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UNIVERSIDADE FEDERAL DO

OS CONTOS DE JOÃO ALPHONSUS E MARQUES REBELO NO CENÁRIO MODERNISTA BRASILEIRO

POLYANA PIRES GOMES

Rio de Janeiro 2019 1

OS CONTOS DE JOÃO ALPHONSUS E MARQUES REBELO NO CENÁRIO MODERNISTA BRASILEIRO

Polyana Pires Gomes

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosa Maria de Carvalho Gens

Rio de Janeiro Fevereiro de 2019 2

Gomes, Polyana Pires. Os contos de João Alphonsus e Marques Rebelo no cenário modernista brasileiro / Polyana Pires Gomes. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2019. xi, 274f.: 29,7 cm. Orientadora: Rosa Maria de Carvalho Gens Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2019. Referências Bibliográficas: f. 261-274. 1. conto brasileiro. 2. João Alphonsus. 3. Marques Rebelo. I. Gens, Rosa Maria de Carvalho. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação.

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OS CONTOS DE JOÃO ALPHONSUS E MARQUES REBELO NO CENÁRIO MODERNISTA BRASILEIRO

Polyana Pires Gomes

Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas.

Examinada por:

______Presidente, Prof.ª Dr.ª Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ

______Prof.ª Dr.ª Fátima Cristina Dias Rocha – UERJ

______Prof.ª Dr.ª Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ

______Prof. Dr. Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira – UFRJ

______Prof.ª Dr.ª Vera Lucia de Oliveira Lins – UFRJ

______Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Guimarães de Faria – UFRJ (Suplente)

______Prof.ª Dr.ª Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo – UERJ (Suplente)

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A Gilberto A Anchieta (in memoriam) A Madalena 5

AGRADECIMENTOS

Minha gratidão àqueles que incentivaram esta pesquisa, em especial a Gilberto Araújo, pelo amor, pela paciência e pelos livros. Madalena, minha mãe, Dona Graça, minha sogra, e Aldo Misael, meu irmão, foram núcleo familiar caloroso e decisivo. Os amigos que dispensaram ouvidos e bons desejos também merecem registro: Andreia Angel, Andressa Barroso, Anita Lucchesi, Celeste Maria, Dayhane, Marcelo e Sofia Paes, Renata Soares e Maxuel Rodrigues (in memoriam). E Rose, que cuida carinhosamente da casa e da gente que nela habita. Agradeço à professora Rosa Gens, que me acompanha, com firmeza e doçura, há dez anos. Também aos professores Antonio Carlos Secchin, sempre pronto às indagações bibliográficas, e José Maurício, pela partilha de O espelho partido, de Marques Rebelo. Graças aos professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do CEFET/RJ (Campus Maracanã), pude realizar com mais tranquilidade e eficiência esta pesquisa; graças aos alunos, sinto ânimo dia após dia de prosseguir estudando. Enfim, a Deus, cada vez mais misterioso pra mim, agradeço a paixão pela literatura.

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RESUMO

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.

GOMES, Polyana Pires. Os contos de João Alphonsus e Marques Rebelo no cenário modernista brasileiro. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.

Nas décadas de 1930 e 1940, o mineiro João Alphonsus (1901-1944) e o carioca Marques Rebelo (1907-1973) foram considerados por importantes críticos literários consolidadores do conto moderno brasileiro. Em contexto de guerra mundial, de revoluções políticas internas e de movimentação artística, os autores ansiaram por mudanças substantivas tanto na esfera sociopolítica quanto na artística: acreditando que um novo país só poderia ser construído a partir de pensamento e expressão novos, dedicaram-se a um lirismo citadino e participaram, cada qual à sua moda, do movimento modernista desenvolvido em suas cidades. Para compreender o fenômeno literário por eles executado, analisamos os contos publicados em Galinha cega (1931), A pesca da baleia (1941) e Eis a noite! (1943), de João Alphonsus, e em Oscarina (1931), Três caminhos (1935) e Stela me abriu a porta (1942), de Marques Rebelo, e comparamos suas escolhas temáticas e formais, apontando semelhanças, como o emprego metonímico da cidade, extensão de seus habitantes, a maioria afetada pela morte (factual ou metafórica), e particularidades, como a preferência do mineiro pela noite e a recorrência a personagens animais, e a inclinação do carioca pela tarde e pela liberdade, motivo central de seus contos.

PALAVRAS-CHAVE: Conto brasileiro; João Alphonsus; Marques Rebelo.

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ABSTRACT

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.

GOMES, Polyana Pires. Os contos de João Alphonsus e Marques Rebelo no cenário modernista brasileiro. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.

In the 1930s and 1940s, João Alphonsus (1901-1944) and Marques Rebelo (1907- 1973) were both considered by literary criticism important authors of the Brazilian modern tale. In the context of world war, internal political revolutions and artistic movement, the writers aspired to substantive changes in both the sociopolitical and artistic spheres: believing that a new country could only be constructed by new thinking and expression, they devoted themselves to a city lyricism, and participated, each in their own way, in the modernist movement developed in their cities. In order to understand the literary phenomenon they performed, we analyze their tales published in Galinha cega (1931), A pesca da baleia (1941) and Eis a noite! (1943), by João Alphonsus, and Oscarina (1931), Três caminhos (1935) and Stela me abriu a porta (1942), by Marques Rebelo, and we compare their thematic and formal choices, pointing out similarities, such as the metonymic use of city, the strength of the death (factual or metaphorical), and particularities, such as Alphonsus‘ preference for night and the recurrence of animal characters, and Rebelo‘s inclination for the afternoon and the freedom.

KEYWORDS: Brazilian tale; João Alphonsus; Marques Rebelo.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 9

2 BREVE PANORAMA DO CONTO BRASILEIRO 16 2.1 DAS ORIGENS ATÉ A DÉCADA DE 1930 16 2.2 O CONTO MODERNO E O CONTO MODERNISTA BRASILEIRO 26

3 OS CONTOS NOTURNOS DE JOÃO ALPHONSUS 37 3.1 O ESCRITOR E O MODERNISMO MINEIRO 37 3.2 RECORRÊNCIAS TEMÁTICAS 51 3.2.1 O mal irremediável 52 3.2.2 O centro e as margens 72 3.2.3 Eis a noite! 92 3.2.4 Animais de estimação 110 3.3 TENDÊNCIAS FORMAIS DA CONTÍSTICA DE JOÃO ALPHONSUS 123

4 OS CONTOS VESPERTINOS DE MARQUES REBELO 131 4.1 O ESCRITOR E O MODERNISMO CARIOCA 131 4.2 RECORRÊNCIAS TEMÁTICAS 144 4.2.1 Portas abertas 145 4.2.2 Rio de Janeiro 192 4.2.3 O mal antecipado 218 4.2.4 Eis a tarde! 228 4.3 TENDÊNCIAS FORMAIS DA CONTÍSTICA DE MARQUES REBELO 236

5 UM ENCONTRO DE CONTISTAS ENTRE PASTÉIS DE NATA 241 E ESCORPIÕES

REFERÊNCIAS 261

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1 INTRODUÇÃO

As décadas de 1920 a 1940 marcam importante período da literatura brasileira, e felizmente sua expressão poética e romance continuam recebendo pesquisas consistentes. Não se pode dizer o mesmo em relação a outros gêneros literários, também prolíferos à época, que carecem de maior atenção da crítica especializada: apenas no decênio de 1930, contabilizam- se mais de 200 livros de contos em todo o Brasil, segundo dados coletados na Bibliografia do conto brasileiro (1841-1967), de Celuta Moreira Gomes e Thereza da Silva Aguiar (1968), e na listagem das últimas páginas do Conto brasileiro contemporâneo, de Antonio Hohlfeldt (1988). No início do século passado, os escritores que se dedicavam à prosa curta, em geral, seguiam temas e estruturas tradicionais, herdadas do romantismo, fundador do gênero no país, ou das correntes realista e naturalista do século XIX. Todavia, em contexto de guerra mundial, de revoluções políticas internas e de intensa movimentação artística – principalmente a promovida desde o primeiro quartel do século XX e consolidada pela Semana de Arte Moderna –, o mineiro João Alphonsus e o carioca Marques Rebelo, arraigados a seu tempo e espaço, ansiaram por mudanças substantivas tanto na esfera sociopolítica quanto na artística. Acreditando que um novo Brasil só poderia ser construído a partir de um pensamento novo e de uma expressão estética nova, os escritores centrais desta tese se dedicaram a uma prosa citadina, também por isso às vezes chamada de moderna, e participaram, cada qual à sua moda, do movimento modernista desenvolvido em suas cidades. Em geral menos extenso que o romance, o conto seduz por abarcar diversos assuntos e por unir efeito expressivo e concisão formal; tal composição fez com que, ao longo da história da literatura, o gênero tenha forjado variadas técnicas narrativas. Entretanto, a lista dos escritores brasileiros que se tornaram célebres devido à produção de narrativas curtas é delgada: desde seu surgimento, na metade do século XIX, até a época a que nos dedicamos, ganhou repercussão e fama sólidas um pequeno grupo, formado por , Monteiro Lobato, e Mário de Andrade (embora todos também tenham escrito romances). Na década de 1970, Norman Friedman afirmou, no importante compêndio Short story theories, organizado por Charles E. May, da Universidade do Estado da Califórnia, que o conto, um dos gêneros mais estudados em sala de aula, estava em quarto lugar na lista de livros e revistas dedicados à crítica literária, depois da poesia, do drama e do romance (cf. 10

2004, p. 219). Duas décadas depois, no prefácio da segunda coletânea, The new short story theories, editada pelo mesmo professor, ratificou-se que o conto era um gênero subestimado, ainda que houvesse angariado mais estudiosos (cf. MAY, 1994, p. xi). Semelhante à realidade americana, em geral, na escola brasileira, se leem mais contos que romances, de acordo com a pesquisa ―Retratos da leitura no Brasil – 4.ª edição‖, realizada em 2016 pelo Instituto Pró- Livro e pelo Ibope Inteligência. Entretanto, o ranking nacional difere daquele registrado pelos especialistas norte-americanos: conto e romance aparecem empatados (apenas a Bíblia os supera no gosto dos leitores brasileiros), a poesia fica degraus abaixo, e não há menção ao drama (cf. 2016, p. 29). Os dados acima, referentes a um dos países que mais investe em pesquisas sobre o gênero em questão e àquele onde estamos inseridos, inclusive em sala de aula do Ensino Médio, embasam alguns motivos que nos levaram ao estudo do conto. Além do gosto pessoal, surpreendido positivamente pela prosa de João Alphonsus e Marques Rebelo, duas questões objetivas foram determinantes: a escassez de pesquisas sobre os títulos estudados e a necessidade de aprofundamento para a prática docente. Com o estudo aqui registrado, ampliamos nossa capacidade interpretativa, uma vez que a análise de narrativas requer competências distintas das exigidas na leitura de poemas (sobre os quais nos debruçamos na dissertação de mestrado intitulada Adélia Prado: a poesia e o flagrante do belo, defendida no primeiro semestre de 2012, nesta Faculdade de Letras), e construímos conhecimento mais consolidado para melhor atuação profissional. Considerável parte dos livros de contos publicados nas décadas pesquisadas reúne histórias que registram costumes e expressões linguísticas interioranas, lendas e folclore. O enfoque regionalista ganhou relevo no período e influenciou gerações de escritores; conhecer essa fatia da produção nacional é importante tanto para compreender o desenvolvimento do gênero quanto para entender a dinâmica dos movimentos literários brasileiros. Felizmente, já contamos com fortuna crítica referente aos contos regionalistas: desde o pioneiro estudo de Barbosa Rodrigues, que reúne histórias indígenas e cantigas amazônicas em Poranduba amazonense (1890), até o recente O conto regionalista: do romantismo ao pré-Modernismo (2009), do professor Luiz Gonzaga Marchezan. Além desses, outros trabalhos, dedicados ao romance regionalista, também colaboram com a empreitada, como o impresso em A tradição regionalista no romance brasileiro (1981), do professor José Maurício Gomes de Almeida, e em Uma história do romance de 30 (2006), de Luís Bueno. Uma vez já examinados consistentemente, nosso recorte temático não previu textos regionalistas e abrange outra parcela, bem menor, da farta produção de contos ocorrida entre 1920 e 1940: a prosa curta dos 11

―novos‖, como eram chamados os escritores que apresentavam tema, estrutura e linguagem inovadora. Nos compêndios de literatura sobre os contos desse período, os críticos oscilam na nomenclatura utilizada para classificar aqueles que fugiam do modelo tradicional, ora chamando-os de ―modernos‖, ora de ―modernistas‖. Embora nosso intuito principal não seja descrever teoricamente a diferença entre os termos, como nos deparamos diversas vezes com eles (às vezes concordando com seu emprego, às vezes não), buscamos teóricos e críticos literários especialistas no tema. Ao final da análise, chegamos à conclusão de que não há erro em chamar a obra contística de João Alphonsus de modernista, e a de Marques Rebelo é melhor caracterizada quando descrita como moderna – o que discutiremos nas páginas seguintes. Ambos os escritores participaram de movimentos de inovação alimentados pela intensa correspondência entre escritores mineiros, cariocas e paulistas que se influenciaram mutuamente, a exemplo da constante atuação epistolar de Mário de Andrade. Vale lembrar que, em pleno embate político travado entre Minas Gerais e São Paulo, em meio à diluição da era ―café-com-leite‖ e à Revolução de 1930, a relação entre modernistas das duas regiões era numerosa e amistosa. Por outro lado, havia o isolamento em relação a escritores de outros lugares do país, assunto referido por diversos estudiosos, como Pedro Nava (1978) que, no prefácio à edição fac-similar de A Revista, comenta a falta de contato de intelectuais belo- horizontinos com os da Bahia ou de Pernambuco, sobre os quais ele e seus conterrâneos só tomaram conhecimento tempos depois. Significativo também é saber que no rol de livros de contos da década de 1930 que pudemos compilar 80% são oriundos do Sudeste. Por isso, ainda que a porcentagem de Porto Alegre, 13%, seja expressiva, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo eram o centro editorial do Brasil. Embora digamos ―Sudeste‖, a contribuição capixaba se revelou artisticamente tímida, conforme corrobora depoimento de Monteiro Lobato, em 1919: o Espírito Santo ―parece uma ficção geográfica, onde não tenho uma só livraria, nem um só assinante‖ (apud HALLEWELL, 1985, p. 523). Assim, a fertilidade do gênero na época e nos espaços selecionados é mais um dos motivos que impulsionou esta tese; nesse sentido, nosso escopo inicial era estudar, de maneira panorâmica, os contos publicados, na década de 1930, por seis contistas (dois de cada estado do Sudeste, com exceção do Espírito Santo): além de João Alphonsus e Marques Rebelo, constariam da pesquisa Mário de Andrade, Alcântara Machado, Ribeiro Couto e Rodrigo Melo Franco de Andrade. 12

Entretanto, logo verificamos que algumas obras, como as de Mário de Andrade e Alcântara Machado, já haviam recebido consistentes estudos. Em O conto brasileiro e sua trajetória – a modalidade urbana dos anos 20 aos anos 70, Elódia Xavier os escolhe como representantes do conto modernista brasileiro, o que tornou inescapável a presença de ambos na tese, embora não mais de maneira central, por meio de comentários críticos em cartas e artigos. São inúmeras dissertações, teses e livros dedicados aos contistas paulistas, como Mariodeandradiando (1996), de Telê Porto Ancona Lopez, e Antônio de Alcântara Machado e o Modernismo (1970), de Luís Toledo Machado. Sem dúvida, Mário de Andrade é o mais reverenciado prosador modernista, em especial, por Macunaíma (1928), mas também por Contos novos (1947) e pelos ensaios críticos. Seu engajamento na pesquisa e divulgação da diversidade cultural brasileira (pintura, escultura, música e literatura), em viagens pela Amazônia, Nordeste e Sul do país, justificam sua fama para além da icônica Semana de 1922. Já Alcântara Machado, além de circular amplamente nos meios literários e políticos, foi um dos fundadores, em 1926, da Revista Terra Roxa e Outras Terras; em seguida, com Oswald de Andrade, também fundou a Revista De Antropofagia e, em 1931, juntou-se a Mário para publicar a Revista Nova. Também retiramos Clube das esposas enganadas (1933), de Ribeiro Couto, uma vez que se trata, na verdade, da reunião de três histórias alongadas – a primeira com título homônimo ao livro, seguida de ―Isaura‖ e ―Infância‖ –, cuja estrutura narrativa se aproxima mais da novela que do conto, o que pode ser sentido, por exemplo, pela necessidade de dividi- las em capítulos. Entretanto, os temas da primeira narrativa – a paixão romântica, clandestina e intensa entre um jovem e uma mulher casada e os encontros secretos de um grupo de mulheres da sociedade – são curiosos, apresentados em episódios simples e bem-humorados, e ironizam, explicitamente, instituições, como o casamento burguês, as confrarias elitizadas e o jornalismo interesseiro. Enfim, o livro mais recentemente desacoplado de nosso corpus foi Velórios (1936), única publicação de Rodrigo M. F. de Andrade. A tímida produção literária se justifica por sua intensa dedicação ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) e à política. A qualidade estética de seu unigênito contrasta com a quase inexistente pesquisa sobre sua obra, o que explica nosso interesse e a necessidade de um estudo sobre seus contos, que fomentaram o ensaio ―Os veloristas de Rodrigo M. F. de Andrade‖, a ser publicado em breve. Compreendemos que a tese ficaria mais sucinta e equilibrada se apresentasse um contista de cada estado, e entre João e Rodrigo ficamos com o primeiro por se diferenciar mais temática e formalmente de Marques Rebelo: a hipocrisia dos vivos diante 13

da morte, nos contos de Velórios, é semelhante à observada pelo narrador rebeliano em ―A mudança‖ (de Oscarina), analisado no subcapítulo 4.2.3. Além de rechaçar a reflexão metafísica sobre o fim da existência, Rodrigo emprega enredo linear e tradicional, no qual poucas experimentações são observadas. Percebida a inexequibilidade daquele projeto ambicioso, reduzimos o corpus a dois autores muito importantes para o desenvolvimento do conto no Brasil, cada qual vinculado a grupos de intelectuais proeminentes na cena literária de então. Todavia, a nova configuração da tese não significou redução dos volumes analisados, uma vez que, ao retirar alguns contistas, expandimos o lastro temporal e analisamos Galinha cega (1931), A pesca da baleia (1941) e Eis a noite! (1943), de João Alphonsus, e Oscarina (1931), Três caminhos (1935) e Stela me abriu a porta (1942), de Marques Rebelo. Como o sobrenome de João Alphonsus de Guimaraens (1901-1944) encurta apresentações pessoais, por enquanto sublinhamos que o escritor, cuja bagagem literária atravessa gerações, foi integrante singular do círculo artístico de Belo Horizonte. Além dele, frequentavam o Bar Estrela ou a redação do jornal Diário de Minas, vinculado ao Partido Republicano Mineiro (PRM), vários intelectuais, e os principais líderes eram Alberto Campos, Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura e Milton Campos (cf. WERNECK, 1992, p. 28). João Alphonsus escrevia para suplementos literários de jornais e para revistas modernistas; ―Galinha cega‖, seu texto mais famoso, mas que teria feito com que o escritor ficasse conhecido como autor de um conto só, conforme depoimento dado a Edgard Cavalheiro (cf. DIAS, 1965, p. 29), veio à tona na Terra Roxa e Outras Terras, em 1926. Concordamos com a constatação de Dutra e Cunha (1956), que, para a literatura mineira moderna, Alphonsus foi para a prosa o que Drummond foi para poesia. Já Eddy Dias da Cruz (1907-1973), nome civil de Marques Rebelo, abandonou o curso de Medicina e, apesar de trabalhar no comércio, dedicou-se intensamente à literatura. A maioria dos críticos o vincula à linhagem de Manuel Antônio de Almeida, sobre quem escreveu três livros, devido à caracterização dos personagens cariocas, que ilustram a cultura e a língua regional. No início da carreira, muito próximo às rodas modernistas, foi amigo de Mário de Andrade e Alcântara Machado, tendo contribuído com várias revistas. Como o colega mineiro, seu conto mais célebre, ―Oscarina‖, antes da publicação em livro, apareceu, em 1927, na revista Feira Literária. Alguns de seus textos tiveram considerável repercussão popular e ganharam montagens no cinema e na televisão. Além da prática literária, o escritor promoveu a arte em todo país: fundou museus, colaborou com pintores e foi membro da Academia Brasileira de Letras de 1965 a 1973. 14

Contemporâneos e participantes de círculos intelectuais modernos, Alphonsus e Rebelo produziram textos com temas universais e atemporais, que lhes garantiram validade permanente, e arriscaram-se em técnicas narrativas não tão vendáveis na época. Dialogaram com os grandes contistas que lhes antecederam, como Machado de Assis, Lima Barreto e Álvares de Azevedo, mas também promoveram renovação temática e estética capaz de abrir caminhos para Guimarães Rosa e Clarice Lispector, por exemplo. Portanto, a escassez de estudos sobre o gênero conto, em especial o produzido nas décadas iniciais do século XX em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, aliada à feliz descoberta da obra de João Alphonsus e Marques Rebelo, também pouco investigada, e à consequente curiosidade sobre o movimento modernista brasileiro para além dos limites paulistas nos instigaram à pesquisa que agora se apresenta em forma de tese acadêmica. No próximo capítulo, ―Breve panorama do conto brasileiro‖, observamos a trajetória do gênero no país para contextualizar as obras centrais estudadas e tratamos da terminologia ―moderno‖ e ―modernista‖ vinculada à literatura da época a partir de interpretações de pesquisadores de renome. Para tanto, baseamo-nos em especialistas do conto, como Cleusa Passos e Julio Cortázar, e de outras formas breves a ele eventualmente fronteiriças, principalmente para, quando necessário, definir contrastivamente os gêneros. Na fortuna crítica nacional, considerável grupo de especialistas dedicou-se ao estudo do gênero no Brasil, como , Edgard Cavalheiro, Herman Lima, Fábio Lucas, Antonio Hohlfeldt e Elódia Xavier. Tais investidas mais abrangentes são de grande valor para a compreensão do fenômeno literário como um todo. Também recorremos àqueles que se dedicaram à história da literatura brasileira, como Antonio Candido, e Vera Lins e, mais precisamente, ao movimento modernista, como Mário da Silva Brito, Mário de Andrade, Eduardo Jardim de Moraes, Eneida Maria de Sousa e Marília Rothier Cardoso, uma vez que os escritores abordados nesta pesquisa dialogaram com as propostas vanguardistas. Os capítulos 3 e 4, ―Os contos noturnos de João Alphonsus‖ e ―Os contos vespertinos de Marques Rebelo‖, foram organizados paralelisticamente. Primeiro, uma seção inicial contextualiza os autores no panorama literário da época, em especial no cenário modernista mineiro e carioca, respectivamente. Nesse sentido, buscamos aqueles que estudaram particularidades regionais dos movimentos: em especial, Fernando Correia Dias1 e Humberto Werneck – e os depoimentos de Mário de Andrade, Carlos Drummond e Pedro Nava – sobre o modernismo em Minas Gerais; e Monica Velloso e Ângela de Castro Gomes, que focalizam

1 Não se trata do artista plástico luso-brasileiro, marido de Cecília Meireles, morto em 1935, mas, sim, de um homônimo, advogado, sociólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, falecido em 2012. 15

a vertente desenvolvida no Rio de Janeiro. Em seguida, passamos à análise detida dos contos, amparados pela fortuna crítica dedicada aos autores, estabelecendo concordâncias e discordâncias: comparecem mais recorrentemente as análises de Fernando Correia Dias, Ivan Marques e Domingos Guimaraens, sobre João Alphonsus, e Mário Luiz Frungillo, Luciano Trigo e Raúl Antelo, sobre Marques Rebelo. Encerramos os capítulos com uma síntese sobre as tendências formais da produção constística de cada autor. Na última parte da tese, ―Um encontro de contistas entre pastéis de nata e escorpiões‖, apresentamos um cotejo das obras – pontos de contato e de contraste em relação aos temas, personagens e estruturas narrativas – e concluímos a pesquisa desenvolvida nos últimos quatro anos, apontando possibilidades futuras.

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2 BREVE PANORAMA DO CONTO BRASILEIRO

2.1 DAS ORIGENS ATÉ A DÉCADA DE 1930

O mais antigo gênero literário, nascido na Ásia aproximadamente em 6.000 a.C., quando hieróglifos egípcios narravam histórias de reinados (cf. CAVALHEIRO, 1954, p. 18), ou ainda antes, no século X a.C. (cf. MOISÉS, 1978, p. 99), o conto é popularizado no Brasil a partir da década de 1820, quinhentos anos depois do surgimento do Decameron (1348), de Bocaccio, e trezentos anos depois de Contos e histórias de proveito e exemplo (1575), de Gonçalo Fernandes Troncoso, pioneiro do gênero em Portugal, de acordo com Hohlfeldt (cf. 1981, p. 16). As narrativas francesas e inglesas, as primeiras divulgadas por aqui, eram publicadas em jornais e atraíam os leitores pelo enredo caudaloso e apaixonado e pelo final impactante, típicos da prosa romântica, que inspira nossos primeiros contistas, como Álvares de Azevedo, Barbosa Rodrigues, Basílio de Magalhães, Bernardo Guimarães, , , Gentil Homem de Almeida Braga, Gonçalves de Magalhães, Guimarães Júnior, e Joaquim Norberto de Sousa e Silva. Graças à divulgação na imprensa, o conto folhetinesco se consolida, e aparecem os textos hoje considerados precursores da ficção nacional (cf. ALENCAR, 1969, p. 219). Se por um lado o veículo publicitário torna o gênero conhecido e colabora para a democratização da leitura, por outro determina a forma do conto neste período – ―leitura de uma só vez, extensão curta, efeito único, apenas um enredo‖ (GALVÃO, 1982, p. 169) –, uma vez que o jornal comum ―é pouco propenso a ousadias vanguardistas e códigos inovadores, por princípio de decifração difícil‖ (GALVÃO, 1982, p. 169). Por isso, a maioria dos pesquisadores considera que o conto brasileiro adquire consistência a partir da produção de Machado de Assis, porque os textos antecedentes seriam desinteressantes e datados, incapazes de permanecer nas graças do público. Deliberadamente moralizadores – nesse sentido, semelhantes aos medievais, impregnados por artificialismo e impregnações moralizantes (cf. MOISÉS, 1978, p. 99) –, nossos primeiros contos apresentavam conteúdo filosófico e malícia (cf. LIMA, 1986, p. 45). Inspirados nas correntes literárias de além-mar e movidos pelos ventos nacionalistas incipientes, estimularam debates sobre pátria e liberdade, conforme explica Antonio Candido no capítulo ―O aparecimento da ficção‖ (cf. 1964). Por exemplo, as histórias populares de Lindolfo Gomes, Sílvio Romero e João Ribeiro revelavam uma ―compreensão psicológica de um povo‖ (CAVALHEIRO, 1954, 17

p. 20), embora tenham sido, quase todas, importadas da Europa. Ilustravam também o desejo nacionalista as histórias dos índios, de Basílio de Magalhães, imbuídas de ―profundo sentimento poético e largos surtos de imaginação‖ (CAVALHEIRO, 1954, p. 19), nas quais os elementos naturais eram mais protagonistas do que os humanos. Entretanto, o crítico aponta para as ―generalizações imaginosas em prejuízo do senso crítico, com total ausência de análise‖, além de criticar a linguagem e a técnica narrativa romântica (cf. CAVALHEIRO, 1954, p. 20-24). A crítica de Mário da Silva Brito é mais austera ainda: afirma que o conto produzido pelos românticos ―superficiais‖, ―fúteis e inconsequentes‖ era ―incaracterístico‖, ―coisa informe e vaga‖ (1961, p. 6), conquanto os autores fossem coerentes e sinceros em sua visão de arte e do mundo: ―A novidade do gênero, se atraiu a imaginação romântica, que nele via amplas e inúmeras possibilidades de expansão de ideias e sentimentos, de lições e experiências, também a assustou e aturdiu‖ (1961, p. 4). Os contos de Gonçalves de Magalhães, por exemplo, de melodrama esparramado, conduzido pelo narrador conforme as conveniências e os efeitos que pretendia causar, ofereciam mil peripécias e dificuldades para a união dos personagens. Para Brito, uma vez que o gênero essencialmente ―repudia a prolixidade, a eloquência, o excesso de imaginação, a fantasia, o sentimentalismo, as expansões derramadas, a exuberância de emoções e de linguagem‖ (1961, p. 2-3), e o espírito romântico exige esse espaço, o resultado só poderia ser negativo. De uma maneira geral, os escritores românticos brasileiros não investiram no gênero, em especial pela incontinência verbal própria do movimento – herdada de Chateaubriand e Victor Hugo (cf. CAVALHEIRO, 1954, p. 24), muito lidos pelos brasileiros do século XIX –, incompatível com a sabida concisão característica dos contos. Os motivos acima arrolados tentam justificar por que os contos brasileiros não lograram grande sucesso e consideração até o final do século XIX. Quem foge à tendência é Noite na Taverna (1855), de Álvares de Azevedo, que reúne narrativas sombrias, influenciadas por Hoffman e Byron, nas quais personagens disputam a glória de ter vivido a mais louca aventura por amor, e é considerado, talvez unanimemente, o melhor livro de contos do romantismo brasileiro. Noite na Taverna é tão importante na história da literatura que vários escritores tentaram imitá-lo, como Fagundes Varela, Teodomiro Alves Pereira, Ferreira de Menezes, Antônio Manuel dos Reis e vários outros, mencionados por Homero Pires, importante biógrafo e organizador das Obras completas de Álvares de Azevedo (1942). Outro romântico, Bernardo Guimarães, autor de Lendas e romances (1871) e O pão de ouro (1879), também é lembrado de maneira positiva, em especial por ter escrito ―Dança dos 18

ossos‖, cuja linguagem amena e agradável teria colaborado a que sobrevivesse ao tempo (cf. CAVALHEIRO, 1954, p. 23). Sempre muito numerosos, os contos de teor regionalista lograram fama para além das tendências românticas oitocentistas: publica Pelo sertão (1898), povoado pelos tipos e aspectos do interior mineiro, e como ele, outros contistas, inspirados pelas estéticas finisseculares, pretenderam registrar uma amostragem da realidade natural ou social e documentação das especificidades culturais brasileiras, fazendo uso do ―conto de enredo‖ (sobre o qual trataremos em seguida), baseado na ação intrincada (cf. LUCAS, 1989, p. 101). Concordamos com Edgard Cavalheiro, um dos mais importantes estudiosos do gênero no Brasil, para quem devem ser estudados ―aqueles que tateiam o terreno, embora sem se realizarem‖ (1954, p. 19). Não há um consenso dos estudiosos sobre o mais antigo precursor da narrativa curta no Brasil, mas a maioria concorda com Herman Lima (1986, p. 46) que ―A caixa e o tinteiro‖, de Justiniano José da Rocha, foi o primeiro conto publicado na imprensa (em O cronista, de 26/11/1838). Porém há quem afirme, como o professor Marcus Vinicius Nogueira Soares (2008), que o texto é um artigo; ou, como Barbosa Lima Sobrinho (1960), que esses primeiros contos se assemelhavam a crônicas, cujo objetivo era conquistar o leitor da época. Na verdade, os autores não sabiam que nome dar ao gênero ao qual se aventuravam: Joaquim Norberto chamou seus contos de ―romance‖, e Gonçalves de Magalhães, de ―novela‖ (BRITO, 1961, p. 6). Até hoje, quase todo ensaio crítico ou teórico sobre o gênero começa com a constatação de sua conceituação nebulosa (cf. PASSOS, 2001, p. 67), assunto sobre o qual trataremos em seguida. Outra convergência dos especialistas é a de que Joaquim Norberto de Souza e Silva, fabulador de fundo histórico, é ―pai do conto brasileiro‖ (CAVALHEIRO, 1954, p. 22), tendo publicado Romances e novelas (1852), em que encontramos ―As duas órfãs‖, texto conhecido dos leitores de jornal desde 1841 (cf. HOHLFELDT, 1988, p. 24). Além disso, vale lembrar que nossos primeiros contistas contribuíram para que, em seguida, surgisse o romance brasileiro, seja no rocambolesco O filho do pescador (1843), de Teixeira e Souza, seja no aclamado A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo. Também esses apostavam em enredos simples, personagens estereotipados e desfechos grandiosos, conferindo coesão e sentimento de unidade ao todo. Atenção especial era dada à intriga, desdobrada em mil peripécias, e ao espaço, retratado de maneira pormenorizada. Tal estrutura narrativa nos remete à proposta de Edgar Allan Poe (1809-1849), renomado contista e teórico norte-americano, para quem as qualidades básicas de um conto – intensidade, brevidade, unidade e verdade – eram alcançadas por meio do ―single effect‖ 19

(1994, p. 61). O escritor, no célebre texto ―Review of Twice-Told Tales‖ (1842), sobre contos do escritor conterrâneo Nathanael Hawthorne, indica que uma narrativa curta deve ser previamente planejada e ―conceber com cuidado deliberado a elaboração de um certo efeito único e singular‖ para, assim, criar ―os incidentes, combinando os eventos de modo que possam melhor ajudá-lo a estabelecer o efeito anteriormente concebido. (...) Em toda a composição não deve haver sequer uma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não leve àquele único plano pré-estabelecido‖2 (POE, 2016, p. 4). A justificativa do autor é clara e se estende a outros gêneros:

É necessário apenas dizer a respeito disso que em quase todas as categorias de composição a unidade de efeito ou de impressão é um ponto da maior importância. Além do mais, está claro que esta unidade não pode ser totalmente preservada em produções cuja leitura não possa ser feita de uma assentada. (...) Todas as emoções elevadas são necessariamente transitórias. Assim, um poema longo é um paradoxo. E sem unidade de impressão, os efeitos mais profundos não podem realizar-se. Os poemas épicos foram o fruto de um sentido imperfeito de Arte e seu predomínio não mais existe. Um poema curto demais pode produzir uma impressão viva, mas jamais esta será intensa ou duradoura. Sem uma certa continuidade de esforço, sem uma certa duração ou repetição, a alma nunca é profundamente tocada. (...) A brevidade excessiva degenera em epigramatismo, mas o pecado da extensão excessiva é ainda mais imperdoável.3 (POE, 2016, p. 3-4)

Anos depois, em ―A filosofia da composição‖ (1846), análise que faz do próprio poema narrativo ―O gato preto‖, Poe ratifica que ―por necessidade psíquica, todas as excitações intensas são breves‖ (2004, p. 37) e que ―a brevidade tem que estar em proporção direta com a intensidade do efeito pretendido‖ (2004, p. 38). Nesse sentido, o conto brasileiro também se desenvolveu associado à ideia da curta extensão. Como observa H. Bonheim, ―não há dúvida de que esta limitação de extensão arrastou outras limitações que tendem a ser observadas: um reduzido elenco de personagens, um esquema temporal restrito, uma ação simples ou pelo menos apenas poucas ações

2 ―If wise, he has not fashioned his thoughts to accommodate his incidents; but having conceived, with deliberate care, a certain unique or single effect to be wrought out, he then invents such incidents – he then combines such events as may best aid him in establishing this preconceived effect. (...) In the whole composition there should be no word written, of which the tendency, direct or indirect, is not to the one preestablished design.‖ (POE, 1994, p. 61). 3 ―We need only here say, upon this topic, that, in almost all classes of composition, the unity of effect or impression is a point of the greatest importance. It is clear, moreover, that this unity cannot be thoroughly preserved in productions whose perusal cannot be completed at one sitting. (...) All high excitements are necessarily transient. Thus a long poem is a paradox. And, without unity of impression, the deepest effects cannot be brought about. Epics were the offspring of an imperfect sense of Art, and their reign is no more. A poem too brief may produce a vivid, but never an intense or enduring impression. Without a certain continuity of effort – without a certain duration or repetition of purpose – the soul is never deeply moved. (...) Extreme brevity will degenerate into epigrammatism; but the sin of extreme length is even more unpardonable.‖ (POE, 1994, p. 60). 20

separadas, e uma unidade técnica e de tom (...) que o romance é muito menos capaz de manter‖ (1982, apud REIS; LOPES, 2007, p. 79). Cleusa Passos recorda que a disseminada estética do efeito único, em geral atribuída apenas a Edgar Allan Poe, tem raízes na análise elogiosa que Goethe, um século antes, havia feito das narrativas breves alemãs de poucas personagens e acontecimentos, que provocavam ―unidade de sentido‖ peculiar. A ideia de Poe também é semelhante à de outro alemão, Hoffmann, que, décadas antes, havia insinuado a necessidade de um ―núcleo sólido‖ nas narrativas fantásticas. Dessa maneira, a pesquisadora demonstra como o americano, amparado em importantes pensadores,

estabelece traços teóricos para uma vertente literária que agradava a muitos leitores e já inquietava determinados autores. Fundamental para o entendimento crítico de importante viés da contística atual, sua perspectiva insiste na habilidade do escritor, despontando desde a primeira frase e voltada para a própria procura do ―efeito de sentido‖, único e singular, em torno do qual gira a combinação de eventos e incidentes, responsável pela obtenção de um ―desígnio preestabelecido‖. (PASSOS, 2001, p. 68-69)

Como vemos, a perspectiva de Poe estava inserida na estética romântica de seu tempo. Por mais que especialistas critiquem a qualidade das narrativas curtas brasileiras da época, eles reconhecem que, imbuídas de espírito, devoção, amor, labor, constância, foram as primeiras a arriscarem interpretações sobre nossa identidade e ―representam uma etapa básica, experimental, abridora de rumos, construtiva do nosso nacionalismo literário‖ (BRITO, 1961, p. 6). Cotejar os contos românticos aos posteriormente escritos nos revela a evolução do gênero no Brasil, ―o árduo esforço que o artista brasileiro desenvolveu para dominar o seu instrumento de expressão‖ (BRITO, 1961, p. 6). Se os primeiros contos de Machado de Assis, em Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873), ainda presos à estética romântica, apresentavam personagens estereotipados (tipos femininos – a faceira, a virgem sentimental, a caprichosa – e masculinos – o cínico, o cético, o apaixonado infeliz), os posteriores investiram irônica e maliciosamente na contradição dos sentimentos humanos, da perfeição, da relatividade e da inutilidade das coisas e atitudes (cf. CAVALHEIRO, 1954, p. 25-27). Em Papéis avulsos (1882) e Páginas recolhidas (1899) as histórias sublinham a complexidade dos personagens e do tema e dão menor destaque ao cenário. Assim, Machado fixava uma forma narrativa, pautada na apresentação dos caracteres, na exposição dos episódios e na preparação do clímax (cf. LIMA, 1986, p. 48) – tudo isso naquela estrutura de contenção típica do conto teorizado por Edgar Allan Poe. 21

A estética realista angariou muitos contistas brasileiros no final do século XIX, autores que se notificaram no gênero e fizeram com que, no mesmo século em que apareceu no Brasil, o conto já conquistasse lugar sólido e autônomo no panorama literário (cf. STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 542). O conto realista, que Massaud Moisés também chama de ―tradicional‖ ou ―clássico‖, identificou-se ―pela estrutura rigorosa de começo, meio e fim; epílogo imprevisto, próximo da realidade concreta e histórica; encontrou em Maupassant o mestre e o modelo‖ (1978, p. 103). Nessa esteira, há textos de , João Ribeiro, Alberto Rangel, e . Como veremos, a obra de Marques Rebelo estabelecerá forte contato com a desse grupo, mas, em especial, com a de Manuel Antonio de Almeida. Outros escritores, como Aluísio Azevedo, em Demônios (1893), assumiram foco narrativo naturalista e, por vezes, expressaram a realidade sob o ponto de vista científico ou jornalístico, fazendo com que a estética se tornasse ―a pedra de toque do nosso conto, a partir do final do século passado [XIX], até o Modernismo de 22‖ (LIMA, 1986, p. 49). Alguns contistas sofreram outra influência, apreciadores do preciosismo da forma e da chave de ouro; essa aproximação entre soneto parnasiano e conto realista foi feita por Sílvio Romero, no prefácio a Dona Dolorosa: anomalias sexuais (1922), de Theo Filho, visto que em ambos os gêneros visava-se à condensação, o que requeria um nível elevado de acabamento e unidade, e à funcionalidade do desfecho, em razão do qual se organizavam as outras partes (cf. LUCAS, 1989, p. 109). Menos abundantes, os contistas simbolistas, como Nestor Vitor, em Signos (1897), valorizavam os efeitos sensoriais da linguagem e suas polissêmicas sugestões mais que os elementos narrativos tradicionais, pois queriam expressar sentimentos refinados por meio do vocabulário precioso e desprender os homens da materialidade em direção à transcendência (cf. MIGUEL-PEREIRA, 1957, p. 228-230). Os simbolistas prezavam pela autonomia e liberdade, buscando o lado enigmático e subterrâneo da razão capaz de transformar a vida. Assim se posicionaram contra o projeto iluminista, ―que acredita na ciência como esclarecedora do universo e no progresso tecnológico como proposta de felicidade‖ (LINS, 2010, p. 29). Tal impulso também motivou alterações na forma narrativa, a ponto de, muitas vezes, os textos adquirirem estrutura narrativa tão distinta da tradicional e não serem mais chamados de ―contos‖ e, sim, de ―poemas em prosa‖ ou ―fantasias‖. A tese de Marcelo José Fonseca Fernandes, ―O conto simbolista no Brasil‖ (2014), oferece análise e uma antologia desses textos de difícil acesso; a de Gilberto Araújo de Vasconcelos Júnior, ―O poema em 22

prosa no Brasil (1883-1898): origens e consolidação‖ (2014), investiga a importância do gênero, muitas vezes confundido com o conto, no movimento simbolista brasileiro. Assemelham-se de certa maneira à última fornada descrita os contos de Anton Tchekov (1860-1904). Em capítulo dedicado ao Impressionismo europeu, Arnold Hauser explica que o russo foi responsável por uma nova vertente ficcional, que revelava o mundo visto pelo homem da cidade, acentuando que a

realidade não é um ser, mas um devir, não é um estado, mas um processo. (...) Uma arte de acordo com tal mundo não se limitará a salientar a natureza momentânea e transitória dos fenômenos, não verá no homem simplesmente a medida de todas as coisas, mas buscará o critério de verdade no hic et nunc do indivíduo. O ocasional será para ela o princípio de tudo que é, e a verdade do momento invalidará, segundo ela, toda e qualquer outra verdade. (HAUSER, 1958, p. 428-429)

Hauser estranha que a cidade moderna, aglomeradora de pessoas, tenha dado origem a uma arte íntima como a impressionista, cujas raízes estão ―no sentimento da singularidade e da solidão do indivíduo‖ (1958, p. 428). Neste lugar, porém, é que a sensação de estar perdido na multidão cresce, e ―os estados de espírito mais sutis se combinam com a mais rápida alternância das sensações imaginável‖ (1958, p. 435). Entretanto, tamanha sensibilidade não resulta em alegria: Tchekov é apologista da ineficácia e da falência e considera o insucesso e a solidão ―o destino inevitável dos melhores‖ (HAUSER, 1958, p. 468). A passividade e a indolência típicas de seus textos, em que nada atinge um fim ou um objetivo, e a forma episódica da narrativa (a ação reduzida ao mínimo) justificam seus contos serem chamados de ―drama estático‖ (LUCAS, 1989, p. 111). Neles, os acontecimentos exteriores são irrelevantes: ―Assim como Degas desloca importantes elementos da representação para a margem do quadro (...), Tchekov termina as suas pequenas novelas e peças de teatro com uma anacruse, com a intenção de provocar a impressão de inconcluência, de inesperado e de fim casual e arbitrário‖ (HAUSER, 1958, p. 468). A ―absurdidade da vida‖ (HAUSER, 1958, p. 500) anunciada na ficção de Tchekov influenciará vários escritores, como Kafka e Joyce: ―todas as formas de justaposição e simultaneidade em que o não simultâneo, o incompatível são forçados, nada mais representava do que a expressão de um desejo de dar unidade e coerência, sem dúvida de uma maneira paradoxal, ao mundo atomizado em que vivemos‖ (HAUSER, 1958, p. 501). Devido à novidade de sua proposta, Tchekov foi o contista que mais gerou discípulos depois de Poe, a ponto de, no século XX, se estabelecerem duas tendências no âmbito das 23

narrativas curtas: a do ―conto de enredo‖, fomentado pelo americano, e a do ―conto de atmosfera‖, propagado pelo russo. O primeiro, também chamado de conto ―tradicional‖ ou ―de intriga‖, tem como objetivo criar o efeito de sentido único, já apontado anteriormente, por meio de um epílogo que sempre guarda (e determina) um enigma, desvelado no final (cf. MOISÉS, 1978, p. 102) sem deixar ambiguidades (cf. LUCAS, 1989, p. 110), através de incidentes cuidadosamente preparados, mas de curta extensão (cf. GALVÃO, 1982, p. 169). Já no segundo, também chamado de conto ―psicológico‖ ou ―introspectivo‖, típico da modernidade, o enredo é esfacelado, os caracteres são desconvencionalizados, o referencial é menos externo, e o texto se volta para o próprio processo narrativo, se aproximando, assim, da expressão poética (cf. LUCAS, 1989, p. 109-110). O conto de atmosfera prescindiria, então, ―de um desfecho determinante, detendo-se mais na sugestão de ambiente e na criação de estados de espírito. (...) é mais simbolista e estetizante, privilegiando-se de outras experiências que não o realismo, o realismo tardio e o naturalismo. Predominará mais tarde, invadindo o presente século [XX]‖ (GALVÃO, 1982, p. 169-170). Massaud Moisés prefere chamá-lo de ―conto moderno‖, explicando que apresenta características fundamentais do gênero (―o enredo persiste, ainda que implícito, o desfecho perde o ar de surpresa, mas não significa que a ação se prolongaria depois dele; a escolha de situações menos realistas promove o desdobramento da aura poética, mas preserva as unidades de tempo, ação e lugar‖ (1978, p. 103)) e ―condensa o enredo num mínimo indispensável; busca a retratação de cenas intimistas ou introspectivas; Anton Tchekov e Katherine Mansfield foram seus introdutores‖ (1978, p. 103). Assim, no Brasil do início do século XX, ―a corrente documental e realista da narrativa vai ser temperada pela prosa impressionista, mais interessada na atmosfera que na perspectiva e no contorno das personagens, incidindo mais nos processos mentais do que na representação da realidade externa‖ (LUCAS, 1989, p. 92). Os contistas brasileiros da época beberam de fontes diversas: da romântica de Poe, da realista-naturalista de Maupassant, da impressionista de Tchekov (poucos autores nacionais conheciam então a obra do russo (cf. LIMA, 1986, p. 62)) e de outras menos divulgadas. João Alphonsus e Marques Rebelo, formados pelo conto de enredo, também foram afeitos ao conto de atmosfera e inscreveram em suas narrativas uma visão de mundo desencantada e uma maneira sugestiva de narrar, como em seguida notaremos. De acordo com a listagem oferecida por Antonio Hohlfeldt (1988, p. 214), na virada do século, o primeiro contista brasileiro a publicar foi Virgílio Várzea (Contos de amor, 1901, Lisboa), contudo o autor mais profícuo foi, sem dúvida, o veterano , que lançou 24

16 livros de contos nas três primeiras décadas do século XX. Generosa também foi a fornada oferecida por Monteiro Lobato, que publicou seis títulos em São Paulo entre 1918 e 1923. No Rio de Janeiro, Adelino Magalhães, selecionado por Elódia Xavier (1987) como referência do conto pré-modernista, publicou cinco livros, entre 1916 e 1926, seguido de Gastão Cruls e Ribeiro Couto, cada um tendo distribuído quatro títulos no período. Apesar de numerosos naquele momento, os contistas brasileiros não haviam conquistado o público nacional, que ainda preferia a ficção estrangeira, fato que Cavalheiro justifica devido à ―falsa literatura‖ (1954, p. 32) oferecida por autores como Coelho Neto, cuja linguagem, tema, personagens e meio soavam postiços. Agripino Grieco critica alguns contistas que ―viajaram na literatura de primeira classe com bilhetes de segunda‖ (apud CAVALHEIRO, 1954, p. 29). Entretanto, com a publicação de Urupês (1918) – um dos livros de contos brasileiros mais lidos no país –, o gênero se tornou mais popular, graças ao efeito de surpresa, à caricatura, ao gracejo patético, às cenas melodramáticas (cf. LUCAS, 1989, p. 116). O tratamento dado por Monteiro Lobato aos costumes e às paisagens brasileiras e a linguagem empregada, próxima à da fala, teria promovido a ―renovação do conto nacional‖ (CAVALHEIRO, 1954, p. 34), além de um grande movimento editorial. Surgiu, assim, um novo modelo para o conto – dezenas de escritores seguiram os passos de Lobato, como Carvalho Ramos, Gastão Cruls, , Herman Lima, Humberto de Campos e Léo Vaz –, e a recepção de seus livros superou à de Coelho Neto (cf. no prefácio ―Os imprescindíveis contos de Monteiro Lobato‖, de Beatriz Resende, que introduz a mais recente edição de Contos completos (2014)). A troca cultural entre brasileiros e europeus também impulsionou nossa literatura à busca de novas estratégias estéticas. Contistas como João do Rio, em Dentro da noite (1910), e Lima Barreto, em Histórias e sonhos (1920), injetaram temas e técnicas variadas e, aos poucos, modificaram o panorama da produção ficcional, contribuindo para o posterior desenvolvimento do Modernismo, uma vez que viveram as contradições modernas e escreveram a partir delas (cf. LINS, 2010, p. 29). O primeiro tratou de aspectos sórdidos da sociedade de maneira delicada e ressaltou o lado curioso, irônico e anticonvencional das instituições e indivíduos (cf. CAVALHEIRO, 1954, p. 30). O segundo, que manteve intensa correspondência com Monteiro Lobato, como este, preocupou-se com a questão sociopolítica do Brasil e sua identidade. Imbuídos da literatura tradicional, mas influenciados pelos contos de atmosfera de Tchekov e pelas estéticas vanguardistas europeias, numa época de crescente comunicação entre os povos, especialmente pela urgência de notícias da guerra, alguns escritores brasileiros 25

se dedicaram à busca de novos temas e formas narrativas, especialmente durante as décadas de 1920 e 1930. Mesclavam o cotidiano que os cercava a elementos narrativos muitas vezes esfumaçados: personagens pouco delineados (ou vistos apenas por um ângulo muito parcial do narrador), enredos fragmentados, desfechos (outrora tão coerentes com o enredo) que chocavam leitores desavisados ou que simplesmente não existiam. João Alphonsus e Marques Rebelo fazem parte desse grupo de contistas, do qual Alcântara Machado e Mário de Andrade foram os primeiros colaboradores. Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), desde muito jovem jornalista e escritor, participou da fundação da Revista Terra Roxa e Outras Terras, em 1926, e, dois anos depois, publicou o livro de contos Brás, Bexiga e Barra Funda, em que trata do cotidiano dos imigrantes italianos e dos ítalo-descendentes na cidade de São Paulo, expressando-se numa linguagem próxima da coloquial. No prefácio (nomeado ―Artigo de fundo‖ e assinado ―A Redação‖), anunciava seu modo poético: ―Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias‖ (MACHADO, 1981, p. 7); antes, na página de rosto, abaixo do título, lia-se ―Notícias de São Paulo‖. Ainda em 1928, com Oswald de Andrade, fundou a Revista de Antropofagia e, em 1931, juntou-se a Mário de Andrade para publicar a Revista Nova. Faleceu precocemente no Rio de Janeiro, para onde veio devido à atividade política, em 1935, deixando o livro Mana Maria no prelo. Já o amigo Mário de Andrade (1893-1945), célebre pela prosa curta oferecida em Contos novos (1947), desde Primeiro andar (1926) já buscava novos caminhos narrativos, fugindo da ―velha técnica – um princípio, a história e o fecho de ouro‖ (CAVALHEIRO, 1954, p. 37). Os paulistas e outros companheiros foram muito importantes na vida literária de João Alphonsus e Marques Rebelo, que iniciaram sua produção contística em um momento crucial na história artística brasileira. A afirmação de Edgard Cavalheiro sobre os contos dessa época – ―nunca o gênero foi rico e pródigo de surpresas como no decênio que vai de 1920 a 1930‖ (1954, p. 38) – anuncia a qualidade dos textos interpretados nesta tese, cujos contistas buscaram uma maneira própria de escrever sobre temas diversos, em especial a cidade, a liberdade e a morte. Antes da análise propriamente dita de seus contos, ainda refletiremos sobre os conceitos de modernidade e modernismo que cunharam outros dois rótulos muitas vezes atribuídos a eles, o de inventores do ―conto moderno brasileiro‖ e/ou do ―conto modernista brasileiro‖.

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2.2 O CONTO MODERNO E O CONTO MODERNISTA BRASILEIRO

Se a definição do gênero em questão já era tarefa complicada, mas executável, até o século XIX, com o advento de narrativas imbuídas do espírito moderno, as descrições teóricas se tornaram cada vez mais confusas, superficiais ou inócuas. Só para efeito de ilustração (teríamos muitos exemplos a citar aqui), assinalamos a pouco rentável sugestão de Edgard Cavalheiro, importante entusiasta e historiador do gênero no Brasil, tendo organizado numerosas antologias na década de 1960: para ele um conto nasce de qualquer história banal desde que um escritor de talento entre em cena (cf. 1954, p. 16). De maneira semelhante, outro estudioso, Osmar Pimentel, além de repetir o consenso – que o conto requer síntese e concentração –, é enigmático ao afirmar que o gênero tem o ―pudor de dizer apenas o necessário para poder insinuar tudo‖ (apud BRITO, 1961, p. 3). Ainda outro grande estudioso, tendo destinado um livro inteiro ao tema, A arte do conto (1972), Magalhães Júnior o define como

uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia dos personagens nem nas motivações de suas ações. Ao contrário, procura explicar aquela psicologia e essas motivações pela conduta dos próprios personagens. A linha do conto é horizontal: sua brevidade não permitiria que tivesse um sentido menos superficial. (1972, p. 10)

A conceituação, apesar de objetiva, não é produtiva, pois não considera a evolução do gênero e descreve apenas uma narrativa simples. Assim, ao longo da história da literatura, muitos autores compartilharam a dificuldade de conceituação genérica, inclusive vários contistas, o que pode ser conferido nos títulos de vários livros de contos, batizados de crônica, novela, narrativa etc. Cleusa Passos relaciona o fenômeno à natureza mista do gênero desde suas origens:

Logo, em épocas distantes e distintas, os autores reforçam os percalços da teorização de uma forma, cuja origem se vincula à oralidade e ao caráter mítico ou iniciático, elementos largamente discutidos por Mircea Eliade e Propp, entre outros. Fundada na ambiguidade de comportar uma verdade (a do mito) e, ao mesmo tempo, invenção (não é o mito, mas seu mediador), acaba por instituir um jogo de alternância entre a realidade e a ficção. (2001, p. 80, grifo do autor)

A professora sublinha o critério temático na conceituação do conto, recordando sua ausência na lista aristotélica dos gêneros literários, sua longevidade e versatilidade, manifestando-se em vieses distintos (histórico, moral, maravilhoso, popular etc), seja em função do assunto, do tom ou do ponto de vista. Em relação aos aspectos formais típicos do gênero, Passos destaca três: ―síntese, singularidade e tensão literária‖ (2001, p. 87). 27

Vale lembrar que, na década de 1930, André Jolles, no clássico Formas simples, já havia sublinhado a ancestralidade das narrativas curtas, advindas da oralidade, atribuindo-lhes como características primárias universalidade, generalidade e fluidez, que visariam sublinhar um elemento moral, de justiça e equilíbrio (cf. 1972, p. 216). As descrições de Passos e Jolles alargam a interpretação tradicional a respeito do gênero, focada, em geral, apenas na estrutura narrativa. Assim, implicitamente, os estudiosos indicam a falibilidade da velha conceituação, muito baseada na proposta de Edgar Allan Poe, que sublinha ―o prisma dramático, univalente [do conto]: contém um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, enfim, uma única célula dramática‖ (MOISÉS, 1978, p. 100). No início do século XX, diante de contos que fugiam à regra acima, Sérgio Buarque de Holanda, importante líder modernista carioca, os associou ao universo lírico: no ensaio ―Em torno de Velório‖, sobre o livro de Rodrigo Melo F. de Andrade, Sérgio relaciona o conto à ―visão do poeta‖ e o romance à ―observação‖, uma vez que, no primeiro, deseja-se ―atingir algumas formas mais esquivas da realidade, que, uma vez captadas, ajudam a operar- se a discriminação e a seleção requeridas pelo gênero‖ (2004, p. 134). Direção semelhante toma Norman Friedman no didático ensaio ―O que faz um conto ser curto?‖ (―What makes a short story short?”), que integra o compêndio Short story theories (1976), de Charles E. May. Friedman aponta o que considera os três erros comuns na descrição comparativa que se faz do conto: que apresentaria mais unidade que o romance, que focalizaria mais o clímax do que o curso dos acontecimentos e que não lidaria com a mudança de mentalidades nem com o desenvolvimento das personagens (cf. 2004, p. 220). O norte- americano ilustra seu posicionamento com contos estrangeiros que tornam a definição convencional frágil, chegando à conclusão de que o gênero é constituído por uma ―ação completa‖, que pode ser uma cena, um episódio ou uma trama, e contém ―o que quer que seja relevante para conduzir o protagonista em etapas verossímeis ou necessárias desde o começo, passando pelo meio e indo até o final de uma determinada situação‖ (FRIEDMAN, 2004, p. 225-226). Além disso, discute a extensão do texto: ―a história pode ser curta não porque sua ação é inerentemente curta, mas porque o autor escolheu – ao trabalhar com um episódio ou trama – omitir certas partes dela‖ (FRIEDMAN, 2004, p. 227). Semelhante também é a sugestão de Julio Cortázar, contista e crítico singular, que conceitua o gênero partindo de uma comparação: o conto seria uma fotografia, enquanto o romance, um filme. O contista teria necessidade de

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escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor com uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. (1974, p. 151-152)

Se Cortázar concorda com a ideia de Poe em relação à escolha de um acontecimento singular, que é ―fotografado‖, por outro lado, sugere que o desfecho não conclui racionalmente nada, mas fomenta significados plurais e imprevistos. A escolha do objeto comparativo, uma fotografia, já tem essa intenção, uma vez que ao definir algo com uma imagem metafórica, mais do que oferecer conceituação conclusiva, o ensaísta instiga a reflexão subjetiva dos leitores. Cleusa Passos comenta essa coparticipação dos interlocutores, ideia fundamental para Cortázar: a surpresa final do conto ―delimita o processo de reinvenção da realidade e põe a nu certos movimentos próprios do ser: inquietações sobre si mesmo, sobre o desconhecido, busca de explicações para o universo etc‖ (PASSOS, 2011, p. 69). Para Cortázar, as palavras-chave do gênero seriam significação (do tema), intensidade (da ação) e tensão (da narrativa), estas duas últimas mais importantes que a primeira, uma vez que, por serem responsáveis em dar tratamento literário ao tema, conquistariam o ―sequestro momentâneo do leitor‖; os elementos formais deveriam se ajustar ―à índole do tema‖ (1974, p. 157). O escritor argentino conclui que o conto é ―gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia‖: ―algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência‖ (CORTÁZAR, 1974, p. 151; 149). Escolhemos a metáfora empregada por Cortázar na frase acima para iniciarmos a reflexão sobre o ―conto moderno‖, que estaria ligado à ideia complexa de modernidade (fluida, porém estática). Para Fábio Lucas, a partir do século XX, torna-se mais difícil conceituar o gênero, que teria se adequado ―às exigências da era moderna‖ (1989, p. 108) mais do que os outros: ao acompanhar a evolução da imprensa e das publicações periódicas, o conto teria afrouxado suas fronteiras. Assim, no novo século, alguns escritores abandonaram a estrutura típica do conto e apostaram em novas linguagens expressivas para registrar a modernização das cidades, guiando-se por estilos pessoais. Se Fábio Lucas data a modernidade brasileira do início do século XX (cf. 1989, p. 108), outros estudiosos, como Rodrigues e Marchezan, em ―O conto está em forma e se renova‖, antecipam o movimento inovador para os oitocentos, incluindo, então, na categoria de ―conto moderno‖, tanto o conto de enredo de Poe quanto o de atmosfera de Tchekov (cf. 2012, p. 8). 29

Farta é a bibliografia a respeito do termo ―moderno‖, empregado por muitas áreas do conhecimento humano nas mais variadas épocas. Por isso mesmo é um desafio para a crítica literária o manejo com a nomenclatura, bem como com o vocábulo ―modernista‖. Embora não seja nosso objetivo propor nova teoria sobre esses conceitos, como em geral os textos de João Alphonsus e Marques Rebelo foram (e ainda são) rotulados com um ou outro adjetivo, precisamos revisitá-los. Não se sabe desde quando a palavra ―moderno‖ circula no meio artístico, o que já indica o quanto ela está sujeita a polissemias e controvérsias. Hans Robert Jauss afirma que o termo aparece, no século XVI, nas discussões renascentistas sobre ideias antigas e ―modernas‖, estas últimas sendo consideradas exemplares até o século XIX (cf. VELLOSO, 2010b, p. 14). Entretanto, no século XVIII, aqueles que queriam maior liberdade para o artista como caminho necessário ao conhecimento em direção à inovação e ao progresso reagiram à ideia secular de sobrevalorização do clássico; nesse sentido, ocorre em Paris uma discussão conhecida como a ―querela entre os antigos e os modernos‖ (VELLOSO, 2010b, p. 14). Colaboraram nesse contexto as reflexões metafísicas de Kant e Hume, as análises sobre paixão, sensibilidade e sexualidade de Rousseau, Diderot, Laclos e Sade e o descobrimento da alteridade presente em povos exóticos. Assim instaurava-se o período conhecido como modernité, atrelado ao surgimento da sociedade industrial, da racionalização dos comportamentos e do individualismo em meio ao processo de urbanização e ao incentivo à divisão do trabalho (cf. VELLOSO, 2010b, p. 14). Em âmbito literário, um dos primeiros a abordar e discutir esses temas foi Charles Baudelaire, seja por meio da poesia ou do poema em prosa, seja pelos ensaios críticos mas também entusiastas da modernidade. Em ―O pintor da vida moderna‖, publicado em Figaro (1863), o francês afirma que o artista deve ser um ―homem no mundo‖, ou seja, habitar o numeroso, o movimento, o fugidio, o infinito. O paradoxo apresentado pelo poeta de As flores do mal explica que o ―moderno‖ não é só o novo, como em geral se pensa, mas, sim, a fricção entre as novidades individuais e coletivas de uma sociedade e seus costumes e os hábitos antigos; nesse sentido, cada momento moderno será distinto, único. No Brasil, chamou-se de ―moderna‖ a realidade das principais capitais, em especial Rio de Janeiro e São Paulo, que aliavam conquistas científico-tecnológicas, desenvolvimento urbano-industrial e novas representações culturais (cf. VELLOSO, 2010a, p. 49) a políticas e comportamentos antiquados. Nas capas das revistas brasileiras do início do século XX, tal atmosfera foi simbolizada por perfis femininos, ―inspirando-se tanto nos modelos e atributos clássicos da beleza, como no arrojo dos novos comportamentos e da nova moda‖ (VELLOSO, 30

2010a, p. 46). Marcos como a Exposição Universal de 1908, o Centenário da Independência e a Semana de Arte Moderna de 1922 são importantes momentos simbólicos que ajudam a compreender a complexidade da época. Na verdade, desde o final do século anterior, as vanguardas europeias, as teorias científicas desvinculadas da religião e a remodelação dos centros urbanos haviam motivado reformas sociais e artísticas que se estenderam pelas décadas iniciais do século XX: na primeira, a capital federal ganhou traçado reto e funcional e foi saneada pela política de Pereira Passos, na segunda, ―cidade maravilhosa‖ tornou-se antonomásia da cidade que, tal como a ―cidade luz‖, se iluminaria, graças à eletricidade. Os ideais republicanos de ordem, ciência, cidadania e bem-estar coletivo ditavam as reformas, e houve intelectuais que sobrevalorizaram a modernização calcada na racionalidade técnico-científica. Já outros denunciaram a forma autoritária pela qual ela se estabeleceu, pois as transformações por vezes calaram outras dimensões da vida (do inconsciente e da emoção) (cf. OLIVEIRA; VELLOSO; LINS, 2010, p. 11) como também expulsaram das cidades os habitantes mais pobres, uma vez que ―um organismo saudável, modelo próprio das cidades modernas, deveria se livrar das desordens e das possíveis doenças causadas pela proximidade das elites com a classe popular‖ (SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 39). Vale lembrar que, dos 1.160.000 habitantes do Rio de Janeiro – dados do censo de 1922 (cf. LINS, 2010, p. 34) –, a maioria foi excluída da beleza e dos benefícios gerados pela modernização. Não por acaso, personagens à margem desses ambientes modernos são contemplados por vários escritores da época, inclusive pelos estudados nesta tese. Naquele momento, ―o capital estrangeiro, representado pelos bancos ingleses, o avanço técnico e o jornalismo empresarial impõem um estilo em que a mercadoria domina a cena. Queríamos nos conformar com o mundo ‗civilizado‘, mas esse modelo ficava caricato entre nós, como ainda hoje‖ (LINS, 2010, p. 27). Isso porque, de acordo com a mesma especialista, o esforço de nos tornarmos urbanos e modernos – conquistados na construção da Avenida Central, no surgimento das vitrines, na exposição da moda – era sustentado por uma oligarquia conservadora. A modernidade literária brasileira nasce associada à modernização urbana e à revolução dos costumes e produz, em vários autores, entusiasmo ou ―exagero fantasista‖, expressão que João do Rio emprega em Cinematographo (Chronicas cariocas) (1909) para expressar a euforia sentida devido à ―entrada de capitais para a exploração de riquezas naturais e o desenvolvimento das indústrias‖ (apud SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 36). O discurso exclamativo também é observado em Mário de Andrade na década seguinte; ambos 31

descrevem o Rio de Janeiro com linguagem rebuscada e preciosista, embora alertem para os previsíveis desastres (cf. SOUSA; CARDOSO, 2014, 36). Foram numerosos os dispositivos modernizadores: o cinema, a fotografia, os meios de transporte, a industrialização, a reurbanização, as viagens nacionais e internacionais, a presença do imigrante e a classe operária (cf. SOUSA; CARDOSO, 2014, 33). Além desses, ―café, cigarro, álcool e cocaína ajudam a energizar a sociedade, que procura acelerar seu ritmo no compasso da produção cultural‖ (LINS, 2010, p. 33). Assim, a modernidade é associada à necessidade urgente de consciência acelerada, o que também podia ser percebido por meio das revistas literárias cariocas, nas quais se multiplicavam técnicas que envolviam recorte, colagem, fragmento, foto, poema, conto, crônica e comentário (cf. OLIVEIRA; VELLOSO; LINS, 2010, p. 12). Talvez pela complexa realidade vivida no cenário carioca do início do século, a literatura da cidade, para Mário de Andrade, não se comparava à produzida em São Paulo, que era nada diante do ―brilho do Rio‖, apesar de, na época, a capital paulista já apresentar ares cosmopolitas, devido a seus numerosos imigrantes:

A cidade [carioca] palpita num esto incessante de progresso e civilização. Nela formiga um povo multifário, internacional. Tudo são contrastes, neologismos. Os habitantes movem-se ágeis, a língua é mole, saboreada. Audácias e pasmaceiras... (...) Em literatura, em arte há tradicionalistas a corvejar agouros, como há futuristas em fúria. (apud SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 38)

O panorama sociocultural de São Paulo, forjado pelas mudanças sociais advindas da crescente urbanização e da chegada de estrangeiros, era composto, de acordo com Alfredo Bosi, pela ―nobreza‖ fundiária, burguesia industrial, profissionais liberais, exército, classe operária e suboperária, amálgama que punha várias ideologias em conflito (cf. 1972, p. 339). Por sua vez, Belo Horizonte foi capital construída ―sob a égide da modernidade nascente‖ (SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 18), apresentando prédios e avenidas elegantes, como também automóveis, bordéis, cocaína e certo médico Rabello que, em 1917, fazia operações de mudança de sexo (e inspirou obras literárias como O patinho torto ou os mistérios do sexo, de Coelho Neto) (cf. WERNECK, 1992, p. 33). Para alguns moradores, não havia nada para se fazer em Belo Horizonte – até algumas notícias eram inventadas, informando crimes extraordinários, para vender jornal –, apenas trabalhar, tomar chope e combater a tuberculose (cf. WERNECK, 1992, p. 33-83). João Alphonsus chama a cidade de ―terra de boatos‖ (1955a, p. 37), em carta a Edgard Cavalheiro, publicada na revista O Cruzeiro, reclamando de certa notícia enganosa de que Monteiro Lobato estaria em Belo Horizonte. 32

Erigida por indivíduos vindos dos mais diversos interiores e, em geral, alheios às inovações que forjavam uma capital com traçado geométrico e moderno, em oposição à antiga e barroca capital Ouro Preto (cf. SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 25), Belo Horizonte, inaugurada em 1897, permaneceu, até meados do século XX, com seu ar conservador e provinciano. Em 1925, no artigo ―Nós‖, ―J. do C.‖ associa cultura e civilização, relacionando o aumento da população da cidade com seu desenvolvimento intelectual, uma vez que, a partir daquela década, a maioria de seus moradores não eram apenas funcionários, e, sim, universitários (cf. 2014, p. 42). Esse comentário ratifica a transferência dos antigos habitantes da região, anteriormente chamada de Curral del Rei, para fora da área central da cidade, que fora planejada para abrigar uma ―cidade letrada‖ (SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 39). Nesse sentido, a conhecida viagem dos modernistas paulistas a Ouro Preto, com escala em Belo Horizonte, além de colaborar com a redescoberta dos bens artísticos barrocos, fomentou nova compreensão do que era ser moderno. O elemento arcaico e a tradição nativa passam a ser considerados traços de nacionalidade e modernidade – daí a relação que Mário de Andrade faz entre barroco brasileiro e expressionismo alemão. Assim, coincidindo com a época do avanço moderno, a construção da nova capital mineira gerou diversas contradições, mas fez com que Belo Horizonte tenha apresentado uma modernidade diferente das outras (cf. SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 25-40). A conjuntura apontava para o que era ―ser moderno‖ e tal concepção, em seguida, se associava com o parâmetro do que era, na época, ―ser brasileiro‖ (OLIVEIRA; VELLOSO; LINS, 2010, p. 12). No país, o estabelecimento da ―modernidade‖ coincidiu com a constituição do estado moderno, o que fez com que a arte nova tomasse a ―incubência de delinear os traços característicos da cultura nacional‖ (SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 14), objetivo perseguido explicitamente por alguns contos de Marques Rebelo, como veremos nas ―Cenas da vida carioca‖, no subcapítulo 4.2.2. Enfim, como guia nessa complicada caracterização da prosa moderna, recorremos às indicações de Sousa e Cardoso, que indicam a dificuldade de estabelecer princípios delimitadores da prosa ―moderna, pós-moderna ou antimoderna‖ (até a nomenclatura é posta em xeque) e chegam à conclusão de que prevalecem nela fragmentação narrativa, desconfiança dos meios de comunicação de massa e apropriação de tecnologias que ampliam o público (cf. 2014, p. 31). Antecipamos que os contos de João Alphonsus e Marques Rebelo corroboram as conclusões das pesquisadoras: ambos apropriaram-se do ―impulso econômico e purificador do poético, à procura de efeito impactante‖ (SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 13). 33

Antes delas, Costa Lima indicara como primeira ―linha de força‖ do moderno conto brasileiro, surgido a partir da década de 1920, a chamada ―descoberta das situações coloquiais‖ (1982, p. 175). Entretanto, a classificação não é suficiente quando lembramos, por exemplo, a narrativa romântica de Manuel Antonio de Almeida, que, a seu modo, explorava o cotidiano da cidade carioca. Por sua vez, Cleusa Passos apontou, mais recentemente, dois elementos que ancorariam o conto moderno: a ruptura do conhecido, que cede lugar ao inquietante, e a suspensão temporária da existência mediana pela precariedade, obrigando, na volta, ao viver fosco e banal, porém, numa situação sutilmente diferente (cf. 2001, p. 76). Os contos modernos ainda estariam relacionados aos realistas do século XIX, uma vez que continuariam voltando ―a atenção para os pequenos momentos, os pequenos eventos, seja porque condensam uma ‗vida‘, seja porque na sua singeleza apresentam dados da cristalização do existir‖ (2001, p. 72). De acordo com as concepções acima citadas e com nossa análise dos contos de Marques Rebelo e João Alphonsus, podemos afirmar que ambos incorporaram em sua prosa curta, temática e formalmente, índices que lhes garantem lugar de destaque no conto moderno brasileiro. Os textos adiante analisados encenam tensões cotidianas do início do século XX e personagens que refletem, de alguma maneira, as questões de seu tempo; para tanto os contistas buscaram nova expressão, fugindo, em geral, da fórmula clássica, cujo desfecho emociona, e apostaram em linguagem mais brasileira. Como outros escritores preocupados com o desenvolvimento de novas técnicas de construção de cenários, diálogos e atmosferas, mais ou menos interessados na trama, nossos contistas apostaram na diluição de fronteiras e no embaralhamento de classificações (antes mais rígidas) e na variedade temática. Semelhante ao que aconteceu com a palavra ―moderno‖, a expressão ―modernista‖ também angariou, ao longo do século XX, diversas acepções, embora seja menos polissêmica do que a primeira. Por exemplo, José Veríssimo chamou de ―modernista‖ o movimento brasileiro que, na década de 1870, inspirado no positivismo de Comte, no evolucionismo de Darwin e Spencer e no intelectualismo de Taine e Renan (cf. VERÍSSIMO, 1954, cf. 282- 283), posicionou-se contrário aos valores ruralistas, patriarcais e hierárquicos, predominantes no Brasil, mostrando-se, portanto, revolucionário. Aquelas correntes ideológicas eram o ―novo‖ e influenciariam o pensamento social brasileiro especialmente até 1930. Entretanto, não foi com esse modernismo, do século XIX, que João Alphonsus e Marques Rebelo dialogaram, mas, sim, com aquele de tendência vanguardista, cujo marco simbólico é a Semana de Arte Moderna de 1922. Isabel Lustosa sublinha a contrariedade dos 34

adeptos do movimento em relação à situação de troca com o estrangeiro, sempre nos moldes coloniais: ―estávamos fadados a exportar, junto com o café, referências culturais primitivas a serem elaboradas na metrópole – ainda e sempre Paris‖ (1995, p. 20). Alfredo Bosi também associa o modernismo brasileiro às correntes artísticas europeias; além disso, alerta para certo condicionamento da Semana (vista como o ―signo de 22‖) e explica que, na época, ser ―modernista‖ era sinônimo de ter o estilo dos novos, daqueles que divulgavam ideias estéticas originais em relação aos escritos da época (1972, p. 339). Como o intuito desta seção é levantar conceitos sobre o conto modernista, por ora discutimos ideias mais ou menos comuns aos seguidores da estética, mas, nos capítulos dedicados à obra particular de cada contista, situaremos o movimento particular desenvolvido em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, ambos em diálogo em geral amistoso com o paulista, que será abordado sempre que necessário. Semelhante a Alfredo Bosi, na ―Apresentação‖ da Coleção Modernismo +90, Eduardo Jardim de Moraes (2014) explica que, a partir do final do século XIX, o termo ―modernismo‖ passa a significar a modernização dos costumes resultante da inserção do Brasil no cenário internacional. O movimento então nascente estaria vinculado às estéticas vanguardistas de além-mar, que chegavam rapidamente aqui devido ao desenvolvimento tecnológico dos meios de transporte e comunicação. O intercâmbio artístico-cultural pode ser ilustrado pelas viagens de Oswald de Andrade a Paris e pela visita de Blaise Cendrars, que integra a caravana dos modernistas paulistas a Ouro Preto, em 1924, e publica o caderno de poemas sobre o Brasil Feuilles de route (cf. MORAES, 2014, p. 11). Oswald de Andrade, um dos mais irreverentes do grupo, no Manifesto Pau-Brasil (1924), condensou as críticas modernistas à produção literária brasileira na expressão ―relógio império‖, que deveria ser acertado pelos jovens modernistas (cf. LUCA, 2010, p. 7). Um ano depois, com afirmação semelhante, Carlos Drummond de Andrade termina o ensaio ―Sobre a tradição em literatura‖: ―é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade‖ (2014, p. 33). Para o poeta, líder do grupo modernista mineiro na época, a admiração por ícones literários do passado não deveria levar à imitação, como faziam muitos que veneravam Machado de Assis:

Sua obra tem sido o cipoal em que enredou e perdeu mais de uma poderosa individualidade, seduzida pela sutileza, pela perversidade profunda e ardilosa deste romancista tão curioso e, ao cabo, tão monótono. (...) Se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, que devo fazer? (...) repudiá-lo. (ANDRADE, 2014, p. 33)

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Assim, diferente da arte moderna, nascida do embate entre tradição e inovação, a vanguardista/modernista exigia o rompimento com o passado, inovações que instaurassem outro tempo, em geral por meio da irreverência cômica e rebelde, e reconhecimento por todo esse esforço (cf. LUCA, 2010, p. 7). Em ambiente sempre hostil, esses artistas afrontaram antecessores, os quais acreditavam que simbolizavam instâncias de consagração e legitimação (cf. LUCA, 2010, p. 7). É contra essa ―instituição arte‖ que os vanguardistas reagem, como explica Annateresa Fabris:

A vanguarda é uma função possível da modernidade do século XX e seu traço definidor deve ser buscado na consciência que o artista tem do próprio papel histórico. Descontente com a ―instituição arte‖, formalizada pela sociedade burguesa desde fins do século XVIII, o artista de vanguarda não contesta tanto as linguagens anteriores, mas, antes de tudo, a estrutura na qual a arte é produzida, distribuída e fruída. A ―instituição arte‖ é questionada em dois níveis: como aparato e como ideologia segregadora que separa a produção artística da práxis vital em nome da autonomia. (2010, p. 19)

Mesmo intuito tinha o conto que se intitulava modernista, como o produzido por João Alphonsus: mais do que o moderno, ele desejava causar desconforto, sensação conseguida seja por meio de temas indesejados, seja pelas estruturas narrativas nada convencionais. A repetida frase de Mário Andrade – ―sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto‖ (1972, p. 5) – é blague modernista que inicia o ensaio ―Contos e contistas‖, de 1938, para sublinhar a insubordinada caracterização do gênero àquela altura. Entretanto, o paulista encerra o artigo com outra definição, mais reveladora: ―o que é conto? Em arte, a forma há de prevalecer sempre esteticamente sobre o assunto. O que esses autores descobriram foi a forma do conto, indefinível, insondável, irredutível a receitas‖ (ANDRADE, 1972, p. 8). Mário se referia aos novos contistas, interessados em dar nova estrutura a temas sempre antigos (a sociedade, a guerra, o amor, a existência etc); dessa maneira, indicariam novas maneiras de vivê-los. Como abordamos no próximo capítulo, o conto modernista, ao valorizar aspectos banais do cotidiano, aos quais sempre lançava olhar crítico, preocupou-se em trazer para o texto uma linguagem mais próxima da fala, mas também mais fragmentada, pois

queria ser moderno e mimetizar os novos meios de comunicação: donde a linguagem telegráfica, a estética da fragmentação do discurso, a imitação das tomadas e dos cortes cinematográficos. Queria integrar à sua escrita a rapidez peculiar à tecnologização dos meios de comunicação típicos dessa fase do capitalismo, consequência da aceleração da segunda revolução industrial. (GALVÃO, 1982, p. 170-171)

Como se vê, a utilização do adjetivo ―moderno‖ é variada, até entre os próprios especialistas: acima, Galvão o emprega como sinônimo de ―contemporâneo‖, e não como 36

anteriormente o descrevemos. Para a mesma pesquisadora, no século XX, o conto ganhará liberdade e não mais quererá imitar a linguagem jornalística, mas, sim, a parodiará. A descrição que Galvão faz do conto modernista nos remete, em grande medida, às características básicas da poesia futurista. Isso justifica, em parte, porque diversos jornalistas e intelectuais empregaram, na época, o termo para se referir aos escritores brasileiros que seguiam estruturas inusitadas e experimentais. Contudo, a maior parte de nossos contistas, inclusive João Alphonsus e Marques Rebelo, não concordavam com a valorização ostensiva do funcionalismo e da industrialização nem com o restante do arcabouço teórico propagado por Marinetti. Elódia Xavier, em O conto brasileiro e sua trajetória: a modalidade urbana dos anos 20 aos anos 70, classifica os dez contistas selecionados em pré-modernistas, modernistas e pós-modernistas. Apesar de separar um capítulo para o conto modernista, a professora não constrói uma definição para o gênero e faz uma introdução breve, afirmando que ―quando se trata da evolução do conto é quase impossível estabelecer marcos cronológicos‖ (1987, p. 49) e atribuindo a indefinição do termo ―modernismo‖ no Brasil às várias faces das vanguardas europeias, de quem ele seria caudatário. Como autores representativos, Xavier seleciona Mário de Andrade (―o conto contado‖), Alcântara Machado (―o conto caricatura‖), Aníbal Machado (―o conto surrealista‖), Murilo Rubião (―o conto fantástico‖) e Clarice Lispector (―o conto feminino‖) (cf. 1987, p. 10). Como vemos, a pesquisadora escolhe um nome para cada tendência temática ou formal que percebe importante para a evolução do gênero no país, excluindo, assim, os nomes de João Alphonsus e Marques Rebelo, que talvez comparecessem, de acordo com a explanação de Xavier, o primeiro, na seção dedicada ao ―conto surrealista‖, o segundo, no ―conto contado‖. Os autores centrais desta tese, cada qual à sua maneira, dialogaram com as novidades estéticas que agitavam os centros urbanos da Europa e, em seguida, do Brasil, e se aproximaram, o primeiro intensamente, do movimento modernista desde sua origem. Para confirmar nossa hipótese de que os contos de ambos podem ser considerados modernos, mas apenas os do mineiro são assumidamente modernistas, passamos, adiante, à análise detida da obra contística dos dois.

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3 OS CONTOS NOTURNOS DE JOÃO ALPHONSUS

3.1 O ESCRITOR E O MODERNISMO MINEIRO

João Alphonsus, herdeiro de uma tradição literária secular – o romântico Bernardo Guimarães era tio-avô de seu pai, o simbolista Alphonsus de Guimaraens –, foi um dos ―rapazes desatinados‖ (WERNECK, 1992, p. 42) que chegaram, na década de 1920, repletos de expectativas à recém-criada capital mineira. O epíteto, de autoria de Djalma Andrade, poeta e jornalista influente na época, revela o incômodo produzido pelos textos daqueles jovens, dentre eles Abgar Renault, Abílio Machado, Aníbal Machado, Carlos Drummond de Andrade, Eduardo Barbosa, Gabriel Passos, Mário Casasanta, Milton Campos e Pedro Nava (cf. DIAS, 1965, p. 63; 1971, p. 27), em alguns círculos sociais belorizontinos. O chamado ―grupo mineiro‖ (DIAS, 1971, p. 11), empenhado na renovação da linguagem artística nacional, encontrava-se frequentemente no Café Estrela e na Livraria Alves, na Rua da Bahia. Artur Versiani Veloso, professor de filosofia em Belo Horizonte e personagem de O amunense Belmiro, de Ciro dos Anjos, descreve o ambiente da livraria no artigo ―Os caixotes da ‗Alves‘‖, publicado na revista Panorama, em 1948:

Aquela conversa no Castilho constituiu mesmo uma segunda academia que hoje diríamos – existencialista. Lá estava, na hora certa, o Capanema, o Gabriel Passos, o Francisco Negrão, o Casassanta, o Abgar Renault, o Carlos Drummond, o Emílio Moura, o Ciro dos Anjos, o Flavinho de Melo Santos, o Guilhermino César, o João Alphonsus, o Teixeirão, o Martins de Almeida, o Luís Camilo, o Xico Magalhães e o atual governador [Milton Campos]. Eram os tais que abriam os enormes caixotes de livros que vinham da França. [...] Ocioso dizer das preferências: Anatole France em primeiro lugar, depois Maupassant, Daudet, Olti, Bouget, etc., (...) Os Proust, Gide e Valéry vieram mais tarde, mas chegaram [...]. Verlaine, Mallarmé, Moréas, Regnier, Verhaeren faziam as suas delícias. [...] Sim, Jammes e Claudel e também este esplêndido isolado: Péguy. Eis o que estes homens liam, dia e noite, ferozmente, incessantemente. (VELOSO, 2002, p. 96)

Além dos espaços públicos, havia a redação do Diário de Minas, ―órgão oficial do Partido Republicano Mineiro (PRM) e reduto dos jovens escritores modernistas‖ (DIAS, 1971, p. 38). A importância da imprensa para os propósitos do grupo é comentada por João Alphonsus:

O ―homo politicus‖ mineiro, por esse interior afora, lia o Diário para orientar a discussão política na porta da farmácia ou no salão do clube. E aqueles artigos, em tão respeitável jornal, distribuído de graça por ordem do governo, deviam causar certa impressão ou quando menos certa desconfiança favorável às reformas propostas para as letras e artes... (1965, p. 13)

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Conforme depoimento de Guilhermino César, os modernistas ocuparam a imprensa mineira (cf. WERNECK, 1992, p. 86), todavia isso não significou confluência total de ideias ou ausência de polêmicas. O grupo foi intensamente criticado tanto pelos que rechaçavam inovações artísticas, como por aqueles que, dentro do movimento, defendiam bandeiras distintas, como veremos. João Alphonsus e seus companheiros mais próximos dividiram objetivos ideológicos comuns e estabeleceram relações afetivas profundas. Esse é um dos motivos que levou Fernando Correia Dias, importante estudioso da obra do mineiro, tendo-a analisado por um viés sociológico, a considerar o evento modernista ocorrido nas décadas de 1920 e 1930, em Belo Horizonte, um fato social (cf. 1971, p.12). Para o professor, o grupo mineiro contribuiu com o desenvolvimento intelectual, social e político do Brasil. A trajetória de Alphonsus começa na interiorana Conceição do Mato Dentro, onde viveu sua infância e adolescência tal como um rapaz romântico. João Etienne Filho evoca nos ―Dados biográficos‖ (1971, p. 4), da edição dedicada a João Alphonsus da coleção ―Nossos Clássicos‖ (Editora Agir), o processo artístico iniciado em casa, quando era rodeado por livros de autores estrangeiros e nacionais. Nascido a 06 de abril de 1901, João só saiu da casa onde nasceu para fazer os primeiros estudos, em Mariana, e permaneceu ao lado do pai, Alphonsus de Guimaraens, e da mãe, Zenaide Silvina de Guimaraens, até 1918, ano de sua transferência para Belo Horizonte (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 5-6). Difícil dimensionar a influência do pai, ―doce poeta‖, ―mansa criatura‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 8), na vida do rapaz, desde criança afeito à literatura. Em entrevista intitulada por João Alphonsus ―À deriva‖, concedida dois anos antes de sua morte precoce, ele afirma a Edgard Cavalheiro estreito laço afetivo e intelectual com o poeta simbolista e revela que só seguiu caminho próprio depois de 1921, ano da morte de Alphonsus de Guimaraens. Graças à fama do pai e seus contatos, o filho publica, aos 17 anos, em O alfinete, de Mariana, um soneto em sua homenagem:

Alphonsus

Corre em meu corpo o sangue de um asceta: a pulsação de minha artéria tem o ritmo da poesia deste Beta que me gerou cantando a Dor e o Bem.

Passa em minha alma o espírito do Esteta: meu sonho altivo e minha mágoa vêm da doçura do verso deste Poeta que me educou cantando a Dor e o Bem 39

Alphonsus, sigo a estrada que me deste: meus versos de tristeza ou de alegria De ti provieram, para em mim nascer...

São imagens dos sonhos que tiveste, quando ainda parte do meu ser vivia no Espírito e na carne do teu Ser... (1942d, p. 1)

Veem-se os ensinamentos do poeta simbolista no novato, que recorre às maiúsculas para enaltecer o pai, ―Beta‖ e ―Poeta‖, e os sentimentos antitéticos, esteios de sua poesia cheia de sonho, ritmo e pulsação. Outro soneto, na Fon-Fon, é dedicado a Belmiro Braga:

Ao findar do dia (A Belmiro Braga) Nous sommes morts cent fois. Vielé Griffin

Cada um dos dias que se passa, – cada parte de vida que se desagrega de nosso ser para o não-ser do Nada, – O átomo à origem do átomo se entrega.

O dia morre. A luz, quase apagada, É a luz dos olhos que a velhice cega... A alma do campo é triste e amargurada: O cansaço do dia em si carrega.

A natureza, emudecida, sonha, E a treva lembra, na amplidão tristonha, O atro corvo do extraordinário Poe...

Sente-se na alma uma partida mesta, E há um requiem silencioso do que resta Para a parte de vida que se foi... (1919, p. 28)

Transcrevemos o soneto acima devido ao precoce interesse de João em inscrever a morte em seus textos, como também no intuito de recuperar o poema jamais republicado do ―rebento vigoroso daquela árvore majestosa e sempre florida‖ (tal como o anuncia à época a revista carioca). Também o elogia Mário de Andrade, que lê o soneto quando visita Alphonsus de Guimaraens em Mariana naquele mesmo ano (cf. GUIMARAENS, 2002, p. 43). Na página da Fon-Fon, abaixo do poema de João há um de seu pai; acompanha-lhes a seguinte legenda: ―‗Quem sai aos seus não degenera‘, e vai longe quem assim começa‖. Naquele momento, a frase simbolizava a expectativa dos amigos do poeta simbolista, desejosos de que o filho fosse seu seguidor. Lida anos depois, a frase ganha sabor irônico, bem ao gosto do jovem modernista: leitor ―de Walt Whitman e Rimbaud, o escritor desejava ser ele próprio um vagabundo. Entre os polos da inspiração e da lucidez, que percorrem a arte 40

moderna, era mais atraído pelo primeiro, e nisto, aliás, andou perto do heroísmo das vanguardas‖ (MARQUES, 2011, p. 158). Na entrevista ―À deriva‖, João reconhece o começo de ―principezinho, filho de Poeta, mimado desde os primeiros vagidos bisonhos...‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 9), assim se referindo a suas poesias, muitas vezes corrigidas, em cartas, entre 1918 e 1920, pelo pai. Para Domingos Guimaraens, a preocupação do velho poeta ―era quase obsessiva‖ (2015, p. 5). Em movimento reverso, anos depois, o filho escreveria longo ensaio sobre a vida e a obra de Alphonsus de Guimaraens para a edição das Poesias completas (1938). João Alphonsus chega a Belo Horizonte e conhece Milton Campos, que ―representava papel catalisador ou de equilíbrio [no movimento modernista mineiro], em face de seus jovens amigos desarvorados, dentre eles Drummond‖ (DIAS, 1971, p. 19). Entretanto, a atividade do grupo, acanhada, só começa a ganhar força com a passagem dos modernistas paulistas pela cidade, em 1924, como desdobramento da viagem que realizavam a Ouro Preto. O episódio, chamado por Fernando Dias de ―Segunda Semana de Arte‖ (1971, p. 26-36), é importantíssimo para o grupo mineiro, o que sentimos pelo entusiasmo de Drummond:

Uma coisa é a ideia literária no papel, funcionando como abstração; outra coisa é o contato humano, a ideia que move os braços, dá uma pirueta, ri e adquire todos os prestígios da voz. Dessa viagem a Minas saíram os poemas ―Pau-Brasil‖, de Oswald de Andrade, o ―Noturno de Belo Horizonte‖, de Mário, quadros de Tarsila, alguns poemas brasileiros de Cendrars. (apud DIAS, 1971, p. 37)

Formado pelos ensinamentos do velho Guimaraens e animado pelas descobertas literárias feitas junto aos novos amigos escritores, João publica, no primeiro número da belorizontina A Revista, em 1925, o poema ―Janeiro‖, consciente da missão modernista, apresentada nas primeiras páginas, em ―Para os scepticos‖: promover a cultura, incentivar revistas, tipografias, leitores. ―Resta-nos humanizar o Brasil!‖ é a última frase do texto, assinado por Carlos Drummond, que dividiu a diretoria dos três números do periódico com Martins de Almeida. O poema de João Alphonsus, seis estrofes de versos polimétricos, apresenta um meio-dia fortemente iluminado de verão, que atinge física e espiritualmente os seres:

JANEIRO

Meio dia Janeiro Paralisia paroxista O sol carrasco nos carrascais

Abre as janelas e desce as cortinas amarelas MEU SOL

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Nos bosques longínquos águas cantam nos cantos Uma frescura de boas vindas para quem lá entra Mas os bambos bambus não bamboleiam no Morno mormaço

Eu já sorri ao sol meninamente Entrei nos bosques que me acolhiam com mãos frescas Sombra tão boa quando o sol castiga Gangorreei rindo nos cipós Nadei nu na água que havia lá no canto cantando É bom lembrar no meio dia no nosso amor MEU SOL

Água límpida que bebes no copo verde Atira o resto para as begônias da janela No terreiro as galinhas abrem o bico Batem azas inúteis Talvez pensem que bom voar Janela aberta para o verde Quando chove escorrem pingos verdes na paisagem da vidraça Desejo de chuva Desejo de amor

Sê com as árvores biblicamente MEU SOL Mas não te moves Nada se move A vida é tanta que parou (ALPHONSUS, 2014, p. 29)

Se a ação solar paralisa os seres, o processo lúdico da aliteração suaviza o tema. O eu lírico pede a ―meu sol‖ que abra as janelas: a polissemia do vocativo cria jogo expressivo, pois se o sol denotativo maltrata, o conotativo socorre; se a realidade machuca, a poesia recupera. O único movimento percebido é uma espécie de zoom cinematográfico, e a câmera se movimenta do sol para o bosque e do bosque para o interior da casa, onde está o ―amor‖, a quem o eu lírico se dirige na última estrofe. O poema expressa o pensamento estético de João, jovem que ferve artisticamente, entusiasmado pela visita dos modernistas paulistas e pelas múltiplas obras urbanísticas que remodelam a capital mineira, mas que também se sente paralisado, devido ao arraigado espírito conservador, que impede os brasileiros – e, especificamente, os mineiros – de construírem uma nova literatura e uma nova nação. Em ―Janeiro‖, já vislumbramos, como adiante ratificaremos, pontos centrais da prosa de João Alphonsus, cujos personagens movimentam-se literal e metaforicamente de maneira lenta ou circular, quando não permanecem imóveis. Na contramão, os neologismos lidos acima – ―meninamente‖ e ―gangorreei‖ – sugerem movimento, leveza e liberdade, propostas modernistas também presentes nos contos. O poema modernista de João o vincula especialmente à obra de dois poetas: ao carioca Ronald de Carvalho e ao mineiro Carlos Drummond de Andrade. A semelhança entre 42

―Janeiro‖, acima transcrito, com poema homônimo presente em Epigramas irônicos e sentimentais (1922), é temática e formal, como podemos conferir abaixo:

JANEIRO

A SOMBRA debaixo das árvores é quente, há um desejo de água nas folhagens, nas folhagens paradas...

A terra é morna como o corpo de um pássaro, como o corpo de um pássaro sob a plumagem lustrosa.

Entre a chuva de ouro de uma acácia zine longa, longamente uma cigarra... (CARVALHO, 1922, p. 45)

Em outro poema, ―Verão‖, os substantivos em exclamação resumem a ideia: ―Torpor, monotonia, desalento! / (...) / Lassidão‖ (CARVALHO, 1922, p. 51-52). Mais de uma vez, João afirmou que Epigramas irônicos e sentimentais – livro equilibrado, clássico que quer ser moderno (cf. ALPHONSUS, 2002, p. 582) – motivou sua entrada para o movimento modernista, embora tenha apresentado reservas ao poeta carioca, em especial à ironia sentimental e ao ―todamericanismo do sr. Ronald de Carvalho‖, cuja obra teria menos ―brasilidade‖ que a de Cruz e Sousa (cf. ALPHONSUS, 1927, p. 4). Os versos finais do poema ―Janeiro‖, de Alphonsus, por sua vez, nos remetem ao ―Cota zero‖, que Drummond publicaria um ano depois em Alguma poesia (1930): ―Stop. / A vida parou / ou foi o automóvel‖ (1998, p. 65). A relação entre eles foi intensa e profícua, como adiante apontamos. Ronald de Carvalho e Carlos Drummond são elogiados por Alphonsus no artigo ―Técnica‖ (na verdade, uma carta aberta a Mário de Andrade, publicada no Diário de Minas em 1926), devido à ―técnica libertadora do verso novo‖: ―continuo firme que metrificação faz parte do passadismo. O verso livre, libérrimo, libríssimo é que é‖ (ALPHONSUS, 2002, p. 583). A justificativa vem dias seguintes, em resposta ao amigo paulista:

o hábito obumbra a gente pela escravização completa à forma, e nem se sente mais as vezes que foi obrigado a torcer e a virar-se. Se fica convencido de estar fazendo poesia da mais legítima e da mais direta. (...) Considerações que o meu próprio caso me inspira. Daí o meu entusiasmo franco pro verso livre que veio me proporcionar a mais completa das libertações. (ALPHONSUS, 2002, p. 588)

Esses escritores das décadas de 1920 a 1940 expressam um sentimento comum, cujas causas são mencionadas por João Alphonsus em outro artigo, ―O mundo e os poemas‖, no paulista Folha da Manhã: ―uma geração sanduichada entre duas grandes guerras. Que começou a compreender as coisas dentro da expectativa ansiosa da guerra, ou já em plena 43

guerra. Que atinge os 40 anos em plena guerra. Valerá a pena ter vivido, quando o que se realizou parecem tentativas frágeis e inúteis entre duas grandes guerras?‖ (1943b, s/p.). Aliada à percepção das guerras estrangeiras, há também forte crítica aos problemas nacionais, dentre eles a parca capacidade reflexiva do povo brasileiro; ainda na década de 1930, em artigo sobre Alguma poesia, de Drummond, João expressa seu pensamento e afeição pela poesia moderna, comentando sobre ―Cota zero‖ (citado acima), lamentoso de que os moradores de Belo Horizonte não estariam preparados para o livro desconcertante: ―Na verdade, eu esperava uma certa grita da saparia de Minas, em face do livro do melhor poeta moderno desta terra. (...) Mas, na nossa estagnação literária, raros botam a cara fora do brejo, dão um coaxo e se afundam‖ (ALPHONSUS, 2015, p. 33). O jovem compara a recepção dos conterrâneos ao livro modernista com a que tiveram em relação ao bonde de oito rodas: se impressionaram à primeira vista, foram à janela olhar, mas depois continuaram a vida sempre igual. Vários personagens de João comportam-se de maneira semelhante, tanto que Mário de Andrade (cujo livro Pauliceia desvairada (1922) foi adjetivado pelo mineiro de ―berrante, vibrante, comunicativo‖ (ALPHONSUS, 2002, p. 582)) cunha um adjetivo para caracterizar a impotência contemplativa do homem comum diante das transformações socioculturais inspirado no protagonista de Rola-Moça. Em carta a João, de 03/05/1938, aproveita o nome de Anfrísio e chama todos os personagens dos contos de Alphonsus de ―anfrisíacos‖, sublinhando-lhes a ―mediocridade mineira profunda‖ (ANDRADE, apud GUIMARAENS, 2014, p. 166). O pensamento do paulista é semelhante ao de Alphonsus de Guimaraens que, décadas antes, na mesma carta em que apontava ao filho palavras que precisavam de ajuste nos poemas, datada de 06/10/1919, também contava a recepção dos versos do rapaz na ―elite marianense‖: ―O teu soneto está bom (...), causaram sensação aqui, no ‗nosso meio intelectual‘‖ (apud GUIMARAENS, 2014, p. 122). As aspas denunciam ironia do poeta simbolista em relação a seus conterrâneos; essa era a compreensão geral sobre a literatura e a crítica vindas do interior. Não é surpresa, então, o fato de que poucos modernistas mineiros souberam da Semana Paulista de 1922. Quarenta anos depois, Drummond explica: ―(...) só por acaso líamos jornais paulistas, e os do Rio não deram maior importância ao fato, se é que deram alguma. (...) só a Central do Brasil ligava as duas cidades, e a placidez da vida mineira podia ser comparada à ‗toalha friíssima dos lagos‘ do nosso Parque Municipal. Nós éramos uma rusga nessa toalha serena‖ (apud DIAS, 1971, p. 35). João também comenta que teve notícias vagas sobre o acontecimento, embora o considere impressionante e confirme o pioneirismo de 44

São Paulo no cenário literário modernista do país. No romance Rola-Moça (1938), Alphonsus faz com que o protagonista seja ―atingido‖ pelo movimento: Anfrísio, ―na sua fase de cuidados literários, poetando por mocidade, por volta de 1922, fora atingido pelo chamado espírito moderno‖ (ALPHONSUS, 1976b, p. 128). Nesse sentido, Fernando Dias acredita que o personagem seja autobiográfico. Na entrevista que Edgard Cavalheiro publica, entre 1942 e 1943, em O Estado de São Paulo, e, no ano seguinte, em Testamento de uma geração, em que faz perguntas a 40 intelectuais sobre a situação da literatura na época, João Alphonsus declara: ―Naquele tempo se falava em futurismo. Logo se criou a expressão modernismo por uma reação desconfiada de brasileiro, reconhecendo a outra como pretensiosamente ridícula‖ (1965, p. 11). Conquanto desconfiasse dos ―entusiasmos renovadores‖ europeus, que chegavam atrasados aqui, João explica sua adesão de ―corpo e alma ao modernismo‖: era ―Ou a agitação, ou a morte, no marasmo em que tudo ia desaparecendo. E a agitação, que se fez, necessária e oportuna, tem esse caráter, nesse ponto independente de todos os ‗ismos‘ estrangeiros‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 11). Ação necessária para inibir o conservadorismo nas letras brasileiras: ―era uma coisa teimosa e renitente o parnasianismo, uma tirania a impor ainda um mimetismo aos moços sob pena de excomunhão...‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 12). Ansiava-se por modernização que reagisse ao costume de imitar estilos passados ou, conforme afirmação de Júlio Mesquita, na Revista do Brasil (São Paulo, 1916), de copiar do estrangeiro, espécie de ―servilismo coletivo‖. Sem conclamar à hostilidade, o republicano defende a assunção de uma identidade brasileira (cf. MARTINS, 1996b). Também Gregoriano Canedo, um dos redatores, apresenta, no primeiro número de A Revista (1925), a situação econômica, espiritual e moral do país, convocando os leitores a amarem a terra e lutarem contra o nacionalismo exclusivista: ―Abramos as nossas portas à confraternização universal. (...) Para que seja ainda mais nossa, a nossa Pátria, façamo-la do imigrante‖ (2014, p. 22). Entretanto, no número seguinte, a revista alerta sobre o perigo do cosmopolitismo quando o povo não é maduro: ―Temos de recompor a nossa faculdade de assimilação para transformar em substância própria o que nos vem de fora‖ (2014, p. 12). Emílio Moura, também redator da revista mineira, amigo e companheiro de trabalho de João Alphonsus, incentiva o movimento nacionalista nas letras, em ―Renascença do Nacionalismo‖, afirmando que a literatura promovida por eles ―pensa mais que devaneia, e age na razão direta desse pensamento‖ (2014, p. 36). Por isso, o poeta acredita em uma emancipação intelectual brasileira, assegurando que ―o pensamento moderno é o novo nacionalismo‖, reflexo daquele plantado pelos nossos românticos. Tal proposta modernista 45

prega a nacionalização do espírito, a reação contra a utopia mentirosa da geração anterior sobre as cores do Brasil e a ação, ―obra de dura disciplina e de serenidade construtiva‖. O objetivo era ―esculpir o futuro‖, ―construir o Brasil dentro do Brasil ou, se possível, Minas dentro de Minas‖ (MOURA, 2014, p. 11). Waltensir Dutra e Fausto Cunha, em Biografia crítica das letras mineiras, incluem a poesia de Drummond e a prosa de Alphonsus em uma das duas vertentes modernistas no estado, o mineirismo – expressão empregada primeiramente por para indicar a interpretação singular do mundo feita pelo subjetivismo acentuado do ―espírito mineiro‖ (1956, p. 100). A prosa modernista do estado teria se caracterizado, em grande parte, pelo ―costumbrismo‖, ou seja, ―pela crônica da época, seja em Belo Horizonte, seja em cidades do interior‖ (1956, p. 100). A outra vertente era a universalista, mais preocupada com problemas transcendentais e com a expressão lírico-emotiva: Emílio Moura e Murilo Mendes seriam seus principais representantes (cf. Dutra e Cunha, 1956, p. 100-110). As discussões em torno de A Revista confirmam a análise de Fernando Dias não só sobre esta, mas sobre as demais revistas mineiras – como Verde e Leite Criôlo –, com as quais João Alphonsus estabeleceu relações mais ou menos simpáticas: ―As revistas literárias, em Minas, assumiram, pode-se ver, a função que lhes têm cabido na história literária: a de afirmação dos jovens, de elemento agregador, de instrumento de intercâmbio e confronto de ideias‖ (DIAS, 1971, p. 53). A importância de A Revista, para João, é maior, especialmente devido à relação entre ela e Os Amigos do Livro, também sublinhada por Luiz Ruffato:

A Revista colocou Minas Gerais no mapa da revolução modernista, e abriu caminho para o aparecimento, na década seguinte, de uma das mais interessantes iniciativas editoriais da história da capital mineira, a cooperativa ―Os Amigos do Livro‖. Idealizada pelo crítico Eduardo Frieiro (1889-1982), a publicação lançaria, entre 1931 e 1937, 25 títulos, dentre eles alguns dos mais significativos da história da literatura brasileira, como Brejo das almas, de Carlos Drummond de Andrade, Ingenuidade e Canto da hora amarga, de Emílio Moura, Galinha cega, de João Alphonsus (1901-1944), Velórios, de Rodrigo M. F. de Andrade (1898-1969), e O amanuense Belmiro, de (1906-1994). (2002, s/p)

Única editora mineira da época, Os Amigos do Livro visou à concretização dos ideais modernistas. A dificuldade de divulgação das letras no estado é tratada no capítulo de Humberto Werneck, ―A cidade que Gutenberg esqueceu‖ (1992, p. 78), título homônimo do texto publicado no carioca A Manhã sobre a imprensa belo-horizontina, assinado pelo cronista Moacyr Andrade. O projeto literário de alguns dos Amigos era tão convergente que houve até a intenção de publicar um livro a oito mãos, que se chamaria Antologia dos quatro poetas mineiros (Carlos Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus e Pedro Nava) e seria prefaciado por 46

Martins de Almeida (cf. MACHADO, 2012, p. 17, nota 13). Além disso, uns defendiam os outros em jornais e periódicos mineiros e fora do estado. Em artigo publicado em 1925, João defendeu ―No meio do caminho‖, poema mais polêmico de Drummond, compondo-lhe um ―soneto interpretativo‖, esclarecendo aos leitores da Folha da Manhã que não concordava com o procedimento, comum na época, de transformar poemas modernistas em sonetos (ou seja, faz algo que repreende):

Eu aconselharia a esses vates incompreensíveis e até molestos – sobretudo inartísticos que fornecessem aos leitores (aos do Jornal do Comércio por exemplo) sempre uma réplica assim, de cada uma das suas malsinadas obrinhas. Os seus livros seriam assim organizados: numa página, o futurismo, para satisfazer aos que impam de apreciadores sutis de hermetismos poéticos; na outra página, o passadismo, ao alcance de qualquer apreciador da arte cada vez mais viva quanto mais velha... Para mostrar como isso seria praticável, vou fornecer aqui um soneto interpretativo daquele poema da pedra. A sério, já se vê. Preencho os claros – ou os escuros – do poema com as necessidades da métrica e da rima, que às vezes forçam a imagens ou expressões nem sempre muito justas (além de que, sou um poeta conscientemente aposentado):

No meio do caminho sem sentido em que a minha retina se cansava, em face ao meu espírito perdido Naquela lassidão estranha e escrava,

No meio do caminho sem sentido, Só uma pedra... Nada mais se achava! Que tudo se perdeu no amortecido, Morto marasmo de vulcão sem lava...

Que tudo se perdeu na estrada infinda... Só a pedra ficou sob o meu passo E na retina se conserva ainda!

Nem coração, furor, ódio, carinho, Nada restou senão este cansaço, A pedra, a pedra, a pedra no caminho! (ALPHONSUS, 1942c, s/p., grifo nosso)

Os trechos em negrito ressaltam o caráter irônico do crítico João Alphonsus, cujos ensaios ainda estão dispersos. Nos últimos anos de vida, ele preparava Recordações da Casa dos vivos, livro que reuniria artigos e crônicas publicadas em jornais e revistas (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 6 (Nota da editora)) que nunca foi publicado. Alphonsus escreveu sobre a situação da literatura brasileira de sua época e também se dedicou à análise de poesia (não só a do pai, mas também a de Casimiro de Abreu, Cruz e Sousa, , dentre outros, muitas delas no Suplemento Literário de A Manhã). Desaponto também sentimos ao saber que não há registro de suas crônicas domingueiras veiculadas pela rádio Inconfidência durante o decênio de 1940. 47

O artigo acima citado revela o intenso diálogo entre João e Drummond, cuja ―inquietude espiritual‖ atraiu atenção e admiração intelectual de vários contemporâneos e conterrâneos, tendo se tornado o ―ponta-de-lança do movimento modernista em Minas‖ (DIAS, 1971, p. 19) quando, em 1921, iniciou sua carreira literária em Belo Horizonte, com poemas em prosa (cf. DIAS, 1971, p. 26-27). Anos depois, Drummond promoveu um concurso para eleger o ―Príncipe dos Poetas Mineiros‖, patrocionado pelo Diário de Minas, e João Alphonsus conquistou, com 1.421 votos, o 11.º lugar. Venceu, com 12.764 votos, o poeta Honório Armond, e o segundo lugar ficou para Belmiro Braga (cf. DIAS, 1971, p. 76). Os dados da enquete são interessantes, porque, como o pesquisador sublinha, vários escritores votados eram modernistas, o que indica que o movimento não era tão perseguido na época. Além disso, embora a colocação de Alphonsus pareça insignificante, ele nunca publicou um livro de poesia, e os leitores conheciam apenas seus poucos poemas publicados em jornais e revistas. Vale ressaltar também a imparcialidade de Drummond, redator chefe do jornal na época (1927), que promove o concurso e concede o primeiro lugar a um poeta conservador, situação prevista pelo gosto literário dos leitores mineiros, ao qual aludimos acima. Até o momento, não há nenhuma reunião das poesias de João – o máximo que temos são duas páginas publicadas, em 2015, pelo Suplemento Literário de Minas Gerais –, tampouco existe trabalho acadêmico que as contemple. Aos poucos, o jovem modernista passou da poesia à prosa, terreno em que mais se desenvolveu e obteve fama. Seus romances foram premiados: com Totônio Pacheco (1935) ganhou o segundo lugar do prêmio Machado de Assis da Companhia Editora Nacional, e com Rola-Moça (1938) conquistou o terceiro lugar do prêmio da Academia Brasileira de Letras. Em época de entusiasmo diante dos romances nordestinos, o escritor angariou lugar de destaque: Totônio Pacheco empatou com Música ao longe, de Érico Veríssimo, Marafa, de Marques Rebelo, e Os ratos, de Dionélio Machado. Luis Bueno e Marcus Salgado comentam esse resultado, ressaltando que os romances laureados com a premiação fugiam da expressão sociológica dentro da literatura, vertente então em alta com os chamados ―romances de 30‖ ou ―romances sociais‖4. Todavia, o gênero que alcança maior público e que assegura lugar de destaque a João Alphonsus na cena literária brasileira é o conto, embora apenas um livro tenha sido premiado, Eis a noite!, em concurso da Folha Carioca (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 5 (Nota da editora)). De acordo com Domingos Guimaraens, ele ―escrevia romances por não ter tempo para

4 Como não é nosso objetivo analisar as narrativas longas de João, indicamos as análises elaboradas no capítulo ―Outras figurações: do outro e do mesmo‖ (de Luis Bueno, 2006), no ensaio ―João Alphonsus: o homem na sombra ou a sombra no homem‖ (de Domingos Guimaraens, 2015) e no artigo ―Um fantasma assombra a casa- grande: espaço e narrativa em Totônio Pacheco, de João Alphonsus‖ (de Marcus Salgado, 2016). 48

escrever contos, seu gênero favorito. Pode parecer um contrassenso, mas João explicava sua teoria dizendo que o conto merece profunda dedicação e atenção, para ser escrito de um sopro, do início ao fim, com intensidade; já o romance pode ser feito nos entretempos, vagarosamente‖ (2015, p.7). Do primeiro conto, escrito aos 16 anos, conhecemos apenas o título, ―Guaraci‖, que era indianista e que o pai o mandou para um jornal efêmero de Belo Horizonte (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 9). Diferentemente foi a trajetória de ―Galinha cega‖ e dos demais dezoito contos, alguns publicados em jornais e revistas antes da estreia em livro: ―Morte burocrática‖ (aparece na Novela Mineira, em 1922) e ―A pesca da baleia‖ (A Revista, em 1925) só constarão, quase duas décadas depois, de A pesca da baleia (1941); o célebre ―Galinha cega‖ (na revista Terra Roxa e Outras Terras, em 1926) e ―Oxicianureto de mercúrio‖ (na Verde, em 1927) demoraram menos para virar livro, comparecendo no volume de estreia, em 1931. As datas localizam o início da prosa curta de João Alphonsus no decênio em que Mário de Andrade e Alcântara Machado instauram o conto modernista; a prosa do mineiro nasce, assim, vinculada, temática e estruturalmente, à proposta narrativa inaugurada, na década de 1920, pelos paulistas. Como veremos, os últimos textos de João se afastam desta expressão mais explicitamente modernista, mas são os contos vinculados a esta estética que lhe garantem memória literária. A revista Verde, de Cataguases, meio de divulgação da prosa de Alphonsus, é efusivamente elogiada pelo contista, para quem a iniciativa de Rosário Fusco transformara-se em ―fenômeno alvissareiro‖, sinal de ―evolução literária‖,

em que o impulso não partia do centro – Rio para a periferia, mas ia de pontos periféricos para o centro! Num momento em que o Rio, sede consagrada de plumitivos academizantes e desacademizantes, não conseguira manter nem uma revista literária representativa do movimento modernista, surgia a Verde, mensário de arte moderna, com um grupo de rapazes, alguns meninando ainda, cheios de esperança, vigor e vontade de ir além. (...) O pequeno Brasil que se incomoda com as letras tomou conhecimento da revista Verde, festejou-a com certa amplitude intencional e me parece que foi o sr. Tristão de Ataíde que a encarou primeiro debaixo do critério periferia (...). Força é confessar que foi S. Paulo o primeiro núcleo literário modernista, com a revista Klaxon, a ―Semana de artes modernas‖, e suas vaias gosadas. Ora, o eixo já se deslocara do centro-Rio, pendendo para o sul, de onde infletiria, com alguma pretensão, para Belo Horizonte, com o malogrado pugilo de poetas e escritores que fundaram e mantiveram durante três números A Revista, igualmente festejada na ocasião. (ALPHONSUS, apud DIAS, 1971, p. 51-52)

Como se vê, no artigo acima, ―Poetas de Cataguases‖ (1930), João destaca a importância da produção literária periférica e critica a tímida expressão do modernismo 49

carioca, utilizando neologismo (―meninando‖) para manifestar esperança no novo improvável, vindo do interior mineiro. Já em relação à belorizontina Leite Criôlo, de João Dantas Filho, Aquiles Vivácqua e Guilhermino César, o contista apresenta controvérsias. Para Fernando Dias, a revista antecipou a discussão brasileira em torno do problema da cultura africana no país, pondo em dúvida as ideias naturalistas e evolucionistas, que vinham do começo do século XX e que haviam criado o mito da antimestiçagem. Nesse sentido, o grupo teria buscado expressar as raízes nacionais por meio de tom ambivalente, de gozação e exaltação do Brasil primitivo (cf. DIAS, 1971, p. 48-49). Já para João Dornas, historiador mineiro, o ―criolismo‖ foi um ―romantismo banto‖, ―um sarampo romântico de 1928, que (...) contraímos no ambiente do indianismo paulista. Seria a vacina africana contra a antropofagia, que ameaça comer (e comeu) os próprios pajés que o criaram...‖ (apud DIAS, 1971, p. 48-49) – explica em conferência na Academia Mineira de Letras. Contemporaneamente, Luiz Ruffato localiza o movimento nos seguintes moldes:

Ainda na década de 1920, logo após a edição de A Revista, o jornal Estado de Minas publicou um suplemento, Leite Criôlo, filiado à Antropofagia, movimento liderado em São Paulo por Oswald de Andrade (1890-1954). Segundo o pesquisador Antônio Sérgio Bueno, o suplemento contou com dezesseis números, entre 2 de junho e 29 de setembro de 1929 (...). Para Gilberto Mendonça Telles, este foi o primeiro a colocar em questão a identidade negra brasileira, embora, seguindo as conclusões de Bueno, haja um traço claramente racista nas suas proposições. (RUFFATO, 2002, s/p)

O tom de João Alphonsus em relação ao leite-criolismo é semelhante ao de João Dornas: em artigo sobre Tristão de Athayde (―O homem da luz‖, 1930), em que demonstra cultivar a livre associação de ideias, recorda as divisões entre os modernistas paulistas e posiciona-se contra Oswald de Andrade (cf. DIAS, 1971, p. 49), o contista confessa:

Sinto uma certa náusea em falar nas coisas deploráveis, do mesmo passo que sinto necessidade de esclarecer essas coisas, não para mim, mas para os meus camaradas ―leite-criolistas‖ por exemplo, rapazes sobretudo estimáveis, mas que andam metidos por querer no meio do ―movimento antropofágico‖. (...) Hoje, os antropófagos atacam rijamente os srs. Alcântara Machado, Mário de Andrade e Tristão de Ataíde, com mesquinharias. (ALPHONSUS apud DIAS, 1971, p. 49-50)

Com efeito, Drummond, Alphonsus e seus companheiros não aceitaram o convite paulista para participarem ativamente da Antropofagia. Em 1929, Drummond promove uma enquete, publicada no Diário de Minas, em que entrevista diversos escritores a respeito do estado da literatura brasileira e da mineira em especial sobre a proposta modernista contraposta aos antigos valores literários. Entre os entrevistados – Aquiles Vivácqua, Ciro dos Anjos, Guilhermino César, João Alphonsus e 50

João Dornas Filho –, ―o tom das respostas vai do entusiasmo ao ceticismo. Há uma perplexidade generalizada. Os mais moços parecem mais incisivos‖ (DIAS, 1971, p. 60). Em entrevista, no dia 17/02/1929, João Alphonsus ratifica sua lealdade a Mário e é pessimista em relação à literatura em Minas. Já Martins de Almeida cordialmente o contesta, tal como um autor anônimo, do Diário de Minas, que destaca a interioridade e a sutileza da nova geração mineira, citando Drummond, Alphonsus e seus companheiros (cf. DIAS, 1971, p. 64). Duas décadas depois, Alphonsus parece recuar, ao defender, em entrevista ao Suplemento Literário de A Manhã, a literatura produzida em Minas, citando nominalmente os escritores de valor, como Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, dentre outros. Na ocasião, reclama da expressão ―literatura montanhesa‖, mas aproveita para apresentar seu ponto de vista sobre a instância narrativa predominante em Minas:

Você me pergunta pela literatura montanhesa, como uma expressão já um pouco desusada, que chama de montanhês ao mineiro. Entretanto não há propriamente uma literatura montanhesa lá no meu Estado, mas de planície, principalmente se se imaginar que um escritor montanhês deveria falar de muito alto, com as necessárias convicções da altura, com altaneria... Somos, em geral, homens do baixio. (ALPHONSUS, 1942b, p. 3)

Na mesma época, Vianna Moog, em Uma interpretação da literatura brasileira, explica que a literatura mineira apresentava-se ―municipal‖, fato com que a geografia teria colaborado, devido às montanhas que separam as localidades, justificando-se o costume de atrelar ao nome de um escritor mineiro à sua cidade natal. O crítico afirma que ―o mineiro havia de também em literatura ressentir-se de seu municipalismo, no sentido de despreocupação pela repercussão da obra literária e de inadaptação para o proselitismo‖ (apud DIAS, 1971, p. 30). Também Wilson Martins, no artigo ―Modernismo mineiro‖, publicado no Estado de São Paulo na década de 1960, ratifica a falta de audácia dos mineiros (cf. DIAS, 1971, p. 71). Assim, só em 1931, João Alphonsus publica Galinha cega. Na verdade, apesar de essa data estampar a folha de rosto, na última página há a informação de que o livro saiu do forno um ano depois. De acordo com carta de João a Mário de Andrade, a tiragem da primeira edição foi tímida, 200 exemplares (cf. GUIMARAENS, 2014, p. 131), e reuniu quatro contos, dentre eles dois dos mais conhecidos do contista, ―Galinha cega‖ e ―Oxicianureto de mercúrio‖. A estreia ganhou elogios efusivos do guia modernista paulista, conforme lemos na carta enviada a João (cf. GUIMARAENS, 2014, p. 131). Em 1932, o amigo escreve no artigo ―Galinha cega‖:

51

se o livro ficou pequeno, conserva em todas as suas páginas admirável qualidade, é um dos produtos fecundos da nossa prosa contemporânea. (...) Com Galinha cega, João Alphonsus fixou o que prometia no grupo de Belo Horizonte. (...) Mas esses escritores tímidos, isto é, orgulhosíssimos, escrevem pouco, num cultivo ensimesmado do valor. Como grupo vivem apagados, cegos como a galinha cega de João Alphonsus, sem nenhuma eficiência moral. Isto é uma grande pena. (ANDRADE, apud DIAS, 1971, p. 70-71)

A justificativa de Dias sobre a publicação tardia dos jovens mineiros é interessante: para ele, os livros são produtos da dispersão do grupo belorizontino, cujos integrantes se transferiram (muitos para o Rio): ―o movimento literário modernista, em Minas, reuniu os moços em torno da literatura, mas só depois que eles se desajuntaram é que foram realizar o seu destino e a sua obra‖ (DIAS, 1971, p. 65).

3.2 RECORRÊNCIAS TEMÁTICAS

A obra contística de João Alphonsus expressa males irremediáveis (vocábulo recorrente nos textos) que afligem os seres de cidades centrais ou pequenas, cuja atmosfera melancólica e pessimista é amenizada pelo lirismo e pela ironia do narrador, em geral de terceira pessoa. Prevalecem problemas relacionados à difícil comunicação entre os homens e à impotência diante da desilusão, da doença e da morte. Acordamos com os dois mais consistentes trabalhos sobre sua obra: o de Fernando Dias, que sublinha o ―íntimo entrelaçamento do trágico e do lírico‖ (1965, p. 23), e o de Ivan Marques, que aponta as ―existências falhadas, pequenas tragédias que João Alphonsus recolhe em sua dispersão pelo arrabalde humilde e abandonado. Em tudo está a cegueira, a deriva, a destruição‖ (2011, p. 168). Entretanto, discordamos de Massaud Moisés, que, embora ressalte o modo tragicômico do contista ―de sondar o lado misterioso, penumbrento, sombrio, da alma humana, ou pelo menos, do brasileiro comum‖ (1989, p. 258), afirma a ausência de lirismo em seus textos. De maneira semelhante, comentando os textos publicados na Verde, Tristão de Athayde reclama da ―quase sempre frasesinha seca para mostrar que o coração é uma blague‖ e do ―academismo de pernas pro ar (...) [com] medo de mostrar sensibilidade‖ (1928, p. 4) do conto de João Alphonsus (a reclamação é uma constante do crítico em relação ao modernismo), mas valoriza o ―traço fino e sóbrio‖ do mineiro. Os contos tematizam a morte física (e metafórica) dos seres humanos, ora ambientados em Belo Horizonte, ora em cidades menos desenvolvidas, valorizam o cenário noturno, adjetivo polissêmico, como veremos, e exploram a relação amistosa entre humanos e animais, 52

rara nesga de esperança vista em sua obra. Se conseguimos sintetizar tão brevemente a obra de Alphonsus, é porque há forte coesão entre os dezoito contos de Galinha cega (1931), A pesca da baleia (1941) e Eis a noite! (1943). No final do capítulo apontamos possíveis justificativas para essa expressiva conexão; por enquanto, essa constatação ampara nossa abordagem, que será temática, e não cronológica. Ainda que sejam apresentados de forma entrelaçada nos contos, os itens enfatizados a seguir – mortes, cidades, noites e animais – serão tratados, didaticamente, de maneira separada e minuciosa.

3.2.1 O mal irremediável

Em todos os contos de João Alphonsus há menção à morte e, na maioria, a fatalidade ocupa lugar central: a personagem principal morre em treze das dezoito histórias. Em Galinha cega, há assassinatos (―Galinha cega‖ e ―Oxicianureto de mercúrio‖) e doenças (―Godofredo e a virgem‖ e ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖); em A pesca da baleia, a morte é o desfecho de situações estúpidas (―A pesca da baleia‖), banais (―Morte burocrática‖ e ―O guarda-freios‖), absurdas (―Uma história de Judas‖) e dramáticas (―O imemorial apelo‖ e ―Sardanapalo‖); em Eis a noite!, há causas não explícitas (―Eis a noite!‖, ―Mansinho‖ e ―A noite do conselheiro‖), suicídios (―Foguetes ao longe‖ e ―O mensageiro‖), enfermidades (―Ordem final‖ e ―Caracol‖) e guerras (―O guerreiro‖). Logo, morre-se tanto por problemas corriqueiros, como doenças e banalidades, quanto por fatos calamitosos, como homicídios e suicídios. Seja como for, a morte sempre desencadeia o recrudescimento da tristeza do personagem sobrevivente, que chega à conclusão de que a vida não tem sentido e que a melhor reação a esse constrangimento é, em alguns casos, o sarcasmo. Diante da morte, resta o consolo irônico, ao menos nos dois primeiros livros. Para comentar a centralidade da morte na prosa curta do mineiro, selecionamos quatro textos: dois do livro de estreia, ―Oxicianureto de mercúrio‖ e ―Godofredo e a virgem‖, para observarmos a dimensão individual da morte, e dois de sua última obra, ―O mensageiro‖ e ―O guerreiro‖, para tratarmos sua dimensão coletiva. Em ―Oxicianureto de mercúrio‖5 (GC)6, um narrador onisciente de terceira pessoa relata curto período da vida do boêmio e adoentado Amâncio, resistente aos cuidados da mãe

5 O título do conto aparece assim na primeira versão, publicada na revista Verde, em 1927, na segunda, publicada em Galinha cega, em 1931, e na reunião feita pela Editora do autor, em 1965. Por isso, descartamos o título ―Oxianureto de mercúrio‖, da edição da Imago/MEC, de 1976, apesar de utilizarmos esta edição para as referências. Alertamos que Fernando Dias e Cilene Pereira reproduziram a grafia da edição da década de 1970. 53

e do médico. O tratamento de aproximadamente duas semanas consistia em injeções, repouso e dieta; desesperado com a rotina tediosa e certo da morte, Amâncio procura antecipá-la substituindo uma das ampolas por veneno (cianureto de mercúrio). Dia após dia fica na expectativa de qual ampola seria escolhida pelo médico. Para sua sorte – ou azar – a injeção mortal é a última; porém, no momento da aplicação, ao invés de entregar-se à morte, o rapaz decide viver e foge. Naquela noite, celebra com os amigos, no bar de sempre, sua saúde e liberdade, envolve-se numa briga banal e é assassinado por um desconhecido. O conto, dividido em três partes, separadas pelo sinal ***, emprega estratégia observada em contistas anteriores – como Artur Azevedo, que assim delimitava assuntos dentro da narrativa – e aproveitada, na década de 1920, por Alcântara Machado, ganhando a função, mais teatral, de demarcar cenas. João Alphonsus utiliza, à maneira do modernista paulista, o formato nos dois primeiros livros, abandonando-o no último. Em ―Oxicianureto de mercúrio‖, as seções são bem definidas: a primeira descreve o bar e o assassino; a segunda indica as interrupções deste na conversa de Amâncio e seus amigos; a terceira, mais extensa, narra a doença e o desfecho fatal. Nos dois parágrafos iniciais, a descrição do bar ―relativamente limpo e alemão‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 33) constrói o cenário principal, onde a história também terminará. A quebra de paralelismo semântico produzida pelo adjetivo ―alemão‖ insere, já na primeira linha, tom irônico também verificado na descrição das atitudes do protagonista e de certo freguês escritor, além disso, sublinha a preocupação do contista com o extrato formal da língua – procedimento típico dos modernistas, desejosos de vocábulos sugestivos. ―Alemão‖ é empregado como metonímia para organização rígida, característica, então, atribuída àqueles imigrantes, muito numerosos, no Brasil (nas décadas de 1920 e 1930, de acordo com Mauch e Vasconcelos (1994, p. 165), mais de 103 mil alemães imigraram para o país). Se, por um lado, a ênfase na geometrização do bar – mesas quadradas, toalhas de riscas e retângulos vermelhos e azuis, janela de ferro e vidro com grades – ratifica disposição racional, por outro, a descrição sinestésica flexibiliza a austeridade: ―vozes, gudes, gluglus, até gritos de vez em quando, sonoridades escorregando no teto gorduroso (...). Ondas longas de sons se quebravam contra ondulações de fumos, suores e arrotos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 33). A mistura de ritmos, nomeados pelo gerúndio inventado (valsando, foxtrotando, maxixando) e qualificados pelo adjetivo com função adverbial (molenga, esperta e safada), completa a pluralidade e marginalidade do espaço, registrando estilos musicais da época (da comportada valsa ao

6 Para economizar nas múltiplas referências, utilizaremos, a partir daqui, siglas para os livros: Galinha cega (GC), A pesca da baleia (PB) e Eis a noite! (EN). 54

sensual maxixe). Vale indicar que, em outros contos, esses e outros ritmos aparecem, criando fundo musical para o drama encenado. O antagonista é apresentado antes do protagonista, visto que se quer anunciar, na primeira linha, a tragédia das últimas: o narrador informa que, embriagado e com raiva, o homem era capaz de matar ou morrer. Sua ignorância dificultava a comunicação: não se entende nem com o garçom nem com a própria mulher. O problema afetivo é exposto em nota de rodapé, empregada ―para melhor entendimento da narrativa‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 33), em que lemos o conteúdo do bilhete retirado do paletó do homem: no papel, Ermíria se despedia devido à ―animaleza‖ e à ―inducação‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 34) do companheiro. Referências de pé de página são comuns em textos acadêmicos e, quando surgem na ficção, servem, em geral, para esclarecer expressões datadas e quase sempre são inseridas pelos editores. Ao retirar o conteúdo do bilhete do corpo do texto, Alphonsus ―materializa‖ o conflito relatado: o procedimento gera estranhamento e desconforto no relato porque parece esconder a justificativa da agressividade – a desilusão amorosa –, importante para a compreensão global do enredo. Dessa forma, o escritor consegue, também, que imitemos o desvio de olhar feito pelo personagem: ele tira o bilhete de dentro do bolso para ler, nós baixamos ao rodapé para saber a mensagem. Cilene Pereira chama atenção para o narrador indeciso, que afirma não saber o que se passa com o homem de boné, embora saiba de seu passado e do bilhete (cf. 2011, p. 7). Na verdade, informações sobre o personagem são dadas gradativamente: ―O homem bruto era respeitável de arcabouço: um bruto homem‖, ―fera acuada‖, ―homem terrível‖, ―ríspido, direto, brutal‖, ―intratável e audacioso‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 33-34). A adjetivação insistente fortalece a previsão do desfecho negativo e o posicionamento do narrador, mais afeito a Amâncio que a seu assassino. Concordamos com Pereira, que aproxima a estratégia de João Alphonsus à forma do conto de Edgar Allan Poe, para quem a narrativa deve, desde o início, preparar, por meio de estratégias de coesão, a ―unidade de efeito‖ finalizada no desfecho (cf. 2011, p. 11). Entretanto, o brasileiro modernista insere um componente surpresa no final da história – o comentário do freguês escritor que ameniza a tragicidade, de que trataremos a seguir. Dentre ―Caixeiros, estudantes, funcionários públicos, operários, desvios, humanidade‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 34), o homem cisma com dois rapazes (Gustavo e Chico) – aos quais vem se somar Amâncio, apresentado inicialmente como ―coitado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 34). Os tipos flagrados pelo narrador se assemelham aos frequentadores dos bares 55

belorizontinos, importantes locais de convívio à época, conforme análise de Humberto Werneck, em O desatino da rapaziada (1992). O grupo plural sublinha o olhar cronista de Alphonsus e a atenção dada a vozes dissonantes, a existências misteriosas, que descentralizam a trama. Por exemplo, entre as investidas desagradáveis do homem bêbado, há a descrição de um grupo ―boche‖ – o termo inventado pelos aliados na Segunda Guerra se referia pejorativamente ao tamanho da cabeça dos alemães –, e de outro freguês, escritor de ―talento desperdiçado‖, de acordo com Amâncio, ideia contestada por seu antagonista, para quem os chamados talentosos são, apenas, ―pau d‘águas‖ (bêbados). A conversa dos amigos é interrompida três vezes pelo homem amargurado que, com ―um sorriso leve, meio amargura para a vida, meio ironia para o rapaz‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 38), duvida da gentileza, da saúde e do pensamento de Amâncio. Em resposta, o jovem conta sua trajetória dolorosa aumentando o volume da voz (o narrador grafa com letras de forma o início de seu discurso) para que o implicante ouça sua história sensacional. A estratégia ―capaz de transformar a experiência em narração, conforme propõe Benjamin em seu estudo do narrador‖ (PEREIRA, 2011, p. 10) transforma Amâncio em segunda voz narrativa, procedimento comum na literatura oral. Enquanto os frequentadores do bar ouvem apenas a versão de Amâncio, outra é oferecida aos leitores, diferenciando-se formalmente daquela por estar entre parênteses e mais afastada da margem esquerda da página. Em especial, os relatos variam em relação à descrição da mãe do jovem: na narrativa de Amâncio, a mãe – velha, chata, excessivamente preocupada – aumentou-lhe o desespero durante as semanas de reclusão. A rispidez com que se dirige a ela contradiz o significado de seu nome (no latim, Amâncio vem de ―amanter‖, advérbio que significa ―amorosamente‖ (LEITE; JORDÃO, 1958, p. 22)), mas é semelhante à relação do bêbado com Ermínia e à de vários personagens de João Alphonsus, como o carroceiro bruto de ―Galinha cega‖ (GC), que bate na mulher e em crianças. Já o narrador, nas cinco vezes que suspende a narrativa do jovem, apresenta a mãe de Amâncio como mulher zelosa, submissa e religiosa, além de incompreendida e maltratada pelo filho. Esta versão parece mais convincente, porque, além de o narrador conhecer intimamente o cotidiano da casa do protagonista, não está alterado como Amâncio. De novo, o procedimento metalinguístico de João Alphonsus chama à atenção: se o futuro assassino interrompe a narração oral de Amâncio no bar, interpondo-se entre o rapaz e seus amigos, o narrador também o detém na narrativa escrita, colocando-se entre o protagonista e seus leitores. Amâncio sofre de úlcera sifilítica, cujo tratamento intensivo conta com injeções de oxicianureto de mercúrio, de dois em dois dias. ―Dieta e fastio. Magreza e tristeza‖ 56

(ALPHONSUS, 1976a, p. 36). Inconformado com a doença e com o tratamento de ―termos difíceis que não curam ninguém‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 36), ao saber da história da jovem que morre ―por engano‖ devido a uma injeção venenosa de cianureto de mercúrio, o rapaz substitui uma ampola saudável por outra: ―Colocou na caixa, entre as ampolas de mercúrio curativo – curativo! – o mercúrio mortal. Oxicianureto. Cianureto.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 38). A escolha pelo mercúrio é interessante porque o nome do antídoto (oxicianureto) carrega o do veneno (cianureto), índice paradoxal muito coerente com a obra de João Alphonsus, que sublinha a incoerência humana. Sugestivo também é o quiprocó que as versões do conto fazem ao trocar veneno por remédio. Na versão de 1927, da revista Verde, as injeções do tratamento de Amâncio são de cianureto de mercúrio, usado na época para o tratamento de sífilis (cf. BRANDÃO, 1926, p. 35), e o veneno, o oxicianureto que, elevado a título do conto, enfatizava a morte. Já no livro de 1931, os papéis foram invertidos (o cianureto havia deixado de ser medicamento), e o elemento que intitulava a história passou a ser o benéfico, procedimento pouco esperado pelo tom melancólico de João. Por acaso, a ampola mortal fica para a última dose, o que faz Amâncio cair em si e fugir no último dia de tratamento. O título do conto, então, não revela a real causa da morte de Amâncio, porém metaforiza a vida, visto que o nome do remédio traz o do veneno: embora tenha escolhido pela vida, seu desfecho foi a morte. Tal como o registro do bar, que emprega imagens opostas e paradoxais, a caracterização de Amâncio percorre o mesmo caminho. O jogo juvenil com a morte é irônico porque Amâncio não morre vítima da doença nem de si mesmo, mas de um ―lance do destino‖, algo inesperado e irremediável. Se durante o tratamento, o protagonista ―Ouvia a morte cinematográfica de Lon Chaney enquanto a morte real entrava em sua carne‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 39), no momento real de sua morte, não a associa a nada. O jovem dramatiza seu sofrimento associando-o ao encenado pelo ator imortalizado pelos filmes de terror, como O fantasma da ópera (1925), buscando, assim, que sua história seja fascinante como as histórias de Hollywood. Os culpados pela morte são os instintos, que tomam conta dos personagens: ―a fera forte desvencilhou-se, o fio frio riscou fundo o pescoço, o sangue esguichou no atoalhado encardido‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 41). Sem justificativa racional, o homem de boné mata Amâncio; em seguida, não acredita no que fez, pede médico e padre para o ferido. Entretanto, a terrível cena final é fechada de maneira galhofeira: o freguês escritor, até então mencionado sorrateiramente, acorda assustado com o barulho e, alheio ao conflito, resmunga contra o emprego equivocado do pronome pessoal (―lincha ele‖). Tal imagem é 57

pejorativa: o escritor anônimo não colabora artística nem sensivelmente com a situação (o homem bruto parece, então, ter razão ao dizer que o outro não tinha talento...), mas valoriza a linguagem empoeirada da norma padrão. Se o problema dos homens estivesse na escolha do código empregado na comunicação, a solução era evidente e fácil. Todavia, a questão é muito mais complexa, pois está na incapacidade generalizada de dialogar: o indivíduo centrado nos próprios problemas só fala de si e não consegue ouvir opinião contrária. A incapacidade de comunicação entre os homens já é, em si, uma tragédia. Waltensir Dutra e Fausto Cunha apontam para a ―tragicidade inútil da vida, que se oculta sob os acontecimentos miúdos do cotidiano‖ (1956, p. 104), marcante na obra de João Alphonsus. A ideia é retomada por Pereira, para quem o trágico brota do cotidiano, de uma conversa no bar, porque o homem é um ser trágico por natureza (2011, p. 12). Como apontamos, Amâncio percorre espaços opostos – o botequim é sinônimo de prazer e liberdade; já a casa e a clínica, de sofrimento e clausura –, que espelham o paradoxo do homem angustiado com a ideia da morte. Entretanto, tais recintos têm características comuns: são fechados e mal iluminados. A ausência de visibilidade é recorrente nos contos de João (cf. ―Galinha cega‖ e ―Foguetes ao longe‖). Aqui ela reforça a ideia de segregação e de falta de consciência. Vale a pena ainda apontar algumas mudanças substanciais feitas na edição de 1931 (em comparação com a de 1927). Antes as referências ao cinema eram mais explícitas, a ponto de o botequim parecer ―um bafon londrino fabricado nos estúdios da Paramount. Parecia um pouquinho. Quase nada. (...) Mas não era cinema não. Porém verdade‖ (ALPHONSUS, 1927, p. 8). Se o uso da palavra francesa e de elementos anglófilos e a incerteza do narrador tornavam o texto mais modernista – haja vista a polêmica discussão da influência estrangeira no país e as experimentações artísticas abertas à modernidade –, o ambiente bagunçado e marginal criado é semelhante àquele forjado pelo adjetivo irônico ―alemão‖ (ALPHONSUS, 1927, p. 8). Além disso, Alphonsus atualiza a referência cinematográfica: se, na década de 1930, compara a voz do médico ao filme de Chaplin, ironizando a eficácia e seriedade do especialista, na de 1920, para atingir o mesmo objetivo, recorre aos filmes de Harold Lloyd, outro conhecido comediante norte-americano que antecedeu Carlitos. Outras alterações foram mais radicais, como a inserção da versão do narrador (antes, não havia menção à mãe de Amâncio, nem as interrupções provocadas pelo narrador entre parênteses), da demarcação das cenas com o símbolo gráfico *** (antes o texto era um monobloco) e de falas (antes diluídas no discurso indireto). O texto final é mais teatral. 58

Nesse sentido, é importante lembrar que Luiz Costa Lima, em ―O conto na modernidade brasileira‖, defende que os contos de Galinha cega sejam de ―marcação teatral‖ (1982, p. 176). O ensaio realiza breve panorama do gênero entre 1922 e 1982 e inclui o livro de estreia de João Alphonsus na primeira ―linha de força‖ do moderno conto brasileiro, a qual Lima chama de ―descoberta das situações coloquiais‖, inaugurada, segundo ele, por Mário de Andrade. Embora ―a lição do modernismo nele [em Galinha cega] se faça presente pela atenção entre lírica e humorística ao cotidiano, esta atenção ainda é menos potente que a marcação teatral‖ (LIMA, 1982, p. 176, grifo do autor). A estratégia diferenciaria os contos de João Alphonsus dos de Mário de Andrade e os aproximaria aos de Affonso Arinos (em Pelo sertão, 1898) e de Monteiro Lobato (em Urupês, 1918), apesar de o modernista investir na oralidade ―autoirônica‖ (LIMA, 1982, p. 176). Duas seriam as características do conto de marcação teatral: a ―empostação da oralidade‖ nas falas dos personagens e a ―descrição nítida e esquemática‖ do cenário e dos personagens (cf. LIMA, 1982, p. 176). O crítico ilustra a ideia com ―Oxicianureto de mercúrio‖, em que a teatralidade teria convertido ―o ‗causo‘ em acontecimento da língua‖ (LIMA, 1982, p. 177), singularizando, assim, o banal. Diferentemente, nos contos de Mário, o banal seria conduzido ―ao leito multiforme do cotidiano de que provém, como maneira e estímulo para melhor penetrar neste‖ (LIMA, 1982, p. 177). A análise de Costa Lima parte do conto mais dialogado de João Alphonsus para comprovar que toda sua obra seria de ―marcação teatral‖, claramente diminuindo-a em relação à de Mário de Andrade, que teria conseguido reproduzir mais materialmente a oralidade. Além de essa distinção ser questionável, chamar seus contos de teatrais porque caracterizam visivelmente os personagens e descrevem o ambiente não nos parece razoável, uma vez que tais elementos fazem parte da constituição do gênero narrativo. Por fim, o narrador irônico de Alphonsus, responsável por transformar uma história estranha em uma narrativa envolvente, estabelece um ponto de vista e direciona nosso olhar, efeito particular da prosa não teatral, em que há um narrador. Logo, nos afastamos da rotulação estabelecida pelo professor Costa Lima e ratificada pelos trabalhos de Cilene Pereira. Parece-nos mais viável sublinhar a modernidade de ―Oxicianureto de mercúrio‖ pela coexistência de dois narradores, ampliando as interpretações sobre o evento, pelas inovações formais – como a mescla de estrutura narrativa tradicional com a teatral para relatar o drama tragicômico de Amâncio –, pela linguagem vinculada a uma época e a uma sociedade específicas, pela quebra da causalidade e pela anedota final, típica dos contos de Galinha cega. Sobre esse último procedimento, Massaud Moisés indica que 59

se o grupo da Semana de Arte Moderna praticou a poesia-piada, João Alphonsus faz o conto-piada. (...) O humor, o fino humor que destila o sorriso, jamais a gargalhada, o humor meio absurdo da anedota à brasileira, resulta dessa percepção da face obscura da alma humana, em que o trágico se alia ao cômico para gerar o retrato fiel da banalidade do cotidiano. (1989, p. 258-259)

Recuperando a etimologia de seu nome, podemos concluir que Amâncio amava a vida boêmia, e, de maneira semelhante, seu antagonista amava Ermínia; aflitos pela perda daquilo que adoravam, ambos abandonam o bom senso destruindo-se mutuamente. No conto, quem morre, ironicamente, é quem fugia da morte. Por mais que o ser humano tente driblá-la, a morte o alcança irremediavelmente. Por sua vez, o protagonista de ―Godofredo e a virgem‖ (GC) não morre, mas é o que mais sofre devido à fatalidade ocorrida com a moça com quem divide o título e com quem gostaria de ter compartilhado a vida. Diferente do conto analisado anteriormente, neste temos pormenorizada a reação dos que assistem à morte: o atordoamento do jovem noivo e o golpe do pai ambicioso. No início da narrativa, os elementos naturais – ―vento bravo vindo do Acaba-Mundo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 43) – espelham a dor e a dúvida de Godofredo em relação à morte, ratificados pela aliteração e pelo nome da então recente favela belorizontina. Godofredo, porém, parece (ou finge) não entender: ―O gemido do vento não tinha o menor sentido, nada tinha de significação‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 43). Logicamente não há relação entre o som do vento e a morte iminente, entretanto, a crença popular e a literatura romântica aproximaram, há séculos, esses elementos. A inexistência de explicações razoáveis para a doença e para a morte é afirmada em todos os contos de Galinha cega, e aqui ganha as reflexões do personagem: ―Godofredo esgotava mais uma vez a clássica taça de fel dos porquês lançados ao dono dos ventos e dos mundos. (...) E sorria vencido. (...) E depois aspirou forte no vento forte aquela miséria, aquela raiva, aquela impossibilidade, aquela... meu Deus, meu Deus. Saiu da janela, lento, sorrindo sempre‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 43). O sorriso misto de resignação e amargura diante do definhamento incompreensível de Carmita ecoa a ―anedota final‖, perseguida pelo narrador de João, estratégia explicitada no desfecho, como veremos. Se o vento (a fraqueza humana, a força misteriosa da morte, Deus) é intenso, o homem também aspira forte, embora sua limitação o constranja. A intensa angústia de Godofredo é materializada em trechos paradoxais: ―(...) o vento era o gemido contínuo e desnecessário, que ele não ouvia‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 43), ―O cansaço descera como a paz enorme, perturbadora‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 48). Dessa forma, o narrador expõe a incapacidade 60

do jovem em aceitar que toda a ―mocidade de sua carne‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 43) e sua saúde esportiva não seriam de Carmita. Em meio àquela dor, Godofredo recorda episódio vivido com a namorada em que alegria e dor se misturaram. A pequena cena é narrada com vocábulos do campo semântico sexual: na chácara fecunda, os lábios molhados de Carmita e seus seios virgens denunciam desejo secreto; ela beija um passarinho que lhe bica a boca e o coloca dentro do decote; Godofredo sente um convite debaixo das mangueiras. Entretanto, o afago de Carmita é forte e mata o animal: ―O beijo, o abraço, feito em golpe, uma fúria, uma grande dor. (...) O passarinho morto, morto, por que, meu Deus, por quê.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 44). A pretérita indagação da moça triste é atualizada pelo protagonista, que lamenta a abstinência sexual de ambos; o passarinho morto anuncia a agonia física de Carmita e a privação do desejo de Godofredo, que se vê, no espelho, ―bonito e desesperado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 43). No título, a substituição do nome de Carmita por um atributo (―virgem‖) sublinha o problema central do jovem Godofredo, não ter tido relações sexuais com a companheira. No velório, tal pensamento o perturba: ―o corpo virgem de tua esposa, a tua esposa virgem, virgem antes e depois da morte. Amém.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 50). Sofrimento semelhante é visto em Madalena, de ―Eis a noite!‖ (EN), mais angustiada que o noivo de Carmita devido à idade avançada de 30 anos. A imagem da noiva resulta paradoxal: tanto é virgem angelical, cuja voz é ―sem mácula e sem pecado‖, quanto mata um passarinho, denunciando seus ―silêncios pecadores‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 48). No presente da narração, não é um passarinho que se aproxima de Godofredo, mas um besouro; por erro de percurso, o inseto cai e parece morto, contudo revive e voa. Quando o ciclo se repete, o noivo viúvo sorri ―da esperteza inútil do besouro, para quem ele seria talvez uma espécie de deus perigoso mas ingênuo, fácil de ser enganado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 45). O homem o esmigalha, tal como o Deus dos humanos age com suas criaturas; entretanto, estas não tentam tapear a divindade, como fez o besouro com Godofredo. A crítica alcança também o padre, ―dominador dos impossíveis‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 47), que dá a extrema unção a Carmita: o paradoxo denuncia o desserviço religioso. Deus não era uma questão na infância de João Alphonsus, pelo contrário, era uma ―certeza das mais certas dentro das almas‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 10) em sua casa. A religião do pai não era burocrática, mecânica, admitia questionamentos. Porém, se seu primeiro ano de internato, em Mariana, foi de um ―misticismo puríssimo‖, ―tempo de delícias espirituais‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 10), em seguida, por causa da ―sedução da carne‖, 61

conforme lhe ensinava seu confessor, tornou-se cético – tom semelhante ao do narrador do conto. O ―ensaio da morte‖ faz com que as curvas sensuais de Carmita se tornem retas – o corpo vira um traço, o joelho, duas pontas, e o peito, uma tábua –, sua luz dá lugar a uma ―claridade amarela, trágica‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 45) e o calor de seus lábios se torna febre. Apesar disso, o rapaz apaixonado, acreditando nos ―milagres católicos‖ se casa com ela, no leito de morte, ―para nada, nada, nada...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 46). A repetição do pronome ratifica a ausência de qualquer prazer corporal, como também a falta de explicações efetivas sobre a morte. As referências a Belo Horizonte percorrida por Godofredo também intensificam o tom fúnebre: além da menção ao cemitério do Bom-Fim, ―O bairro dos funcionários mostrava um trecho melancólico, pontilhado de luzes, para a varanda‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 49). Além da dor afetiva, Godofredo enfrenta outra decepção com a morte de Carmita. O pai da moça, personagem até então coadjuvante, ―bólido lento e pesado‖, ―presença incômoda e supérflua‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 48) no velório, submete ao jovem as contas médicas referentes às últimas semanas da menina enferma. Terêncio justifica a responsabilidade do rapaz, que tinha feito questão de casar com Carmita no leito de morte e, assim, deveria assumir também seus custos. Perplexo e anestesiado, o rapaz paga tudo, inclusive enterro e missa. Embora ache que ―esta vida não presta pra nada. Para nada‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 50), Godofredo tenta retomar a vida normal. Certa vez, vai à casa da família de Carmita e encontra apenas a empregada, Antônia, ―carne nova de mulata, pecado racial (...). A mulata suspirou e o seu suspiro o que fez foi acordar o homem confuso e redescoberto na noite erótica de luar‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 52). Ao mesmo tempo em que se descobre vivo, o jovem chora de raiva, ―sentia-se incompreensível‖, pois ―o mundo é assim‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 52). Tal sentimento pode ser ilustrado pelo trecho que narra uma das últimas conversas entre ele e Carmita: ―Godo, você gosta de mim, não gosta, hein? – Gosto sim, gosto, sim, Carmita: eternamente. Coroa de flores de lata: Para Carmita, minha Saudade eterna – Godofredo.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 48). Dois momentos distintos são narrados ao mesmo tempo por meio de estratégia textual típica dos cubistas, que sugere simultaneidade ao apagar elementos coesivos. Todavia, um mês depois, Godofredo responde nova exigência do pai de Carmita de maneira distinta. Terêncio pede-lhe que encomende missa de 30 dias e inclua o nome da família como solicitante da homenagem póstuma. Além de negar-lhe o pedido, o viúvo manda 62

passar os recibos (das contas já pagas por ele) em nome de Terêncio, uma vez que o pai era o verdadeiro responsável por elas. Ao ouvir isso, o velho se enraivece, chama o genro de cínico e ingrato; depois, sai de cena, ―subindo solenemente pela Mantiqueira do seu desprezo metódico e bem dosado. Na porta, voltou-se e olhou Godofredo de uma altura pelo menos de três mil metros‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 53). A arrogância de Terêncio é maior que a altitude da Serra (2.798 metros), empregada metonimicamente. A hipérbole acentua a prepotência e a pretensa superioridade de Terêncio diante do rapaz que lhe paga as dívidas. A mãe de Carmita, Dona Carmem, que antes demonstrava ―resignação acabrunhadora‖, apenas boceja. Nesta cena final, a metalinguagem anuncia o procedimento típico de Alphonsus em Galinha cega: ―Godofredo viu seu Terêncio aproximar-se risonho, para o diálogo final, anedótico e necessário, do conto‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 52). Como havia ocorrido em ―Oxicianureto de mercúrio‖, mais uma vez a risada satírica encerra a história, aproximando o livro da primeira proposta modernista de choque e desconstrução. Bem mais sombrio é o desfecho de ―O mensageiro‖ (EN), talvez o mais impactante dentre os escritos por João, porque o homem a que o título alude, além de realizar positivamente o que seu nome anuncia, trazendo alegria a certa noite festiva, espera todos dormirem para asfixiá-los com gás. As vítimas são pensionistas no mesmo estabelecimento onde Felisberto, o ―mensageiro‖, mora, em região portuária. A cidade anônima e barulhenta, que conta com teatro, casas de moda, cafés, bonde, oficinas de jornal (onde Felisberto trabalha), é mais desenvolvida do que a do protagonista, também terra natal de Antônia, dona da pensão. Mesmo que promova convivência plural, a cidade intensifica os revezes do ser humano, como apontaremos. Felisberto, por sua vez, é silencioso, e sua vida era ―sempre igual e sempre estranha em qualquer lugar‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 171). No início do texto, ele assume que era apenas um forasteiro, ―um adventício, um transeunte despercebido, sem pouso e sem hábitos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 171). Apesar do nome, não demonstra alegria, como também não expressa tristeza. Ao menos, é assim que pretende viver, pois acredita ser diferente dos demais, que vivem de mentiras, ―do círculo fechado em que aquelas vidinhas rondavam para o nada num jogo de inanidades‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 189), por isso ―procurava se alhear do ambiente, daquelas graçolas, daquelas mandíbulas marcando o ritmo de um apego nojento à vida, destruindo para não se destruírem‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 172). 63

O narrador registra o pensamento do recém-chegado sobre aqueles com os quais convive: a todo tempo Felisberto julga a vida sexual, financeira e familiar dos outros. Quando jogava sinuca no bar, percebia os homens ―tão entretidos como se nada existisse fora daquele retângulo, daquelas bolas inumeráveis‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 174); eram, portanto,

sujeito lineares, por assim dizer, almas incaracterísticas (...) Cada qual, porém, talvez guardasse para uso íntimo a sua banalíssima tragediazinha que não importava a Felisberto. Se ele pudesse entrar em contato com as criaturas só em momentos gratuitos como aqueles... (...) Certas coisas não o incomodavam, no jogo de absurdos da vida. (...) [sabia de sua] desconformidade com a vida, singularidade que aliás lhe transmitia a consciência de seu próprio valor. Era como um espírito sobrepairando a tantas miseriazinhas e sentia-se único e solitário (...). (ALPHONSUS, 1976a, p. 178)

Tal desolação já havia sido expressa por João Alphonsus no poema ―Noite morta‖, dedicado a Emílio Moura em 1925: ―Sou o homem vazio do meu tempo vazio‖ (cf. apud MARQUES, 2011, p. 158). Felisberto desejava viver só, sentindo sua ―estranheza‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 189), e tinha ímpetos de rebeldia, às vezes reagindo rispidamente; esses momentos eram sempre seguidos de uma cena de humilhação, pois sentia ―uma satisfação íntima de ser humilhado, tão natural como os seus repentes de revolta‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 173). Apesar de se diferenciar dos outros, Felisberto às vezes agia como qualquer um; por exemplo, quando a mãe morre, o sofrimento o faz pensar em outros níveis sobre-humanos de existência e pedir um sinal ao além. Depois, se arrepende de tudo. Embora o narrador esteja muito próximo do protagonista, em alguns momentos se afasta dele para apresentar o cotidiano de outros personagens, como no trecho em que se compadece de Rogoberto a respeito da cobrança de Aquiles: ―E o calvo [Aquiles] não tivera consideração alguma para com a presença da pobre senhora [Luciana, esposa de Rogoberto]‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 183). Mais do que pena, Felisberto tem nojo e raiva do falante Rogoberto, cuja voz era ―pastosa, pegajosa, (...) um poço de lubricidade‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 173), cujo discurso vulgar era repleto de ―palavras de canalhice‖, com as quais comparava as mulheres a comida, carro, circo (cf. ALPHONSUS, 1976a, p. 188). Além disso, Rogoberto ―exigia um copartícipe mental para o seu prazer de cônjuge‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 194); era um ―cretino‖, como os sujeitos ―dados à análise vadia de conjuntos femininos, debaixo de um critério não de perfeições estéticas, mas da vibração sexual que as mulheres passantes transmitiam aos analistas vadios‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 187). Já Aquiles, o cobrador, era quieto (―homem eternamente abafado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 64

171)) e ganancioso (―malvado boticário‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 183)), muito cortês com Mercedes. As pensionistas quarentonas Mercedes e Fani, ―as velhas‖, rezavam à noite um ―sussurro abafado e monótono, (...) zumzum obscuro (...) influência incômoda (...) insistência monótona‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 170). A reza incomodava Felisberto, como a escolha lexical e a repetição da impressão negativa explicitam. Em certa ocasião, ele reage brutalmente à competição das mulheres em relação a quem mais reza terço: ―Então pensam que religião é isto? Um páreo de velocidade?‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 172). O ―mensageiro‖ não aprecia orações e acha a ideia de Deus absurda, ainda que, no final, aja ―como um Deus arrependido e desorientado pelas imperfeições de sua criação‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 180). Sobre sua fé, João Alphonsus, no depoimento ―À deriva‖, lembra que seu ceticismo, nascido no internato em Mariana quando adolescente ganhava nova roupagem na década de 1940:

Outros tempos, outro clima, outra idade, tenho procurado me reaproximar de Deus, sem aquela convicção perfeita da antiga disciplina religiosa. Me reaproximar até por meio de personagens da minha ficção, tateando como um cego em torno da suprema verdade. Uso esta expressão que pode arrepiar aos crentes ortodoxos: vou vivendo à deriva. Ansiando, afinal de contas, por uma estrada de Damasco! (ALPHONSUS, 1965, p. 10)

Fani se interessa por Felisberto, com quem tem estranho caso. Ele se relaciona com ela por necessidade, não por amor; era acostumado às prostitutas, que lhe davam ―ainda maior consciência da sua abjeção física, fermentação de apetites e baixezas, igual à dos outros‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 179). Entretanto, quando descobre que Fani havia sido uma, ele fica ―enojado e perplexo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 187), embora ela estivesse arrependida da vida pregressa (o que não garante a ela felicidade, bem porque vivia sempre em ―desesperada monotonia, aquela vidinha entre vidinhas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 186)). Mesmo assim, se encontram, às escondidas. Ele tenta dizer-lhe ―que ela era uma idiota mas ele era um vil, que a vida era um absurdo e uma estupidez, que... mas um tumulto interior inconsequente e torrencial engasgou-o, enquanto a velha desaparecia sem olhar para trás‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 187). Na noite em que propicia a alegria de todos, promete casar-se com ela e lhe dar um filho; ele também se sentia feliz, com ―entusiasmo febril, os olhos incendidos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 193). Em todos os livros de João Alphonsus, temos personagens prostitutas, em especial envelhecidas e sofridas, importantes para o desenvolvimento da trama. Afastam-se da imagem 65

sensual da mulher, produzindo pouco efeito sedutor; em geral, são maternais, vítimas, empobrecidas, solitárias, religiosas. Além de Fani, que revela o comportamento paradoxal de Felisberto, adiante trataremos de Maria Triste, de ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (GC), que divide a má sorte de Ricardo, de Maria Araponga, de ―A pesca da baleia‖ (PB), testemunha da morte abrupta de Josefino, e de Genoveva, de ―A noite do conselheiro‖ (EN), vítima silenciosa da crueldade do protagonista. Outro pensionista importante é Abel, com quem Felisberto divide o quarto. O rapaz, ―um tímido, um isolado, talvez um mesquinho‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 169), trabalhava duro na esperança de casar com a noiva do interior. O eterno noivo não acredita (nem deixa de acreditar...) em Deus e pede ajuda a Felisberto para entender questões religiosas (a noiva é muito devota e escreve-lhe cartas sobre isso), ao que o mensageiro responde: ―Não acredito, mas tem certas coisas que devem ser levadas a sério quando se acredita nelas... Fica com suas dúvidas. Dorme, seu cretino‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 175). As memórias infantis perturbam Abel: aprendera orações com a mãe e as repetia mecanicamente. Para Felisberto, ―Talvez fosse apenas o desejo imbecilmente humano de regresso ao ponto de partida, de fazer estacar o tempo, e nada mais. (...) Que lhe importava a sua própria vida? Custou a dormir.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 175). Apesar da rispidez com que trata o companheiro, Felisberto sente pena do

absurdo daquele conjunto orgânico estacionado temporariamente em determinada forma que se convencionou chamar humana, sangue, nervos, músculos debaixo de um pijama pobre, máquina precária funcionando para chegar àquelas magoazinhas cretinas (...) [o corpo humano era] admiravelmente organizado, ou maldosamente organizado, para atingir a tão pouco. E seria tão simples paralisar tudo... (ALPHONSUS, 1976a, p. 180)

Temos aqui um dos vários indícios do projeto de Felisberto e sua justificativa: havendo mais obstáculos do que vantagens na vida, seu saldo era negativo, e a melhor solução era agir como o Caim bíblico e assassinar os ―irmãos‖. Se para Abel os pensionistas eram mulheres rabugentas e homens pouco estimados, Felisberto é radical a ponto de achá-los uma ―fauna‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 171), da qual apenas ele e dona Antônia não faziam parte. Já para ela, seus hóspedes eram ―gente escolhida, séria e pouca‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 169). Dona Antônia era rígida nas normas, entretanto pessoa generosa. Sofria resignada pelo filho que a procurava apenas para extorquir dinheiro. Felisberto se comove com a situação e se esforça para tornar, ao menos um dia, sua vida feliz. Tal como o misericordioso pai bíblico procura o filho pródigo, Felisberto busca Diógenes, rapaz ―cínico‖, ―desclassificado, viciado‖ 66

(ALPHONSUS, 1976a, p. 185), cujo ―ofício‖ era distrair os estrangeiros que chegavam à cidade, fazendo-os rir e levando-os às prostitutas, comprometendo, assim, a ―impressão de um nacional...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 189). Outra ocupação de Diógenes era discutir com o dono do bar, Joaquim, que garantia ―a primazia do fado sobre o samba, uma questão de sentimento vencendo a arrelia. (...) Cantavam em voz média excertos de canções populares, o filho pródigo acompanhando as suas com batidas de dedos numa caixa de fósforos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 194). O interesse de João Alphonsus pelos ritmos musicais fica explícito em vários contos, sempre relacionando o estilo em questão com a discussão em pauta. Para o narrador, os portugueses são ―indivíduos vagos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 171), uma vez que afirmavam ―Portugal é a saudade – O Brasil é a esperança‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 195). ―O mensageiro‖ ilustra a ―acuidade de observação psicológica‖ encontrada nos textos de João Alphonsus mais do que em outros prosadores modernistas, de acordo com Mário de Andrade, para quem o mineiro tinha ―gosto pelas análises de alma, de preferência à fixação viva de personagens‖ (apud MARQUES, 2011, p. 170). No texto há a mesma estratégia empregada em Rola-Moça na descrição de tipos populares; na década de 1930, em carta, o amigo paulista já elogiava esse procedimento, batizando-o de ―técnica do colar‖, pois reúne ―pérolas barrocas, desiguais na forma e na cor‖, que compõem ―ótimo sentimento da paisagem‖ (apud GUIMARAENS, 2015, p. 168). A diversidade de personagens enfocados no texto e a intensidade da análise que o narrador impõe a eles aproximam o texto ao gênero novela. Por mais que não pretendamos teorizar sobre a diferença entre gêneros literários, como as duas reuniões da obra contística de João Alphonsus (nas décadas de 1960 e 1970) trazem na capa, como subtítulo, a nomenclatura ―contos e novelas‖, abordaremos brevemente a questão genérica. O contato com as primeiras edições dos livros nos rendeu, nesse sentido, duas informações interessantes. A primeira é que os textos de Galinha cega e A pesca da baleia são anunciados na capa como ―contos‖, inclusive os longos e labirínticos ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (GC) e ―O imemorial apelo‖ (PB) (tratados a seguir). A segunda é que a designação ―contos & novelas‖ aparece na folha de rosto de Eis a noite!, sublinhando nova escolha formal, mas deixando em aberto quais textos participariam de um ou de outro gênero. De acordo com os dados apresentados, apostamos que uma das novelas do último livro seja ―O mensageiro‖ (EN); outras possibilidades são ―Foguetes ao longe‖ e ―Caracol‖ (tratados também a seguir), pelos mesmos motivos apontados acima. 67

Felisberto comporta-se como um ―emissário divino a deferir uma graça‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 191), trazendo na noite do aniversário da mãe o filho ausente. Entretanto, quando os reconciliados vão dormir, responde na prática a pergunta que Antônia, aborrecida por uma rispidez do hóspede, lhe faz no início do conto (―E que é que pretende fazer aqui?‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 173)). Coerente com o discurso feito naquela noite festiva (―– Dona Antônia! A vida é uma repetição fastidiosa‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 191)), para eternizar aquela rara e última felicidade, opta pelo assassínio em massa. Isso porque a realidade humana ―pungente e revoltante‖ lhe dava pena e

ímpetos de remediar o irremediável, (...) ânsia que já lhe acontecera em outras oportunidades e que acabava decaindo numa prostração desiludida, numa necessidade de mudar de ambiente, de espetáculo... Porque, no íntimo, amava os atores inconscientes, por excesso e por piedade, e quando se convencia de que não podia dar-lhes mais lógica e mais amenidade às cenas, variava delas. (ALPHONSUS, 1976a, p. 189-190)

A última frase resume o sentimento predominante na obra de João Alphonsus em relação à humanidade: mais do que desconfiança, sente profunda compaixão. Assim justificado, na última noite, quando Felisberto sente-se o ―senhor da efusão daqueles entes‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 192), dá seu ―último riso, feliz com a felicidade de todos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 194). Lembrando-se de que a felicidade terrena é relativa, para ―fazer tudo estacionar, um minuto feliz dentro da eternidade, como devia sempre acontecer!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 195), abre as torneiras de gás por toda a casa de madrugada.

Evidentemente que todos se recusariam a morrer, se fossem consultados. Mas quem é que consultava as criaturas sobre fatos essenciais do seu destino, desde a concepção a qualquer instante até a morte a qualquer momento? (...) tinha tomado o lugar de Deus, no seu pequeno mundo. Estava tão contente, tão satisfeito com a sua missão, tão sem preocupações ou intenções para além daquela, que dormiu imediatamente. (ALPHONSUS, 1976a, p. 195-196)

Como no conto anteriormente analisado, a metalinguagem é acionada para afirmar a importância dos fatos selecionados, ―acontecimentos essenciais, dignos de serem registrados‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 184), e sublinhar a importância do narrador, que, ao escolher o que narrar (e como), revela-se um criador; na visão de Felisberto, um deus, visto que os seres humanos são ―autômatos, como um espetáculo absurdo, como uma vegetação – inteiramente alheia ao seu próprio ser‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 189). Se em ―O mensageiro‖ (EN) conhecemos pormenores dos assassinados, em ―O guerreiro‖ (EN) pouco sabemos da multidão morta pela guerra distante, acessível aos brasileiros por meio do rádio. O protagonista, tal como Felisberto (no livro Eis a noite! os dois textos são também subsequentes), sente-se diferente das pessoas com quem convive, 68

interessadas nos informes, curiosas pelas manobras militares. Evaristo pensa é nas situações adversas sofridas pelos atingidos e se irrita tanto com o comportamento dos conterrâneos, que surta, transportando-se para o campo de batalha e tornando-se o guerreiro anunciado pelo título. Por meio do narrador onisciente, sabemos que, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos homens frequentavam botequins para ouvir as notícias pelo rádio. O estabelecimento do português Manuel, localizado à margem da lagoa próxima à casa de Evaristo, é, por isso, cenário principal da primeira metade da narrativa. O objeto caro manuseado apenas pelo dono era raro na época, por isso ficava numa posição de destaque, espécie de pedestal, para evitar danos. Para melhor acompanharem a movimentação das tropas, os ouvintes compravam jornais e revistas com mapas das regiões em conflito. Assim, os ―rádio-escutas iam aprendendo geografia, ainda que certos nomes de lugares distantes lhes soassem misteriosamente, aumentando o prestígio sobrenatural daquelas lutas ciclópicas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 197). Em seguida, discutiam sobre elas, mesmo sem entenderem muito, travando discussões ardentes e incisivas, mas rápidas, porque o português gostava de silêncio. Evaristo também ouvia as notícias, entretanto não discutia com ninguém, apenas dava uma implicante ―risadinha cadenciada com três pancadas de tambor: – Hé, hé, hé! Hé, hé, hé!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 197). Alguns reagiam gargalhando diante daquela falta de senso, a maioria o desprezava logo em seguida, e todos o achavam debochado. Quando, além do sorriso estranho, expressava sua opinião – por exemplo, ―Para acabar com as guerras, o remédio é mandar capar a humanidade toda! Deixando só alguns sujeitos inteiros em cada lugar, mas dentro de jaulas...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 198) –, os outros o achavam mais esquisito ainda. O narrador se encarrega de explicar o ponto de vista de Evaristo: depois de se ―intoxicar‖ com as notícias da guerra, chegava à ―plenitude tóxica‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 199) quando percebia a cegueira dos homens (―cavalos‖) que, acreditando saber tudo sobre a guerra, se afastavam de seu real sentido. Lidavam com a situação de maneira tão distante, que a guerra parecia ocorrer em outro planeta ou na ficção; posicionavam-se de um ou de outro lado, ―tudo com ignorância e estupidez, como se fosse uma fita de cinema ou uma partida de futebol‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 199). Evaristo pouco falava, e internamente irritava-se tão intensamente a ponto de desejar que, ao invés da Europa, o bar onde estava fosse bombardeado, matando todos aqueles ―trouxas‖. Chegava a acreditar nisso e, tentando atingir seus ouvintes casados e pais de família (ele era solteiro), lembrava que mulheres e crianças também morriam na guerra. 69

Importunava igualmente Seu Manuel, recordando que seu enriquecimento com a frequência crescente ao bar e seu sono tranquilo ao lado da esposa só aconteciam porque os bombardeios não eram ali. Uma história dentro do conto ilustra o pensamento de Evaristo, que não conseguia, em geral, discursar teoricamente, mas apenas dar exemplos. Certo italiano, morador de Belo Horizonte, ao saber dos bombardeios em Milão, matara-se, jogando-se debaixo de um ônibus. Diante do fato, os homens do bar fizeram comentários ―mais ou menos humorísticos. Que absurdo. Ninguém compreendia nada. Morrer por causa de coisas que estavam acontecendo tão longe... Devia estar meio louco‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 200). Todavia, para Evaristo, que seria capaz do mesmo, o suicida era o mais lúcido de todos. Se os colegas justificavam a atitude do homem supondo que seria um milanês incapaz de viver enquanto sua terra natal estava sendo destruída, Evaristo declara: ―O sapateiro era um homem garibaldino, entendem? Era um homem que sentia o mundo, a ruína do mundo, o sofrimento do mundo, e não um torcedor do Eixo... Podia estar meio louco, porque Milão serviu de motivo para ele mesmo, ora Milão! Quis morrer como um protesto pelo bem da humanidade...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 201). Evaristo se identifica com o italiano porque a guerra o angustiava como se ele estivesse no campo de batalha. Se os homens comuns, ―cavalos‖, sempre pensam no interesse individual em detrimento do coletivo, para Evaristo, os corajosos e dignos, os ―garibaldinos‖, mais acertadamente, estavam preocupados com o todo. Uma guerra daquela dimensão deveria angariar comoção mundial, não poderia haver homem algum que gozasse paz naqueles dias. Contudo, sua argumentação gera apenas perplexidade e gargalhadas. Funcionário público e ex-militar, Evaristo considerava-se superior aos frequentadores do botequim, na maioria trabalhadores braçais; sentia-se o único capaz daquelas conjecturas, fazendo jus ao significado do seu nome, proveniente do grego, ―bom entre os melhores‖ (NEVES, 2002, s/ p.). Apesar de sua prepotência, ―Ninguém ligava para aquelas suas interpelações absurdas e azedas, porque Evaristo era excelente pessoa‖ (ALPHONSUS, 1976a, 199). Acontece que, numa noite ―famosa‖, quando ―já se estava quase no final de tudo‖, Evaristo ultrapassa a esquisitice habitual: ele grita selvagemente, curva-se ―para a frente na posição de avançar e foi dar com a cabeça no vidro da estufa de pastéis‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 201). Diante da queixa do português em relação à despesa causada, o homem ensanguentado, ―com um ódio capaz de trucidamento‖, responde que colocasse na conta todo o estrago e sai correndo em meio às gargalhadas. É possível que a noite tenha ficado célebre 70

graças ao surto de Evaristo, embora seu transe não tenha motivos específicos, apenas aqueles que a narrativa já elencava. O bar muito movimentado e conturbado era oposto à passividade da lagoa em frente, muitas vezes aludida e descrita quase miticamente: ―Fora, refletindo vagamente as estrelas, a superfície da lagoa era a tranquilidade da natureza extra-humana, a demonstração de que a terra seria um planeta feliz sem os animais racionais. E sem os irracionais também, pois que estes brigam igualmente...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 198). No momento em que Evaristo corre do bar em direção à ladeira de casa, a lagoa transforma-se em ambiente onírico graças ao ―tênue luar que dava à lagoa e à pequena localidade, ponto minúsculo num país imenso, uma flutuação irreal de cidadezinha de sonho‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 202). O movimento de subida e a nebulosidade da cena preparam a ação seguinte, em que o homem tresloucado acessa outra dimensão; quando Evaristo chega à igreja rodeada de casas, a passagem se completa, o que relaciona o transe estabelecido à esfera religiosa. Evaristo solta um ―grito de guerra‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 202), marchando e rindo ao mesmo tempo. Em um átimo, vê-se numa região gelada junto a milhares de soldados, cheios de ―coragem e determinação. E todos aqueles homens não eram iguais, nem eram diferentes, massa automática sem descanso e sem trégua, Evaristo entre eles, nem vitorioso, nem feliz, mas consciente da necessidade de ir ao encontro do inimigo e de ajudar a terminar com a guerra estúpida como todas as guerras‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 202). Ali inserido, pede para ser chamado pelo número 999.055 e é atendido pelo general, que aproveita para dizer a todos os soldados que ―É preciso perder a ilusão da personalidade e de tudo mais, mesmo do heroísmo inútil. O que manda agora é a ordem de sobreviver‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 203). O discurso do chefe gera angústia em Evaristo, que cresce gradativamente até fazê-lo retornar ao mundo ordinário. Já os soldados procuram obedecer: não pensam mais em salvar vidas, apenas sobreviver. Percebendo a nova orientação, Evaristo se dá conta de que se ―Não se trata mais de morrer pela pátria‖, a guerra é uma ―loucura humana‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 204). Na iminência da morte, sente-se ―desnecessário, pequeno, minúsculo, entre os gigantes metálicos que se digladiavam importantíssimos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 204). As ―máquinas de morte‖ eram ―amigas e protetoras, como uma peça mecânica, com um orgulho absurdo de peça ligando as duas máquinas que caminhavam com ele no ruído infernal‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 203). Evaristo se dá conta de que, no meio das máquinas, o homem se assemelha a elas e é isso o que o general quer. O surgimento de certo soldado judeu anima Evaristo, dizendo que ele era importante e que as máquinas, na verdade, apenas obedeciam aos homens. Contrariando as ordens 71

superiores, o protagonista tenta socorrer uma criança em desespero; o soldado tenta impedi-lo, dizendo que ―as crianças sofrem pelos pecadores (...). É uma provação geral. É preciso renovar a humanidade em sangue!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 204). Evaristo não o ouve, corre ao encontro da criança, que explode; ele recolhe alguns ―pedaços de corpos ainda quentes (...), no meio da tempestade da loucura humana‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 205). O judeu justifica a tragédia, que seria necessária para compadecer Deus, e se lamenta mais pela morte dos animais trazidos para a guerra, como os cavalos ―pacíficos, castrados, coitados! E por que você chama os homens de cavalos, Evaristo? Os cavalos não merecem isso!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 205). O soldado judeu estabelece conexão com a realidade anterior de Evaristo e faz com que o conto se relacione a outros de João Alphonsus, que utilizam personagens animais para enfatizar a irracionalidade e a carência humana. Evaristo se irrita com o companheiro, diz que a menina podia ser filha dele e que a guerra envolve todos. A discussão é semelhante à travada no bar; os homens longe da guerra se envolvem burocraticamente com ela, e aqueles inseridos nela não estão dispostos a morrer pelos outros. Tanto na sua vida real quanto no transe, ―o guerreiro‖ se sente deslocado. O artigo definido do título sublinha seu sentimento de singularidade: embora seja orgulhoso, prepotente e odeie os homens, é solidário à dor humana e sonha arriscar sua vida para salvar outra. Evaristo retorna à igreja quando o soldado judeu o sacode; ao abrir os olhos, está rodeado por pessoas estampando ―incompreensão irônica, ainda que meio estúpida e assustada‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 206). O contraste entre o devaneio sangrento e a calmaria da cidadezinha era ―absurdo‖ para o ―guerreiro‖, que termina o conto gritando e xingando todos de ―cretinos‖ e ignorantes. O personagem de João Alphonsus sublinha a falta de sensibilidade do brasileiro e sua ignorância em relação às questões intrínsecas da guerra. Os conflitos mundiais do início do século eram pauta diária dos cidadãos de Belo Horizonte e de outras cidades médias e grandes no Brasil. Na prosa, percebemos a dimensão que João Alphonsus dá à guerra e veremos mais adiante como Marques Rebelo a expressa em seus contos. Na poesia, os exemplos são inúmeros, basta citar alguns versos de ―Sentimento do mundo‖, de livro homônimo de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1940: ―Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo, / (...) / Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras, / humildemente vos peço / que me perdoeis. / (...) / [sobreviventes] não foram encontrados / ao amanhecer // esse amanhecer / mais noite que a noite‖ (1998, p. 133-134). 72

A ideia retoma, em certa medida, o unanimismo de Jules Romains e Emile Verhaeren, este último leitura assídua de Alphonsus. Evaristo, em certa medida, responde à ―influência contínua, progressiva, tirânica que exerce a sociedade sobre nós‖, tratada por Romains no manifesto ―Os sentimentos unânimes e a poesia‖ (1905): ―palpitamos por ser absorvidos pelo meio humano que nos cerca e saboreamos a voluptuosidade estranha que nos causa esta espécie de aniquilamento‖ (ROMAINS apud TELLES, 1972, p. 53). Algumas semelhanças entre o protagonista e João Alphonsus podem ser apontadas. No depoimento ―À deriva‖, o escritor explica que relata fatos da vida pessoal sempre apoiado na história coletiva, a partir de ―todos os trambolhões que a humanidade vai desesperadamente aplicando a si mesma, como numa necessidade de emprestar a estes tempos [décadas de 1920 a 1940], num sentido trágico, o cêntuplo da eficiência que a vida humana possuía anteriormente‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 7). Por exemplo, recorda que, durante a Primeira Guerra, no colégio interno de Mariana, os alunos se dividiam em aliadófilos e germanófilos (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 7). Anotação muito semelhante faz Marques Rebelo em O trapicheiro, como veremos no próximo capítulo. Tal como o conto anteriormente analisado, em ―O guerreiro‖, não há elementos gráficos (***) demarcando cenas. Ao apresentar a história que mistura ações conscientes e devaneios em um bloco só, é ratificada a problemática do que é e o que não é ficção. Para Evaristo, a experiência vivida durante o surto é mais real do que seu cotidiano de atitude passiva em relação à guerra. A não divisão de cenas, nesse sentido, colabora com a ideia de que, para o guerreiro Evaristo, a guerra medonha não era apenas ficção transmitida pelo rádio.

3.2.2 O centro e as margens

Totônio Pacheco e Rola-Moça foram elogiados graças ao registro histórico das transformações ocorridas em diferentes regiões de Belo Horizonte no início do século XX, espelhadas em personagens também em movimento, e pela construção narrativa modernista. Sobre os romances de João Alphonsus, Domingos Guimaraens comenta:

Os romances de João falam das mudanças do país no período pós-revolução de 1930, com Getúlio Vargas pela primeira vez no poder, a nova constituição promulgada em 1934 e suas consequências na vida cotidiana. Do campo à metrópole, a ebulição da ideia moderna de cidade, as grandes construções que se iniciavam, a indústria automobilística, os imigrantes, as remoções, as assombrações da mansão rural, o planejamento e o alijamento do crescimento urbano. Os muitos personagens de seus dois romances são os olhos de João caminhando por Minas Gerais. (2015, p. 7)

73

Em Rola-Moça, por exemplo, a capital mineira aparece como refúgio de doentes tuberculosos de todo Brasil, que para lá se encaminhavam devido ao clima propício; João Alphonsus ironiza essa característica curativa da cidade por meio do jovem Veraldo, galã do romance, que parodia o refrão de ―Cidade Maravilhosa‖: ―Cidade Tuberculosa, / Cheia de micróbios mil! / Cidade Tuberculosa, / Sanatório do Brasil‖ (ALPHONSUS, 1976b, p. 206). Como assinalado no início deste capítulo, Dutra e Cunha aproximam a prosa de João Alphonsus à tradição latino-americana costumbrista devido à descrição do cotidiano da classe média da então pacata capital mineira (cf. 1956, p. 105-106). Os críticos recuperaram o termo dado às narrativas hispânicas dos séculos XVIII e XIX que registravam o dia a dia comum. Desenvolvidas majoritariamente no México, além de descrever paisagens e costumes da população, essas histórias também faziam crítica social e política: ―O escritor ‗costumbrista‘ testemunha o que ele olha e percebe, descreve, compara, critica, faz uma leitura da cidade e da sociedade que forma parte dela‖ (BACA, 2016, p. 321). Se João Alphonsus pode ser chamado de costumbrista, Marques Rebelo inegavelmente o é, haja vista sua prosa inspirada no romantismo oitocentista de Manuel Antonio de Almeida, como veremos no próximo capítulo. Luis Bueno inclui João no rol dos romancistas que ―procuraram soluções técnicas que permitissem uma espécie de fusão entre os dois lados [rural e urbano] (...) o outro e o mesmo. Tímida experiência porque não chega a constituir elemento estrutural no romance, restringindo-se à maneira com que se trata tematicamente o par campo/cidade. Em Totônio Pacheco o mesmo é a cidade, o outro é o campo‖ (2006, p. 78). Assim, apesar de ser a cidade mais comentada por João Alphonsus, Belo Horizonte não é o único cenário de sua prosa. João vem do interior mineiro e, na década de 1930, é promotor de justiça e viaja pelo estado. Nos contos, o cenário é importante mais para ambientar os personagens ―à deriva‖ do que para registrar seus costumes, ainda que isto seja feito, mas lateralmente. Para tratar dessa relação, dividimos esta seção em dois momentos: no primeiro, trataremos de ―Morte Burocrática‖ (PB) e ―Caracol‖ (EN), ambientados em Belo Horizonte; no segundo, perceberemos o tratamento dado a cidades menores, em ―A pesca da baleia‖ (PB) e ―Foguetes ao longe!‖ (EN), embora, em todos os contos, o narrador sempre expresse ponto de vista de quem pertence à cidade grande.

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74

A cidade mais presente na obra de João Alphonsus é Belo Horizonte, explicitamente nomeada em seis dos dezoito contos, fora outros em que se presume o mesmo cenário. Essas histórias abordam questões-chave da cidade mutante, porém sempre provinciana, sublinhando seu povoamento com pessoas do interior, funcionários públicos e poetas, estabelecidos em casas de sobrado ou em moradias paupérrimas, frequentadores de praças, bares e jornais, onde se envolviam em contendas que os levavam a delegacias, ou onde eram acometidos por doenças que os encaminhavam a consultórios médicos e, em seguida, aos cemitérios. Esse quadro é o pano de fundo de histórias de solidão, em que o espaço ocupado pelos personagens, deambulantes ou estáticos, sempre coincide com sua disposição interior, em geral atordoada pela monotonia da cidade, que oferece pouco em comparação às ambições que carregam. Como nos romances Totônio Pacheco e Rola-Moça, a periferia da cidade e seus habitantes desajustados interessam ao contista, daí o título do capítulo de Ivan Marques, ―Retalhos do arrabalde: a ficção de João Alphonsus‖ (2011). Entretanto, diferente dos romances, a capital mineira, nos contos, colabora com a caracterização dos personagens, todavia não lhes rouba o protagonismo. Em ―Morte burocrática‖ (PB), o que atormenta Carlos Armando não é a doença nem a morte do tio, mas a mentalidade atrasada da monótona Belo Horizonte, ―cidade intolerável‖ para seu espírito de ―boêmio elegante‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 91). Por isso, apesar de o título do conto estar associado ao falecimento de Severiano Castanheira, mais que isso, metaforiza a estagnação da cidade, cuja burocracia é esterilizante. Os personagens principais trabalham numa repartição pública responsável pelos impostos sobre a literatura, ambiente criado para problematizar a vida literária da época e o funcionalismo público. O conto começa in media res (estratégia recorrente na obra de Alphonsus, que cria curiosidade em relação ao problema abordado logo no início), quando Carlos Armando e o sr. Madeira estão na casa do sr. Severiano Castanheira, adoecido grave e subitamente. A tentativa do jovem em conversar com o homem o qual considera esquisito fracassa, porque este não se interessa pelos assuntos levantados por aquele, uma vez que ―pouco importava a cidade ao sr. Madeira...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 91); como o desfecho revela, ele está mais preocupado consigo mesmo e com seu trabalho. A estrutura paralelística empregada pelo narrador ao registrar o diálogo infecundo ratifica a monotonia. Nesse sentido, Carlos Drummond, em um dos três artigos sobre a obra de João Alphonsus, publicados em Passeios na ilha, afirma:

Na própria maneira de compor de João Alphonsus não seria difícil identificar sinais de sua passagem pela banca da repartição pública, a principiar pela metodização 75

calma da narrativa, que se desenvolve lenta, mole, aparentemente desinteressada, sem fugir mesmo à banalidade de incidentes ou de expressão, e contudo segue um fio lógico, vai ganhando corpo e vigor, impondo-se no seu caráter doloroso ou dramático inexorável. (Drummond, 1975, p. 113-114)

Ao menos o narrador simpatiza com Carlos, e concorda com ele sobre o clima do ambiente e o ar triste da noite. Como em ―Godofredo e a virgem‖ (GC), a natureza espelha o problema: ―Embaixo, no jardim, a costumeira fonte de todos os jardins cascateava monotonamente. Sobre eles entrelaçava-se uma trepadeira, deixando aqui e ali pender ramas desfolhadas e ressequidas que lembravam muito vagamente, na penumbra, sobre as duas cabeças, espadas de Dâmocles tortas e enferrujadas...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 91). A anedota moral extraída do Tusculanae disputationes, de Cícero, aponta para o perigo corrido por quem ocupa o poder; de acordo com o relato, Dionísio, o Velho, teria colocado uma espada pendurada por um único fio de rabo de cavalo em cima da cabeça do bajulador Dâmocles, conselheiro da corte, quando este trocara de lugar com o rei por uma noite e sentira na pele os riscos do exercício do poder (cf. CONCEIÇÃO, 2012, s/p.). Ao assemelhar ramos velhos do jardim de Castanheira com a perigosa espada de Dâmocles, o narrador irônico sugere falta de ambição da parte daquele; a iminente morte do chefe não provoca competições dos pretendentes ao cargo máximo, pelo contrário, como os galhos, eles estão ―tortos e enferrujados‖. A situação é explicada pelo flashback: o trabalho diário dos personagens é improdutivo, parece atrapalhar o crescimento da arte literária, soterrada pela situação vergonhosa da cidade, que ―farfalhava ao vento. E as luzes entre o arvoredo eram como pirilampos, ora visíveis, ora ocultas, pela folhagem que bolia‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 91). A visibilidade oscilante, típica dos contos de João Alphonsus, denuncia a tímida Belo Horizonte. A pouca luz e os galhos secos metaforizam tanto a fraqueza física do dono da casa como o espírito mineiro provinciano. Nesse sentido, lembramos a afirmação de Fernando Dias, para quem João e os jovens modernistas formavam um ―imperfeito amálgama dos traços culturais vividos pelo homem mineiro (...) daí, certamente, o caráter ambíguo de uma cidade contraditoriamente secularizada em certos aspectos e tão tradicional (ou tradicionalista) sob outros ângulos‖ (1971, p. 25). Logo no início, a narrativa opõe juventude (até o gerúndio do sobrenome de Carlos, Armando, indicia movimento) e maturidade (daqueles que trazem o título de ―sr.‖ e são estáticos como árvores, tal como denunciam seus sobrenomes, Castanheira e Madeira). Carlos Armando se interessa pelas múltiplas possibilidades da noite, a movimentação das cidades plurais e a ambição dos homens. Já os que estão ao seu redor são apegados às convenções, aparentam tranquilidade e bem-estar – vivem uma vida burocrática –, mas, na verdade, são 76

egoístas e infelizes. Como os protagonistas de ―O mensageiro‖ (EN) e ―O guerreiro‖ (EN), Carlos Armando se sente diferente dos demais, mas não age de maneira estranha como os personagens sociopatas que vimos anteriormente. O flashback apresenta a relação entre os colegas de trabalho Severiano Castanheira e Madeira: o primeiro, chefe da Seção do Imposto sobre a Literatura; o segundo, responsável pela taxa sobre novelas. Tais funções teriam sido necessárias devido aos ―fabulosos proventos que começavam de auferir, em Minas, prosadores e poetas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 91). Os nomes das seções e a notícia são risíveis quando comparados à vida real dos escritores mineiros do início do século passado (Ivan Marques considera esse conto ―de espírito paródico‖ (2011, p. 162) um dos mais satíricos do modernismo brasileiro). O narrador irônico alude, às avessas, à dificuldade de publicação, consequência da escassez de recursos financeiros, de tipografias e de leitores. A atividade intelectual em Belo Horizonte se desenvolvia por meio de jornais, grêmios literários, discursos, conferências e pouquíssimas publicações: ―a produção é escassa, a edição é episódica, e a repercussão sobre o público esgota-se em horizontes estreitos‖ (DIAS, 1971, p. 24). Entretanto, contradizendo a justificativa da existência da repartição, os pedidos numerosos de ―vates que pediam isenção do novo tributo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 91) acabam por adoecer o chefe, antes muito animado. Em casa, ele recebe os afagos da filha Doralice, estereótipo da heroína romântica: ―alegria de sua viuvez‖, ―solícita, apreensiva‖, ―colhia rosas no jardim‖ e, apesar de apaixonada por Fernando Amendoeira, não assumia o relacionamento devido à rivalidade entre as famílias. Entretanto parece que o casal tem final diferente do de Shakespeare, porque o Romeu belorizontino mente para Doralice a fim de conquistar seu objetivo. Fernando, médico e pretendente desautorizado, ouve do pai moribundo que a filha jamais deveria se casar com um Amendoeira, mas para ela o rapaz diz exatamente o contrário. Morto o pai, Fernando Amendoeira e Doralice Castanheira ficam livres para ser felizes. Diante do casal que se beija como que respondendo sarcasticamente à última vontade do morto, ―Carlos Armando, no alpendre, bocejava francamente‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 94), tanto pela rabugice do pai orgulhoso, quanto pela situação amorosa piegas e arranjada. Para Drummond, como a anedota moral pretendida por João Alphonsus ficou ―esboçada, enquanto ressaltam os traços caricaturais, e a linha satírica reponta no instante mesmo da emoção‖ (ANDRADE, 1975, p. 110), o conto, publicado primeiramente na revista Novela mineira (Belo Horizonte, 07/03/1922), revela um contista imaturo, que mais tarde se afirmaria ―mestre no gênero‖. O texto também não foi selecionado por Afonso Henriques 77

Neto (2001) para a mais recente coletânea (além de ―Morte burocrática‖, outros dois não comparecem no livro, ―Godofredo e a virgem‖ (GC) e ―O guerreiro‖ (EN)). Entretanto, na nota introdutória de A pesca da baleia, o próprio João Alphonsus avisa que ―Morte burocrática‖, assinado pelo pseudônimo João Serodius, ganhou o terceiro lugar, menção especial, de um prêmio daquela revista (cf. ALPHONSUS, 1976a, p. 79). Interessante o pseudônimo, que alude a algo serôdio, ou seja, manifestado fora do período, precoce ou tardio; como Carlos Armando, como João Alphonsus, todos fora de seu tempo. Além do casal libertado, o amigo Madeira também lucra com a morte de Castanheira. Naquela conversa desanimada, a única pergunta de Carlos que interessa ao interlocutor é sobre o cargo que assumirá. O homem barbado chega a rir porque a situação é boa para seu bolso. O jovem também ri, maliciosamente, e investe na questão, perguntando a Madeira por que este não conseguia argumentar diante do chefe. Se o narrador afirma que o homem ―foi sentar-se a um canto, ruminando a inutilidade dos argumentos que armazenara para a discussão‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 93) que teria com o chefe, Carlos faz a pergunta- chacota: ―O senhor me desculpe, mas... o senhor... uma espécie de prisão de ventre de argumentos, não é?‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 94). A reação de Madeira, que ri, alegra o jovem. Além dele, o narrador também concorda com Carlos, consentindo que ―a mola real da vida‖ é o dinheiro: ―sem ele nada se tem‖, é ―parte integrante do nosso ser...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 95). Nada poéticos são os interesses daqueles que acompanham as últimas horas de vida de Castanheira. O amigo do trabalho quer seu cargo; a filha sofre, mas está mais interessada na aprovação do namoro; o sobrinho vê a situação como oportuna para dizer verdades e fugir do bocejo diário. A morte de Severiano é burocrática tal como foi sua vida, e, embora triste e prosaica, é necessária para que outros sejam felizes; entretanto, não significa mudanças: o tradicionalismo (as famílias com nome de árvore) não cede lugar à modernidade (Carlos Armando). Daí a última palavra do conto ser ―irremediável‖, um dos adjetivos mais empregados por João para caracterizar os problemas da vida e da morte. ―Morte burocrática‖ é analisado por Marco Antonio Rodrigues na tese Contos da vida burocrática (2015), em que seleciona textos brasileiros que, no decorrer da história, traçam perfis de funcionários burocratas. O serviço público, nas décadas de 1920 e 1930, foi diversas vezes alvo de deboche, nostalgia, melancolia, lirismo e sátira na literatura brasileira, inclusive daqueles escritores que eram funcionários públicos, como Drummond e Alphonsus. Marco Antonio analisa também ―Uma história de Judas‖ (PB) e ―Caracol‖ (EN), contos abordados, pelo mesmo motivo, por Carlos Drummond no artigo ―O vinco burocrático‖: 78

A visão do mundo que João Alphonsus iria desenvolver em seus contos pessimistas, alguns atrozes, todos irônicos, mas traindo uma sensibilidade que se apieda da miséria consubstancial com o homem, é uma visão de antigo funcionário, sem ilusões quanto à modéstia, à generosidade, à dedicação e à veracidade de seus semelhantes. (...) A visão pessimista resolve-se em piedade (...) e também indiferença, irmã do ceticismo (...). (ANDRADE, 1975, p. 112)

Para os críticos, João escreve esses contos devido a sua experiência profissional, ―Excluindo qualquer pretensão de determinar a obra pelo gênero de vida do autor, mas ponderando a relativa significação deste na mecânica literária e na personalidade artística (...)‖ (Drummond, 1975, p.109). De 1918 a 1929, Alphonsus trabalhou como praticante da Diretoria da Fiscalização da Secretaria de Finanças; a partir de 1934, foi auxiliar jurídico da Procuradoria Geral do Estado; a partir de 1931, promotor de Justiça da Primeira Vara de Belo Horizonte (cf. ALPHONSUS, 1976a, p. 9). Também foi revisor, redator-chefe e, interinamente, diretor do jornal, onde trabalhou com Drummond. Quando o amigo poeta afirma que João Alphonsus ―manifestava já inclinação pronunciada pelos temas e circunstâncias da vida do servidor público, tratando-os, primeiro, com simples ironia, e depois, aguçado o poder de observação, com simpatia e pena também‖ (ANDRADE, 1975, p. 110), certamente está se referindo, primeiro, ao tom irônico de ―Morte burocrática‖ (PB), e, segundo, a ―Caracol‖ (EN), narrativa mais densa e simbólica, ―um conto de vida burocrática‖ (1975, p. 110). Neste último, Péricles relata como desilusões profissionais atingiram sua vida pessoal desde o dia da posse do chefe até a data em que pede a este que seja reintegrado ao serviço noturno, do qual havia sido afastado por má conduta. O protagonista desanima do trabalho porque a chegada do novo patrão põe fim às suas expectativas de promoção. Mesmo assim, tenta se aproximar dele, indo a sua casa, ganhando apenas um presente que o perturba, uma muda de planta trepadeira cuja flor se assemelha a um caracol. Assim, o título do conto simboliza a relação hierárquica e natural de Péricles e Macrínio e seus desdobramentos na vida cotidiana. Único conto de Eis a noite! narrado em primeira pessoa, ―Caracol‖ apresenta descrições subjetivas que Péricles faz de si e do chefe, mostrando insegurança: o uso de verbos e tempos que denotam dúvida – ―minha saúde parecia fazer inveja ao novo chefe‖, ―era o que eu percebia‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 221) – e percepção vacilante – ―Eu não dizia nada. Para quê. Talvez de todos fosse o que teria, ou teria tido, ou haveria de ter tido mais direito a chefiar a Seção‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 221). A explicação de Othon M. Garcia para tal tipologia coincide com nossa análise, uma vez que ela refletiria

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predominantemente o estado de espírito do observador, suas idiossincrasias, suas preferências, que fazem com que veja apenas o que quer ou pensa ver e não o que está para ser visto. O retrato que faça de uma paisagem não traduzirá a realidade do mundo objetivo, fenomênico, mas o seu próprio estado psíquico, onde se gravaram as impressões esparsas e tumultuadas captadas pelos sentidos, quase alheios ao crivo da razão e da lógica. (...) O resultado dessas descrições marcadamente subjetivas ou impressionistas é, com frequência, uma imagem vaga, diluída, imprecisa, em penumbra, nebulosa (...), mas rica de conotações. (1973, p. 218)

Por outro lado, o protagonista afirma ter segurança em relação aos protocolos do trabalho, graças aos ―longos anos longas horas diárias de observação do homo burocraticus‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 221). A oscilação entre dúvida e certeza e o uso de termos em latim para ostentar erudição causam certo humor, diminuindo a credibilidade do leitor em relação a Péricles. Também a sonoridade de seu nome e a do chefe colaboram com esse tom, confirmando o apontamento de Ivan Marques sobre a seleção onomástica do contista: ―Tudo parece reforçar a atmosfera grotesca e absurda, o estranho universo de João Alphonsus, quase sempre delineado sobre cenários noturnos‖ (2011, p. 163). Segundo Péricles, Macrínio, transferido para Belo Horizonte devido à saúde debilitada, tinha inveja de seu físico sadio, pois quando Péricles tossia, o outro o olhava:

Porém o que me deu prazer não foi a constatação daquela inveja; mesmo porque o fenômeno da tosse só podia desmerecer-me aos olhos dele a compensar aquele seu sentimento de inferioridade. Aprazia-me, isto sim, despertar a atenção do novo chefe de um modo particular, como quem mostra adredemente um remendo no fundo das calças, compreenderam? (...) O remendo nas calças é quase uma imagem literária: em todas as camadas sociais muita gente sabe mostrar oportunamente os seus remendos, isto é, a sua fraqueza, para atrair o interesse dos mais altos. (ALPHONSUS, 1976a, p. 221-222)

Em época de tuberculose à mancheia, o subordinado amedronta o chefe expondo o risco que teria de enfrentar na cidade. Naquela ocasião, Péricles consegue o que quer: passa o dia ao lado de Macrínio tossindo e explicando as siglas dos procedimentos burocráticos da seção. Entretanto, o superior nada sofre no decorrer do conto, ao contrário do narrador. O entusiasmo com que o funcionário explica a codificação – ―combinações interessantes de letras que, depois de sabidas e compreendidas, emprestam aos serviços o máximo de eficiência‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 222) – não combina com o narrador cético dos contos de João Alphonsus. O parágrafo subsequente desvenda o mistério: Péricles havia inventado aquelas dezenas de siglas e tinha de garantir a ―posição de segunda pessoa da SCCD (Seção Central de Controle e Distribuição), e de chefe do expediente extraordinário noturno‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 223) porque precisava estabilizar as contas de casa, garantir o sustento da mulher e de seis filhos. 80

Todavia, desiludido, demonstra confusão nos pensamentos e nas ações atabalhoadas. Em casa, de início, não se lamenta com a mulher, a consola e convida-a para visitar o patrão, cuja casa era ―do primeiro estilo belorizontino, de platibanda, quatro janelas no alinhamento da rua, alpendre ao lado com paisagens nas paredes, muitos cômodos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 225). Mesmo zangada – ele se esquecera do aniversário de casamento, cujo jantar ela preparara –, ela cede ao pedido do marido. A cena parece inverossímil: de um lado, a comemoração familiar é substituída pela ida à casa do patrão; de outro, Péricles soa falso, porque contradiz o discurso inicial, revelando seu ―mal secreto‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 223), chamando o chefe de ―homúnculo‖, culpando-o por ter batido no filho caçula minutos antes porque o menino sujava o chão encerado. Péricles se vitimiza para persuadir a mulher ou está falando a verdade? Desconfiamos dele porque, logo na primeira cena, mostra-se falso com o patrão. Entretanto, no decorrer do conto, outro perfil é construído. Se fala de maneira teatral com a mulher, também expressa-lhe amor: ―Rosalina me abraçou mais, com uma ternura maternal, me protegendo contra os males presentes e futuros, como se eu fosse uma criança, pois eu me fazia pequenino e rasteiro diante das forças contrárias do destino, e permaneceria assim naquele aconchego a tarde inteira, a vida inteira‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 224). A autodescrição de Péricles o aproxima, metaforicamente, à planta que recebe do patrão. Embora diga a Macrínio que gosta de jardinagem, o narrador confessa que nunca soube mexer com terra, apenas queimá-la, como era usual em sua infância:

Nasci e fui criado numa cidade onde ninguém plantava nada. Os roceiros vinham vender aos citadinos pequenos molhos de munhecas de samambaias colhidas no mato, para comer. Igualmente se comia guisado de mamão nativo, em vez do xuxu que sempre requer algum trato. Durante a seca expandia-se o gosto pelas queimadas ornamentais nos morros em redor da cidade, propositalmente à noite, para ficar mais bonito! (...) Uma febre de destruição da vegetação sem água, estorricada e infeliz, febre que ganhava até a nós meninos. Colaborávamos na diversão geral indo atear fogo nos matos mais próximos, à tardinha, para depois gozarmos neroneamente o espetáculo (...) os pastos eram nossas vítimas, vítimas desse mal nacional até hoje não extirpado (ver as queimadas de agosto e setembro em volta de Belo Horizonte, nas montanhas sem roças nem culturas, com labaredas (...)), mal remanescente botocudo de desamor nômade à terra, de amor à pirotecnia primitiva do fogo desaçaimado. (ALPHONSUS, 1976a, p. 226-7)

De todas as maneiras, o narrador tenta construir um perfil negativo para o chefe, que seria como o presente ofertado, ―Plantinha simpática, assim insignificante e débil‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 226). Opõe Macrínio, ―cara de malaio, uma brandura chinesa‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 221), de sangue indígena e nômade, tipo que ―indicava complicações sub-raciais botocudas, sujeito cujas convicções de salvação do país pela 81

agricultura o conduziam a exibir-nos samambaias, tinhorões, orquídeas, grã-finezas de um amor vegetal invertido...‖ a Pietro, jardineiro descendente de italianos, ―homens da gleba, com raízes no solo, amando-o, condimentando-o, explorando-o com carinho‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 227). Depois de enraizar a muda de caracol no parapeito da janela de seu quarto, o plano de Macrínio não progride – tal como sugere o nome da planta, a vida do narrador se enreda sobre si mesma. E o crescimento vigoroso do jardim não indica seu sucesso, mas o do rival. No início, a planta lhe traz alegria e otimismo, como na primeira vez que alguns brotos entraram pela janela: ―Ri também, divertido com aquele intrometimento, aquele propósito de se enxerir na nossa vida íntima‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 228). Todavia, se as flores reacendem a atração romântica e física do casal, inspirando-lhes lirismo amoroso, também resultam na gravidez pouco desejada do sétimo filho, e o sentimento é complexamente descrito: ―A palpitação conjugada, inseparável, de astros e seres, grandes e pequenas vidas, tudo abençoado por Deus numa ascensão universal!... E não – como sinto agora e quase sempre – todo o universo se precipitando numa velocidade quase infinita para o fundo impossível do infinito, se precipitando em conjunto assim à toa para o impossível...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 230). Atordoado, Péricles resolve, inesperadamente, colher as primeiras flores e levá-las ao túmulo de um filho falecido criança, lamentando-se por todos ―os pequeninos das outras sepulturas, dos cemitérios do mundo inteiro, felizes e esquecidos, anjos que fugiram ao nosso esforço insensato de os forçar a viver uma vida terrena que não vale nada de nada...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 232). No mesmo dia, Macrínio lhe avisa que não mais será chefe do serviço noturno, inconformado, Péricles começa a faltar o trabalho e comparecer no bar. Rosalina, muito trabalhadora e adulta, pede-lhe que volte ao trabalho noturno, mesmo não sendo chefe: ―ideia de mulher‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 234), segundo ele. Escondido dela, ele passa a decepar, todas as noites, os brotos que entram pela janela, sentindo-se satisfeito de vê-los ―supliciados‖, ―guilhotinados‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 235) – espécie de vingança simbólica àquele que lhe havia ofertado a planta e com quem, no trabalho, discute diante da acusação de improdutivo. Não demora muito, a planta morre, e Péricles decide pedir ao patrão para retornar ao trabalho noturno; se o narrador não acredita que haja solução, para o patrão ―Não há nada sem remédio‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 238): poderia voltar ao serviço, mas antes teria de pedir desculpas a ele publicamente. A cena confirma a vaidade dos burocratas belorizontinos, desencadeadora de tédio e desânimo. 82

No conto derradeiro do último livro, João Alphonsus também aponta para algo remediável: a justiça dos homens honestos, a disposição de recomeçar. Não que isso resolva a vida do narrador e de sua família, abalados pela estagnação financeira, todavia se não há como progredir, ao menos que a sobrevivência seja garantida. Há apenas uma restrição, anunciada por Rosalina na cena final: que Péricles não se humilhe, não vire caracol. Diante do desejo do marido em ir novamente à casa de Macrínio para lhe pedir outra muda da planta, ela resiste: ―Isto não, Péricles. Isto nunca!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 239). Péricles, apresentado como falso, vítima, sofredor, desiludido, angustiado, preconceituoso, não aprende com os erros. Mostra-se míope desde o início da narrativa, podendo ser chamado de ―presbitista‖, palavra com que, na época, os modernistas chamavam os escritores passadistas, que não enxergavam bem a realidade (cf. ALPHONSUS, 1927, p. 4).

*

Além de registrar as transformações ocorridas na capital mineira, João ambienta suas histórias também em cidades periféricas, como Ouro Preto, Bom Despacho, Ponta d‘Areia e outras anônimas, evidenciando-lhes a monotonia catastrófica (tema analisado em ―A pesca da baleia‖ (PB) e ―Foguetes ao longe!‖ (EN)) ou o lirismo:

Em toda parte do mundo há dessas cidadezinhas, cuja vida diurna não tem a menor explicação, inútil e oca; mas ricas de sugestões noturnas, amores e recalques, solteironas lancinantes à margem de procriações abundantíssimas, indigências de almas e de corpos, misérias ocultas, abnegações obstinadas, aspirações abortadas, a sombra do grande mundo agitado e desconhecido atuando sobre as casas mudas e encolhidas, desespero de apreender na febre dos sonhos que lá longe as vidas se realizam, o bolor do passado que foi sempre melhor, um mistério eterno em cada esquina, velhas noites... (―O imemorial apelo‖, ALPHONSUS, 1976a, p. 111)

No trecho acima, o foco narrativo parte de personagem urbano interessado por poesia, dados similares à vida de João Alphonsus. Todos os contos que se passam em cidades laterais trazem o ponto de vista do viajante a trabalho, realidade do contista durante alguns anos, conforme relata em carta a Manuel Bandeira, datada de 07/11/1941:

Saiba V. que, naquele tempo e até recentemente, mais da metade de cada mês eu passava fora de Belo Horizonte, por esse interior bravo. Pois só recentemente descobri que, além de não auferir compensações materiais à altura do sacrifício, estava perdendo a saúde, sobre a qual, aliás, eu apostava cem por cento, em arrancadas às vezes de dois dias seguidos de viagens de trem e de automóvel, para Paracatu, para o Sul de Minas. Quando voltava, sempre levava uns dois dias a refazer-me, a retornar ao ambiente de trabalho no escritório... Não me arrependi, 83

porque ainda era um meio de exercer uns restos de boemia, de despreocupação, me sentindo um tanto ou quanto vagabundo no espaço... (ALPHONSUS, 1955b, p. 21)

O ponto de vista ―estrangeiro‖ colabora, em geral, conferindo traços românticos às descrições das cidades pequenas, onde se procuram compensações ao barulho e ao cansaço das cidades centrais. Entretanto, uma vez inseridos no silêncio e na solidão, os personagens revolvem problemas interiores, que os aproximam da morte. Se em Galinha cega, o bocejo aparece algumas vezes para expressar insatisfação em relação ao descompasso entre as lentas mudanças contextuais e as rápidas transformações interiores dos personagens, em A pesca da baleia, a sensação é intensificada a ponto de assumir, ao lado da morte, papel central nos enredos. Carlos Armando, de ―Morte burocrática‖ (PB), se entedia com a vida sem atrativos de Belo Horizonte, e a monotonia de Ponta d‘Areia, decadente cidade do litoral baiano, leva o protagonista de ―A pesca da baleia‖ (PB) ao desespero e à morte. Assim, João Alphonsus expressava seu descontentamento com a sociedade que desprezava a literatura, que era lenta para transformações sociais, que cultivava mentalidade política antiquada e que negligenciava as angústias existenciais. Os enredos dos contos do segundo livro não oferecem mudanças substanciais na vida dos personagens, e a esperança é pouca: em ―Morte burocrática‖, como observamos, a mudança (Madeira substitui Castanheira na repartição) não constituiu uma evolução, mas apenas uma variação dentro da estrutura velha; já em ―A pesca da baleia‖ a tentativa de transformação do jovem Josefino é frustrada, enfraquecendo-o e atraindo-o para uma morte estúpida. Na ―Nota cronológica‖ que introduz A pesca da baleia, Alphonsus avisa que o conto havia sido publicado no número 2 de A Revista, ou seja, dezesseis anos antes de aparecer em livro, com uma ―nota-piada‖: ―Para melhor compreensão de alguns trechos consultar os filmes com lobos do mar e escunas de pesca. N. do autor.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 79). Outra também aparecia ao final, explicando que o conto, trecho de romance manqué, havia sido escrito durante três meses de 1922, enquanto João exercia o cargo de vigia fiscal do porto de Ponta d‘Areia. Também comentava as circunstâncias da escrita: o jovem contista, de região central do Brasil, escreve sobre o litoral não só porque está lá de passagem, mas ―em virtude de certo estado de espírito consequente a merecidas reprovações em preparatórios‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 79). A primeira nota é irônica, porque o escritor, que recomenda filmes aos leitores para que entendam melhor a narrativa sobre uma pesca frustrada, também precisaria assistir às fitas, visto que nada entendia do assunto. No conto, quando descreve a maré, a praia e o 84

trabalho dos pescadores, confere veracidade às informações atribuindo-as ao ―preto verboso, João da Cruz, maquinista da Bahia a Minas, ex-pescador de baleias, que possuía e exibia um formidável arpão com que teria arpoado várias feras do mar‖ (GUIMARAENS, 2015, p. 5-6). Na segunda nota, João registra problemas vividos na época e o título do romance nunca publicado Náusea infinita. Domingos Guimaraens confirma que

A necessidade de ajudar a família fez João interromper os estudos. Pleiteou o cargo de vigia-fiscal em Ponta d‘Areia (...) três longos meses que serviram para marcá-lo pelo tédio de um povoado decadente, na ponta inicial da estrada de ferro Bahia- Minas, entre os silvos monótonos de sereias e moinhos de vento. Já na primeira viagem ouviu atentamente as histórias do maquinista do trem sobre a pesca das baleias, as arpoadas, a coragem e a covardia dos pescadores. Ali, mesmo longe dos estudos, não quis ficar longe da literatura e começou os esboços para seu primeiro romance, Náusea infinita. (...) Esse romance não concluído, que João definirá como manqué, ou mal-sucedido ou ainda fracassado, diz muito de sua personalidade, sua timidez e modéstia. O fracasso, presente em toda sua obra, não é o de sua obra em si, mas o fracasso como tema. (GUIMARAENS, 2015, p. 5-6)

O trecho do inacabado Náusea infinita aproveita o cenário marítimo e o enjoo como metáfora, hiperbolizada pelo adjetivo: não é somente o balanço do barco que provoca a sensação medonha, mas a vida individual e a sociedade humana também geram mal-estar. Porém qual seria a necessidade de avisar ao leitor que o conto teria sido uma narrativa longa? Talvez, encurtando a história, o autor sugira que a náusea infinita seria enjoativa demais se estendida em um romance. Tal como a extensão da narrativa, a vida de Josefino – desiludido, fracassado, impressionado pela inércia e tristeza do lugar – também é encurtada. A aliteração e a sinestesia da frase ―As caras acres dos passageiros se refaziam na certeza do fim do suplício‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 81) espelham a desconfortável viagem de barco que traz o jovem à casa do tio; o mal-estar da travessia anuncia o que será a estada do protagonista em Ponta d´Areia. Outro índice dos infortúnios que lhe sobrevirão é o melancólico aviso sonoro que alerta a entrada do barco no porto. Tal percepção é garantida pelo sentimento pessimista que alimenta Josefino, infeliz devido a problemas implícitos, provavelmente advindas de uma relação afetiva mal sucedida. Maria Araponga simboliza a afetividade conturbada de Josefino: é uma das primeiras pessoas da cidade que ele conhece e é a última com quem fala. Não é à toa que a mulher carrega nome de pássaro agourento: além de figura misteriosa, o rapaz a acha cínica, vulgar, infiel e sem alma. O julgamento duro de alguém que nem conhece soa hiperbólico: Josefino certamente transfere a Maria a raiva que sente por outra mulher. Araponga é uma prostituta pobre e também curandeira, que ―passava por ele cheirando a ervas de descarrego e sempre rindo a pequenina cárie‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 83). Como outras personagens prostitutas 85

do autor, a característica mais sublinhada da mulher não é a beleza (apesar de ela ser morena bonita), mas a imagem decadente. Tal como Maria Araponga, o cenário praiano já foi bonito, cheio de coqueiros, ―já foi cidade‖, agora pelo porto despacham-se riquezas não mais distribuídas por ali. Além de não se pescarem mais baleias, o mar invade o litoral, destruindo construções: ―Lá estão dentro do mar os restos de uma igreja. Acolá, aquilo alvo, são os ossos de baleias pescadas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 81). O jovem de vinte e dois anos (quase a idade do jovem Alphonsus quando escreve o conto, em 1922) é recebido afetuosamente pelo parente, ―celibatário obeso, negociante de madeiras‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 81). Diferente da cidade quieta, triste e vazia, o tio é expansivo, alegre e gordo, o que agrava o desconforto de Josefino. Lembramos também que a escolha da ocupação do tio não é aleatória, pois, como vimos, a madeira identifica personagens ultrapassados nos contos de João. Nesse contexto, Josefino, primeiro, se desespera, para, logo depois, ―se identificar com a preguiça ambiente‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 82). Entretanto, numa certa madrugada, insone, dentro do rotineiro silêncio, Josefino, de súbito, cria esperança, porque ―lhe nasce no íntimo a absurda certeza de que alguma coisa misteriosa vai acontecer irremediavelmente. (...) Há um minuto de expectativa terrivelmente condensada. Mas nada acontece‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 83). Como todos os protagonistas de João, o rapaz depara-se com a solidão, contudo não a aguenta em paz; é um romântico (haja vista a descrição da natureza, a percepção do tempo, a melancolia da vida) desajustado (rapidamente percebe que não haveria nada de bom, não tem nenhuma revelação), porque o tempo não admite mais romantismos. Entretanto, um outro pensamento o retira, momentaneamente, do marasmo: a pesca de uma baleia que está próxima ao litoral. Decide, então, inesperadamente, pedir ajuda financeira do tio e partir para a aventura. Para evitar despesas descomunais, Josefino e seu patrocinador acordam com os pescadores que o auxiliarão que o pagamento só será feito caso tragam a baleia. Vale a pena observar que ele opta, naquela cidade em declínio, por negócio já extinto e muito perigoso, ainda mais para quem nunca havia pescado na vida: Josefino é atraído pela ruína. Arranja uma baleeira e homens para ajudá-lo e acredita firmemente no sucesso. A tomada de cena do momento em que o barco some no horizonte a caminho da pesca desejada assemelha-se com o desejo do personagem, de isolamento: ―O barco foi se tornando um ponto inquieto no horizonte. A impressão de um crescente isolamento... Ponto inquieto, 86

vela branca; pequeno, pequeníssimo, minúsculo, quase invisível. Desapareceu.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 85). A imagem também anuncia o desfecho final. Apesar de fisgar a baleia, a pesca não é realizada. Isso porque, em meio à dificuldade de suspender o ―monstro‖ com o barco vacilante, Josefino ordena que seja cortado o fio que prende a baleia à embarcação. A cena é deprimente, porque ele se acovarda diante de seus subordinados, para os quais é uma ―besteira‖ soltar a baleia, e só o fazem quando Josefino afirma que eles receberão pela pesca, mesmo que ela não ocorra. Ao voltar, fracassado e infeliz, a vida do rapaz começa a desaparecer; a frase da ida – ―Josefino ausente no fundo encharcado...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 87) se repete na viagem de volta e se concretiza diante do tio, que o humilha, e da população: ―Lá fora a alma do lugarejo estagnado escancarava-se numa gargalhada homérica‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 88). Movido, então, pelo insucesso da pesca da baleia, desilusão que se soma à anterior (amorosa), Josefino se pergunta

Que lhe valia a vida? Na verdade, que lhe valia a vida? Não possuía forças para ironizar as feridas que a vida lhe deixara. Vinte e dois anos, e o impulso da mocidade como que se convertera em recuo, em vontade de aniquilamento. Havia naquilo naturalmente uma boca de mulher infiel e ardente. Porém ele odiava recordar estas coisas, como se lhes tirasse assim todas a pujança de uma realidade que doía na alma e no corpo... (ALPHONSUS, 1976a, p. 85)

Irritado pela ―humanidade odiosa‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 88), Josefino anda na rua de madrugada e encontra Maria Araponga; depois de curto diálogo áspero, num acesso de violência, o rapaz se atira sobre ela, e eles rolam até o trilho do trem. Ela consegue se desvencilhar dele e ainda tenta salvá-lo, entretanto o trem o atropela: ―Na tempestade desabada, o trem parava esmigalhadoramente...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 89) é a última frase do conto. Semelhante à morte do protagonista de ―Oxicianureto de Mercúrio‖ (GC), Josefino não perde a vida na pesca da baleia, cujo risco de morte era muito maior, mas ao se entregar a uma questão irrelevante com uma mulher quase desconhecida. Na verdade, Maria Araponga simboliza a mulher que o teria traído, o tio e o povo do litoral. A imagem final de Josefino é literalmente reduzida: João Alphonsus, como já procedera em Galinha cega, insere neologismos, com gosto especial para os adverbiais, nas cenas mais contundentes, como a derradeira de ―A pesca da baleia‖, cuja última palavra é ―esmigalhadoramente‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 90), comentada por Pedro Nava, admirador do tratamento que o conterrâneo conferia à lingua brasileira:

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É um idioma mineiro e erudito, regionalista e nacional, cheio de achados neologísticos e de palavras inventadas de desenho suntuoso e grande força onomatopaica. Exemplo disto – o esmigalhadoramente que surge na Pesca da Baleia e de que eu logo me apropriei porque há trouvailles verbais dele [João Alphonsus], como de Drummond, Mário de Andrade, Oswaldo e Guimarães Rosa, que é como se já nascessem dicionarizados e todos nós podemos, assim, bicá-los no momento de nossa fome e de acordo com nossas necessidades. Entram na língua assim que criadas e passam a ser de todos. (2003, p. 243)

No mesmo conto, Josefino ouve os sapos falarem ―nervermorescamente‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 83), em alusão à frase célebre e fúnebre do poema ―O corvo‖, de Edgar Allan Poe; se nos versos americanos, a repetição de ―Never more‖ amaldiçoa o destino do jovem poeta solitário, na prosa brasileira, caracteriza a atmosfera monótona de Ponta d‘Areia. A pesca da baleia não se conclui. O episódio representa a última tentativa fracassada de Josefino em se sentir parte do mundo e, assim, ser feliz. O animal, mesmo ferido, volta para seu habitat; quem morre é o homem, inexperiente pescador, sem abrigo, sem vontade de viver, sem amor, sem perspectiva. Muito menor que uma baleia, tal como o barco, ele é ―pequeno, pequeníssimo, minúsculo, quase invisível. Desapareceu.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 85). Se morresse no mar, Josefino seria herói. Porém João Alphonsus não lhe concede tal desfecho. O escritor intitula o conto e seu segundo livro com um fracasso, demonstrando uma visão de mundo mais pessimista do que a de Galinha cega: se o título do primeiro livro metaforizou a impotência humana diante dos males irremediáveis da vida (como vimos em ―Oxicianureto de Mercúrio‖), A pesca da baleia confere ao ser humano uma parte de responsabilidade pelo fracasso, acusando o homem pelas desgraças próprias e alheias. Nesse sentido, é importante o artigo definido encabeçando o título do segundo livro: aquela pesca foi responsável por ratificar o desconforto de Josefino, como que confirmando as suas suspeitas sobre si. Curioso é o apagamento do artigo na edição de 1965 e a confusão na de 1976, que o mantém na capa, mas o retira no corpo do livro. Certificamo-nos da presença do artigo na primeira publicação, em A Revista, como também no livro de 1941. Ainda vale lembrar algumas alterações que o texto sofreu entre a primeira aparição, na década de 1920, até sua publicação em livro. João Alphonsus enxugou repetições, retirou a menção à produção de café (o trem passava pela cidade carregado de ―cafeeiros e florestas distantes‖ (ALPHONSUS, 2014, p. 29)), apagou a referência ao nome do livro (Josefino queria ―curar-se do seu nojo da vida, de sua NÁUSEA INFINITA...‖ (ALPHONSUS, 2014, p. 30)). Já os acréscimos foram muitos: multiplicam-se comentários negativos a respeito de Maria Araponga, ―infiel e ardente‖ 88

(ALPHONSUS, 1976a, p. 85), aproximando-a ao pássaro homônimo, quando se refere a sua voz ―quase metálica‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 84). Na cena final, não havia explicação sobre as circunstâncias da morte de Josefino:

Ilustração n.º 1 – Fotografia da primeira versão de ―A pesca da baleia‖ (1925)

Depois do encontro de Josefino com Araponga, o pontilhado atravessa o papel cortando a descrição da cena, disposição gráfica sugestiva do trilho do trem (cf. ALPHONSUS, 2014, p. 33). Não fica claro se Araponga morre, fato esclarecido com o acréscimo feito na edição de 1941. Outras inserções ainda valem registro: alguns parágrafos foram criados para esmiuçar a situação melancólica de Josefino, suas dúvidas e medos, e para descrever com mais precisão as manobras do baleeiro. Ao oferecer texto mais fluido, menos segmentado e elíptico, João Alphonsus suaviza algumas marcas modernistas do conto; ele mesmo confessa que cometeu excessos no início da carreira no esforço de imitar o linguajar dos contos de Mário de Andrade (cf. DIAS, 1965, p. 84). Apostamos na relação de alguns contos, como ―A pesca da baleia‖ (PB), ―O mensageiro‖ (EN) e ―O guerreiro‖ (EN), ao que se chamou, na poesia, de penumbrismo. De acordo com Rodrigo Octavio Filho, os poemas penumbristas mesclaram estrutura e desfecho modernistas com divagações românticas e simbolistas (cf. 1970, p. 23). Mais recentemente, Antonio Carlos Secchin, em entrevista sobre os 25 poemas da triste alegria – primeiro livro de Drummond, que conta com doze poemas publicados em jornais de Minas Gerais entre 1922 e 1926 –, chamou de ―modernismo moderado‖ certa produção literária que, apesar do uso do verso livre, manteve os tons vagos e temas melancólicos:

Conhecemos mais o modernismo da linha de frente da vanguarda, de Oswald e Mário, o modernismo iconoclasta, que apaga a tradição. Mas numa linha paralela havia uma espécie de neossimbolismo, que buscava uma poesia que meditasse e se desenvolvesse a partir da poesia do seculo XIX, e não contra ela. (...) O maior exemplo disso é Cecília Meireles, mas há outros poetas que não tiveram o reconhecimento dela, como Ronald de Carvalho, Felipe de Oliveira, Ribeiro Couto, Álvaro Moreyra. (...). O Drummond pré-histórico entra nessa vertente do penumbrismo, como ele mesmo reconhece. (apud VELASCO, 2012, p. 6) 89

O líder do modernismo mineiro afirma, em artigo, que João Alphonsus teria passado naturalmente da poesia pós-simbolista para o nativismo neorrealista dos primeiros tempos modernistas (cf. ANDRADE, apud MARQUES, 2011, p. 159); os contos confirmam que se seus versos trilharam esse caminho, o mesmo não se pode dizer de sua prosa curta. Concordamos com Ivan Marques, quando afirma que, nos contos urbanos de João, o simbolismo é uma ―espécie de resíduo (ou fatalidade incrustada no sangue)‖ (2011, p. 159). Como em ―A pesca da baleia‖ (PB), a cidade para a qual se mudam os protagonistas de ―Foguetes ao longe‖ (EN) é responsabilizada pela tragédia relatada, cujo desfecho também não conta com a anedota final vista nos textos de Galinha cega. Quem narra a triste história do casal é Maria, mulher de Eduardo, que culpa a ―cidadezinha‖ (o diminutivo indica tamanho, pouco desenvolvimento, mas também desgosto) pelo afloramento do lado negativo deles, antes muito felizes e apaixonados, e pelo suicídio do marido. Apesar de a narrativa ser majoritariamente narrada em primeira pessoa, no primeiro parágrafo, há a presença de um narrador de terceira pessoa, que passa a palavra à viúva de Eduardo e não retorna mais ao conto. O que detona a narração de Maria, garantindo, assim, a supremacia da sua visão, são fogos de artifício furtivos, que fazem com que ela recorde sua infeliz trajetória, do namoro apaixonado ao casamento tedioso. Isso porque,

Da ponte ou da janela da nossa casa, na nossa cidadezinha sobre a montanha, víamos às vezes foguetes tão longe, num arraial ou numa fazenda, em qualquer núcleo ignorado de gente que só se nos revelava por aquele clarão repentino no céu, o qual não era nem apelo de solidariedade, nem sinal de irmãos distantes, nem nada. Seriam alguns espíritos vazios procurando se encher. (ALPHONSUS, 1976a, p. 149- 150)

Os foguetes que veem no céu longe da casa dão título à história porque metaforizam a alegria distante; se no alto o casal vislumbra reflexos de vidas felizes, no profundo precipício, aonde Eduardo se joga, a mulher se torna ―a viúva mais triste que já tenha existido...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 149). Antes da mudança do casal para o interior, quando moravam em cidade mais desenvolvida, a vida era repleta de ―momentos de infinita ternura‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 149). Eduardo transferira-se a trabalho, e Maria prometera acompanhá-lo aonde fosse. A viagem até a pequena casa, localizada no fim de uma rua isolada, tinha sido

terrível, a cavalo, por estradas hediondas, com chuva e lama... Para atingir aquele punhado de casas desmanteladas, em cima da montanha! (...) A cidade já tinha mais de meio século e ninguém tivera a ideia de fazer o aproveitamento da água (...). Aliás, justiça seja feita, havia os restos coloniais de uma canalização de pedra seguindo pelos quintais, antiquíssima e inutilizada: (...) Decadência! (...) A região 90

não produzia nada e tudo vinha de fora, lá de baixo, tudo... (ALPHONSUS, 1976a, p. 151)

Depois do primeiro ano no povoado, os carinhos de Eduardo não mais preenchiam o cotidiano caseiro de Maria e, fora de casa, tudo era uma ―monotonia neurastenizante‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 152). Para dinamizar a vida, ela manda buscar um piano, que alivia por um tempo a tensão, mas, em seguida, sua irritação cresce vertiginosamente: a maior atividade das ―famílias de habitantes que não pareciam pessoas humanas‖ era ter filhos, ―meninos barrigudos e amarelos‖, o lugar era sem recursos e não civilizado, uma ―prisão‖, um ―pesadelo de cárcere perto das nuvens‖, ―não prestava para nada‖ (cf. ALPHONSUS, 1976a, p. 152-156). Apesar de Maria afirmar no plural – ―nossa vidinha sem horizontes, pequenina em cima da montanha‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 158) –, o tédio que ela experimenta é muito maior do que o de Eduardo. A ―sucessão tentadora de montanhas, vontade de partir...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 153) fazia com que ela chorasse com ―vontade de morrer‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 155). Isso porque, culturalmente, a mulher ainda estava restrita aos limites domésticos, enquanto o homem (Carlos Armando, Josefino e outros personagens masculinos de João Alphonsus) se ocupava com tarefas externas. Para a narradora enfastiada (e irônica), a função do marido, gerente de banco numa cidade quase sem clientes, era ―relativamente importantíssima‖. Já a insatisfação de Eduardo não é com a pacatez da cidade (de acordo com a narração de Maria, ele parece gostar do lugar), mas com a estagnação profissional e a consequente irritação da mulher. Ao observar os lugarejos iluminados pelos foguetes de artifício, ele deseja, por um momento, se transportar àqueles lugares, mas, em seguida, acredita que, uma vez lá, preferiria estar em casa. A narradora apresenta o marido como alguém contraditório: ao mesmo tempo em que ―proclamava que era até capaz de morrer‖, tinha ―fome de vida que era um encanto‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 149). Ela confessa que não o entendia e que supunha que ele preferisse os foguetes a ela. A paisagem que emoldura a casa, ―propiciamente isolada‖, onde vivem simboliza a angústia do casal: ―Chamavam-na de Ponte do Boqueirão, – sobre uma garganta abrupta e um corguinho modesto lá no fundo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 149). O precipício garante o desfecho fatal (―ali já me parecia o fim de todas as coisas e de todos os caminhos possíveis...‖), e o riacho expressa o amor que envolvia os dois (―E o córrego lá em cima, pelejando para ser ouvido, escondido entre as samambaias‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 152)). Daí a presença de outras imagens de água que sugerem o relacionamento ameaçado: ―O nosso 91

amor, se aquilo ainda era amor, era cada vez mais um desespero de náufragos, que nos esgotava e não nos consolava. (...) náufragos à espera de uma embarcação qualquer que viesse navegando entre as nuvens. Eu, pelo menos, como náufraga.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 155). No início das brigas causadas pela infantilidade da mulher, Eduardo tentava contornar a situação, como no dia em que se arrisca para colher uma flor à beira do precipício. Porém, com o passar do tempo, ele fica mudo e nebuloso. Numa tarde, em passeio costumeiro pelos arredores, o casal percebe uma quantidade incomum de fogos – ―Parecia que toda a gente (...) começara a soltar foguetes como derivativo para a própria monotonia‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 155) –, cena que detona a última contenda. Maria aproveita a ocasião para provocar o marido dizendo: ―Os foguetes já não estão longe! Tudo está de acordo com o seu ideal: os foguetes chegaram até você, podemos soltar alguns...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 158). Entretanto, a pilhéria, dessa vez, foi respondida fatalmente:

O meu Eduardo se voltou de frente para mim, recuou um pouco e me olhou profundamente. Mas já era um olhar de distâncias, um olhar do outro lado... – Então, aguente você aí sozinha! E sem que eu previsse e muito menos pudesse evitar, deu um salto por cima do parapeito da ponte e mergulhou na sombra do precipício. Para sempre! (ALPHONSUS, 1976a, p. 158)

Nos últimos parágrafos do conto, Eduardo insinua que Maria é uma das responsáveis pelo seu desejo de evasão. Apesar disso, no relato, a viúva não se culpabiliza pelo suicídio, o que acreditamos ser o motivo maior de o primeiro e breve narrador deixá-la contar a própria história. Se, por um lado, ela atribui ao marido a situação de tristeza que vive, por outro, não reconhece sua parcela de envolvimento na morte dele. No máximo, ao longo da narração, confessa-se mimada e menos inteligente do que Eduardo. Essa é a abordagem da professora Darlene Sadlier (1984), em ―O tecido de contradições como técnica narrativa em ‗Foguetes ao longe‘, de João Alphonsus‖, conto recentemente vertido por ela para o inglês e publicado na revista Machado de Assis Magazine em 2012. O tema central do conto, para Sadlier, é a instabilidade da vida, plena de desilusões e pobre de sentidos: ―aquilo que parece muito importante num momento [flor, piano] não tem já nenhum sentido no seguinte‖ (1984, p. 55). O desfecho revelaria, então, duas respostas distintas à constatação da coexistência dos contrários na vida: Maria sobrevive porque ―se contenta em dissimular com afirmações sem sentido aquilo que jamais saberá a respeito de suas vidas. Por outro lado, o suicídio de Eduardo sugere sua completa desilusão com tentativas inúteis de manter harmonia num mundo de discórdia‖ (SADLIER, 1984, p. 57).

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3.2.3 Eis a noite!

O momento do dia mais apropriado para as personagens de João Alphonsus é a noite. Claros dias de sol não são enfatizados nos contos do mineiro, que parece tê-los reservado a sua produção poética, conforme observamos no poema ―Janeiro‖. Propícia para uma observação mais atenta e silenciosa da vida, a noite é cenário da maioria dos contos, revelando a individualidade dos sujeitos, seus desejos, temores, pensamentos. Muito mais do que temporal, a noite adjetiva o homem fechado em si mesmo, solitário, ―Só na noite. A noite só. O silêncio feito uma sombra, um fruto, uma coisa, talvez uma alma, a natureza, o amor (...). O silêncio sem cenário, sem ritmo, sem vírgula, sei lá‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65), conforme o narrador de ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (EN). A noite metaforiza a reduzida compreensão que o homem tem de si e de seu mundo, daí muitas referências à parca visibilidade em toda a obra de João. Entretanto, surpreendentemente, as poucas descobertas que o ser humano faz de si revelam-se noturnamente – ideia coincidente com a de Sérgio Buarque de Holanda, que afirma, em 1925, na Estética: ―Só à noite enxergamos claro‖ (2014, p. 43). Mais que os modernistas, os românticos do século XIX elegeram a noite como metáfora do ―lado escuro do homem‖, conforme analisa Antonio Candido em A educação pela noite. Estendemos a João Alphonsus a afirmação do professor sobre a obra de Álvares de Azevedo, em que o cenário noturno revela-se ambiente e signo: ―E estou me referindo não apenas às horas noturnas como fato externo, lugar da ação, mas à noite como fato interior, equivalente a um modo de ser lutuoso ou melancólico e à explosão dos fantasmas brotados na treva da alma‖ (CANDIDO, 2011, p. 22). No final da década de 1940, valendo-se da carga semântica negativa atribuída à palavra ―madrasta‖ e do sentido oposto que tradicionalmente valoriza a figura da ―mãe‖, Agrippino Grieco afirmou que ―Madrasta, mas principalmente mãe, a noite é a grande responsável pelo elemento lírico de Contos e novelas, esse ‗vago‘ de imensa beleza na vida física das suas personagens‖ (1948, p. 81). Meio século depois, Maria Angélica Guimarães Lopes retoma a associação e escreve o capítulo ―Noite-madrasta e noite-mãe: o universo de João Alphonsus‖ (2001), em que defende uma ―evolução espiritual e literária‖ na obra contística de João Alphonsus: ―A noite, a princípio perigosa e mesmo malévola, nas estórias iniciais, torna-se amiga e protetora a partir daquelas do meio de carreira‖ (LOPES, 2001, p. 160). 93

Entretanto, não acreditamos que haja tal dicotomia na obra de Alphonsus. Na verdade, há uma mudança temática e estrutural gradual entre os livros, e podemos até dizer que a noite se torna cada vez mais fulcral para ele (daí o título do último livro). Todavia a complexidade com que trata a noite não nos permite afirmar que haja uma concepção maligna nos primeiros contos e benigna nos últimos: basta lembrarmos da ―noite erótica‖ do protagonista enlutado de ―Godofredo e a virgem‖ (GC) e da noite mortal de ―O mensageiro‖ (EN). Como indicaremos a seguir, a proposta de Alphonsus nos parece muito mais complexa, semelhante à exposta por Mário de Andrade nos versos de ―A meditação sobre o Tietê‖, escritos nas vésperas da morte do paulista, em 1945, nos quais também expressa o drama da vida humana valendo-se da noite:

É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta O peito do rio, que é como si a noite fosse água, Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres do meu coração exausto. (2013, p. 210)

A atração de João pela noite data de suas experiências infantojuvenis na mineira Mariana, onde, sabemos por meio de seu texto ―O pesadelo‖, vivia ―cheio de receios do mistério noturno que impregna as casas seculares‖ (ALPHONSUS, 1942a, p. 39) e crescia alimentado pela literatura romântico-simbolista, e se estende pela vida adulta, quando o contista a atualizará de acordo com o ideário modernista: nos devaneios de Ricardo, em ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (GC), na flânerie de Arconte, em ―O imemorial apelo‖ (PB), nos suspiros de Madalena, em ―Eis a noite!‖ (EN) e na insensibilidade de José Inácio, em ―A noite do conselheiro‖ (EN). Um dos contos mais extensos de João Alphonsus, ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (GC), relata alguns dias da vida de Ricardo, estudante de medicina e revisor de jornal, trabalho com o qual mal paga a pensão onde mora. Desiludido com a má recepção de suas poesias e exausto pelo cotidiano cansativo, o protagonista vive uma espécie de crise existencial detonada pela notícia da morte de uma jovem desconhecida. Embora nunca tenha se encontrado com ela – na verdade, Ricardo se relaciona com Maria Triste, uma prostituta –, o rapaz é tomado por uma confusão mental, e sentimental, que faz com que devaneie, misturando realidade e imaginação. A divisão em 25 partes – separadas com o sinal * – auxilia a leitura da narrativa fragmentada, espelho do protagonista, que fica à deriva da própria vida. Como aponta Ivan Marques (cf. 2011, p. 157), a expressão escolhida pelo escritor para intitular a entrevista concedida a Edgard Cavalheiro pode servir de adjetivo para seus protagonistas. Assim, 94

podemos afirmar a presença de muitas características do criador nas criaturas que habitam seus contos, como o jornalista Ricardo, cuja poesia é ―mansa e desencantada‖ tal como a de João, conforme observação de Emílio Moura (cf. apud MARQUES, 2011, p. 159). Quem relata a confusa história de Ricardo é um narrador cheio de incertezas, que permeia o enredo com poucas ações e muitas digressões sobre a ―vida geralmente apagada de Ricardo Dutra‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 57). Conquanto se apresente para anunciar acontecimentos decisivos, o narrador revela dúvidas, como em ―(...) [Ricardo] foi dominado por um sentimento monstruoso. Que talvez nem fosse monstruoso‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 59), além de explicitar desconhecimento: ―sabe-se lá por quê‖, ―sei lá‖, ―mas quem sabe lá‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65-66) são expressões recorrentes. Nesse sentido, assemelha-se ao protagonista, para quem ―Tudo era dúvida, incerteza, estupidez. O mundo.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 56). Desde o título, João Alphonsus, aproveitando possibilidades sintáticas, sugere um jogo interpretativo. Optando pela primeira organização, ―o homem na sombra‖, sugere que as dificuldades abordadas pelo conto sejam exteriores ao homem. Já a segunda disposição, ―a sombra no homem‖, explicita situação mais subjetiva, uma vez que as ―trevas‖ seriam interiores. A primeira cena continua a proposta metalinguística, pois Ricardo pede a opinião do chefe sobre um poema de sua autoria. A frase que abre o conto (e que o fecha também) é o verso ―E louco ao longo do caminho corre o trem!‖, que o rapaz deseja publicar no ―jornalzinho‖ de oposição em que trabalha. A resposta do ―poeta consagrado por geração e meia de sofredores e que se desfazia em conscienciosas explanações da mais pura arte poética‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 55) a Ricardo Dutra é que o novato deve consertar a cacofonia, tanto do verso como do próprio nome. Também repreende o verso, porque ―Trem não é louco não, regra geral‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 55). É evidente a ironia do narrador em relação à suposta superioridade do chefe, cuja análise literária se resume à indicação sonora e à estranheza pelo uso metafórico das palavras, e à subserviência do jovem, que não consegue resolver os ―problemas‖ (até insere ―M.‖ em sua assinatura, mas acaba caindo em outro cacófato, ―RicardoemeDutra‖). Quando o chefe se retira, fica ―somente a voz de Ricardo cantando as palavras dona da salinha‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 56): na ausência do superior, Ricardo domina o ambiente – note-se que o deslocamento do adjunto adnominal para o final da frase, além de fissura sintática ao gosto modernista, evita outro cacófato, ―a voz de Ricardo dona da salinha‖. Ricardo, como outros protagonistas de João, carrega características do autor: trabalha numa redação de jornal, estuda medicina e considera importantíssimo o emprego das palavras. 95

Além disso, Humberto Werneck identifica traços de Carlos Drummond no redator-chefe, muito porque essa foi a relação entre os dois durante anos no Diário de Minas (cf. WERNECK, 1992, p. 27). Entretanto, inserir na introdução do conto questões microscópicas da língua confere a ele ares ensaísticos, uma vez que as ações narrativas são colocadas em segundo plano. Se o texto se torna lento, a redação do jornal ganha cenário tedioso: ―Só a pena que corria: o resto tinha um ar de vagareza, lentidão, melancolia‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 55). Mesmo quando havia algazarra dos outros funcionários ou notícias de violência, nada ―influía no tom de voz, que se arrastava horas, ia mecânico na noite‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 56). A atmosfera é diferente do que se espera de uma redação de jornal, espaço propício para debates sociais, políticos, econômicos. Para compor o cenário melancólico necessário para o desenrolar da narrativa, o narrador aproveita a luz, elemento indispensável para os trabalhadores da imprensa que revisam à noite seus textos, transformando-a em elemento metafórico essencial para a compreensão do conto: ―Dentro da cidade adormecida parece que toda a luz apagada se vinha juntar nas oito lâmpadas modestas da salinha‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 56). A imagem paradoxal – a escuridão se junta à luz – acentua não a luminosidade necessária ao trabalho, mas a penumbra silenciosa onde os homens calados e tristes habitam. O título ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ é uma espécie de refrão silencioso por todo o conto. A frustração pessoal e a monotonia do cotidiano provocam a crise do sujeito; tal como nos romances de João Alphonsus, em que os personagens Anfrísio, de Rola-Moça, e Pedro Álvares, de Totônio Pacheco, buscam ―uma escrita que não conseguem concluir, [...] uma linguagem que não conseguem atingir, sempre fracassando‖ (GUIMARAENS, 2015, p. 5-6), Ricardo sente-se diminuído. No conto em questão, a constatação amargurada vem seguida de outra lírica, sensível: um colega dele, auxiliar da redação, apelida-o de Coração de Leão, graças ao filme americano, de 1923, em que Wallace Beery interpreta o rei inglês, famoso pela valentia e liderança; a alcunha também era empregada pelo redator-chefe ―sempre que queria provocar a volta da ternura amiga que boiava habitualmente nos olhos de Ricardo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 56). O segundo cenário do conto (também onde ele terminará) é o lugar aberto onde os funcionários do jornal urinam, ―momento sem preocupações mesquinhas e com uma certa solenidade e que ninguém desconfiava‖, apesar de haver banheiros fechados. Aí aparece pela primeira vez o vocábulo ―sombra‖ em um jogo com as palavras semelhante ao do título: ―Da casa cheia de luz não se via nada na sombra. Mas da sombra se viam as moças reunidas‖. Ali 96

os homens espiavam as moças, imaginando o que faziam: ―bocas sorrindo, palitos, despenteamentos, bocejos, axilas, a menininha de cabelo ventania dançando o charleston sobre a mesa ao som do gramofone portátil com risos e palmas, bocejos cronométricos, o fechamento da janela para o mistério fecundo ou estéril da noite repousada‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 57). As imagens alegres da casa iluminada, de onde se ouve a música vibrante e americana da moda, se contrapõem às tristes e escuras da repartição, onde se ouve som metálico e enfadonho. Entretanto, há um elemento em comum, os bocejos, que revelam a insistência do tédio, explícito ou maquiado. A janela fechada da casa metaforiza a falta de comunicação entre os homens e as moças e a dificuldade de acesso verdadeiro à felicidade, pois no altissonante charleston ou na monótona redação, sempre falta algo essencial, o que o protagonista procurará na noite. Em certa noite, porém, Ricardo não vê a movimentação costumeira: apenas silêncio, velas e crucifixo, ―A morte.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 58). Curioso, aproxima-se, ouve choros e sofre sem saber quem havia morrido, voltando ao trabalho porque ―pouco lhe importava saber. Como tudo neste mundo...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 58). A contradição – interessa-se e não se interessa –, como vemos frequente nos personagens de João, indica que Ricardo deixa seu tédio enganá-lo, porque pergunta aos outros sobre a morte da casa vizinha. Ele tenta viver à sombra dos acontecimentos, ―incompetente para a vida. (...) Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim‖ (LISPECTOR, 1999, p. 24). Embora caiba perfeitamente para o Ricardo de João Alphonsus, como se vê pela referência, a descrição destina-se à Macabea de A hora da estrela (1977). A aproximação não é aleatória: quase cinquenta anos depois, Clarice Lispector cria uma personagem à deriva aproveitando a metáfora da luz – ―Que não se esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos‖ (LISPECTOR, 1999, p. 16) –; emprega um narrador autorreflexivo, às vezes comovido por Macabéa, às vezes bruto; e apresenta, logo depois da capa, várias possibilidades de títulos para sua novela, entre eles ―A culpa é minha‖, ―O direito ao grito‖, ―Lamento de um blue‖, ―Uma sensação de perda‖, ―Eu não posso fazer nada‖, ―Saída discreta pela porta dos fundos‖ (LISPECTOR, 1999, p. 7), que funcionariam, também, como título para o conto de João Alphonsus. Nossa digressão se justifica porque, ao sugerir que uma renomada contista como Clarice Lispector compartilhe tema e estilo com João Alphonsus, sublinhamos a importância da prosa do mineiro para a geração posterior. Coincidentemente, Clarice publica seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, no mesmo ano em que João morre, além de escrever o 97

conto ―Uma galinha‖ (Laços de família, 1960), cujas angústias são semelhantes às de Branquinha, como veremos adiante. Naquela noite, Ricardo fica sabendo pelo tipógrafo Chico que a moça gorda e alegre da casa observada não sobrevivera a uma cirurgia, motivo que a fará reviver nos devaneios do Coração de Leão. A perturbação da morte da mulher de 22 anos, mais velha um ano do que ele, soma-se às dificuldades práticas de Ricardo, que, no caminho da redação para casa, constata sua exaustão e pobreza. A recordação que tinha dela, certa vez debruçada na janela, se mistura à cena de um encontro de gatos no cio, barulho que Ricardo associa ao grito de dor de um recém-nascido prestes a morrer: ―olha o coitadinho esperneando, e o sangue lhe escorre do umbigo rebentado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 59). A mistura de três imagens no pensamento de Ricardo é justificada: ―Trabalhando até de madrugada e se levantando cedinho para as aulas, acontecia a Ricardo dormir em pé, andando pela rua altas horas, e tropeçar no meio-fio ou num sonho estapafúrdio‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 58). Ele imagina como teria sido bom se houvesse escalado o muro da moça, diante de um chamado dela. ―Agora ele iria guardar no sepulcro o segredo intenso do amor fora da lei, e a morte haveria evitado para ambos as complicações humanas decorrentes da divina loucura‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 59). A curiosidade leva rapidamente Ricardo ao amor, e a morte é compreendida como aquela que ―salva‖ os humanos de se entregarem a mais uma ―divina loucura‖. Nesse sentido, ainda bem que ela morreu: assim, eles não se amaram, ele não sofrerá. Na pensão, sonolento, é acordado por Dona Mariinha, que ele imagina chamá-lo com intenções sexuais; na verdade, ela vinha lhe cobrar o aluguel, e o pagamento é mais uma vez adiado. Sem conseguir dormir, Ricardo sai de madrugada para se encontrar com Maria Triste, cujo nome de guerra devia-se aos olhos grandes, ―jabuticabas merencórias, com olheiras monacais, e naturais‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 60). Quando se despede da mulher, ela boceja e releva a falta de dinheiro de Ricardo. Nota-se, portanto, que as relações interpessoais do protagonista problematizam a hierarquia e o dinheiro, seja com o chefe, com a dona da pensão, com Maria Triste. Já havíamos detectado o mesmo em ―Godofredo e a virgem‖ (GC). Pouco sensual como as prostitutas da obra de João Alphonsus – a parte do corpo mais descrita são os ―olhos olheiras no vago‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 61) –, Maria Triste é religiosa (traz medalhas no pescoço, dadas pela mãe) e reza com Ricardo. O narrador transcreve as orações, intercalando-as com o diálogo do casal. Ao rezar a Salve Rainha, oração triste, o rapaz não entende como a prostituta ―parecia uma freira mártir mãe santa mulher miséria clamando com a voz de humildade e ignorância no esplendor brutal do dia 98

impiedosamente quente, do mundo impiedoso‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 62). O indefinido núcleo do complemento verbal, que conta com seis palavras, descarta conectivos e expressa a complexidade da mulher, incompreendida pela sociedade. No fim da oração, ela suspira profundo, ―de profundezas seculares, inconscientes, ignoradas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 62). À pergunta feita – por que ela levava vida horrível – Maria responde analogicamente: ―Ora por quê, seu bestinha. Pergunta pra esta pulga por que ela me mordeu. Ou por que ela vai morrer agora...‖. O narrador complementa: ―heróis de romances têm feito a mesma pergunta sem resposta. Com a diferença de que Maria era mulata, além de triste‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 62). A pergunta de Ricardo é respondida com um poema de onze quadras que revelam uma mulher sem ambições e desejos, submetida a julgamentos religiosos, pois ―Já não tem Deus, já não tem alma / Maria Triste é corpo só / (...) / Só este andar balançado, mole, / balançado, mole, balançado, mole". Entretanto, ―talvez no fundo de sua tristeza, / mole, morna, cansada, bem feita / guarde o sentido miraculoso‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 63). Tal como a personagem cristã enaltecida pela igreja católica por ser mãe de Jesus Cristo, motivo de incontáveis poemas, a mulata Maria Triste também ganha um, escrito por Ricardo (e/ou pelo narrador). O texto dentro do conto explicita a associação entre as duas Marias: ambas têm vocação imposta, são ―mães‖ (Maria Triste chama Ricardo de ―filhinho‖) e encontram a redenção. Numa das únicas cenas em que Ricardo está feliz, ele está com Maria, voltando do jantar, ―na frescura da noitinha (...). O motorista não via nada para trás atento nas curvas espertas chispando. (...) O automóvel pequeno subia, descia, subia o risco largo aberto na verdura, conduzindo a felicidade‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 63-64). Durante o passeio, pensa em casar com ela e ter filhos, pois Maria era seu refúgio do frio da madrugada, do cansaço do trabalho e da ―vida besta‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65). Mas ―os ouvidos do chofer‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 64), metonímia da sociedade preconceituosa, os afastam da felicidade. Ricardo, visivelmente modificado, falta o trabalho no dia seguinte e fica com Maria na ―manhã preguiçosa‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 64) – mesma expressão empregada pelo narrador para descrever o momento da compra de Branquinha (GC). Para justificar a sua ausência, inventa doença e, ―inteiramente irônico‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65), ri da repreensão do chefe. Como já indicamos, esse sorriso é típico dos personagens do livro de estreia de João Alphonsus: na falta de explicações lógicas e aceitáveis socialmente, apenas o sarcasmo preenche o nada de suas vidas. A desconfiança e a incompreensão de Ricardo em 99

relação aos acontecimentos também são marcadas pela expressão ―ora, a vida‖, repetida ao longo do conto. Em alguns trechos, o narrador age como um cronista, descrevendo lugares e personagens à deriva da planejada e moderna Belo Horizonte: Ricardo dorme no banco da Praça da República (ALPHONSUS, 1976a, p. 71) e passa pelo Cemitério do Bom-Fim (ALPHONSUS, 1976a, p. 72); os garis, ―debaixo das árvores indiferentes, homens de capote silenciosos, ar de literatura russa, varriam folhas, papeis, cigarros, formigas. Arranhando o paralelepípedo com as enormes vassouras de taquara. Os burros metódicos puxavam as carroças e paravam metodicamente perto de cada montinho de cisco‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65). Embora João Alphonsus não considerasse o texto uma novela (designa de ―contos‖ todos os textos de Galinha cega, na primeira edição), acreditamos que haja algumas características do gênero nele, uma vez que, etimologicamente, ―novela‖ vem do adjetivo latino novus, apresentando, assim, eventos ―desconhecidos, mesmo surpreendentes e complicados por desenvolvimentos sinuosos‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 303). Além da extensão do texto (índice menos objetivo para uma eficaz determinação genérica, mas que também é responsável pelo efeito desejado), o tratamento dado ao ambiente narrativo justifica a possível nomenclatura, uma vez que o espaço da novela é ―desvanecido, em certa medida ofuscado por uma personagem que se caracteriza pela excepcionalidade, pela turbulência, pelo inusitado‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 304). A dificuldade do protagonista em lidar com a vida funde-se à árdua tarefa do narrador em contá-la: ―Ricardo como personagem não sentia, isto é, não notava: só eu, como narrador, é que anotava a síncope e houve um momento em que herói e autor se confundiram arrastados pelo prazer indefinível e foi preciso reagir, ora essa‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65). Tal como em ―O mensageiro‖, o conto reflete o problema da criação ficcional; a compaixão de Ricardo pela humanidade – quer ―consertar o mundo. (...) Porém, de repente, perguntou se os homens, os homens teriam alguma responsabilidade‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 65). Gradativamente, a narrativa é dominada pelo discurso indireto livre, que se mistura à narração de terceira pessoa para revelar o fluxo de pensamento de Ricardo, entregue à noite. Na cena em que o protagonista despejado dorme em praça pública, lemos: ―Pouco se me dá que o guarda, indefinido assistente da paz noturna, exista de fato, e que eu viva realmente... Ricardo se diluía. Uma sombra dentro da sombra. Reagiu também se esforçando para escapulir e pensou no dicionário popular da desilusão. Humanidade. Fatalidade.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 66). 100

O desejo de escrever um livro faz Ricardo passar da ―sombra do nada‖ para a condição de ―dono do mundo‖: no seu Dicionário popular da desilusão (ou Dicionário popular da língua portuguesa), diria verdades para o povo que pensa, sofre e acha graça. Por exemplo, o verbete da palavra ―amor‖ explicaria: ―simples atração sexual momentânea e variável, de que os homens querem fazer a muque um sentimento‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 67). A definição amarga tem a ver com a decepção amorosa, pois Ricardo encontra Maria Triste com outro homem. Contraditório – ele sabia do trabalho da mulher –, fica furioso e canta um maxixe, ritmo brasileiro agitado e sensual que mistura elementos estrangeiros aos nativos e teve seu auge no início do século XX. Em outra cena, seu espírito paradoxal é ratificado: tem pena de certa barata sugada pelo ralo, destinada à morte lenta e inglória, entretanto não a retira de lá de uma vez, e, sim, deixa uma vassoura para que ela escape (cf. ALPHONSUS, 1976a, p. 67). Notamos aqui um olhar sádico, que trataremos minuciosamente em ―Sardanapalo‖ (EN). Ricardo perdoa Maria com sarcasmo – ―Que delícia enxugar lágrimas‖ – e pensa em lhe fazer outros versos, lembra os de Paul Valéry, contudo o narrador apenas registra seu pensamento rancoroso: ―A terra é uma gota de lama‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 68). Olha-se no espelho, vê que é pobre, mas ama e é amado (por quem?), lembra dos leucócitos, que defendem o organismo com movimentos ―â-mé-bóóÓides... eta palavra boa para sincronizar um bocejo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 69), pensa no que eles diriam: que Ricardo era um deus. E dorme. A saúde física e mental de Ricardo parece abalada: num bar, vomita em Maria, não paga a conta, briga com todos e vai para cadeia. Sem parentes a quem recorrer, passa uma ―odisseia obscura, aos pedaços, aos saltos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 69). De volta ao trabalho, consegue um empréstimo, porém trata todos com aspereza; quando Maria o procura, ele não atende. Uma ―sombra‖ atormentava Ricardo (ALPHONSUS, 1976a, p. 70): informado da missa de sétimo dia da moça desconhecida e tomado pelo medo e pela incompreensão, ele vai ao lugar de onde a ―vira‖ pela última vez (na verdade, ele apenas a imaginara). A sombra que o aflige é da moça, que reclama dos pensamentos ―monstruosos‖ do rapaz sobre ela. De volta à pensão, para não dar pista de sua presença, fica ―numa imobilidade impossível. Horas. Séculos‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 71), porém D. Mariinha, contrariando seu diminutivo, arromba a porta e irrompe no quarto, enfrentando o Coração de Leão. Ricardo puxa a blusa da mulher, que lhe atira a dentadura. Outro hit da época colabora para a cena hilária: o animado fox-trot Aleluia. E ele ouve vozes dizendo que Lúcia está no inferno por causa dele (nesta cena, a jovem desconhecida é de repente nomeada). 101

Talvez as peripécias narradas façam parte de um sonho do protagonista, pois o narrador afirma que ele está com febre. Tal como o personagem flâneur de ―O imemorial apelo‖, Ricardo anda até o cemitério: ―Ficou esperando no portão fechado que a morte chegasse, que a morte partisse, quê quêrêquê quê quêquê... Será que eu estou ficando doido, meu Deus.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 72). O fracasso literário, o problema financeiro, a insatisfação com o trabalho, a desilusão amorosa precipitam o rapaz num estado ―sem consequência nem sentido‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 66): procura inutilmente o túmulo da moça (completa-lhe o sobrenome, Medeiros Boscaglioni) e chama a seção ―Luto‖ de burra. Alude ao poeta brasileiro (1825-1889), conhecido pelos versos de ―Ilusões da vida‖ (―Quem não sentiu o frio da desgraça, / Quem passou pela vida e não sofreu; / Foi espectro de homem, não foi homem, / Só passou pela vida, não viveu‖ (OTAVIANO, 1925, p. 170)), para questionar o romantismo. Ricardo evade, justificado pela fatalidade que é viver. Assim, vida, literatura e sofrimento se entrelaçam no conto. Podemos afirmar pouco e sugerir muito sobre Ricardo, tal como queriam os simbolistas e os surrealistas pelos quais João Alphonsus teve profunda atração. Como o próprio autor confirma, ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ é ―uma tentativa poética, com uma certa dose de suprarrealismo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 32). Temos, na realidade, um amálgama de gêneros e estilos no último texto de Galinha cega, uma vez que, neste conto em especial, a linguagem modernista mistura-se à tendência penumbrista. No início do texto, o personagem vivia na ―sombra‖, porque o pouco dinheiro não lhe garantia uma sobrevivência digna e tinha pequenas alegrias fora do trabalho mecânico; aos poucos, a ―sombra‖ vai ganhando protagonismo, pois Ricardo fica à deriva da própria vida e dos acontecimentos: ―Estava burro mesmo. Burro ou doido‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 73). O trem doido aludido na primeira linha do conto, retirado do poema de Ricardo, é ele mesmo, como vemos na cena final, que fecha o círculo narrativo. No pátio em que os funcionários urinavam, ele se transporta ao dia do velório e à cena da música charleston. Sua visão de mundo, agora, é extremamente pessimista: ―Imbecis, desumanos, inconscientes, cretinos, bandidos, covardes, monstros, queria gritar a revolta sem limites de Ricardo na tonteira súbita. Mas o que vale é que é o fim, a destruição, o castigo, o nada...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 74). Em plena alucinação, muito semelhante à de ―O guerreiro‖ (EN), Ricardo vê um relâmpago cumprir a maldição, transformando a casa da vizinha em um monte de tijolos, que o atingem, derrubando-o. Sente também uma chuva quente, mas, na verdade, o líquido vinha do tipógrafo vesgo, que urinava em cima de Ricardo, caído: ―Ah! isto sim, o mundo imbecil ia acabar como merecia, num dilúvio de urina. E sem arcas de Noé!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 75). Ao 102

ver o colega no chão, Temístocles pede desculpa e o ajuda, e ―Ricardo se abraçou a ele, chorando e perdoando‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 75). Embora termine o derradeiro conto de Galinha cega com uma anedota, João Alphonsus fecha o livro com a frase ―LAUS DEO‖ (―Deus seja louvado‖), muito usada por escritores maçons ou por autores religiosos agradecidos pelo trabalho concluído. Ao aparecer na mesma página em que lemos que ―O diabo possivelmente é que comandava a bagunça‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 75), a expressão latina soa irônica, ainda mais quando associada ao fato de o escritor, na época da publicação de Galinha cega, se considerar cético (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 11). Vários aspectos comentados acima são constatados em ―O imemorial apelo‖ (PB): estrutura introdutória ensaística e digressões ao longo do texto, metalinguagem frequente, personagem flâneur atraído pela noite, relacionamentos afetivos fracassados e incompreensão da vida tediosa. Todavia, no conto do segundo livro a narração é feita em primeira pessoa, e o protagonista perde importância para o cenário (a noite do interior) e para o tema (a inspiração literária). Mais do que a ação negativa das ―sombras‖ no homem, interessa a atmosfera positiva da ―noite‖, pródiga de liberdade e lirismo. Entretanto, a realidade frustra os ―imemoriais apelos‖ dos personagens, uma vez que seus sonhos não são plenamente concretizados. Arconte, viajante comercial, gosta de poesia, inclusive modernista, e a ela recorre sempre que ―sente necessidade de falar qualquer inutilidade como uma válvula de escapamento para certa pressão interior‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 109). A recitação possibilita entrada em outra dimensão, a da noite, como se o poema fosse mágico. Nos versos transcritos no conto, o eu lírico mostra ter consciência do que é pela manhã (rico rei), enquanto, à noite, não sabe bem quem se torna. A descrição transforma a noite – ―trágica, desamparada, inacessível‖ – em personagem e espaço. De maneira semelhante, o narrador, durante o dia, segue protocolos no trabalho nada artístico, ―o teatro do ganha-pão‖, ―mas quando a noite chega, a noite é minha‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 110), porque é aí que consegue se dedicar ao que realmente lhe interessa, à literatura e aos mistérios. A vida matutina estéril é compensada pelos muitos sentimentos vislumbrados à noite. São versos do poeta francês Albert Samain (1858-1900) que inspiram Arconte em busca de desejos inconfessados, metonimicamente expressos no coração que estremece e queima, nos seios repletos de súplicas silenciosas. O título do conto vem dos versos de Noturno provinciano: ―grands appels suppliants, et jamais entendus!” (SAMAIN, apud ALPHONSUS, 1976a, p. 110). Por três páginas, o narrador faz uma ode à noite, enaltecendo 103

―almas noturnas, estranhas revelações, tristezas‖, ―um contato humano diferente, especializado por assim dizer...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 111). A ação narrativa propriamente dita é iniciada depois da digressão. Colegas de trabalho de Arconte conversam sobre necessidades diárias da profissão: boas acomodações e, para que a correspondência chegue a tempo em suas mãos, agilidade e inteligência do hoteleiro. O narrador fica impressionado com a seriedade com que certo português trata assuntos corriqueiros. A ―filosofia de coisas miúdas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 112) do hoteleiro faz com que Arconte medite: ―se o destino houvesse posto nas suas mãos muitos livros, em vez de papel de embrulho e cadernos de pedidos, estaria ali um pensador, um filósofo verdadeiro‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 113). Sem interlocutores que o compreendam – os colegas de trabalho o têm por erudito, mas ignoram seu ―penchant para a poesia e para a vagabundagem lírica‖, muitas vezes rindo dele –, Arconte aceita o convite da noite e vaga sozinho, dirigindo-se ora aos leitores – ―Cito de memória, senhores‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 110) –, ora a sua principal companheira – ―Velhas noites, aqui está o vosso amigo desinteressado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 111). Assim entregue, desliza para a rua, curioso por um duplo suicídio acontecido noites antes e relatado, com pesar, pela dona da pensão onde se hospedaram Lina e seu jovem amante. Depois do carnaval, o casal oprimido pelas convenções sociais se mata. O assunto trazia tensão aos outros hóspedes, exceto a Mundico, que alega ter visto a moça morta andando pela cidade. O narrador interrompe a galhofa, exclamando: ―Estão no céu, afirmei resolutamente. Cretinos demais, inocentes demais! Se Deus existe, não é possível que ele desorganize tanto este mundo pra depois castigar os que são vencidos pela bagunça...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 114-115). Ainda que não concorde com algumas ideias de Mundico, personagem que ganha importância gradativa, Arconte percorre a cidade com ele, na esperança de que lhe ―trouxesse uma compensação noturna à chateza do dia‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 115). Entretanto, a expectativa é frustrada devido à conversa banal do rapaz – casado, sustentado pela mãe depois de gastar toda a herança do pai – que, na verdade, ―não tinha nada de um notívago iluminado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 115). Porém, no meio da madrugada, Mundico faz algo que emociona Arconte, pois, de repente, imita um galo, detonando uma sinfonia: ―O primeiro galo de verdade, dormitando no seu poleiro, retrucou àquele grito de vida, e o canto se propagou maravilhosamente de terreiro em terreiro, da baixada do rio, dos morros, até longe, longe‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 116). O trecho nos recorda o poema ―Tecendo a manhã‖, publicado 104

por João Cabral de Melo Neto em A educação pela pedra (1966). Nos dois textos, o canto promove integração entre seres semelhantes separados pela distância e pelo silêncio. A experiência é tão boa que Arconte leva o jovem para vários lugares a fim de que cante e inspire outros a fazerem o mesmo. O percurso termina no cemitério, disposto no alto da cidade para dominar e prevenir as habitações (cf. ALPHONSUS, 1976a, p. 116). A cena é motivo de novas divagações: o espírito do narrador vaga ―sob a pressão de vivos e mortos que dormiam para sempre, todos para sempre, ainda que alguns iludidos durante certo tempo num invólucro de carne humilde e mísera, às vezes linda carne feminina, braços noturnos que se erguem inutilmente para o amor, inutilmente como para a morte...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 117). Lembrando-se do casal suicida, Arconte retoma outros versos de Albert Samain, sobre amantes desesperados e virgens; para o andarilho poeta, a maior virgem é a prostituta, uma vez que não conhece o amor e está presa a um ―macho bestial‖, à ―degradação do meretrício‖. A suicida deveria ter problemas, daí ter arrastado o rapaz à morte sem pensar no filho que ela deixava. Diferente do narrador, que poetiza desde a morte dos jovens ao canto do galo, Mundico os acha trouxas e, ao ser perguntado sobre a morte, responde jocosamente imitando o canto do galo. Se Arconte busca se irmanar aos desejos secretos de uma cidadezinha interiorana, termina a noite ouvindo um companheiro imitando galos: o desfecho irônico é semelhante aos de Galinha cega. Mais uma vez observamos procedimento moderno de João Alphonsus, que constrói protagonista lírico, cuja admiração exaltada nos remete aos Hinos à noite (1800), de Novalis, mas que também relaciona elementos mundanos à noite, nos recordando o decadentismo. Se a noite possibilita mais lirismo que desapontos para Arconte, solitário por opção, o mesmo não ocorre com a personagem feminina que abre o último livro de João Alphonsus. O anúncio exclamativo Eis a noite! revela angústia da solitária Madalena, decepcionada devido à presença apenas onírica de personagem sedutor e à conversa malfadada com um vigia noturno. A protagonista de ―Eis a noite!‖ (EN) poderia ser uma personagem de ―O imemorial apelo‖ (PB), haja vista seus anseios se assemelharem àqueles os quais Arconte deseja colher na atmosfera noturna da cidadezinha silenciosa. O período da vida de Madalena abordado pelo conto é a noite do seu aniversário de 30 anos ―descurados‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 130), em que ela está exausta devido aos afazeres domésticos relacionados à recepção de convidados. Sem conseguir dormir, na ―hora máxima de abandono, em que se encolhia assim, se resumia no leito estreito, como que procurando desaparecer‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 129). O cansaço que domina os jovens 105

personagens de João Alphonsus soa, para Ivan Marques, falso e teria motivado críticas que rotularam a ficção do mineiro de esquisita (cf. 2011, p. 162). Para nós, a imagem da moça fatigada na cama recorda a posição fetal, sugerindo seu desejo talvez inconsciente de reverter o fluxo natural da vida no dia em que celebra mais um ano. Relaxada, Madalena lembra o sonho recorrente que a ―desambientava‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 129); a escolha lexical é excelente, porque a moça sonha com um lugar mais interessante do que o bairro belorizontino onde morava. Lá é agarrada suavemente por um homem forte e bonito que repete amorosamente o aviso ―Eis a noite!‖, convidando-a para dormir com ele e explicando que ninguém saberia, pois estavam numa ―cidade com milhões de luzes, (...) talvez a maior do mundo. (...) cidade infinita‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 129) e à noite. Entretanto, a luta interior da recatada Madalena faz com que ela acorde logo depois do convite. Seu cotidiano era radicalmente diferente: o bairro era de ―vielas antigas, beirando os matagais, (...) ruas ainda sem calçamento (...) atalhos no meio do mato‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 130), cuidava do pai, funcionário público aposentado, e dos irmãos farristas. Solitária e infeliz, Madalena não tem a coragem dos negros que se amam na moita sob o olhar de repreensão dos guardas noturnos do bairro: ―Coitados dos pretos. Mas uma tremenda amargura traspassou-a, numa ampliação da piedade que a envolvia também. Coitados dos morenos, dos brancos, de todos. Mundo incompreensível, irrealizável. Que é que vale?‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 130). Em meio à dúvida se a morte do pai daria novo rumo a sua vida, perde o sono de vez e se angustia ―como se o rompimento de todas as peias, o aparecimento da oportunidade única, o retardamento dos efeitos do tempo na sua carne feminina, o término da expectativa perene, como se tudo dependesse daquele sono para sempre‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 131). Atordoada, Madalena abre a janela do quarto, em nível superior ao da rua, e, num ímpeto, chama o guarda noturno que passa a cavalo em frente da casa. Antes, em outras noites insones, a moça restringia-se em ouvir o barulho das ferraduras contra as pedras do calçamento e ―o tempo noturno caminhava devagar‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 129). Entretanto, naquele aniversário, Madalena permite que as ferraduras se aproximem. A conversa com o guarda Xisto faz com que desejos reprimidos venham à tona, não porque tenha se interessado por ele em particular, mas porque se trata de um homem. Simples, rude e direto, Xisto queria vê-la mais perto, beijá-la, entrar-lhe no quarto. Não se encaixava com os devaneios românticos de Madalena, que sonhava com homem cortês 106

e elegante, chamado hipoteticamente ―Altamiro‖. Logo, eles discutem, e ela chora, fechando a janela, e o conto. Nesse sentido, a imagem da capa da primeira edição de Eis a noite! (1943a), uma figura feminina de aspecto silencioso e rosto iluminado, despista o leitor: o lado não iluminado domina a mulher que não consegue aderir às possibilidades noturnas:

Ilustração n.º 2 – Fotografia da primeirda versão de Eis a noite! (1943)

Tal como no sonho, o encontro com o sexo oposto não se revela amoroso, porque Madalena não permite uma aproximação mais intensa, imprevista e em desacordo com as convenções sociais. Apesar de abrir a janela, a maneira como enxerga e vive o mundo não propicia a ampliação de seus horizontes; a cidade larga, infinita, sem olhares familiares e o chamado para aproveitar a noite só existem nos sonhos. Embora o inconsciente alerte sobre a necessidade de um afrouxamento, Madalena não consegue concretizá-lo e se desespera. Diferente da homônima personagem bíblica, não tem nada do que se arrepender: ―– Queria ter de que me arrepender... Não ter família, ninguém, ninguém! Ficar sozinha no mundo. Sozinha e desgraçada. Porque agora não sou desgraçada nem feliz. Não sou coisa nenhuma!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 134). Estranhamente, Madalena é triste porque não tem uma história individual pela qual sofrer. A noite saudada revela desejos não realizados e angaria frustração. Logo, a noite feminina é mais ingrata do que a masculina: os narradores dos contos anteriores andam pelas ruas, são mais livres que as mulheres, se abrem para o incerto, para a irracionalidade. Há, na história deles, alguns instantes de prazer. Diferentemente, elas sempre estão oprimidas, seja pelo pai, pelos irmãos, pelo marido, pela sociedade, pelos filhos. Não há alegrias verdadeiras também em ―A noite do conselheiro‖ (EN), em que José Inácio Gomes, rico, metódico, racional, livresco e insensível, tem uma oportunidade de transformação interior, mas não a aproveita. A noite para o personagem nunca é o que parece: 107

aparentemente, é momento de conquistas sexuais e de reflexão, contudo não há ação efetiva nem humanização. O primeiro e extenso parágrafo descreve o escritório do conselheiro, os luxuosos móveis neocoloniais e sua estudada disposição dentro do ambiente para destacar as estantes da biblioteca: todos os livros haviam sido igualmente encapados e estavam dispostos por ordem de tamanho para que

não se lhes notasse a diferença da estatura, igualdade e fraternidade de numerosíssimas obras em que o espírito humano se tem debatido, contradito, construído, derruído, esperado, desesperado. (...) como se o objetivo fosse mesmo (...) neutralizar, a todos eles, para se adquirir a tranquilidade com a certeza de que nunca desceriam das estantes para fazer algum mal ao pobre ente humano. (...) nas lombadas dos tomos havia, gravado a ouro, além de um número e de outras indicações necessárias, isto: CONSELHEIRO JOSÉ INÁCIO GOMES. Era o dono daquele ambiente. (ALPHONSUS, 1976a, p. 159)

A descrição irônica do ambiente delineia o caráter do conselheiro. Os eufemismos e perífrases recorrentes na linguagem do narrador coincidem com a maneira de pensar e agir do conselheiro, que chama vômito de ―libertação de substância nocivas, de aspecto repugnante, que a mulher recolhia na bacia enquanto sorria ‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 165), e olhos de ―preciosos órgãos da vista‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 159). Como vemos, a presença dos muitos livros não indica sabedoria (bem porque ele nem os abre), mas a valorização das aparências. A forte carga irônica do texto revela posicionamento ambíguo do narrador em relação ao personagem: se, por um lado, José Inácio é bacharel em direito, por outro não gostava de ler: ―Viver com física mas sem metafísica, era o seu lema, enraizado na satisfação de viver comodamente. Não pensem que fosse tacanho ou ridículo. Representava no mais alto grau, isto é, no grau médio, o homem comum, isto é, o homem médio, que vive perfeitamente adequado à vida, que vive até morrer.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 161). Dessa maneira, protegia-se de pensamentos que pudessem lhe tirar a paz conquistada. Nada exterior mudava-lhe também o espírito – nem o vento que fazia com que as árvores batessem na janela, nem o reflexo do luar no chão do escritório –, vivia sempre no ―seu núcleo de luz‖. Entretanto, lia jornais, e, em certa noite, uma notícia o atordoa; preparando a cena, o narrador descreve que o forte vento na vidraça eram ―golpes de corpos leves insistentemente atirados contra os vidros‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 161). A parte do jornal que lhe desperta más lembranças era ―uma fraqueza média, comum a muita gente: a última página‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 161), destinada às notícias internacionais sobre a guerra e às nacionais sobre furtos, escândalos, crimes, desastres. A notícia ―do suicídio de 108

uma decaída‖ rompe-lhe a paz; na verdade, a fotografia que compõe a matéria. ―Para que o retrato no jornal, se ninguém se interessaria por ela (...). Ali estava fixada inutilmente, com o concurso de agentes químicos, a imagem fugaz de um corpo que a terra começara a decompor‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 162). Enquanto a natureza trabalhava para que o corpo da mulher desaparecesse, a lembrança da noite em que a conhecera crescia vertiginosamente, levando o homem a um estado diferente, ao ―domínio do absurdo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 163). Para indicar a nova disposição do personagem, o narrador mistura o discurso indireto ao indireto livre. Assim, corrige o personagem antes tão orgulhoso: ―Mas já não se lembrava de mandar podar as sombras, isto é, os galhos que cresciam demais‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 162). Assim, as lembranças juvenis de ―Zé Inácio‖ tomam as rédeas da narrativa, no tempo em que percorria a zona de prostituição da cidade, caminho obrigatório já que queria ser considerado ―homem‖ pelos colegas. Numa noite em que passa mal, para evitar a zombaria dos meninos que o acusariam de não saber beber, entra subitamente no quarto de uma prostituta. Genoveva se apresenta, e ele, para mostrar superioridade, ensinado pelos amigos, mente dizendo que se chama Cícero, nome escolhido, segundo ele, graças às aulas de latim. José Inácio lembra uma frase (e só uma) do personagem histórico Marco Túlio Cícero, que acusou Lúcio Sérgio Catilina de traição, no senado romano, com o célebre discurso, que começa com ―Quousque tandem Catilina abutere patientia nostra” (Até quando, Catilina, gastarás nossa paciência?). Entretanto, o nome indica mais uma ironia do narrador: quem exerce elegante e magistralmente a paciência naquela noite é a prostituta, amparando o vômito do adolescente, limpando-lhe o suor e suportando impropérios. Recuperado do mal-estar, o rapaz desperta antes da mulher e vai embora sem pagar. Para driblar o sentimento de humilhação por não ter conseguido fazer sexo, mente para si e para os amigos:

Mas a flor da idade, a atração da adolescência para queimar as suas asas no lodo, o poder da imaginação juvenil compensando o fracasso, tudo eram forças mais poderosas do que a sordidez do ambiente ou dos fatos. Zé Inácio tinha um sorriso de glória, diante da realização de um ato que era um avanço nas suas conquistas da masculinidade. – A minha primeira dormida com mulher! ele dizia contente, apesar de tudo. (...) – Também vou contar a eles que passei a minha primeira carona. (ALPHONSUS, 1976a, p. 166-167)

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Se desde novo o futuro conselheiro inventa realidades para forjar uma identidade que acredita superior à própria, Genoveva, apesar de parecer inferior, tem ―uma inocência, uma pureza, uma tranquilidade de santa!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 166). A situação moral do jovem é agravada porque, depois da ―carona‖, teve chance de se retratar com Genoveva certo dia em que comia com os amigos num restaurante. Do lado de fora, ela o observava, ou melhor, olhava para a comida dele, com o mesmo sorriso gasto. Na ocasião, mais uma vez ele a ridicularizou. José Inácio, diante do jornal, naquela noite, tem uma segunda chance de reconciliação, ainda que a mulher não mais esteja presente. O destino parecia desejar-lhe penitência, recordando-lhe do

carinho puro e compassivo [de Genoveva], carinho desinteressado, sem sexo, sem idade, sem tempo, sem classe, sem condição social, sem contingência humana, e que parecia voltar agora no vento frio de muito longe, no vento que soprou pelas janelas, deslizou na sobra gradativa, passou friamente pela sua pele entre os dedos da mão... (...) Genoveva, onde estejas, fica sabendo que o dinheiro não é nada... Sim, conselheiro, o dinheiro não é nada!... Não é nada!? (ALPHONSUS, 1976a, p. 167- 168)

O materialismo interrompe o momento lírico e catártico de humanização, e o conselheiro se levanta rapidamente fugindo do passado fantasmagórico, apanhando

o dinheiro que a mão do ginasiano tinha atirado no chão. Retificou as outras vestes que haviam se desarranjado na luta, falando alto, como a uma outra pessoa que houvesse esgotado a sua paciência: – Que é isto? Que insensatez é esta? E foi dormir. (ALPHONSUS, 1976a, p. 168)

O desfecho remonta a paz do início da história, encerrando o conto que traça um perfil do ―homem comum‖ ganancioso e mentiroso, que vive de aparências e ganha título de ―conselheiro‖, não o sendo nem para si mesmo:

Os motivos de João são os da tragédia corriqueira a um tempo humilde e imensa – um oceano de amargura, lirismo e ternura contidos numa poça d‘água. Seus tipos ficcionados – alguns nasceram de sua criatividade mais outros, de sua observação e colheita no cotidiano. De ―A Noite do Conselheiro‖, por exemplo, tenho a chave, segundo confidência dele próprio. O caso da bebedeira e da pena vermelha sucederam mesmo com nosso companheiro Zegão, cuja figura que ele antevia de futuro grande médico, foi transformada na dum conselheiro – grave, adulto, triste e saudoso de sua mocidade boêmia e dum instante que tinha valido mais que o resto de sua vida. A caridosa que acolhe o moço porrado era a Maravilha – velha catraia conhecidíssima na zona e que exercia ora na Rosa, ora na Carmem. Rolou depois para mais baixo e acabou no Curral das Vacas. Nada disso vale e sim o que se vê no conto – grande materna amante. (NAVA, 2003, p. 243)

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O depoimento de Pedro Nava colabora com nossa análise no sentido de que ilustra o processo de criação dos personagens de João Alphonsus: recolhe-os do cotidiano, moldando- os às suas convicções. O título do conto também não passa despercebido a um leitor de Machado de Assis. Não só o rótulo é semelhante: a mulher que seduz o protagonista de ―Noite de almirante‖ também se chama Genoveva, explicitando o desejo intertextual do mineiro em relação ao ―padrinho‖ carioca (assim o contista o chama no discurso de agradecimento à homenagem dos intelectuais mineiros, publicado no Minas Gerais de 14/01/1936 (cf. DIAS, 1965, p. 54)). Diferente da prostituta de Zé Inácio, a namorada de Deolindo era jovem, esperta e linda, mas infiel, envolvendo-se com outro na ausência do marujo. Tal como o conselheiro de Alphonsus, o rapaz desiludido se inclina a uma ação (em Machado, o suicídio) que não realiza e, no dia seguinte, mente aos amigos inventando uma noite incrível, ―uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra‖ (ASSIS, s/data, p. 185). A noite de Machado de Assis aponta para a instabilidade humana – o coração de Genoveva muda, a raiva de Deolindo passa –, a de João Alphonsus revela seres permanentemente na sombra.

3.2.4 Animais de estimação

Se nos contos analisados acima presenciamos a morte indesejada do passarinho, em ―Godofredo e a virgem‖ (GC), e dos cavalos, nas batalhas de ―O guerreiro‖ (EN), e uma quase captura, em ―A pesca da baleia‖ (PB), neste subcapítulo nos detemos em outras personagens mudas – e às vezes cegas – que dificilmente chamaremos de irracionais. Como a maioria dos que comentam a obra contística de João Alphonsus, Herman Lima sublinha a profunda humanidade e densidade interior de seus personagens animais:

Suas histórias de animais criaram o gênero entre nós, permanecendo insuperadas até hoje. Ao lado dessas páginas, nas quais o autor verdadeiramente se interioriza nos bichos de sua invenção, há que se assinalar o profundo enternecimento pelas suas personagens, sem o menor risco, no entanto, de sentimentalismo. Há neles, antes, uma angústia cheia de suspiros, uma dorida e permanente indagação, uma torva melancolia (...). (1986, p. 55-56)

O depoimento de Pedro Nava é mais descritivo e abrangente:

Usei antes a palavra ternura como sentimento sempre presente no nosso João e com que ele tratava invariavelmente seus personagens – desde os bons aos torpes – a que ele igualava numa humanidade toda ela merecedora da pena que ele tinha dos bischos. E não me refiro só à sua galinha cega, ao seu burro Mansinho, ao seu gato Sardanapalo – a um tempo verdugo e mártir. Mas aos outros. À bicharada que 111

pulula no seu livro com qualificativos e atributos humanos. Refiro-me aos cavalos que ouviam, aos gambás cantando, aos frangos entoados com cebolas, ao passarinho esmigalhado no seio da virgem pelo arroubo louco de Godofredo, aos grilos que povoam silêncios, aos insetos restituídos à noite por pobre humano — um instante usando a mão de São Francisco de Assis, ao entusiasmo lancinante dos casais de gatos nos quintais, às pulgas a quem se faziam perguntas e que morriam como Marias, às formigas varridas com folhas, papéis e cigarros; aos burros metódicos, aos burros que riam, à barata salva pela vassourinha caridosa, aos pernilongos musicando ao sapo-ferreiro batendo compasso, aos bezerros ―dignos de consideração‖ e capazes de pensamento, ao Mundico que não se sabe se é um galo, um homem ou um homem virando galo, aos percevejos ―de longas barbas multisseculares‖, aos ratos assustados e mais aos leitões, touros, bezerros, cachorros, ratazanas, pavões e borboletas, que compõem a paisagem natural e humana dos livros do nosso João (...). (2003, p. 243-244)

Se o amigo memorialista sublinha a ternura do criador de ―Galinha cega‖ (GC), ―Sardanapalo‖ (PB) e ―Mansinho‖ (EN), acreditamos também que, com eles, João Alphonsus metaforiza, mais uma vez, a precária comunicação humana e a impotência diante da morte. Há no conto mais famoso de Alphonsus, ―Galinha cega‖ (GC), um misto entre suavidade e brutalidade, lirismo e ironia. O sucesso da ―anedota simples‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 12) pode ser explicado graças ao enredo popular e sensível – um carroceiro rude é conquistado por uma galinha cega, que morre deixando-o desconsolado – e à camada textual – linguagem cotidiana repleta de brasileirismos. Os aplausos recebidos na época, especialmente os de Mário de Andrade, repercutem até hoje, haja vista a lista extensa de antologias que republicaram o conto: ainda na década de 1940, consta de Obras-primas do conto brasileiro, organizado por Almiro Rolmes Barbosa e Edgard Cavalheiro, e, na Argentina, da Primera antología de cuentos brasileños, de Braulio Sánchez-Sáez; nas décadas de 1960 e 1970, aparece na Antologia brasileira de literatura, organizada por Afrânio Coutinho, na Antologia escolar brasileira, organizada por Marques Rebelo, na Antologia de contos brasileiros de bichos, organizada por Hélio Pólvora e Cyro de Mattos e no estudo e antologia João Alphonsus: ficção, de João Etienne Filho. Mais contemporaneamente, nas coletâneas Os cem melhores contos brasileiros do século (2000) e O melhor do humor brasileiro (2016), reunidas respectivamente por Italo Moriconi e Flavio Moreira da Costa. Enfim, em livro publicado em Salamanca, em 2014, La literatura brasileña en España. Recepción, contexto cultural y traductografía, Carmen Rivas Máximus trata da recepção do conto. O descritivo parágrafo anterior, não completo, apenas ressalta a importância do texto na vida de Alphonsus, que acabou ficando conhecido como ―autor de um só conto‖ (1965, p. 12) como ele próprio confessa na entrevista ―À deriva‖. 112

A escolha de animais pouco nobres e quase invisíveis na literatura de então, a galinha e o gambá, deve-se tanto à simples observação do autor, uma vez que existiram no terreiro de sua casa, quanto ao interesse por realidades marginais. Explorando as possibilidades conotativas das duas palavras (galinha e gambá) no português brasileiro, aproximamo-nos dos submundos onde continuam sendo empregadas para adjetivar mulheres e homens apartados da sociedade. Na contramão, o narrador enfatiza-lhes a inocência, a beleza e o heroísmo. A frase anuncia o caráter quase fantástico da narrativa – também verificado em ―Sardanapalo‖ (PB) – construído pela personificação dos animais, que não são perfeitos como anunciados e têm certeza de que a liberdade é um bem. Apesar de crescer em humanidade ao longo da narrativa, a galinha não fala, diferentemente do gambá, que encerra o conto cantando (ou trata-se de um devaneio do homem bêbado?). Por isso, o texto não pode ser classificado como uma fábula tradicional, apesar de ter sido publicado recentemente como literatura infantojuvenil (cf. a edição da DCL de 2003). Se os dois animais que desestabilizam o cotidiano perfeito da galinha não existissem, ela seria completamente feliz no novo terreiro, pois lá tinha liberdade e milho. Porém, o galo a ataca para acasalar e lhe mostra ―o lado contrário da vida‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 26), e o gambá, pelo que tudo indica, a mata. A relação dela com o primeiro é ambígua: acha-o elegante e bonito, tanto que sente saudade de seu ―có-có-có malicioso‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 29), mas suas investidas insistentes, repentinas e agressivas – ele a rodeia, a arranha e a violenta – fazem dele um ―sujeito cacete‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 26). Apesar de os olhos ―pretotes‖ anunciarem, na cena inicial, o problema físico da galinha, seu dono apenas o percebe na época em que ela e o galo se relacionam. Ao justapor as duas situações, o narrador insinua conexão entre elas; todavia, o que se comprova é que, ao descobrir ―o lado contrário da vida‖ com o galo, a galinha entra em crise existencial, muito semelhante à enfrentada pelo personagem Ricardo, de ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (GC): ―era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 28). No trecho acima, em que a semântica da escuridão é predominante, chamam atenção também os adjetivos que expressam a situação de fragilidade da galinha. Entretanto, o problema maior não é existir no ―infinitamente preto‖, ―dentro do inexistente‖, ―da sombra do nada‖ – visto que, para Alphonsus, todos nós aí (aqui) vivemos –, a questão é como sobreviver neste mundo improvável; a segurança, a satisfação e a amizade seriam realidades que tornariam possível algo doloroso, a existência. 113

Na contramão das afirmações de Rodrigo Gurgel, que, em artigo do jornal Rascunho, deprecia o primeiro livro de João Alphonsus, chamando-lhe ―Estreia razoável‖, não temos ―dúvida da necessidade e eficácia‖ (GURGEL, 2016, p. 20) dos advérbios empregados no trecho acima citado. Se, para o crítico, a narrativa ―coxeia‖ com a presença desses elementos, que, redundantes e retóricos, desqualificá-la-iam, para nós, longe de serem aleatórios, causam eco significativo, uma vez que reverberam o pensamento da galinha, em queda metafórica (abismo interior): gradativamente ela passa de um lugar ―preto‖, para o ―inexistente‖ e deste para a ―sombra do nada‖. A labiríntica estrutura frasal expressa a angustiante sensação de passar da claridade para as trevas: primeiro, falta-lhe visão e, logo em seguida, a vida. A cegueira como metáfora da limitação humana diante de fatos irremediáveis foi aproveitada por Emílio Moura no desenho abaixo, em que retrata o amigo João Alphonsus sem olho, sugerindo, metaforicamente, que o criador compartilhe angústia experimentada por Branquinha:

Ilustração n.º 3 – Caricatura de João Alphonsus feita por Emílio Moura

A caricatura consta da tese de Domingos Guimaraens (2014, p. 141), fonte de documentos, cartas e fotografias reveladores da trajetória intelectual do autor. Na verdade, João e vários intelectuais das décadas de 1930 e 1940, movimentadas por ideologias radicais que levaram o mundo à guerra, compartilhavam o sentimento de perplexidade diante da conjuntura mundial, e também da nacional. De acordo com Murilo Mendes, no Boletim de Ariel, em 1932, a prosa do mineiro não incendiava revoluções sociais nem superestimava a tecnologia, mas se apresentava

indiretamente um panfleto contra o espírito do século. Ele abandona o plano quinquenal, as paradas de Hitler, as correrias dos gangesters, os meetings dos sem- trabalho, os concursos de Los Angeles e volta-se para os indivíduos que estão sendo postos à margem, acreditando que o sentimento, anarquista como é, jamais nivelará os povos. Continua calmamente a escrever novelas em Belo Horizonte durante a revolução (...). Tem tempo de socorrer uma galinha que bate asas, tonta, sem enxergar – considerando que uma galinha é uma entidade biológica como outra qualquer, com seu código próprio e seus direitos. (MENDES, apud GUIMARAENS, 2014, p. 160)

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O tom de João é mais ácido nos artigos e entrevistas, como em ―Uma hora com o Sr. João Alphonsus‖, de O Jornal, em que trata da relação entre literatura e brasilidade. Em especial, ele discorda que todos os simbolistas e parnasianos sofressem de ―presbitismo intelectual‖. Palavra referente à perturbação da visão que impede que os objetos próximos sejam vistos com nitidez, ―presbitismo‖ era empregada especialmente pelos modernistas para provocar os escritores considerados passadistas, que se dedicariam a

enxergar bem enxergadas as estrangeirices distantes, poetando elas como se estivessem próximas, e ao mesmo tempo deixar de ver as coisas verdadeiramente próximas. Sem mesmo às vezes desconfiar destas. Que nem o estado do sujeito que usasse constantemente, bem colados nos olhos, uns brutos óculos de ver ao longe. Mal comparando. (1927, p. 4)

João defende em especial os simbolistas, porque ―tem muito Brasil neles‖, o que comprova comparando o léxico empregado por Cruz e Sousa com o do modernista Ronald de Carvalho:

Onde está a poesia brasileira? Para mim, no decassílabo cantante do simbolista. No entanto o poema do sr. Ronald de Carvalho é um dos melhores dos Epigramas irônicos e sentimentais, livro de estreia. Mas está muito longe do jeito brasileiro de amar, isso está. Depois, imitar Khayan ou Tagore não será também presbitismo? (...) Mas não é só o sr. Ronald de Carvalho não. Todos que já sofreram do tal presbitismo intelectual, quando se entusiasmam pelo brasileirismo ou pelo americanismo, viraram míopes. Estão vendo demais o que está pertinho deles. Muito otimismo intencional e pouca ou nenhuma sinceridade. (ALPHONSUS, 1927, p. 4)

O contista se posiciona de maneira livre dentro do movimento modernista, ora criticando seus ícones, que, muitas vezes se comportavam como ―galinhas cegas‖, dentro do cenário artístico brasileiro, ora elogiando-lhes a linguagem modernista e a nacionalização dos temas (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 13). A escolha da frase ―Todo gambá é pau-d´água‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 31) como epígrafe do conto em sua primeira aparição, na revista Terra Roxa e Outras Terras, em 1926, ilustra bem a prática de João, pautada nos ideais do movimento. O dono da galinha, depois de encontrá-la morta no terreiro, prepara uma armadilha para o assassino, a quem embebedaria e, em seguida, mataria ―De-va-ga-ri-nho. GOSTOSAMENTE‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 31). O trecho explicita também o aproveitamento modernista da forma do texto: a separação silábica mimetiza a velocidade do extermínio premeditado, e as letras em caixa alta sugerem satisfação vingativa. Outras estratégias são empregadas na caracterização dos personagens: a sufixação inusitada injeta afetividade (Cf. DIAS, 1965, p. 91) e certo humor na adjetivação da galinha ―gordota‖ de olhos ―pretotes‖; a metonímia e metáfora sugerem a personalidade do vendedor de ―bigode ríspido‖ e ―pregão molengo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 25), respectivamente. 115

A mirada do narrador em relação aos bichos é mais amistosa do que em relação aos seres humanos: o vendedor de galinhas é sujo e mentiroso, o carroceiro é um ―bruto homem de barbas brancas‖ (trecho que aproveita a aliteração do b e r para sugerir agressividade), sua mulher é insensível, as crianças são malvadas. Todavia, traços mais suaves também são descritos: o vendedor é flexível negociante, o carroceiro pede desculpa à mulher por chamá-la de ―besta‖, confessando ser ele mesmo um, e gosta dos animais; Inácia é inaudível e vive em ―eterno descontentamento escondido nas rugas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 25); as crianças chutam a galinha, mas não muito forte... Dessa maneira, João distancia-se de uma construção dicotômica e aposta numa configuração mais moderna dos personagens, que representam a humanidade incontornável, tão paradoxal quanto a vida. Radicalmente difícil é a interação humana, mantida por raros diálogos curtos que evidenciam interlocutores em confronto. O carroceiro e o vendedor de galinha dificilmente chegam a um acordo, o carroceiro e sua mulher pouco se entendem: diante da morte de seu animal de estimação, ele suspeita de Inácia, xinga e bate nela. Na rua, agride as crianças que faziam da galinha uma bola. Já os parágrafos que tratam das dores e ânsias da galinha são longos e complexos. É evidente sua humanização gradual: na página inicial, ela passa de objeto mercantil a animal doméstico; na seguinte, revela suas impressões inocentes do mundo; depois, as relações que mantém com o galo a marcam existencialmente; em seguida, recebe o nome de ―branquinha‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 27) (além dela, só Inácia é nomeada no texto); enfim, torna-se mensageira divina: a água que espalha ao beber toca o rosto do carroceiro ―como uma bênção para ele. Como a água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 28). Branquinha morre como ―mártir‖, palavra empregada pelo narrador no início do conto para metaforizar o sofrimento dos frangos. A interação entre homem e animal, que prescinde de mediação linguística, cresce em afeto e respeito: Branquinha fascina o carroceiro, que também será conquistado pelo gambá. Os olhos dos envolvidos na tragédia revelam metonimicamente o envolvimento deles na trama: ao perceber a cegueira da galinha, dos olhos do carroceiro ―raiados de sangue (...) boiavam duas lágrimas enormes‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 28), já ―os olhos espertos e inocentes‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 31) do gambá rindo depois de beber a cachaça transforma o desejo de vingança do homem em simpatia. A cena cômica permite até a intromissão explícita do narrador, que, entre parênteses, se diverte com o barulho do gambá bêbado (―kiss! kiss! kiss!‖): ―(Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. 116

Mas não era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas por exemplo. Bêbado).‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 31). Protagonista e narrador se revelam complexos. O carroceiro sofre com a doença de Branquinha – amenizando-a ao dispensar-lhe atenção paternal – e com sua morte: indispõe-se violentamente com as pessoas e prepara uma vingança; por fim, brinca com o gambá ―assassino‖. Por sua vez, o narrador se aproxima dos sofrimentos de Branquinha, descrevendo-a piedosamente, mas, em seguida, ironiza a dor do carroceiro, desestabilizando, de vez, uma possível moral da história. Para Ivan Marques, ―essa ironia compassiva indica que, na perspectiva de João Alphonsus, os impulsos aparentemente contraditórios da piedade e da crueldade se fundem‖ (2011, p. 173). Tal conclusão torna-se mais acertada quando o narrador irônico transfere a culpa da morte de Branquinha para o luar esplêndido, ―que favorece os surtos de raposas e gambás nos galinheiros‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 31), justificando, assim, o surpreendente entrosamento entre homem e gambá na cena final. A morte de Branquinha não teria sido provocada pela doença dos olhos, nem pelos ataques do galo, nem pela crise existencial, nem por Inácia, nem pelas crianças, nem pelo gambá, mas, sim, pelo luar. A possível ―culpa‖ dos bichos ou dos seres humanos é descartada definitivamente com a conclusão indiscutível de que todos são imbecis:

O gambá (...) parou olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o bichinho e começou a cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana: - A lua como um balão balança! A lua como um balão balança! A lua como um bal... E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira. (ALPHONSUS, 1976a, p. 31- 32)

A última frase do conto, aparentemente aleatória, concentra a acidez da vida, até o fim sarcástica: o assassino dorme bêbado no lugar onde a vítima descansava. O desequilíbrio do gambá metaforiza as tentativas humanas frustradas de felicidade, como explica Ivan Marques:

A tragédia narrada no conto ―Galinha cega‖ é uma espécie de figuração humilde das trevas de um mundo inexplicável. A visão dos homens como autômatos e da vida como espetáculo absurdo não se apoia em abstrações filosóficas. A miséria universal é feita de ―miseriazinhas‖, sofridas ingenuamente por seres minúsculos, que vivem e morrem solitários, sem o consolo de uma explicação. (2011, p. 172)

A relação de causalidade construída até a metade do conto – a cegueira e o ataque do galo provocaram a crise existencial de Branquinha, protegida incansavelmente pelo carroceiro – não condiz com a solução final: a morte não é vingada devido à simpatia repentina do carroceiro em relação ao gambá. O desfecho do conto se desvincula do ―efeito de sentido‖, 117

contrariando esquema imprescindível para a produção eficaz do gênero, de acordo com Edgar Allan Poe, a quem João Alphonsus homenageia em ―Sardanapalo‖ (EN). As relações de causa-consequência, tão necessárias para os ficcionistas das décadas anteriores, são pouco visíveis nos contos do mineiro; a quebra da causalidade no enredo é uma das principais características da prosa modernista, explicitando que mais importantes do que a lógica no encadeamento dos fatos são os personagens e suas inquietudes, espelhos da ilogicidade do mundo. A estrutura que indicaria má costura dos acontecimentos é, no entanto, chave-mestra da narrativa tragicômica. João Alphonsus funde tema e forma literária para tratar do ―absurdo‖ da vida, ideia amplamente divulgada por Soren Kierkegaard (1813-1855), forte influenciador da estética romântico-simbolista, que, em O desespero humano (1849), afirma que, nas situações críticas da vida, quando regras gerais e universais não podem ajudar o indivíduo, este faz escolhas independentemente de critérios racionais (cf. 1988, p. 228). As atitudes de vários personagens de João Alphonsus confirmam a hipótese do filósofo dinamarquês. De maneira semelhante, na narrativa que abre o primeiro ―Manifesto Futurista‖ (1909), oráculos desconfiam da lógica, por meio da qual pensam o mundo: ―– Saiamos da Sabedoria como de uma ganga horrenda e entremos, como frutos apimentados de orgulho, na boca imensa e torta do vento!... Demo-nos de comer ao Desconhecido, não por desespero, mas simplesmente para enriquecer os insondáveis reservatórios do Absurdo!‖ (MARINETTI, apud TELLES, 1972, p. 65). A atitude vanguardista justifica a linguagem violenta de um dos movimentos artísticos mais controversos da história. O próprio João Alphonsus declarou, algumas vezes, aversão a Marinetti devido ao apoio do italiano à guerra, ―higiene do mundo‖, e às ideologias nazifascistas da primeira metade do século XX, chamando-o de ―bandido‖ (ALPHONSUS, apud CAVALHEIRO, 1944, p. 142). Apesar das muitas ressalvas do mineiro em relação ao italiano, sua obra também sinaliza a falência da racionalidade. Não à toa, o brasileiro seleciona como protagonistas do seu conto ―absurdo‖ um homem ignorante e uma galinha cega. O riso amargurado de João Alphonsus diante da vida é mais semelhante ao do carroceiro, resignado à amargura, do que ao do gambá, salvo fortuitamente. Também um personagem da narrativa iconoclasta de Marinetti titubeia diante de ―dois raciocínios persuasivos e portanto contraditórios‖, agindo galhofeiramente: ―me lancei – zás traz! – de cabeça para baixo, numa valeta...‖ (MARINETTI, apud TELLES, 1972, p. 65-66). 118

Nesse sentido, o guia paulista dos modernistas, em crônica publicada na revista belorizontina Mensagem, justifica a marcante presença de animais na prosa de João Alphonsus não pelo provável amor que o amigo teria para com os animais (como afirmou Pedro Nava), ―esse amor que faz atribuir aos bichos psicologias humanas por demais‖ (ANDRADE, apud DIAS, 1965, p. 41), mas, sim, para reverenciar o irracionalismo. Se a lógica, de acordo com os acontecimentos históricos, não encaminhou a humanidade à luz, é plausível supor que outros mecanismos possam ajudar nessa difícil empresa. O narrador de ―Galinha cega‖ desmascara qualquer pretensa certeza a respeito da vida, denunciando a cegueira da humanidade, pois Branquinha parece ver (entender) melhor do que os videntes (humanos), bem porque apresenta mais humanidade (nome e sensibilidade) do que os outros personagens. Nesse sentido, Branquinha é cega, mas ilumina. Como a presença de uma galinha faz florescer sentimentos passionais em um carroceiro, as atitudes de um gato afetam profundamente um estudante, no conto ―Sardanapalo‖ (EN), tanto que ele sente necessidade de escrever, tempos depois, suas ainda constantes inquietações, causadas pela lembrança de certa noite, em que o gato mata um rato, e ele mata Sardanapalo, seu animal de estimação. O narrador recorda a juventude, quando era sonhador e amante das letras em Ouro Preto, cidade de rica história, cujos percevejos têm ―longas barbas multisseculares! Velha cidade que se conserva sempre a mesma, dentro deste século onde tudo mudou‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 119), cujos ratos possuiriam ancestralidade requintada e teriam presenciado acontecimentos históricos fabulosos, como a Inconfidência. Assim apresentados, os animais secundários preparam o leitor para fatos interessantes, talvez misteriosos, presenciados pelo narrador na vetusta capital mineira. Por influência de escritores também enigmáticos, como Edgar Allan Poe, Baudelaire e outros ―vates franceses, de suas elegâncias exquises, com pulgas...‖, o narrador adquire um gato preto, ―bem alimentado, preguiçoso e inútil, a que batizara pomposamente, parnasianamente, de Sardanapalo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 119). O bicho recebe nome do último rei da Assíria, que, segundo história lendária e trágica, ostentava prazer e ócio, usava maquiagem e roupas femininas e relacionava-se sexualmente com homens e mulheres, tendo se suicidado exterminando o que tinha numa pira de fogo. Assim, o nome dado apenas pela indolência natural do bichano ganha novos sentidos quando o gato, incitado pelo dono, age de maneira condizente com o significado sombrio de ―Sardanapalo‖. Dialogando temática e estilisticamente com o célebre conto ―O gato preto‖, de Edgar Allan Poe, o narrador de João Alphonsus permeia o texto com pistas do desfecho da 119

―tenebrosa‖ história, que se transforma em ―mancha negra‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 119) na sua vida, criando curiosidade. Há várias semelhanças entre os contos: donos arrependidos narram o mal que fizeram a seus gatos domésticos, bichos de comportamento estranho, a um interlocutor convocado recorrentemente no texto. Entretanto, o enredo romântico e dramático da narrativa norte-americana se diferencia muito do apresentado pelo brasileiro, modernista e tragicômico. Além disso, em comparação com o longo conto de Poe, o de João é curto e disposto em um único parágrafo, como se o narrador, velho e modesto farmacêutico, ainda se sentisse angustiado pelo que ocorrera quando era ―poeta estudantil‖ e confessasse seu ―pecado‖ num fôlego só. Por fim, há elementos fantásticos na narrativa de Poe, ausentes na de João. O narrador de ―Sardanapalo‖ justifica o crescente descontentamento com o felino gordo e desocupado, pois o gato não afugentava os ratos que destruíam seus livros, acreditando-se provido de uma ―condição especial de gato de poeta‖. No início, o dono perdoa-lhe a ociosidade e até lhe dedica um soneto alexandrino. Entretanto, a paciência se esgota certa noite em que roedores devoram algumas páginas, o que faz com que o estudante, para dar uma lição em Sardanapalo, que precisava aprender a ser gato, diminua sua ração. Todavia, o resultado foi pior do que o esperado, porque o gato escapa da fome comendo os livros do dono. Naquela noite, tendo chegado da boemia, ao invés de carne, o rapaz joga para Sardanapalo restos de pão, o que detona o início do fim, ou seja, o clímax da história. O gato repentinamente captura um rato, mas, contrariando o dono que observa tudo, não o devora de vez, passa minutos desesperando a presa, deixando-a, repetidas vezes, correr e pegando-a de novo até exauri-la. O jogo instintivo e mortal é contemplado prazerosamente pelo jovem poeta que se mostra tão cruel quanto seu gato:

Dentro de alguns minutos, só existíamos no mundo, no universo, no espaço e no tempo, eu, o gato e o rato. (...) Parecia mesmo brincadeira, mas nós três sabíamos que não era. O meu gato cumpria fielmente o imperativo tradicional de raça contra raça, ou de espécie contra espécie, com todo o abuso da superioridade física, da supremacia do tamanho e da agilidade. (ALPHONSUS, 1976a, p. 121-122)

Como se estivesse encantado, ou anestesiado, o estudante de farmácia fica olhando ―crueldades impregnadas de elegância e de gentileza‖, sentindo-se orgulhoso e ―partícipe indireto mas voluntário daquele suplício que não acabava nunca!...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 122). Para explicar a tortura, o narrador se refere ao conto ―O suplício da esperança‖, do simbolista francês Auguste Villiers de L‘Isle Adam (1838-1889), em que um inquisidor deixa seu prisioneiro fugir da cela para o recapturar na iminência de sua saída da fortaleza. Dessa maneira, ilustra o prazer sádico de presenciar a alegria de alguém que escapa da morte e 120

conscientemente condená-la de novo à fatalidade. Como não existe a possibilidade de matar mais de uma vez o mesmo ser, este é aprisionado a um ciclo mórbido de repetidas condenações e salvações. Ao mesmo tempo em que se intensifica a dor do suplicante, também se estende o prazer do carrasco: ―E eu sentado na cama acompanhando-as [as perseguições], empregando nervos e músculos em repetir até certo ponto aquelas diversões, gato eu mesmo, sim gato eu mesmo, não ria!‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 123). Contudo, o sofrimento do rato não é como o de Sísifo, pois o gato, depois de incontáveis investidas, o devora, demonstrando satisfação pela missão cumprida. O dono só percebe a ―crueldade gratuita, uma intoxicação estranha e única de perversidade‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 124) quando Sardanapalo vem brincar com ele; em resposta, tão subitamente quanto fora o ataque do gato ao rato, o narrador ataca Sardanapalo, esmagando- lhe a cabeça e jogando-o pela janela: ―Lá embaixo, ainda se movia, se arrastava. Desapareceu entre as folhas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 125). Tal como Galinha cega, A pesca da baleia é encerrado com a saudação ―LAUS DEO‖, novamente irônica ao concluir história tão macabra, em que um gato ―possesso! Sim, é a palavra: um possesso! (...) com uma certa volúpia demoníaca‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 124) tortura e mata um rato, morto posteriormente pelo dono. Acertadamente, Darlene Sadlier, que traduziu este conto para a Latin American Literary Review, em 1989, percebe, no artigo ―Porque o narrador de ‗Sardanapalo‘ tem medo de gatos‖, ao comparar trechos de ―Sardanapalo‖ e de ―O gato preto‖, que até a escolha lexical do contista brasileiro foi influenciada pela do norte-americano, o que as palavras grifadas por nós no excerto a seguir revelam quando cotejadas com os trechos já citados:

A fúria do demônio se apossou de mim. Não mais me conheci. Minha alma primeira parecia, na hora, fugir de meu corpo; malevolência mais que demoníaca (...). E então surgiu, como se fosse para minha derrota final e irrevogável, o espírito de perversidade. Deste espírito, a filosofia não trata. Contudo, não tenho maior certeza da existência de minha alma do que tenho de que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano... (POE apud SADLIER, 1984, p. 69-70, grifo nosso)

Embora as palavras destacadas no texto de Poe caracterizem o homem, enquanto descrevem, no de Alphonsus, o gato – revelando o narrador daquele mais consciente de seus erros do que o deste, bem porque sua maldade o levou a matar a esposa e esconder o corpo numa parede da casa –, discordamos da afirmação da professora norte-americana de que o farmacêutico, mesmo depois de anos decorridos, não compreende os fatos da juventude (cf. SADLIER, 1984, p. 57). Apesar de transferir grande parte da culpa para o gato, o narrador de ―Sardanapalo‖ se mostra ciente, em alguma medida, da própria perversidade ao identificar-se 121

com o animal (―gato eu mesmo, sim gato eu mesmo, não ria!‖) e da gravidade de tal consideração, daí pedir recorrentemente ao ouvinte/leitor que não sorria da história. Por sinal, o conto termina tragicamente, sem sorrisos, diferentemente dos desfechos anedóticos de Galinha cega. O julgamento irracional do dono de Sardanapalo – um animal privado de razão não pode ser considerado moralmente mau, pois age apenas por instinto – condena-o: não é o gato que está possuído por forças malignas, mas o ser humano, constituído por elementos aparentemente díspares: o jovem poeta sensível também é capaz de atrocidades. O que traumatiza o farmacêutico não é o que acontece entre o gato e o rato, mas o que a perseguição reverbera nele, homem racional, porém cruel; torturando o gato, ele extravasa seu descontentamento consigo mesmo, com sua ―humanidade‖. Já em ―Mansinho‖ (EN), temos uma relação pacífica e amistosa entre animal e homem. O nome do burro responsável pelo drama religioso vivido pelo padre Manuel Carlos intitula o conto. É afeto e não rebeldia institucional o que move o protagonista a sepultar o companheiro de peregrinações com liturgia reservada aos humanos segundo orientações da doutrina católica. Diferentemente de ―Eis a noite!‖, conto que o antecede no livro de 1943, neste as convenções não impedem a concretização do desejo humano, embora causem constrangimento moral e pesem na consciência do religioso. O último texto de João Alphonsus analisado nesta tese é um dos únicos do contista que, apesar da tristeza decorrida da morte do ser querido, terminam com mensagem otimista, visto que o sentimento dedicado a Mansinho é transferido a Estrelado, novo burro que confirma a amizade gratificante entre homem e animal. O narrador de terceira pessoa começa in media res, tornando excêntrica a reação do padre, que sente uma ―suspensão de toda a vida‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 137) ao ser avisado da morte do burro usado como meio de locomoção no interior pobre. O prejuízo financeiro não justifica o atordoamento de Manuel Carlos, que não era materialista, pelo contrário, sempre dividia o pouco que tinha, e, sim, o abalo emocional causado pela perda de um amigo. Contrariando a compreensão comum de que burros são apenas animais de serviço em geral incompetentes, o religioso trata Mansinho como animal doméstico. Todos se espantam com a atitude do vigário idoso, que percorre grande distância a pé, sol quente e estrada seca, para encontrar e enterrar o burro; alguns se escandalizam, como o fazendeiro a quem o padre pede ajuda, que ―sentia uma repugnância estranha em ter que enterrar um burro numa cova igual aos homens‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 141). 122

A atitude é justificada pelo narrador, por meio do discurso indireto livre, que capta a opinião do protagonista: ―era forte e manso. Mansinho: diminutivo que não vinha do seu corpo, mas da sua tranquilidade perfeita. E inteligente, compreensivo, quase humano...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 138). O pensamento do homem Manuel Carlos em relação ao ―amigo dedicado e resignado‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 138) é combatido pelo padre Manuel Carlos, para quem era pecado tratar animais como se fossem homens:

os olhos do asinino o fitavam gratos e compassivos, a ele padre que acabava de lhe explorar as forças através de caminhos longos, duros, acidentados! Havia uma luz de consciência no fundo daqueles olhos? Não havia coisa nenhuma! gritava no seu íntimo a reação contra essa fraqueza, e o vigário se afastava (...) logo se arrependia... (ALPHONSUS, 1976a, p. 138)

A maior parte do conto explora a luta interior entre razão e sentimento: ―Seria mesmo uma impulsão do demônio? Ou de Deus, de um Deus de todas as criaturas, de todas as almas, mais racionais, menos racionais, igualmente dignas de dó e de misericórdia?‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 142). Por meio de flashback, o narrador revela outras ações controversas do padre, segundo o ponto de vista católico da época, como recorrer a um curandeiro e ―suas artes endemoninhadas‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 139) para tratar do burro certa vez gravemente abatido. Para lidar com a situação contraditória, Manuel Carlos convencera-se de que a benzedura era ―uma espécie de anestesia regional‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 139). Assim, o padre é descrito como alguém que enfrenta as contradições da vida, optando sempre pelo benefício do próximo, embora suas escolhas sejam reprovadas e lhe tragam angústia interior. Muito presente nos povoados, Manuel Carlos não ajudava apenas espiritualmente

a gente paupérrima que fazia questão de morrer de noite como por pudor, como para ocultar o exagero apoteótico de miséria dos últimos instantes, nas palhoças infectas. (...) O pouco dinheiro que podia distribuir não o livrava de voltar para casa de alma alanceada pelo que vinha de presenciar. (ALPHONSUS, 1976a, p. 139-140)

Era a Mansinho que fazia confidências do tipo ―Quanta miséria no mundo‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 140), tentando se desafogar dos dramas humanos assistidos – mesma exclamação de Madalena em ―Eis a noite!‖ (EN). Ocupado com o enterro de Mansinho, o padre falta as atividades religiosas e conclui que fora impulsionado pelo demônio. Depois de pedir perdão a Deus, dispensa nova montaria, o que lhe traz muitas dificuldades devido às estradas e às distâncias. Depois de cinco meses de economia, surge uma boa chance – o mesmo fazendeiro que reclamara do enterro de Mansinho queria se livrar de certo burro que sempre empacava e o derrubava –, e o padre 123

compra Estrelado, a quem recebeu com ―um coração de menino pulando no peito‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 144). Em pouco tempo, o animal é domado: quando empacava, pacientemente Manuel Carlos recitava orações do livro que sempre carregava e, ―milagrosamente‖, Estrelado caminhava. No dia em que fazia um ano da morte do burro querido, o padre troca o nome dos animais, chamando Estrelado de Mansinho; por sua vez, o narrador repete a descrição sinestésica que abre o conto, sugerindo início de novo ciclo. Dirigindo-se à região em que rezaria uma missa festiva, o padre lembra que ali perto Mansinho havia morrido e fica tentado: ―aquela aflição, forte para atormentá-lo, fraca para fazê-lo sair dali, daquele pecado em que rodava sem rumo como num círculo de suplício diabólico...‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 147). Decide, então, soltar as rédeas para que Estrelado descobrisse o lugar onde o antecessor estava enterrado. Emocionado com a concretização de mais um desejo seu, o padre muda de opinião: Estrelado encontrou o sepulcro de Mansinho graças à vontade divina. No instante seguinte, o novo burro empaca, e Manuel Carlos não está com o livro de orações para resolver o problema. E a narrativa termina em tom misterioso: ao ouvir a expressão ―meu amigo‖, Estrelado anda. A última frase é emblemática: ―Estrelado nunca mais empacou‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 148). A humanidade conferida a Mansinho e a Estrelado é muito semelhante à de Branquinha, como a de Sardanapalo é parecida com a do gambá de ―Galinha cega‖. O alvo de João Alphonsus, ao criar esses personagens animais, é a problemática condição humana. Os animais, diferentemente dos homens, revelam solidariedade, compaixão, amizade, ou seja, protagonizam, efetivamente, atitudes humanas.

3.3 TENDÊNCIAS FORMAIS DA CONTÍSTICA DE JOÃO ALPHONSUS

O estudo das estratégias formais recorrentes na prosa curta de João Alphonsus vale tanto para o conhecimento das técnicas empregadas na ficção modernista – visto que as da poesia da época são continuamente pesquisadas – quanto para a constatação de que seus textos são um amálgama de várias influências, nacionais e estrangeiras, que datam do romantismo até as vanguardas do início do século XX. Nesse sentido, concordamos com as declarações enfeixadas pelo quinzenário Mensagem, em 1944, quando João Etienne era o redator e José Carlos Lisboa, o diretor, que atribuem a Alphonsus o rótulo de ―contista moderno‖. Por sua vez, Wilson Castelo Branco declarou que João foi o ―primeiro romancista 124

moderno de Minas‖ (apud MARQUES, 2011, p. 158), e Vinícius de Moraes, que descobriu o moderno, na poesia, com Murilo Mendes e, na prosa, com os contos de Galinha cega (cf. DIAS, 1965, p. 94). Os fenômenos tratados nesta seção foram esparsamente aludidos na anterior; entendemos ser proveitoso arrolá-los em separado para que nossas conclusões sobre a contística de João Alphonsus fiquem claras. Dessa maneira, tentamos preencher uma lacuna existente na fortuna crítica do autor, que conta com excelente análise sociológica (a de Fernando Correia Dias), mas apenas inspirou, até agora, ensaios curtos sobre procedimentos propriamente literários (Ivan Marques e Darlene Sadlier). Assim, passamos a sistematizar os aspectos formais mais recorrentes e significativos, sintetizando-os, uma vez que já foram assinalados: o emprego de recursos provenientes de diferentes estéticas; a seleção de personagens jovens; a economia textual, percebida na extensão das frases; o fomento da ―língua brasileira‖; a quebra da causalidade e a adoção da anedota final. Como observamos, a depender do enredo de cada conto, João Alphonsus selecionava estratégias formais que colaborassem para o efeito pretendido. Por exemplo, no mesmo Galinha cega, temos textos esteticamente distintos: o conto homônimo, que abre o livro, é feito de frases curtas, ritmo veloz, tom tragicômico – estrutura ao gosto modernista – para tratar do ser humano paradoxal, que não consegue se comunicar com os semelhantes, contudo ama um animal, e que, impotente diante da morte, sorri dela; entretanto, traços impressionistas são percebidos quando o narrador revela a angústia de Branquinha. Já o derradeiro conto do livro ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ é extensa narrativa, repleta de digressões, feitas de frases longas, sem clímax, mais semelhante às estruturas impressionistas (ou romântico-simbolistas), uma vez que a ação se esvai em prol das reflexões metalinguísticas e existenciais de Ricardo; todavia, traços modernistas são percebidos, em especial pelo emprego de neologismos e pela estrutura às vezes sincopada. Nesse sentido, a tentativa de enquadramento dos contos de João Alphonsus em apenas uma estética, em geral, não é muito produtiva. João Etienne acerta ao aproximá-los aos dos modernistas Alcântara Machado, Mário de Andrade, Aníbal Machado e Marques Rebelo (o crítico percebe ―certa familiaridade intelectual‖ entre eles), entretanto não explica por que seus contos não devem ser associados aos de Maupassant, Tcheckov, Mansfield, Lobato ou Machado (cf. ETIENNE FILHO, 1971, p. 11). Já Fernando Dias confirma a influência francesa e simbolista, além do contato com afrodescendentes das velhas cidades mineiras e da leitura dos clássicos brasileiros, como Machado de Assis e Lima Barreto, e dos 125

contemporâneos Monteiro Lobato, Graça Aranha e Mário de Andrade (Cf. DIAS, 1965, p. 81). Não só porque sentisse pelo pai profunda afeição que João Alphonsus dedica-lhe Galinha cega (1931): percebem-se nos contos atmosfera neossimbolista, além de numerosas alusões a escritores simbolistas franceses. Em entrevista, João declara ―amor à França, fonte inspiradora, mesmo quando não criadora, e sim intermediária como no romantismo – fonte de todas as nossas correntes literárias, até o chamado modernismo‖; diz acreditar na ―ressurreição da França‖, que sairia da guerra ―purificada pelo sofrimento‖ (1965, p. 8). A paixão irrestrita, provocada pelas inúmeras leituras, tanto as recomendadas pelo pai quanto as indicadas pelos amigos modernistas, apurou-se pelas notícias da guerra. Em ensaio, o contista revela que, quando se muda para Belo Horizonte, ainda adolescente, era fascinado pelos versos de La règne du silence (1891), do belga simbolista Georges Rodenbach (1855-1898), que o havia convencido, em Bruges-la-morte (1892),

de que Bruges era mesmo uma cidade morta. Mortíssima, não tinha dúvida. Eu vinha de Mariana, que celebrara num soneto com esta chave de ouro frouxíssima: ―Bruges-la-Morte‖ sem caraes nem ―beffrois‖... Pois, subindo as escadas da secretaria das finanças, vi no primeiro degrau a marca dos fabricantes das ditas escadas: ―Societé des Acieries de Bruges-Belgique‖. Uma decepção bem dolorosa... (1927, p. 4)

Uma vez na capital mineira, o rapaz percebe que não era tão verdadeira a ideia que seduzira seu espírito na época, de que a cidade de seus devaneios literários estava morta; na verdade, a longínqua Bruges estava bem viva nas recentes construções urbanas, graças à intensa fabricação industrial e ao impulso exportador. Aludimos ao trecho, porque percebemos nele alguns alicerces da produção literária de João Alphonsus: primeiro, a partir da convivência em Belo Horizonte com outras estéticas, sua admiração pelo simbolismo cede à nova paixão modernista (mesmo que elas convivam sempre); segundo, as cidades mortas não podem ser menosprezadas. Sua produção ficcional se afasta da esperança metafísica, mas cultiva a atmosfera noturna e a linguagem caudalosa em alguns trechos de viés existencialista. Os contos de João Alphonsus documentam especificidades espaciais, ao gosto de Manuel Antônio de Almeida, investem psicológica e ironicamente nos personagens, ao estilo de Machado de Assis, descrevem situações de maneira esfumaçada, como fez Anton Tchecov, ―incidindo mais nos processos mentais do que na representação da realidade exterior‖ (LUCAS, 1989, p. 92). 126

Os temas essenciais de João Alphonsus ganham forma variada e mesclada, impossibilitando uma categorização fechada de sua obra contística. Se ela recebeu o rótulo de ―modernista‖, isso se deveu à situação sociocultural da época: para os jovens mineiros que se reuniam no bar Estrela era importante tal posicionamento para que suas propostas artísticas ganhassem espaço. Um dos objetivos mais importantes do grupo belorizontino era a diversificação temática e estrutural na abordagem do cotidiano, visando à expressão de uma identidade nacional, ou, nas palavras do próprio João Alphonsus, ―escrever brasileiramente sobre assuntos brasileiros‖ (1965, p. 13). Para representar essas questões, o escritor seleciona protagonistas predominantemente jovens, entediados pela rotina provinciana ou desajustados pela constatação do absurdo da vida. A maioria são rapazes doentes, solitários e delirantes, mas também sensíveis, afeitos à literatura, trabalhadores, reflexivos, humanizados. As personagens femininas mereciam um estudo à parte, uma vez que Alphonsus investe em estereótipos: a mãe religiosa, a virgem ansiosa, a prostituta sofrida, a esposa fiel; em comum, elas não desfrutam o potencial sexual muito menos os prazeres carnais. Epíteto mais comum a João Alphonsus na época, como também aos rapazes guiados por ―instintos libertos do controle da razão‖, nas palavras de Delorizano Morais (apud WERNECK, 1992, p. 44), foi o de ―futurista‖, especialmente pela estrutura formal de seus textos, em especial pela escrita econômica articulada com frases nominais, conhecida por ―estilo picadinho‖ (DIAS, 1965, p. 86), e pela inserção de neologismos e de brasileirismos. O historiador Mário de Lima, em ―Letras mineiras‖ (1929), aproxima os ―futuristas‖ mineiros aos ―primitivistas‖, referindo-se a uma das tendências modernistas elencada por Tristão de Athayde na época (para quem havia o ―dinamismo‖ e o ―primitivismo‖) (apud DIAS, 1971, p. 71-72). O envolvimento de João Alphonsus com a discussão sobre a necessidade da afirmação de uma língua brasileira como passo para a autonomia nacional (cf. ―Língua brasileira‖, publicado no Diário de Minas, Belo Horizonte, n.º 5, 31/10/1926, p. 1) contribuiu decisivamente para a configuração de seu estilo. Ivan Marques sublinha ―as incorreções gramaticais, os pronomes oblíquos, os brasileirismos e tudo mais que permitia recriar a oralidade viva da língua‖, o que fez com que Mário de Andrade incluísse Alphonsus entre os ―estilistas da nossa prosa despachada‖ (cf. MARQUES, 2011, p. 169). Tempos depois, em carta a Manuel Bandeira, datada de 07/11/1941, o contista revela irritação sobre certa recusa da Revista Brasileira, convencido de que o conto enviado havia sido ―rejeitado por causa dos 127

erros de vernáculo: modéstia à parte, quanto ao valor intrínseco, ali se têm publicado coisas piores...‖ (ALPHONSUS, 1955b, p. 21). Vários críticos sublinharam o ―estilo conciso, penetrante e pitoresco, ‗en pointe‘‖ (ATHAYDE, apud DIAS, 1965, p. 25) de Alphonsus. Massaud Moisés também sublinha a concisão dos contos,

seja no tocante aos rasgos de estilo, seja no assunto que por seu intermédio se veicula: o escritor mineiro é mestre no detectar o instante fugaz em que uma vida se cumpre e se define, e em traduzi-lo em breves palavras. Esse poder de condensação é tanto mais digno de nota quanto mais nos recordamos do derramamento verbal de alguns contemporâneos do autor. (1989, p. 257)

Embora Lima ressalte que não há ―qualquer extravagância de escola‖ (1986, p. 55) em João Alphonsus, na década de 1940, o escritor confessa a Edgard Cavalheiro ter exagerado ao imitar a linguagem de Mário de Andrade, mesmo que não se arrependesse disso (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 13). Sem dúvida, o autor de Belasarte (publicado nos jornais em 1924) e Primeiro andar (1926) foi o baluarte de uma geração de contistas, que, segundo Cavalheiro, repetia-lhe a linguagem ―descabelada‖ (1954, p. 38). Também Mário de Lima, que inclui João na lista dos iniciadores do ―movimento futurista mineiro‖, em Letras mineiras (1929), critica os modernistas que desmoralizam a nova estética ―pelo infantilismo das concepções e pela absurda estilização do cassange, com que pretendem estar servindo a causa da nacionalização da língua portuguesa entre nós‖ (apud DIAS, 1971, p. 73). Todavia, Cavalheiro também elogia os contos modernistas – sintéticos, bem- humorados e audaciosos – devido a sua língua viva, bem mais próxima da falada do que a aferível nos antecessores (cf. 1954, p. 37). Quando compara os contos de Alphonsus aos de Alcântara Machado, afirma que estes ganham em ―esquematismo‖, enquanto os daquele vencem em ―densidade‖. João teria a vantagem de ter se despojado ―dos cacoetes próprios do modernismo, para se tornar, no fim da vida, um dos nossos mais claros e puros estilistas‖ (1954, p. 42-43). A opinião também é de Rui Mourão, para quem João foi se libertando, ―por esforço pessoal, do espírito grupal do modernismo – e seus cacoetes‖ (apud DIAS, 1965, p. 85). Os comentários sobre o vocabulário empregado por Alphonsus são válidos, uma vez que Galinha cega apresenta mais experimentações linguísticas do que Eis a noite!. Talvez por isso, na década de 1940, ele se refira ao modernismo como evento passado (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 8). Entretanto, para nós, isso não significa melhora ou piora na qualidade dos textos, mas, sim, uma busca contínua pela expressão mais contundente em relação aos temas escolhidos, determinada também pelo contexto histórico – o que explica por 128

que, no último livro, publicado durante a guerra, o autor tenha desistido da anedota final nos contos, sobre a qual trataremos a seguir. Alicerçada em tal diversidade, a produção ficcional de João resultou singular, o que lhe angariou críticas positivas, como a de Carlos Castelo Branco, em artigo publicado no Diário de Minas, em 1951, ―João Alphonsus, o inovador do conto‖ (cf. DIAS, 1965, p. 29). A novidade do autor seria seus ―contos não episódicos, não contendo necessariamente um começo, um meio e um fim. As inovações técnicas – para a época em que viveu –, juntamente com a renovação da linguagem, garantem-lhe lugar de destaque na galeria dos contistas‖ (DIAS, 1965, p. 29). De acordo com Ivan Marques, o ―ardor anticlássico‖ de João Alphonsus teria o feito menos ―mineiro‖ e mais modernista do que os outros rapazes do grupo do Estrela (2011, p. 158). A partir da década de 1920, os contos que fugiam à ―velha técnica – um princípio, a história e o fecho de ouro‖ – e tratavam de assuntos cotidianos – valorizando o insignificante, segundo Tristão de Athayde – eram chamados de ―modernistas‖ (CAVALHEIRO, 1954, p. 37). A diversificação nas estratégias formais queria ratificar a descoberta de novas configurações da identidade nacional, ou seja, a ideologia nacionalista era pauta permanente defendida pelos autores modernistas (daí a presença de vários personagens estrangeiros, alemães e portugueses como secundários e adjuvantes nos contos de João Alphonsus, colaborando na caracterização dos brasileiros protagonistas, sempre por oposição). Os desfechos narrativos desses textos não se fundamentavam na lógica do encadeamento narrativo, como preconizava Edgar Allan Poe. Para Ivan Marques, ―o escritor desafia a tradição realista brasileira e o ‗esplendor da lógica‘ de Minas‖ (2011, p. 166). O enredo imprevisível alertava para a impossibilidade do enquadramento da vida humana, repleta de insensatez e forças ambíguas, em previsões esquemáticas, visto que sempre escapava da escolha ou do domínio dos personagens. O desfecho moralizante, típico dos contos românticos ou realistas, não era mais desejado, porque os modernos mais do que consolidar uma nova moral social queriam questionar a instaurada. A narrativa, assim construída, não se empenhava em culpar os seres, mas em direcionar o olhar do leitor diante de personagens incompletos, imperfeitos e, muitas vezes, incompreensíveis. Entretanto, para que a narrativa não resultasse inverossímil, o autor, em vários contos, lança mão da ironia: diante da incompreensão da vida injusta, os personagens agem cretinamente (o gambá bêbado canta e ri, o poeta reclama do erro de português enquanto Amâncio morre, o mesquinho Terêncio se sente superior a Godofredo). Fábio Lucas insiste nesse ponto, afirmando que ―a anedota literária perde o seu mero propósito recreativo para 129

ganhar espessura poética‖ (1989, p. 118) nos contos de João. Afonso Henriques Neto a associa ao humour, uma vez que

se resolve em fina ironia, cortante maneira de sorrir de modo oblíquo, como a esconder o agudo ceticismo em relação a uma possível ordem cósmica que emprestasse sentido a todas as coisas. Contudo, isso não significa acreditar na pura ordenação caótica de tudo, uma vez que o próprio caos se inclui no cenário cético, colocado assim também em dúvida. (2001, p. 8-9)

Sobre os contos de Alphonsus, além de afirmar o ―humor fino, à britânica, que lembra o de Machado de Assis‖, Massaud Moisés sublinha-lhes o ―tom de conformismo, de sábio conformismo, de aceitação da vida como ela é, repleta de províncias insondáveis ou onde mal penetra o olhar alheio (...)‖ (1989, p. 258). Concordamos parcialmente com o estudioso, porque os protagonistas inquietos de Alphonsus se ―conformam‖ com a vida não porque tenham adquirido sabedoria depois de intensa reflexão, mas porque desistem de enfrentá-la, de enfrentar o sofrimento contínuo e agudo, como Amâncio, o doente de ―Oxicianureto de Mercúrio‖. A observação dos críticos vale, em especial, para os dois primeiros livros. Em Galinha cega, de fato, há um princípio estrutural: no início, a narrativa estabelece conexão entre os fatos, mas, no decorrer da história, atrapalha-se a coerência da trama com a inserção de problemas inesperados, cujo desfecho, ríspida e brevemente narrado, é galhofeiro. A estrutura sustenta e espelha a visão de mundo de João Alphonsus na época, para quem o mundo é incerto, inexplicável e estúpido (―Tudo era dúvida, incerteza, estupidez. O mundo.‖ (ALPHONSUS, 1976a, p. 56), e seus habitantes, irresponsáveis, não estabelecem comunicação efetiva e sensível, provocando uma perplexidade debochada, na qual há lirismo. Também por isso, o escritor confere aos animais irracionais sensibilidade. Nesse sentido, Antonio Candido, em ―Um contista‖ (Folha da manhã, de 19/09/1943), afirma que João Alphonsus é ―antimineiramente um cultor do raro, do estranho, do fantástico‖ (apud MARQUES, 2011, p. 166). O próprio contista afirma que, na época do surgimento do movimento modernista, já ―era um sujeito preparado para todas as revoluções, já tendo fabricado sem alarde algumas bombas particulares‖ (apud MARQUES, 2011, p. 158). A mesma narrativa que apresenta descompasso entre causa e consequência, observada dentro do conjunto da obra contística de João Alphonsus, revela forte coesão. A análise de Darlene Sadler sobre ―Foguetes ao longe‖ (EN), narrativa cuja ―consistência lógica advém das afirmações e observações da narradora, que são confusas, ilógicas e inconsistentes‖, resume bem a ideia: ―E é este paradoxo de forma e significado que reflete e captura com êxito a 130

concepção que João Alphonsus tem da estrutura do mundo como um tecido de contradições‖ (SADLIER, 1984, p. 57). Aproveitamos o comentário de Reis e Lopes sobre ―coesão temático-ideológica‖ (2007, p. 81) para explicar a relação que existe entre os textos de Alphonsus: alguns livros de contos projetam ao nível macroestrutural aquela desejada ―unidade de efeito‖ de Poe. Tal procedimento é incontestável na obra de João, e o período relativamente curto de produção do autor, precocemente morto aos 43 anos, pode ter colaborado, em parte, com essa unidade. Enfim, os contos noturnos de Alphonsus evidenciam a beleza e a tristeza potenciais de qualquer ambiente pouco iluminado, seja ele belorizontino ou interiorano, relacionadas à qualidade de interação que os seres travam entre si, humanos ou animais. Onde a incompreensão impera, a morte é realidade (e metáfora) garantida, como percebemos.

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4 OS CONTOS VESPERTINOS DE MARQUES REBELO

4.1 O ESCRITOR E O MODERNISMO CARIOCA

Ao chamar de contos os textos publicados em Oscarina (1931), Três Caminhos (1935) e Stela me abriu a porta (1942), Marques Rebelo pratica camuflagem semelhante à observada na atribuição autoral de sua obra: tal como algumas histórias publicadas nas décadas de 1930 e 1940 se aproximam do universo da crônica (como as ―Cenas da vida carioca‖, do último livro) e da estrutura da novela (como as do segundo livro), o nome estampado nas capas não é o do cidadão Eddy Dias da Cruz (1907-1973), que optou pelo pseudônimo devido à cacofonia do nome de batismo. Na verdade, o autor revela-se pouco preocupado com a delimitação de padrões genéricos, bem porque o fio condutor de sua obra é, explicitamente, a ânsia por liberdade, embora a maioria de seus personagens não a conquiste. Em Suíte n.º 1, publicado em 1944, que reúne textos formalmente distintos, o título remete a vocabulário musical que designa o conjunto de peças variadas. Na página que antecede a dedicatória, desfilam apenas nomes mineiros (Ciro dos Anjos, Emílio Moura, Guilhermino César, João Costa Chiabi, Murilo Rubião e Newton Prates), uma vez que o livro fora escrito em uma viagem a Minas Gerais e trata da região. Na coletânea, Marques Rebelo assim apresenta sua obra:

CENAS DA VIDA BRASILEIRA

I – Suíte 1. II – Suíte 2. III – Marafa (grande prêmio de romance – Machado de Assis). IV – Oscarina e Três caminhos – (conto). V – A estrela sobe – (romance). VI – Rua Alegre, 12 – (teatro). VII – Stela me abriu a porta – (conto). VIII – O espelho partido. (REBELO, 1944, p. 5)

A indicação dos gêneros de alguns livros entre parênteses, mais que rotulá-los, destaca a diversidade de que o autor lança mão para registrar o abrangente panorama anunciado pela denominação ―Cenas da vida brasileira‖. Sobre tal projeto, Raúl Antelo, no capítulo ―As marcas de Rebelo‖, chama atenção para,

de um lado, a indefinição característica do ―gênero‖ crônica e, de outro, o fato de a crônica oscilar entre parte anônima de um todo e designação do conjunto: Cenas da vida brasileira. Além do mais, o título já nos revela esse caráter de painel, 132

inaugurado pela literatura realista francesa e já ensaiado aqui por José Veríssimo em Cenas da vida amazônica, no limiar do século. (1984, p. 61-62)

Se a fortuna crítica de Marques Rebelo acentua, em geral, o predomínio do contexto carioca em sua obra, tal ideia é atenuada ao nos depararmos com a ambição do autor das ―Cenas da vida brasileira‖. Nesse sentido, concordamos com o professor Mário Luiz Frungillo quando, no ensaio ―O Rio é o mundo: sobre Marques Rebelo no seu centenário‖, questiona os que restringem a obra rebeliana à expressão dos subúrbios cariocas de seu tempo. Incontestavelmente essa é uma de suas realizações mais expressivas e, por isso, memoráveis, tanto que a abordaremos no subcapítulo que leva o nome da cidade, mas a maneira como ele intitulou o conjunto de sua produção indica outros vieses, nos quais nos debruçamos nas seções ―Portas abertas‖, ―O mal antecipado‖ e ―Eis a tarde!‖. A empresa monumental de abarcar o Brasil ganha patrocínio polêmico, explicado por Regina Alves, no ensaio ―A suíte carioca de Marques Rebelo: entre o afeto e o desencanto‖:

Na década de 1940, Marques Rebelo, juntamente com outros escritores, como Graciliano Ramos, por exemplo, colabora com a revista Cultura Política (1941- 1945), vinculada ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), ―órgão censor e polo ativo de elaboração e difusão do discurso oficial‖ (LUCA, 2011, p. 272), que tinha por intenção a divulgação cultural do país, ainda que sob o controle do Estado. A atuação de escritores junto a órgãos do governo, como mostra Sérgio Miceli, torna-se, até certo ponto, comum nesse momento da história nacional e revela, com muita frequência, não apenas a atuação literária de muitos escritores, mas, sobretudo, um exercício político e intelectual no tocante à preocupação com a cultura e a educação no país. (...) Dentro desse contexto, enquanto colaborador da revista Cultura Política, cabe a Marques Rebelo, nos anos de 1940, dar a conhecer, por meio da crônica, o Brasil através de suas cidades, grandes ou pequenas, situadas nas regiões Norte, Centro e Sul do país. Desse trabalho, que se estendeu por praticamente três anos, resultaram diversas crônicas que o autor chamou de ―suíte‖. (ALVES, 2014, p. 1403-1404)

Todavia, antes de ser escritor reconhecido e de ter ganhado importantes prêmios, como o acima indicado (pelo romance Marafa, em 1933), Marques Rebelo se lançou na vida literária como poeta, tal como João Alphonsus. Talvez isso justifique o fato de ter escolhido para pseudônimo seu um obscuro poeta quinhentista português (cf. TRIGO, 1996, p. 33). Embora tenha posteriormente renegado seus poemas, de acordo com a tese de doutoramento de Joaquim Rubens Fontes ―Marques Rebelo: a vida refletida no espelho‖, nada nos impede de voltar a eles, bem porque a fornada poética de Rebello (como assinava na época) é farta. Só na revista carioca Beira-Mar ele publica, na década de 1920, dezenas de textos, inicialmente líricos e inocentes (cf. ―Balada‖ (REBELLO, 1926, p. 3) e ―O cachorrinho de borracha‖ (REBELLO, 1927a, p. 1)), em seguida, mais complexos e irônicos (cf. ―Felicidades‖ (REBELLO, 1927b, p. 26) e ―Ária sentimental‖ (REBELLO, 1928a, p. 2)), 133

sempre preferindo versos livres e brancos. A crítica manifestou-se favoravelmente: na mesma revista, sua ―poesia modernista‖ foi associada ao penumbrismo devido ao amor pelas ―horas baças em que o tempo tomba tristemente, docemente como a areia duma ampulheta. (...) [Marques] Também ama cantar as vozes misteriosas do subconsciente brasileiro. E então sai de sua pena em estranhas onomatopeias ritmos roucos, fúnebres e auguras de macumbas‖ (AZEVEDO, 1927, p. 2). Na quarta edição da revista Verde, sobre a qual o carioca tece consistente elogio, em especial a seu líder Rosário Fusco (cf. REBELO, 1941, p. 249), Marques publica breve poema que descreve o locus amoenus anunciado pelo título:

INTERIOR NÚMERO 1

Sob a lâmpada cariciosa... Sob a paz adormecida e amiga... o bom sorriso a ceia do Senhor o sossego... e o sapo jururu para adormecer a criança. (REBELLO, 1927d, p. 10)

O ambiente tranquilo contagia tudo: dos objetos às pessoas, dos adjetivos suaves e positivos à estrutura sintática despretensiosa e cheia de suspensões. A numeração evidencia a existência de outros textos de mesmo teor (em 1926, a Para todos... já havia publicado ―Interior sentimental‖). Neles, o poeta parece mais afeito ao penumbrismo de Ronald de Carvalho e de Ribeiro Couto, seus contemporâneos, do que às inovações extravagantes do primeiro modernismo. Outro poema nos interessa, publicado na Revista de Antropofagia (REBELLO, 1928b, p. 4):

MATINAL

Eu abri a janela a respirei fundamente a frialdade

da manhã.

Sob risadas de sinos, a cidade brincava de esconder dentro da névoa.

(RIO DE JANEIRO)

O espaço eleito agora indica mudança do poeta (antes mais bucólico), que também a expressará quando, em seguida, desiste da poesia e passa a inscrever a cidade que ―brincava de esconder / dentro da névoa‖, o Rio de Janeiro, em seus textos de prosa. Já em 1927, os 134

versos de ―Canção da rua indolente‖, na Para todos..., indicavam esse caminho. Nesse mesmo ano, o escritor pretendia publicar Poemas misturados, mas nunca concretizou a ideia anunciada nas ―Notas rápidas sobre o autor‖, da revista paulista Feira Literária (cf. REBELLO, 1927c, p. 130), veículo da primeira versão daquele que seria seu conto mais conhecido, ―Oscarina‖. Embora cenários rurais estejam presentes em alguns contos, em especial nos de Três caminhos e em ―Quatro momentos de um idílio‖ (de Stela me abriu a porta), a maioria evoca a predileção de Marques pela antiga capital federal. E a prefiguram as primeiras narrativas publicadas na Para todos..., com personagens e linguagens típicas: ―O homem que se apaixonou por Laura La Plante‖, em 1927, e ―O Triste Vida‖, em 1929. Ambas narradas em terceira pessoa, apresentam protagonistas seduzidos por ideias irrealizáveis: o primeiro, pela famosa atriz estadunidense, por quem despreza família, trabalho e saúde; o segundo, por carreira militar próspera e feliz, rapidamente vista como impossível. Mesmo que o escritor confesse, posteriormente, que os textos estavam ―encharcados de cacoetes modernistas, coisa inaproveitável‖ (apud TRIGO, 1996, p. 32) – talvez por isso jamais os tenha reimprimido – neles já comparecem temas caros ao autor: o Rio de Janeiro, o cinema, o militarismo, a malandragem. Apesar de se aproximar do movimento e ser inserido pela crítica da época no grupo de tendências vanguardistas – o volume XI da Feira Literária, nas ―Notas rápidas sobre o autor‖, descreve seu ―temperamento moderno (...) acompanhando a nova corrente estética brasileira‖ (REBELLO, 1927c, p. 130) –, Marques Rebelo não gostava do rótulo ―modernista‖, bem porque não concordava que sua literatura fosse de invenção (cf. TRIGO 1996, p. 43). Talvez acreditasse mais naqueles que, desde a estreia de Oscarina (1931), relacionaram sua narrativa à de Manuel Antônio de Almeida devido ao enfoque dado aos tipos cariocas, à de Machado de Assis, de quem teria herdado o tom irônico, e à de Lima Barreto, por denunciar o amargor dos desvalidos. Realmente, a literatura de Rebelo é costumbrista, termo já aludido no capítulo anterior. Tendo escrito Vida e obra de Manuel Antonio de Almeida (1943), Bibliografia de Manuel Antonio de Almeida (1951) e Para conhecer melhor Manuel Antonio de Almeida (1973), difícil não filiá-lo ao romântico, conhecido retratista do cotidiano carioca do século XIX. Durante muito tempo essa foi a interpretação predominante sobre a obra de Marques Rebelo, muito amparada pela análise elogiosa de Mário de Andrade, publicada na Para todos..., no artigo ―Com rótulos e fórmulas não se faz um romance‖ (1956). Mais recentemente, Raúl Antelo (1984) e Mário Frungillo (2001, 2007) buscaram nova abordagem, pois, apresentado apenas como alguém que teria seguido linhagens, a 135

contribuição de Marques Rebelo não seria original: ―Repetido como um clichê, este ponto de vista mais obscurece do que esclarece a posição ocupada pelo escritor carioca no cenário da literatura brasileira‖ (FRUNGILLO, 2007, p. 120). Nesse sentido, a resenha de Álvaro Moreyra, na Para todos... (o texto também foi publicado em O Jornal, em 1º julho de 1931, p. 3, na seção ―Bom dia!‖) é valiosa. Um dos mestres de Rebelo anuncia Oscarina, explicando sua autonomia em relação à prosa feita por escritores de renome:

Marques Rebelo não tem influência de nenhum. A vida que os quatro olharam é que é parecida. Machado de Assis olhou com mais desprezo, Ribeiro Couto com mais ternura, Antônio de Alcântara Machado, com mais alegria. Marques Rebelo olha com tudo isso e ainda com uma bruta vontade de dar vaia. Vontade só. Logo se arrepende. O assobio não sai da boca. Os dedos que armara para o assobio formam no ar um sinal camarada de cumprimento: – Olá! Como vais? (MOREYRA, 1931, p. 21)

O trecho revela um artista envolvido com seus personagens, ora rechaçando-os, ora simpatizando com eles. Moreyra descreve um escritor mais contista do que cronista, porque, mais do que registrar fatos, desejava encenar acontecimentos cotidianos, meticulosa e ideologicamente recortados, e editar a fala carioca, traço central de sua obra. Raúl Antelo destacaria o ―caráter compósito da criação a partir de fragmentos que adquirem um sentido na teatralização de um conflito‖ (1984, p. 61). Talvez por isso Marques Rebelo tenha decidido, em 1951, intitular de Cenas da vida brasileira (grifo nosso) a reunião das suítes 1 e 2. Se, por um lado, Rebelo criticava o modernismo, especialmente seus ―cacoetes‖, por outro, o aplaudia por ter conseguido ―derrubar muito símbolo, muito ídolo, muito mito, e depois ele foi buscar no passado outra vez os valores positivos. (...) Devemos ao modernismo um estrago medonho e depois uma recuperação dos valores realmente essenciais da literatura brasileira‖ (apud TRIGO, 1996, p. 43). Compreendemos melhor a opinião do carioca ao ler Velloso, que explica o ponto de vista dos intelectuais cariocas sobre a modernidade literária: alguns refutavam a existência de uma literatura moderna em oposição às correntes literárias anteriores, como Manuel Bandeira, que, ao ser convidado para a Semana de Arte Moderna de 1922, diz que é simbolista e que o simbolismo é moderno. A pesquisadora ilustra a cosmovisão moderna com as crônicas de Marques Rebelo, cujas expressões são fragmentárias, ambíguas e efêmeras (cf. VELLOSO, 1996, p. 32-33). Para Vera Lins, o movimento começou, no Rio de Janeiro, com os simbolistas, ―mais dissidentes que revolucionários‖, que, por caminhos diferentes dos vanguardistas, criticaram ―a razão da técnica e da ciência, e buscaram outras razões, por meio de uma estética de 136

sugestão, de uma imaginação extravagante e uma abertura ao inconsciente‖ (2010, p. 15). A combatividade do grupo, em geral visto como alheio às questões pragmáticas, é comprovada nas pequenas revistas simbolistas que, desde o final do século XIX, manifestavam-se contrárias à modernização racionalista que irrompia nos grandes centros urbanos. Naquela época, sentavam-se nas rodas de intelectuais cariocas tanto alguns imortais da Academia Brasileira de Letras como também boêmios da Rua do Ouvidor. Esses círculos não eram totalmente excludentes nem conflitantes, havia certa complementaridade entre eles, embora a cultura das ruas permitisse comportamento indisciplinado e uma forma singular de se vestir, aspectos transgressores que tentavam desordenar a sociedade que se queria civilizada aos moldes europeus. Tanto é que Machado de Assis desaconselhou a entrada dos simbolistas na recém criada ABL. O cenário literário carioca ficou ainda mais complexo quando Tristão de Athayde reuniu em torno de si intelectuais católicos e organizou a revista Lanterna Verde, da Sociedade Felippe d‘Oliveira, a qual, no polêmico número 4, publicado em 1936, se posicionou contra o modernismo do dêcenio anterior. Junto com ele estavam Octávio de Faria, Murilo Mendes e , que desejavam modernizar o Brasil a partir de outros ideais, religiosos e/ou políticos, e acusavam o movimento modernista de falta de profundidade espiritual e abstenção dos graves problemas sociais do país (cf. BUENO, 2006, p. 48-49). Tendo em vista essa conjuntura, Ângela de Castro Gomes afirma que o tripé academia, boemia e catolicidade foi responsável pela expressão artística do Rio de Janeiro no início do século passado. Devido à ligação estreita entre intelectualidade e política, a esses grupos cabiam, também, os rumos sociais da cidade. Se, em São Paulo, dominada pelo ethos do mercado, a produção norteava os intelectuais modernistas, na capital federal, era a presença central do Estado e do comércio que balizava os contornos do movimento. Para a pesquisadora, esse é um dos motivos que faz com que a estética tenha se revelado de maneira distinta nos dois espaços geograficamente próximos (cf. GOMES, 1999, p. 64). Velloso retoma o início do século para apresentar a rivalidade entre as cidades,

duas matrizes imaginárias da nacionalidade: uma voltada para o ethos empreendedor, a outra valorizando elementos de uma ―cultura marginal‖. (...) a cidade de São Paulo vinha frequentemente associada à figura de Apolo, enquanto o Rio remetia à imagem dionisíaca. Assim, a cidade apolínea teria o dom da ordem, sendo capaz de unificar as mais diversas etnias culturais. Era através do mito do estado bandeirante que o grupo Verde-amarelo [de Cândido Motta Filho, , e Plínio Salgado] legitimava seu projeto hegemônico. Em contraponto, a cidade do Rio de Janeiro caracterizar-se-ia pelo princípio do excesso e da desordem social, mobilizando-se apenas para a festa. (1996, p. 15)

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Importantes articuladores no Rio de Janeiro, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Netto estabeleceram diálogo com intelectuais paulistas e de outros estados, defendendo que o moderno se estendesse à vida mental e às subjetividades. No intuito de encontrar outras formas de linguagem, aproximaram-se do Surrealismo e criticaram o Futurismo. O grupo modernista por eles liderado era antiacademicista e exercitava o espírito de aventura, valores da cultura boêmia carioca; nesse sentido, afastaram-se do cerebralismo (intelectualismo, beletrismo, bovarismo) ―caindo na farra‖, aproveitando a expressão de Manuel Bandeira sobre Sérgio Buarque de Holanda (cf. VELLOSO, 2010a, p. 52-59). A revista Estética, criada por Sérgio e Prudente, divulgou, nos três números impressos entre 1924 e 1925, os ideais nos quais acreditavam, mas também veiculou textos de outras inclinações modernistas para que, juntos, apresentassem a feição complexa do movimento. Ali foram publicados os emblemáticos ―Bahia de Guanabara‖, de Menotti Del Picchia, e ―Noturno de Belo Horizonte‖, de Mário de Andrade. Os jovens amigos concordavam com o líder paulista em relação ao aspecto inaugural da brasilidade, buscando uma estética nacional e a interlocução entre elite e povo (cf. VELLOSO, 2010a, p. 67). Entretanto, divergiam em relação a como isso se realizaria na prática, se a partir da intuição, como queriam Sérgio Buarque, Oswald de Andrade e alguns companheiros do Rio, se pela intelectualidade, como queriam Mário de Andrade e seus confrades. Sérgio apoiava o primitivismo, percebia artificialidade nas formas impostas à brasilidade (por exemplo, criticava os arranha-céus cariocas, sem sentido numa cidade ainda cheia de espaço) e considerava o intelectualismo esgotado como chave de decifração da nacionalidade: a velocidade da vida moderna exigia que se agisse antes de pensar. Seguindo a inspiração do espírito moderno – palimpsesto composto por hábitos seculares e por conquistas técnicas, científicas, industriais, urbanas e artísticas muito dependentes do elemento estrangeiro –, o modernismo, seja qual fosse sua tendência, desejava recriar o Brasil, acrescentando àquele espírito convicções nacionalistas. Logo, será ―a vivência entre o universo da ordem e da desordem, do legal e do marginal, e a superposição do privado e do público, fenômenos particularmente acentuados na capital federal‖ (VELLOSO, 2010a, p. 64) a realidade tanto dos autores modernistas cariocas quanto de seus personagens, como vemos em Marques Rebelo. A frase de Prudente de Moraes Netto, a quem o contista carioca admirava, ―Miramar é brasileiro. É moderno. É modernista‖ (apud VELLOSO, 2010a, p. 63), elucida a proposta: a escrita descontínua de Oswald de Andrade, em Memórias sentimentais de João Miramar (1924), construíra a figura de um ―autêntico brasileiro‖, bom malandro, canalha, amigo, sentimental e sedutor. 138

Logo, o modernismo brasileiro se configurou um movimento dialético, visto que acolheu inovações estrangeiras trazidas pela modernidade e se esforçou para que fossem efetivadas em cor local, abrasileiradas, resultando em teorias e práticas que valorizassem o elemento nacional. No modernismo carioca, confirmamos a análise de Oliveira: ―um olhar trágico e intimista conviveu com uma representação eufórica da vida urbana moderna‖ (2010, p. 252). Os jovens perceberam ―as ambiguidades e contradições do significado limiar de ser brasileiro e de ser moderno‖ (VELLOSO, 2010a, p. 56-57) e perseguiram a integração da cultura da rua e seus valores, percepções, práticas e personagens à cultura livresca. Um dos desejos modernistas, apontados por Sousa e Cardoso (2014, p. 32), era a não distinção entre alta e baixa literatura, embora alguns grupos tenham mantido postura elitista em relação às manifestações populares. Nesse sentido, Prudente de Morais Netto considera, em 1926, o maxixe o melhor representante da arte mestiça brasileira. O jornalista combatia a interpretação positivista da geração de 1870, que entendia a mestiçagem como síntese sucessiva do português, do negro e do índio. Diferentemente de Mário de Andrade, propunha, junto com Sérgio Buarque de Holanda, ―a brasilidade como obra inacabada, marcada pela mais profunda liberdade‖ (VELLOSO, 2010b, p. 86). Outro autor tem papel importante e polêmico na configuração do cenário modernista: Graça Aranha, celebrado por Canaã (1902), livro de preocupações sociais em que há um ―fundo comum de ideias‖ inspiradas em Tolstói, reflexão do próprio Graça em carta a José Veríssimo (apud MARTINS, 1996a, p. 224). Quando publica O espírito moderno (1925), o escritor, que tinha vivido duas décadas na Europa, é acusado por alguns deputados de integrar o grupo dos diplomatas desnacionalizados, numa época de intensa afirmação nacionalista (cf. MARTINS, 1996a, p. 226). Seu livro também foi criticado na seção ―Os livros e as ideias‖, de A Revista (1925), em texto assinado por M. de A., porque ―o fio de continuidade lógica de suas ideias se embaraça no meio das palavras‖ (2014, p. 49), ainda que tenha sido elogiada a figura intelectual do maranhense. É inegável que a presença de Graça Aranha no movimento modernista fez com que o grupo angariasse fama, apesar das controvérsias. Se quando ele começa a organizar a Semana de 1922 já há um movimento moderno no Brasil, sua dedicação fortalece o grupo. Interessado no ―espírito moderno‖, ―ideia popularizada pelo futurismo e desenvolvida por Apollinaire em L’Esprit nouveau et les poètes (1918)‖ (TELLES, 1972, p. 163), Graça profere uma conferência intitulada ―A emoção estética na arte moderna‖, referindo-se a Ronald de 139

Carvalho e à pintura e escultura contemporâneas. Dois anos mais tarde, palestra sobre ―O espírito moderno‖ na ABL, de onde se desvincula no mesmo ano por questões ideológicas. De acordo com Brito, a Semana inseriu o Brasil no século XX, visto que mobilizou questões culturais, políticas e socioeconômicas do ―mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado – mundo que o modernismo cantaria, glorificaria e, depois, temendo-o, repudiaria‖ (apud TELLES, 1972, p. 164). O texto de Magalhães Drummond, no primeiro número de A Revista, sublinha esse momento inaugural vivido pelo Brasil, enraizador de sua identidade, que permitiria ao povo confiar em suas capacidades, reconhecer seus talentos e acreditar numa nova era de crescimento e estabelecimento do país como grande nação (cf. 2014, p. 17). Além de o entusiasmo ufanista – presente em vários adeptos do modernismo – soar exagerado aos nossos dias, fazemos uma ressalva acerca de sua disseminação no país: a maior parte dos estados só conheceu o movimento iconoclasta e nacionalista da capital paulista décadas depois de seu estabelecimento. Entretanto, o termo modernismo ficou, em geral, relacionado à semana paulista, tanto que, em Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, importante antologia e estudo de Gilberto Mendonça Telles, em que o pesquisador seleciona quinze textos (manifestos e editoriais), para se compreender o movimento modernista brasileiro, a maioria provém de São Paulo. Conquanto haja uma ausência de teóricos vinculados às mais variadas vertentes do modernismo, o compêndio oferece razoável gama de pontos de vista (quase todos da década de 1920), assinados por Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros (cf. TELLES, 1972, p. 163). Entretanto, havia grupos que, às vezes mais às vezes menos informados sobre as movimentações artísticas do sudeste brasileiro, promoviam renovação estética em suas regiões, como os associados a revistas e jornais literários da Bahia (Arco & Flexa), do Ceará (Maracajá) e do Rio Grande do Sul (Madrugada). Como se vê, o diálogo entre modernistas cariocas, paulistas e mineiros foi intenso. Assim, se o vínculo entre Marques Rebelo e seus antecessores já foi motivo de análise, parece-nos mais produtivo iluminar os contatos que o contista travou com seus contemporâneos. Rebelo admirava o grupo mineiro, tanto os rapazes de Cataguases (da Verde), quanto os escritores da capital: o escritor elogia os bons odores de Minas tanto pelas suas magníficas flores quanto pela leve ambição dos homens:

E o homem que chega, que está cansado das inglórias lutas de outras terras, que está ferido pela fúria de outros homens, tão fatigado pelo atropelo de outras ambições, compreende que há ainda em alguma parte da terra um ar que, apesar dos impostos, não está ainda de todo contaminado, uma terra onde há ainda uma outra noção da 140

vida, onde, apesar dos impostos, há ainda uma outra esperança na vida... (REBELO, 1944, p. 131-132)

O mesmo tom amistoso aparece em suas colunas jornalísticas na Dom Casmurro, revista carioca de grande circulação entre 1937 e 1944. No artigo ―Minas e o momento literário‖, redigido por ocasião de uma viagem a Belo Horizonte, ―núcleo literário de melhor quilate‖ (REBELO, 1937, p. 8), o viajante se mostra impressionado positivamente com o grupo modernista, forte e equilibrado, mas triste devido à falta de propaganda que os jovens faziam de si (a Mantiqueira os escondia...), reclamação que Mário de Andrade constantemente endereçava a Carlos Drummond de Andrade. Talvez pela função executada, o jornalista ganhou interessante caricatura, que acompanhava a notícia:

Ilustração n.º 4 – Caricatura de Marques Rebelo na revista Dom Casmurro

Mais do que o ofício de escritor e de conferencista, atividades desempenhadas na viagem a Belo Horizonte, a imagem (não assinada) realça um observador atento (pelos olhos) e blasé (pela pose). Quando o escritor retorna à capital mineira, em 1939, momento em que assume a chefia da redação da Dom Casmurro, a comunidade intelectual lhe oferece almoço no Minas Tenis Club, João Alphonsus está presente e Guilhermino César saúda o ilustre convidado (―Um almoço a Marques Rebelo‖, Dom Casmurro, 08/07/1939, p. 1). Rebelo representava a intelectualidade carioca, vista como modelo para as localidades provincianas. O comentário de Hallewell sublinha a importância da capital federal; de acordo com ele, depois da Semana de Arte Moderna,

Tudo parecia parado em São Paulo; os efeitos da Grande Depressão sobre a vida comercial e cultural haviam sido intensificados pela Revolução Constitucionalista de 1932. O Rio, por outro lado, começava a recuperar a posição de preeminência literária e intelectual que parecia ter perdido para a capital do café no início do movimento modernista, dez anos antes. (HALLEWELL, 1985, p. 356)

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A partir da década de 1940, Marques Rebelo viaja por todo o país e para o exterior, promovendo a arte, para além do âmbito literário: funda instituições (Museu de Arte Moderna de Florianópolis (1948), desde 1970 chamado Museu de Arte de Santa Catarina; Museu de Arte Popular do Colégio de Cataguases (1949), assessorado por Francisco Inácio Peixoto; Museu de Belas-Artes de Cataguases e Museu de Arte Moderna de Resende (1950)) e incentiva artistas brasileiros e estrangeiros, como Miguel Torga, Di Cavalcanti, Herberto Sales e Portinari, de quem recebeu a seguinte tela:

Ilustração n.º 5 – ―Retrato de Marques Rebelo‖ (1932), tela de Portinari

O quadro acima é emblemático, tanto porque simboliza a paixão de Rebelo pelas artes plásticas e seu empenho na divulgação do trabalho artístico brasileiro, como também revela seu lado polêmico, uma vez que, anos depois, rompe relações com Portinari, quando o amigo resolve dedicar-se à militância política, de acordo com depoimento de Francisco Peixoto Filho (cf. LOURENÇO, 1999, p. 158). Seu importante papel como propagador da arte moderna garantiu-lhe um capítulo no livro de Maria Cecília Lourenço (1999), que sublinha o interesse de Rebelo em levar produções artísticas a locais periféricos do país e ajudar a vender telas dos pintores. A serviço do governo, Marques se preocupava com o acervo dos museus e sua destinação para a sociedade, pois pensava o espaço como ambiente cultural-artístico plural, com biblioteca, cinema, teatro e salas para palestras, preparado para a comunicação com as novas gerações. Graças à amizade com Francisco Inácio Peixoto, colaborador da Verde de Cataguases, valoriza e empolga um boom da arte modernista na cidade mineira, que recebe obras de Niemeyer, José Alves Pedrosa, Burle Marx, Joaquim Tenreiro, os irmãos Roberto, Djanira, dentre outros nomes celebrados (cf. LOURENÇO, 1999, p. 157-159). Assim, o autor de Oscarina, fixado no Rio de Janeiro, não estava restrito às rodas intelectuais cariocas, embora percebamos em sua obra mais traços do modernismo aí desenvolvido, mais boêmio, sarcástico e agregador de pessoas de classes sociais distintas – 142

que favoreceu o ―encontro entre o pobre carioca, mulato ou negro, intelectuais e filhos da burguesia‖ (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 341) – do que o paulista, por exemplo, que tinha projeto estético mais delimitado e era mais intelectualizado, com o qual também se comunicou, especialmente com Alcântara Machado. O mesmo período conhecido como ―época de ouro‖ da produção cultural brasileira (especialmente do rádio) e momento de valorização do patrimônio nacional (com destaque para outras duas viagens, símbolos dessa revitalização: a de Mário de Andrade ao norte e nordeste do país e a dos modernistas paulistas às cidades mineiras), foi marcado por conflitos político-sociais entre legalistas e rebeldes. Logo no início do decênio de 1930, estabeleceu-se uma situação política diferente: a revolução liderada por Getúlio Vargas e a Aliança Liberal retiram de Washington Luís as rédeas do país e estabelecem uma ditadura que dura, num primeiro momento, quatro anos.

Vivia-se então, no Brasil, uma fase politicamente conturbada, dominada por intensa fermentação ideológica, que se estendia à esfera cultural e artística. Em tal contexto, a literatura ganha uma inflexão sociológica, tornando o romance engajado, de denúncia social, o modelo por excelência do gênero no período. Basta lembrar nomes como os de Jorge Amado, Graciliano Ramos ou José Lins do Rego para comprovarmos essa afirmativa. Ora, Marques Rebelo, desde o início, cultivava uma ficção introspectiva, mais voltada para os problemas e dilemas do indivíduo em sua difícil travessia existencial, do que para as injustiças e contradições da sociedade. (ALMEIDA, 2002, p. 6)

Assim, entendemos que Rebelo é mais do que um continuador dos ícones da literatura brasileira, em especial pelas escolhas que enceta para a construção do relato e pelo ponto de vista expresso sobre a conjuntura do momento brasileiro que viveu. Ele é um ―intérprete do Brasil‖, como Francisco de Assis Barbosa já observara na apresentação da edição de 1966 de Marafa:

[Rebelo] sentiu a necessidade de atualizar-se, dentro da complexidade da sociedade moderna e da problemática humana condicionada às transformações do seu Rio de Janeiro bem amado, em consequência do surto industrialista e da explosão demográfica da cidade, duas vezes demolida e duas vezes reconstruída em menos de meio século. (...) Para ser fiel a si mesmo, intérprete dos mais autênticos da sua terra e do seu povo, o escritor teria forçosamente de acompanhar, no mesmo ritmo, as violentas transformações por que passou esta nossa amorável e sofrida Cidade de São Sebastião (...). (1966, p. 5)

Silviano Santiago também emprega a mesma expressão para sublinhar a importância da trinca dos Andrades na busca da identidade nacional, na primeira metade do século passado, em ―Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil‖. Tal como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior construíram, a partir de suas obras já clássicas, um perfil do Brasil e do brasileiro importante para que os cidadãos conhecessem 143

melhor o país (lema motivador dos primeiros modernistas), Santiago estende tal função para os escritores e para qualquer brasileiro capaz de observar e refletir sobre o que vê dentro e fora de si: ―Para os modernistas da década de 1920, sentir passa a ser tão importante quanto pensar. Observar o outro é tão importante quanto ler‖ (SANTIAGO, 2005, p. 15). Nesse sentido, em O Trapicheiro (1959), primeiro tomo da série O espelho partido, misto de ficção, autobiografia e ensaio, o narrador recorda que, na infância, fatos distantes eram sentidos próximos: ―Papai acompanhava com o dedo aliadófilo os mapas nos jornais. Os canhões de Verdun vinham ecoar na casa da Tijuca‖ (2002b, p. 58). No segundo tomo, A mudança (1962), temos a mesma percepção: ―Um gemido londrino é ouvido no Brasil, uma ferida em peito maquis faz escorrer sangue em rua carioca‖ (2002c, p. 306). Se o sentimento do mundo estrangeiro atinge o escritor, a conjuntura nacional também o desalenta. No decênio de 1930, muitos colaboraram para que Rebelo ganhasse a alcunha de contista brasileiro por excelência (cf. FRUNGILLO, 2007, p. 119): Manuel Bandeira (a quem se referia nos contos como ―Poeta‖), Agripino Grieco, Otávio de Faria, João Ribeiro e Tristão de Athayde (cf. TRIGO, 1996, p. 35), apenas para citar alguns. Oscarina (1931) foi recebido calorosamente pela crítica especializada e fez com que alguns conferissem ao escritor o título de criador do moderno conto nacional (cf. MARTINS, 1996b, p. 526). O público também o aplaudiu, conhecendo-o graças à frequente transposição cinematográfica de seus textos: ―Vejo a lua no céu‖ (de Três caminhos), Marafa (1935) e A estrela sobre (1939) foram filmados nas décadas de 1960 e 1970, quando o escritor se tornou membro da Academia Brasileira de Letras. A estratégia recorrente que atraiu admiradores – a alta dose de referencialidade a artistas, produtos, veículos, ritmos musicais, meios de comunicação e linguagem da época – poderia ter condenado sua ficção ao esquecimento, uma vez que retiraria a perenidade dos contos e os restringiriam ao exame histórico e sociológico. Entretanto, o registro do narrador passa pela seleção de Rebelo e como não é apenas um viés da realidade que se deseja abordar, os contos apresentam estruturas distintas: há equilíbrio na quantidade de contos narrados em primeira e terceira pessoa, nos cenários fechados (para colher reflexões dos personagens dentro de casa ou do bonde, por exemplo) e abertos (para registrar memórias infantis ou panoramas da cidade) e na utilização de técnicas diversas, como o flashback e o mise en abyme.

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4.2 RECORRÊNCIAS TEMÁTICAS

Massaud Moisés afirma que Marques Rebelo seguiu ―tendências da época: o culto do cotidiano, a visão de repórter ou de fotógrafo, ou mesmo de cinegrafista, que detecta o lado psicológico, inefável, das ações humanas‖ (1989, p. 260). Acionado pela multiplicidade de acontecimentos que movimentaram a capital federal no início do seu século, o contista selecionou paisagens e tipos urbanos que expressaram a dinâmica social da época e os inseriu criativamente nos 36 contos que analisamos nesta tese, publicados em livros e jornais das décadas de 1930 e 1940. Convém explicar que nos baseamos na primeira edição de Stela me abriu a porta (1942) para estabelecer o corpus, visto que a organização promovida pela editora José Olympio em 1977 – não sabemos se com ou sem o consentimento do autor, uma vez que ele já havia falecido –, acrescentou-lhe: ―A moça e a primavera‖, ―Composição de carnaval‖, três ―Cenas da vida carioca‖ e ―A árvore‖. Desses, aproveitamos apenas o primeiro conto e uma das ―Cenas da vida carioca‖ (intitulada ―Retrato de rua‖ na primeira versão), pois confirmamos sua publicação em jornal no arco temporal por nós abordado. Predominantemente, os contos oferecem paisagens cariocas: Tijuca, Andaraí, Grajaú e São Cristóvão são os bairros mais evocados pelo autor; porém os narradores circulam também pelo centro da cidade, Botafogo e Copacabana. Os perfis descritos – do malandro, da dona de casa, do pai de família, do caçula e do filho mais velho, da morena assanhada, da gente carnavalesca – só não são totalmente estereotipados porque estão inseridos em fabulação singular. Encenam, mais do que problemas tipicamente cariocas, uma questão universal: o aprisionamento do homem, vivido em diversos âmbitos. A cidade tropical, repleta de vida, é também plena de morte – e metade dos contos de Rebelo nos recorda isso. A outra metade nos revela um contista mais solar que João Alphonsus, e que elege as tardes como cenário. Contudo, o momento vespertino não enche os espíritos apenas de beleza e alegria, também revela preguiça e tédio. A luminosidade dos contos do carioca reflete humor, mas não otimismo vibrante. Tratamos, nos próximos subcapítulos, dos pilares da obra contística de Marques Rebelo. Mesmo que os motivos estejam intrinsecamente ligados, como o parágrafo anterior indicia, para efeito analítico, os separamos nas seções seguintes.

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4. 2.1 Portas abertas

Os protagonistas dos contos de Marques Rebelo são, em geral, jovens internamente agitados porque aspiram à liberdade: querem se desvencilhar de compromissos sociais (o protagonista de ―Retrato de rua‖), da família (Antônio, de ―Um destino‖ (O)7), de caótica situação financeira (Clarete, de ―Felicidade‖ (O)) ou sentimental (Antônio, de ―Na tormenta‖ (O)), do passado (Aurora, de ―Quatro momentos de um idílio‖ (S)) ou de questões existenciais (Stela, de ―Stela me abriu a porta‖ (S)), para indicar alguns exemplos. Reforçando a importância da liberdade, há personagens presos de tal maneira a convicções pessoais que se tornam incapazes de qualquer ato libertário, como é o caso do protagonista de ―Espelho‖ (O). Embora a bandeira pela liberdade seja desfraldada nos contos, nenhum personagem é plenamente livre (bem porque essa realidade inexiste, e Rebelo não faz contos fantásticos). Aqueles que a desfrutam, mesmo parcial ou temporariamente, o fazem porque aproveitaram oportunidades, ―portas abertas‖, metáfora selecionada pelo contista no título do terceiro livro. Aos personagens dispostos a novas experiências sempre são requeridas ações de deslocamento, e essas mudanças os tornam semelhantes, em grande medida, à cidade do Rio de Janeiro, que, no início do século XX, sofreu consideráveis transformações. Dentre os protagonistas que aproveitam as brechas para se libertar, aqueles que se ―rebatizam‖ são mais felizes, como Clarete, de ―Felicidade‖ (O), e Jorge, de ―Oscarina‖ (O), este talvez o personagem mais conhecido de Marques Rebelo, depois de Leniza, do romance A estrela sobe (1939). Desempenham papéis masculinos semelhantes ao de Jorge, mas menos realizados, Fernando (―Vejo a lua no céu‖ (T)) e o malandro de ―Retrato de rua‖; de maneira semelhante, a indecisa Marcia (―A moça e a primavera‖ (S)) e a madura Aurora (―Quatro momentos de um idílio‖ (S)) também são expressões de certa emancipação feminina, tal como Clarete. Assim, analisamos a seguir, contos que revelam personagens ávidos pela liberdade e que, por isso, travam uma relação mais ampla com o espaço: ―Oscarina‖ (O), ―Retrato de rua‖, ―Felicidade‖ (O), ―A moça e a primavera‖ (S) e ―Quatro momentos de um idílio‖ (S). Na sequência, trataremos de personagens que pouco se movimentam e não conseguem chegar à ―porta‖ nos contos ―Um destino‖ (O), ―Na tormenta‖ (O), ―Espelho‖ (O), ―Stela me abriu a porta‖ (S) e ―Vejo a lua no céu‖ (T).

7 Para evitar repetições enfadonhas, indicaremos os nomes dos livros por reduções entre parênteses: Oscarina (O), Três caminhos (T) e Stela me abriu a porta (S). 146

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Nos enredos dos primeiros contos interpretados a seguir, notamos certa benevolência do narrador ao permitir que seus personagens realizem sonhos, mesmo que parcialmente. A nota de rodapé da primeira página de Três caminhos pode explicar o procedimento de Marques Rebelo (tão distinto do empregado por João Alphonsus). O autor afirma que os contos ali reunidos eram ―capítulos imperfeitos de três romances tentados, onde cada pequenino herói estava no seu caminho. Se não os prossegui, não foi por negligência ou incapacidade. Falou mais forte a piedade de não lhes dar destinos‖ (2002a, p. 135). Embora a anotação se refira ao segundo livro do autor, a afirmação final pode ser estendida a todos os personagens aos quais Rebelo, de certa fora, oferece uma ―porta aberta‖. As palavras selecionadas pelo escritor remetem a um universo ficcional de difícil contorno e ao envolvimento superlativo do criador com suas criaturas. Comprometido emocionalmente, o prosador prefere encurtar-lhes as histórias para não alargar sofrimentos, deixando implícito que desfechos malsinados talvez não devam ser escritos, ao menos quando tais desgraças ocorrem com ―heróis‖. Apesar disso, a crítica especializada não poucas vezes, desde Tristão de Athayde (1931), sublinhou a ―queda‖ a que o escritor teria destinado todos os seus personagens, discussão de que trataremos a seguir junto com outras questões relativas a mesma nota de pé de página. Logo na primeira das vinte seções que compõem o longo conto ―Oscarina‖ (O), temos os elementos responsáveis pela trajetória de Jorge, de acordo com o narrador de terceira pessoa: grave conflito com a autoridade, grande desejo por liberdade e prazer e pouca capacidade de reflexão. Assim, concordamos com Lima Torres, um dos primeiros a comentar a estreia de Rebelo, na revista Beira-Mar, quando afirma que ―a novela que dá nome ao livro é a realização mais nítida duma vida que de qualquer forma aspira a uma libertação‖ (1931, p. 6). A cena de abertura, do protagonista esmurrando a cabeça devido a uma preocupação, ilustra tanto seu desespero frente aos problemas como também anuncia o olhar irônico do narrador onisciente, que apresenta o rapaz de maneira estereotipada. A cena inicial transforma-se em metáfora quando a ―grande cabeçada‖ (REBELO, 2002a, p. 15) é explicada, já na metade do conto: o jovem havia pedido Zita em casamento, mesmo sem condições financeiras para sustentar uma casa. Para fugir do compromisso assumido, Jorge decide se alistar. Ao afastar-se da noiva, ele se envolve com Oscarina e, nessa nova vida, ganha a alcunha de Gilabert. 147

Começando a narrativa in media res, o narrador não parte do pressuposto, comum àqueles que empregam a técnica, ―de que o trecho inicial não só carecia de interesse para o leitor como poderia perfeitamente ser narrado mais tarde‖ (MOISÉS, 1978, p. 287), mas deseja abrir o livro com a descrição da angústia do protagonista:

Passava as noites em claro, noites lassas de verão, povoadas de mosquitos, impertinentes, coçava a cabeça de minuto em minuto no escritório, poeirento, antiquado, quente, como um forno no rigor daquele fevereiro bravio; perdera o apetite, não comia direito, dormia em cima da sopa, um grosso caldo de batatas com salsa e aletria boiando (...). (REBELO, 2002a, p. 13)

A cena detalhista e burlesca, ganha ares fantasiosos; entretanto, era mais enxuta na primeira versão da história, publicada no volume XI da revista Feira Literária, de novembro de 1927. As frases curtíssimas e as ações elipsadas que então a constituíam refletiam bem o modernismo prosaico da década: ―Jorge pensou três dias. E que três dias! Inteirinhos. De manhã à noite. Quase não dormia. Em casa. No trabalho. Ele pensou, pensou... Depois resolveu‖ (REBELLO, 1927c, p. 131). Como vemos, os acréscimos não alteraram substancialmente o enredo, todavia multiplicaram as páginas: a parte inicial tinha apenas quatro parágrafos e, na versão de 1931, ganhou duas laudas; o conto que tinha doze partes ganhou mais oito. Recorrentemente, Marques Rebelo é lembrado pelo esmero e obsessão nos retoques dos textos. O narrador de ―Oscarina‖ tenta nos convencer da irresponsabilidade e inconsequência de Jorge por meio do emprego do discurso indireto livre, pelo qual sabemos que seu pensamento, estrondoso como o barulho do bonde, é repleto de chavões, como ―de enganos anda o mundo cheio‖ (REBELO, 2002a, p. 15) e ―Quem não arrisca, não petisca‖ (REBELO, 2002a, p. 30). Na versão de 1927, o narrador era mais claro ainda ao afirmar que ―Jorge dos Santos não era nada. E como não era dos mais estúpidos desconfiava disso‖ (REBELLO, 1927c, p. 132). Os diálogos revelam-no um carioca afeito a numerosas expressões idiomáticas e gírias da época, como ―meteu o pau no dinheiro‖ (REBELO, 2002a, p. 23) e ―longe como o diabo!‖ (REBELO, 2002a, p. 22). A presença dessa variante linguística cresce ao longo do texto à medida que Jorge se ―transforma‖ em Gilabert. Temos um glossário dessa linguagem no livro Bambambã! (1923), do polêmico escritor Orestes Barbosa: na crônica ―A gíria‖, ele explica que tal léxico era usado pelos malandros para ludibriar, especialmente, os policiais (cf. 1993, p. 117). Os fartos diálogos inspirados no cotidiano popular são preciosos sociocultural e linguisticamente: imperam as frases curtas e de efeito, humoradas e ambíguas. Nas falas, espontaneidade e artificialidade são dosadas de maneira que o ambiente provocado pareça o 148

mais verossímil possível. Álvaro Lins sublinhou-lhes o humour, no artigo ―Província e Nação‖ (1942, p. 3), uma vez que revelavam pelo avesso a infelicidade dos personagens. Se Marques Rebelo é grande dialogista, o mesmo não se pode dizer de Jorge, que só se desembaraça melhor em conversas com a mãe, quando inventa dramas para sensibilizá-la e conseguir dinheiro. Tanto o personagem quanto o narrador desconfiam da capacidade intelectual do rapaz, daí ele se admirar ao solucionar a ―cabeçada‖, e não algum dos homens dignos amigos do pai, como Sr. Fortunato e Tenente Afonso. A relação de Jorge com os mais velhos é sempre problemática. Ao desabafar sobre o trabalho em casa, a mãe o compreende, mas o pai o chateia diminuindo-lhe o drama. O narrador associa Seu Augusto Santos, terceiro-oficial do Ministério da Marinha, à imagem da fartura: ―a Fortuna com a sua abundante cornucópia‖ (REBELO, 2002a, p. 13); para o filho, ele simboliza o que é antiquado e tedioso. Dona Carlota tinha medo do marido, lhe era submissa e se esforçava para cumprir perfeitamente as obrigações domésticas, mas, quando podia, era complacente com os desejos do único filho, a quem infantilizava; alternava, assim, a atenção: ―olhava para o filho, olhava para o marido‖ (REBELO, 2002a, p. 19). A infância de Jorge é recordada em longo flashback para ratificar a alcunha de malandro: desde menino, sentia-se atraído pelas mulheres e gostava da vida marginal. A retomada temporal também explica os antigos laços de afeto entre ele e Zita e seu desgosto pela escola. De um lado, quando criança, Jorge se apaixona pela professora de ―colo cheio e provocante‖ – ―Tremia todo quando ela cobria a sua mão com a dela, quente como se estivesse com febre, para lhe ensinar como se fazia a perna de um P.‖ (REBELO, 2002a, p. 21) –, e brinca de marido e mulher com a amiguinha Zita; de outro, faz sempre o papel de bandido, na brincadeira com os amigos, os ―policiais‖. Embora ansiasse pelos momentos de ócio, paradoxalmente, na hora do recreio, o rapazinho sentia medo do espaço amplo, do ―terreiro sombrio, com árvores velhas, carunchosas, enormes figueiras de troncos limosos onde o Gilberto apanhava lagartas. Tinha medo de atravessá-lo sozinho, e, quando chovia, ficava como um lago, onde nadavam os marrecos da servente‖ (REBELO, 2002a, p. 22). Se menino, a sonhada liberdade lhe parecia perigosa, anos depois, o desconhecido o instigará. Mas Jorge não gostava de estudar (passava nos exames com a ajuda de pistolões), e a vida fácil que o pai lhe dava aos poucos foi ficando insuficiente, pois queria ser ―livre!‖, ―gozar enquanto está moço‖, ter seu próprio dinheiro e uma ―barata amarela‖ (REBELO, 2002a, p. 24). Depois de convencer os pais de que preferia trabalhar a estudar, entristecendo-os (―mania de querer que ele fosse doutor! Doutor... Grande coisa! Todos eles uns jumentos!‖ 149

(REBELO, 2002a, p. 24)), Jorge interrompe os estudos, consegue empregar-se e sustenta uma vida ―vazia, vagabunda, com maxixes repinicados e chorosos em clubes mambembes e noitadas orgíacas na Mère Louise (o automóvel pago por vaquinha) muito regadas a chopes e ditos pornográficos da Claudina, mulatinha do outro mundo, que já tomara lisol por ciúme dum sargento da Polícia‖ (REBELO, 2002a, p. 27). Entretanto, rapidamente descobre que o pouco ordenado não retribui seu muito trabalho: sente-se explorado e passa a se dedicar menos ao serviço, ainda que o chefe não perceba. Conhece ―A crise, a crise! – era o fantasma de todos‖ (REBELO, 2002a, p. 30), ―tão difíceis andavam os tempos, tantas queixas ouvia da falta de trabalho‖ (REBELO, 2002a, p. 26). E aprende a fingir felicidade: ―verdade seja dita, soube fazê-las [artimanhas] com finura‖ (REBELO, 2002a, p. 27), sempre resmungando por trás do patrão. Como vemos, a malandragem infantil continua a desenvolver-se na juventude. O procedimento de associar questões econômicas nacionais aos protagonistas é típico em Marques Rebelo: em todos os contos, a apresentação dos personagens principais (às vezes até dos secundários) passa necessariamente pela sua realidade financeira e social, quando não política. A fase de Jorge trabalhador dura aproximadamente dois anos, enquanto mora com os pais e só pode fazer o que gosta escondido, como fumar e ler a polêmica revista A Maçã. O rapaz se preocupa demasiadamente com o que pensam dele: a grande ―cabeçada‖ que inicia o conto foi em parte gerada por ele ter ficado chateado com a tia de Zita, que o achava um canastrão. Fica irritadíssimo também com os amigos, quando o chamam de ―criança‖ e ―maricas‖ (REBELO, 2002a, p. 23-24) – por isso, não conta a eles que lê romances de aventura do francês Michel Zevaco e os quadrinhos de Búfalo Bill, muito populares na época. Apenas Carlota e Zita acreditam nas juras do rapaz, de que juntará dinheiro e voltará para casar com a moça. O que parece contraditório – Jorge, ávido por liberdade, optar pela vida no quartel – não é: além de se abster do compromisso assumido, do trabalho indesejado, do cotidiano tedioso e sufocante, dos amigos, ele se alista ―no Forte Copacabana, onde diziam que o serviço era mais folgado e havia banhos de mar‖ (REBELO, 2002a, p. 14). Apesar de o narrador insistir nas suas escolhas erradas, ele não é pouco inteligente, apenas age impetuosamente. Há significativos trechos que descrevem o Rio de Janeiro, como o que relata o anoitecer de uma praça populosa no centro da cidade, repleta de propagandas, aromas e músicas: ―O largo de São Francisco regurgitava de povo na tarde quase-noite. O anúncio luminoso acendia e apagava. Um cheiro forte de chocolate errava no ar. Homens tossiam. Se 150

o rádio não fosse tão fanhoso, compreender-se-ia a letra do samba muito bem‖ (REBELO, 2002a, p. 16). Assim, o narrador prepara a história povoada de inúmeros personagens, produtos da moda (perfumes Coty, Fanal), costumes da época e hits musicais. Tal como o espaço urbano carioca, a vida de Jorge também se transforma: ―E de repente a vida que muda por completo. Transformou-se como se transforma num teatro de revista, o cenário duma cena alegórica que vem depois duma cena cômica‖ (REBELLO, 1927c, p. 148-149). Esse trecho, da primeira versão, sofreu modificação, pois o escritor retirou a menção ao teatro de revista, gênero dramático muito importante na vida cultural carioca desde o final do século XX,

onde se dramatizam os impactos da cidade moderna. (...) Seja para reforçar o brilho da Corte em oposição à vida pacata do interior (), ou para mostrar as conquistas da modernidade ([Artur] Azevedo), a cidade está sempre em evidência. (...) Concisão, condensação, veiculação de novas coordenadas de espaço e tempo, alegoria e humor: é através dessa linguagem que o teatro de revista procura recriar ficcionalmente o cidadão e a cidade (...). A linguagem cênica utilizada no teatro se assemelhava à dos caricaturistas na imprensa: divisão em quadros, cenas curtas, personagens alegóricos e representação do cotidiano carioca. (VELLOSO, 1996, p. 76-77)

A descrição do teatro de revista se assemelha muito à estrutura de ―Oscarina‖, confirmando as múltiplas inspirações e facetas do texto, misto de conto, crônica, novela, teatro. Interessante é que, tal como o Rio de Janeiro e como Jorge, o conto também se altera para sua publicação em livro, revelando a preocupação do autor com a atualidade do texto. No início da década de 1930, o teatro de revista tanto recebia críticas negativas dos intelectuais brasileiros, que negavam seu ―status artístico‖ (VELLOSO, 1996, p. 90), quanto perdia espaço para o cinema, aludido recorrentemente por Rebelo. Pelo mesmo motivo, deve ter sido retirada a referência ao bigodinho de Ramon Novarro, ator mexicano de grande sucesso no decênio de 1920, o qual Jorge imitava: quando caiu da moda, saiu do conto. As marcas contextuais e temporais fazem com que os textos de Rebelo sejam estudados não só por críticos literários, mas também por historiadores e sociólogos. Em ―Oscarina‖, percebemos uma realidade carioca partilhada pelos grupos sociais menos favorecidos, inclusive ―estivadores, sujeitos brutíssimos e perigosos‖ (REBELO, 2002a, p. 18), que trabalham na região da Alfândega e do Cais do Porto, transitam pela rua do Rosário, frequentam rodas de samba e terreiros de macumba, passeiam em Paquetá, como também por famílias de classe média, como a de Jorge e Zita. Diferente do ponto de vista da inocente namorada, encantada com o Rio de Janeiro ―tão grande, tão diferente, cheio de avenidas, de arranha-céus, de luxos, de novidades‖ (REBELO, 2002a, p. 27), no registro do narrador, em 151

consonância com o pensamento de Jorge, além de desenvolvimento, há problemas, evidenciados, por exemplo, pela escolha dos verbos que relatam a viagem de bonde: ―O veículo comia ruas, cortava praças, atravessava avenidas, jogando casas para trás, barulhento e desengonçado‖ (REBELO, 2002a, p. 17). Os inúmeros personagens secundários ganham holofote tanto pela presença ostensiva quanto pela impressionante nomeação. Ao batizar atores participantes de apenas uma cena, o escritor aumenta a carga de fabulação do texto e constrói panorama simultaneamente plural e individualizante. No meio da multidão nomeada, Jorge é mais um indivíduo que, inclusive, adquire outro nome (como o próprio escritor). A primeira seção do conto não é finalizada com o rapaz angustiado apressado para encontrar a namorada e resolver logo sua ―cabeçada‖, mas com Henrique, rapazinho deficiente físico, morador da casa em frente, que vê Jorge saindo agitado, enquanto permanece no alpendre, sempre observando os transeuntes. O narrador aproveita os olhos de Henrique para registrar a vida na rua:

Viu-o [Jorge] dobrar a esquina. Viu passar a filha de dona Dalva, que trabalhava na cidade, viu os meninos jogarem gude (...) e recolheu-se, tão inútil se sentia – tão inútil e a tarde tão linda, arrastando-se penosamente com o auxílio das muletas, enquanto o riso dos pardais, despencando das folhas, ia atrás dele. (REBELO, 2002a, p. 15)

Assim o narrador expõe sua percepção da injustiça e do paradoxo da vida: o rapaz sadio não contempla a paisagem e corre para enganar a namorada; o que reconhece a maravilha da natureza e o movimento da rua é incapacitado e está sozinho, sentindo-se inútil. Henrique só volta à história quase no final do texto, graças a um bilhete de Carlota que, preocupada com o sumiço do filho, pede-lhe notícias, informando-o da morte do vizinho, e consegue uma visita. É aí que Jorge percebe, definitivamente, que estava mudado: na casa dos pais se sentia ―fora de seu meio, como um estranho‖ (REBELO, 2002a, p. 37). O narrador contrapõe Henrique a Jorge primeiro para sublinhar a incorreção deste, segundo, para agourar a nova vida do malandro (o que fará outras vezes). Para o recém soldado, a morte do vizinho sinaliza que não há tempo a perder. Além de Henrique, os pais de Jorge e a família de Zita também ganham, quase no desfecho, atenção do narrador: se, em um canto do Rio de Janeiro, Gilabert e Oscarina estão felizes, em outro, as consequências de seus atos produzem decepção e desânimo. A irreverência de Marques Rebelo também se revela na ―trinca maluca‖ que Jorge forma com os mestres do samba carioca Donga e Bilu, conhecidíssimos na cena musical das décadas de 1920 e 1930, frequentadores das rodas de Tia Ciata. Três músicas, de outros compositores, são citadas no conto: ―Dondoca‖, de Freitinhas (José Francisco de Freitas), os 152

versos ―Maria... Maria... / Aquela ingrata / que roubou minha alegria...‖ (REBELO, 2002a, p. 35), cuja autoria não conseguimos identificar, e ―Ora vejam só‖, de Sinhô (José Barbosa da Silva). Os trechos musicais, além de comporem atmosfera coerente com o enredo – tal como vimos o aproveitamento dos ritmos nos contos de João Alphonsus –, estereotipam os personagens, contando de certa maneira a história de Jorge e Oscarina. O acervo servirá de fio condutor para o restante da análise. Ao assobiar a primeira música acima indicada, ―Dondoca‖, apenas aludida no conto, Jorge é retido no quartel. Na época, percebe que também não se identifica com a hierarquia e as normas do militarismo, uma vez que o serviço é tedioso e os homens são desagradáveis e hipócritas. A marchinha de carnaval que lhe garante a penalidade, grande sucesso de 1927, cantada por Zaíra de Oliveira e J. Gomes Júnior, era a seguinte:

Meu Deus! Meu Deus! Que triste vida Todos me chamam de ―comida‖ Porque eu ando só! Não treme tanto a gelatina Que o caldo entorna da terrina Eu viro pão-de-ló

Dondoca, Dondoca Anda depressa Que eu belisco essa pernoca Minha Dondoca, Dondoquinha Tu és de fato, és da pontinha Tem pena do tatu

Eu ando sempre envergonhada A toda hora beliscada Que praga de urubu Vou dar o fora, vou pra casa Estou nervosa, estou em brasa Ó céus, que maldição Eu vou a pé a Cascadura Vou espiar na fechadura O teu velho babão. (FREITAS, apud TINHORÃO, 1992, p. 156)

Há cem anos, a música não recebeu repreenda pelo conteúdo machista, mas, sim, por ser inadequada a um soldado uma música popular mal vista com explícitas referências sensuais. Na contramão da pretensa rigidez militar, de acordo com a informação de Tinhorão, ―Dondoca‖ conquistou mais de um milhão de pessoas (cf. 1992, p. 156, pé de página). Na marchinha, uma mulher é chamada de ―dondoca‖ (e de nomes de comida) por desconhecidos na rua, por onde ela anda desassossegada devido às constantes investidas abusivas. Jorge se assemelha tanto à Dondoca – porque é um tipo popular como ela, está sempre perambulando 153

pelas ruas e deseja ―dar o fora‖ de lugar desagradável –, quanto àqueles que a assediam, pois se comporta de maneira similar quando avista Oscarina pela primeira vez. Apesar de intitular o livro, não só o conto, a moça apenas surge na metade do texto. Os dois se conhecem em Botafogo, território até então inexplorado pelo jovem. O diálogo registrado pelo narrador é malicioso e bem-humorado (semelhante ao beliscão que marca o primeiro encontro de Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça, em Memórias de um sargento de milícias):

– Duma morena assim é que eu precisava lá em casa... Oscarina, rebolando, virou de lado, como quem não quer, mas dando corda: – Sai, pato!... Ele não dormiu – foi-lhe atrás. Oscarina olhou para dentro da barraquinha azul e pôs as mãos no peito feiticeiro (...). (REBELO, 2002a, p. 33)

A investida vulgar de Jorge é respondida por gestos sensuais da mulher. O jogo de sedução é acordado pelas duas partes e concretizado numa brincadeira (a cena vira metáfora tal como a ―cabeçada‖): o rapaz conquista um prêmio numa barraquinha de atirar e oferece-o à homenageada. Em seguida, vão a uma apresentação circense. Assim, o início da relação anuncia como ela se manterá até o final do conto: pela diversão, pela atração sexual, pelo dinheiro, pela violência. Relevante também é a necessidade de público e de barulho para que algo íntimo aconteça, como se o casal estivesse sempre encenando. Dessa maneira, o narrador constrói ―tipos‖ cariocas. O homem malandro, que não gosta de estudar, nem de trabalhar, mas, sim, de mulher, praia, música, futebol, macumba; que tem ―respeito pela bengala do pai‖, não gosta de briga nem de mentir para os amigos, contudo se vê obrigado a isso. A mulher sedutora, morena, bonita, trabalhadora, esperta, que bebe, dança, engana e gosta de apanhar. Jorge e Oscarina se encaixam na descrição de Reis e Lopes sobre o típico personagem do gênero, que tende a ser ―uma figura complexa, mas um elemento estático, eventualmente identificando-se com a categoria do tipo; por força do pendor sintético próprio do conto, a personagem pode mesmo fundir-se com o espaço, componente diegético a que não é possível atribuir um destaque descritivo muito acentuado‖ (2007, p. 80). A segunda música citada no conto (―Maria... Maria... / Aquela ingrata / que roubou minha alegria...‖) é cantada por Oscarina na primeira noite com Jorge, criando expectativa sinistra, que não se efetiva: ela flerta com outros homens, mas permanece fiel a ele. Se, por um lado, o narrador insiste que ―Oscarina fazia dele gato-sapato, um pamonha‖ (REBELO, 2002a, p. 35), por outro, sabemos que os dois vivem ―noites delirantes‖, pois com ela Jorge desvenda ―o segredo da vida‖ (REBELO, 2002a, p. 34). A cena nos recorda ―Galinha cega‖, 154

quando Branquinha experimenta o ―lado contrário da vida‖, no acasalamento com o galo, trauma que se somará ao drama da cegueira. Se João Alphonsus não permite extensas alegrias a seus personagens, condenados à morte, Marques Rebelo oferece-lhes felicidade, embora sublinhe sua incapacidade de profunda reflexão sobre a vida. Oscarina trabalha num ―palacete colonial, branco e sem luz‖ (REBELO, 2002a, p. 34). Tal como Jorge, seu ofício desagradável remete à instituição ultrapassada; diferente dele, ela é trabalhadora, competente e ambiciosa. Por isso, pede que o companheiro se esforce para ganhar mais. Sem dificuldades, ele passa no concurso para cabo, e eles alugam um quartinho no barracão de Seu Pinto. A paixão pelo futebol, esporte em ascensão no Brasil na época, é outra faceta do jovem, a qual será muito importante porque lhe conferirá a alcunha de Gilabert, haja vista seu bom desempenho como jogador do Aymoré Esporte Clube, existente apenas nas páginas de Rebelo. O personagem começa a ser chamado assim por ser comparado ao player andarahyense Alfredo Gilabert, cuja fama lhe rendeu, só no jornal carioca O Imparcial, mais de 200 citações apenas na década de 1920, de acordo com nossas pesquisas na Hemeroteca da Biblioteca Nacional (digital). As notícias destacam as qualidades do atacante do Andaraí – Gilabert foi artilheiro em campeonatos da época –, time que também crescia na admiração dos torcedores cariocas. O batizado não fica nas dimensões do campo: se estende para as rodas de samba, para os lábios de Oscarina, para o quartel e, finalmente, para a pena do narrador, para quem, a partir de certo momento do texto, o protagonista não é mais Jorge, e, sim, Gilabert. O personagem ―sentia-se outro, mais forte, mais homem‖: inicia-se na macumba e tatua ―Oscarina‖ no braço (cf. REBELO, 2002a, p. 41). Na versão de 1927, há a explícita referência à ruptura com a casa paterna na substituição onomástica: ―Cabo Jorge... Jorge, ora que nome mais besta. Só mesmo o pai. Gilabert... Gilabert, sim é que era nome‖ (REBELLO, 1927c, p. 157). Quase no final do conto, o rapaz canta alto ―Ora vejam só‖, de Sinhô, em que o eu lírico jura, ironicamente, por Deus e Nossa Senhora, diante da mulher chorosa, que não consegue ser homem honesto (―A malandragem / eu não posso deixááá...‖), e o narrador conclui: ―Não deixa mesmo, que a vida para ele é vida de malandro. Ora se...‖ (REBELO, 2002a, p. 47). Como vemos, a literatura de Marques Rebelo divulga a música brasileira, atividade realizada também em artigos. Em ―Música nacionalista‖, publicado na Folha do Norte, o escritor afirma que ―O brasileiro, em regra, faz questão de nascer sob o signo da música. O 155

signo, no século passado, foi italiano. Foi um pouco mais nórdico no começo deste século. Agora é francamente no morro, isto é, da capital da música nacional. Já é um bom sinal para quem tanto viveu do que vinha de fora‖ (REBELO, 1948, p. 4). Para ratificar sua opinião de que a música não era ―linguagem internacional‖, como muitos queriam, mas ―manifestação nacionalíssima‖, o ensaísta alude ao Panorama da Música Contemporânea, de André Coeury, e encerra euforicamente o ensaio do jornal paraense, visto que a música do morro, nascida bem antes daquela década, naquele momento ―desce‖ para os estúdios e ganha notoriedade, conquistando o rádio e o cinema. Nesse sentido, é interessante saber que o título do primeiro livro de contos de Rebelo seria Morro da mangueira e outros morros, de acordo com as ―Notas rápidas sobre o autor‖, da revista paulista Feira Literária (cf. REBELLO, 1927c, p. 130). Se o narrador, no início do texto, é mais complacente com Jorge – considerava-o rapaz ingênuo –, aos poucos, passa a julgá-lo negativamente, ironizando suas atitudes e chamando-o de hipócrita. Simulando a vida marginal de Gilabert, a narrativa fica mais fragmentada, e as seções, menores. Para o narrador, a trajetória do protagonista não apresenta progresso: ele é fraco, bebe, grita e espanca Oscarina; ela, depois da surra, beija-o. O tom machista é ratificado a todo instante pela ausência de julgamento das ações violentas de Gilabert em relação à mulher: o relato faz crer que ela gostava daquela rotina. Talvez certo episódio futebolístico tenha contribuído para a escolha de Marques Rebelo, que ―escala‖ o jogador Gilabert, e não outro da época, em seu livro. Além do excelente desempenho com a bola, os jornais também destacam a agressividade do atacante na partida em que o Andaraí perdeu de 5 a 1 para o Corinthians, conforme lemos na notícia abaixo:

No que se refere à assistência que compareceu ao ground do Andaraí, pode-se dizer sem errar, que ela excedeu a expectativa. Excedeu, porque sendo o local da peleja bastante afastado da cidade e servida por uma linha de bondes que não sabe corresponder aos desejos dos desportes desta Sebastianópolis, julgaramos que menor seria o número de pessoas que ali compareceu. (...) Enorme, enormíssima mesmo, foi a concorrência ao campo do Andaraí. Todas as suas dependências, as suas arquibancadas ali construídas e morro vizinho estavam literalmente apinhadas. (...) Não se compreende, que sportsmen cujo escopo principal é a obediência e a disciplina, se esqueçam, dos sãos princípios de cortesia, para diante de um grande público, empanarem o brilho de uma partida, que na ocasião representava, mais de perto, o reatamento das relações, estremecidas entre irmãos, por efeito de uma questão, hoje, felizmente, terminada. Não quis o Andaraí, não quis o player Gilabert, não quiseram ainda várias pessoas ali presentes que a grande partida se tornasse o eco do nosso entusiasmo, a alegria interna pelo retorno das provas Rio X São Paulo. 156

Sobre o procedimento do player Gilabert, ele foi tão inconveniente, tão indisciplinar, que o referee paulista, Villas Boas, se viu na contingência de expulsá- lo do campo. A sua atuação foi verdadeiramente desastrada: a ofensa que dirigiu ao júri, foi de tal alcance que esse, bem contra a sua vontade e seus hábitos, não trepidou em dar-lhe o castigo a que fez jus. (...) Os ―sururus‖, por essa vez, não desmereceram no desconceito em que são tidos. Várias pessoas se engalfinharam, umas nas arquibancadas, outras fora delas. (O PAIZ, 1921, p. 3)

No texto acima, o cronista relaciona esporte e questões político-sociais ao sugerir que o futebol poderia amenizar a tensão entre Rio de Janeiro e São Paulo, mas também denuncia a superlotação dos transportes públicos e a briga preconceituosa entre torcidas. As atitudes de Gilabert (tanto o ficcional quanto o real) fogem da proposta de homem civilizado que o futebol moldaria chamado na época de ―sportman‖. O emprego de muitas palavras inglesas na notícia se justifica pela origem do jogo, entretanto sua permanência (algumas poderiam ser traduzidas para o português, mas não eram) em diversão de popularidade crescente indicia a influência daquela cultura sobre nós. O ponto de vista do narrador de ―Oscarina‖ se aproxima ao de D. Carlota, que infantiliza Jorge, como também ao de Seu Santos e da tia de Zita, que desqualificam o rapaz. A condenação é estendida a Oscarina: ―Agora, os seus pileques são no quarto mesmo, junto com a cabrocha que emagreceu e se saiu uma esponja de primeira grandeza‖ (REBELO, 2002a, p. 46). Se o narrador descreve os gatos luxuriosos e os cachorros agitados que compõem a última cena – em que o casal bebe, canta e faz planos para o futuro (―Sargento Gilabert‖) –, o faz para associar os personagens aos animais e reforçar sua ―queda‖. A trajetória dos protagonistas se aproxima da definição de Massaud Moisés:

O anti-herói não se define como a personagem que carrega defeitos ou taras, ou comete delitos e crimes, mas a que possui debilidade ou indiferenciação de caráter, a ponto de assemelhar-se a toda a gente. E que apenas ostenta relevo porque selecionada pelo escritor da massa humana onde se inscreve. Na verdade, o herói identifica-se por atos de grandeza no bem ou no mal, enquanto o anti-herói não alcança emprestar altitude ao seu comportamento, seja positivo, seja negativo (...). (1978, p. 29)

Entretanto, uma das afirmações mais divulgadas sobre os personagens de Oscarina é a de Tristão de Athayde, retirada do artigo de O jornal:

Escolheu o Sr. Marques Rebelo um meio geralmente pouco explorado literariamente: a pequenina burguesia. Digo pequenina, porque em geral os seus contos descem. É um dos traços do seu desencanto. São vidas oblíquas quase todas as que descreve. São criaturas que rolam a encosta, que baixam de classe, que começam em regra na pequena burguesia para acabar na pequeníssima, no mundo dos criados domésticos e dos serventes públicos. (1931, p. 4)

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Diferentemente, acreditamos que a maioria dos personagens do livro de estreia de Rebelo não tende à queda, mas à permanência no mesmo status social, visto que há conformismo e incapacidade de mudança, embora ela seja desejada. Além de Jorge, a única personagem que fica mais pobre ao longo da história é Veva, de ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O), como veremos adiante. Se para o narrador o cenário final é de decadência, essa não é a visão do casal carioca. Rebaixado pelo narrador, o protagonista, apesar de ganhar dois nomes, não garante nem um deles no título do conto, e Oscarina alcança o letreiro. Tal substituição reforça a importância das mulheres na trajetória de Jorge-Gilabert: elas exercem basicamente os papéis de proteção e de prazer. Intitula a história aquela que conquista o coração do homem: ―Oscarina tinha tomado conta dele‖ (REBELO, 2002a, p. 34). Outro conto que tematiza a figura do malandro é ―Retrato de rua‖, publicado no Correio da Manhã, em 02/03/1947, e só inserido em Stela me abriu a porta na reunião feita pela editora José Olympio, em 1977, em que comparece como a terceira das ―Cenas da vida carioca‖, datada de ―1943‖. Vale lembrar que constam da primeira edição do livro de 1942, duas ―Cenas‖, indicadas pelos números romanos I e II, assim dispostas uma vez que dialogam entre si, conforme indicamos no subcapítulo ―Rio de Janeiro‖. Na reunião de 1977, três narrativas foram acrescentadas, e todas ganharam novos indicadores: os anos 1933, 1934, 1943, 1952 e 1953. A terceira (―1943‖) tem em comum com as primeiras o fato de registrar tipos cariocas, em especial aquele que se tornou estereótipo do Rio de Janeiro naquele momento, o malandro. As duas últimas, da década de 1950, tangenciam a apresentação de personagens-tipo e fogem do alcance temporal desta tese. Incertos de que a reorganização por ano, estampada na edição da década de 1970, tenha sido proposta pelo autor, falecido em 1973, preferimos nos referir ao conto pelo título que Rebelo empregou no jornal: ―Retrato de rua‖. Como uma fotografia requer, no texto temos o ―fotógrafo‖ – o narrador-personagem é carioca silencioso, sobre quem sabemos pouco – e o ―fotografado‖ – o protagonista é um baiano muito falante, de 37 anos, sobre o qual temos detalhes físicos (um canino de ouro) e comportamentais (a malandragem). O vazio onomástico, estranho em Marques Rebelo, reforça a estereotipia dos personagens: podemos imaginar vários cidadãos ocupando os papéis em questão, seja o do observador atento às histórias fantasiosas, seja o do vendedor bêbado. Quase todo o conto transcorre dentro de um bar, na região do Castelo, à tardinha. Grande destaque é dado à linguagem popular, rica de vocabulário da época, e seu duvidoso conteúdo, revelando irreverência e arrogância. A cena é corriqueira – um homem se aproxima 158

para vender favas paraenses (falsificadas), e o interlocutor reage negativamente ao pregão, dispensando-o e chamando-o de ―meu filho‖ –, mas o decurso é imprevisível:

– Gostei da palavra! É isso mesmo: meu filho. (Os olhos vermelhos, o jeito mulato, os cabelos mulatos, e a atração do espelho, falando mais com o espelho do que comigo, falando mesmo só com o espelho, fazendo gestos, gostando dos seus gestos, admirando-os profundamente.) É a sentimentalidade que a gente tem profunda, compreende, não é? Como a morte, como o mar, como o vento. Não é a boca que diz, é a coisa lá dentro, o êxtase sensível da criatura. (REBELO, 2002a, p. 281-282)

A expressão mecânica do narrador é desmascarada pelo ambulante (o vocativo convencional, mesmo que inconscientemente, indica nível hierárquico superior), no entanto é compreendida de maneira mais sensível. O espelho reforça a ideia de enfrentamento da imagem: embora o baiano se incomode com o próprio reflexo, pois lhe falta um dente da frente (índice que o associa a grupo social empobrecido e discriminado), ele afirma semelhança com o interlocutor. Se socialmente eles são distintos – um cidadão respeitado e um ladrão mentiroso –, humanamente são iguais, e, por isso, ―familiares‖. Ainda que o narrador pouco fale, algo nele, talvez a atenção que oferece ao vendedor falante, faz com o homem lhe conte aventuras, por meio das quais teria aprendido guarani (desbravara o interior brasileiro: Tocantins, Rondon e os índios) e inglês (viajara para o exterior: Hamburgo, Bremen, Índia). Suas experiências o tornavam apto a refletir sobre questões de foro coletivo:

O que as autoridades, não as autoridades militares, porque o militarismo era no mundo um evangelho agora, o que as autoridades civis precisavam era isso – conhecer mundialmente o mundo, porque só o conhecimento das coisas é que dava para eles enxergarem, para poderem julgar, porque bofetada na cara, parei!, não era assim que se julgava um homem (espelho). Bofetada na cara, aí sim, e esse negócio de cadeia é para isso. Deu aquele suspiro fundo de virar os olhos – conhecia o mundo. Favas do Pará? Riu. O senhor não foi no golpe. (...) Poxa, mas no mundo há besta pra chuchu! (...) – Bem, conhece as coisas. Favas... Agora eram favas, mas ele vendia o diabo! Risinho: abafava os troços – homem é isso, meu filho! Roubava, afanava, dava um jeito, vendia. Só na Bahia vendera noventa e cinco máquinas de fotografia moambadas em Nova Iorque. (REBELO, 2002a, p. 283)

A estrutura narrativa é dinâmica e fragmentada, tanto para representar a oralidade e a embriaguez do rapaz, quanto para expor sua vida simples e instável. No final da conversa, ele conclui, como se fizesse uma ―declaração de amor‖: ―– Ai, eu gostaria de contar minha vida. Sabe como? Debaixo duma gameleira, enorme, com uma boa vitrola, tocando ao lado uma ópera bem profunda. Ah – suspirava –, assim é que eu gostaria de contar a minha vida!... Em volta, um barril de chope, um barril de cachaça, meu Deus!...‖ (REBELO, 2002a, p. 284). 159

O desejo do malandro carioca inclui bebida nacional e música estrangeira; entretanto, sua realidade é bem menos lírica que a sonhada:

Mas de repente ficou agitado: Roubar? – espalmou a mão enorme no peito – puxa! deu um solavanco. Compreende, não é? foi o Lloyd que deu jeito na coisa, sabe, era brasileiro. Sing-Sing... – e arrancou para sumir. Arrancou, mas voltou: Olhe, ladrão é rico! homem sério não vale nada neste mundo. Ladrão, meu filho, ladrão! E sumiu para sempre com suas favas cheirosas. No fundo da rua, entre os homens, ainda o vi um instante – atracando um homem. (REBELO, 2002a, p. 284)

No último parágrafo do texto, a referência ao presídio de segurança máxima de Nova Iorque (Sing-Sing) completa o perfil marginal do protagonista, que teria passado por lá. Nem o desequilíbrio nem a embriaguez, porém, fazem com que ele se esqueça de voltar e encerrar a conversa da mesma maneira como ela foi iniciada: agora é ele quem chama o ―homem sério‖ de ―meu filho‖. Diante da passividade do ouvinte, o baiano experiente se posiciona em degrau superior, embora sua realidade seja aparentemente degradante. Se compararmos o narrador moralista de ―Oscarina‖ (O) com o silencioso observador de ―Retrato de rua‖, percebemos nítida mudança no registro: tanto no foco narrativo selecionado (de terceira para primeira pessoa), quanto na visão de mundo implícita. Na história da década de 1940, temos um retrato simpático de alguém que poderia ser linchado devido a seus atos pouco cidadãos. Duas décadas depois de dar vida a Jorge-Gilabert, o narrador rebeliano, seduzido por esses tipos populares, prefere ouvi-los a julgá-los. Essa é a percepção de Wilson Lousada, que captou a singularidade da atenção de Marques Rebelo em relação a ―seres humildes, as vidas sem brilho, as criaturas flutuantes e socialmente descaracterizadas do Rio da época atual‖ (1941, p. 277). Para Monica Velloso, pesquisadora da relação das ruas com a literatura carioca do início do século, ―o submundo, a marginalidade, a boemia e as ruas constituem espaço expressivo para se pensar a modernidade brasileira, notadamente a do Rio, onde a exclusão social seria vivenciada de forma mais aguda‖ (1996, p. 29). Se as personagens rebelianas que têm o nome alterado são as que mais sofrem mudanças, a primeira desta lista é Clarete, de ―Felicidade‖ (O). As cenas selecionadas pelo narrador onisciente contam a evolução da personagem: de princípio, vemos uma jovem bonita que corre para não perder o bonde para o trabalho; em seguida, ouvimos seus pensamentos na viagem do subúrbio para Botafogo, um dos bairros mais nobres do Rio na época; por fim, em flashback, viajamos temporalmente, conhecendo três períodos de sua juventude, simbolizados nos nomes adquiridos, respectivamente, em cada um deles: Clara, Clarinha e Clarete. 160

A identidade flutuante se deve à mutável percepção que a personagem tem de si mesma e a sua diferente recepção aos olhares masculinos. Sublinhando esse processo, o narrador constrói cenas em que ela se vê, analisa e projeta, como também outras, em que é vista, analisada e projetada pelos homens, inclusive pelo narrador. Alvo de todos os olhares do conto, Clarete aparenta alegria, e sua trajetória, de acordo com o senso-comum, é vitoriosa, pois ela ―sobe‖ na vida; entretanto, essa não é, como veremos, a visão do narrador, que dá à história título irônico (―Felicidade‖). A técnica narrativa – as cenas e os cortes selecionados, os diálogos, pensamentos e sentimentos captados – assemelha o conto a um filme, impressão que ecoa na leitura porque a protagonista é aficcionada por cinema. Quando o narrador descreve o entorno de Clarete, simula narrar aquilo que ela vê, inclusive com a rapidez de seu fluxo mental. Neste momento, há uma preocupação significativa com os olhos da personagem: cinemáticos (ao buscar o bonde), fotogênicos (quando espera o bonde), repreensivos (ao censurar certo rapaz que a olhava). Isso explica um pouco porque alguns textos de Marques Rebelo tenham sido adaptados para a TV e para o cinema, como o romance A estrela sobe (1939). O narrador irônico apresenta a personagem a partir de elementos díspares, como notamos logo na primeira cena. A primeira qualidade de Clarete seria a de não ser insistente; entretanto, a moça corre para não perder o bonde como também para conquistar seus objetivos. Também os numerosos diminutivos que acompanham os objetos relacionados a ela até o final da história – ―carrocinha‖, ―rabinho‖, ―reloginho-pulseira‖, ―passado pequenino‖ – não estão de acordo com o amadurecimento da personagem. Durante a viagem de bonde, a moça se recorda de Seu Rosas, com quem flertara e de quem ganhara certo reloginho Longines, anunciado pela rádio como o produto mais famoso do mundo. Sem entender-lhe o sumiço, aflita, havia rogado ao santo protetor da mãe, São José; porém, quem lhe esclarece a situação é a folhinha da parede e o Jornal das Moças. A lógica foi a seguinte: a imagem de uma borboleta, no calendário da parede, lembra-lhe um poema lido no jornal, que afirmava serem as borboletas levianas. Se Rosas havia ―voado‖ para longe dela, Rosas era leviano como uma borboleta. A dedução simples, inocente e maliciosa é censurada por ela mesma: ―Borboleta?! Não. Ora, que bobagem! Seu Rosas era seu Rosas mesmo. Ria‖. Esse pensamento garante que Clarete não sofra mais, desejando ao ―mocorongo‖: ―que se dane‖, ―que leve o diabo!‖ (REBELO, 2002a, p. 94); se tivesse morrido, normal, era velho. A personagem é ambígua – (in)sensível, doce e bruta, inocente e maliciosa –, o que nos faz concluir que a ―borboleta leviana‖ não era Seu Rosas, mas ela mesma. 161

No bonde, o pensamento de Clarete sai-lhe pelo olhar: suas expressões são captadas porque revelam, além de pensamentos e sentimentos, cenários e personagens. A narração assume o ponto de vista de Clarete: do relógio a Seu Rosas e dele ao rico chapéu da senhora do banco da frente, que deveria valer o ordenado da mocinha. Assustada só de cogitar o valor do acessório, ela volta a pensar no ex-pretendente ―sem querer‖. A associação ingênua gera humor, pois sublinha seu interesse financeiro. Um sorriso ao acaso chama a atenção do jovem que a olha interessado enquanto lê o Rio Esportivo. A moça lança a ele um olhar de censura, envergonhando-o. Quando chega à Praia de Botafogo, sua saída do bonde é enérgica, e acompanha-a ―o olhar perseguidor da rapaziada‖ (REBELO, 2002a, p. 95). Dessa maneira, são valorizados os múltiplos cruzamentos de olhares, realizados em lugar público, propício para encontros furtivos. Ao revelar que, além de Seu Rosas, associado a um relógio, homens mais jovens também se interessam por Clarete, o narrador faz novo flashback e retorna ao tempo em que ela começou a ser desejada, quando era chamada simplesmente de ―Clara‖. Na época, tinha cabelos longos, não usava maquiagem, nem sobrancelha modelada, e era magra devido à frágil situação financeira da família, que a obrigava a trabalhar numa fábrica de papelão. Já aí, a menina sardenta desejava retirar umas pintinhas que a infantilizavam, porque os meninos da rua a perturbavam chamando-a de ―ovo de tico-tico‖ (REBELO, 2002a, p. 95); dessa forma, encobriam os suspiros pelas pernas da mocinha, que respondia com indiferença àqueles anseios. A atenção de Clara se direcionava às revistas ilustradas, que anunciavam cosméticos milagrosos, e aos filmes do cinema, onde ria e chorava diante do universo de divas e galãs. Assim, aos poucos, para atender as expectativas do sexo oposto e para se sentir bonita, a menina transforma-se em ―Clarinha‖. Mais uma vez, observa-se a estratégia rebeliana de caracterizar os personagens fundindo base social e análise psicológica (cf. TRIGO, 1996, p. 8). A segunda transformação, de Clarinha para Clarete, é rápida: em metade de um parágrafo sabemos que, depois de esconder as sardas com a ajuda do Bylbet-Cream, descoberto nos anúncios, e passar a usar batom, ela sonha ser atriz de Hollywood e viver romances com os artistas. Entretanto, aquém de seus sonhos cinematográficos, apenas consegue o segundo lugar no concurso de beleza do bairro e, a partir daí, passa a se chamar ―irremediavelmente, Clarete‖. A claridade evocada pelo nome evidencia o anseio de estar sempre sob holofotes: ―Estudava poses até de esperar o bonde‖ (REBELO, 2002a, p. 96). Para ficar atraente, a moça gasta todo o salário com a aparência, nada mais sobrando para a mãe; assim conquista Cazuza e Mister Shaw, seus dois principais pretendentes. 162

Ratifica-se, então, que a imagem da borboleta leviana é súmula da protagonista: tal como o inseto, ela atravessa fases e, como o adjetivo sugere, apresenta caráter ousado para uma mulher à época. De certa maneira, as estratégias de mudar o nome de protagonistas e de nomear os abundantes personagens secundários são desdobramentos daquele recurso que fez com que Eddy Dias da Cruz optasse pelo pseudônimo de Marques Rebelo. Em O Trapicheiro, o narrador reflete: ―Que nomes temos nós? Que é um nome? Que pandemônios de contradições não polarizam as sílabas que nos marcaram, sílabas que não pertencem à nossa matéria original, que terminam esquecidas em lápides esquecidas, fonemas de discutível eufonia que nos foram impostos como ferrete?‖ (2002b, p. 12). Mais à frente, ele conclui: ―Os nomes importam em razões sentimentais. E nossos nomes deveriam ser escolhidos por nós mesmos, nos envergonharíamos menos, não perturbariam a nossa personalidade, impediriam dalgum modo o jogo pundonoroso dos pseudônimos‖ (2002b, p. 14). Diferente do que ocorre com Jorge, que ganha nome totalmente novo (Gilabert), Clarete apenas troca sufixos, mantendo o radical intacto. Isso nos faz associá-la também à multiplicidade do Rio de Janeiro, na época, ―uma cidade com muitas cidades dentro‖ (REBELO, apud TRIGO, 1996, p. 5). Devido às bruscas mudanças pelas quais passou nos primeiros anos do século XX, a região central foi modernizada, aliando conquistas científico- tecnológicas, desenvolvimento urbano-industrial e novas representações culturais (cf. VELLOSO, 2010a, p. 49). Álvaro Moreyra já havia associado a figura da mulher à da cidade no livro de crônicas A cidade mulher (1923), abordando simpaticamente as transformações físicas e comportamentais da então capital federal, tal como vinham estampadas nas capas das revistas da época através de perfis femininos, inspirados em novos comportamentos e nas novas modas (cf. VELLOSO, 2010a, p. 46). ―Dispositivos modernizadores‖ (SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 33), como o cinema, a fotografia, a industrialização, as viagens, a presença do estrangeiro e a classe operária, ensinam Clara a ser mulher e a ser moderna de acordo com o senso comum da época. Tais dispositivos traziam à tona a discussão da identidade nacional, uma vez que

eram tensos os vínculos entre o regional e o nacional, o local e o cosmopolita, o rural e o urbano. (...) Tal discussão ia além de uma rixa entre desafetos: envolveu disputas relativas à conformação do campo intelectual, das artes e da vida política. A definição do que era ―ser moderno‖ e ―ser brasileiro‖ incluía acirrada disputa interna entre os intelectuais. (VELLOSO, 2010b, p. 63-65)

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Rebelo junta, no conto ―Felicidade‖, dados regionais – o bairro de Botafogo, as ladeiras suburbanas, o Café Glória do Sul, os jornais, o bonde – e estrangeiros – os artistas norte-americanos, os produtos de beleza, o Packard de Mister Shaw, o charleston. Os pretendentes de Clarete ilustram a oposição: Cazuza é brasileiro, ―meio tapado‖, cafajeste, gosta de samba, anda de bonde e frequenta o Café Glória do Sul, onde divulga ―glórias‖ sexuais de seu caso com a moça; já Mister Shaw é americano, subdiretor da estação telefônica em que ela trabalha, dono de um ―caríssimo Packard‖, mas que ―vinte anos de Brasil não fizeram falar decentemente o português‖ (REBELO, 2002a, p. 98). Se o narrador mostra certa preferência pelo elemento natural, Clarete não tem dúvida e opta pelo estrangeiro, embora não sentisse por Shaw a paixão que a ligava a Cazuza: ―Pesou ali mesmo os inconvenientes e as conveniências – madame Shaw, dezoito anos, uma casa alinhadíssima, um passeiozinho pelos Estados Unidos...‖ (REBELO, 2002a, p. 98). Assim, convenceu-se de que o rapaz era apenas um flerte e, com a mesma facilidade com que havia esquecido Seu Rosas, termina o relacionamento com o malandro. Entretanto, a viagem de lua de mel não a leva ao exterior, mas a um apartamento na Glória (a localização é irônica também porque recorda as ―glórias‖ inventadas por Cazuza): o marido era econômico e gostava dela com parcimônia. Apesar de não sair do Brasil, ela insere elementos estrangeiros ao seu dia a dia: além do esposo americano, tem manicure francesa, vai ao Contry Club, ―onde joga tênis razoavelmente mal, dança muito, fuma cigarros Camel, finge que lê o Times – seção para as damas‖ (REBELO, 2002a, p. 99) e incorpora à fala cotidiana muitos yes. No entanto, essa nova Clarete não forja um novo nome como vinha acontecendo ao longo da história, mas apenas adota o título de ―madame‖. A desatualização onomástica sugere que o casamento apenas tenha ratificado a identidade postiça da personagem, cuja maior preocupação continuaria ser a impressão alheia, exemplo do cosmopolitismo alienado e do deslumbre frente ao estrangeiro típico das sociedades periféricas. Sob as roupas importadas, permanece ―irremediavelmente, Clarete‖ (REBELO, 2002a, p. 96). Desde o nome, a protagonista personifica uma mistura complexa e polêmica; busca a felicidade, mas não a encontra plenamente:

Clarete, nua defronte do espelho, dançava o charleston, mas dava-lhe uma tristeza repentina, e, se afundando nos lençóis, tinha algumas crises de choro. No outro dia acordava de olheiras e queixava-se à mãe que naquela noite não pudera dormir com uma dor de dente cachorra. Dona Carolina olhava-a fixamente, suspirava e não dizia nada. (REBELO, 2002a, p. 97)

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O trecho revela que, além da carência social, Clarete era sexualmente reprimida, como boa parte das mulheres de sua época. Na tentativa de ser feliz, faz escolhas que a afastam de suas raízes: antes de se casar com Mister Shaw, desprezando o brasileiro Cazuza, já havia lançado mão de cremes americanos para esconder as sardas. A maquiagem e o casamento metaforizam a tentativa de substituição cultural, simbolizada também pela troca linguística expressa na última frase do conto: ―Visita a mãe, de quando em quando, levando frutas, conversando sobre a sorte infeliz das ex-vizinhas – uma casada com o Pedro da padaria - gastando muitos yess pelos quais está mais perdida do que pelos diminutivos, e acha, agora, a cara do chofer japonês muito menos invocante‖ (REBELO, 2002a, p. 99). Os diminutivos portugueses que antes a caracterizavam, infantilizando-a e sensualizando-a simultaneamente, agora são preteridos por estrangeirismos. Curiosamente, ao reduzir diminutivos que construíam sua personalidade, Clarete também se diminui; a trajetória crescente do desabrochar feminino é paralisada pelo relacionamento interesseiro com Mister Shaw, que, ao invés de expandir os horizontes da moça, fecha-a num círculo estagnador. Isso porque a vida que passa a ter não é plena: julgando a cultura americana superior, viverá de aparências (ela parece feliz, ela quer parecer uma artista de cinema, ela finge ler). Clarete, ímã dos olhares masculinos, tem uma falsa ascensão, pois enriquece, e não amadurece enquanto ser humano, muito menos enquanto brasileira. Assim, a mudança morfológica apresenta-se gramatical e cultural. Em especial, o sufixo ―-ete‖ atribui traço moderno mas bem humorado à protagonista (como em ―tiete‖), como também a associa a vocábulos típicos do merchandising (como ―quitinete‖), além de o morfema ser um estrangeirismo, vindo do inglês (como em ―chiclete‖), do francês (―garçonete‖) ou do italiano (―espaguete‖) (cf. ALVES, 2010, p. 202). Se para ela, seu nome final resume sua ―Felicidade‖, para o narrador irônico, o nome estrangeirado a ridiculariza, uma vez que a sobreposição de culturas resultaria em um hibridismo macaqueado. Embora as personagens femininas de Marques Rebelo expressem o machismo dominante na época e estejam longe da liberdade e dos direitos que hoje esperamos de uma sociedade igualitária, vale lembrar que, comparado a seus contemporâneos, o autor expressava ponto de vista até razoável. No mesmo ano da publicação de Oscarina, Berilo Neves escreveu A mulher e o diabo (RJ, 1931), e Dante de Laitano, Uma mulher e outras fatalidades (RS, 1931). Diferentemente, Rebelo nomeia as mulheres de seus contos e sublinha nelas, além da beleza e da alienação, a fragilidade e a humanidade. Financeiramente o casamento é um trampolim para a protagonista, o que faz de Clarete a única personagem de Rebelo a ―subir‖ na pirâmide social, ideia sublinhada por 165

Frungillo (cf. 2007, p. 125) e Vasconcelos (cf. 2012, p. 19), a qual contrasta com aquela de Tristão de Athayde, para quem todos os personagens de Rebelo tenderiam à queda social (cf. 1931, p. 4). Entretanto, a ascensão de Clarete é apenas monetária, o mesmo não se pode dizer em relação à sua identidade pessoal e social, visto que a prosperidade e o contentamento maquiam-lhe a realidade. Fissuras denunciam que o casamento promissor já começa em ruínas: ela continua a fantasiar amantes, gosta dos gracejos do amigo do marido, finge ler inglês, joga mal. Clarete se rende ao deslumbre americano indo em direção contrária à proposta modernista, que condenava a imitação de estilos e do estrangeiro (afirmação de Júlio Mesquita, na Revista do Brasil, em São Paulo, 1916 (cf. apud MARTINS, 1996b)), em favor da nacionalização do espírito. Também se movimenta na contramão do que Rebelo, entusiasta da cultura e da arte brasileiras, viveu intensamente. A frase de Santiago sintetiza a crítica: ―Nas terras brasileiras, o verdadeiro selvagem não é o tupi-guarani, é antes o brasileiro que não se abrasileira, que fica sonhando a-criticamente com o estrangeiro‖ (2005, p. 14). O conto ganha como título um dos valores-chave para Rebelo. Menos preocupado do que Alphonsus em registrar questões metafísicas, o carioca se dedica à escrita do que faz os seres felizes de acordo com eles mesmos, ainda que o narrador discorde muitas vezes das vias pelas quais eles a conquistam ou se de fato eles a conquistam. A pergunta feita pelo protagonista de ―Espelho‖ – ―Mas onde está a felicidade?‖ (REBELO, 2002a, p. 114) –, semelhante à de Onofre (no conto homônimo) – ―O que era então a felicidade?‖ (REBELO, 2002a, p. 127) –, repercute em todos os contos, e Clarete a responde de sua forma particular. São felizes os personagens que conseguem se libertar, mesmo parcialmente, dos padrões sociais (mesmo que o próprio narrador represente às vezes força coercitiva), das amarras do tempo (daí as muitas referências a relógios nos contos), das preocupações pragmáticas, do medo, da restrição espacial, do cotidiano tedioso. As falsas alegrias das classes privilegiadas são desmascaradas (em ―Tragédia‖ (O) e ―Uma véspera de Natal‖ (O)), e a tristeza dos pobres é dramatizada (em ―Onofre, o Terrível, ou A sede de justiça‖ (O)) –, sem intuito de polarização da alegria e da tristeza em camadas sociais distintas: basta ver a satisfação predominante em ―Quatro momentos de um idílio‖ (S). Tristeza, nos contos de Rebelo, é a exploração, o aprisionamento, a cópia de modelos. Alegria é poder escolher, ser livre, estar na rua, aproveitar o novo. Jorge, Oscarina e Clarete se assemelham porque são ―indivíduos solitários em busca de um lugar no mundo, lutando com suas próprias forças contra uma ordem social adversa, que os tinha condenado desde o nascimento a uma vida medíocre e apagada‖ (FRUNGILLO, 166

2007, p. 127). Isso porque, diferente do que alguns estudiosos indicam, os textos de Marques Rebelo não se prendem a um enquadramento único dos tipos cariocas; pelo contrário, o narrador possibilita interpretações para além dos estereótipos, o que nos lembra a compreensão de Schwarcz e Starling sobre o assunto:

(...) identidades não são fenômenos essenciais e muito menos atemporais. Ao contrário, representam respostas dinâmicas, políticas e flexíveis, uma vez que reagem e negociam diante das diversas situações. Talvez por isso preferimos nos aferrar, igualmente, à ideia de que a plasticidade e a espontaneidade fariam parte das nossas práticas e formariam um éthos nacional (2015, p. 17).

Outra personagem feminina que encena a liberdade é Marcia, protagonista de ―A moça e a primavera‖. Apesar de comparecer na reunião da José Olympio (1977) como integrante de Stela me abriu a porta, o conto não consta da primeira publicação do livro, em 1942; de acordo com nosso rastreio, foi o carioca Correio da Manhã, em 08/09/1946, que primeiro divulgou o texto, acompanhado do desenho de Luiz Jardim, abaixo copiado:

Ilustração n.º 6 – Desenho de Luiz Jardim para ―A moça e a primavera‖ (1946)

A ilustração centraliza a figura feminina em repouso enquadrada em paisagem natural facilmente identificada como o Rio de Janeiro, devido à presença do mar e do Pão de Açúcar. A ondulação do cabelo da moça e de seu vestido é semelhante à que compõe o morro, contrastando com a rigidez do chão geometricamente formado. O artista captou a cena inicial e final do conto, que descrevem Márcia deitada pensando em seus pretendentes, enquanto os pais liberais pouco a atrapalham. O narrador anônimo transmite os pensamentos da moça de dezoito anos, encantada simultaneamente por vários rapazes, ainda que entre os dois preferidos, Antônio Carlos e Abelardo, o de nome composto ocupe mais seu tempo e seu afeto. O desfecho não reserva nenhuma decisão da moça, que ri de si mesma, uma 167

―matusquela‖ (REBELO, 2002a, p. 267), palavra popular na época para adjetivar alguém desajuizado. Antônio Carlos, baixo, louro, gordo, de mãos delicadas, parece que possui menos virtudes que inconveniências, apontadas por Márcia a cada encontro furtivo. Em especial, irritam-na os óculos – anacrônicos, revelam passadismo – e a voz do rapaz, devido a críticas, arrogância e teimosia. Discutem muito, porque, tal como Clarete (de ―Felicidade‖ (O)), Márcia gostava de andar na moda, mas é ridicularizada por ele. Já Abelardo é alto, moreno, galante e pintoso: tem voz ―ondulante, oleosa, escorregadia (...) declaração de amor‖ (REBELO, 2002a, p. 263), emprega vocabulário repleto de gírias, bebe e anda na moda, leva a moça a noitadas e diz-se apaixonado. Entretanto, os encontros com ele também não são totalmente irretocáveis:

A música lânguida, pegajosa, no escurinho estreito e enfumaçado da boate, e a voz macia e surda, cheirando a uísque, escorregava-lhe pelos ouvidos, vinha cair quente no coração, fazia-a trêmula, embriagada, como se tivesse tomado um pilequinho – ai, seus pilequinhos! – e os passos, como se empenhadamente houvessem ensaiado, estavam sempre completamente certos no compasso – completamente! (...) (REBELO, 2002a, p. 263)

Ela gosta do improvável, da surpresa, sensação experimentada durante as conversas travadas com Antônio Carlos. Para seu espírito livre (discorda do pretendente ríspido, que defende que mulher não deve fumar) e vibrante, nada pior do que uma dança ensaiada, isto é, um relacionamento sem novidades. Porém, ela afirma o contrário quando se refere à moda: ―Não adianta bufar, Antônio Carlos, eu danço conforme a música!‖ (REBELO, 2002a, p. 262). O amigo, semelhante a Márcia, não cede nem física nem psicologicamente: veste-se e age como quer ―só pra chatear, pois compreendia tudo o que era moderno e oportuno, sabia distinguir perfeitamente tudo quanto era de bom ou mau gosto, não se iludia, nunca! com as aparências e circunstâncias‖ (REBELO, 2002a, p. 262). Em alguns momentos se aproximam sensivelmente e quase ―abrem a porta‖ um ao outro, mas não são humildes o suficiente: ―Foi sob o oitizeiro, as raízes como imensas minhocas suspendem a terra‖ (REBELO, 2002a, p. 264). Antônio Carlos insinua gostar dela, entretanto o orgulho ferido da moça não permite a continuidade da cena: ele precisaria sofrer um pouco para merecê-la.

O coração pesou-lhe. Por que dissera ―não‖? Alguém deveria dizer: ―Márcia, decide- te, a vida é um momento.‖ Mas ninguém lhe diz nada e ela, afinal, não sabe mesmo o que é melhor: se uma sessão de cinema com Antônio Carlos (―Nunca vi fita tão besta!‖ ―Adorável!‖ ―Vocês engolem qualquer droga.‖), se um banho de mar com Adalberto, os bichinhos da areia pinicando-lhe a carne nas barracas do Arpoador e os olhos dele comendo o seu corpo suado: ―Manera, meu praça, manera...‖ E o mais 168

complicado é que Adriano, campeão de boliche, é um pão, tem um carro muito bacana e vai aos States todos os anos, Luís Cláudio e Nonô Silveira são para lá de simpáticos, de camaradas, de legais, tão ao seu paladar para um papinho ou para uma badalada pela aí, e Joãozinho Boa Pinta gasta as camisas esporte mais absolutas deste mundo, dança divinamente – uma gamação. (REBELO, 2002a, p. 266)

Márcia não é uma personagem romântica: é atraída pela irreverência e inteligência de Antônio Carlos, como também por várias qualidades de numerosos rapazes. Como o título anuncia, o par da protagonista não é um rapaz apenas, mas a primavera, estação simbolizada pela beleza e fecundidade. A estrutura narrativa é equilibrada: a cena descritiva inicial da moça deitada é paralela à final. Entre elas, há os pensamentos de Márcia, interrompidos pelo grito da mãe, que encaminha o encerramento do conto:

De repente a mãe grita de dentro: – Márcia! Almoço! Cortou-se o fio de tudo: – Já vou. (Esta minha mãe não se manca!). (REBELO, 2002, p. 266)

O devaneio adolescente é limitado pelo chamado materno para a realidade. Entretanto, antes de atendê-lo, a menina olha pela janela, impelida por ―um vício a que não pode fugir‖, rapidamente localiza o bonitão do major Jurandir e assume-se: ―– Matusquela que eu sou!‖ (REBELO, 2002a, p. 267). A protagonista não reclama apenas da mãe; todas as mulheres aludidas são, por meio do discurso indireto livre, criticadas: a vizinha é ―chatérrima‖, certa colega de escola era ―tão burrinha, coitada! tão mixuruquinha de miolo‖ (REBELO, 2002a, p. 264), Bebete é ―sonsa‖: ―avançou para beijocá-la, mais verde do que um periquito. Maria Lúcia trazia peruca nova. Que lixo a maquilagem de Maria Palhares! E Dulce Limoeiro jamais saberia comprar um sapato!...‖ (REBELO, 2002a, p. 266). Márcia não trava relação de amizade verdadeira com ninguém – a pessoa de quem mais se aproxima com sinceridade é Antônio Carlos. A figura feminina mimada e graciosa que domina o conto está em pleno desenvolvimento sexual (os seios doem) e seus ―pensamentos não são claros – têm também dezoito anos‖ (REBELO, 2002a, p. 261), mas, no último parágrafo, o narrador retira, cinematograficamente, o zoom da moça e enquadra outros elementos primaveris:

Em vão as azaleias solferinas do vaso teimavam na varanda do apartamento colado à pedreira, com uma nesga só de mar para afagar a vista. As outras varandas, todas as varandas, estavam silenciosas e sem flores como túmulos esquecidos. Ninguém percebia que era o primeiro dia da primavera. (Uma névoa espessa, leitosa, escondia os morros, o mar, as ilhas, atrapalhava os aviões, e os jornais da tarde noticiariam laconicamente a morte de dois pilotos civis, que não encontraram o campo de treinamento ao tentar descer em voo cego.). (REBELO, 2002a, p. 267)

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Embora haja mudança no enfoque, o narrador continua, metaforicamente, falando de Márcia (―flor‖), destacando, agora, sua singularidade, justificada pela precocidade e pela teimosia. O final do conto também pode ser interpretado como uma espécie de autoanálise crítica: Rebelo considera ser um dos poucos escritores (pois ―ninguém percebia‖) interessados ainda em narrativas intimistas numa época em que a maioria (―os jornais noticiariam‖) se dedicava a outras abordagens, como a social. Diferente da volúvel mas estática Márcia, a protagonista de ―Quatro momentos de um idílio‖ (S) é decidida e dinâmica. Além do nome e das feições da personagem evocarem luminosidade, o narrador anônimo a descreve envolta em brilho solar e participante da natureza fecunda: ―Aurora se mostrava mais alegre do que o sol, e o sol era radioso e imenso, sol que lhe dourava a pele clara, sol vivificante e puro, que sazonava os frutos nos ramos, que caía igual sobre o campo que o regato corta, sobre os montes verdes que se perdiam azuis no fundo harmonioso do horizonte‖ (REBELO, 2002a, p. 246). A cena introduz o reencontro amoroso de Aurora e Antônio em um dos raros contos de Rebelo ambientado fora da cidade do Rio de Janeiro. Distinta também é a técnica narrativa empregada, pois a temporalidade anunciada no título não é demarcada por sinais gráficos (*) como de costume (cf. em Três caminhos), mas, sim, apenas por espaçamentos, o que só conseguimos confirmar ao cotejar as versões da José Olympio e da Nova Fronteira com a primeira edição de Stela me abriu a porta, visto que aquelas modificaram a distribuição gráfica dos textos e retiraram alguns espaçamentos, importantes para uma análise mais coerente da ideia anunciada no título. Além disso, inexistem marcadores cronológicos ao longo do conto que localizem com exatidão o leitor na história: o que sabemos dos quatro momentos registrados é que, no primeiro, ―o sol era radioso‖ (REBELO, 2002a, p. 246); no segundo, ―Tudo é treva agora que as sanfonas pararam, só os sapos persistem na noite frígida de julho‖ (REBELO, 2002a, p. 247); no terceiro, é dia de novo; e, no quarto, é domingo. O tempo decorrido entre esses momentos, não sabemos. Tal ausência diminui a carga narrativa do texto, que alcança unidade graças a outros efeitos expressivos, mais próximos do universo poético – o que ratifica o título, uma vez que um dos primeiros significados de ―idílio‖, de acordo com o poeta grego Teócrito, do século III a.C., foi ―poema curto de vário assunto‖ (MOISÉS, 1978, p. 279). A palavra ganhou outros significados ao longo do tempo. O mais usual, na época de Teócrito, é o de composição bucólica, visto que a maioria de seus poemas era pastoril. Já no século XVII, o termo havia angariado sentidos ―como ‗devaneio‘, ‗fantasias‘, ‗amor ingênuo e terno‘, referidas ou não ao cenário rural‖ (MOISÉS, 1978, p. 282). Nesse sentido, a história de Aurora, que executa 170

movimento enaltecido pelos poetas neoclassicistas, fugere urbem, em busca de uma vida mais simples em meio à natureza, e é acompanhada por Antônio, também pode ser considerada um idílio. O casal habituado a centro urbano não nomeado opta, por motivo não discutido, pela vida campestre. Na verdade, a escolha é de Aurora; Antônio assim se decide para ficar com ela, mostrando-lhe que ―Tudo é possível neste mundo. Tudo‖ (REBELO, 2002a, p. 246). Daí a alegria predominante no conto, tônica inabitual dos contos de Rebelo (fato que se repetirá apenas em ―Dois pares pequenos‖ (S), último conto analisado neste capítulo). Para Aurora, Antônio é sinal de esperança, e vice-versa. Realmente, a presença dela torna tudo fecundo: ―As goiabeiras vingavam, o abacateiro já era uma árvore, o cajueiro subia. A vala, limpa, tinha nas beiras o tapete de agriões. Um pequeno rego levava a água aos canteiros viçosos das alfaces, das celgas, das couves, das hortelãs. As bananeiras cresciam na terra preta‖ (REBELO, 2002a, p. 250). Aurora é responsável pela propriedade, e seus cuidados com os bichos e com a terra conferem-lhes vida; tal como o sol é fonte de energia, Aurora também é. Ainda que haja interesse em pintar um pequeno quadro (significado da palavra grega ―eidyllion‖ (MOISÉS, 1978, p. 278)), o contista divide essa composição em quatro. O primeiro momento é repleto de idealizações amorosas e bucólicas e diálogos afetuosos. O segundo, que se passa no interior da casa, revela algumas tensões do casal, e as falas são mais irônicas. O rapaz percebe que as mãos da moça estavam queimadas de tanto trabalhar no sol, diferentes do que eram, embora ela fosse sempre bela. Antônio também não gosta da noite na fazenda. O terceiro momento é mais distenso, ocorre na parte externa da fazenda e revela o recém-chegado distraído, preguiçoso e malandro; em oposição, Aurora é sempre animada para o trabalho. No último momento, a alegria domina o coração da jovem, apesar de Antônio ainda apresentar surpresa em relação ao ambiente:

Como era diferente das noites da cidade! O coração oprimia-se ante o silêncio misterioso e desconhecido (só o bater dos sapos!) em que os campos se afundavam. (...) O cheiro do mato noturno perturbava-o estranhamente. (...) o cheiro que se desprendia do lampião despertava em Antônio um sentimento de humildade, de vida simples, jamais sentido. (REBELO, 2002a, p. 247-248)

Antônio acha a noite triste, mas o dia lhe traz ótimas lembranças: ―A saudade de toda uma época da sua vida acudiu de súbito. Saudades da casa no Andaraí, a mãe áspera e tão boa, as brigas com o irmão – pareciam cão e gato –, os canários trinando na varanda...‖ (REBELO, 2002a, p. 251). Talvez inconscientemente, o rapaz compara as relações familiares com a que 171

trava com Aurora; como a mãe falecida, a moça é áspera e boa, como o irmão, briga com ele: ―Olhou-a – era a mesma Aurora, Aurora dos olhos que prometiam, Aurora boa, a irmã que não tivera, a amiga que faltara, Aurora de outrora. Aurora de sempre‖ (REBELO, 2002a, p. 252). A repetição do nome confirma a fascinação e dependência de Antônio, que naõ tem outra saída a não ser permanecer ao lado dela. O interior campestre e plástico de Marques Rebelo se opõe ao de João Alphonsus, em especial, o de ―Foguetes ao longe‖ (EN). Se a responsabilidade pela transferência do casal, no conto mineiro, é do homem, que se suicida devido ao desgaste do casamento e ao tédio cotidiano, no conto carioca, o centro das atenções é Aurora, que atrai o jovem Antonio para o interior e vive dias solares com ele.

*

Se para alguns personagens, Marques Rebelo escancara portas, para outros oferece apenas espelhos, através dos quais recordam memórias, descobrem traumas, fixam convicções. Dentre eles, há os que desejam outra realidade, porém devido a questões interiores pouco ou nada progridem, como Antônio (―Um destino‖) e Luís (―Na tormenta‖), protagonistas de textos sequenciais em Oscarina, disposição que intensifica a sensação de asfixia, também experimentada por Stela (―Stela me abriu a porta‖ (S)). Outros personagens, de maneira mais radical, se fecham a mudanças, como o protagonista de ―Espelho‖ (O), e Pedro, de ―Vejo a lua no céu‖ (T). Embora quase todos sejam jovens, pouco se movimentam; são retratados, em geral, em ambiente fechado e apenas observam a movimentação exterior. O verso de Manuel Bandeira, de Libertinagem (1930), ―A vida inteira que podia ter sido e que não foi‖ (―Pneumotórax‖), pode sintetizar a existência de Antônio, protagonista de ―Um destino‖ (O), texto premiado no mesmo ano de sua primeira aparição (mais enxuta) em O Jornal (cf. REBELLO, 1930, p. 2). O narrador onisciente perscruta as desilusões do jovem acomodado e triste numa tarde de domingo, dia da semana e período do dia recorrentemente selecionados pelo escritor, quando a maioria de seus personagens refletem sobre a vida, sentindo-a melancólica. Antônio lamenta pelo emprego desgastante e pelos colegas de trabalho não reconhecerem sua inteligência, critica os valores socioculturais que exaltam títulos acadêmicos e descartam a inteligência aplicada e entristece-se por um amor não correspondido, que fez o jovem arranjar mulher e filhos ao acaso: ―Agora, era viver assim, deixa o barco correr, sem ambições, nem desejos, facilmente, numa felicidade tão estúpida 172

que ele nem sofria‖ (REBELO, 2002a, p. 81). Na verdade, gostaria de uma vida de liberdade e paixão. O artigo indefinido do título é justificado desde a cena introdutória, parágrafo sistematicamente construído: O canarinho-da-terra parou de cantar na gaiola que a janela emoldurava e o grande sossego suburbano, invadindo a sala, contaminou a casa toda. O armário novo estalava. Antônio fechou os olhos com moleza sincera sobre o jornal, fartamente literário, de domingo, enquanto o Sultão, alheio às pulgas, dormia no tapete barato, onde dragões de engalfinhavam. Nem cochilou. Bocejou, estendendo os braços numa preguiça ilimitada, ficou pensando na sua vida, que tomara tal rumo que era impossível mudar. Abandonara- se ao sabor dos acontecimentos fáceis. (REBELO, 2002, p. 75)

A diminuição gradativa de sons e movimentos intensifica o momento preguiçoso, transformando-o em um quadro estanque. Só existe dinamicidade no tapete, ou seja, também congelada. A cena, descrita do alto para baixo, parece comentar uma pintura (―a janela emoldurava‖), cujo clima dominante é o de lassidão apresentada como costumeira. O subúrbio parece ser responsabilizado pela preguiça, contaminando animais e humanos. Entretanto, as memórias de Antônio revelam que seu desânimo vem das repetidas negativas, amorosas e profissionais, que a vida lhe dispensou: ―Toda a sua vida tinha sido um rosário de surpresas vexatórias‖ (REBELO, 2002a, p. 77). Por exemplo, no mesmo dia em que Marita, ex-namorada que não havia aceitado seus muitos pedidos de casamento devido à frágil situação financeira do rapaz, se casa com um rico pretendente, Antônio também é preterido na repartição, que prefere o diplomado mas ignorante Carvalho. Como se vê, há um aproveitamento curioso nos nomes. O procedimento, já visto em João Alphonsus, que conferia a personagens conservadores e tediosos nomes de árvores, também é empregado por Marques Rebelo, embora em menor escala: além do antagonista de Antônio, temos Sr. Madeira (―Na tormenta‖ (O)), Sr. Pinheiro (―Espelho‖ (O)), Sr. Pereira (―A derrota‖ (S)). Esses personagens sempre contribuem para a diminuição da liberdade e da felicidade dos protagonistas. Ainda sobre os nomes, é inescapável que sublinhemos a coincidência de Antônio ser homônimo ao protagonista de ―Quatro momentos de um idílio‖ (S) e ―Namorada‖ (T) (conto abordado na próxima seção). Além dele, ―Sultão‖ será o nome de alguns animais domésticos: é o cachorro querido do conto analisado anteriormente, como também de ―Cenas da vida carioca - II‖, ambos de Stela me abriu a porta. O escritor não investe nos animais como João Alphonsus, no entanto, nomeia-os mostrando afeto. Em ―Um destino‖, a vida é tediosa dentro de casa: ―os livros, nas estantes atulhadas, não lhe ensinaram nada, de nada lhe adiantaram‖ (REBELO, 2002a, p. 76), e o jornal de 173

domingo era literário demais para Antônio. O movimento do bairro suburbano – sorveteiro, vizinhos, quintais – atraem o jovem até a janela, de onde reflete que sua propensão à leitura e sua entrega à reflexão não lhe trouxeram benefício: ―que coisa mais estúpida é a gente pensar!‖ (REBELO, 2002a, p. 81). A sociedade não valorizava a inteligência, mas títulos acadêmicos que ele, indisciplinado, não alcançara: ―Ele não era doutor... Ele não era nada‖ (REBELO, 2002a, p. 77). Seus amigos de infância, que não gostavam de estudar, tinham enriquecido em multinacionais e negócios de café, já ele era empregado na Central, com plantões noturnos e viagens cansativas: ―Ingratidão, injustiça, tudo em ‗in‘. E quem diria que não fosse inveja?‖ (REBELO, 2002a, p. 76). O ressentimento de Antônio é semelhante à dos personagens rancorosos de Lima Barreto, que muitas vezes tratou da questão dos bacharéis incompetentes. O rapaz é triste também porque não viaja e porque a namorada querida vai embora:

Ela partira por aquele mar, quando seguira para o Rio Grande, por um fim de tarde, triste, naturalmente. Como deviam ser tristes as tardes em Santos!... Sentia uma melancolia estranha o invadir; sentia uma dor mansa, no fundo da alma, se misturar a uma saudade absurda das tardes morrentes de Santos, que ele nunca vira. E deitava a cabeça na mesa num entorpecimento, os olhos abertos para a noite lúcida que entrava pela janela. (REBELO, 2002a, p. 80)

Na falta de Marita, ele casa com Maria: o trocadilho com os nomes sugere idealização e carinho em relação à mulher amada (que ganha sufixo formador de diminutivo), e trivialidade em relação a outra (batizada com nome vulgar). A conquista é narrada secamente: a mulata Maria trazia-lhe a roupa lavada toda tarde de sábado: ―Veio-lhe depois aquilo, de repente, mais como uma necessidade. (...) Você quer? A resposta foi diversa e sincera: Quero‖ (REBELO, 2002a, p. 81). O pronome demonstrativo (―aquilo‖) oblitera a palavra grave (―casamento‖); a mulher aceita prontamente a proposta feita de maneira elíptica, diferentemente de Marita. Maria não compreende o desânimo de Antônio, associando o mal-estar à comida: ―Pesado do cozido, eu! Pesado. Mas que estúpida! Nem desconfia!... Teve vontade de descompô-la. Teve ânsias de esmurrá-la. (...) Penalizou-se: coitada!...‖ (REBELO, 2002a, p. 82). Antônio se revela tão estúpido quanto a mulher, com quem apenas conversa sobre banalidades. Aos muitos nãos sofridos, ele sobrepôs os sins neutros da religião: ―seja tudo pelo que Deus quiser... Deus quisera tudo como fora. ‗O destino é Deus quem dá...‘‖ (REBELO, 2002a, p. 75). Entretanto a repetição desafirma a ideia: ―Deus sabe o que faz. Deus... Deus...‖ 174

(REBELO, 2002a, p. 77). Outras frases de efeito também contradizem a ideia religiosa, como ―Quem faz a vida é a gente mesmo‖ (REBELO, 2002a, p. 75). Buscando algum reconhecimento, o homem pergunta repetidas vezes ao filho ―Você gosta de seu pai?‖. Antes de o menino responder, ele o abraça. Assim, o conto termina como começou, confirmando a ideia de Álvaro Lins, para quem Rebelo ―resiste a tentação de qualquer enredo espetacular. (...) Nos seus contos nada acontece e quando alguma coisa acontece nada importa substancialmente‖ (1942, p. 3). ―Na tormenta‖ (O) também relata um dia de um jovem triste porque não realizado. Se Antônio, de ―Um destino‖ (O), ao menos tem mulher e filhos pelos quais sente carinho, Luís não tem companhias e vive sempre devaneando, esperando que seus sonhos se realizem como num passe de mágica, ocupando-se apenas do trabalho, sua única responsabilidade (além da tia doente). Porém, nada ocorre efetivamente no decorrer da história para mudar-lhe o destino (nem a tia, que está na iminência da morte, morre). Dentro do quarto e nas viagens de bonde (lugares de reflexão preferidos por Marques Rebelo) sonha com liberdade e paixões. Mais uma vez, a palavra ―lassidão‖ caracteriza o estado de espírito do jovem nostálgico: Luís pensa na tarde ―dourada, suave‖ do dia anterior ―como se fosse ela mesma e não uma reconstrução‖ (REBELO, 2002a, p. 84). A frase soa como um ideal narrativo do contista, desejoso de que a cidade do Rio de Janeiro estivesse inscrita nos textos. A tarde recordada nada tem de extraordinária, é justamente o ordinário que é valorizado – animais e mulheres em um bairro tranquilo, conversas fortuitas, cinema –, em especial, aqueles que, diferentemente do protagonista, agem: ―gritos infantis rasgaram o ar perfumado, sacudindo a paz‖ (REBELO, 2002a, p. 85). A lembrança é agradável, mas guarda algo que incomoda Luís, que boceja profundamente. Se em João Alphonsus, os bocejos expressavam o tédio imobilizador do ambiente, do qual o personagem tentava se libertar, aqui revelam a incapacidade de transpor barreiras. O narrador, em discurso indireto livre, explica-lhe a tristeza, revelando autopiedade: ―Pobre dele sem os seus afetos!‖ (REBELO, 2002a, p. 85). O moço sentia falta de alguém para contar suas mágoas, desesperos e ambições. A sensação angustiante é abrandada com a chegada da noite: ―a noite, a noite boa, as horas de descanso, quando todas as fábricas se fecham e a energia dos homens se recolhe‖ (REBELO, 2002a, p. 84). Levantar-se para ir ao trabalho, fazer a barba, preocupar-se com compromissos, nada tinha valor real pra ele:

tantas inutilidades neste mundo, tantas... (...) Marcar o tempo? Então, não sabemos nós que o tempo corre? Não temos, porventura, espelhos onde vemos 175

desgraçadamente que o tempo passa, dia sobre dia, ano após ano, e que mais um pouco as horas serão de outros, que as verão escoar como nós as vimos, fatais, inexoráveis, sem preferências, nem distinções? (REBELO, 2002a, p. 85-86)

Relógio e espelho provocam questionamentos fulcrais para o protagonista, que gasta quase todo seu tempo com atividades que não lhe dão prazer e que só é feliz quando se imagina outro. Desde criança, Luís tinha dificuldade em ajustar seu tempo com o relógio dos outros, e isso lhe rendera muitas repreendas, especialmente escolares: ―Nunca passarás do que és. Por que teu pai não te tira do colégio? Olha que é dinheiro posto fora. Estupidamente‖ (REBELO, 2002a, p. 88). Na vida adulta, embora não chegasse atrasado ao trabalho, todos os dias se torturava: ―Lá estava o ponto à sua espera. Bondes certos... Horas certas... Tudo se repetia‖ (REBELO, 2002a, p. 88). Contraditoriamente, nada estava certo na vida dele. A criança desajustada tornou-se um adulto ajustado mas desconfortável. Se interiormente sobrevive dessa maneira, a relação que trava com aqueles que o rodeiam também é problemática:

– Pode botar o café! – berrou do banheiro, já penteado, dando o lacinho na gravata- borboleta. Joana prepara-o, entre um ruído de louça na cozinha. O caixeiro gritou no portão: Olha as compras! Pão com manteiga, tão nosso... – Sai, mosca! ... de cada dia... – A lavadeira vem hoje, seu Luís. – E, mãos nas cadeiras, Joana espera na porta. ... fruto difícil das nossas lutas de todos os dias... – Ouviu, seu Luís? As pratinhas tilintam na mesa da cozinha. ... tenho ainda hoje... Lá-lá-ri-lá-lááááá!... Joana é assim alegre e canta enquanto ganha com dureza uma ajuda pra o seu homem, o Manuel (...) (REBELO, 2002a, p. 86)

No trecho em que toma o café preparado pela empregada, Luís não interage efetivamente com ninguém. Ainda que admire Joana, cuja leveza faz com que tenha vontade de faltar o trabalho para ficar perto dela – ―longe do mundo, a cantar, a cantar tudo que lhe viesse à boca, sem outra razão senão a de cantar!‖ (REBELO, 2002a, p. 86) –, o rapaz não concretiza, mais uma vez, o que deseja. Além disso, a adaptação que ele (ou/e o narrador) faz do Pai-Nosso sublinha a dificuldade de manter a constância do pão cotidiano, que ocorre não tanto por alguma crise financeira (sequer mencionada), mas especialmente pela necessidade de evasão que o jovem reprime em si, farto de seguir as marcações do tempo inventado pelas convenções:

Talvez corresse para a praia depois, vagabundo, livre, vendo o sol queimar-lhe a pele, respirando, libérrimo, o ar saturado de sal, feliz, leve, como se nem fosse desse mundo, fosse uma sombra alegre que encontrasse um corpo sem destino, sem nada 176

de terrestre, sem preocupações, sem deveres, sem vexames, um homem sem tormenta! (REBELO, 2002a, p. 86-87)

Entretanto, a hipótese indicada pelo subjuntivo mais uma vez não é concretizada. O verso de Manuel Bandeira ecoa aqui também: ―A vida inteira que podia ter sido e que não foi‖ (de ―Pneumotórax‖). O desejo de Luís é semelhante ao que impele Jorge a se tornar Gilabert, em ―Oscarina‖ (O), é o que movimenta o flâneur de ―Em maio‖ (como veremos adiante), é o do filho mais velho de ―Caso de mentira‖ (O), é o da maioria dos personagens rebelianos. É a liberdade individual em relação ao tempo e ao espaço, daí a necessidade de aproveitar a juventude e a cidade. A grande ―tormenta‖ para Marques Rebelo não é a morte em si, como percebida por João Alphonsus, mas a falta de liberdade e de tempo para viver numa cidade que convida ao prazer. A tarde anterior recorda outras a Luís, quando a tia era saudável, e ele a idealiza descrevendo-a metonimicamente – corpo, alma, coração, braços, boca, voz. Tal estratégia, aliada ao fato de a tia não atuar no conto, colabora com a caracterização do rapaz solitário, cuja única presença feminina aparece fragmentada. Outra estratégia narrativa típica de Marques Rebelo – a justaposição de quadros no intuito de identificá-los, um funcionando como metáfora do outro – é observada quando, depois de avisar sobre a nova situação de enfermidade da tia, o narrador interrompe o relato para descrever cigarras: ―Teimavam na luz morrente as cigarras vespertinas‖ (REBELO, 2002a, p. 85). A morte ronda Luís, seja pela tia doente, seja pelos enterros constantes no bairro, que o amofinam ainda mais. Também ao gosto do escritor, personagens secundários são flagrados em conversas corriqueiras. No bonde indo ao trabalho, Luís ouve os amigos Almeida e Barbosa reclamarem da vida, embora um deles tenha expectativas positivas que causam inveja no protagonista: uma ―empregadinha de escritório‖ promete dar o ―mundo‖, ou seja, filhos, sinceridade, sacrifícios, privações, a um deles – tudo por uma casinha a prestação no Grajaú. Para os padrões da época, a troca era legítima, e a inveja revela que Luís também a desejava. Se por um lado, ele queria liberdade, por outro, ansiava pelo amor permanente,

uma criatura assim, que tomasse conta da sua vida, consertando-lhe as ambições e as camisas, num carinho solícito e sincero. (...) Se ele a encontrasse!... Que novo rumo tomaria a sua existência solitária, que novos horizontes rasgar-se-iam na sua frente, talvez uma desejada tranquilidade viesse a ser a base de seus dias. (REBELO, 2002, p. 89)

Durante a viagem ao trabalho, esquecido do relógio e do espelho que o assombravam, seus pensamentos criam uma realidade paralela, onde realiza seus desejos: Luís sonha com mulher e filhos. Encontraria a ―amada‖ numa ―esquina turbulenta, fervilhante de povo‖ 177

(REBELO, 2002a, p. 90), ―no meio de outros homens, muitos homens, ela, porém, só notaria a ele‖ (REBELO, 2002a, p. 89). A história é romanceada: desejo de singularidade e de destaque numa cidade intensamente movimentada, um lugar propício para encontros fortuitos, surpreendentes. Os enamorados trocariam olhares (como em ―Felicidade‖): ele revela que quer ser ―objeto dum olhar feminino‖, atraído pelos traços românticos do rapaz: palidez e timidez temperadas com ar sofredor de um leitor de romances. Por sua vez, ele seria seduzido pelos olhos ingênuos mas provocantes, da moça, que teria uma pequena cicatriz (dado misterioso) e dedos gordos e estaria ―linda como uma artista de cinema!‖ (REBELO, 2002a, p. 90): com vestido branco e simples, sem enfeite nem maquiagem. Mais uma vez, a mulher é descrita metonimicamente; a fragmentação reforça a irrealidade da cena. Depois de lhe dar um corpo, Luís passa à constituição psicológica da personagem que, na verdade, é uma espécie de duplo dele: teria pai doente, a família dependeria dela, trabalharia num escritório, ―as profissões então eram iguais – serviu-lhes de pretexto para promessas recíprocas‖ (REBELO, 2002a, p. 91). O protagonista, assim, se torna romancista da própria vida, o que é explicitado em seguida: ―Boa distração a gente sonhar, construir castelos, arquitetar episódios romanescos. Espécie de cinema, em que a gente é o ator principal, representando somente cenas que bem nos convêm, papéis de heróis, de vitorioso no último ato, entre palmas, dinheiro, glória e amor!‖ (REBELO, 2002a, p. 91). Continuando seu romance, Luís imagina que ele e sua amada vão ao cinema, e o enredo do filme é semelhante à vida deles. Dessa maneira, estabelece-se o efeito de mise en abyme, não sustentado pela ―verdade‖ da narrativa, mas por um devaneio do personagem: o romance imaginário é espelhado nas telas, ou vice-versa. A expressão francesa criada por A. Gide no seu Journal designa o procedimento de representação no qual a ―narrativa ou um dos seus aspectos significativos‖ se projeta ―em profundidade‖ no próprio discurso, estabelecendo uma ―representação reduzida, ligeiramente alterada ou figurada da história em curso ou do seu desfecho‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 233-234). A ―história de amor‖ de Luís e a trama cinematográfica são emocionantes, porém previsíveis; lindas, e mentirosas. Histórias assim não são típicas de Rebelo, contista que não garante a seus personagens fama, prosperidade, enlaces eternos, mas, pelo contrário, confere- lhes problemas interpessoais, trabalho desvantajoso, vida desajustada. Nesse sentido, a mise en abyme assistida aqui, como em outros contos (cf. em ―Espelho‖ (O), ―Vejo a lua no céu‖ (T) e ―Em maio‖ (O)), ao duplicar a trama em cena, causa efeito reflexivo. Entretanto, o narrador, jocosamente, atrapalha o sonho grandiloquente do protagonista com pequenos atavios do cotidiano. O devaneio de Luís é interrompido por uma senhora 178

carrancuda, feia, de perfume forte, que pede passagem no bonde: a beleza e a perfeição idealizadas são desmanchadas pela realidade brutal, que causa ódio no moço. Sem as lentes românticas, o bonde se vulgariza, e as pessoas agem sem paixões. A dificuldade que ele tem de enxergar o entorno é sublinhada nos parágrafos finais do conto, pois Luís se considera o único que vive atormentado: ―Só ele estava inquieto. Só ele via sombras e nuvens negras na noite límpida que vinha‖ (REBELO, 2002a, p. 85). Assim, quando, finalmente, tem a oportunidade de se aproximar de uma moça, deixa-a escapar: ―O bonde, indiferente, aos solavancos, sacoleja seu desespero surdo, atira-o, nas curvas, contra a tímida mocinha que lê, e que, humana, acha natural estas colisões entre passageiros de bonde e não o repele, afastando-se melindrada como tantas‖ (REBELO, 2002a, p. 82). O que poderia ajudá-lo a investir na vida real revela ainda mais seu fechamento. Ao invés de conversar com uma menina ―humana‖, ele a idealiza (―coração bem formado e virgem‖) e deseja que ela assim o faça também, embora admita que suas qualidades ―passam despercebidas aos olhos comuns de tão simples que são, tão humildes e modestas qualidades que qualquer defeito maior com facilidade as esconde‖ (REBELO, 2002a, p. 92). Luís não é esquizofrênico: ele distingue a vida inventada da real, mas, mesmo assim, não consegue aproveitar a que tem. Por sua vez, a mocinha não tira os olhos do romance que lê, impossibilitando o trânsito com Luís, que permanece passivo. A carga dramática é intensificada com aquela estratégia rebeliana de transformação de metáforas em cenas reais (e vice-versa): depois da cena acima, o narrador descreve o Jardim da Glória com seus esguichos mecânicos e ―Seu desespero cresce. Sai do seu coração, cai no jardim, se perde pelas coisas, se mistura com a névoa que esconde o outeiro‖ (REBELO, 2002a, p. 92). Mesmo que a tormenta de Luís cresça, ao transbordar para a cidade, a impressão é de que ela se dilui na paisagem. A sensível passagem sintetiza a visão de Marques Rebelo em relação ao Rio de Janeiro e à literatura: em Oscarina, especialmente, personagem e cidade se mesclam, buscando, ao menos no registro escrito, o apagamento de fronteiras. Entretanto, parece que ele a contamina com seus desejos pouco compatíveis: casamento padrão e liberdade. De maneira mais explícita, no livro Stela me abriu a porta, as mudanças afetivo- comportamentais dos personagens são associadas às socioculturais. Em geral, um personagem apresenta a outro uma novidade, seja ela o amor, a alegria, o samba, a traição, a morte etc. Esses itens se relacionam de alguma maneira com a liberdade, mote central da obra de Marques Rebelo. Nos enredos dos contos, sempre há um movimento de descoberta (daí o verbo conjugado ―abriu‖), e as personagens femininas em geral são responsáveis por esse 179

impulso (como já observamos em Oscarina). Assim se justifica mais uma vez um nome de mulher no título. No conto ―Stela me abriu a porta‖ (S), um rapaz se apaixona por uma costureira pobre quando vai buscar uma encomenda pra mãe. Eles passam a se encontrar todos os dias à tardinha, quando Stela fala de si e revela seu desejo de liberdade. Apesar de o jovem anônimo narrar o conto, quem se destaca como contadora de histórias é ela, que lhe prende a atenção e o coração. Entretanto, a moça não consegue empregar a vivacidade de seu discurso nem na realização de seus sonhos nem no relacionamento afetivo. No dia em que marcam o primeiro encontro mais íntimo, o medo e as convenções sociais a atrapalham, e eles ficam, literalmente, no meio do caminho, onde o conto é bruscamente encerrado. O que encanta o narrador em Stela é exatamente aquilo com que Marques Rebelo seduz o leitor: a maneira de contar histórias. A virtude herdada do pai, aventureiro, transforma o narrador em personagem secundário diante dela, talvez por isso nem ganhe nome (nem pelo escritor carioca que, como vimos, era obcecado em nomear personagens). Curiosamente, apesar de a narração ser em primeira pessoa, há o recurso do indireto livre, por meio do qual o narrador mostra o quanto estava envolvido: ―A madrinha ficou mal de vida. (...) Adeus, estudos! Foi obrigada a trabalhar. Mas não para lavar. A mãe não consentiu. Fosse costurar. (...) Três meses depois estava afiada. Costurar é fácil.‖ (REBELO, 2002a, p. 204). Contudo, não é somente ela quem fala; eles conversam, e o diálogo é fluido, fácil. Sentem-se bem um com o outro: ela é simpática, facilita a comunicação, o trânsito, ―abre a porta‖; ele, educado, atencioso, apaixonado. Como em ―Namorada‖ (T), o casal escolhe percurso mais longo para ficar mais tempo junto. A protagonista não é descrita de maneira sensual: ―Stela era espigada, dum moreno fechado, muito fina de corpo. Tinha as pernas e os braços muito longos e uma voz ligeiramente rouca. Falava com desembaraço, mas escolhendo um pouco os termos, não raro pronunciando-os erradamente‖ (REBELO, 2002a, p. 199). Parece um polvo, alguém que recolhe, abriga, e zela pelo discurso:

– Deve continuar a estudar, ora! Se formar. Não há nada como a gente se formar. Meu padrinho sempre me dizia isso. Queria que eu fosse professora. Eu comecei a estudar, mas era um pouco malandra – riu. – Mas ia indo. Depois é que tudo desandou. Meu padrinho morreu, madrinha ficou em dificuldades e eu me vi obrigada a abandonar os estudos. Fui trabalhar. Como sabia dar meus pontos, meti- me de costureira. É coisa um pouco ingrata. Trabalha-se demais, não há folga. Acaba-se um vestido, pega-se logo outro. Mas pode ser que um dia... (REBELO, 2002a, p. 200)

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No entanto, a moça tem espírito inquieto: era avoada na escola, havia passado por vários empregos, não se acostumava nem com a rotina nem com a exploração. A ―porta‖ que abre para o narrador entrar é a mesma por onde ela sai um tempo depois:

– Não sei por quê, tenho vontade de fugir. Parece que é o sangue de papai. Eu olhava seu corpo, não respondi. Mas sentia que ela fugiria mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei por quê, nada fazia para prendê-la. Aceitava a ideia da fuga como um acontecimento que não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os seus olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas de um mar desconhecido, verde, fundamente verde, misterioso. Sentia-me fraco. Por que não faria nada para prendê-la, para tê-la sempre ao meu lado, já que sentia que a amava? Não sei. Está tão distante tudo isso, hoje, e o mesmo mistério perdura. Por onde andará Stela? Em que mares de homens se perdeu? (REBELO, 2002a, p. 204)

Stela oferece ao narrador sua presença, história, amizade. Ele respeita a decisão da moça, revelando-se sensível; entretanto, suas perguntas têm pressuposto machista: uma mulher livre para os padrões da época era, na verdade, ―perdida‖. Felizmente, as questões não são respondidas. A perdida Stela tem a tarefa de guiar, daí não ter recebido o nome que a mãe queria, Lourdes, mas o que o pai desejava: como uma estrela, ela ilumina, mesmo que não esteja próxima. Apesar de indicar nos encontros que gosta da presença do rapaz, Stela sente medo do primeiro encontro sexual, marcado para a véspera de Natal. Talvez receie que outra relação nasça entre eles, e ela, que tinha horror à estabilidade e à monotonia, fique presa ao jovem. Reage àquele incômodo de maneira estranha, ―calma, resoluta, com uma grande indiferença pelo destino‖ (REBELO, 2002a, p. 205), enquanto ele resolve com minúcias o hotelzinho barato. Diferentemente dos dias anteriores, o casal caminha em silêncio. A epígrafe que abre o conto, ―O tempo conserva de preferência aquilo que é pouco seco‖, é curiosa: enfatiza conservação em uma narrativa cujo relacionamento amoroso central se dissolve. A relação entre Stela e o narrador não dura porque ela tem desejo de evasão, herdado do pai, e o rapaz está fixado na terra. Na cena final, os dois estão parados numa ponte (nem na terra nem na água), de onde sairão separados:

– Não devia ter vindo. Eu tremi e paramos numa pequena ponte, como se, muda e previamente, tivéssemos combinado parar, não ir para a frente, ficarmos ali para sempre pregados. A lua é paz, é pálida, e nós tão pálidos. As horas correm, o barulho do rio correndo tinha uma tristeza de morte. Duas velhinhas desceram a rua, vagarosas, de preto, escondidas nos xales. Passaram outras pessoas, formas vagas, que não pareciam deste mundo. E os sinos tocavam, tocavam... – Vamos? – perguntou ela, rompendo um silêncio que parecia ser eterno. Não fomos. Ficamos, pregados na pequena ponte, ouvindo o barulho do rio e o barulho dos sinos, vendo as estrelas na altura, esquecidos, perdidos, como restos de um naufrágio. (REBELO, 2002a, p. 205) 181

Ao desistir da noite, Stela indica que é livre – e feliz – ou, pelo contrário, que não consegue aproveitar a liberdade? Álvaro Lins lê sua recusa como uma derrota psicológica devido à indecisão de sentimentos, ―o ponto máximo do enredo na irrealização desse mesmo enredo‖ (1942, p. 3). Para o crítico, a epígrafe sintetiza a estética de Rebelo, que buscava sempre reduzir os textos, retocando-os, em especial buscando o diálogo perfeito, exato, como também a tinta sentimental, sempre fraca (cf. LINS, 1942, p. 3). Outra curiosidade é que a única epígrafe usada pelo autor venha de fonte polêmica: Jacques Chardone, pseudônimo do francês Jacques Boutelleau (1884-1968), conhecido pelo premiado romance Claire (1932), que se envolveu com políticas de extrema-direita, sendo simpatizante de Hitler. Ao inserir frase do escritor de posição questionável, mais uma vez observamos o gosto pela controvérsia de Marques Rebelo, que não gostava de rótulos literários nem políticos – embora, em Marafa haja críticas explícitas à ditadura e ao comunismo, de acordo com Scaramella (cf. 2007, p. 41) –, mas, sim, de polemizar. Como Antônio, Luís e Stela, o protagonista anônimo de ―Espelho‖ (O) é jovem sonhador e, como outros personagens de Rebelo, passa melancolicamente uma tarde de domingo. É infeliz e questiona a felicidade que os ―imbecis‖ depositam na modernidade; nem seus sonhos são felizes, e quem o atrapalha é ele mesmo, movimento reflexivo que nos remete ao título, composto por objeto desagradável nessas circunstâncias e muito recorrente na obra do carioca. O texto espelha muitas concepções do autor e nos recorda a trilogia O espelho partido, empresa a qual se dedicou quase integralmente nas duas últimas décadas de vida. Na cena inicial, o protagonista está deitado, amolecido pelo calor e pela preguiça. Mais do que em outros contos, aqui temos explicitado o gosto de Rebelo pela pintura, pois uma em especial inspirará o devaneio do rapaz, cujos ―olhos sonolentos foram se pregar no quadro em tricromia‖ (REBELO, 2002a, p. 111). Em relação ao aproveitamento plástico, vale conferir ―Composição de carnaval‖, conto não contemplado nesta tese por ser da década de 1950 (embora a José Olympio, na década de 1960, insira-o em Stela me abriu a porta), em que as cenas de flerte juvenil são descritas sinestesicamente, uma vez que a coloração das fantasias se junta ao som das marchinhas e aos aromas dos lança-perfumes para evocar a integralidade do ser e da cidade. Em ―Espelho‖, o quadro está pregado na parede do quarto, e os olhos do protagonista se pregarão no quadro. A mise en abyme começa como num jogo hipnótico: ―Então, o quadro foi ficando grande, grande, cada vez maior, e a movimentar-se, e a mudar de cores. A moça azul ficou encarnada, atirou fora as cerejas e veio saindo da moldura‖ (REBELO, 2002a, p. 111). O rapaz revive a cena da véspera (notem-se os ecos entre os contos: de novo a ideia da 182

tarde da véspera lembrada melancolicamente), quando estava numa sala com ―ela‖: a disposição do ambiente era a mesma, ―Só o relógio, engraçado, era diferente‖ (REBELO, 2002a, p. 111), o que ratifica a ideia da evasão temporal. Nesse sentido, a mise en abyme, ao espelhar a intriga do drama, a discute, prenunciando amargo desenlace. Contrapondo-se à estaticidade do espectador, o quadro surreal se movimenta, e a gravura salta-lhe (no conto anterior, a dor de Luís ―cai‖ no jardim, aqui a moça do quadro ―entra‖ no quarto). A partir de cores primárias (azul e vermelho) a cena é pintada, como quer o processo, anunciado, da tricromia, e a figura em cor fria muda para quente. ―O vestido vermelho – ela‖ (REBELO, 2002a, p. 111): o traje servirá como metonímia da moça, evocada por elementos também encarnados, como a cereja. As realidades se alternam – ora ele está na sala com a teimosa mulher de vermelho, ora está no quarto com a pintura da moça de azul. O objeto que nomeia o conto só aparece na segunda página, ainda que esteja presente em cena desde o início, no quarto do jovem pensionista. Entretanto, da mesma maneira que aparece, sorrateiramente, desaparece, prevalecendo seu sentido metafórico. Os dois adjetivos que caracterizam o espelho, ferrugento e manchado, poderiam ser empregados perfeitamente para descrever o dono, jovem velho, maledicente, indisposto a qualquer proposta de novidade. E o próprio personagem está de acordo com essa análise, fato que nos leva associar o protagonista a Marques Rebelo, baseados nos comentários feitos, em jornais e revistas da época, sobre a impressão negativa que o escritor causava nas rodas literárias. Na seção ―Porta de livraria‖ da revista Dom Casmurro, que literalmente registrava conversas que teriam sido ouvidas nesses ambientes, muito movimentados na primeira metade do século passado, lemos na história intitulada ―O gasparino‖, publicada em 02/09/1939:

A propósito da recente publicação de mais um romance de Marques Rebelo o romancista Cordeiro de Andrade comentava na porta da Civilização o amargor de Marques que o leva a falar mal de todos os confrades e a fazer injustiças literárias incríveis. O poeta José Auto explicou então que todo este amargor partia de que Marques Rebelo, além de ser um escritor de público reduzido, tinha sido sucessivamente derrotado nas competições para alcançar diversos prêmios literários (...) (MISTER X & CIA, 1939, p. 2).

Anos depois, na mesma revista, Ary de Andrade chama-o de ―maldizente e venenoso‖ (1941, p. 6), sem deixar de elogiar A estrela sobe no artigo ―Um romance de romancista‖. Rebelo confessa, em A mudança, da trilogia O espelho partido:

A verdade é esta: falta-me grandeza. Falta-me o espírito de tolerar (...) a irremediável vaidade humana, a estupidez humana. Quantas vezes eu juro a mim mesmo não ferir mais suscetibilidades, sorrir piedoso para todas as tolices (...). Inútil! Sou bichinho rasteiro (o espelho me assegura) – e na primeira ocasião lá vai 183

agressão sob a forma de franqueza, quando a franqueza é um mito e as minhas fraquezas são muitas, infinitas, Catarina que o diga! (REBELO, 2002c, p. 143xd)

Tal como Alphonsus, Marques estabelece intertextualidade com Machado de Assis. O substantivo solitário no título do conto o diferencia do célebre ―O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana‖, em que o narrador irônico registra o encontro de ―quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo‖ (ASSIS, s/d, p. 209), inclusive, em certa noite, a natureza da alma humana. Um deles, convicto de que ―a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; (...) os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna‖ (ASSIS, s/d, p. 209), por isso certo de que seus ouvintes não o contrariariam, conta-lhes história e tese singular. No ser humano, coexistiriam duas almas: além da interior, amplamente discutida e aceita, haveria também a exterior. Diferente da primeira, a segunda alma poderia ser material – mas, no caso do homem que contava a história, era sua própria imagem e a ideia de ser alferes. Ele a via no espelho quando fardado (rico, magnífico, estrangeiro e monárquico) e o coro que o rodeava a ratificava, ―tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem‖ (ASSIS, s/d, p. 213). Tendo passado alguns dias sozinho, sem os rapapés, fantasticamente, o personagem não enxergava mais seu contorno no espelho nem se sentia mais vivo: ―O alferes eliminou o homem‖ (ASSIS, s/d, p. 213). A marcação do tempo machadiana é expressiva também: lá também há um relógio, que recorda ao alferes os versos do americano Longfellow: ―Never, for ever! – For ever, never!‖. Ainda que o título machadiano anuncie teoria inacabada, o protagonista revela certeza ao afirmar que sem a alma exterior, sem uma motivação externa, sem interesses pragmáticos, o homem, materialista, definharia e perderia o sentido da existência. O conto de Rebelo, embora aproveite o objeto e a ideia de um jovem reflexivo, se encaminha para outras questões; seu personagem sequer encara o espelho, entretanto, fica vidrado no quadro. Apesar disso, no confronto com a lembrança da moça de vermelho, responsabilizada pela situação em que ele se encontra, o protagonista se autoanalisa:

Foi então, dentro da realidade, que ele sentiu, pela primeira vez, com uma certeza absoluta, a inferioridade patente da sua vontade ante as investidas. Sentira-se fraco para arcar com a violência de uma negativa. Sentira-se forte para contrariar-se e satisfazê-la. Forte? Teve, aí, num repente de tristeza sem limites, a cinematização nítida, sem pontos obscuros nem dúvidas, daquela vida que seria, de agora em diante, a sua vida. Sorria para a vida futura, de dentro da sua tristeza resignada, com a mesma sinceridade que sorria sempre, de dentro da sua alegria, para os homens que o cercavam. (REBELO, 2002a, p. 112)

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A luta interior do rapaz o coloca em situação semelhante, de desconsolo e desorientação, à do alferes machadiano, porque algo maior que sua força interior compromete seu futuro. O vocabulário empregado na cena seguinte sugere um iminente casamento medíocre, e a última frase – ―O sol do subúrbio mais os pardais estragariam as couves‖ (REBELO, 2002a, p. 112) – metaforiza o fim do enlace antes de seu início: a rotina acabaria com o afeto, mesmo a moça sendo fresca como verduras recém-colhidas. O protagonista, longe da esperteza de Jorge (―Oscarina‖ (O)), não consegue escapar do futuro que lhe é anunciado. Sobre esse estado de espírito dos personagens rebelianos, Leo Kirschenbaum afirma: ―Um outro aspecto do caráter carioca que nos contos Rebelo acentua são os homens abúlicos, inertes, sem esperanças, sem confiança em si, os fracassados da vida, os que existem afogados numa névoa de tristeza e abatimento moral‖ (1957, p. 212). Nos últimos parágrafos do conto, por meio do discurso indireto livre, percebemos o discurso irônico do narrador e do personagem, conscientes da desfaçatez da vida (dos interesses falsos, do tédio imobilizador, da falta de perspectiva) e dos próprios limites (maledicência, preguiça, covardia):

Pensou que seria melhor aproveitar aquele domingo esplêndido para ensaiar a felicidade, correndo ao encontro da própria felicidade. Mas onde está a felicidade? Tiram tudo dos lugares. Naturalmente, foi a Joaquina, a arrumadeira estúpida. (...) A indecisão, estava evidente, era uma das suas características, que tanto como a mania de falar mal dos outros, ele já tinha notado, mas fingia não perceber com uma otimista opinião própria lugar-comum. Então, resolveu, para fugir das incertezas da sua inteligência, das incertezas tremendas da sua vontade e das incertezas, tão mansas, do seu coração, dormir. Dormir por aquele domingo, todo luz e harmonia lá fora, emendando o dia com a noite (...). E dormiu mesmo. (REBELO, 2002a, p. 114)

Desde o início do conto, embora a descrição do personagem fosse mais positiva (jovem de bom senso, reto proceder, funcionário de banco), já se apontavam suas ―tragédias interiores‖, que tornavam inúteis o sol e as borboletas:

Nem havia necessidade absolutamente daquele fundo cromal (...). Ele não era homem de ambientes exteriores. Uma paisagem não o consolava (...). Para que, pois, aquela graça da vida em volta dele, se a sua vida real, a sua vida verdadeira, (...), sem parentes, sem amigos, apenasmente dentro do seu coração e dentro da sua inteligência não representava nada de definitivo? (REBELO, 2002a, p. 113).

O desinteresse pictórico do personagem parece incoerente, uma vez que ele é apresentado como um aficcionado pelo quadro de seu quarto. Na verdade, ele repulsa o que é vivo e está fora de seu controle, como o sol, a borboleta, os pensionistas. Para sintetizar sua extrema solidão, o narrador inventa-lhe um advérbio de modo, ―apenasmente‖, único neologismo que conseguimos localizar em todos os contos de Rebelo. 185

Ao observar os outros pensionistas, o protagonista comenta que a felicidade manifestada por eles – ao remar, jogar futebol e sair pela cidade – é falsa. Em contrapartida, apresenta-se como singular, incompatível e superior aos demais, semelhante ao ―mensageiro‖, de João Alphonsus. Um dos contos de maior alcance psicológico de Rebelo, ―Espelho‖ dialoga com a obra do mineiro, bem porque trata da solidão. Como o personagem de Alphonsus, o de Rebelo às vezes se pergunta se também não compartilharia da ―imbecilidade alarmante‖ (REBELO, 2002a, p. 114) dos outros. A frase que condensa a crítica aos jovens pensionistas, além da explícita restrição ao ritmo americano em moda na capital federal, nos parece também uma crítica à linguagem modernista: ―Ele teria, também, fox-trots musicando preguiças dominicais?‖ (REBELO, 2002a, p. 114). O uso do gerúndio como verbo transitivo direto e a relação da música estrangeira com um estereótipo brasileiro constroem uma frase ao gosto dos modernistas da década de 1920, época da escrita do conto. Assim, o protagonista ratifica ponto de vista conservador – não gosta dos esportes, nem da música, nem da linguagem da moda – e casmurro – não se interessa pela paisagem tropical. Marques Rebelo, ao caricaturar o personagem, cujo pensamento continha a ―mais absurda das coisas‖ (REBELO, 2002a, p. 112), valoriza, às avessas, o modernismo, embora também sugira-lhe defeitos, uma vez que os questionamentos feitos por ele são válidos e coerentes, pois sua resolução é ―funda, formal, decisiva‖ (REBELO, 2002a, p. 112). Concluímos o primeiro bloco de análise dos contos de Rebelo com ―Vejo a lua no céu‖ (T), que tematiza o embate clássico entre pai conservador e filho rebelde, relatado pelo nostálgico narrador-personagem Edgar. Antes, retomamos a nota de rodapé de Três caminhos, em que o escritor avisa que as histórias relatadas seriam romances, protagonizados por pequeninos heróis, cada qual no ―seu caminho‖ – empreitada não levada adiante devido à ―piedade‖ do criador, que preferiu ―não lhes dar destinos‖ (REBELO, 2002a, p. 135). Realmente, os protagonistas dos três contos do livro – o extenso ―Vejo a lua no céu‖, que será comentado nesta seção, e os mais sucintos ―Circo de coelhinhos‖, analisado no subcapítulo ―Morte‖, e ―Namorada‖, tratado na seção ―Cidade‖ – são ―pequenos‖, tanto porque são crianças e adolescentes, como também porque não apresentam grandes virtudes nem realizam feitos memoráveis. Edgar, do primeiro, é o melhor dentre eles, talvez parcimonioso demais; Francisco, do segundo, é egoísta, e Antônio, do terceiro, débil. Se Rebelo utiliza a palavra ―herói‖ para caracterizá-los, certamente a emprega fora do seu sentido clássico, do grego hêros, ―homem divinizado, filho ou descendente de deuses‖ (MOISÉS, 1978, p. 272), visto que seus personagens não realizam façanhas lutando contra adversidades. Edgar se assemelha 186

mais a um herói romântico, entidade individualizada, haja vista seu ―percurso atribulado, isolado e em conflito virtual ou efetivo com a sociedade, com as suas convenções e constrições‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 194), como veremos. Coincidentemente, na ―Nota Cronológica‖ que abre A pesca da baleia, João Alphonsus trata de assunto semelhante: avisa que o conto homônimo ―era o trecho final de um romance gorado‖ (1965, p. 17) transformado em conto, mas não explica por quê. A justificativa de Rebelo, a ―piedade‖, não é resposta no caso do mineiro, que providencia desfecho brusco ao jovem Josefino, morto por atropelamento numa via ferroviária depois de uma vida de angústia e desilusão. Nada sabemos do destino dos protagonistas de Três caminhos, apenas de suas lembranças infantis, poucas vezes felizes. As notas de João Alphonsus e Marques Rebelo geram curiosidade ao avisar que os textos são incompletos. Entendemos que a opção dos autores pelo gênero conto, no caso desses dois textos, se justifica, pois o formato mais econômico evidencia as fraturas dos enredos conflituosos. ―Vejo a lua no céu‖ (T), o mais longo conto de Marques Rebelo, conta com 29 seções separadas por asterisco e apresenta três perfis masculinos (provável referência aos três caminhos do título do livro) presentes numa mesma família de classe média carioca: o pai rígido (Pedro), o filho mais velho rebelde (Fernando) e o mais novo sonhador (Edgar), sendo este último o narrador das próprias memórias infantis. Como Álvaro Lins criticou a respeito de Stela me abriu a porta, o foco nos pequenos dramas da classe média às vezes resvala em excesso de banalidade e confere efeito de monotonia ao conto em questão. Os diálogos muito comuns contrastam com a habilidade de Rebelo vista em Oscarina e conferida na maioria de seus contos. O título esconde a tensão central, embora alguns detalhes revelem: trata-se de uma frase do pai aos filhos em certa noite, quando pede que toquem no piano ―Vejo a lua no céu‖ (música que não conseguimos localizar). Nesse sentido, o título representa, particularmente, a voz de autoridade da casa colonial, metonímia de Pedro, onde não existe liberdade de expressão nos ―serões quase sem palavras‖ (REBELO, 2002a, p. 153): ―Nós nem um pio – criança não fala na mesa‖ (REBELO, 2002a, p. 138). O lirismo que a música ecoa é mais característico de Edgar do que do pai, recordado de maneira ambígua: quase sempre, rígido e autoritário, mas, algumas vezes, terno companheiro. A canção, assim, direciona o olhar para ambiente lírico e exterior à casa, sugerindo certa fissura da rigidez de Pedro, vista em raros momentos. Lembramos da análise de Alfredo Bosi, que, ao investigar a ―tensão entre o ‗herói‘ e o seu mundo‖, nos romances de 1930 a 1970, coloca Marques Rebelo no grupo do ―romance 187

de tensão mínima‖, visto que ―as personagens não se destacam visceralmente da estrutura e da paisagem que as condicionam‖, e o enredo apela às ―coordenadas espaciais e históricas e, não raro, [a] um alto consumo de cor local e de fatos de crônica‖ (BOSI, 1972, p. 440-441). O narrador descreve o pai como homem sistemático, trabalhador competente (dono de fábrica de meias) e responsável chefe de família (cinco filhos). Os passeios que fazem todas as tardes pelo quintal da casa os aproximam. O rio Trapicheiro, que contorna o terreno, por vezes, tem características semelhantes a Pedro: restringe o espaço por onde o menino se movimenta e seu barulho abafa as vozes. Apreciador de ópera e banho quente, o pai é germanófilo e quer que o filho vá para Alemanha estudar Química: ―É o futuro do Brasil, o futuro do mundo‖ (REBELO, 2002a, p. 141). Politicamente, Pedro é contrário à entrada do Brasil na guerra contra aquele país, em 1917, sobre o que palestra com vivacidade:

Patriotismo teria sido se ele não declarasse guerra, esta guerra ridícula de opereta! Patriotismo teria sido se deixasse o Brasil neutro, de portos livres, vendendo aos dois contendores. Entraria dinheiro – como estava entrando, aliás – produção para fora, ouro! ouro! Disso é que precisamos. Nosso país é paupérrimo, atrasadíssimo. Dinheiro é progresso, meu velho, é alavanca, é sangue! Pois que entrasse ouro! Isso é que seria patriotismo. E nós com essas barretadas palermas à Europa! Que somos nós para ela? Um mercado que se explora! Um mercado apenas. País de canibais. (REBELO, 2002a, p. 161-162)

Os comentários críticos vão desde os brasileiros de maneira geral até os familiares e a terra natal, com os quais Pedro é duro: ―Magé? Má terra, má gente, mau porto e má maré‖ (REBELO, 2002a, p. 162). O personagem gosta de controlar o que ama, interesse implícito nas brincadeiras com as filhas: ―prendia Doró entre as pernas‖ (REBELO, 2002a, p. 146), ―agarrou Catarina pela cabeça‖ (REBELO, 2002a, p. 143). Assim, no dia em que Fernando, o mais velho, decide se casar, sem prévia autorização do pai, tem de sair de casa. Os espaços são desigualmente divididos: Pedro domina a casa; Fernando, a rua; Edgar, o quintal. Álvaro Lins já havia comentado algo semelhante sobre os contos de Stela me abriu a porta: ―Um conhecimento íntimo que identifica a fisionomia das pessoas com a fisionomia das casas, alongando-se pelos seus costumes, os seus hábitos, as suas alegrias, as suas misérias, os seus preconceitos‖ (1942, p. 3). Na ausência do pai, a casa ficava silenciosa, ―campo vasto para o ranger dos pesos no relógio indiferente‖ (REBELO, 2002a, p. 167), e todos ficavam tomados de medo. O relógio tradicional, que marca a hora dos encontros familiares, metaforiza o desencontro temporal dos protagonistas, o adulto Pedro, o jovem Fernando e a criança Edgar: ―O relógio, legado de vovô, solene peça de mogno e pesos, não andava mais exato. Pam! badalava. Cinco e meia‖ (REBELO, 2002a, p. 138). 188

Já a descrição do irmão mais velho é bem diferente:

Fernando era outra coisa. Brincava, ria, soltava bichas chilenas e rodinhas nas noites festivas de são João, puxava por mim, levava-me para o seu quarto, me ensinava brinquedos divertidos. E se fora. Nunca mais o vira. (...) O quintal falava bem dele. Lá estava o balanço que armara na mangueira, fonte divertida de tantos trambolhões. (REBELO, 2002a, p. 151)

Fernando era nosso traço de união com a rua, com o mundo, com a vida. Os acontecimentos vinham para nós pela sua linguagem despachada. Estava a par da última novidade, fosse anedota de português ou palavra de gíria, fosse letra de modinha ou boato político. (REBELO, 2002a, p. 153-154).

Fernando é expulso de casa porque rompe uma única vez com o silêncio imposto pelo pai. Na ocasião, os demais membros da família permanecem sentados, atônitos, jantando – e assim se comportam até o fim do conto em relação ao chefe da casa: ―Nunca mais se pronunciou o nome de Fernando na sua frente‖ (REBELO, 2002a, p. 143). Se nem a voz de Fernando nem seu nome são mais bem-vindos, uma foto dele criança é deixada na sala; a imagem do filho enquanto ainda o obedecia não agride Pedro, pelo contrário, ele quer lembrar do filho assim. Fernando vive feliz, em liberdade, longe da família, pouco tempo. Ele adoece gravemente e precisa da ajuda dos pais. Para se recuperar, vai para o interior e, quando a mulher, também enferma, morre, é internado em um sanatório. No cotidiano enfadonho da casa de recuperação, foge dos momentos de convivência com outros pacientes e, como sempre, prefere a área externa. O jovem doente, de espírito destroçado, contempla a curta vida: observa a cidade interiorana, as tropas de boiadas, a casa onde morara com a mulher cheio de esperança alguns meses, o cemitério e os enterros. Quando retorna à casa paterna, muito enfermo, continua apenas observador: da janela contempla os filhos e os irmãos no quintal. Se a tuberculose adoece Fernando, a imobilidade aos poucos o mata. Seu último grande momento de alegria é a viagem de volta para o Rio de Janeiro:

Toque, toque, o trem ganhava velocidade. Casas passam, casas, jardins, hortas, postes e o cemitério no alto. Gente, valas, homens, o pontilhão, homens a cavalo, menos casas, a cadeia, toque, toque, some-se o cemitério lá atrás. Mulheres acenam dos casebres (lágrimas borbulham), cachorros perseguem o trem, latindo. Depois o campo, o campo, o riacho, a árvore, a árvore, o dia magnífico, sempre o campo. O pai esperava-o na estação agitada. Os carregadores agrediram as janelinhas. Sentiu como que uma felicidade ao pisar a cidade natal, de inverno tão doce, que os homens atravessavam-no de roupa branca. Esbarrava, tonto, nos transeuntes. (...) No outro dia, passageira, a alegria dissipou-se. Começou o suplício. Somente o pai e a mãe vinham ao quarto em que se prendia para fugir às crianças. (REBELO, 2002a, p. 173-174)

Se a voz do pai é a única permitida, a natureza e o mundo exterior não obedecem a ele. Aos sete anos, Edgar sente medo da mata, do escuro, dos índios, dos bichos, dos alemães, e 189

Pedro o repreende: ―Um homem não deve ter medo, meu filho. Nunca! Deve ser cauteloso, prudente‖ (REBELO, 2002a, p. 139). Mesmo assim, a criança se inquieta: ―O alarido das rãs vinha morrer nos meus ouvidos. (...) O vento trazia a angústia do Salgueiro, num batuque desenfreado. As vozes bárbaras, negras, soturnas, crescem nos meus ouvidos, diminuem, quase se extinguem para voltarem depois mais altas, mais trágicas, na força de novas rajadas‖ (REBELO, 2002a, p. 141). A presença negra será estranha à redoma de criação de Edgar e, quando inserida, graças a uma doença repentina do rapaz, ser-lhe-á incômoda. Tião, servente da fábrica de Pedro, ―preto burro‖, havia sido arranjado para ajudar na recuperação do menino. Se na frente dos patrões o empregado adulava o rapazinho, por traz amaldiçoava o trabalho, mentia e bebia cachaça (cf. REBELO, 2002a, p. 159). O papel do personagem negro será bem diferente no conto seguinte, ―Circo de coelhinhos‖, em que Silvino rouba o papel de herói do protagonista quando se torna ―mártir‖. Edgar supera a doença pela capacidade imaginativa. Por mais que não consiga brincar, pensa, devaneia. Recuperado, continua a investir na criatividade, embora o pai não se agrade da composição estética do filho quando este monta um presépio, incentivado pela Tico-Tico. Na falta do que fazer, o papel de parede da sala e uma barata são suficientes para que crie histórias, tal como as aventuras aéreas com Dô, sua única amiga, quando fingem pilotar o avião do vizinho (―lá de cima‖ tudo fica pequeno, inclusive o pai). O narrador também gosta do aproveitamento estético das palavras, visto, por exemplo, na aliteração ―Dormem os morros ermos verdes, no dia dormente‖ (REBELO, 2002a, p. 155): a repetição do fonema nasal sugere a preguiça compartilhada por vários personagens de Rebelo na tranquilidade do domingo à tarde. Os episódios felizes narrados pelo menino ocorrem no jardim, com Dô ou com Fernando. A amiga estudava em escola bilingue no Alto da Boa Vista (respondia em inglês ―ié‖ e perguntava ―uóte?‖), mas o que mais gostava era dos sapotis da casa de Edgar. Na ausência dela, o rapazinho se entristecia. Duas eram as distrações favoritas das crianças: as flores e as encenações, que os transportavam para o bonde, para a rua, para o mar. Em ambas as brincadeiras, havia a evasão típica do universo infantil, que também pode ser lida como o anseio humano pela liberdade. O Rio Trapicheiro, central na vida de Edgar e do bairro da Tijuca na época, que ganhará nome de livro na obra de Marques Rebelo, é imagem que perpassa o conto, marcando as fronteiras do mundo habitado por Edgar. Do outro lado, morava o vizinho rico, estudado na Europa e casado com uma francesa, dono de confeitaria, que tinha um avião que não voava. 190

Depois que o irmão sai de casa, Edgar se aproxima do muro que separa sua casa do mundo e olha para fora, querendo sair também. A rua também reserva bons momentos a Edgar na adolescência. Em especial, lembra das matinês de cinema nos domingos à tarde em companhia de Dô. Todo o programa era bom: prolongam o caminho da ida, para conversarem mais até chegar à praça, que ―fervia com o povaréu que ia para as corridas, para o futebol, para a cidade flanar‖ (REBELO, 2002a, p. 152). O casal de amigos olhava as vitrines, imaginando as compras que não faria, como vários que ali estavam. ―O delírio ambulatório terminava nos empurrões para comprar entradas, ao tilintar intérmino da campainha‖ (REBELO, 2002a, p. 153). Na sala de cinema, gargalhavam com Max Linder, Bigodinho, Carlitos, Chico Boia e Justino Clarel. Ao barulho da multidão no largo da cidade se une o dos cinéfilos, com seus aplausos frenéticos, berros, coices ensurdecedores: ficção e realidade se espelham mais uma vez graças à mise en abyme tão cara a Marques Rebelo. O volume e a alegria experimentada contrastam com o silêncio da casa paterna; no cinema a algazarra era permitida: ―Riso, riso, emoções e mais emoções pelas ciladas armadas aos nossos ídolos, saíamos abalados, nervosos, perturbados da sala escura para a tarde na rua de sol marcial, os olhos inchados da projeção tremida‖ (REBELO, 2002a, p. 153). A sensação de felicidade de Edgar, tão incomum, é descrita como algo estranho, quase um surto. O contraste entre claro (rua) e escuro (cinema) reflete o choque entre vida real e ficção. Edgar não é descrito de maneira nítida e polarizada como o pai e o irmão. Por um lado, é afetivo e nostálgico como Pedro; por outro, é imaginativo e ávido pela liberdade como Fernando. Na realidade, é tímido, foge da algazarra da escola, estranha a do cinema (embora dela participe), mas imagina, em suas brincadeiras solitárias, que é um grande soldado. Impressionado com as notícias da guerra (o pai as lia diariamente no jornal A noite), brinca que está tomando o palácio do Kaiser, enfrentando os alemães, ―invulneráveis e invisíveis como espíritos‖ (REBELO, 2002a, p. 165). Se a ordem de surgimento dos temas e dos personagens no texto revela as preocupações imediatas do narrador ao recordar a vida, para Edgar duas questões são centrais na infância: a guerra e o pai. A rivalidade entre Fernando e Pedro abranda com a doença do rapaz, quando o pai retoma as rédeas de vida do filho. É nesse contexto que ouve ―Vejo a lua no céu‖, ―valsa bonita, que acaba fininho‖ (REBELO, 2002a, p. 164), acreditando que seus tempos de mando voltariam, contudo ele estava enganado:

A melodia rolou imperfeita pela sala escura. Escura, também, a noite lá fora. Céu, montanha, se uniam num mesmo negror. E havia vento. Rajadas sufocantes de 191

tempestade próxima traziam, da montanha, o ramalhar das árvores, grosso e ininterrupto como o fragor duma cascata. A melodia continuava. Agora vem a passagem de notas baixas, que Catarina interpretava mal. Que importa? Papai ouve. Fuzila. Cada clarão recorta-lhe, no vão da janela, o perfil imóvel, distante. Cada relâmpago mostra melhor o nariz reto, os lábios secos, o bigode à inglesa. Os olhos serenos, sob os óculos, têm brilho d´água. (REBELO, 2002a, p. 165)

A escuridão do ambiente apenas iluminado pela violência dos relâmpagos metaforiza o temperamento de Pedro. O verbo ―fuzilar‖ tanto se refere à força natural quanto à do pai, que se coloca à frente da batalha, à dianteira da vida de todos. Mais uma vez ele manda, como a natureza sufocante; entretanto, a imagem não é só negativa, pois termina com os olhos marejados do pai, sensibilizado. Quando o texto se aproxima do fim, os estereótipos se flexibilizam: o pai castrador perdoa e recolhe o filho doente; o jovem rebelde aceita a ajuda da família. Quando Fernando morre, Pedro se sente culpado. A mulher, Filoca, o consola dizendo que fora a vontade de Deus. Com exceção de Dô e Margarida (a irmã mais velha, depois da morte dos pais e de Fernando, assume o protagonismo em casa e na fábrica), as personagens femininas representam papel secundário no texto (a mulher de Fernando nem nome recebe). A matriarca Filoca ganha sufixo que, em geral, nos contos de Rebelo, indica mulheres inexpressivas, de classe média alta, ―ocas‖, como D. Marocas e D. Miloca, de ―Tragédia‖ (O): ―Seu Pedro... Encerrava-se nesse respeito de mamãe por papai a norma da nossa vida. Papai é quem mandava. Obedecíamos cegamente.‖ (REBELO, 2002a, p. 142). Em compensação, a mãe de Dô é enfatizada: Dona Zizi (a sílaba dobrada confere-lhe ar moderno e informal), mulher sem marido fixo, é descrita como se estampasse uma capa da Fon-Fon:

Achava-a esquisita, tão diferente de mamãe, com aqueles braços eternamente de fora, o rosto emplastado de pomadas, o decote mostrando o colo alvo, o cabelo cortado quase como homem. Falava francês na mesa com os criados, ia todas as tardes tomar chá na cidade com as amigas, o vestido apertado na cintura, o andar afetado, o véu caindo do chapéu de plumas, as botinas de vinte botões, aparecendo as biqueiras sob a saia roçagante. (REBELO, 2002a, p. 145)

Na página final, a morte dos personagens centrais é contada em três pequenos parágrafos, procedimento que parece pouco razoável para narrador que pormenorizara memórias do cotidiano simples. Aquela nota de pé de página introdutória é, mais uma vez, elucidativa: para que o pequeno herói não sofra mais, Rebelo encurta as páginas. A morte de Pedro é mais tortuosa que a de Fernando: o pai culpa-se e preocupa-se com os filhos, que ficarão desamparados: ―Foi, como jamais o víramos, desesperado, revolto. Gesticulava. Não queria morrer. (...) Não queria morrer. Não podia morrer! A voz saía-lhe aos arrancos 192

roucos.‖ (REBELO, 2002a, p. 176). A voz enfraquecida é o sinal de que a onipotência paterna definha. Já a morte de Fernando nem é contada, tão desapegado o rapaz estava da vida. Edgar sofre com as múltiplas perdas: a expulsão, a doença e a morte do irmão; a partida de Dô para morar em outro bairro; os impedimentos do pai; a orfandade. O tempo passa muito mais rápido no desfecho do conto como se as forças do narrador se exaurissem. Marques Rebelo levanta o tema da liberdade difícil até na infância, quando se teria todo o tempo para a imaginação e a brincadeira. Não são problemas financeiros, mas morais e naturais que atrapalham a vida de Edgar. Enfim, dos três caminhos, não existe um mais certo, nem um mais feliz. O narrador sobrevive às dificuldades (opressão, solidão, doença, abandono) graças a sua capacidade de ficcionalizar a vida – daí conseguir narrá-la. Pedro, embora prepotente (ou talvez por isso mesmo), responde a todos os compromissos de cidadão e de pai; Fernando, movido pelo amor, enfrenta-o e desfruta a liberdade. Os rivais pouco se flexibilizam em suas trajetórias, e, quando o fazem, assim agem como que por imposição do destino. A culpa de Pedro e a doença de Fernando parecem uma espécie de castigo aos fortes temperamentos; quem consegue se manter relativamente neutro nas situações, como Edgar, sobrevive, todavia não vive grandes paixões.

4.2.2 Rio de Janeiro

Ainda que o ponto-chave da contística de Marques Rebelo seja a relação dos homens com a liberdade, não é por esse viés que o escritor é conhecido na cena literária brasileira, mas, sim, por ter inscrito o Rio de Janeiro na literatura modernista. Wilson Lousada, no artigo ―Literatura de ficção‖, afirma:

Sendo o mais típico, Marques Rebelo também é o único romancista inteiramente carioca, pois livros como Trinta anos sem paisagem [1939], Espelho de casados [1938], A mulher que fugiu de Sodoma [1931], por exemplo, embora tenham por cenário o Rio, nem por isso identificam seus autores com o ambiente que descrevem. O cenário, nesses caso, é meramente acessório. (1941, p. 277)

De acordo com o ensaísta, nos três romances listados, de Guilherme de Figueiredo, José Vieira e José Geraldo Vieira, respectivamente, a cidade e os personagens não estariam intrinsecamente conectados. Diferentemente, na obra rebeliana, formariam um sentido único, porque suas criaturas eram ―essencialmente cariocas pelo estilo de vida, pelos modismos de linguagem, pelos caracteres sociais‖ (LOUSADA, 1941, p. 278). 193

No artigo ―Província e Nação‖, de 15/08/1942, Álvaro Lins, colunista do carioca Correio da Manhã, resenha o último livro de contos de Rebelo, vinculando-o à ―família literária de Machado de Assis‖ devido ao registro psicológico e regional bem feito dos personagens, que refletem a ―vida provinciana do Rio, isto é: o que há de mais genuíno, de mais particular, de mais autêntico‖, revelando o escritor como ―um provinciano de espírito universal‖ (LINS, 1942, p. 3), uma vez que outros povos poderiam compreender seus textos quando traduzidos. Rebelo ora apresenta a cidade em movimento e em mutação, que pode ser simbolizada pelo cinema (bom exemplo é a interação social verificada em ―Caprichosos da Tijuca‖ (S)), ora investe em uma descrição mais estanque, em que ela é captada nostalgicamente como numa fotografia (como na primeira parte de ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O)). Daí a presença, em alguns contos, de um relógio moderno, ajustado, que passa rapidamente, e, em outros, de um relógio atrasado ou parado. Em Oscarina, o Rio ganha status de personagem ao se relacionar metonimicamente com os protagonistas; em Três caminhos, os bairros da Grande Tijuca se impõem como cenário; e, em Stela me abriu a porta, as transformações sofridas pela então capital federal no início do século XX são registradas. O narrador nem sempre se mostra favorável às mudanças; às vezes, revela-se nostálgico, outras vezes, temeroso em relação às novas propostas urbanas, que desprezam a paisagem natural, a arquitetura antiga e o gosto pela literatura. A Exposição Universal (1908) e o Centenário da Independência (1922) representaram a ideologia do progresso nacional, centralizado na economia do ferro e na eletricidade: esses eventos mostraram o Rio de Janeiro como ―apoteose da modernidade brasileira‖ aos olhos do mundo (cf. SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 44). Percorremos com Rebelo algumas ruas do Rio, observando, primeiro, a cena artística, ficcionalizada em ―Caprichosos da Tijuca‖ (S), ―A última sessão do grêmio‖ (O) e ―Depoimento simplório‖ (S); em seguida, o cotidiano familiar, em ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O), ―Uma senhora‖ (O), ―Cenas da vida carioca‖ (S), ―Uma véspera de Natal‖ (O), ―Outra véspera de Natal‖ (S), ―Namorada‖ (T) e ―Tragédia‖ (O).

*

Para registrar a aproximação entre literatura e samba, realizada proficuamente no Rio de Janeiro, Rebelo escreve ―Caprichosos da Tijuca‖ (S), conto repleto de diálogos e cenas 194

curtas, que aproxima harmoniosamente personagens de mundos distintos. O mesmo não ocorre em ―A última sessão do grêmio‖ (O) e ―Depoimento simplório‖ (S), que encenam conflitos estético-sociais. O título de ―Caprichosos da Tijuca‖ (S) alude à escola de samba tradicional da região onde Marques Rebelo passou a infância. Na época da escrita do conto, o bairro já era conhecido pelas múltiplas agremiações carnavalescas, algumas registradas pela fala do sambista que vai às casas dos moradores em busca de patrocínio: Tem os Formigas aí no morro. Foi o que o doutor viu ontem. Tem o Estrela da Tijuca mais acima. Mas os Caprichosos é o melhor. Tem muitos campeonatos. No ano passado mesmo levamos a taça de Harmonia. No ano retrasado pegamos a taça de Evoluções. Muitos prêmios. Está tudo lá na sede, muito bem arranjado. Por que o doutor não vai visitar a sede? Era uma honra para nós. (REBELO, 2002a, p. 228)

O narrador anônimo de primeira pessoa, chamado de ―doutor‖, que apreciava a ―cadência bem marcada, vozes afinadas‖ (REBELO, 2002a, p. 226) dos sambistas, assume compromisso com a escola de samba do bairro. Entretanto, envolvido com a escrita de um romance, falta o encontro combinado. Consegue se desculpar posteriormente, porque os camaradas, chateados com sua ausência, vão em surdina à casa dele, no horário marcado, e verificam que ele estava mesmo trabalhando: ―Chegamos, espiamos pela janela, o doutor nem deu sentido de nós. Estava escrevendo, escrevendo, nem levantava a cabeça. O Bastinho só disse uma coisa: – Deve ser uma causa urgente. E me perguntou se o doutor era do crime. Eu não sabia. Ele explicou tudo à diretoria – o doutor estava abafado!...‖ (REBELO, 2002a, p. 231). Além do humor causado pela ambiguidade da expressão ―causa urgente‖ – para os sambistas, um processo criminal; para o escritor, a literatura – e do respeito que os homens demonstram pelo trabalho intelectual, a cena angaria mais sentido ao sabermos que o compromisso foi esquecido devido à repentina inspiração (―extraordinárias disposições‖) que prendera o escritor em casa. O relato animado do processo criativo instaurado naquela noite faz pensar que foram os sambistas que a trouxeram consigo, quando visitaram o escritor, na véspera, para pedir ajuda financeira para a agremiação:

Os personagens mexiam-se na minha cabeça furiosamente. Queriam sair, tinham que viver, precisavam viver. Uma cena que me parecera difícil e que, desesperado, abandonara no meio, veio clara, perfeita, exatamente como deveria ser. Era só escrevê-la... Comi pouco e às pressas e caí no romance. Cena puxa cena. E diálogos, situações, descrições, conceitos, tudo escorria fácil e aproveitável. Poucos retoques mereceriam mais tarde. (...) Quando dei fé de mim, passava da meia-noite. Lembrei- me dos Caprichosos – que diabo! (REBELO, 2002a, p. 229)

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A inquietação do homem de letras dentro de casa pode, também, ser associada à curiosidade dos sambistas que o espreitam pela janela: os personagens do romance ávidos pela vida estão também no jardim. Os de fora inspiram os de dentro e os respeitam, mesmo sem ter consciência disso. A arte popular e a erudita se aproximam, embora ainda haja um degrau entre elas, evidenciado pelo discurso da mulher: primeiro, o marido deveria encerrar o romance; o samba poderia ser aproveitado, depois. O protagonista ratifica o discurso – ideia que associamos à declaração de Marques Rebelo a Clarice Lispector, para quem justificou o uso de pseudônimo porque seu nome de batismo seria ―bom para compositor de escola de samba, mas péssimo para escritor‖ (apud TRIGO, 1996, p. 33). A diferença social também é ratificada por um dos sambistas, ao afirmar que Bastinho, o presidente da escola, ―É de cor, mas tem estudos‖ (REBELO, 2002a, p. 228). De princípio, a mulher chama os sambistas de ―malandros‖ (REBELO, 2002a, p. 226), expressando o senso comum, porém, ao comparecer ao ensaio da escola, descrita como familiar, revela mudança. A primeira impressão do narrador também não é boa, porque ―há tanto malandro com cara de sério‖ (REBELO, 2002a, p. 227). Assim, o malandro, na obra de Rebelo, configura-se como personagem nem negativo nem totalmente positivo; é tipo popular livre. O conto afina-se à metáfora-chave do livro, da ―porta aberta‖: o narrador literalmente abre a da sua casa para os sambistas, que também abrem a da escola de samba para o escritor. Estabelecem-se respeito e carinho mútuos, mesmo que a aproximação tenha sido explicitamente motivada por dinheiro. Nesse sentido, concordamos com Wilson Lousada, no artigo ―O escritor e o assunto‖ (1943, p. 140), que, por mais que o conto seja tecnicamente bem elaborado, em comparação com outros, especialmente os dos primeiros livros, falta, em ―Caprichosos da Tijuca‖, enredo e intriga, aproximando-o mais do universo da crônica. Menos otimista é o último conto de Oscarina, ―A última sessão do grêmio‖: opondo tradição e modernidade, o narrador de terceira pessoa descreve atitudes e discursos de um poeta antiquado e autoritário que cria agremiação para usufruto próprio. Os dias relatados, que presenciam o declínio do grêmio, são frios, de inverno carioca, climatizando os humores e os personagens envolvidos. Além disso, há muitas moscas no ambiente, insetos em geral introduzidos nos contos para marcar mudança de cena, a partir do rapto da atenção sonora. Enfim, a sala das reuniões literárias não é convidativa (úmida, escura, embolorada, triste e improvisada); mais uma vez, as construções são metonímias dos personagens que as ocupam, dessa vez, semelhantes a múmias (ossudos, sujos e trágicos). 196

Se o presidente do grêmio era alheio ―a tudo que era terrestre, rasteiro e mesquinho‖ (REBELO, 2002a, p. 131), já em âmbito literário e gramatical era ―voltado para o amor das velhas formas, para a pureza dos trechos clássicos, para o culto de Camilo, de Castilho, de Herculano‖ (REBELO, 2002a, p. 132), admirando os portugueses românticos, ou seja, escritores distantes no tempo e no espaço. Na sessão do grêmio anunciada pelo título, o líder avisa que há um traidor na assembleia, autor de ―pouquidade mental‖, cujo amigo é um ―poetastro de seborrenta musa‖ (REBELO, 2002a, p. 131), embora haja críticos literários – péssimos esses também, portanto – que os valorizam. Como vemos, em uma frase o presidente ataca várias pessoas. A apatia do público, descrito de maneira estereotipada – um magro, um gordo, um retardatário –, revela que o comportamento era comum, tanto que ninguém mais se importava com os discursos. O orador preocupa-se apenas em ter ouvintes, e não em ser efetivamente ouvido:

Prosseguiu a estraçalhar vivos e mortos, acabando, as veias do pescoço muito inchadas do esforço, a esmurrar a mesa, por maltratar os próprios camaradas com repetidos: compreendeis, compreendeis? – como se todos formassem na sua frente uma cambada de idiotas. Sofreu um vexame quando, aparteando, o magricela disse que ―deboche‖ era galicismo e ―casco dasno‖ não soava bem. (REBELO, 2002a, p. 131)

O presidente reage à crítica vocabular, e o poeta atacado se levanta. Não sabemos o que fala, porque o narrador o corta, contaminado pela tirania do protagonista: ―Bandido! como ousava atacá-lo, aquele ingrato!‖ (REBELO, 2002a, p. 131). A hegemonia do líder expressa como funcionava o grupo: os escritores eram convidados e favorecidos não porque fossem talentosos, mas para que servissem como ouvintes de seu discurso pernóstico:

– Prosseguindo nos meus profundos estudos, vou profligar umas protervas ejaculações sofísticas dum desconhecido que me repugna pronunciar o nome, mas que por boca menos pura podereis saber. Senhor segundo-secretário, quem é ignóbil que me ataca? Alguns riram, que o diabo do homem de vez em quando tinha graças! E a boca menos pura do segundo-secretário, que era o poeta mavioso dos Versos ao meu amor, escarrou o nome do desgraçado: – Antônio Pereira. (REBELO, 2002a, p. 132)

A frase aliterada, que anuncia rica pesquisa, acaba colocando em dúvida sua qualidade, visto que o vocabulário raro é empregado não para comprová-la, mas para atacar um oponente, Antônio Pereira (talvez o poeta português de tendências modernas, já que ele só cita escritores lusitanos). A partir daí, vários escritores são citados nominalmente, embora o presidente não seja revelado, nem o ridicularizado segundo-secretário. Por exemplo, para amparar seu ponto de vista linguístico, o líder cita Cândido de Figueiredo, dicionarista português falecido em 1925. 197

Ao perceber a iminente dissolução de seu sonho – ―um auditório, uma plateia, um público pequeno, sim, mas seu, já que todas as revistas se fecharam à sua colaboração, já que fora um grande sacrifício vão a publicação do seu livro de versos, produto das suas vigílias tormentadas, rimas que lhe deram a única felicidade‖ (REBELO, 2002a, p. 132) –, o presidente entristece-se, desespera-se e, por fim, encoleriza-se. Para que o grêmio não se extinguisse, pedira apoio até aos poetas com os quais tinha contendas, como o baiano Artur Gonçalves (1872-1952), e aos diretores de jornais com os quais brigara, inclusive por causa de Mário de Andrade: ―Tudo fizera (...) humilhara-se até, porque sabia que tudo seria para melhor e no fim de tanta lida lá estaria o seu público, ouvintes para as suas poesias, risadas para os seus sarcasmos‖ (REBELO, 2002a, p. 133). Entretanto, nada que faz surte efeito, porque os participantes não aguentavam mais a soberba, a vaidade, a tirania e os exageros do líder: ―Já se bocejava quando ele lia os poemas da sua lavra, cheio de florões e blasfêmias às mulheres‖ (REBELO, 2002a, p. 133). Além disso,

Os rapazes já sabiam que eram melhores as noites lá fora, no bilhar, o bilhar do Quincas, um sujeito ventrudo, com piadas engraçadíssimas, na praia, entre as pequenas, no cinema, do que ali naquelas sessões estéreis, a ouvir sem cessar a voz do presidente vomitar contra tudo, homens e obras, coisas e divindades, a onda do seu despeito, num elogio desvairado e mórbido do que era seu. (REBELO, 2002a, p. 133)

A última palavra pronunciada pelo presidente – ―imbecis!‖ (REBELO, 2002a, p. 134) – confirma a ideia dos rapazes: mais do que rancoroso e sozinho, ele é um grande orgulhoso. Vimos oposição semelhante no conto ―Espelho‖, em que o protagonista anônimo é jovem antiquado e se isola daqueles que aproveitam com alegria a música e o esporte modernos. Enquanto os jovens do grêmio vão embora rindo, o homem amargurado permanece ―sentado no lugar de honra, ereto, superior‖ (REBELO, 2002a, p. 133). O desfecho ratifica-lhe a arrogância: ―E levantou-se também, desceu a escada pisando forte, caiu na rua, sem chapéu, a onda dos cabelos elevando-se revolta sobre a cabeça grande‖ (REBELO, 2002a, p. 134). No último conto de Oscarina, Marques Rebelo expõe seu credo literário, coincidente com o seguido pelos jovens modernistas cariocas: a literatura vinculada às rodas populares, encenada por sujeitos vulgares, mas libertos, criativos e felizes, era mais viva e fértil que a outra, espelho de uma sociedade composta por pseudointelectuais rancorosos, egoístas e mofados. Portanto, as sessões são substituídas pelas praias cariocas e pelo cinema estrangeiro, nos quais predomina, de acordo com o narrador, a beleza feminina (―as pequenas‖). A 198

indicação que ―lá fora‖ é melhor que o interior insalubre reforça a urgência da evasão, ponto- chave da obra contística rebeliana. A discordância também é tema de ―Depoimento simplório‖ (S), em que o narrador, jovem avesso à gramática, reage sobre o comentário feito pelo renomado professor de português, contratado pelo pai para lhe dar aulas particulares. Certo dia, ao receber um livro de poesia pelos correios, o catedrático folheia o volume e conclui que se trata de mais um ―futurista‖ (REBELO, 2002a, p. 207). O desdém do mestre causa efeito contrário: atrai o estudante à novidade literária. Três posicionamentos diante da literatura modernista são relatados no curto conto. Primeiro, o do professor preconceituoso: depois do julgamento antecipado, a brochura vai imediatamente para o lixo; se ―o Poeta admirava sinceramente o gramático‖ (REBELO, 2002a, p. 207), por isso havia lhe remetido o livro de estreia, a empatia não era recíproca. Segundo, o do filho do professor, de quem o narrador fica amigo: o rapazinho retira o livro do cesto e repete as impressões do pai, porém reposiciona o objeto, depositando-o num canto da sala. Quem o recicla, valorizando-o, é o terceiro que o pega nas mãos:

Aí abaixei-me, peguei o infeliz volume, de capa branca e título modesto, abri-o: Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro se por agora Não tens motivo nenhum de pranto.

– Vou levar este livro para mim – disse fechando o livro e encostando-o inexplicavelmente contra o coração. – É um favor que está prestando. Senti-me ferido, pensei no Poeta, olhei com piedade para o meu amigo que se espichara no sofá. E ele se mostrava tão tranquilo que não houve mais lugar para piedade. Tive-lhe ódio, um ódio imenso. (REBELO, 2002a, p. 207)

Os versos citados são de ―Desencanto‖, segundo poema de A cinza das horas (1917), livro de estreia de Manuel Bandeira. Tal como o professor, que não produz um discurso substancial em relação ao que ele rotula como futurismo, o aluno também oferece uma opinião rápida mas simpática sobre os versos aos quais é apresentado de maneira tão enviesada: aquele livro caído lhe parece ―um pássaro de asas abertas‖ (REBELO, 2002a, p. 207). Ele fica com a brochura porque, diferentemente do gramático e do amigo, se identifica com a nova expressão; rapidamente se coloca ao lado do Poeta humilhado. Não sabemos se o objetivo das aulas foi alcançado, ou seja, se o professor gabaritado conseguiu colaborar com a capacidade gramatical do estudante, cujo pai sentia vergonha das notas baixas em português. Porém, uma ―porta‖ foi aberta a ele, a da literatura, mesmo que tenha sido às avessas. 199

O professor – excelente homem, rabugento, famoso, insociável – está mais interessado em pesquisas sobre o gerúndio, que fariam furor em Portugal, do que com a poesia modernista. O aluno nutre sentimento paradoxal em relação às aulas: ―Via no fim dele [do curso] uma espécie de liberdade (que francamente, ao chegar, foi uma desolação (...)‖ (REBELO, 2002a, p. 206). A confusão é explicada pela associação do estudo da rígida gramática com o encanto do aluno pelo arranjo poético das palavras. Mas o que vale a opinião de um péssimo aluno de português sobre um texto literário para um catedrático? Nesse sentido, o rapaz ganha poder ao ser o narrador da história – talvez por isso o texto comece em caixa alta com a expressão ―EU CONTO‖ (REBELO, 2002a, p. 206), estilo introdutório parecido com o de Malazarte (de Mário de Andrade). Se durante o fato narrado ele não teve vez nem voz, agora, no momento da fabulação, o espaço é somente dele.

*

No conto ―Na rua Dona Emerenciana‖, Marques Rebelo emprega duas técnicas narrativas para expressar distintas conjunturas. A primeira parte do texto, separada da segunda por um asterisco, descreve a rotina do casal Jerome e Veva, criando um efeito mais fotográfico do que cinematográfico, deixando este para a segunda parte, mais narrativa, que relata o velório do homem. A passagem de um momento a outro não é sutil, deixando o enredo lacunar. Essa sensação de vazio está presente na história em vários sentidos: abre o conto, com a tranquilidade do entardecer em um subúrbio carioca, focalizando a harmonia do casal protagonista; e o fecha, com o desespero da recém-viúva que precisa criar sozinha cinco filhos e uma tia paralítica. A casa de Jerome e Veva abriga objetos simples e velhos, como um ―carcomido relógio‖ de ―pancadas lentas‖ (REBELO, 2002a, p. 49), metaforizando a distância não só temporal, mas espacial e de serviços, do bairro em que vivem, São Cristóvão, considerado na época longe do centro modernizado: ―Por determinação do Plano Agache, no final da década de 1920, o bairro foi tratado como local de residência da população operária, resultando numa produção expressiva de vilas e habitações coletivas na região, que continuou pela década seguinte‖ (IRPH, 2012, p. 5). Os pontos de referência mencionados não são bares, praias, nem rodas de samba, mas farmácias (Gestura e Pacheco), onde Jerome compra o remédio de Veva (ironicamente, ele que morre em seguida). O modo como a mulher se dirige ao marido (―meu filho‖) contribui 200

para caracterizar o espaço antiquado e pouco convidativo às paixões. Entretanto, o narrador explicita seu carinho pela região: ―– digam lá o que quiserem, não há como os subúrbios para uma boa fresca!‖ (REBELO, 2002a, p. 51). Diversos personagens secundários são nomeados, construindo cenário íntimo e plural ao mesmo tempo: meninas flertando escondido, homens debatendo política, vizinhos comentando o cotidiano. Vale o registro dos migrantes, recém-chegados do Paraná e da Alemanha. O narrador é mais observador que onisciente e está mais preocupado com questões pragmáticas e visíveis do que com dúvidas existenciais. No primeiro momento, a imagem que prevalece do subúrbio carioca, sem brigas nem fofocas, é romântica. A família pobre sobrevive com dificuldade, contudo feliz. Os homens (Jerome e Azevedo, seu vizinho) conversam sobre política, enquanto as mulheres se preocupam com a rotina, e todos convivem no mesmo espaço. O discurso desesperançado contrasta com o bem-estar compartilhado pela pequena comunidade:

– É triste, muito triste... – e entrou a falar com abundância, com ódio, com rancor, do estado de coisas que os punha pequenos e pisados – pisados, sim, senhora, é a expressão: pisados! – pelos grandes, sem esperança, sem oportunidades, sem direito a um destino, meros fantoches nas mãos hílares dos ousados e favorecidos. (REBELO, 2002a, p. 52-53)

Dona Veva é semelhante a Oscarina no que diz respeito à disposição para o trabalho, porém somente nisso; nem é sensual – ―cabelo cortado, grisalho e maltratado, a falta de dentes abrindo-lhe no queixo curto uma ruga funda‖ (REBELO, 2002a, p. 52) –, nem perspicaz – não entende a conversa dos homens sobre política, indagando-se se Azevedo havia dito que o mundo era um circo ou um círculo –, prefere apegar-se à religião. Se não entende bem de que o vizinho reclama, a cena final prova que a mulher é a que mais sofre com a situação anunciada. Na ausência de Jerome, a matriarca domina a segunda parte da história, sublinhando a presença feminina num conto que tem no título o nome de uma mulher. A tia velha prenuncia-lhe o fim infeliz:

A paralítica, na cadeira de rodas, plantada no meio da cozinha (...), sacudida pelos soluços como um molambo esquecido, pensava com heroísmo na tristeza do asilo, tendo um bolo de crianças, choramingando talvez sem saber por quê, pendurado nas suas saias pretas, castas, que escondiam umas pobres pernas sem vida. (...) – Ele se foi, é o nosso destino, comadre, uma vontade suprema a que nada podemos opor, e como era bom com Deus está. Mas não a deixou sozinha, pense bem. E os filhinhos? E... Dona Veva espantou os olhos gastos para seu Azevedo, que emudeceu, e, quando pensou nos seus cinco filhos, aí é que ela viu mesmo que estava sozinha e de mãos para o céu começou a gritar. (REBELO, 2002a, p. 56-57)

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Contrariando as expectativas de Azevedo, homem bem intencionado, mas limitado, o mundo, para Veva, não é uma bola (nem um circo): a morte brusca do marido causa ruptura incompatível com a ideia de repetição, e a alegria, antes pouca, mas certa, agora é improvável. Além da tristeza emocional, a morte de Jerome gera preocupações práticas. A dependência financeira feminina era a realidade das famílias brasileiras; de acordo com estatísticas da época, apenas 16,7 % das mulheres tinham emprego no decênio de 1920 (cf. SOARES et al, 2014, p. 13). Estruturalmente, o conto de Rebelo é misto: metade lírico, pulveriza personagens pelas ruas periféricas da cidade; metade dramático, centraliza-se na agonia de Veva. Parece que Di Cavalcanti (1956, p. 8), na ilustração que acompanha o texto na Para todos, duas décadas depois, quer apontar para esta dupla situação:

Ilustração n.º 7 – Ilustração de Di Cavalcanti para o conto ―Na Rua Dona Emerenciana‖

As duas jovens destacadas em primeiro plano à direita, personagens secundárias no conto, contrastam com a primeira imagem vista à esquerda, da mulher entrevada (tia de Veva), seja pela beleza que expressam nas formas cheias e arredondadas, seja no enfoque garantido pela posição frontal em comparação com a doente, que aparece de perfil, como o homem sentado e fechado na leitura. Sublinhe-se, por fim, o estranhamento da ausência de Veva na figura. Tanto no texto escrito quanto na gravura, a extensão diminuída e a brusca separação entre as partes acentuam a carga expressiva e trágica da história. Talvez por isso o conto tenha sido selecionado, dentre os quase 40 escritos pelo contista, para constar da Oxford Anthology of the Brazilian Short Story (2006, p. 228), organizada por K. David Jackson, que recuperou a tradução publicada na revista britânica Life & Letters Today, em julho de 1943. Graciliano Ramos (o mesmo que chama, em 1948, o modernismo de ―movimentozinho‖ que agrega ―cabotinos‖, em entrevista a Homero de Senna, refutando o rótulo de ―modernista‖) também 202

aplaudiu o conto – dizem que sabia alguns trechos de cor e os repetia na livraria José Olympio. Luciano Trigo informa que o texto já era conhecido dos leitores da revista Novidades Literárias, de Djalma Cavalcanti, desde 1930 (cf. TRIGO, 1996, p. 53). A cidade que acolhe a todos e propicia momentos de descanso e cidadania não se sustenta até o final do texto. O sentimento de perda aumenta ainda mais quando sabemos que, poucos anos depois, a reboque das transformações ocorridas no bairro de São Cristóvão, a rua Dona Emerenciana, que ligava a rua Fonseca Teles à Quinta da Boa Vista (cf. LAEMMERT; SAUER, 1906, p. 2530), foi extinta. Não temos notícia se, no momento em que Rebelo escreve o conto, a rua já estava em vias de apagamento; se sim, a morte de Jerome é metonímica, se não, é profética. A tarde suburbana impecável se torna, de fato, ficção. Outra mulher protagoniza história mais bem-humorada. Se durante a maior parte do ano a vida de Quinota se resume a uma rotina tediosa, tal situação parece-lhe plausível uma vez que suas privações e economias garantem a ela e à família, nos dias de Carnaval, uma diversão farta, confortável e requintada. É assim que a personagem identificada indefinidamente no título como ―Uma senhora‖ (O) é feliz. Se o artigo sublinha sua trivialidade – ela é como várias outras mulheres da época –, o pronome respeitoso dignifica-a. Outros títulos de Oscarina usam o indefinido para indicar realidade não desejada, por isso diminuída pelo elemento gramatical, como em ―Um destino‖ e ―Uma véspera de Natal‖; já em Stela me abriu a porta, o elemento esconde surpresas agradáveis, como em ―Um morto‖ e ―Quatro momentos de um idílio‖, pois o que transparecia algo vulgar singulariza-o. Todas as economias de Quinota, dona de casa e empregada dedicada, eram destinadas às fantasias, ao aluguel do carro e aos gastos do carnaval: ―Chegando o carnaval, tirava a forra‖ (REBELO, 2002a, p. 108). Já os nomes dos filhos, que queria premiados pela caderneta da Caixa Econômica Federal, revelam a monotonia da época não carnavalesca: Élcio, Élcia e Elcina. Embora a mulher acreditasse em tudo o que a rádio dizia, revelando certa alienação (condizente com a atitude de gastar todas as economias do ano em poucos dias), também se irritava com a injustiça social, reclamando que sua classe não era contemplada pelas políticas: ―Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!...‖ (REBELO, 2002a, p. 107). Entretanto, a personagem não levanta bandeira feminista: é ciumenta em relação ao marido, mas não se queixa. Seu Juca, personagem secundário, também era caseiro e seguia os desejos da mulher. Fora dos dias de carnaval, a mulher não saía de casa, nem gostava de receber visitas, porque achava os vizinhos invejosos, descarados, despeitados: 203

Desciam [Quinota e a família] do automóvel à porta da casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada. – Brincaram muito? – fez seu Adalberto, com um jeito de despeitado. – Assim, assim... Dona Quinota dizia aquele ―assim-assim‖ de propósito. Que lhe importava os outros saberem de ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah! Seu Adalberto exultava: – É isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. (...) – O ano que vem – dona Quinota falou firme – nós iremos também a pé. (REBELO, 2002a, p. 109)

Apesar de o narrador, muito afeito a Quinota, reforçar que ela não se importava com a opinião alheia, também revela a imensa satisfação dela ao mentir para o vizinho. Se ela esbanja para desfrute próprio, aproveita para causar inveja e zombar os outros. A estrutura do trecho acima transcrito, que insere entre parênteses uma espécie de didascália, às vezes aparece nos contos de Rebelo. A cena assim registrada ganha aspecto teatral e denuncia que a exibição era, sim, importante para Quinota, que ali, diante do vizinho, representava o final de um espetáculo, visto que era o último dia de carnaval. O desfecho registra a volta à rotina: o casal discute qual o carro mais bonito do cortejo daquele ano, o dos Fenianos ou dos Democráticos, a partir de uma escolha feita pelo Jornal do Brasil. O narrador deixa a frase pela metade: não a completa porque a sequência não importa. O ciclo de Quinota recomeçará a partir dali: economizar para esbanjar no ano seguinte. A personagem, como Jorge, de ―Oscarina‖, também é metonímia da cidade do Rio de Janeiro, que altera seu ritmo nos dias carnavalescos, porém volta a ser a mesma na quarta- feira de cinzas. O proceder de Quinota não é explicitamente elogiado, nem criticado pelo narrador. O tom do relato é ambíguo: julga com leveza a mãe de família trabalhadora, no entanto não a condecora – ela continua a ser ―uma senhora‖ apenas, uma vez que não apresenta evolução, apenas repete o mesmo ciclo. Talvez por isso o escritor tenha republicado o texto na seção ―Quadros e costumes do Centro e do Sul‖, da revista Cultura Política, do Departamento de Imprensa e Propaganda do governo getulista. Nessa versão, em 1942, o conto aparece sem título, talvez para diminuir seu caráter ficcional, uma vez que o objetivo da coluna de Rebelo era registrar a realidade brasileira, tal como texto (não assinado) anuncia no primeiro número:

Conhecer o Brasil é também fixar-lhe os costumes, as paisagens, as cenas e quadros típicos do interior, do litoral e das capitais. (...) A alma do povo desponta por detrás dos seus quadros de costumes: vemos, ali, o povo vivendo a sua verdadeira vida de todos os dias, a grande vida humana que as instituições políticas se destinam a 204

interpretar, defender, amparar, estimular e encarnar nas formas e sistemas de governo. Esse grande e verdadeiro povo do Brasil – é que será retratado nestas páginas. (...) Mas o Brasil é grande, imensamente grande: a rotina continua a espreguiçar-se com lentidão secular, porque os Governos não operam milagres e a vida social brasileira tem que seguir a sua marcha natural. Se a nossa evolução política segue ritmo veloz de decênios, a nossa vida social terá que seguir, inevitavelmente, um ritmo paciente de séculos. Porque os povos não improvisam os seus sistemas de vida: arrancam-nos de dentro de si mesmos. E se hoje já vamos readquirindo a ―posse de nós mesmos‖, há que esperar muito deste influxo vitalizador, mas há que esperar com paciência, confiando tanto na obra do tempo como na dos homens. (1941, p. 232)

Sublinhamos duas preocupações dos editores ao anunciarem o quadro de Rebelo: o registro da realidade brasileira e a independência entre a vida política e a social. Raúl Antelo (1984) aborda a dúvida do escritor ao integrar o corpo de colaboradores da revista estatal, uma vez que teria de lidar com questões polêmicas em um meio repleto de censuras. Além de ―Uma senhora‖, o contista publicou na Cultura Política outros textos, depois enfeixados sob o título de ―Cenas da vida carioca‖ (I e II) em Stela me abriu a porta. Esses dois contos apresentam relatos de famílias exemplares – de homens e mulheres trabalhadores, pais e mães responsáveis –, em cujas casas até o passarinho ―precisa se casar‖ (REBELO, 2002a, p. 272). Complementares, pretendiam, na Cultura Política (a cena I, na edição n.º 5, a II, na n.º 9, em 1941), revelar aos leitores costumes do Rio de Janeiro, como o subtítulo da seção de Rebelo anunciava. Dois anos depois da publicação em livro, a cena I também constou da coletânea Contos do Brasil, organizada por Daniel Lee Hamilton e Ned Carey Fahs, da editora F.S. Crofts & Company, da Universidade do Texas: é importante sublinhar que não só brasileiros ―conheceram‖ o cotidiano carioca através dos personagens que passamos a analisar. Sabendo da simpatia de Marques Rebelo – e da maioria dos modernistas – pelas propostas educativas e culturais getulistas (especialmente antes do Estado Novo), podemos dizer que os protagonistas das duas cenas fazem campanha patriota ao evocarem fidelidade e lealdade, ao dedicarem-se efusivamente no trabalho e temperarem o cotidiano com humor e lirismo. Apesar de viverem com pouco dinheiro, são felizes: ―carioca da gema não há tristeza que lhe pegue‖ (REBELO, 2002a, p. 272). Algumas fissuras são observadas, mas muito pequenas diante do temperamento inquebrantável dos protagonistas brasileiros. Na primeira cena, acompanhamos um dia da vida de Martins – a manhã caseira, a ida ao trabalho, o retorno ao lar; na segunda, outro cotidiano é contemplado, o de Consuelo – a dedicação aos afazeres domésticos e ao controle dos filhos, enquanto o marido trabalha fora. Embora não haja contato entre os personagens – são de famílias distintas –, parece que moram 205

próximo, visto que, em comum, frequentam a padaria de Seu Gonçalves, que funciona como elo entre as cenas e também serve de motivo para crítica: se a primeira família elogia a qualidade do pão, a segunda reclama que está cada vez menor. O narrador observador nos induz a gostar de Martins, protagonista bem humorado da primeira Cena. O pai de família, que demora ao levantar, toma banho tranquilamente e sai correndo para o trabalho, nunca chega atrasado, conversa com os passarinhos, ri com a mulher e com os filhos e gosta de samba, porque ópera é ―música para boi dormir‖ (REBELO, 2002a, p. 276). As três músicas que canta no banheiro representam bem seu temperamento. A primeira, ―Minha Caraboo (Amor de uma princesa)‖ – grande sucesso gravado por Orestes de Matos, em 1913, uma tradução da canção norte-americana de Sam Marchall (cf. ALENCAR, 1965, p. 114) – evoca a morte tragicômica de um guerreiro branco: por ter ido atrás de uma donzela índia, o jovem é degolado pela tribo; durante o ato terrível, continua cantando que seu coração é dela. Não conseguimos localizar a segunda música, ―Perdão, Emília, vou partir chorando‖, contudo o verso citado remete à ideia da primeira canção, a separação dos enamorados, mesmo que não apresente traço jocoso. A terceira canção, preferida de Martins, é ―Barraco abandonado‖, cujos versos são citados: ―Não quero mais saber da orgia, / Preciso ser trabalhador‖ (REBELO, 2002a, p. 272). Não encontramos nenhuma música com esse título nem com essa sequência de versos. Parece que Rebelo mescla dois (ou mais) sambas da época que valorizavam o trabalho e a família, em sintonia com os valores conservadores do Estado Novo. O primeiro verso nos lembra ―A malandragem‖, de Bide e Francisco Alves, grande sucesso de 1928: ―A malandragem eu vou deixar / Eu não quero saber da orgia‖ (apud PARANHOS, 2008, p. 25); o segundo pode ter se inspirado em sambas como ―Bonde São Januário‖, de Ataufo Alves e Wilson Baptista: ―Quem trabalha é que tem razão / (...) / Antigamente eu não tinha juízo, / Mas hoje eu penso melhor no futuro, / Veja você, / Sou feliz, vivo muito bem, / A boêmia, não dá camisa a ninguém, / E passe bem‖ (apud FERREIRA, 2003, p. 94). Sobre o surgimento de uma ―nova espécie‖ de malandro carioca, o jornalista Henrique Dias da Cruz, apologista do Estado Novo, em Os morros cariocas no novo regime (1941), publicado pelo DIP, explica que:

O qualificativo ―malandro‖ corrompeu-se com o tempo. Agora designa o indivíduo esperto, que não se deixa iludir, e, também, não se lamenta, salvo quando a cabrocha abandona o ―barraco‖... Não é mais, pois, o malandro, homem da desordem, que agride, que mata. A navalha e o revólver foram substituídos pelo pandeiro, pelo violão, pelo cavaquinho. É tangendo esses instrumentos que ele ―desacata‖. Aquele 206

tipo clássico, de calças largas e inteiriças, de salto carrapeta, chapéu de banda, desapareceu. Civilizou-se. No lugar do lenço, a gravata. Não senta mais à beira do barranco para compor sambas. Vem para a Avenida. Vem fazê-los à mesa do Nice. Usa roupas de bom alfaiate. A transformação foi completa. E explicável. Facilmente explicável. Valorizou-se a música popular. Habilidades foram aproveitadas O povo canta. Os salões repetem. Dão sua arte, seu talento à poesia, à música popular, nomes de realce. O povo, que é sempre justo, aprecia, sente no interessante ―argot‖ das trovas musicadas, nos queixumes e nas alegrias dos cancioneiros ―do morro‖ toda a policromia da própria vida que passa na simplicidade da verdade dita, que dia a dia nos depara. O homem das favelas, agora, vinga-se, zomba batendo chapéu de palha e tangendo o ―pinho‖, orando à lua, cuja luz entra pelos buracos do zinco, iluminando todo o ―barraco‖... A bondade dos que governam influi, reflete-se direta e profundamente na consciência popular. (p. 15-16)

Assim, a primeira música assobiada por Martins revela seu lado performático e humorístico, a segunda, sua afetividade, e a terceira, o bom brasileiro trabalhador que é: o personagem é, de certa forma, um ―novo malandro‖. Poucos são os ruídos que atrapalham sua vida sinfônica, entre eles, as discussões com a esposa sobre o tempo, as doenças das crianças e o dinheiro sempre curto:

Quarenta mil-réis por mês é loucura! Quarenta mil-réis dão para oito jogos de futebol (sozinho), quatro cinemas no bairro (com a mulher e filhos), dão para uma prestação qualquer – tal é o seu raciocínio. Só não dão para economizar. Economizar quarenta mil-réis é asneira. Economia só vale de um conto de réis para cima. E como nunca tem um conto de réis limpo, a caderneta da Caixa Econômica existe pró- forma. (REBELO, 2002a, p. 275)

Por meio do discurso indireto livre, o narrador interessado nos pequenos dramas de personagens da baixa classe média sublinha os interesses de Martins, que preza o lazer da família, mais ocupado com o presente do que com o futuro. Contador, sabe que há exploração na sociedade e permanece trabalhando arduamente: ―Enterra mais contra os olhos a pala quebra-luz e se engolfa novamente na soma meticulosa dos lucros dos patrões‖ (REBELO, 2002a, p. 276). Ele procura se informar, por isso lê jornal em casa todas as noites: o conteúdo das notícias (crimes, acidentes, impasses políticos, descomposturas do governo) contrasta com a quietude do ambiente familiar. O protagonista é o estereótipo do bom cidadão brasileiro, provedor da casa, companheiro da família, exemplo no trabalho. Nesse sentido, é personagem atípico em Rebelo, que prefere figuras mais controversas e marginais. Comparado com os demais, ele é tão exemplar, que resulta caricato, fazendo com que o texto soe às vezes irônico. Acreditamos que, por isso, em Stela me abriu a porta, o escritor tenha retirado-lhe o rótulo de ―Quadros e costumes‖, como vinha anunciado pela revista estatal, que atribuía ao texto caráter documental, e tenha o enfeixado como ―Cenas da vida carioca‖, conferindo-lhe título mais ficcional, entendendo a palavra ―cena‖ do ponto de vista teatral. 207

Se Alzira, mulher de Martins, é personagem secundária, embora levante primeiro, chamando a família para o trabalho e para o estudo, na Cena II, o protagonismo cabe à mulher. O cenário colabora com o discurso ―da ordem e do progresso‖: a rua acorda cedo, com o lixeiro batendo latas e gritando e com as obras ―chamando os operários‖ (REBELO, 2002a, p. 276). Enquanto na casa de Martins e Alzira há uma divisão de responsabilidades, na de Consuelo, ela é quem faz tudo, enquanto o marido tem tempo de sobra, porque trabalha poucas horas do dia e acorda tade: ―segundo o hábito de quatorze anos de funcionalismo, está deitado na cama, em posição relaxada, de olhos abertos, ‗gozando a manhã‘‖ (REBELO, 2002a, p. 277). Essa acumulação de tarefas sublinha a força do trabalho feminino, mas faz com que a Cena II seja mais ranzinza que a primeira. Exemplo de perfeição e de compromisso, a dona de casa fala mal das empregadas domésticas contratadas – ―não há nenhuma que preste, todas umas lambuzonas, umas malcriadas muito grandes e um dinheirão para quem quiser‖ (REBELO, 2002a, p. 277) – e recrimina a vizinha Madalena, jovem que gosta de tomar banhos em Copacabana para ―andar quase nua, flertar à grande, tomar sorvete, dançar, fumar, e fazer outras coisas chiques‖ (REBELO, 2002a, p. 279). A mesa do café da manhã explicita o império de Consuelo, que passa o dia preocupada em alimentar os dois filhos pequenos, que, mesmo assim, sentem ―fome monstruosa‖:

A água já está fervendo, o bico da chaleira fumega. Prepara o café, abre a lata de leite condensado, carrega tudo para a sala de jantar, onde os príncipes – conforme a própria expressão de dona Consuelo – já estão aboletados, brincando com as colheres. – Colher não é brinquedo, larga isso, menino! Enche xícaras de meter medo e via de regra sujeitas a repetição. Enquanto comem, temos conversas de vários tipos. Higiênicas: – Vocês lavaram os dentes, crianças? – Lavamos, sim, senhora. Escolares: – Vocês estudaram as lições direito? – Estudamos, sim, senhora. Econômicas: – Seu Gonçalves cada vez manda o pão menor. Uma vergonha! Acaba a gente só vendo ele com uma lente. O coro fica mudo, mastigando. (REBELO, 2002a, p. 277-278)

Consuelo é agente, dona do movimento (é a única em pé) e da palavra: além de ser a protagonista, é a diretora da cena doméstica, pois coordena os atores, que atendem as suas ordens caricatamente. Os laços que prendem mãe e filhos são pragmáticos; em especial, a comida os reúne: 208

O jantar é a única refeição que todos fazem juntos durante a semana e durante o qual os filhos são repreendidos de várias maneiras e por variadíssimas causas. Mas, como a fome é conciliadora, tudo acaba muito bem às sete horas para se Alfredo, que vai tirar a tora na varanda, na cadeira de balanço, e para os garotos, que voltam para o seu verdadeiro domicílio – a rua. Para dona Consuelo, não. Tem que tratar ainda da cozinha, lavar os pratos, guardar a louça, arear as panelas... (REBELO, 2002a, p. 281)

Ao silenciar os interlocutores em relação às questões financeiras, o narrador deixa implícita a crise econômica, que também é percebida na sistematização da vida da mulher: ―Cinco horas. Toalete de dona Consuelo. Banho com água-de-colônia, vestido de bolinhas, com avental por cima para defendê-lo, e sapatos tipo sandália, todo aberto, muito cômodo. Sem meias por calor e economia‖ (REBELO, 2002a, p. 280). Quando todos saem de casa, ―Dona Consuelo fica absoluta nos seus domínios‖ (REBELO, 2002a, p. 279) e deles não se afasta: conversa com as vizinhas que compartilham do mesmo cotidiano pelo muro; porém, o que ela mais faz é trabalhar. Contrastando com a energia, movimentação e falação da mulher, Alfredo é preguiçoso e monossilábico. Quando o narrador de terceira pessoa, quase o tempo todo próximo a Consuelo, dela se distancia e capta os pensamentos do marido, sabemos de suas preocupações patrióticas: ―mate é o chá brasileiro, muito melhor que o chá, mais fresco, mais diurético, mais barato, mais patriótico etc.‖ (REBELO, 2002a, p. 278). O recorte dado à vida do casal e das crianças esconde o tédio vivido por Alfredo, a pouca relação afetiva das crianças com os pais e a irritabilidade da mulher. O cotidiano familiar assim filtrado ganha conotação estranhamente otimista: qual mulher quereria a vida de Consuelo? que homem quereria a de Alfredo? Como na primeira Cena, o quadro apresentado é muito diferente do recorrentemente apresentado por Marques Rebelo. Para que os contos sejam coerentes com a obra do carioca, o último parágrafo só pode ser lido ironicamente: ―Às dez horas, depois de um copo de leite com biscoito de fubá, cuja receita é do tempo da vovó, recolhe-se ao berço a família feliz, para, no outro dia, com a graça de Deus, recomeçar a vida, com a mesma boa vontade de viver‖ (REBELO, 2002a, p. 281). Concluímos que os dois textos acima analisados, desde sua origem, nasceram complementares entre si e sob o paradigma da ambiguidade. Ambos parecem registrar histórias típicas da população carioca, entretanto a instância narrativa transforma o relato documental em reduto irônico – o que talvez não tenha sido percebido pelos leitores da revista que não conheciam a obra de Rebelo. Diferentemente, aqueles que leram os contos nas últimas páginas de Stela me abriu a porta, familiarizados com o tom crítico do carioca, possivelmente notaram as fissuras, mais ou menos sutis, das histórias de Martins e Consuelo. 209

O ficcionista preferiu chamá-las, em seu livro de contos, de ―Cenas‖, visto que são esquetes que talvez expressem o desejo de alguns cidadãos da época, inspirados ou manipulados pela propaganda estadonovista – haja vista a atenção que os personagens dão à rádio, ―difusora da verdade‖ –, que desejava uma família brasileira pacata e amortecida, ―feliz‖. Nesse sentido, discordamos do ponto de vista de Mario Frungillo, o qual afirma não encontrar ambiguidade na obra de Rebelo, motivo pelo qual a diferenciaria da prosa machadiana (FRUNGILLO, 2007, p. 123). Para tratar de dois modelos distintos de família e, por extensão, de cidade, Rebelo aproveita uma data revestida de significado simbólico e escreve ―Uma véspera de Natal‖ (O) e ―Outra véspera de Natal‖ (S). Aparentemente conectados, os contos são autônomos: em Oscarina, um casal riquíssimo se prepara para a festa, e, em Stela me abriu a porta, um homem nostálgico recorda a infância. Nem a instância narrativa é semelhante, uma vez que no primeiro natal temos um narrador de terceira pessoa que perscruta as ânsias e tristezas dos personagens, e no último, o próprio protagonista avalia a vida. Em ―Uma véspera de Natal‖ (O), a superlativa riqueza de um casal carioca contrasta com o vazio gerado pelo tédio e pela infelicidade, consequência de outro vazio, a infertilidade de Maria. Note-se que o nome escolhido para a personagem feminina é irônico: na noite de Natal, quando se comemora o nascimento do filho da famosa mãe cristã, outra Maria está profundamente abalada porque não consegue engravidar. No livro de 1931, este conto segue ―Tragédia‖, em que o narrador irônico critica a hipocrisia da classe burguesa carioca, como veremos em seguida. Assim, aqui temos um prolongamento da discussão, metaforizada na falta de filhos. Apesar de ambos se sentirem tristes pela situação, a frustração da mulher é muito maior. O marido se prepara para a festa e compra um presente para ela, mas a animação não é correspondida. Embora se gostem e estejam juntos há sete anos, ―sempre unidos, muito amigos, sempre amorosos (...) ‗somos um casal feliz‘, [o marido] dizia, às vezes‖ (REBELO, 2002a, p. 123), o relógio que marca o tempo do casal não é agradável, apenas agrava a instauração do tédio. Os diálogos são atipicamente longos, contribuindo para esta sensação. As amigas que rodeiam o casal, tia Lulu e dona Cidoca, têm nomes que evocam infantilidade (com a duplicação da sílaba) e superficialidade (presença do morfema ―-oca‖), respectivamente, e apenas reproduzem as impressões equivocadas do marido sobre a felicidade familiar. Os excessos de carinho (―minha princesa‖, ―coraçãozinho‖) não vencem a melancolia da mulher:

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Ela abaixou os olhos, ele acompanhou-os com os seus, foram pousar na capa da revista, sobre a mesinha, uma singela alegoria – crianças brincando à volta duma árvore de Natal. (...) Tirou os olhos da revista e gemeu desconsoladamente: – Eu não tenho culpa. Ela também não tinha. (REBELO, 2002a, p. 123-124)

O trecho acima é cinematográfico: o narrador guia nossos olhares para descobrirmos, junto com o marido de Maria, que mais do que uma vida romântica com ele, ela deseja ser mãe. A cena induz a compreensão que aquela mulher riquíssima é entediada porque não possui algo que aprendeu que deveria ter: de acordo com o ponto de vista conservador, uma família só seria completa se contasse com filhos. Tal como já visto em outros contos, em que as personagens acreditam piamente naquilo que é veiculado pela rádio, aqui a revista, ditando a beleza e a moda, tortura Maria ao lembrar-lhe de algo que não tem. Se nem ela nem o marido são culpados, cabe a Deus a responsabilidade da infecundidade. Assim, próximo aos festejos do nascimento do menino considerado Deus, o homenageado é responsabilizado pela tristeza da família. No desfecho, duas ações opostas mostram a situação frágil da mulher, que grita para a criada fechar a casa por causa dos ladrões e, quase simultaneamente, pergunta docemente ao marido sobre o automóvel que os levará ao baile. A antítese foge ao padrão esperado, como eles fogem ao padrão não tendo filhos. Se o marido, ocupado com outras questões, consegue ainda se divertir, a mulher é oprimida pelo senso comum, é infeliz e apresenta sinais de desequilíbrio. Já em ―Outra véspera de Natal‖ (S), o problema não é a falta de filhos – há duas crianças em cena –, mas a saudade de realidades e de pessoas falecidas; na verdade, além da fecundidade familiar, temos uma fartura de natais felizes sendo lembrados e vividos. Nada sabemos sobre a situação financeira do narrador, porque agora não é importante contrastar o luxo material com o vazio sentimental; seja qual for a classe social do narrador de ―Outra véspera de Natal‖, afetivamente ele transborda. A felicidade advém da fantasia em torno dos símbolos natalinos (Papai Noel e árvore) e dos presentes, e não de elementos efetivamente católicos, como presépios, orações e missas. Isso porque a festa não é vista como celebração litúrgica cristã, mas como ritual familiar tradicional, que conta com preparativos e trocas entre pais e filhos. Os olhos alheios, como os da cadela, que mostram ―dedicada ternura que falta aos olhos humanos‖ (REBELO, 2002a, p. 290), e os dele, ―pobres olhos já um tanto estafados pelos duros espetáculos da vida‖ (REBELO, 2002a, p. 291), norteiam o conto, uma vez que a 211

memória é acionada a partir daquilo que se vê. Graças a eles, o narrador pode se encantar, ano após ano, com a árvore natalina e com a virtude que ela simboliza:

Vai, o sonho me arrebata nas suas asas mágicas e me leva ao passado, a uma outra véspera de Natal, numa outra casa, quando eu tinha onze anos. (...) A árvore é que era outra, maior, dum verde mais sólido, feita que era de um galho cortado de pinheiro. (...) Vozes queridas, vozes perdidas, formavam um coro feliz à volta dos seus ramos, nos quais fiapos de algodão fingiam neve. (...) O sono tinha ido embora dos olhos infantis. (...) Visão maravilhosa da flora do país das fadas, imorredoura visão, foi a última árvore de Natal da minha infância. Tudo mudou. Um vento mau soprou impiedoso sobre a nossa casa do Trapicheiro. Adeus, Cristininha, minha irmã! Adeus, papai e mamãe! Muitas vozes se calaram para sempre. Muitos risos nunca mais foram ouvidos. Vidas se dispersaram. Todas as alegrias da infância se perderam. O mundo veio me aparecendo outro, feroz, sem ilusões, sem encantos. Mas a árvore ficou para sempre dormindo no meu coração como uma semente de paz, de poesia, de fidelidade e amor, que um dia haveria de frutificar. São nove horas batidas no velho relógio amigo cujas pancadas têm uma graça de cadência antiga. (REBELO, 2002a, p. 292)

O trecho nos recorda ―Profundamente‖, de Manuel Bandeira, em Libertinagem (1930), tanto pela temática melancólica, a saudade dos parentes falecidos e do mundo infantil, quanto pela situação eleita, uma data comemorativa. Se o Poeta lembra as festas juninas, as fogueiras e os fogos de artifício, o contista faz memória dos natais tijucanos, da árvore que reunia em torno de si as vozes familiares. ―Tudo mudou‖ resume a sensação predominante em Stela me abriu a porta, que sublinha as mudanças sociais ocorridas na então capital federal. A derradeira frase do trecho acima citado revela um personagem amigo do relógio, objeto em geral adjetivado de maneira negativa nos contos de Rebelo. Para o narrador que vive razoavelmente feliz graças ao esteio afetivo que o passado lhe deu, que precisa constantemente atrasar o relógio para recordar as vozes familiares, o instrumento de medida é, na verdade, um remédio, do qual só pode ser amigo. Mesmo tom memorialístico encontramos em ―Namorada‖, último dos Três caminhos, contos que seriam romances e que apresentam pequenos heróis, como já indicamos. Único deles narrado por um observador de terceira pessoa, a estratégia permite que, via discurso indireto livre, tenhamos contato mais íntimo não só com o protagonista Antônio, mas também com as duas mulheres que o influenciam, tia Polu e a namorada Dulce. Ao comparar a versão do livro com a primeira, da revista Para todos... (1931), notamos alteração do foco narrativo, uma vez que o narrador era o protagonista (cf. REBELLO, 1931, p. 20-22). A história relata três caminhos que se cruzam e se afastam. O de Antônio é escolhido pelo destino e pela tia, sua tutora desde a morte precoce dos pais, preocupada com dinheiro e status social. Essas também são preocupações de Dulce, porém ela não nasce em família 212

abastada como ele, e, quando se muda, não volta a vê-lo. O caminho de Antônio é vazio de desejos próprios, não luta pela pessoa que realmente amava; já ela, embora anonimamente, está no início da trama, intitulando-a, e na última linha: ―Nunca mais viu sua primeira namorada‖ (REBELO, 2002a, p. 196). Com quinze anos, o garoto vai morar com Polu devido à orfandade. Se nos primeiros dias tem vontade de morrer, a ânsia dura um parágrafo. A tia viúva, sem filhos, deposita nele todas as atenções; é rica e delineia um futuro brilhante para ele. Seus aspectos físicos menos positivos – miúda, insignificante e doente dos olhos – também são metafóricos, haja vista seu caráter materialista, ciumento e egoísta. O rapaz, esbelto e pálido, era obrigado a ―rodar na sua frente como um manequim giratório, para receber a sua benção espécie de crítica, sempre a mesma, maternal e boa – ‗estás um biju‘‖ (REBELO, 2002a, p. 187). A namorada é apresentada na sequência desse parágrafo, sempre comparada a Polu:

Talvez [Antônio] fosse bem mais [bonito] para Dulce, que não era nem tia, nem madrinha, a magra e loura Dulce, que lhe pusera olhos ternos da janela do 27. (...) Embora da mesma idade, Dulce sabia parecer mais velha do que ele, guardando um ar recatado de senhora, quase um ar de mulher vivida que declina. (REBELO, 2002a, p. 187)

O namoro apresenta duas fases: uma ingênua e outra tensa, divididas por uma sessão de cinema. No início, a paixão torna Antônio insone, quando escreve metáforas idílicas para a mocinha, que as retribuía com fotos e cromos porque não sabia escrever. Entretanto, em certa tarde úmida e nevoenta, enquanto assistiam a um filme, uma pergunta transforma tudo: ―Você um dia vai me esquecer, não vai? (REBELO, 2002a, p. 190). A dúvida talvez fizesse parte de um jogo adolescente de sedução: mais do que saber se o rapaz ficaria com ela para sempre, naquele momento Dulce esperava ouvir frases de amor. Entretanto, o garoto imaturo leva a sério a questão:

(...) E os meus olhos não mentem. Os olhos, as atitudes... Ficou mudo. Dulce arrancou-se dele e cravou-lhe o olhar, séria, dum sério feroz e elevado. Esteve para lhe dizer algumas palavras duras, certamente. O rosto afogueara-se e a boca tremia-lhe. Não disse. Veio-lhe uma ternura, como que uma fraqueza que a fosse tomando, tomando lentamente, qual um narcótico. A face perdeu as feições enérgicas. Amoleceu. Esboçou um sorriso triste, depois colou-se novamente ao corpo do namorado, humilde, pequenina, e suspirou: – Ah! se eu fosse rica!... – Que é isto?! – saltou ele da cadeira. – Você não me compreende?! Fez um gesto de infinita superioridade: – Compreendo perfeitamente. Não sou tão ignorante assim! Mas talvez fosse melhor que não compreendesse. Atirou-se contra ela: – Mas você!... Dulce levantou-se: 213

– Vamos! Também estavam no fim: na tela o cínico de casaca apanhava do mocinho. A gurizada urrava. (REBELO, 2002a, p. 191)

O filme e a conversa agoniada duram o mesmo tempo. Isso nos faz supor que o rapaz tenha permanecido longo período em silêncio, tentando elaborar uma resposta que fosse conveniente à situação. O narrador nos diz que Antônio teve, nesse ínterim, sua ―primeira revelação desconcertante‖ (REBELO, 2002a, p. 190), entretanto não nos revela o teor. Supomos que tenha pensado que a paixão não era algo tão estável e pacífico como imaginara, ou que o discurso amoroso e sua interpretação era algo complicado, ou que o relacionamento afetivo não era independente de questões financeiras, mas estava atrelado a arranjos sociais. Se o jovem aprendeu algo naquela tarde, Dulce apenas ratificou lição já conhecida, revelando-se muito mais madura. No curto parágrafo transcrito acima, percebemos uma personagem que sabe lidar com as emoções, passando de um estado a outro rapidamente. Mesmo muito nova, já entendeu o lugar que lhe cabia naquela sociedade: ela, mulher e pobre, é só uma diversão para o rapaz rico. Embora, de imediato, tenha se insurgido, em seguida, resignara-se com timidez. Como a cena se dá num cinema, as expressões da menina espelham os gestos performáticos das atrizes. Sua capacidade de reflexão (nos dois sentidos da palavra) e de ação é sublinhada quando posta lado a lado com a inércia de Antônio, ator que esquece sua fala, que não sabe como se comportar, que

não pensava em nada. Para que pensar? Tia Polu é que, pensando por ele, queria-o advogado. Um sonho que formara, um sonho prático, sobretudo. Haveria de tratar dos seus papéis – ―uma atrapalhada, meu filho, que nem sei a quantas anda!‖, lamentava – e cuidar dos seus bens, que eram dele afinal, dizia. Dizia isto e ainda mais, a bondosa senhora: que quando chegasse ao terceiro ano, venderia a chácara e compraria um palacete em Botafogo (que tivesse escadaria de mármore era o detalhe) para ele poder entrar na sociedade, como convinha a um moço formado. (REBELO, 2002a, p. 188)

Até os poemas que dedica à namorada são copiados; o único soneto que Antônio escreve, apenas o faz devido à insistência de Dulce, para quem ele era muito inteligente. A menina deseja morar numa casa bonita, dispor de serviço à francesa, receber cartas em bandejas, vestir-se elegantemente, ter filho com nome de ―Fernando Luís‖. Ainda que suas amigas já casadas fossem infelizes, ela idealizava o casamento. Sempre preocupada com a imagem, não à toa ela oferece ao namorado fotos, e nunca palavras. Dulce e Polu são materialistas e precisam de Antônio não porque ele seja singular, mas porque ele é um futuro homem (a namorada o chama de ―Antonico‖), necessário para a execução dos planos femininos. Por sua vez, o rapaz não projeta o futuro; seu desejo se 214

concentra na namorada, mais precisamente no corpo dela, metonimicamente lembrado: braços finos, pernas grossas, cintura de borboleta, cabelos crespos. A tia nada faz explicitamente para separar o casal. Apenas impede, com sutilidade, que se beijem na cena final. Até ―admira‖ Dulce: o narrador não deixa claro o motivo, mas, além da beleza, a senhora experiente talvez reconhecesse a resignação da menina pobre, que sabia que não veria mais o namorado querido e aceitava ―comovida, agradecida‖ (REBELO, 2002a, p. 196) a impossibilidade de um futuro juntos. A moça só consegue entrar na casa de Antônio no dia da despedida, apesar de ele frequentar assiduamente a dela. Rebelo, sempre muito atento aos olhos das personagens femininas (tal como reparamos em Clarete, de ―Felicidade‖ (O)), opõe a tia doente dos olhos a uma Dulce de múltiplos olhares: os ―olhos ternos‖ indicam seu amor inocente; os ―olhos rasgados‖, seus sonhos; os ―olhos fuzilando‖ o namorado, quando percebe que ele desistirá dela e, na cena final, seus ―olhos amendoados‖ (REBELO, 2002a, p. 196) reagem contra o choro. Todavia quem fica cego nas linhas finais é Antônio:

Sentiu-se estranho, tonto, aéreo. Desconhecia as casas. Olhava: não compreendia. Onde estava? Os meninos gritavam, gritavam mais alto, mais. Sentiu que tudo gritava e quis gritar também. Dulce, Dulce! A voz fugiu-lhe. Depois foi como se uma névoa lhe tomasse os olhos – via tudo branco na sua frente, branco, leitoso, suspenso. Nunca mais viu sua primeira namorada. (REBELO, 2002a, p. 196)

A vida de Antônio é marcada pela carência: sem pais, sem sonhos, sem namorada, sem inteligência, sem voz, sem visão. Mais uma vez, o escritor sublinha o poder traumatizante das separações. O conto começa com a morte dos pais e termina com a partida da namorada, revelando uma visão desencantada do mundo, onde o prazer dura pouco e a vida é norteada pelo dinheiro. Em entrevista à belenense Folha do Norte, o autor confessa:

Tudo que faço é autobiográfico... Realmente, minha visão da vida é inteiramente pessimista. Não há nada mais estúpido e mais melancólico do que viver. Como não acredito em nada, (...) não pretendo melhorar nada nem ninguém... Minha visão pessimista continuará. Ninguém se modifica mais. Aliás, ninguém se modifica nunca. Quem nasceu para comer cebola morre comendo cebola... Não tenho propriamente uma opinião política. Acho tudo uma porcaria de modo que todo regime é ruim. Não é minha opinião política nem meu voto de eleitor que modificarão a ordem existente... Embora ache que o mundo caminha para uma igualdade, uma divisão de recursos e ganhos mais equitativos, e olhe com admiração para os homens que se atiram a essa tarefa de construir algo melhor, creio que, ao final, continuará sempre a ambição, a necessidade humana de desejar mais ainda, sem que tudo que veio de melhor tivesse a força de modificar um milésimo de milionésimo dentro do homem, que é um monstro, capaz de tudo, até de abnegações. Quero dizer o seguinte: sou incapaz de votar mal, de votar com os que conspiram contra o Amanhã... Tenho um grande respeito pela baixeza humana... Estou do lado dos humildes, dos pobres, apesar de crer que estes são tão safados como os outros. O 215

que acho ruim é que todos os homens, sendo safados, não tenham os mesmos privilégios. (1946a, p. 2)

Outro conto que armazena resíduo amargo é ―Tragédia‖, coincidentemente o 13.º de Oscarina. Além de carregar número de superstição negativa, o texto dramatiza a hipocrisia e o bem-estar da elite brasileira, cujos representantes, pai e filho, são rivais: Sr. Castro e Carlos disputam certa moça anônima. Entretanto, contrariando o título, ninguém morre na história, e o único problema explicitado é relatado de maneira irônica, antecipado de uma perseguição jocosa do velho pai atrás do jovem filho dentro de casa. O problema é resolvido rapidamente: a menina que Carlos teria ―desgraçado‖ seria mandada para longe, e o rapaz se casaria com a prometida, e lucrativa, Marieta, ―a filha do Maranhão, a menina dos dois mil contos‖ (REBELO, 2002a, p. 119). Porém, a solução verbalizada não é plenamente executada: Castro trai o filho, montando casa para a moça. Pouco tempo depois, ela o abandona para ficar com Carlos, mesmo este casado. A casa descrita na cômica cena inicial, em que Castro corre atrás de Carlos, leva o nome da mulher (Vilino Miloca), tem estilo híbrido, foi elaborada por arquiteto português, aconselhado por decoradores e é elogiada pelos visitantes viajados. A ausência de gosto artístico é somada ao descompasso temporal do homem de meia idade, cujo relógio carrilhão secular está atrasado. Quando passam para o escritório do pai, ―caríssima maternidade onde sua inteligência parturejava, laboriosamente, os planos dos seus negócios, todos com o governo‖ (REBELO, 2002a, p. 119), é a vez do mais velho vencer o mais novo. A frase citada sintetiza críticas à paternidade, à mediocridade intelectual e moral de Castro e a seu comportamento deselegante. O parágrafo seguinte confirma o perfil: ―A dignidade da família, Castro bisavô, Castro avô – uma mentalidade, ouviu? – e outros Castros, todos de Pernambuco e de notória importância ascendente, foi a base da chorumela, que o Carlinhos aguentou firme e arrasado, como convinha a uma vergôntea espúria de tão soberbo tronco‖ (REBELO, 2002a, p. 119). A caracterização do personagem pernambucano coincide com o teor de algumas críticas que Marques Rebelo destinava, frequentemente, aos escritores nordestinos que migravam para o Rio de Janeiro, tanto que o escritor carioca chegou a ser classificado como ―inimigo número um‖ desses migrantes (LINS, apud TRIGO, 1996, p. 12). A implicância é esclarecida pelo poeta Lêdo Ivo, nordestino e amigo de Rebelo, no ensaio ―Marques Rebelo e o preço da vida‖: soterrado pela crítica literária da época, mais interessada na reflexão sociológica do que no lirismo (cf. IVO, 1975, p. 127), o contista se tornou um ―bicho acuado‖ (IVO, apud TRIGO, 1996, p. 45). De fato, os livros posteriores a Oscarina não tiveram o 216

mesmo êxito que o primeiro, pois a literatura engajada de Jorge Amado, Rachel de Queirós e José Lins do Rego, que denunciava problemas sociais, especialmente os relacionados à miséria nordestina, estava em alta, e não o lirismo urbano buscado por Marques Rebelo e por aqueles que ficaram conhecidos por ―intimistas‖. Isso teria feito com que sua obra não permanecesse em destaque nas prateleiras das livrarias naquele momento de efervescência político-ideológica:

O jogo do engajamento nunca me atraiu. Por tal razão os comunistas me consideram fascista, os fascistas me consideram comunista, os socialistas me consideram reacionário, os liberais me consideram um sem-vergonha. Não tem a menor importância – por absoluto cálculo e decisão nunca precisei de posição política para criar e viver, seguro que com as mãos desatadas, pode-se nadar melhor e escapar das correntes fatais. Apenas atrapalhou um pouco certas conquistas justas ou consequentes. Fiquei sempre colocado à margem das situações suspeitosamente – o que fortalece a nossa capacidade de julgar a um ponto de se confundi-la com cinismo. (REBELO, 1975, p. 12)

Tal polaridade (regionalismo versus intimismo) soa muito estranha no caso de Rebelo, cujos protagonistas em geral são cariocas populares, localizados fora do eixo modernizado da zona central e sul da cidade. Ele mesmo se apresenta, no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, como ―carioca de Vila Isabel, bairro que tem nome de princesa, mas é proletário e pequeno-burguês‖ (REBELO, 1965, s/p.). Ocorreu com o contista algo semelhante ao que Manuel Bandeira relata no Itinerário de Pasárgada: não foram propriamente as ideias modernistas que deram nova direção as suas obras, mas as ruas e o cotidiano. No conto em questão, na única conversa que temos entre pai e filho, depois do discurso sobre a ilustríssima família e a obrigação do filho em honrar a estirpe, Castro pede que o jovem narre os detalhes de sua história com a moça:

Então o pai, reacendendo o charuto, mais calmo, como quem tem na cabeça uma saída qualquer, por aí abaixo indagou da história toda, que depois – deixasse com ele – se arranjaria tudo. Mas queria saber antes, desde o princípio, como se dera aquilo, para poder agir com prudência e critério. – Com todos os pormenores, está ouvindo? Espichou-se na poltrona e foi gozando os pormenores pela boca do Carlinhos, trêmula, não se sabe se de fingimento ou de vergonha. (REBELO, 2002a, p. 119)

Timidamente, o garoto conta os encontros, e o pai aproveita do relato como alguém que se masturba, sempre fingindo moralidade. Logo em seguida, Castro procura a moça, uma ―coitada‖, uma ―doidinha‖, no intuito de reviver aquelas histórias, enquanto a família acredita que ―todas as noites o senhor Castro tinha negócios importantíssimos e urgentes, assembleias, conferências comerciais, entrevistas com senadores para ‗futuras negociatas muito rendosas‘, dizia displicentemente, chuchurreando o cafezinho do jantar, voltando para casa alta 217

madrugada‖ (REBELO, 2002a, p. 120). O garoto enganado só fica sabendo do caso um mês depois graças a um amigo. No entanto, a menina acaba enjoando do velho, da vitrola que toca Francisco Alves (músico aludido nas ―Cenas da vida carioca‖ devido ao samba de campanha governamental), do bangalô de Santa Teresa, da criada alemã. Quando abandona a casa, apenas leva os vidros de perfume; Castro presenteia a esposa com o que a moça deixa, e Dona Miloca recebe tudo ―comovidíssima‖ (REBELO, 2002a, p. 121). Muito acertadamente, na primeira aparição do conto, na Leite Criôlo, em 1929, o homem ganhou o adjetivo de ―pândego‖ (REBELO, 2012, p. 119). O superlativo dito pela mulher cria ambiguidade: soa como uma reação falsa, já que tirava proveito material da situação que não podia impedir, mas também ingênua, conforme o sufixo ―-oca‖ nos induz a pensar, ainda mais quando ecoado: ―De noite dona Marocas, uma velha amiga, foi visitar dona Miloca; então dona Miloca mostrou tudo a dona Marocas. (...) e saiu, como é natural, com muita inveja de tudo‖ (REBELO, 2002a, p. 121)? Apesar de a propriedade onde moram levar seu nome, ―Vilino Miloca‖, a mãe de Carlos só aparece no conto para ser enganada e causar inveja à amiga. Como os homens a seu redor, apenas revela interesses materiais; importa-se com as pessoas só quando estas lhe dão prazer. Diferentemente, a moça anônima toma decisões: resolve sair da casa sustentada pelo velho amante em Santa Teresa, aluga um quarto no Catete, compra móveis, paga médico e modista e reata com Carlos, que termina ocupando o lugar de cafajeste do pai. Mesmo que quase nada saibamos sobre ela, é a personagem mais autônoma e verdadeira do conto. Apesar disso, é a única que termina o conto em situação vulnerável, uma vez que os outros estão todos confortáveis – e aqui está a tragédia:

De papo para o ar, repimpado fartamente na poltrona de couro, com uma série adequada de expressões no rosto viril e nobre, que iam do brejeiro ao grave, o senhor Castro passou em revista aqueles recentíssimos acontecimentos de sua operosa vida, lembrando-se com saudades, muitíssimo razoáveis, das formas redondinhas, redondinhas da menina, tão perdidamente longe das virtuosas pelancas da mãe do Carlinhos, que um íntimo pudor, naquela hora, não permitiu chamar de sua cara-metade. (REBELO, 2002a, p. 121)

Se em ―Oscarina‖ temos a duplicação de um personagem (Jorge se desdobra em Gilabert), se em ―Felicidade‖ temos três mulheres a partir de Clara (Clarinha e Clarete), aqui temos o achatamento de dois em um só, Castro-Carlos. Pai e filho compartilham o mesmo papel de amantes da moça anônima e o pensamento elitista, uma vez que o caso com ela só pode acontecer clandestinamente – semelhança materializada na escolha de nomes muito parecidos para identificá-los (Castro e Carlos), quase anagramas. Em nenhum momento da 218

história, eles percebem que são protagonistas de uma tragédia; quem intitula assim a história é o narrador observador, cuja ironia sublinha-lhes a superficialidade e a banalidade da vida.

4.2.3 O mal antecipado

Presente na maioria dos contos de Rebelo, dezenove dos trinta e seis estudados nesta tese, a morte é considerada um de seus temas centrais: O pessimismo de Marques Rebelo se traduz principalmente por meio da sua preocupação quase patológica com a doença e a morte. Segundo esse escritor, a morte carioca sempre é elemento inescapável da vida carioca e escurece-a, ameaçando-a a todo momento. A morte não chega normal e tranquilamente, mas pula como um tigre acima das pessoas, para cortar-lhes imprevistamente a existência, tolhendo aos que ficam, amigos, filhos, pais e irmãos. (...) aparece em quinze dos trinta contos que temos examinado – a metade deles. (KIRSCHENBAUM, 1957, p. 214)

Entretanto, não percebemos que a morte seja principal tema gerador no conjunto da obra do contista, visto que vários, e importantes, textos do carioca não a desenvolvem. Ela comparece na sua ficção porque é um dos impeditivos da liberdade e da alegria, essas, sim, ideias motoras de Rebelo. Alguns textos trazem o tema como assunto intermediário, como lemos em ―História de abelha‖ (O), em que Antunes desiste de ir ao enterro do colega Esteves para aproveitar o dia ensolarado na praia, e em ―História‖ (O), em que Marta, ainda adolescente, morre, provocando comoção no bairro onde morava. Em outros, ganha maior relevo, como na segunda parte de ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O), analisado anteriormente. Os contos que mais apresentam personagens mortos são os memorialísticos, como os de Três caminhos. Já indicamos as dores do sonhador Edgar (de ―Vejo a lua no céu‖) e do órfão Antônio (―Namorada‖); adiante veremos a atitude, bem distinta, de Francisco diante da morte de seus animais de estimação e de Silvino, em ―Circo de coelhinhos‖. Nos outros livros, a morte familiar é recordada para sublinhar a relação afetiva entre personagens: como a de Stela e o pai (―Stela me abriu a porta‖ (S)), mas quando outras pessoas não familiares morrem, em geral, o relato as opõe aos vivos, antagonismo apontado, por exemplo, entre o jovem doente Henrique e Jorge (―Oscarina‖ (O)), também percebido em ―Um morto‖ e ―A morta‖, contos subsequentes em Stela me abriu a porta e explicitamente enlaçados desde o título, como observaremos a seguir. Poucos textos elevam a morte a assunto central. Dessa lista, selecionamos ―Labirinto‖ (S), em que ela não ocorre, contudo todo o enredo gira em torno da sua iminência; ―A mudança‖ (O), relato do jovem poeta morto sobre o próprio velório; e ―Onofre, o Terrível, ou 219

A sede de justiça‖ (O), em que o protagonista, operário pobre, pretende resolver o problema social do Brasil exterminando os ricos. O eixo central de ―Circo de coelhinhos‖ (T) – primeiramente publicado em 1939 na Revista Nova, de Paulo Prado, Mário de Andrade e Alcântara Machado – é a rivalidade entre os meninos Francisco e Silvino, posta em xeque quando aquele é presenteado com dois coelhinhos, e encerrada quando este morre tragicamente. A partir desse antagonismo, tematizam-se o materialismo e a sensibilidade do universo infantil. Além da diferença social – Francisco é criado pela tia Bizuca, dona da casa onde o preto Silvino também mora –, há a comportamental – o sobrinho é egoísta, o outro é simpático. Nenhum deles é perfeito, contudo Silvino é mais sensível que o oponente, que o chama de ―bacurau beiçola‖: ―Terrível rival, astuto como possam sê-lo os mais, rival das oportunidades esquivas, como me lembro dele, agora, os olhos bisbilhoteiros, a cara redonda de mico, a carapinha muito rente, a esperteza dos trejeitos gaiatos, a dentadura soberba de fortaleza e alvura‖ (REBELO, 2002a, p. 181). Os xingamentos não apenas ferem o opositor com racismo explícito, mas também ressaltam enviesadamente suas qualidades, como inteligência, agilidade e expressão marcantes. Como o texto é narrado por Francisco, é por este que sabemos dos sentimentos de Silvino, graças ao discurso indireto livre:

Doeu-lhe [a Silvino] o presente do chacareiro. Por que não ganhara também? Que fizera eu [Francisco] para merecê-lo? Ele, sim, teria direito. Ajudava o Manuel na chácara, carregando estrume no carrinho de mão, varrendo a estufa das begônias, levando-lhe comida, regando-lhe as plantas, auxiliando-lhe na podação sistemática dos fícus-benjamin, tapume verde e compacto que defendia o terreno dos olhos devassadores da vizinhança. Era justo. E fora eu que recebera o presente, eu, – grande patife o Manuel, miserável chaleira, quando tinha raiva de português não era à toa! Só porque eu era o sobrinho, só. Ah! Não ganhara? Que importa?! Saberia disputar a mim o afeto dos bichos. Saberia e soube. (REBELO, 2002a, p. 181)

Francisco é presenteado e instantaneamente fica obcecado pelos animais:

Um escravo, um escravo, confesso, fiquei das suas necessidades, pequeninos tiranos inocentes. (...) Amei-os com a ternura dum namorado. Enfartava-os de carícias. (...) Cobria-os de beijos, deixava-me nos cantos solitários da casa, ignorante das horas, em intermináveis conversas com eles, respondendo-lhes coisas como se mas perguntassem. Perdi a realidade (...). (REBELO, 2002a, p. 180)

A tia dizia que ele um dia mataria os bichos de tanto apertá-los (a imagem lembra o que acontece com o passarinho de ―Godofredo e a virgem‖ (GC), de João Alphonsus). Difícil é não associar a história de Rebelo ao poema quase contemporâneo ―Porquinho-da-índia‖ (de 220

Libertinagem), em que temos relato semelhante. O eu lírico expressa o amor infantil, não correspondido, sentido pelo animalzinho de estimação: ―Que dor de coração me dava / Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! / (...) / Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas... // – O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada‖ (BANDEIRA, 1988, p. 100). Como vemos, é intenso o diálogo entre o contista e o Poeta; na prosa, o problema não é a ausência de reciprocidade por parte do animal, mas o triângulo amoroso formado graças à rivalidade com Silvino, que preenche as horas em que os animais não estão sob o olhar vigilante do ―marido traído‖ (REBELO, 2002a, p. 182), especialmente quando Francisco vai à escola. Por isso, o dia preferido de Francisco é domingo (como vários personagens rebelianos) e a escola se torna cada vez mais enfadonha para ele. Além disso, trocam o menino de instituição: da sala da professora Judite, cujos métodos modernos eram suaves e o deixavam livre (saía sempre para ver seus coelhos), para a do colégio ―diferente, sério, rigoroso, com horários a que não podia fugir‖ (REBELO, 2002a, p. 181). Tanto porque gostava dos bichos como para irritar o colega, Silvino aproveitava sua ausência para brincar com os coelhinhos e contava sua diversão quando o outro chegava, aumentando-lhe o ódio dia após dia: ―A brancura dos pelos não guardava a marca das pretas mãos odiadas. Os olhos vermelhos nada denunciavam. Batia-lhes, ciumento, furioso. Amedrontavam-se, queriam fugir, orelhas caídas, eu os abraçava quase chorando, com loucura‖ (REBELO, 2002a, p. 182). A triangulação é desfeita com a morte repentina de Silvino, semelhante à de Gaetaninho, protagonista do conto que leva seu nome em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), de Alcântara Machado. O rapazinho ia colocar uma carta no correio para a tia, porém foi subitamente atropelado por um caminhão de gelo: ―Não morreu logo. Veio berrando lancinantemente...‖ (REBELO, 2002a, p. 183). Em casa, delira e confessa pequenos malfeitos nos braços da tia, em especial que destruía suas rosas à noite. Chama atenção o vocabulário empregado, mais sexual que botânico: ―E era ele, Silvino, o vândalo das flores, que, possuído de não sei que estranha volúpia, ia, na calada das madrugadas, pois acordava com os galos, ocultamente desfolhá-las, sem que ninguém o apanhasse‖ (REBELO, 2002a, p. 183). Se nos carinhos da tia ele era o segundo, e o mesmo acontecia em relação aos coelhos, Silvino parece descontar nas rosas sua carência – elas precisavam ser suas, nem que para isso precisasse matá-las. Francisco não expressa nenhum pesar pela morte do colega, o que nos faz reavaliar a frase inicial do conto: ―Isabel, Beatriz dos olhos cor de mel, e Loló e Silvino, na farândula infantil dos meus amores, dançaram com Dodô e dois coelhos‖ (REBELO, 2002a, p. 179). 221

Dos personagens listados por Francisco, além de Silvino, reconhecemos apenas Loló, que será apresentada a seguir (―A morta‖ (S)), fato que pode ser justificado pela nota introdutória de Três caminhos, já comentada: como os textos aí enfeixados seriam romances, provavelmente, o narrador trataria dos outros personagens se estendesse um pouco mais a história. Embora a frase liste os ―amores‖ de Francisco, apresentando-o, assim, humanizado, o que se confere na trama é uma criança fria e egoísta:

Acompanhei-o até ao Inhaúma, no primeiro táxi após o coche, levando no rosto o prazer da novidade, através das ruas em que os homens se descobriam. Lá o deixei para sempre, na tarde tépida, opalina, sorridente, lá o deixei coberto com rosas, com todas as rosas que o roseiral precioso de titia ofereceu naquele dia, rosas brancas irmãs das que ele, por tanto tempo, tão prodigamente despetalara. Na casa deserta das suas gargalhadas, rascantes, comprimidas – hi, hi, hi –, me senti único no amor dos meus coelhos. Pouco, porém, durou a alegria da exclusividade. A falta de concorrência me tirou, talvez, o apaixonado estímulo, talvez o futebol a que, então, me entreguei com ardor, não posso dizer, certo foram ficando abandonados os alvos objetos da minha primeira paixão. (...) No íntimo, o que sentia era uma completa libertação. (REBELO, 2002a, p. 184-185)

Com a morte do rival, os cuidados com os coelhos também cessam; entregues à própria sorte, acabam morrendo, cegos (bem diferente do que ocorre com Branquinha, em ―Galinha cega‖ (GC)). Rapidamente, Francisco adquire nova paixão, o futebol. Assim, a morte de Silvino revela a ―perigosa insensibilidade‖ do dono dos coelhos: a palavra ―libertação‖, tão cara a Rebelo, é sinônimo de brutalidade no trecho acima citado. A maneira como Francisco ama coelhos e pessoas é perigosa. A paixão pelos animais não era humanizada – ele não dá nomes aos bichos, como costumam as crianças e os personagens de Rebelo. Ele gosta da competição, daí desistir dos coelhos quando não mais os disputava, e passar para a bola, sempre em jogo. Há três caminhos no conto: o da afeição, personificada na tia, o da liberdade gaiata, de Silvino, o da prepotência e possessividade de Francisco. Pensando que Silvino morre e que quem conta a história é sempre, de certa forma, vencedor, visto que seu ponto de vista impera, Francisco seria o herói anunciado pela nota introdutória do livro. Entretanto, de acordo com o encaminhamento narrativo, o menino negro assume esse papel. Além de seu nome estampar a primeira linha do conto – o do outro aparece apenas na quarta página –, o velório de Silvino é descrito como sendo de um pequeno mártir: ele não rouba de Francisco apenas o afeto dos coelhos, tira-lhe, principalmente, o protagonismo da história. Já os narradores anônimos de ―Um morto‖ e ―A morta‖ relatam o afeto sentido por alguém pouco conhecido e por uma namorada, respectivamente. É expressivo que, numa obra em que até personagens secundários ganham nome, as pessoas admiradas, mortas 222

precocemente por tuberculose, são indicadas no título anonimamente, embora a segunda, Loló, seja nomeada ao longo da história. Apesar de serem autônomos, há uma semelhança curiosa nos contos: a casa do narrador fica próxima à água. No primeiro conto, ele mora perto do rio Trapicheiros; no segundo, à beira-mar. Tal simbologia nos recorda narrativas clássicas em que a passagem da vida para a morte é feita em meio a paisagens fluviais e marinhas, como no clássico A divina comédia, em que Dante e Virgílio atravessam o rio Aqueronte para chegar ao Inferno. Em ―Um morto‖ (S), o narrador é escritor e recorda uma entrevista dada a um jornalista interessado em saber sobre estilo literário, ―uma das matérias mais difíceis de se explicar‖ (REBELO, 2002a, p. 241). No entanto, parece que o entrevistador (anunciado pelo título) era mais interessante:

Era vivo, inteligente, sarcástico, não se amedrontando nunca com o tamanho dos medalhões. Pobre, lutara muito para se formar em Medicina e, seis meses depois de formado, levava-o uma tuberculose galopante apanhada na miséria das pensões e das redações. Tinha vinte e seis anos e cerrou os olhos serenamente na sua terra natal, entre os pinheiros que tanto amava. (REBELO, 2002a, p. 241)

A apresentação breve revela grande simpatia do narrador, que descreve as virtudes do jornalista morto. Se o parágrafo inicial, acima transcrito, é um pouco dramático, os demais são anedóticos, graças a um caso engraçado ocorrido naquela noite: a primeira utilização das xícaras herdadas da nobreza monárquica (de Sèvres), antes apenas expostas como item museológico da casa – uma tia as confundiu com as cotidianamente usadas. Depois disso, todas as vezes que encontrava o entrevistador, gaiatamente este perguntava ―Como vão elas?‖, se referindo às xícaras ―desfloradas‖, ao que o narrador respondia: ―Muito bem, muito obrigado. Continuas o único!‖ (REBELO, 2002a, p. 242). A brincadeira aproxima intelectualidade e humor, casamento desejado pelos escritores cariocas modernos. Muito diferente é o tom de ―A morta‖ (S), relato melancólico sobre o sofrimento sentido pelo narrador ao perder Loló, namoradinha com quem passeava de mãos dadas na praia. Diferente dele, a menina era rica e viajada. Todavia o que mais lhe chamava atenção eram os olhos: ―Magra, ágil, elegante, Loló era feia de rosto, mas os olhos – somente os olhos! – grandes, imensamente negros, faziam-na bela‖ (REBELO, 2002a, p. 243). ―Os olhos não morrem. E, tantos anos depois, eu vi hoje, de relance, os olhos de Loló num bonde que cruzou com o meu!‖ (REBELO, 2002a, p. 245). Tal com Stela e Dô, personagens que ―abrem portas‖ relacionadas ao amor e à alegria, Loló era companhia desejada, e o casal adolescente participa da lista comprida de 223

relacionamentos felizes (apesar de finitos) em Marques Rebelo, o que não encontramos nos contos de João Alphonsus. Como nas outras histórias, a separação é detonada pela personagem feminina (Stela tem questões pessoais; Dô, problemas familiares): Loló morre subitamente. A tuberculose dizimou considerável parcela da população, especialmente na primeira metade do século XX. Nas décadas em que João Alphonsus e Marques Rebelo escreveram os contos aqui tratados, havia clínicas especializadas e busca de novos tratamentos, mas a enfermidade ainda era uma questão de saúde pública brasileira. Ao incluir no livro histórias de um desconhecido homem e uma conhecida mulher – aproveitando a (in)definição dos artigos nos títulos – acometidos pela doença, Rebelo sublinha que a questão era coletiva e pessoal, que a morte atacava a todos e a cada um e que, desgraçadamente, levava pessoas jovens, boas, inteligentes, perspicazes e amadas. No texto que antecede a dupla anterior, ―Labirinto‖ (S), João e Maria se gostam e se cuidam, não têm filhos e vivem na iminência da morte do homem, sempre doente. Enquanto ele trabalha com dificuldade; ela se mostra resignada. Como o título indicia, o conto não tem desfecho; para a doença e a pobreza, não há saída aqui, nem a morte. O labirinto tanto metaforiza a vida repetitiva e angustiante do casal, como também remete ao órgão que, uma vez desestabilizado, causa vertigens. Além desses problemas, o narrador de terceira pessoa enfatiza a dificuldade financeira do casal:

Continuou abraçado, numa lamúria doce. Tinha medo da morte. (Tolice, João.) Tinha medo, sim – para que mentir? Ficar frio, amarelo, duro, desaparecer... Virar pó, virar terra, nunca mais voltar! E o enterro?!... Todo aquele espetáculo, que já tantas vezes presenciara, lhe metia medo, um medo constante, terrível, mais forte que tudo. Procurava disfarçá-lo, colocando a sua morte sob outro plano: – Como você ficaria se eu morresse aí de uma hora para outra? Quinhentos e três mil-réis na Caixa Econômica. Quinhentos e três mil-réis e nada mais, senão os pobres cacarecos rebentados por oito anos de mudanças nos dez anos de casados. (REBELO, 2002a, p. 236)

João é sensível a qualquer mudança: quando venta forte, por exemplo, acredita que a morte está próxima; ocorrendo um problema mais pragmático, como quando o fiador morre e ele precisa de outro, a saúde fica desestabilizada. Suas doenças (na cabeça e no fígado) o abatem física e emocionalmente; sempre está triste e só. É um dos raros protagonistas não jovens de Rebelo, mas, como outros, pensa cotidianamente no que não conquistou: não comprou casa, não teve filhos. Bem diferente é a proposta do conto ―A mudança‖ (O), narrado por um jovem anônimo, morto precocemente também por tuberculose. O substantivo que intitula o texto também se refere à repentina transformação climática descrita nas primeiras linhas: a noite 224

clara se transforma em ―negror‖ (a palavra domina um período sintático), e os ventos completam a cena, conferindo-lhe angustiada sonoridade. É o primeiro conto de Oscarina em que o cenário é descrito antes dos personagens; até as cortinas, balançadas pela forte ventania, ―dizem adeus‖ (REBELO, 2002a, p. 71). O tempo metaforiza a situação do protagonista, que passa da vida para a morte: no momento da ventania, ele está quase ―fora de seu corpo‖, se desmaterializando. As mulheres que o rodeiam, mãe e irmã, preocupadas, cuidam dele e rezam, contudo as preces não surtem efeito: ―Teresinha de Jesus, no oratório branco da maninha, não fazia mais milagres. Estava surda a todas as orações. Surda? Não. Era o vento, o vento maldoso, com certeza, que levava todas as palavras boas para as espalhar à toa pelas ruas sem ninguém‖ (REBELO, 2002a, p. 72). Parece que o moribundo lê os pensamentos da irmã, ou então tenta dar uma explicação menos cruel a própria situação. O vento é culpado porque impede que as orações cheguem à santa; tal culpabilização é semelhante à vista em João Alphonsus, quando o narrador responsabiliza o luar pela morte de Branquinha, em ―Galinha cega‖. Na impossibilidade de responder claramente às questões relacionadas à morte, a saída aqui é menos galhofeira, mais pueril, porque se refere à devoção da irmã caçula. A morte do personagem é descrita por ele mesmo, um ―incapaz‖: sente fraqueza, pernas dormentes, febre, asfixia, tosse, dor no peito. Apesar de piorar gradativa e visivelmente, responde aos que lhe perguntam: não está sentindo ―Nada mesmo. Que tranquilidade senti me invadir, que silêncio pareceu se fazer‖ (REBELO, 2002a, p. 72). Neste momento, lembra do futebol, do destino de alguns amigos, da escola, das meninas. O momento exato da morte encerra, de maneira direta e nada sentimental, a primeira parte do conto: ―Às oito horas em ponto, senti-me molhado, depois dum rápido acesso de tosse: era sangue. Sangue, mais sangue. Morri. Na casa toda, continuava o silêncio‖ (REBELO, 2002a, p. 73). Como em ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O), na segunda parte do conto, dividido por asterisco, temos o velório. Os personagens parecem recrutados de outros contos de Rebelo: Souza, que lê versos do falecido, tem o mesmo nome do amigo que deu uma peteca ao narrador de ―Caso de mentira‖ (O); Eurico, amigo também presente, é batizado com mesmo nome do namoradinho de Madalena de ―Dois pares pequenos‖ (S); Antônio, amigo que não entende os versos declamados, é homônimo ao protagonista de ―Namorada‖ (T). A coincidência atesta a coesão que há entre os livros de contos de Rebelo: a ambiguidade gerada é profícua, pois numerosos sentidos são tecidos a partir dessas variáveis. 225

Enquanto os amigos participam do velório cada qual a sua maneira – lendo versos até então desconhecidos do jovem morto, como ―A noite é assim: silenciosa, fria‖ (REBELO, 2002a, p. 73), ou ignorando-os, ou desejando outros livros –, o falecido aproveita para conhecê-los por um viés novo. Observa-os com bom humor, no entanto encerra o relato bruscamente, como começou, com outra mudança, a mais funda e inelutável:

Quando tudo acabou, a cova cheia, os passos em cima da terra – bem se ouviam – se afastando, senti-me livre, só, aliviado. Enfim! Uma ânsia, porém, sem limites se apossou de mim, agora que eu via tudo, pois via a minha casinha humilde na rua Dona Constança, deserta de todos os meus sofrimentos. Vi e quis voltar para lá, para o meu desespero, para a minha dor, a febre, o peito aflito, a asfixia e esperar a hora da poção – esperança, esperança! – que minha mãe vinha dar, os olhos úmidos. (REBELO, 2002a, p. 74)

O último parágrafo é devastador porque, depois das últimas homenagens, o jovem deseja reaver a vida. Não anseia por prazeres e liberdades, como se poderia esperar, mas pela vida moribunda que tinha. O poeta romântico descobre, depois da morte, que o final da vida não é libertação, mas ausência e angústia. Marques Rebelo também associa a morte a outro grande tema, em ―Onofre, o Terrível, ou A sede de justiça‖ (O): a luta de classes. No conto publicado pela primeira vez em O jornal (1930), o protagonista é pobre operário, agente sanitário que mata focos de mosquitos no bairro carioca da Urca, embora o título anuncie ações mais grandiosas. Entretanto, o texto quase não traz ações efetivas de Onofre, e, sim, sua ―sede de justiça‖: ele sonha com uma realidade onde os pobres ocupem o lugar dos ricos, mortos pelas picadas dos insetos que cria (ao invés de exterminar), o que justifica seu primeiro adjetivo, ―Terrível‖. O título não à toa parece com os compridos que Voltaire conferiu aos capítulos satíricos de Cândido, ou o otimismo (1759): o plano mirabolante de Onofre é cheio de falhas, e o herói desorientado termina a história na mesma dura realidade em que começou. Onofre, como o personagem setecentista, é um inocente, tal como a origem germânica de seu nome revela, ―pacificador‖ (NEVES, 2002, s/p.). O primeiro parágrafo já revela que se trata de um conto irônico, visto que o personagem anunciado pomposamente pelo título é ―o mata-mosquito Onofre Pereira da Silva‖: poucos são os personagens de Rebelo com sobrenome; o protagonista ganha um, simples, que contrasta com a expectativa nobre e épica. O homem sabe que a saúde da cidade dependia dele, mas hiperboliza seu trabalho: ―E era a própria morte, raciocinando bem, que ele matava, a morte que pairava sobre a cidade, espreitada. Ele matava a morte! (...) Nos ombros dele, Onofre, é que descansava um milhão de almas‖. Assim, confere a si mesmo o reconhecimento que o governo e a população não lhe 226

prestavam, ―ele o herói obscuro, o ignorado, o mal pago‖ (REBELO, 2002a, p. 126). Conclui que é um super-herói, amparando-se tanto em dados reais – sofre com as intempéries naturais (sol e chuva) e trabalha dia após dia (domingos e feriados) –, quanto em irreais – teria a capacidade de exterminar os ricos e dar vida nova aos pobres. Antes de relatar o devaneio, o narrador deixa clara a capacidade reflexiva de Onofre, consciente de que o salário do diretor é mais elevado que o dele, embora só assine papéis. O trabalhador amplia a questão: como ele, havia milhões de operários injustiçados; como o chefe, poucos magnatas

envelhecendo sorrindo à sombra do conforto, com seus automóveis, as suas jóias, as suas mulheres, na fartura e na felicidade. Felicidade, sim senhor! Fe-li-ci-da-de! (alongava bem as sílabas). Que era então a felicidade?! O homenzinho arfava com violência. Os raios de sol, caindo sobre ele, inflamavam mais ainda a cabeça exaltada pela avalanche estonteante de pensamentos nobres. Em vão o suor, que lhe porejava da testa, se esforçava para moderar o fogo interior. Em vão. Ele era todo um anseio de revolta, um esfomeado de justiça! Quando chegaria a hora da vindita? Quando terminaria a hora dos oprimidos? Talvez bem pouco – tremia – se ele... Tremia todo numa comoção viril de libertador. Os olhos se esbugalhavam. (REBELO, 2002a, p. 126-127)

A palavra repetida, cujas sílabas são separadas (recurso também empregado por João Alphonsus), é uma das mais importantes para Marques Rebelo. Nesta parte do conto, a felicidade para Onofre consiste no bem-estar físico conquistado pelos bens materiais, daí ele não se considerar feliz. Já o narrador apresenta ponto de vista distinto, pois considera nobres os pensamentos do mata-mosquito, apesar de saber que ele é apenas um ―homenzinho‖. As perguntas que faz a si mesmo são de um fiel que acredita no dia messiânico, e suas reações nervosas sugerem que Onofre é o salvador esperado:

Aí acabaria a pobreza. Os pobres desceriam da Babilônia, do Pinto, da ladeira do Leme, para invadir as casas. Desceriam como em procissões, vagarosas, quatro a quatro, levando estandartes, imagens de santos, palmas, louvando Deus nas alturas, soltando foguetes de cinco bombas, cantando loas a são Benedito: Meu são Benedito, oooi... Meu são Benedito, oooi...

Eu, de longe, sorria, abençoando, perdoando tanta ignorância. Fui eu! – bastaria dizer para aquela multidão atirar-se aos seus pés agradecendo, rindo e chorando ao mesmo tempo na confusão deliciosa de quem ganha a felicidade, chamando-o ―o profeta‖. Mas não diria... (REBELO, 2002a, p. 127)

Se no início do conto, Onofre já havia se comparado a um herói, daí para acreditar que é um messias é rápido. Para ele, só mesmo um milagre transformaria a sociedade desigual da qual é vítima; como quer melhorias, e não surge ninguém que resolva a situação, elege-se salvador de si mesmo e dos outros também. 227

Uma vez demarcados os territórios – a Urca beira-mar e os morros que a cercam (Babilônia, Pinto, Leme) –, o narrador passa a listar alguns moradores. Os ―graúdos‖ Castro, Teixeira, Stênio, Medeiros, Alvim, Valfredo, Viçosa e Albuquerque são citados pelo sobrenome acompanhado da titulação (doutor, major), da ocupação (comerciante, deputado) ou da origem (rico). Já os ―irmãos‖ de Onofre são Luza, Nelson do Cavaquinho, Anacleto, Marilda, Leonor, Paulina, Florípedes, mencionados pelo primeiro nome ou pelo apelido, sem aquela descrição social, porém com observações subjetivas: um estava adoentado, outro era engraçado, as mulheres eram queridas. Contudo, uma falha transforma o projeto messiânico de Onofre em pesadelo, leva-o ao auge do devaneio e o faz retornar ao mundo real: os mosquitos não atingiriam somente os ricos, tal como os urubus não dispensariam a carniça pobre.

Urubus, malandros, num estender plácido de asas, nem voavam, equilibravam-se, descuidosos, no espaço azul, estridente, luminoso por sobre o campo de futebol, por sobre o asilo todo cercado de palmeiras, por sobre os bangalôs que americanizavam a Urca. E ele já via os mesmos urubus voando, a grasnar, sobre a carniça abandonada nas ruas silenciosas, ao peso da desgraça que devastava os lares opulentos. Já via os urubus molengos disputarem a bicada os corpos insepultos (...). Os mesmos urubus molengos, disformes, desengonçados, que se fartaram na mortandade dos ricos, se regalariam agora na carne dos pobres, dos seus amigos, dos seus irmãos. (...) Perdão! Perdão! pediria, as lágrimas jorrando dos seus olhos sinceros. Eu não fiz por mal!... (REBELO, 2002a, p. 127-128)

Curiosamente, Onofre imagina que sobreviveria aos mosquitos na cidade deserta e triste e observa a morte de todos e a própria solidão. O cenário desalentador – cinema fechado, circo decadente, sem ―choros, flauta, cavaquinho e violão‖ (REBELO, 2002a, p. 128), sem carnaval, morros abandonados – revela o amor de Onofre pela rua, pelas pessoas, pela música, pela natureza cariocas. O narrador sugere, assim que, mesmo passando privações, o protagonista é feliz, embora não se considere. O narrador chama o delírio de Onofre de ―pesadelo‖ (REBELO, 2002a, p. 129). Quem o acorda é o chefe de trabalho; assustado, o rapaz derrama o veneno nas larvas dos mosquitos e as mata. Ou seja, termina o devaneio acabando mesmo com o plano. Enquanto isso, a paisagem é de tranquilidade na Urca: os urubus estão serenos; o bondinho, tranquilo e firme. Tudo continua igual: malandros em seus lugares – sobrevoando o bairro –, e a elite dominando a paisagem. Porém, o mata-mosquito segue com uma ―angústia desconhecida‖ oprimindo-o, e a contraposição entre limusine e marmita de feijão frio explicitam a continuidade do problema. 228

A fraqueza física – Onofre alimenta-se mal, trabalha muito – aumenta com a dor existencial, com a injustiça: ―Uma fadiga, um amolecimento, parecia que nem existia, parecia que flutuava‖ (REBELO, 2002a, p. 129). Podemos associar essa imagem ascética do personagem à de Santo Onofre, eremita de Tebaida, região desértica ao sul do Egito, que, de acordo com a tradição católica, teria se alimentado, durante 60 anos, apenas de tâmara, pão (trazido diariamente por um corvo) e eucaristia (oferecida por um anjo), quando ele não teria cortado as unhas, nem o cabelo nem a barba, como sinal de penitência (cf. NEVES, 2002, s/p.). A última frase do conto é desalentadora: ―Então a brisa do mar veio mais forte e enxotou o farrapinho de sonho que teimava‖ (REBELO, 2002a, p. 129). Sonho ou pesadelo, o devaneio expressa a incapacidade de Onofre para a ação: quase o texto todo é hipotético, prevê futura encenação dramática. Nesse sentido, o conceito que Massaud Moisés confere ao gênero colabora com a análise: ―O conto constitui uma fração dramática, a mais importante e decisiva, duma continuidade em que o passado e o futuro possuem significado menor ou nulo‖ (apud REIS; LOPES, 2007, p. 81). A trama que associa desenvolvimento material e evolução social a um misticismo tresloucado tem final infeliz. O conto, antecipado em Oscarina, de ―Tragédia‖ e ―Uma véspera de Natal‖, que tematizam, como vimos, respectivamente, a hipocrisia e a tristeza da alta sociedade carioca, explicita a crítica social de Rebelo, finalizada no último texto do livro ―A última sessão do grêmio‖.

4.2.4 Eis a tarde!

Se João Alphonsus, influenciado pelo ideário romântico-simbolista, adere à noite, conferindo a ela novos significados, Marques Rebelo, envolvido pelos cronistas novecentistas e pelos modernistas mais diurnos, opta pelas tardes ensolaradas como pano de fundo de seus contos, daí o paralelismo entre o título desta seção e o do último livro do mineiro, Eis a noite!. Vários textos já analisados apresentam o cenário solar, onde os personagens vivem momentos agradáveis (primeira parte de ―Na rua Dona Emerenciana‖), reveladores (―Stela me abriu a porta‖) ou angustiosos (―Um destino‖, ―Tormenta‖ e ―Espelho‖). A luminosidade do dia parece mover o narrador, seja de primeira ou de terceira pessoa, que parece depender dela para enxergar os personagens. Assim, tal como a noite nos contos de Alphonsus, a tarde é mais do que um elemento narrativo isolado em Rebelo, devido à recorrência e às implicações 229

que causa no enredo. Para evidenciar duas facetas da tarde na obra rebeliana, observaremos a tarde melancólica de ―Em Maio‖ (O) e a festiva de ―Dois pares pequenos‖ (S). Apesar de o narrador de ―Em maio‖ (O) deambular pela cidade, seu largo movimento e a paisagem agradável não espelham o sentimento de estagnação que ele carrega. Trata-se de protagonista muito diferente do malandro Jorge-Gilabert (―Oscarina‖ (O)), pois se detém em numerosos trechos do caminho para contemplar e pensar sobre a vida – daí a narração ficar a cargo dele, em primeira pessoa. Fugindo dos meses quentes de verão, adequados às narrativas que apostam na imagem clichê do Rio de Janeiro, que associam a paisagem tropical à sensualização das formas e desejam ratificar a ideia de uma essência imutável e os estereótipos cariocas do malandro, da mulata etc, o narrador contextualiza o relato em uma época amena, o mês de maio, lugar- comum da literatura. O flâneur registra cenas de um domingo, posicionando-se passivamente nos encontros fortuitos com variadas pessoas: homens e mulheres, ricos e pobres, ocupados ou não, brasileiros e estrangeiros, tristes ou infelizes. Esses são os escolhidos pela lente altamente subjetiva do narrador de Rebelo porque lhe provocam curiosidade. Seu recorte está intimamente ligado à pluralidade social carioca nas décadas iniciais do século XX. O relato foi organizado em quatro seções de extensões diferentes, não intituladas e delimitadas apenas por um asterisco. Como dos encontros acima indicados não surge uma história que se sobreponha a outra, o conto não foi intitulado com o nome de um dos personagens nem com algo que evocasse apenas um deles. O título escolhido mostra a necessidade de um cenário específico (clima e natureza suaves) e de um elemento que abarcasse a todos (o tempo). A primeira parada do narrador ocorre quando cumprimenta Carlos, ―o gordo, o rico, o invejado‖ (REBELO, 2002a, p. 57). A conversa rápida, sobre notícias dos periódicos, é demasiado trivial para merecer espaço no conto. Entretanto, é a única interação que o narrador efetivamente realizará – as outras personagens serão apenas observadas, caracterizando-o como alguém solitário e aparentemente intangível. A referência ao homem que ostenta um automóvel caro e raro à época também é importante porque apresenta, por contraste, o narrador: anônimo, desapressado, atencioso com as pessoas e com a paisagem. As outras personagens da seção inicial ratificam o interesse do observador por estrangeiros: a francesinha sorridente e o português Almeida. Não objetiva indicar quem é melhor ou pior (essa comparação só é feita, discretamente, com Carlos), apenas expressa um ponto de vista sobre a existência, formada pela alteridade. Até a descrição da praça onde encontra Almeida – ―Vivo, incandescente, um imenso sol inunda a praça de ardores 230

africanos‖ (REBELO, 2002a, p. 57) – revela que o observador carioca compara a cena a dados exteriores. O narrador vê além ao avistar a praça de todos os dias, concedendo-lhe vibrações disassociadas do cotidiano, revelando que, ao mesmo tempo, ela lhe é familiar e não é. Ao focalizar dois imigrantes, compartilha com eles a sensação de alheamento de quem não consegue agir, mesmo em cenário agradável. A narração acompanha temporalmente a flânerie: ―Já passei o bazar (...). Vou cruzar a avenida (...)‖ (REBELO, 2002a, p. 58). Essa valorização do movimento se perde ao longo da narrativa à medida que o narrador aprofunda questões existenciais, que passam a predominar no texto. Depois de breve descrição dos lugares selecionados – o bazar, a casa de balas, a rua de maus paralelepípedos, os bondes barulhentos, a avenida, a praça –, o narrador relata curtas histórias. Só as conhecemos porque as personagens atravessam o caminho do observador na hora certa, como se a eventualidade organizasse os quadros narrativos. Além disso, a casualidade está nos pequenos lances diários: Almeida, eufórico pelo desempenho do Vasco, depois de assistir a uma partida de futebol, é abordado, ―numa esquina propícia‖ (REBELO, 2002a, p. 58), por um integrante do Exército da Salvação que lhe diz: ―Ganharás a vida com teu suor‖. Não esquecendo mais a frase, o português passa a trabalhar duramente e sente-se feliz porque tem certeza de que retornará à terra natal. Se Carlos, o primeiro transeunte cumprimentado, exibe sua riqueza, Almeida a poupa para o futuro, aparentando possuir menos do que efetivamente acumula. O narrador não os compara explicitamente, mas, ao começar a primeira parte do conto com um e terminá-la com outro, sublinha a ambição dos homens de sua época, muito interessados em desfrutar ou perseguir o prazer que o capital lhes proporcionava. Já na segunda seção, as pessoas são retratadas como sujeitos afetivos. Há três pequenos enredos: o da moça que aguarda o namorado para passear e planejar o futuro, o da solteirona abatida que anseia em vão o amor e o do guarda-civil ansioso pelo encontro com a namorada. As três micronarrativas reunidas num parágrafo único e curto enfatizam a dimensão sentimental: os casais apresentados incompletos enfatizam a solidão e sugerem as dificuldades amorosas vividas em sociedade. Na terceira parte, passamos da ―praça de ardores africanos‖ aos ―canteiros ingleses‖ (REBELO, 2002a, p. 59): mais uma vez o espaço cotidiano é relacionado a algo distante e diferente, sugerindo desejo de evasão. O lugar calmo propicia extensa reflexão, em que o narrador se compara a um arbusto em forma de bola: ―Assemelha-se comigo. O destino das bolas é rodar e esta está parada, presa pelo tronco frágil‖ (REBELO, 2002a, p. 58). A imagem 231

também pode metaforizar o modo narrativo de Rebelo, muitas vezes circular, pois muitos contos terminam como começam (como ―A moça e a primavera‖). A narrativa prende os personagens numa realidade repetitiva, sem expectativas: o protagonista intui o que ou quem encontrará no caminho. Paralelamente à observação externa, ele se autoavalia, considera-se inútil, restrito à escrita de ―frases fáceis, protocolares, sem nenhum outro esforço para uma libertação necessária‖ (REBELO, 2002a, p. 58). Outro imigrante é focalizado, o que cachimba nas loterias, longe dos problemas que o retiraram de sua pátria. Se a justificativa do narrador – ―Aqui há paz‖ (REBELO, 2002a, p. 60) – é positiva de início, em seguida desembocará em triste conclusão. Por enquanto, até a ideia da morte é agradável: caso ela tomasse o narrador naquele instante, aceitaria-a tranquilamente e sentiria ―inexplicavelmente‖ saudade não das pessoas queridas, mas do escritório. O personagem pensa no fim quando tudo parece bem e sente saudade da obrigação, não do prazer: seu pensamento nos leva a questionar se a vida era mesmo boa pra ele. A cena revela imobilidade e monotonia excessivas, que retiram a vibração de existir. Nesse sentido, vale lembrar a crítica feita por Massaud Moisés em relação aos contos de Rebelo, que perderiam para os de João Alphonsus, Aníbal Machado ou Rodrigo Melo Franco de Andrade por serem

(...) mornos, sem vibração. Nem se põe em causa a falta de originalidade que viria dessa frieza de cronista sem lirismo ou sentimento trágico, mas o serem pouco ou nada contos. Ensaios de romance, exercícios de estilo, em que o tom uniforme prevalece, neles nunca se ouve um berro, um gesto dissonante; tudo é sempre igual, como se o narrador pretendesse retratar o monótono cotidiano carioca. E, ao fazê-lo, transferisse a monotonia para dentro do texto, o que lhe prejudica a possível carga de análise social. (...) querendo retratar o ramerrão pequeno-burguês carioca, na linha de seus mestres, acabou por imobilizar tal imagem no espelho do texto e por atribuir-lhe, portanto, essa imobilidade. (MOISÉS, 1989, p. 261)

No conto, mesmo que o corpo do narrador permaneça estático, a narrativa ganha movimento com um militar que anda na rua em direção ao cinema e coloca dois ―filmes‖ em cena: o assistido pelo narrador observador e o da tela, pelo qual o homem está deslumbrado. Tanto quanto o dia a dia inspira o narrador escritor, ―o cinema convida, os cartazes anunciando, gente parada nas portas a olhar os que entram‖ (REBELO, 2002a, p. 61). Apaixonado pela atriz que diz ―I love you‖, o homem sai maravilhado do cinema, todavia, ao chegar a casa, diz à mulher grávida que não gostou do filme sem explicar por quê. A negação indica que, comparada à ficção envolvente, a realidade é sufocante. A resposta mentirosa é designada ―heróica‖: o militar finge os sentimentos para não desagradar a mulher e para sobreviver num contexto indesejado. Outra leitura possível é a de que o narrador ratifica, com amargura irônica, o próprio confinamento, uma vez que passa por situação parecida – 232

contentar-se com o mínimo, almejando ao máximo. Assim, mais uma vez, a mise en abyme, já observada em outros contos, possibilita ―elaborações narrativas extremamente sutis, com sugestivas consequências no plano semântico‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 234), uma vez que tanto discute a trama em questão quanto promove autoanálise do próprio texto. Oposta à imagem do cerceamento da fantasia, a cena que finaliza a terceira parte traz um imprudente saltando do bonde em movimento. Se heroísmo é continuar preso às convenções sociais, a negligência precisa ser combatida. Por isso, o narrador condena a atitude do rapaz, justificando que alguém sentiria sua falta caso morresse. Sem passar para outro parágrafo, como se continuasse a história, o período final parece desconexo: ―E o céu é azul e ri, o sol é alegre e esplêndido, a praia se prolonga alva e brilhante, para lá no fundo se erguer o forte, uma muralha de concreto que se afunda nas vagas, donde vem, metálico e vibrante, o toque para o rancho‖ (REBELO, 2002a, p. 62). A natureza é posta ao lado de uma construção humana que, diferente da liberdade deslumbrante, recorda aos homens o compromisso e a temporalidade. Ao colocar em paralelo as imagens do militar/passageiro e da natureza/quartel – procedimento típico de Marques Rebelo, espécie de metáfora justaposta –, o narrador se mostra dividido pela ânsia de novidade e fantasia, que só será atingida se ele se libertar das concepções paralisantes. Na última parte, o narrador chama de ingrata certa moça que não correspondera a seu amor quando adolescente. O adjetivo ―heróico‖ retorna aqui para caracterizar seu primeiro olhar amoroso. Recordando o interesse da jovem por cinema, tal qual o do militar, o narrador a imagina, numa espécie de vingança fictícia, indo à sessão com o irmão, na falta de um namorado. A reação dela ao assistir às cenas amorosas seria diferente da do militar embevecido com a atriz: a mocinha sentiria inveja e tristeza por não ser tão bonita e estar desacompanhada. O narrador também imagina como seria maravilhoso se estivessem juntos, mas a realidade é outra e, injuriado, finge falar com ela: ―Vai. Eu fico‖ (REBELO, 2002a, p. 63). Conclui, apostando nos problemas que enfrentariam se estivessem juntos. Assim, a normalista, que era ―qualquer coisa de nítido‖ numa existência ―de acontecimentos pálidos‖ (REBELO, 2002a, p. 62), se esvai para sempre. Os devaneios são suspensos no momento em que o narrador tenta contato com um poeta que passa. Como sua saudação não é correspondida, ele especula que o vate ―não vê, não ouve, não sente‖ (REBELO, 2002a, p. 63) uma vez preocupado com a rima ―lúcida‖ a ser inserida no soneto ―impecável‖, publicado no Jornal das Moças – comentário altamente irônico, pois o eu lírico do tal poema afirma amar, viver e morrer pela beleza. Vale lembrar que o periódico carioca aludido, publicado entre 1914 e 1965, muitas vezes anunciado como 233

―a revista de maior penetração no lar‖ (PINSKY, 2014, p. 51), era distribuído nas principais cidades brasileiras. Inspirado nas revistas de variedades do século XIX, o jornal abordava assuntos à época de interesse feminino: contos, poemas, piadas, partituras musicais, sugestões de leitura e de economia doméstica, anúncios de cosméticos e medicamentos, comentários sobre cinema e moda, fotos da sociedade fluminense (cf. PINSKY, 2014, p. 51). Se os personagens podem ser dispostos em duplas opositivas (Carlos e Almeida, a normalista e a atriz, o militar e o imprudente do bonde), o narrador se opõe ao poeta: a matéria literária daquele é abstrata, enquanto a deste se vincula à observação e sensação dos fatos; um está preocupado com a divulgação de seus textos, o outro não acredita que sua escrita tenha valor. Uma década mais tarde, Carlos Drummond de Andrade escreveria, em ―Mãos dadas‖: ―Estou preso à vida e olho meus companheiros. / (...) / O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente‖ (1998, p. 161), versos que se assemelham ao sentimento do narrador e ao entusiasmo lido em A mudança, no texto datado de 28/10/1940: ―Sentimento do mundo! (...) Mais que límpido, é seco (...). Seco como lâmina! Não torce, enrija. Nas rasteja, sobrepaira. É a inspiração do tempo presente, a poesia e a coragem, o começo da estrada de mãos dadas para a constelação da Coragem Maior (...)‖ (REBELO, 2002c, p. 333). Se o eu lírico conclama à união diante da realidade trágica do mundo em guerra, no conto da década de 1930, o narrador permanece sozinho no banco do jardim e, angustiado, contempla a cidade pacífica. Depois do cego poeta, o flâneur se depara com um músico cego, cuja missão é consolar quem o escuta, tocando uma ária da ópera Sonho de valsa, de Oscar Straus, ou do Trovador, de Giuseppe Verdi, inspirando ―uma tristeza que nos faz bem‖ (REBELO, 2002a, p. 64). Mas nem todos pensam da mesma maneira: o olhar ―mercantil‖ de um corretor reduz o homem do realejo a uma inutilidade dupla: além de cego, artista. O pensamento preconceituoso é uma suposição do narrador, atento às posturas divergentes. Enfim, o narrador imagina a cena que encontrará ao chegar a casa: mãe cosendo, irmã tocando e sonhando: ―A lâmpada que ilumina o Senhor derrama uma luz tranquila, que vai suavemente esmaecer os ângulos dos móveis antigos‖ (REBELO, 2002a, p. 64). Oriunda do sol ou da lâmpada, a luz que ilumina o dia e a noite é calma: a mesma quietude de fora existe dentro da casa. À saudação das mulheres, ele não saberá o que responder, apesar de acreditar que precisa fingir (como o militar): ―Deveria haver lágrimas na minha voz. Escondo-as. Não se deve turvar uma felicidade e eu sinto que existe uma felicidade inefável dentro daquelas 234

quatro paredes, mas eu sinto também, angustiosamente, que dentro de tanta paz eu sou um homem sem motivo e lá fora, na vida, um tímido que se aterra‖ (REBELO, 2002a, p. 63). A impossibilidade de sentir a paz desfrutada por todos angustia e isola o narrador. Sentindo-se estrangeiro em terra pátria, se diferencia dos demais por não considerar feliz uma vida mediana, sem novidades, sem dramas. Como ele não ousa alterar a quietude exterior, sufoca sua capacidade de interação, inibindo sua função de sujeito social. Amarrado a essa concepção de ser no mundo, é um espectador da realidade. Mesmo que não seja a intenção primeira do recorte subjetivo do narrador desmistificar o cotidiano simples e pacífico da cidade, seu incômodo acaba pondo em dúvida a existência verdadeira de um bem-estar coletivo. Se a tarde carioca revela-se ambiente de torpor no conto ―Em maio‖ (O), vigor e suavidade lhe são devolvidos em ―Dois pares pequenos‖ (S), pois nela se encenam momentos felizes vividos por Edgar, os irmãos menores e um colega que conhecem quando escapam da escola. A liberdade usufruída em meio a natureza, sem adultos por perto, sem deveres nem obrigações provoca desfecho sentimental, a primeira paixão da irmã de doze anos. Tal atmosfera produz o conto mais feliz de Rebelo, atípico em uma obra inclinada a registrar a parca liberdade humana. Evidencia-se, assim, o olhar lírico do autor sobre a infância e sobre a natureza, que pode ser comprovado na sua obra infantojuvenil, inaugurada ainda na década de 1930, com A casa das três rolinhas (1937), e encerrada com a publicação de O galinho preto (1971). Mais um vez, os nomes podem confundir os leitores mais assíduos de Rebelo: em ―Vejo a lua no céu‖ (T), o narrador também se chamava Edgar e contava suas memórias infantis, entretanto era o quarto de cinco irmãos: Fernando, Margarida, Catarina, Edgar e Doroteia (em ordem decrescente de idade). Já em ―Dois pares pequenos‖ (S), a disposição e a quantidade de irmãos é diferente da do personagem: Edgar é o irmão mais velho de quatro, seguido de Madalena, Cristininha e Manuel. Como já sublinhamos, existe uma duplicação de personagens na ficção rebeliana, provocada, acreditamos, para injetar ambiguidades e sentidos aos textos. Mário Frungillo aponta para o espelhamento do nome original do escritor (Eddy) observada em seus narradores-personagens (Edgar, nos contos, e Eduardo, em O espelho partido). Em relação à trilogia, assunto central de sua tese, o professor indica que há dentro dela vários contos que valeriam um estudo à parte (cf. 2001, p. 75-76), dentre eles, a história de Madalena e Eurico, muito semelhante à relatada em ―Dois pares pequenos‖ (S). Pelo que tudo indica, o fato teria ocorrido com a irmã de Marques Rebelo; os desdobramentos literários 235

dessa história de amor e sofrimento foram estudados por José Carlos Zamboni, na tese Madalena & Pinga-Fogo (cf. FRUNGILLO, 2001, p. 76), infelizmente não disponível na internet. Ainda que tenhamos, no início do conto, a imagem de crianças que não precisam de mais nada para serem felizes – ―Mal e bem, esperança e desesperança, desafogo ou aflição – não tinham para nós, então, nenhum significado‖ (REBELO, 2002a, p. 208) –, o desenvolvimento do texto confirma que liberdade é sensação ímpar e imperdível. O entorno familiar é estável, e os parentes parecem felizes. Tudo cresce e é registrado no plural ou no diminutivo afetivo. O cotidiano é tão perfeito que o narrador afirma: ―Dormíamos sem sonhos‖ (REBELO, 2002a, p. 208). Nesse sentido, podemos pensar também que não tinham pesadelos, nem grandes expectativas. A felicidade ingênua, baseada na incapacidade de discernimento e na consequente ausência de culpa, seria, em seguida, substituída pela proibida, desconhecida, conquistada. Em alguns momentos, havia separações, como a da hora do pôquer, ―mundo tentador de cores‖, e na hora da música ―esquisita‖, em que as crianças eram retiradas do convívio dos adultos. Os adjetivos revelam perigo como a última palavra da descrição idílica: ―A água do rio era um chiado manso e repousante, batendo nas pedras, escorrendo, escorrendo, com a suavidade ondulante das serpentes‖ (REBELO, 2002a, p. 209). Tal como a imagem angelical guarda potencial oposto, as crianças enganam, certo dia, a família: arrumam-se para a escola, mas pegam o bonde para passear pela mata do bairro, aproveitando a tarde. Embora a escola tivesse método moderno, ―higiênico e pedagógico‖, a rua é mais atrativa. A ideia de Madalena – ―fazer uma gazeta‖ – causa nos irmãos menores ―ousadias e temores‖ (REBELO, 2002a, p. 209). Logo no início do passeio, os irmãos conhecem Eurico, da idade de Edgar:

Nós o seguimos alegremente. Quanta coisa sabia ele! – Os nomes de todos os pássaros, e imitava-lhes os cantos; os nomes de todas as árvores, de todas as plantas, de todos os insetos. Sabia subir em árvores sem se sujar, galgar pedras e barrancos difíceis sem escorregar nem cair; sabia os recantos mais lindos, mais sombrios, mais sossegados, mais cheios de flores e de frutas. Conhecia a mata, palmo a palmo. Era como se ela fosse um pequeno jardim de sua propriedade. (REBELO, 2002a, p. 212- 213)

Eles fogem da escola, contudo experimentam outro tipo de aula, aprendendo sobre a fauna e a flora da região onde moram. Eurico era precoce professor devido à experiência de liberdade e de observação, por isso a multiplicação de diálogos a partir da sua presença na trama. 236

Depois de um estranhamento inicial – também indiciador de interesse –, Madalena entra em processo de encantamento. A pose da menina ao comer pão, talvez inconscientemente, é para o rapazinho:

(...) deitada de lado, no capim rasteiro, uma das mãos apoiando a cabeça. A saia curta repuxava e mostrava as coxas roliças. Tinha o cabelo à inglesa, com forte redemoinho na altura da testa. Os seios despontavam. Pequenas bagas de suor escorriam-lhe pelo canto da face, junto às orelhas, como bagas de orvalho sobre uma folha penugenta. Sentado ao lado dela, apoiando as costas no tronco de uma árvore, Eurico contemplava-a. (REBELO, 2002a, p. 214)

O envolvimento entre os adolescentes é descrito sensualmente, e não como uma brincadeira pueril. A imagem da serpente, no início do conto, antecipava esta inocente voluptuosidade. O apelido de Eurico, Pinga-Fogo, tanto remete à detonação afetiva que ele exerce na vida de Madalena quanto à influência em relação ao outro pequeno casal de irmãos, visto que aquele dia de exceção viraria rotina do grupo. O papel dele é semelhante ao de Stela (―Stela me abriu a porta‖ (S)), pois oferece o conhecimento da vida prática, da alegria e do amor.

4.3 TENDÊNCIAS FORMAIS DA CONTÍSTICA DE MARQUES REBELO

Depois da análise detalhada dos temas-chave da contística de Marques Rebelo, vale sistematizar os aspectos formais mais recorrentes e significativos, sintetizando-os, uma vez que já foram assinalados: a flutuação entre os gêneros conto e crônica; o registro localizado espacial e temporalmente por meio de referências múltiplas à cidade do Rio de Janeiro, aos costumes e linguagens dos cariocas do início do século XX; a escolha do foco narrativo de primeira e de terceira pessoa a depender do escopo da abordagem; a seleção de personagens jovens, sempre relacionados metafórica ou metonimicamente com a cidade; o emprego simultâneo de técnicas narrativas tradicionais (flashback e mise en abyme) e de estratégias mais inovadoras, como a ausência de desfecho em alguns contos; a utilização da linguagem popular nos diálogos e da metalinguagem. Como muitos escritores de sua geração, Marques Rebelo não estava interessado na adequação de seus textos a um formato facilitador de uma rotulação genérica. Vimos, por exemplo, o caso de ―Oscarina‖, em 1927 divulgado como ―novela‖ e, em 1931, mais extenso e sem mudanças consideráveis no enredo, publicado como ―conto‖. Na verdade, o escritor se preocupou em produzir os mais diversos tipos de textos, alguns inclusive dificílimos de classificação, como é o caso da trilogia O espelho partido. Em relação aos contos acima 237

analisados, alguns podem ser considerados crônicas devido à presença do registro do cotidiano e das digressões narrativas. A definição de Hélio Pólvora ilustra e explica o entrelaçamento desses gêneros: ―o conto modernista é uma crônica ficcional percorrida por frases vibrantes e pela orografia da caricatura intencional‖ (1971, p. 15). Rebelo participa do grupo daqueles que, contra purismos literários, ousam a interpenetração entre diversos tipos textuais tendo em vista a dinamicidade e a modernização da cultura e da arte. Inegavelmente os textos comentados ratificam a paixão de Marques Rebelo pelo Rio de Janeiro – Grande Tijuca, subúrbios, centro, Copacabana, Botafogo etc – e por sua época – os artistas de sucesso, as músicas mais tocadas, os produtos da moda, os jornais e revistas em circulação, o bonde e os meios de locomoção, os lugares mais frequentados etc. Como foi comprovada, a criteriosa seleção de cenas está intimamente ligada ao ponto de vista que se deseja construir. Logo, a obra aqui estudada, apesar de arraigada profundamente a um local e um tempo específicos, ―depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver‖. A frase é de Walter Benjamin (1994, p. 204), que, a partir de uma história sobre certo rei derrotado, contada por Heródoto no terceiro livro de Histórias, diferencia informação e narrativa. A ausência de explicações desta última lhe conferiria a capacidade de desdobrar-se em significados múltiplos, em contextos e épocas distintos. Da mesma maneira, não encontramos explicitamente, nos contos de Rebelo, a razão pela qual seleciona os quadros narrados – ele nos oferece as cenas e nós costuramos os sentidos implícitos –, embora a insatisfação em relação ao aprisionamento do ser humano seja aferível. Para Alfredo Bosi, o contista aprendeu com Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto

a manejar os processos difíceis do distanciamento, o que lhe permitirá contar os seus casos da infância e do cotidiano com uma objetividade tal que a ironia e a pena difusas não arrastariam ao transbordamento romântico. A sábia dosagem de proximidade e distância do narrador em face dos seres da ficção é o pressuposto do neorrealismo de Marques Rebelo e a chave de uma obra que testemunha o povo, sem populismo, e fixa as angústias do homem da rua sem a mais leve retórica. (1972, p. 460-461)

O comentário de Bosi está em sintonia com a epígrafe escolhida pelo autor de Stela me abriu a porta (―O tempo conserva de preferência aquilo que é pouco seco‖), denunciadora de quanto a literatura rebeliana fugiu ao sentimentalismo. Perplexo com a violenta transformação da cidade nos primeiros anos do século XX – ―boom da urbanização, da industrialização e da entrada de imigrantes [de um lado]. De outro, (...) período de repressão, de todo tipo de falcatruas políticas, da aplicação de medidas racistas e da expulsão da pobreza para as laterais das cidades‖ (SCHWARCZ; STARLING, 2015: 238

349) –, o escritor analisa e registra ficcionalmente sua realidade, ressaltando a imobilidade e o cosmopolitismo alienante. Se o autor segue os passos de seus predecessores românticos e realistas, também elabora literatura singular, fato sublinhado por Alfredo Bosi: ―Na ficção de Marques Rebelo cumpre-se uma promessa que o Modernismo de 22 apenas começara a realizar: a da prosa urbana moderna. Com a diferença notável de que o escritor carioca não rompeu os liames com a tradição do nosso melhor realismo citadino‖ (1972, p. 460). A escolha da instância narrativa colabora com a visão de mundo que Rebelo objetiva transmitir. Nos contos ocorre algo parecido com o que Luís Bueno explica em artigo sobre os romances publicados na década de 1930: nem sempre se observa a teoria amplamente aceita de que o narrador de primeira pessoa deve expressar percepções subjetivas e o de terceira revelar o mundo exterior objetivo. O pesquisador comprova que a relação entre foco narrativo e objetivo temático é muito mais complexa que isso:

o romance interessado na realidade material cheia de manifestações exteriores às vezes lança mão de um modelo de narrador apropriado para lidar com a introspecção, enquanto alguns narradores introspectivos expressam o mundo interior dos personagens por meio de uma técnica criada para descrever a realidade. (BUENO, 2012, p. 35)

Não só no romance de 30 há a inversão indicada por Bueno: alguns contos de Rebelo narrados em primeira pessoa não se concentram só no eu narrativo (cf. ―Vejo a lua no céu‖ (T)), como também outros, em terceira pessoa, não revelam apenas o movimento exterior ao flâneur (cf. ―Tormenta‖ (O)). A rigor, seus textos costumam mesclar essas captações, como percebemos no conto ―Em Maio‖ (O), narrado em primeira pessoa, em que há tanto reflexões sobre cenas externas quanto sobre a complexidade interior, ou no escrito em terceira pessoa, ―Felicidade‖ (O), no qual descobrimos a personalidade da protagonista a partir dos olhares (de e) para Clarete. Talvez por isso ―Namorada‖ tenha sido primeiro publicado (na Para todos... (1931)) com foco narrativo interno e, anos depois, em Três caminhos (1935), o narrador tenha sido alterado para o externo. Vale lembrar que o segundo livro tem explícita intenção memorialística, em especial pela retomada de cenários e personagens familiares ao garoto Eddy Dias da Cruz; nos outros livros, a tônica autobiográfica transparece nos personagens associados à literatura e ao carnaval carioca. Enfim, Rebelo procurou construir personagens envolvidos intrinsecamente com a cidade, numa relação ora metafórica, ora metonímica. Como num jogo cinematográfico, muitas vezes ele sequencia quadros aparentemente desconexos – por exemplo, apresenta um personagem e, em seguida, um espaço ou uma música – para que o leitor os compare. O 239

procedimento, espécie de metáfora justaposta (não há nenhum elemento conectivo que faça a coesão das imagens comparadas que vêm em períodos sintáticos distintos), é muito recorrente. Outra estratégia expressiva bastante comum é a metonímia, empregada para estabelecer relação entre os personagens e a cidade: embora jovens e belos, apresentam grandes dificuldades para transpor barreiras. Alfredo Bosi explica a escolha de Rebelo por personagens jovens: o escritor, assim, contrapunha ―a infância, paraíso de jogo e liberdade, e a rotina cinzenta do adulto‖ (BOSI, 1972, p. 462). As técnicas narrativas selecionadas por Rebelo, como o flashback e a mise en abyme, não são inovadoras. A primeira delas, recorrentemente usada, por vezes registra a ativação da memória de um personagem, outras vezes recupera eventos necessários para a construção coerente do enredo e, ainda, é empregada para apresentar teses. Já a segunda, em especial ao projetar referências cinematográficas da época, além de multiplicar os sentidos da trama, dá- lhes moldes modernos. Das possibilidades elencadas no dicionário de Reis e Lopes, podemos afirmar que Rebelo explorou todas: ―Profecia, autocontemplação, complemento da ação, são algumas das funções que podem ser atribuídas à mise en abyme‖ (2007, p. 234). Predomina nos contos de Rebelo o emprego da linguagem popular nas falas dos personagens, tal como estimulavam os primeiros modernistas, como Mário de Andrade, que chamava esse fenômeno de ―abrasileiramento do Brasil‖. Como João Alphonsus, Marques Rebelo também acreditava numa expressão linguística mestiça e na oralidade como símbolo cultural brasileiro. O comentário de Santiago coincide com o pensamento dos contistas:

O certo da língua portuguesa falada no Brasil pode estar paradoxalmente no errado das classes populares. Eis a dialética dos materiais de que se valem os modernistas para fazer a arte da invenção e do risco que nos legaram e de que, na nossa expressão linguística, nos servimos todos, para compreender de maneira real as injustiças econômicas e sociais no Brasil. (2005, p. 11)

Rebelo empregou uma língua viva, colaborando com a ampliação dos temas nacionais e com a pesquisa formal da linguagem, tanto que seu estilo foi chamado de ―carioquismo‖ (cf. OLINTO apud TRIGO, 1996, p. 8). Entretanto, o recurso foi duramente criticado, visto que, para alguns, indicava falta de rigor e promovia apenas mudanças gramaticais, e não sociais, na turbulenta situação política do país (cf. SOUSA; CARDOSO, 2014, p. 22). Longe de facilitar a vida do contista, seu objetivo formal acarretava excessivo cuidado, e Rebelo era capaz de reescrever vinte vezes uma mesma frase (cf. TRIGO, 1996, p. 36). Os contos de Rebelo são vespertinos devido à recorrência de cenários luminosos, de personagens desejosos de liberdade, de relatos amorosos felizes; no entanto, tal como a ação negativa do sol no romance O estrangeiro (1942), que interfere dramaticamente na vida do 240

personagem camusiano, as histórias do carioca, além de abordarem a imprevisibilidade da morte, sempre precoce, guardam críticas que, uma vez sob holofotes, também são geradoras de mal-estar, pela vizinhança da noite.

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5 UM ENCONTRO DE CONTISTAS ENTRE PASTÉIS DE NATA E ESCORPIÕES

Há poucas evidências de contatos presenciais entre João Alphonsus e Marques Rebelo. A prova inconteste de que o carioca frequentou a casa do mineiro está em Suíte n.º 1, no trecho em que elogia a comida e a conversa experimentadas em temporada em Belo Horizonte no início da década de 1940. Dentre as maravilhas desfrutadas na cidade, o visitante se delicia porque, ―na casa de João Alfonsus, entre a fumaça do fuminho de Passa-Quatro, se possa comer tranquilamente os melhores pastéis de nata de toda Minas Gerais‖ (REBELO, 1944, p. 132). Ao incluir o colega de carreira em seu livro misto de crônicas e ensaios, Rebelo torna João um personagem, traçando-lhe um perfil, que se completa no fragmento de três linhas (alguns textos de Suíte n.º 1 são assim compostos e dispostos) encontrado páginas seguintes:

– Na sua casa há muitos escorpiões? E João Alfonsus: – Para o gasto. (REBELO, 1944, p. 140)

A memória gastronômica e a anedota revelam um interlocutor provinciano, lírico e sarcástico. A descrição que a imprensa da época faz do mineiro é semelhante: a revista O Cruzeiro chama-o de ―ácido e sinuoso‖ (1935, p. 2). Por outro lado, os trechos de Suíte n.º 1 também revelam traços do narrador, confessadamente autobiográfico, interessado no registro afetivo-sensorial, que tem olhar idílico em relação aos que vivem na pacata Belo Horizonte, mas também compartilha o humor cáustico daqueles moradores, pois seleciona das conversas travadas justamente a que coloca em xeque a cidade civilizada, repleta de animais indesejados. Ou seja, o carioca observa no mineiro características que lhe são bem conhecidas, próprias. Comparação semelhante é feita, na mesma época, por Wilson Lousada, ao elogiar Marques Rebelo, que teria

o mesmo bom gosto, a mesma sobriedade, a mesma discrição dos escritores mineiros. Porém menos distante do leitor comum e mais próximo de suas paixões, de sua vida cotidiana e prosaica. Extraordinariamente pessimista, de um humor amargo, e ao mesmo tempo dotado de um lirismo excepcional que é o maior contraste da sua desilusão. (1941, p. 284)

Pouco antes, os contistas haviam se encontrado em um almoço oferecido ao carioca pela comunidade intelectual belorizontina no Minas Tênis Club, evento noticiado pela revista Dom Casmurro (cf. ―Um almoço a Marques Rebelo‖, 08/07/1939, p. 1). Em outro artigo da mesma revista, ―Minas e o momento literário‖, Rebelo sugere contato prévio com textos de Alphonsus, antes de sua publicação, ao parabenizar o ―grande romancista que não parando em 242

Totônio Pacheco em breves dias dará Rola-Moça, onde suas qualidades vêm intensamente apuradas‖ (1937, p. 8). Muitos anos depois, na década de 1960, Marques ratifica sua aposta quando seleciona ―Galinha cega‖ para a Antologia escolar brasileira (1967). A simpatia e admiração explícitas de Rebelo não são proporcionais ao único registro que encontramos de uma interlocução partindo de Alphonsus, a protocolar dedicatória abaixo, fotografada de um site de leilão de livros raros:

Ilustração n.º 8 – Dedicatória de Alphonsus a Rebelo na folha de rosto de A pesca da baleia (1941)

Na entrevista publicada no Suplemento Literário de A Manhã, sabemos que João esteve no Rio em 1942 (cf. ALPHONSUS, 1942b, p. 3), e é possível que ele e Marques tenham se encontrado na ocasião. É indiscutível a maior movimentação do escritor carioca em relação ao mineiro, cujas viagens se restringiam, até onde nossas pesquisas puderam averiguar, a exigências do trabalho e às relações familiares. Dutra e Cunha afirmam que o comportamente é tipicamente mineiro: ―A clausura geográfica, de tamanho efeito na evolução econômico-política de Minas, ao lado do subjetivismo com que essa e outras circunstâncias marcaram o temperamento do povo mineiro, explicam em boa parte a tendência universalista, o espírito clássico, que mais de um estudioso já assinalou na cultura mineira‖ (1956, p. 14). Logo, nada indica que os escritores desta tese tenham travado demorado convívio; todavia, dividiram vários amigos, uma vez integrantes das rodas de intelectuais que discutiam a renovação da literatura brasileira. Nesse sentido, era de se esperar que compartilhassem alguns posicionamentos. De fato, suas obras expressam confluências significativas, seja pela seleção temática, pelo tom narrativo e pela escolha dos protagonistas, seja pelas estratégias formais escolhidas por ambos, a começar da passagem do poema à prosa. Como indicamos nos capítulos 3 e 4, os primeiros versos de João Alphonsus e de Marques então Rebello foram inspirados, explicitamente, nos de Ronald de Carvalho, ícone dos modernistas brasileiros, ―espírito excessivamente lúcido‖ (ANDRADE, 1927, p. 4) para a época, de acordo com Rodrigo M. F. de Andrade, em artigo de O Jornal sobre as tendências 243

do movimento no país. João não só absorveu o simbolismo de Alphonsus de Guimaraens e de outros mestres, mas expandiu seus horizontes poéticos com a descoberta dos Epigramas irônicos e sentimentais (1922). E o colega carioca também seguiu as instruções ali contidas, como ―Cria o teu ritmo livremente! // Cria o teu ritmo e criarás o mundo!‖ (CARVALHO, apud ANDRADE, 1927, p. 4), afastando-se da métrica parnasiana, do ―automatismo do soneto e da chave de ouro‖ (ANDRADE, 1927, p. 4). No texto ―Feira-livre‖, da revista Beira- Mar, o escritor Paul Doré, horrorizado, conta que encontrou o jovem poeta no bonde carioca e que este lhe teria dito: ―Esse negócio de métrica é bobagem. Basta andar um pouco devagar ou um pouco mais depressa e apanhar a tônica no fim‖ (REBELLO, apud DORÉ, 1928, p. 44). Durante o decênio de 1920, Marques publicou pequenos poemas na imprensa, de maneira bem mais frequente do que João. Ambos percorreram caminho semelhante: começaram escrevendo epigramas, como os antigos gregos chamavam textos curtos em verso, não os reuniram em livro (embora, naquele momento, quisessem); em seguida, passaram para a prosa curta e, posteriormente, à longa. Os adjetivos que intitulam Epigramas irônicos e sentimentais acompanham não só os primeiros poemas dos rapazes: tal como o espírito moderno os estimulava, eles injetaram em seus textos prosaicos ingredientes pouco compatíveis numa primeira mirada, a sátira (―irônicos‖) e o lirismo (―sentimentais‖). Tomando de empréstimo o título de Ronald de Carvalho e esgarçando o sentido de ―epigramas‖, podemos afirmar que muitas vezes Alphonsus e Rebelo (mais aquele que este) coligaram, num mesmo conto, crítica e nostalgia. Dois textos ilustram bem esse processo: ―Godofredo e a virgem‖, do primeiro (cf. capítulo 3.2.1), e ―Na rua Dona Emerenciana‖, do segundo (cf. seção 4.2.2). Se o tom ácido dos contistas vem, especialmente, do contato com as vanguardas do início do século XX, o lirismo foi herdado, de um lado, da veia romântico-simbolista de Alphonsus, de outro, do romantismo costumbrista do qual Rebelo se fez profundo conhecedor. Outros poetas foram balizadores tanto da vida pessoal quanto da literária dos escritores. Se para João Alphonsus, no poema publicado na Fon-Fon e transcrito nesta tese (cf. capítulo 3.1), o pai era seu Poeta – palavra grafada em maiúscula para enaltecer a existência do progenitor e educador, cujo sangue pulsante e ritmo poético havia herdado –, para Marques Rebelo, outro escritor renomado merecia o título de Poeta: Manuel Bandeira. Apesar de não explicitar seu nome, o conto ―Depoimento simplório‖ (O) faz-lhe homenagem; na verdade, o pernambucano e o carioca confluem abundantemente em relação aos temas escolhidos e ao tom de seus textos, conforme observamos no capítulo anterior. 244

Alphonsus também era próximo de Bandeira, cuja obra analisou em mais de um ensaio crítico, sempre de maneira elogiosa. Entretanto, ainda na década de 1920, os dois travaram uma discussão veiculada pela Revista do Brasil (outros meios da época a replicaram, como O Jornal), que revelou disputas ideológicas dentro do movimento modernista. Mônica Velloso reserva um subcapítulo de História & Modernismo (2010), ―Polêmicas entre Manu e Alphonsus‖, para explicar a querela iniciada quando Bandeira, estabelecido no Rio de Janeiro, cidade que ditava a moda também literária, escreveu crítica negativa aos poemas do mineiro Austen Amaro (1901-1991), chamando-o de ―ridículo sublime‖ devido à publicação de Juiz de Fora, poema lírico (1926). Na época, João Alphonsus, que integrava o grupo editorial de A Revista, ―já se distinguia no seio de sua geração e era reconhecido como uma das lideranças‖ (VELLOSO, 2010b, 64), reagiu, garantindo que a poesia do conterrâneo (e amigo (cf. ALPHONSUS, 1942b, p. 10)), preocupada com o ―trabalho de construção‖, estava afinada ao conjunto do movimento modernista. Além disso, questionou ironicamente por que as palavras desusadas de Amaro chocavam Bandeira enquanto outras de Mário de Andrade, em Losango Caqui, igualmente estranhas, tinham sido elogiadas. Dessa maneira, apontava para a falta de critério analítico do poeta pernambucano, que empregaria o mesmo argumento para incensar obras de intelectuais famosos e criticar textos de calouros sem projeção. Como Bandeira não gostava de discussões públicas, e Alphonsus sabia que o grupo mineiro era menos influente do que o carioca e que precisava de apoio, os escritores decidiram não acalorar o embate e desculparam-se. A publicação das poesias completas de Alphonsus de Guimaraens, em 1938, organizada pelos dois, e as cartas que João e Manuel trocaram ao longo das décadas seguintes não deixam dúvida de que aquela discussão não havia perturbado a amizade: em uma das últimas missivas, em 1941, há uma ―confissão de ternura filial‖ de Alphonsus (cf. 1955b, p. 21). No entanto, a polêmica ilustra a dependência, não tanto intelectual, mas política, daqueles que viviam em cidades periféricas e os delicados laços de coesão dos grupos modernistas:

Tal discussão ia além de uma rixa entre desafetos: envolveu disputas relativas à conformação do campo intelectual, das artes e da vida política. A definição do que era ―ser moderno‖ e ―ser brasileiro‖ incluía acirrada disputa interna entre os intelectuais. A invenção de uma identidade nacional pressupõe sempre um campo de memórias em disputa. (VELLOSO, 2010b, p. 65)

João Alphonsus se envolveu em outras discussões de pouca repercussão (cf. o artigo ―Língua brasileira‖, no Diário de Minas, 1926), sempre por meio de ensaios críticos. Por sua 245

vez, Marques Rebelo protagonizou inúmeras controvérsias, a ponto de Carlos Drummond, em crônica escrita por ocasião da morte do amigo, confessar que o carioca era um ―diabo miudinho, de língua solta e coração escondido. Falava o que não devia, para fazer rir e rir ele mesmo do riso que provocava, sem maldade‖ (apud TRIGO, 1996, p. 22). Apesar das dificuldades enfrentadas, os contistas receberam em vida alguns louros, como menções elogiosas em jornais e revistas, prêmios acadêmicos de respeitadas instituições brasileiras e eleições para tradicionais academias. Ambos ocuparam a cadeira de número 9: Alphonsus, na Academia Mineira de Letras (1943-1944), e Rebelo, na Academia Brasileira de Letras (1965-1973). Além disso, suas obras foram transpostas para a televisão. Totônio Pacheco (1934), romance do mineiro, foi filmado pela TV Tupi de São Paulo na década de 1960; as gravações foram registradas pela revista O Cruzeiro, que ofereceu aos leitores várias fotos (cf. ―Totônio Pacheco na televisão‖, 1960, p. 94). Mais recentemente, em 2007, o conto ―Oxicianureto de mercúrio‖ ganhou uma versão de curta-metragem por André Carrera, tendo ganhado prêmios como o da Mostra Curta Independente. A lista dos textos de Rebelo cinematografados é bem mais longa, conforme mencionamos no capítulo 4. Parte da intelectualidade brasileira aplaudiu as novas possibilidades do conto, dentre eles Edgard Cavalheiro, para quem ―nunca o gênero foi rico e pródigo de surpresas como no decênio que vai de 1920 a 1930‖ (1954, p. 38), entretanto a massa do público leitor não aderiu à nova safra. Alcântara Machado valorizava sua geração justamente pela coragem de inovar sabendo que não ganharia aprovação consensual nem imediata. O espaço dedicado aos dois autores centrais desta tese na História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, ilustra o relevo dado às suas obras no panorama artístico nacional: ambos arrolados no capítulo sobre o Modernismo, enquanto Marques Rebelo ganha três páginas de apresentação e análise, João Alphonsus preenche três linhas, dentre as quais, uma afirma que ele está ―na melhor linha de Mário de Andrade‖ (1972, p. 472), ou seja, justifica sua presença ali graças à semelhança com o modelo paulista. Embora até hoje o volume de estudos sobre o carioca seja muito maior, Rafael Souza e Renata Scaramella sublinham o apagamento de Marques Rebelo; o primeiro justifica seu esquecimento por não ter se filiado exclusivamente nem à tradição acadêmica nem ao modernismo (cf. SOUZA, 2012, p. 8-9); já a segunda, no título de seu trabalho, chama o contista de ―modernista esquecido‖ (cf. SCARAMELLA, 2007). Acreditamos que, nos últimos anos, a obra de Rebelo vem sendo redescoberta e revalorizada, o que, certamente, tem a ver com a republicação dos Contos reunidos (2002) pela Nova Fronteira (a última edição era a da José Olympio, da década de 1970). Além de uma das nove bibliotecas públicas 246

municipais levarem seu nome (Biblioteca Popular da Tijuca – Marques Rebelo), por ocasião do centenário de seu nascimento, em 2007, houve encontros e publicações direcionadas ao estudo de sua obra. Situação bem mais desafortunada é a da obra de João Alphonsus – e é o próprio escritor quem nos consola: ―Se lembre do ponto a que é preciso chegar para provocar a apreciação de toda ou quase toda a gente‖ (2002, p. 589). A frase está na ―Resposta aberta pro Mário de Andrade‖, publicada no Diário de Minas, em 1926, e se refere ao desejo manifestado pelo paulista, em carta anterior também veiculada pelo mesmo jornal, de mais amigos e maior aceitação. Além da sugestão do mineiro, acreditamos que um dos motivos de sua obra ser pouco estudada seja a dificuldade de encontrá-la: a última edição de Contos e novelas, parceria da Imago com o Instituto Nacional do Livro, é de 1976. Depois disso, seus textos aparecem dispersos em antologias e, somente em 2001, a Global publicou uma seleção (Melhores contos – João Alphonsus), organizada pelo sobrinho do contista, o poeta Afonso Henriques Neto. Logo em seguida, a Editora DCL lançou Contos de João Alphonsus (2003), com cinco textos ilustrados por Rogério Coelho, e, in separato, Galinha cega (2003), ilustrado por Nelson Cruz – os dois títulos em coleção infantojuvenil. A categorização pode ser explicada pelo afã do mercado editorial em publicar textos para a faixa etária (11 a 13 anos) que, segundo os gráficos ―Gêneros que costuma ler: por escolaridade‖ e ―Gêneros que costuma ler: por faixa etária‖, do Instituto Pró-Livro e do Ibope Inteligência (2016, p. 30-31), é a que mais lê contos no Brasil. As escolhas temáticas feitas por João Alphonsus e Marques Rebelo podem ilustrar a primeira ―linha de força‖ do moderno conto brasileiro, denominada por Luiz Costa Lima de ―descoberta das situações coloquiais‖ (1982, p. 175), que teria surgido a partir da década de 1920. O pesquisador, no ensaio ―O conto na modernidade brasileira‖, não alude a Marques Rebelo, mas enquadra Galinha cega nessa vertente, afirmando a aderência de João Alphonsus ao modernismo devido à sua abordagem lírica e humorística do cotidiano (cf. LIMA, 1982, p. 176). Uma década antes, em verbete sobre o conto, Massaud Moisés já relacionava a presença de fatos ordinários ao potencial poético do gênero: ―Perpassa o conto uma vibração poética que advém de o ficcionista nele detectar um aspecto do cotidiano, portador de emoção ou de sentimento. Evidente no tom da narrativa, a poesia emana da impressão que aquela deixa no espírito do leitor‖ (1978, p. 103). Característica do conto moderno ou do gênero como um todo, a abordagem de situações corriqueiras faz parte da proposta estética dos contistas analisados nesta tese, empenhados em diminuir a distância entre obra e leitor, fosso estimulado pela tradição 247

acadêmica e conservadora da sua época, que interpunha entre eles um ―artificialismo postiço‖ (LUCAS, 1989, p. 100). Entretanto, o emprego de paisagens, assuntos e personagens do dia a dia mineiro e carioca se mostra complexo, não um mero registro histórico, nem uma anotação apenas anedótica; as histórias trazem personagens reflexivos e suscitam questionamentos. Na década de 1940, João Alphonsus, em entrevista a Edgard Cavalheiro, relacionava a sondagem do cotidiano feita pela literatura modernista à busca e expressão da identidade nacional (cf. ALPHONSUS, 1965, p. 13). Nesse sentido, entendemos a explicação de Cleusa Passos para o conto moderno, texto em que ―o evento [narrado] deixa transparecer algo de imemorial e permanente que se vislumbra num momento, contrastando com nossa realidade comezinha, urbana e leiga‖ (2001, p. 72). Assim, quando João e Marques selecionam cenas em geral vividas em cidades modernizadas, cuja proposta de progresso passa pela velocidade e pelo consumo, de alguma maneira, eles suspendem o tempo cronológico para levantar questões sobre urbanização, liberdade versus aprisionamento, justiça, desejo e morte. Em relação a referências datadas, mais abundantes na obra de Rebelo do que na de Alphonsus, encontramos nos contos trechos de músicas, nomes de artistas, descrições de produtos, que registram, sempre parcialmente, a história daquelas décadas e o ponto de vista dos contistas, em geral irônico, sobre o frenesi da população urbana com aqueles itens, muitos vindos do exterior, em especial dos Estados Unidos. Assim, os escritores revelam apurado espírito crítico, uma das características definidoras do conto moderno, de acordo com Passos: ―Há uma espécie de busca incansável para des/velar as armadilhas das verdades assentes.‖ (2001, p. 73, grifo da autora), como apontamos em ―Felicidade‖ (O), do carioca, e ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖ (GC), do mineiro, coincidentemente dois textos cujos protagonistas deambulam pela cidade. Nas décadas iniciais do século XX, era incontornável para um autor que quisesse tratar dos dispositivos modernizadores de seu tempo a discussão sobre os meios de comunicação de massa. Assim empenhados, Alphonsus e Rebelo reservaram lugar especial ao jornal, ao rádio e ao cinema em seus contos. Durante a Primeira Guerra Mundial, devido à demanda por notícias, as pesquisas sobre radiotransmissão se intensificaram no país, e o jornal perdeu espaço para o rádio, que se firmou e alcançou a população logo nas décadas seguintes, conseguindo operar uma revolução nos costumes e mentalidades (cf. SEVCENKO, 1998, p. 587). Nesse sentido, é significativo o conto de João Alphonsus ―O guerreiro‖ (EN) (cf. capítulo 3.2.1), em que o protagonista se reúne com outros que não tinham o caro aparelho 248

para ouvir os informes todos os dias no bar; tal audição detona uma crise existencial no indivíduo. No Brasil, na mesma década em que foram publicadas importantes contribuições para os estudos sobre a cultura brasileira, como Casa-Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, vivia-se o apogeu do rádio, pelo qual o poder governamental se articulou direta e explicitamente, haja vista os programas getulistas, que ―descobriram no rádio a sua pedra filosofal, capaz de transformar a massa amorfa de ouvintes na força agregada da paixão política‖ (SEVCENKO, 1998, p. 587). É esse o entusiasmo de alguns personagens de Marques Rebelo, que ligam o rádio porque reconhecem vir dali a voz da verdade, conforme lemos na segunda das ―Cenas da vida carioca‖ (S) (cf. capítulo 4.2.2). Pelas ondas do rádio também chegam as tendências musicais que embalam os contos de João e Marques. O primeiro aproveitou vários ritmos da moda para acalentar seus personagens confusos, quase sempre contrastando estilos velozes, alegres e sensuais com indivíduos desencantados (cf. ―O homem na sombra ou a sombra no homem‖, analisado no capítulo 3.2.3). O segundo, além das muitas referências pulverizadas em sua obra, dedica um conto, ―Episódio coreográfico‖ (S), para sublinhar a alienação de alguns em relação à moda vinda dos Estados Unidos. No texto, uma mulher de meia-idade pede ao amigo adolescente do filho que a ensine a dançar o one-step, coreografia da moda, visto que só iria ao baile do bairro uma vez iniciada na dança: a cena é vexatória, pois, de acordo com o rapazinho, ―ela dançou o que bem entendeu como sendo one-step. E se houve um aluno, este fui eu. Aprendi que caridade e cerveja eliminam o ridículo, o que é moralidade e alta moralidade‖ (REBELO, 2002a, p. 259). O contista carioca estava mais preocupado com a valorização dos ritmos nacionais, como já indicamos no capítulo 4, e faz com que o narrador moralista reprove a viúva, chamando-a de gorda, desajeitada e alienada, ―furor do chique sapatal‖ (REBELO, 2002a, p. 257). Se Rebelo não se curva à música americana, não podemos dizer que não fosse encantado pelo cinema hollywoodiano, como também Alphonsus, o que não significa que não fizessem numerosas ressalvas a ele. Ambos registraram, cada qual à sua maneira, o impacto das canções e dos filmes norte-americanos no público jovem brasileiro (cf. ―Vejo a lua no céu‖ (T), analisado no capítulo 4.2.1). Muitos contos do carioca trazem cenas em que os protagonistas assistem aos artistas preferidos e se espelham no que acontece na telona, conforme vimos em ―Na tormenta‖ (O) (cf. capítulo 4.2.1). O historiador Nicolau Sevcenko explica: ―Era o período da grande recessão desencadeada pela crise de 1929. O que as pessoas 249

queriam do cinema eram as mais delirantes fantasias, a certeza de que o prazer existia e era possível desejá-lo‖ (1998, p. 606). Na época, a indústria cinematográfica hollywoodiana monopolizou a produção mundial do setor e disseminou o ―american way of life‖: ―Nunca um único sistema cultural teve tanto impacto e exerceu efeito tão profundo na mudança do comportamento e dos padrões de gosto e consumo de populações por todo o mundo, como o cinema de Hollywood em seu apogeu‖ (SEVCENKO, 2001, p. 602). Marques Rebelo conhecia a cultura norte-americana; havia escrito tese sobre o escritor Bret Harte (1836-1902), mais apreciado por seus contos cujos personagens românticos são mineiros empenhados na Corrida do Ouro da Califórnia. Por sua vez, João Alphonsus também se ligava à literatura dos Estados Unidos, ao menos era herdeiro da tradição de Edgar Allan Poe, afinidade explícita em ―Sardanapalo‖ (PB) (cf. capítulo 3.2.4). Entretanto, os jovens escritores daquela geração, mais do que pelas letras americanas, se interessavam pelas propostas artísticas de além-mar, por mais que estabelecessem uma relação ambígua de recusa e admiração com a Europa (cf. LUCAS, 1989, p. 97). Em A descoberta da América: o lugar dos EUA no Modernismo brasileiro, Isabel Lustosa estranha a falta de contato entre os escritores dos dois países na época: ―É curioso que o Modernismo brasileiro não tenha adotado como signo de modernidade nosso antípoda no continente americano, os Estados Unidos da América‖, mas, sim, ―na Europa as respostas para as questões culturais brasileiras‖ (1995, p. 5). A pesquisadora investiga por que, num momento em que os Estados Unidos, em especial com o cinema, alcançam as massas por todo o mundo, não há uma relação mais intensa entre americanos e brasileiros no campo literário. Em comum, Alphonsus e Rebelo estavam atentos às discussões travadas sobre a realidade brasileira. Como Antonio Candido explica, a década de 1930 é marcada pela consciência do subdesenvolvimento, que denuncia a ―realidade dos solos pobres, das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante‖ (2011, p. 170). É nesse sentido que Ivan Marques os associa:

Também é forte o diálogo de João Alphonsus com a dura ―poesia dos bairros‖ composta por Marques Rebelo, cheia de personagens pobres e malogrados, ―sem direito a um destino‖. (...) podemos identificar a mesma tendência para veicular, com esse deslocamento para o arrabalde, a nostalgia do mundo rural, primitivo e, supostamente, mais feliz. A consciência de que os habitantes do subúrbio pré- industrial são as vítimas da modernização também desperta entre eles, desde o começo, a ―culpa de classe‖ diante da miséria que mais tarde fará estragos. (2011, p. 169)

Monica Velloso recorda o alerta do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918) sobre os limites da cultura centrada no intelecto e na lógica, que pouco promove a integração 250

e as particularidades humanas. Walter Benjamin (1892-1940) também contrapõe o particular sensível, simbolizado pela miniatura, ao monumentalismo estimulado por várias sociedades modernas que, visando a uma nova espécie de ilustração, provocam ruína (cf. VELLOSO, 2010a, p. 53). De maneira semelhante, as crônicas de Marques Rebelo denunciavam que a modernidade representava ―a transformação grosseira e desnecessária da fisionomia da cidade‖ (REBELO, apud GOMES, 2008, p. 94). Simmel e Benjamin rejeitaram os mecanismos homogeneizadores impostos pela cultura da modernidade, como a pontualidade valorizada pela Europa civilizada. De acordo com esses intelectuais, a imposição de um ritmo calculado ―implicaria a hipertrofia da cultura objetiva e a atrofia da individual, levando ao extremo as atitudes do indivíduo‖ (VELLOSO, 2010a, p. 53). Nesse sentido, sete contos de Marques Rebelo discutem a angustiosa invenção humana da marcação do tempo, inserindo nas histórias diversos tipos de relógios, em geral metonímias de seus donos antiquados. O personagem mais expressivo, nesse caso, é Luís, de ―Na tormenta‖ (O), no qual as digressões sobre o tempo são explicitamente críticas (cf. capítulo 4.2.1). Por sua vez, os contos de João Alphonsus simplesmente ignoram a existência do relógio; a cena mais ilustrativa é a do protagonista de ―O imemorial apelo‖ (PB), que passa a noite em flânerie pelas ruas do interior e só lembra de voltar para o hotel graças ao canto do galo, e não devido aos ponteiros das horas (cf. capítulo 3.2.3). Alguns textos criticam também o passadismo literário predominante no Brasil do início do século XX, como conferimos em ―Morte burocrática‖ (PB), de João Alphonsus (cf. capítulo 3.2.2), e ―Depoimento simplório‖ (O), de Marques Rebelo (cf. capítulo 4.2.2). Vale lembrar a entrevista que o carioca concedeu ao redator da Vida literária, em que trata da rivalidade entre escritores estreantes e veteranos renomados; na época, Rebelo já fazia parte do grupo mais experiente, mas ainda tinha viva a recordação das críticas sofridas e sabia expressar bem a cena:

Estamos nas vésperas de uma terrível batalha literária. Irá correr muito sangue poético e romântico. Ai daqueles que já são anêmicos! Cujo corado literário não passa de um desbotado ruge de elogios de panelinha e de conveniência, quando não de absoluta estupidez. Também é da natural ordem das coisas que haja reação. (Não sei com que nome pejorativo poderão ser batizados os ―futuristas‖ que vão surgir). Temos, nós os heróis! que julgamo-nos inatacáveis, fabulosos, os plus-ultra da criação artística, de pegar bem prosaicamente as nossa pedras defensivas, e atirar neles também – nos ―meninos‖. Mas seremos derrotados por fim, como é da história da literatura, já que não se pode impunemente dizer eternamente as mesmas coisas. Alguns mais medrosos irão se refugiar na fortaleza de papelão da Academia. Poucos, porque a fortaleza é pequena. Naturalmente muita glória – muitíssima! – sucumbirá ao golpe das rijas pedras novas, por ser glória feita daquele pobre vidro da moda e do oportunismo, bem pouco resistente a pancadas. Só aqueles, ó triste aviso!, que são 251

feitos duma matéria mais nobre, ficarão dormindo gloriosamente na Legião do Ex- combatentes, mesmo que o brilho de sua farda seja perturbado ou diminuído, em plena luta, por algumas pedradas mais cegas ou mais iconoclastas. (REBELO, 1946, p. 1)

O cenário pintado por Rebelo é complexo: não existem dois lados apenas, o dos ―rapazes desatinados‖ e o dos velhacos empoeirados. Se no grupo dos novos ―futuristas‖ – já considerados vencedores, pois jovens cheios de energia iconoclasta – há certa homogeneidade, no grupo dos veteranos – chamados ironicamente de ―heróis‖– há, pelo menos, três perfis: o dos anêmicos estúpidos e oportunistas, que perecerão ao primeiro golpe dos novatos; o dos medrosos, que se abrigarão na ABL (curiosamente, Rebelo se torna imortal 24 anos depois); e o dos nobres, cuja carreira não sofreria abalos porque gozariam merecidamente de prestígio. O comentário do escritor foi considerado tão sintetizador que José Condé o repetiu, no Correio da Manhã, em ―Balanço de 1946‖. O espírito crítico dos autores também é revelado na seleção dos personagens de seus contos: rapazes infelizes e sem perspectivas, adultos gananciosos e velhacos, moças oprimidas, figuras justiceiras alucinadas. Na cidade objetivada, seres e construções tendem à vertigem e à catástrofe, e os indivíduos não se sentem plenamente integrados ao ambiente onde estão. Nos textos de Rebelo, encena-se a preguiça dos jovens cariocas, que passam o dia presos a recordações melancólicas. Outros contextos são postos em xeque: comportamentos antiquados, atos injustos, intolerâncias culturais, preconceitos sociais e outras formas de opressão. Alphonsus prefere chamar de ―tédio‖ o mal da juventude de sua época, causado por situações externas e explicáveis, como a cupidez e o desamor, e por questões internas e misteriosas, como a ilogicidade da vida. A afirmação de Luís Bueno a respeito da prosa longa da década de 1930 cabe perfeitamente aos protagonistas dos contos aqui analisados: ―A distância, apesar da proximidade, entre os modernistas e os romancistas de 30; a proximidade, apesar da distância, entre ‗sociais‘ e ‗intimistas‘: ambas as coisas podem ser mais bem sentidas se projetadas numa figura a que o romance de 30 dedicou toda a sua energia de criação, o fracassado‖ (2006, p. 75). O professor retoma a análise feita por Mário de Andrade, ainda na década de 1940, para quem o fracassado era figura central da literatura da época:

É estranho como está se fixando no romance nacional a figura do fracassado. Bem, entenda-se: pra que haja drama, pra que haja romance, há sempre que estudar qualquer fracasso, um amor, uma terra, uma luta social, um ser que faliu. Mas o que está se sistematizando, em nossa literatura, como talvez péssimo sintoma psicológico nacional, absolutamente não é isso. (...) Mas em nossa novelística (...) o que está se fixando não é o fracasso proveniente de forças em luta, mas a descrição do ser incapacitado para viver, o indivíduo desfibrado, incompetente, que não opõe força pessoa nenhuma, nenhum elemento de caráter, contra as forças da vida, mas antes se 252

entrega sem quê nem porquê à sua própria insolução. Será esta, por acaso, a profecia de uma nacionalidade desarmada para viver?... (ANDRADE, apud BUENO, 2006, p. 75)

Como muitos prosadores da época, João e Marques selecionaram personagens jovens na maioria das vezes acomodados e improdutivos. Dutra e Cunha ratificam a ideia de que havia, na ficção brasileira do decênio de 1930, um ―estado de espírito geral (...) para os temas de infelicidade e desânimo‖ (1956, p. 106). Em geral, a instância narrativa não culpa os protagonistas, mas confere-lhes um olhar benevolente, abrindo espaço para suas questões ou transformando-as em pequenas anedotas, sem deixar de lançar crítica aguda sobre o comportamento inerte. Essa atitude dos narradores talvez se deva à desconfiança dos escritores de que os leitores dos contos possivelmente possuam o mesmo perfil daqueles personagens preguiçosos e entediados. Além dos pontos em contato acima apresentados, João Alphonsus e Marques Rebelo assumiram posicionamentos particulares, tratados nos capítulos anteriores. O mineiro reincide no animal-personagem como símbolo de humanização. O carioca trata a liberdade como valor humano fundamental. Além disso, a noite é cenário e metáfora recorrentemente empregada por João, uma vez que propícia a revelações misteriosas, encontros imprevisíveis, fortes sensações; já para Marques, cenário e metáfora ideais é a tarde, cuja paisagem luminosa traz à tona tanto a beleza quanto a pachorra humana. Por isso, os comentários de Mário de Andrade e de José Paulo Paes sobre a ficção de Rebelo, ―nosso criador mais pessimista, uma personalidade sofrida e trágica‖ (ANDRADE, apud TRIGO, 1996, p. 42) movido pelo ―desencanto do mundo‖ (PAES, apud TRIGO, 1996, p. 44), para nós, combinam mais com a expressão ficcional de Alphonsus. Cada qual com sua intensidade e estilo, João e Marques desenvolveram o ―código novo‖ (BOSI, 1972, p. 373) fomentado pelas vanguardas, aqui divulgado em especial pelos adeptos do modernismo nas décadas de 1920 e 1930. Da empresa modernista da valorização da cultura e da língua brasileira, o carioca desenvolveu a utilização de expressões populares; seu virtuosismo é observado e aplaudido por muitos críticos, sobretudo na construção dos diálogos, devido à escolha lexical e ao recorte feito da linguagem cotidiana. Já o mineiro, muito mais engajado no movimento, buscou uma expressão dissociada da usada convencionalmente e aventurou-se em metáforas não usuais e nas experimentações sintáticas; explorou a frase vibrante especialmente nos dois primeiros livros. Entretanto, Costa Lima sublinha a ―marcação teatral‖ dos contos de João, antiga estratégia baseada na oralidade, empregada, por exemplo, por Afonso Arinos (cf. LIMA, 253

1982, p. 176). Para explicar sua teoria, o crítico se reporta às falas das personagens de ―Oxicianureto de Mercúrio‖ (GC) (cf. capítulo 3.2.1), nas quais haveria uso da oralidade desgarrada do cotidiano, a ―empostação da oralidade‖ (LIMA, 1982, p. 176). Tal emprego da fala cotidiana seria diferente daquele realizado pelos parnasianos (que executavam uma ―oralidade doutoral‖), mas também não se assemelhava ao feito por Mário de Andrade, considerado modelo modernista para Lima, uma vez que, em seus contos, o banal era conduzido ―ao leito multiforme do cotidiano de que provém, como maneira e estímulo para melhor penetrar neste‖ (LIMA, 1982, p. 176-177). Conquanto reconheça traços modernistas em Galinha cega, para o professor, sua ―teatralidade pretende converter o ‗causo‘ em acontecimento da língua‖, e o banal singularizado provoca uma oralidade ―autoirônica‖ (LIMA, 1982, p. 176-177). Assim, a partir de um conto específico (o mineiro emprega técnica explicitamente teatral apenas neste conto), Lima classifica a obra de João Alphonsus, colocando-a numa posição intermediária (quase um pré-modernismo). Se, por um lado, a discussão a respeito da empostação da oralidade, embora confusa, seja coerente com a época (os modernistas queriam uma língua brasileira), por outro, o corpus limitado de Lima torna sua análise da obra de Alphonsus questionável. Em relação à estrutura narrativa, João e Marques empregaram variadas técnicas de anacronia, entendendo o termo conforme a explicação de Reis e Lopes: ―todo o tipo de alteração da ordem dos eventos da história, quando da sua representação pelo discurso‖ (2007, p. 28). Os dicionaristas retomam a teoria de G. Genette (1972), de acordo com a qual o recurso narrativo ancestral e recorrente ―patenteia a capacidade do narrador para submeter o fluir do tempo diegético a critérios particulares de organização discursiva, subvertendo a sua cronologia, por antecipação (prolepse) ou por recuo (analepse)‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 28). Nesse sentido, as estratégias anacrônicas revelam que os contistas queriam realçar o poder da instância narrativa, o que ocorre com o uso da introdução da história in media res, que provoca a curiosidade do leitor e ressalta a fabulação narrativa, visto que toda operação metalinguística sublinha que a história é apenas uma história, como notamos em ―Oscarina‖ (O) (cf. capítulo 4.2.1) e ―Oxicianureto de Mercúrio‖ (GC) (cf. capítulo 3.2.1). Mais recorrente nos contos é a estratégia da analepse, típica da ficção psicológica e introspectiva, conforme aponta Reis e Lopes (2007), responsável por registrar a ativação da memória de um personagem, recuperar eventos necessários para a construção coerente do enredo ou demonstrar teses. Além disso, o flashback sublinha ―as prerrogativas artísticas do escritor, entidade com legitimidade para alterar a ordem temporal dos fatos‖ (REIS; LOPES, 2007, p. 199), como já apontava Aristóteles, quando diferenciava esta função da do 254

historiador, mais preocupado com a narração cronológica linear. João Alphonsus emprega o recurso com parcimônia, mas um momento é notável: quando recupera a memória do protagonista de ―Noite do conselheiro‖ (EN) (cf. capítulo 3.2.3). A baixa frequência talvez se justifique pelo afastamento proposital do autor de técnicas que envolvam relações lógicas de causa e consequência. Já Marques Rebelo emprega-o frequentemente, como percebemos nos contos analisados no capítulo 4.2.1 e no memorialístico Três caminhos. Como se vê, ser contista moderno não consistia, para Alphonsus e Rebelo, em desprezar estratégias narrativas convencionais. Seus contos, em geral lineares, apresentam início, meio e fim demarcados; alguns fogem a esse princípio não pela ausência de um dos componentes macronarrativos, mas por outras questões estruturais. Por exemplo, alguns apresentam circularidade, acompanhada da deambulação dos personagens, como lemos em ―O imemorial apelo‖ (PB) (cf. capítulo 3.2.3) e ―Em maio‖ (O) (cf. capítulo 4.2.4). Essas narrativas se aproximam ao ―conto de atmosfera‖, tal como Elódia Xavier o descreve no capítulo introdutório de O conto brasileiro e sua trajetória: a modalidade urbana dos anos 20 aos anos 70:

Com a evolução da narrativa, o conto literário foi cada vez mais se afastando da modalidade oral/popular, de caráter nitidamente anedótico. A partir sobretudo do Modernismo (...) o conto se torna permeável a outras formas de expressão, se enriquece assimilando técnicas, recursos específicos de outros gêneros, sem contudo deixar de ser conto. (...) Com a ruptura das rígidas fronteiras entre prosa e poesia, o conto adquire matizes, tonalidades poéticas, minimizando o enredo; é o chamado ―conto de atmosfera‖. (1987, p. 26)

Da lição de Edgar Allan Poe, nossos contistas cultivaram o destaque ao desfecho, interrompendo-o bruscamente (cf. ―Stela me abriu a porta‖ (S), de Rebelo) ou impactando com surpresas (cf. ―O mensageiro‖ (EN), de Alphonsus). Entretanto, muitos textos do mineiro não buscam o efeito singular do conto de enredo, pois, para expressar uma visão de mundo desencantada devido aos absurdos humanos, recorrem à quebra da causalidade. Embora o contista homenageie explicitamente o americano, não compartilha as mesmas opiniões a respeito da arquitetura do enredo nem as executa; em especial em Galinha cega, problematiza a construção lógica, uma vez que os acontecimentos do conto não convergem para um desfecho justificável. Daí as histórias em que as situações dramáticas, depois do clímax, não se resolvem racionalmente, mas descambam em cenas anedóticas. Já nos dois livros seguintes, os personagens ganham fins circulares ou trágicos. No capítulo 3, aproximamos o ponto de vista e a prática ficcional de João Alphonsus – o conflito entre a busca pelo significado da vida e a impossibilidade de encontrá-lo – ao ―absurdismo‖ anunciado pelo filósofo dinamarquês Kierkegaard, em especial em O desespero humano (1849), e amplamente 255

desenvolvido por Albert Camus, cuja obra muito provavelmente o contista brasileiro não tenha conhecido. Essa é a visão de mundo e de arte que o narrador de João Alphonsus revela por meio de seus personagens, majoritariamente os marginalizados, prostitutas e desajustados, que recebem abordagem mais compreensiva e complacente, e menos tendenciosa e moralista, do que os de Marques Rebelo. Conforme apontamos em ―Oscarina‖ (O) e ―Felicidade‖ (O) (cf. capítulo 4.2.1), o narrador rebeliano, quando não deixa clara sua ironia, expressa ponto de vista semelhante ao da sociedade conservadora e preconceituosa. Renata Scaramella (2007) discute, na dissertação sobre Marafa (1935) e A estrela sobre (1939), o tratamento dado a esses personagens proscritos, chegando à conclusão de que, no primeiro romance, eles parecem ser castigados, visto que adoecem, enlouquecem ou morrem. Nesse sentido, se confirmaria a análise de Nelson Rodrigues Filho que, no ensaio ―O Rio de Marques Rebelo‖ (Revista Tempo Brasileiro, 1986), sublinha ―certo moralismo‖ de Rebelo. Todavia, no segundo livro, a protagonista Leniza recebe tratamento menos taxativo por parte do narrador (cf. SCARAMELLA, 2007, p. 68). A pesquisadora retoma a análise de Mário de Andrade, que reclama desses corretivos romanescos, ainda que o paulista não os detecte nos contos. Discordamos em parte do guia modernista, conforme análise já detalhada no capítulo 4, e acreditamos que nos contos tenha acontecido algo semelhante ao que Scaramella apontou em relação aos romances. Ao compararmos o tratamento dado às personagens femininas de ―Oscarina‖, de 1931, e ―Stela me abriu a porta‖, de 1942, apesar de o narrador replicar o machismo consolidado na sociedade brasileira, percebemos no conto mais recente valorização da inteligência feminina, captação de seus anseios e percepção de sua complexidade. Assim, há uma alteração de perspectiva acerca da mulher, de maneira semelhante à ocorrida com o malandro, conforme apontamos no capítulo 4.2.1, em relação a ―Retrato de rua‖. Nos anos subsequentes à Semana de 22, enquanto João Alphonsus aderia cada vez mais ao pensamento modernista, Marques Rebelo se aprofundava em textos oitocentistas, em especial nos do autor de Memórias de um sargento de milícias. Rafael Souza sublinha este momento como o ―marco que dividiria a vida literária de Marques Rebelo: a ‗descoberta‘ de Manuel Antônio de Almeida, aos dezessete anos de idade. Era o ano de 1924‖ (SOUZA, 2012, p. 6). Entendemos melhor o progressivo afastamento de Rebelo em relação ao modernismo por meio da descrição que ele faz da vida literária daquela década: Machado de Assis e Lima Barreto sofriam temporário apagamento, enquanto a fama de Olavo Bilac permanecia e crescia a de Monteiro Lobato, que ele chamava de ―Maupassant dos pobres‖, além das 256

muitas conferências literárias sobre o Pé, a Mão, a Luva, a Linha Reta, a Linguagem das Cores... Veio a Semana de Arte Moderna acabar com tais jogos florais e fiquei no sereno, batendo palmas. Crescido o movimento, foi um acordar de inteligências por esse Brasil afora. Algumas não eram tão grandes quanto imaginávamos, mas sempre será assim nos períodos de renovação (...). A Academia Brasileira de Letras, reduto da fossilização, servia de mira à juventude, afinal não tão iconoclasta. Atirei minhas flechas. Com Walter Benevides e Bastos Leite brilhei à frente de um jornalzinho quinzenal, que se apagou com seis meses – mais flechas perdidas. Comunicava-me com jovens de todos os cantos do país e quantas revistas! Acompanhei a rapaziada de Verde e tudo que sobrou da aventura foi a amizade de Francisco Inácio Peixoto e Guilhermino Cesar. Ah, gracioso período de tanta poesiazinha fulera! Por fim, desconfiei que a poesia não seria o meu forte e voltei à prosa, cujos ensaios rasgara. (REBELO, 1975, p. 17)

Em relação aos líderes modernistas, apesar de Rebelo travar contato amistoso com vários, não escondia suas críticas, pois

Entendia o novo contista que a verdadeira conduta estética não era negar sistematicamente, para tudo recriar sobre ruínas. Há trabalhos que só o tempo realiza pacientemente. Uma geração seria pouco para a eternidade da Arte. Discordava, pensando assim, de Oswald de Andrade, com seu Marco Zero negativista mas que tentava recriar o mundo dentro do limite estreito de sua existência de homem. Discordava da linguagem ―brasileira‖ pretendida por Mário de Andrade, figura de proa do modernismo, que viria a derrubar inapelavelmente a gramática portuguesa, permitindo daí maiores proezas literárias aos escritores nacionais. (ARAUJO, 1957, p. 11-12)

Bem diferente é o tom e o ponto de vista de Alphonsus em relação aos colegas, analisados com confiança, humor e ironia, chegando até a dar ―certa razão‖ a um crítico que chama A Revista de ―brotoeja literária‖ (ALPHONSUS, 1965, p. 11):

A poesia brasileira está mais um pouquinho no primitivismo do sr. Oswaldo de Andrade, bancando a Paulo Afonso de pequenos poemas ruins e bons, mais ruins do que bons. No desvairismo sistemático do sr. Mário de Andrade, adorável de fé e sinceridade, mas tão trabalhado de antigas tendências indesejáveis. Na amargura incoercível e admirável do sr. Manuel Bandeira, que continua doloroso mas sem ―o gosto cabotino da tristeza‖. Na melancolia orgânica do sr. Ribeiro Couto... Mas, puxa, chega de citar nomes, não chega? Parece que interrompi as citações de repentemente, sem querer. Não foi não. É que teria de entrar a falar de nomes mais novos, alguns pouco definidos e até meio desconhecidos. São os que quase escaparam ou escaparam mesmo ao supradito presbitismo. Estão, por isso, menos perigando de ficarem míopes. Mais aptos para fazerem poesia brasileira, poesia nem branca nem preta, mas misturada mestiça, ingenuidade e sensualismo que nem todas e quaisquer outras manifestações artísticas nossas. Qualidade ou defeito ou inferioridade, porém Brasil e acabou-se. Poesia que alguns já estão realizando admiravelmente. Outros ainda tentando. A força nova deles me dá uma bruta confiança no futuro. Futurismo... (ALPHONSUS, 1927, p. 4)

João Alphonsus comenta a cena literária da época, valorizando o que muitos chamavam de desorientação e rechaçando a estagnação precedente (cf. 1927, p. 4). Ele vê o modernismo como uma expansão do espírito moderno, uma ―afirmação vitoriosa‖ para combater o ―presbitismo intelectual‖. O contista nutria grandes esperanças em relação aos desdobramentos do movimento: ―Andaram apregoando em regabofes literários e pórticos de 257

livros que o Brasil está definitivamente descoberto. Mentira. Foi ontem que começou o descobrimento e se avistou o monte Paschoal, ainda mal-mal verdinho e redondinho na distância‖ (ALPHONSUS, 1927, p. 4). Alphonsus associa metaforicamente a literatura modernista à descoberta do Brasil, sugerindo que aquela levaria a esta. Relação semelhante é feita por Moraes ao explicar o viés filosófico-político do movimento, cioso da ―valorização do elemento nacional, da brasilidade como condição para a modernização da cultura do país‖ (1978, p. 73). O pesquisador, que divide o momento modernista em dois, indica que a tônica do último período (1924 a 1929) justamente foi a ―elaboração de uma cultura nacional‖ (MORAES, 1978, p. 49), enquanto o primeiro (1917 a 1924) havia sido mais iconoclasta, antipassadista. A discussão sobre a identidade nacional é característica indiscutível do modernismo brasileiro. Elódia Xavier sublinha que o nacionalismo, junto com o experimentalismo, foram os dois principais aspectos do movimento (cf. 1987, p. 49). Annateresa Fabris, na ―Apresentação da 2.ª edição‖, de Modernidade e modernismo no Brasil, acrescenta outras questões, mas sublinha a identitária como singular: ―o conceito de modernidade e suas convergências possíveis com o modernismo; a revisão da categoria do pré-modernismo; a cidade como locus da poética modernista; a imbricação entre nacionalismo e engajamento, ponto nodal para a compreensão de um dos aspectos específicos do caso brasileiro‖ (2010, p. 7). Por sua vez, Isabel Lustosa segue em direção semelhante à de Moraes ao indicar mudanças pessoais e cisões entre os intelectuais do grupo:

Quando o movimento modernista sofre a sua primeira guinada é para, a partir do olhar elaborado pelos padrões modernistas europeus, ver criticamente o Brasil. A volta para dentro de si do Modernismo brasileiro partiu da comprovação da necessidade de se definir uma identidade nacional. A partir daí o movimento fragmentou-se. Do problema da cultura nacional, muitos modernistas passaram ao problema nacional. A questão da cultura revelou-se como uma questão política. Mesmo Mário, que se dizia alheio a qualquer participação em movimentos políticos, fará da unidade cultural brasileira a bandeira que empunhará até o fim da vida. Oswald, na década de trinta, trocará a antropofagia pelo comunismo. Plínio Salgado, que pertencera à corrente verde-amarela do movimento, vestirá a camisa verde do integralismo. (LUSTOSA, 1995, p. 17)

A pesquisadora recorda também que muitos modernistas se beneficiaram da relação entre Getúlio e o movimento:

O governo Vargas, notadamente durante o Estado Novo, onde o Estado Nacional foi pensado com base nas teorias nacionalistas em voga, integrou muitos poetas e escritores egressos do Modernismo. O perfil do escritor no Estado Novo será definido por Vargas em seu discurso na Academia Brasileira de Letras. Acabara-se (...) a era do escritor isolado em sua torre de marfim. O escritor do Estado Novo 258

tinha o perfil do escritor modernista: radicado na terra, preocupado com as grandes questões nacionais, pensando o Brasil como unidade a ser preservada. (LUSTOSA, 1995, p. 22)

É conhecida a autocrítica que Mário de Andrade fez, na década de 1940, sobre sua geração; uma das questões era esta: ―para um número vasto de modernistas, o Brasil se tornou uma dádiva do céu. Um céu bastante governamental‖ (ANDRADE, apud LUSTOSA, 1995, p. 21). O paulista criticou a acomodação de vários escritores apadrinhados pelo Estado e ―seu meaculpa ainda se estenderia mais ao ressaltar o fato de que os modernistas, apesar de sua atualidade, nacionalidade e universalidade, não tinham contribuído em nada para o amerolhamento político-social do homem‖ (LUSTOSA, 1995, p. 21). Ironicamente, o conto de João Alphonsus ―Morte burocrática‖ (PB) (cf. capítulo 3.2.2) cria atmosfera semelhante ao imaginar uma cidade cuja literatura estivesse burocratizada, entretanto lá a figura do jovem sarcástico, desvinculado da estrutura antiquada, desejava ser porta-voz do modernismo. Embora o contista não aborde claramente questões políticas nacionais, em ―O guerreiro‖ (EN) e em ―Caracol‖ (EN), por exemplo, trata de temas-chave, como a guerra e a relação entre patrão e subalterno, respectivamente; os contextos sociais transtornam os protagonistas, sugerindo posturas políticas opressoras e maléficas. Sobre o ambíguo posicionamento político de Rebelo, já indicado no capítulo 4, há contos que sublinham quadros estáveis de famílias trabalhadoras e conservadoras bem ao gosto do Estado Novo (cf. ―Cenas da vida carioca‖ (S), analisadas no capítulo 4.2.2), como também textos que denunciam explicitamente injustiças sociais (cf. ―Onofre, o Terrível, ou A sede de justiça‖ (O), interpretado no capítulo 4.2.3). É simbólico que Oscarina e Galinha cega datem de 1931, mesmo ano da morte de Graça Aranha (1868-1931): naquele momento, muita discussão sobre tradição, vanguarda e modernidade já havia ocorrido. Em meio ao belicismo que assolava o mundo e às transformações políticas e sociais brasileiras, João Alphonsus e Marques Rebelo organizam, editam e publicam em livros os contos surgidos em pleno calor das discussões. Assim, se considerarmos os textos de João e Marques apenas sob o prisma da busca da identidade nacional, podemos chamá-los de modernistas, uma vez que, cada qual a seu modo, levantam questões que dizem respeito à imagem e à complexidade do que é ser brasileiro. Entretanto, em relação a outros aspectos, tal como retira um ―l‖ do sobrenome, na década de 1930, Rebelo também quer se afastar da alcunha de ―modernista‖. Mesmo à sua revelia, não eram poucos os que assim o anunciavam, como, por exemplo, Mário Camarinha, em artigo de O Cruzeiro, que o incluiu na lista dos escritores virtuosos do ―conto urbano da 259

tradição literária modernista‖ (1966, p. 98), ao lado de Alcântara Machado, Mário de Andrade e João Alphonsus. Para muitos críticos até hoje, os aspectos confluentes entre os contos de Rebelo e o modernismo, como vimos acima, são suficientes para confirmar o rótulo inúmeras vezes negado pelo carioca. Recentemente, em 2006, os dois autores centrais desta tese foram mais uma vez escolhidos como representantes do conto modernista brasileiro, desta vez pela Oxford Anthology of the Brazilian Short Story, editada por K. David Jackson, em New York, de que constam ―Sardanapalo‖ (PB), de Alphonsus, e ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O), de Rebelo. Dois anos depois, também aparecem entre os cinco contistas selecionados por Ivan Marques, nas Histórias do Modernismo, da Coleção ―O prazer de ler‖, da Editora Scipione, ao lado de Alcântara Machado, Mário de Andrade e Aníbal Machado; na edição brasileira, representam os autores o célebre ―Galinha cega‖ (GC) e o reincidente ―Na rua Dona Emerenciana‖ (O). Os dois livros citados, além de indicarem que os autores conquistaram um lugar na história do conto brasileiro, ilustram também como ficaram conhecidos fora e dentro do Brasil, como ―modernistas‖. Todavia, a análise de outras características nos leva à conclusão menos categórica. Sem dúvida, Mário de Andrade e Alcântara Machado inauguraram o conto modernista brasileiro, e João Alphonsus o desenvolveu, injetando temas e estruturas estéticas renovadas. Fiel ao movimento, tanto teórica quanto praticamente, o mineiro foi chamado de ―soldado do ‗front‘ modernista‖ (ALPHONSUS, 1927, p. 4) uma vez que desenvolveu todas as estratégias típicas da estética, de acordo com a descrição de João Luiz Lafetá: ―a deformação do natural como fator construtivo, o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academicista, a cotidianidade como recusa à idealização do real, o fluxo de consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional‖ (2004, p. 64). Entretanto, não podemos dizer o mesmo em relação aos contos de Marques Rebelo. A síntese de Souza sobre a obra do carioca – entrelaçamento da tradição literária ligada à cidade do Rio de Janeiro a um projeto de modernização da literatura nacional (cf. 2012, p. 8) – ampara nossa perspectiva: preferimos chamar seus contos de modernos, visto que unir tradição e inovação é atributo da modernidade, mais do que da vanguarda, como discutimos no capítulo 2.2. A pesquisa aqui registrada sobre os contos noturnos de Alphonsus e vespertinos de Rebelo fecha um ciclo produtivo de estudo e fomenta outras abordagens. Há muito o que investigar sobre o desenvolvimento do conto brasileiro, expandindo a leitura e abarcando outros autores, regiões e épocas. Nesse sentido, já no próximo ano, coordenaremos nova pesquisa de iniciação científica, junto ao DEPEQ (Departamento de Pesquisa do CEFET/RJ / 260

Campus Maracanã), órgão vinculado à instituição onde trabalhamos, abrindo à participação de alunos interessados no tema. Desse modo, prosseguiremos o estudo iniciado na Faculdade de Letras da UFRJ e poderemos aprofundar maior conhecimento sobre o conto moderno e o conto modernista, não por uma questão meramente classificatória, mas pelo gosto da análise detida, que, por um lado, aprofunda as relações entre forma e conteúdo e, por outro, sana dúvidas deixadas pelo uso indiscriminado desses termos. Os pastéis de nata e escorpiões, que abrem este capítulo, nos ajudam a encerrar a tese: os elementos sensoriais que fizeram parte do único diálogo entre João e Marques de que temos registro, para além dos significados socioculturais que representam, metaforizam a singularidade da obra dos contistas, que pretenderam unir lirismo nostálgico e crítica cotidiana.

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