> conforme se privilegie um determinado facto em detrimento de outro. Um segundo factor de datação é a cronologia arqueológica. Mas esta cronologia tem de ser necessariamente relativa, dado que estabelecida a partir da evolução estilística da cerâmica, e apenas fornece indicações muito genéricas. É certo que os arqueólogos utilizam hoje em dia técnicas de datação cada vez mais apuradas. Mas, se estas tornam realmente possíveis a datação aproximada da ocupação de uma dada estação ou da fundação de um dado povoamento, nunca poderiam de qualquer das formas facultar a reconstrução de sua história propriamente dita. Eis, pois, os motivos por que preferimos absternos de dar um quadro cronológico.” 15

Essa data, cujos limites cronológicos mencionados são de aceitação comum, na opinião do autor, norteia obras sobre literatura grega arcaica nas quais os autores não se preocupam em esclarecer os critérios que os levaram a adotar essa cronologia5. Outra questão que merece comentários diz respeito ao termo escatologia, definido por Nicolo Abbagnano (1982, p. 325) como:

Termo moderno que indica aquela parte da teologia que considera as fases “finais” ou “extremas” da vida humana ou do mundo: a morte, o juízo universal, a pena ou o cativeiro ultraterreno e o fim do mundo. Os filósofos usam às vezes o termo para indicar a consideração dos estágios finais do mundo ou do gênero humano. (ABBAGNANO, 1982, p. 325)

Observa-se com essa definição que o termo está relacionado com religião porque o autor a considera uma parte da teologia. O vocábulo grego e/0sxatov, que compõe a palavra escatologia, não apresentava em textos mais antigos como, por exemplo, nos Poemas Homéricos, o significado mecionado por Nicolo Abbagnano. Em Ilíada VIII, 225, emprega-se e1sxatov para se referir ao local distante onde os navios estavam fundeados: “toi\ r9’ e1sxata nh=av e0i+/sav ei1risan” (“eles, nos extremos, colocaram o navios alinhados”) e no canto X, 434, em referência aos recém-chegados aliados dos Troianos: “Qrh/i+kev oi3d’ a0pa/neuqe neh/ludev, e1sxatoi a1llwn: (“afastados estavam os Trácios recém-chegados, os últimos de todos.”); em Odisseia I, 23, passo em que se menciona a presença de Posídon entre os Etíopes por ocasião da deliberação dos deuses sobre o retorno de Odisseu a Ítaca: “Ai0qi/opav, toi\ dixqa\ dedai/atai, e1sxatoi a0ndrw=n,” (Os Etíopes estavam divididos em duas partes, os últimos dos homens), no canto VI, 205, verso referente à exortação de Nausícaa às servas feáceas que fugiram ao encontrarem Odisseu: “oi0ke/omen d’ a0paneuqe poluklu/stw| e0ni po/ntw|, e1sxatoi, [...] (habitamos afastados no mar repleto de ondas, remotos,[...]) e no canto XXI, 9, em que o termo é utilizado em alusão à distância do quarto em que os tesouros de Ítaca estavam depositados: “bh= d’ i1menai qa/lamo/nde su\n a0mfipo/loisi gunaici\n e1sxaton: (subiu com as servas para o quarto, o último:). Observa-se que, nos Poemas Homéricos, e1sxatov está relacionado com o espaço físico e não denomina um conceito referente ao destino final do homem. Com essa mesma acepção dos Poemas Homéricos, o termo também é utilizado na poesia hesiódica, por exemplo, no verso 731 de Teogonia na menção ao Tártaro

5 Podem ser citadas como exemplos dessa atitude obras de Walter Burkert, Marcel Detienne, M. I. Finley, Gregory Nagy entre outras. 16

bolorento para onde os Titãs são enviados: “xw/rw| e0n eu0rw/enti, pelw/rhv e1sxata gai/hv” (na região bolorenta, extremos da vasta terra). Embora haja nesses versos referência ao destino final dos Titãs, convém notar que o termo e1sxata marca a distância espacial e não se relaciona com o significado moderno de escatologia mencionado anteriormente. O emprego de e1sxaton na acepção de destino final do homem aparece na poesia de Píndaro, em Pítica X, na narração da viagem de Perseu para a fantástica terra dos Hiperbóreos, especificamente no verso 28: [...] “perai/nei pro\v e1sxaton plo/on:” ([...] ele completa uma última viagem). Nesse verso, o termo relaciona-se com o destino final do herói que passará a viver junto aos Hiperbóreos. A noção de destino final presente nesse verso, diferentemente de Homero e Hesíodo, remete, pois, ao significado de escatologia proposto por Nicolo Abbagnano. Ao tratar o termo escatologia, Daniel A. Torres (2007, p. 13) afirma que ele encerra três significados sendo o primeiro o seguinte: “um sentido cosmológico, referido a um limite do mundo conhecido e à possibilidade de sua continuidade e regeneração.” Note-se que essa concepção apresentada pelo autor se assemelha àquela proposta por Mircea Eliade (1992, p. 69) para o qual as repetições anuais de cosmogonias regeneravam o tempo porque, ao participar de um ritual do fim do mundo e de sua recriação  atos fundamentados em concepções escatológicas , o homem nascia de novo e recomeçava sua existência com uma nova força, pois estaria começando de um ponto originário, ou seja, “o homem se tornava contemporâneo do illud tempus;”. A escatologia ainda pode ter o sentido de destino coletivo de um povo, sendo esse precisamente o segundo significado do termo dado por Daniel A. Torres. Embora o autor não dê exemplos desse conceito, ele pode ser percebido nas concepções teleológicas do povo de Israel para o qual a história se encaminhava a um fim específico em que o povo alcançaria uma situação triunfal. O sentido escatológico estaria, então, diretamente relacionado com uma concepção teleológica. O terceiro sentido conferido ao termo escatologia por Daniel A. Torres refere-se à continuidade individual em uma existência post-mortem. Acentua o autor que esse último conceito está claramente presente na épica grega, especialmente nos cantos XI e XXIV de Odisseia. 17

Além das três definições apresentadas, Daniel A. Torres (op. cit. p. 14) vale-se de dois conceitos ao explicar o termo: “escatologia no sentido amplo” e “escatologia no sentido estrito”. “Em sentido amplo, compreende toda a concepção sobre a continuidade e permanência do indivíduo; em sentido estrito, refere-se às doutrinas elaboradas explicitamente sobre como seria possível uma ideia definida dessa continuidade.” O pesquisador diferencia os dois conceitos afirmando que, em sentido amplo, a escatologia não supõe uma concepção de alma individual imortal, enquanto o sentido estrito se fundamenta em tal postulado ao qual se acrescenta a noção de origem divina. Ainda sobre o primeiro sentido, o autor faz a seguinte afirmação:

Em sentido amplo, a sobrevivência do indivíduo através de suas obras, mediante o klêos heroico conferido pelo poeta, ou mediante a obra poética mesmo em sua condição de memorial, são formas de indicar a transcendência individual, ainda que elas não impliquem a noção específica de imortalidade individual: limita-se a alguns indivíduos, sobretudo aos heróis do passado lendário, ou a homens públicos destacados, e aos poetas como depositários de uma memória coletiva que transcende os limites definidos de uma existência tanto do passado quanto da posteridade.

(TORRES, 2007, p. 15. Tradução nossa)

A divisão proposta pelo autor, como se pode perceber, é bastante adequada, principalmente quando ele propõe que o “sentido amplo” não contempla a imortalidade da alma, muito embora seja difícil aceitar que neste sentido a escatologia se refira apenas à existência de alguns homens porque, nos Poemas Homéricos, que remontam a tradições micênicas, se encontra ancorada a noção de que todos devem morrer e ir para a mansão de Hades onde levarão uma existência diversa daquela que tinham em vida. Não se trata, portanto, como propõe Daniel A. Torres, de uma existência advinda do klêos, mas de um modo de existir bastante específico como se poderá perceber ao longo da leitura dessa tese. Esclarece-se, após essas considerações, que o termo escatologia, empregado no título dessa tese, faz referência à continuação da existência após a morte, à concepção da situação da psykhé depois de sua separação definitiva do corpo e da execução dos ritos funerários devidos quando passa a existir de maneira autônoma e consciente no mundo dos mortos. Precisamente, esse é o norte dessa tese porque se compreende que toda a relação dos vivos com os mortos depende da crença de que, mesmo no Hades, um elemento humano continuaria a existir de modo autônomo e consciente. 18

A tese organizou-se da seguinte maneira: no primeiro capítulo, fez-se uma exposição sobre a sociedade micênica6, apresentando, com base nas recentes descobertas arqueológicas, a identidade do povo que constituía essa civilização e vislumbrando algumas de suas crenças, mormente em relação ao post-mortem e aos costumes funerários. Na verdade, a compreensão desse aspecto cultural permite conjecturar se as concepções escatológicas presentes na épica homérica são uma herança dessa civilização desaparecida há, pelo menos, quatro séculos antes da composição dos Poemas, ou se elas são contemporâneas à data de composição ou, ainda, se constituem uma criação poética posterior. O ponto de partida para a determinação da identidade do povo micênico foi a língua falada em Micenas e grafada no Linear B. Observa-se que o critério linguístico já fora utilizado na Antiguidade para a identificação de um povo, como ratificam os historiadores Heródoto e Tucídides ao tratarem da formação do povo helênico. Assim, com base no deciframento do Linear B empreendido por John Chadwick e Michael Ventris, segundo os quais a língua ali grafada é um dialeto grego, concluiu- se que a identificação do povo micênico como um povo grego é inequívoca, pois, pelo critério de identificação adotado, a exemplo dos historiadores gregos supracitados, foram considerados gregos aqueles que tinham por língua nativa o grego. Nesse passo, segue-se a orientação de Heródoto, I, 58, ao afirmar que os gregos sempre fizeram uso da mesma língua, isto é, a língua grega: “to\ de\ 9Ellhniko\n glw/sshi me/n e0pei/te e0ge/neto, ai0ei/ kote th~i au0th~i diaxra~tai, w9v e0moi\ katafai/netai ei]nai” (e o mundo helênico, desde que surgiu, como me parece, sempre fez uso da mesma língua). Mereceu o devido destaque, nesta primeira etapa, a exposição das teses de alguns autores antigos e modernos que comentaram essa relação entre língua e

6 Embora a civilização minoica tenha contribuído para o desenvolvimento da cultura micênica, não foi tratada, propositalmente, nesta tese. Segue-se aqui a argumentação de Christiani Sourvinou-Inwood (1995, p. 23), segundo a qual não pode haver elementos idênticos compartilhando sistemas diferentes. Cada sociedade é vista como um sistema que possui elementos próprios. Alguns elementos podem até terem sido adquiridos por empréstimos, porém, ao serem assimilados por outro sistema, passam a integrá-los e são transformados em algo distinto do que eram no sistema originário. Aplicando esse postulado à formação do povo micênico, pode-se afirmar que elementos próprios do sistema social minoico, isto é, da cultura minoica, foram integrados ao sistema micênico sendo, portanto, regulados pelas regras do novo sistema ao qual passaram a pertencer. Esse é o mesmo raciocínio aplicado quando se estuda a formação, por exemplo, das línguas românicas. Do contato entre dois sistemas linguísticos diferentes, no caso da Península Ibérica, de uma língua nativa com a língua latina, tem-se outro sistema regido por regras novas que só vagamente se assemelha aos sistemas que o originaram. Mesmo que desse contato não surja algo novo, mas haja apenas empréstimos, os elementos emprestados são regulados e interpretados pelas regras do novo sistema do qual passam a fazer parte. Em resumo, do contato entre a civilização minoica e a civilização micênica prevaleceu esta última que integrou elementos da primeira que passaram a pertencer a um sistema diferente, regulado e interpretado pelas regras desse novo sistema. 19

identidade étnica, como, por exemplo, os poetas Sólon e Sófocles, além dos historiadores gregos já mencionados, e autores recentes como Ross A. Shawn, Edward M. Anson e R. A. Mcneal, citados na bibliografia. Os argumentos apresentados pelos referidos autores foram pertinentes para que se compreendesse a identidade dos Micênicos como grega e, em consequência, se pudessem relacionar os diferentes cultos, como o culto ao ancestral e ao herói, observando se constituíam uma herança da cultura legada às gerações posteriores ou não. Por essa razão, impôs-se, nessa abordagem, tentar responder qual a relação existente entre esses cultos e os Poemas Homéricos, tendo em vista não serem encontradas claramente, nas epopeias, referências a tais práticas, embora ambos os Poemas tratem de um passado heroico identificado por alguns7 como a época áurea da civilização micênica. Nessa etapa da pesquisa, os estudos de Chrysanthi Gallou foram de suma importância porque a autora é de opinião que os Micênicos, indubitavelmente, acreditavam no mundo dos mortos e, por esse motivo, reverenciavam seus antepassados prestando-lhes um culto regular. Ao adotar esse posicionamento, a pesquisadora opõe-se às teses de George E. Mylonas segundo o qual os Micênicos não davam nenhuma importância a seus mortos. Na tarefa de defesa de sua posição em relação às crenças micênicas, Chrysanthi Gallou lança mão de teses de autores diversos e de dados arqueológicos rigorosamente analisados, como, por exemplo, os sarcófagos de Hagia Triada e Larnax nos quais estão registradas cenas de funerais. A fim de ampliar a reflexão sobre o tema, foram apresentadas e contrapostas teses de autores importantes, como Erwin Rohde, Walter Otto, Walter Burkert, M. P. Nilsson, Emily Vermeule, entre outros, cujos argumentos se baseiam em evidências arqueológicas e, muitas vezes, em imagens encontradas em ambiente sepulcral interpretadas à luz da literatura, como é o caso do mencionado sarcófago de Hagia Triada em cuja superfície estão gravadas cenas que, para alguns, podem ser interpretadas e relacionadas com cenas descritas nos Poemas Homéricos. Deve-se observar que a argumentação empreendida nessa etapa da pesquisa possui um caráter de base arqueológica. Porém, como essa tese versa sobre literatura, com o título de “evidências literárias” foram comentadas as manifestações poéticas micênicas, considerando as interpretações imagéticas e os indícios linguísticos

7 Historiadores como M. Finley, T. B. L. Webster, M. P. Nilsson, Pierre Vidal-Naquet são exemplos de estudiosos que relacionam as epopeias com o mundo micênico. 20

deixados como legado tradicional, isto é, epítetos de deuses e algumas formas em genitivo comuns às tabuletas de Linear B e aos Poemas Homéricos. Depois de apresentar os pressupostos históricos e de esclarecer-se que os Micênicos acreditavam no post-mortem, a ponto de prestarem culto a seus antepassados, passou-se, no segundo capítulo, para a parte propriamente literária da tese, na qual foram apresentados e discutidos os fundamentos da escatologia nos Poemas Homéricos, a saber, todo homem está destinado a morrer, e, após sua morte, o destino final de sua psykhé é o reino de Hades. Uma vez que o Hades é a morada final de todos, julgou-se pertinente esclarecer como sua localização é descrita nas epopeias e qual a relação existente entre essa concepção dos gregos e aquelas de povos orientais que possuíam uma crença semelhante. Como suporte teórico, utilizaram-se obras de Martin West e Walter Burkert que versam sobre a influência da cultura de povos do Oriente Médio na Grécia arcaica. As conclusões a esse respeito foram de que não se deve aceitar, simplesmente, a influência oriental na cultura grega porque os povos de origem indo-europeia, considerando algumas evidências arqueológicas, também acreditavam em um lugar destinado aos mortos. A morte é concebida, nessa tese, como um processo que tem início com a separação da psykhé do corpo e é concluída com o ritual funerário, concepção adotada na dissertação de mestrado, razão pela qual não se achou pertinente repetir, no presente estudo, as reflexões propostas na pesquisa anterior. Foram enfatizados, por outro lado, o ritual fúnebre considerando cada rito em particular como, por exemplo, a próthesis, a lamentação e a forma de se desfazer do cadáver. Este último tópos, precisamente, mereceu maior atenção porque nos Poemas Homéricos, ainda que haja o predomínio da cremação, há indícios da prática da inumação. Portanto, não parece conveniente afirmar, como fazem alguns estudiosos, que Homero só conhecesse uma forma de se desfazer dos cadáveres, tese defendida por Erwin Rohde, um dos mais importantes autores que escreveram sobre esse assunto no final do século XIX e cujos estudos têm influênciado os pesquisadores ainda hoje. Os dados levantados nas epopeias e analisados com base no vocabulário mostram que, para o poeta e sua audiência, os dois processos eram igualmente conhecidos. Assim, as conclusões das pesquisas arqueológicas de A. Snodgrass e as reflexões de Walter Burkert sobre os métodos de sepultamentos utilizados na Grécia antiga vêm ao encontro das evidências literárias. 21

O funeral de Pátroclo, por causa de suas particularidades e sua suntuosidade, foi analisado à parte e, sempre que pareceu conveniente, estabeleceu-se uma relação com as exéquias de Heitor. Ambos os heróis, considerados exímios guerreiros combatentes em Troia, uma vez mortos e sepultados, poderiam tornar-se objeto de culto. Com essa possibilidade, apresentaram-se considerações sobre o culto dos mortos nos Poemas Homéricos, matéria controversa entre os autores, pois enquanto alguns rejeitam essa tese, como, por exemplo, Erwin Rohde e George E. Mylonas, outros, como M. P. Nilsson, Farnall, Odyssey Tsagarakise e C. Antonaccio a defendem. Uma vez fundamentados os elementos essenciais da escatologia nas epopeias, observando os aspectos imediatos, isto é, a morte e o ritual funerário, voltou-se a atenção, no terceiro capítulo, para o post-mortem, considerando a situação da psykhé no Hades. Nessa etapa, foi seguida a reflexão da pesquisa de mestrado e reafirmou- se, não obstante as opiniões contrárias, que a psykhé do morto mantém sua consciência, não sendo necessária a ingestão de sangue para que isso ocorresse. O passo que serviu de referência para a investigação do tema, nessa parte da pesquisa, foi a nekýa descrita no canto XI de Odisseia. A análise foi feita contrapondo as interpretações tradicionais sobre o tema em questão, rejeitando-as em função da nova concepção segundo a qual todas as psykhaí mantêm a consciência. Depois de expostas as principais concepções escatológicas presentes na epopeia homérica, tendo acentuado que a principal noção presente tanto em Ilíada quanto em Odisseia é a de que todo homem deve morrer e ir para o Hades sombrio8, considerou-se conveniente apresentar um episódio que parece destoar dessa proposição, isto é, o destino de Menelau a quem foi prometido habitar nos Campos Elísios, passo que, a rigor, não pode ser tomado como uma concepção escatológica, embora seu desenvolvimento posterior se tenha configurado como tal. Em seguida, iniciou-se, no quarto capítulo, a análise das concepções escatológicas na poesia hesiódica tomando como ponto de partida a possível origem oriental do poeta e sua suposta contemporaneidade com Homero, pois o primeiro elemento permitiria detectar inovações sobre a escatologia na obra hesiódica, e o

8 Propositalmente, a katábasis dos pretendentes descrita no Canto XXIV de Odisseia não foi analisado nessa pesquisa porque a narrativa apresenta concepções que destoam muito daquelas mais comuns nas epopeias, como, por exemplo, a presença de , condutor das almas dos mortos. Ainda que não se tenha levado em conta extratos de épocas diversas na composição dos Poemas Homéricos, achou-se por bem, em razão das particularidades do mencionado passo, deixá-lo para uma ocasião futura. 22

segundo possibilitaria verificar o manuseio que o poeta fez do legado tradicional homérico. A obra de Hesíodo não se ocupa, diretamente, do mundo dos mortos, entendido como um local destinado às psykhaí, razão pela qual são encontradas apenas referências gerais sobre o tema. Em Teogonia e em Trabalhos e Dias, os exemplos são escassos. Destacou-se, no último poema, a passagem referente ao destino final dos homens das diferentes Raças, principalmente o destino dos heróis levados para a Ilha dos Bem-aventurados. Em Teogonia, foram examinados os versos sobre o destino final de Héracles que parece ser uma exceção na concepção geral do destino final dos homens. Essa concepção, que se encontra também no fragmento West 25 e em Odisseia, permitiu conjecturar que o poeta beócio conhecia e partilhava elementos escatológicos da épica homérica. Julgou-se pertinente, ao abordar o tema da escatologia na obra de Hesíodo, manter a mesma metodologia aplicada aos Poemas Homéricos, isto é, apresentar, primeiramente, como o tema foi abordado por autores, cujas teses, ao longo do tempo, foram revestidas de um caráter dogmático, destacando-se Erwin Rohde, que interpretou o mito hesiódico das Cinco Raças numa perspectiva escatológica. Seguiram-se a essa exposição as proposições de Farnall e, a título de esclarecimentos, aquelas propostas por autores mais recentes, como, por exemplo, J. S. Clay, Anthony T. Edwards, Aurélio Perez Jimenez, Richard Hunters e alguns outros. Após expor as teses dos diversos autores, comentaram-se os versos referentes ao Mito das Cinco Raças considerando o vocabulário empregado pelo poeta na explicação do destino final dos homens de cada raça após a morte ou existência terrena. O quinto e último capítulo da tese é dedicado à escatologia na poesia que se desenvolveu na Grécia arcaica entre os séculos VII e meados do V a. C. Privilegiou-se, nessa parte da pesquisa, a poesia de Píndaro, responsável por introduzir concepções inovadoras em relação ao tema. Adotou-se, nessa etapa, a expressão “poesia não hexamétrica9” a fim de evitar as discussões decorrentes da utilização da tradicional nomenclatura que fragmenta os gêneros e os agrupa como líricos, iâmbicos e elegíacos. Esclarece-se, porém, que, embora tembém seja não hexamétrica, a poesia dramática não será objeto de reflexão nessa tese.

9 A respeito da dificuldade de nomeação, afirma Giuliana de Faria Ragusa (2008, p. 8): “ Um dos problemas mais imediatos a ser enfrentado pelo estudioso é o da nomeação da poesia que não é a épica, nem a filosófica, nem a didática e nem a dramática, e que teve seu grande momento na Grécia arcaica.” 23

Embora não se tenha aprofundado o tema, o ambiente de performance da poesia não hexamétrica mereceu atenção, porque ele difere daquele no qual a poesia homérica e a hesiódica estavam inseridas. Deu-se a devida importância a esse aspecto, pois, conforme Hermann Fränkel, antes de o pensamento filosófico entrar em cena, a poesia lírica, denominada aqui como poesia não hexamétrica, foi o principal veículo de propagação de novas concepções, oriundas, principalmente, de reflexões sobre a efemeridade humana posto que a poesia épica, que tratava dos feitos gloriosos dos heróis, já não correspondia às vicissitudes históricas do século VII a. C. Assim, após considerações sobre a poesia não hexamétrica, passou-se à análise de proposições escatológicas na poesia pindárica, relacionado-a, sempre que possível, com poemas de outros autores, como Safo, Mimnermo, Teógnis e outros que, embora indiretamente, trataram do tema. Obviamante, Olímpica II, cujo conteúdo escatológico tem atraído a atenção de vários pesquisadores, foi o poema de Píndaro escolhido para nortear essa reflexão. Porém, deve-se observar que não houve uma preocupação em tecer comentários sobre aspectos formais do poema como, por exemplo, a métrica e os elementos de composição particulares utilizados pelo autor, nem foi abordada a importância do poema no tocante à obra geral de Píndaro. A abordagem do poema foi feita levando em conta os versos compreendidos entre 56b-80 relativos ao destino post-mortem daqueles que levaram uma existência justa sobre a terra dos vivos. A interpretação proposta, porém, não considera que as concepções existentes no poema dizem respeito a todos os homens, pois essa noção poderia conduzir à conclusão de que com Píndaro haveria uma democratização de algumas ideias tradicionais, principalmente, a ideia de acesso à Ilha dos Bem-aventurados. Discorda- se dessa afirmação e argumenta-se nessa tese que o poeta tebano destinava a Ilha dos Bem-aventurados somente a alguns privilegiados da aristocracia. Esse é, pois, o norte que direciona a interpretação de Olímpica II. Nessa parte do estudo, não se deu muita ênfase aos lugares aos quais a psykhé estava destinada, o Hades  embora essa morada habitual dos mortos não seja mencionada em Olímpica II  e a Ilha dos Bem-aventurados porque as reflexões foram empreendidas em outra parte da tese, de modo que não há prejuízo para a compreensão das concepções presentes em Olímpica II e em alguns fragmentos pindáricos. 24

Algumas interpretações sobre o conteúdo escatológico de Olímpica II foram discutidas a fim de lançar luzes sobre o tema, principalmente os comentários feitos por Kurt von Fritz, Frank J. Nisetich, Hugh Lloyd-Jones, Antonio Santamaría e Daniel Torres, autores que seguem em suas abordagens uma metodologia semelhante, ou seja, examinam as concepções existentes no poema relacionando-as com outras fontes, principalmente com alguns fragmentos transmitidos por autores antigos, como Platão e Plutarco. Uma característica comum na interpretação desses autores modernos é a ênfase dada aos elementos das religiões de mistérios utilizados por Píndaro ao apresentar a concepção de post-mortem em seus poemas. Vale ressaltar que a maior parte dos escritos sobre Olímpica II, em alguns momentos, parece deixar de lado o poema ocupando-se, principalmente, em detectar e identificar as doutrinas religiosas inseridas ali pelo poeta. Esse foi o motivo pelo qual se abordou, ainda que de modo breve, o tema, valendo-se de proposições de autores como Erwin Rohde, Walter Burkert, W. K. C. Guthrie e Christiane Sourvinou-Inwood. Particularmente, para essa autora citada, as religiões de mistérios constituíam um importante fator de mudança nas concepções religiosas, principalmente no que diz respeito a um destino post-mortem “mais feliz”. As ideias relativas à metempsicose  tópos que parece refletir concepções das religiões de mistérios  transmitidas em Olímpica II e em fragmentos pindáricos foram abordadas levando em conta as interpretações de diferentes autores, principalmente no que diz respeito ao sintagma e0stri/v e9kate/roqi (três vezes aqui e lá, Olímpica II, 69) que tem sido objeto de acirrados debates sem que se chegue a uma conclusão definitiva conforme se observará ao longo da exposição do assunto. Quanto aos principais textos gregos utilizados para corroborar as interpretações, foram empregadas, principalmente, edições críticas; para os Poemas Homéricos, Homeri Opera editada por David B. Monro e Thomas W. Allen; para os poemas hesiódicos, Hesiodi Theogonia Opera et Dies Scvtvm, editado por Friedrich Solmsen e Fragmenta Selecta por R. Merkelbach et M. L. West. Os exemplos referentes à poesia de Píndaro tiveram por base Pindari carmina cvm Fragmentis, edição de M. C. Bowra. Para os demais exemplos foram utilizados obras de LOEB CLASSICAL LIBRARY, publicadas pela Harvard University Press, e outros.

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2 PRESSUPOSTOS DA ESCATOLOGIA GREGA

2.1 Um passado glorioso Os Poemas Homéricos e sua relação com fatos históricos têm sido objeto de estudos desde a Antiguidade, e pesquisadores examinam Ilíada e Odisseia ora considerando essas obras como fontes para a interpretação de achados arqueológicos, ora tratando-as meramente como obras literárias cujo uso inadvertido de alguns passos como fonte histórica pode facilmente levar a equívocos de compreensão.10 Porém, a inegável historicidade de alguns fatos narrados nos Poemas suscita questões relevantes como, por exemplo: os Poemas Homéricos se referem a uma sociedade real? Se a resposta for afirmativa, consequentemente, segue-se outra importante questão: qual é a sociedade ali retratada? Uma resposta considerada válida, por muito tempo, foi a de que essas obras retratavam a sociedade micênica. Achados arqueológicos oriundos das escavações empreendidas por Heinrich Schliemann no século XIX, principalmente o conjunto de sepulturas reais descoberto em 1876 em Micenas, nordeste do Peloponeso, pareciam corroborar a resposta dada à

10 M. I. Finley (1982, p. 44) considera que os Poemas Homéricos, mormente Ilíada que relata um episódio da guerra de Troia, têm um fundo histórico. A guerra teria sido, conforme o pesquisador, um evento de pequenas proporções, mas reelaborado e ampliado por um poeta a fim de conferir-lhe grandiosidade. A Canção de Rolando, que conta a batalha entre Carlos Magno e os Sarracenos em Roncevaux, é usada pelo autor como exemplo porque, embora esse evento histórico tenha realmente acontecido, a aclamada batalha, na qual o rei saiu vencedor, foi apenas uma refrega entre um destacamento do exército cristão e um bando de salteadores bascos. Assim, o fato ocorrido em nada lembra a narrativa desse importante texto medieval. Esse mesmo exemplo foi utilizado por John Chadwick (1976, p. 181), segundo o qual não se pode aceitar a narrativa homérica como histórica porque muitos fatos apresentados nos Poemas são inverificáveis; porém, não se deve negar a historicidade de alguns passos, e a credibilidade dada aos Poemas deve ser calculada com base nas evidências que temos de alguns fatos narrados, como, por exemplo, o escudo descrito como semelhante a uma torre e o capacete de presas de javali, ambos os objetos micênicos confirmados pela arqueologia. Com uma opinião semelhante sobre o mundo micênico evocado nos Poemas, Pierre Vidal-Naquet (2001, p. 23ss) afirma que, embora haja referência à presença de elementos da cultura micênica nas epopeias, isso não significa que os Poemas a descrevem fielmente. Não há, por exemplo, a menção ao ambiente palaciano dominado por um rei nem se menciona a importante atividade dos escribas para aquela sociedade. Claude Mossé tem uma posição menos rígida quanto ao uso dos Poemas Homéricos como fonte de pesquisas históricas. A historiadora (1989, p. 19) inicia o primeiro capítulo do livro A Grécia Arcaica: de Homero a Ésquilo examinando o uso que o historiador pode fazer dos Poemas Homéricos que, como toda obra literária, contêm em si elementos históricos. Com base nessa afirmação, a autora (op. cit. p. 89) explica a origem de algumas práticas gregas na época clássica, como, por exemplo, a aplicação da justiça mediante a deliberação de um conselho de anciãos. Esse julgamento descrito em Ilíada XVIII, no passo referente às duas cidades gravadas no escudo de Aquiles, acontece na ágora com a presença do povo. O episódio narrado pode, na argumentação da autora, ser usado por historiadores para explicar que as ações judiciais do período clássico já eram esboçadas nos Poemas Homéricos. Carla M. Antonaccio (1994, p. 389- 410) faz observações sobre o ciclo que se estabelece no uso dos Poemas para interpretação de dados arqueológicos e a leitura dessas obras literárias como fonte de explicação desses achados. A autora observa, acertadamente, que a discussão entre filólogos e arqueólogos está longe de chegar a um acordo. 26

questão. No entanto, o avanço das pesquisas arqueológicas não permitiu a identificação total da sociedade narrada nos Poemas Homéricos com a sociedade micênica porque muitos achados dos sítios micênicos se apresentavam claramente diferentes das informações encontradas nas epopeias sendo, muitas vezes contraditórias11. Se, por um lado, a identificação da sociedade micênica com a homérica é problemática, por outro, não há como negar que, em Ilíada e Odisseia, se descreve uma sociedade de heróis guerreiros cujas raízes se encontram no passado micênico, muito embora não haja em tais obras um retrato fiel daquela civilização, desaparecida há, pelo menos, quatro séculos antes da composição dos Poemas. Essa é, pois, a posição de M. I. Finley, Claude Mossé e Pierre Vidal-Naquet ,entre outros. A consequência do manuseio de elementos antigos na composição das epopeias constitui um anacronismo porque aspectos culturais do século VIII a. C., data provável da composição dos Poemas Homéricos, são colocados como contemporâneos a elementos do mundo micênico. O uso do carro de combate, conforme descrito em Ilíada IV, 419-49, e as poucas referências ao ferro12, encontradas em ambos os Poemas, são exemplos de práticas historicamente anacrônicas. A respeito do primeiro exemplo, observa M. Finley (1982, p. 43) que Homero, com certeza, tinha notícias dos carros de combate; porém, não sabia como eles eram empregados nem qual era sua utilidade na guerra. Nos Poemas, os heróis utilizavam o veículo apenas para o transporte até o campo de batalha onde empreendiam o combate a pé, como, por exemplo, em Ilíada IV, 419-49, passo em que Diomedes salta armado do carro para combater os Troianos. Essa observação do autor, porém, é verdadeira só em parte, porque o conselho de Nestor aos condutores de carros, em Ilíada IV, 292-309, é narrado por alguém que, provavelmente, conhecia esse tipo de combate. Assim, embora não haja, na época da composição dos Poemas, o uso efetivo do carro de combates, o narrador, talvez lançando mão de fórmulas herdadas da tradição poética oral, em alguns episódios, acerta ao descrever a técnica de combate com a utilização desse recurso bélico.

11 A dimensão do problema da incompatibilidade entre alguns relatos das epopeias e as descobertas arqueológicas pode ser apreendida em afirmações de autores entre os quais se podem citar M. I. Finley (1982, p. 41), Pierre Vidal-Naquet (2001, p.19-30) e Maria Helena da Rocha Pereira (1994, p. 56-67). A bibliografia especializada sobre o assunto é vasta. Os autores citados fazem uma exposição bastante objetiva visando, principalmente, a fornecer informações que ajudem na leitura das epopeias. 12 Confira, por exemplo, Il. IV. 510; VI, 473 e Od. XIX, 211. 27

Quanto ao uso do ferro, Maria Helena da Rocha Pereira (1993, p. 66) chama a atenção para o fato de o escudo de Aquiles, em Ilíada XVIII, 468-75, ter sido descrito como obra de um ferreiro, pois Hefestos o forja como se ele fosse de ferro, prática do período protogeométrico (1025-875 a. C.) ou geométrico (875-700 a. C.). Todavia, o deus ambidestro orna a arma com incrustações de ouro, prata e bronze empregando estilo técnico micênico. Pode-se concluir, com base na observação da autora, que a descrição da confecção do escudo é feita por alguém que conhecia bem o funcionamento da forja13. No mundo micênico, rico em ouro, mas carente de ferro, o relato soaria estranho. Outros exemplos de elementos historicamente diversos são o capacete de presas de javali descrito em Ilíada X, 260-71 e as armas reluzentes de bronze cujo epíteto contém o termo xa/lkeov, (de bronze), como em Ilíada III, 317, “xa/lkeon e1gxov” (brônzea lança). O fenômeno de sobreposição de estratos culturais e históricos diversos deve, necessariamente, ser levado em conta na investigação acerca da escatologia na poesia épica grega posto que só assim se podem estabelecer quais são as concepções contemporâneas à data de composição das epopeias e, ainda, se há, ou não, uma continuidade de concepções do post-mortem, isto é, se há um prolongamento de conceitos do mundo micênico nos Poemas Homéricos14, na poesia hesiódica e na poesia não hexamétrica do período arcaico. Particularmente, importante para a compreensão da escatologia na civilização micênica é o cuidado que essa sociedade dava a seus mortos. Com efeito, o fato de os Micênicos não terem legado registros literários escritos para a posteridade faz com que o conjunto de sepulturas descoberto em Micenas no final do século XIX seja a principal fonte de informação sobre o post-mortem desse povo. A esse respeito, porém, cumpre observar, como propõe John Chadwick, a necessidade de cautela nas conclusões com base na arqueologia:

Mas suponhamos que nós tivéssemos que inferir o conteúdo do Cristianismo por meio da escultura, decoração, mobília e de plantas de umas poucas igrejas, sem a ajuda de textos escritos. Seria simplesmente perigoso tentar isso só com de recursos materiais. Até poucos anos atrás, este era o único caminho

13 Claude Mossé (1989, p. 141) afirma que, a partir do século XI a. C, houve o aparecimento de objetos e armas de ferro e a consequente substituição do bronze por esse metal mais resistente. 14 Significativo para a compreensão da tese da continuidade de elementos minoico-micênicos na cultura grega posterior ao século XIII a. C. é a obra de Martin P. Nilsson, seu grande defensor. Entre a variedade de livros desse importante autor, alguns são bastante incisivos na tese da continuidade, como, por exemplo, Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in the Greek Religion, cuja primeira edição foi feita em 1927, e The Mycenaean Origin of , publicado em 1932. 28

de aproximação da religião micênica (CHADWICK, 1975, p. 84. Tradução nossa).

Essa afirmação do autor evidencia que a falta de registros escritos sobre as concepções religiosas dos Micênicos permite ao pesquisador somente deduzir hipóteses. Por essa razão, antes de passar à descrição dos túmulos e às teorias do post-mortem elaboradas por pesquisadores que se fundamentam em vestígios materiais, convém esclarecer a que povo pertenciam as habitações fúnebres descobertas nos sítios arqueológicos, e como viviam os que tiveram esses suntuosos túmulos como morada derradeira.

2. 2 O povo micênico

Em Ilíada, Micenas é denominada, normalmente, com a fórmula15 poluxru/soio Mukh/nhv16 (Micenas rica em ouro), e Heinrich Schliemann, o primeiro a escavar essa localidade, ao encontrar túmulos na área, não hesitou em afirmar que um deles, no qual o corpo depositado ostentava uma máscara de ouro, pertencia a Agamêmnon. Deste modo, a arqueologia parecia reiterar a fórmula empregada referente à cidade governada pelo Atrida Agamêmnon. Posteriormente, porém, demonstrou-se que os túmulos descobertos não pertenciam à família do chefe dos Aqueus17. Um dos problemas decorrentes dessa descoberta, conforme observa Chrysanthi Gallou (2002, p. 6), foi que se praticou, por um longo período, uma arqueologia de tesouros na qual não se prestava quase nenhuma atenção a objetos de pouco valor, como, por exemplo, a cerâmica encontrada. Entre esses artefatos desprezados pelos arqueólogos do final do século XIX, certamente, se encontravam sinetes, iguais aos que Sir Arthur Evans observara serem vendidos por mercadores de antiguidades em

15 Milman Parry (1987, p. 272) apresenta o seguinte conceito de fórmula: “A fórmula nos Poemas Homéricos pode ser definida como um grupo de palavras que regularmente se emprega sob as mesmas condições métricas para expressar uma determinada ideia essencial”. Albert B. Lord (2003, p. 30), pupilo e continuador da teoria formular comumente denominada Parry/Lord, observa que a definição dada por Milman Parry eliminou a ambiguidade da repetição de modo que, desde então, se obrigou a considerar o grupo de palavras repetidas e não as cenas repetidas que as fórmulas transmitem. Não se trata de interpretar as repetições como cenas repetidas em episódios diferentes, mas sim de analisá-las como recursos de composição oral que se valiam do estilo formular. 16 Vide Il. VII, 180; XI, 46 “h2 au0to\n basilh~a poluxru/soio Mukh/nhv” (o próprio rei de Micenas, rica em ouro). Esta é a fórmula completa empregada no poema. 17 Existem excelentes sínteses sobre a relação problemática entre as descobertas arqueológicas de Heinrich Schliemman e a identificação com personagens e eventos dos Poemas Homéricos. Sobre o assunto, vide, por exemplo, as obras de Maria Helena da Rocha Pereira (1994), Pierre Vidal-Naquet (2004) e Claude Mossé (1989), citadas na bibliografia. 29

Atenas, e também tabuinhas de Linear B, descobertas mais tarde pelo mesmo pesquisador, no palácio de Cnossos, em Creta (CHADWICK, 1996, p. 179). Sobre a desconsideração a esses pequenos objetos, aparentemente sem importância, por parte dos arqueólogos, John Chadwick faz a seguinte observação posto que, em Micenas, também foram encontradas tabuinhas:

Mas é lícito imaginar que, se Schliemann tivesse sabido o que procurar, poderia ter sido o primeiro a descobrir as tabuinhas de Linear B. É fácil acontecer que muitos fragmentos de tabuinhas, quando eram retirados do solo, tenham sido jogado fora como peças de cerâmica grosseira pelos primeiros escavadores, sem lhes dar muita atenção. (CHADWICK, 1996, p. 183)

A descoberta das tabuinhas de Linear B e a decifração da língua nelas grafada constituem um dos mais importantes eventos para novas interpretações acerca da sociedade micênica18 que demonstrava graus de complexidade e sofisticação considerados, segundo Sir Arthur Evans (CHADWICK, op. cit., p. 178), impossíveis sem a existência da escrita, embora Heinrich Schliemann não tivesse encontrado nada neste sentido em Troia ou Micenas. Vale lembrar que as significativas descobertas de tabuinhas de Linear B em Micenas só aconteceram em 1952, quando o arqueólogo inglês A. J. B. Wace escavou fora dos muros da cidade em casas que aparentemente pareciam ter sido ocupadas por altos membros da nobreza palaciana (CHADWICK, op. cit., p. 183). A decifração do Linear B foi levada a cabo pelo estudante amador Michel Ventris, auxiliado por John Chadwick19, professor de Letras Clássicas em Cambridge, e publicada por eles em um artigo intitulado Evidence for Greek Dialect in the Mycenaean Archives, em 1953, no The Journal of Hellenic Studies (CHADWICK, op. cit., p. 185- 96). Nesse artigo de assunto complexo, o linguista expõe exaustivamente os métodos utilizados no deciframento e os resultados obtidos entre os quais podem ser citados os dados da morfologia nominal exemplificados com formas de genitivo20:

18 M. I. Finley (1988, p. 13) observa que nas tabuinhas de Linear B está grafada uma língua falada notoriamente nos palácios em Micenas, Pilos e Argos. Para o autor, as populações que chegaram àquela região falavam um protogrego e ajudaram a moldar a civilização micênica, tecnicamente muito avançada. Pondera o pesquisador que, apesar da importância da decifração daquela escrita ter demonstrado o registro de um dialeto grego, há muito tem se exagerado a respeito desse evento. 19 As informações sobre o deciframento do Linear B foram colhidas no artigo de John Chadwick A Linear B e Escritas Correlatas, traduzido por Sérgio Medeiros. 20 O exemplo citado apenas compara elementos da morfologia nominal presentes na língua grafada na Linear B com a língua grega. O artigo é vasto, complexo e contém vários exemplos que permitem a identificação de um dialeto grego utilizado no período micênico. 30

Esta é a declinação regular de nomes que terminam em -o, permanecendo inalterados no dativo. Dadas as nossas regras de ortografia, -o -ojo -o podem ser equiparados com a declinação a grega em –o; -ov -oio -w| (ou -oi como em Arcádio). O final do nome -jo é freqüente nesta classe dando origem à terminação característica -jo-jo, que é sempre genitivo onde quer que seja encontrada (VENTRIS e CHADWICK, 1953, p. 93.Tradução nossa).

Portanto, a língua que está registrada nas tábuas, segundo John Chadwick, é um dialeto grego. De modo assertivo, afirma o especialista (1975, p. 61) que, embora houvesse algumas hesitações em aceitar categoricamente tal afirmação, não podia existir nenhuma dúvida consistente sobre esse fato. Acerca dessa questão segue uma pergunta do linguista: “Mas o povo que as escreveu era grego?”. A resposta é positiva. O autor sustenta sua afirmação considerando a quantidade de nomes com significado em grego atribuídos a homens e mulheres porque do total de palavra grafadas nas tabuletas 60% são nomes de pessoas: Alexandra, Theodora, Amphimedes, Eumenes e Opilimnios entre outros. A pertinência do questionamento do pesquisador inglês sobre a identidade do povo que escreveu o grego do Linear B encontra eco na afirmação de Claude Mossé acerca do espinhoso ofício do historiador da Grécia antiga:

Ora o problema que se coloca àquele que se considera historiador da Grécia é particularmente irritante; pode ser resumido de uma maneira muito simples: quando começa a Grécia, e, por conseguinte o meu trabalho, ou ainda quem são os gregos? Digamo-lo sem rodeios para começar: a questão parece insolúvel no estado actual dos nossos conhecimentos e assim vai permanecer sem dúvida ulteriormente (MOSSÉ, 1994, p. 44).

Sobre a identificação dos escribas de Linear B com o povo grego, John Chadwick (1975, p. 61) é de opinião que, se o termo “grego” for entendido somente como falante de língua grega, sem nenhum nacionalismo anacrônico21, sem dúvida, os Micênicos podem ser considerados gregos. Observa-se que a identificação do povo helênico como falante de língua grega22, como sugere o estudioso, é atestada em obras de autores da Antiguidade, como, por

21O conceito de nação é uma invenção moderna e seria equivocado e anacrônico aplicá-lo ao povo grego antigo. A Grécia constitui-se como nação a partir de sua independência, em 1821, após o longo período de domínio do Império Otomano. 22 Aparentemente, nos Poemas Homéricos, parece não haver o uso da língua como fator de identificação dos guerreiros liderados por Agamêmnon. Convém, no entanto, observar que Ross A. Shawn (2005, p. 299-316) inicia um considerável artigo sobre o -helenismo na época arcaica, afirmando que esse tema provoca um grande desacordo entre as opiniões, pois há uma tendência em considerar que o 31

exemplo, em Heródoto, (I, 56-8), que inicia sua explicação sobre a origem do povo helênico considerando o interesse do rei Creso em conhecer as regiões mais poderosas da Grécia. O dominador lídio reconhece que a Lacedemônia e Atenas estavam em primeiro lugar em poderio e, que, outrora, os Lacedemônios pertenciam ao ramo helênico, e os Atenienses ao pelásgico. O povo helênico, conforme Heródoto, sempre fez uso da mesma língua: “to\ de\ 9Ellhniko\n glw/sshi me/n e0pei/te e0ge/neto, ai0ei/ kote th~i au0th~i diaxra~tai, w9v e0moi\ katafai/netai ei]nai” (“...e o mundo helênico, desde que surgiu, como me parece, sempre fez uso da mesma língua”). Alguns estudiosos se têm dedicado a compreender esse relato do historiador. Edward M. Anson (2009, p. 5-30), ao discutir a etnicidade grega, chama a atenção para os cinco traços apontados por Heródoto como determinantes dessa identidade étnica. São eles: (1) origem ancestral comum, (2) cultura similar, (3) religião partilhada, (4) raça comum e (5) língua similar. Esse último aspecto, frequentemente, é utilizado pelo historiador para determinar os traços particulares do povo grego. Para o pesquisador, portanto, a língua comum era o critério decisivo quanto à determinação da identidade helênica. A fim de ratificar suas afirmações, Edward M. Anson cita um trabalho de Edith Hall no qual a autora considera que nenhum outro povo definiu tão claramente a língua como determinante de sua própria identidade como o grego. A autora citada (1991, p. 6-7) argumenta que a consciência de identidade dos Gregos nasce no século V. a C. com o claro objetivo de autoafirmação diante dos Persas. O conceito de pan-helênico, segundo a autora, seria marcado pela oposição entre falantes de língua grega e os heterófonoi. Edith Hall é de opinião que, embora essa oposição já se encontre esboçada em Ilíada, ela só se tornará uma ideologia com as guerras pérsicas. A guerra produz o senso de identidade coletiva polarizando gregos e bárbaros. A noção de que os Gregos se identificavam como falantes de uma mesma conceito pan-helênico só teria surgido no período clássico. O autor, porém, valendo-se do principal elemento da fundamentação sobre a identidade do povo grego, isto é, a língua grega, procura examinar as origens do pan-helenismo em Ilíada e Odisseia, embora deixe claro que na poesia épica grega raramente se encontram problemas de comunicação entre falantes de línguas diferentes porque Aqueus e Troianos se comunicavam sem problema algum. Há, porém, um dado para o qual Ross A. Shawn chama a atenção e denomina como pan-aqueu, ou seja, a unidade linguística dos Aqueus em oposição à diversidade de línguas faladas pelos e0pikou~roi (aliados) dos Troianos. Três são os principais passos considerados pelo autor a fim de fundamentar suas afirmações: Il. 2.802–6, 2.867, 4.433–38; Od. 19.172–77. Para o referido autor, essa unidade linguística, que representaria a origem comum dos Aqueus, é um proto-pan-helenismo. Valendo-se da tese de Gregory Nagy que afirma terem sido os Poemas Homéricos fixados na forma que os conhecemos por volta do século VIII a. C, Ross A. Shawn compreende que, em Ilíada e Odisseia, há concepções que eram próprias dessa época. Desta forma, ele conclui que o pan-helenismo esboçado na épica grega nessa oposição entre o pan-aqueu e os barbarófonos, aliados dos Troianos, evidencia o seu início. 32

língua em oposição clara aos falantes de uma língua diversa ganharia, portanto, força nesse contexto de guerra. O critério de identificação usado por Heródoto está presente tanto na poesia lírica quanto na trágica. Na lírica, por exemplo, pode citar-se, como primeira referência ao critério linguístico para a identificação de um povo, a elegia de Sólon, poeta que legislou a fim de resolver graves problemas oriundos de injustiças praticadas contra cidadãos de Atenas. No fragmento 36 West, versos 11-2, o poeta legislador apresenta a mesma concepção empregada pelo historiador, ao afirmar que reconduziu a Atenas aqueles que tinham sido vendidos como escravos e não mais falavam o idioma materno, sinal de identidade ateniense: “glw~ssan ou0ke/t’ 0Attikh\n i9e/ntav w9v a2n pollaxh~| planwme/nouv.” (“não mais falavam o dialeto ático, depois de terem errado por muitos lugares”). Do mesmo modo, o tragediógrafo Sófocles, em Filoctetes 234-5, apresenta a língua grega como elemento de identificação da origem pátria de alguém, no passo em que o herói saúda os visitantes que acabam de desembarcar, e afirma que eles seriam muito bem-vindos se fossem Gregos. Após Neoptólemo responder em língua grega, o desafortunado Filoctetes, identificando-se com o hóspede, diz: “w] fi/ltaton fw/nhma: feu~ to\ kai\ labei~n pro/sfqegma toiou~d’ a0ndro\v e0n xrw/nwi makrw~i” (“ó fala muitíssima querida, ouvir a saudação de um homem (grego) depois de tanto tempo”)23. Apesar de a língua grega ser um fator de grande importância para a identificação do povo grego, há uma série de elementos que devem ser considerados ao se tentar responder questões sobre a identidade e os costumes desses falantes de grego porque muitas práticas do período histórico da Grécia começaram a ser esboçadas em uma fase anterior, que remonta à gênese do povo helênico cuja formação é bastante complexa e discutida. A gênese dos Gregos é, portanto, o ponto de partida para o estudo de vários aspectos da cultura desse povo, resultado do amálgama de povos diversos realizado durante séculos. A compreensão de alguns de seus elementos referentes aos costumes funerários deve ter claro esse postulado. Mais uma vez, o testemunho dos autores antigos demonstra a importância de se voltar à Grécia pré-literária a fim de que se possa perceber como o assunto já era tratado na Antiguidade. A esse respeito, vale evocar novamente a opinião de Heródoto

23 Tradução nossa. 33

que concebia não serem os Gregos de outrora os únicos habitantes do continente; havia, segundo o historiador, povos de origem diversa habitando a região:

h3ntina de\ glw~ssan i3esan oi0 Pelasgoi/, ou0k e1xw a0treke/wv ei0pei~n: ei0 de\ xreo/n e0sti tekmairo/menon le/gein toi~si nu~n e1ti e0ou~si Pelasgw~n tw~n u9pe\r Turshnw~n Krhstw~na po/lin oi0keo/ntwn, oi4 o3mouroi/ kote h]san toi~si nu~n Dwriu~si kaleome/noisi (oi1keon de\ thnikau~ta gh~n th\n nu~n Qessaliw~tin kaleome/nhn), kai\ tw~n Plaki/hn te kai\ Skula/khn Pelasgw~n oi0khsa/ntwn e0n 9Ellhspo/tw|. oi4 su/noikoi e0ge/nonto 0Aqhnai/oisi, kai\ o3sa a1lla Pelasgika\ e0o/nta poli/sma to\ ou1noma mete/bale: ei0 tou/toisi tekmairo/menon dei~ le/gein, h]san Pelasgoi\ ba/rbaron glw~ssan i9e/ntev. ei0 toi/nun h]n kai\ pa~n toiou~to to\ Pelasgiko/n, to\ 0Attiko\n e1qnov e0o\n Pelasgiko\n a3ma th~| metabolh~| th~| e0v 3Ellhnav kai\ th\n glw~ssan mete/maqe. kai\ ga\r dh\ ou1te oi9 Krhstwnih~tai ou0damoi~si tw~n nu~n sfeav perioikeo/ntwn ei0si\ o9mo/glwssoi ou1te oi9 Plakihnoi/ sfi/si de\ o9mo/glwssoi: dhlou~si/ te o3ti to\n h0nei/kanto glw/sshv xarakth~ra metabai/nontev e0v tau~ta ta\ xwri/a, tou~ton e1xousi e0n fulakh~|.

Que língua os Pelasgos falavam, não posso dizer seguramente; mas se é permitido conjecturar com base nos dados existente ainda hoje dos Pelasgos─ que habitam a cidade de Krestona para lá dos Tirrenos e que eram, outrora, vizinhos dos que hoje são chamados Dórios (e habitavam, então, a terra que hoje se chama Tessalótida), também dos Pelasgos que colonizaram, no Helesponto, Placia e Escílaca. Eles tornaram-se vizinhos dos Atenienses, e todas as outras cidades que eram pelasgas mudaram o nome─, se é permitido conjecturar por meio dessas coisas, eram os Pelasgos falantes de uma língua bárbara. Pois bem, se tudo isso era o Pelasgo, o povo ático também sendo Pelasgo aprendeu a língua simultaneamente com a mudança para a Hélade. Na verdade, nem os Crestoniatas são falantes da mesma língua de qualquer um dos que agora se lhes avizinham nem os habitantes de Placia são falantes da mesma língua deles; eles mostram que levaram a característica da língua quando mudaram para essas regiões, eles mantêm isso em observância. (Hist. I, 57)

R. A Mcneal, no artigo How did Pelasgian Became Hellenes: Herodotus I. 56-58. Illinois Classical Studies, comenta alguns problemas desse texto com base na crítica textual, e quatro aspectos são considerados por ele: emendas ao texto, a estrutura narrativa, o vocabulário, a gramática e a própria lógica de Heródoto. Para o autor, a melhor interpretação sobre a estrutura deste passo é a lição apresentada por Hude (apud R. A Mcneal) que em, sua edição crítica, mostra claramente uma estrutura em quiasmo a fim de ressaltar as diferenças entre: Lacedemônios versus Atenienses; Dórios versus Jônios; Pelasgos versus Helenos e migratórios versus sedentários. Uma das maiores dificuldades do texto, afirma R. A. Mcneal, consiste em determinar a disputada questão presente na sentença: Pelasgw~n tw~n u9pe\r Turshnw~n Krhstw~na poli/n oi0ke/ontwn (são Pelasgos que habitam a cidade dos Tirrenos). Considerando que Heródoto sempre usa o termo turshnoi/ para se referir aos Etruscos, o estudioso observa que, se Krotw~na for lido no lugar de Khstw~na, se verá claramente 34

que o historiador grego alude à Cretona, na Etrúria. Consequentemente, pode-se pensar que os Pelasgos, segundo R. A. Mcneal, em um passado distante, migraram para a Itália onde ainda no V século a. C mantinham a língua nativa que não era grega. Vale mencionar também o pesquisador A. G. Laird (1933, p. 97-119) que discutiu esse passo do Livro I baseando-se em quatro assertivas, a saber; (1) a Grécia uma vez foi chamada Pelásgia (2); os Pelasgos eram bárbaros; (3) os Atenienses eram Pelasgos de origem que foram helenizados; (4) havia Pelasgos na Ática depois de os Atenienses terem sido helenizados. O autor afirma que seu objetivo no artigo citado, é mais gramatical que histórico, isto é, ele visa a esclarecer os equívocos decorrentes da tradução da oração “Pela/sgoi\ su/noikoi e0ge/nonto 0Aqhnai/oisi” sem intenção de responder questões relativas à história. Para o autor, os Pelasgos, na opinião de Heródoto, eram um povo da Grécia e não do norte do mar Egeu, como alguns estudiosos interpretaram. Convém lembrar, ainda, o testemunho de Tucídides que, no primeiro livro de História da Guerra do Peloponeso, também menciona a heterogeneidade da formação do povo grego. Nessa passagem da obra, merece atenção, particularmente, a referência do historiador às migrações ocorridas na região e a influência por elas provocada na formação dos helenos. O autor é de opinião que a terra e o povo que, no seu tempo, se denominavam Hélade e Helenos não eram chamados assim outrora:

[2]Fai/netai ga\r h9 nu~n 9Ella\v kaloume/nh ou0 pa/lai bebai/wv oi0koume/nh, a0lla\ metanasta/teiv te ou]sai ta\ pro/terá kai\ r9a|di/wv e3kastoi th\n e0autw~n a0polei/pontev biazo/menoi u9po/ tinwn ai0ei\ pelio/nwn. [...] [3]dhloi~ de/ moi kai/ to/de tw~n palaiw~n a0sqe/neian ou0x h3kista: pro\ ga\r tw~n Trwikw~n ou0d\n fai/netai pro/teron koinh~| e0rgasame/nh h9 (Hlla/v: dokoi~ moi~, ou0de\ tou1noma tou~to cu/mpasa/ pw ei]xen, a0lla\ ta\ me\n pro\ 3Hllhnov tou~ Deukali/wnov kai\ pa/nu ou0de\ ei]nai h9 e0pi/klhsiv au3th, kata\ e1qnh de\ a0lla\ te kai\ to\ Pelasgiko\n e0pi\ plei~ston a0f’ e9autw~n th\n e0pwnumi/nan pare/xesqai, 3Hllhnov de\ kai\ tw~n pai/dwn au0tou~ e0n th~| Fqiw/tidi i0sxusa/ntwn, kai\ e0pagome/nwn au0tou\v e0p w0feli/a e0v ta\v a1llav po/leiv, kaq’ e9ka/stouv me\n h1dh th~| o9mili/a| ~llon kalei~sqai 9Hllenav, ou0 me/ntoi pollou~ ge xro/nou e0du/nato kai\ a3pasin e0knikh~sai.

[2] De fato, a região que hoje se chama Hélade não era com certeza povoada antigamente, mas existindo migrações nos primeiros tempos, cada um deixava facilmente sua terra, forçado por alguns sempre mais numerosos. [...] [3] Isso também revela, sobretudo, uma fraqueza dos antigos, sobretudo essa: antes da Guerra de Troia, a Hélade evidentemente não realizava nada em comum. Parece-me que toda ela não tinha, de modo algum, esse nome, mas, antes de Heleno, filho de Deucalião, também não havia precisamente essa denominação e, segundo os povos, o Pelasgo sobretudo fornecia o nome deles o mais possível. E também quando Heleno e seus filhos se tornaram poderosos na Ftiótida e foram conduzidos em socorro de outras cidades, de acordo com cada povo em particular, graças agora à reunião, foram chamados 35

Helenos, nome que certamente não pôde. Durante muito tempo, prevalecer sobre todos.[...] Tucídides. I, 2.1; 1,3.1-2

Essas informações fornecidas pelos dois historiadores gregos consistem nos registros das primeiras tentativas de explicar o surgimento do povo grego a partir do amálgama de povos diversos em sucessivas migrações pela região. A concepção da origem gentílica dos gregos, baseada nesse movimento de povos diferentes que entravam pelo continente, conforme John Chadwick (1994, p. 2), tornou-se a tese mais tradicional desde que foi apresentada pelos linguistas Paul Kretschmer e Hoffmann no final do século XIX. Esses estudiosos afirmam que houve levas sucessivas de povos que penetraram na região que constitui a Grécia. Porém, diferente de Heródoto e de Tucídides, segundo os quais os migrantes possuíam línguas próprias, os referidos linguistas eram de opinião que esses povos eram falantes de diferentes dialetos da língua grega. Embora a teoria tenha sido bastante defendida, José Ribeiro Ferreira ao mencioná-la, faz a seguinte observação sobre a complexidade e os limites da tese proposta por Paul Kretschmer e Hoffmann:

Essa doutrina que tem em Hoffmann e Kretschmer os seus principais representantes explica a origem dos dialectos gregos da época histórica pela chamada teoria das <>. Os gregos teriam entrado na Península Balcânica em três vagas sucessivas, cada uma delas com seu dialecto próprio, e ter-se-iam sobreposto uma às outras, provocando um conjunto de interferências que originaram o vasto leque dos dialectos da época histórica. Os Iônios teriam sido os primeiros a chegar: durante o Heládico Médio, a Grécia teria sido habitada por povos de fala iônica. Em seguida, teria surgido o vasto grupo dos Aqueus, que estariam na base da opulenta civilização micénica e falaria uma língua que teria dado origem ao eólico e ao arcado- cipriota; após a decifração do Linear B, o micênico é identificado ou aparentado com o aqueu, de que o eólico e o árcado-cipriota seriam relíquias. Por último, teria avassalado a Grécia a vaga dos Dórios, chegada nos fins do Heládico Recente e responsável pela destruição da civilização micénica. Ultimamente, os estudos da dialectologia grega, bem como os dados da arqueologia, têm levado os especialistas ao abandono desta teoria, ou à convicção de que é necessário pôr-lhe sérias reservas e limitações. (RIBEIRO FERREIRA, 1992, p. 16)

Convém, portanto, em razão das controvérsias, tecer alguns comentários sobre a teoria das levas sucessivas de “gregos” penetrando no continente, uma vez que, como se pode notar na afirmação do referido pesquisador, já há algum tempo não existe unanimidade quanto à aceitação da tese das levas migratórias. 36

Durante a Antiga Idade do Bronze (ca. 2350-1075), conforme Daniel Pullen (2008, p. 19), em numerosas regiões do continente grego, surgiram sociedades de pouca complexidade que foram solapadas e tiveram termo no final do Heládico Antigo (ca. 2350-1500). Os eventos ocorridos nessa fase estariam relacionados com a chegada dos gregos à região. Nas palavras do autor: “estas mudanças estão conectadas com a Coming Greeks24 (chegada de falantes indo-europeus) como precursores do Micênicos da tardia Idade do Bronze”. A afirmação do autor já aponta para um sério problema: a existência de falantes de língua grega fora da Grécia. Nisso reside, indubitavelmente, o problema central da tese das vagas migratórias. Ao analisar o problema das levas migratórias de falantes de grego, John Chadwick (1994, p. 2), afirma que não há evidências para sustentar a hipótese da existência da língua grega fora da Grécia, pois os mais antigos documentos escritos nesta língua são datados do século XIV a. C. de modo que tal fenômeno só pode ser atestado em tempos históricos. A argumentação do autor parte da inexistência de registros da língua grega anteriores ao período de expansão quando as colônias se estabeleciam em solos distantes para os quais os colonos levavam os elementos culturais da cidade de origem, entre eles a língua que, somente a partir desse evento migratório, é encontrada fora do território da Hélade. A fim de ratificar suas críticas sobre a teoria das levas migratórias, o linguista faz o seguinte comentário:

A visão tradicional de ondas de guerreiros falantes de gregos marchando através dos Bálcãs para subjugar a Grécia é antiga e foi sustentada pelo trabalho do iminente linguista australiano Paul Kretschmer tanto ao longo quanto ao fim do século XIX. A forma em que essa teoria foi mais anunciada é que houve três ondas de invasores, normalmente chamados Jônios, Aqueus e Dórios, depois a clássica divisão dos dialetos gregos. Até foi possível datar arqueologicamente essas invasões. Os Jônios seriam o povo que entrou na Grécia por volta do século XX a. C, os Aqueus por volta do XVI século, os Dórios por volta do século XII (CHADWICK, op. cit., p. 2. Tradução nossa).

O autor nota, no entanto, que nessa teoria há um problema intrínseco que constitui o seu ponto frágil, isto é, a inteligibilidade entre os Jônios e os Dórios. O espaço temporal considerável entre essas duas levas migratórias dificilmente faria com que os recém-chegados compreendessem aqueles que se encontravam estabelecidos

24 A expressão Coming Greeks, propositalmente, deixada sem tradução é um termo técnico que encerra uma série de problemas e merece algumas considerações como se verá adiante.

37

no continente há séculos. O linguista parece observar que seus argumentos não são isentos de críticas e pondera que os problemas apresentados por ele não seriam suficiente para promover a rejeição da tradicional teoria das levas migratórias. Ele argumenta, porém, que suas observações permitem tentar outra explicação sobre a formação do povo grego e sua língua25. John Chadwick (1994, p. 2), então, propõe como hipótese, que a língua grega não existiu antes do século XX a. C, mas que se constituiu em solo grego, do amálgama de populações nativas locais com os invasores que falavam uma língua diferente. Observa, porém, o autor, que determinar qual era a língua falada pelos migrantes é um problema dos mais complexos. Ainda que deixe claro e não negue, em momento algum, que o grego seja uma língua indo-europeia, John Chadwick (op. cit., p. 2) considera duvidoso que os invasores, denominados por ele de “protogregos”, falassem um puro “proto-indo- europeu” embora tenha sido possível determinar muitas características dessa língua falada por eles. Alguns autores, entretanto, são contrários à tese do linguista inglês. Entre eles, pode ser citado Robert Drews que, em 1988, publicou The coming of the Greeks: Indo- European Conquest in the Aegean and the Near East, obra na qual procura demonstrar a existência de uma língua grega fora da Grécia e, em consequência, tenta provar que havia um povo grego que entrou pelo continente grego subjugando pela força os povos nativos. Robert Drews inicia sua tese resumindo brevemente como o problema da origem dos Gregos foi abordado por historiadores, filólogos e linguistas ao longo do tempo. Considera o estudioso (1988, p. 3), desde a posição radical de George Grote, no final do século XIX ─ para o qual as perguntas sobre a origem e a identidade dos gregos seriam objeto apenas de especulação, porém não de investigação ─, até a teoria do tronco linguístico Indo-europeu que fora esboçada em 1786 por Sir William Jones, fundamentada e trazida à luz por Franz Bopp com a publicação, em 1833, da obra Vergleichende Grammatik. Desde então, a questão sobre a origem do povo grego foi abordada numa perspectiva linguística. Este é, pois, a linha de argumentação que

25 Cumpre observar que John Chadwick compartilhava da tese das levas migratórias. Em um artigo publicado em 1956 cujo título é The Greek Dialects and Greek Pre-History, ele expõe sua opinião sobre o assunto. Só posteriormente o autor abandona a tese tradicional e propõe a teoria abordada nesse capítulo. 38

Robert Drews adota em seu livro, ou seja, para ele, os falantes de indo-europeu eram Gregos recém-chegados ao continente no Heládico Médio. (2000 a. C a 1600 a. C) Após determinar sua linha de investigação sobre estes invasores e identificá-los com os indo-europeus nos primeiros capítulos de seu livro, Robert Drews (1988, p. 74ss) passa a expor algumas de suas características culturais e tecnológicas, mormente em relação ao aparato bélico, isto é, o carro de combate26 e o uso do cavalo. Estes dois importantes elementos possibilitaram a conquista do território e o domínio da população nativa. Acrescente-se, ainda, que esses invasores beligerantes eram de tipo físico mais robusto que os habitantes nativos da Grécia do Heládico Médio. Tal é a conclusão a que chega Robert Drews (1998 p. 158) tendo em vista a compleição dos corpos encontrados nos túmulos micênicos, corpos que, para o autor, são restos mortais de indo-europeus estabelecidos no continente27. Deve-se atentar, no entanto, que, de acordo com essa tese, há identificação entre indo-europeus e Micênicos e, posto que estes últimos, pelo menos alguns deles, escreviam, a língua grafada seria um proto-indo-europeu, fato que aventa a hipótese, segundo o estudioso, da existência de uma língua grega fora da Grécia. A tese de Robert Drews, portanto, se opõe à de John Chadwick. Após a exposição de dados que permitiram apreender que, já na Antiguidade, a língua era um fator de identificação do povo grego, bem como as controvérsias sobre sua formação, convém retomar a pergunta inicial proposta por John Chadwick sobre a identidade daqueles que escreveram as tabuinhas de Linear B.De fato, levando-se em conta o registro linguístico, não há como negar que os Micênicos eram gregos porque eram falantes que tinham como língua nativa um dialeto grego, o primeiro registrado e legado como evidência para a posteridade. Essa será, pois, a tese adotada nesse capítulo a fim de demonstrar, com base nos costumes desse povo, o tratamento que

26 Robert Drews (1988, pp. 136-57) expõe de maneira clara a controvérsia que imperou entre os pesquisadores sobre o uso do carro de combate pelos indo-europeus. Após argumentar contra aqueles que negavam este fato, o autor conclui o seguinte: “Em resumo, a superioridade do carro de combate explica suficiente e congenitamente o que os falantes PIE (e seus vizinhos cocheiros) foram hábeis para fazer nos meares dos séculos do segundo milênio a.C. e por que o fizeram.” 27 Note que Walter Burkert (1995, p. 40) tem a mesma opinião de Robert Drews: “Por outro lado, é precisamente a língua que conduz à pré-história: a língua grega pretence ao grupo das línguas indo- europeias e a reconstrução científica de uma língua indo-europeia originária contém em si o postulado da existência de um povo de Indo-europeus no quarto ou terceiro milênio. Contudo, a tarefa assim definida de colocar numa relação inequívoca os resultados da investigação linguística e os achados da pesquisa dos solos, parece revelar-se insolúvel: nem a primitiva pátria dos indo-europeus, nem a penetração dos gregos indo-europeus na Grécia, nem mesmo a muito posterior invasão dórica, historicamente comprovada, pode ser demonstrada irrefutavelmente na base dos achados nas escavações, da cerâmica, ou das formas de inumação.”. 39

davam aos mortos e, consequentemente, suas possíveis concepções sobre o post- mortem.

2.3 Os Micênicos e o mundo dos mortos

As concepções sobre o cuidado que os Micênicos davam a seus mortos foram, segundo Chrysanthi Gallou (2002, p. 2), por muito tempo, orientadas pelas pesquisas de George E. Mylonas, segundo o qual não existia, naquela civilização, nenhum respeito pelo morto após a decomposição do cadáver e, consequentemente, não se lhes prestava qualquer tipo de culto. Conforme a autora, dessas afirmações, dada a ampla aceitação da mencionada tese entre os estudiosos, não havia motivação para novas indagações sobre o tema, e o cenário das pesquisas só começou a mudar com exames do sarcófago de Tânagra que possibilitavam novas interpretações sobre as práticas funerárias do povo micênicoe do culto aos mortos. Ao contrário da tese de George E. Mylonas, Chrysanthi Gallou (op. cit.; p. 3) afirma que existia culto aos mortos no Heládico Tardio IIIA-B, ou seja, entre 1425/1390/1190/1180 a. C, e os Micênicos não consideravam seus ancestrais apenas corpos inertes e decompostos, mas entidades que habitavam entre as esferas do humano e do espiritual, invocadas com a finalidade de proporcionar benefícios à comunidade. O exame de material arqueológico, como a cerâmica, a arquitetura, a iconografia e o Linear B, fundamenta a tese da autora que, em seu trabalho, trata de questões referentes ao post-mortem e à sobrevivência da alma. Convém, pois, explicitar os principais argumentos da tese de Chrysanthi Gallou que escolheu como objeto de análise os principais tipos de túmulos utilizados pelo povo micênico, a câmara funerária e o thólos. Chrysanthi Gallou (op. cit. p. 23) considera que a tradicional afirmação de que os Micênicos não praticavam culto aos mortos evitava ou rejeitava qualquer discussão contrária. No entanto, comenta a estudiosa que a descoberta de um altar (brótos) circular, aparentemente ligado a cerimônias fúnebres, na área da sepultura do ciclo A, em Micenas, impõe uma interpretação adversa à opinião comum. A autora passa, então, a examinar e a explicar por que o túmulo circular A se tornou evidência para uma melhor compreensão do estabelecimento da veneração aos ancestrais no Heládico Tardio III A-B na Grécia. 40

A pesquisadora inicia a discussão do tema com a elucidação das dificuldades encerradas no termo ritual, já que ele engloba uma série de significados e funções. Chrisanthy Gallou (2002, p. 25) observa ainda que, infelizmente, no ambiente da arqueologia, o ritual é definido pela ausência de uma explicação funcional ou racional, ou seja, se algum ato ou prática não pode ser explicado nesses termos, ele é definido como um ato ou prática ritual. Chrisanthy Gallou considera o termo ritual um clichê: A palavra ritual é um clichê, ao mesmo tempo, ambicioso, obscuro e também revelador. Nas disciplinas Arqueologia, Antropologia e Sociologia, o ritual tem sido tomado como um propósito, uma atividade humana pré-ordenada realizada em um tempo particular e em um espaço com o explícito propósito de mudança social ou do estado emocional quer do indivíduo quer do grupo. A realização organizada das atividades estava destinada a influenciar poderes espirituais ou drw/mena, coisas feitas, lego/mena, coisas ditas ou cantadas, deiknu/mena, coisas exibidas ou contempladas em uma epifania. Rappaport define ritual – ambos, humano e animal, religioso e secular – como atos convencionais de exibição através dos quais um ou muitos participantes transmitem informações sobre seus estados psicológico, fisiológico ou sociológico ou para eles mesmos ou para um ou mais participantes (GALLOU, 2002, p. 25. Tradução nossa).

Após apresentar a dificuldade inerente ao termo ritual, a autora se detém na expressão “ações rituais” que Matz, em Rituelle bewirkung, (apud Chrysanthi Gallou, op. cit., p. 26), define como ações cujos propósitos são a comunicação e a apelação entre os humanos e as divindades a fim de que estas intervenham no mundo material. Essas ações são caracterizadas pela periodicidade e pela intencionalidade envolvendo também um comportamento ritual que se manifesta no espaço e no tempo, isto é, ocorre de tempos em tempos e em espaços religiosos ou ambientes de significados simbólicos e com o manuseio de objetos representativos. Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 28) , a fim de dar esclarecimentos, elenca também os quatro critérios arqueológicos estabelecidos por Renfrew para determinar o ritual religioso que, ao que parece, é identificado como “ação ritual”. São eles: o foco de atenção, a zona fronteiriça entre este mundo e o outro, a presença da divindade e, por fim, a participação e as oferendas. Assim, lançando mão desses critérios, a autora avança na investigação de seu tema, o culto dos mortos. Por considerar que a essência do culto religioso é a realização de atividades expressivas de adoração a um ser transcendente, praticadas por um celebrante religioso, Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 28), utilizando-se dos critérios arqueológicos estabelecidos por Renfrew para determinar o ritual, propõe-se analisar o termo culto, 41

antes de considerar a prática do culto aos mortos realizada pelos Micênicos. Porém, não obstante sua proposta, a autora não se preocupa em dar uma definição hermética ao termo culto, limitando-se a elencar uma série de hipóteses feitas por pesquisadores que estabelecem critérios arqueológicos para o reconhecimento da atividade de culto. Assim, com base na sinopse de Parker Pearson, a referida estudiosa afirma que frequentemente a realização (performance) do ritual revela o mundo espiritual, as divindades ou os ancestrais e serve para declarar a verdade sobre o significado da vida e da morte. O ritual lida, pois, com realidades que estão além do momento da sua realização no tempo cronológico28. Parker Pearson (apud Chrysanthi Gallou, op. cit. p. 26) ainda estabelece a distinção entre vivos e mortos, mundano e ritual, sagrado e profano e enfatiza que o ritual de adoração envolve atos de propiciação e reconhecimento de um poder transcendental superior. Considerando-se da crítica feita por Wright aos critérios estabelecidos por Renfrew que, segundo o referido pesquisador (apud Chrysanthi Gallou, op. cit., p. 28), cria um método de investigação e identificação de locais de adoração sem validade para o estudo da religião enquanto sistema estrutural de crenças, Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 28) pondera que os estudos arqueológicos de Wright sugerem que os arqueólogos podem reconstruir o passado religioso de um povo observando e reconhecendo seu comportamento em relação à religião. Esse comportamento incluiria concepções e valores que quase sempre são representados por símbolos com formas físicas em objetos, em espaços de adoração e na configuração de outros espaços sociais. Essas manifestações físicas são objetos de pesquisas dos arqueólogos que lidam com religião em seus estudos. Essa é a linha de orientação que Chrisanty Gallou adota porque seu trabalho é, antes de tudo, arqueológico. Por esse motivo, a autora, conforme se mencionou anteriormente, escolheu como objetos de análise os principais tipos de túmulos utilizados pelo povo micênico, a câmara funerária e o thólos. Uma vez estabelecido que o culto consiste em atividades de adoração e o rito, uma parte, talvez a mais importante, do culto, e assentado que o comportamento religioso de um povo necessariamente deixa vestígios físicos, Chrysanti Gallou (op. cit., p. 29) considera que a ênfase na dicotomia corpo/alma e também as crenças advindas

28 Mircea Eliade considera que toda ação ritual é a atualização de um tempo passado, ou seja, no momento da realização do ritual, o tempo cronológico não tem significado porque, na verdade, na performance, há a materialização real do tempo em que o primeiro ato ritual ou a realidade que ele evoca foi transmitido. 42

da percepção destes dois elementos motivaram pesquisas nas áreas de religião e de culto aos ancestrais. O primeiro autor que relacionou a morte com a divindade foi Evemero29, (apud Chrysanthi Gallou, 2002, p. 29), autor siciliano do século IV a. C. Sua doutrina ficou conhecida como euvemerismo que defendia a adoração aos deuses como oriunda do culto aos mortos, ou melhor, as divindades às quais se prestavam culto outrora foram mortais com poderes extraordinários em vida e foram mais honrados que os mortos comuns. As consequências dessas honrarias acentuadas foram, pois, a imortalização, a divinização e a transferência para a esfera do sobrenatural. Assim, segundo Frazer (apud Chrisanty Gallou, 2002, p. 30), essa adoração dos mortos pressupõe antes a crença na imortalidade da alma ou, pelo menos, sua sobrevivência por algum tempo depois do sepultamento, doutrina que se torna muito aceita no século XIX, como bem observa a autora:

Porém, a crença do século XIX de que da adoração ao ancestral, associada, como ela é, ao fato universal da morte, se originou da forma arquetípica de religião primitiva formadora da raiz de todas as religiões, há muito está ultrapassada. Estudos posteriores sobre o tema têm proporcionado estimulantes pontos de acesso a problemas relacionados com a religião, sociedade e cultura, e também com uma associação inescapável entre escatologia e teologia. Estudiosos colocaram uma distinção entre ritos funerários e adoração ao morto. Hardacre argumentou que os ritos de morte, incluindo os ritos mortuários e funerários, são considerados como pertencentes à esfera do culto ancestral somente quando os ritos memoriais, estendidos além do período da morte e da disposição do cadáver, são realizados como função regular do grupo que reina; quando os ancestrais são coletivamente e regularmente alçados ao estado de culto por seus descendentes que agem como membros do grupo que reina, tais práticas são consideradas como culto ao ancestral (GALLOU, op. cit., p. 31.Tradução nossa).

No entanto, a fim de que não haja confusão ou coincidência entre as duas concepções, cumpre observar a diferença existente entre os ritos funerários e o culto aos mortos, pois os pesquisadores estabelecem entre esses dois conceitos uma nítida diferença, como bem assinala Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 31).

29 Evemero pertencia à Escola Cirenaica fundada por Aristipo. Guilhermo Fraile (1965, p. 277) faz o seguinte comentário a respeito de sua doutrina filósófica: “Ainda que não seja de todo certo que Evemero de Messina (317-297) tenha pertencido à Escola Cirenaica, sem dúvida seu escrito i9era\ a0nagrafh/ significa também uma atitude negativa diante da religião. Evemero não negava a existência de toda divindade, porém explicava a origem dos deuses da mitologia atribuindo-a ao fato de que alguns homens antigos, ilustres por sua sabedoria, por seu poder ou por suas façanhas, chegaram a ser considerados como divindades” (Tradução nossa). 43

Segundo a pesquisadora, Hardacre (apud Chrysanthi Gallou, 2006, p. 31) defende a tese de que aos ritos aos mortos, dos quais os rituais funerários e os rituais mortuários são parte, se processam somente enquanto há a exposição do corpo por ocasião do sepultamento ou quando o grupo ao qual o morto pertencia faz memória deste evento. Quando os descendentes do morto conferem a este ancestral um status de culto regular, constitui-se, então, o culto ao ancestral. O culto ou os ritos referentes aos ancestrais expressariam uma preocupação com as atividades dos vivos, nas quais o ancestral, alçado a um status sobrenatural participaria das atividades estabelecendo-se, desse modo, uma interação entre vivos e mortos. Como anotou Hardacre, os ritos aos mortos se refeririam apenas às atividades do sepultamento. Ainda a respeito do culto aos ancestrais, Chrysanthi Gallou (2002, p. 31.) menciona Parker Person segundo o qual a formalização do culto ao ancestral é compreendida como a tomada de consciência da presença do morto e de sua expressão em contraste com a transitoriedade da vida natural e o assentamento de um conjunto de crenças relacionadas com a presença e com os poderes do ancestral. Chrysanthi Gallou corrobora a tese de Parker Person do seguinte modo:

Em muitas sociedades, acreditava-se que os ancestrais fossem seres imortais cujas posições ontológicas repousavam entre as esferas humanas e sagradas. Eles podem ser considerados como detentores de poderes equivalentes ao de uma divindade e, portanto, pode lhes ser concedido status de culto e eles podem ser considerados capazes de influenciar a sociedade de uma forma semelhante (GALLOU, op. cit, p. 3. Tradução nossa).

Assim, com base nas teses dos mencionados autores, Chrysanthi Gallou conclui que numa perspectiva cosmológica, a proximidade da reverência ao ancestral com as ideias de alma e de post-mortem está vinculada a uma concepção de herança e de sucessão. O culto aos ancestrais, portanto, daria forma a um sistema religioso no qual as fronteiras entre o religioso e o social seriam tênues.

2.3.1 O culto dos mortos

A investigação empreendida por Chrysanthi Gallou (2002, p. 33) acerca do culto aos ancestrais e do culto aos mortos em Micenas parte da concepção de que essa é uma prática fundamentada em uma crença quase universal. A morte não é o fim de 44

tudo, e o seu significado é desde sempre parte das transformações metafóricas concebidas pela humanidade em relação à vida e à morte. Apoiada nos estudos de Grainger (apud Chrysanthi Gallou, op.cit., p. 33), a autora afirma ainda que há uma relação estreita entre religião e morte porque esta demanda questões de natureza ontológica e teológica sobre o significado, a origem e o propósito da vida. A controvérsia sobre o fato de os Micênicos praticarem ou não o culto aos mortos e, em consequência, de acreditarem na sobrevivência da alma alçada à condição sobrenatural, advém da interpretação de uma estrutura encontrada por Schliemann em 1876 no centro da sepultura IV no Túmulo Circular A em Micenas30. Em razão de suas particularidades, essa estrutura foi interpretada como um primitivo altar para ritos funerários realizados em honra aos que ali se encontravam sepultados (Chrysanthi Gallou, 2002, p. 53). Desse modo, embora a tese de George E. Mylonas, cuja opinião era de que os Micênicos não se interessavam pelos mortos e, em consequência, não praticavam um ritual a eles dirigido, se tenha disseminado e tenha sido defendida por muito tempo, Chrysanthi Gallou afirma o contrário. Seus argumentos sobre o tema são sustentados com base, principalmente, nas evidências arqueológicas e corroborados por concepções elaboradas por antropólogos, arqueólogos e sociólogos.

2.3.1.1 Evidências arqueológicas

As pesquisas sobre o culto aos mortos entre os Micênicos ganham força no século XIX, segundo Chrisanty Gallou (op. cit., p. 34), com a descoberta de um túmulo circular em Micenas, mais especificamente uma estrutura encontrada no local do sepultamento, isto é, um plano cúltico considerado um altar. Essa descoberta levou pesquisadores a questionarem se os habitantes da região já praticavam tais cultos no Heládico Tardio (1500 a 1100 a. C). A autora ainda afirma que, segundo Kavvadias, o culto aos mortos, praticado na cultura minoico-micênica, não ocorria somente nas

30 The controversial theory that the rulers of early Mycenae were commemorated and offered divine honours is principally the consequence of Schliemann's original interpretations. The discovery of the so- called altar, the enshrining of the six royal Shaft Graves with the circular parapet and the special arrangements made in order to include this burial ground with the defence walls have been considered the best evidence for the divine character of those reposed therein. However, objections and doubts have been expressed on the authenticity of the altar and even as regards the reliability of Schliemann's descriptions of the finds, arguments strengthened by the actual lack of the structure and detailed archaeological data (GALLOU, 2002, p. 53). 45

áreas de sepultamento, mas eram praticados também nas casas e seriam motivados pela necessidade de aplacar a ira do morto e também pelo desejo de atrair benefícios. Convém observar que a tese de Kavvadias, conforme mencionada por Chrysanty Gallou, é muito semelhante àquela defendida por Fustel de Coulanges em seu livro A Cidade Antiga:

Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou , o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que essa é a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino (COULANGES, 1961, p. 48).

Fustel de Coulanges, como se pode notar, compreende a morte como o elemento deflagrador da consciência de uma natureza sobrenatural e, consequentemente, também do início do sentimento religioso. O medo dos mortos, para o autor, teria levado o homem a oferecer-lhes preces, em outras palavras, a devotar-lhes culto. O autor, portanto, tem a mesma concepção de Kavvadias, conforme mencionada por Chrysanthi Gallou. Erwin Rohde é outro autor que concebia o medo dos mortos e suas influências no mundo dos vivos considerando, pois, ter sido esse o motivo que levou à cremação dos mortos, principal forma de desfazer-se do cadáver nos Poemas Homéricos. Essa é, pois, a tese do autor (1948, p. 25) segundo o qual entre os gregos existia, outrora, o temor de que as almas dos mortos fossem apegadas ao mundo dos vivos e desejassem viver junto ao antigo domicílio. O autor ainda considera que em algum momento os gregos acreditaram que os mortos pudessem influenciar o mundo dos vivos e que essa crença não se relacionaria com a adoração, mas com o medo. Ora, se havia entre os primeiros gregos a crença de que as almas dos mortos pudessem retornar para o mundo dos vivos, Erwin Rohde (1948, p. 27) conclui que parece lógico deduzir que o culto da alma não se limitava às cerimônias realizadas no momento do sepultamento e que haveria um prolongamento de atividades de culto depois da conclusão dos ritos funerários. A evidência dessa prática é o altar, encontrado no túmulo circular em Micenas, que Chrysanthi Gallou mencionou como o elemento que reconsidera a questão sobre a 46

prática do culto dos mortos entre os Micênicos. A pesquisadora descreve o altar do seguinte modo:

Em seis de dezembro de 1876, Schliemann anunciou a descoberta de uma estrutura elíptica circular de alvenaria na forma de poço que marcava precisamente o centro do Shaft Grave IV no GCA em Micenas. Esse monumento está agora perdido, mas, de acordo com a descrição e os desenhos publicados, essa estrutura oca era construída de quatro a cinco fileiras de pedras presumivelmente não trabalhadas dispostas em um anel duplo medindo um 1,22 centímetros de altura por 2,13 x 1,60 de comprimento e largura. O escavador reconheceu nessa estrutura peculiar um primitivo altar para ritos funerários realizados em honra daqueles que estavam sepultados no Círculo, e assentou sua crença na descoberta de duas lajes retangulares em forma de lápides com cerca de 85 centímetros de altura e 45 centímetros de largura e uma pequena coluna que colocada em posição horizontal debaixo do altar devia servir para marcar o lado da sepultura (GALLOU, 2005, p. 53. Tradução nossa).

Vê-se desse modo, pela descrição feita por Heinrich Schliemann (apud Chrysanthi Gallou, op. cit. p. 53) que a estrutura encontrada pode claramente ser interpretada como destinada à prática do culto dos mortos, que não se restringia ao momento do sepultamento, mas prolongava-se em ações cultuais realizadas naquele local. Essa função foi confirmada por Keramopoullos (apud Chrysanthi Gallou, op. cit., p 53) que descobriu, nas áreas dos túmulos I e IV, buracos escavados na rocha que formavam aberturas entre as sepulturas, nas quais, ocasionalmente, foram encontrados objetos destinados ao culto. Essas aberturas artificiais estavam fechadas com tijolos queimados. O fato de essas aberturas terem sido fechadas com tijolos foi interpretado como a suspensão temporária das atividades de culto aos mortos ali praticados, por ocasião do colapso da civilização micênica, e só retomadas no período arcaico. As interpretações da estrutura encontrada por Heinrich Schliemann têm sido controversas, e o fato de ela ter se perdido torna o problema ainda mais complicado, muito embora, as escavações posteriores, como as de Keramopoullos, apontem evidências de um culto aos mortos, não obstante as mencionadas objeções de George E. Mylonas. Também Tsountas e Manatt (apud Chrysanthi Gallou, 2002, p. 55) compartilham a tese de que o altar encontrado por Heinrich Schliemann era destinado ao oferecimento de libações aos mortos e que as aberturas encontradas nos túmulos 47

eram destinadas ao escoamento de bebidas e sangue de vítimas sacrificadas. Esses líquidos escoariam pelas aberturas até o mundo dos mortos. A função do altar e o prolongamento da ação ritual nele praticada, isto é, do oferecimento de libações destinadas aos mortos depois do sepultamento, foram também defendida por Erwin Rohde:

Sobre o centro da quarta fossa de sepultamento descoberta na fortaleza daquela cidade, identificou-se um altar, que só pode ter sido erguido ali no momento de cobrir e de fechar a fossa. Trata-se de um pequeno altar redondo e oco que não aparece fechado nem por cima nem pela parte de baixo por uma laje. É uma espécie de canal que sai diretamente da terra. O sangue do animal sacrificado ou a mistura formada pelos líquidos que se combinavam para o sacrifício, ao ser derramado pela abertura do altar, fluíam diretamente para debaixo da terra até o morto (ROHDE 1948, p. 27, tradução nossa).

É interessante observar que o referido autor (Erwin Rohde, op. cit., p. 27) afirma que não se trata de um altar destinado ao culto dos deuses, mas sim de um local de sacrifícios para os poderes subterrâneos. Por essa razão, não se pode inferir que o altar ali disposto fosse um lugar de oferenda aos deuses durante os ritos funerários. Acrescenta-se que os deuses referidos são aqueles relacionados com a morte. Emily Vermeule (1981, p. 37) corrobora indiretamente essa tese ao afirmar que as divindades do mundo subterrâneo, Hades e seu agente executor, Thánatos, não possuíam culto de adoração sistemática. A negação de culto a esses deuses e o sentimento negativo que eles provocam são muito bem expressos no verso 312 do canto IX de Ilíada: e0xqro\v ga/r moi kei~nov o9mw~v 0Ai5dao pu/lh|sin. (De fato, semelhante aos portões do reino de Hades, aquele me é odioso). Com essa fala dirigida a Odisseu, Aquiles expressa toda a sua repulsa e ódio (e0xqro\v)31 ao homem que fala algo embora tenha outra intenção em mente. O sentimento de repulsa provocado em Aquiles por um homem dissimulado é semelhante àquele provocado diante do fato de a vida ter a morada dos mortos, a casa de Hades, como destino último. Talvez a repulsa e a rejeição a um culto aos deuses relacionados com a morte tenha feito com que não houvesse na Hélade templos dedicados a Hades ou Thánatos.

31 No verso 62 de Alcéstis, Eurípides deixa evidente o sentimento que a morte causava nos homens e nos deuses quando Thánatos afirma que Apolo lhe conhece o caráter. A essa afirmação responde o filho de : 0exqrou/v ge qnhtoi~v kai\ qeoi~v stugoume/nov. (Sim. Odiosa para os mortais e rejeitada pelos deuses). 48

Caso excepcional parece ter ocorrido em Esparta onde, conforme Robert Garland (1985, p. 59), se tem notícias de um templo erguido para Thánatos. Assim, posto que não existiria adoração aos deuses relacionados com a morte, a estrutura encontrada por Heinrich Schliemann e identificada como um altar só poderia estar vinculada ao culto dos mortos, um local onde oferenda e libações eram destinadas àqueles que ali se encontravam sepultados. Constitui também outra importante evidência arqueológica da crença micênica no mundo dos mortos as imagens do sarcófago de Tânagra porque, conforme Chrysanthi Gallou (2005, p. 92), com ele novas perspectivas de interpretação foram abertas uma vez que nesse artefato está a mais completa representação artística das práticas funerárias micênicas. Ao comentar aspectos da arte micênica, Janice L. Crowley faz a seguinte afirmação:

Um desenvolvimento tardio da técnica de pintura é vista no Heládico Tardio IIIB no sepultamento larnakes (ataúde de cerâmica) originário de Tânagra. [...] O estilo pode ser tosco, mas está cheio de vigor. Algumas cenas se desenvolvem com base em afrescos tradicionais, mas outras mostram novos assuntos. Os novos motivos mais importantes são os temas funerários: o verter libações, a lamentação das mulheres e a próthesis (lamentação do morto no ataúde [...] (CROWLEY, 2008, p. 272. Tradução nossa).

Naturalmente, as cenas descritas não expressam de modo evidente que concepções escatológicas motivavam as práticas representadas nas pinturas, porém elas permitem perceber que o uso de tais motivos denota se não uma preocupação, pelo menos uma tentativa de reflexão sobre os gestos utilizados no rito de sepultamento. Sobre libações, semelhantes àquelas anteriormente mencionadas por Janice L. Crowley, Emily Vermeule, (1979, p. 57) considera que os líquidos eram muito importantes para os mortos, até mais que as oferendas de alimentos. A pesquisadora assenta sua afirmação no fato de que também no sarcófago de Hagia Triada o ato de verter líquidos em favor do morto está bem evidente. A dedução de Emily Vermeule, portanto, é que os mortos eram tidos como seres que tinham sede. A evidência disso seria a palavra di-si-jo-i grafada nas tabuletas de Linear B. Essa palavra, já presente no dialeto micênico, corresponde, para a autora, à di/ya (sede), presente na língua grega posterior. 49

Além das evidências arqueológicas apresentadas, isto é, a estrutura descoberta por Heinrich Schliemann no túmulo IV GCA e as imagens grafadas nos sarcófagos de Tânagra e Hagia Triada, outras mais poderiam ser elencadas aqui, principalmente, imagens e figuras votivas encontradas em túmulos ou em ambientes de ritos funerários. No entanto, por não se tratar de uma pesquisa sobre arqueologia da morte, esse procedimento poderia tornar o texto excessivamente técnico e particularmente enfadonho.

2.3.1.2 Evidências literárias

Se, por um lado, o exame de dados arqueológicos que evidenciam a crença micênica no mundo dos mortos é mais fácil por causa da materialidade dos achados  ainda que nisso haja sempre perigo de excesso de interpretação considerando-se a subjetividade dos pesquisadores e o desejo de comprovar teses variadas , por outro, as evidências literárias apresentam um grau de dificuldade bem mais acentuado porque os Micênicos não legaram registros literários escritos para a posteridade. Assim, resta ao estudioso do tema apenas levantar hipóteses com base em indícios linguísticos e imagéticos. Há duas vias que podem ser seguidas no estudo da literatura micênica: uma denominada linguística, porque busca evidências dessa literatura e coteja suas possíveis características com os Poemas Homéricos, que teriam herdado modelos formulares de cantos aos heróis, e outra que usa as imagens de performance poética como prova de uma literatura que era essencialmente oral. Convém, pois, que essas duas vias sejam esclarecidas. Talvez a propagação da escrita e seu uso no registro da literatura tenha influenciado a busca de vestígios de uma atividade poética micênica que utilizasse os sinais grafados no Linear B. Diferente, porém, do que ocorreu com os textos descobertos no Oriente Médio escritos em cuneiforme, o Linear B, decifrado por Michel Ventris e John Chadwick, não revelou textos literários de natureza alguma.

A escavação de palácios no Oriente Próximo revelou imensos arquivos de tabuinhas, muito maiores e mais detalhadas do que quaisquer outras oriundas da Grécia micênica. Também foram encontrados entre elas anais, quando não, verdadeiras histórias, correspondência diplomática, tratados e mesmo textos religiosos e literários. A Linear B não produziu nada dessa espécie, e poder-se- ia duvidar que esse sistema de escrita fosse adequado a tais propósitos, ele parece ter sido delineado unicamente com o intuito de escrever registros, uma 50

forma de ampliar a memória coletiva dos administradores. (CHADWICK, J. 1996, p. 209).

A afirmação de John Chadwick é esclarecedora. De fato, não se verifica nas tabuletas de Linear B nenhum registro literário, o que não significa que os Micênicos não possuíssem uma literatura. O problema é que o termo literatura conduz imediatamente ao conceito de texto escrito. Evidentemente, isso é um equívoco porque o fenômeno narrativo intrínseco à literatura se expressa, primeiramente, de forma oral, e só em um momento posterior, configura-se como texto escrito. As palavras de Monika Fludernik sobre o assunto pontuam bem a questão:

A palavra narrativa, de toda maneira, está relacionada com o verbo narrar. Narrativa é tudo a nossa volta, não só um romance ou um escrito histórico. Narrativa é associada, sobretudo, com o ato de narrar e é encontrada em qualquer lugar em que alguém nos fala alguma coisa: um locutor de notícias no rádio, um professor na escola, um colega de escola no pátio, um passageiro no trem, um agente de notícia, o companheiro de alguém sobre o café da manhã, um repórter de televisão, um colunista de jornal ou o narrador no romance com o qual nos alegramos antes de ir para a cama. Todos nós somos narradores em nosso dia a dia, em nossas conversas com outros, e algumas vezes somos até narradores profissionais (poderia acontecer que fôssemos professores ou comediantes). Há ocasião em que nós até tomamos o papel do narrador, por exemplo, quando lemos [...] (FLUDERNIK, 2009, p. 1. Tradução nossa).

A atividade narrativa é, portanto, em sua essência, oral. Assim, a literatura, em seus primórdios, se apresentava como uma atividade oral. Ora, àqueles que não puderam encontrar no Linear B uma literatura micênica, escrita nos moldes daquela encontrada nas tabuletas de cuneiforme, restava procurar traços da literatura oral na poesia grega escrita representante de uma tradição poética mais antiga, ou seja, nos Poemas Homéricos. Essa busca não visava ao conteúdo narrativo, pois Ilíada e Odisseia apresentam claramente elementos micênicos, mas antes a encontrar nas epopeias traços linguísticos semelhantes àqueles presentes nas tabuletas de Linear B. Essa é, pois, a proposta de T. B. L. Webster que, em seu livro From Mycenaean to Homer, publicado em 1964, examina, no quarto capítulo, cujo título é Mycenaean Poetry, supostas formas gramaticais micênicas empregadas pelos aedos no momento da execução dos poemas ou no momento da composição das epopeias. T. B. L. Webster (1964, p. 93) afirma que as mais interessantes características gramaticais registradas no Linear B são o genitivo, que possui as formas -oio, -ao e - 51

aon e a terminação -phi própria do instrumental. A tendência de evitar as contrações vocálicas também é apresentada pelo autor como um aspecto particular do grego micênico. O autor sustenta que a manutenção dessas formas gramaticais em Homero constitui a evidência de um modelo micênico de poesia e acrescenta: “De qualquer modo, frequentemente, a combinação de uma forma com um tema micênico aponta para a sobrevivência de um fragmento de poesia micênica.”32 (WEBSTER, T.B.L. 1964, p. 93). Ainda são apresentadas pelo citado pesquisador (1964, p. 94) formas léxicas consideradas por ele estranhas no tempo de composição dos Poemas Homéricos. Por esse motivo, foram elas interpretadas como acréscimos tardios feitos por poetas distintos. Essas formas seriam, conforme o autor, por exemplo, glaukw~piv 0Aqh/nh, Go/rgw blosurw~piv, bow~piv po/tnia #Hrh. Porém, embora pudessem ter um conteúdo ininteligível para a audiência do poeta, as duas primeiras fórmulas, anotou T. B. L. Webster, poderiam ser associadas a divindades micênicas que possuíam forma de pássaros. Essa relação estabelecida pelo pesquisador fundamenta-se no fato de os Micênicos falarem um dialeto grego, e a decifração do Linear B permitiu que se descobrisse a origem das expressões acima mencionadas. Observou o estudioso que os adjetivos femininos presentes nas formas citadas referentes a glaukw~piv 0Aqh/nh, Go/rgw blosurw~piv e bow~piv po/tnia #Hrh têm em sua formação vocabular o sufixo - wpiv, que possui a forma masculina –wpv, frequente em nomes micênicos, motivo que levou Leumann (apud T.B.L WEBSTER, op. cit., p. 94) a considerar o nome do herói Glauco um hipocorístico de Glaucopis. Outro argumento apresentado por T. B. L. Webster, a fim de ratificar a existência de indícios de uma poesia micênica nos Poemas Homéricos, consiste em duas frases que poderiam, segundo o estudioso, ser datadas tomando como referência as práticas militares porque as frases se apresentam “estranhamente arcaicas” quando proferidas por Heitor, no momento de enfrentar Ájax, no desafio proposto, conforme os versos 238-9 de Ilíada VII: oi]d’ e0pi\ decia/, oi]d’ e0p’ a0ristera\ nwmh=sai bw=n/ a0zale/hn, to/ moi e1sti talau/rinon polemi/zein: (sei para a direita, sei para a esquerda manejar o escudo de couro curtido de bois, para mim, guerrear é manejar o escudo:). O autor (op. cit., p. 94) afirma que Leumann acertadamente notou, nesses dois versos, a menção a uma nova

32 Tradução nossa. 52

forma de combate, isto é, o combate da falange, retratado no vaso denominado Warrior vase, e, por ser a representação de uma tática militar de um período posterior, os versos seriam tardios. Porém, para Leumann (apud T.B.L. WEBSTER op. cit., p. 94) as formas bw=n e talau/rinon, na verdade, representariam muito mais uma tradição micênica do que um elemento tardio porque elas são registradas em tabuletas de Linear B. T.B.L. Webster (1964, p. 95), considerando ainda fórmulas relativas ao campo semântico da atividade bélica, é de opinião que a expressão koruqai/olov 3Hktwr, (Heitor de elmo de bronze) é um outro indício de poesia micênica na épica homérica. Fundamenta-se o estudioso nas teses de Leumann (apud T.B.L. Webster) segundo o qual esse epíteto de Heitor seria uma variante reduzida, por questões métricas, da fórmula original kekoruqme/mov ai1qopi xalkw=| (elmo de brilhante bronze). O termo koruqai/olov é, pois, na opinião do pesquisador, composto de ko/ruv (capacete) e ai1olov (veloz) , o primeiro termo registrado na grafia micênica, e o segundo pode ser encontrado em Cnossos. T.B.L. Webster ainda nota a existência de outra variante, xalkokorusth/v (coberto de bronze) e observa que os elmos de bronze eram característicos dos Micênicos e, provavelmente não reapareceram até o tardio século VIII a. C. As seguintes palavras do pesquisador não deixam dúvidas sobre sua posição em relação ao tema: “Heitor de elmo reluzente pode seguramente ser aceito como um fragmento de poesia micênica.”. Apesar de sumárias, as formas linguísticas elencadas com base nos Poemas Homéricos, quando comparadas às tabuletas de Linear B, parecem indicar que elas remontam a uma tradição poética micênica. Resta agora saber se é possível ter acesso a concepções escatológicas dos Micênicos considerando essas evidências literárias uma vez que elas são reconstituídas no plano da forma e não do conteúdo. A resposta a esse questionamento é, em um primeiro momento, negativa. Porém, se a via linguística for conciliada com a via denominada imagética, isto é, com a interpretação de imagens que representam o tema, a resposta será positiva. As imagens, com efeito, têm papel importante na interpretação de concepções sobre as quais não há registros escritos. Ao se procurarem evidências da atividade poética entre os Micênicos, o afresco encontrado no Palácio de Pilos, cuja imagem é denominada “O Tocador de lira”, é bastante significativo. O afresco mostra um jovem sentado segurando uma lira de cinco cordas. Imediatamente à sua frente, um pássaro alça voo. A lira também está presente no sarcófago de Hagia Triada, dessa vez 53

empunhada por um cantor que acompanha um cortejo funerário. O exame dessas imagens é muito importante não só para constatação de uma atividade poética em Micenas, mas também para inferir concepções várias, entre elas, a concepção de um post-mortem. Mais uma vez, os Poemas Homéricos são o elo que permite deduções com base na leitura das imagens mencionadas. Ora, a imagem do cortejo funerário, com a presença do tocador de lira, no sarcófago de Hagia Triada, inevitavelmente, remete ao funeral de Heitor descrito nos versos 718-24 do canto XXIV de Ilíada.

4Wv e1faq’, oi9 de\ die/sthsan kai\ ei]can a0ph/nh|. oi9 d’ e0pei\ ei0sa/gagon kluta\ dw/mata, to\n me\n e1peita trhtoi~v e0n lexe/essi qe/san, para\ d’ ei[san a0oidou\v 7 720 qrh/nwn e0ca/rxouv, oi3 te stono/essan a0oidh\n oi9 me\n a1r’ e0qrh/neon, e0pi\ de\ stena/xonto gunai~kev.

Falou desse modo, e eles ficaram à parte e deram passagem ao carro. Mas quando eles entraram no nobre palácio, e em seguida o colocaram em um leito cinzelado, e junto dele fizeram sentar cantores 720 que começaram os trenos, eles que entoavam um canto doloroso, e em seguida as mulheres lamentavam.

Il. XXIV, 718-22

Embora nesses versos não haja referência à lira ou a outro instrumento musical, a imagem do tocador de lira que acompanha o cortejo fúnebre representado no sarcófago de Hagia Triada permite supor que a presença de um músico no momento de profunda lamentação pelo morto, como se depreende da cena homérica em pauta, não é inadequada. Um termo que não pode ter sua importância minimizada nesses versos é qrh/nwn, genitivo plural de qrh~nov. É possível, segundo G. S. Kirk (2000, p. 352), que, nos Poemas Homéricos, esse vocábulo tenha um significado diferente do termo go/ov também utilizado em referência ao lamento fúnebre. Vale lembrar que esse último se relacionava, especialmente, com o lamento de familiares do morto, enquanto qrh~nov, ao canto realizado por músicos profissionais. Sobre esse assunto, Emily Vermeule faz a seguinte afirmação:

Há muitas formas distintas de cantos funerários como trenos, epiquedeo, ialemos e goos. Desses, o goos é o mais intenso e pessoal; seu tema é a 54

memória das vidas partilhadas em comum e a amargura da perda. Ele sobrevive brilhantemente desde Homero até o início do século XX na moirologia rural grega (VERMEULE, 1979, p. 15. Tradução nossa).

Após essa exposição, é possível tentar uma leitura de algumas imagens funerárias relacionando-as com versos de Ilíada e Odisseia, ou seja, podem-se deduzir concepções do post-mortem utilizando as vias linguística e imagética. Nessa última, devem-se considerar não só as imagens pintadas, mas também pequenas esculturas de terracota. Nos Poemas Homéricos, a descrição mais comum da morte é a do abandono do corpo pela yuxh/ que parte para o Hades, como bem exemplifica a passagem de Odisseia em que Euricleia, a mãe de Odisseu, explica ao herói como a morte se processa:

“w4v e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto po/tnia mh/thr: 215 ‘w1 moi, te/knon e0mo/n, peri/ pa/ntwn ka/mmore fwtw~n, ou1 ti/ se Persefo/neia Dio\v quga/thr a0pafi/skei, a0ll’ au3th di/kh e0sti\ brotw~n, o3te ti/v ke qa/nh|sin: ou0 ga\r e1ti sa/rkav te kai\ o0ste/a i3nev e1xousin, a0lla\ ta\ me/n te puro\v kratero\n me/nov ai0qome/noio 220 damna|~, e0pei/ ke prw~ta li/ph| leu/k’ o0ste/a qumo/v, yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai.

Assim falei, e, imediatamente, minha soberana mãe respondeu: Ai de mim, meu filho, o mais desgraçado de todos os homens! De modo algum, te engana Perséfone, filha de Zeus: mas essa é a lei dos mortais, quando qualquer um morre; de fato, não mais os tendões seguram a carne e os ossos, mas domina-os a força poderosa do fogo ardente, 220 quando o thymós primeiramente abandona os ossos brancos, e a psykhé, como um sonho, batendo as asas, se desvanece.

(Od. XI, 215-22)

A análise desses versos ajuda a vislumbrar uma crença post-mortem que remonta ao mundo micênico. Note-se que a forma participial de ai1qw, em genitivo, ai0qome/noio, verso 220, apresenta a desinência –oio que, como propôs T. B. L. Webster, 55

constitui evidência de uma atividade poética micênica que legou formas presentes nas epopeias. Na passagem supracitada, merece atenção também o verso 222: “yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai” em que o sujeito do verbo pepo/thtai é yuxh/ que tem a forma de particípio a0poptame/nh qualificando-o. O significado dessa forma participial de a0pope/tomai, com o preverbo a0po/, refere-se, informa Pierre Chantraine, ao voo dos pássaros, de insetos e também da alma, embora o linguista atribua a este último caso um sentido figurado. É precisamente o significado de voo da alma ou de outros seres de natureza sobrenatural que importa para a compreensão do assunto apresentado, já que os versos descrevem a partida da yuxh/ para o Hades. Ora, a utilização da fórmula a0poptame/nh pepo/thtai quando relacionada com imagens funerárias, como, por exemplo, com a imagem da mulher morta dotada de asas, registrada em um ataúde encontrado em Tânagra, permite afirmar que dotar a psykhé de asas, como ficou claro no verso mencionado, é uma prática micênica que foi herdada e utilizada na poesia posterior e também na iconografia. As palavras proferidas por Anticleia não constituem um exemplo isolado, tendo em vista que nas passagens referentes à partida das psykhaí de Pátroclo (Il. XVI, 856) e de Heitor (Il. XXII, 362) para o Hades se encontram a mesma concepção de alma alada e a mesma fórmula: “yuxh\ d’ e0k r9eqe/wn ptame/nh 1Aido/sde bebh/kei.” (e a psykhé voando dos membros desceu na direção do Hades); a morte de Heitor é descrita com mesma fórmula.33 Outro termo do mesmo campo semântico é ptero/eiv cujo emprego também é formular, como em Ilíada I, 201, no verso que introduz o diálogo entre Aquiles e a deusa Atená que descera do Olimpo a fim de refrear-lhe a ira, e também no início da saudação de Telêmaco à deusa Atená, que assumira a forma de Mentes, rei dos Táfios em Odisseia I, 22: “kai\ min fwnh/sav e1pea ptero/enta proshu/da:” (e falando palavras aladas se dirigiu a ela). Nesses exemplos, fica evidente a atribuição de asas a realidades abstratas, nos casos mencionados, à psykhé e à palavra proferida. Sobre o hábito de atribuir asas à psykhé, ao analisar o sarcófago de Tânagra, Emily Vermeule (1979, p. 65) afirma que nele está a primeira representação artística da psykhé como um ser alado. A autora ainda faz a seguinte afirmação sobre o uso dessas imagens: “Sobre outros dois ataúdes a passagem parece estar apresentada na

33 Sobre a concepção da morte como a separação de um elemento imaterial do corpo confira GONÇALVES, Alex, F. C. A Yuxh/ nos Poemas Homéricos. UFRJ, 2010 56

imagem da alma-pássaro que os egípcios utilizaram por longo tempo e os gregos poderiam ainda considerar apropriada.”. As palavras da autora podem ser consideradas como certas, pois, na imagem do sarcófago de Tânagra por ela mencionada, é inegável a relação ser alado/alma. Do mesmo modo, interpretar a figura do pássaro no afresco denominado “O Tocador de lira” como uma possível representação da psykhé seria perfeitamente legítimo. Sempre haverá discordância entre os pesquisadores sobre o tema do post- mortem. Porém, as reflexões aqui apresentadas conduzem à afirmação de que os Micênicos acreditavam no mundo dos mortos e na sobrevivência da alma. Provas dessas crenças podem ser encontradas, como se comentou, em artefatos arqueológicos e nas evidências literárias herdadas da tradição poética daquele povo. A investigação do tema proposto deve ser cuidadosa para que não se incorra no mesmo problema de Erwin Rohde criticado por Werner Jaeger (1992, p. 70) de fundamentar- se em concepções nitidamente cristãs e fazer interpretações de realidades distintas, no caso específico, à concepção de psykhé nos Poemas Homéricos. Os avanços dos estudos de arqueologia e de outras ciências, como a antropologia, a sociologia, a ciência das religiões, entre outras, colocaram em suspenso as teses tradicionais baseadas principalmente nos escritos de George E. Mylonas que afirmava a inexistência de um culto dos mortos em Micenas e, consequentemente, a inexistência de concepções de realidades post-mortem. Verificou-se, ainda, que os argumentos de Chrysanthi Gallou, contrários à negação de concepções escatológicas, são bem fundamentados em dados arqueológicos interpretados rigorosamente com o auxílio de conceitos de diversos autores. Esse é, pois, o norte da argumentação aqui apresentada: os Micênicos acreditavam no mundo dos mortos, prestavam-lhes culto e consideravam como certa a sobrevivência da alma. Com base nessa assertiva, passar-se-á a considerar como essas crenças estão presentes na poesia posterior, mormente nos Poemas Homéricos e em outros poetas do período arcaico.

57

3 A ESCATOLOGIA NOS POEMAS HOMÉRICOS

Após as discussões sobre a identidade dos Micênicos e de suas crenças em relação ao mundo dos mortos, nessa etapa da pesquisa, analisa-se de que modo as tradições, anteriormente referidas, se apresentam nos Poemas Homéricos, que narram o passado de heróis gloriosos cujas raízes estão fincadas naquela civilização desaparecida com o colapso do sistema palaciano por volta de 1200 a.C34. Esclarecido que, naquele período, os habitantes de Micenas já podiam ser identificados como povo grego porque falavam um dialeto da língua grega, sendo esse o critério estabelecido para determinar-lhes a identidade, não parece conveniente falar de uma sobrevivência de elementos Micênicos na cultura grega, mormente na religião, como propõe Martin P. Nilsson (1949). Parece mais acertado falar de continuidade de certas concepções que atravessaram épocas distintas. Assim, a cultura denominada micênica e os elementos que ela encerra seriam, na verdade, um estágio da cultura grega que se encontrava naquele momento condicionada pelas vicissitudes históricas e geográficas do Heládico Tardio35. Um problema, porém, se impõe de imediato quando se trata de identificar tradições escatológicas mais antigas nas epopeias: como separar as concepções sobre o mundo dos mortos  diretamente relacionadas com o período micênico  e aquelas que são próprias do século VIII a. C, época da composição dos Poemas? Se, por um lado, a arqueologia possibilita uma separação de elementos materiais mais antigos, como, por exemplo, o elmo de presas de javali, descrito em Ilíada X, 260-71, as armaduras e as armas de bronze utilizadas pelos guerreiros de

34 Há um intenso debate sobre os motivos da queda da civilização micênica e, em consequência, as conclusões são controversas. Na opinião da professora Maria Helena da Rocha Pereira (1992, p. 41), a queda aconteceu por causa da invasão dória no século XI a. C. A autora ainda afirma que esse evento deixou rastro na mitologia grega, na história do regresso dos Heráclidas. John Chadwick (1975, p. 3), por outro lado, nega que tenha havido uma invasão dória porque não há evidências arqueológicas para confirmá-la. Ele considera que tais invasores existiram; porém, determinar-lhes a origem é um problema. Se fossem, por exemplo, originários da Trácia, certamente partilhariam características comuns com os Micênicos e facilmente se misturariam a eles sem lhes ocasionar o fim. Situá-los, como alguns fazem, como provenientes do Nordeste do continente, também não soluciona o problema, pois a região não ofereceria um contingente populacional para uma colonização em larga escala sem encontrar resistência dos belicosos senhores de Micenas. Claude Mossé (1994, p. 117) também rejeita a tese da invasão como causa da queda de Micenas. Para o autor, na necessidade de estabelecer uma hipótese para esse fim trágico, dado que a destruição dos palácios foi um fato real, deve-se pensar numa combinação de elementos, como a chegada de invasores, incursões vitoriosas de povos vizinhos, guerra entre senhores, conflitos internos, catástrofes naturais entre outros fatos. José Ribeiro Ferreira, em seu livro Hélade e Helenos: Gênese e Evolução de um Conceito (1993) faz uma síntese das principais teorias sobre o fim da sociedade micênica e apresenta os limites de cada uma delas. 35 Observa-se que o período em questão é dividido em Heládico Tardio A, entre 1425 e1390 a. C. e Heládico Tardio B, entre 1390 e 1180 a. C. 58

Ilíada, canto III, 371, o mesmo não acontece quando se pretende analisar ideias que não podem ser materialmente comprovadas pela inexistência de registros escritos sobre elas. Assim, ao pesquisar as ideias de post-mortem, os conceitos religiosos, a relação entre o homem e as divindades, resta ao pesquisador apenas o terreno das hipóteses. Nos Poemas Homéricos, o tema da escatologia pode ser estudado em duas perspectivas distintas: uma referente ao destino final dos homens sobre a Terra, o tratamento dado aos mortos e o destino final da psykhé, a morada de Hades; e outra concernente às concepções de post-mortem. A primeira encerra algumas dificuldades porque implica considerações sobre os ritos funerários e todas as suas etapas, desde a morte e a preparação do corpo até o destino final do morto, que poderia ser a inumação ou a cremação, esta última predominante nas epopeias. Não menos problemática se apresenta a perspectiva referente ao post-mortem, pois nos Poemas há duas concepções distintas: o encerramento definitivo da psykhé no Hades e a situação intermediária de Polideuces e Castor, que ora habitam o Hades, ora voltam à terra dos vivos. Caso único que merece consideração à parte é a abdução de Menelau que tem como destino final, por dádiva de Zeus, habitar nos Campos Elísios, lugar destinado a uns poucos privilegiados. Sobre a psykhé no Hades há ainda de se considerar duas concepções diferentes, uma em que ela aparece desprovida de consciência, outra em que mantém essa faculdade. O tema da escatologia é, portanto, complexo e apresenta-se multifacetado. Por esse motivo, será ele estudado de forma criteriosa, a fim de que se obtenham informações relevantes acerca dos fins últimos dos homens nos Poemas Homéricos, que foram considerados como um todo, isto é, sem se levar em conta as discussões referentes à partes mais antigas ou às mais recentes de sua composição, ainda que se aceite a tese da coexistência de tradições de épocas distintas nas epopeias, como, por exemplo, a katábasis dos pretendentes no canto XXIV de Odisseia que muitos estudiosos consideram uma interpolação.

3.1 Seres efêmeros destinados à morte

O estudo da escatologia nos Poemas Homéricos, conforme a divisão supracitada deve ser norteado, primeiramente, por duas afirmações: todo homem está 59

destinado a morrer e, consequentemente todas as psykhaí dos mortos têm como morada final o reino de Hades. A morte é um fenômeno natural do qual ninguém escapa por suas próprias forças ou com o auxílio dos deuses. Essa é, pois, a principal concepção sobre o destino final do homem, e é bastante incisiva como se pode perceber nas palavras que a deusa Atená endereça a Telêmaco:

0All’ h] toi qa/naton me\n o9moi/i+on ou0de\ qeoi/ per 236 kai\ fi/lw| a0ndri\ du/nantai a0lalke/men, o9ppo/te ken dh\ Moi~r’ o0loh\ kaqe/lh|si tanhlege/ov qana/toio.

Mas certamente nem os deuses podem evitar a morte comum 236 também para o homem amado quando o Destino funesto da longa morte dolorosa o colher. Od. III, 236-8

É, pois, precisamente, essa condição de seres destinados à morte que constitui a diferença essencial entre homens e deuses. A alteração dessa condição humana parece possível, posto que Zeus, em duas ocasiões, desejou usar seu poder a fim de evitar a morte de heróis:

To\n d’ h0mei/bet’ e1peita bow~piv po/tnia #Hrh: “ai0no/tate Kroni/dh, poi~on to\n um~qon e1eipev. a1ndra qnhto\n e0o/nta, pa/lai peprwme/non ai1sh|, 440 a2y e0qe/leiv qana/toio dushxe/ov e0canalu~sai; e3rd’ a0ta\r ou1 toi pa/ntev e0paine/omen qeoi\ a1lloi.

Imediatamente respondeu-lhe soberana de olhos de vaca: “Terribilíssimo Crônida, que natureza de palavra tu disseste! Um homem que é mortal, há muito fadado pelo destino, 440 de novo desejas libertar da terrível morte? Faze isso, mas certamente todos nós, os demais deuses, não te aprovamos36”. Il. XVI, 439- 43

36 A deusa Hera acrescenta ainda, nos versos seguintes, que se Zeus agisse contra as disposições da Moira, os outros deuses poderiam fazer a mesma coisa, porque também eles possuíam descendência entre os mortais. 60

O mesmo desejo move o pai dos homens e dos deuses, ao observar a iminência do combate final entre Aquiles e Heitor. Naquele momento, Zeus se sensibiliza com a sorte do príncipe troiano e profere as seguintes palavras:

“w1 po/poi, h] fi/lon a1ndra diwko/menon peri\ tei~xov o0fqalmoi~sin o9rw~sin e0mo\n d’ o0lofu/retai h]tor 3Hktorov, o3v moi polla\ bow~n e0pi\ mhri/’ e1khen 170 1Idhv e0n korufh|~si poluptu/xon, a1llote d’ au]te e0n po/lei a0krota/th|: nu~n au]te/ e9 di~ov 0Axilleu\v a1stu pe/ri Pria/moio posi\n taxe/essi diw/kei. a0ll’ a1gete fra/zesqe, qeoi/, kai\ mhtia/asqe h0e/ min e0k qana/toio saw/somen, h]e/ min h1dh 175 Phlei5dh| 0Axilh~i dama/ssomen e0sqlo\n e0o/nta.” to\n d’ au]te prose/eipe qea\ glaukw~piv 0Aqh/nh: “w] pa/ter a0rgike/raune, kelainefe/v, oi]on e1eipev: a1ndra qnhto\n e0o/nta pa/llai peprwme/non ai1sh|, a1y e0qe/leiv qana/toio dushxe/ov e0canalu~sai; 180 e3rd’: a0ta\r ou1 pa/ntev e0paine/omen qeoi\ a1lloi.”

Ai de mim, um homem amado perseguido em torno da muralha eu vejo com meus olhos! Meu coração compadece-se de Heitor que para mim queimou muitas coxas de bois no topo do Ida 170 de muitas escarpas e outras vezes na cidade muito elevada, mas agora, o divino Aquiles em torno da cidade de Príamo, com pés velozes, o persegue Vamos! Considerai, ó deuses, e deliberai se o salvamos da morte, ou se agora, embora seja ele valente, o subjugamos em proveito de Aquiles, filho de Peleu. 175 A ele disse a deusa Atená, de olhos de coruja: ‘ó pai do brilhante relâmpago, da nuvem escura, que disseste! Um homem que é mortal, há muito fadado pelo destino, de novo desejas livrá-lo da terrível morte? 180 Faze isso, mas, certamente, todos nós, os demais deuses, não 61

te aprovamos. Il. XXII, 168-81

Em ambas as passagens, Zeus tende a intervir em favor dos heróis há muito fadados pelo destino: Sarpédon é seu filho, e a sorte do herói comove o Crônida, repreendido por Hera quando deseja salvá-lo; Heitor, diligente e piedoso em suas atribuições cultuais, faz o coração de Zeus lamentar a sorte do príncipe troiano. Nesse último exemplo, é Atená que o repreende severamente. Assim, prevalece, nos dois casos, a ordem do destino. A possibilidade de escapar da morte se apresenta como possível também no episódio em que Calipso oferece a imortalidade a Odisseu, caso o herói decidisse permanecer com ela, como se observa em Odisseia, V, 208-9: e0nqa/de k’ au]qi me/nwn su\n e0moi\ to/de dw~ma fula/ssoiv a0qa/natov t’ ei1hv [...] “(por outro lado, se permanecesses comigo aqui e guardasses esta casa, serias imortal”). A diva não esclarece como esse processo de imortalização ocorreria37, e talvez sua proposta tenha sido só uma tentativa de manter o amado ao seu lado voluntariamente. De antemão, ela sabia que Odisseu devia retornar a sua pátria como lhe anunciara Hermes, conforme a ordem dada por Zeus em Odisseia, V, 30-1: nu/mfh| e0uploka/mw| ei0pei~n nhmerte/a boulh/n,/ no/ston )Odussh~ov talasi/fronov, w3v ke ne/htai (declara a sentença verdadeira para a ninfa de belas tranças, o retorno de Odisseu sofredor, que ele retorne).

3.1.1 A mansão de Hades: o destino final de todos

A segunda afirmação, que deriva diretamente da concepção da efemeridade da vida humana, é que todas as psykhaí dos mortos têm como destino final a casa de Hades. Essa determinação é evidente em dois passos bastante esclarecedores, a saber, a narrativa referente ao destino da psykhaí dos heróis mortos em consequência da ira de Aquiles, conforme Ilíada I, 3 e a fala de Anticleia, mãe de Odisseu que, já no Hades, explica ao filho, que visita o mundo dos mortos, o que ocorre com a psykhé após a morte, em Odisseia XI, 215-22.

“w4v e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto po/tnia mh/thr: 215

37 Os possíveis meios que a ninfa Calíope empregaria para realizar sua promessa foram discutidos na dissertação de mestrado A Yuxh/ nos Poemas Homéricos, 2010, p. 23. 62

‘w1 moi, te/knon e0mo/n, peri/ pa/ntwn ka/mmore fwtw~n, ou1 ti/ se Persefo/neia Dio\v quga/thr a0pafi/skei, a0ll’ au3th di/kh e0sti\ brotw~n, o3te ti/v ke qa/nh|sin: ou0 ga\r e1ti sa/rkav te kai\ o0ste/a i3nev e1xousin, a0lla\ ta\ me/n te puro\v kratero\n me/nov ai0qome/noio 220 damna|~, e0pei/ ke prw~ta li/ph| leu/k’ o0ste/a qumo/v yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai.

“Assim falei, e, imediatamente, minha soberana mãe 215 respondeu: Ai de mim, meu filho, o mais desgraçado de todos os homens! De modo algum, te engana Perséfone, filha de Zeus: essa é a lei dos mortais quando qualquer um morre; de fato, não mais os tendões seguram a carne e os ossos, mas domina-os a força poderosa do fogo ardente, 220 quando o thymós primeiramente abandona os ossos brancos, e a psykhé, como um sonho, batendo as asas, se desvanece. Od. XI, 215-22

Essa viagem empreendida pela psykhé que se desvanece, como bem expressa o verso 222: “yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai”, tem como destino o Hades, morada comum a todos os mortos, como se pode deduzir dos seguintes versos do canto XI da Odisseia:

e0v bo/qron, r9e/e ai[ma kelainefe/v: ai9 d’ a0ge/ronto yuxai\ u9pe\r 0Ere/beuv neku/wn katateqnhw/twn. nu/mfai t’ h0i5qeoi/ te polu/tlhtoi/ te ge/rontev parqenikai\ t’ a0talai\ neopenqe/a qumo\n e1xousai: polloi\ d’ ou0ta/menoi xalkh/resin e0gxei/h|sin, 40 a1ndrev a0rei5fatoi bebrotwme/na teu/xe’ e1xontev: oi4 polloi\ peri\ bo/rqon e0foi/twn a1lloqen a1llov qespesi/h| i0axh~|: e0me\ de\ xlwro\n de/ov h3|rei.

na direção do buraco, um sangue escuro fluiu. Ajuntaram-se 63

as psykhaí daqueles que tinham morrido vindas do Érebo. Noivas, jovens adolescentes e também velhos que sofreram muito, virgens ingênuas e jovens que tinham o ânimo recém-afligido, muitos feridos pelas lanças de bronze, 40 homens valentes com armas sujas de sangue. A maior parte delas ia e vinha de um lado para outro em torno do buraco, com extraordinários gritos de lamentações. E um medo pálido me tomou.

Od. XI, 36- 43

Esses versos deixam claro que ao mundo dos mortos estão destinados todos os mortais independentemente de sexo, idade e causa da morte. Os versos 36 e 37 ai9 d’ a0ge/ronto yuxai/ [...] neku/wn katateqnhw/twn são detalhados no verso seguinte, em que se descreve como se compunha a multidão dos mortos: de jovens e velhos - que normalmente tinham suas vidas abreviadas de modo natural, por doença ou acidente -, e, ainda, de heróis que tombavam nos combates sangrentos, como os guerreiros mortos na guerra de Troia, conforme o verso 3 do canto I de Ilíada : polla\v d’ i0fqi/mouv yuxa\v 1Ai+di prwi%ayen h9rw/wn. (muitas almas valentes de heróis lançou com violência para o Hades). Essa multidão constituía os habitantes do mundo dos mortos sobre os quais reinava Hades. São inúmeras as psykhaí e afloram de todos os lados assustando Odisseu, como assinalam os versos 42-3: a0lla\ pri\n e0pi\ e1qne’ a0gei/reto muri/a nekrw~n h0xh~| qespesi/hn. 0Eme\ de\ xlwro\n de/ov h1|rei. A ideia de uma morada definitiva para os mortos, uma morada que estivesse além do espaço físico, no qual o cadáver se encontrava encerrado, aparece pela primeira vez na literatura ocidental logo no início do canto I de Ilíada, no referido verso 3, em que se narra, como uma das consequências da ira de Aquiles, a descida empreendida pelas psykhaí dos heróis mortos em combate em direção ao Hades. O verbo prwi%ayen é uma forma de aoristo ativo de proi"a/ptw que, em Ilíada, encerra uma noção de violência, como se pode deduzir de sua utilização formular em referência a mortes em contextos de combates, como no verso 55 do canto V: “kai/ min e1gwg’ e0fa/mhn 0Ai"dwnh~i" prwi"a/yein” , no verso 487 do canto VI: “ ga/r ti/v m’ u9pe\r ai]san 64

a0nh\r 1Ai"di proi"a/yei:” e no verso 55 do canto XI: “polla\v i0fqi/mouv yuxa\v 1Ai+di prwi"a/yein”. A concepção do Hades como última morada dos mortos, conforme Emily Vermeule (1979, p. 35), pode ter-se originado dos conjuntos de túmulos rodeados por muros construídos para famílias nobres em palácios fortificados do período do bronze tardio (1550-1200), e a expressão Portões do Hades pode ter surgido da relação entre a ideia de uma morada definitiva dos mortos e esses túmulos que eram a representação em menor escala de um palácio, tendo em vista que, na épica, esse local coletivo de reunião é traçado com base nos modelos palacianos, isto é, uma terra rodeada por muralhas e com um portão central. É possível que a autora tenha razão em sua hipótese, embora não se possa comprovar, de maneira definitiva, a origem dessa concepção, mas o fato de ela estar presente em Ilíada e Odisseia pressupõe uma resposta ao horizonte de expectativa da audiência do aedo. Outra importante afirmação da autora (op. cit. p. 36) é que o Hades é um local destinado a poucos: “O Hades, apresentado na poesia épica como um lugar, é peculiarmente um reino aristocrático e helênico. O poeta grego não pergunta: para onde todos os mortos bárbaros vão?”. Emilly Vermeule, com tom jocoso, atribui essa atitude ao fato de o mundo dos mortos não ser controlado pelo deus Hades, e sim pelos poetas38. Nessa mesma linha de reflexão, coloca-se J. Bremmer (1994, p. 6) para quem a preocupação com a vida post-mortem teria nascido em ambiente aristocrático, entre os mais intelectuais preocupados com o destino pessoal e com o desejo de um prolongamento da vida para além do seu tempo natural. De modo semelhante a Emilly Vermeule, J. Bremmer atribui aos poetas a responsabilidade pela criação e disseminação de ideias religiosas:

[...] Poetas poderiam exercer essa influência porque eles eram apoiados pelos aristocratas que controlavam a vida através de sua hegemonia religiosa, política, social e cultural [...] poetas também regularmente inventavam tradições religiosas, se necessário com empréstimos de povos vizinhos (BREMMER, 1994, p. 6. Tradução nossa).

38 Embora o título do livro de Emily Vermeule seja Aspects of Death in Early Greek Art and Poetry, ao tratar da poesia, a autora, que é arqueóloga, não faz uso de conceitos de teoria literária. Não há, em seus comentários, uma preocupação em explicar os passos utilizados por ela como exemplos, utilizando elementos importantes como a performance, o papel do narrador ou o ambiente de recepção no qual o aedo estava inserido. Se por um lado, como a autora afirma, o poeta controlava o mundo dos mortos, por outro, não se pode negar que esse controle estivesse condicionado, ainda que parcialmente, pela audiência para a qual o poema era executado. Isso significa que o poeta não podia romper bruscamente com o horizonte de expectativa dos ouvintes. 65

Ambos os autores consideram os poetas como aqueles que criariam e controlariam concepções religiosas. São os poetas, portanto, os responsáveis pela disseminação de novas ideias. Essa afirmação deve, no entanto, ser considerada com cautela porque, como observa Christiany Sourvinou-Inwood (1995, p. 2), um autor escreve utilizando códigos que são compartilhados por ele e por seus ouvintes/leitores. Além desses códigos que são linguísticos, autor e audiência possuem um conhecimento geral comum que formaria estruturas cognitivas pelas quais a representação e a apreensão do mundo são possíveis. Essas estruturas, segundo a referida estudiosa, permitem a performance poética, e uma novidade que surgisse como estranha à estrutura ou rompesse com o horizonte de expectativa da audiência poderia não alcançar o efeito desejado pelo poeta. Com essa observação, no entanto, não se pretende negar as posições de Emily Vermeule e de J. Bremmer sobre a introdução de novidades por parte dos poetas e a responsabilidade deles em propagar concepções novas ou aristocráticas. Essa função era certamente inerente à atividade poética, como anota Marcel Detienne, em Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica (1988, p.17), ao pontuar de maneira clara o poder da palavra e a importância dos poetas na transmissão de alguns conceitos, mormente a verdade:

A memória sacralizada é, em primeiro lugar, um privilégio de um grupo de homens organizados em confrarias: assim sendo, ela se diferencia radicalmente do poder de recordar que possuem os outros indivíduos. Nesses meios de poetas inspirados, a Memória é uma onisciência de caráter adivinhatório; define-se como saber mântico, pela fórmula: “o que é, o que será e o que foi”. Através de sua memória, o poeta tem acesso direto, mediante uma visão pessoal, aos acontecimentos que evoca; tem o privilégio de entrar em contato com o outro mundo. Sua memória permite-lhe decifrar o invisível. A Memória não é somente o suporte material para a palavra contada, a função psicológica que sustenta é a técnica formular; é também, e, sobretudo, a potência religiosa que confere ao verbo poético seu estatuto de palavra mágico-religiosa. (DETIENNE, 1981, p.17)

Com efeito, Marcel Detienne aponta um dado imprescindível para a compreensão da atividade poética no período arcaico, o fato de ela ser uma atividade de caráter divino, uma atividade inspirada por uma divindade. Essa característica confere ao poeta credibilidade necessária para que, em sua performance, introduza elementos novos que, como observou J. Bremmer, poderiam ser tomados por 66

empréstimo de povos vizinhos. A concepção de mundo dos mortos poderia, então, ser um desses empréstimos. A comparação de elementos culturais de povos vizinhos ao mundo grego tem grande importância para a compreensão do possível surgimento da ideia de um lugar destinado aos mortos presente na literatura épica grega, apesar da existência de posições contrárias às influências ou aos empréstimos orientais presentes na cultura grega, semelhantes, por exemplo, àquela mantida pelo filólogo Ulrich Wilamowitz- Moellendorff, segundo o qual (apud Walter Burkert, 1995, p. 2) os povos semitas e os egípcios se encontravam em decadência e, embora possuíssem uma cultura secular, não foram capazes de contribuir para a cultura grega, exceto em algumas poucas atividades manuais, implementos de mau gosto, ornamentos ultrapassados e fetiches repulsivos. Alguns autores têm acentuado a contribuição de elementos da cultura oriental na formação da cultura grega, mormente no período micênico. Um dos mais importantes estudiosos da religião grega, o suíço Walter Burkert, escreveu, nos anos1990, um importante livro sobre o assunto cujo título é bastante sugestivo: The Orientalizing Revolution: Near Eastern Influence on Greek Culture in Early Archaic Age. Nessa obra, o autor (op. cit., p. 6) defende a seguinte hipótese:

Este livro segue a hipótese de que, no período de orietalização, os gregos não receberam meramente umas poucas habilidades manuais e fetiches juntamente com novos ofícios e imagens da esfera luvio-aramaico-fenícia, mas foram influenciados em sua religião e literatura por modelos orientais em um grau significativo (BURKERT, 2005, p. 6. Tradução nossa).

Como se pode observar, o autor tem grande convicção da influência oriental na cultura religiosa e literária grega. Particularmente, em relação ao mundo dos mortos, suas palavras merecem ser citadas:

No entanto, na medida em que o conceito homérico de Hades corresponde ao mesopotâmico é impressionante. Uma realidade de lodo e de escuridão que não deixa esperanças para os mortais. Ele é descrito na famosa cena de Gilgamesh quando o fantasma de Enkidu encontra seu amigo, uma cena que pode ter ligação com Homero até no nível literário. O ritual de apaziguamento do morto é realizado de maneira muito semelhante por Mesopotâmios e gregos, preferivelmente através de várias libações: água, cerveja, grãos tostados, leite, mel, creme e óleo na Mesopotâmia; leite, mel, água, vinho e óleo em Ésquilo. Ainda mais peculiar é a importância da água pura, como oferenda para o morto, ‘água fresca’. A inserção de tubos em uma sepultura precisamente para esse propósito é usual na Grécia, mas há uma direta 67

evidência literária dessa prática na Mesopotâmia (BURKERT, 2005, p. 65. Tradução nossa).

A afirmação de Walter Burkert é bastante acertada, principalmente, quando é examinada e comparada com os registros arqueológicos micênicos apontados no primeiro capítulo, mormente as cenas funerárias gravadas nos sarcófagos de Tânagra e Hagia Triada. Os elementos comuns nas libações oferecidas aos mortos feitas por gregos e mesopotâmios, conforme indicados pelo autor, estão presentes no sacrifício que Odisseu executa ao chegar ao Hades:

“e1nq’ i9erh/ia me\n Perimh/dhv Eu0ru/loxov te e1sxon: e0gw\ d’ a1or o0cu\ e0russa/menov para\ mhrou~ bo/qron o1ruc’ o3sson te pugou/sion e1nqa kai\ e1nqa, 25 a0mf’ au0tw|~ de\ xoh\n xeo/mhn pa~sin neku/essi, prw~ta melikrh/pw|, mete/peita de\ h9de/i oi1nw|, to\ tri/ton au]q’ u3dati: e0pi\ d’ a1lfita leuka\ pa/lunon.

Ali enquanto Perimedes e Euríloco mantinham as vítimas, para o sacrifício, eu, depois de sacar a espada pontuda, de junto da coxa, cavei um buraco de um cúbito de ambos os lados. 25 Em torno dele, derramei uma libação para todos os mortos. primeiro de leite e mel, em seguida de doce vinho, e, em terceiro lugar, de água, e, por cima, aspergi uma branca farinha de cevada.

Od. XI, 23-7

Esses versos confirmariam a tese de empréstimo, conforme assegura Walter Burkert, porque neles são elencadas oferendas comuns aos dois povos: farinha, leite, mel, vinho, água pura e outras. Os textos babilônicos cuneiformes decifrados no século XIX, ao contrário do Linear B micênico, registram textos literários que permitem conhecer parte da literatura 68

daquele povo. Particularmente importante para os estudos comparativos que possibilitam conjecturar influências orientais na cultura grega são os poemas de narrativas míticas, definidos por Martin West39 (1999, p. 63) como narrativas em que não há referências históricas embora haja a presença de seres humanos. O autor afirma que não são muitos os textos existentes e elenca 12 deles na literatura suméria incluindo a epopeia de Gilgamesh. Em relação à crença grega e à oriental no mundo dos mortos, Martin West faz a seguinte observação:

Para ambos os povos, gregos e semitas, a viagem da alma para a morte era uma descida. Era dito ‘descer para a terra ou para o mundo subterrâneo. Homero fala de um homem ou sua psykhé descendo (kate/lqein kati/men) para o Hades ou para a casa de Hades; a psykhé de Pátroclo, depois de visitar Aquiles em sonho, foi descendo como uma fumaça para a terra (kata|xqo/v w1xeto). Em acádio, (w)arādu ‘descer’ é usualmente utilizado com a expressão para a terra (Ana erṣeti) ou com nomes mais explícito do mundo subterrâneo, tais quais arallû ou erkalla. (WEST, 1999, p.152. Tradução nossa).

Os comentários do autor são de grande pertinência para o estudo comparativo das concepções escatológicas entre essas duas diferentes culturas que nesse assunto apresentam concepções muito próximas, e, embora Martin West não apresente em seu livro os textos sumérios a fim de ratificar suas afirmações, talvez por serem tais textos extensos e mais voltados a especialistas, os exemplos apresentados são bastante esclarecedores. Ainda tratando do mundo dos mortos, Martin West (1999, p.156) analisa o epíteto eu0rupu/lev utilizado nos Poemas Homéricos para referir-se ao mundo dos mortos e relaciona-o com a literatura mesopotâmica:

39 A. R. George (2000, p. 103), professor de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, afirma que esse livro de M. L. West é de grande importância para a compreensão da presença de elementos orientais na cultura grega. Para ele, alguns elementos são paralelos, como sugere M.L West, e outros são, claramente, empréstimos. O autor considera que um grande problema para esses estudos comparativos é o fato de não haver trabalhos de orientalistas sobre vários aspectos da civilização mesopotâmica que sejam realmente convincentes. Outro problema mencionado pelo autor é que esses estudos comparativos conduzem a caminhos diversos conforme as abordagens e concepções de orientalistas e helenistas. Ainda sobre o livro de M. L. West, Ken Dowden (2001, p. 167) considera-o um monumento ao empirismo e uma demonstração de erudição. O autor coloca a pergunta; “Ex oriente lux?” e a responde demonstrando como a abordagem comparativa se desenvolveu desde o século XIX até a publicação do Livro de M. L. West considerado pelo crítico como acentuadamente filológico porque seu autor é filólogo e se expressa utilizando a linguagem da filologia. Apesar de suas críticas ao método empirista-filológico, Ken Dowden afirma que o livro é uma realização formidável pela quantidade de dados que podem conduzir os leitores a suas próprias reflexões. 69

Em Homero, a casa de Hades é denominada eu0rupu/lev ‘largos portões’, e ele mesmo tem o epíteto pula/rthv, portão de ferrolho, claramente aludindo aos portões através dos quais os mortos passam e que são aferrolhados atrás deles. Tlepolemos diz a seu adversário Sarpédon pensar que mais tarde será derrotado por ele e que passará pelos ‘Portões de Hades’. O fantasma de Pátroclo pede uma forma de funeral rápido para que ele possa passar através deles. Em outros lugares, eles são mencionados como o paradigma de uma coisa abominável. (WEST, 1999, p.156. Tradução nossa.)

As expressões “largos portões” e “portão de ferrolho” , segundo o autor, seriam correntes na literatura suméria e acádia. Ao contrário de Walter Burkert que defende a influência de concepções orientais na literatura grega, Martin West elenca elementos semelhantes e comuns sem, no entanto, afirmar ou negar que em algum momento os povos orientais tenham contribuído para a formação de concepções escatológicas gregas. Como se pode observar, uma investigação sobre a origem do mundo dos mortos na poesia grega é bastante complexa, e postular sua origem oriental apenas somaria à questão outros problemas, pois, como afirma Emily Vermeule (1979, p. 56), os Micênicos pareciam compartilhar com a maioria dos povos mediterrâneos a crença natural de que o morto empreendia uma viagem para o mundo subterrâneo. Ora, essa concepção da morte como uma jornada para o outro mundo era também partilhada pelos indo-europeus, conforme notou o próprio Martin West que, prudentemente, não afirmou que ela fosse uma influência oriental na cultura grega, embora se apresentasse como um traço comum. Em seu livro Indo-European: Poetry and Myth, o autor faz a seguinte afirmação sobre o assunto:

Os mortos são geralmente representados como se fossem para algum lugar. O ‘algum lugar’ mais comum está localizado sob a terra. Este é o corolário lógico do fato de que no quarto milênio, última fase de datação da invasão indo-europeia, em todas as terras que entram em questão séria de um habitat original, a eliminação do corpo era usualmente por inumação. O falecido, que era de terra, retornava a sua mãe Terra. Seu túmulo era uma espécie de casa – casa de argila  como é o termo no hino védico (mrnmáya- grhá-, 7. 89. 1). Na verdade, ela era frequentemente construída na forma de casa ou quarto que era, então, coberto por túmulo (WEST, 2007, p. 387. Tradução nossa).

Essa afirmação é muito importante porque a civilização micênica de origem indo- europeia, conforme se discutiu no primeiro capítulo, não obstante o distanciamento histórico existente desde a chegada dos primeiros indo-europeus ao continente grego até sua configuração como povo distinto, isto é, um povo grego, manteve algumas de suas características originárias. A crença no mundo dos mortos, portanto, não seria 70

influência oriental, e sim uma herança indo-europeia. Desse modo, como os Micênicos realmente tinham essa concepção, a poesia épica a herda e a transmite, como atestam os Poemas Homéricos.

3.1.2 A localização do mundo dos mortos

A localização do Hades não se apresenta unívoca nos Poemas Homéricos, como se pode observar numa leitura mais atenta das epopeias, e, em Ilíada, mais de uma vez, ele é referido como situado nas profundezas da terra. Essa é, pois, a indicação mencionada no canto XXII, vv. 481-3, nos quais, ao lamentar sua sorte em consequência da morte de Heitor, Andrômaca se refere à localização da morada dos mortos com as seguintes palavras:

[...] w9v mh\ w1felle teke/sqai. nu~n de\ su\ me\n 0Ai/da~o do/mouv u9po\ keu/qesi gai/hv e1rxeai,[...]

[...] que ele não me tivesse gerado! Agora para a mansão de Hades, sob as profundezas da terra, tu partes [...] Il. XXII, 481-3 A mesma referência é feita nos versos que narram o encontro da psykhé do recém-falecido Pátroclo com Aquiles. Após a conversa entre os dois heróis, o Pelida, comovido, tenta tocar o amigo com as mãos. Nesse momento, a psykhé retorna ao Hades:

$Wv a1ra fwnh/sav w0re/cato xersi\ fi/lh|sin, ou0d’ e1labe: yuxh\ de\ kata\ xqono\v h0u/te kapno\v 100 w1|xeto tetrigui~a:[...]

Então, falando assim, tentou alcançá-lo com suas mãos, porém, não o segurou; e a psykhé, como uma fumaça, 100 partiu para debaixo da terra soltando gritos agudos.

71

Il. XXIII, 99-101

Em ambas as passagens, a localização do Hades é referida por sintagmas adverbiais diferentes (u9po\ keu/qesi e kata\ xqo/nov), porém com o mesmo significado. A concepção presente em ambas as passagem citadas pode estar diretamente relacionada com a tradição indo-europeia de inumação dos corpos, como se referiu anteriormente lançando mão das afirmações de Martin West; e a disposição do corpo no solo alude ao retorno natural do homem ao seio da Mãe Terra, concepção que, segundo o estudioso, não é evidente nas epopeias. Em Odisseia, à concepção do Hades localizado sob a superfície da terra soma- se outra que o situa para além dos confins do oceano e cujo acesso é possível por via marítima40. Passo bastante significativo da presença de diferentes formas de se chegar ao mundo dos mortos é o diálogo entre Odisseu e Elpenor, companheiro recém- falecido do rei de Ítaca, em Odisseia XI, 55-65.

to\n me\n e0gw\ da/krusa i0dw\n e0le/hsa te qumw~|, 55 kai/ min fwnh/sav e1pea ptero/enta proshu/dwn: “‘0Elph~nor, pw~v h]lqev u9po\ zo/fon h0ero/enta; e1fqhv pezo\v i0w\n h2 e0gw\ su\n nhi+\ melai/nh|.’ “w4v e0fa/mhn, o9 de/ m’ oi0mw/cav h0mei/beto mu/qw|: ‘diogene\v Laertia/dh, polumh/xan’ 0Odusseu~, 60 a]se/ me dai/monov ai]sa kakh\ kai\ a0qe/sfatov oi]nov. Ki/rkhv d’ e0n mega/rw| katale/gmenov ou0k e0no/hsa a1yorron katabh~nai i0w\n e0v kli/maka makrh/n, a0lla\ katantikru\ te/geov pe/son: e0k de/ moi au0xh\n a0straga/lwn e0a/gh, yuxh\ d’ 1Aidose kath~lqe. 65

40 M. P. Nilsson (1949, p. 622) considera que, entre os povos que navegavam, a noção da morte como uma viagem para um lugar remoto além do oceano era natural. Para ele, quando os gregos começaram a navegar pelo Mediterrâneo, essa crença foi combinada com aquela de um mundo subterrâneo dos mortos. O autor considera que esse é o fundamento da concepção que aparece na visita de Odisseu ao Hades. Chrysanthi Gallou (2005, p. 123) também observa que, para os povos cuja subsistência dependia dos recursos do mar ou de um grande rio, era natural que se colocasse o mundo dos mortos nos confins do oceano. Como exemplo, ela cita pequenas réplicas de barcos colocadas em túmulos minoicos. Essas são, frequentemente, interpretadas como um item que facilitaria a viagem do morto ou representaria a atividade que ele exercia em vida. 72

Eu chorei e me compadeci no coração quando o vi. 55 Dirigi a ele palavras aladas dizendo: Elpenor, como vieste para a região das trevas espessas? Vindo a pé tu chegaste antes do que eu com o negro navio. Desse modo, eu falei, e ele respondeu-me lamentando: ‘Ó Odisseu de muitos ardis, filho de Laertes divino, 60 o destino funesto de uma divindade e o vinho admirável me enganaram. No palácio de Circe, dormindo, não pensei em descer indo de volta, pela grande escada, mas caí direto do teto, das vértebras, quebrei o pescoço, e minha psykhé baixou para o Hades. 65 Od. XI, 55-65

Nesses versos, claramente, apresentam-se duas concepções distintas de acesso ao Hades. Elpenor explica sua chegada ao mundo dos mortos pela via mais comum empreendida pelos falecidos, isto é, baixando para o subterrâneo conforme indica a forma verbal kath~lqe, verso 65. Odisseu, por outro lado, chegara àquele local por via diversa seguindo as orientações dadas por Circe que lhe indicara o caminho a ser seguido:

“‘ ]W Ki/rkh, ti/v ga\r tau/thn o9do\n h9gemoneu/sei; ei0v 1Aidov d’ ou1 pw/ tiv a0fi/keto nhi\ melai/nh|.’ “[Wv e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto di~a qea/wn: ‘diogene\v Laertia/dh, polumh/xan’ 0Odusseu~, mh/ ti/ toi h9gemo/nov ge poqh\ para\ nhi+\ mele/sqw, 505 i9sto\n de\ sth/sav, a0na/ q’ i0sti/a leuka\ peta/ssav h[sqai: th\n de/ ke/ toi pnoih\ Bore/ao fe/rh|sin. a0ll’ o9po/t’ a1n dh\ nhi\ di’ 0Wkeanoi~o perh/sh|v, e1nq’ a0kth/ te la/xeia kai\ a1lsea Persefonei/hv, makrai/ t’ ai1geiroi kai\ i0te/ai w0lesi/karpoi, 510 nh~a me\n au0tou~ ke/lsai e0p’ 0Wkeanw~| baqudi/nh|, au0to\v d’ ei0v 0Ai/dew i0e/nai do/mon eu0rw/enta. 73

e1nqa me\n ei0v 0Axe/ronta Puriflege/qwn te r9e/ousin Kw/kuto/v q’, o4v dh\ Stugo\v u3dato/v e0stin a0porrw/c, pe/trh te cu/nesi/v te du/w potamw~n e0ridou/pwn: 515

“Ó Circe, quem conduzirá nossa jornada? à morada Hades nunca nenhum homem chegou em um negro navio. Assim falei, e, imediatamente, respondeu-me a divina entre as deusas: ‘filho de Laertes nascido de Zeus, Odisseu de mil ardis, que não te preocupe o desejo de um piloto para o navio, 505 mas, levantando o mastro e alçando as velas brancas, fica sentado, pois o sopro do Bóreas leva-la-á para ti. E quando atravessares, com o navio, a corrente do Oceano, onde há uma costa baixa e os bosques de Perséfone, grandes álamos e choupos que perdem seus frutos, 510 ali deixa teu barco junto ao Oceano de redemoinhos profundos, e vai tu mesmo para a mansão bolorenta de Hades. Aí para o Aqueronte fluem o Purifligetonte e o Cocito, que é um afluente das águas do Estige; há uma rocha e a confluência dos dois rios retumbantes. 515 Od. X, 502-15

As instruções dadas por Circe a respeito de como chegar ao Hades por via marítima são claras, e o fato de serem tão detalhadas pode significar que consistia em uma novidade em relação ao caminho empreendido por via subterrânea. Outro elemento que contribui para essa interpretação é que, pela primeira vez, nesses versos, o caminho por via marítima é apresentado nas epopeias. Assim, a pergunta que Odisseu faz à feiticeira no verso 501, “w2 Ki/rkh, ti/v ga\r tau/thn o9do\n h9gemoneu/sei;”, parece ter um caráter meramente retórico a fim de preparar a audiência para a novidade a ser introduzida, e a resposta que segue à pergunta: “ei0v 1Aidov d’ ou1 pw/ tiv a0fi/keto nhi\ melai/nh.”, criaria no ouvinte receptividade ao novo tema introduzido, isto é, a existência de outra via de acesso ao mundo dos mortos, uma via que um homem vivo podia trilhar. Ora, se homem algum ainda havia visitado o Hades, estando vivo, as 74

explicações de Circe tornariam evidente para os ouvintes de que modo o arriscado e impossível empreendimento seria possível sem o auxílio de forças sobrenaturais. Essa é a opinião de Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 60) para quem a viagem por via marítima, apresentada como uma informação sobrenatural, indica que a narrativa desse percurso seria uma criação poética e não uma reflexão sobre uma crença já estabelecida entre os ouvintes. A cosmografia grega vigente naquela época é, como defende a estudiosa, o elemento que permitiu ao poeta introduzir a nova concepção, já que se poderia chegar ao mundo suberrâneo seguindo pelo Oeste e cruzando o oceano que envolve a terra, embora o Hades estivesse situado sob a terra. Ainda que não ratifique seu posicionamento com exemplos, a referida estudiosa ressalta que a associação entre a terra dos mortos e o Oeste está presente em muitas culturas. Se essa opinião for considerada segura, a pergunta feita por Anticleia, surpresa de encontrar o filho no Hades, também sugere que a ida de um homem vivo ao mundo dos mortos pode ser uma novidade, pois, se a concepção presente na narrativa fosse corrente para a audiência, a pergunta não teria sentido, e a resposta dada pela própria mãe do herói soaria estranha. Anticleia reconhece que um homem a pé não chegaria até o Hades, a não ser que possuísse um navio bem construído que pudesse fazer frente aos perigos de rios e correntezas e do oceano que ninguém pode transpor41. A recorrência da ideia do navio como veículo de acesso ao mundo dos mortos é um indício da introdução de uma novidade, como sugerem os seguintes versos:

“te/knon e0mo/n, pw~v h]lqev u9po\ zo/fon h0ero/enta 155 zwo\v e0w/n; xalepo\n de\ ta/de zwoi~sin o9ra/sqai. me/ssw| ga\r mega/loi \ kai\ deina\ r9e/eqra, 0Wkeano\v me\n prw~ta, to\n ou1 pwv e1sti perh~sai pe/zon e0o/nt’, h2n mh\ tiv e1xh| e0uerge/a nh~a.

“meu filho, como chegaste até a região de trevas espessas estando vivo? 155 É difícil para os vivos contemplar essas coisas. De fato, no meio há grandes rios e terríveis correntes, primeiro, o Oceano,

41 As palavras de Anticleia remetem àquelas proferidas por Aquiles em Ilíada I, 155-7. Nesses versos, o herói fala sobre a dificuldade de acesso a sua pátria, Ftia, à qual se chega cruzando as montanhas sombrias e o mar retumbante que só com muito custo poderia ser vencido a fim de se chegar a terra. 75

o qual, de modo nenhum, é possível alguém cruzar estando a pé, se não tiver um navio ligeiro.

Od. XI, 155-9

A viagem para o Hades, porém, requer uma interferência sobrenatural. Observa- se que, nas instruções dadas por Circe, nem Odisseu ou qualquer outro homem pilotaria o navio. A diva explica ao herói que a presença de um piloto que conhecesse o caminho e a direção a ser tomada não devia preocupá-lo; “mh/ ti toi h9gemo/nov ge poqh\ para\ nhi\ mele/sqw:”. A viagem de Odisseu para o mundo dos mortos, portanto, não seria possível caso ele se valesse meramente de forças humanas; a intervenção divina era essencial para o sucesso do empreendimento, concepção ratificada nos primeiros versos do canto XI que narram o início da viagem. Desse modo, depois de içadas as velas, o barco foi guiado pelo vento (th\n de/ ke/ toi pnoih\ Bore/ao fe/rh|sin ), insuflado pela feiticeira Circe, vento que enche as velas e impulsiona o navio em direção aos confins do Oceano onde se situa o Hades.

h9mi~n d’ au] kato/pisqe neo\v kuanoprw|/roio 6 i1kmenon ou]ron i3ei plhsi/stion , e0sqlo\n e9tai~ron, Ki/rkh eu0plo/kamov, deinh\ qeo\v au0dh/essa.

E para nós, atrás do navio de proa escura, 6 um vento favorável que enchia as velas, nobre amigo, enviava Circe de belas tranças, deusa terrível de voz humana. Od. XI, 6-8

A conclusão a que se pode chegar é que há uma via alternativa de acesso ao mundo dos mortos seguindo pelo Oceano, uma via que pode ser tomada por um homem vivo. Porém, ao mesmo tempo em que ela é apresentada como possível, um empecilho lhe é colocado, já que a viagem só pode ser empreendida com auxílio sobrenatural como aquele dado por Circe. Atente-se, entretanto, que mesmo havendo duas vias de acesso ao reino de Hades, uma empreendida pela yuxh/ do morto que baixa penetrando a terra e outra por alguém vivo que chega ao Hades navegando pelo 76

Oceano  possibilidade que talvez constitua uma novidade introduzida pelo aedo , não era legítimo que o ouvinte concebesse a possibilidade de qualquer mortal visitar o mundo dos mortos.

3.2 Os ritos funerários e o culto aos mortos

Depois de estabelecidos os dois fundamentos básicos da escatologia homérica, isto é, que os homens são efêmeros e, portanto, têm como fim a morte e, ainda, que, após a morte, a psykhé é encerrada, definitivamente, no Hades logo que recebe os ritos funerários, convém voltar a atenção para os ritos funerários e o culto dos mortos. Vale mencionar que a existência desse último item nos Poemas Homéricos, é matéria controversa para alguns autores que, como observa Chrysanthi Gallou (2002, p.2), foram influenciados por George E. Mylonas, que negara a existência dessa prática no mundo micênico e também nas epopeias. Há passos de extrema importância para o estudo desses dois temas, mormente, o que narra os ritos funerários prestados a Pátroclo em Ilíada XXIII, 127-258, os versos que expressam o pedido feito por Elpenor a Odisseu a fim de que este o sepultasse em Odisseia XI, 71-8, e, ainda, os versos 201-222, do mesmo canto, referentes ao diálogo de Odisseu e sua mãe. Essas passagens, além de conter elementos que permitem a compreensão do fenômeno de sepultamento nos Poemas Homéricos, desde o século XIX, têm sido utilizadas para a verificação da presença de traços micênicos nos ritos funerários homéricos. Há, porém, outras passagens de menor importância que serão posteriormente comentadas, como, por exemplo, em Ilíada, VI, 416-20, em que se narra o funeral de Eécion; VII, 327-35, em que Nestor exorta a assembleia dos Aqueus a parar os combates a fim de prestar os devidos ritos funerários aos mortos, e, ainda nesse mesmo canto, 414-20, versos em que se menciona a adesão dos Troianos à trégua proposta pelos Aqueus; XVI, 666-75, em que Zeus ordena que o corpo de Sarpédon seja preparado a fim de ser sepultado pelos compatriotas na Lícia e XVIII, 333-8, versos referentes à promessa de Aquiles sepultar Pátroclo. Também em Odisseia, o canto III, 278-85, versos nos quais se narra a interrupção da viagem de Menelau em Súnion para sepultar o timoneiro Fróntis, filho de Onétor, e o canto XII, 8- 15, versos referentes ao cumprimento da promessa de Odisseu feita a Elpenor. 77

Antes, porém, de analisar os versos mencionados, que constituem importante fonte de investigação sobre os ritos funerários nos Poemas Homéricos, convém apresentar o posicionamento de alguns autores sobre o tema, como Erwin Rohde, Martin P. Nilsson, Walter Friedrich Otto e George E. Mylonas por serem eles, na primeira metade do século passado, os responsáveis pelas melhores contribuições para o debate sobre a questão em pauta nas epopeias homéricas. As opiniões dos pesquisadores mais recentes, Walter Burkert e A. M. Snodgrass também serão importantes para a compreensão do assunto tratado. Os estudos dos ritos funerários nos Poemas Homéricos foram, por muito tempo, norteados por tentativas da arqueologia de comparar as informações apresentadas pelo poeta narrador com artefatos encontrados em sítios baseando-as nas descobertas arqueológicas. Essa foi uma tendência que se estabeleceu com as descobertas de Heinrich Schliemann e de autores contemporâneos ao estudioso que investigaram as epopeias homéricas observando nelas elementos micênicos que explicassem os artefatos encontrados nos sítios pesquisados. Esse método de investigação, porém, mostrou-se problemático quando foi aplicado aos ritos funerários, porque as práticas micênicas pareciam se distanciar em muito das práticas homéricas, mormente, a forma de se desfazer dos cadáveres. Erwin Rohde, que viveu no final do século XIX e início do século XX e foi contemporâneo de Heinrich Schliemann, afirma (1925, p. 23) que, nos Poemas Homéricos, não se conhece outra forma de se desfazer do cadáver a não ser a cremação. Um problema, porém, surge quando Erwin Rohde, na tentativa de explicar a prática micênica de inumação relacionando-a com a da cremação presente nas epopeias homéricas, atesta que a forma de se desfazer dos cadáveres praticada pelos Micênicos e pelos homens de que fala Homero não se harmoniza. A solução proposta pelo estudioso é a de que a inumação apenas demonstrava que, em um período anterior, assim como ocorria com os Persas, os Indianos e os Germanos, também entre os Gregos, os cadáveres eram depositados na terra. O autor ainda considera que a cremação não é a forma mais natural que se apresenta à imaginação humana e afirma que a inumação é um processo menos dispendioso e mais simples. Suas palavras a esse respeito são bastante significativas:

Os gregos asiáticos, principalmente os jônios cuja fé popular e cujos costumes se refletem bastante fielmente, ainda que de um modo sintético e geral, como se pode supor, nos poemas de Homero, deixam para trás uma vida sedentária 78

para se criar uma nova pátria, outra não menos sedentária que aquela. E, no entanto, o costume de queimar os cadáveres imperava entre eles, ao que parece de modo tão exclusivo, que nem sequer lhes ocorria pensar em outro sistema de sepultamento (ROHDE, 1925, p. 24. Tradução nossa).

Sobre a finalidade da cremação, o autor afirma (op. cit., p. 25.) que não faz sentido buscá-la em lugares distantes como fez Jacob Grimm que a considerava uma forma de sacrifício do morto aos deuses. A finalidade da cremação deve ser entendida levando-se em conta que o fogo apresenta a propriedade de desvincular, de forma permanente, a alma do corpo, obrigando-a a partir definitivamente para o Hades. Erwin Rohde sugere que a cremação pode ser um testemunho em apoio à tese de que, em um tempo passado, os Gregos concebiam a vinculação permanente da alma ao mundo dos vivos podendo exercer sobre ele alguma influência. Convém citar as palavras do estudioso sobre a motivação das atitudes dos vivos para como os mortos: “uma crença que teria, com certeza, mais de temor do que de adoração.” Erwin Rohde continua sua argumentação sobre a motivação da cremação dos corpos afirmando que, com essa prática, se tratava de apaziguar o morto que poderia errar indefinidamente; porém seu principal efeito seria o de garantir o sossego dos vivos que baniriam, de modo definitivo, a psykhé do morto para o Hades porque, argumenta o estudioso, [...] “existia, evidentemente, o temor de que aquelas almas as quais, com tanto zelo, eles empurravam para o além se aferrassem ao mundo dos vivos desejosas de seguir morando nele.”[...]. Erwin Rohde ressalta, no entanto, que os Gregos do período homérico já se haviam desprendido do temor causado por esses espíritos errantes. Parte das afirmações de Erwin Rohde é partilhada por Walter Friedrich Otto, (2005, p. 125), como, por exemplo, a mencionada crença pré-homérica no poder que os mortos tinham de influenciar as atividades dos vivos. Para este último, no tempo de Homero, ainda que houvesse nos Poemas várias referências sobre o Hades, o morto, estando encerrado na habitação sombria dos mortos, não possuía mais que [...] “uma existência espectral, onírica ou inconsciente. A única coisa que o vivente pode dedicar- lhe é o preito da recordação” [...]. Pautado nessa concepção de outrora, o autor explica todos os procedimentos do funeral de Pátroclo que recebe uma cerimônia solene. Nesses ritos solenes, a antiga concepção seria evidente, ou seja, o morto não se separaria completamente do mundo dos vivos, mas teria poderes para protegê-los ou prejudicá-los, razão por que se lhes ofereciam sacrifícios e lhes prestavam honrarias. 79

Walter Friedrich Otto (2005, p.125) rejeita o temor dos mortos como motivação para a cremação dos corpos seja na Grécia pré-homérica seja em outras regiões. Suas palavras sobre o assunto são bastante significativas:

A religião pré-histórica dos gregos nos é geralmente descrita como a de uma comunidade primitiva qualquer, como se as ideias geniais que todos nós admiramos pudessem ter surgido, sem mais, de um emaranhado de obtusidade de feitiçaria. Assim, o temor teria sido o motivo para o banimento dos mortos do campo de visão dos vivos e a cremação de seu corpo seria um meio de livrar dele o mais depressa possível os sobreviventes. Portanto a cremação teria sido, originalmente, uma medida de precaução, e a crença (ou antes, a descrença) nos mortos, tal como encontramos em Homero, uma espécie de autoliberação da mente apavorada. (OTTO, 2005, p.125.)

O autor enfatiza sua rejeição à tese do temor dos mortos como motivação da cremação, afirmando que já fora observado que muitos povos praticavam uma cremação solene como homenagem ao morto, cumprindo, assim, piedosamente seu desejo expresso em vida. Conclui o pesquisador sua reflexão com a seguinte afirmação: “E com isso fica evidenciada a surpreendente leviandade da tentativa de explicar a cremação como um ato de temor e uma manobra defensiva”. Verifica-se que a motivação da cremação dos corpos proposta por Erwin Rohde é duramente criticada por Walter Friedrich Otto, mas não foi somente esse controverso helenista que rejeitou essa tese. Contemporâneo a Walter Friedrich Otto e um de seus críticos, Martin P. Nilsson42 escreveu obras de grande importância sobre a relação entre o mundo micênico e o mundo homérico. Algumas de suas afirmações sobre a inumação e a cremação no período pré-homérico merecem ser mencionadas:

Assim, na Era micênica, uma curiosa mistura de inumação e queima de oferendas é encontrada em muitos e importantes casos. Os corpos eram inumados com ricos presentes, mas outros presentes eram queimados dentro ou em frente à tumba. Esta mistura, que não é registrada em outro lugar, representa um problema novo e requer uma explicação. Eu me aventuro a sugerir que ela é uma sobrevivência do costume de queimar oferendas para o morto junto com seu corpo. Isso indica que os gregos, quando imigraram, usavam a cremação, mas, uma vez assentados na Grécia, sucumbiram à

42 Parte das obras de Walter Friedrich Otto foi traduzida aqui no Brasil por Ordep J. Trindade Serra. Em seu texto de abertura da tradução do livro Teofania (2006), o tradutor chama a atenção para a recepção do conceito de religião apresentada por Walter Friedrich Otto no meio acadêmico conservador, principalmente as reações de Willamowizt-Moellendorf e M. P. Nilsson. Sobre esse último, Ordep J. Trindade Serra faz o seguinte comentário: Martin Nilsson, campeão dos helenistas chamados de “etnólogos”, declarou, em comentário famoso, que não podia considerar científica uma obra cujo estilo antes lhe parecia um discurso “de profeta”. 80

cultura minoica, nos costumes funerários bem como em outros hábitos de vida e arte, embora eles, algumas vezes, mantivessem a queima de presentes para o morto como sobrevivência de seus antigos costumes. Uma nova onda de imigrantes trouxe a cremação apesar de a inumação não ter sido abandonada (NILSSON, 1949, p. 599. Tradução nossa).

As afirmações de Martin. P. Nilsson foram de grande relevância porque se basearam em descobertas arqueológicas a ele contemporâneas, principalmente em evidências encontradas em túmulos nos quais havia claros vestígios da prática da cremação. Observa o autor (op. cit., p. 589) que os poços descobertos nos túmulos em Micenas continham indícios de oferendas destinadas aos mortos, oferendas queimadas que alguns autores interpretavam como prova de que a cremação estava se tornando usual no final do período micênico. Porém, as conclusões do pesquisador apresentam problemas e conduzem a algumas dúvidas. Condicionado pelas descobertas arqueológicas do seu tempo, Martin. P. Nilsson considera que houve uma migração de Gregos para a Grécia. Ora, como se esclareceu anteriormente, utilizando o critério linguístico43, não há como afirmar que tenha existido gregos fora da Grécia. O povo helênico foi constituído em solo grego, do amalgama de povos locais com migrantes que chegaram e se estabeleceram na Hélade44. O problema de considerar a cremação um hábito do povo que chegava reside no fato de que esse seria um povo indo-europeu que costumava inumar seus mortos não praticando, como afirma M. P. Nilsson, a cremação. A prática da inumação entre os indo-europeus pode ser constatada, como assinala Martin West (2007, p. 387), por vestígios arqueológicos, não sendo possível, portanto, considerar que a cremação fosse a principal forma utilizada por eles para desfazer-se dos corpos. Sobre os meios empregados na Grécia antiga para se desfazer dos cadáveres, Walter Burkert (1993, p. 372) considera que a cremação dos corpos é uma novidade em relação às práticas funerárias micênicas:

Nos costumes fúnebres gregos, a ruptura com o mundo cultural micénico manifesta-se expressivamente, após 1220, na preponderância da inumação individual e da incineração [...] a incineração de cadáveres é a transformação mais espetacular em relação à época micénica. Na Idade do Bronze, ela é praticamente desconhecida na Grécia, mas é praticada pelos reis hititas, e também em Troia VI/ VII. Na Ática, ela aparece no século XII, no cemitério de Peráti. A epopéia homérica limita-se a tomar conhecimento dela. Na verdade ela nunca conseguiu impor-se em parte alguma. O cemitério principal de

43 Confira os argumentos no primeiro no capítulo da tese. 44 Os argumentos a favor e contra a tese das levas migratórias distintas para o continente grego foi apresentada no primeiro capítulo desta tese. Como se pode perceber, não há unanimidade entre os autores, e os debates são acirrados. 81

Atenas, defronte o portão de Dípilon, <>, é o que foi estudado de modo mais intensivo. Aí predomina a incineração no período protogeométrico, a qual tem preponderância apenas no século IX, enquanto desde o século VIII as inumações aumentaram de novo para passarem a constituir 30% dos funerais (BURKERT, op. cit., p. 372).

O autor afirma (op. cit., p 373) que a interpretação proposta por Erwin Rohde  a cremação quebrar o poder de intervenção do morto no mundo dos vivos  tem sido acolhida com ceticismo por etnólogos e arqueólogos. Walter Burkert ainda argumenta contra a tese do referido teórico afirmando que a inumação e a cremação ocorriam na mesma região, como, por exemplo, em Creta onde as duas práticas podiam ser realizadas até no mesmo túmulo e não há vestígios de que os ritos relacionados com ambas diferiam em algum aspecto. A destruição do cadáver, para Walter Burkert, portanto, não pode ser a causa da cremação porque o corpo não é destruído. Ele observa que os ossos, depois da incineração, eram recolhidos em urnas e conservados. A explicação para o predomínio da inumação sobre a cremação, segundo o autor, deve ser buscada em fatores de outra ordem, como, por exemplo, em questões econômicas. A inumação era um processo menos dispendioso, e a escassez de lenha pode ter sido determinante para sua configuração como prática mais comum. Em Atenas, há, no principal cemitério, Cerâmico, evidências de que a cremação era a forma predominante de se desfazer dos cadáveres no período protogeométrico (entre 1050-900 a. C), como afirma Walter Burkert (1993, p. 373), e, somente no século VIII a. C., as inumações aumentaram. Pondera o estudioso, no entanto, que a interpretação dos dados é controversa e questiona se a chegada de novos imigrantes, os dórios, seria o motivo de tal aumento da inumação, mormente aquelas nas quais se utilizavam as cistas. As afirmações do autor, porém, como se comentará adiante, não são totalmente partilhadas por A. M. Snodgrass (2000, p. 141), segundo o qual as práticas funerárias são multifacetárias, de modo que facilmente se incorre em erros de classificação quando a discussão se biparte entre inumação e cremação. Essa bipolarização, segundo o autor, tem sido adotada como o primeiro critério de estudo do tema. A. M. Snodgrass, em seu livro The Dark Age of Greece (2000), no capítulo cujo título é The Grave, analisa as formas empregadas por povos que outrora habitaram a região denominada, posteriormente, Hélade, para se livrarem dos cadáveres. Ele não 82

se atém a um sítio específico e analisa túmulos na Ática, na Argólida e em Corinto, na Tessália, nas Cicládicas, na Beócia, entre outras regiões. O autor utiliza critérios arqueológicos e divide os túmulos analisados em tipos diferentes conforme o aspecto físico de cada um deles. O pesquisador aplica a denominação túmulos-tipo (op. cit.; p. 141) para aqueles nos quais estão sepultados múltiplos corpos. Eles são divididos em túmulo de câmara, thólos, túmulo de abóboda, que é uma mistura dos dois primeiros tipos, e, por último, o túmulo que consistia de uma simples caverna. Outro tipo apresentado pelo autor é o “túmulo-tipo individual” que podia ser do mesmo modelo dos anteriores. Essa classificação do túmulo é importante para que se compreenda a ocorrência da inumação e da cremação, porque esse túmulo individual é denominado pelo autor como “túmulo-inumação” e podia consistir em um buraco ou um “small shaft-grave” e estar contido, como se esclareceu anteriormente, nos túmulos coletivos. A cista é um exemplo desse modelo e constitui-se de um buraco retangular alinhado e frequentemente coberto de lajes de pedra. Duas variantes da cista são: a cista monolítica, que era formada de um bloco de pedra escavado, e os sarcófagos de terracota semelhantes aos de Larnax e de Hagia Triada; o ataúde confeccionado em madeira era outra variante da cista. Atesta-se que vasos eram igualmente utilizados para o sepultamento individual. Nesses modelos, empregava-se a inumação para se desfazer dos corpos. Os modelos apresentados e classificados pelo pesquisador são comuns nos sítios mais conhecidos como, por exemplo, aqueles encontrados por arqueólogos do final do século XIX em Micenas, mormente os túmulos que Heinrich Schliemann, que, de modo equivocado, considerou como pertencentes a Agamêmnon e sua família. Esses modelos são também atestados em outras regiões. Quanto aos túmulos em que a cremação é comprovada, A. M. Snodgrass (op. cit. p.142) denomina-os túmulos de cremação e considera-os mais limitados em número. Ainda afirma o autor que essa prática ocorria, normalmente, em sepulturas abertas, em urnas de enterro ou em urnas de cremação. A respeito da cremação, vale mencionar as palavras do referido autor:

Mas cremações são encontradas, talvez indevidamente, em cistas e sarcófagos, em algumas áreas das terras gregas, em cada uma das sete formas de sepultamento coletivo listadas no parágrafo anterior. Um complemento importante das cremações sepulcrais, onde ele pode ser rastreado, é a pira funerária, frequentemente a uma pequena distância das 83

sepulturas, e, sem dúvida, usadas repetidamente; mas, em alguns casos, a incineração real ocorria na sepultura mesmo. Uma classificação por túmulos- tipo é, portanto, uma matéria complexa, e qualquer distinção dura e rápida mostra-se difícil de alcançar (SNODGRASS, 2000, p.142. Tradução nossa).

Assim, com base nas pesquisas empreendias por A. M. Snodgrass, pode-se deduzir que o estudo do emprego da inumação e da cremação, nos períodos que compreendem a Antiga Idade do Ferro e a época posterior, deve ser norteado com cautela porque essas formas de desfazer-se dos cadáveres oscilavam conforme o período e a região, não havendo, de modo algum, uma completa predominância de uma sobre a outratendo em vista ocorrerem lado a lado, mesmo em túmulos micênicos, como atestam as evidências arqueológicas. Ora, o cemitério do Cerâmico, em Atenas, é apresentado pelo autor (A. M. Snodgrass, 2000, p. 143) como prova da prática da inumação e da cremação em um mesmo local. Atesta o autor (op. cit., p. 144), com base em sepulturas analisadas, que, na Idade do Bronze, os Atenienses, de modo semelhante a outros povos sob a influência dos Micênicos, inumavam os mortos e continuaram a fazê-lo no período subsequente. Porém, em Atenas se encontram evidências seguras de que a cremação era largamente praticada, principalmente nas sepulturas do período Geométrico Tardio, muito embora, no Geométrico Médio, as inumações superassem as cremações. Novamente, no século VII a. C, o uso do fogo como meio de desfazer-se do cadáver tem um aumento tão significativo que representa 70% dos funerais. Esse número só viria a decair na segunda metade do século VI a. C quando, mais uma vez, há o predomínio da inumação atestada tanto nos túmulos de ricos quanto nos túmulos de pobres. Observa-se, portanto, que A. M. Snodgrass coloca em dúvida afirmação de Walter Burkert (1993, p. 372) sobre a cremação ter sido praticamente desconhecida no período do Bronze Antigo. As discussões sobre o assunto, como se viu, são intensas e estão longe de conclusões definitivas, de modo que se pretendeu aqui apresentar, sumariamente, as principais teses a fim de que se possa compreender que a cremação, como forma de desfazer-se dos cadáveres, nos Poemas Homéricos, não está em desacordo com as tradições micênicas. À audiência, para a qual os aedos se apresentavam, a inumação e a cremação eram práticas conhecidas, pois, de outro forma, não faria sentido apresentar, ainda que veladamente a inumação. 84

3.2.1 Os ritos de sepultamento

Antes de iniciar a análise de passos de Ilíada e de Odisseia para a compreensão do fenômeno dos funerais ali apresentados, devem-se considerar algumas noções fundamentais sobre o estudo da religião grega. Convém lembrar que alguns termos utilizados por estudiosos45 para se referirem à religião correspondem a atividades e práticas várias da cultura helênica antiga e, em alguns casos, são até inexistentes, embora as ações concretas evidenciem que os conceitos existem. J. Bremmer, por exemplo, em seu livro Greek Religion (1994, p. 2), observa a inexistência de uma palavra grega para designar religião, não obstante a forte religiosidade do povo. Para o autor, isso se deve ao fato de a religião permear as atividades cotidianas, como nascimento, maturidade morte, negócios, guerras, entre outras. Ora, todas as ações e todos os eventos eram, segundo o autor, acompanhados de rituais e sujeitos às regras religiosas. Precisamente, ao tratar dos rituais, esbarra-se nesse problema, porque, como observa J. Bremmer (op. cit., p. 38), na língua grega, há uma fragmentação do vocabulário referente ao fenômeno que hoje historiadores da religião e antropólogos denominam ‘ritual’, conceituando-o como uma representação padrão comportamental repetitiva. Para o estudioso, uma das consequências dessa definição é que, facilmente, se pode reduzir o ritual ao rito singular, como, por exemplo, a prece ou outra ação semelhante. Assim, cria-se um problema: diferenciar os termos: ritual e rito. O estudo das religiões antigas tem grande impulso a partir do século XIX, e a religião grega, particularmente, apresentou-se como objeto de pesquisa porque, como afirma Walter Burkert (1993, p. 21), ela é dada como algo familiar no Ocidente, embora seja, na verdade, menos compreensível e conhecida quando observada mais atentamente. O pesquisador ainda assinala (op. cit., p. 35) que a religião grega se

45 A opinião de Scott Noegel (2007, p. 22) sobre esse assunto mostra que para alguns pesquisadores o estudo da religião de povos antigos constitui um problema: “Other scholars question whether one can legitimately speak about ‘‘religion’’ in cultures that possess no corresponding word for it. Indeed, some wonder whether any proposed taxonomy for religion can account for its inherent diversity and plurality of forms, or whether any taxonomy can be free from ideology (Smith 2004, 169, 71–2, 179). Terms like ‘‘cult,’’ ‘‘sacrifice,’’ and ‘‘ritual,’’ whose definitions had long been taken for granted, have now become focal points for theoretical debate and redefinition (Bremmer 2004; Burkert 1983; Girard 1977; Hubert and Mauss 1964; Rappaport 1979; Smith 2004:145–59; Versnel 1993:16–89).”

85

apresenta sob a forma de mito e de ritual, sendo este último definido pelo autor da seguinte forma:

O ritual, visto do exterior, é um programa de ações demonstrativas que é fixado de acordo com o tipo de execução, frequentemente, em função do lugar e da altura, e que é sagrado na medida em que toda a omissão ou interferência desencadeiam um profundo temor e implicam sanções. (BURKERT, 1993, p. 35)

Essa definição, portanto, considera o ritual como um conjunto de atos individuais que podem ser interpretados como os ritos. J. Bremmer (1994, p. 38) critica Walter Burkert ao acusá-lo de conceber o ritual como autoevidente a partir dos ritos que os gregos denominavam ta\ nomizo/mena, isto é, aquilo que é conforme o costume. J. Bremmer ainda observa (op. cit., 38) que se deve ter claro que o ritual não é uma ‘categoria nativa’. Porém, sobre essa afirmação, ele não dá maiores esclarecimentos. Talvez, essa obscura afirmação de J. Bremmer possa ser esclarecida se for interpretada de acordo com o conceito de ritual apresentado por Walter Burkert em Homo Necans: The Antropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, em que o autor (1983, p. 29), utilizando categorias linguísticas, afirma ser o ritual uma forma de comunicação, um tipo de linguagem, naturalmente relacionado com a fala humana. Acrescenta, ainda, que o ritual pode ser compreendido como um fenômeno social que, semelhante a uma língua, de modo algum é natural, ou como afirmou J. Bremmer, não é uma categoria nativa. Essa conceituação de ritual como um fenômeno social está presente nas seguintes palavras do autor:

Atualmente, existe mais a tendência em considerá-los como um sistema inicialmente autônomo, pseudolinguístico, a par e antes da língua falada. A ciência do comportamento vem ao encontro desta visão, tendo identificado a existência de, pelo menos, analogias com os rituais entre os animais. Nessa ótica, o ritual é uma ação divorciada da pragmática que possui um caráter semiótico. Em regra, a sua função repousa na formação de grupos, na solidarização ou nas disputas entre indivíduos da mesma espécie. Os rituais religiosos são ações desse tipo, na medida em que sinalizam uma orientação para o extra-humano ou sobre-humano. De fato, esta orientação para algo não humano tem também uma função eminentemente social (BREMMER 1994, p. 125. Tradução nossa).

A diferença de ritual e rito pode parecer irrelevante, porém, como se pôde observar, não há uma coincidência de significados entre os termos, e ritual pode ser interpretado como uma noção coletiva de orientação para o sobrenatural que se expressa em ações individuais que são os ritos. Com base nessa definição, ao 86

interpretar a expressão ritual funerário, pode-se dizer que ela consiste na noção de obrigação para com o morto que passou para a esfera do mundo do além. Quando se coloca a expressão ritual funerário no plural, rituais funerários, a ênfase recai na noção de ação individual, isto é, na de rito, pois o conjunto de ações realizadas em favor do morto passa a ser interpretado observando cada ato específico como, por exemplo, a próthesis, a cremação e outros. No tocante ao funeral, compõe-se de várias etapas, destacando-se, conforme Robert Garland (1985, p. 21), três principais: próthesis, ekphorá e disposição dos restos mortais depois da cremação ou da inumação, que, como se comentou, não é explícita nos Poemas Homéricos. Observa o autor serem essas etapas detalhadas nos relatos dos funerais de Pátroclo, Heitor e Aquiles46. Após esses esclarecimentos, convém explicar os procedimentos executados nos funerais descritos nos Poemas Homéricos entre os quais se destacam os funerais de Pátroclo, do troiano Heitor e de Aquiles, verificando as etapas mencionadas por Robert Garland. A cerimônia funerária descrita com mais detalhes e considerada a mais suntuosa é a realizada em favor de Pátroclo. Nessa cena, a próthesis do herói morto inicia-se a pedido de Aquiles que ordena a limpeza de toda a sujeira47 do cadáver:

4Wv ei0pw\n e9ta/roisin e0ke/kleto di~ov 0Axilleu\v a0mfi\ puri\ sth~sai tri/poda me/gan, o1fra ta/xista

46 Equivoca-se, porém, o autor ao afirmar que o termo grego “kêdeia” significa funeral e cita como exemplo os funerais dos heróis da guerra de Troia porque não há uma palavra específica nas epopeias que nomeie esse evento. O substantivo que deu origem a essa forma foi kh~dov cujos significados são: cuidado, preocupação e tristeza. Posteriormente, o termo passa a ter, segundo Pierre Chantraine, dois significados especiais: prestar as honras funerárias e cerimônia matrimonial. O vocábulo kh/deov pertence ao campo semântico de funeral porque seu significado é o de um sentimento de pesar, um sofrimento pela perda do ente querido. No entanto, não se restringe ao sentido fúnebre, como se observa nas seguintes passagens dos Poemas Homéricos: em Ilíada I, 445, passagem em que Odisseu entrega Criseida ao sacerdote Crises, justificando que aquela ação visava a afastar os sofrimentos impostos pelo deus arqueiro: “o4v nu~n 0Argei/oisi polu/stona kh/de’ e0fh~ken”. (ele agora afastou do meio dos Argivos muitos sofrimentos), V, 155, verso referente ao sentimento de Fénops, pai de Xanto e Tóon, ambos mortos por Diomedes: [...] pate/ri de\ go/on kai\ kh/dea lugra\ lei~p’ [...] (e para o pai deixou lamento e sofrimentos dolorosos) e em Odisseia I, 4, passo em que Atená lembra aos deuses os sofrimentos de Odisseu: toi~si d’ 0Aqhnai/a le/ge kh/dea po/ll’ 0Odush~ov. (entre eles Atená falou dos muitos sofrimentos de Odisseu.). Note-se, no entanto, que em Ilíada XXIII, 159-160, o termo kh/deov significa preparar o funeral: “ta/de d’ a0mfi\ ponhso/meq’ oi]si ma/lista kh/deov e0sti ne/kuv:”. (a respeito dessas coisas prepararemos aquelas entre as quais está principalmente o cuidado com o morto). Esses exemplos evidenciam que Robert Garland não enfatizou a polissemia do termo, mas atribuiu-lhe somente o significado de funeral. 47 Nesse passo, não se considerou a limpeza com purificação religiosa, mas como uma limpeza para restituir ao corpo de Heitor uma aparência próxima daquela que tinha em vida. Essa interpretação tem como base os versos referentes à limpeza do corpo de Heitor para evitar que o rei Príamo visse a condição em que encontrava o cadáver do príncipe troiano, conforme Ilíada XXIV, 582-90 87

Pa/troklon lou/seian a1po bro/ton ai9mato/enta. 345 oi9 de\ loetroxo/on tri/pod’ i3stasan e0n puri\ khle/w|, e0n d’ u3dwr e1xean, u9po\ de\ cu/la dai~on e9lo/ntev. ga/strhn me\n tri/podov pu~r a1mfete, qe/rmeto d’ u3dwr: au0ta\r e0pei\ dh\ ze/ssen u3dwr e0ni\ h1nopi xalkw|~, kai\ to/te dh\ lou~sa/n te kai\ h1leiyan li/p’ e0lai/w|, 350 e0n d’ w0teila\v plh~san a0lei/fatov e0nnew/roio: e0n lexe/essi de\ qe/ntev e9anw|~ liti\ ka/luyan e0v po/dav e0k kefalh~v, kaqu/perqe de\ fa/rei+ leukw~|. pannu/xioi me\n e1peita po/dav taxu\n a0mf’ 0Axilh~a Murmido/nev Pa/troklon a0nestena/xonto gow~tev. 355

Il. XVIII, 343-55

Assim falando, o divino Aquiles ordenou aos companheiros colocar sobre o fogo uma grande trípode para que rapidamente lavassem Pátroclo do sangue derramado. 345 E eles colocaram sobre o fogo ardente uma trípode de banho e nela verteram água, e por baixo colocaram lenha. O fogo cobriu o ventre da trípode e aqueceu a água. Depois que a água ferveu no resplandecente bronze, então, lavaram-no e ungiram-no com azeite 350 e encheram as feridas de azeite de nove anos de idade. E, tendo-o colocado no leito, cobriram-no com uma veste suntuosa dos pés à cabeça, e, por cima, um branco véu. Depois, durante toda a noite, em volta de Aquiles de pés velozes, os Mirmidões, gemendo, lamentaram por Pátroclo. 355

Il. XVIII, 343-55

Há um claro exemplo de próthesis nesses versos porque o ritual funerário tem início com a preparação do corpo para os ritos que serão praticados posteriormente. A limpeza do corpo é feita por aqueles que eram próximos ao morto, seus parentes, ou, 88

no ambiente de guerra, pelos companheiros, que utilizavam água aquecida em uma trípode48. Embora os ritos funerários fossem obrigação dos mais próximos ao morto, a próthesis de Heitor foi realizada por Aquiles que assassinara o herói troiano a fim de que Príamo não visse o corpo dilacerado de seu filho:49:

dmw|a\v d’ e0kkale/sav lou~sai ke/let’ a0mfi/ t’ a0lei~yai, no/sfin a0eira/sav, w9v mh\ Pri/amov i1doi ui9o/n, mh\ o9 me\n a0xnume/nh| kradi/h| xo/lon ou0k e0ru/saito pai~da i0dw/n, )Axilh~i d’ o0rinqei/h fi/lon h]tor, 585 kai/ e9 kataktei/neie, Dio\v d’ a0li/thtai e0fetma/v. to\n d’ e0pei\ ou]n dmw|ai\ lou~san kai\ xri~san e0lai/w|, a0mfi\ de/ min fa~rov kalo\n ba/lon h0de\ xitw~na, au0to\v to/n g’ 0Axileu\v lexe/wn e0pe/qhken a0ei/rav, su\n d’ e3tairoi h3eiran e0uce/sthn e0p’ a0ph/nhn.

Tendo chamado as servas, ordenou-lhes lavá-lo e untá-lo, depois de levá-lo para longe, a fim de que Príamo não visse o filho, e que este não retivesse a ira no coração aflito ao ver o filho, e o coração afligisse a Aquiles, e ele o matasse e viesse a contrariar o desígnio de Zeus. Então depois que as servas o lavaram e o ungiram com azeite, cobriram-no com uma bela capa e uma túnica. O próprio Aquiles levantando-o colocou-o em um leito, e com ele os companheiros o depositaram no carro polido. Il. XXIV, 582-90

48 Diferente da próthesis é o banho de purificação ritual preparado para Heitor, conforme narram os versos 443-4 do canto XXII de Ilíada que podem ser considerados uma fórmula: “a0mfi\ puri\ sth~sai tri/poda me/gan, o1fra pe/loito #Ektori qerma\ loetra\ ma/xhv e2k nosth/santi” (para colocarem sobre o fogo uma grande trípode, para que houvesse para Heitor água quente para o banho, quando retornasse da batalha). A finalidade do banho é a mesma, isto é, limpar as manchas de sangue; diferindo, porém, no seguinte aspecto: enquanto os Mirmidões lavavam o corpo sem vida de Pátroclo, Andrômaca manda preparar água para que Heitor, ainda vivo, fosse limpo do sangue da batalha. O banho, neste último caso, não se configura como próthesis tendo em vista que o “Matador de homens” estava vivo. 49 O motivo de Aquiles ter mandado limpar o corpo de Heitor é claramente mencionado nos versos 583-6 do canto XXIV, isto é, evitar a ira de Príamo ao ver o cadáver maltratado, porque isso poderia ocasionar um evento trágico que acarretaria a morte do ancião. Deve-se observar que a ação do Pelida não é motivada pela ordem divina porque Zeus (Il. XXIV, 110-19) determinava apenas que o corpo fosse restituído aos Troianos. Não se menciona qual a condição devia estar o corpo. 89

Como se observa, os ritos funerários prestados a Heitor são iniciados por aquele que o matara e não pela família ou companheiros, conforme a tradição. Ora, a contingência da situação é que provoca essa ação inusitada de próthesis feita pelo inimigo que, nesse caso, se comovera ao ver o grave sentimento de perda do velho Príamo. O rei de Troia recebe o corpo do filho e, veladamente, leva-o para dar continuidade às obrigações rituais para com o morto. Outra situação de próthesis pode ser notada em Odisseia XXIV, 36-46, passagem em que a psykhé de Agamêmnon narra a próthesis de Aquiles quando ambos se encontram, no Hades e conversam. Nesse diálogo, o Atrida conta a dificuldade de resgatar o cadáver do Pelida e a preparação de seu funeral:

“o1lbie Phle/ov ui9e, qeoi~v epi0ei/kel’ 1Axilleu~, o4v qa/nev e0n Troi/h| e9ka\v 1Argeov a0mfi\ de/ s’ a1lloi ktei/nonto Trw/wn kai\ 0Axaiw~n kai\ ui[ev a1ristoi, marna/menoi peri\ sei~o: su\ e0n strofa/liggi koni/hv kei~so me/gav megalwsti/, lelasme/nov i9pposuna/wn 40 h9mei~v de\ pro/pan h]mar e0marna/meq’: ou0de/ ke pa/mpan pausa/meqa ptole/mou, ei0 mh\ Zeu\v lai/lapi pau~den, au0ta\r e0pei/ s’ e0pi\ nh~av e0nei/kamen e0k pole/moio, ka/tqemen e0n lexe/essi, kaqh/rantev xro/a kalo\n u3dati/ te liarw~| kai\ a0lei/fati: polla\ de/ s’ a0mfi\ 45 dak/rua qerma\ xe/on Danaoi\ kei/ronto/ te xai/tav.

“Feliz filho de Peleu, Aquiles semelhante aos deuses, tu que morreste em Troia longe de Argos, e, à tua volta, outros também morreram os mais nobres filhos dos Troianos e dos Aqueus lutando a tua volta, e, num vendaval de poeira, tu jazias, grande em tua grandeza, já esquecido dos carros de combate. 40 E nós combatíamos todo o dia e nunca teríamos cessado a luta se Zeus com seu furacão não nos tivesse parado. Depois, então, longe do combate, levamos-te para junto das naus, e 90

deitamos-te em um leito, purificando tua bela pele, com água morna e com azeite; e muitas lágrimas 45 quentes, em volta de ti, os Danaos derramaram e cortaram os cabelos.

Od. XXIV, 36-46

Nota-se também nesse relato mais breve da preparação do corpo de Aquiles a purificação ritual e a colocação do corpo em um leito. Deve-se observar que, diferente da narrativa anterior, isto é, da narrativa da próthesis de Pátroclo, em que são utilizadas as formas verbais lou/seian e lou~san, aoristo de lou/w, na referência à limpeza do corpo de Aquiles, emprega-se um termo distinto, kaqh/rantev, forma de particípio de kaqai/rw (purificar), verbo denominativo que, conforme Pierre Chantraine (1963, p. 479), significa, sobretudo, purificação religiosa, sentido que se encontra nas palavras cognatas kaqa/rsiv e kaqa/rmov. A próthesis era acompanhada do ato de lamentar ou de chorar o morto. O lamento consistia numa ação importante na realização do ritual funerário, como bem demonstra o verso 355 do canto XVIII de Ilíada inserido na narrativa da próthesis de Pátroclo: Murmido/nev Pa/troklon a0nestena/xonto gow~ntev. (os Mirmidões, gemendo, lamentaram por Pátroclo). Note-se que a forma gow~ntev, particípio presente do verbo goa/w, lamentar, chorar, verter lágrimas, segundo Pierre Chantraine, (1968, p. 231), não é denominativo de go/ov, que é substantivo secundário. O filólogo afirma que goa/w apresenta a mesma noção de intensidade da ação verbal expressa, por exemplo, pelo verbo boa/w que significa gritar para chamar atenção, sentido que se diferencia de goa/w, gritar para lamentar. Pode-se observar que, em mais de uma situação, nos Poemas Homéricos, utiliza-se o verbo goa/w ou o substantivo go/ov na referência ao lamento ritual, como, por exemplo, em Ilíada, canto, VI, 499, no passo em que as servas choram por Heitor pensando que o herói não regressasse vivo da guerra: ai9 me\n e1ti zwo\n go/on #Hktora w[| oi1kw|. (e elas, na casa dele, lamentavam Heitor ainda vivo), XVIII, 315, na alusão ao lamento dedicado ao filho de Menécio: pannu/xioi Pa/troklon a0nestena/xonto gow~ntev (e por toda noite, gemendo, choraram por Pátroclo.) e, por fim, XXIV, 664, na narração do funeral de Heitor em Ilíada: ‘e0nnh~mar me\n k’ au0to\n e0ni\ mega/roiv goa/oimen’ (‘por nove dias choremos por ele nos pátios do palácio’); em 91

Odisseia IX, 466-7, versos que narram o reencontro de Odisseu e seus companheiros com os outros componentes da tripulação depois do trágico encontro com o Ciclope: ‘a0spa/sioi de\ fi/loiv e9ta/roisi fa/nhmen, oi4 fu/gomen qa/naton, tou\v de\ stena/xonto gow~ntev. (para os queridos companheiros, mostramo-nos receptivos, nós que escapamos da morte, mas eles choraram lamentando pelos outros.”). Quanto ao termo go/ov apresenta-se, por sua vez, no contexto de lamento fúnebre, como, por exemplo, em Ilíada, V, 155, na referência ao sentimento de Fénops, pai de Xanto e Tóon, ambos mortos por Diomedes: [...] pate/ri de\ go/on kai\ kh/dea lugra\ lei~p’ [...] (e para o pai deixou lamento e sofrimentos dolorosos.), e, ainda, no canto XVIII, 51, em que Tétis lidera o grupo de Nereidas a fim de lamentar por Aquiles que sofria a perda de Pátroclo: sth/qea peplh/gonto, Qe/tiv d’ e0ch~rxe go/oio:(bateram no peito, e Tétis iniciou o lamento). Há ainda outros termos para indicar o lamento funerário, tais como threnos, ialemos e epikedeios. A lamentação ritual é narrada de forma detalhada na passagem referente ao funeral de Heitor em Ilíada XXIV, 19-24, versos em que se percebe a continuação da próthesis que fora iniciada por Aquiles. Nessa cena, vale destacar que, depois de ter sido Heitor transportado por Príamo para os pátios do palácio em Troia, o corpo do herói foi depositado em uma cama a fim de ser lamentado:

3Wv e1faq’, oi9 de\ die/sthsan kai\ ei]can a0ph/nh|. oi9 d’ e0pei\ ei0sa/gagon kluta\ dw/mata, to\n me\n e1peita trhtoi~v e0n lexe/esi qe/san, para\ d’ ei]san a0oidou\v 20 qrh/nwn e0ca/rxouv, oi1 te stono/essan a0oidh\n oi9 me\n a1r’ e0qrh/neon, e0pi\ de\ stena/xonto gunai~~kev. th~|sin d’ 0Androma/xh leukw/lenov h]rxe go/oio, 3Ektorov a0ndrofo/noio ka/ph meta\ xersi\n e1xousa:

Falou desse modo, e eles ficaram à parte e deram passagem ao carro. Mas quando eles entraram no nobre palácio, e em seguida o colocaram em um leito cinzelado, e junto dele fizeram sentar os cantores 720 que começaram os trenos, que lhe entoavam 92

um canto doloroso, e, em seguida, as mulheres lamentavam-se. Entre elas, Andrômaca de alvos braços iniciou o lamento, tendo nas mãos a cabeça de Heitor matador de homens: Ilíada XXIV, 718-24

Vê-se nesses versos a presença de cantores exercendo uma atividade que pode ser considerada especializada porque eles iniciam o canto fúnebre ao qual as mulheres presentes parecem formar outro coro em resposta aos lamentos. Após os ritos iniciais, isto é, a próthesis e a lamentação do morto, passa-se à segunda etapa do ritual funerário que consiste na ação de se desfazer do cadáver, pois um corpo insepulto obrigaria a alma a errar entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos50. O cumprimento dessa etapa dos ritos funerários é critério indispensável para que o processo51 de morte seja concluído, e a psykhé do morto entre no reino de Hades e aí permaneça para sempre. O ato de se desfazer do cadáver é, portanto, uma obrigação dos vivos que mantiveram em vida uma relação com o morto, e é precisamente por esse motivo que a psykhé de Pátrocolo, recém-falecido, pede a Aquiles que lhe sepulte o corpo, pois, embora seu funeral já tivesse sido iniciado, era preciso concluir seu processo de morte:

h]lqe d’ e0pi\ yuxh\ Patroklh~ov deiloi~o, 65 pa/nt’ au0tw~| me/geqo/v te kai\ o1mmata ka/l’ e0ikui~a, kai\ fwnh/n, kai\ toi~a peri\ xroi6 ei3mata e3sto: sth~ d’ a1r’ u9pe\r kefalh~v kai/ min pro\v mu~qon e1eipen: “eu3deiv, au0ta\r e0mei~o lelasme/nov e1pleu, 0Axilleu~. ou0 me/n meu zw/ontov a0kh/deiv, a0lla\ qano/ntov: 70 qa/pte me o3tti ta/xista, pu/lav 0Ai/dao perh/sw. th~le/ me ei1rgousi yuxai/, ei1dwla kamo/ntwn, ou0 de/ me/ pw mi/sgesqai u9per potamoio e0w~sin, a0ll’ au0twv a0la/lhmai a0n’ eu0rupule\v 1Aidov dw~. kai\ moi do\v xei~r’, o0lofu/romai: ou0 ga\r e1t’ au]tiv 75 ni/somai e0c 0Ai/da~o, e0ph/n me puro\v lela/xhte.

50 Atesta essa concepção o pedido da psykhé de Pátroclo para que seu corpo fosse sepultado. 51 Sobre o tema da morte como um processo que começa com a separação entre o corpo e a psykhé e termina com os ritos funerários, confira a dissertação de mestrado A Yuxh/ nos Poemas Homéricos defendida em 2010. 93

E aproximou-se a alma do desgraçado Pátroclo, 65 em tudo semelhante a ele, na altura, nos belos olhos e na voz, e as mesmas roupas cobriam-lhe o corpo: de pé, junto à cabeça de Aquiles, dirigiu-lhe a palavra: “Dormes, ó Aquiles, já estás esquecido de mim. Não me abandonavas quando eu estava vivo, mas morto . 70 Sepulta-me o mais rápido possível, para que eu atravesse as portas do Hades. À distância mantêm-me as psykhaí, imagens dos mortos, nem permitem unir-me a elas do outro lado do rio. Assim, e sem cessar, vagueio pela mansão de largos portões de Hades. Dá-me a tua mão, eu te imploro. Na verdade, não retornarei novamente 75 do Hades, depois de me concederes do fogo que me é devido. (Il. XXIII, 65-76)

Como primeiro elemento de análise desses versos, convém notar as expressões relativas ao sepultamento: qa/pte me (sepulta-me) e me puro\v lela/xhte (ritos funerários’) porque elas podem facilmente conduzir a equívocos de interpretação quando vertidas para o vernáculo. O primeiro problema surge ao se traduzir o verbo qa/pte, forma imperativa de qa/ptw, cuja raiz é *qaf, por “sepultar”, tendo em vista que nos Poemas Homéricos a cremação é a forma predominante de se desfazer dos cadáveres. O verbo utilizado pelo narrador é qa/ptw que, no vernáculo, encerra a noção de inumação52, estranha ao termo grego (GARLAND, 1985, p. 34). A tradução do verbo para a língua portuguesa,

52 Sobre a prática da inumação os Poemas Homéricos, José Ribeiro Ferreira (1983, p. 44) faz a seguinte afirmação: “ Parecem ser, contudo, as práticas fúnebres e os usos nupciais, alguns dos pontos que os Poemas Homéricos mais se afastam dos costumes micênicos. Se, por um lado, os funerais de Pátroclo revestem um fausto que os tornam dignos dos reis micênicos, estes são, no entanto, inumados em grandes túmulos familiares, ao passo que os heróis homéricos são cremados, embora a Ilíada também não desconheça a inumação.”. Para corroborar sua afirmação, o autor utiliza os versos 174 -75 do canto IV de Ilíada. 94

normalmente, é “sepultar53” o que implica a ideia de inumação, sem deixar margem para que se perceba a prática da inumação. Uma tradução mais conveniente de qa/ptw seria “prestar os ritos funerários” entre os quais a cremação era um dos elementos. Não menos problemática é a tradução de puro\v lela/xhte por “ritos funerários”. A expressão é composta da forma de subjuntivo aoristo do verbo lagxa/nw que tem como complemento puro/v genitivo partitivo de pu/r e, literalmente, no vernáculo, significa “conceder do fogo”, ou seja, desfazer-se do cadáver por meio da cremação. Esse ato, portanto, não se harmoniza com a tradução de qa/pte por sepultar. A forma de se desfazer do corpo utilizando o fogo também é descrita nos versos que narram a explicação dada por Anticleia a Odisseu quando este a interroga sobre a morte:

“w4v e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto po/tnia mh/thr: 215 ‘w1 moi, te/knon e0mo/n, peri/ pa/ntwn ka/mmore fwtw~n, ou1 ti/ se Persefo/neia Dio\v quga/thr a0pafi/skei, a0ll’ au3th di/kh e0sti\ brotw~n, o3te ti/v ke qa/nh|sin: ou0 ga\r e1ti sa/rkav te kai\ o0ste/a i3nev e1xousin, a0lla\ ta\ me/n te puro\v kratero\n me/nov ai0qome/noio 220 damna|~, e0pei/ ke prw~ta li/ph| leu/k’ o0ste/a qumo/v yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai.

“Assim falei, e, imediatamente, minha soberana mãe 215 respondeu: Ai de mim, meu filho, o mais desgraçado de todos os homens! De modo algum, te engana Perséfone, filha de Zeus: essa é a lei dos mortais, quando qualquer um morre; de fato, não mais os tendões seguram a carne e os ossos,

53 Ora, o verbo sepultar em vernáculo origina-se do radical da forma de supino do latim sepelīre que podia significar prestar os ritos funerários a alguém “cremando-lhe o corpo” ou “colocar no sepulcro”, ou seja, o verbo designa tanto a prática da cremação quanto da inumação. Esse último significado é o mesmo que o verbo grego assumiria posteriormente e o único que o termo encerra em língua portuguesa. Nos Poemas Homéricos, porém, a única forma evidente de se desfazer do cadáver, como se demonstrou, é a cremação. Desse modo, a tradução de qa/pte me por “sepulta-me” parece não ser adequada porque a prática do sepultamento não se configura de forma clara nas epopeias. No entanto, essa tradução foi mantida levando-se em conta as traduções tradicionais e significado que o verbo latino possuía.

95

mas domina-os a força poderosa do fogo ardente, 220 quando o thymós primeiramente abandona os ossos brancos, e a psykhé, como um sonho, batendo as asas, se desvanece.

Od. XI, 215-22

A fala de Anticleia é importante porque sua morte acontece em um contexto de paz, e isso invalida a interpretação de que a cremação, predominante nos Poemas Homéricos, era um processo condicionado por uma situação extraordinária, um ambiente de guerra, como se deduz, por exemplo, dos versos que narram o tratamento dado aos corpos daqueles que morreram vitimados pelos tiros disparados por Apolo, em Ilíada I, 52: ai0ei\ de\ purai\ neku/wn kai/onto qameiai/. (sempre ardiam numerosas piras de mortos), ou, ainda, da narrativa do epísódio em que Aqueus e Troianos estabeleceram uma trégua a fim dar o tratamento devido aos mortos em combate:

kai\ de\ to/d’ h0nw/geon ei0pei~n e1pov, ai1 k’ e0qe/lhte pau/sasqai plole/moio dushxe/ov, ei0v o3 ke nekrou\v 395 kh/omen: u3steron au]te maxhso/meq’, ei0v o3 ke dai/mown a1mme diakri/nh|, dw/h? d’ e9te/roisi/ ge ni/khn.” “Wv e1faq’, oi9 d’ a1ra pa/ntev a0kh\n e0ge/ronto siwph|=: o0ye\ de\ dh\ mete/eipe boh\n a0gaqo\v Diomh/dhv: “mh/t’ a1r tiv nu=n kth/mat’ 0Aleca/ndroio dexe/sqw 400 mh/q’ 9Ele/nhn: gnwnto\n de\ kai\ o4v ma/la nh/pio/v e0stin, w9v h1de Trw/essin o0le/qrou pei/rat’ e0fh=ptai.” 4Wv e1faq’, oi9 d’ a1ra pa/ntev e0pi/axon ui[ev 0Axaiw=n, mu=qon a0gassa/menoi Diomh/dhv i9ppoda/moio: kai\ to/t’ a1r’ 0Idaion prose/fh krei/wn 0Agame/mnwn: 405 “0Idai~’ h] toi mu~qon 0Axaiw~n au0to\v a0kou/eiv, w3v toi u9pokri/nontai: e0moi\ d’ e0pianda/nei ou3twv. a0mfi\ de\ nekro~sin katakaie/men ou1 ti megai/rw: ou0 ga\r tiv feidw\ neku/wn katateqnhw/twn gi/gnet’, e0pei\ ke qa/nwsi, puro\v meilisse/men w]ka. 410 o3rkia de\ Zeu\v i1stw, e0ri/gdoupov po/siv 3Hrhv.” 4Wv ei0pw\n to\ skh=ptron a0ne/sxeqe pa=sin qeoi=sin, 96

a1yorron d’ 0Idai=ov e1bh proti\ 1Ilion i9rh/n. oi9 d’ e3at’ ei0n agorh|= Trw=ev kai\ Dardani/wnev, pa/ntev o9rmhgere/ev, potide/gmenoi o9ppo/t’ a1r’ e1lqoi 415 0Idai=oi: o9 d’ a1r’ h]lqe kai\ a0ggeli/hn a0pe/eipe sta\v e0n me/ssoisin toi\ d’ o0pli/zonto ma/l’ w]ka, a0mfo/teron, ne/kua\v t’ a0ge/men, e3teroi de\ me/q’ u3lhn: 0Argei=oi d’ e9te/rwqen e0u+sse/lmwn a0po\ nhw=n o0tru/nonto ne/kuv t’ a0ge/men, e3teroi de\ me/q’ u3lhn. 420 )He/liov me\n e1peita ne/on prose/ballen a0rou/rav, e0c a0kalarei/tao barurro/ou 0Wkeanoi=o ou0rano\n ei0saniw=n oi9 d’ h1nteon a0llh/loisin. e1nqa diagnw=nai xalepw=v h]n a1ndra e3kaston: a0ll’ u3dati ni/zontev a1po bro/ton ai0mato/enta, 425 da/krua qerma\ xe/ontev a0maca/wn e0pa/eiran, ou0d’ ei1a klai/eien Pri/amov me/gav:oi9 de\ siwph|= nekrou\v purkai+h=v e0penh/neon a0xnu/menoi kh=r, e0n de\ puri\ prh/santev e1ban proti\ 1Ilian i9rh/n. w4v d’ au1twv e9te/rwqen e0u+knh/midev 0Axaioi\ 430 nekrou\v purkai+h=v e0pinh/on a0xnu/menoi kh=r, e0n de\ puri\ prh/santev e1ban koi/lav e0pi\ nh=av.

E pedem-me para dizer esta palavra, se vós desejardes parar a guerra dolorosa até que os mortos queimemos. 395 Mais tarde combateremos novamente até que a divindade nos julgue e dê a vitória para um ou outro. Falou desse modo, e eles todos permaneceram em silêncio. Depois falou Diomedes valoroso por soltar o grito de guerra: “Que ninguém agora receba os tesouros de Alexandre 400 nem mesmo Helena; é conhecido até para quem é muito ingênuo: que já está destinado para os Troianos a destruição.” Assim falou, e eles, todos os filhos dos Aqueus, aplaudiram, admirando o discurso de Diomedes domador de cavalos. A Ideu, então, se endereça o poderoso Agamêmnon: 405 “Ideu, tu mesmo escutas as palavras dos Aqueus, 97

o modo como respondem a ti: para mim, isso me agrada. Quanto aos mortos, não me oponho que os queimem: pois para alguém morto entre os mortos, depois que morre, não há negação do fogo que dá rapidamente a consolação. 410 Que Zeus, esposo tonitruante de Hera, conheça o juramento”. Depois de falar assim, ergueu o cetro para todos os deuses, e Ideu retornou na direção da sagrada Ílion. Na assembleia estavam sentados Troianos e Dardânidas, todos reunidos esperando a volta de Ideu. 415 Ele chegou e transmitiu a mensagem em pé no meio deles; e eles, muito depressa, se prepararam para ambas as tarefas: uns reunir os mortos, outros reunir a lenha. Os Argivos, do mesmo modo, saíram de junto das naus bem construídas, e alguns juntaram os mortos, outros a lenha. 420 Depois, o Sol lançou os raios sobre os campos erguendo-se do Oceano sonoro de correntes profundas em direção ao céu. Eles encontravam uns aos outros. Ali dificilmente era possível reconhecer cada homem. Mas com água, enquanto os lavavam do sangue mortal, 425 derramavam lágrimas quentes levando-os para os carroças. O grande Príamo não permitiu chorar; eles, em silêncio, com o coração sofrido empilhavam os mortos nas piras, e, depois de queimá-los no fogo, retornaram para a sagrada Ílion. Do mesmo modo, os Aqueus de belas cnêmides, 430 aflitos em seu coração , empilharam os mortos nas piras, e, depois de os queimarem no fogo, retornaram para às côncavas naus.

Il. VII, 393-432

A ação de se desfazer dos cadáveres em Ilíada e Odisseia, porém, não é de simples compreensão porque se, por um lado, é inegável a predominância da cremação em ambiente de guerra ou de paz, por outro, há menção da prática de 98

inumação, que é um processo totalmente diverso, como, por exemplo, em Odisseia III, 276-85, passagem em que Nestor, narrando a Telêmaco sua volta para casa em companhia do filho de Atreu, menciona a interrupção da viagem para que eles sepultassem o timoneiro Frôntis, filho de Onétor:

“h9mei=v me\n ga\r a3ma ple/omen Troi/hqen i0o/ntev, 0Atrei+/dhv kai\ e0gw/, fi/la ei0do/tev a0llh/loisin: a0ll’ o3te Sou/nion i9ro\n a0fiko/meq’, a1kron 0Aqhne/wn, e1nqa kubernh/thn Menela/ou Foi=bov 0Apo/llwn oi[v a0ganoi=v bele/essin e0poixo/menov kate/pefne, 280 phda/lion meta\ xersi\ qeou/shv nho\v e1xonta, Fro/ntin 0Onhtori/dhn, o4v e0kai/nuto fu=l’ a0nqrw/pwn nh=a kubernh=sai, o9po/te spe/rxoien a1ellai. w4v o9 me\n e1nqa kate/sxet’, e0peigo/menov per o9doi=o, o1fr’ e3taron qa/ptoi kai\ kte/rea kteri/seien. 285

Na verdade, nós navegávamos juntos quando vínhamos de Troia, o Atrida e eu, temos sentimentos de amizade um pelo outro; mas quando chegamos ao sagrado Súnion, topo de Atenas, ali o timoneiro de Menelau, Febo Apolo, atingindo com suas setas suaves, matou, 208 enquanto tinha nas mãos o leme da rápida nau, Frôntis, filho de Onetor, que era superior a todos os homens ao comandar a nau quando os ventos sopravam rápido. Assim, ele se deteve, embora quisesse seguir o caminho, a fim de sepultar o companheiro e queimar suas posses. 285

Od. III, 276-85

A morte do timoneiro ocorreu por meio natural, descrito nesses versos como ocasionada pelos disparos de Apolo. O mesmo processo é mencionado por Odisseu ao interpelar sua mãe sobre a natureza de sua morte em Odisseia, XI, 171-2: “h] dolixh\ 99

nou=sov h] 0Artemiv ioxe/aira a0ganoi=v bele/essin e0poixome/nh kate/pefne;”. (ou longa doença ou Ártemis arqueira que se aproximando, com setas suaves, matou-te?) Particularmente, por se tratar de uma mulher, sugere-se que Ártemis é quem teria disparado as setas mortais. Embora a causa da morte de ambos, Frôntis e Anticleia, tenha sido natural e ocorrido em ambiente de paz, utilizam-se meios diversos para se desfazer dos cadáveres. Anticleia foi cremada, como se demonstrou anteriormente, e o timoneiro Frôntis parece ter sido sepultado, como denota a ação expressa pelo verbo qa/ptoi no verso 285: o1fr’ e3taron qa/ptoi kai\ kte/rea kteri/seien. Nessa oração, vale notar a forma verbal qa/ptoi, optativo de qa/ptw, já analisado anteriormente quando se mencionou o pedido de sepultamento feito pela psykhé de Pátroclo, e a expressão referente à prestação dos ritos funerários prestados a Frôntis kte/rea kteri/seien, composta da forma de aoristo do verbo kteirei+/zw cujo complemento é kte/rea. De modo geral, traduz-se esse verbo por “prestar os ritos funerários”, porém o complemento deve ser traduzido por pertences preferidos, ou bens possuídos e queridos do morto que deviam ser queimados na ocasião de seu funeral. Desse modo, não se deve interpretar, a não ser de modo indireto, que o cadáver é objeto do fogo porque não há menção alguma disso no verso. A comparação desse verso com os referentes ao pedido de sepultamento feito pela psykhé de Pátroclo (“qa/pte me o3tti ta/xista, pu/lav 0Ai/dao perh/sw e , e0ph/n me puro\v lela/xhte”) evidencia uma diferença fundamental em relação ao objeto destinado ao fogo: a psykhé do querido amigo de Aquiles pede que seu corpo seja consumido pelo fogo enquanto, no episódio do funeral de Frôntis, seus objetos preferidos é que são entregues ao fogo. Se o passo mencionado for comparado com os versos em que Elpenor, companheiro de Odisseu, pede ao herói para não deixar seu corpo insepulto, em Odisseia, XI, 71-8, fica evidente uma grande diferença entre as duas ações:

e1nqa s’ e1peita, a1nac, ke/lomai mnh/sasqai e0mei=o. mh/ a1klauton a1qapton i9w\n o1pisqen katalei/pen nosfisqei/v, mh/ toi/ qew=n mh/nima ge/gnwmai, a0lla/ me kakkh~ai su\n teu/xesin, a1ssai moi e0stin, sh=ma te/ moi xeu=ai polih=v e0pi\ qini\ qala/sshv, 75 a0ndro\v dusth/noio kai\ e0ssome/noisi puqe/sqai. 100

tau=ta te/ moi tele/sai ph=cai/ t’ e0pi\ tu/mbw| e0retmo/n, tw=| kai\ zwo\v e1resson e0w\n met’ e0moi=v e9ta/roisin.

Ali, em seguida, ó senhor, peço lembrar-te de mim, não me deixes para trás sem choro e insepulto quando regressares, a fim de que eu não me torne para ti maldição dos deuses por ter sido abandonado, mas, queima-me junto com as armas que são minhas, e levanta um monumento funerário para mim, sobre a areia do cinzento mar, 75 para os pósteros saberem de um homem desafortunado. Cumpre essas coisas para mim e finca na tumba o remo, com o qual, quando vivo, eu remava junto com meus companheiros. Od. XI, 71-78

O pedido do desastrado marinheiro, para que lhe fossem prestados os ritos funerários, embora semelhante aos procedimentos que seriam ministrados a Frôntis, apresenta dados diversos. Pois bem, Elpenor pede a Odisseu que lhe queime o corpo junto com suas armas; a0lla/ me kakkh~ai su\n teu/xesin, a1ssai moi e0stin (queima-me junto com as armas, aquelas que são minhas). O verbo empregado é a forma de infinitivo aoristo de katakai/w, “colocar no fogo, queimar”, que tem como complemento o pronome me seguido do sintagma adverbial su\n teu/xesin, a1ssai moi e0stin, indicativos de que serão queimados o corpo e as armas do falecido. Quanto ao remo utilizado por Elpenor, ao longo de sua atividade de marinheiro, um objeto querido, não será ele destinado ao fogo, contrariamente ao que ocorreu no episódio de Frôntis cujas posses seriam queimadas, como evidencia o sintagma kte/rea kteri/seien (queimar suas posses). Portanto, observa-se que os dois heróis, Menelau e Odisseu, devem interromper suas viagens a fim de prestar as honras fúnebres aos companheiros falecidos. O cadáver de Elpenor, morto em ambiente de paz, será cremado em uma clara referência ao processo mais comum utilizado nos Poemas Homéricos para se desfazer dos corpos. Quanto ao timoneiro Frôntis, porém, há indício de inumação de modo que é possível imaginar que ao poeta e a sua audiência os dois processos eram familiares. 101

Esse não é um fato isolado, como se poderia argumentar, porque no episódio do sepultamento de Sarpédon não há referência alguma ao processo de cremação, conforme se observa nos versos seguintes:

kai\ to/t’ 0Apo/llwna prose/fh nefelhgere/ta Zeu/v: “ei0 d’ a1ge nu=n, fi/le Foi=be, kelainefe\v ai[ma ka/qhron e0lqw\n e0k bele/wn Sarphdo/na, kai\ min e1peita pollo\n a0popro\ fe/rwn lou=son potamoi=o r9oh|=si xri=so\n t’ a0mbrosi/h|, peri\ d’ a1mbrota ei3mata e3sson: 670 pe/mpe de/ min pompoi=sin a3ma kraipnoi=si fe/resqai, 3Upnw| kai\ Qana/tw| diduma/osin, oi3 r9a/ min w]ka qh/sous’ e0n Luki/hv pi/oni dh/mw|, e1nqa e9 tarxu/sousi kasi/gnhtoi/ te e1tai te tu/mbw| te sth/lh| te: to\ ga\r ge/rav e0sti\ qano/ntwn.” 675

E então que a Apolo disse Zeus que comanda nuvens “vai tu agora, ó amado Febo, e limpa o negro sangue de Sarpédon; depois de o teres tirado do meio dos dardos e depois o teres levado para muito longe, lava- o nas correntes do rio, unge-o com ambrosia e veste-o com roupas imortais. 670 Entrega-o a dois pressurosos portadores para o levarem, Sono e Morte, dois irmãos, eles que rapidamente o colocarão na fértil terra da ampla Lícia, onde seus irmãos e parentes lhe prestarão honras fúnebres, com sepultura e estela: pois esse é o prêmio dos mortos. 675

Il. XVI, 666-75

A narrativa da ordem de Zeus para a execução dos ritos funerários de Sarpédon mostra-se reveladora para o esclarecimento dos meios utilizados para se desfazer do corpo, principalmente quando se faz uma comparação com os passos já 102

mencionados54. Os ritos funerários acontecerão na Lícia, distante, portanto, do ambiente de batalha e semelhante ao ambiente de paz mencionado nos episódios de Anticleia, Elpenor e Frôntis. Porém, essa é a única característica comum dos eventos fúnebres mencionados. Anticleia e Elpenor são cremados. Para este último há menção de um túmulo no qual seriam depositados seus restos mortais depois de consumidos pelo fogo: tau=ta te/ moi tele/sai ph=cai/ t’ e0pi\ tu/mbw| e0retmo/n (Cumpre essas coisas para mim e finca na tumba o remo). Por outro lado, não há, como se observou, menção à cremação do corpo de Frôntis, descreve-se somente a queima de suas posses; nota- se, porém, o emprego do verbo qa/ptw que aponta para a inumação. Na passagem supracitada referente a Sarpédon, observa-se o emprego do verbo tarxu/sousi que, segundo Pierre Chantraine, significa prestar os funerais solenes os quais, como se comentou, são um conjunto de ritos. Não há na passagem indicação do uso do fogo, de modo que se pode inferir a prática da inumação, ideia reforçada pela presença dos termos tu/mbw| e sth/lh| (túmulo e estela). Essa tese é corroborada pelo uso do mesmo verbo (tarxu/w), em Ilíada VII, 85, passo em que Heitor expressa o desejo de duelar com algum guerreiro aqueu e propõe a devolução do corpo de quem for morto para esse seja sepultado55: o1fra e9 tarxu/wsi ka/rh komo/wntev 0Axaioi/. (a fim de que os Aqueus de longas cabeleiras o sepultem.). O fato é que não se pode conceber que no ambiente de execução da épica homérica os processos de inumação e cremação fossem incongruentes ou contraditórios porque ambos eram conhecidos do público. Além disso, como se demonstrou anteriormente, há comprovação arqueológica do uso concomitante dos dois modos de se desfazer dos cadáveres no século VIII a. C. Ratificam-no os procedimentos nos funerais de Pátroclo: o herói, depois cremado, tem seus ossos imediatamente recolhidos em uma urna de ouro a fim de serem sepultados posteriormente, como bem exemplificam os versos 236-45 do canto XXIII de Ilíada56:

54 George E. Mylonas (1948, p. 62) observa que a forma empregada para se desfazer do corpo de Sarpédon não é clara nos versos porque não “sabemos” o que significa realmente o termo e9tarxu/sousi. Sobre os funerais de Frôntis, o autor é de opinião que não há certeza quanto ao modo empregado pois os versos passam uma noção muito vaga. 55 Esse passo é particularmente interessante porque a proposta feita por Heitor é de que o corpo de quem for morto, seja ele, seja o guerreiro aqueu que se dispuser a enfrentá-lo, seja devolvido para receber os ritos funerários devidos. No caso de ele ser morto, a expressão empregada para se referir aos ritos que deverão ser prestados a ele é o1fra puro/v me Trw=ev kai\Trw/wn a1loxoi lela/xwsi qano/nton, enquanto para o guerreiro aqueu se emprega a expressão referida que é diferente. Indicaria isso que os dois povos utilizariam processos diferentes? 56 Observa-se que o mesmo procedimento é adotado em relação ao corpo de Heitor. Os Troianos, conforme Ilíada XXIV, 788-804, após a queima do corpo de Heitor, recolhem seus ossos e os depositam 103

“0Atrei+/dh te kai\ a1lloi a0risth=ev Panaxaiw=n, prw=ton me\n kata\ purkai+h\n sbe/sat’ ai1qopi oi1now| pa=san, o9po/sson e0pe/sxe puro\v me/nov au0ta\r e1peita o0ste/a Patro/kloio Menoitia/dao le/gwmen eu] diagiggnw/skontev: a0risfrade/a de\ te/tuktai: 240 e0n me/ssh| ga\r e1keito purh|=, toi\ d’ a1lloi a1neuqen e0sxatih|= kai/ont’ e0pimi\c i3ppoi te kai\ a1ndrev. kai\ ta\ me\n xruse/h| fia/lh| kai\ di/plaki dhmw|= qei/omen, ei0v o3 ken au0to\v e0gnw\n 1Aidi keu/qwmai.

Atrida e demais nobres entre todos os Aqueus, primeiro toda a pira apagai com brilhante vinho tanto quanto a força do fogo se espalha, depois, os ossos de Pátroclo, filho de Menécio, recolhamos distinguindo-os, bem fáceis são de reconhecer. 240 De fato, ele estava no meio da pira, os outros queimaram à parte na borda, confusamente cavalos e homens. E, em uma urna dourada, em camada dupla de gordura, os coloquemos, até que eu mesmo me reconheça escondido no Hades. Il. XXIII, 236-44

3.2.2 O funeral de Pátroclo: culto aos mortos

Um dos eventos mais marcantes de Ilíada é o funeral de Pátroclo, acontecimento suntuoso cuja narrativa é elaborada em detalhes. Precisamente por se tratar de um episódio que envolve elementos importantes do ritual funerário, proceder- se-á a uma análise dos versos referentes a essa passagem do poema, a fim de mostrar que o culto dos mortos não era algo desconhecido do aedo e de sua audiência, ao contrário, era uma prática conhecida que remontava ao período micênico.

em uma urna colocada, posteriormente, em um túmulo, agindo, pois, de modo semelhante aos Aqueus no episódio do funeral de Pátroclo. 104

É preciso notar, primeiramente, que o funeral de Pátroclo apresenta algumas particularidades que permitem relacioná-lo com os sepultamentos micênicos feitos em túmulos circulares, pois o túmulo do filho de Menécio é descrito em Ilíada XXIII, 255, como um amontoado de terra em volta do local onde ardera a pira funerária: tornw/santo de\ sh=ma qemei/lia/ te proba/lonto a0mfi\ purh/n. (demarcaram o círculo e lançaram os alicerces do túmulo em torno da pira). É digna de nota a forma verbal tornw/santo, aoristo do verbo denominativo torno/w, (circular, demarcar com um círculo) que se origina do substantivo to/rnov (compasso de carpinteiro). A noção de circularidade é reforçada pela preposição a0mfi\ (em volta de, em torno de) e reiterada, posteriormente, pelos versos que narram o ultraje ao corpo de Heitor, arrastado por Aquiles em torno do túmulo: tri\v d’ e0ru/sav peri\ sh=ma Menoitia/dao qano/ntov. (arrastando por três vezes em volta do túmulo do filho morto de Menécio). Observa-se, portanto, a similaridade com a forma tumular micênica. O cadáver de Pátroclo já estava pronto para receber os ritos finais porque a próthesis já havia sido realizada; no entanto, ele jazia insepulto sendo necessário que sua psykhé exortasse a Aquiles a fim de que se cumprissem as obrigações funerárias, isto é, a cremação e o sepultamento dos restos mortais. A ordem para que se recolhesse a lenha para alimentar a pira foi dada por Agamêmnon, os guerreiros cumpriram e amontoaram achas em grande quantidade onde deveria ser construído o túmulo em que seria sepultado Pátroclo e, posteriormente, Aquiles, conforme os versos 125-7 do canto XXIII de Ilíada: “ka\d’ a1r’ e0p’ a0kth=v ba/llon e0pisxerw/, e1nq’ a1r’ 0Axilleu\v/ fra/ssato Patro/klw| me/ga h0ri/on h9de\ oi[ au0tw=|.” (Na praia, lançaram-nas, cada um a sua vez, lá onde Aquiles planejava para Pátroclo e para si um grande túmulo.) As ações rituais do funeral são descritas de forma minuciosa, porém serão analisadas apenas aquelas consideradas mais importantes para que se compreenda a relação entre os ritos descritos e o culto dos mortos, ou seja, os sacrifícios realizados em favor do morto. O início do funeral é iniciado com a preparação da pira em que o corpo será cremado. A lenha é recolhida e, em seguida, o grupo é disperso por ordem de Agamêmnon em cumprimento ao pedido de Aquiles. Ficam presentes apenas aqueles 105

que são os mais próximos do morto. São eles que preparam a pira e ajudam nos procedimentos rituais:

Au0ta\r e0pei\ to/ g’ a1kouen a1nac a0ndrw=n 0Agame/mnwn au0ti/ka lao\n me\n ske/dasen kata\ nh=av e0i/sav, khdemo/nev de\ par’ au]qi me/non kai\ nh/eon u3lhn, poi/hsen de\ purh\n e9kato/mpedon e1nqa kai\ e1nqa, e0n de\ purh| u9pa/th| nekro\n qe/san a0xnu/menoi kh=r. 165 polla\ de\ i1fia mh=la kai\ ei0li/podav e3likav bou=v pro/sqe purh=v e1dero/n te kai\ a1mfepon: e0k d’ a1ra pa/ntwn dhmo\n e9lw\n e0ka/luye ne/kun mega/qumov 0Axilleu\v e0v po/dav e0k kefalh=v, peri\ de\ drata\ sw/mata nh/ei. e0n d’ e0ti/qei me/litov kai\ a0lei/fatov a0mfiforh=av. 170 pro\v le/xea kli/nwn pi/rusav d’ e0riau/xenav i3ppouv e0ssume/nwv e0ne/balle purh|= mega/la stenaxi/zown. e0nne/a tw|= ge a1nakti trapezh=ev ku/nev h]san , kai\ me\n tw=n e0ne/balle purh=| du/o deirotomh/sav, dw/deka de\ Trw/wn megaqu/mwn ui9e/av e0sqlouv 175 xalkw|= dhio/wn de\ fresi\ mh/deto e1rga: e0n puro\v me/nov h[ke sidh/reon, o1fra ne/moito.

Depois que ouviu isto, Agamêmnon, chefe dos homens dispersou os homens junto às naus bem niveladas; os que eram mais próximos ficaram e amontoaram a lenha, 165 fizeram uma pira de cem pés em todas as direções e, no topo da pira, colocaram o morto com os corações aflitos. Muitas ovelhas robustas e bois de passo cambaleante esfolaram e prepararam em frente a pira, e dos animais todos tirou a gordura e, com ela, o magnânimo Aquiles envolveu o morto da cabeça aos pés e em volta colocou os corpos esfolados. Por cima, colocou jarros de asas duplas de mel e azeite, 170 reclinando-os sobre o leito. Quatro cavalos de pescoços altos, ganindo e gemendo, ele atirou rápido sobre a pira. Nove cães que comiam sob a mesa pertenciam a este chefe, 106

e, depois de ter cortado a garganta de dois deles, jogou-os sobre a pira. E doze filhos nobres dos magnânimos Troianos degolou com 175 o bronze; colocara no pensamento obras assassinas. Lançou a força férrea do fogo para que os possuísse.

Il. XXIII, 165-77

As ações descritas nesses versos são muito particulares porque só aparecem na mencionada passagem e em Odisseia XXIV, 65-70, versos referentes ao funeral de Aquiles, no qual não se menciona o sacrifício humano. O funeral de Heitor apresenta alguns traços comuns com o de Pátroclo e o de Aquiles; no entanto, não se descrevem sacrifícios de nenhuma natureza, realizados em favor do morto, talvez pelo fato de que os Troianos tivessem uma tradição diferente da dos Aqueus em relação aos funerais, observa George E. Mylonas (1948, p. 60). Os outros sepultamentos analisados, aqueles que seriam realizados em momentos posteriores, como o de Anticleia, o de Frôntis, o de Elpenor e o de Sarpédon também não relatam sacrifícios. Nos Poemas Homéricos, há uma série de narrativas de sacrifícios de animais em momentos diversos. Porém, eles não ocorrem em eventos funerários, exceto nos exemplos citados, sendo, portanto, necessário entender por que tal fato acontece. Observa-se, pois, que a repetição de um ato é o ponto de partida para sua identificação com uma ação ritual que se torna obrigatória, como, por exemplo, a próthesis, o lamento e o uso do fogo, que ocorrem em todos os funerais, ora queimando o corpo, ora os bens queridos do morto. Pois bem, se o sacrifício de animais fosse um rito comum nos funerais, essa ação deveria ser mencionada, ainda que em menor escala, em outras situações, porém isso não acontece57. Assim, não se deve aceitar sem questionamentos a afirmação de Walter Burkert (1993, p. 375) de que o funeral incluía “sacrifícios fúnebres”, definidos pelo pesquisador como sacrifícios destrutivos motivados pela raiva e pela impotência diante da morte de um ente querido58. Nas epopeias homéricas, as ações descritas são casos isolados, de

57 Corrobora-o George E. Mylonas (1948, p.59), acrescentando que o motivo da morte dos animais era fornecer material de combustão a fim de agilizar a cremação do corpo. 58 A afirmação do autor é um tanto estranha porque ele considera como sacrifício a queima de objetos. O sacrifício, a rigor, refere-se à morte de um animal. 107

modo que se impõe questionar a motivação de o aedo mencionar os sacrifícios somente nos dois passos referidos. 59 As opiniões sobre a motivação desses sacrifícios divergem de maneira considerável. Autores com Erwin Rohde, Walter Burkert, Emily Vermeule entre outros apresentam soluções parcialmente satisfatórias porque suas teses consideram as ações praticadas no funeral do filho de Menécio relacionando-as com práticas mais antigas e gerais60, ou seja, aplicam o método dedutivo e partem do geral para o particular. O raciocínio aplicado é que, pelo fato de os sacrifícios funerários serem amplamente registrados em culturas diversas, nesse episódio específico, haveria uma prática análoga na Hélade. Porém, vale evocar as palavras de Farnell (1921, p. 5): “nossa primeira evidência literária sobre a Hélade são, naturalmente, os Poemas Homéricos, mas o testemunho de Homero nesta matéria é colocado em bases inclusas.”61 Convém, pois, examinar uma possível motivação para os sacrifícios rituais mencionados na cerimônia funerária de Pátroclo. Mais uma vez os estudos de Erwin Rohde ajudam a compreender a questão. O pesquisador afirma (1950, p. 17) que os sacrifícios realizados nessa ocasião estão relacionados com culto dos mortos:

As cerimônias funerárias para o corpo de Pátroclo não são o primeiro rebento de um novo princípio, representam, antes, vestígios de um vigoroso culto dos mortos em tempos anteriores, um culto que muitas vezes era a expressão suficiente e completa de uma crença no poder duradouro do espírito desencarnado (ROHDE, 1950, p.17. Tradução nossa).

A essa afirmação, o autor (1950, p. 17) acrescenta, ainda, que não há referência melhor que os versos supracitados acerca da existência desse primitivo culto em Ilíada ou em Odisseia, tendo em vista que neles se apresentam elementos como a preparação dos corpos para o sepultamento, isto é, a próthesis, e o fechamento dos olhos e da boca do morto, vestígios menores dessa prática cultual. O fundamento dos ritos cerimoniais descritos nos versos relativos aos diversos funerais mencionados é, conforme o teórico, uma antiga crença de que o morto poderia fazer uso de objetos

59 A motivação mencionada pelo referido autor soa estranha se considerarmos, com base no seu texto, que ele inclui a queima dos objetos como sacrifício. Ora, sacrificam-se, nos rituais, seres vivos. A queima dos objetos queridos, como foi discutido nessa tese, faz parte dos ritos funerários regulares. Nos funerais mencionados, acontecem ações diferentes. 60 Os autores citados consideraram que o fato de a maioria dos povos antigos, em suas origens, praticarem tais cultos leva a deduzir que os habitantes da Hélade, outrora, também o fizessem. 61 Tradução nossa. 108

queimados juntos com seu cadáver. Sobre os ritos funerários, são significativas as seguintes palavras de Erwin Rohde:

Então, quando lemos que Aquiles foi queimado tendo as armas com as quais caíra junto a seu corpo sobre a pira funerária, é imposível não sentir que nós temos aqui, também, a sobrevivência de uma antiga crença de que a alma, de alguma forma, era capaz de fazer uso desses objetos queimados junto com seu invólucro corporal (ROHDE, 1950, p. 17. Tradução nossa).

Assim, a tese do autor é clara: nos Poemas Homéricos, há fortes indícios de que se praticava, outrora, o culto dos mortos entre os Gregos. Porém, tal concepção era estranha à audiência do poeta para a qual a psykhé era um ente desprovido de qualquer atributo mental e, por esse motivo, não haveria sentido prestar-lhe culto. Dennis D. Hughes (2003, p. 51) observa que o ponto central da argumentação de Erwin Rohde é que a queima de todos os elementos no funeral de Pátroclo ocorre pelo mesmo motivo, ou seja, a satisfação das necessidades futuras do morto. O autor acrescenta, no entanto, que passara despercebido ao ilustre pesquisador que o objetivo do sacrifício das ovelhas e dos bois serviu a um propósito secundário, ou seja, fornecer gordura animal para auxiliar na queima do cadáver. Desse modo, a finalidade seria prática e não se assentaria em uma motivação religiosa. A interpertação de Dennis D. Hughes baseia-se nos versos 167-9 do canto XIII que mencionam o uso da gordura dos animais mortos como elemento de combustão: “e0k d’ a1ra pa/ntwn dhmo\n e9lw\n e0ka/luye ne/kun mega/qumov po/dav e0k kefalh=v, peri\ de\ drata\ sw/mata nh/ei.” O autor observa que a natureza dos cavalos e cães, distinta de outros animais sacrificados, aponta para outra motivação sobre a qual o aedo não dá qualquer indicação. Sobre esse tema o autor tece as seguintes considerações:

[...] Mas a interpretação mais simples e amplamente aceita é que eles são contados entre as posses de Pátroclo. A morte de cavalos e cães pode, portanto, ser vista como uma extensão da prática de fornecer aos mortos armas e outros bens  bem conhecida pela arqueologia , o que está por trás da frase homérica kte/rea kterei+/zein e outras semelhantes (HUGHES, 2003, p. 52. Tradução nossa).

O objetivo de Dennis D. Hughes é estudar os sacrificios humanos62 na Grécia antiga, de modo que ele não se detém na análise de ritos nos quais são utilizados

62 No capítulo intitulado Funerary ritual killing in Greek Literature and History, o autor (2003, p. 51) resume as principais interpretações sobre os motivos do sacrifício dos jovens Troianos no funeral de 109

animais. Talvez isso o tenha feito afirmar (op. cit., p. 52), sem maiores esclarecimentos, que a morte de ovelhas e bois, de modo geral, era usual nos ritos funerários. Tal proposta, porém, não é isenta de críticas, já que, como se mostrou, o sacrifício de animais é mencionado apenas em dois dos funerais descritos, isto é, no funeral de Pátroclo e de Aquiles, não sendo, portanto, usual nos Poemas Homéricos. Na verdade, as teses sobre os motivos das ações realizadas no funeral de Pátroclo não são conclusivas nem excludentes, e as afirmações de Emily Vermeule (1971, p. 51) sobre esse tema são bastante convenientes: “A peculiar e particularmente irreal forma de um funeral homérico nos esconde os sentimentos que são expressos em uma cerimônia real de um funeral em casa.”. A autora acrescenta ainda um segundo comentário que ajuda a entender esse controverso passo: [...] “se o funeral de Pátroclo não fosse pura poesia” [...]. A conveniência das afirmações da autora se deve ao fato de elas chamarem atenção para o evento literário narrado pelo aedo que está fazendo poesia e não narrando um evento histórico. Assim, o funeral de Pátroclo é parcialmente real e, ainda que os eventos com ele relacionados remetam a elementos históricos, não se deve perder de vista que se trata de uma peça literária que possui sua própria lógica. Por esse motivo, não há como determinar, de modo preciso, o motivo do sacrifício dos animais nos versos referentes aos sepultamentos dos dois amigos, Aquiles e Pátroclo. Essa afirmação, porém, não significa que todas as teses sobre esses passos são igualmente aceitáveis como hipóteses. Rejeitam-se, abertamente, nessa pesquisa, as teses que afirmam, com base nos versos referentes aos funerais de Pátroclo e Aquiles, a inexistência de um culto aos mortos nos Poemas Homéricos, como propuseram, por exemplo, Erwin Rohde e George E. Mylonas, pesquisadores que influenciaram gerações de estudiosos do tema. Note-se que, se os sacrifícios de animais nos funerais mencionados são de difícil compreensão, posto que podem ser interpretados de maneiras diversas, relacioná-los com o culto dos mortos também resulta em dificuldade porque não há nos versos menção clara dessa prática.

Pátroclo: The slaying of the twelve Trojan warriors at the pyre of Patroclus has been interpreted in three basic (if not always clearly distinct) ways: (1) that the killing was a sacrifice, fully equivalent to animal sacrifices performed for the dead, or in the cult of heroes and ; (2) that the Trojan captives were meant to attend Patroclus as servants in the world below; or (3) that the killing was motivated, largely or solely, by anger and revenge. In the first two cases it is assumed that the incident derived from actual custom, but that the poet of the Iliad had ‘forgotten’ or misunderstood the true meaning of an obsolete practice preserved in the epic tradition.

110

A aludida dificuldade, porém, não significa que inexistam nas epopeias, como propõem os citados autores, indícios do culto aos mortos porque em alguns passos de Ilíada e Odisseia, que serão analisados posteriormente, tais indícios podem ser encontrados. Antes, porém, de começar a analisá-los, convém retomar as explicações dadas por George E. Mylonas cujas principais proposições foram discutidas no primeiro capítulo dessa tese no qual se apresentou a severa crítica de Chrisanty Gallou à tese do referido estudioso. A afirmação de George E. Mylonas (1948, p.78) é categórica: “Não há, nos Poemas Homéricos, evidências que atestem a existência de um culto dos mortos.”63 e, durante muito tempo, orientou as pesquisas sobre o tema. Porém, embora se reconheça a importância das pesquisas do autor, algumas de suas teses não estão isentas de crítica. A argumentação do pesquisador sobre a inexistência do culto dos mortos nos Poemas Homéricos é fundamentada na relação entre as epopeias e as descobertas arqueológicas em sítios micênicos, ou melhor, entre os processos funerários ali empregados. Os Micênicos possuíam, segundo o autor (op. cit. p. 56), costumes funerários que se apresentavam com certa uniformidade ao longo do tempo. As práticas funerárias homéricas, anota George E. Mylonas, ao contrário, são formadas por tradições de épocas mais antigas e mais recentes interpoladas no texto. Ora, George E. Mylonas, (1948 p. 70) considera que o povo de Micenas não mantinha relação de reverência ou respeito com seus ancestrais mortos porque os túmulos encontrados naquela localidade apresentaram claros indícios de que esqueletos foram removidos do local onde foram sepultados, a fim de dar lugar a um novo cadáver. Os ossos de um morto outrora sepultado eram abandonados em um canto do túmulo. O autor dá a seguinte informação sobre o tema:

No momento em que o corpo fosse dissolvido e transformado em uma pilha de ossos já não haveria necessidade de nada; não havia perigo de que seu espírito fosse reaparecer; o espírito havia descido para a sua morada final para nunca mais voltar; e assim os ossos poderiam ser deixados de lado ou até mesmo jogados fora. Essa crença corresponde à concepção homérica sobre a psykhé e o Hades discutida acima, e nos fornece um dos elos mais importantes que ligam os costumes funerários da época micênica e os homéricos (MYLONAS, 1948, p. 70. Tradução nossa).

63 Tradução nossa. 111

A conclusão do pesquisador é inevitável, isto é, os ossos não receberiam esse tratamento caso se praticasse o culto dos mortos: “Como tal culto poderia ter se desenvolvido por um povo que parece ter acreditado que tudo estava terminado com a decomposião do corpo?”64. Essa afirmação tão categórica foi abertamente rejeitada por M. P. Nilsson, um dos mais importantes estudiosos da religião grega e da cultura minoico-micênica no século XX, que introduz, na segunda edição de seu livro The Minoan-Myceanean Religion and its Survival in Greek Religion, um apêndice cujo título é Note on Mycenean and Homeric Burial Costums, refutando, portanto, claramente, os argumentos de George E. Mylonas. M. P. Nilsson (1949, p. 621) rejeita essa dedução do estudioso e argumenta que, mesmo nos dias de hoje, há o reaproveitamento de sepulturas que são reabertas, sepulturas cujos ossos são retirados do lugar a fim de dar lugar a um novo cadáver. Ora, essa prática, de modo algum, significa que sua motivação seja a rejeição à ideia de imortalidade da alma. M. P. Nilsson (1949, p. 618) atribui à afirmação de George E. Mylonas, de que os Micênicos não prestavam culto aos mortos nem acreditavam em uma vida post- mortem, a interpretação dos dados arqueológicos realizada pelo estudioso, com base nos versos homéricos referentes à fala da psykhé de Pátroclo que afirma sua permanência definitiva no Hades depois da cremação do seu corpo. Assim, restaria, após a cremação, apenas uma sombra encerrada definitivamente no Hades, porém desprovida de poderes para ajudar ou ferir os vivos. Essa afirmação é, segundo M. P. Nilsson, insustentável porque há nos túmulos micênicos tubos através dos quais líquidos eram vertidos em favor de quem estivesse sepultado.65Tal prática seria desprovida de sentido se esse povo não acreditasse na sobrevivência da psykhé. Os tubos mencionados não passaram despercebidos a George E. Mylonas que, numa tentativa de salvaguardar suas afirmações sobre a inexistência de um culto aos mortos, considerou que somente a alguns membros de status mais elevado era facultada a prerrogativa da sobrevivência da psykhé e, em consequência, somente a eles se prestavam cultos: “Apenas alguns espíritos escolhidos estavam destinados a se

64 Confira, no primeiro capítulo dessa tese, as severas críticas às teses de George E. Mylonas, principalmente aquelas formuladas por Chrisanti Gallou que se valeu de elementos arqueológicos para fundamentar a tese de que os Micênios não só praticavam o culto dos mortos, mas também possuíam uma forte crença na vida após a morte. 65 Confira, no primeiro capítulo dessa tese, as discussões sobre o assunto. 112

interessar pelo mundo dos vivos e continuavam a exercer alguma influência nele, e os micênicos propiciaram a esses espíritos um culto especial.”. Essa tentativa de George E. Mylonas manter a coerência entre as evidências arqueológicas e sua afirmação sobre a inexistência do culto dos mortos entre os Micênicos é rejeitada por M. P. Nilsson (1949, 618), segundo o qual a aceitação desta tese obrigaria a criação de duas concepções distintas de vida após a morte, uma para o nobre e outra para o homem comum. Ele conclui afirmando que a distinção proposta por George E. Mylonas não é lógica nem válida. Na opinião de M. P. Nilsson, os Micênicos acreditavam no mundo dos mortos e prestavam culto aos seus falecidos, embora não se possa negar que o respeito ao morto de um status privilegidado fosse diferente daquele votado ao homem comum. Assim, pode-se dizer que George E. Mylonas se equivocou ao afirmar que os Micênicos não acreditavam na vida post-mortem nem prestavam cultos aos mortos, e, em consequência, não haveria nos Poemas Homéricos indícios de que os mortos fossem objeto de algum culto. Uma vez que os Poemas Homéricos tentam reproduzir o mundo dos heróis, um mundo que reflete parcialmente o mundo micênico, alguns elementos se apresentam anacrônicos66. Porém, não é estranho que algumas concepções estejam presentes nas epopeias como continuidade de uma crença de outrora, isto é, as concepções sobre o post-mortem em Iliada e Odisseia são convergentes às concepções do período micênico, e o culto dos mortos pode ser interpretado como uma herança de outrora, herança que atravessou gerações. De fato, embora a prática de um culto aos mortos não seja explícita na narrativa do funeral de Pátroclo, isso não significa que ele inexistia nos Poemas Homéricos como defendia George E. Mylonas, pois, como se verificou, há no referido passo ações que claramente se relacionam com esse culto. Assim, convém examinar as evidências da prática do culto aos mortos em outros passos dos Poemas Homéricos. Os exemplos mais claros da prática do culto dos mortos estão em Odisseia, principalmente na nekýa descrita no canto XI. Pelo fato de esse poema ser considerado por alguns teóricos posterior à narrativa de Ilíada, poder-se-ia pensar que essa é uma inovação que contém elementos mais modernos. Essa argumentação é, no entanto,

66 Confira o capítulo I dessa tese.

113

equivocada porque também em Ilíada podem ser encontrados exemplos que atestam a referida prática como, por exemplo, os atos de Aquiles em relação ao amigo morto. O canto XXIII de Ilíada inicia-se com a narrativa do retorno dos Aqueus ao acampamento após os combates que culminam com a morte de Heitor pelas mãos de Aquiles. Ao retornarem, o Pelida não permitiu que os Mirmidões se dispersassem e os conclamou a prestar, ainda montados nos carros, um lamento pelo falecido Pátroclo:

“Mirmido/nev taxu/pwloi, e0moi\ e0ri/hrev e9tai=roi, mh\ dh\ pw u9p’ o1xesfi luw/meqa mw/nuxav i3ppouv, a0ll’ au0toi=v i3ppousi kai\ a3rmasin a[sson i1ontev Pa/troklon klai/wmen: o4 ga\r ge/rav e0sti\ qano/ntwn. au0ta\r e0pei/ o0looi=o tetarpw/mesqa go/oio, 10 i3ppouv lussa/menoi dorph/somen e0qa/de pa/ntev.

“Mirmidões de rápidos corcéis, meus companheiros fiéis, não soltemos os cavalos de cascos não fendidos das correias, mas, aproximando-nos com os próprios cavalos e carros, choremos Pátroclo! De fato, este é o prêmio dos mortos. Então, quando saciarmos o funesto pranto, 10 depois de termos soltado os cavalos, todos cearemos aqui.

Il. XXIII, 6-11

O verbo empregado para dar a ordem aos Mirmidões é klai/w que pode ser traduzido por chorar, verter lágrimas, lamentar; porém, num contexto fúnebre significa lamentar ritualmente o morto, sentido reforçado pelo verso “au0ta\r e0pei/ o0looi=o tetarpw/mesqa go/oio” em que está presente o termo go/ov mencionado anteriormente. O lamento ritual, ordenado por Aquiles como uma honra devida ao morto, é expresso pelo termo ge/rav, prêmio material recebido pela realização de uma ação heroica. Essa acepção do termo é expressa, por exemplo, no episódio da contenda entre Aquiles e Agamêmnon no primeiro canto de Ilíada. O motivo da ira de Aquiles fora a desonra provocada pela retirada do seu prêmio (ge/rav) pelo chefe dos Aqueus que não admitia ficar sem seu prêmio, Criseida, que devia ser devolvida ao sacerdote Crises. A negação ou a privação do ge/rav implica uma ofensa grave à timh/ (honra) do 114

herói. Portanto, a honra devida a Pátroclo, o seu ge/rav, é o go/ov, isto é, o lamento ritual realizado pelos Mirmidões, e, durante o qual Aquiles, com as mãos pousadas sobre o corpo inerte do amigo falecido, profere as seguintes palavras:

“xai=re/ moi, w] Pa/trokle, kai\ ei0n 0Ai&%dao do/moisi: pa/nta ga\r h1dh toi tele/w ta\ pa/roiqen u9pe/sthn, 1Hktora deu=r’ e0ru/sav dw/sein kusi\n w0ma\ da/sasqai, 20 dw/deka de\ prospa/roiqe purh=v a0podeirotomh/sein Trw/wn a0glaa\ te/kna, se/qen ktame/noio xolwqei/v.” Alegra-te comigo, ó Pátroclo, também agora nas moradas de Hades; De fato, todas as coisas que antes prometi, cumpro para ti, tendo arrastado para cá Heitor, eu darei para os cães o comerem cru, 20 e doze nobres filhos dos Troianos em frente à pira degolarei porque estou irado contra teu assassinato. Il. XXIII, 18-22

O lamento ritual (go/ov) iniciado por Aquiles evidencia a concepção de que o morto podia ouvir e, até mesmo, perceber ações que lhe eram dirigidas, ideia reforçada pelos verbos tele/w (cumprir uma promessa) e u9pe/sthn, forma de aoristo de u9fi/sthmi (fazer uma promessa, prometer), no verso 19, bastante esclarecedores a esse respeito. Ora, que sentido haveria nas palavras do Pelida se a audiência do aedo não conhecesse essa concepção? Aquiles, portanto, afirma que cumpre uma promessa feita ao morto agora no Hades. A menção ao local específico em que o morto se encontra: kai\ ei0n 0Ai&%dao do/moisi (também nas moradas de Hades), reforça a ideia de que, mesmo no mundo dos mortos, Pátroclo poderia ouvi-lo. Poder-se-ia contra-argumentar que o corpo de Pátroclo ainda não recebera os ritos funerários devidos e, por esse motivo, sua psykhé encontrava-se, de certa forma, ligada ao mundo dos vivos podendo, pois, possuir algumas percepções. Esse argumento, porém, não se sustenta por dois motivos: primeiro porque Aquiles considerava que a psykhé do amigo falecido já se encontrava encerrada no Hades, e a revelação de que tal fato ainda não acontecera foi feita pela psykhé do filho de 115

Menécio, como se pode observar nos versos em que se narra o motivo do pedido de sepultamento:

qa/pte me o3tti ta/xista, pu/lav 0Ai/dao perh/sw. th~le/ me ei1rgousi yuxai/, ei1dwla kamo/ntwn, ou0 de/ me/ pw mi/sgesqai u9per potamoio e0w~sin, a0ll’ au0twv a0la/lhmai a0n’ eu0rupule\v 1Aidov dw~. kai\ moi do\v xei~r’, o0lofu/romai: ou0 ga\r e1t’ au]tiv 75 ni/somai e0c 0Ai/da~o, e0ph/n me puro\v lela/xhte.

Sepulta-me o mais rápido possível, para que eu atravesse as portas do Hades. A distância mantêm-me as psykhaí, imagens dos mortos, nem permitem unir-me a elas do outro lado do rio. Assim, e sem cessar vagueio pela mansão de largos portões de Hades. Dá-me a tua mão, eu te imploro. Na verdade, não retornarei novamente 75 do Hades, depois que me concederes do fogo que me é devido. Il. XXIII, 65-76

A informação de que a psykhé do morto errava de um lado para o outro diante dos portões do reino de Hades até que lhe fossem prestados os ritos funerários é apresentada como uma novidade para Aquiles; acreditava o herói que a psykhé de Pátroclo já habitava o mundo dos mortos: “xai=re moi, w] Pa/trokle, kai\ ei0n 0Ai5dao do/moisi:” (Alegra-te comigo, ó Pátroclo, também agora nas moradas de Hades.). Desse modo, não há como pensar que a promessa de Aquiles tenha sido feita baseada na concepção de que a psykhé mantivesse vínculos com o mundo dos vivos somente enquanto o corpo estivesse insepulto. O segundo motivo que não permite aceitar essa argumentação é que, mesmo após os ritos funerários realizados, a fim de que a psykhé entrasse no reino dos mortos definitivamente, Aquiles ainda dirige uma prece ao amigo ao devolver o corpo de Heitor ao rei Príamo: 116

“mh\ moi, Pa/trokle, skudmaine/men, ai1 ke pu/qhai ei0n 1Aido/v per e0w\n o3ti #Hktora di=on e1lusa patri\ fi/lw|, e0pei\ ou1 moi a0eike/a dw=ken a1poina. soi\ d’ au] e0gw\ kai\ tw=nd’ a0poda/ssomai o1ss’ e0pe/oiken.” 595

Não te irrites comigo, ó Pátroclo, se estiveres ouvindo ainda que estejas na casa de Hades, porque devolvi o divino Heitor para o pai querido, pois ele não me deu resgate vergonhoso. A ti, mais uma vez, eu darei destas coisas aquilo que te é devido. 595 (Il. XXIV, 592-95)

A prece apresentada nesses versos segue o mesmo esquema daquela feita pelo Pelida ao afirmar que cumpria a promessa feita a Pátroclo em Ilíada XXIII, 18-22. Há de se observar, porém, que o verso 592 poderia ser uma prova de que Aquiles duvidasse de que a psykhé do morto, uma vez no Hades, pudesse ouvir alguma coisa proveniente do mundo dos vivos. A oração ai1 ke pu/qhai, que daria suporte a essa argumentação, pode ser explicada de modo diferente porque o subjuntivo usado com as partículas ai1 ke, conforme David Benning Monro (1882, p. 210), possui valores diversos não se tratando, a rigor, de uma oração condicional. Atente-se, que a oração em pauta pode ter um valor de oração final67. Ainda que essa oração seja interpretada como condicional, não há motivos para considerá-la como indício de que haveria dúvidas sobre a possibilidade de a psykhé ouvir uma prece oriunda do mundo dos vivos. A presença da partícula ke não expressa uma potencialidade. A interpretação por essa via, como faz, por exemplo, Frederico Lourenço com a tradução desse verso (Não te zangues comigo, ó Pátroclo, se é que me consegues ouvir na mansão de Hades), parece pautar-se em comentários de

67 “In most cases (1) this assumption is made in order to assert a consequence (ei0 =if): in other words, it is a condition. But (2) an assumption my also be made in order to express end (ei]mi.. ai1 pi/qhtai I go – suppose he shall listen= I go in the hope that he will listen), and accordingly the clause may be a final clause.” Assim, com base na explicação, a tradução do verso seria “Não te irrites comigo, ó Pátroclo, na esperança de que tu me ouças” é plausível.

117

pesquisadores que recusam atribuir consciência à psykhé do morto. A tradução do verso por: “se tu podes me ouvir” reflete, pois, a seguinte assertiva de G. S Kirk ( 1993, p. 339): “ai1 ke pu/qhai/ ei0n 1Aido/v per e0w\n implica alguma dúvida de que Pátroclo pudesse ouvir ou não. Essa expressão de incerteza foi comum posteriormente.” Um exame dos versos numa perspectiva semântica não evidencia elementos que corroboram essa interpretação sugestiva de que Aquiles tivesse dúvidas quanto à percepção da psykhé de Pátroclo. O verbo pu/qhai, forma de aoristo de peu/qomai, possui, entre outros, os seguintes significados: ouvir, conhecer, compreender, saber. Não há nada na sua constituição morfológica que denote uma potencialidade. Numa perspectiva morfossintática, ainda que a oração seja aceita como uma condicional, há de se observar que, ao ser traduzida por “se tu me ouves estando no Hades”, a fala de Aquiles poderia apenas se referir ao fato de que o amigo, quando vivo, nem sempre ouvia suas palavras. Ora, a morte do filho de Menécio aconteceu precisamente por esse motivo como observa Apolo em Ilíada XVI, 686-7; “nh/piov: ei0 de\ e1pov Phlhi+a/dao fula/acen/h] t’ a1n u9pe/fuge kh=ra kakh\n me/lanov qana/toio.” (Tolo! Se guardasse a palavra do Pelida, poderias ter fugido do destino funesto da morte negra.). De fato, ao emprestar-lhe as armas, Aquiles, em Ilíada XVI, 95-6, advertira Pátroclo de que evitasse a luta, retornasse e deixasse o combate para os outros logo que a ameaça às naus fosse repelida “a0lla\ pa/lin trwpa=sqai, e0ph\n fa/ov e0n nh/essi/ qh/h|v, tou\v d’ e1t’ e0a=n pedi/on ka/ta dhria/asqai.” (mas novamente, retorna, depois de a luz colocares no meio dos navios/ permite que outros combatam junto à planície.”). Pátroclo não ouve o conselho de Aquiles e se afasta para combater os Troianos e, em consequência de sua desobediência, morre pelas mãos de Heitor. Nesse sentido, a interpretação da oração “ai1 ke pu/qhai/ ei0n 1Aido/v per e0w\n, portanto, não confirma a dúvida de Aquiles sobre a incapacidade de a psykhé de Pátroclo ouvi-lo. Como se comentou, ela pode apenas significar que, aquele que outrora não o ouvira e, por conseguinte, fora morto por esse motivo, agora, em situação diferente, devia ouvi-lo. Na sequência, o verso 595 “soi\ d’ au] e0gw\ kai\ tw=nd’ a0poda/ssomai o1ss’ e0pe/oiken.” (“A ti, mais uma vez, darei dessas coisas aquilo que te é devido.”) é um claro exemplo de oferta votiva ao morto, considerando-se que o Pelida promete a Pátroclo parte do resgate pago por Príamo pelo corpo de Heitor. Trata-se de um a!poina (resgate), termo que aparece pela primeira vez em Ilíada I, 13, no passo em que se 118

relata a tentativa de o sacerdote Crises resgatar sua filha feita escrava por Agamêmnon. O emprego do termo a1poina por Aquiles como algo que é devido ao morto torna o vocábulo equivalente ao sentido de ge/rav, isto é, um prêmio de reconhecimento destinado, nesse caso, à psykhé do morto. Assim, a promessa de destinar parte do resgate a Pátroclo contrapõe-se à interpretação de que Aquiles duvidasse da capacidade de a psykhé do morto ouvir sua prece. Há, ainda, no mencionado verso, como assinala G. S. Kirk (1993, p. 338), um dos poucos exemplos nos Poemas Homéricos de que o vivo pudesse temer a continuidade da ira do morto mesmo estando ele encerrado no Hades. Assim, com base na afirmação do pesquisador, pode conjecturar-se que Aquiles age motivado pelo medo de que a psykhé irada do amigo, mesmo do Hades, pudesse causar-lhe dano. Sobre a continuidade do sentimento de animosidade do morto, convém observar a fala de Odisseu em Odisseia XI, 553-4 ao encontrar a psykhé de Ájax. O herói que perdera a disputa pelas armas de Aquiles para o filho de Laertes, mesmo morto, mantinha o sentimento de cólera, conforme os versos: “Ai]an, pai= Tela=monov a0mu/monov, ou0k a1r’ e1mellev/ ou0de\ qanw\n lh/sesqai e0moi xo/lou ei3neka teuxe/wn ou0lome/nwn; (Ó Ájax, filho do irrepreensível Têlamon, mesmo estando morto, não estiveste disposto a esquecer a ira contra mim por causa das malditas armas?). Essas palavras de Odisseu deixam transparecer que o aedo e sua audiência conheciam a concepção de que a psykhé pudesse ter ou conservar sentimentos em relação aos vivos de forma que a narrativa não soa estranha. Como se pode notar pelo exame dos atos relacionados com o funeral de Pátroclo, há evidências de que, no período de composição das epopeias, se praticava o culto dos mortos e, embora alguns autores tenham negado esse fato, ele pode ser confirmado tanto em Ilíada quanto em Odisseia. Outro aspecto que se pode comentar sobre o culto dos mortos é o sacrifício de animais, embora não se deva considerar essa prática intrínseca ao ritual funerário, já que é mencionada apenas nos funerais de Pátroclo e Aquiles. Há, ainda, nas epopeias, dois outros exemplos de sacrifícios cruentos em favor dos mortos, quais sejam, Ilíada XXIII, 29-34, e Odisseia XI, 20-37, passos que serão comentados a seguir. Na sequência dos versos iniciais do canto XXIII, já analisados anteriormente, em que se pôde discutir a prece de Aquiles a Pátroclo por ocasião do retorno dos Mirmidões ao acampamento e a exortação do Pelida aos Aqueus para que 119

prestassem o lamento ritual, que era uma obrigação para com o morto, narra-se que Aquiles procede ao sacrifício de animais, um sacrifício em favor do morto:

au0ta\r o9 toi=sin ta/fon menoeike/a dai/nu. polloi\ me\n bo/ev a0rgoi\ o0re/xqeon a0mfi\ sidh/rw| 30 sfazo/menoi, polloi\ d’ o1i+ev kai\ mhka/dev ai]gev : polloi\ d’a0rgio/dontev u3ev, qale/qontev a0loifh|\, eu9o/menoi tanu/onto dia\ flo/gov 9Hfai/stoio: pa/nth| d’ a0mfi\ ne/kun kotulh/ruton e1rreen ai]ma.

Depois, ele lhes preparou uma suntuosa refeição funerária. Muitos bois luzentes mugiram em volta do aço 30 sacrificados, muitas ovelhas e cabras balidoras; muitos porcos de alvas presas fartos de gordura, tostados tombaram pela chama de Hefesto; em volta do morto, fluía sangue que podia ser pego com uma taça. Il. XXIII, 29-34

A matança de bois, ovelhas e cabras é comum nos sacrifícios cruentos realizados em favor de divindades ou em favor dos mortos. No passo em questão, a narrativa da refeição fúnebre, preparada por Aquiles, apresenta alguns dados que corroboram a prática do culto dos mortos nas epopeias, principalmente quando se analisa o vocabulário empregado. Note-se, na passagem supracitada, que a forma sfazo/menoi, particípio do verbo sfa/zw, é um termo técnico relacionado com rituais de sacrifício e significa cortar a garganta, matar por degolamento. Segundo Pierre Chantraine (1968, p. 1073), nos Poemas Homéricos, inicialmente, o verbo sfa/zw referia-se a animais, significando imolar animais em sacrifício, posteriormente, foi aplicado também a pessoas. Esse verbo é utilizado nas epopeias68 em vários passos que se referem ao ato de matar animais com um corte na garganta, em ações rituais ou não. Também em Odisseia XI,

68 Confira Ilíada I, 459; II, 422; IX, 467; XXIII, 31; XXIV, 622 e Odisseia III, 454; XII, 359; XIV, 426; X, 552; XX, 312 e XXIII, 305. 120

44-7, pode-se observar o verbo sfa/zw, na forma participial sfagme/na69, utilizado para descrever como se encontravam as ovelhas que Odisseu sacrificara para os mortos nos portões do Hades:

dh\ to\t’ e1peiq’ e9ta/roisin e0potru/nav e0ke/leusa mh=la, ta\ dh\ kate/keit’ sfagme/na nhle/i xalkw|=, 45 dei/rantav katakh=ai, e0peu/casqai de\ qeoi=sin, i0fqi/mw| t’ 0Ai+/dh| kai\ e0painh|= Persefonei/h|:

Então, depois de incitar, ordenei aos companheiros as ovelhas, que jaziam com as gargantas cortadas pelo impiedoso aço, esfoladas, queimar, e fazer preces aos deuses, a Hades poderoso e à temível Perséfone:

Od. XI, 44-7 A comparação da passagem relativa à refeição preparada por Aquiles com os versos referentes aos sacrifícios de animais em favor dos mortos, depois da conclusão do processo de sepultamento, como no sacrifício oferecido por Odisseu nos portões do Hades, evidencia que os animais mortos, cujo sangue podia ser recolhido em taças diante do corpo de Pátroclo, foram sacrificados em uma ação ritual votiva configurada como uma refeição fúnebre em favor do morto. Além dos exemplos citados, a fim de demonstrar as referências ao culto dos mortos nos Poemas Homéricos, acrescente-se ainda o passo decisivo para a aceitação dessa prática nas epopeias: o sacrifício feito por Odisseu em favor dos mortos nos portões do Hades e sua promessa de oferecer-lhes, posteriormente, outras oferendas, uma especial ao vate Tirésias:

nh=a me\n e1nq’ e0lqo/ntev e0ke/lsamen, e0k de\ ta\ mh=la 20 eilo/meq’: au0toi\ d’ au]te para\ r9o/on 0Wkeanoi=o h|1omen, o1fr’ e0v xw=non a0fiko/meq’ o3n frase Ki/rkh. 1Enq’ i9erh/i+a me\n Perimh/dev Eu0ru/loxo/v te

69 Frederico Lourenço traduz a forma sfazo/menoi por abatidos, porém o verbo abater não se relaciona necessariamente com a morte por meio de lâmina como nos dois passos citados. 121

e1sxon: e0gw\ d’ a1or o0cu\ e0russa/menov para\ mhrou= bo/qron o1ruc o3sson te pugou/sion e1nqa kai\ e1nqa, 25 a0mf’ au0tw|= de\ xoh\n xeo/men pa=si nekeu/ssi, prw=ta melikrh/tw|, mete/peita de\ h9de/i+ oi1nw|, to\ tri/ton au]q’ u3dati: e0pi\ d’ a1lfita leuka\ pa/lunon. polla\ de\ gounou/mhn neku/wn amenhna\ ka/rhna, e0lqw\n ei0v 0Iqa/khn stei=ran bou=n, h1 tiv a1risth, 30 r9e/cein e0n mega/roisi purh/n t’ e0mplhse/men e0sqlw=n, Teiresi/h| d’ a0pa/neuqen o1i+n i9ereuse/men oi1w| pamme/lan’, o3v mh/loisi metapre/pei h9mete/roisi. tou\v d’ e0pei\ eu0xwlh|=si lith|=si/ te, e1qnea nekrw=n, e0llisa/mhn, ta\ de\ mh=la labw\n a0pedeiroto/mhsa 35 e0v bo/qron, r9e/e d’ ai]ma kelainefe/v: ai9 d’ a0ge/ronto yuxai\ u9pe\c 0Ere/beuv neku/wn katateqnhw/twn.

Quando chegamos ali, aportamos o navio e dele desembarcamos as ovelhas; 20 nós mesmos íamos para junto da corrente do Oceano até que chegamos ao lugar que Circe tinha indicado. Ali enquanto Perimedes e Euríloco mantinham as vítimas, para o sacrifício, eu, depois de sacar a espada pontuda, de junto da coxa, cavei um buraco de um cúbito de ambos os lados. 25 Em torno dele, derramei uma libação para todos os mortos. primeiro de leite e mel, em seguida de doce vinho, e, em terceiro lugar, de água, e, por cima, aspergi uma branca farinha de cevada. Então supliquei imensamente às cabeças dos mortos sem força e prometi sacrificar, quando voltasse para Ítaca, uma vitela sem cria, a melhor, 30 nos pátios e encher uma pira de coisas mais nobres, e, à parte, somente para Tirésias, sacrificar uma ovelha toda preta que se distinguisse entre as de nossos rebanhos. 122

Depois implorei com preces e súplicas e, às raças dos mortos, e, tomando as ovelhas, cortei-lhes a garganta 35 na direção do buraco, e o sangue turvo fluiu. E elas vieram do Érebo, as psykhaí dos mortos que morreram.

Od. XI, 20-36

A narrativa do sacrifício oferecido por Odisseu é decisiva quanto à prática do culto aos mortos nos Poemas Homéricos e à familiaridade da audiência do aedo com esse tema. O verso 29, polla\ de\ gounou/mhn neku/wn amenhna\ ka/rhna (Então, supliquei imensamente às cabeças dos mortos sem força), apresenta a forma gounou/mhn do verbo gounou=mai cujos significados são suplicar, implorar ou colocar-se agarrado aos joelhos, isto é, em posição de súplica e, ao mesmo tempo, prometer cumprir um voto. Essa última noção é reforçada pela forma infinitiva r9e/cein, verso 31, (oferecer um sacrifícios, sacrificar), daí a tradução “prometi sacrificar”. A posição de suplicante, evidenciada pela formação do verbo que possui em sua raiz o substantivo go/nu (joelho), não permite conceber que o herói fizesse a súplica sem a intenção de ser atendido. A promessa de um sacrifício futuro elimina, então, a possibilidade de se pensar que a psykhé do morto não pudesse perceber as ações votivas em seu favor. Outro elemento que merece destaque, nos versos supracitados, diz respeito à necessidade de um espaço físico para a realização do ritual. Ele consiste em um buraco de um cúbito, isto é, de aproximadamente 70 centímetros dos dois lados, denominado pelo termo bo/qrov, conforme o verso 25. A importância desse termo, como anotou Odyssey Tsagarakis (1980, p. 229), advém do fato de haver uma discussão calorosa sobre a necessidade de um altar para que se praticasse um sacrifício cultual, um altar nos moldes daqueles usados para práticas votivas em honra dos deuses. Para os que consideram o altar um elemento essencial para o sacrifício, o ato de Odisseu, a rigor, anota o referido autor, não poderia ser uma ação cultual. Odyssey Tsagarakis (op. cit., p. 229) considera relevante saber que os altares destinados às divindades celestes diferem consideravelmente daqueles em que os deuses ctônicos eram cultuados. Os altares dessas divindades eram, para o autor, estruturas subterrâneas em forma de buracos circulares. A fim de demonstrar a tese de que as estruturas encontradas em túmulos micênicos eram altares destinados ao culto dos mortos, o estudioso se utiliza de dados arqueológicos e afirma que, em Odisseia, 123

no passo referente ao sacrifício realizado por Odisseu, há um claro exemplo de que o bo/qrov remonta à tradição micênica:

O contexto homérico parece ilustrar a função geral do bothros: esse tipo de altar é ideal para oferendas de alimentos não sólidos, incluindo sangue animal, para ambos: os mortos e o deus do mundo subterrâneo. E quanto ao próprio sacrifício do animal? Odisseu o realiza porque está cruzando o reino dos deuses inferiores. Seria costume sacrificar para os mesmos deuses em um enterro que poderia ser tomado como uma passagem de uma pessoa para seu reino? No mesmo contexto, nenhum altar é erigido a fim de queimar animais sacrificados, o que é condizente com a visão acima de que um altar erguido do solo não seria adequado para deuses que seus adoradores consideravam habitando o mundo subterrâneo. Cinzas de animais foram encontradas em bothroí. Nós podemos seguramente assumir que esses altares-buracos, os bothroí, foram também usados para o sacrifico de animais. O contexto homérico, nós vimos, torna claro que o morto recebia tais sacrifícios (TSAGARAKIS, 1980, p.234. Tradução nossa).

O autor observa que, ao praticar o sacrifício aos mortos, Odisseu executa uma ação com propósito pessoal definido, e, se o rito for despido da roupagem mitológica, verifica-se que o ritual é praticado por alguém de status especial, isto é, um rei, personagem que possuía prerrogativas na prática de alguns cultos. Essa informação pode explicar porque os bo/qroi são encontrados apenas em túmulos seletos. Afirma Odyssey Tsagarakis (op. cit., p. 240), com base nesse dado, que há duas conclusões possíveis: primeiro, que os membros da realeza governante praticavam algum culto aos mortos; segundo, que o culto servia ao propósito pessoal ou de uma família em particular. As conclusões a que chega o autor, embora atraentes, apresentam a inconveniência de criar, no mesmo ambiente, dois tipos distintos de crenças, tese que já fora proposta por George E. Mylonas criticado severamente Martin. P. Nilsson. Rejeitar o culto aos mortos nos Poemas Homéricos não é tarefa fácil, pois, como se demonstrou ao longo das reflexões aqui empreendidas, há vários indícios da prática desse culto, ou, pelo menos, da existência de um conceito de que o morto pudesse ouvir as preces dos vivos, concepção que, corroborada pelas evidências arqueológicas e literárias, remonta ao passado micênico. O número reduzido de referências ao culto dos mortos talvez dificulte a aceitação, por parte de alguns pesquisadores, acerca da existência dessa prática nas epopeias homéricas. Porém, convém lembrar que os Poemas Homéricos não são um tratado de religião com intenção de demonstrar ritos e concepções religiosas embora sejam eles fonte de estudos sobre o tema. 124

Assim, das reflexões até aqui realizadas, podem apresentar-se algumas conclusões parciais. A principal delas é a de que todo homem deve morrer e, após a morte, seu destino final é o reino de Hades, onde a psykhé subsiste como um ente autônomo, depois do ritual funerário que lhe é prestado. Esse ritual consiste de vários ritos que compreende desde a preparação do corpo até a forma de se desfazer do cadáver. Quanto a essa última, ao contrário do que muitos autores afirmam, a cremação não é o único método conhecido nos Poemas Homéricos tendo em vista que a inumação é, ao menos, insinuada em alguns passos. Há, como se verificou, evidências arqueológicas apontanto para o fato de que, no período micênico e no subsequente, a cremação e a inumação eram igualmente praticadas. A cremação, predominante nas epopeias, era apenas uma parte do ritual funerário que compreendia vários ritos menores, como já se comentou. Vale lembrar que o sacrifício de animais nos funerais não era uma prática funerária, em virtude de ter sido por só ser mencionado apenas nos funerais de Pátroclo e no de Aquiles. Além de ser uma ação eventual, sua motivação mostrou-se controversa e passível de várias interpretações. A atmosfera em que os funerais estavam envoltos evidencia que, nos Poemas Homéricos, impera a concepção de, mesmo no mundo dos mortos, poderem as psykhaí ouvir as preces dos vivos e perceber as oferendas a elas destinadas. Essa assertiva justifica as preces de Aquiles a Pátroclo e a promessa de Odisseu sacrificar uma vitela em seu palácio e encher a pira de nobres presentes em favor dos habitantes da casa de Hades.

3.3 Os habitantes do mundo dos mortos

Após a abordagem dos principais elementos da escatologia nos Poemas Homéricos e a relação que eles mantêm com a tradição micênica, comentar-se-á de que modo os habitantes do Hades são concebidos pelo aedo, considerado uma autoridade na transmissão de ideias e novas concepções, e por sua audiência cujo horizonte de expectativa não podia ser abruptamente rompido, motivo pelo qual a obra final do poeta estaria, de certa forma, condicionada pelo ambiente de recepção. Precisamente, esse ambiente, familiarizado com os elementos escatológicos apresentados no capítulo precedente, permitirá compreender que as psykhaí conservam a consciência como traço de personalidade individual. 125

3.3.1 A consciência da psykhé do morto

Há uma vasta bibliografia sobre a psykhé nos Poemas Homéricos, e as interpretações são variadas e, em muitos casos, conflitantes, principalmente quando se trata de relacionar esse termo com os mortos. Os textos utilizados, nesse caso, são a fala de Aquiles sobre a psykhé de Pátroclo, no canto XXIII de Ilíada, a fala de Circe sobre a psykhé de Tirésias, no canto X de Odisseia, e a nekyia de Odisseu no canto XI do mesmo poema. Com base nesses textos, tradicionalmente se nega que a psykhé do morto mantivesse, no Hades, algo mais que um tênue resquício de consciência. Esse atributo seria possuído plenamente apenas por Tirésias que o recebera como presente dado por Perséfone, conforme informa Circe em Odisseia;

a0ll’ a1llhn xrh\ prw=ton o9do\n tele/sai kai\ i9ke/sqai 490 ei0v 9Ai+/dao do/mouv kai\ e0painh=v Persefonei/hv, yuxh|= xrhso/menov Qhbai/ou Teiresi/ao, ma/ntiov a0laou=, tou= te fre/nev e1mpedoi\ ei0si: tw|= kai\ teqnhw=ti no/on po/re Persefo/neia oi1w| pepnu=sqai: toi\ de\ skiai\ a0i+/ssousin. 495

mas é preciso, antes, fazer outro caminho 490 e chegar à morada de Hades e da terrível Perséfone, a fim de consultar a psykhé do tebano Tirésias, o cego adivinho, cujos pensamentos estão firmes; só a ele, embora morto, Perséfone concedeu ter conservado a inteligência firme; e as outras sombras esvoaçam. 495

Od. X, 490-5

Essa passagem constitui um dos pontos de apoio para aqueles que negam às psykhaí a consciência. Outra informação importante para os defensores da mencionada tese é a fala de Aquiles em Ilíada XXIII, 103-2: “w2 po/poi, h] r9\a/ tiv e0sti kai\ ei0n 0Ai+/dao do/moisi/yuxh\ kai\ ei1dwlon, a0ta\r fre/nev ou0k e1ni pa/mpan.” (“Ó infeliz, então 126

existe também nas moradas de Hades uma psykhé e um eidolon embora inteiramente sem phrénes.”). Antes, porém de iniciar a análise dos mencionados passos e discutir a controvérsia que eles envolvem, convém abordar em que consiste o conselho de Circe para que Odisseu visite o Mundo dos mortos. Após uma estada agradável junto à filha de Hélios,70 Odisseu implora para que a feiticeira cumpra a promessa de enviá-lo de volta, junto com os companheiros, a sua terra, Ítaca. Circe, em resposta, afirma que o herói devia antes cumprir outra viagem, isto é, visitar o palácio de Hades, como evidenciam os versos 490-1: “a0ll’ a1llhn xrh\ prw=ton o9do\n tele/sai kai\ i9ke/sqai/ ei0v 9Ai+/dao do/mouv kai\ e0painh=v Persefonei/hv. O propósito da arriscada viagem, de acordo com o verso 492, é consultar o vate tebano Tirésias: “yuxh=| xrhso/menov Qhbai/ou Teiresi/ao”, embora a feiticeira não mencione sobre o que seria a consulta. Somente as palavras do adivinho, canto XI, 100, ao encontrar Odisseu no Hades, esclarecem o propósito da conversa; “No/ston di/zhai melihde/a, fai/dim’ 0Odusseu=:” (“tu procuras saber sobre teu doce regresso, ó glorioso Odisseu:”). Posteriormente, no encontro com Aquiles, o próprio herói também esclarece o motivo de sua viagem:

“w] 0Axilei=, Phlh=ov ui9e/, me/g’ 0fe/rtat’ 0Axaiw=n, h]lqon Teiresi/ao kata\ xre/ov, ei1 tina boulh\n ei0poi, o3pwv 0Iqa/khn e0v paipalo/essan i9koi/mhn: 480

“Ó Aquiles, filho de Peleu, o melhor dos Aqueus eu vim consultar Tirésias, caso algum conselho ele pudesse dizer, a fim de que eu pudesse chegar à rochosa Ítaca 480

Od. XI, 478-80

O resultado do encontro de Odisseu com Tirésias provoca dúvidas sobre o real motivo da viagem, pois o vate não disse de que modo o herói devia proceder a fim de

70 Odisseia X, 135-570. Sobre essa fala do herói, confira OdysseusTsagarakis (2000, p. 49). 127

retornar para casa. Assim, parece que o propósito do aedo, ao narrar esse episódio, é introduzir um quadro geral da situação dos mortos no Hades71. A viagem de Odisseu à casa de Hades ocupa a maior parte do canto XI de Odisseia e é denominada nekyia72, termo que se origina, conforme Pierre Chantraine (1968, p. 741), do substantivo nekro/v e significa invocação dos mortos. Porém, não se trata somente de uma invocação aos mortos, que poderia ser feita no mundo dos vivos. Há uma katábasis73, ou seja, uma descida ao mundo inferior motivada por uma necessidade de consultar um morto, Tirésias. Observa-se, todavia, que Odisseu não dirige suas palavras somente ao vate tebano, mas fala com outros mortos. Esses diálogos sustentam a tese de que as psykhaí conservam a consiciência. Há, no entanto, uma dificuldade que precisa ser esclarecida: qual a finalidade do sangue bebido pelas psykhaí? Interpreta-se, tradicionalmente, que o sangue ingerido tem a função de restaurar por um momento a consciência da psykhé, tese claramente rejeitada nessa pesquisa. Assim, há de se proceder à análise da controvérsia comentando-se a passagem em que o navio do herói ancora no local descrito por Circe,74e Odisseu, após fazer descer as ovelhas, realiza o sacrifício conforme as instruções dadas pela feiticeira. Quando o sangue escorre em direção ao buraco, de todos os lados afluem as psykhaí dos mortos. e0v bo/qron, 9re/e ai[ma kelainefe/v: ai9 d’ a0ge/ronto yuxai\ u9pe\r 0Ere/beuv neku/wn katateqnhw/twn. nu/mfai t’ h0i5qeoi/ te polu/tlhtoi/ te ge/rontev parqenikai\ t’ a0talai\ neopenqe/a qumo\n e1xousai: polloi\ d’ ou0ta/menoi xalkh/resin e0gxei/h|sin, 40 a1ndrev a0rei5fatoi bebrotwme/na teu/xe’ e1xontev:

71 Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 72) argumenta que o objetivo dessa viagem seria a conscientização da humanidade de Odisseu que se encontrava em uma aventura nos limites do mundo sobrenatural em que a presença de seres fantásticos era uma constante. Assim, ao descer ao Hades e ter contato com os mortos, o herói relembraria sua condição de mortal, sua finitude humana e estaria pronto para retornar ao mundo real, à humanidade deixada para trás. A conscientização de sua condição humana, conforme a autora, fica evidente quando Tirésias prevê a morte do herói em Ítaca. 72 Conforme Odysseus Tsagarakis (2000, p. 12), o termo é de difícil conceituação: “The specific nature of the nekyia proved difficult to define: it is, or was it originally, a nekyomanteia, a katabasis or both? 73 Héracles também empreendeu uma katábasis com o objetivo de capturar Cérbero. O herói é acompanhado em sua viagem por Atená e Hermes, o psykhopómpos. A menção deste deus pode estar relacionada com a iniciação do filho de Zeus nos mistérios de Elêusis. Outra importante katábasis é a de Orfeu que desce ao Hades voluntariamente a fim de resgatar sua amada. Sobre as diferenças e semelhanças das viagens, confira o primeiro capítulo do livro Studies in Odyssey 11 (2000), escrito por Odysseus Tsagarakis. 74 Confira os caminhos para o mundo dos mortos páginas 48-54 dessa tese. 128

oi4 polloi\ peri\ bo/rqon e0foi/twn a1lloqen a1llov qespesi/h| i0axh~|: e0me\ de\ xlwro\n de/ov h3|rei.

na direção do buraco, o sangue turvo fluiu. E elas, vieram do Érebo, as psykhaí dos mortos que morreram. Mulheres jovens, jovens adolescentes, velhos que sofreram muito, virgens e jovens que tinham o ânimo recém-afligido, e muitos, feridos pelas lanças de bronze, 40 homens valentes com armas sujas de sangue. A maior parte deles ia e vinha de um lado para outro, em torno do buraco, com extraordinários gritos de lamentações. Um medo pálido me tomava. Od. XI, 36- 43

Um dos primeiros problemas que surgem, ao analisar esses versos, é a natureza física das psykhaí porque a percepção do sangue se processou por uma sensação física que ativou uma faculdade humana, isto é a memória. Observa Odysseus Tsagarakis (2000, p. 105) que nos Poemas Homéricos não existe o conceito de alma imaterial75, que só passará a existir a partir de Píndaro poeta de fins do século VI e inícios do século V a. C. A percepção de uma existência material, ou, pelo menos, de um acentuado grau de materialidade pode ser percebido na reação das psykhaí que se mantêm a distância do sangue temendo a espada que Odisseu empunhava a fim de afastá-las:

au0to\v de\ ci/fov o0cu e0russa/menov para\ mhrou= h3mhn, ou0d’ ei1wn neku/wn a0menhma\ ka/rhna ai3matov a]sson i1men, pri\n Teiresi/ao puqe/sqai. 50

75 O autor observa que as psykhaí dos heróis portavam armas e infere desse dado que isso se deve ao fato de elas serem concebidas com certa materialidade. Contra a argumentação de que as psykhaí portariam armas por se apresentarem no Hades com o mesmo aspecto que tinham ao morrerem, ele afirma que não faz sentido pensar dessa maneira porque os corpos eram preparados para o sepultamento. 129

Eu mesmo, tendo sacado a espada pontuda de junto de minha coxa, ficava sentado, não permitindo às cabeças sem força dos mortos vir próximo do sangue antes de eu interrogar Tirésias 50 Od. XI, 48-50 Interrogar e td;tr,rel ou pr A concepção de materialidade da psykhé é duplamente apresentada nesses versos: primeiro, pela ação de Odisseu em sacar a espada para rechaçar a aproximação das psykhaí; segundo, pela reação das psykhaí que, diante da ameaça representada pela espada em punho, se mantêm a distância do sangue. Ora, esses atos não teriam sentido, se a audiência concebesse a alma como imaterial, ficando a narrativa carente de verossimilhança. Deve-se observar, porém, que afirmar a existência de uma concepção de psykhé, detentora de um grau de materialidade, não significa que ela fosse um ente corpóreo porque o corpo é um atributo dos vivos. Essa diferença fica bem evidente nos passos em que Aquiles tenta abraçar a psykhé de Pátroclo:

a0lla\ moi a]sson sqh=qi: mi/nunqa/ per a0mfibalo/te a9llh/louv o0looi=o tetarpw/mesqa go/oio.” a1ra fwnh/sav w0re/cato Xersi fi/lh|sin, ou0d’ e1labe: yuxh\ de\ kata\ xqono\v h0u+/te kapno\v 100

Vamos, coloca-te mais próximo de mim! Abracemo-nos por pouco tempo um ao outro a fim de confortarmos o triste pranto.” Então, falando desse modo, estendeu as suas mãos, e não o agarrou. A psykhé partiu para baixo da terra como uma fumaça. 100

Il. XXIII, 97-100

130

O episódio esclarece a consistência física da psykhé que se apresentou ao herói – que, cansado da batalha, repousava na tenda - idêntica,76 quanto à aparência, ao falecido Pátroclo, porém carecendo de um corpo que pudesse ser tocado, já que desvaneceu como fumaça (h0u+/te kapno\v). Aquiles poderia estar dormindo e sonhando com a psykhé do amigo, o que não significa que a manifestação não fosse real. Há um conteúdo sobrenatural no encontro entre os amigos, porque os sonhos são concebidos pelo Pelida como uma ação divina, ou seja, como oriundo do mundo dos deuses, como atestam as palavras do herói endereçadas ao vate Calcas em Ilíada I, 63; “h2 kai\ o0neiropo/lon, kai\ ga\r t’ o1nar e0k Dio/v e0stin,” (“ou um intérprete de sonhos, o sonho, pois também é proveniente de Zeus,”). Em outras palavras, o sonho é uma manifestação que pertence à esfera do divino, do misterioso, aspecto que lhe confere uma realidade77 idêntica a outros fenômenos. Acresce que a maioria das religiões antigas concebia o mundo como um lugar de hierofania onde as intervenções divinas eram constantes. O outro episódio sobre a natureza física da psykhé, semelhante à concepção expressa nos versos de Ilíada, é a narrativa do encontro de Odisseu com sua falecida mãe :

4Wv e1fat’, au0ta\r e0gw\ g’ e1qelon fre/si\ mermhri/cav mhtro\v e0mh=v yuxh\n e9le/ein katateqnhui/hv. 205 tri\v me\n e0formh/qhn, e9le/ein te/ me qumo\v a0nw/gei, tri\v de\ moi e0k xeirw=n skih|= ei1kelon h2 kai\ onei/rw| e1ptat’ [...]

Assim ele falou, e prontamente, tendo meditado em meu coração, eu desejei abraçar a psykhé de minha mãe falecida. 205 Três vezes me lancei, e o ânimo conduzia-me a abraçá-la, três vezes de meus braços como uma sombra ou um sonho ela evolou [...]

76 Confira Ilíada canto XXIII, 59-64 77 “O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para “os primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia.” (ELIADE, M. 1992, p. 16). 131

Od. XI, 204-7

Em ambos os episódios, as psykhaí se desvanecem ou evolam semelhante a fumaça, sombra ou sonho. No entanto, isso não implica a concepção de imaterialidade da alma, como se comentará posteriormente. O aedo, ao mencionar a natureza tênue da psykhé, não consegue concebê-la como totalmente abstrata, porque está condicionado por seu ambiente histórico no qual a concepção de uma realidade imaterial ainda não se havia iniciado. Convém observar que somente com o advento da filosofia se começa a refletir sobre a possibildade da existência de entidades totalmente abstradas e imateriais. Os habitantes do reino de Hades possuem, portanto, um acentuado grau de materialidade e, por esse motivo, podem ter reações a estímulos externos, seja a presença do sangue seja à ameaça da espada de Odisseu. Convém, pois, entender o significado das palavras de Circe sobre Tirésias, como o único que mantém a inteligência estando no Hades, e também o que Aquiles desejou dizer ao afirmar que no Hades há um eídolon sem phrénes. O autor que talvez mais tenha influenciado o estudo sobre a psykhé foi Erwin Rohde78 cujas pesquisas já foram referidas anteriormente. Esse pesquisador, orientado pelas afirmações de Circe e de Aquiles, nega que a psykhé, depois de encerrada no mundo dos mortos, continuasse a manter algum atributo que possuísse em vida:

Descidas para o tenebroso mundo subterrâneo, agora flutuam inconscientes ou, no máximo, com uma meia consciência, gemendo com diminutos gritos estridentes, impotentes, indiferentes. Naturalmente, tudo aquilo que havia se foi para sempre: carne, ossos, tendões e diafragma, sede de todas as faculdades do espírito e desejos. Todos esses elementos estavam ligados ao parceiro visível da psykhé que foi destruído (ROHDE, 1950, p. 13. Tradução nossa.).

Após afirmar que os habitantes do Hades não mantinham a consciência e comentar a função do sacrifício oferecido por Odisseu no mundo dos mortos, Erwin Rohde faz uma afirmação que influencia gerações posteriores79:

78 Sobre as principais interpretações de Erwin Rohde Sobre a psykhé nos Poemas Homéricos, confira A Yuxh/ nos Poemas Homéricos (2010) 79 Entre os autores que seguiram as afirmações do autor, podem ser mencionados Walter Burkert, Jan Bremmer, Alfred Heubeck e George E. Dimock. 132

Não há dúvidas de que a libação, neste relato, é uma oferenda destinada a aplacar as almas dos mortos. O sacrifício dos animais não é considerado pelo poeta certamente como um sacrifício, e o sangue oferecido às almas para que bebessem dele não tem outra finalidade que não fosse a de devolver-lhes momentaneamente a consciência (e a Tirésias, cuja consciência permanece intacta, o dom da adivinhação) (ROHDE, op. cit. p. 37, Tradução nossa).

Embora apoiado em suas teses, por vários autores, as afirmações de Erwin Rohde se mostram problemáticas porque partem de um postulado obscuro e de difícil interpretação, isto é, as mencionadas afirmações de Circe e de Aquiles sobre a condição da psykhé. Além disso, ele menciona que seria mantida, pelo menos uma meia consciência, não esclarecendo, porém, em que isso consistiria80. Assim, deve-se voltar aos Poemas Homéricos a fim de evidenciar a situação das psykhaí. A primeira consideração deve levar em conta os conselhos dados por Circe a Odisseu no diz respeito à visita do herói ao Hades81 para consultar o vate tebano, o único que conservava sua mente, sua consciência naquele lugar. A essa orientação somam-se as instruções acerca das libações e do sacrifício dos animais oferecidos aos mortos. A feiticeira ainda acrescenta que as demais psykhaí não deviam se aproximar do sangue das vítimas imoladas antes de Tirésias. Porém, o exame atento dos versos que narram o episódio mostra que, em momento algum, se menciona qual seria a função do sangue, embora muitos estudiosos, como já se mencionou, afirmem que ele serviria para restaurar momentaneamente a consciência das psykhaí. Há clara referência a Tirésias como o único que mantém a mente firme,82conforme o verso 493: tou= te fre/nev e1mpedoi\ ei0si. Acrescente-se que a feiticeira ainda informa que ele possui o no/ov como dádiva de Perséfone: tw|= kai\ teqnhw=ti no/on po/re Persefo/neia/oi1w| pepnu=sqai: toi\ de\ skiai\ a0i+/ssousin. Observa-se, porém, que o no/ov é um atributo que se diferencia de frh=n, e Circe ressalta que as demais psykhaí não o mantém. No entanto, não se pode inferir da carência do no/ov a completa ausência de frh=n porque tal ideia não está expressa nos versos. A presença do

80 Erwin Rohde faz afirmações que soam estranhas, como, por exemplo, considerar que as informações sobre o mundo dos mortos seriam simplesmente uma ficção do poeta que estaria recorrendo a elementos fossilizados, carentes de sentido a fim de causar um efeito poético. Essas ponderações do autor devem ser entendidas em um contexto no qual as teorias da narrativa ainda não se tinham desenvolvido e o estudo da composição oral dos poemas começava a se esboçar. O aedo faz uso de materiais poéticos antigos ao compor sua obra, porém a audiência precisa possuir uma enciclopédia de conhecimentos que lhe permita compreender a narrativa. Em outras palavras, o poeta deve se ater à estrutura cultural em que está inserido. 81 Confira Odisseia X, 487-540. 82 Confira Odisseia X, 493. 133

adjetivo e1mpedoi (firme) no verso 493 confere uma característica específica às phrénes de Tirésias e leva a deduzir que as outras psykhaí possuíssem esse atributo com outra particularidade. Aqueles que defendem a tese de que a psykhé não mantém a consciência parecem tomar no/ov e frh=n como sinônimos e interpretar os mencionados versos sobre Tirésias considerando a fala de Aquiles em Ilíada; w2 po/poi, h] r9\a/ tiv e0sti kai\ ei0n 0Ai+/dao do/moisi/yuxh\ kai\ ei1dwlon, a0ta\r fre/nev ou0k e1ni pa/mpan.” (“Ó infeliz, então existe também nas moradas de Hades uma psykhé e um eídolon embora inteiramente sem phrénes.”). Relacionar, porém, as duas referências intrepretando-as do mesmo modo não parece a via mais adequada porque, embora Aquiles afirme que no Hades haja uma psykhé e um eidolon inteiramente sem phrénes, o herói não se comporta em relação ao amigo falecido com base nessa concepção. Como se demonstrou anteriormente, mesmo após essa afirmação, o Pelida dirige-se ao amigo falecido83. Antes de propor uma solução para esse problema, é necessário refletir sobre a função do sangue das vítimas oferecidas aos mortos por Odisseu, pois, como já se mencionou, nas instruções dadas por Circe não há nada a esse respeito. A falta de uma referência sobre o papel do sangue leva a questionar a interpretação tradicional de que ele serviria para restaurar a consciência da psykhé que o ingerisse. Aqueles que defendem a tese da restauração momentânea da consciência pela ingestão do sangue, entre os quais se podem citar Erwin Rohde e S. West, se valem dos versos em que Tirésias ensina a Odisseu como proceder para falar com Anticleia:

4Wv e1fat’, au0ta\r e0gw/ min a0meibo/menov prose/eipon: “Teiresi/h, ta\ me\n a1r pou e0pe/klwsan qeoi\ au0toi/. a0ll’ a1ge moi to/de ei0pe\ kai\ a0treke/wv kata/lecon: 140 mhtro\v th/nd’ o9ro/w yuxh\n katateqnhui/hv: h9 d’a0ke/ous’ h]stai sxedo\n ai3matov, ou0d’ e9o\n ui9o\n e1tlh e0sa/nta i0dei=n ou0de\ protimuqh/sastai. ei0pe/, a1nac, pw=v ke/n me a0nagnoi/h to\ e0o/nta;” 4Wv e1famhn, o9 de\ m’ au0ti/k’ a0meibo/menov prose/eipe: 145

83 Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 78) observa que essa afirmação de Aquiles não se fundamenta em uma autoridade especial, mas procede da limitada experiência do encontro com o morto. Acentua a autora que, mesmo com essa afirmação, a narrativa do fato de as demais psykhaí impedirem a entrada de Pátroclo no Hades evidencia que elas mantinham a consciência. 134

“r9hi+/dio/n ti e1pov e0re/w kai\ e0ni\ fresi\ qh/sw: o3n tina me/n ken e0a=|v neku/wn katateqnhw/twn ai3matov a]sson i1men, o9 de\ toi nhmerte\v e0ni/yei: w|[ de/ k’ e0pifqone/oiv, o9 de\ toi pa/lin ei]sin o0pi/ssw.”

Assim ele falou. Depois, eu ,respondendo, disse-lhe: Ó Tirésias, os próprios deuses fiaram essas coisas. Mas vamos, dize-me agora isso e fala verdadeiramente: 140 vejo a psykhé de minha mãe falecida; ela está sentada em silêncio perto do sangue, nem o próprio filho ousou olhar de frente o filho nem a ele dirigir a palavra. Dize-me, ó senhor, como ela reconheceria que sou eu?” Assim falei. E ele, imediatamente, respondendo-me disse: 145 “Uma palavra fácil direi e colocarei em tua mente: a qualquer um dos mortos que morreram que tu permitires se aproximar do sangue, este falará para ti coisas verdadeiras; mas aquele que tu repreenderes, novamente esse voltará para trás.

Od. XI, 138-49

Tirésias responde a Odisseu que qualquer psykhé que ele permitisse se aproximar do sangue, poderia falar-lhe verdadeiramente conforme os versos 147 e 148: “o3n tina me/n ken e0a=|v neku/wn katateqnhw/twn/ ai3matov a]sson i1men, o9 de\ toi nhmerte\v e0ni/yei:” Aquela que não tivesse tal permissão se afastaria. Após essa resposta, o adivinho volta-se para o interior do Hades, e o herói, seguindo suas instruções, consegue conversar com sua mãe. É precisamente nesses versos que se encontra a fundamentação da tese de que o sangue bebido pelas psykhaí lhes devolve, momentaneamente, a consciência. Porém, uma análise do vocabulário dos versos suscita problemas para a defesa desta tese amplamente defendida. Conforme as instruções dadas por Circe sobre o sacrifício oferecido por Odisseu às psykhaí, em momento algum foi esclarecida a utilidade do sangue, e considerando que psykhé de Tirésias, conforme declara a feiticeira, era a única psykhé que mantinha a inteligência, mesmo estando no Hades, enquanto as outras erravam como sombras, 135

o sangue não teria a função proposta por Erwin Rohde e outros pesquisadores, pelo menos para o tebano. A tese do sangue como um avivador temporário da consciência torna-se ainda mais questionável no passo em que Odisseu, ao descrever a situação de sua mãe, afirma que ela permanece sentada em silêncio ao lado do sangue, sem ousar olhar para sua face. O verbo utilizado na passagem é *tla/w (e1tlh, verso 143), que, seguido de um infinitivo, pode ser traduzido por ousar, enfrentar, ter coragem, ter espírito para fazer algo e atrever-se (Richard John Cunfliffe, 1963, p. 386). O uso desse verbo já denota certo grau de consciência da psykhé, pois o que se evidencia aqui não é a incapacidade de exercer a ação, e sim a falta de desejo ou motivação para tal. Após e perguntar sobre a vinda do filho, vivo, ao Hades, a psykhé de Anticleia é interpelada a falar sobre a situação de Ítaca, Laertes, Telêmaco e Penélope. Em sua fala, Odisseu pede para que a mãe declare verdadeiramente (a0treke/wv) sobre essas coisas. Deve-se observar que não há menção do tempo transcorrido entre a morte de Anticleia e o encontro no Hades, e o tempo verbal usado pelo narrador é o presente. Assim, uma pergunta se impõe: como poderia Anticleia saber da situação presente de Ítaca para falar verdadeiramente sobre ela? A afirmação de Tirésias, ao encontrar Odisseu no Hades, ajuda a responder a questão. Ora, o vate pede ao herói que afaste a espada para que ele pudesse beber do sangue porque somente assim falaria coisa sem erro, infalível (nhmerte/v, Od. XI, 95). Dessa afirmação, pode-se concluir que a psykhé poderia falar coisas falíveis ou erradas caso não provasse do sangue. Tal conclusão é confirmada quando o adivinho tebano pede para beber do sangue a fim de falar coisas isentas de erro; Od. XI, 96: “ai3matov o1fra pi/w kai\ toi nhmerte/a ei1pw.” (a fim de que eu beba do sangue e fale coisas isentas de erro.). Uma vez que Tirésias mantinha a consciência, o sangue só poderia ter a função de lhe restaurar a capacidade de falar com isenção total de erro. Aqui sua condição se iguala à das outras psykhaí, isto é, embora mantivesse seu no/ov, ele careceria da capacidade de vaticinar como outrora ou não tinha força para isso. A resposta mais acertada para a questão proposta parece ser que o sangue confere à psykhé de Anticleia uma capacidade mântica semelhante à de Tirésias. O adivinho tebano só fala com isenção de erro, só vaticina após beber o sangue84. A

84 Sobre esse tema, compartilha-se da opiniãoJohn Heath (2005, p. 397): “Tiresias was a prophet when alive, and thus he alone of the dead has powers to foresee the future.There is no evidence in the text that 'prophecy' is directly related to the blood in any other case, but for him the links between blood and 136

psykhé de Anticleia está em situação análoga. Corrobora essa interpretação o fato de Tirésias, ao encontrar Odisseu, perguntar qual o motivo da visita do herói ao mundo dos mortos85. A pergunta careceria de sentido se o vate mantivesse sua capacidade mântica. Vê-se, portanto, que não se pode precisar que o sangue tivesse a capacidade de restaurar a consciência da psykhé. A interpretação de que o sangue confere faculdade mântica é defendida por Christiane Sourvinou-Inwood86 que propõe nova solução para o problema. Para a autora (1995, p. 81), após a interrupção da narrativa de Odisseu sobre sua visita ao Hades, por ocasião de sua estadia, na corte dos Feáceos, no verso 330, do canto XI, e sua retomada no verso 385, não há alusão à necessidade de a psykhé beber o sangue para falar com Odisseu87. Aquiles, por exemplo, não bebeu do sangue, pelo menos o fato não é mencionado nos versos 471-540. Outro exemplo citado pela autora é a reação da psykhé de Ájax que se mantém afastada de Odisseu por conservar, mesmo no Hades, a animosidade sentida em vida contra o herói de Ítaca, sentimento que se manifesta sem a necessidade de beber do sangue. Observa Christiane Sourvinou- Inwood que Ájax é capaz de fazer e sentir coisas que só poderiam ser realizadas após a ingestão do sangue, conforme a interpretação tradicional. Entretanto, a interpretação da autora é criticada por John Heath (2005, p. 398) que defende a tese tradicional da função do sangue como avivador momentâneo da consciência das psykhaí: “A regra geral é que o morto não pode falar com o vivo sem o gosto reanimador do sangue, mas Homero está determinado por ela apenas por sua necessidade temática.” Pelas palavras do autor, pode-se inferir que ele considerava que os ouvintes do aedo partilhavam dessa concepção cuja aceitação geral obrigaria o poeta a referir-se a ela, ainda que brevemente, ao narrar o diálogo de Odisseu com as psykhaí. Assim, para John Heath, o fato de não ser mencionado que ambos os heróis não beberam do sangue não implica dizer que eles não o tivessem feito porque a audiência supriria mentalmente a repetição da cena88. Nas palavras do autor: “mas eu prediction are important. After five verses, the Theban seer quickly drinks the blood and immediately begins his lengthy prognostications.” 85 Confira Odisseia, XI, 90-4. 86 Embora se aceite nessa tese muitas afirmações de Christiane Sourvinou-Inwood, rejeita-se sua argumentação de que a ingestão do sangue, conforme ocorre na nekyia, seria uma invenção do poeta. Há evidências arqueológicas, já mencionadas anteriormente, de que os Micênicos faziam ofertas de líquidos para os mortos. Por esse motivo, parece mais acertado, pois, interpretar que o poeta fazia uso de uma antiga concepção micênica. 87Sobre o verso 390 em que aparece “e0pei\ pi/en ai[ma kelaino/n” logo depois da cesura, a autora diz que ele pode ser uma conjectura tardia porque só aparece em alguns manuscritos. 88 John Heath (2005, p. 391) 137

acredito que o cantor homérico podia esperar que sua audiência entendesse a ação típica sem, explicitamente, repetir cada detalhe.” O argumento apresentado por John Heath (2005, p. 391) segundo o qual a audiência poderia supor a repetição da ação de beber do sangue sem que esse fato estivesse explícito no texto, já fora criticado por Christiane Souvinou-Inwood (2005, p. 81) com o seguinte argumento: “A noção de que somos nós que, mentalmente, completamos o ato de beber do sangue a cada vez, é falaciosa. A intenção de Homero nos é inacessível e, menos acessível ainda é como a audiência podia apreender o sentido da narrativa.”. A crítica da autora é pertinente, pois, na técnica de composição oral utilizada nos Poemas Homéricos, há repetições de vários elementos: fórmulas, epítetos, símiles e versos idênticos89, inteiros ou em partes. Assim não parece razoável que se deva suprir metalmente a ausência de um elemento importante da narrativa como propõe John Heath. Uma evidência da repetição de elementos do verso, em um episódio em que se poderia esperar que a audiência suprisse mentalmente a informação já mencionada, pode ser encontrada, por exemplo, no catálogo das heroínas em Odisseia XI, 225-327. Nessa passagem, Odisseu, após conversar com sua mãe, interrogou as heroínas que se aproximaram. A fim de que as psykhaí não bebessem do sangue todas ao mesmo tempo, o herói desembainha a espada e só permite a aproximação de uma de cada vez. Na sequência da narrativa, no verso 235, observa-se a utilização da forma verbal i1don (vi) junto com seu complemento, no referido passo, o nome da heroína, formando uma estrutura sintática usual no dialeto homérico repetida nove vezes nessa passagem. Ora, se for aceito o argumento apresentado por John Heath para justificar a ausência da expressão “bebeu do sangue”,ou seja, que a audiência a supriria mentalmente, cria-se uma dificuldade para explicar a repetição nesse passo que o mesmo recurso poderia ser aplicado. Desse modo, não se pode saber, com certeza, a função do sangue dos animais sacrificados por Odisseu no Hades, pois os versos que narram esse evento não

89 Trata-se da repetição de estruturas que não se enquadrariam nas definições de fórmulas, epítetos ou símiles. A fórmula, amplamente utilizada nos Poemas Homéricos, consiste em um conceito amplo, definido por Milmann Parry (1987, p. xxxi) como uma conjunção de frases verbais utilizadas repetidamente do mesmo modo, na mesma parte do verso e sob as mesmas condições métricas para expressar a mesma ideia. 138

esclarecem em absoluto a questão. A hipótese mais provável é a de que o sangue apenas ativaria uma capacidade mântica, como se argumentou.

3.3.2 Duas teses: um problema

As reflexões até aqui apresentadas evidenciam que interpretar a condição da psykhé do morto nos Poemas Homéricos é tarefa complexa e, embora haja tendência para simplificar o problema com a imposição de uma tese defendida de maneira quase dogmática por diversos autores, como se demonstrou anteriormente, devem-se buscar teses alternativas que lancem luz sobre esse tema e enriqueçam o debate. A leitura cuidadosa dos Poemas Homéricos, com o objetivo de entender a situação da psykhé, permite uma posição diferente da defendida pela maioria dos estudiosos, qual seja, após a morte, a psykhé do morto vagueia no Hades como sombra sem consciência, faculdade restaurada, momentaneamente, após a ingestão do sangue do sacrifício de animais. Porém, verificou-se que essa tese apresenta questionamentos que dificultam sua aceitação como concepção absoluta acerca da condição da psykhé nas epopeias. Walter Burkert (1995, p. 382), por exemplo, apresenta uma opinião diferente e cautelosa, ao comentar o tema, pois defendeu a descontinuidade da concepção de psykhé inconsciente com base nos cantos XI e XXIV de Odisseia e no canto XIII de Ilíada, particularmente no verso 416, em que se menciona que a alma do morto podia alegrar-se. Embora Walter Burkert apresente uma posição diversa, ele se equivoca, ao mencionar o verso 416 do canto XIII de Ilíada para legitimar sua afirmação. O episódio em questão trata da morte do aqueu Ásio, assassinado por Idomeneu. Deífobo, companheiro do morto, promete ao amigo que lhe alegrará o coração porque lhe enviará um companheiro para seguirem juntos para o Hades. A confusão se dá porque o corpo de Ásio estava tombado no campo de batalha, ou seja, insepulto, situação análoga à do corpo de Pátroclo, em Ilíada, canto XXIII, 71-6, e à de Elpenor em Odisseia XI, 51-4. Em ambos os casos, a rigor, a morte não havia sido concluída por falta dos ritos funerários, e isso mantinha a psykhé do morto ligada ao mundo dos vivos, concepção usualmente aceita por quase todos os estudiosos. 139

Por outro lado, Christiane Sourvinou-Inwood,90 em seu livro Reading the Greek Death to the End of the Classical Period, publicado em 1995, sustenta que, nos Poemas Homéricos, há duas concepções sobre a condição da psykhé no Hades, e esse fato, na opinião da autora, não era estranho à audiência do poeta. Analisando a fala de Aquiles, ao encontrar a psykhé do amigo Pátroclo – cena que constitui um dos fundamentos da tese defendida por alguns estudiosos de que os habitantes do Hades não conservam a consciência –, Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 79) afirma que, a despeito do comentário do Pelida expressar uma ideia de inconsciência da psykhé, o que se nota nos citados versos, principalmente pela ação das demais psykhaí em não permitir que a alma de Pátroclo cruzasse os portões do Hades e a elas se juntasse, é uma concepção de que as psykhaí mantinham a consciência já que reagem a fim de resguardar a entrada daqueles que não receberam os ritos necessários para a entrada definitiva no mundo dos mortos. Nesse episódio, estariam, na opinão da autora (op. cit., p. 78), justapostas duas percepções sobre a natureza das psykhaí, sem que haja entre elas contradição lógica para o poeta e sua audiência, porque ambas as concepções somente poderiam ser selecionadas no momento de performance, em um ambiente no qual as “sombras” fossem percebidas como “vivas”. Nesse contexto, não haveria conflito entre a ação das psykhaí que não deixaram Pátroclo atravessar para o outro lado do rio e a elas se juntar. Observa a autora que a fala de Aquiles reflete apenas uma especulção desse personagem sobre o assunto. Outra importante afirmação de Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 79) sobre a impossibilidade de se sustentar a tese da inconsciência da psykhé nos Poemas Homéricos reside no fato de que essa concepção não se harmoniza com a ideia de que as Erínias puniam, sob a terra, aqueles que prestaram falso juramento, conforme Iliada III, 276-9 e XIX, 257-60. Nesses passos, estaria expressa a noção de destino individual da psykhé, noção que não faria sentido algum em um contexto que concebesse a psykhé como um ser inconsciente. Conclui a autora que, no mundo homérico e pós-homérico crescia e se desenvolvia uma tendência em considerar o destino individual da psykhé sobrepondo-o ao destino coletivo. Esse fenômeno que leva à conclusão de que, no período de composição final dos Poemas Homéricos, a concepção de psykhé consciente era mais

90 As principais linhas de reflexões da autora já foram apresentadas na referida pesquisa de mestrado A psykhé nos Poemas Homéricos. 140

corrente porque somente a psykhé provida de consciência poderia ser objeto de reflexão de um destino individual. Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit., p. 78) afirma que as concepções sobre a natureza das psykhaí, nesse episódio, foram justapostas sem que isso implicasse uma contradição lógica para o poeta e sua audiência porque, se fosse diferente, ao compor o poema, a seleção desse material não teria sido possível. Para a autora, deve-se supor que a escolha do material utilizado na composição só faz sentido em um contexto em que para o poeta e sua audiência, as sombras (psykhaí) fossem vivas. Assim resulta para Christiane Sourvinou-Inwood que não há nada problemático quando se notam as ações de as psykhaí impedirem a entrada de Pátroclo no Hades e a observação de Aquiles sobre os habitantes do Hades não possuírem phrénes, pois ela seria apenas uma especulação do personagem. A tese de que há nos Poemas Homéricos duas concepções sobre a conservação da consciência das psykhaí, como defende Christiane Sourvinou-Inwood, se apresenta coerente com os versos das epopeias porque não há como conciliar a realização de libações, promessas de sacrifícios futuros e preces aos mortos em um contexto em que predominasse apenas a concepção de psykhé inconsciente91. De modo semelhante ao que ocorreu com os estudos de George E. Mylonas, sobre os Micênicos e o mundo dos mortos, que influenciaram gerações de estudiosos posteriores, que rejeitaram, por muito tempo, concepções contrárias às teorias do pesquisador, a tese da psykhé inconsciente e da necessidade do sangue para restaurar-lhe, momentaneamente, essa faculdade, firmou-se quase como um dogma de modo que, até os estudos de Christiane Sourvinou-Inwood, as afirmações de George

91 Confira as principais reflexões de Christiane Sourvinou-Inwood sobre esse tema em A psykhé nos Poemas Homéricos (2010, p. 63): “A autora (1995, p. 79) julga que é possível entender a presença das duas concepções observando o desenvolvimento do conceito de destino futuro do homem. Para ela, em geral, enquanto a crença em um destino coletivo das yuxai/ – o Hades – se harmoniza com as noções de yuxh/ consciente e de yuxh/ inconsciente, a noção de destino individual é coerente apenas com a primeira noção, tendo em vista que cada yuxh/ será julgada somente por seus próprios atos. Como a tendência para uma crença no destino individual da yuxh/ estava emergindo nos mundos homérico e pós- homérico, pode-se concluir, segundo a autora, que a crença na yuxh/ desprovida de consciência estivesse mais viva no período em que os Poemas Homéricos adquiriram a sua forma final, ou seja, no VIII século a. C. Para a pesquisadora (op. cit. p. 79), a concepção de yuxh/ provida de atividades mentais aparece em várias partes dos poemas, enquanto a de yuxh/ inconsciente é menos usual, apresentando- se fora do canto XI da Odisseia em passagens circunscritas, como, por exemplo, na fala de Aquiles (Il. XXIII, 103-4), no encontro com a yuxh/ de Pátroclo e na referência de Circe ao mundo dos mortos (Od.X, 494), bem como nas instruções da feiticeira sobre como Odisseu devia proceder aos ritos para os mortos (Od. X, v.516-36).” 141

E. Mylonas se apresentavam como a única tese viável. Porém, a ninguém é dado o dom da interpretação absoluta em questões literárias. Certamente, o tema é controverso, e os autores divergem ao tratarem do assunto. No entanto, seguindo a linha de reflexão estabelecida por Christiane Sourvinou-Inwood, Odysseus Tsagarakis (2000, p. 106) relaciona a narrativa mítica de cinco personagens, a saber, Tântalo, Sísifo e Títio, denominadas pelo estudioso “físicos” ─ por padecerem castigo no corpo ─, Órion e ─, que continuam exercendo no Hades as mesmas atividades praticadas em vida ─ com a afirmação de Aquiles de que a psykhé no Hades não possui phrén. O autor argumenta92 em favor da tese de Christiane Sourvinou-Inwood e também defende a existência de duas concepções das condições da psykhé no Hades, sem que haja contradição entre elas, pois ambas eram aceitas pela audiência do poeta. Para o estudioso, as duas concepções não são excludentes, e não é preciso buscar explicações engenhosas a fim de considerá-las como presença de elementos não homéricos nos Poemas porque ambas fariam parte do contexto cultural93 do poeta e integravam duas tradições que, embora diferentes, estavam unificadas; uma mais antiga e outra mais recente que estava mais direcionada às necessidades individuais dos ouvintes. A menção aos castigos sofridos por Tântalo, Sísifo e Títio remeteria, portanto, à “necessidade pessoal”. A linha de reflexão adotada por Odysseus Tsagarakis deixa claro que, para ele, as duas concepções podem ser o resultado de um processo de bricolagem em que elementos culturalmente diversos convergem num sistema religioso no qual poeta e audiência partilham as mesmas noções. Ao analisar os versos referentes à relação de Aquiles com a psykhé de Pátroclo, Odysseus Tsagarakis (2000, p. 106) observa que o Pelida apresenta um comportamento de quem considera a psykhé do amigo falecido muito mais que uma mera sombra porque lhe promete parte do resgate oferecido por Príamo pelo corpo de Heitor: “Aquiles diz que partilhará os a1poina com Pátroclo e é difícil ver qual uso Pátroclo faria deles se ele fosse uma mera sombra94.”

92 A argumentação do autor baseia se nos mesmos versos e exemplos apresentados por Christiane Sourvinou-Inwood. 93 “The two views underlie certain religious beliefs that belonged to the poet’s cultural heritage and were an integral part of a unified and yet diverse poetic tradition, as we will see presently.” (Odysseus Tsagarakis, 2000, p. 109). 94 Odysseus Tsagarakis (op. cit., p. 106). 142

Os argumentos do autor se assemelham àqueles apresentados por Christiane Sourvinou-Inwood de sorte que não se faz necessário comentá-los. Porém, vale lembrar a afirmação de Odysseus Tsagarakis sobre a nekyia, passo em que uma das características da epopeia está bastante evidente, ou seja, a utilização de elementos heterogêneos na composição, alguns acentuadamente de épocas diferentes. Tal característica explicaria, na opinião do autor, porque há diferentes concepções na Nekyia, mormente em relação ao Hades95. Quanto à aparente contradição entre as concepções de post-mortem nos Poemas Homéricos, convém citar as palavras do autor:

Como se indicou acima, o problema inerente ao uso de material, aparentemente incongruente, deve ser visto à luz da finalidade do poeta. Como herdeiro de uma tradição religiosa e cultural diversificada, o poeta não poderia adotar facilmente alguns dos seus aspectos e rejeitar outros. Sua audiência, também, pertencia a diferentes contextos culturais, como dramatis personae de sua época, e é razoável supor que eles diferissem em seus pontos de vista sobre a vida após a morte. (TSAGARAKIS, 2000, p. 105. Tradução nossa)

A discussão poderia ser prolongada sem, no entanto, se chegar a uma tese definitiva. Assim, faz-se mister concluir, parcialmente, observando os principais elementos da reflexão empreendida sobre a condição da psykhé no reino de Hades: primeiro, nos versos dos Poemas Homéricos, não há prova que leve à aceitação quase dogmátca da tese da psykhé desprovida de consciência, como defende tradicionalmente a maior parte dos autores desde os estudos de Erwin Rohde no final do século XIX. Acrescente-se que a tese da utilização do sangue como elemento reavivador temporário da consciência não se apresenta totalmente satisfatória, pois, como se pôde ver, somente algumas psykhaí que conversaram com Odisseu beberam o sangue, embora todas as outras demonstrassem ter consciência, como se observou nos versos 465-70 e 541-67 do canto XI de Odisseia, referentes à psykhé de Aquiles e à de Ájax. Assim, nos Poemas Homéricos, há duas concepções acerca da situação da psykhé do morto, ou seja, o conceito de que depois de morto e encerrado definitivamente no Hades a consciência do morto desaparece, e outra, mais corrente nas epopeias, como se propôs, segundo a qual a consciência, mesmo depois da morte, se mantém intacta. Deve-se observar, porém, que as epopeias homéricas não

95 Odysseus Tsagarakis (op. cit., p. 111), “Given the fact that Homeric epics contain heterogeneous elements of Greek civilization, it is not surprising that nekyia contains different concepts of Hades.” 143

são um tratado de religião ou de teologia, mas uma obra literária em que se podem vislumbrar aspectos culturais e religiosos dos ouvintes. Desse modo, as duas visões sobre a psykhé não são contraditórias e parecem remontar a estratos culturais diversos sendo, pois, ambas familiares à audiência do poeta, como constataram Christiane Sourvinou-Inwood e Odysseus Tsagarakis. Se não há, por um lado, contradição entre as duas concepções sobre a condição da psykhé do morto no Hades, por outro, o destino de Menelau, abduzido para os Campos Elísios, conforme Odisseia IV, 561-9, apresenta-se em aparente desacordo com a visão tradicional de que todos os homens devem morrer e ir para o mundo dos mortos.

soi\ d’ ou0 qe/sfato/n e0sti, diotrefe\v w] Mene/lae, 1Argei e0n i9ppobo/tw| qane/ein kai\ po/tmon e0pispei=n, a0lla/ s’ e0v 0Hlu/sion pedi/on kai\ pei/rata gai/hv a0qa/natoi pe/myousin, o3qi canqo\v 9Rada/manquv, th=| per r9hi+/sth bioth\ pe/lei a0nqrw/poisin: 565 ou0 nifeto/v, ou1t’ a2r’ xeimw\n polu\v ou1te pot’ o1mbrov, a0ll’ ai0ei\ Zefu/roio ligu\ pnei/ontov a0h/tav 0Wkeano\v a0ni/hsin a0nayu/xein a0nqrw/pouv, ou3nek’ e1xeis 9Ele/nehn kai\ sfin gambro\v Dio/v e0ssi.

Não está determinado para ti, ó Menelau, alimentado por Zeus, que em Argos, rica em pastagem para cavalos, morras nem cumpras o teu destino, mas os imortais te enviarão para os Campos Elísios, nos extremos da terra, lá onde está o louro Radamanto. Aí,precisamente, a vida é mais fácil para os homens: 565 não há neve, nem longo inverno e nem chuva. Mas o Oceano sempre envia para o alto as brisas do Zéfiro que sopra de modo intenso para refrescar os homens, porque, tens Helena e para eles és genro de Zeus. Od. IV, 561-9

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Esse passo tem suscitado várias interpretações, embora nenhuma delas seja totalmente satisfatória, como, por exemplo, a proposta defendida por Erwin Rohde (1925, p. 56), segundo o qual esses versos não devem ser interpretados como uma interpolação tardia, pois a ideia de que alguém pudesse ser arrebatado por uma divindade e levado para um local onde teria uma vida perene se encontra ancorada nos Poemas Homéricos. Em Ilíada, afirma o autor, essa noção está presente em episódios de batalha como, por exemplo, nas passagens que narram a morte de Sarpédon e a de Heitor,96como já se comentou. Exemplo digno de nota, mencionado por Erwin Rohde, encontra-se em Odisseia XX, 61-78, passagem em que Penélope, angustiada pela possibilidade de partilhar o leito com outro homem, expressa seu desejo de ter a vida abreviada:

“ 1Artemi, po/tna qea/, qu/gathr Dio/v, ai1qe moi h1dh i0o\n e0ni\ sth/qessi balou=s’ e0k qumo\n e3loio au0ti/ka nu=n, h2 e1peita/ m’ a0narpa/casa qu/ella oi1xoito profe/rousa kat’ h0ero/enta ke/leuqa, e0n proxoh|=v de\ ba/loi a0yorro/ou 0Wkeanoi=o. 65 w9v d’ o3te Pandare/ou kou/rav a0ne/lonto qu/ellai: th|=si tokh=av me\n fqi=san qeoi/, ai9 d’ e0li/ponto o0rfanai\ e0n mega/roisi, ko/misse de\ di=’ 0Afrodi/th turw=| kai\ me/liti glukerw|= kai\ h9de/i+ oi1nw|: 3Hrh d’ au0th=|sin peri\ pase/wn dw=ke gunaikw=n 70 ei]dov kai\ pinuth/n, mh=kov d’ e1por’ 1Artemiv a9gnh/, e1rga d’ 0Aqhnai/h de/dae kluta\ e0ga/rzestai. eu]t’ 0Afrodi/th di=a porse/stixe makro\n 1Olumpon, kou/rh|v ai0th/souse te/lov qaleroi=o ga/moio, e0v Di/a terpike/raunon – o9 ga/r t’ eu] oi]den a3panta, 75 moi=ra/n tea0mmori/hn te kataqnhtw[n a0nqrw/pwn- to/fra de\ ta\v kou/rav a3rpuiai a0nhrei/yanto kai\ r9’ e1dosan stugerh|=sin e0rinu/sin a0mfipoleu/ein: w1v e0m’ a0i+stw/seian 0Olu/pian dw/mat’ e1xontev,

96 Confira os versos dos referidos episódios nas páginas 38-41. 145

Ó , soberana deusa, filha de Zeus, oxalá, atirando uma flecha em meu peito, destruísses meu thymós nesse momento, ou então, uma tempestade, arrebatando-me, me levasse carregando-me por caminhos brumosos, e me atirasse nos limites do Oceano que corre em sentido contrário. 65 Como quando as tempestades tomaram as filhas de Pandareo: os deuses fizeram-lhes perecer os pais, e elas ficaram órfãs no palácio, e a divina Afrodite cuidava delas, com queijo, doce mel e vinho suave; Hera deu-lhes, acima de todas as mulheres, 70 aparência e sabedoria, a pura Ártemis ofereceu-lhes estatura, enquanto Atená lhes ensinou realizar gloriosos trabalhos. Então, quando a divina Afrodite subia para o vasto Olimpo, para pedir para as jovens o termo do casamento juvenil, a Zeus que lança raios, pois ele sabe bem de todas as coisas, 75  tanto a felicidade quanto a infelicidade dos homens mortais, as tempestades arrebataram as jovens para o alto e as deram para as detestáveis erínias para que as jovens fossem suas servas. Oxalá, me aniquilassem osque têm moradas olímpias,

Od. XX, 61-84 Ao citar esse episódio, Erwin Rohde corrobora sua tese de que a abdução estava presente nas concepções religiosas da épica homérica, na qual, em mais de um exemplo, se podem encontrar referências de que uma divindade pudesse retirar alguém de seu ambiente e levá-lo para um lugar à parte. O autor (1925, p. 57) ainda acentua que a Menelau é prometida a vida imortal em um lugar diferente do Hades: o herói habitará um lugar especial de bem-aventurados, um local concebido como um “novo reino de deuses”, pois Menelau será imortalizado e alçado à condição de uma divindade. Na verdade, Erwin Rohde considera que imortalidade e divindade são termos equivalentes, e, nos Poemas Homéricos, aquele que não sofre a morte  entendida 146

como a separação entre o corpo e a psykhé  por ter sido agraciado pelos deuses com a imortalidade, torna-se um deus97. A interpretação de Erwin Rohde sobre a divinização de Menelau, no entanto, é equivocada porque não há referência a tal fenômeno na narrativa de abdução do Atrida, e não é possível deduzi-la mesmo argumentando que a menção de Radamanto apontaria para essa direção. Christiane Sourvinou-Inwood (2005, p. 39) percebeu esse problema de interpretação na argumentação de Erwin Rohde e lhe fez a seguinte crítica: “A primeira objeção a esse esquema é o fato de que, em Homero, não se diz que Radamanto é divino nem que a Menelau tal divindade é prometida. Imortalidade paradisíaca é o que eles possuem, mas isso não é o mesmo que divindade.” Embora a opinião de Christiane Sourvinou-Inwood não se ajuste à de Erwin Rohde, vale notar que, ao aceitar a imortalização dos abduzidos, o estudioso coloca- os em proximidade estreita com as divindades imortais. Convém lembrar a esse respeito que a diferença essencial entre homens e deuses é a imortalidade. Por esse motivo, a imortalização de Menelau lhe conferiria uma prerrogativa dos deuses. Há ainda outro impasse comum entre as interpretações de Erwin Rohde e Christiane Sourvinou-Inwood: ambos afirmam que Menelau será imortal, porém essa ideia não está expressa claramente na passagem em questão. A observação atenta da sintaxe dos versos em que se narra o destino de Menelau evidencia que não há uma promessa efetiva de imortalidade, como se pode depreender da análise dos dois hexâmetros iniciais do citado passo: soi\ d’ ou0 qe/sfato/n e0sti, diotrefe\v w] Mene/lae,/ 1Argei e0n i9ppobo/tw| qane/ein kai\ po/tmon e0pispei=n,. Há nessa estrutura duas orações subjetivas reduzidas de infinitivo (qane/ein e po/tmon e0pispei=n) cujo predicativo é qe/sfaton. Esse termo é formado, como indica Richard John Cunliffe (1963, p. 189), das raízes qes- do substantivo qeo/v e fa-, do verbo fhmi,/ traduzido por “prometido”, ordenado pelos deuses ou por desejos divinos”. Convém observar os infinitivos com função sintática de sujeito qane/ein (morrer) e e0pispei=n cujo complemento é po/tmon. Essa última forma verbal é aoristo do verbo e0fe/pw, composta da preposição e0f-, (e0pi\) e e3pw, traduzida, conforme Richard John Cunliffe (1963, p.171), por dirigir ou conduzir (cavalos), negociar, tomar nas mãos ou encontrar.

97 Confira a afirmação de Erwin Rohde, (op. cit. p. 57) He is to become a “god”, for since to the homeric poets “god” and “immortal” are interchangeables terms, a man who is granted immortality (that is, whose psyche never is never separated from his visible self becomes for them a god.

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As promessas feitas a Menelau, expressas nos referidos versos, dizem respeito à determinação divina de que ele não morrerá em Argos (ou0 ... 1Argei e0n i9ppobo/tw| qane/ein), nem encontrará ali98 seu destino, (ou0...po/tmon e0pispei=n). O termo po/tmon, complemento do verbo e0pispei=n, conforme Richard John Cunliffe (op. cit., p. 341), significa “alguma coisa que pode acontecer com alguém”, destino”, “sorte”, “ “desgraça”, “mal” e “morte”. Ao tudo indica, essa última acepção não parece ser a do referido verso porque a ideia de morte, já mencionada na oração anterior, po/tmon parece antes se referir ao desfecho da vida por uma via específica que culmina com a morte. Qual seria, então, o destino final de Menelau, o seu po/tmov? Seria mesmo a vida imortal? Não é fácil responder a essa pergunta. Embora muitos estudiosos tenham aceitado a solução99 proposta por Erwin Rohde e repetida por Christiane Sourvinou- Iwood, não há nos versos, como se pôde perceber, dados que corroborem de modo seguro a imortalização do herói; além disso, o sintagam adverbial em 1Argei e0n i9ppobo/tw| (em Argos rica em pastagens para cavalos) somente evidencia que Menelau não morrerá em Argos, mas será levado para “e0v 0Hlu/sion pedi/on”, onde a vida é mais fácil para os homens que lá vivem. Convém, ainda, mencionar outra dificuldade no que diz respeito à imortalização do herói, já que o termo po/tmov, nas epopeias, sempre se apresenta relacionado com destino final ou morte, como, por exemplo, em Ilíada XVI, 857, na fórmula “o4 po/tmon goo/wsa” (“lamentando seu destino”) referente à morte de Pátroclo, e, em Odisseia XI, 197, no passo em que se narra o destino de Anticleia; “ou3tw ga\r kai\ e0gw\n o0lo/mhn kai\ po/tmon e0pe/spon:” (“e assim, eu, de fato, morri e encontrei meu destino:”)100. Portanto, o fato evidente é que Menelau não morrerá em Argos, mas será levado para “e0v 0Hlu/sion pedi/on” situado no extremo da terra. Esse local, conforme observou Erwin Rohde (p. 56), não é uma parte do Hades: “O lugar para o qual ele será enviado não é uma parte do reino de Hades, mas um local sobre a superfície da terra, separado como uma morada, não das "almas" desencarnadas, mas de homens cujas almas não

98 Considero que há elisão do sintagma adverbial 1Argei e0n i9ppobo/tw| que pode ser presumido na segunda oração. Assim, ele também não encontrará seu destino em Argos. 99 Há ainda outros autores que aceitam a mesma solução entre os quais podem ser destacados M. P. Nilsson (p. 622); Maria Helena da Rocha Pereira (1955, p. 23) e George E. Dimock (1989, p. 54). 100 Confira Ilíada II, 359; III, 337; IV, 170; VI, 412; VII, 52; XI, 263; XVII, 96; XXI, 588 e Odisseia II, 250; III, 16; IV, 196; XI, 197; XIX, 550, XXIV, 471. 148

foram separadas de seus eus visíveis.”. Somente a abdução do homem vivo lhe permitiria desfrutar dos benefícios disponíveis naquele local de vida bem-aventurada. Na verdade, como se pôde perceber ao longo dessa reflexão, Erwin Rohde não considerava que a concepção da abdução de alguém fosse incongruente com as crenças homéricas, ao contrário, para o pesquisador, ela encontra-se ancorada nas epopeias. Para o autor (1925, p. 59), a novidade presente nos versos é que Menelau viverá em uma terra separada, um lugar especial que não coincide com uma terra de deuses para a qual alguns homens já foram levados. Erwin Rohde ainda argumentou que esses versos não devem ser considerados invenção do poeta tendo em vista que a ideia é mencionada de forma muito breve. Isso só se justificaria se essa concepção fosse conhecida pelos ouvintes. A presença de Radamanto apontaria nessa direção, pois ele era conhecido já em uma antiga tradição sobre a qual o autor não dá esclarecimentos. Numa época em que se iniciavam os estudos sobre as influências da cultura do Oriente Médio na formação de concepções gregas, Erwin Rohde (1925, p. 60) afirmava que, embora houvesse uma inclinação para derivar do Oriente a concepção de abdução de alguém para um lugar especial, pouco se ganharia com esse posicionamento porque ele acarretaria problemas difíceis de ser resolvidos, como, por exemplo, responder porque os Gregos adotaram essa concepção religiosa estrangeira tão específica nesse momento de sua história. Nota Erwin Rohde que não havia motivo especial para considerar a tese de empréstimo cultural em detrimento da compreensão do fenômeno como uma evolução independente motivada pelas necessidades similares de povos distintos. Embora Erwin Rohde não tenha dado atenção à origem dessa concepção, foi ela objeto de discussão de uma série de pesquisadores de gerações posteriores como, Martin P. Nilsson, Walter Burkert, R. Drews Griffith e Christiane Sourvinou-Inwood. Esses autores apresentam teorias adversas que não permitem conclusões herméticas. A tese proposta por Martin P. Nilsson foi a que mais repercutiu e encontrou aceitação entre os estudiosos, de modo que Anthony T. Edwards (1985, p. 218) considera os estudos do referido estudioso sobre o tema uma leitura imprescindível. Na verdade, Martin P. Nilsson (1950, p. 622) julga que os versos referentes ao destino de Menelau refletem uma crença muito antiga comum aos povos que faziam comércio marítimo e a insulanos segundo os quais o morto empreendia uma viagem marítima a uma terra remota, para além do oceano onde estaria situado o outro mundo. 149

O pesquisador ainda afirma que, quando os Gregos começaram a navegar pelo Mediterrâneo, essa crença foi combinada com a concepção de um mundo sob a superfície da terra, concebida como um disco plano cercado pelo oceano, com uma borda através da qual se podia chegar ao outro mundo. Essa seria precisamente, para o autor, a ideia presente na descida de Odisseu ao Hades. Pondera Martin P. Nilsson que há uma noção presente nos versos referentes à abdução de Menelau que difere da crença de uma existência no Hades, pois naquela terra, para onde o indivíduo é levado, sua existência é corporal e ele possui uma vida bem-aventurada. Para o estudioso, essas referências evidenciam uma concepção de post-mortem em que a imagem da vida humana é idealizada, ideia contrária à concepção tradicional grega do reino dos mortos e do morto: “habitante de um mundo subterrâneo que é uma sombra pálida incapaz de se alegrar com alguma coisa.”101. É conveniente observar que para Martin P. Nilsson (1950, p. 622) a presença das duas concepções tem como consequência uma incompatibilidade entre elas, pois a jornada para a Ilha dos Bem-aventurados não é concebida, nos Poemas Homéricos, como uma passagem da alma. O homem iria vivo para esse local que é uma terra habitada por pessoas que não morrem. Esse destino privilegiado não seria possível para o homem comum, e Menelau só o recebeu porque era genro de Zeus. Observação digna de nota é que Martin P. Nilsson (op. cit. p. 623) julga que a concepção dos Campos Elísios, embora oposta à tese tradicional homérica do mundo subterrâneo, também era, originariamente, uma concepção de vida post-mortem. A oposição das noções, no entanto, dificilmente apontaria para uma origem comum, embora ambas sejam, para o autor, uma herança da civilização minoica. “A prova é uma curta referência na citação homérica da transferência de Menelau para os Campos Elísios dada nessas palavras: o3qi canqo\v 9Rada/manquv.”102. A interpretação do nome Radamanto como indicativo da origem minoica dessa concepção de vida futura baseia-se na tese do autor de que há uma continuidade de elementos da religião minoica na religião grega. A menção da personagem no episódio da abdução de Menelau é, para Martin P. Nilsson, uma prova de sua tese:

101 Martin P. Nilsson, op. cit., p. 622. 102 The extreme briefness of expression can only be due to the fact that he was commonly known and recognized as intimately bound up With Elysium. the name, containing the element -nq is for Minona origin, and he belongs to crete not only as the brother of Minos, but his home is more especially Southern central crete with which he is connected in the genealogies. (NILSSON, op. cit., p. 623)

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A continuidade às vezes pode ser mostrada. Duas figuras mitológicas bem conhecidas, até mesmo possuem obviamente nomes pré-gregos, Hyakinthos e Rhadamanthos. Hyakinthos é o nome tanto de uma flor como de um deus antigo a quem Apolo suplantou e assumiu a principal festividade que pertencera àquele. Rhadamanthys pertence ao sul de Creta. Com ele está associada a ideia de Elysium, a Ilha dos bem-aventurados, longe, ao oeste. A ideia está em oposição irreconciliável com a concepção comum grega de vida futura, e essa peculiaridade encontra sua explicação no fato de que nós temos aqui uma imagem pré-grega de outro mundo. (NILSSON, 1949, p. 23. Tradução nossa.).

Um dos argumentos do autor para justificar a origem da concepção de Campos Elísios fundamenta-se, em primeiro lugar, como ele próprio observa (op. cit. p. 624), no fato de os Minoicos serem um povo navegador, de sorte que a ideia de um outro mundo, situado além do mar, seria natural para eles. Para os Gregos que conquistaram aquela civilização, essa noção permaneceu estranha até século XIV a. C., momento em que aprenderam a navegar. Outro ponto que Martin P. Nilsson considera fundamental para a compreensão da origem dos Campos Elísios leva em conta as cenas retratadas no sarcófago de Hagia Triada, com base nas quais o autor interpreta que há uma representação de divinização de um homem. A esse respeito, porém, vale mencionar que o estudioso (op. cit. p. 625) considerava que essa “apoteose” só se aplicava aos governantes e, mesmo com essa característica, a concepção da divinização de uma pessoa é totalmente inconsistente quando comparada com as crenças homéricas, com aquelas do período clássico e com o culto aos heróis, pois esses não eram deuses. Desse modo, a imortalização se harmonizaria melhor com a concepção de outro mundo, ou seja, uma terra de bem-aventurança. Como se vê, os fundamentos apresentados pelo autor são subjetivos porque ele parte de uma interpretação pessoal das imagens gravadas no sarcófago de Hagia Triada e, portanto, não são passíveis de comprovação empírica, embora isso não os invalide como hipóteses. As interpretações desse passo de Odisseia, como se pode notar, são diversas, e as hipóteses dos autores ora convergem, ora se distanciam. Christiane Sourvinou- Inwood (2005, p. 32), por exemplo, rejeita, veementemente, a origem minoica dos Campos Elísios proposta por Martin P. Nilsson e assumida por outros autores103.

103 Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 34) inicia sua argumentação apresentando resumidamente as considerações de S. West sobre a origem minoica de Elísios, segundo a qual, (apud Sourvinou-Inwood, op. cit., p. 33) a proveniência cretense dessa concepção estranha à crença grega de uma vida post- mortem como uma sombra é indicada pela breve referência ao louro Radamanto. Para S. West, a 151

A refutação da tese da origem minoica de Elísios é iniciada por Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 34) com a afirmação de que a associação de Radamanto com os Elísios só é possível aceitando em princípio que o soberano se encontra nesse local, conforme os versos 561-9 do canto IV de Odisseia. Essa associação, baseada apenas nos referidos versos, na opinião da autora, indicaria que o nexo com a origem cretense pode ser inválido, porque, na verdade, estaria fundamentado em dados minoicos cuja interpretação foi feita projetanto sobre eles elementos de um período posterior. Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit. p. 34) considera Malten o primeiro pesquisador a propor a tese da origem minoica dos Elísios baseando-se na citada passagem de Odisseia. De acordo com o estudioso, o conceito de Elísios, comenta a pesquisadora, é uma herança minoica porque Homero associa esse lugar a Radamanto que é pré-grego, dedução possível a partir do elemento cretense –nth, que indicaria a origem desse nome. Christiane Sourvinou-Inwood também nota que a tentativa de Malten em provar que a própria palavra Elísios era de origem minoica resultou em fracasso. Nota a autora que o único elemento minoico nos Elísios é Radamanto, que no mito é um rei minoico, o que não significa, porém, a concepção de Elísios, como um paraíso, seja de origem minoica porque “as modalidades religiosas” desenvolvidas tornam ilegítimo considerar uma associação de Radamanto, nos Poemas Homéricos, com uma típica terra para os mortos, um paraíso para alguns poucos escolhidos que estava vinculada a uma concepção similar na cultura minoica: Assim, a crença de que Radamanto estivesse associado a um paraíso no período minoico porque ele estava relacionado com os Elísios em Homero é culturalmente dependente de uma determinada expectativa que está em conflito violento com outra construída como resultado da consideração das modalidades de desenvolvimento religioso e da natureza do texto no qual a crença é articulada. Além disso, essa noção da associação de Radamanto com Elísios provando que o último é de origem minoica depende de um uso muito seletivo de provas (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p. 34. Tradução nossa)

associação entre Elísios e esse soberano era evidentemente familiar, pois Radamanto possui um nome pré-grego e está associado à Creta: “Essa visão da vida post-mortem está de acordo com o pouco que pode ser inferido sobre as crenças minoicas a partir de seus monumentos funerários.”A tese da origem minoica adotada por S. West é prontamente rejeitada por Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit., p. 33), pois, em sua opinião, a tese da origem minoica dos Campos Elísios só é possível porque os dados minoicos foram interpretados à luz de certas concepções sobre as crenças religiosas gregas de um período posterior. A tese, como se observou, foi proposta por Martin P. Nilsson, e a pesquisadora pondera que escolheu comentar o posicionamento de S. West porque esta resume os mais importantes argumentos da tese do referido estudioso.

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As palavras de Christiane Sourvinou-Inwood demonstram sua rejeição à tese da origem minoica de Elísios, pois, para a autora, a modalidade religiosa minoica e a grega homérica são sistemas104 diversos que se desenvolveram de modo autônomo, não sendo possível, desse modo, que o mesmo elemento pertencesse a ambos. Nesse aspecto, há um conflito quando se articula a citada passagem sobre a abdução de Menelau com o sistema religioso minoico sobre o qual haveria uma projeção indevida de conceitos posteriores. Christiane Souvinou-Inwood ainda notou que Radamanto não é o único governante minoico associado à “terra dos mortos” nos Poemas Homéricos, pois, além dele, seu irmão Minos, como informa o canto XI de Odisseia, está no Hades, local de natureza muito diferente dos Elísios. Para a pesquisadora, (op. cit. p. 35), a relação entre esses governantes e os dois locais pode gerar a hipótese de que os dois mitos são transformações diferentes de dois esquemas conceituais minoicos em que esses governantes eram associados ao mundo dos mortos, e as transformações ocorridas no esquema minoico e nos seus elementos parecem, na opinião da estudiosa, criar uma relação entre aquela cultura e os mitos gregos históricos possibilitando a tese da origem minoica dos Elísios. A rejeição de Christiane Souvinou-Inwood (1995, p. 36) à teoria da origem minoica de Elísios pauta-se no postulado da continuidade da cultura minoica na religião grega, proposto e defendido por Martin P. Nilsson que se teria baseado em evidências tardias equivocadas. Não há, na opinião da autora, razão105 para considerar que “os Elísios” fossem uma crença minoica no post-mortem e qualquer resposta positiva nesse sentido carece de fundamento. Pondera a autora (1995, p. 37) que Martin P. Nilsson aceitou com entusiasmo a tese da origem minoica dos Elísios proposta por Malten porque com ela seria possível explicar aquilo que ele próprio considerara uma contradição existente entre as crenças gregas no post-mortem, ou seja, entre os Elísios, para onde Menelau seria levado, e a descrição do mundo dos mortos, presente no canto XI de Odisseia. Martin P. Nilsson (apud Sourvinou-Inwood, op. cit. 37) considerou que, se a concepção de Elísios fosse

104 Confira página 4 dessa tese. 105 […] as to whether the Minoan evidence offers any reason for thinking that elysion was a minoan afterlife belief it will become clear that answer is negative, and that scholars have only been able to sustain the opposite view because their case implicitly relied on centring the interpretation of the Minoan data on the presumption of Minoan origin based on later evidence. (Sourvinou-Inwood, 1995, p. 36)

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uma herança minoica, a suposta contradição entre os dois conceitos poderia ser explicada. Assim, segundo Christiane Sourvinou-Inwood, o referido pesquisador criou uma imagem das crenças gregas no post-mortem com base em um princípio que não é legítimo, ou seja, a origem minoica de Elísios. A autora critica os fundamentos utilizados por Martin P. Nilsson na elaboração de sua tese por considerar que ele se equivocou ao afirmar que a crença no Hades, lugar de pálidas sombras, era natural ao caráter dos Gregos do continente enquanto, para um povo afeito à navegação, a viagem do morto para uma terra além do mar seria uma concepção normal, assimilada pelo povo do continente somente depois que a navegação foi aprendida em um período posterior. Sua crítica é que Martin P. Nilsson não especifica quanto tempo de experiência na navegação seria necessário para que a crença na existência de um lugar específico para o morto situado além-mar se desenvolvesse entre os Gregos do continente, nem esclarece por que os Minoicos teriam tido esse tempo para desenvolver essa concepção, e os Gregos do continente não. Observa a autora (op. cit. p. 37) que M. P. Nilsson adotou a Idade do Bronze como período determinante para a associação entre a mencionada crença e a atividade de navegação praticada pelos Minoicos. Porém, nota a pesquisadora que, no “tempo de Homero”, não se pode negar que os “Gregos” já exerciam atividades marítimas havia pelo menos sete séculos, período que coincide com aquele utilizado por M. P. Nilsson em sua argumentação. Tal coincidência inviabilizaria o argumento do autor. Para Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 38), Martin P. Nilsson também se equivocou ao defender que a crença na imortalização dos governantes era perfeitamente possível entre os Minoicos, mas estranha aos Gregos do período posterior. Essa tese do autor está ancorada na combinação de três fundamentos: a utilização do sarcófago de Hagia Triada, uma leitura particular do culto a um rei morto e, implícita ou explicitamente, a adoção de um modelo historicamente muito diverso para aplicar na leitura dos dados minoicos, ou seja, o modelo romano de deificação do imperador. A respeito desse último aspecto mencionado deve-se atentar que, para Christiane Sourvinou-Inwood, o modelo romano mencionado parece ter sido aplicado por Martin P. Nilsson ao episódio de Menelau considerado por ele divinizado, interpretação que leva em conta, portanto, a interferência de uma concepção alheia ao povo minoico. Acentua a autora, ainda, que a primeira objeção que se pode fazer a 154

essa leitura do pesquisador é que no episódio da abdução de Menelau não é dito que Radamanto é um ser divino nem que o Atrida será uma divindade. Ainda sobre a teoria da divinização dos soberanos minoicos, Christiane Sourvinou-Inwood considera que a teoria de Martin P. Nilsson deveria ser repensada, pois o sarcófago de Hagia Triada não oferece suporte para a tese porque é um artefato que não pertence ao período de hegemonia e independência do povo minoico, mas é oriundo do período micênico em que havia um acentuado sincretismo religioso. Desse modo, não se pode inferir que as cenas retratadas na superfície do sarcófago sejam minoicas. Além de mencionar a dificuldade de interpretar as imagens, a autora afirma que saber realmente o que cada objeto retratado significa é outro sério problema porque não se pode saber com certeza se esses objetos seriam símbolos religiosos genéricos ou se estariam relacionados com algum ritual realizado em favor do morto. Quanto ao último fundamento da tese a ser rejeitado, isto é, o culto a um rei minoico morto, afirma Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit., p. 35) que, no período pré- palaciano106, teria havido um culto a todos os mortos da comunidade, e, posteriormente, ele seria sido oferecido somente aos mortos pertencentes à realeza. No começo do período palaciano, teria ocorrido, segundo a autora, um processo de declínio do culto aos mortos comuns, e depois de uma coexistência da atividade por parte das duas classes, a prática teria se tornado mais direcionada aos membros da realeza. Essas transformações devem ser entendidas no contexto da sociedade palaciana minoica no qual se pode observar uma crescente tendência de controle do culto, principalmente no período neopalaciano, no qual algumas atividades administrativas e econômicas estavam descentralizadas. O controle do culto, segundo Christiane Sourvinou-Inwood, é uma das mais importantes atividades na manutenção da autoridade central e na “manipulação da realidade”.

Essa transformação deve ser vista no contexto de uma tendência clara e progressiva do controle do culto  como alguns artefatos  pelos palácios, especialmente, no período neopalaciano, quando ele está combinado com a descentralização de algumas funções econômicas e administrativas, e como um aspecto particular, observável na sociedade minoica palaciana. Os palácios eram os locais de atividades religiosas abertos ao público. Este controle do culto, como um dos mais importantes da vida pública, permite um apoio simbólico da autoridade central e da manipulação simbólica da realidade. (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p. 36. Tradução nossa)

106 A autora não oferece uma data para os períodos em questão. Considerou-se conveniente, por esse motivo, que não usasse cronologias determinadas por outros pesquisadores porque poderia haver conflitos das datas. 155

A compreensão do fenômeno do culto aos mortos praticado pelos Minoicos e Micênicos é de grande importância na leitura da passagem referente à abdução de Menelau feita pela autora que, analisando o sarcófago de Hagia Triada, afirma que os elementos registrados em sua superfície foram analisados de modo equivocado por aqueles que defendiam a tese da origem minoica da concepção de Elísios porque a deificação do governante, como propõem alguns estudiosos, não pode ser comprovada e está errada107. Nota Christiane Sourvinou-Iwood (1995, p. 43) que o sarcófago não pertenceu a um soberano e, consequentemente, o morto que nele se encontra encerrado não poderia ter recebido culto. Outro aspecto considerado pela autora diz respeito a alguns elementos das cenas que não se coadunam com o culto oferecido aos mortos da realeza não podendo, por essa razão, ser utilizados a fim de justificar a deificação de um governante minoico por estarem presentes em contextos funerários não pertencentes à realeza. Esses elementos podem indicar a sacralidade dos componentes utilizados no culto funerário ou serem referências às divindades relacionadas com os mortos no intuito de atrair proteção. De acordo com os pressupostos apresentados por Christiane Sourvinou-Inwood, a deificação de um soberano minoico não poderia ser deduzida com base no sarcófago de Hagia Triada. Sobre esse aspecto, a autora ainda faz a seguinte afirmação: “Mas mesmo se nós supusermos para o bem do argumento que se acreditasse que um governante minoico realmente se tornasse uma divindade depois da morte, não se segue que a sua existência pode ser equiparada à de um habitante dos Elísios homérico.” A pesquisadora considera que a crença minoica de que os mortos da realeza pudessem habitar com as divindades ou se tornassem seres divinos em um local para o qual todos os mortos estavam destinados é somente uma hipótese, e a existência de um lugar paradisíaco exclusivo para os soberanos minoicos, na opinião da estudiosa (op. cit. p. 45), poderia ser uma opção, mas ela não seria congruente com a noção de que os soberanos seriam deificados. A autora é perspicaz nessa última observação porque não há sentido em conceber um lugar diverso para os soberanos minoicos deificados porque, na condição de seres divinos, eles deveriam habitar com outros deuses e não em um lugar à parte.

107Confira SOURVINOU-INWOOD, (op. cit., p. 43). 156

Christiane Sourvinou-Inwood não nega a possibilidade de um destino final privilegiado para os soberanos minoicos, ao contrário, a autora argumenta que há evidências que permitem concluir que, na “escatologia minoica,” provavelmente os soberanos tinham uma posição diferenciada e privilegiada após a morte. O que é discutível, em sua opinião, é a afirmação de que esse lugar se situaria nos confins do oceano apenas com base em réplicas de botes encontradas em alguns túmulos, pois esses artefatos poderiam significar algo diferente da interpretação usual de que eles representassem o veículo de condução do morto para o outro mundo. Certamente, é atestada a existência de outras imagens que podem ser relacionadas com a localização do mundo dos mortos em um lugar além do oceano, como, por exemplo, o sarcófago de Larnax (Episkopoi) em que estão registradas imagens funerárias entre as quais se destaca a de uma carruagem sobre um polvo. Christiane Souvinou-Iwood, (op. cit., p. 47) interpreta essa imagem como a representação de uma morte ritual, leitura diversa daquela proposta por Emily Vermeule (apud. Christiane Souvinou-Iwood, op. cit., p. 47) para quem a imagem representa uma grande procissão funerária que se dirige para um lugar como os campos Elísios ou as Ilhas dos Bem-aventurados. Observa Christiane Souvinou-Iwood que, mesmo supondo que essa cena represente a partida do morto para uma terra além do oceano, não há nexo entre a representação do sarcófago e a origem minoica da concepção de Elísios. Há algumas contradições, observa a autora, nas evidências como, por exemplo, a viagem ser empreendida em uma carruagem sobre o mar e não em um navio como seria de se esperar e, ainda, o fato de esse outro artefato, assim como o sarcófago de Hagia Triada, também não pertencer a um governante. Por esse motivo não se pode utilizar o sarcófago de Larnax como prova de que havia um paraíso situado no além-mar para os soberanos minoicos, como um dos fundamentos da teoria da origem minoica de Elísios. O fato é que para Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 49) as evidências não permitem que se considere a concepção homérica de Elísios como a sobrevivência de um aspecto da escatologia minoica na religião grega: “as evidências apontam fortemente na direção de que os Elísios não são uma sobrevivência minoica, mas os Elísios são um desenvolvimento recente do tempo em que os Poemas Homéricos tiveram sua cristalização final.”. 157

A posição da autora, como se observou, é de completa rejeição à tese da origem minoica da concepção dos Elísios para explicar o contraste entre as duas concepções de destino final do homem, o Hades, lugar de sombras pálidas, e Elísios, lugar de privilégios. Em sua opinião, ambas são partes da escatologia homérica implicando uma coexistência que fizesse sentido para o poeta e sua audiência. Por esse motivo a autora propõe que o foco da questão não deveria ser a origem do Elísios, mas como essas duas concepções surgiram e de que modo elas faziam sentido no mesmo sistema religioso. Sobre a opinião de M. P. Nilsson de que a crença nos Elísios era estranha à concepção grega normal108 de post-mortem, Christiane Sourivou-Inwood (1995, p. 38) não aceita que seja verdadeira a proposição de que para os Gregos era normal a crença em “almas sombras”, pois, mesmo em Odisseia XI, nem toda alma é uma sombra. Além disso, havia, no período arcaico, concepções de um destino mais feliz, oriundas, provavelmente, do ambiente das religiões de mistérios. Assim, a incongruência entre as concepções distintas de Hades e Elísios está baseada, por parte de M. P. Nilsson, em “julgamentos culturalmente determinados” e deve, na opinião da pesquisadora, ser repensada. O problema, para Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 38), deve ser pensado de duas perspectivas: em primeiro lugar, no contraste entre a vida paradisíaca post- mortem nos Elísios e a situação das ‘almas-sombras’ no Hades, conforme está descrito em Odisseia XI; em segundo lugar, no conflito entre a concepção de um lugar para uns poucos privilegiados que não morrem e o conceito de que todo homem dever morrer e ir para o Hades. Acrescenta ainda a estudiosa (op. cit., p. 38) que, depois de Homero, a concepção de Elísios cresceu acentuadamente junto com a noção de que se podia escapar da morte. Ao mesmo tempo, houve modificações na concepção de existência no Hades a fim de que houvesse uma acomodação com a noção de uma vida mais feliz gerada no contexto das religiões de mistérios, principalmente nos Mistérios de Elêusis. Porém, o conflito entre a ideia de Elísios e o postulado de que todo homem deve morrer entra em declínio formando uma pressão no sistema religioso no qual, em um determinado momento, prevalece a segunda concepção. A autora, então, chega à seguinte conclusão acerca desse fenômeno: “então, há muitas razões para pensar que

108 Confira a afirmação do autor na página 149 dessa tese. 158

a tendência do “tipo-Elísios” tenha sido gerada dentro do sistema.” Na opinião da autora (op. cit. p. 55), mesmo que a ideia de um lugar destinado a apenas alguns privilegiados vivos tenha vindo de outro sistema, houve uma adaptação ao sistema religioso grego por um processo de “bricolagem” de modo que o conceito de Elísios não poderia ser, essencialmente, o mesmo do sistema original. A crença na concepção de um lugar destinado a apenas algumas pessoas, na opinião de Christiane Sorvinou-Inwood (1995, p. 50), era pouco significativa na épica homérica, mas adquiriu importância progressiva em resposta à pressão que promovia mudanças no sistema escatológico tradicional em que se desenvolvia o culto dos heróis a partir do século VIII a. C. Essa nova prática poderia explicar as mudanças no sistema no qual havia uma interligação de cultos, isto é, o culto aos mortos e o culto aos heróis. Assim, afirma a pesquisadora que esse é o nexo que permite inferir que a concepção de Elísios era uma ideia recente, contemporânea à composição dos Poemas Homéricos109. Ao que parece, Christiane Sourvinou-Inwood está propondo que, nesse período, começa a se estabelecer uma diferença entre o culto ao morto comum e o culto ao herói morto, pois a este último seria atribuída uma condição especial e sua existência no Hades, destino dos homens comuns, não corresponderia mais às práticas cultuais que lhes eram prestadas. Sobre esse aspecto, convém observar que na Etiópida, poema do ciclo épico, datado do século VII a. C.110, Aquiles, é levado por sua mãe para uma terra distante semelhante aos Campos Elísios111. Essa noção poderia ter sido gerada, segundo Christiane Sourvinou-Inwood, em um contexto no qual se cultuavam

109 Digno de nota é que, para Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit. p. 52), a novidade da noção de um lugar destinado a alguns privilegiados vivos e a concepção de que todos devem morrer precisam ser refletidas, levando-se em conta a recepção por parte dos ouvintes, pois a “audiência épica” é, de certa forma, algo “mais acessível” aos estudiosos. Nota autora que a explicação dada pelo aedo sobre o motivo pelo qual Menelau terá o privilégio de ser levado para um lugar especial por ser ele genro de Zeus, faz sentido em um ambiente em que se considera que o conceito de abdução era novo e a audiência pouco familiarizada com ele. As seguintes palavras da autora são significativas: “it could also be argued that the generation of this belief that the death by lightning is more intelligible in a world in which the cremation is the normal - and therefore not a minoan , crete or Bronze age in general. For in such world lightning, which incinerated the victim, and was thought to affect directly communication with zeus, could be seen, with the help of the schema death - burial /cremation-hades as a supernatural sort of cremation in life that transferred the person to a paradise -while the ordinary cremation integrate the dead in to the hades. The dualism between a land of the blest and the a land of dead for the comum dead would , of course , be inherent in the interpretation of analysis as implying transference to a higher life instead of death, and thus ex hypothesis greek, in whatever period this concept is taken to have arisen. [...] i shall only say here that is extremely unlikely that the dualism common dead / hades v select few / paradise had existed in mycean times. 110 LESKY, A. 1995, 104. 111 Sobre o destino final de Aquiles em Etiópida, confira Edwards, Anthony T. 1985. 159

os heróis sendo incoerente conceber que o maior herói dos Aqueus tivesse o mesmo fim que os demais mortais. A pesquisadora (op. cit. p. 51) é de opinião que a existência de duas concepções de “paraíso”, Campos Elísios e Ilha dos Bem-aventurados, pode ser bem explicada como oriunda do século VIII. a. C., considerando-se seu desenvolvimento a partir dos termos enelysioi (fulminados) e elysion (lugar de queda de um raio). Argumenta, ainda, que em um ambiente onde a cremação era uma prática normal, seria mais inteligível que se gerasse a crença de que a morte por fulminação afetaria o status da vítima morta que teria sido cremada diretamente por Zeus e possibilitaria a criação de um esquema religioso no qual a fulminação equivaleria a uma cremação sobrenatural que transferiria a vítima para um paraíso. Tais noções, porém, foram posteriormente ofuscadas: os fulminados (enelysioi) teriam sido obscurecidos pelo status dos heróis cultuados, e os Elisíos (elysion) perderam importância para a Ilha dos bem-aventurados local para o qual alguns heróis eram levados. Essa interpretação de Christiane Sourvinou-Inwood ajusta-se aos conceitos desenvolvidos por Walter Burkert no artigo Elysion112 no qual o estudioso esclarece a etimologia de h0lu/sion, em sua opinião, um termo indubitavelmente pré-grego. Pondera o autor (1961, p. 208) que era consenso entre linguistas e estudiosos da religião a impossibilidade de explicação desse termo e que mesmo os antigos gramáticos não lograram êxito quando tentaram relacionar h0lu/sion com e0leu/somai porque parecia não haver relação semântica e formal entre ambas as palavras113.

112 A autora considera ser o estudo mais satisfatório e viável, pois até sua publicação em 1961 não havia propostas realmente válidas e, desde então, a tese proposta pelo autor não foi refutata. 113 Na opinião do autor, dificilmente pode haver dúvidas quanto ao significado, derivação e formação dessa palavra: e0nhlu/siov é “algo” perigoso, o relâmpago, e0nhlu/sion é o lugar do impacto do raio e0iv a3 kerauno\v ei0sbe/bhken havendo uma série de deverbais precisos correspondentes à raiz de e0leu/somai, entre as quais a forma e0nhlu/sion (to\ e0nhlu/sion) “entrada, admissão”, pode ser depreendida. Há ainda outras derivações como h9 e0phlusi/a, ei0shlu/sai (entrar), kathlusi/a (descer, ir para baixo), o9mhlusi/a (companhia), sunhlusi/a (encontro, reunião). A forma h0lusi/a seria uma derivação secundária. O pesquisador nota que o termo e0phlusi/a tem um significado mágico especial  nocivo para um homem ou para uma terra  estando relacionado, especialmente, com uma tempestade com relâmpagos e granizo. O alongamento do som inicial na formação da palavra é uma lei fonética para o autor que se opõe a Wackernagel (apud Burkert, op. cit. p. 210) para quem não se aplica uma conexão direta entre e0leu/somai  h0lu/sion nem entre e0leu/somai  e0nhlu/sion. Walter Burkert afirma que, embora se possa considerar estranha a mudança de som qu  si, sem dúvida é possível uma derivação comum de palavras da raiz e0lu/q- porque se registra no ático a sibilização do -qi em palavras como, por exemplo, Probali/siov>probali/nqov, Trikoru/siov>trikoru/nqon e 0Amaru/siov> a0ma/runqov; o fenômeno é encontrado também em micênico nas formas: ko-ri-si-jo, ko-ri-si-ja que evoluem para Korinthos, za-ku-si- jo para Zakynthos e epi-ko-ri-si-jo para ko/ruv –qov. Quanto as formações dos substantivos em –sia, o autor sugere que poderia se pensar no efeito da analogia. Pelos elementos elencados, o autor conclui que aqui vive uma tradição muito antiga, enraizada na camada micênica da língua que influencia na 160

Walter Burkert considerou que o termo e0lu/siov deriva de h0nelu/siov, “atingido por um raio” cuja forma substantiva no neutro to\ e0nhlu/sion se refere ao lugar da queda do raio. Considera o pesquisador (op. cit. p. 209) que, infelizmente, a forma adjetiva só é encontrada em um fragmento corrompido de Ésquilo, em que aparece o sintagma e0nhlu/sia a1qra significando aqueles que foram mortos por um “clarão/raio” no Kapaneus, e o uso substantivo desse termo é atestado por Polemon de Ílon, em Atenas. Fora essas referências, afirma Walter Burkert, o termo aparece apenas em léxicos. Walter Burkert (op. cit. p. 211) anota que o ponto onde cai o raio é, a partir desse momento, sacralizado, inacessível aos homens (a1baton) e consagrado a Zeu\v katabai/thv, o revelador do clarão. De modo semelhante, também um homem atingido pelo raio é escolhido, tornando-se um tabu para a existência normal por ter sido honrado dessa forma por Zeus (Zeu\v qhsauro/v) que atuaria como uma pira funerária. Essa mudança no agente da incineração do cadáver, ou seja, a substituição do fogo, utilizado nos ritos funerários, por Zeus, na forma de raio, enfatiza a situação especial de e0nhlu/siov (fulminado) como uma expressão “mística”que significaria, na opinião do autor, que aquele que fosse atingido pelo raio não estaria morto como os demais mortos, uma força especial teria entrado nele exaltado-o a uma existência superior; “e0nhlu/siov é estar no Elísios.”. Os conceitos desenvolvidos por Walter Burkert, em Elysion, foram, posteriormente, aplicados ao episódio do destino final de Menelau cuja abdução para os Campos Elísios, na opinião do autor (1993, p. 386), se apresenta oposta à concepção homérica tradicional, pois, nesse episódio, afirma-se que Menelau não morrerá. O Atrida, portanto, teria o destino semelhante ao de um fulminado:

Entrar no Elísion significa evitar a morte. Esse é o destino exclusivo dos eleitos. <> tornou-se o nome misterioso e imperscrutável que designa o local ou a pessoa que foi atingida por um raio, enelysion, enelysios. Morte por fulminação é ao mesmo tempo destruição e eleição. Com ela se encontra entrosado o motivo mítico do transporte miraculoso para uma ilha pura e distante, motivo que parece ter origem na saga suméria do dilúvio (BURKERT, 1993, p. 386).

formação da palavra. Portanto, pode-se relacionar e0nhlu/siov –on com h0lu/sion não só pela fonética, mas por uma relação factual mais estreita embora à primeira vista isso possa parece absurdo.

161

A tese do autor, portanto, permanece inalterada nas duas obras referidas e sua solução para explicar a origem etimológica de h0lu/siov e o conceito de Campos Elísios, é satisfatória e viável sendo por esse motivo aceita entre os estudiosos, como Christiane Sourvinou-Inwood e S. West. Embora se reconheça nessa tese a importância da contribuição de Walter Burkert sobre o tema, observa-se que, como a maioria dos autores, ele considera que Menelau não conheceria a morte, pois “Entrar no Elísion significa evitar a morte.”. Os versos em questão, no entanto, não evidenciam de modo explícito a imortalidade do herói. Na verdade, não há como propor uma solução ou uma interpretação definitiva da passagem referente ao destino de Menelau, e as várias teorias propostas mostram a complexidade do passo em questão. Na verdade, os versos esclarecem que o herói não morrerá em Argos e será levado para um lugar afastado (e0v 0Hlu/sion pedi/on) onde a vida é mais fácil para os homens. Qualquer afirmação a mais sobre o assunto é uma hipótese que se soma a outra enriquecendo o debate e a reflexão.

162

4 A ESCATOLOGIA NA POESIA HESIÓDICA

4.1 Hesíodo e o destino final dos homens

Depois de ter examinado os fundamentos da escatologia nos Poemas Homéricos e ponderado sobre os principais problemas inerentes ao tema, será objeto de atenção a poesia hesiódica que, junto com a épica homérica, pode ser considerada uma das mais importantes fontes literárias para o conhecimento da religião grega do período arcaico, pois nela se registram concepções que se perpetuaram na tradição religiosa grega, em alguns casos, com poucas modificações114. Antes, porém, de abordar os poemas, convém tecer alguns comentários sobre esse poeta que inaugura uma modalidade poética diferente da poesia homérica. Com Hesíodo, pela primeira vez no Ocidente, revela-se o autor de uma obra literária que introduz elementos biográficos,115 como seu nome, seu local de nascimento e morada, e o nome de seu irmão que o lesara em uma disputa pela herança paterna. Além desse dado novo, que por si já poderia caracterizar a obra hesiódica como diferente da épica grega tradicional, a despeito das semelhanças formais, os temas tratados se distanciam muito da tradição épica que tinha como tema os feitos valorosos dos heróis (kle/a a0ndrw=n), já que, em Teogonia, por meio de narrativas de mitos cosmogônicos e de sucessão divina, se narra de que modo a ordem e a justiça se estabeleceram no mundo116 sob a regência de Zeus, e em Trabalhos e Dias, particularmente, valoriza-se a temática do esforço humano motivado pela prática da justiça.

4.2 Hesíodo e o Oriente Próximo

114Heródoto ( II, 53) faz a seguinte afirmação que ratifica a importância de Homero e de Hesíodo para a formação da religião grega: “Durante muito tempo, ignorou-se a origem de cada deus, sua forma e natureza, e se todos sempre existiram. Homero e Hesíodo, que viveram quatrocentos anos antes de mim, foram os primeiros a descrever em versos a Teogonia, a aludir aos sobrenomes dos deuses, seu culto e funções e a traçar-lhes o retrato.” 115 Não se trata aqui de aceitar como absoluta verdade as referências biográficas presentes nos poemas sobre a figura de Hesíodo. Observa Jose Alsina (1991, p. 28) que um dos métodos de investigação aplicado ao estudo da literatura grega consiste no biografismo que é uma forma de considerar a obra como fonte de dados biográficos do autor e, em consequência, interpretá-la como oriunda de uma experiência pessoal. 116 Confira o proêmio de Teogonia (1-115) em que se estabelecem os principais temas cantados sob a inspiração das Musas. 163

Como se comentou anteriormente, segundo Erwin Rohde117, desde o início do século passado, crescia nos estudos clássicos uma tendência em considerar algumas influências estrangeiras na formação da cultura helênica, tese da qual compartilha Scott B. Noegel (2007, p. 21), no tocante à religião. De acordo com esse estudioso, há muitos anos, a influência oriental exercida sobre a religião grega tem sido tema de debates entre especialistas do assunto. Assinala, ainda, que as abordagens são diversas: enquanto há pesquisadores que veem os suspostos indícios orientais como desenvolvimentos independentes, outros sugerem que as similaridades existentes entre aspectos gregos e orientais nos âmbitos da arte, da literatura e da arqueologia são indícios de elementos que influenciaram a formação da religião grega. Scott B. Noegel adota, como se pode perceber na citação seguinte, uma posição mais cautelosa quanto às influências orientais na formação de alguns conceitos religiosos gregos:

Em suas formas externas, pelo menos, as religiões do mar Egeu se apresentam muito semelhantes às do Oriente Próximo. Em ambas, por exemplo, encontram-se imagens de culto, altares e sacrifícios, libações e outras práticas rituais, santuários, templos e funcionários do templo, leis e ética, oração, hinos, encantamentos, maldições, dança cultual, festivais, adivinhação, êxtase, videntes e oráculos. Outras características comuns incluem a existência de divindades e demônios de ambos os sexos, uma associação de deuses com regiões cósmicas, noções de sagrado, e os conceitos de polução, purificação e expiação. No entanto, uma vez que se podem encontrar estas características em tradições religiosas que não tiveram contato com o mar Egeu ou com o Oriente Próximo, é possível que elas representem desenvolvimentos independentes. Por outro lado, a sua presença num outro lugar não necessariamente exclui a possibilidade de que eles sejam o resultado da influência cultural. Como alguns clássicos têm apontado, a influência do Oriente Médio é a explicação mais provável para alguns elementos certos rituais de purificação, o uso de sacrifício de bodes expiatórios e depósitos de fundação para citar apenas alguns. Mas como e quando é que esses elementos fizeram o seu caminho para o mundo grego? Tais questões não são facilmente respondidas (NOEGEL, 2007, p. 21. Tradução nossa.).

Há de se notar que o mesmo posicionamento foi assumido por Erwin Rohde ao afirmar que muitas concepções gregas acerca do post-mortem eram comuns a outros povos que não tiveram contato, isto é, poderiam elas ter se desenvolvido em tradições culturais independentes. Do mesmo modo que Scott B. Noegel, o pesquisador acrescentou que considerar qualquer semelhança entre aspectos culturais gregos e orientais como mera influência somente acrescentaria, em alguns casos, mais problemas que soluções. Por essa razão, ser prudente na aceitação da influência

117 Confira a página 147 dessa tese. 164

oriental, conforme propõem os mencionados autores, é pertinente, pois algumas semelhanças podem ser apenas coincidências. O tema é polêmico118, porém não se pode negar que houve no mundo antigo um grande intercurso cultural entre povos que constantemente realizavam viagens de natureza comercial ou migravam a fim de escapar de condições adversas que colocavam em risco a sobrevivência de muitos. O poeta Hesíodo coloca-se nessa condição ao mencionar que, junto com sua família, depois de fugir de situação penosa em sua cidade natal, Cime, se estabelece na região da Beócia, em Ascra, cidade desagradável em sua opinião:

w3v per e0mo/v te path\r kai\ so\v, me/ga nh/pie Pe/rsh, plwi/zesk’ e0n nhusi/, bi/ou kexrhme/nov e0sqlou=: o3v pote kai\ tei=d’ h]lqe polu\n dia\ po/nton a0nu/ssav, 635 Ku/mhn Ai0oli/da prolipw\n e0n nhi\ melai/nh|, ou0k a1fenov feu/gwn ou0de\ plouto/n te kai\ o1lbon, a0lla\ kakh\n peni/nh, th\n Zeu\v a1dressi di/dwsi. na/ssato d’ a1gx’ 0Elikw=nov o0izurh|= e0ni\ kw/mh|, 1Askreh|, xei=ma kakh=|, qe/rei a0rgale/h|, ou0de/ pot’ e0sqlh|=. 640

Assim, certamente o meu e o teu pai, ó grande néscio Perses, navegava em navios, necessitado de uma vida nobre;

118 Today, it is fair to say that a consensus view among classicists and Near Eastern scholars admits of some East-to-West influence. Yet vital questions remain. How much and what kind of influence are we speaking of? How early does this influence occur? And how does one differentiate evidence for mere contact from evidence for influence? Responses to these questions have been hotly debated, and typically they have fallen along disciplinary lines, with classicists seeing Near Eastern influence as largely intermittent until the late archaic and classical periods (Burkert 1992, 2004, 2005a; Scheid 2004) and Near Eastern scholars (and a few classicists: Morris 1992,2001; Walcot 1966; West 1995, 1997) pushing for greater influence and earlier dates(Burstein 1996; Dalley and Reyes 1998a; Naveh 1973; Redford 1992; Talon 2001). Influence in both directions is generally accepted for the hellenistic period and later (Kuhrt 1995; Linssen 2004). (Hoje, é justo dizer que há um consenso entre helenistas e estudiosos do Oriente Médio que admitem alguma influência de leste a oeste. No entanto, questões vitais permanecem. De quanta e de que tipo de influência que estamos falando? Quão cedo é que essa influência ocorre? E como é que se diferenciam evidências de simples contato e evidências de influência? As respostas a estas perguntas têm sido muito debatidas e, normalmente, elas caíram ao longo de linhas disciplinares, com helenistas vendo a influência oriental, como em grande parte intermitente até os períodos arcaico e clássico tardio (Burkert 1992, 2004,2005a; Scheid, 2004) e estudiosos do Oriente Próximo (e alguns clássicos: Morris 1992,2001; Walcot 1966; Oeste 1995, 1997) pressionando por uma maior influência e datas anteriores (Burstein, 1996; Dalley e Reyes 1998a; Naveh 1973; Redford 1992; Talon 2001). Influências em ambas as direções é geralmente aceita para o período helenístico e posterior (Kuhrt 1995; Linssen 2004).

165

um dia também ele chegou aqui cruzando o vasto mar, 635 depois de deixar Cime da Eólida em um navio escuro, fugindo não da abundância, da riqueza ou da felicidade, mas da perversa pobreza, que Zeus dá para os homens. Habitou perto do Hélicon em uma miserável aldeia, Ascra, no inverno ruim, no verão terrível, nunca agradável.

Trabalhos e Dias, 633-40

Vale lembrar que a cidade de origem de Hesíodo, Cime119, está situada na Argólida, região da Ásia Menor que, na opinião de Martin West (1966, p. 31) parece não pertencer à Europa: “a Grécia é parte da Ásia; a literatura grega é literatura do Oriente Médio.”. Essa assertiva tão contundente ilustra a importância que alguns pesquisadores deram à questão da influência de elementos da cultura do Oriente Médio na formação de concepções que, até a primeira metade do século passado, eram consideradas genuinamente gregas. Martin West (1997, p. vii), à guisa de introdução a esse tema, propõe uma metáfora bastante interessante ao comentar a disseminação cultural entre regiões diversas: compara a expansão cultura à expansão gasosa que, a partir de um ponto mais concentrado, se espalha menos densamente para áreas mais distantes. De modo semelhante, na opinião do autor (West, op. cit., p. 1), um intercurso cultural, no que diz respeito à arte e aos métodos de sua realização, se processou por milhares de anos, do sétimo ao primeiro milênio, e teve curso do sudoeste da Ásia, região considerada pelo autor como lugar de nascimento de uma revolução neolítica, até a parte sul ocidental da Europa, chegando à “retorcida” região europeia denominada comumente de Grécia.120

119 Aurelio Pérez Jimenez e Alfonso Martínez Díez (1978, p. 7) observam que a causa da migração mencionada no poema é um tanto estranha, pois a informação apresenta um problema quando se coloca a pergunta: por que depois de fugir da arruinada Cime, o pai de Hesíodo se estabeleceu em Ascra e como pôde fazer fortuna nessa cidade pobre e de recursos parcos? Os pesquisadores notam que, já na Antiguidade, o historiador Éforo considerou a informação sem sentido. O questionamento suscitou a tese de que o motivo da viagem teria sido um desterro motivado por um assassinato. 120 O autor considera (op. cit. p. 2) que as vias de contato entre a Grécia e o Oriente Médio podem ser traçadas em rotas definidas em termos geográficos e fatores práticos relativos a um tráfego marítimo condicionado pela necessidade de navegar tendo como referência a terra que não podia ser perdida de vista. Assim, acrescenta Martin West que se podem observar rotas do Oriente para o Ocidente a partir da Babilônia subindo na direção do rio Eufrates para Emar, no norte da Síria, com uma rota alternativa por Damasco a caminho do oásis de Palmira. Havia outros caminhos por cidades da Palestina e pelo delta do Nilo. Martin West ainda considera que havia caravanas egípcias que cruzavam rotas pelo Sinai, 166

Além das artes, acentua Martin West que o cultivo de cereais, a fabricação de cerâmica e de tecido, primeiramente à mão e depois com o auxílio da roda e do tear, e o desenvolvimento das técnicas de metalurgia, que trabalhavam o cobre, o bronze e o ferro, a escrita e a música, entre outros dados, são exemplos de elementos que se expandiram através dos tempos por regiões diversas. Porém, a investigação do estudioso acerca da cultura oriental, principalmente a semítica e a anatólia, na formação da literatura e dos mitos gregos, restringe-se ao período comprrendido entre 750-450 a. C. Observa-se que Martin West, em detrimento da usual expressão “cultura do Oriente Médio”121, denomina a relação intercultural entre o Oriente e a Grécia “West Asiatic”, expressão que compõe o título de sua referida obra sobre assunto. O pesquisador (1995, p. VII) justifica a denominação por ele adotada alegando que suas pesquisas partiram de materiais provenientes da Babilônia, Anatólia e Síria, e de algumas fontes bíblicas. A obra de Hesíodo destaca-se como uma das principais fontes de informações para aqueles que se dedicam à pesquisa das semelhanças entre a literatura grega e a oriental. Aliás, Martin West assevera (op. cit. p. 276) que qualquer pesquisador que se proponha estudar a poesia hesiódica seriamente deve levar em conta essa relação intercultural, principalmente no que diz respeito às genealogias e às cosmogonias:

As obras análogas mais próximas do poema de Hesíodo podem ser encontradas no Oriente Próximo. Muitos povos têm cosmogonias ou genealogias divinas na poesia ou na literatura em prosa. Mas o tema de que o presente soberano dos deuses chegou ao poder ao derrotar ou desabilitar um deus mais antigo e que este não foi o primeiro evento crítico, parece ser especificamente do Oriente Próximo. A integração de Hesíodo com uma história dinástica desse tipo com uma genealogia divina, começando com a forma do início das coisas e terminando com o rei dos deuses estabelecido em glória, tem paralelo no Enuma Elish, um poema de força semelhante a de mas a via de comunicação mais fácil entre o Egito e a Ásia Ocidental era o mar por onde se podia chegar até as ilhas do Egeu. Assim, possivelmente, o Egito já estivesse em contato com Creta no terceiro milênio. As relações entre a parte oriental, denominada Crescente Fértil, e a Grécia, na opinião do autor, foram mais intensas entre 1440 e 1340. a. C. Nota o pesquisador que, no Crescente Fértil, subindo de Tiro para Ugarit, se encontravam as terras de povos navegadores que podiam subir e descer a costa antes de 6000 a. C. Assim, podia-se navegar do sul do Egito para o Leste ou do Leste para Chipre ou Rodes e das Cicládicas para Eubeia e Ática, para o norte do Egeu ou para outras regiões, como o leste do Peloponeso, o Mar Jônio e a Itália. Quanto aos caminhos da Grécia para o Oriente, o autor os sintetiza nas seguintes palavras: “The Greek’s normal route to East was the same in reverse.”. 121 Vários autores, como, por exemplo, Emily Vermeule (1979), T. B. L. Webster (1958), Martin Bernal (2006), entre outros, argumentam a favor da influência da cultura do Oriente Médio na cultura grega usando a expressão Middle East. Destaca-se aqui o livro de Walter BURKERT, The Orientalizing Revolution: Near Eastern inluence on Greek Culture in the Early Archaic Age. Harvard University Press, 1993, em razão da importância do autor e da influência de suas ideias no âmbito dos estudos sobre a religião grega. 167

Teogonia. Este mito de sucessão também mostra significantes pontos de contato com a canção Hurro-hitita de Kumarbi (WEST, op.cit. p. 276. Tradução nossa).

Depois de assinalar as obras consideradas por ele análogas aos poemas hesiódicos, a fim de demonstrar a relação intercultural, Martin West analisa os mencionados mitos orientais ressaltando, inicialmente, suas semelhanças com aqueles expressos em Teogonia. Na opinião de Martin West (op. cit. p. 279), semelhanças entre a Canção de Kumarbi e a Teogonia são evidentes: a primeira semelhança é a sucessão dinástica por meio da violência. Do mesmo modo que no mito da sucessão divina, Urano, Cronos, Zeus narrado em Teogonia, nesse mito oriental, o soberano Alalu é deposto, depois de uma guerra empreendida pelo deus copeiro Anu que se instala no trono. Porém, este é vencido posteriormente por Kumarbi, um dos filhos do antigo soberano que, por sua vez, é destronado por uma nova divindade que se instaura no poder como rei dos deuses, Teššub, o deus da tempestade. Entre outros comentários do estudioso, vale destacar o significado do nome do deus Anu, Céu, denominação da divindade hesiódica que122, unindo-se à deusa , dá forma ao universo. Além disso, no mito Hurro-hitita, Anu, em um episódio semelhante àquele narrado em Teogonia, também é castrado por seu sucessor Kumarbi que tem como aliado um grupo de deuses que o apoiam na batalha pelo poder em claro paralelo com o passo referente ao deus Cronos em Teogonia. Duas outras características mencionadas por Martin West são bastante sugestivas quanto às semelhanças entre a narrativa oriental e a hesiódica: a primeira, diz respeito às hostilidades entre Teššub e seus antigos aliados, mesmo depois da instalação no poder, situação análoga à de Zeus com os Titãs; a segunda é referente ao passo do mito de Kumarbi, segundo o qual a Terra gera duas crianças no subterrâneo Apsu que, na opinião do autor, é uma referência a uma futura ameaça a Teššub. Martin West assinala o paralelo entre esse episódio da canção oriental e a geração de Tifão, em Teogonia, que ameaçou o poder de Zeus recém-instalado no poder. Quanto ao poema babilônico Enuma Elish, Martin West (op. cit., p. 282) não o considera uma teogonia porque seu tema é a ancestralidade do deus Marduk, sua

122 Confira Teogonia 123-202. 168

trajetória de ascensão ao poder e a organização do cosmos. Diferente do poema hesiódico, ele não tem como tema a geração dos deuses. Porém, ainda assim, há partes que podem ser elencadas como paralelas à Teogonia de Hesíodo, como, por exemplo, a indicação de um casal originário no início da narrativa, Apsu e Tiamat, a geração de filhos que são odiados pelo progenitor que deseja eliminá-los, apesar da oposição da mãe, a deposição do pai opressor por um dos filhos. Também há no poema babilônico referência a uma divindade que assume o poder depois de uma batalha, Marduk, filho de Ea, porém, diferente da narrativa hesiódica, a batalha pelo poder não acontece entre pai e filho. Marduk luta contra outro oponente e o vence usando como armas ventos e raios. Por outro lado, Martin West (op. cit. 306) considera o poema Trabalhos e Dias uma obra de cunho exortativo e didático123 com fins de instrução moral e prática e lembra que muitos povos possuem uma literatura sapiencial de alguma natureza. Além disso, o estudioso acrescenta que a referida obra hesiódica apresenta uma clara afinidade com a literatura do Oriente Médio, particularmente com as tradições babilônicas e hebraicas que se estabeleceram ao longo dos séculos com duas características distintivas: a presença de conselhos ou instruções endereçadas a familiares próximos e instrução aos soberanos. Em Trabalhos e Dias, lembra o estudioso, o poeta harmoniza essas duas particularidades da literatura oriental já que Hesíodo dirige seus versos a seu irmão e aos reis exortando-os à prática da justiça.

123 Não há unanimidade entre os estudiosos quanto à classificação da poesia hesiódica como pertencente ao gênero didático. A esse respeito vale mencionar a opinião de Malcon Health (1985, p. 11): “Let us consider first the formal sense. In this sense, ‘didactic poetry’ is a covering term for those poetic genres (for example, the philosophical works of Empedocles or Lucretius, the paraenetic elegy of Theognis) which explicitly or implicitly claim to embody information or advice with a view to the instruction or edification of the audience of address. There is no such explicit claim in ; the audience of that poem is never explicitly referred to at all. Works and Days does explicitly adopt an instructive stance towards Perses and the kings; but this does not answer to our present question, since it is clear that Perses and the kings are a literary device, characters within a poem that is really addressed to an unmentioned external audience (this, whether or not the figure of Perses is wholly or partly fictive). In both cases, then, the claim to be formally didactic would have to be implicit. But that presents us with a difficulty. What can be meant or conveyed by implication depends on shared presuppositions of the author and his audience; without access to that original Erwartungshorizont, any assessment of the implied content of a text must be highly speculative; and since Hesiod’s poetry is for us isolated at the beginning of the extant Greek poetic tradition, where very little contextual evidence survives, our ability to reconstruct the appropriate horizon of expectation must be in doubt. If in these circumstances we were to risk the conjecture that Hesiod’s poems were formally didactic (that is, that their audience of address would have understood them as claiming implicitly to be intended to instruct), we are likely to have been influenced unduly by later developments in the tradition. For it is true that in form and content the two poems do resemble later works that unquestionably were didactic (at least in the formal sense); and those later poets did look back to Hesiod’s works as paradigms of the genre.”. 169

Particularmente, sobre a exortação aos reis, Martin West (op. cit. p. 307) pondera que há na literatura oriental uma preocupação com a prática da justiça e a ira dos deuses advinda da negligência a essa prática. Nesse sentido, Hesíodo, na opinião do autor, imprime em sua obra um tom profético ao dirigir-se aos reis porque se coloca na condição de alguém que, por prerrogativa divina, conhece o desejo da divindade. Lembra o pesquisador que há referência a profetas hebraicos em uma época quase contemporânea à do poeta beócio, e a figura de Amós, pastor que recebeu o dom de anunciar aos reis os desejos da divindade, é evocada como história paralela à vocação poética de Hesíodo. A existência do tom profético em Trabalhos e Dias, característico da literatura hebraica, pode ser verificada, na opinião de Martin West, na narrativa do mito das Cinco Raças, nos versos referentes ao destino dos homens da Raça de Ferro, passo em que o uso do simbolismo dos metais nesse mito seria outra prova de sua origem oriental posto que a metalurgia era uma tecnologia mais desenvolvida entre os povos do Oriente. Algumas das características da literatura oriental em Trabalhos e Dias, mencionadas por Martin West, já tinham sido observadas por Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez em uma obra sobre os possíveis conflitos entre Homero e Hesíodo, entre os quais se destacam124 (1978, p. 36 ) o mito das Raças, o de Pandora, o de Prometeu; a fábula do falcão e do rouxinol, o calendário do trabalhador etc.”. Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez são ousados em determinar as fontes egípcias que influenciaram Trabalhos e Dias ao afirmarem que a literatura sapiencial grega tem antecedentes no Egito, em obras específicas:

O mais antigo exemplo conhecido é A instrução de Ptah-hotep, o conselho de um pai para seus filhos, em que se expressa a utilidade de ouvir os outros, a justiça, a generosidade e a falta de ambição, e adverte que somente a justiça é segura . Mas as obras mais semelhantes a Trabalhos e Dias são a Instrução de Amen-em-Opet a Onchsheshonqy, embora este último seja posterior à época

124 Sobre a procedência da influência oriental na obra hesíódica notam os pesquisadores (op. cit., p. 39): Estas influências orientales, mas probables en la Teogonia que en los Trabajos, plantean el problema de su penetracion en Beocia. ≪O bien los fenicios han sido los transmisores, o bien los griegos, ya que en el âmbito del menor, en Mileto o Rodas, donde se encontraban establecidos desde la epoca micenica, llegaron a conocer la historia de la sucesion de los dioses e historias afines. Debemos precavernos frente a toda simplificacion artificial de estos problemas, y hay que tomar en consideracion que para Hesiodo debemos contar asimismo con una tradicion antigua, que se remontaba hasta la epoca prehelenica, y para cuya conservacion precisamente Beocia era un suelo propicio. Debemos considerar que en la Teogonia actuaba una tradicion multiple, atestiguada de manera convincente por el caracter polifacetico de la obra. Tampoco debemos olvidar que el padre de Hesíodo era natural del Asia Menor.

170

de Hesíodo (PÉREZ JIMÉNEZ e MARTINEZ DÍEZ, 1978, p. 37. Tradução nossa).

Há outros autores que adotam esse modelo de análise comparativa em seus estudos, como, por exemplo, Ian Rutherford (2009, p. 9) ao afirmar que, entre as obras gregas antigas, os poemas de Hesíodo são aquelas que apresentam paralelos mais relevantes com a literatura asiática ocidental, com a egípcia e com a de povos situados mais ao Leste, no Irã e na Índia. O pesquisador ainda adota uma posição análoga àquela de Scoth B. Noegel no que se refere à dificuldade em determinar as bases sobre as quais os possíveis empréstimos se processaram e quais são suas origens. Os paralelos entre a literatura hesiódica e a do Oriente Médio podem ser encontrados conforme o autor em “áreas-chave” como, por exemplo, naquela denominada por Ian Rutherford (op. cit., p. 10) “Ciclo da Realeza Celeste” (Kingship of Heaven Cycle) no qual está o mais proeminente paralelo com Teogonia e com a Canção de Kumarbi, que é um mito de sucessão divina conforme se mencionou anteriormente nessa tese. Merecem destaque os comentários de Ian Rutherford (2009, p. 14) sobre as semelhanças entre Trabalhos e Dias e a literatura oriental porque ele faz relações que os autores citados anteriormente, por algum motivo, não o fizeram, apresentando paralelos entre esse poema hesiódico e alguns textos egípcios. O pesquisador considera que a história divina e a humana são vistas pelas sociedades do Oriente Médio como um contínuo, de modo que fases de uma e de outra se colocam em paralelo. Na poesia hesiódica, a história da humanidade é menos desenvolvida que a divina, sendo a primeira narrada no mito das Quatro Idades em Trabalhos e Dias “em que a miserável quinta geração”, a de ferro, está em contraste com uma era utópica e outra distópica. O mito das raças está, na opinião do autor, estruturado na sequência que parte do bem para o mal, e novamente do mal para o bem. Desse modo, às Idades de Ouro e Prata, segue a Idade de Bronze. A Raça dos Heróis seria uma volta ao bem. A essa Raça segue a Idade de Ferro, evocando novamente a ideia de mal. Ao contrário de Martin West, que considera o mito das Raças originário do Oriente, Ian Rutherford (op. cit., p. 14) assevera que na literatura oriental não se pode encontrar uma afirmação explícita de um mito de quatro raças e, embora haja paralelos em antigas tradições iranianas e na mitologia indiana, não há como determinar que 171

essas sejam mais antigas que a obra hesiódica. Entre os paralelos existentes, o autor, citando Ludwing Koene (apud Ian Rutherford p. 15), considera os seguintes: a ideia de que essa era é ruim e a futura poderia ser pior é atestada em uma obra egípcia que remonta ao segundo milênio a. C., cujo título é “Profecia de Nefertiti”; a ideia de homens e deuses vivendo juntos em harmonia em uma era a qual segue outra de crise provocada pela separação, conforme o “Mito do Boi Celestial”; a ideia de degradação da relação entre deuses e homens depois do fim de uma era, em Épica de Atrahasis. Essa postura na análise das influências orientais na literatura grega se aproxima da proposta de Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez e diverge daquela adotada por Martin L. West que, prudentemente, apontou características gerais comuns na literatura oriental das quais algumas podem claramente ser percebidas na literatura grega como indícios de influência oriental e deixou fora de sua reflexão textos da literatura egípcia. Os comentários de Martin West, Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez e de Ian Rutherford ilustram de modo claro que não há como negligenciar a relação entre alguns aspectos da literatura oriental e obra hesiódica, embora tenha de haver prudência ao se especificar a origem de alguma concepção para evitar excesso. Ainda que muitas sejam as coincidências temáticas encontradas nos mitos gregos e orientais, determinar de modo seguro a origem de alguns conceitos presentes na literatura grega, como o de escatologia, constitui tarefa complexa. Note-se que em Trabalhos e Dias esse tema é tratado pelo mito das Cinco Raças, no qual se enfatiza a necesssária prática da justiça entre os homens. São elas apresentadas em uma ordem decrescente conforme o valor dos metais (ouro, prata, bronze e ferro), excetuando-se a denominada Raça dos Heróis intercalada entre a Raça de Bronze e a de Ferro. Esse mito retrata a decadência da humanidade e, em consequência, o destino post-mortem dos integrantes de cada uma delas.

4.2.1O Destino dos homens no Mito das Cinco Raças

A investigação acerca do conceito de escatologia na poesia hesiódica pode ser discutida seguindo os mesmos critérios utilizado no estudo desse tema nos Poemas Homéricos: o primeiro, partindo do conceito de efemeridade humana, compreender como o poeta beócio apresenta o destino do homem após a morte. Observa-se que a ideia de efemeridade é evidenciada nos poemas pelos epítetos normalmente utilizados 172

para caracterizar os seres humanos: broto/v, (mortais), qnhtoi\ a1nqrwpoi (homens mortais), mero/pwn a0nqrw/pwn (mortais) e a0lfhsth/v (comedor de pão), este último, ao que parece, utilizado em referência ao homem que, após uma vida exaustiva de trabalho para conseguir seu sustento, encontra seu fim125 em oposição à condição perene e imortal dos deuses. O segundo critério consiste em considerar o destino de uns poucos que, por merecimento ou por outro motivo qualquer, são alçados à esfera do sobrenatural, adquirindo uma condição próxima à das divindades, podendo até mesmo habitar um local de privilégios como a Ilha dos Bem-aventurados. A primeira perspectiva é, pois, o núcleo da reflexão a ser realizada, tendo em vista que a finitude do homem conduz a concepções sobre o que poderia sobrevir após a morte. A segunda considera a abdução de alguns poucos privilegiados como um desenvolvimento de concepções que se processavam no período arcaico sobre um destino mais feliz depois da vida terrena. Se, por um lado, é pertinente que se comece a tratar da escatologia hesiódica observando como ela tem sido abordada nos estudos clássicos, por outro, é justo que se inicie analisando as principais proposições de Erwin Rohde sobre o tema porque ele é um pioneiro na pesquisa. Mas, antes de se passar às principais proposições do autor, faz-se necessária a leitura da narrativa do mito:

Ei0 d’ e0qe/leiv, e3tero/n toi e0gw\ lógon e0kkorufw/sw eu] kai\ e0pistame/nwv: su\ d’ e0ni\ fresi\ ba/lleo sh|=si [w9v o9mo/qen gega/asi qeoi\ qnhtoi/ t’ a1nqrwpoi]. Xru/seon me\n prw/tista ge/nov mero/pwn a0nqrw/pwn a0qa/natoi poi/hsan 0Olu/mpia dw/mat’ e1xontev. 110 oi3 me\n e0pi\ Kro/nou h]san, o3t’ ou0ranw|= e0mbasi/leuen: w3ste qeoi\ d’ e1zwon a0khde/a qumo\n e1xontev no/sfin a1ter te po/nou kai\ ai0zu/ov, ou0de/ ti deilo\n gh=rav e0ph=n, aei0ei\ de\ po/dav kai\ xei=rav o9moi=oi te/pont’ e0n qali/h|si, kakw=n e1ktosqen a9pa/ntwn: 115 qnh|=skon d’ w3sq’ u3pnnw| dedmhme/noi: e0sqla\ de\ pa/nta

125 Os primeiros epítetos são utilizados ao longo dos dois poemas. Confira, por exemplo, Teogonia, 218, 223 e 369, e Trabalhos e Dias 3, 24, 109 e 143. O epíteto a0lfhsth/v é um hápax sendo encontrado em Teogonia, 511 e Trabalhos e Dias, 82. Esse epíteto é forma atestada em Odisseia I, 349, no passo em que Telêmaco repreendera sua mãe por censurar o aedo Fêmio; VI, 8, em referência ao afastamento dos Feáceos em relação aos demais homens; e XIII, 261, passo em que Odisseu tenta enganar a deusa Atená ao afirmar que fugira de Creta, terra de homens que se alimentam de pão. 173

toi=si e1hn: karpo\ d’ e1fere zei/dwrov a1roura au0toma/th pollo/n te kai\ a1fqonon: oi4 d’ e0qelhmoi\ h3suxoi e1rg’ e0ne/monto su\n e0sqloi=sin pole/essin. 119 au0ta\r e0pei\ dh\ tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye, 121 toi\ me\n dai/mone/v ei0si Dio\v mega/lou dia\ boula\v e0sqloi/, e0pixqo/nioi, fu/lakev qnhtw=n a0nqrw/pwn, [oi4 r9a fula/kousin te di/kav kai\ sxe/tlia e1rga h0e/ra e9ssamenoi pa/nth foitw=ntev e0p’ ai]an,] 125 ploutodo/tai: kai\ tou=to ge/rav basilh/íon e1sxon. Deu/teron au]te ge/nov polu\ xeiro/teron meto/pisqen a0rgu/reion poi/hsan 0Olu/mpia dw/mat’ e1xontev, xruse/w| ou1te fuh/n e0nali/gkion ou1te no/hma: a0ll’ e9kato\n me\n pai=v e1tea para\ mhte/ri kednh|= 130 e0tre/fet’ a0ta/llwn, me/ga nh/piov, w|[ e0ni\ oi1kw|: a0ll’ o3t’ a1r’ h0bh/sai te kai\ h3bhv me/tron i3koito, pauri/ Dion zw/eskon e0pi\ xro/non, a1lge’ e1xontev a0fradi/h|v: u3brin ga\r a0ta/sqalon ou0k e0du/nanto a0llh/lwn a0pe/xein, ou0d’ a0qana/touv qerapeu/ein 135 h1qelon ou0d’ e1rdein maka/rwn i9eroi=v epi\ bwmoi=v, h[| qe/miv a1nqrwpoiv kata\ h1qea. tou\v me\n e1peita Zeu\v Kroni/dhv e1kruye xolou/menov, ou3kena tima\v ou0k e1didon maka/ressi qeoi=v oi4 1Olumpon e1xousin. au0t\r e0pi\ kai\ tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye, 140 toi\ me\n u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi\ kale/ontai, deu/teroi, a0ll’ e1mphv timh\ kai\ toi=sin o0phdei=. Zeu\v de\ path\r tri/ton a1llo ge/nov mero/pwn a0nqrw/pwn xa/lkeion poi/hv’, ou0k a0rgure/w| ou0de\n o9moi=on, e0k melia=n, deino/n te kai\ o1brimon: oi[sin 1Arhov 145 e1rg’ e1mele stono/enta kai\ u3bri/ev , ou0de/ ti si=ton h1sqion, a0ll’ a0da/mantov e1xon kratero/frona qumo/n. [a1plastoi: mega/lh de\ bi/h kai\ xei=ver a1aptoi e0c w1mwn e0pe/fukon e0pi\ stibaroi=si me/lessi.] tw=n d’ h]n xa/lkea me\n teu/xea, xa/lkeoi de/ te oi]koi, 150 174

xalkw|= d’ ei0ga/rzonto: me/lav d’ ou0k e1ske si/dhrov. kai\ toi\ me\n xei/ressi u9po\ sfete/rh|si dame/ntev bh=san e0v eu0rw/enta do/mon kruerou= 0Ai/dao, nw/numnoi: qa/natov de\ kai\ e0kpa/glouv per e0o/ntav ei]le me/lav, lampro\n d’ e1lipon fa/ov h0eli/oio. 155 Au0ta\r e0pei\ kai\ tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luyen, au]tiv e1t’ a1llo te/tarton e0pi\ xqoni\ poulubotei/rh| Zeu\v Kroni/dhv poi/hse, dikaio/teron kai\ a1reion, a0ndrw=n h9rw/wn qei=on ge/nov, oi4 kale/ontai h9mi/qeoi, prote/rh geneh\ kat’ a0pei/rona gai=na. 160 kai\ tou\v me\n po/lemo/v te kakao\v kai\ fu/lopiv ai0nh\ tou\v me\n u9f’ e9ptapolu/w| Qh/bh|, Kadmhi/di gai/h|, w1lese marname/nouv mh/lwn e3nek’ 0Odipo/dao, tou\v de\ kai\ e0n nh/essin u9pe\r me/g alai=tma qala/sshv e0v Troi/hn a0gagwn 9Ele/nhv e3nek’ h0uko/moio. 165 e1nq’ h] toi tou\v me\n qana/tou te/lov a0mfeka/luye toi=v de\ di/x’ a0nqrw/pwn bi/oton kai\ h1qe’ o0pa/ssav Zeu\v Kroni/dhv kAtená/sse path\r e0v pei/rata gai/hv. 168 Kai\ toi\ me\n nai/ousin a0khde/a qumo\n e1xontev 170 e0n maka/rwn nh/soisi par’ 0Wkeano\n baqudi/nhn, o1lboi h3rwev, toi=sin melide/a karpo\n tri\v e1terov qa/llontav fe/rei zei/dwrov a1roura. Mhke/t’ e1peit’ w1fellon e0gw\ pe/mpoisi metei=nai a0ndra/sin, a1ll’ h2 pro/sqe qanei=n h2 e1peita gene/sqai. 175 nu=n ga\r dh\ ge/nov e0sti\ sidh/rion: ou0de\ pot’ h]mar pau/sontai kama/tou kai\ o0izuov ou0de/ t nuktwr teiro/menoi: xalepa\v de\ qeoi\ dw/sousi meri/mnav. a0ll’ e1mphv kai\ toi=si memei/cetai e0sqla\ kakoi=sin. Zeu\v d’ o0le/sei kai\ tou=to ge/nov mero/pwn a0nqrw/prwn, 180 eu]t’ a1n geino/menoi poliokro/tafoi tele/qwsin.

E se desejas, outra história te contarei bem e com habilidade; e tu lance-a em teus pensamentos como da mesma origem surgem os deuses e os homens 175

mortais. Primeiro uma raça de ouro de homens mortais fizeram os imortais que têm morada olímpia. 110 Eles eram do tempo de Cronos, quando ele reinava no céu; como deuses viviam com o coração sem sofrimentos, longe do trabalho e da miséria, nem a infeliz velhice estava presente, sempre iguais nos pés e nas mãos. Alegravam-se em festas, à parte de todos os males; 115 morriam como dominados pelo sono. Todos os bens havia para eles: fruto a terra fértil produzia espontaneamente, muitos e fartos, e eles contentes e tranquilos partilhavam o trabalho com alegrias infinita. Depois que a terra cobriu essa raça, eles são divindades, pela vontade do grande Zeus, nobres, subterrâneas, guardiãs dos homens mortais, eles guardam a justiça e as ações perversas, vestidos de bruma percorrendo toda a terra, 125 doadores de riquezas: e obtiveram esse prêmio real. Uma segunda raça, em seguida, muito pior que a anterior, de prata, fizeram aqueles que têm morada olímpia, em nada semelhante à de ouro, nem no aspecto nem no pensamento. Mas por cem anos, o filho com a mãe prudente 130 era criado brincando, grande néscio, dentro de casa. Mas quando crescia e alcançava a idade da juventude, pouco tempo viviam sobre a terra, com sofrimento pela imprudência. De fato, a insolência não podiam conter um contra o outro, nem desejavam 135 cultuar nem sacrificar nos sagrados altares dos bem-aventurados, conforme é lei natural e costume para os mortais. Depois, Zeus filho de Cronos, irado, ocultou-os porque não prestavam honras aos bem-aventurados deuses que detêm o Olímpo. Em seguida, a terra também cobriu essa raça, 140 176

eles são chamados bem-aventurados mortais subterrâneos, os segundos, mas, de qualquer modo, uma honra os acompanha. E Zeus pai uma terceira raça de homens mortais de bronze fez, em nada semelhante à de prata, dos freixos, terrível e vigorosa, a quem as obras funestas de 145 as insolências interessavam, nenhum trigo comiam, mas tinham o selvagem coração de aço, não modelado; grande violência e braços invencíveis dos ombros brotavam sobre os corpos poderosos. As armas deles eram de bronze; de bronze suas casas 150 e trabalhavam com bronze; o ferro negro não existia ainda. Eles, subjugados pelos próprios braços, desceram para a bolorenta casa de Hades gelado, anônimos; e a morte negra, mesmo sendo eles terríveis, os dominou, e deixaram a luz brilhante do sol. 155 Depois também a essa raça a terra cobriu. De novo, outra, quarta raça, sobre a terra que muito alimenta, Zeus Crônida fez, mais justa e melhor, raça divina dos heróis, que são chamados semideuses, raça anterior sobre a terra vasta. 160 A guerra danosa e o combate terrível, aniquilou-os, uns em Tebas de Sete Portas, em Cadmo, ao lutarem por causa dos rebanhos de Édipo, outros, nos navios, sobre o grande abismo do mar, indo a Troia por causa de Helena de bela cabeleira, 165 lá o termo da morte os encobriu. A outros, longe dos homens, concedendo-lhes recursos e morada, Zeus pai, filho de Cronos, estabeleceu-os nos confins da terra. E eles habitam com o coração sem sofrimentos 170 a Ilha dos Bem-aventurados, junto ao Oceano de profundas correntes, felizes heróis, para o quais melíferos frutos 177

três vezes ao ano florescendo produz a terra fecunda. Não mais estivesse eu entre os quintos homens, mas que morresse antes ou nascesse depois! 175 De fato, agora, existe a raça de ferro: nem de dia nem de noite cessarão de consumi-los, o cansaço e a miséria; e os deuses lhes darão duras preocupações; contudo, para eles estarão misturados bens com males. Zeus destruirá também essa raça de homens mortais, Trabalhos e Dias 106-80

Considerado o pioneiro nos estudos de escatologia na Grécia antiga, Erwin Rohde (1925, p. 58) aborda o tema da vida post-mortem na obra de Hesíodo, com base no mito das Cinco Raças, cujo objetivo principal, segundo o autor, era relatar a progressiva decadência moral da humanidade. A menção do que ocorre depois da morte dos homens, em sua opinião, teria apenas um objetivo secundário que se converte, porém, no tema central com a introdução da Raça dos Heróis, pois de outra forma, essa parte do mito somente prejudicaria a construção da narrativa, ou seja, para Erwin Rohde, se o primeiro objetivo do poeta fosse tratar do post-mortem, a estrutura do Mito das Raças seria quebrada com a intercalação da Raça dos Heróis. A inserção da Raça dos Heróis, segundo o autor, não teria como objetivo destacar uma concepção moral elevada dos guerreiros, nem os combates, nem as façanhas perpetradas em Tebas ou Troia às quais o poeta se cala. Os atos praticados nessas guerras igualariam os heróis aos homens da Raça de Bronze. O objetivo do poeta, anota Erwin Rohde, é apresentar o que distingue a Raça dos Heróis das outras, isto é, o fato de alguns desses homens, sem experimentar a morte, serem separados em vida: “Isso é o que interessa ao poeta e o que, sem dúvida, o move primeiramente a intercalar no poema o episódio referente à quarta idade”. (1948, p. 50). Após sua breve introdução com fins de resumir o Mito das Cinco Raças e justificar a intercalação da Raça dos Heróis em um esquema que se baseia na sequência de valores dos metais, Erwin Rohde (1925, p. 56) passa a analisar o destino final dos homens de cada raça começando pela Raça de Ouro. Aos homens dessa geração, a fim de evidenciar-lhes a nova fase de existência após a morte, Hesíodo lhes 178

confere o nome de daimones126, termo que, segundo o autor (op. cit. p. 58), é utilizado por Homero para se referir aos deuses imortais. Acentua o pesquisador, porém, que o poeta beócio evita que se confundam os deuses, habitantes do Olimpo, com os mortais divinizados, afirmando que estes últimos são daimones que moram sobre a terra. Essa nova forma de existência apenas alçaria os homens da Raça de Ouro a uma condição superior àquela que tinham em vida:

Pois, não são outra coisa senão almas, de fato, as que aqui, depois de se separarem dos corpos, se transformam em demônios, isto é, levam, em todo o caso, uma existência superior e mais poderosa do que aquela que viveram enquanto estavam unidas aos seus corpos (ROHDE, 1948, p. 58. Tradução nossa).

Observou ainda Erwin Rohde que a ideia apresentada por Hesíodo contém uma concepção inexistente na épica homérica que não faz referências a esses seres, mas que encerraria vestígios de uma antiga crença mantida isolada na campesina Beócia e cujas raízes devem ser buscadas fora da épica. Os homens da Raça de Ouro são identificados pelo pesquisador (op. cit., p. 72) com as trinta mil divindades que vagueiam pela terra, encarregadas por Zeus de observar as ações dos mortais, conforme menciona Hesíodo em Trabalhos e Dias, verso 252. Na opinião de Erwin Rohde, por questões éticas, essa concepção é importante para o poeta que não pode tê-la inventado porque nada que pertencesse à esfera religiosa ou à do culto, mesmo que fosse uma superstição, poderia ser criação de Hesíodo que pertencia à escola beócia, que diferente da homérica afeita às inovações, era contrária a essa prática, como se deduz do verso 27 de Teogonia: “i1dmen yeu/dea polla\ le/gein e0tu/moisin o9moi=a,” (sabemos falar muitas coisas mentirosas semelhantes a verdades). As palavras do autor são significativas nesse sentido: “os poetas beócios nunca inovam na região puramente mitológica, mas simplesmente ordenam ou colocam junto ou meramente registram aquilo que encontram na tradição.” Assim, segundo Erwin Rohde, o destino dos homens da Raça de Ouro, que se tornam daimones após a morte, origina-se de uma tradição mais antiga que Hesíodo podendo ser uma especulação pós-homérica. Na opinião de Erwin Rohde (1925, p. 72), nos Poemas Homéricos, há vestígios do culto dos mortos para se admitir que, em tempos remotos, os Gregos, de modo

126 Trabalhos e Dias, 122 179

semelhante a outros povos, acreditavam na continuidade, na existência consciente da psykhé, depois de sua separação do corpo, e em sua capacidade de influenciar o mundo dos vivos. Essas ideias, que só com muita dificuldade podem ser extraídas das epopeias, são confirmadas, segundo o autor, por Hesíodo em cujo poema se encontra preservada a antiga crença na elevação da alma a uma existência mais sublime, como ratifica o autor: “a crença na divindade deles, após a morte, deve, portanto, ser de longa data, e o culto a essas almas como seres poderosos ainda continua.”. A narrativa referente à divinização dos homens da Raça de Ouro seria, segundo Erwin Rohde, indício de que a crença era corrente no tempo de Hesíodo. Destino semelhante ao dos homens da Raça de Ouro, segundo o autor (op. cit. p. 73), terá os da Raça de Prata aos quais se prestam culto e são denominados bem- aventurados mortais. Esse sintagma é, na opinião do autor, usado nesse passo de modo paradoxal, pois o termo makares se emprega, normalmente, para designar os deuses e os seres colocados acima da mortalidade. O emprego do termo, como faz Hesíodo, associando-o ao adjetivo mortais, (ma/karev qnhtoi/), é considerado por Erwin Rohde estranho por equivaler à expressão deuses mortais na qual os termos são excludentes. O pesquisador considera que essa utilização que causa estranhamento pode estar associada a um incômodo do poeta que empregava um termo comum do vocabulário homérico para designar seres que eram desconhecidos na poesia épica. O emprego do termo daimones para designar os homens da Raça de Ouro após a morte, na opinião de Erwin Rohde, parace não fazer distinção entre eles e os homens da Raça de Prata. A diferença entre os modos de existência post-mortem dessas duas raças reside, segundo o autor, apenas no fato de os homens da Raça de Ouro viverem sobre a terra, enquanto os da Raça de Prata, nas profundezas da terra, sendo, por esse motivo, considerados entidades subterrâneas: “Somente o local onde as duas classes de espíritos têm suas habitações é diferente  os daimones da Raça de Prata viviam nas profundezas da terra [...]”. Essa localização, porém, na opinião de Erwin Rohde (1925, p. 60), não pode ser tomada como equivalente à residência no Hades, lugar de reunião de “alma-sombras” porque essas levam ali uma existência inconsciente e vegetativa sem que lhes fossem prestados nenhuma forma de culto. A interpretação de Erwin Rohde apresenta uma dificuldade porque, nos versos relativos ao destino dos homens da Raça de Prata, não se usa o termo daimones para denominá-los, fato que torna a argumentação do autor frágil porque, claramente, não 180

se pode sustentar que ambos tinham a mesma natureza e os termos daimones e makares sejam sinônimos, conforme supõe Erwin Rhode. Sobre a prestação de culto aos homens das duas primeiras raças, Erwin Rohde faz uma curiosa observação com base no verso 142, referente à Raça de Prata: “deu/teroi, a0ll’ e1mphv timh\ kai\ toi=sin o0phdei=.” (os segundos, também alguma honra é para eles prestada.) que apresentando a expressão kai\ toi=sin permite inferir “a fortiori” que aos homens da Raça de Ouro se prestava culto. Quanto à Raça de Bronze e seu destino final, Erwin Rohde (op. cit., p. 74) afirma que, pela narrativa do poeta, lhes é atribuído um destino final muito semelhante àquele dos heróis dos Poemas Homéricos, isto é, o reino de Hades onde eles se convertem em “um nada”. O uso do adjetivo “anônimos” que os caracteriza, segundo o autor, talvez apenas indique que, diferente das Raças anteriores, não lhes eram prestadas honras de qualquer natureza. Erwin Rohde dá maior atenção à Raça dos Heróis e apresenta-lhes algumas reflexões sobre essa, narrativa que, em sua opinião (op. cit., 1925, p. 75), corresponde à primeira apresentação de uma história totalmente lendária cuja inserção, imediatamente anterior ao tempo em que o poeta viveu, evidencia o parco conhecimento que os Gregos antigos tinham de sua própria história. Nota-se que o pesquisador considera que as raças são apresentadas por Hesíodo como eventos históricos porque o poeta se inclui em uma delas, a Raça de Ferro, e a apresentação Raça dos Heróis seria totalmente lendária devido à utilização que Hesíodo faz da épica tradicional que narrava a aventura dos heróis, como, por exemplo, a Ilíada e outros poemas do gênero. O interesse de Hesíodo ao introduzir a quarta raça é, conforme Erwin Rohde (1925, p. 75), mostrar o destino final dos homens da Raça dos Heróis, que se relacionam com os homens da Raça de Bronze pelo destino final de alguns que simplemente morrem e vão para o Hades. Outra parte dos heróis, porém, é destinada à Ilha dos Bem-aventurados sem sofrerem o golpe da morte, ou seja, sem que a psykhé se separe do corpo. Eles são levados vivos, ao contrário daqueles que, depois da morte, foram para o Hades. A concepção de um lugar isolado para onde alguns poucos são levados, conforme apresenta Hesíodo, na opinião de Erwin Rohde (op. cit. p.; 75) é procedente do ciclo de poesia épica tradicional sobre o qual se assenta a narrativa da abdução de Menelau em Odisseia IV, 561-9. O estudioso acrescenta ainda que o poeta beócio, ao 181

colocar esse lugar afastado do mundo dos homens, no oceano, nos confins da terra, o relaciona com os Campos Elísios presente na Odisseia. Desse modo, a Ilha dos Bem- aventurados e os Campos Elísios seriam, na verdade, o mesmo lugar denominado de modo diverso. O mito hesiódico das Cinco Raças, segundo Erwin Rohde (op. cit.; p 62) , oferece a mais importante referência sobre a crença do povo grego antigo no destino das almas porque nele estão inseridas uma prática de um passado distante, ou seja, o culto aos mortos no qual subjaz a concepção do destino final dos homens da Raça de Ouro e da Raça de Prata, e também a crença de que os mortos se fundiriam formando, no Hades, uma massa homogênea, um nada em um reino de sombras, concepção contemporânea ao poeta. Parte das interpretações de Erwin Rohde foi aceita por Lewis Richard Farnell que, em seu livro Greek Heros Cult and the Idea of Immortality, já mencionado anteriormente, abordou o tema do destino final do homem no Mito das Raças, analisando com cuidado particularidades referentes à Raça de Ouro porque, em sua opinião, (1921, p. 12), algumas dificuldades inerentes à narrativa nunca foram contempladas, como, por exemplo, as expressões dai/mone/v/e0sqloi/, e0pixqo/nioi, fu/lakev qnhtw=n a0nqrw/pwn, nos versos 122-3, sobre as quais ele assegura que Erwin Rohde agiu acertadamente ao relacioná-las com um antigo culto dos mortos sem, contudo, resolver-lhes as dificuldades de interpretação. O termo dai/mwn (daímon) é o ponto de partida da reflexão de Lewis Richard Farnell (op. cit., p. 21) que pondera a utilização desse termo, nos Poemas Homéricos, como sinônimo de palavras que designam uma divindade, significado jamais empregado por Hesíodo em cuja obra só é usado em referência ao espírito “glorificado” de um homem, conforme o passo de Teogonia127 sobre o rapto de Faéto por Afrodite, que o eleva ao status de divindade (dai/mona d+i=on), e para designar “todos os dai/monev 128das Raças de Ouro e de Prata”. Esse fato, na opinião de Lewis Richard Farnell, demonstra que o poeta estaria familiarizado com a ideia de homens, depois da morte, serem alçados à condição divina. De modo retórico, o pesquisador coloca a questão sobre quem seriam os dai/monev e0pixqo/nioi / e os dai/monev u9poxqo/nioi e afirma que eles não podem ser

127 Teogonia, 986-91 128 Nota-se que o autor comete o mesmo equívoco de Erwin Rohde indentificando os homens da Raça de Prata como diamones, termo que não aparece no referido passo. 182

identificados com os heróis da épica, transladados para a um lugar feliz, porque enquanto estes não recebiam qualquer forma de culto, aqueles eram cultuados. Também não se pode identificá-los com a geração micênica representada pela Raça de Bronze, pois essa pereceu pela violência e também não era cultuada. A resposta dada por Lewis Richard Farnell é que, se os ancestrais e os heróis fossem cultuados no tempo do poeta, talvez o sintagma dai/monev u9poxqo/nioi, conferido aos homens da Raça de Prata significasse que o culto lhes seria prestado porque eles seriam concebidos como seres u9poxqo/nioi (subterrâneos) que podiam causar problemas aos vivos e que se alegravam ao receberem timh/ (honra), termo grego que significa, na opinião do autor, culto por parte do povo. Observa o teórico que a prática de culto ao ancestral e ao herói é atestada na religião popular posterior, embora as informações dadas por Hesíodo sobre os homens da Raça de Prata permaneçam um mistério e sua singularidade na literatura grega não contribui para uma interpretação mais segura. Os comentários do autor, principalmente no que diz respeito à situação post- mortem dos homens da Raça de Prata relacionando-a com o culto aos ancestrais e aos heróis, são válidos como tese, mas o autor incorre em equívoco ao denominar os homens da referida raça como dai/monev u9poxqo/nioi (divindades subterrâneas) porque, no passo em questão, se registra a expressão u9poxqo/nioi ma/karev (bem-aventurados subterrâneos), não parecendo conveniente identificar dai/monev e ma/karev como sinônimos, procedimento já adotado por Erwin Rohde a quem Lewis Richard Farnell cita como pesquisador relevante sobre o tema. A interpretação do Mito das Cinco Raças tem sido matéria de estudo de vários autores mais recentes entre os quais se destaca J. S. Clay que, ao abordar a origem e a natureza da humanidade na poesia hesiódica, o faz a partir da efemeridade humana, postulado que, conforme se comentou nessa tese, se encontra presente na épica homérica. Para a autora (2003, p. 94), a efemeridade humana, em oposição à imortalidade dos deuses, consiste na principal diferença entre deuses e homens estando presente na “primeira tentativa” em formar a humanidade representada pelos homens da Raça de Ouro que, embora vivessem de modo semelhante aos deuses, eram sobretudo mortais. Após esclarecer essa diferença essencial entre os deuses e os homens e evidenciar a natureza superior das divindades, com base na criação da humanidade expressa no mito hesiódico das Raças, J. S. Clay tece alguns comentários sobre a 183

existência post-mortem dos homens das raças criadas por Zeus, sem uma intenção específica de refletir sobre uma escatologia hesiódica e só menciona o assunto a fim de esclarecer o processo de criação da humanidade, um processo que compreende erros e acertos visando a corrigir as imperfeições de cada uma das raças à medida que essas eram criadas e levadas a termo por Zeus. A pesquisadora (2003, p. 87) considera que os homens da primeira Raça, a de Ouro, viviam como deuses, em uma situação que se aproximava da perfeição, mas apresentava o inconveniente de não se reproduzirem, estando, por esse motivo, destinada a desaparecer sem deixar uma geração de descendentes. Ao perecerem, porém, Zeus alça essa raça à condição de divindades (dai/monev e0sqloi/) que zelam pelos homens. Essas novas divindades, na opinião da pesquisadora (op. cit., p. 88), seriam os mesmos trinta mil seres encarregados de cuidar dos julgamentos e das más ações dos mortais, conforme Hesíodo expressa em versos posteriores de Trabalhos e Dias Trabalhos e Dias: tri\v ga\r mu/rioi/ ei0sin e0pi\ xqoni\ poulubotei/rh|/a0qa/natoi Zhno\v fu/lakev qnhtw=n a0nqrw/pwn. (trinta mil são, na verdade, sobre a terra que nutre muitos, os guardiões imortais de Zeus sobre os mortais.). Essa interpretação já havia sido proposta por Erwin Rohde, conforme se analisou nessa tese129. A natureza dos homens da Raça de Ouro aproximava-os das divindades e, semelhante aos deuses, eles viviam em uma situação paradisíaca. Qual seria então a imperfeição deles, o defeito que motivara o seu fim?  questiona a pesquisadora,que sugere, como imperfeição, a incapacidade de os homens se reproduzirem, o que provocaria rapidamente extinção da Raça de Ouro sem a intervenção dos deuses.130 Ao contrário do que ocorre com os homens da Raça de Ouro, o destino daqueles que pertencem à Raça de Prata, segundo J. S. Clay (2003, p. 89), tem suscitado reflexões por parte de autores que observam nesse passo a menção do culto aos heróis. Nesse aspecto, a pesquisadora considera que é difícil entender por que os homens da Raça de Prata recebiam honra, mesmo que de segunda ‘categoria’, pois eles eram muito inferiores à Raça de Ouro. Além dessa, duas outras dificuldades são apontadas pela autora em relação à Raça de Prata. A primeira diz respeito ao motivo pelo qual esses homens, considerados crianças crescidas e estúpidas, eram honrados

129 Confira página 178 dessa tese. 130 Estranhamente, J. S. Clay (2003, p. 87) é de opinião que essa raça seria composta só de homens, pois de outro modo não poderiam viver em estado de perfeição. A autora não apresenta nenhum argumento que justifique sua interpretação que não pode ser depreendida dos versos em questão. 130 Confira os versos 724- 60 sobre as prescrições de Hesíodo para que se evite a ira das divindades. 184

como heróis e protetores da comunidade local. A segunda consiste em entender a denominação paradoxal “bem-aventurados mortais subterrâneos” atribuída a eles. Essa última parece a mesma já observada por Erwin Rohde segundo o qual os termos maka/rev e qnhtoi/ são excludentes. A solução proposta por J. S. Clay (2003, p. 89) é que o termo ma/karev, empregado nesse passo, é ‘apotropaico’ e também um ‘eufemismo’ porque em outros versos o poeta emprega o mesmo termo para se referir a seres aos quais pertence a noite escura, conforme o verso 729 de Trabalhos e Dias: maka/rwn toi nu/ktev e1asin. (as noites pertencem aos bem-aventurados). Nesse passo, Hesíodo dá instruções131 para evitar a quebra de tabus com práticas que provocassem a ira dessas divindades que devia ser aplacada com algum tipo de honraria diferente daquela prestada aos deuses e também da dirigida aos heróis cultuados. J. S. Clay considera que a honra recebida pelos homens da Raça de Prata não se assemelhava ao culto dos heróis  como interpretara Erwin Rohde , mas sim à honra devida à que se alegrava com o mal, conforme os versos 15-6 de Trabalhos e Dias, citados para corroborar sua interpretação: “ou1tiv th/n ge filei= broto/v, a0ll’ u9p’ a0na/gkhv/a0qana/twn boulh|=sin 1Erin timw=si barei=an.” (e nenhum mortal a ama, mas por necessidade, pelos conselhos dos imortais, honram a pesada Éris.) Hesíodo estaria, portanto, utilizando o termo ma/karev não para se referir a cultos prestados aos heróis, mas como um eufemismo do poder maléfico exercido pelas divindades das supertições populares, porque a estupidez pueril dos homens da Raça de Prata, ligada a sua natureza terrestre, os teria transformado em um tipo de força maléfica, status adverso daquele adquirido pelos homens da Raça de Ouro, forças benfazejas. Quanto à Raça de Bronze, J. S Clay (op. cit., p. 91) é de opinião que, ao criar esta raça, Zeus corrigira um defeito da Raça de Prata, isto é, a infantilidade, fraqueza que a caracterizava. Os homens da Raça de Bronze, fortes e violentos, destruíram-se mutuamente e baixaram para a casa de Hades no anonimato, sendo a primeira raça a sofrer o destino comum da humanidade. A autora anota que essa característica aproxima os homens de hoje dos homens da Raça de Bronze do mito hesiódico: “ela

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partilha conosco o carácter específico da mortalidade humana, ta lvez estejamos mais perto deles do que realmente pensamos”132. Como se pode notar, propor uma interpretação para conceitos escatológicos na poesia hesiódica não é tarefa simples porque esse tema se encontra disperso na obra do poeta, porém, é pertinente tecer mais alguns comentários sobre o mito das Cinco Raças observando e selecionando outros termos do vocabulário utilizado na obra porque ele permite vislumbrar outros aspectos do tema em questão133. Uma das primeiras observações feitas sobre o vocabulário utilizado pelo poeta, em referência ao destino final dos homens, é a ausência do termo psykhé, palavra frequentemente empregada nos Poemas Homéricos para indicar um componente humano que sobrevive de modo autônomo após a morte. Observa-se que, ao mencionar o destino final dos homens da Raça de Bronze, o poeta se difere de Homero:

kai\ toi\ me\n xei/ressi u9po\ sfete/rh|si dame/ntev bh=san e0v eu0rw/enta do/mon kruerou= 0Ai/dao, nw/numnoi: qa/natov de\ kai\ e0kpa/glouv per e0o/ntav ei]le me/lav, lampro\n d’ e1lipon fa/ov h0eli/oio. 155

Eles, subjugados pelos próprios braços, desceram para a bolorenta casa de Hades gelado, anônimos; e a morte negra, mesmo sendo eles terríveis, os dominou, e eles deixaram a luz brilhante do sol. 155

Trabalhos e Dias 152-5

132 A autora comenta a Raça dos Heróis observando, principalmente, como eles foram criados, isto é, com a intervenção direta dos deuses que, por meio de relações sexuais com mortais, deu origem aos semideuses, raça por meio da qual a justiça é introduzida no mundo. Observa J. S. Clay que o fato de Hesíodo mencionar que essa Raça é mais justa que a anterior, a Raça de Bronze, evidencia uma ligação entre elas. A Raça dos Heróis estaria, na opinião da autora, relacionada com a precedente e com a futura raça que seria criada, a Raça de Ferro. Quanto ao destino final dos heróis, a autora apenas comenta que parte deles morre e vai para o Hades enquanto a outra é levada para a Ilha dos Bem- aventurados. Esse destino “post-mortem” diferente para ambos, reflete, conforme a autora, a dupla natureza dos homens dessa raça, a humana e a divina. Nesse aspecto J. S. Clay não é muito clara, pois , no mito, evidencia-se somente que parte dos heróis morre e vai para o Hades e a outra parte é levada em vida para um lugar paradisíaco. O termo “post-mortem” utilizado pela autora só se aplica aos destinados à casa de Hades. 133 A respeito dessa metodologia, vale citar as palavras R. Wellek (apud Carles Mirales, 2008, p. 29), “El análisis literario empieza donde acaba el linguístico.” 186

Nesses versos, nota-se uma referência à morada definitiva dos mortos, a morada de Hades, em claro paralelo com a tradição épica. Porém, ao se comparar a referida passagem com versos de Ilíada e Odisseia, ver-se-á uma diferença considerável, pois nesses poemas afirma-se que a psykhé é que parte para o Hades, como, por exemplo, no verso 3 do canto I de Ilíada: “polla\v d’ i0fqi/mouv yuxa\v 1Ai+di proi%ayen” (“muitas almas valentes precipitou no Hades”), enquanto os corpos são deixados no campo de batalha: “h9rw/wn, au0tou\v de\ e9lw/ria teu=xe ku/nessin” (dos heróis, e eles mesmos constituiu despojos para cães), como se verifica no verso 4, em que o pronome au0tou\v está empregado como sinônimo de sw=ma (corpo). Nos versos hesiódicos, menciona-se que foram os homens ─ indicados no verso 152 pelo pronome toi\ ─ que desceram para sua morada derradeira, o Hades, não havendo a distinção entre corpo e psykhé, assinalada nos citados versos. A ausência do termo psykhé na passagem de Trabalhos e Dias talvez indique uma mudança do conceito de homem134, no qual a psykhé seria identificada com o próprio homem e não como um elemento que o compõe. Nesse aspecto, é importante observar, sobre os homens da Raça de Ouro e da Raça de Prata, que eles são cobertos pela terra (tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye), referência alusiva à prática da inumação. No entanto, o poeta continua a referir-se a eles como se o fato de terem sido cobertos pela terra não lhes alterasse o modo de existir, isto é, a existência anterior formada da parte física, o corpo, e da parte imaterial, a psykhé. A mudança da condição existencial dos homens da Raça de Ouro para seres divinos só ocorre “pelos planos de Zeus” (Dio\v mega/lou dia\ boula\v) que os transforma em dai/monev. Condição semelhante é atribuída aos homens da Raça de Prata que, mesmo após mortos e sepultados  considerando que a fórmula “tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye” se refira ao processo de inumação , continuam a existir como “u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi/” (bem-aventurados mortais subterrâneos). O termo ma/karev135, já

134 Sobre os elementos que constituem o homem, confira GONÇALVES, A. F. C, 2010, p. 29-47. 135 O termo ma/karev foi considerado por Martin Bernal (2006, p. 271) como de origem egípcia: “At this point, I shall consider the derivation of the Greek makar (H) from M—maoe h°rw “true of voice.” Maoe h°rw was the title shouted by the audience to Horus when he defeated Seth in his case brought against him. The title was applied to the virtuous dead who have stood their trial in judgment. The Greek mákar, makária is usually translated “blessed, happy.” Already, in Hesiod hoi mákares were “the blessed dead,” and the maka/rwn nh/swn makárōn nēsōn were the “Isles of the Dead”—the Egyptian dead also lived in the west. In Homer the adjective makar- was generally applied to gods and immortals rather than to mortal men or women. In the fifth century CE makarites meant one recently dead just as maka/riov, makários does in demotic Greek today.” Como o próprio autor observa, essa etimologia não é aceita por vários 187

referido anteriormente, é utilizado na poesia homérica para indicar não somente os deuses, mas os homens vivos que se distinguiam dos outros pela riqueza e poder.136 No verso hesiódico, ao formar um sintagma com os adjetivos u9poxqo/nioi, que não aparece nos Poemas Homéricos, e qnhtoi/ (u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi/), constata-se uma novidade em relação à poesia épica tradicional porque se criou uma nova classe de seres desconhecidos anteriormente, seres que, conforme observou Erwin Rohde, se difereciavam das psykhaí e, provavelmente, não partilhavam o mesmo lugar como destino final, ou seja, o Hades. Outro aspecto que a leitura atenta do mito das Cinco Raças permite inferir é que o poeta não considera que exista no homem algum elemento divino oriundo de sua criação por parte de Zeus. A esse respeito, Hesíodo se assemelha a Homero e se distancia dos mitos orientais, por exemplo, do mito babilônico da criação da humanidade por Ea, que, por ordem de Marduk, formou os seres humanos com o sangue de Qingu (1996, p. 384), e do mito hebraico que narra a criação do homem a partir do barro e do sopro de Yahweh137 que lhe insufla a vida. Em ambos os mitos, há no homem uma centelha divina que o constitui, o sangue de um deus, no mito babilônico, e o sopro anímico no mito hebraico. Essa concepção é estranha a Hesíodo. Nota-se ainda que, ao se referir ao modo pelo qual as primeiras gerações humanas têm a existência levada a termo, o poeta utiliza expressões mais suaves como comprova a fórmula ge/nov kata\ gai=a ka/luye, utilizada no verso 121 e repetida nos versos 140 e 156. “Ser coberto pela terra” é, portanto um eufemismo para indicar a morte. Quanto aos homens da Raça dos Heróis, no verso 165, emprega-se o sintagma qana/tou te/lov a0mfeka/luye que evidencia o fenômeno da morte como termo da existência humana, até mesmo do herói138.

pesquisadores, como, por exemplo, Pierre Chantraine, a quem o pesquisador acusa de rejeitar a origem egípcia do termo sem razões convincentes e sem apresentar outra alternativa. Observe que, embora Martin Bernal considere que o termo mákares fosse mais utilizado para designar “deuses e imortais”, nos Poemas Homéricos, emprega-se o termo igualmente para os homens, referindo à riqueza, prosperidade e saúde, e para os deuses. O autor comete um deslize ao traduzir maka/rwn nh/swn por “ilha dos mortos”, pois os homens eram levados para esse local vivos. Digno de nota é que Martin Bernal utiliza ideias de Emily Vermeule (1979, p. 72) não só quanto à possível origem egípcia do termo mákares, mas também interpretações da autora em relação à Ilha dos Bem-Aventurados e seus habitantes. O pesquisador, no entanto, não se refere às diferenças consideráveis existentes entre a concepção post-mortem egípcia e a grega que Emily Vermeule apresenta na sua argumentação. 136 Confira Il. III, 181; XI, 68 e XXIV, 377; Od. I, 217; XI, 483 em referência aos homens. Il. I, 339, 406, 599 etc; Od. I, 82, V, 7; VII, 281 etc em referência aos deuses. 137 Confira Gn. 2, 4-25. 138 Sobre a natureza dos heróis, J. S. Clay (2003, p. 93) evidencia um defeito já observado por ela na Raça de Ouro, um problema de reprodução. Os homens da primeira raça não geravam descendentes e estavam, por esse motivo, destinados a perecer. Observa a autora: By definition, the heroes are a mixed 188

A mudança na fórmula pode indicar que, para o poeta beócio, a condição mortal do homem vai se acentuando à medida que as Raças se distanciam pari passu à sua degradação. O homem é, sobretudo, mortal e deve morrer, concepção enfatizada no verso 180, referência ao destino dos homens da Raça de Ferro: “Zeu\v d’ o0le/sei kai\ tou=to ge/nov mero/pwn a0nqrw/prwn” (“e Zeus também destruirá essa raça de homens mortais”). Nota-se que, ao longo do mito, houve uma mudança no agente da morte (gai=a, qana/tou te/lov e Zeu\v) e uma variação no emprego das formas verbais para se referir à morte. Os homens da última raça serão mortos por Zeus como indica a forma o0le/sei, futuro do verbo o0/llumi, que pode ser traduzido por destruir, perecer, assassinar e morrer. Em Ilíada139, esse é o principal verbo utilizado em referênca às mortes dos combatentes, o que parece sugerir uma ação violenta. No verso hesiódico, seu uso pode indicar que, por causa das atitudes dos homens, o fim da Raça de Ferro se dará pela intervenção violenta de Zeus. Embora não seja mencionado qual será o destino post-mortem dos homens da Raça de Ferro, pode-se inferir que eles habitarão o Hades, morada final de todos.

4.2.2 Herança Homérica

A presença de elementos dos Poemas Homéricos na literatura grega posterior faz-se notar não só como influência direta, mas também como objeto de comentários críticos de filósofos que utilizavam o conteúdo da épica para reflexões diversas, como por exemplo, críticas às concepções religiosas ou tentativas de explicar a natureza e a função da poesia. Hesíodo é, nesse panorama, a figura que se encontra mais próxima da época da composição das epopeias, isto é, do século VIII a. C., e, na Antiguidade, alguns autores o colocaram em relação estreita com Homero. Na Sudae Vita, por exemplo, menciona-se que ambos os poetas eram considerados parentes, e que alguns divergiam, ora julgando o poeta beócio mais novo, ora tomando-os

race between men and gods that traces its origins to the mingling of divine and human blood. The dual parentage of the heroes is mirrored in their post-mortem fate. Some retire to the Isles of the Blest to enjoy a state that resembles the life of the gods as well as that of the golden race who lived “like the gods”. The rest simply die as we do. But if the gods intended to manufacture a race that could reproduce itself and prolong its existence independently, the heroes constitute a problem for them. Indeed, the production of heroes requires continual intervention on the part of the gods to preserve their mixed nature. And, in fact, the mythological tradition relates that from a certain moment on, the gods distanced themselves from intimate contact with human beings and refused to continue to bring forth such children of mixed parentage. 139 Il. I, 559; II, 115; XVI, 753 189

contemporâneos. Essa proximidade temporal deu origem à história narrada em Tzetzae Vitae de uma disputa entre os dois na qual Hesíodo saiu vencedor em uma performance na corte de Anfidamante140. Sem levar em conta a validade histórica das informações sobre a relação dos dois poetas nos mencionados textos, refletir-se-á aqui sobre elementos da escatologia homérica que estão presentes na obra de Hesíodo, entre os quais dois passos são de grande importância: o destino final de alguns heróis que, conforme o mito das Cinco Raças, versos 106-181 de Trabalhos e Dias, são levados para a Ilha dos Bem- aventurados ─ episódio que pode estar relacionado com a abdução de Menelau para os Campos Elísios ─, e a situação de Héracles narrada em Odisseia XI, 601-4 cujo paralelo com a narrativa presente em Teogonia 950-5, e no fragmento West 25, 25-8, é evidente. A possibilidade de os episódios narrados por Hesíodo serem uma herança homérica é perfeitamente possível como tese, porém não há como determinar com certeza a origem dessas informações porque elas podiam fazer parte de concepções correntes sobre o destino final dos homens. O destino final de Héracles é narrado em Teogonia, em versos nos quais o poeta deixa claro que o herói, filho de Zeus não experimentou a morte e, no Olimpo, leva uma vida isenta das mazelas humanas:

3Hbhn d’ 0Alkmh/nhv kallisfu/rou a1lkimov ui9o/v, 950

140 Hugo H. Coning (2010, p. 40), ao abordar o tema da anterioridade de Hesíodo em relação a Homero, afirma que a controvérsia, ao contrario do que muitos pensam, já era uma questão na Antiguidade. O autor considera que há, na disputa, uma questão de autoridade, isto é, o mais antigo possui mais autoridade e cita as seguintes palavras de Pausânias sobre o tema: “Quanto à idade de Homero e Hesíodo, eu tenho conduzido uma pesquisa cuidadosa, mas não gosto de escrever sobre o tema porque eu conheço as querelas, principalmente entre aqueles que constituem a moderna escola crítica da épica.” (PAUSANIAS, 9,30,3. apud CONING, p. 40. Tradução nossa). Hugo H, Coning ainda menciona outros autores que trataram do tema, como, por exemplo, Diógenes Laércio, Pseudo-Luciano e Xenófanes. Nota o pesquisador que, de qualquer forma, há um ponto de conexão na disputa: na Antiguidade, Homero era datado em relação a Hesíodo. Observe as seguintes palavras do autor sobre a questão: Although the question was never definitively resolved, the communis opinio among experts in antiquity seems to have been, much like today, that Homer was earlier. Apart from the passages already mentioned, there are few sources for the priority of Hesiod. Xenophanes was the earliest to claim that Homer was older than Hesiod, and even the greatest fan of Hesiod in antiquity, Plutarch, had to admit that Hesiod was second to Homer ‘in reputation as well as in time’ (th|= do/ca| kai\ tw|= xro/nw|).The idea of Homer’s priority is especially well-attested in the Homeric scholia; one of them even explicitly says that ‘Hesiod has read Homer because he was supposedly later’ (a0ne/gw 9Hsi/odov ta\ 9Omh/rou w9v a1n new/terov tou/tou ). Como se pode observar, a controvérsia não é resolvida facilmente. Embora Homero seja considerado por muitos autores anterior a Hesíodo, Martin West (1997, p. 276), é de opinião que o poeta beócio é anterior: “If I take Hesiod before Homer, is not simply because I beleive the Hesiodic Poems have been composed somewhat earlier than Iliad and Odyssey […]”

190

i2v 9Hraklh=ov, tele/sav stono/entav a0e/qlouv, pai=da Dio\v mega/loio kai\ 3Hrhv xrusopedi/lon, ai0doi/hn qe/t’ a1koitin e0n Ou0lu/mpw| nifo/enti, o1lbiov, o4v me/ga e1rgon e0n a0qana/toisin a0nu/ssav nai/ei a0ph/mantov kai\ a0gh/raov h1mata pa/nta. 955

E , o forte filho de Alcmene de belos tornozelos, 950 o vigor de Héracles, tendo completado amargas provas, a filha do grande Zeus e de Hera sandália-douradas, venerável esposa tomou no Olimpo nevoso, feliz ele, que, tendo grande obra cumprido, entre os imortais, habita sem penas e isento de velhice todos os dias. 955

Teog. 950-5

Hesíodo acentua a condição de Héracles ao utilizar o termo o1lbiov (afortunado, feliz) para caracterizá-lo e a reforça no verso 955 enfatizando que ele não experimenta as misérias e a velhice (a0ph/mantov kai\ a0gh/raov h1mata pa/nta). Essa condição se assemelha àquela que os homens da Raça de Ouro experimentavam em vida e à de alguns heróis levados para a Ilha dos Bem-aventurados. Eles, iguais a Héracles, são o1lbioi h3rwev (heróis afortunados) e também não padecem de sofrimentos a0khde/a qumo\n e1xontev (tendo o coração sem sofrimentos). Nos Poemas Homéricos, particularmente em Odisseia XI, 601-26, versos em que se narra o encontro de Odisseu com Héracles no Hades, encontra-se a mesma concepção expressa em Teogonia sobre o destino de Héracles; o herói junto à esposa Hebe, filha de Zeus e Hera, habita o Olímpo com os imortais:

To\n de\ me/t’ ei0seno/hsa bi/hn 9Hralhei/hn, 601 ei1dwlon: au0to\v de\ met’ a0qana/toisi qeoi=si te/rpetai e0n qali/h|v kai\ e1xei kalli/sfuron 3Hbhn pai=da Dio\v mega/loio kai\ 1Hrhv xrusopedi/lou. a0mfi\ de/ min klaggh\ neku/wn h]n oi0wnw=n w3v,

E depois vi o violento Héracles, 191

sua imagem; ele mesmo junto aos deuses imortais se alegra em festas e possui Hebe de belos tornozelos, filha do grande Zeus e de Hera de sandálias douradas.

Od, XI, 601-4

Quando comparadas, observa-se, em ambas as passagens, a utilização dos epítetos de Zeus (Dio\v mega/loio), de Hera ( 1Hrhv xrusopedi/lou) e de Hebe (kalli/sfuron 3Hbhn), fato que permite inferir que Hesíodo faz uso de uma tradição da épica homérica porque o estilo formular é uma característica formal dos Poemas Homéricos; porém, nos versos de Teogonia, não está presente na concepção evidente em Odisseia, no passo referente ao encontro de Odisseu e Héracles no Hades, ou seja, que todo homem deve morrer e ir para o Hades. Nas epopeias homéricas, todos os homens morrem, e suas psykhaí vão para o Hades, concepção que, parcialmente está presente na obra de Hesíodo, pois os homens das Raças de Ouro, da Raça de Prata e alguns membros da Raça dos Heróis têm destino diferente. Essa concepção obrigou o aedo a conciliar duas tradições sobre Héracles, que por um lado, como homem, devia morrer e ir para o Hades, por outro, como filho de Zeus, obteve a prerrogativa de viver para sempre entre os imortais. Odisseu, no Hades, não encontra e conversa, verdadeiramente, com Héracles. O herói se dirige simplesmente à imagem do filho que Zeus: To\n de\ me/t’ ei0seno/hsa bi/hn 9Hraklhei/hn, ei1dwlon . Nota-se, nesse passo de Odisseia, que o rei de Ítaca, ao se referir a Héracles, usa o termo ei1dwlon e não psykhé, termo que obrigaria interpretar que Odisseu estava diante do próprio Héracles e não de uma falsa imagem do herói. Por outro lado, o verso 602, au0to\v de\ met’ a0qana/toisi qeoi=si/te/rpetai (ele mesmo se alegrava entre os imortais) concilia as duas concepções: todos os homens têm como destino final o Hades, e mesmo Héracles, que não morreu, também possui ali uma imagem falsa em tudo semelhante a ele141. O destino final de Héracles, também é narrado no fragmento 25 West em que se evidencia a concepção homérica que todo homem deve morrer, ainda que ele seja o mais famoso filho de Zeus. O herói, antes de habitar o Olimpo junto aos imortais, morreu e foi para o Hades e só, posteriormente, alcançou a imortalidade:

141 Sobre a diferença entre os termos psykhé e eídolon, confira GONÇALVES, A. F. C, 2010, p. 53. 192

kai\] qa/ne kai\ r9’ 9Ai+/d[ao polu/stonon i3ke]to dw=ma. 25 nu=n d’ h1dh qeo/v e0sti, kakw=n d’ e0ch/luqe pa/ntwn, zw/ei d’ e1nqa/ per a1lloi 0Olu/mpia dw/mat’e1xontev a0qa/natov kai\ a1ghrov, e1xwn kall[is]furon 3Hbhn

e ele morreu e foi para a mansão lamentosa de Hades. E agora é um deus, e emergiu de todos os males, e vive, certamente, com outros que habitam o Olimpo, imortal sem envelhecer com Hebe de belos tornozelos. (West. 25, 25-8)

Há a presença de duas ideias importantes: primeiro a concepção corrente de que todo homem deve morrer e ir para o Hades, concepção que induziu, como se observou, a uma tentativa de adequação de versos de Odisseia à tradição de que Héracles estava no Olimpo. A segunda ideia, que constitui uma novidade em relação à Odisseia e à Teogonia, é que Héracles se tornou uma divindade; nu=n d’ h1dh qeo/v e0sti (E agora é um deus), sendo, pois imortalizado, conforme o termo a0qa/natov que, reforçado por a1ghrov (sem envelhecer), expressa a nova condição do herói. Hesíodo, ao abordar o fim do homem, apresenta, portanto, como se evidenciou nesse estudo, elementos que, aparentemente, remontam à tradição escatológica homérica. No entanto, não há como determinar de modo seguro que as concepções presentes na poesia hesiódica dependam diretamente da épica. Elas poderiam pertencer a uma tradição popular da qual ambos os poetas fazem uso ao compor suas obras. O relato do destino final de Héracles parece apontar nessa direção.

193

5 CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA NÃO HEXAMÉTRICA E NÃO DRAMÁTICA

Os Poemas Homéricos são aqui tomados como ponto de partida para a compreensão da poesia não hexamétrica142, tendo em vista que neles não há somente referências à atividade do aedo, ao espaço físico e ao ambiente de performance, mas também se encontram narrativas com base nas quais se pode inferir a existência de um gênero poético diferente da épica tradicional. Observa-se, no entanto, que a poesia dramática não é objeto de reflexão dessa tese, embora seja também ela uma gênero não hexamétrico. Se, por um lado, as narrativas das atividades de Fêmio,143 em Ítaca, e as de Demódoco, na ilha dos Feáceos, evidenciam a atmosfera palaciana como palco para a recitação da poesia épica, por outro também mostram a classe de que se compunha a audiência. Nas referidas passagens, evidencia-se que o canto era realizado em

142 A tarefa de abordar o tema da escatologia na poesia não hexamétrica e não dramática apresenta um problema duplo: primeiro, porque a conceituação desse gênero de poesia é difícil e, sob esse termo, agrupam-se poemas de natureza variada, como o iambo, a elegia e poesia lírica ou mélica; o segundo problema consiste no fato de que os poetas, pelo menos a maioria deles, não tinha o destino final dos homens como tema principal de seus poemas. A dificuldade de classificação dos gêneros influenciou a escolha do título dessa sessão na qual, sob o termo poesia não hexamétrica, se investigará a escatologia em poemas de gêneros e temas diferentes. Convém observar que se rejeita, nesse estudo, a afirmação irrestrita de que os gêneros literários na Grécia antiga se tenham desenvolvido um após o outro, conforme afirma Bruno Snell (2012, p. 55) que considera parecer natural, na literatura do Ocidente, a existência de gêneros distintos como a épica, a lírica e o drama, gêneros que foram levados à mais alta expressão pelos gregos que lhes deram vida. O pesquisador pondera que não houve uma concomitância dos gêneros que se sucederam um após o outro: “Extinguia-se o canto da épica quando surgiu a lírica, e quando a lírica caminha para o ocaso, eis que surge o drama.” Essa discussão, que pode parecer, à primeira vista, estranha à reflexão desenvolvida no texto, objetiva evidenciar a rejeição à teoria da periodização da literatura grega, pois defende-se nessa tese a existência de uma poesia pré- literária de cunho diferente da épica tradicional em que concepções religiosas podiam estar presentes, um modelo de poesia que pode ser inferido da leitura do episódio da confecção do escudo de Aquiles no canto XVIII de Ilíada. Narra-se, no referido passo, que Hefestos cinzelou cenas em que se percebe a execução de cantos: himeneus e cantos de trabalho excecutados durante as atividades nos campos, principalmente, a colheita e a vindima. A atividade poética retratada na superfície do escudo de Aquiles parece corroborar a afirmação de Francisco Adrados (2008, p. 109) de que os cantos religiosos, os cantos fúnebres e os cantos de trabalho podem ter sido os precursores da poesia lírica. Acrescenta o autor que, como se trata de cantos ocasionais, é grande a possibilidade de que eles fossem executados empregando um dialeto e uma metrificação diferentes, afastando-se, portanto, da poesia épica. Essas são, pois, a principais características da poesia não hexamétrica. Assim, contrariando as afirmações de Hermann Fränkel e de Bruno Snell, nada obsta a que se possa sugerir a existência de um gênero lírico, ou de uma poesia não hexamétrica em concomitância com outros gêneros poéticos. Essa afirmação se torna ainda mais segura quando se atesta que a poesia épica, mesmo no século V a. C, era matéria de disputas nos festivais, como relata Platão no diálogo Íon. Vale lembrar que também Aristóteles na Poética discute a natureza de gêneros poéticos diversos acentuando as características que os diferem. Talvez, em relação ao assunto, fosse melhor falar em predominância de um gênero sobre outro com exceção da Tragédia e da Comédia porque ambos os gêneros, como é de conhecimento, podem ter seu início e fim parcialmente traçados. 143 Confira Il. VIII, 43-70 e Od. I, 145-55. 194

ocasiões festivas, em um espaço onde a aristocracia se reunia, tendo como principal propósito, entre outras atividades, a diversão, ouvindo os cantos dos aedos cujo tema eram os feitos gloriosos dos heróis; por outro lado, no episódio da confecção do escudo de Aquiles, no canto XVIII de Ilíada, 468-605, infere-se das cenas cinzeladas por Hefestos a prática de himeneus e de cantos executados durante as atividades no campo, principalmente a colheita e a vidima. Essas modalidades de cantos retratadas na superfície do escudo de Aquiles levam a pensar que os cantos religiosos, os cantos fúnebres e os cantos de trabalho podem ter sido os precursores da poesia não hexamétrica, pois, como se trata de cantos ocasionais, é grande a possibilidade de que eles fossem executados empregando um dialeto e uma metrificação diferentes, afastando-se, portanto, da poesia épica que apresenta uma estrutura formal bastante uniforme144. A partir da poesia de Hesíodo, como se percebe em Trabalhos e Dias, o ambiente de performance e o tema do canto modificam-se. Como observa Anthony T. Edward (2004, p. 21), o poeta de Ascra não objetiva narrar eventos heroicos sob perspectivas diversas como faz a épica, seu canto é uma peça de persuasão narrada em primeira pessoa com o objetivo de alterar o curso dos acontecimentos presentes e, ao contrário da poesia homérica, não se endereça a uma audiência que busca entretenimento, mas se destina, manifestamente, àquela que está envolvida em disputas. Nesse sentido, embora Hesíodo também se refira a fatos de um passado glorioso145, para Anthony T. Edward, Trabalhos e Dias dificilmelmente pode ser tomado como um poema de exaltação aos “klea andron”, pois nessa obra é evidente uma tentativa de verossimilhança entre a narrativa e a realidade da audiência. Pondera o pesquisador (op. cit., p. 22) que essa observação coloca o poema como, talvez, a melhor representação da diferença entre a épica e a poesia hesiódica já que está muito mais relacionada com o contexto histórico do poeta. A poesia não hexamétrica146, porém, difere da épica homérica e da poesia hesiódica pelo conteúdo, forma e pelo ambiente de performance que muda conforme o contexto histórico-social da Grécia arcaica no qual “o balanço das forças históricas e os

144 A esse respeito, confira as ideias de Francisco Adrados em Historia de la Literatura Griega, 2008, p. 106-12. 145 O autor não precisa especificamente quais são os fatos de um passado glorioso narrados por Hesíodo, mas subentende-se, por suas palavras, que ele se refere à Teogonia e a alguns passos de Trabalho e Dias, particularmente ao mito das Cinco Raças. 146 As dificuldades de classificação da poesia não hexamétrica são expostas de modo claro e sistemático por Giuliana Ragusa de Faria em Imagens de Afrodite: variações sobre a deusa na mélica grega arcaica (2008), especifcamente, no capítulo cujo título é A lírica: desarmando as armadilhas da nomeclatura. 195

acidentes históricos seguem livremente seu curso pelas suas próprias leis”147, proporcionando uma reflexão por parte dos poetas sobre as mazelas da vida e a efemeridade humana. Sobre este último aspecto, convém notar as afirmações de Hermann Fränkel (1962, p. 133) segundo o qual a lírica predomina como forma literária antes de o pensamento filosófico entrar em cena (1962, p. 133), e a transição entre o gênero épico e o lírico é entendida com base em uma concepção de efemeridade humana: “em certo sentido, o lírico está a serviço do dia e do efêmero. É a partir da concepção grega arcaica de dia e de efêmero que a transição da épica para a lírica pode ser entendida.”. A noção de efemeridade humana, segundo Hermann Fränkel (op. cit., p. 136) faz com que a situação presente de um indivíduo encontre expressão artística em poemas líricos curtos por meio dos quais se revelava uma reação aos acontecimentos cotidianos. Com isso, salienta o autor que o destino dos homens do passado não será mais matéria de interesse porque a vida presente, a partir daquele momento, é a matéria de reflexão. Essa afirmação pode ser corroborada pelos seguintes versos de Mimnermo, poeta elegíaco de meados do século VI a. C:

h9mei=v d’,oi[a/ te fu/lla fu/ei polua/nqemov w3rh e1arov, o1t’ ai]y’ au0gh=iv au1cetai h0eli/ou, toi=v i1keloi ph/xuion e0pi\ xro/non a1nqesin h3bhv terpo/meqa, pro\v qew=n ei0dotev ou1te kako\n ou1t’ a0gaqo/n: Kh=rev de\ paresthkasi me/lainai, 5 h9 me\n e1xousa te/lov gh/raov a0rgale/ou, h9 d’ e9te/rh qana/toio: [...] mi/nunqa de\ gi/gnetai h3bhv karpo/v, o1son t’ e0pi\ gh=n ki/dnatai h0e/liov.

E nós, assim como a estação florida da primavera faz nascer as folhas quando rapidamente crescem sob os raios do sol, semelhante a elas, com as flores da juventude por pouco tempo nos alegramos, sem conhecer nem o mal nem o bem vindo dos deuses; as negras Queres estão ao lado, 5

147 Hermann Fränkel, 1962, p. 133. 196

tendo uma o termo da terrível velhice,e a outra, da morte [...] pouco tempo cresce o fruto da juventude, tanto quanto o sol se dissipa sobre a terra. Fragm. 29 West

A reação dos poetas a essa efemeridade, particularmente no tocante ao fenômeno da morte, consequência inevitável para o homem, pode ser a chave de interpretação de poemas que se referem à existência post-mortem, ainda que esse tema não seja neles a tônica predominante. A respeito da reação dos poetas ao fato inevitável da morte, vale lembrar a afirmação de J. Bremmer148 segundo o qual a preocupação com a vida post-mortem teria nascido em ambiente aristocrático149, entre os mais intelectuais preocupados com o destino pessoal e com o desejo de um prolongamento da vida para além do seu tempo natural. Nessa perspectiva, o poeta tebano Píndaro, cujo nascimento, segundo citações da Vita Ambrosiana e da Suda, ocorreu em um festival pítico, na 65ª Olimpíada em (520-516 a. C)150, pode ser tomado como um legítimo intelectual que expressava valores, desejos e anseios da aristocracia, inclusive o desejo de perenidade mencionado por J. Bremmer, pois muitos de seus poemas foram compostos a fim de exaltar a figura e os feitos de algumas personagens151 ilustres do seu tempo havendo, em alguns poemas, menção de um destino post-mortem diferenciado para alguns.

148 Confira p. 64. 149 Precisamente nesse contexto está inserido o poeta Píndaro cuja magnitude, conforme observa William H. Race (1997, p.1), já fora observada por autores da Antiguidade, especificamente Quintiliano, em Institutio Oratoria X, I. 61, que se refere ao poeta com a as seguintes palavras: “Novem vero lyricorum longe Pindarus princeps spiritu, magnificentia, sententiis, figuris, beatissima rerum verborumque copia et velut quodam eloquentiae flumine: propter quae Horatius eum merito nemini credit imitabilem.” (Porém, dos nove líricos, de longe, Píndaro é o primeiro em inspiração, em magnificência, em pensamento, em estilos, na mais ditosa riqueza de temas e palavras e com uma determinada torrente de eloquência; por causa dessas coisas, Horácio não o considera imitável por ninguém que mereça). 150 Confira Willian H. Race (1997, p. 5). 151 Confira as palavras de Carla M. Antonaccio (2007, p. 265) sobre os mecenas paraos quais Píndaro compunha seus poemas: Pindar’s patrons were located all over the Greek world, from Thessaly and Macedon to Cyrene, from Sicily and Italy to Ionia. He was particularly favoured, however, by patrons in the West. Of forty-five poems in four books of Pindaric epinikian, seventeen were commissioned for victors from what is customarily called ‘Western Greece’ or Magna Graecia. Most of the epinikia for these so-called western Greeks, moreover, were composed for Sicilians—only two celebrated south Italian victories, both of Hagesidamos of Epizephyrian Lokroi (Olympian 10 and 11), a victor in boys’ boxing in 476. 197

Corrobora a opinião de J. Bremmer sobre Píndaro e sua arte poética William H. Race (1997, p. 3), ao acentuar que a poesia pindárica expressava valores aristocráticos conservadores, bem como costumes dos séculos VI e V a. C., e seus poemas, frequentemente, evocam lembranças das limitações humanas, da dependência dos deuses, da natureza e da brevidade das alegrias da vida.

5.1 O conceito de Psykhé em alguns poemas não hexamétricos e não dramática

Com efeito, a finitude humana e a consciência da morte conduzem a uma reflexão sobre a efemeridade humana, tendo em vista que, inevitavelmente, o homem deve morrer e sua psykhé baixar para o Hades onde permanece encerrada definitivamente, concepção presente em toda a poesia homérica, exceto no que se refere ao destino final de Menelau a quem estava prometida a abdução para os Campos Elísios e ao destino de alguns heróis conforme o mito hesiódico das raças. O conceito de psykhé, portanto, deve ser o ponto de partida para a reflexão sobre o post- mortem porque, como se observou em Ilíada e Odisseia, esse elemento imaterial opõe- se ao corpo físico do homem e sobrevive depois da morte. Porém, como há, em tese, um considerável espaço temporal152 entre a épica homérica e a poesia não hexamétrica e não dramática, faz-se necessário esclarecer como se concebe a psykhé e como se utiliza o termo em alguns poemas nos quais seu emprego não leva em conta os artifícios da composição oral em que as fórmulas são constantes153. A esse respeito, David B.Claus (1981, p. 67) observa que o termo psykhé denotando uma “sombra”, uso corrente na epopeia, só ocorre cerca de 20 vezes na poesia do período posterior, quatro vezes na Ode V de Baquílides, cujo tema é o mundo subterrâneo, duas vezes na tragédia Persas, três vezes em Alcestis e uma na obra de Píndaro. As outras referências são, na opinião do autor, difíceis de ser interpretadas com essa conotação. De acordo com o pesquisador, a concepção de

152 A afirmação sobre a existência de um espaço temporal entre a poesia épica tradicional e a poesia não hexamétrica leva em conta a poesia não hexamétrica escrita. Convém observar que, mesmo com o advento da escrita no século VIII a. C. (Rosalind Thomas, 2005, p. 73), a literatura grega arcaica mantinha-se essencialmente oral. 153 Nos Poemas Homéricos, o termo psykhé apresenta-se homogêneo quanto ao significado e ao uso, denotando sempre o elemento imaterial que se separa do homem na morte. Observa David B. Claus que na poesia posterior se emprega o termo de maneira variada e raramente com o mesmo significado que ele tem na épica. 198

psykhé como uma sombra era empregada no V século a. C. somente na “fantasia poética”, fato que justificaria a baixa incidência no uso desse termo. A primeira referência do autor acerca da utilização do termo psykhé com o mesmo significado presente nos Poemas Homéricos encontra-se na Ode V de Baquílides, composta para celebrar a vitória de Hierão de Siracusa em uma corrida de cavalos na 76ª Olimpíada realizada em 476 a. C. O relato mítico que compõe a parte central da ode, compreendida entre os versos 56-175, refere-se ao encontro de Meleagro com Héracles, no passo em que o o filho de Zeus foi ao Hades para capturar o cão de dentes afiados154 (karxaro/donta ku/n) e retirá-lo do mundo dos mortos. Nessa katábasis155, Héracles vê as psykhaí dos mortos esvoaçando como folhas junto às margens do Cocito:

e1nqa dusta/nwn brotw=n yuxa\v e1da/h para\ Kwkutou= r9ee/qroiv oi]a te fu/ll’ a1nemov 1Idav a0na\ mhlobo/touv prw=nav a0rghsta\v donei=. tai=sin de\ mete/prepen ei1dw- lon qrasume/mnouv e0g- xespa/lou Porqani/da: Ali, dos infelizes mortais as psykhaí ele percebeu junto às correntes do Cocito, semelhantes as folhas o vento as balança sobre o resplandecente Ida, pasto de ovelhas. Entre elas, se distinguia o intrépido eidolon do que brame a lança, o neto de Porteu; ... Baquilides Ode V, 63-70

O termo psykhé é empregado também nos versos 77, yuxa\ profa/nh Melea/grou (apareceu a psykhé de Meleagro) e 171, yuxa\ prose/fa Melea/grou: (falou a psykhé de Meleagro); em referência, particularmente, à psykhé de Meleagro, sujeito das mencionadas orações, e no verso 84 em que o termo aparece em dativo

154 Confira o verso 60. 155 Convém notar que esse episódio é análogo à katábasis de Odisseu no Canto XI de Odisseia. 199

relacionado com as psykhaí contra as quais Héracles estava a ponto de lançar suas flechas: yuxai=sin e1pi fqime/nwn: (contra as psykhaí dos mortos). A despeito da observação de David B. Claus que, estranhamente, só considera uma ocorrência do termo psykhé nos poemas de Píndaro, com significado semelhante àquele utilizado nos Poemas Homéricos, no Lexicon to Pindar (1969, p. 553), William J. Slater registra 15 ocorrências do termo psykhé ora com a acepção de “alma que vive depois da morte”, ora, “vida”, ora, ainda, “alma em geral” e outros termos do mesmo campo semântico, como, por exemplo, “espírito e coração”. A primeira referência citada por William J. Slater está inserida na fala do rei Pélias dirigida a Jasão, na Pítica IV dedicada a Arcesilau IV, colonizador de Cirene. Sobre esse poema, William H. Race (1997, p.258) afirma que ele se assemelha à narrativa épica da busca de Jasão ao velo de ouro e é muito importante para Arcesilas porque sua família pretendia descender de Eufamos, um dos argonautas. Na narrativa do mito, o rei Pélias, ao referir-se à necessidade de cumprir um oráculo revelado em sonho, segundo o qual deveria reconduzir a psykhé de Frixo para Iólcos, juntamente com o velocino de ouro, reconheceu que estava velho e julgou que Jasão, por ser ainda jovem, poderia realizar a façanha, conforme os versos 158-9:

[...] du/nasai d’ a0feilei=n ma=nin xqoni/wn ke/letai ga\r e9a\n yuxa\n komi/cai Fri/cov e0lqo/ntav pro\v Ai0h/ta qala/mouv 160 de/rma te kriou= baqu/mallon a1gein, tw=| pot’ e0k po/nton saw/qh

Tu podes arrancar a ira dos que estão sob a terra, de fato, Frixo manda reconduzir sua alma 160 depois de termos ido ao palácio de Eetes para trazer a grossa lã do carneiro, por meio do qual ele foi salvo do mar.

Pítica IV, 158-62

Nesses versos, a palavra psykhé é empregada em referência a um habitante do mundo dos mortos, como evidencia o termo xqoni/wn (sob a terra), já analisado 200

anteriormente quando analisou versos da poesia hesiódica. Vale observar que a aparição da psykhé de Frixo para o rei Pélias não se assemelha à manifestação da psykhé de Pátroclo a Aquiles, embora ambas ocorram em sonhos. No primeiro caso, o rei é quem menciona a aparição não sendo possível comprovar a veracidade do fato, pois ele quer persuadir Jasão a executar a tarefa. Um dado, porém, chama a atenção nesse mito: a condição da psykhé de Frixo cuja ma=nin (ira) pode ser aplacada. Essa animosidade, conservada no mundo dos mortos, é idêntica àquela da psykhé de Ájax descrita em Odisseia. Sobre a referência do uso do termo psykhé na Pítica IV, David B. Claus (1981, p. 68) nota que pode estar relacionado com uma antiga superstição156 mencionada na narrativa da fuga de Odisseu e seus companheiros da terra dos Cícones em Odisseia IX, 62-6. Nessa passagem, no momento do embarque, o herói não deixa que o navio parta sem que antes, um dos companheiros gritasse chamando as psykhaí dos que foram mortos:

e1nqen de\ prote/rw ple/omen a0kaxh/menoi h]tor, a1smenoi e0k qana/toio, fi/louv o0le/santev e0tai/rouv. ou0d’ a1ra moi prote/rw nh=ev ki/on a0mfie/lissai, tri\n tina tw=n deilw=n e9ta/rwn tri\v e3kaston au+=sai, oi4 qa/non e0n pedi/w| Kiko/nwn u3po dh|wqe/ntev.

Dali, para frente navegamos com o coração entristecido, contentes de escaparmos da morte, embora tivessem morrido os queridos companheiros. Então os navios de proas recurvas não iam para frente, antes de alguém gritar três vezes os nomes dos companheiros infelizes, os quais foram mortos na planície assassinados pelos Cícones. Od. IX, 62-6

156 Confira as palavras do autor (op. cit., p. 68) : [...] “the second unless, we follow the scholiasts who suggested an a0na/klhsiv like that of Odyssey 9. 65 presents the oddly superstitious idea that the yuxh/ of Phrixus will follow the ship that brings back his corpse.” 201

A ideia presente nesse passo é que as psykhaí dos falecidos poderiam acompanhar o navio que partia, e os gritos do companheiro serviriam para orientá-las, concepção subjacente, na opinião de David B Claus, aos mencionados versos do poema de Píndaro relativos à condução da psykhé de Frixo por Jasão. Outra ocorrência do termo psykhé nos poemas de Píndaro se encontra na Pítica XI157, 21, denominada normalmente, conforme William H. Race (1997, p. 366), Pequena Oresteia porque tem como tema o resgate de Orestes por uma serva e o assassinato de Agamêmnon perpetrado por Clitemnestra, que também matou Cassandra, filha do rei Príamo.

“Kassa/ndran poli/w| xalkw|= su\n 0Agamemnoni/a| 20 yuxa|= po/reu’ 0Axe/rontov a0kta\n par’ eu1skion nhlh\v guna\ [...]

A Cassandra por meio do brilhante bronze, com a psykhé de Agamêmnon, enviou para a sombria margem do Aqueronte, a implacável mulher [...] Pítica XI, 20-1

A imagem do rio Aqueronte evoca o episódio do encontro entre Aquiles e a psykhé de Pátroclo que,158 em uma situação análoga, afirma que as outras psykhaí não o deixam atravessar o rio e se juntar a elas do outro lado159. No referido passo da epopeia, porém, o Pelida deixa clara a natureza do visitante: “h]lqe d’ e0pi\ yuxh\ Patroklh~ov deiloi~o” (Veio a psykhé do desgraçado Pátroclo), havendo uma distinção entre o fillho de Menécio  quando estava vivo  e a imagem que aparece para Aquiles. Nos versos do poema de Píndaro, a referência é Cassandra, identificada com sua psykhé. Nota-se que o nome da troiana, Kassan/dran, é o complemento do verbo

157 Conforme William H. Race (p. 366), a Pítica XI foi composta para celebrar a vitória de Trasideu e seu pai. O autor afirma que o escólio referente ao poema apresenta dados conflitantes quanto à data de composição e ao evento celebrado, pois apresentam-se duas datas possíveis, 474 ou 454 a. C, a primeira seria referente a uma vitória em uma corrida de rapazes, a segunda a uma competição (diaulos) entre homens. 158 Il. XXIII, 72-3. 159 Il. XXIII, 65. 202

poreu/w, e somente pelo sintagma su\n 0Agamemnoni/a| yuxa|= percebe-se que se trata da psykhé e não da própria jovem. Convém notar que o assassinato de Agamêmnon e a estada de sua psykhé no Hades, referidos em Pítica, ancoram-se na poesia épica, em Odisseia XI, 387-9, versos em que se narra o encontro de Odisseu com a psykhé do Atrida. Neste passo, menciona-se também a presença das psykhaí daqueles que foram mortos no mesmo momento. Note-se, porém, na epopeia, que o termo psykhé não é utilizado de modo idêntico àquele de Pítica, isto é, em referência à própria pessoa. Esse conceito, no entanto, já se encontra em Trabalhos e Dias, conforme se mencionou anteriormente, pois Hesíodo aponta nessa direção ao aludir ao destino dos homens da Raça de Prata considerando que foram eles próprios que baixaram ao Hades, e não suas psykhaí. Nesse sentido, o poeta de Ascra distancia-se da épica homérica e apresenta uma concepção da qual Píndaro se aproxima. Como se pode perceber, Píndaro emprega o termo psykhé com nuance diferente, identificada à própria pessoa com o elemento que subsiste após a morte. Porém, a principal proposição da escatologia homérica permanece inalterada, pois, após a morte, a psykhé parte para um lugar específico, que, nos referidos versos de Píndaro, corresponde às margens do Aqueronte. A respeito da morada final dos mortos, nota Simon Hornblower, (2007, p. 28), que Píndaro partilha a visão convencional de uma vida post-mortem que transcorre em um lugar odioso, escuro. A fim de corroborar sua afirmação, o pesquisador apresenta alguns versos de Olímpica XIV, poema dedicado à vitória de Asópico de Orcômeno, onde tradicionalmente se cultuavam as Graças às quais Píndaro invoca como protetoras dessa cidade. Entre elas, o poeta invoca Eco para que leve ao Hades notícias da vitória do jovem Asópico a seu pai falecido Cleodamo:

Melanteixe/a nu=n do/mon 20 Ferserfo/nav e0lq’, 0Axoi=, patri\ klu=tan feroi/s’ a0ggeli/an, Kleo/damwn o0fr’ i0doi=s’, ui9o\n ei1ph|v o9ti\ oi9 ne/an ko/lpoiv par’ eu0do/coiv Pi/sav e0sqefa/nwse kudi/mon a0e/qlwn pteroi=si xai/tan. Agora para a sombria morada de Perséfone, vai, ó Eco, para o pai levando a gloriosa mensagem, a fim de que, quando vires 203

Cleodamo, de seu filho lhe digas que, nos vales gloriosos de Pisa, coroou a jovem cabeleira com as asas dos jogos ilustres Olímpica XIV, 20-4

A referência à casa de Hades e como morada derradeira dos homens, expressa pelo sintagma “Melanteixe/a do/mon” no verso 20 da citada Olímpica, está presente também em poemas de autorias diversas nos quais transparece a mesma ideia, como nos versos dos Theognidea160 em que o sintagma dnoferh=v u9po\ keu/qesigai/hv transmite a ideia de um lugar sombrio. [...] kai\ o3tan dnoferh=v u9po\ keu/qesigai/hv bh=iv polukwku/touv ei0v Ai0dao do/mouv, ou0de/pot’ ou0de\ qanw\n a0polei=v kle/ov, a0lla\ melh/seiv 245 a1fqiton a0nqrw/poiv ai0e\n e1xwn o1noma

[...] E quando às sombrias regiões subterrâneas chegares, às moradas lamentosas do Hades, jamais, nem mesmo morto, perderás tua glória, mas, possuidor sempre de um nome imortal, serás reconhecido pelos homens, [...]

Theognidea, 243-6

Em ambos os poemas, porém, não se nota uma repulsa ao Hades161, como morada derradeira, ideia que remonta à poesia épica162 na qual, em mais de uma

160 Tradução de Gloria Braga Onelley 161 Sobre o tema, confira o artigo escrito por Teodoro Rennó Assunção: Ulisses e Aquiles repensando a morte (Odisseia XI, 478-491). 162 A repulsa ao Hades como morada derradeira, pode ser percebida nos versos homéricos referentes à resposta de Aquiles ao discurso proferido por Odisseu, a quem o Pelida, ironicamente, parece julgar um embusteiro: e0xqro\v ga/r moi kei=nov o9mw=v 0Ai/+dao pu/lh|sin /o3v x’ e3teron me\n keu/qh| e0ni\ fresi/n, a1llo de\ ei1ph|. (De fato, me é odioso, como os portões do Hades, aquele que oculta uma coisa na mente e fala outra.). Convém mencionar ainda que há um forte sentimento de rejeição à existência no Hades onde o melhor estilo de “vida”  mesmo que semelhante à de um rei  é inferior à vida que transcorre sob o sol. Passo que corrobora essa rejeição é a declaração feita por Aquiles a Odisseu que o saudara como alguém afortunado por reinar, depois de morto, sobre os habitantes do Hades: [...] sei=o d’, 0Axilleu=, 204

ocasião, se menciona que a psykhé do morto parte para o mundo subterrâneo lamentando sua sorte. Observa-se a identificação da psykhé com o próprio indivíduo nos referidos poemas, nos quais a existência da psykhé no Hades não é apresentada de modo negativo, mas como uma morada inevitável para a qual se deve partir, ideia que pode conduzir à concepção de uma vida mais feliz e preferível163 mesmo estando ali, conforme se pode perceber no fragmento 95164 de Safo:

ei]pon: 9 w] de/spot’ e0p’. [ o]u ma\ ga\r ma/karian [e1gwg’ o]u0de\n a1dom’ e1perqa ga=[v e1oisa, katqa/nhn d’ i1mero/v tiv [e1xei me kai\ lwti/noiv droso/entav [o1- x[q]oiv i1dhn 0Axe/r[ontov

Eu disse: ó senhor. [ Na verdade, pela bem-aventurada [eu de minha parte nenhum prazer tenho de estar sobre a terra, e um desejo de morrer me domina e de ver as margens do Aqueronte úmidas de lótus

ou1 tiv a0nh\r propa/roiqe maka/ratov ou1t’ a1r’ o0pissw. pri\n me\n ga\r se zwo\n e0ti/omen i]sa qeoi=sin 0Aogei=oi, nu=n au[te me/ga krate/eiv neku/ssin e0nqa/’1 e0w/n: tw|= mh/ ti qanw\n a0kaxi/zeu, 0Axilleu=:” 4Wv e0fa/mhn, o9 de\ m’ au0ti/k’ a0meibo/menov prosse/eipe: “mh\ dh/ moi qa/nato/n ge parau/da, fai/dim’ 0Odusseu=. bouloi/mhn k’ e0pa/rourov e0w\n qhteue/men a1llw|, a0ndri\ par’ a0klh/rw|, w]| mh\ bi/otov polu\v ei1h, h4 pa=sin neku/essi katafqime/noisin a0na/ssein. [...] que tu, ó Aquiles nenhum homem antes ou depois é mais feliz. Na verdade, estando vivo, honrávamos-te como aos deuses nós, Argivos, mas agora reinas poderosamente entre os mortos, estando aqui. Não te lamentes por teres morrido, ó Aquiles.” Desse modo falei, e ele imediatamente me respondendo disse: “não me consoles a morte, ó glorioso Odisseu. Eu preferia sendo lavrador servir a outro, a um homem sem terra, para o qual não havia grandes recursos, a reinar entre todos os mortos sem força. Od. XI, 482-91 163 Sobre a possibilidade de uma existência mais feliz no Hades, confira Antonio Santamaría (2003, p. 200). 164 CAMPBELL, David A. Greek Lyric I, Sappho and Alceus. 205

Convém notar que, embora haja a mesma concepção de que o morto terá uma existência no Hades, nos poemas supracitados de Safo e de Teógnis, percebe-se uma diferença importante porque o poeta de Mégara não apresenta imagem alguma da existência da psykhé do morto. Cirno se tornará imortal em função de seu nome ser objeto perene de canto para os poetas, que espalharão sua glória entre os homens. Não se trata de uma imortalização em sentido estrito, mas da continuidade existencial perpetuada como memória por meio da poesia. Os referidos versos de Safo indicam ser preferível a existência contemplativa nas margens do Aqueronte a uma vida infeliz sobre a terra dos vivos. Para a poetisa, a existência perene no Hades é um fato. Entretanto, as psykhaí dos mortos podem se reconhecer, concepção que pode ser notada no seguinte poema:

Katqa/noisa de\ kei/sh| ou0de/ pota mnamosu/an se/qen e1sset’ ou0de\ po/qa ei0v u1steron: ou0 ga\r pede/xh|v bro/dwn tw\n e0k Pieri/av, a0ll’ a0fa/nhv ka0n 0Ai/da do/mw| foita/sh\v ped’ a0mau/rwn neku/wn e0kpepotame/na.

E depois de caires morta, jamais haverá lembrança de ti nem haverá mais tarde saudade; de fato, não tomaste parte das rosas165

165 Sobre a utilização do termo rosa no sintagma bro/dwn tw\n e0k Pieri/av, observa A. Hardie (2005, p.18) que Safo o utilizava de modo figurativo ou literal. Particularmente, nesse fragmento, o termo rosas estaria sendo empregado para evocar o costume de se utilizar uma coroa de rosas para marcar a iniciação de quem a usasse, um símbolo de dedicação à divindade a qual se consagrava. Nesse sentido, haveria práticas relacionadas com as musas que se realizariam nos moldes daquelas presentes nas religiões de mistérios. Essa ideia estaria corroborada pelo termo moisopo/loi empregado em um fragmento bastante corrompido da poetisa: ou0 ga\r qe/miv e0n moisopo/lwn oi0ki/a| qrh=non e1mmen’: ou1 k’ a1mmi pre/poi ta/de.

Na verdade, não é uma lei que na casa dos moisopoloi haja lamentação fúnebre. Essas coisas não seriam convenientes para nós. Frag. 150 O termo moisopo/loi, segundo o A. Hardie (op. cit. p. 15), é utilizado para se referir a algum vínculo religioso que envolveria atividades de culto às Musas. Há registro do uso de palavras que possuem formação análoga, como, por exemplo, qalamh/polov (aquele que cuida do quarto) e ai0po/lov (aquele que cuida de ovelhas) nos Poemas Homéricos em que se percebe o sufixo -po/lov. Lembra o estudioso que o historiador Heródoto (2, 135.1), também faz uso do termo de modo semelhante ao que fez Safo. 206

de Piéria, mas, desconhecida até na morada de Hades vagarás, desvanecida junto aos mortos sem força. Frag. 55

Pode argumentar-se contra a interpretação proposta de que as psykhaí se reconheciam no Hades que os versos do poema de Safo se referem à memória do morto. Contra esta interpretação, porém, vale lembrar que, diferentemente do que ocorre no poema de Teógnis, em que a ideia da lembrança do morto é evidenciada pela utilização do termo o1noma no verso 246, no poema de Safo a referência é sobre alguém que depois de morta não será lembrada. Não há presença de um sintagma adverbial vinculado à Katqa/noisa de\ kei/sh| determinando um lugar destinado à morta. A forma verbal kei/sh| traduzida por “jazerá”, como fazem alguns tradutores, transmite a noção de estar a morta deitada no sepulcro ou de o corpo estar presente em um rito funerário. No entanto, a tradução do termo kei/sh| por cair,166 com a acepção de se encontrar em uma situação específica, tradução aqui proposta, evidencia o status de morta e se encontrar no Hades onde a psykhé da mulher vagará anônima (a0fa/nhv ka0n 0Ai/da do/mw) entre as outras psykhaí167. A tônica, portanto, recai sobre a condição de morta da personagem. A partida da psykhé para o Hades sombrio é consequência inevitável da mortalidade, limitação humana que constitui diferença essencial entre deuses e homens, pois enquanto aqueles existirão para sempre, esses perecerão porque são mortais, embora a psykhé, elemento humano, continue a existir de maneria autônoma. Se a concepção de que existe no homem um elemento imaterial que sobrevive à morte tem seus fundamentos na épica e nos poemas hesiódicos, é conveniente refletir

Giuliana Lanata (apud Hardie, op. cit., p. 15) e de opinião que o termo moisopo/lwn indicaria uma associação cuja finalidade estaria relacionada com as atividades de culto às Musas. A autora utiliza-se de uma inscrição do século II a. C. para justiificar sua afirmação. A inscrição diz respeito a um sínodo de artistas de Dioniso (e0sqlh\ texnitw=n mousopo/lwn su/nodov) e ajuda a compreender o estabelecimento da terminologia poética, para as atividades de cultos em Lesbos. Na opinião da autora, Safo estaria utilizando o termo com um significado aproximado a esse último. 166 A tradução do termo por jazer não é a única possível, pois o verbo em questão, kei=mai, é utilizado, por exemplo, nos Poemas Homéricos, significando situar ou localizar algo no espaço físico ou uma situação. Confira Odisseia, V, 457; VII, 244; IX, 25 e X, 196. Há uma série de passagens em que o termo é utilizado com acepções diferentes mantendo, porém, uma noção de espaço ou de uma situação na qual se encontra uma cidade ou pessoa como, por exemplo, cair em ruínas ou cair em doença. 167 Convém observar que a ideia de anonimato presente nesses versos é oposta à situação da psykhé de Aquiles que, no Hades, anda cercado pelas demais psykhaí, fato que permite a Odisseu tecer comentários sobre a situação do Pelida que, estando vivo, era honrado como os deuses e, depois de morto, no Hades, reinava sobre os mortos. 207

sobre uma diferença conceitual introduzida pelos poetas posteriores, isto é, a concepção da continuidade existencial da psykhé considerada como um ente imortal168. Ao abordar esse assunto, Erwin Rohde desenvolveu uma reflexão sobre a introdução da ideia de imortalidade entre os Gregos com base no conceito de psykhé presente nos Poemas Homéricos, ou seja, ela não é mais que uma sombra que vaga no Hades, um ser que de modo algum poderia relacionar-se com o mundo dos vivos e, em consequência, não se prestaria a ela qualquer espécie de culto. Assim, resulta para o autor que é inútil buscar na épica homérica a existência de um culto dos mortos, e as passagens que poderiam apontar nessa direção apenas remetem a uma época remota da qual, pela tradição, o poeta tem conhecimento. Uma importante consideração do autor (1921, p. 253) é que essa crença popular, derivada dos ensinamentos presentes nos Poemas Homéricos, permaneceu inalterada por muitos séculos, e nela não está presente uma “semente” que germinaria dando origem a ideias mais profundas sobre a alma viva e sua condição depois da separação do corpo. Assegura o autor que não há nada na crença homérica sobre a subsistência da psykhé que pudesse conduzir à concepção de uma vida eterna, imortal e indestrutível. A ideia de continuidade estaria relacionada, segundo Erwin Rohde, com a memória do vivo sobre a terra e a algum culto que podia ser oferecido à alma do ancestral falecido. A memória seria o único elemento que manteria a existência da psykhé e, uma vez extinta, nada mais dela restava169. A argumentação de Erwin Rohde (op. cit.; p. 254) baseia-se na mencionada diferença entre homens e deuses, isto é, na imortalidade e na mortalidade que os distinguem essencialmente, havendo, pois, uma barreira entre o mundo dos homens e as divindades. Para o autor, a relação religiosa entre deuses e homens dependia totalmente dessa distinção; além disso, assinala que as ideias éticas do povo grego se ancoravam em uma consciência na qual estava enraizada a noção de limitação, de finitude e de incapacidade humana. A aceitação do rompimento dessa distinção por meio do conceito da imortalidade da psykhé, conforme Erwin Rohde, contradiz essa

168 Confira algumas obras de Platão, como por exemplo, Fédon e concepções apresentada por Aristóteles em Sobre a Alma. 169 As afirmações de Erwin Rohde podem parecer estranhas porque ele rejeita a existência do culto dos mortos nos Poemas Homéricos, embora fale de um culto aos ancestrais. Claramente o autor não identifica as duas ações, porém não esclarece a diferença entre elas. Ao que parece, rejeita-se o culto dos mortos como uma ação pautada na concepção de que o morto mantivesse alguma relação com o mundo dos vivos podendo interferir nele. Necessariamente, isso obrigaria a colocá-los em um patamar que os tornassem semelhantes às divindades. O culto ao ancestral seria apenas um ato de fazer memória sem reconhecer nenhum poder ao falecido. 208

singular ideia da religião popular grega e jamais poderia tornar-se largamente anunciada e aceita como crença pelo povo grego. Resta, portanto, depois dessas considerações, compreender como Erwin Rohde entende a introdução da concepção da imortalidade da psykhé na cultura grega. Como se pode observar, o estudioso não acreditava que o povo grego adotasse esse conceito de psykhé imortal como uma crença predominante. Nesse sentido, as seguintes palavras do autor são bastante esclarecedoras:

No entanto, em um determinado período da história grega, e em algum lugar muito cedo e incontestavelmente, surgiu, na Grécia, a ideia da divindade e da imortalidade, implicitamente, na divindade da alma humana. Essa ideia pertence inteiramente ao misticismo, uma segunda ordem de religião que, embora pouco significativa para a religião do povo e para praticantes ortodoxos, ganhou espaço em seitas isoladas e influenciou certas escolas filosóficas. Assim, ela afetou todas as épocas posteriores e transmitiu, de leste a oeste, o princípio elementar de toda a verdadeira mística; a unidade essencial do espírito divino e humano, sua unificação como objetivo da religião, a natureza divina da alma humana e da sua imortalidade (ROHDE, 1925, p. 254. Tradução nossa).

As palavras do pesquisador são significativas porque acentuam o caráter singular da crença na imortalidade da alma como um desvio da religião tradicional na qual imperaria, em sua opinião, uma crença distinta, isto é, a concepção de que a alma não é um ser imortal. A aceitação dessa novidade implicaria destruir o fundamento da religião popular grega que se baseava, essencialmente, na distinção entre o mundo dos imortais e o mundo dos homens mortais. A pergunta que se impõe, depois desses esclarecimentos, é a seguinte: que corrente mística é essa mencionada por Erwin Rohde que teria dado origem à crença na imortalidade da alma? A crença na imortalidade da alma originou-se, conforme Erwin Rohde (op. cit., p. 255), de correntes místicas que chegaram à Grécia vindas do estrangeiro, particularmente da Trácia, berço do culto a Dioniso que lançou as sementes dessa concepção170. O fenômento que Erwin Rohde denomina de “religião de segunda ordem”, qual seja, as seitas místicas, também foi assinalado por Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 38) como um dos elementos responsáveis por mudanças no sistema escatológico tradicional porque, segundo a autora, já em Odisseia XI, se pode perceber que nem

170 Erwin Rohde, ao longo do capítulo VIII, expõe de modo detalhado sua tese sobre a origem dionisíaca da doutrina da imortalidade da alma. 209

todas as psykhaí, no Hades, são tratadas como sombras. Para a pesquisadora, no período arcaico, versões de um destino post-mortem mais feliz estavam sendo geradas, principalmente no contexto das religiões de mistérios e das seitas, entre as quais a pesquisadora destaca os Mistérios de Elêusis que estavam em estreita relação com a religião ateniense. Convém, por causa da importância do assunto, esclarecer como esse fenômeno é definido pelos pesquisadores, entre os quais Walter Burket (1987, p. 12), que propõe a seguinte definição de religião de mistérios: “Os mistérios são uma forma de religião pessoal que depende de uma decisão privada almejando alguma forma de salvação através de uma maior proximidade com a divindade.”. Observa o autor, no entanto, que, apesar de ser proposta e aceita por vários estudiosos, essa definição pode induzir a comparações com outras formas de religiões pessoais que se apresentam mais próximas de pesquisadores, por exemplo, as religiões votivas mais largamente difundidas no mundo antigo e que consistiam no ambiente para a prática dos “mistérios”. Argumenta o autor (1987, p. 14) que, nas religiões votivas, motivado por alguma necessidade particular, o homem procura estabelecer uma relação mais pessoal com a divindade em um consórcio que visava a resolver um problema, como doença ou perigo iminente, por meio de uma promessa estabelecida, um voto que poderia ser feito em público e cujo cumprimento se daria do mesmo modo, normalmente, com a participação em um banquete junto com outras pessoas que realizariam os mesmos procedimentos. Notou Lewis Richard Farnell (1921, p. 373) que, também para aquele que tinha uma maior preocupação com o post-mortem, os mistérios eram um caminho que podia ser trilhado: “Alguém podia ser inciado em um ou mais dos mistérios que existiam na Grécia, a maior parte dos quais, provavelmente, começaram a partir do século VI a. C. e V a. C. que prometiam alguma recompensa escatológica para o iniciado.”. Observa ainda o pesquisador que a promessa de felicidade futura era uma característica dos mistérios de Elêusis:

o1lbiov o4v ta/d’ o1pwpen e0pixqoni/wn a0nqrw/pwn: 480 o4v d’ a0telh\v i9erw=n, o3v t’ a1mmorov, ou1 poq’ o9moi/wn ai]san e1xei fqi/meno/v per u9po\ zo/fw| eu0rw/enti. 210

Feliz aquele que entre os homens que estão sobre 480 a terra viu essas coisas: mas aquele não iniciado nas coisas sagradas e e aquele que não as partilha, não tem jamais destino semelhante mesmo perecendo sob as trevas bolorentas. h.Hom. 2, 480-2 De fato, nesses versos do Hino Homérico à Deméter, lê-se que o iniciado teria um destino diferente daquele do homem comum, pois, embora ambos fossem encerrados no reino de Hades, a iniciação nos Mistérios de Elêusis propiciaria uma sorte diferenciada. Os Mistérios de Elêusis, certamente, são os mais conhecidos do público em geral171, e, segundo Walter Burkert (1987, p. 4), eles eram organizados pela pólis de Atenas e celebrados em um grande festival de outono, ocasião em que uma grande procissão se dirigia de Atenas a Elêusis onde se realizava uma celebração noturna no telesterion (sala de iniciação), local capaz de acomodar milhares de iniciados. Ali, o hierofante revelava as coisas sagradas. Walter Burkert não menciona quais seriam os possíveis conteúdos dessas revelações aos iniciados, mas talvez possam ser eles inferidos a partir da ideia expressa no verso 480 “o1lbiov o4v ta/d’ o1pwpen e0pixqoni/wn a0nqrw/pwn” do Hino Homérico a Deméter, ou seja, que se tratava de algo relativo à vida post-mortem, uma promessa de uma vida futura melhor. A referência dos pesquisadores sobre a importância das religiões de mistérios para o desenvolvimento de novas concepções escatológicas, introduzidas na religião tradicional do período arcaico, conduz a uma reflexão sobre o fenômeno relacionando- o com a poesia do período arcaico, principalmente com a de Píndaro que, na opinião de alguns estudiosos como, por exemplo, W. K. C. Guthrie, Hugh Lloyd-Jones, Daniel Torres e Marco Antonio Santamaría Álvarez apresenta, em alguns de seus poemas, concepções oriundas do pitagorismo e do orfismo. Sobre o orfismo, convém observar que seu estudo se tem mostrado complexo e controverso e relacioná-lo com Píndaro,

171 Walter Burkert (1993, p. 4) aponta que por razões de economia, nessa obra em questão, serão abordados apenas os Mistérios de Elêusis, o culto a Dioniso ou os Mistérios Báquicos, o culto de Mitra e os Mistérios de Ísis. O autor afirma que, embora existam outros, esses são os mais proeminentes. 211

considerando que em alguns de seus poemas estão expressas doutrinas desse fenômeno religioso, suscitou opiniões diferentes porque os pesquisadores não são unânimes a respeito do assunto, conforme observa Santamaría Álvarez (2003, p. 156) em seu trabalho sobre a escatologia na poesia de Píndaro, particularmente em Olímpica II e nos trenos. O autor refere-se às religiões de mistérios com a expressão “movimentos mistéricos,” julgando-os como modalidades religiosas complementares à religião “olímpica tradicional,” e nota (op. cit., p. 155) que a Olímpica II e os trenos de Píndaro têm chamado a atenção de pesquisadores porque, nessas poemas, existem referências a elementos dos mistérios, principalmente no que diz respeito à escatologia172. Antonio Santamaría acentua, porém, que os pesquisadores divergem quanto à aceitação dessa tese e observa (2003, p. 156) que estudiosos da poesia de Píndaro, e, de modo semelhante, os pesquisadores do orfismo e do pitagorismo se pronunciam sobre o grau de influência das mencionadas correntes místicas na obra do poeta, havendo autores que até mesmo negam a existência de qualquer influência. As principais opiniões de autores que se dedicaram ao estudo desse tema podem ser sintetizadas, na opinião de Antonio Santamaría, em três correntes principais, ou seja, aquela que nega qualquer influência dos mistérios na obra de Píndaro; a que considera Píndaro um iniciado nos Mistérios de Elêusis e no Orfismo; e, ainda, a corrente que acredita na presença dos elementos de mistérios sem, contudo, interpretá-los como crença pessoal do poeta e sim como referência a concepções religiosas do mecenas. A primeira corrente rejeita a presença de elementos de mistérios na poesia de Píndaro por considerá-lo possuidor de concepções religiosas tradicionais que remontam a Homero e a Hesíodo, sendo um devoto do Oráculo de Delfos que não

172 Observe as palavras de Antonio Santamaría Álvarez (op. cit., p. 155): “Una de las particularidades de la Olímpica Segunda (y de los Trenos) que más ha llamado la atención de la crítica es la presencia de abundantes elementos mistéricos, sobre todo de carácter escatológico. Como señalaba en la Introducción, con la expresión “movimientos mistéricos” me refiero a aquellas corrientes religiosas surgidas en el s. VI a. C. que pretenden ser un complemento de la religión olímpica tradicional (tal como está reflejada en Homero y Hesíodo), por ofrecer a los creyentes posibilidades de contacto personal con la divinidad a través de iniciaciones y por la promesa de una vida mejordespués de la muerte para todos los que hubieran seguido los requisitos religiosos exigidos. Tales corrientes son el eleusismo, el pitagorismo y, sobre todo, el orfismo, que comparte elementos con las otras dos. El conocimiento de sus doctrinas, prácticas y organización (sobre todo para las épocas arcaica y clásica) es parcial y confuso, debido a diversas circunstancias: la escasez de documentos procedentes de forma directa de estos movimientos, las imprecisiones, poça fiabilidad y/o fecha tardía de los autores que nos informan sobre ellos y el carácter secreto de algunas enseñanzas (el eleusismo y el pitagorismo). En ocasiones, las mutuas influencias hacen difícil delimitarlos con precisión, así como determinar el origen preciso de tal o cualidea, enseñanza, rito o símbolo.”. 212

aceitaria inovações e, portanto, avesso a aspectos exotéricos e às práticas supersticiosas, características de pessoas de classes menos educadas. Em oposição a essa primeira corrente está a segunda, menos defendida, mas não menos importante. Seus defensores pensam ser Píndaro um iniciado nos mistérios que, em seus poemas, deixa transparecer algumas doutrinas místicas. Observa Antonio Santamaría (2003, p. 160) que, já na Antiguidade, se supunha ter sido o poeta um iniciado no pitagorismo, opinião expressa por Clemente de Alexandria, que, na opinião do estudioso, foi o primeiro autor a fazer abertamente essa afirmação. A maioria dos estudiosos, conforme Antonio Santamaría, é defensora da terceira corrente, ou seja, defende a presença de elementos de religiões de mistérios na poesia de Píndaro, apesar de não afirmarem de maneira assertiva que o poeta seria um iniciado ou que partilhasse pessoalmente algumas das concepções veiculadas nos seus poemas. As referências às doutrinas expressariam, na verdade, a crença do destinatário de seus versos, daquele que patrocinava o poema. Particularmente as doutrinas presentes em Olímpica II e nos trenos seriam características da crença de Terão a quem o poema se destinava173. Como se nota, a diversidade de opiniões aponta para uma dificuldade em relação à presença de elementos das religiões de mistérios na obra de Píndaro, particularmente Olímpica II, mas, ao que parece, posto que há no referido poema concepções inegavelmente relativas às práticas dos iniciados, a terceira corrente de interpretação mencionada  defendida também por Antonio Santamaría174 se apresenta como a mais plausível.

173 Antonio Santamaria (op. cit. p. 156-70) expõe, de modo breve, os argumentos apresentados pelos pesquisadores. Não cabe aqui repetir as palavras do autor, posto que sua exposição é uma síntese do assunto. Convém, no entanto, observar que entre aqueles que defendem a primeira corrente mencionada, ou seja, que afirmam não existir referências aos mistérios estão, entre outros, Wilamowizt, Hermann Fränkel, Hampe, Defradas, Diels, Kirkwood e Nisetich. A respeito desse último estudioso, Antonio Santamaria faz a seguinte observação: “Por su parte, NISETICH ha destinado la mayor parte de su libro sobre la influencia de Homero en Píndaro (1989) a la Olímpica Segunda. Considera desastroso para la apreciación del poema el esfuerzo de los estudiosos en encontrar las fuentes de la escatología en corrientes como el orfismo o el pitagorismo [...]”. Entre os partidários da segunda corrente, a que defende a adesão pessoal de Píndaro às religiões de Mistério, estão Erwin Rohde, Rossi, Mondolfo, Thummer e Duchemin. Entre os principais defensores da terceira corrente, segundo a qual Píndaro expressa as crenças de seus mecenas, estão Carmenz, Von Fritz, Willcok, Farnell, Nilsson, Norwood , Guthrie e o próprio Antonio Santamaria. 174 O autor (op. cit., p. 167) observa que há um perigo quando se exagera na interpretação das doutrinas de mistérios presentes em Olímpica II considerando-as necessariamante como crença pessoal de Píndaro porque não se pode deduzir esse fato. O autor também assegura que a finalidade da lírica não seria expressar a subjetividade do poeta que estaria celebrando uma vitória esportiva de alguém perante sua família e comunidade. Essa proposta de interpretação teria sido na opinão de Antonio Santamaria, elaborada por Bundy que substituiu, com ela, o método histórico-biográfico. Bruno Gentilli (apud 213

Na verdade, dificilmente se pode negar a existência de concepções de religiões de Mistérios em Olímpica II, porém atribuí-las à crença pessoal de Píndaro é um problema de natureza diferente porque isso implicaria a utilização de uma metodologia específica, ─ por exemplo, o método histórico-biográfico largamente utilizado no estudo da literatura clássica, principalmente a partir do final do século XIX, e cujos ecos podem ser percebidos até os dias de hoje ─ ou alguma outra metodologia que priorize a investigação e o reconhecimento de aspectos pessoais do autor em sua obra. A escolha de um dos métodos de pesquisa propostos pela teoria literária,175portanto, condiciona o resultado da pesquisa dando origem às teses diversas, conforme se observou. Após esse introito sobre a existência de doutrinas das religiões de mistérios na obra do poeta tebano, particularmente, na Olímpica II, convém algumas considerações a respeito de concepções escatológicas veiculadas por Pindaro, melhor exemplo de poeta não hexamétrico em cujos poemas se registram importantes concepções que se diferenciam das transmitidas pelos Poemas Homéricos e na poesia hesiódica.

5.2 Elementos das religiões de mistérios e a vida post-mortem na poesia de Píndaro

A reflexão empreendida nessa pesquisa valeu-se de conceitos da épica homérica na qual impera a noção de que o homem só está vivo enquanto seu corpo é animado pela psykhé. A separação definitiva desses dois elementos consiste na morte a partir da qual a psykhé passa a existir como autônoma no reino de Hades depois de ter recebido os devidos ritos funerários. Deve-se ter claro, porém, que essa existência não implica aceitar que, na épica homérica, haja um elemento humano imortal, já que a imortalidade é um atributo divino. O fato é que, nos Poemas Homéricos, o homem é mortal e, com a morte, a psykhé é alçada a uma nova condição existencial que a rigor não se identifica com o ato de estar vivo. No entanto, não se pode afirmar que a psykhé, em Ilíada e Odisseia, seja mera sombra sem consciência. Ao contrário, como se refletiu anteriormente, a

Santamaria, op. cit., p, 156) adotou o mesmo método de Bundy e acentuou que era preciso levar em conta, na interpretação do poema, a ocasião “concreta” da composição, ou seja, o ambiente de performance em que estavam relacionados o poeta, aquele que encomendou o poema e a audiência. 175 Sobre a metologia de estudo da Literatura Clássica, confira Alsina, José. Teoría Literaria Griega. Madrid: Gredos, 1991. 214

relação dos vivos com aqueles que morreram só faz sentido em um contexto em que se concebesse a psykhé do morto como um ente consciente. A poesia de Píndaro traz concepções diferentes da noção homérica de post- mortem; porém, não em relação à psykhé consciente, mas no tocante a sua natureza e à sua origem. Se os Poemas Homéricos apresentam pela primeira vez, na literatura ocidental, o homem constituído de dois princípios, o corpo físico e a psykhé imaterial, a Píndaro, a julgar pelo fragmento Bowra 116, cabe o mérito de ter introduzido a ideia de que esse princípio imaterial sobrevive depois da morte porque sua origem é divina. Porém, antes de passar à análise do fragmento, convém alguns esclarecimentos sobre as possíveis fontes dessa concepção, expondo, em primeiro lugar, algumas proposições de Erwin Rohde para o qual a concepção de imortalidade da alma seria oriunda de influências religiosas estrangeiras transmitidas por seitas, isto é, as religiões de mistérios que destoavam da religião oficial. Assim, na poesia de Píndaro, haveria elementos de doutrinas de mistérios, principalmente do Orfismo, a religião de mistério sobre a qual mais se tem escrito. A esse respeito R. Dodd’s (2002, p. 150) assinala que, por causa da abundância de pesquisas realizadas e trabalhos escritos sobre o tema176, seu conhecimento parecia diminuir à medida que suas leituras se aprofundavam, pois proposições outrora consideradas verdadeiras, depois de duas décadas, se mostravam controversas177. No entanto, a presença ou não de elementos das religiões de mistérios na obra de Píndaro suscitou um intenso debate no qual os pesquisadores assumiram posições diversas, alguns mais radicais negando qualquer indício das doutrinas mencionadas, outros colocando o poeta tebano como um iniciado que deixou transparecer em seus poemas postulados de sua crença pessoal, e outros, ainda, que, assumindo uma posição mais moderada, defendem que as doutrinas existentes nos poemas se referem a crenças dos mecenas e não do próprio poeta, tese que mostra mais plausível.

176 A primeira edição do livro citado data de 1951. 177 Vale observar, nesse sentido, as seguintes palavras do autor: Deixe-me ilustrar minha ignorância atual por meio de uma lista do que eu outrora soube. Houve um tempo que eu sabia: • Que havia uma seita ou comunidade órfica na Idade Clássica. • Que Empédocles e Eurípedes leram a “teogonia” órfica e que esta acabou parodiada por Aristófanes nos “Pássaros”. • Que o poema do qual encontramos fragmentos em placas de ouro de localidades como Thurii se refere a um apocalipse órfico. • Que Platão pegou os detalhes dos mitos que cita deste mesmo apocalipse órfico. • Que Hipólito de Eurípides é uma figura órfica. • Que swma-shma (“corpo é igual a uma tumba”) é uma doutrina órfica. 215

Já na Antiguidade, o Orfismo e suas doutrinas despertaram a atenção de alguns autores178, e a mais antiga referência sobre essa seita, conforme observou Erwin Rohde (1925, p. 355), foi escrita por Heródoto que, além de identificar seus praticantes como bacantes, relacionou suas práticas a costumes religiosos egípcios e pitagóricos. O estudioso valeu-se da informação presente em História179 e deduziu que Heródoto considerava Pitágoras ou os pitagóricos fundadores do Orfismo fazendo-o sobre modelos egípcios. Erwin Rohde afirma também que a citada referência sobre o Orfismo indica que, para o historiador grego, os “Mistérios Órficos e Báquicos” não poderiam ter existido antes da última década so século VI a. C. Essa afirmação, porém, não encontra respaldo no texto que o pesquisador utilizou como suporte para sua argumentação. Ainda na opinião de Erwin Rohde, Heródoto, em suas viagens, ou mesmo em Atenas, teria tomado conhecimento de alguns grupos religiosos privados que, para se autodenominar, utilizavam o nome de Orfeu, conhecido personagem de lendas trácias. O fato de os membros do Orfismo grego prestarem culto a Dioniso, “senhor da vida e da morte”, faz com que Erwin Rohde afirme ter sido Orfeu fundador tanto do Orfismo quanto dos mistérios dionisíacos. Em relação a aspectos peculiares órficos, Erwin Rohde (1925, p. 340) considera que um dos traços distintivos desse movimento era a mescla de elementos de religão com uma “especulação quase filosófica”, característica que predominava nos textos literários dessa seita, como, por exemplo, os escritos teogônicos em cujo ápice da “especulação” se encontravam as mais importantes crenças do movimento. Observa ainda o estudioso que, no final dessas narrativas religiosas órficas, estava Dioniso denominado , nome de uma divindade do mundo subterrâneo devorada pelos Titãs180. Acrescenta Erwin Rohde (op. cit., p. 341) que os Titãs foram destruídos pelo raio de Zeus, e, de suas cinzas espalhadas, originaram-se os homens em cuja constituição está um elemento bom, proveniente de Dioniso Zagreus que fora devorado, e outro mau, que se relaciona com natureza destrutiva dos Titãs. Assim, interpreta o pesquisador que, por causa dessa constituição mista, os homens devem

178 Os mais importantes entre esses são Platão e Aristóteles. Confira, por exemplo, as obras mencionadas na bibliografia. 179 História II, 81. 180 Sobre a antiguidade desse mito, Walter Burkert (1995, p. 566) afirma que não há nele algo que possa remetê-lo a uma data anterior ao período helenístico, embora haja indícos indiretos de que a história de Diosniso Zagreus fosse bem conhecida entre os Gregos. O autor alude a comentários feitos por Platão em Fédon no qual o filósofo se refere à natureza titânica dos homens relacionando-a com crenças órficas. Essa alusão pode significar que o mito era bastante antigo. 216

dirigir seus esforços a fim de se libertarem desse princípio constitutivo mau e se purificarem tornando evidente neles o elemento divino, ou seja, o traço herdado do deus Dioniso:

A distinção entre os elementos titânico e dionisíaco no homem é uma expressão alegórica de uma distinção entre corpo e alma. Ela corresponde também a um profundo sentido estimado, relativo ao valor desses dois lados do ser humano. De acordo com a doutrina órfica, o dever do homem é libertar a si mesmo das correntes do corpo em que a alma se encontra atada como um prisioneiro em sua cela (Erwin Rohde 1925, p. 342. Tradução nossa).

A liberdade da alma, no entanto, observa Erwin Rohde (1925, p. 342) não ocorreria simplesmente com a morte que a deixaria livre só por um curto período de tempo, pois o encarceramento no corpo devia acontecer mais de uma vez com uma sucessão contínua de encarnações em corpos humanos ou de animais, determinadas por um “ciclo de necessidade” que não podia ser quebrado apenas com o esforço do homem que, em razão de sua “cegueira” e “irreflexão” não seria capaz de se livrar dessa situação. Erwin Rohde (op. cit., p. 342) nota que a “salvação”, isto é, a quebra do ciclo de necessidade, se daria por meio de Orfeu e dos Mistérios Báquicos, não pela simples participação nos mistérios secretos da seita, pois “uma vida órfica completa devia ser desenvolvida a partir deles. Ascetismo é a primeira condição de uma vida piedosa.”. A distinção entre corpo e alma, a reencarnação sucessiva e a necessidade de uma libertação daquilo que seria os grilhões que mantêm os dois elementos unidos, segundo a tese de Erwin Rodhe, são crenças do Orfismo. Precisamente, a primeira concepção está expressa em um breve fragmento de um poema de Píndaro, uns poucos versos cujo conteúdo desperta enorme interesse porque versa sobre uma das questões mais importantes da filosofia grega e da religião ocidental, a imortalidade da alma humana e sua natureza:

kai\ sw=ma me\n pa/ntwn e3peita qana/tw| perisqenei=, zwo\n d’ e1ti lei/petai ai0w=nov ei1dwlon: to\ ga\r e0sti mo/non e0k qew=n eu3dei de\ prasso/ntwn mele/wn, a0ta\r eu0do/ntessin e0n polloi=v o0nei/roiv dei/knusi terpnw=n e0fe/rpoisan xalepw=n te kri/sin.

217

E enquanto o corpo de todos segue para a morte inevitável, vivo é deixado para trás o eídolon da vida: na verdade, somente ele proveniente dos deuses, dorme, enquanto os membros agem; e contudo, para aqueles que dormem, em muitos sonhos, ele mostra o julgamento que vem lentamente das coisas agradáveis e das penosas.

Frag Bowra. 116

O poema ilustra a mencionada crença de que o homem é constituído de dois princípios, sw=ma (corpo) e ei1dwlon (imagem) que se opõem, concepção que Erwin Rohde considerou órfica, embora o pesquisador não afirme que Píndaro fosse um iniciado nos mistérios do Orfismo. O estudioso é de opinião (op. cit., p. 6) que o poeta tebano foi quem explicitamente descreveu a natureza da psykhé afirmando, nesse poema, que o corpo segue para a morte enquanto a alma, de origem divina, é deixada viva. Essa última ideia, acentua Erwin Rohde, não é uma concepção homérica, ainda que, em Ilíada e Odisseia, também se concebesse o homem com uma existência dupla nos moldes daquela mencionada por Píndaro. A esse respeito, porém, Erwin Rohde (1925, p. 6) se equivocou 181 ao utilizar postulados indevidos para fazer suas afirmações, principalmente a pesquisa do sociólogo inglês Herbert Spencer, decisiva em suas investigações, porque, em sua opinião, esse pesquisador demonstrara que a existência de um eu duplo habitando o homem era uma crença característica de povos primitivos. Erwin Rohde afirma que, embora tal concepção possa parecer estranha ao homem moderno, os Gregos antigos compartilhavam essa crença que já estaria presente na “mente da humanidade primitiva”. Portanto, por mais que soe estranho, não haveria para Erwin Rohde como negar que os Gregos partilhassem essa crença universal.

181 Werner Jaeger (1998, p. 78) criticou Erwin Rohde acusando-o de partir de uma concepção cristã de alma imortal em sua interpretação de psykhé nos Poemas Homéricos. Na opinião do autor, Erwin Rohde incorreu em erro, ao adotar esse procedimento que, tornou sua equivocada. J. Bremer (1983, p. 7) também criticou a interpretação de Erwin Rohde e fez a seguinte observação: Like the great majority of his contemporaries, he was exclusively interested in the destination of the soul, and had no eye for the rich and varied Homeric psychological terminology. His interpretation was entusiatically received by some and silently rejected by others, particulary by the greatest classical scholar of that time, Wilamowitz, but it remaind the starting point for all subsequent discussion. 218

Além de aplicar os resultados das pesquisas do sociólogo aos Gregos “primitivos,” a fim de legitimar a validade de suas afirmações sobre a crença homérica em um eu duplo, Erwin Rohde (1925, p. 7) utilizou também o citado fragmento de Píndaro que, como se comentou anteriormente aqui, traz novidades em relação às crenças presentes nos Poemas Homéricos nos quais não existe nenhum passo específico que contemple a ideia expressa no poema de Píndaro, pois na épica apresenta-se a concepção de que somente quando vive, sob o sol, levando uma existência em que corpo e psykhé constituem uma realidade única, o homem pode ser tomado como vivo. Essa ideia difere radicalmente da concepção apresentada no fragmento supracitado no qual se menciona que a vida continua mesmo depois da separação entre o corpo, a psykhé ou eídolon182. As principais concepções escatológicas presentes no fragmento pindárico se distanciam muito daquelas expressas nos Poemas Homéricos. Observa-se, por exemplo, que a palavra sw=ma (corpo), referente ao corpo vivo, não é registrada em Ilíada e Odisseia nessa acepção, pois designa o cadáver.183 Porém, nos poemas de Píndaro, seguindo o comentário de William J. Slater, (1969, p. 483), sw=ma (corpo) refere-se ao corpo do homem ou de outro animal que pode estar vivo ou morto. Para referir-se ao elemento imaterial que subsiste depois da morte, o poeta tebano utiliza, no segundo verso, o termo ei1dwlon (eídolon) que também é equivalente nos Poemas Homéricos a uma imagem que corresponde exatamente à forma que o indivíduo possuía em vida. Uma diferença, porém, é notável, pois em Ilíada e Odisseia, o eídolon pode indicar uma imagem enganosa como aquela criada por Apolo a fim de evitar a morte de Eneias prestes a ser morto por Diomedes, ou ainda, o eídolon de Iftímia que Atená criou para consolar Penélope que chorava a ausência de Odisseu. Em ambos os episódios, vê-se claramente que se trata de simulacros que não correspondem à existência real do indivíduo184. Ainda sobre o uso desse termo, outro exemplo digno de nota é o passo referente ao encontro de Odisseu com Héracles,

182 Sobre o uso e as diferenças na utilização dos termos psykhé e eídolon nos Poemas Homéricos, confira GONÇALVES, Alex Fabiano Campos. A Yuxh/ nos Poemas Homéricos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. 183 Confira os usos do termo com significado de cadáver humano em Ilíada VII, 79; XXII, 342, em Odisseia XI, 54; XII, 67; XXIV, 187. Para o uso do termo como cadáver de animal confira Ilíada III, 23; XVIII, 161 e XXIII, 169. 184 Iliada V, 449 e Odisseia IV, 796. 219

conforme Odisseia XI, 601-29, ocasião em o filho de Laertes afirma que viu o eídolon do herói, pois, na verdade, Héracles mesmo se encontrava entre os deuses185. A origem do ei1dwlon, mencionada no fragmento supracitado, constitui a grande novidade em relação aos Poemas Homéricos, pois, pela primeira vez na literatura, se expressa, de modo claro, a existência de um princípio humano que não está destinado à morte porque sua origem é divina: “to\ ga\r e0sti mo/non, e0k qew=n”. Assim, enquanto o corpo, sw=ma, segue para a morte (“kai\ sw=ma me\n pa/ntwn e1peita qana/tw| peri/sqenei) esse elemento, em consequência de sua origem, é deixado vivo (zwo\n d’ e1ti lei/petai ai0w=nov ei1dwlon). Corrobora-o Antonio Santamaría (2003, p. 230) acrescentando que, embora o termo eidolon lembre a concepção homérica de alma, sua origem divina, expressa no fragmento, é uma crença órfica. Outro postulado da crença órfica, segundo o autor, é a forte oposição entre o corpo e alma186: [...] “a alma dorme enquanto os membros atuam, porém alcança sua máxima plenitude quando o corpo está inativo, em outras palavras, quando dorme ou está morto” [...]. Na opinião de Antonio Santamaría (2003, p. 230), no citado fragmento, a concepção órfica do corpo como o túmulo para a alma é apresentada por Píndaro de uma forma mais “adocicada”187.

185 Sobre esse passo, confira a interpretação jocosa que Luciano de Samósata faz em Diálogo dos Mortos, V intitulado MENIPOU KAI ERMOU. 186 This doctrine is menctoned by Plato, and we may be eternally gratful that for once the whim took him to ascribe it, not vaguely and mysteriously to ‘the wise’, or the ‘old and sacred writings’, but expressely to the Orphics. In the Cratylus (400c) he is discussing the etymology of the word soma, body, and its possible connexion with sema, which meant (a) a sign or token, (b) a tomb (which was built ‘to mark the spot’). He says: ‘Now some say that the body (soma) is the sema of the soul, as if were buried in its present existence; and also because through it the soul makes signs of whatever it has to express, for in this way also they clain that is rightly namaed form sema. In my opinion it is the followers of who are chiefly responsible for giving it hth name, holding that the soul is undergoing punishment for some reason or other, and has this husk around it, like a prision, to keep it from running away’. This central doctrine of the Orphics had a tremendous, and one is sometimes tempted to say unfortunate fascination for Plato. Some of finest parts of the dialogues give the imppressiton not that he dispised the body, but that, although the soul was the righer principle and maintain the lead, soul and body could work in harmony together (GUTHRIE, 1993, p. 157). 187 Convém observar que a opinião de Antonio Santamaria Alvarezsobre a origem órfica da ideia de oposição entre corpo e alma, consistindo o primeiro num túmulo para a segunda, não era aceita por R. E. Dodd’s. Esse último autor (2005, p. 171) expressou sua opinião da seguinte forma: Erro que continua sendo defendido. Ver R. Harder. Über Ciceros Somnium Scipionis, 121, n, 4; Wilamowitz., II. 199; Thomas, 51 sg. ; Linforth, 174 sg. Entretanto, como ela ainda é repetida por estudiosos extremamentes respeitados, parece que vale a pena dizer algo mais: a) que o que é atribuído por Platão (Crátilo, 400C) a oiamf Orfea é uma forma derivada de swma (touto to anoma) de swzein, ina swzhtai (h yuxh): isto posto fora de dúvida pelas palavras kai ouden dein paragein oud en gramma, que contrasta swma-swzw com swma-shma e swma-shmainw; b) que swma-shma é atribuído na mesma passagem a tinev, sem maiores especificações; c) que quando o autor diz “algumas pessoas ligam swma a shma, mas creio que foram provavelmente os poetas órficos que cunharam o termo derivando-o de swzw”, não podemos 220

Quanto aos últimos versos do fragmento, Antonio Santamaría (2003, p. 230) observa a valorização do sonho como forma de a alma ter acesso às coisas futuras, característica que, na opinião do autor, seria consequência da origem divina do eídolon e de sua capacidade de se libertar do corpo, o que constitui uma novidade introduzida pelas religiões de mistérios no mundo grego. O pesquisador nota que há referências claras sobre o valor que os pitagóricos davam aos sonhos e ainda acentua que, nos Poemas Homéricos, o sonho já era concebido como um meio pelo qual se tinha acesso ao desconhecido, pois os deuses se manifestavam aos homens nos sonhos e faziam revelações neles as coisas que eram desconhecidas. Nesse aspecto, porém, a concepção presente no fragmento pindárico difere porque fica expresso que o eídolon teria acesso às coisas futuras sem que essas fossem reveladas pelos deuses188. Para Antonio Santamaría (2003, p. 228) a concepção de duplicidade do homem é uma crença órfica e pitagórica e está fundamentada, como também pensou Erwin Rohde, no mito de Dioniso Zagreus devorado pelos Titãs. Porém, observa aquele estudioso, não convém identificar o princípio titânico com o corpo nem o dionisíaco com

supor que “poetas órficos sejam o mesmo que “algumas pessoas” ou que estejam incuídos ali. ( Estou inclinado a pensar assim mesmo que malista é entendido qualificando wv dikhn didoushv ktl). A opinião de R. E. Dodd’s, portanto, era completamente diferente da de Antonio Santamaría Alvarez. O contraste pode ser conferido lendo as palavras desse último autor (op. cit. p, 229): Es muy importante el célebre pasaje del Crátilo (400c =OF 8) de Platón sobre la etimología de sw=ma, através de la cual se ofrecen varias interpretaciones de la naturaleza del cuerpo: unos dicen que el cuerpo es la tumba (sh=ma) del alma, y que también se llama así porque se expresa (shmai/nei) a través de él; pero Sócrates interpreta que oi9 a0mfi\ 0Orfe/a, esto es, los seguidores de Orfeo le aplicaron tal nombre como fuera un envoltorio, resguardo (de sw/zw) o prisión del alma. Para esta interpretación utiliza parte de la doctrina órfica: w9v di/khn didou/shv th=v yuxh=v, w[n dh\ e3neka di/dowsin, tou=to de\ Peri/bolon e1xein, i3na sw|/zhtai, desmethri/ou ei0ko/na. ei]nai ou]n th=v yuxh=v tou=to, w3sper au0to o0noma/zetai, e3wv a1n e0ktei/sh| ta\ o0feilo/mena [to\] sw=ma, kai\ ou0de\n dei=n para/gein ou0d’ e3n gra/mma: “[creo que los órficos le han aplicado al cuerpo el nombre de sw=ma sobre todo] porque el alma tiene que pagar una pena por sus culpas y [creo que] tiene esta envoltura para resguardarse, semejante a una prisión. Y esto es el cuerpo respecto al alma [‘salvamento’ = sw=ma], como su nombre indica, hasta que pague sus deudas, y no hay que cambiar nada, ni una letra” (es decir: esta explicación sería mejor que las anteriores, que obligaban a cambiar sw=ma en sh=ma). Si Sócrates sólo menciona a los órficos a propósito de la última etimologia es claro que las anteriores (al menos la de sw=ma – sh=ma) también caen en su órbita. 188 Antonio Santamaría Alvarez(2003, p. 231) observa que Xenofonte, em Ciropédia VIII, 7.20-1, faz uma longa explicação sobre a concepção presente no fragmento Bowra116. Confira as palavras do prosador grego: [20] Ou0 de\ o3pwv a1frwn e1stai h9 yuxh/, e0peida\n tou= a1fronov sw/matov di/xa ge/nhtai, ou0de\ tou=to pe/reismai: a0ll’ o3tan a1kratov kai\ kaqaro/v o9 nou=v e0kkriqh|=, to/te kai\ fronimw/taton au0to\n ei0ko\v ei]nai. dialuome/nou de a0nqrw/pou dh=la/ e0stin e3kasta a0pi/onta pro\v to\ o9mo/fulon plh=n th=v yuxh=v: au3th de\ mo/nh ou1te parou=sa ou1te a0piou=sa o9ra=tai. [21] e0nnoh/sate d’, e1fh, o3ti e0ggu/teron me\n tw=n a0nqrw/pwn qana/tw| ou0de/n e0stin u3pnou: h9 de\ tou= a0nqrw/pou yuxh\ tote\ dh/pou qeiota/th katafai/netai kai\ to/te ti tw=n mello/ntwn proora=|. Sobre essa referência, R. E. Dodd’s (2002, p. 139) afirma que Xenofonte, fazendo uso de uma prosa simples, apresentou a mesma doutrina expressa por Pindaro e ofereceu interpretações lógicas que a poesia não poderia expressar em razão da natureza de seu gênero literário. 221

a alma porque, na verdade, a crença órfica seria de que na alma humana estariam presentes duas “inclinações” oriundas dessas duas naturezas. Nota o teórico que, para os órficos, não só a origem do eidolon era divina, mas também o era sua natureza, concepção que Píndaro, talvez influenciado pela crença délfica de separação essencial entre deuses e homens189, não adota a fim de evitar a “”:

Isto é, no orfismo, se produz uma sobreposição de duas concepções duais do ser humano. Conjecturalmente, pode se supor que no orfismo originário acreditava-se na dupla natureza dionisíaca-titânica do homem e adotou-se a dualidade alma-corpo (talvez juntamente com a reencarnação) por infuência do pitagorismo. Lamentavelmente, carecemos de provas documentais para provar tal conjectura (Antonio Santamaría, p. 235. Tradução nossa).

O fragmento 116190 de Píndaro faz parte de um grupo de fragmentos denominados por Daniel Torres (2007, p. 360) “fragmentos escatológicos”, e foram transmitidos, segundo o estudioso, em obras de autores191 de períodos distintos, como Platão, Plutarco e Clemente de Alexandria. A doutrina nele expressa, conforme Antonio Santamaría Alvarez (op. cit., p. 227), é uma das quatro principais proposições da escatologia pindárica, a saber, a duplicidade do homem ─ composto de corpo e alma ─, a reencarnação da alma, a distribuição de prêmios e castigos em outra vida e o juízo post-mortem da alma. Evidencia-se, no supracitado fragmento, a doutrina em que se concebia o homem como um ser composto de dois elementos que se opunham, o corpo (sw=ma) e a “alma” (ei1dwlon), posto que o primeiro (sw=ma) perece com a morte, enquanto o segundo (ei1dwlon) segue vivo. Não há indicação, porém, de um local para onde se dirige o eidolon após se separar do corpo, mas, tendo em vista que o poeta partilhava a visão tradicional do mundo dos mortos192, pode-se supor que o eidolon também habitava o Hades. Note-se que eídolon é um hápax e está sendo empregado como

189 Convém observa que o autor não esclarece qual era a “crença délfica” mencionada por ele, mas pode se supor que a distinção apontada, é a mesma defendida por Erwin Rohde como o fundamento da religião grega, isto é, a distinção entre a natureza mortal dos homens e a imortal dos deuses. Assim, mesmo que a alma humana tenha se originado de um elemento divino, sua naturezea se difere daquela dos deuses porque o homem deve morrer para que a alma separada sobreviva. Essa é a principal característica do homem grego a mortalidade. 190 A referência utilizada por Daniel Torres 131b corresponde à Bowra 116. 191 Os fragmentos 129, 130, 131a e 131b foram transmitidos por Plutarco, o 133 por Platão e o por Clemente de Alexandria. Os escólios também são considerados por Daniel A. Torres como importantes para que se compreenda algumas doutrinas escatológicas pindáricas. Observe que os são diferentes daqueles presentes no texto porque Daniel Torres utiliza uma edição diferente. 192 Confira página 202 dessa tese. 222

sinônimo de psykhé cujo destino era o reino sombrio dos mortos onde habitaria, de modo definitivo, após ter recebido o morto os ritos funerários devidos, concepção que prevalece nos Poemas Homéricos, na obra de Hesíodo e de outros poetas do período posterior. Em alguns poemas de Píndaro, no entanto, não está expressa a noção do Hades como morada definitiva da psykhé, pois neles se transmitem concepções novas, talvez decorrentes da mencionada noção de imortalidade da alma (eídolon) e de sua origem divina, características mencionadas no fragmento Bowra 116, conforme se pôde observar. No fragmento 127, por exemplo, menciona-se que a almas daqueles que viveram de forma piedosa não ficarão encerradas definitivamente no Hades193.

oi]si de\ Fersefo/na poina\n palaiou= pe/nqeov de/cetai, e0v to\n u3perqen a3lion kei/nwn e0na/tw| e1tei+ a0ndidoi= yuxa\v pa/lin, e0k ta=n basilh=ev a0gauoi/ kai\ sqe/nei kraipnoi\ sofi/a| te me/gistoi a1ndrev au1cont’: e0v de\ to\n loipo\n xro/non h3roev a9- gnoi\ pro\v a0nqrw/pwn kale/ontai E a todos de quem Perséfone recebeu expiação pela antiga aflição, no nono ano, para o sol de cima as almas daqueles eleva novamente, delas crescerão reis ilustres e homens rápidos em força e maiores em sabedoria; serão chamados, no futuro, heróis célebres entre os homens. Frag. Bowra 127

O fragmento é transmitido no diálogo Mênon 81C, em que, ao discutir a origem do conhecimento, Platão afirma que ouviu coisas importantes da parte de homens, mulheres sábias em coisas divinas (peri\ ta\ qei=a pra/gmata), sacerdotes e sacerdotisas que cuidavam com zelo de suas funções. Afirma o filósofo que, também Píndaro, entre

193 O trecho do diálogo em questão trata da teoria do conhecimento. Sócrates e Mênon estão discutindo as possíveis fontes do conhecimento. A fim de refutar um argumento sofista, Sócrates evoca coisas que ouviu da parte de mulheres e de homens sábios e argumenta, com base nas informações, que o conhecimento é uma recordação de algo já contemplado anteriormente. 223

outros poetas que são divinos (o3soi qei=oi\ ei0sin), dizia que a alma era imortal, pois o homem ora chega ao fim, isto é, morre, ora nasce de novo. A concepção de que a psykhé renasce  expressa no fragmento pela ideia de retorno à luz do sol de cima, conforme os versos e0v to\n u3perqen a3lion kei/nwn e0na/tw| e1tei / a0ndidoi= yuxa\v pa/lin  como nota Antonio Santamaría (2003, p. 237), é denominada normalmente na literatura grega, pelos seguintes termos: metemyu/xwsiv, metenswma/twsiv e paliggenesi/a, traduzidos os três por transmigração, reencarnação ou metempsicose. O autor observa, ainda, que essa concepção é uma das mais características e inovadoras doutrinas das religiões de mistérios ainda que não se tenha certeza de que ela tenha sido formada na religião grega ou se constitua um empréstimo oriundo de outra cultura194. Infelizmente, no passo em questão, Platão omite quem são os homens e mulheres sábias e não dá maiores esclarecimentos sobre a identidade dos sacerdotes e sacerdotisas que conheciam certas doutrinas entre as quais destaca o renascimento. Essa omissão permite a Antonio Santamaría (2003, p. 142) supor que se trate dos órficos, embora ele reconheça que não há como afirmar que no Orfismo se professasse a doutrina da reencarnação (metempsicose), considerada uma das principais características das religiões de mistérios. Outro aspecto que suscita questionamento é a oração o3soi qei=oi\ ei0sin (todos quantos são divinos) porque não há explicação do motivo pelo qual os poetas, entre os quais está Píndaro, são considerados divinos (qei/oi). A menção do filósofo aos poetas para legitimar a argumentação também soa um tanto estranha, pois, em mais de uma

194 Confira as palavras de Antonio Santamaria sobre a discussão do assunto: “Son varios los que defienden que se originó desde la propia religión griega, de manera paralela a lo que ocurrió en la India, como PEARSON (1921, 432) o LONG (1948, 10-12). Para BURNET (1930, 100-10) en ambos lugares sería una elaboración de la creencia em el parentesco de hombres y animales, aunque el salto de una idea a otra no parece tan evidente y fácil. En opinión de NILSSON (1941b, 12), la transmigración sería una inferencia lógica realizada por los griegos, lógicos natos: primero se diferenció el alma del cuerpo, luego se preguntaron de dónde venía aquélla y la respuesta lógica fue que del Hades, adonde iban a parar las almas de los difuntos. DODDS (1960, 145ss.) cuestiona con razón que la lógica sea una motivación en el campo de las creencias religiosas. PHILIP (1966, 168) sigue a NILSSON, pensando que fue un producto de la evolución de la noción de personalidad. Otra corriente de estudiosos ha buscado su origen en una civilización extranjera. Tracia, asociada al culto de Dioniso, ha sido considerada por algunos (ROHDE 1893 = 1995, 497-500) como el posible lugar de origen de la creencia. Pero los testimonios aducidos (Hdt. 4, 95, que cuenta la relación del tracio Zalmoxis con Pitágoras; Eur. Hec. 1266-69; más tardío: Pomp. Mela 2, 18) no demuestran que en Tracia se creyera en la transmigración antes que en Grecia (cfr. LONG 1948, 7-8). César se la atribuye a los galos (Bell. Gall. 6, 14): “In primis hoc [sc. Druides] voluntpersuadere: non interire animas, sed ab aliis post mortem transire ad alios, atque hoc maxime ad virtutem excitari putant, metu mortis neglecto”. 224

vez, nos diálogos platônicos, a sabedoria desses personagens não se apresenta como totalmente digna de crédito195. O fragmento 127 é interpretado por Larry J. Alderikin (1981, p. 72) em relação à doutrina da natureza humana, na qual participam um elemento dionisíaco e outro titânico, porque há evidência, nos versos, da menção de uma força exterior que atua para que a alma exista no corpo. O pesquisador, porém, observa que não há nenhuma referência que permita identificar que a doutrina expressa seja órfica. Para o citado pesquisador, H. J. Rose (apud. Larry J. Alderikin, op. cit.; p. 72) acentua que a doutrina mencionada é órfica e nota que a palavra pe/nqeov (aflição), utilizada no primeiro verso, se refere mais a um sentimento de aflição do que a sua causa. O sentimento expresso seria principalmente o de aflição pela morte de alguém. Nesse passo, o termo indicaria a aflição sofrida por Perséfone em um tempo já distante como se pode depreender do termo palaiou= que compõe o sintagma. O termo aflição não pode referir-se a um sentimento causado na esposa de Hades por uma atitude humana, pois, na religião grega, não existia a noção de que o homem pudesse atingir um deus por meio de suas ações. Por esse motivo, nota o autor que a aflição só pode estar relacionada com história de Perséfone, o seu rapto por Hades. A única explicação, na opinião de H. J. Rose (apud Larry J. Alderikin 1981, p. 73) é relacionar a aflição de Perséfone com a morte de Dioniso, seu filho, morto pelos Titãs. Essa relação, afirma a autora, permite concluir que o fragmento é um antigo documento alusivo a uma concepção teológica órfica na qual existia uma doutrina de “pecado original” conhecida por sacerdotes, sacerdotisas e, igualmente, por Píndaro e outros poetas conforme menciona Platão, e que o estudioso considerou figuras religiosas órficas. Afirma Larry J. Alderikin (op. cit., p. 73) a respeito dessa tese que, se esses argumentos de H. J. Rose estiverem corretos, pode-se concluir que Píndaro conhecia a teoria da “origem titânica” da humanidade, caso contrário não haveria como conceber que os homens partilhassem da culpa que teria afligido Perséfone que recebia por esse motivo expiação pela “antiga aflição”196.

195 Confira, por exemplo, o diálogo Íon em que a figura do poeta e seu conhecimento são motivos de troça. 196 Segundo Larry J. Alderikin (1981, p. 74.), podem ser deduzidos ainda outros seis argumentos com base no fragmento 133: “ The fragment from Pindar does, however, justify six other conclusions for this study of Orphic Anthopology. First, human being are subject to events which transpired prior to their existence and for which thay must be pay a penality; the gods envolved ara , Dionysos and the . This conclusion parallels the earlier contention that “titanic nature” is not interior to humans as 225

Quanto ao tempo de permanência no Hades, antes que a psykhé retornasse para a luz do sol de cima: e0v to\n u3perqen a3lion kei/nwn e0na/tw| e1tei+, Larry J. Alderikin (1981, p. 73.) considera que há no verso uma alusão ao período de oito anos197 de banimento por crime de ofensa grave ou de assassinato. Convém observar ainda que a ideia expressa nesse fragmento com a menção ao sol de cima (e0v to\n u3perqen a3lion), lugar para o qual as psykhaí retornam, se relaciona com outra noção apresentada no fragmento 129, no qual se atesta a existência de um sol que brilha no mundo subterrâneo:

toi=sin la/mpei me\n me/nov a0eli/ou ta\n e0qa/de nu/kta ka//tw, foinikoro/doiv e9ni\ leimw/nessi proa/stion au0tw=n kai\ liba/nwn skiara=n < > kai\ xrusoka/rpoisin be/briqe kai\ toi\ me\n i3ppoiv gumnasi/oisi toi\ de\ pessoi=v toi\ de\ formi/ggessi te/rpontai, para\ sfisin eu0anqh\v a3pav te/qalen o1lbiov: o0dma\ d’ e0rato\n kata\ xw=ron ki/dnatai ai0ei\ .. qu/mata meignuntwn puri\ thlefanei= [ ] eoi moi=r’ e1nqa. [ [ ] dw/roiv bouqu. [ [ ] fan a1loxo/n [

part of their nature but resides in the divine word and is, thus, exterior to the human. Here, too, Persephone and Dionysos are not “in” humans but it is to Persephone that the penality is paid. In both cases, the human is subject to what is outside or other than thenselves. Second, there is a obvious indication that the body and soul are separable and a clear indication that the soul undergoes both a a judgment and journey, but whether there was a cultic practice underlying Pindar’s words is beyond the reach of our information, although Plato does make the suggestion. Third, the iniciatory pattern of the soul’s experience is clear, for the destiny of the soul is distant from its bodily existence: the soul have a existence beyond its body. Fourth, we have the Plato’s words that Pindar’ lines referred to many births of the soul, but nothing additional to the brief mantion, and no hint elsewere in the dialoge of this significance other than as a metaphorical way of speaking of anamnesis. Fifth, we have also found a partial resolution to the problem of the soul’s entrance to the body: a deed, a prior mans’ existence and performed by the gods, explaind for the orphics the present existence of man. And finaly, and perhaps the most importly is the clear statement that the “salvation” offered by the orphics included both Persephone’s acceptance of men and her “soteriological” interest in them.”. 197 Embora o pesquisador faça essa observação, não há menção alguma de dados que corroborem sua afirmação. 226

[ ] an: [ ] pro\v [ 1O] lumpon [

Para eles brilha a força do sol durante a noite aqui embaixo, e há nos prados de rosas escarlates um assentamento deles e de árvores de incenso sombrias < > e está carregado de árvores de frutos dourados e enquanto alguns se alegram com cavalos e ginástica, outros se alegram com dados e outros, ainda, com liras, entre eles de tudo florido sempre florece feliz e um odor amável se espalha pela região †sempre que (eles) misturam no fogo que se vê de longe todo tipo de oferendas nos altares dos deuses. Frag. Bowra 114

O primeiro verso, toi=sin la/mpei me\n me/nov a0eli/ou (para eles brilha a força do sol) introduz uma noção positiva da vida no Hades198, embora não haja referência explícita sobre esse local que só pode ser inferido do advérbio ka/tw presente no segundo verso, ta\n e0qa/de nu/kta ka//tw (durante a noite aqui em baixo). Essa concepção pode ser interpretada como um distanciamento da ideia presente na épica segundo a qual, em mais de um momento, ao morrer, a psykhé deixa a luz do sol e parte gemendo para o mundo sombrio dos mortos. É conveniente perceber que, no fragmento 133, para indicar que o homem renascerá, apresenta-se a imagem do sol como referência ao status do homem que será enviado para a luz do sol199. Estar vivo é, pois poder gozar da luz do sol. Esse lugar onde o sol brilha durante a noite está destinado às pessoas piedosas, ideia que , segundo Daniel A. Torres (2007, p. 362), reitera concepções apresentadas pelo poeta na segunda parte da Olímpica II, ou seja, precisamente, a partir do verso

198 Koniaris (apud. Antonio Santamaría Alvarez, 2003. P. 176) observou que Píndaro apresentava a vida sobre a terra mais infeliz que a existência no Hades. 199 Confira as palavras de Erwin Rohde (1925, p. 3) sobre essa concepção. 227

56b ao verso 80, em que as concepções escatológicas apresentadas têm atraído o interesse de vários pesquisadores:200.

[...] ei0 de/ nin e1xwn tiv oi]den to\ me/llon, 56 o3ti qano/ntwn me\n e0n- qa/d’ au0tik’ a0pa/lamnoi fre/nev poina\n e1teisan  ta\ d’ e0n ta|=de Dio\v a0rxa|= a0litra\ kata\ ga=v dika/zei tiv e0xqra=| lo/gon fra/saiv a0na/gka|: 60 D' i1saiv d’ de\ nu/ktessin ai0ei/ i1saiv d’ a9me/raiv a1lion e1xontev, a0pone/steron e0sloi\ de/kontai bi/oton, ou0 xqo/na ta- ra/ssontev e0n xero\v a0kma|= ou0de\ po/ntion u3dwr keina\n para\ di/aitan, a0lla\ para\ me\n timi/oiv 65 qew=n oi3 e1xairon eu0orki/aiv

200 Como não se pretende uma abordagem de toda a ode, considerou-se mais adequado fazer uso das palavras de Antonio Santamaria (2003, p. 21) que introduz o tema com muita clareza: La Olímpica Segunda de Píndaro celebra, junto con la Tercera, la victoria de Terón en la carrera de cuadrigas o carros de caballos () de los Juegos Olímpicos del año 476 a. C. (Olimpíada 76,4). Terón fue tirano de Agrigento (la antigua 1Akragav) del 488 al 472, fecha de su muerte. Parece que éste se encontraba en Agrigento, celebrando lãs Teoxenias, cuando la victoria sucedió, según um escolio: a1gontov de\ Qh/rwnov th\n e9orth\n tw=n Dioskou/rwn kai\ 9Ele/nhv e0gge/lqh h9 ni/kh (sch. O. 3 p. 105, 14-8 Drachmann). Esto se explica porque el auriga no era el propio Terón, sino Nicómaco, que solía competir para el tirano y su hermano Jenócrates. En la Ístmica Segunda, que celebra una victoria de este último, se nombra a Nicómaco (sin duda por ser el auriga en tal competición) y se recuerdan los triunfos que logró en Atenas (para Jenócrates, vv. 18-22) y en Olimpia (para los hijos de Enesidamo, es decir, Jenócrates y Terón, vv. 23-9). Esta victoria en Olimpia tuvo que ser la del 476. Que Jenócrates participara también de este triunfo olímpico del 476 es inexacto, pues ya Píndaro (en O. 2, 48-9) dice que en Olimpia obtuvo el galardón Terón solo (au0to/v), y así lo señala el escolio a I. 2, 28b, confirmando que Nicómaco fue auriga para Terón en tal ocasión (“los acogieron entre ellos a Nicómaco” o3te Qh/rwni h9nio/xei ). No hay duda de que la oda se ejecutó en Agrigento y no en Olimpia, pues Píndaro No hay duda de que la oda se ejecutó en Agrigento y no en Olimpia, pues Píndaro habla de ésta en pasado y desde la lejanía: 0Olumpi/a| me\n ga\r au0to/v [sc. Qh/rwn] / ge/rav e1dekto -9). Parece ser que el poeta estuvo presente en los Juegos Olímpicos del 476 a. C., pues vio la victoria de Agesidamo de Locros, como dice en O. 10, 99-105, y luego visito Sicilia (cfr. O. 1, 16-7; P. 1, 17-28; v. BOECKH 1821, 114). Si bien la expresión de los vv. 90-2 “apuntando a Agrigento proclamaré mi palabra de honor” ( e0pi\ toi/ 0Akra/ganti tanu/saiv /au0da/somai e0nor/kion lo/gon), haría pensar que Píndaro se encontraba fuera de Agrigento, es muy probable que se refiera al momento de la composición, no de la ejecución, y que, estando en Sicilia, acudiera a la celebración de Terón como un invitado privilegiado. PUECH (1949, 34) considera probable que Píndaro asistiera a su ejecución em Agrigento, pero admite la posibilidad de que fuera encargada y escrita de inmediato para ser ejecutada en Olimpia, por el comienzo y por los vv. 90-2. Sin embargo, esto parece del todo descartable, como se indicará a continuación.

228

a1dakrun ne/montai ai0w=na, toi\ d’ a0proso/raton o0kxe/onti po/non. o3soi d’ e1to/lmasan e0stri/v e9kate/rwqi mei/natev a0po\ pa/mpan a0di/kwn e1xein yuxa/n, e1teilan Dio\v o9do\n para\ Kro-/ 70 nou tu/rsin: e1nqa maka/rwn na=son w0keani/dev au]rai peripne/oisin: a1nqema de\ xrousou= fle/gei, ta\ me\n xerso/qen a0p’ a0glaw=n dendre/wn, u3dwr d’ a1lla fe/rbei, o3moisi tw=n Xe/rav anaple/konti kai\ stefa/nouv 75 boulai=v e0n o0rqai=v 9Rdama/nquov, o2n path\r e1xei me/gav e9toi=mon au0tw=| pa/redron, po/siv o9 pa/ntwn 9Re/av u9pe/rtaton e0xoi/sav qro/non. Phleu/v te kai\ Ka/dmouv e0n toi=sin a0le/gontai: 0Axille/a t’ e1neik’ e0pei\ Zhno\v h]tor litai=v e1peise, ma/thr: 80

[...] se quem possui a riqueza conhece a as coisas que virão, pois, daqueles que morreram aqui imediatamente os espíritos impotentes pagam as faltas  e os delitos cometidos nesse reino de Zeus alguém os julga sob a terra, declarando uma sentença com hostil necessidade. 60

Em noites sempre iguais em dias iguais tendo a luz do sol, uma vida menos penosa os nobres recebem, a terra e a água do mar não revolvendo com a força de seus braços, ao longo de uma existência vazia, mas junto aos honrados 65 pelos deuses, enquanto aqueles que se alegram com a fidelidade 229

ao juramento mantêm uma vida sem lágrimas, os outros suportam um sofrimento que não se pode ver.

E todos quantos ousaram, por três vezes, permanecendo em ambos os lados, afastar completamente a alma de injustiças, 70 perfazem o caminho de Zeus até a fortaleza de Cronos; lá, em volta da Ilha dos Bem-Aventurados, sopram as brisas oceânicas; flores de ouro brilham, enquanto umas da terra, oriundas das árvores luminosas, outras a água as nutre; dessas entrelaçam com grinaldas mãos e coroas,

sob as justas sentenças de Radamanto, 75 a quem o grande pai de todos tem como seu ilustre assistente, o esposo de Reia, a que ocupa o trono mais elevado. Peleu e Cadmo são estimados entre eles. E a mãe trouxe Aquiles, depois que, com súplicas, persuadiu o coração de Zeus. 80

Olimp. II, 56b-80

A Olímpica II, pelo fato de conter uma elaborada visão da vida post-mortem, entre os versos 56b e 80, conforme Frank J. Nisetich (1988, p. 1), é o poema de Píndaro que mais tem suscitado investigação por parte de estudiosos201 interessados principalmente nos elementos que seriam oriundos das religiões de mistérios. A reflexão aqui proposta para a compreensão de aspectos da escatologia em Olímpica II será norteada pela noção de que Píndaro não se referia ao destino final de todos os homens, mas restringia-se ao de alguns poucos, concepção que evidencia o

201 Particularmente, para esse autor, interessa entender o poema em termos poéticos e religiosos, ou seja, como Píndaro concilia a concepção de fama imortal com a noção de vida imortal, pois, em sua opinião, esses dois aspectos estão intimamente relacionados, fato que deve ser observado a fim de evitar que o poema seja distorcido ao ser interpretado de maneira muito literal. 230

caráter aristocrático da poesia pindárica. Assim, a abordagem difere daquelas propostas por alguns autores como, por exemplo, Daniel A. Torres e Antonio Santamaría para os quais há no poema uma espécie de democratização do mundo dos mortos, principalmente da Ilha dos Bem-aventurados. Quanto à concepção aristocrática, o segundo verso da ode é bastante esclarecedor “ti/na qeo/n, ti/n’ h3rwa, ti/na d’ a1ndra keladh/somen:” (“qual deus, qual herói, qual homem cantaremos?”) porque contém uma pergunta retórica a fim de despertar a atenção da audiência para a figura que será contemplada no canto. Vale notar que o verbo kelade/w (keladh/somen), segundo Pierre Chantraine (p. 511), é um denomintativo de ke/ladov cujos significados, ruído, som de pessoas lutando ou disputando algo, som de gritos ou de uma lira, são registrados nos Poemas Homéricos202 em contextos de alarido geral. No epinício pindárico, o emprego desse termo parece evocar a noção de uma celebração203 que devia soar de forma mais atrativa e ruidosa possível para a audiência. Essa é a noção que o verbo empregado por Píndaro encerra, parecendo despertar os ouvintes não só para o tom solene do poema, mas também a retumbância requerida pelo momento. No terceiro verso, ao responder a pergunta proposta, destaca-se, primeiramente, a figura de Zeus, o que parece ser uma referência à tradição poética anterior, ou seja, à poesia homérica e à hesiódica. Convém notar que, em Teogonia, Zeus é exaltado como a primeira divindade a ser cantada depois das Musas204: deu/teron au]te Zh=na, qew=n Pate/r’ h0de\ kai\ a0ndrw=n (depois, de novo, Zeus, pai dos deuse e dos homens). Em seguida, destaca-se na ode a figura de Héracles como aquele que instituiu os Jogos Olímpicos. Sobre Héracles, é conveniente observar que seu destino final é narrado em Teogonia e em Odisseia,205 poemas em que se narra a imortalização do herói alçado à condição de imortal passando a habitar o Olimpo entre os demais deuses, depois de ter cumprido as tarefas que lhe foram impostas. Essa menção a Héracles parece

202 Confira o emprego desse termo e seus cognatos em Ilíada VI, 542; XVIII, 310 e XXIII, 869, e em Odisseia IX, 547 e XVIII, 402 e 530. 203 Convém notar que Hesíodo utiliza verbos diferentes para expressar formas de cantos, por exemplo, em Teogonia, no verso 1, encontra-se a0ei/dein e, no verso 33, u3mnein, ambos dirigidos às divindades. Nos Poemas Homéricos, o verbo a0ei/dein se refere aos feitos gloriosos dos heróis, como em Ilíada I, 1 e Odisseia VIII, 73. 204 Teogonia, 47. Embora a figura de Zeus não seja exaltada nos Poemas Homéricos, de forma direta, o Cronida é a dividadade responsável pelos grandes eventos cantados pelo aedo. Convém notar que os eventos narrados na Ilíada ocorreram por determinação do pai dos deuses de dos homens, conforme o canto I, verso 5: Dio\v d’e0telei/to boulh/, (Cumpriu-se a determinação de Zeus,). 205 Confira as páginas 158-61 dessa tese. 231

preparar a audiência para a figura a ser cantada, Terão de Agrigento, deixando entrever que o tirano, semelhante ao herói, também terá um destino diferenciado em razão de seus feitos206. De fato, dos versos 49 ao 55a de Olímpica II, menciona-se o feito heroico de Terão e as vantagens advindas de sua vitória na quadriga e, em consequência, a partir do verso 55b, qual será o destino post-mortem daqueles que procederam como o tirano que não é citado diretamente, talvez porque, como observa Antonio Santamaría (2003, p.172), o poeta julgasse inapropriado mencionar a morte do patrono no contexto da ode celebrativa e considerasse “hybris” assegurar que Terão seria “salvo” e estaria entre importantes heróis do passado, explicitamente, Cadmo, Peleu e Aquiles, o melhor dos Aqueus. O conteúdo escatológico de Olímpica II se inicia no verso 55b; ei0 de/ nin e1xwn tiv oi]den to\ me/llon (se quem possui a riqueza conhece as coisas que virão) em que o pronome nin refere-se ao termo plou=tov empregado no verso 52; o9 ma\n plou=tov a0retai=v dedaidalme/nov (certamente a riqueza, adornada de virtudes) e indica que a riqueza é o traço distintivo daquele que conhece as coisas que virão, restringindo, desse modo, os benefícios advindos do conhecimento das concepções escatológicas a alguns poucos privilegiados. Nesse sentido, é pertinente observar que o termo plou=tov poderia estar sendo empregado com a acepção de ma/karev que, na poesia homérica207, designa não somente os deuses, mas os homens vivos que se distinguiam dos outros pela riqueza e pelo poder e, na poesia hesiódica, refere-se aos homens da Raça de Prata que depois de mortos são “u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi/” (bem-aventurados mortais subterrâneos). Em Trabalhos e Dias, o termo é usado para qualificar o lugar para onde alguns heróis da quarta Raça são levados vivos: e0n maka/rwn nh/soisi par’ 0Wkeano\n baqudi/nhn, (na Ilha dos Bem-aventurados junto à fronteira do Oceano). Para a oração que compreende a segunda metade do verso 55b de Olímpica II (oi]den to\ me/llon) opta-se, nessa tese, pela tradução do termo to\ me/llon por “as coisas que virão”, em detrimento da tradução conhece o futuro, conforme propõem alguns tradutores como, por exemplo, Willian H. Race, Hugh Lloyd-Jones, Antonio Santamaría Alvarez e Daniel A. Torres. A tradução proposta salienta que o termo

206 De fato, os versos seguintes que introduzem a figura de Terão refletem a concepção expressa no episódio das duas cidades narrado em Trabalhos e Dias, versos 225-37. A prosperidade da cidade e o bem-estar de seus cidadãos dependem da prática da justiça. 207 Confira as informações sobre o termo mákares nas página 179-187 dessa tese. 232

me/llon pode aludir às doutrinas escatológicas conhecidas somente pelos iniciados nas religiões de mistérios que teriam uma existência post-mortem diferenciada daquela dos demais homens, concepção já assinalada. Essa interpretação é corroborada pelo verso seguinte iniciado pela conjunção o#ti que introduz a explicação sobre o conteúdo do termo me/llon, isto é, a expiação post-mortem das faltas cometidas pelos espíritos impotentes , a0pa/lamnoi fre/nev dos que morreram. O sintagma a0pa/lamnoi fre/nev mereceu a atenção de Hugh Lloyd-Jones (1984, p. 252) que, ao comentá-lo, afirmou que a maior parte dos pesquisadores o interpreta em relação aos versos posteriores, a saber, aqueles referentes ao pagamento de penalidade por faltas cometidas que são julgadas por alguém. Nota o autor que aqueles que adotam esse posicionamento traduzem o termo a0pa/lamnoi por “wicked” embora, em geral, concordem que esse não é o melhor significado e assinalem a tradução “helpless” a mais adequada208. Para o autor o termo a0pa/lamnoi está fundamentado em pala/mh ─ palavra considerada pelo referido estudioso, sinônimo de a0mh/xanov, derivada de mhxanh/ ─ e não expressa a noção que a palavra “wicked” transmite. A fim de justificar sua interpretação, Hugh Lloyd-Jones utiliza, como exemplo, uma passagem de outro poema de Píndaro, a saber, o verso 59 da Olímpica I que celebra a vitória de Hierão em uma corrida de cavalos realizada em 476 a. C: “e1xei d’a0pa/lamon bi/on tou=ton e0mpedo/moxqon” (e ele tem essa vida impotente de infindável dor). De fato, nesse verso, o poeta utiliza a palavra com uma acepção que, de modo algum, se aproxima do significado da palavra inglesa “wicked”. O pesquisador comenta ainda, a argumentação de seus oponentes que utilizam quatro passagens209 em que o termos a0pa/lamnon ou a0pa/lamna parecem significar “wicked”. Hugh Lloyd-Jones lembra que nessas passagens esses termos se referem sempre à “coisas” sendo equivalente a a0mh/xana, ou seja, coisas sobre as quais nada pode ser feito. Na verdade, a objeção do autor é pertinente, pois, nos exemplos citados por seus opositores, o significado do termo se distancia muito daquele empregado no poema de Píndaro, ora ele indica um sofrimento inevitável, um trabalho inútil, ora um ato estouvado. Esses usos, portanto, diferem daquele de Olímpica II em que

208 Optou-se por manter as palavras inglesas no texto porque há uma variedade de possibilidades de tradução em língua portuguesa e isso dificultaria a apreensão da argumentação de Hugh Lloyd- Jones. 209 As respectivas passagens são as seguintes: Eurípides, Ciclope 597-8; Sólon, fragm. 27, 11-12 West; Theognidea 279-82 e 481. 233

a0pa/lamnoi qualifica o substantivo espírito (fre/nev). Para Hugh Lloyd-Jones não é possível reduzir o significado da forma ao de um adjetivo que denota simplesmente uma coisa ruim. A solução proposta por Hugh Lloyd-Jones (1984, p. 252) é ancorada na interpretação de Erwin Rohde segundo o qual a psykhé do morto é considerada débil, não dotada de força. Valendo-se dessa concepção, o pesquisador afirma que, na morte, há um enfraquecimento das atividades mentais do homem, fre/nev (phrénes). Para o estudioso210, a morte é, pois, a pena referida nos versos 58-9 da Olímpica II: au0tik’ a0pa/lamnoi fre/nev/poina\n e1teisan (imediatamente, os espíritos impotentes pagam as faltas). Assim, para Hugh Lloyd-Jones, se a pena consiste na morte, não há motivos para considerar que a pena paga por aqueles que cometeram crimes e são julgados sob a terra seja a mesma. 211 Essa interpretação de Hugh Lloyd-Jones difere daquela proposta por Antonio Santamaría (2003, p. 172) que criticou os estudos de outros pesquisadores sobre a Olímpica II argumentando que, embora esse poema tenha recebido muita atenção, a maior parte dos estudos não ofereceram mais que paráfrases ou comentários superficiais respaldados em dados existentes em alguns trenos. Para o pesquisador, na melhor das hipóteses, tenta-se esclarecer algumas expressões e problemas pontuais. Por esse motivo, Antonio Santamaría propõe uma interpretação que supra a lacuna deixada pelos pesquisadores ao interpretarem o poema e212inicia (op. cit., p. 172) seu comentário sobre a escatologia em Olímpica II afirmando que o poeta, basicamente, descreve o processo pelo qual a alma passa depois da morte e os diferentes destinos que ela pode ter. Essa alusão, implicitamente, se referiria a Terão que possuiria as qualidades necessárias para que seu destino post-mortem fosse diferenciado: “o ser e0slo/v, o respeito aos juramentos, a prática da justiça, o bom emprego das riquezas”.

210 Confira as palavras do autor:“The penalty consists in their minds becoming feeble, that is to say, in death. “Hugh Lloyd-Jones (1984, p. 252) 211 A opinião de Hugh Lloyd-Jones é que não há relação entre a pena a ser paga por todos (poi/na) e os delitos (a0lita/) que serão julgados. A pena referida deve ser paga por todo mortal e consiste na própria morte e no enfraquecimento da consciência da psykhé do morto. 212 Con la intención de subsanar las carencias e insuficiencias de la investigación, trataré de efectuar un análisis sistemático de la escatología expuesta en la Olímpica Segunda, basándome en las explicaciones y conclusiones de aspectos concretos contenidas en el comentario y en textos de similar naturaleza, especialmente de los fragmentos de lós Trenos 96 de Píndaro (concretamente los nn. 128d, 128e, 129- 131a-130, 131b, 13397, 137), com el fin de clarificar muchos de los puntos oscuros o incompletos de la oda. (Antonio Santamaria, 2003, p. 172). 234

A concepção escatológica presente nos primeiros versos leva o autor a questionar que motivo teria levado Píndaro a iniciar o tema, a partir do verso 56b, refererindo-se à pena que deve ser paga pelas almas dos que morreram. Para o pesquisador, essa afirmação do poeta deve ser entendida considerando os versos precedentes em que se exalta o valor da riqueza, atributo possuído por Terão que, em consequência, possui o conhecimento das coisas “futuras”. A referência ao tirano é mais evidente porque, segundo o autor, Terão acreditava nas doutrinas de mistérios213. Embora Antonio Santamaría tenha deixado claro que pretende oferecer uma interpretação das concepções escatológicas presentes em Olímpica II, tendo em vista suprir a carência de estudos mais sólidos sobre o tema, a reflexão desenvolvida por ele, pelo menos quanto aos primeiros versos, limita-se a discutir, como se pode observar, os significados dos termos poina/ e ti/nw concluindo que eles se referem a uma ameaça:

A primeira frase é um aviso: "os culpados pagam", com termos monetários a pena: poina/ (o que significava no início "multa por crime de sangue"), e ti/nw, «remuneração». A riqueza desperdiçada vai acabar por ser uma fonte de dívidas que não pode ser paga, a não ser com punição no outro mundo. Portanto, essa espécie de ameaça atua como admoestação moral ao vencedor olímpico (Antonio Santamaría, 2003, p. 173. Tradução nossa).

A interpretação que o autor faz dos versos posteriores difere da proposta por Hugh Lloyd-Jones para o qual a pena referida no verso 58 é a morte e o enfraquecimento da conciência da psykhé do morto, não havendo relação com os delitos julgados no mundo subterrâneo conforme os versos subsequentes do poema. Antonio Santamaría (op. cit. p. 174), por sua vez, considera que poina/ se harmoniza com o termo religioso a0litra/, utilizado para designar os delitos julgados no mundo subterrâneo, que, para o pesquisador, são [...] “as infrações religiosas (ofensas aos deuses, transgressões rituais) e morais (injustiças, faltas contra os homens).” As consequências desse julgamento, na opinião Antonio Santamaría, são o prêmio para os nobres (e0sloi/) e para aqueles que se alegram com os juramentos preservados (oi3tinev e1xairon eu0orki/aiv); e a condenação (a0proso/ratov po/non) para

213 Confira as palavras de Antonio Santamaria sobre a crença de Terão de Agrigento (2003, p. 173): Aún más, cree en doctrinas mistéricas, probablemente órficas, que prometían a los justos la bienaventuranza después de la vida terrena y, tras varias reencarnaciones, la bendición definitiva, en la IB. Por tanto, la unión de riqueza, virtudes y conocimiento debería ser la luz más auténtica para su vida: sabría qué conducta seguir, y, em concreto, en qué invertir sus posesiones para obtener la salvación.

235

os maus, indicados pelo sintagma toi\ d’ no verso 67. O autor conclui que ambos recebem a recompensa no Hades. A audiência do poeta, no momento da performance de Olímpica II, afirma Antonio Santamaría (2003, p. 174), em razão de já ter sido mencionada a sorte dos condenados no verso “toi\ d’ a0proso/raton o0kxe/onti po/non” (“e os outros suportam um sofrimento que não se pode ver.”), teria diante de si duas expectativas: que o tema do castigo fosse aprofundado nos versos seguintes  pois a existência post-mortem daqueles que tiveram um juízo favorável fora anteriormente detalhada  ou que o poeta iniciasse um novo tema. Píndaro, porém, rompe com essas expectativas e introduz uma possibilidade existencial superior às anteriores, a Ilha dos Bem-aventurados, local onde aqueles que praticaram a justiça levarão uma vida “ditosa”:

o3soi d’ e1to/lmasan e0stri/v e9kate/rwqi mei/natev a0po\ pa/mpan a0di/kwn e1xein 70 yuxa/n, e1teilan Dio\v o9do\n para\ Kro-/ nou tu/rsin: e1nqa maka/rwn na=son w0keani/dev au]rai peripne/oisin: [...]

E todos quantos ousaram, por três vezes, permanecendo em ambos os lados, afastar completamente a alma de injustiças, 70 perfazem o caminho de Zeus até a fortaleza de Cronos; lá, em volta da Ilha dos Bem-Aventurados, sopram as brisas oceânicas; [...]

Para se alcançar essa alternativa, na opinião de Antonio Santamaría (2003, p. 174), é exigido um requisito moral-religioso, e aqueles que não possuíssem a0litra/ que devessem ser expiadas, após o julgamento, receberiam a felicidade. Esses são os bons, e0sloi/, que se mantiveram afastados das injustiças214. “A condição exigida para ascender o máximo grau da glória, a vida eterna na IB215, é a abstenção da injustiça.”.

214 El papel de la justicia es central en el proceso escatológico, tanto en las almas de lós hombres como en los dioses que lo controlan. Las almas han de pasar por el juicio de um juez, seguramente configurado a imitación de los tribunales humanos, que determine la sentencia que merece la conducta 236

O autor observa (op. cit., 176), ainda, que há problemas quanto à interpretação das diferentes alternativas de vida ditosa mencionadas no poema, ou seja, uma vida menos penosa, isenta de sofrimento, sem a fadiga do trabalho e sem lágrimas aos que se abstiveram das injustiças e guardaram os juramentos; e a vida feliz na Ilha dos Bem- aventurados, também destinada aos justos. Questiona, então, o autor, se uma alternativa precede a outra ou ambas seriam excludentes e simultâneas. O pesquisador (2003, p.176) é de opinião que a primeira alternativa de vida post- mortem transcorre, provavelmente no Hades e é retratada em termos negativos, ou seja, a partir da descrição de como a existência não será: “não revolvem a terra com a força dos braços nem a água do mar”. A única imagem positiva, na opinião do autor, é a luz do sol. A vida na Ilha dos Bem-aventurados, ao contrário, é descrita como idílica “de maneira plástica e literária”. Antonio Santamaría afirma que na primeira a narrativa se incluem concepções que eram correntes nas religiões de mistérios, enquanto na segunda, na existência na Ilha dos Bem-aventurados, o poeta se utiliza de materiais oriundos da tradição poética anterior, a fim de, intencionalmente, provocar ambiguidades, pois a presença de figuras míticas na Ilha dos Bem-aventurados poderia levar à interpretação de que eles se encontram ali por simples privilégio divino ou porque cumpriram o processo de reencarnação necessário. Embora faça observações pertinentes, Antonio Santamaría não chega a uma solução. O teórico observa (op. cit., p. 177) apenas que, no poema, há muitas lacunas sobre as alternativas de existência post-mortem, e talvez Píndaro as conhecesse e não considerasse conveniente mencioná-las, como a questão da duração do tempo de vida no Hades ou a indefinição do ciclo de reencarnação até que se alcançasse a “liberdade final”, ou, em caso contrário, a possibilidade de uma condenação ao castigo eterno. Acertadamente, Antonio Santamaría (op. cit., p. 174) afirma que a prática da justiça tem um papel fundamental no processo escatológico que seria controlado pelos deuses e que Píndaro utiliza materiais da poesia tradicional ao se referir às alternativas existenciais post-mortem. Ao que parece, as ideias de destino final remontam à tradição hesiódica mencionada anteriormente, especificamente o destino dos homens terrena de éstas. La condición exigida para acceder AL máximo grado de gloria, la vida eterna en la IB, es la abstención de injusticias. El poeta parece estar proclamando la omnipotencia de la justicia de Zeus, que si no actúa en la tierra para castigar a los ofensores, lo hará en la otra vida (a través del juez), con lo que queda exonerado de cualquier acusación de arbitrariedad o inacción. (Antonio Santamaria, 2003, p. 174) 215 * Ilha dos Bem-aventurados 237

da cidade justa, passo em que se descreve a vida nesse local de modo semelhante à passagem da Olímpica II, conforme se pode observar quando se comparam os versos de ambos os poemas:

oi3de\ di/kav cei/noisi kai\ e0ndh/moisi didou=sin 225 i0qei/av kai\ mh\ ti parekbai/nousi dikai/ou, toi=sin te/qhle po/liv, laoi\ d’ a0naqeu=si e0n au0th|=: Ei0rh/nh d’ a0na\ gh=n kou=rotro/fov, ou0de/ pot’ au0toi=v a0rgale/on po/lemon termai/retai eu0ru/opa Zeu/v: ou0de/ pot’ i0qudi/kh|si met’ a0ndra/si limo\v o0pedei= 230 ou0d’ 1Ath, qali/h|v de\ memhlo/nta e1rga ne/montai. toi=si fe/rei me\n gai=a polu\n bi/on, ou1resi de\ dru=v a1krh me\n te fe/rei bala/nouv, me/ssh de\ melissav: ei0ropo/koi d’ o1iev malloi=v katabebri/qasi: tiktousin de\ gunai=kev e0oiko/ta te/kna goneu=si: 235 qa/llousin d’ a0gaqoi=sin diampere/v: ou0d’ e0pi\ nhw=n ni/sontai, karpo\n de\ fe/rei zei/dwrov a1roura.

Aqueles que dão para o estrangeiro e para concidãos 225 retas sentenças e não se desviam do que é justo, para eles a cidade floresce, e as pessoas nela prosperam; e a Paz que nutre os jovens está na terra, e nunca para eles Zeus de vasto olhar decreta a penosa guerra: jamais a fome acompanha os homens de retas sentenças nem a Fatalidade, eles repartem festas e frutos do trabalho. Para eles a terra traz abundante alimento, e nas montanhas o carvalho no alto produz bolotas e,no meio, as abelhas; e as ovelhas lanosas se curvam com o peso dos velos; as mulheres geram filhos semelhantes aos pais; sem cessar florescem em bens, nunca sobre barcos partem, a terra fértil produz o fruto. Trabalhos e Dias 225-37

238

As linhas fundamentais na narrativa hesiódica, embora não verse sobre uma passagem escatológica, encontram ressonância nos versos de Olímpica II, pois em ambos os poemas a prática da justiça é condição indispensável para uma vida de abundância, retribuição concedida por Zeus:

D' i1saiv d’ de\ nu/ktessin ai0ei/ i1saiv d’ a9me/raiv a1lion e1xontev, a0pone/steron e0sloi\ de/kontai bi/oton, ou0 xqo/na ta- ra/ssontev e0n xero\v a0kma|= ou0de\ po/ntion u3dwr keina\n para\ di/aitan, a0lla\ para\ me\n timi/oiv 65 qew=n oi3 e1xairon eu0orki/aiv a1dakrun ne/montai ai0w=na, [...]

Em noites sempre iguais em dias iguais tendo a luz do sol, uma vida menos penosa os nobres recebem, a terra e a água do mar não revolvendo com a força de seus braços, ao longo de uma existência vazia, mas junto aos honrados 65 pelos deuses, enquanto aqueles que se alegram com a fidelidade ao juramento mantêm uma vida sem lágrimas,

Olímpica II, 63-6

Note-se que, em Olímpica II, os benefícios que, em Trabalhos e Dias, são concedidos para a cidade justa são transferidos por Píndaro para o homem justo que está no mundo dos mortos. Curiosamente, até a faina no mar é referida por Píndaro que utiliza a expressão ou0de\ po/ntion u3dwr, (nem a água do mar), semelhante a ou0d’ e0pi nhw=n ni/sontai (nem navegam sobre o mar) expressa em Trabalhos em Dias. Atividade marítima era um perigo para aqueles que se aventuravam a empreendê-la, 239

pois não havia garantia de sucesso. Além do perigo enfrentado no mar, os marinheiros, constantemente eram visto como pessoas suspeitas de praticarem a pirataria216. Apesar das semelhanças entre concepções existentes em Olímpica II e em Trabalhos e Dias, convém observar um aspecto que surge como um problema na interpretação dos referidos versos do poema pindárico em que se mencionam os dois destinos post-mortem, principalmente no que diz respeito à condição em que o homem chega à Ilha dos Bem-aventurados. A Ilha dos Bem-aventurados, conforme o mito hesiódico, é um lugar destinado a alguns homens da Raça dos Heróis que não conheceram a morte e passaram a habitar ali vivos: Kai\ toi\ me\n nai/ousin a0khde/a a0khde/a qumo\n e1xontev / e0n maka/rwn nh/soisi par’ 0Wkeano\n baqudi/nhn / o1lboi h3rwev, (E eles habitam com o coração sem sofrimento / na Ilha dos Bem-aventurados, junto ao oceano de profundas correntes, felizes heróis,). Nesse local, a vida transcorreria sem os sofrimentos e as mazelas comuns no mundo. Os Campos Elísios, segundo a narrativa do destino de Menelau, indicado em Odisseia, constituem outro local para onde um homem poderia ser levado a fim de gozar de uma vida mais feliz e sem penúrias. Em ambos os exemplos, os habitantes desses locais chegariam ali sem passar pelo fado da morte. Portanto, a rigor, não se poderiam conceber os Campos Elísios ou a Ilha dos Bem-aventurados como uma concepção escatológica semelhante a do Hades para onde todos os homens estavam destinados, com exceção de alguns indivíduos singulares. Em Olímpica II, Píndaro, fundamentado na tradição poética, utiliza uma imagem conhecida da audiência, a Ilha dos Bem-aventurados (maka/rwn na=son); no entanto, há uma mudança na concepção, pois o poeta tebano destina esse lugar aos mortos, ou seja, às psykhai daqueles que se abstiveram da prática de injustiças durante três existências sobre a superfície da terra. Nesse sentido, conforme Antonio Santamaría (2006, p. 4), haveria um processo de democratização desse local outrora destinado somente a alguns poucos privilegiados que habitariam ali por prerrogativa divina sem que se levasse em conta qualquer outro critério. Essa noção seria, na opinião do autor, a novidade mais “transcendente” na concepção de Ilha dos Bem-aventurados que Píndaro apresenta, pois o requisito para se ingressar nesse local é claramente moral e qualquer homem que o cumprisse poderia ser admitido nele.

216 Confira as palavras de Claude Mossé (1989, p. 127) sobre a desconfiança que pairava sobre quem exercia essa atividade. 240

Observa o autor (2006, p. 11) que nesse aspecto há uma conciliação coerente do conceito tradicional com as doutrinas das religiões de mistérios. Porém, a fim de não contradizer a tradição poética na qual a eleição divina era um critério, Píndaro, ao introduzir o episódio da transferência de Aquiles para a Ilha dos Bem-aventurados, deixa aberta a possibilidade da intervenção divina, pois o Pelida obtém esse privilégio não por méritos próprios, mas por decisão de Zeus em atenção à solicitação de Tétis, mãe do herói. Nota-se, porém, que a interpretação dessa passagem da ode pindárica como uma “democratização” da Ilha dos Bem-aventurados parece um tanto forçada quando esses versos são relacionados com o fragmento Bowra127 em que se expressa a concepção de que as psykhaí reencarnadas, ao retornarem para a luz do sol, depois de expiadas as culpas, surgem sob a forma de reis ilustres e de homens que são denominados heróis valorosos: a0ndidoi= yuxa\v pa/lin, e0k ta=n basilh=ev a0gauoi/ / h3roev a9 gnoi\ pro\v a0nqrw/pwn kale/ontai (as almas daqueles eleva novamente, delas crescerão reis ilustres / serão chamandos heróis célebres entre os homens.). Cria-se, desse modo, um ciclo, pois os homens possuíriam, nessa perspectiva de modo inato, as características necessárias para assumir as formas mencionadas e, consequentemente, já estariam predestinados a um post-mortem melhor. Não se pode pensar, portanto, em democratização da Ilha dos Bem-aventurados. Os versos de Olímpica II referentes à doutrina da reencarnação constituem um problema cuja solução não parece possível porque não há no poema informação alguma que possa ajudar na interpretação, principalmente, quanto à expressão e0stri/v e9kate/roqi, sobre a qual, observa Antonio Santamaría (2003, p. 184), muitos estudiosos dão interpretações diversas. Entre os pesquisadores que propuseram estudos sobre esses versos, encontra-se Kurt Von Fritz cuja interpretação Antonio Santamaría rejeita com veemência por considerá-la equivocada. De fato, Kurt Von Fritz (1957, p. 85) aborda o tema, primeiramente, observando as soluções propostas por H. S. Long que, tendo por base os estudos de Mommsen, discute (apud Kurt Von Fritz, op. cit., p. 84) se a expressão e0stri/v e9kate/roqi significa: três vezes nesse mundo e três vezes no outro; ou duas vezes nesse mundo e uma no outro. O autor é de opinião que H. S. Long adota a segunda alternativa, já proposta por Mommsen, pois este acreditava que, em toda parte, a crença na imortalidade, conforme a religião grega, se processava desse mundo para outro no qual a alma 241

passaria a habitar. A primeira alternativa implicaria considerar que a alma passaria diretamente de sua última estadia no Hades para a Ilha dos Bem-aventurados. Contra a interpretação de H. S Long, Kurt Von Fritz (op. cit., p. 85) argumenta que, em primeiro lugar, a expressão e0stri/v e9kate/rwqi mei/natev dificilmente significaria duas vezes aqui e uma lá, pois seu sentido é de três vezes em ambos os locais. Em segundo lugar, para o autor, a quantidade de vezes, citada no verso, em todas as superstições e crenças religiosas, é concebida como o número de ocasiões em que a alma se devia mostrar digna antes de alcançar o status de felicidade eterna. A objeção mais séria, na opinião do autor, é que em nenhum lugar há indicação de que a alma pudesse receber algum mérito quando estivesse no Hades onde poderia ser purificada pelos castigos em um processo no qual ela seria totalmente passiva. Somente depois de completadas as punições, as almas teriam de provar, no mundo dos vivos, único local onde elas podiam agir de fato, serem dignas de mérito. A solução proposta por Kurt Von Fritz segue a mesma metodologia utilizada por outros pesquisadores, ou seja, interpretar a passagem de Olímpica II relacionando-a com alguns fragmentos da poesia pindárica, entre os quais o autor menciona o fragmento 127, pois, em sua opinião, nele se expressa, claramente, que o processo de reencarnação não começa no mundo dos vivos, mas no Hades com a purificação porque, afinal de contas, uma ação de aflição tinha sido cometida em um lugar indeterminado. Haveria, portanto, no Hades, uma existência sem especificação e, qualquer que fosse sua natureza, ela não seria contada como uma das vezes em que a alma se manteve afastada do mal. Na verdade, a leitura que o pesquisador faz da passagem de Olímpica II, fundamenta-se no fragmento Bowra 127, em Fédon e em fragmentos de textos de Empédocles nos quais há referência à pré-existência da alma humana. Essa concepção é estendida pelo autor ao poema de Píndaro. Assim, para ele, na expressão e0stri/v e9kate/roqi estaria incluída uma existência prévia antes de qualquer contato com esse mundo. Em resumo, para o pesquisador, a alma devia existir no Hades antes de se encarnar na terra dos vivos, concepção baseada na aceitação da pré-existência da alma humana. Kurt Von Fritz conclui que, entre a pena “necessária”, mencionada no fragmento, e a admissão na “morada final”, haveria de fato, três estadas no Hades e três nesse mundo, e a passagem para a Ilha dos Bem-aventurados se processaria a partir do mundo dos vivos, como naturalmente devia ocorrer. 242

Na opinião do autor (1957, p. 87), essa interpretação dos versos da Olímpica II é vantajosa, pois, além de estar de acordo com as concepções do fragmento Bowra 127, ela também tem uma relação mais estreita com as noções apresentadas por passagens do diálogo de Platão, Fédron, e com fragmentos de Empédocles217. Nota o autor (op. cit., p. 87) que, nesse diálogo, para Platão somente aqueles que se tornaram verdadeiros filósofos retornariam depois de três mil anos, se de fato tivessem vivido uma perfeita vida filosófica, ou seja, uma vida de perfeita justiça, três vezes sucessivamente. Essa referência à condição de três vidas na verdadeira filosofia ou perfeita justiça, na opinião do autor, pode indicar que uma crença comum dera origem à noção mencionada por Platão e por Píndaro, embora haja diferença entre a exposição que ambos fazem, pois, para o filósofo, a alma retornaria ao mundo super-urânico e para o poeta o destino seria a Ilha dos Bem-aventurados. A mencionada diferença pode ser facilmente explicada, afirma Kurt Von Fritz (1957, p. 87), porque, na verdade, enquanto a versão apresentada por Platão seria uma adaptação da “doutrina” ─ segundo a qual a alma deveria passar por três estágios antes de ser alçada ao status de bem-aventurança ─ a seu pensamento filosófico no qual há a preocupação em explicar a relação entre o cosmos e o Mundo das Ideias. Píndaro teria feito uma adaptação da mesma ideia a crenças populares. A interpretação de Kurt Von Fritz, conforme se pôde observar, segue o mesmo procedimento de outros autores que escreveram sobre o tema explicando os versos pindáricos com noções existentes em outros textos. Essa atitude, porém, pode levar a conclusões que talvez não correspondam realmente ao que o poeta tebano quis transmitir ao escrever seu poema.

217 Confira as palavras do autor (1957, p. 87) ao se referir a Empédocles que apresenta a mesma concepção com algumas diferenças: For this reason it is difficult, if at all possible, to determine what kind of existence Pindar had in mind, when in frgt. 137 he spoke of a palaio\n pe/nqov for which Persephone has to accept atonement before the soul is allowed to return to the upper world to become incorporated in a king or a wise man. In Plato's dialogue it is quite logical that the soul, after having gone through many existences and in the intervals between them having stood trial in Hades, may return to the place from which it has come in the beginning. The same idea can be found in the fragments of Empedocles' poems, when, for instance in 31 B 155, 12 ff. (Diels) the poet says of himself that he is a fuga\v qeo/qen kai\ a0lh/thv nei/kei+ mainome/nw| pu/sinov and when earlier in the same fragment it is said that, if anyone of the demons commits a murder or another crime, he must wander for thirty thousand seasons far from the blessed, while in 31 B 149 it is said that at the end of their wanderings the souls become sooth-sayers, poets, and princes and then from there "shoot up afresh" as gods. In both cases the souls ultimately return to the place from which they have started and from which they have been driven in consequence of a failure or a guilt.

243

A tese proposta por Kurt Von Fritz, observa Antonio Santamaría (2003, p.184), parece inadequada porque em sua opinião não há registros legados por autores antigos que corroborem a noção de uma pré-existência da alma que transcorreria no Hades como propõe Kurt Von Fritz. Platão e Empédocles, evocados pelo pesquisador ao elaborar sua interpretação, na verdade, afirmam que a pré-existência acontecia no mundo celeste junto aos deuses. Essas almas, em função de um grave delito cometido, perderiam sua condição e se encarnariam em corpos passando a existir na terra. Não há indicação de que elas passariam a existir no Hades como afirmou Kurt von Fritz. Observa, ainda, Antonio Santamaría que, talvez por se tratar de uma crença órfica sobre a origem do homem, a concepção de uma existência “celeste” concorria com outra ideia tradicional, ou seja, que a culpa originária a ser expiada seria consequência do assassinato de Dioniso-Zagreus pelos Titãs que, fulminados por Zeus, a legaram aos homens. Píndaro, na opinião do autor, seguiria essa concepção no fragmento 133. Para o estudioso, não há nada em Olímpica II ou nos trenos que sustente a pré-existência da alma. A concepção, deduzida do fragmento Bowra127, de que o homem herdara uma culpa original, afirma Antonio Santamaría, é aceita por Kurt von Fritz segundo o qual a expiação ocorreria no Hades antes da primeira existência sobre a terra. A interpretação de que, no fragmento, haja alusão a uma primeira vida sobre a terra é impossível para o crítico que, valendo-se do sintagma a0ndidoi= e de pa/lin, afirma que eles não se referem à alma de todos os homens, mas somente à dos justos que expiaram sua culpa e, por isso, retornariam à vida terrena como reis ilustres e homens sábios. Portanto, está claro, no fragmento, que a última existência do homem ocorre na terra. A concepção da passagem direta da vida terrena para a Ilha dos Bem- aventurados, como defendeu Kurt Von Fritz aplicada à passagem pindárica, também é rejeitada por Antonio Santamaría (2003, p. 85) que afirma a necessidade de, depois da vida terrena, passar-se para o Hades, a fim de que, após um julgamento, fosse determinado qual seria o destino final da alma do morto. Após apresentar suas objeções à interpretação de Kurt von Fritz, Antonio Santamaría (op. cit., p. 185) conclui218 o seguinte sobre a expressão e0stri/v e9kate/roqi:

218 El alma sale del Hades y pasa a través del reino de Zeus, la Tierra, a la isla donde gobierna Crono, territorios que forman una tríada. En la oda se mencionan otros dos lugares dichosos, que a su vez, constituyen otra tríada con la IB: el Olimpo para Sémele y el fondo del Océano para Ino (con sus 244

“Por todas essas razões expostas, há de se concluir que o ciclo de seis vidas ou “estadias” de que fala Píndaro, a primeira deve ser na terra e a última no Hades:”. Na verdade, apesar das importantes observações de Antonio Santamaría sobre a tese de Kurt Von Fritz, não há solução definitiva para a interpretação das concepções escatológicas em Olímpica II, e os pesquisadores, mesmo usando metodologia semelhante, qual seja, interpretar o poema valendo-se de concepções existentes em outros textos antigos, apresentam teorias diferentes e, às vezes, conflitantes. Talvez, ao citar os comentários de Wilamowitz e de Erwin Rohde, Kurt Von Fritz, (1957, p. 88) se tenha colocado aberto a possíveis críticas à sua interpretação. Para o autor, os estudiosos supracitados agiram acertadamente ao afirmarem que nos poemas de Píndaro  em que aspectos da escatologia são contemplados  não há noções consistentes sobre a vida no outro mundo porque o poeta teria combinado livremente noções oriundas de várias fontes. Se essa afirmação for aceita como verdadeira, as dificuldades na interpertação de Olímpica II, quanto às concepções escatológicas, são mais compreensíveis.

respectivas jerarquías de dioses). Se situaría igualmente a medio camino de ambas y formando otra tríada: Olimpo IB Terra Mar Hades

245

7 CONCLUSÃO

A reflexão empreendia ao longo da pesquisa evidenciou que o tema da escatologia na poesia grega arcaica, mormente nos Poemas Homéricos, gera controvérsias entre os pesquisadores, e as teses propostas, de modo algum, podem ser aceitas de modo conclusivo, tendência que, como se pode observar, predominou desde os estudos publicados por Erwin Rohde e George E. Mylonas, autores que, sem dúvidas, exerceram grande influência sobre as pesquisas posteriores acerca desse tema. Esses estudiosos defenderam que, na poesia homérica, não existem concepções escatológicas como a crença na vida post-mortem, na imortalidade da psykhé e, consequentemente, a inexistência de culto aos mortos. Apesar da importância dos estudos dos referidos autores, o desenvolvimento das técnicas de arqueologia, antropologia, sociologia e das ciências da religião permitiu que se recolocassem algumas questões sobre a escatologia na poesia grega do período arcaico. Essas questões suscitaram respostas diversas daquelas tradicionalmente aceitas em moldes quase dogmáticos como, por exemplo, a assertiva de George E. Mylonas que negava a existência na crença de uma realidade post- mortem entre os Micênicos que não mantinham com seus antepassados falecidos algum tipo de relação de culto ou respeito. Sobre as respostas dadas por Erwin Rohde acerca da relação entre os Poemas Homéricos e algumas concepções como a manutenção da consciência da psykhé do morto, a prática do culto aos mortos e sua motivação, verificou-se que elas não são suficientes quando examinadas à luz dos versos homéricos. As pesquisas arqueológicas mais recentes, como aquelas empreendidas por Chrysanthi Gallou, evidenciaram que os Micênicos, ao contrário da tese de G. E Mylonas, acreditavam na vida além da morte e cultuavam seus antepassados falecidos prestando-lhes ofertas votivas regulares em visitas a seus túmulos, conforme as evidências arqueológicas atestam. Depois de esclarecer que os Micênicos possuíam uma prática cultual em relação aos mortos, verificaram-se que algumas ações rituais daquele povo são descritas nos Poemas Homéricos cuja composição data do século VIII a. C., isto é, aproximadamente, quatro séculos após o colapso daquela civilização. A forma empregada pelos Micênicos para se desfazer dos cadáveres, por exemplo, durante muito tempo foi considerada irreconciliável com a prática descrita nas epopeias nas 246

quais há o predomínio da cremação, processo que alguns autores consideraram desconhecido pelos Micênicos. Sobre essse aspecto, conclui-se que não há incongruência quando se relaciona as práticas da inumação e cremação com o mundo micênico e com os Poemas Homéricos, pois estudos arqueológicos comprovam que ambos os processos eram conhecidos e levados a cabo na maior parte da Hélade desde tempos mais remotos. Seria, pois mais adequado falar da predominância de uma forma sobre outra em determinados momentos históricos. Assim, nas epopeias, em que se menciona explicitamente apenas a cremação, há indícios de que a inumação também fosse praticada. Quanto à cremação, como Martin P. Nilsson já acenara no início do século XX, os Micênicos a praticavam, conforme comprovam pesquisas modernas. Práticas religiosas gregas do período micênico permitiram afirmar que há nos Poemas Homéricos um legado tradicional transmitido de geração em geração, uma herança que sofreu alterações motivadas pelos processos histórico-sociais inclusive com possível influência de povos distintos que mantinham intercurso cultural ao longo do Mediterrâneo. As concepções escatológicas nos Poemas Homéricos apresentam-se bastante homogêneas tanto em Ilíada quanto em Odisseia, poemas em que duas crenças fundamentais foram constatadas: a noção de efemeridade humana, pois todo homem deve morrer, e sua psykhé, com a morte e depois de receber os devidos ritos funerários, fica encerrada no Hades para sempre; a psykhé do morto mantém sua consciência mesmo depois de se tornar súdito do reino de Hades. A aceitação dessa proposição é muito importante porque possibilita compreender as motivações de ritos presentes nas epopeias como, por exemplo, as preces dirigidas aos mortos e o sacrifício de animais oferecido por Odisseu em sua visita ao mundo dos mortos. Esses atos careceriam de sentido se a psykhé fosse considerada apenas um ente sem consciência que necessitaria do sangue das vítimas sacrificadas para recobrar momentaneamente essa faculdade, tese tradicionalmente defendida. Como se refletiu ao longo da pesquisa, já no mundo micênico tais rituais podem ser constatados com base na análise de construções singulares encontradas em alguns túmulos, construções identificadas como altares destinados a práticas relacionadas com mortos. Há nos Poemas Homéricos, portanto, sólidas noções sobre o destino post- mortem dos homens, sua morada final e sobre as formas de manter com eles uma 247

relação cultual. A esse conjunto de noções denominou-se concepções escatológicas homéricas cujas noções fundamentais seriam repetidas na tradição poética posterior. Quanto à poesia de Hesíodo, não apresenta novidades em relação à escatologia, pois a concepção expressa nos poemas hesiódicos, em especial em Trabalhos e Dias, é de que o homem morre e vai para o Hades. As linhas fundamentais de reflexão da escatologia hesiódica encontram-se no Mito das Cinco Raças narrado em Trabalhos e Dias. Esse mito narra a geração e a destruição das raças dos homens criados por Zeus, raças elencadas seguindo a ordem de valorização dos metais. Aos homens da Raça de Ouro e de Prata, coube um destino de divinização que os alçou à categoria de divindades, concepção inexistente nos Poemas Homéricos. Os homens da Raça de Bronze, por outro lado, baixam à casa de Hades onde, desconhecidos, se fundem em uma massa anônima. Mereceu destaque o destino da Raça dos Heróis porque parte deles não conhece a morte; são eles abduzidos e levados para a Ilha dos Bem-Aventurados onde passam a ter uma existência muito semelhante àquela que os homens da Raça de Ouro tinham antes da morte, ou seja, viviam com o coração isento de sofrimentos. A outra parte dos heróis dessa raça morre simplesmente e, embora não se mencione seu destino final, pode deduzir-se que ela tem como fim o Hades do mesmo modo que os homens da Raça de Bronze. Verificou-se que Hesíodo apresenta concepções que podem ser uma herança homérica como, por exemplo, a concepção de um lugar destinado a uns poucos que se assemelha ao do destino de Menelau descrito em Odisseia. A imortalização de Héracles, apresentada no fragmento 25 West e em Teogonia, também pode ser outro indício de uma provável herança de Homero, muito embora não seja possível afirmar essa tese com segurança, tendo em vista que ambos os poetas poderiam estar fazendo uso de uma tradição comum. A poesia do período posterior, a poesia não hexamétrica, trouxe como grande novidade, principalmente, as inovações de Píndaro que pela primeira vez, como se pôde observar na análise do fragmento 116 Bowra, concebe a alma como imortal conferindo-lhe uma origem divina. Essa concepção é completamente estranha às noções anteriores tanto homéricas quanto hesiódicas e influenciou reflexões filosóficas e religiosas posteriores. Outra novidade transmitida pelo poeta tebano é a possibilidade de uma nova existência após a morte para aqueles que agiram em conformidade com a justiça. Essa 248

concepção, assim como a noção da origem divina da alma, pode ser oriunda das religiões de mistérios, principalmente o Pitagorismo e o Orfismo. A Ilha dos Bem- aventurados é a habitação final para aquele que cumpriu as exigências para que tal existência pudesse ser alcançada. No entanto, diferente da concepção hesiódica em que o herói vivo, isto é, corpo e psykhé unidos, habitaria a ilha paradisíaca, nos versos da Olímpica II, essa morada final seria destinada à alma liberta depois de sucessivas reencarnações. A concepção pindárica, porém, não significa que o poeta estivesse democratizando a Ilha dos Bem-aventurados, pois Píndaro, aristocrata e cantor de valores da aristocracia, reservava essa sorte somente a uns poucos. As conclusões dessa pesquisa podem ser sumariadas da seguinte forma: concepções escatológicas presentes na cultura ocidental remontam à cultura grega antiga, mormente àquelas presentes na poesia homérica herdeira de conceitos do período micênico. Concepções dos tempos de composição dos Poemas Homéricos se fundem com noções micênicas mais antigas de modo que se torna muito difícil separá- las. Assim, as ações relativas aos mortos descritas nas epopeias devem ser interpretadas tendo como postulado que, desde o período micênico, havia a crença na sobrevivência da psykhé que, nas epopeias, subsistia no Hades não como mera sombra sem consciência, mas como um ente que mantinha essa faculdade. Tal noção justifica as preces e algumas práticas concernentes aos mortos descritas em Ilíada e Odisseia; por sua vez, a poesia hesiódica não apresentou grandes novidades em relação ao tema a não ser a colocação dos homens das Raças de Ouro e de Prata na categoria de seres divinos (dai/monev), fenômeno que não é conhecido na poesia épica. A grande novidade seria introduzida por Píndaro que, pela primeira vez na literatura, afirmou que o eídolon do homem, usado como sinônimo de psykhé, é imortal por causa de sua origem divina. Essa concepção predominará no pensamento filosófico e religioso das gerações futuras como se já comentou.

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