O misterioso escritor Juan Uranga • conto de Rubem Mauro Machado • 28 11 9 rascunho MARÇO/10

O jornal de literatura do Brasil curitiba, março de 2010 • ano 10 • www.rascunho.com.br • próxima edição: 5 de abril • ESTA EDIÇÃO NÃO SEGUE O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

Arte: Ramon Muniz/ Fotos: Daniel Castellano/Gazeta do Povo e Divulgação

O SILÊNCIO O EXORCISTA Wilson Martins (1921-2010) • 3/5 Lourenço Mutarelli: “O demônio, para mim, é o verdadeiro Senhor dos homens” • 12/13 2 rascunho 119 • MARÇO de 2010

CARTAS [email protected]

o jornal de literatura do Brasil fundado em 8 de abril de 2000 CONTEÚDO REFINADO PANORAMA DA CULTURA nos prende à leitura. João Maria e José Maria

Venho acessando o site e O Rascunho é, de fato, essencial à compreensão têm uma história que vale a pena. Eu já conhecia ROGÉRIO PEREIRA tenho gostado muito do da literatura executada no Brasil (e seus desdo- sobre o movimento do Contestado. Com cer- editor

Rascunho. A coluna do bramentos). Confesso que passo batido nas críti- teza, Walmor dos Santos foi muito feliz na es- ÍTALO GUSSO Affonso Romano é ótima, cas em relação aos livros, principalmente os que colha do tema deste livro. Espero que nos pre- diretor executivo além dos outros variados não li (que são muitos), acabando só por ler os mie com outras sagas. Como gaúcha, sinto-me artigos. Sou do interior de trechos de amostra. Agora, as entrevistas e as co- privilegiada com este livro. ARTICULISTAS Affonso Romano de Sant’Anna Minas, na Serra do Ca- lunas me interessam muito, já que é possível en- Virgínia Kleemann • Curitiba – PR Claudia Lage paraó, e por aqui o que xergar através do panorama da cultura brasileira Eduardo Ferreira Fernando Monteiro permite ter um contato e seus possíveis caminhos. José Castello maior com estes manifes- Daniel Zanella • Araucária – PR Luís Henrique Pellanda FALE CONOSCO Luiz Bras tos literários é a internet. Luiz Ruffato Principalmente quando se SAGA Envie carta ou e-mail para esta seção com nome completo, Raimundo Carrero Rinaldo de Fernandes encontram sites com con- Fiquei muito feliz com a resenha de Adriano endereço e telefone. Sem alterar o conteúdo, o Rascunho se reserva o direito de adaptar os textos. As correspondências I teúdo refinado como é o Rascunho. Koehler sobre o livro Contestado, de Walmor devem ser enviadas para Al. Carlos de Carvalho, 655 - conj. LUSTRAÇÃO 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR. Os e-mails para Carolina Vigna-Marú Marco Jacobsen Farley Rocha • via e-mail Santos (Rascunho de janeiro). O trecho apre- [email protected]. Maureen Miranda sentado mostra uma linguagem cativante que Nilo FIM DA POESIA? Osvalter Urbinati Ramon Muniz Tal como ocorre ignorante e violenta destruição Ricardo Humberto das primitivas, rítmicas e suaves bases melódi- Tereza Yamashita cas da Arte Musical — constroem-se “versos FOTOGRAFIA Cris Guancino hermético-poéticos” que deixam de fascinar (e Matheus Dias vender...) simplesmente por não se apresenta- SITE rem embalados nas tradicionais e sempre neces- Vinícius Roger Pereira sárias “medidas”, imitadoras da vida, que é rít- EDITORAÇÃO mica e cadenciada, “melodicamente” repetida e, Alexandre De Mari por isso e só assim, interessante e encantadora. PROJETO GRÁFICO (Conforme texto Fim do papel, fim da poesia, de Rogério Pereira / Alexandre De Mari

Luiz Bras, Rascunho 118). Que se procurem DIAGRAMAÇÃO alegrias e encantamentos não só com recuperar Rogério Pereira a “lógica da casa terrestre” (ecologia), mas tam- ASSINATURAS bém com a preservação de já multimilenares e Cristiane Guancino Pereira consagradas tradições técnico-artísticas das ma- IMPRENSA Nume Comunicação nifestações humanas! 41 3023.6600 www.nume.com.br Elmar Joenck • Curitiba – PR

ER COM PAIXÃO L Colaboradores desta edição Que coisa mais linda este Rascunho de 2010. Alcir Pécora é crítico literário. Autor Clarice. Grande Clarice Lispector! E os poemas de Máquina de gêneros, entre outros. de ! Tem muita coisa para ler. Mui- ta gente boa pensando. Muito texto bom para ler André Seffrin é crítico literário. MARCO JACOBSEN com vagar, com atenção e paixão. Andrea Ribeiro é jornalista.

Mara Paulina • Chapecó – SC Cida Sepulveda é escritora. Autora de Coração marginal.

Fabio Silvestre Cardoso é jornalista.

Gregório Dantas é professor de li- teratura no ensino superior e dou- TRANSLATO tor em teoria e história literária pela Unicamp.

Eduardo Ferreira Jorge Figueroa é poeta. Autor de Silencio abierto, entre outros.

José Renato Salatiel é jornalista e Como obter um critério professor universitário. Lúcia Bettencourt é escritora. Ganhou o I concurso Osman Lins de Contos, com A cicatriz de Olímpia. Venceu o prê- mio Sesc de Literatura 2005, com o infalível de tradução livro de contos A secretária de Borges. Luiz Antonio de Assis Brasil é es- Um dos vários problemas do processo tradu- mas em potência. Os elementos da estrutura profunda original. Viria a tradução praticamente perfeita — que critor e ensaísta. Autor de O pintor tório é a falta de base de comparação. Não ha- precisam passar por uma transformação adequada para imperfeições sempre haverá, talvez por ruídos nos de retratos, entre outros. vendo essa base, é forte a tendência aos desvarios. que se tornem texto inteligível. processos transformacionais de codificação e deco- Luiz Horácio é escritor, jornalista, pro- fessor de língua portuguesa e literatu- A criatividade, motor de desvio, é ao mesmo tem- A tradução seria, então, resultado de uma dupla dificação, provocados pela imperícia do tradutor. ra e mestrando em Letras. Autor dos po, para o tradutor, dádiva e rota de perdição. transformação: primeiro haveria que codificar o Haveria uma diferença importante entre as romances Perciliana e o pássaro com Fácil seria se houvesse um terceiro texto — eqüi- original no nível da estrutura profunda. Ali, o texto duas alternativas. No caso do terceiro texto, terí- alma de cão e Nenhum pássaro no céu. distante do original e da tradução — que pudesse ficaria como que armazenado de forma não ambí- amos uma base de comparação direta, com a Marcos Pasche é professor e mestre em literatura brasileira. É autor do livro funcionar como base de comparação. gua e livre da entropia interpretativa. Isento da cor- qual se poderiam comparar, sem processos trans- de poemas Acostamento. Seria esse o melhor instrumento não apenas para rupção humana e dos efeitos deletérios do tempo e formacionais nem códigos, tanto o original quan- Maria Carolina Maia é jornalista e o tradutor, mas também para o crítico de tradução. da distância, o código na estrutura profunda seria o to a tradução. Simplificando: o terceiro texto escritor. Autora de Ciranda de nós. Ter ali, a sua disposição, um critério absoluto e irre- paradigma para qualquer tradução que se fizesse do poderia ser lido diretamente, tanto quanto o ori- Maria Célia Martirani é escritora. futável de cotejo. Toda tradução de um dado origi- original, para qualquer língua, em qualquer época. ginal ou sua tradução. No caso do paradigma Autora de Para que as árvores não nal teria de equivaler — não apenas dinâmica, mas Basta acertar na transcrição, para obter um código situado na estrutura profunda, teríamos um có- tombem de pé. estaticamente também — ao terceiro texto. Por de- que reproduza fielmente o texto original. digo estabelecido num sistema diferente daquele Mariana Ianelli é escritora e finição, o terceiro texto seria idêntico ao original, A decodificação também exigiria domínio de de uma língua. Não poderia ser lido diretamente, jornalista. Autora de Passagens, Fazer numa língua tida como neutra, não suscetível às uma técnica específica. Seria preciso conhecer bem como texto, mas dependeria de um processo silêncio e Almádena, entre outros. mudanças caóticas e à miríade de possibilidades de o código e as operações lógicas que conduzem a transformacional para ser produzido e acessado. Maurício Melo Júnior apresenta o interpretação que assolam nossas línguas naturais. seu desenvolvimento em texto “natural”. Mas se Fico pensando qual dos dois meios seria o ide- programa Leituras, na TV Senado. Um terceiro texto numa língua neutra, ideal: aí esta- poderiam dispensar os efeitos perniciosos da per- al como caminho certeiro para a consecução do Miguel Sanches Neto é escritor e pro- ria a solução para o milenar problema da tradução. fessor. Autor de, entre outros, Chove missividade do tradutor (sua tendência à inter- sonho menardiano: não fazer uma mera tradução, sobre minha infância e A primeira mulher. Outra forma de pensar o problema seria inventar, pretação, mais por falta de conhecimento e pes- mas escrever de novo o próprio original. O ter- para o processo tradutório, uma teoria equivalente à quisa que por necessidade), que pervertem o ver- ceiro texto pareceria, talvez, mais adequado. Des- Paulo Bentancur é escritor. Autor de A solidão do diabo, entre outros. gramática gerativo-transformacional. Em vez de ter- dadeiro sentido do texto original. confio um pouco dessa coisa de códigos e pro- ceiro texto, concebamos uma estrutura profunda, em Decodificado, o paradigma da estrutura profunda cessos transformacionais: parecem conter em si a Roberta Ávila é jornalista e atua como freelancer. Seu blog é http:// que se situa a base do texto original. Seria uma espécie reproduziria — palavra por palavra, sentido por senti- semente da entropia que nos lançaria de volta aos ficcoesdaminhavida.blogspot.com/ de terceiro texto também, só que não desenvolvido, do, efeito por efeito, surpresa por surpresa — o texto labirintos inextricáveis da tradução. r • Roberto Lota é mestrando em lite- ratura brasileira pela UFRJ.

Rodrigo Gurgel é crítico literário, es- critor e editor da Página 3 Pedagogia & Comunicação. Também escreve no blog: http://rodrigogurgel.blogspot.com/

RODAPÉ Ronaldo Cagiano é escritor. Autor de, entre outros, Dicionário de pe- Rinaldo de Fernandes quenas solidões.

Rubem Mauro Machado é escritor e tradutor. Autor de, entre outros, A O escritor idade da paixão. que ensina Sérgio Rodrigues é jornalista e es- critor. Autor de Elza, a garota, en- Não há incompatibilidade entre escrever e en- Gonçalves, Carlos Gildemar Pontes — todos cri- e de crítica literária não raro nos instrumentali- tre outros. sinar. Muito pelo contrário: os exemplos mos- adores e professores universitários. Todos, de al- za na hora de escrever o romance, o conto, o Sergio Vilas-Boas é jornalista. tram que há um diálogo rico e constante entre os gum modo, também se prepararam para o ato poema. São informações, reitero, que recupe- dois ramos, que há um aproveitamento de uma da escrita com a sua atividade de ensino. Todos, ramos ao produzir o texto literário. O escritor Sinvaldo Júnior é especialista em literatura. atividade pela outra. Na literatura brasileira con- de algum modo, souberam canalizar para a fic- que atua na universidade tem, grosso modo, temporânea há uma série de escritores que têm ção, para a poesia, as informações obtidas no dupla prática. Uma, de estimular e preparar lei- Vilma Costa é doutora em estudos literários pela PUCRJ e autora de Eros ou tiveram vínculo com a universidade. Silviano empenho analítico/crítico. Na universidade apren- tores. Outra — e porque tem necessidade de na poética da cidade: aprendendo o Santiago, Milton Hatoum, Cristovão Tezza, Nel- demos a nos aprofundar nas obras, nos esforça- criar — de saber manejar, sem parecer incon- amor e outras artes. son de Oliveira, Maria Esther Maciel, Affonso mos para analisá-las. Tem sido assim. Com altos sistente ou mesmo incompetente, o material Romano de Sant’Anna, Gilberto Mendonça Te- e baixos, uns com mais, outros com menos ta- crítico/teórico com que trabalha. Não pode- rascunho les, , Aleilton Fonseca, Antonio lento — tem sido assim. E creio que temos con- mos fazer feio na hora de escrever. E a tarefa é uma publicação mensal Carlos Secchin, Sylvia Cyntrão, Luís Augusto Fis- tribuído bastante para a interpretação de ficcio- de preparar jovens leitores, o público por ex- da Editora Letras & Livros Ltda. Rua Filastro Nunes Pires, 175 - casa 2 cher, Amador Ribeiro Neto, Adriano Espínola, nistas e poetas. Nós, escritores que atuamos na celência do professor universitário? O que di- CEP: 82010-300 • Curitiba - PR Sérgio de Castro Pinto, Marcus Vinícius Freitas, universidade, o que aprendemos na prática analí- zer àqueles jovens interessados em saber sobre (41) 3019.0498 [email protected] Tércia Montenegro, Moreira Campos (grande tica não raro se torna material importante na hora o quê e o como o escritor professor lê? Tentarei www.rascunho.com.br mestre do conto, infelizmente já falecido), Luzilá da criação literária. O que aprendemos de teoria responder essas questões na próxima coluna.•r tiragem: 5 mil exemplares 119 • MARÇO de 2010 rascunho 3

Daniel Castellano/Gazeta do Povo O crítico

WILSON MARTINS buscava, acima de tudo, uma compreensão abrangente da cultura do Brasil

MIGUEL SANCHES NETO • PONTA GROSSA – PR vista, interessado em acompanhar o fluxo po de poder (ou em Curitiba ou nos Estados das idéias no país. Unidos), Wilson pôde manter uma indepen- Do ponto de vista técnico, Wilson Martins Este modelo de crítico que nunca deixou dência bastante grande — claro que ela não (1921-2010) faz parte da escola francesa de a trincheira do jornal rendeu a Wilson era total. Como não precisava dos ganhos crítica, e teve em Albert Thibaudet (1874-1936) Martins muita incompreensão. Foi acusado como crítico, pôde externar opiniões que o seu mestre. Na esteira desta tradição, Wil- de conservador (e de fato o era, pois conser- eram altamente impopulares e perigosas, as- son valorizava a historicidade do pensamen- vava a produção do país em suas coletâneas sumindo todos os riscos. Esta é outra ima- to nacional, aí incluída a literatura. O espaço críticas), de ultrapassado (por dilatar uma gem do crítico, a de alguém que está sempre de tal prática era o jornal, onde Wilson influência francesa aposentada pelas escolas na corda bamba, não apenas por não refe- Martins, à maneira de seus antecessores, como norte-americanas e por outras mais recentes rendar as unanimidades da hora, mas prin- um Sérgio Milliet (1898-1966) ou um Álva- da Europa), de pouco profundo (por não es- cipalmente por se expor em seus julgamen- ro Lins (1912-1970), exerceu uma forma de tender seus artigos breves e lapidares sobre os tos, considerando obras e autores desconhe- pensar intimamente relacionada com o mo- livros), de violento (por não medir palavras cidos como valores literários e decretando vimento editorial do país. O crítico, neste for- na hora de escancarar defeitos que ele julgava como irrelevantes as vozes mais poderosas. mato, assumiu-se como um leitor seletivo da ver numa obra) e de obscurantista (por não A sua coluna de crítica (iniciada em 1942) produção contemporânea, uma espécie de reconhecer as sumidades construídas pelo foi, portanto, um território independente da bibliotecário que arquivava nos anais da his- marketing). Não obstante toda a fúria recair cultura brasileira, onde os autores se tória um conjunto válido de títulos. E este é sobre ele, manteve-se inabalável em seu pro- agigantavam ou se apequenavam. Muitos um outro aspecto que deve ser ressaltado na pósito inicial de ler toda a produção válida querem saber quais foram os grandes nomes atuação deste paranaense: todos os livros li- do país e tentar pensá-la como conjunto. Era descobertos pelo crítico, mas este método não dos e comentados, mesmo quando sofriam isso a crítica semanal de Wilson Martins, uma estava voltado para a descoberta de talentos as avaliações mais rigorosas, eram tidos pelo ampliação de seu grande ensaio sobre o Bra- em botão. Buscava, isso sim, uma compre- crítico como obras relevantes, que mereciam sil, a História da inteligência brasileira — ensão abrangente da cultura do país. figurar entre as produções da inteligência na- onde ele acompanha a produção editorial do Assim, para o autor que ocupava a peri- cional. Pois mais importante do que a senten- país ou sobre o país de 1500 a 1960. Seus vo- feria do campo literário, Wilson Martins era ça expedida pelo crítico era o seu papel de lumes de crítica continuam este projeto até a uma oportunidade de atenção e de ter seu salvar da produção cada vez mais massificada sua morte. Por incrível que pareça, embora nome anexado à inteligência nacional. Sua um coletivo de obras que se destacaram. plagiados (principalmente em dissertações e coluna de crítica raramente refletia as postu- O crítico assim visto dialogava com o teses), seus pontos de vista ainda não tiveram ras do jornal ou do editor, eram sempre in- passado, fazendo apostas em contemporâ- influência nos estudos universitários. telectualmente assinadas por um crítico de neos. Esta perspectiva histórica exigia dele E isso é plenamente explicável. Nosso vasta leitura e com idiossincrasias muito ní- uma disposição para ler o máximo da pro- modelo de pensamento continua mantendo tidas, como a valorização da legibilidade do dução atual, sem deixar de considerar nos- uma relação de dependência com os centros texto. O fato é que a lógica da mídia não so patrimônio intelectual. Era em confronto culturais, e boa parte da universidade brasi- funcionava ali. Aquele era um espaço pró- com a tradição, que ele tão bem conhecia, e leira paga royalties aos nomes estabilizados prio, que ninguém conseguia pautar. com os contemporâneos já na categoria de internacionalmente. O próprio método de Toda a grandeza deste projeto vem de mestres, que Wilson Martins avaliava os lan- estudo é contrário ao da crítica militante. O uma energia imensa, o que lhe permitiu ser çamentos. Esta foi a regra da crítica literária sentido de trânsito que prevalece na univer- o maior leitor da cultura nacional, e de uma nacional até meados do século 20, quando sidade é da teoria crítica para a produção adequação total ao ofício: ele era e queria a Nova Crítica toma corpo entre nós, com o criativa, enquanto Wilson Martins, fiel ao ser unicamente crítico. Nunca se imaginou aumento da influência norte-americana. O velho método francês, trabalhava numa pers- em outro papel, e mesmo o magistério foi pensamento nacional vai se deslocar de uma pectiva diametralmente inversa: partia da para ele uma forma de independência finan- gramática de jornal para uma gramática uni- produção concreta do país para construir um ceira que patrocinou o seu projeto matinal: versitária, e a análise de obras passa a se dar painel, sem valorizar a idéia de progresso. ler o maior número de obras de autores bra- dentro de correntes de teorias (literárias, fi- Somos este país desde sempre. Mudaram-se sileiros. Não queria ser ficcionista ou poeta. losóficas, lingüísticas etc.), e não mais a par- os aspectos externos, mas nossa imagem de Era crítico. Era o crítico. tir da leitura extensiva das obras de criação. fundo continua paralisada. Sua crítica era A pergunta que se faz agora, quando ele Professor da Universidade Federal do focada na identidade nacional, uma identi- infelizmente concluiu o seu trabalho, é: qual Paraná (1952-1962), da Universidade de dade macunaímica, como Mário de o nível de acerto de seus julgamentos? A res- Kansas (1962), da Universidade de Wiscon- Andrade tão bem representou — escancarar posta deverá ser dada pelas gerações de ama- sin-Madison (1963-1965) e da Universida- isso era algo muito incômodo. nhã. A nós, resta apenas concluir que, com de de Nova York (1965-1991), Wilson Nesta dimensão exercida por Wilson sua morte, aumentam os consensos sobre a Martins nunca se afastou da crítica de jor- Martins, prevaleciam alguns aspectos. Um produção contemporânea. Findou a voz que nal nem de seu tema-maior, a inteligência deles é o deslocamento do crítico. Morando mais ousava discordar. E que mais discor- brasileira. Seguiu sendo um crítico arqui- sempre fora dos centros nacionais do cam- dou ao longo dos últimos 60 anos.•r

LEIA NAS PÁGINAS 4 E 5 TEXTO DE RODRIGO GURGEL E DEPOIMENTOS SOBRE WILSON MARTINS 4 rascunho 119 • MARÇO de 2010 5

Chama acesa Herdeiros de “I walk alone” Sérgio Rodrigues seu exemplo Alcir Pécora Os pecados de Eu quase nunca concordava com o crítico Wilson Martins. Ao longo de muitos André Seffrin Wilson Martins é consultado na pre- anos, talvez se contem nos dedos de uma mão as ocasiões em que terminei de ler uma paração das aulas, mas pouco discutido resenha sua sem ter com ela alguma divergência grave, um ou mais pontos em que Todo grande pensador começa por dizer dentro delas, além de estar quase ausente nossos credos estéticos pareciam água e óleo. O que demorei mais a descobrir foi que, não ao convencional. Assim se deu com das bancas universitárias. Acho que isso por baixo de toda aquela discussão, havia uma concordância maior, um pacto sem a Wilson Martins, um dos nossos poucos au- deve, em parte, à ruptura do pacto de cor- qual ela, a discussão, cairia no vazio. Martins ousava falar da literatura de dentro, seu tores de obra anticonvencional e revolucio- dialidade. Martins tinha mão pesada e pensamento era inteiramente feito de literatura. Ele não partia do livro para chegar a nária. Em entrevista a Miguel Sanches Neto, gosto pela sova que dava em vários cole- outro lugar, nem vinha de outro lugar para abordar o livro. Morava ali, e quando saía admitiu-se sem “talento suficiente para escre- gas de ofício, alguns com representação era para inspecionar a relação do livro com... outros livros. Avesso a sistemas, a “verda- ver um livro chamado Os brasileiros, assim institucional importante. “I walk alone” Wilson Martins como Luigi Barzini escreveu Os italianos”. des” importadas de campos fora das letras, arriscava o pescoço a cada resenha. É o que — ele parecia dizer, com orgulho, a cada torna sua História da inteligência brasileira tão caótica e tão interessante: o pulso de Ao contrário do que imaginava, acabou por vez que desancava um deles. Produzir uma obra relevante, não se render aos estrangeirismos, não trocar favores e não ser de esquerda vida real. A literatura para Martins nunca era sintoma, era o que importava, como deve escrever esse livro em História da inteligên- Mas essa é apenas a hipótese mais ime- mesmo ser, se você tem a pretensão de se declarar crítico literário. Quando o relativismo cia brasileira, ensaio-síntese que nos situa e diata para o silêncio que pesa sobre o seu cultural começou a tentar nos convencer — e como a universidade embarcou! — de que define. Pouco dado a efusões, contundente imenso trabalho. Penso que ele se explica em seus pontos de vista, Wilson Martins abor- RODRIGO GURGEL • SÃO PAULO – SP “Santa rabugice” aquelas ferramentas sentimentais e ideológi- a qualidade literária é pura ideologia, pura balela, sobrou pouca gente para manter a mais profundamente não apenas pela exa- Nosso crítico literário, no entanto, era um cas por meio das quais o leitor médio pode chama acesa. Wilson Martins foi um desses. Foi quando seu famoso conservadorismo dou seus temas frontalmente e sem precon- cerbação crítica, como pela sua erudição, tão WILSON MARTINS Por uma dessas casualidades com que a homem singular. Não satisfeito com esses pe- receber a impressão mais intensa e clara da nasceu adquiriu uma certa aura de vanguarda. E eu descobri que pouco importava se, contando ceitos, apesar da imagem de aparente antipa- distante do ramo atual em que se fazem as vida nos golpeia, às vezes mal tenhamos cados, verdadeiramente assombrosos, ainda obra que seja possível”, pois “a obra se com- em São Paulo (SP), no dia nos dedos, eu quase nunca concordava com ele. tia que lhe atribuíam opositores circunstanci- especializações: se entra com um autor no acabado de morrer, Wilson Martins faleceu cometeu mais um, talvez o pior de todos, o pleta completando sua leitura”. 21 de março de 1921. ais. Consultar seus livros tornou-se logo há- IC, se segue com o mesmo projeto no em 30 de janeiro deste ano, quando os jor- mais terrível: foi daqueles críticos, hoje raros, Na contramão do que ocorre hoje no Bra- Bacharelou-se em Direito SÉRGIO RODRIGUES é escritor, jornalista e editor do blog Todoprosa (www.todoprosa.com.br). É autor dos bito nacional, embora nem sempre admitido mestrado e será o mesmo, ampliado, o bojo nais, as rádios, a tevê, a web e grande parte que não trocam favores, que não dão tapinhas sil, a concepção crítica de Wilson Martins pela Universidade Federal livros As sementes de Flowerville e Elza, a garota, entre outros. e confessado. Em termos de intuição crítica, do doutorado e do pós-doc. O que é, a ri- dos intelectuais que detêm postos-chave na nas costas, que não adoçam as palavras para estava vinculada a um profundo respeito pe- do Paraná, em 1943, e, erudição e qualidade estilística, acompanham- gor, um contra-senso: em humanidades, ou mídia ainda derramavam lágrimas de san- conseguir novas amizades ou manter a qual- los que o antecederam, diante dos quais ele pela mesma universidade, no de perto muito poucos: Antonio Candido, em literatura, quem sabe um não sabe ne- gue pela morte de J. D. Salinger. De certa for- quer custo as antigas. Enfim, Wilson Martins se colocava com humildade, afirmando que em 1952, concluiu o douto- Sergio Milliet, Fausto Cunha, . nhum. Erudição não se dispensa sem custo ma, foi uma casualidade positiva: graças ao tinha uma “santa rabugice”, na feliz expres- rado em Letras após uma Em tempo de serviço, no entanto, foi muito para a inteligência letrada. Wilson Martins intervalo de três dias (o escritor norte-ameri- são do poeta, tradutor e ensaísta Ivan Junqueira. a crítica que fazemos hoje, como a ciência que especialização na França. Fim de raça além, superando até mesmo alguns abnega- não deixava que se esquecessem disso. Além cano faleceu a 27 de janeiro), o crítico literá- Rabugice à qual ele acrescentou, ainda segun- hoje realizamos, não são necessariamente melho- Atuou como professor de dos de obra extensa e importante como disso, insistia em se manter na crítica de jor- literatura francesa na UFPR Temístocles Linhares, Massaud Moisés ou nal, onde lia, ajuizava e palpitava muito, em rio, historiador e professor emérito da Uni- do Junqueira, “privilegiada formação literária res que as do nossos antepassados: e se de fato temos Luiz Antonio de Assis Brasil versidade de Nova York ganhou, aqui e ali, e humanística”, “sutileza e inteligência”, “ele- motivos para julgá-las melhores, a explicação deve (1952-1962), professor Otto Maria Carpeaux. Não há dúvida de que vez de se concentrar no consensual, dentro dez ou quinze linhas de atenção. Mas a sorte gância de linguagem”, “fundo conhecimento ser outra que a idéia, supremamente discutível, de visitante da Universidade sua obra de crítico literário, crítico da cultura de um nicho conquistado. do Kansas (1962), profes- Crítico rigoroso, sincero, honesto. Não cultivava o compadrio. Era fiel apenas a si e historiador vai repercutir nas próximas dé- Enfim, dado que o jornalismo literário e durou pouco. Logo no dia 31, para conster- teórico” e “certo humor, o que lhe confere (...) que nos encontramos num pináculo. (...) Não é com mesmo e à literatura. Um dos intelectuais mais completos que este país já conheceu. Não nação geral, outro ícone falecia — e quando um encanto ainda maior”. ilusões desse porte que se pode estabelecer nem uma sor associado na Universi- cadas e provavelmente nos próximos séculos, autodidata praticamente desapareceu das re- dade de Wisconsin- teve receio de escrever uma obra tão vasta e ambiciosa como sua História da inteligên- enquanto existir esta estranha atividade que nos dações, e que a própria literatura saiu de alguns poucos leitores esperavam por artigos As conseqüências de todos esses pecados sólida ciência nem uma crítica sólida. cia brasileira. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas através de bilhetes e de men- mais aprofundados sobre a obra do nosso só poderiam ser danosas. No país do Madison (1963-1964) e move — de ler e escrever, de sondar o mundo moda faz tempo nos departamentos univer- professor de literatura sageiros que eram nossos amigos comuns. Nesses diálogos descontínuos, percebia-se o em que vivemos. Pode-se também dizer que a sitários compreende-se que o achassem anti- intelectual, o noticiário foi tomado por per- compadrio, da mancomunação, do puxa- Assim, buscando conciliar experiências homem afável e generoso, que não hesitava em apontar defeitos em meus livros, mas que fis, críticas, rememorações, encômios, listas de saquismo, o comportamento sobranceiro e passadas, atualidade e rigor, nosso crítico re- brasileira na Universidade crítica de jornal terminou com Wilson Martins, quado, de um e de outro lado da barricada. de Nova York (1965- também sabia elogiar aquilo de que gostava. Pela imprensa, deu-me alguns epítetos isto é, a crítica sistemática e hebdomadária Ele sabia perfeitamente disso tudo, e mais obras publicadas e fotos do argentino Tomás reservado de Wilson Martins, avesso às pa- futou a “estranha pretensão” — tão difundi- elogiosos, escandalosamente exagerados, fato incompreensível para alguns dos meus Eloy Martínez. Entretanto, devemos ser oti- nelinhas, não apenas o isolou, mas, soma- da atualmente, e não só na academia — de 1991). Como crítico como ele a concebeu, paradigma de sua gera- ou menos se acomodou à imagem nostálgi- literário, foi autor de várias colegas escritores — e também para mim, diga-se. ção e cuja origem nos remete ao modelo fran- ca de “último crítico”. Nunca o conheci pes- mistas e, assumindo o comportamento apro- do à sua severidade no julgar e à sua ironia, que Ortega y Gasset nos fala em A rebelião Wilson Martins cumpriu seu papel com elegância e conhecimento. Sem ele, a cultura priado ao populismo que impera no país, fa- granjeou-lhe inimigos em toda parte. Eu di- das massas: “a de ser mais que qualquer ou- obras relevantes — como cês, ou seja, ao século 19. Somos todos her- soalmente, mas imagino que morreu tran- História da inteligência de nosso país seria mais pobre. É possível que tenha sido uma espécie de fim de raça, isto deiros de seu exemplo — este exemplo maior qüilo consigo mesmo. zer o jogo do contente: se Wilson Martins ria, aliás, que a fila dos ressentidos é tro tempo passado; mais ainda: por se desli- é, da raça dos críticos que, mesmo conhecendo a teoria, sabem escrever da maneira que tivesse falecido um dia depois de Salinger ou quilométrica e disputa, palmo a palmo, cada gar de todo o passado, não reconhecer épo- brasileira (sete volumes), de amor ao Brasil e ao saber. A crítica literária no os leitores entendem. ALCIR PÉCORA é crítico literário, professor de literatura na mesma data que Martínez, sequer recebe- fatia de calçada com as viúvas de Salinger. cas clássicas e normativas, e ver-se a si mes- Uma perda, reparável, por certo, mas não com a mesma qualidade e sabedoria. ria o favor de um breve necrológio. E tudo por um simples motivo: nosso críti- mo como uma vida nova superior a todas Brasil (dois volumes), O ANDRÉ SEFFRIN é crítico de literatura e artes plásticas, na Unicamp e colaborador da Folha de S. Paulo. Também Não discuto o valor da obra dos estran- co não era paternal, não silenciava diante as antigas e irredutível a elas”. modernismo e Um Brasil com passagem por diversos veículos da imprensa naci- é autor de diversos livros, como Teatro do sacramento, LUIZ ANTONIO ASSIS BRASIL é romancista, ensaísta e cronista. É autor de livros como Videiras de onal. Organizou diversos livros, de autores como Rubem Máquina de gêneros, As excelências do governador geiros falecidos — e muito menos a dor de de erros e omissões, não se fazia de cego ou Encarando a vida da literatura não como diferente, entre outras — e colaborador de veículos cristal, Música perdida e O pintor de retratos, entre vários outros. Braga, Lúcio Cardoso e Samuel Rawett, entre outros. e Rudimentos da vida coletiva, entre outros. suas viúvas brasileiras —, mas se o leitor me surdo quando discordava dos supostos “uma sucessão, mas uma coexistência”, ele Gazeta do Povo O pergunta sobre o porquê desse tratamento di- mandarins da literatura brasileira. Mas o que percebeu na história literária um “todo or- como , Estado de S. Paulo, O Globo ferenciado, quiçá injusto, minha resposta tal- os criticados entendiam como ataque pessoal gânico, no qual os escritores não se sucedem Jornal do Brasil vez não agrade, mas é a única que tenho: era apenas a concretização de um imperativo como os soldados de um desfile, mas se e . Morreu Daniel Castellano/Gazeta do Povo ainda somos um país primitivo, uma colônia caro a Martins: “O clima da crítica é a polê- intercruzam como os filamentos de um teci- em Curitiba (PR), aos 88 PALAVRA CRÍTICA que se encanta facilmente com o ouropel das mica”, ele dizia, “mas não a polêmica de ata- do”. E estabeleceu sua crítica segundo a re- anos, no dia 30 de janeiro cortes estrangeiras. No que se refere à teoria ques e destruição dos adversários, mas o de- gra que considerava ideal, basicamente, de de 2010, deixando a literária, por exemplo, o estruturalismo é ques- bate de idéias, a discussão e o confronto das que ela jamais poderia se “confinar nos prin- esposa, Anna Schmidt RASCUNHO 19, novembro de 2001 tionado na Europa desde a década de 1980 idéias. Este sentido positivo da polêmica faz cípios e métodos de uma determinada famí- Martins, que veio a falecer — e alguns de seus seguidores já lhe deram parte da crítica. O crítico nunca se coloca lia espiritual, mas exigiria, ao contrário, a logo em seguida, no as costas, como Todorov —, mas aqui ele passivamente diante de um livro. Já no pon- contribuição simultânea de todas elas”. Re- dia 18 de fevereiro. O autodidatismo é o único ainda é objeto de culto nas universidades, to de partida ele está encarando aquele livro jeitou, assim, o “monismo de julgamento” método possível para aprender onde há quem leia Derrida e outros de joe- polemicamente. Não contra o livro, mas ele e defendeu, visceralmente, que “não há, em lhos, acreditando que certa terminologia fol- está penetrando naquele mundo com esta idéia crítica literária, pontos de vista ‘errados’: há, as coisas. Não acredito muito em clórica pode dar conta de analisar não só a de verificar até que ponto aquela obra res- mais simplesmente, pontos de vista diferen- cursos de literatura ou de crítica. literatura, mas toda a realidade. Não impor- ponde ao que ela queria ser”. tes”, salientando, de acordo com o seu espí- ta se os estruturalistas e seus continuadores Que culpa Wilson Martins poderia ter se rito liberal e democrático, que “‘tomar to- criaram apenas — no irônico dizer de alguns dos livros que criticou foram escritos das as afirmações sem excluir nenhuma’, Os grandes escritores Thomas Pavel — um “verniz onírico” ou, por pessoas infantis, que só aceitam o gesto como queria Renan, não significa aceitá-las: lembrando o ácido comentário de José Gui- paternal de quem lhes acaricia o cocuruto e significa aceitá-las para discussão”. jamais fizeram cursos. lherme Merquior, uma “teorréia, ou seja, diz, com suavidade, “Olha, você, no fundo, Desapegado em relação aos seus próprios teorização inconseqüente sem qualquer refe- é genial, mas podia dar uma melhoradinha méritos acadêmicos, indiscutíveis, Wilson rente estável”. Importa, sim, o prazer doen- aqui nestes trechos...”? Que culpa ele pode- Martins defendeu a crítica não-acadêmica, pois, Cada vez que uma minoria tio de se submeter ao que vem de fora, acei- ria ter se alguns intelectuais são imaturos, segundo ele, esta “tem o espírito muito mais começa a reivindicar sua tando, sem críticas, qualquer teoria fantasiosa. despreparados para conviver com a aberto para a aventura intelectual, para a novi- Em segundo lugar, há outro motivo para discordância, com o pluralismo de idéias e, dade, para a discussão de idéias”. Defendia, situação de minoria, ela o descaso em relação a Wilson Martins: ele principalmente, para saborear o uso da iro- aliás, um ponto de vista iconoclástico em rela- confirma justamente aquilo que — pasmem! — não era de esquerda, não re- nia, finíssimo em seus textos, mas que al- ção ao “furor teórico” de que somos vítimas: zava pelo catecismo marxista, não acreditava guns preferiam entender como sarcasmo? para ele, certos críticos desejam, no fundo, ajus- quer condenar, que é o gueto. na irrefreável, fatal e invencível revolução que, Diante de tal personalidade, que se em- tar os livros analisados à teoria, o que é im- no galope leninista ou no trote gramsciano, penhou, durante décadas, na ingrata tarefa possível; e não deixou de salientar a subversão um dia levará o proletariado ao poder e à de “higiene crítica”, para usar a expressão por que passa o próprio processo criativo, apon- RASCUNHO 72, abril de 2006 completa destruição do capitalismo. E não de José Guilherme Merquior, e na elabora- tando o comportamento pernicioso de alguns ser de esquerda neste país, ainda mais nos dias ção de uma obra cujo valor raríssimas vezes escritores: “ficcionistas e poetas passaram a es- que correm, é pactuar com monstruosidades. foi alcançado neste país, que somava à eru- crever para os críticos, para agradá-los e con- Os autores descontentes sempre Hoje, são os liberais que comem criancinhas. dição uma metodologia avessa ao pedantis- firmar-lhes as respectivas teorias”. acham que o crítico está errado. Não interessa se Wilson Martins era um mo e à “arrogância epistêmica” que grassam Wilson Martins, com certeza, alcançou irredutível democrata, avesso a qualquer tipo entre nós, e que, contrariando todos os seus o ideal não apenas de crítico orteguiano, mas É normal. Nunca me incomodei de coerção por parte do Estado — um liberal detratores, agia como um gentleman, desti- também de homem: aquele que, verdadeira- muito com isso. Não perco o sono clássico. O que vale, para parcela da lando cavalheirismo, amizade e atenção, o mente nobre, não se contenta em ser apenas intelectualidade, é a carteirinha com a estrela que restou a alguns cardeais da nossa cultu- “reativo”, mas busca impregnar seu tempo porque alguém não gostou da vermelha, ou com a foice e o martelo. Não ra, senão o rancor? O rancor... Ora, o ran- com uma marca indelével — e para tanto minha crítica. O leitor tem o segue o rebanho? Tem idéias próprias? Fora! cor é apenas, segundo a sábia lição de Ortega vive em tensão permanente, num treinamen- Wilson Martins cometeu ainda um tercei- y Gasset, em seu Meditaciones del Quijote, to constante, ou, como nos lembra Ortega y direito tanto de concordar quanto ro pecado: apesar de não ser de esquerda e Gasset, em perfeita ascese. de discordar comigo. O autor não se vergar diante de modismos estrangei- uma emanação da consciência de inferioridade. Humanista, homem da Renascença deslo- ros, venceu. Além da brilhante e respeitável É a supressão imaginária de quem não podemos, cado entre dois séculos perturbadores, nos quais descontente tem o direito de estar carreira em uma das melhores universidades com nossas próprias forças, suprimir realmente. os filisteus impuseram a mediocridade como descontente e de me dizer uma do mundo, elaborou, com altivez e indepen- Aquele por quem sentimos rancor leva, em nossa regra de vida, Wilson Martins cumpriu o que dência, uma obra que será lida, relida e anali- fantasia, o aspecto lívido de um cadáver; com o de- se propôs: “não há espírito crítico que não co- porção de desaforos. sada, nos próximos séculos, por todos os que sejo, nós o matamos, o aniquilamos. E depois, ao mece por criticar a si mesmo, que não duvide pretenderem, de forma isenta, honesta e rigo- encontrá-lo firme e tranqüilo na realidade, parece- logicamente das suas certezas e das suas ver- rosa, estudar ou conhecer não só a literatura nos um morto indócil, mais forte que nossos poderes, dades, que não esteja disposto, se não a dar Quem vê a novela das oito brasileira, mas parte fundamental da nossa cuja existência significa a zombaria personificada, o razão ao adversário (...), pelo menos ‘repen- na tevê tem um conceito de cultura. E uma carreira vitoriosa — sem pen- desdém vivo frente à nossa débil condição. sar-se’ continuamente e recusar-se ao conforto sar ou agir como a maioria — é algo execrável. intelectual”. Graças a esse contínuo exercício, literatura que é diferente do Como alguém pode ganhar respeitabilidade Asceta e humanista a essa austeridade e disciplina realmente meu. O nível mental é outro. sem seguir a manada? A esses, aos que ousam E já que citamos o filósofo espanhol, lem- ascéticas, ele exerceu a crítica com alto construir seu próprio caminho, as igrejinhas bremos que Wilson Martins cumpriu o ide- discernimento, formou gerações de leitores, Não digo que seja inferior nem nacionais premiam com sua arma mais vil: a al orteguiano de crítico, compreendendo recuperou a história da inteligência em nosso superior. É diferente. Tem outros blindagem de mudo desprezo. É a tentativa de aqueles a quem criticava, agindo com a to- país e nos livrou dos piores males: a mesmice e garrotear aquele que cometeu o pior dos cri- lerância que é “própria de toda alma robus- a unanimidade. A esse insigne mestre, nestes parâmetros de julgamento. mes: não ser apenas mais um em meio à turba. ta”, introduzindo “em seu trabalho todas dias de luto, minha profunda reverência.•r 4 rascunho 119 • MARÇO de 2010 5

Chama acesa Herdeiros de “I walk alone” Sérgio Rodrigues seu exemplo Alcir Pécora Os pecados de Eu quase nunca concordava com o crítico Wilson Martins. Ao longo de muitos André Seffrin Wilson Martins é consultado na pre- anos, talvez se contem nos dedos de uma mão as ocasiões em que terminei de ler uma paração das aulas, mas pouco discutido resenha sua sem ter com ela alguma divergência grave, um ou mais pontos em que Todo grande pensador começa por dizer dentro delas, além de estar quase ausente nossos credos estéticos pareciam água e óleo. O que demorei mais a descobrir foi que, não ao convencional. Assim se deu com das bancas universitárias. Acho que isso por baixo de toda aquela discussão, havia uma concordância maior, um pacto sem a Wilson Martins, um dos nossos poucos au- deve, em parte, à ruptura do pacto de cor- qual ela, a discussão, cairia no vazio. Martins ousava falar da literatura de dentro, seu tores de obra anticonvencional e revolucio- dialidade. Martins tinha mão pesada e pensamento era inteiramente feito de literatura. Ele não partia do livro para chegar a nária. Em entrevista a Miguel Sanches Neto, gosto pela sova que dava em vários cole- outro lugar, nem vinha de outro lugar para abordar o livro. Morava ali, e quando saía admitiu-se sem “talento suficiente para escre- gas de ofício, alguns com representação era para inspecionar a relação do livro com... outros livros. Avesso a sistemas, a “verda- ver um livro chamado Os brasileiros, assim institucional importante. “I walk alone” Wilson Martins como Luigi Barzini escreveu Os italianos”. des” importadas de campos fora das letras, arriscava o pescoço a cada resenha. É o que — ele parecia dizer, com orgulho, a cada torna sua História da inteligência brasileira tão caótica e tão interessante: o pulso de Ao contrário do que imaginava, acabou por vez que desancava um deles. Produzir uma obra relevante, não se render aos estrangeirismos, não trocar favores e não ser de esquerda vida real. A literatura para Martins nunca era sintoma, era o que importava, como deve escrever esse livro em História da inteligên- Mas essa é apenas a hipótese mais ime- mesmo ser, se você tem a pretensão de se declarar crítico literário. Quando o relativismo cia brasileira, ensaio-síntese que nos situa e diata para o silêncio que pesa sobre o seu cultural começou a tentar nos convencer — e como a universidade embarcou! — de que define. Pouco dado a efusões, contundente imenso trabalho. Penso que ele se explica em seus pontos de vista, Wilson Martins abor- RODRIGO GURGEL • SÃO PAULO – SP “Santa rabugice” aquelas ferramentas sentimentais e ideológi- a qualidade literária é pura ideologia, pura balela, sobrou pouca gente para manter a mais profundamente não apenas pela exa- Nosso crítico literário, no entanto, era um cas por meio das quais o leitor médio pode chama acesa. Wilson Martins foi um desses. Foi quando seu famoso conservadorismo dou seus temas frontalmente e sem precon- cerbação crítica, como pela sua erudição, tão WILSON MARTINS Por uma dessas casualidades com que a homem singular. Não satisfeito com esses pe- receber a impressão mais intensa e clara da nasceu adquiriu uma certa aura de vanguarda. E eu descobri que pouco importava se, contando ceitos, apesar da imagem de aparente antipa- distante do ramo atual em que se fazem as vida nos golpeia, às vezes mal tenhamos cados, verdadeiramente assombrosos, ainda obra que seja possível”, pois “a obra se com- em São Paulo (SP), no dia nos dedos, eu quase nunca concordava com ele. tia que lhe atribuíam opositores circunstanci- especializações: se entra com um autor no acabado de morrer, Wilson Martins faleceu cometeu mais um, talvez o pior de todos, o pleta completando sua leitura”. 21 de março de 1921. ais. Consultar seus livros tornou-se logo há- IC, se segue com o mesmo projeto no em 30 de janeiro deste ano, quando os jor- mais terrível: foi daqueles críticos, hoje raros, Na contramão do que ocorre hoje no Bra- Bacharelou-se em Direito SÉRGIO RODRIGUES é escritor, jornalista e editor do blog Todoprosa (www.todoprosa.com.br). É autor dos bito nacional, embora nem sempre admitido mestrado e será o mesmo, ampliado, o bojo nais, as rádios, a tevê, a web e grande parte que não trocam favores, que não dão tapinhas sil, a concepção crítica de Wilson Martins pela Universidade Federal livros As sementes de Flowerville e Elza, a garota, entre outros. e confessado. Em termos de intuição crítica, do doutorado e do pós-doc. O que é, a ri- dos intelectuais que detêm postos-chave na nas costas, que não adoçam as palavras para estava vinculada a um profundo respeito pe- do Paraná, em 1943, e, erudição e qualidade estilística, acompanham- gor, um contra-senso: em humanidades, ou mídia ainda derramavam lágrimas de san- conseguir novas amizades ou manter a qual- los que o antecederam, diante dos quais ele pela mesma universidade, no de perto muito poucos: Antonio Candido, em literatura, quem sabe um não sabe ne- gue pela morte de J. D. Salinger. De certa for- quer custo as antigas. Enfim, Wilson Martins se colocava com humildade, afirmando que em 1952, concluiu o douto- Sergio Milliet, Fausto Cunha, Alfredo Bosi. nhum. Erudição não se dispensa sem custo ma, foi uma casualidade positiva: graças ao tinha uma “santa rabugice”, na feliz expres- rado em Letras após uma Em tempo de serviço, no entanto, foi muito para a inteligência letrada. Wilson Martins intervalo de três dias (o escritor norte-ameri- são do poeta, tradutor e ensaísta Ivan Junqueira. a crítica que fazemos hoje, como a ciência que especialização na França. Fim de raça além, superando até mesmo alguns abnega- não deixava que se esquecessem disso. Além cano faleceu a 27 de janeiro), o crítico literá- Rabugice à qual ele acrescentou, ainda segun- hoje realizamos, não são necessariamente melho- Atuou como professor de dos de obra extensa e importante como disso, insistia em se manter na crítica de jor- literatura francesa na UFPR Temístocles Linhares, Massaud Moisés ou nal, onde lia, ajuizava e palpitava muito, em rio, historiador e professor emérito da Uni- do Junqueira, “privilegiada formação literária res que as do nossos antepassados: e se de fato temos Luiz Antonio de Assis Brasil versidade de Nova York ganhou, aqui e ali, e humanística”, “sutileza e inteligência”, “ele- motivos para julgá-las melhores, a explicação deve (1952-1962), professor Otto Maria Carpeaux. Não há dúvida de que vez de se concentrar no consensual, dentro dez ou quinze linhas de atenção. Mas a sorte gância de linguagem”, “fundo conhecimento ser outra que a idéia, supremamente discutível, de visitante da Universidade sua obra de crítico literário, crítico da cultura de um nicho conquistado. do Kansas (1962), profes- Crítico rigoroso, sincero, honesto. Não cultivava o compadrio. Era fiel apenas a si e historiador vai repercutir nas próximas dé- Enfim, dado que o jornalismo literário e durou pouco. Logo no dia 31, para conster- teórico” e “certo humor, o que lhe confere (...) que nos encontramos num pináculo. (...) Não é com mesmo e à literatura. Um dos intelectuais mais completos que este país já conheceu. Não nação geral, outro ícone falecia — e quando um encanto ainda maior”. ilusões desse porte que se pode estabelecer nem uma sor associado na Universi- cadas e provavelmente nos próximos séculos, autodidata praticamente desapareceu das re- dade de Wisconsin- teve receio de escrever uma obra tão vasta e ambiciosa como sua História da inteligên- enquanto existir esta estranha atividade que nos dações, e que a própria literatura saiu de alguns poucos leitores esperavam por artigos As conseqüências de todos esses pecados sólida ciência nem uma crítica sólida. cia brasileira. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas através de bilhetes e de men- mais aprofundados sobre a obra do nosso só poderiam ser danosas. No país do Madison (1963-1964) e move — de ler e escrever, de sondar o mundo moda faz tempo nos departamentos univer- professor de literatura sageiros que eram nossos amigos comuns. Nesses diálogos descontínuos, percebia-se o em que vivemos. Pode-se também dizer que a sitários compreende-se que o achassem anti- intelectual, o noticiário foi tomado por per- compadrio, da mancomunação, do puxa- Assim, buscando conciliar experiências homem afável e generoso, que não hesitava em apontar defeitos em meus livros, mas que fis, críticas, rememorações, encômios, listas de saquismo, o comportamento sobranceiro e passadas, atualidade e rigor, nosso crítico re- brasileira na Universidade crítica de jornal terminou com Wilson Martins, quado, de um e de outro lado da barricada. de Nova York (1965- também sabia elogiar aquilo de que gostava. Pela imprensa, deu-me alguns epítetos isto é, a crítica sistemática e hebdomadária Ele sabia perfeitamente disso tudo, e mais obras publicadas e fotos do argentino Tomás reservado de Wilson Martins, avesso às pa- futou a “estranha pretensão” — tão difundi- elogiosos, escandalosamente exagerados, fato incompreensível para alguns dos meus Eloy Martínez. Entretanto, devemos ser oti- nelinhas, não apenas o isolou, mas, soma- da atualmente, e não só na academia — de 1991). Como crítico como ele a concebeu, paradigma de sua gera- ou menos se acomodou à imagem nostálgi- literário, foi autor de várias colegas escritores — e também para mim, diga-se. ção e cuja origem nos remete ao modelo fran- ca de “último crítico”. Nunca o conheci pes- mistas e, assumindo o comportamento apro- do à sua severidade no julgar e à sua ironia, que Ortega y Gasset nos fala em A rebelião Wilson Martins cumpriu seu papel com elegância e conhecimento. Sem ele, a cultura priado ao populismo que impera no país, fa- granjeou-lhe inimigos em toda parte. Eu di- das massas: “a de ser mais que qualquer ou- obras relevantes — como cês, ou seja, ao século 19. Somos todos her- soalmente, mas imagino que morreu tran- História da inteligência de nosso país seria mais pobre. É possível que tenha sido uma espécie de fim de raça, isto deiros de seu exemplo — este exemplo maior qüilo consigo mesmo. zer o jogo do contente: se Wilson Martins ria, aliás, que a fila dos ressentidos é tro tempo passado; mais ainda: por se desli- é, da raça dos críticos que, mesmo conhecendo a teoria, sabem escrever da maneira que tivesse falecido um dia depois de Salinger ou quilométrica e disputa, palmo a palmo, cada gar de todo o passado, não reconhecer épo- brasileira (sete volumes), de amor ao Brasil e ao saber. A crítica literária no os leitores entendem. ALCIR PÉCORA é crítico literário, professor de literatura na mesma data que Martínez, sequer recebe- fatia de calçada com as viúvas de Salinger. cas clássicas e normativas, e ver-se a si mes- Uma perda, reparável, por certo, mas não com a mesma qualidade e sabedoria. ria o favor de um breve necrológio. E tudo por um simples motivo: nosso críti- mo como uma vida nova superior a todas Brasil (dois volumes), O ANDRÉ SEFFRIN é crítico de literatura e artes plásticas, na Unicamp e colaborador da Folha de S. Paulo. Também Não discuto o valor da obra dos estran- co não era paternal, não silenciava diante as antigas e irredutível a elas”. modernismo e Um Brasil com passagem por diversos veículos da imprensa naci- é autor de diversos livros, como Teatro do sacramento, LUIZ ANTONIO ASSIS BRASIL é romancista, ensaísta e cronista. É autor de livros como Videiras de onal. Organizou diversos livros, de autores como Rubem Máquina de gêneros, As excelências do governador geiros falecidos — e muito menos a dor de de erros e omissões, não se fazia de cego ou Encarando a vida da literatura não como diferente, entre outras — e colaborador de veículos cristal, Música perdida e O pintor de retratos, entre vários outros. Braga, Lúcio Cardoso e Samuel Rawett, entre outros. e Rudimentos da vida coletiva, entre outros. suas viúvas brasileiras —, mas se o leitor me surdo quando discordava dos supostos “uma sucessão, mas uma coexistência”, ele Gazeta do Povo O pergunta sobre o porquê desse tratamento di- mandarins da literatura brasileira. Mas o que percebeu na história literária um “todo or- como , Estado de S. Paulo, O Globo ferenciado, quiçá injusto, minha resposta tal- os criticados entendiam como ataque pessoal gânico, no qual os escritores não se sucedem Jornal do Brasil vez não agrade, mas é a única que tenho: era apenas a concretização de um imperativo como os soldados de um desfile, mas se e . Morreu Daniel Castellano/Gazeta do Povo ainda somos um país primitivo, uma colônia caro a Martins: “O clima da crítica é a polê- intercruzam como os filamentos de um teci- em Curitiba (PR), aos 88 PALAVRA CRÍTICA que se encanta facilmente com o ouropel das mica”, ele dizia, “mas não a polêmica de ata- do”. E estabeleceu sua crítica segundo a re- anos, no dia 30 de janeiro cortes estrangeiras. No que se refere à teoria ques e destruição dos adversários, mas o de- gra que considerava ideal, basicamente, de de 2010, deixando a literária, por exemplo, o estruturalismo é ques- bate de idéias, a discussão e o confronto das que ela jamais poderia se “confinar nos prin- esposa, Anna Schmidt RASCUNHO 19, novembro de 2001 tionado na Europa desde a década de 1980 idéias. Este sentido positivo da polêmica faz cípios e métodos de uma determinada famí- Martins, que veio a falecer — e alguns de seus seguidores já lhe deram parte da crítica. O crítico nunca se coloca lia espiritual, mas exigiria, ao contrário, a logo em seguida, no as costas, como Todorov —, mas aqui ele passivamente diante de um livro. Já no pon- contribuição simultânea de todas elas”. Re- dia 18 de fevereiro. O autodidatismo é o único ainda é objeto de culto nas universidades, to de partida ele está encarando aquele livro jeitou, assim, o “monismo de julgamento” método possível para aprender onde há quem leia Derrida e outros de joe- polemicamente. Não contra o livro, mas ele e defendeu, visceralmente, que “não há, em lhos, acreditando que certa terminologia fol- está penetrando naquele mundo com esta idéia crítica literária, pontos de vista ‘errados’: há, as coisas. Não acredito muito em clórica pode dar conta de analisar não só a de verificar até que ponto aquela obra res- mais simplesmente, pontos de vista diferen- cursos de literatura ou de crítica. literatura, mas toda a realidade. Não impor- ponde ao que ela queria ser”. tes”, salientando, de acordo com o seu espí- ta se os estruturalistas e seus continuadores Que culpa Wilson Martins poderia ter se rito liberal e democrático, que “‘tomar to- criaram apenas — no irônico dizer de alguns dos livros que criticou foram escritos das as afirmações sem excluir nenhuma’, Os grandes escritores Thomas Pavel — um “verniz onírico” ou, por pessoas infantis, que só aceitam o gesto como queria Renan, não significa aceitá-las: lembrando o ácido comentário de José Gui- paternal de quem lhes acaricia o cocuruto e significa aceitá-las para discussão”. jamais fizeram cursos. lherme Merquior, uma “teorréia, ou seja, diz, com suavidade, “Olha, você, no fundo, Desapegado em relação aos seus próprios teorização inconseqüente sem qualquer refe- é genial, mas podia dar uma melhoradinha méritos acadêmicos, indiscutíveis, Wilson rente estável”. Importa, sim, o prazer doen- aqui nestes trechos...”? Que culpa ele pode- Martins defendeu a crítica não-acadêmica, pois, Cada vez que uma minoria tio de se submeter ao que vem de fora, acei- ria ter se alguns intelectuais são imaturos, segundo ele, esta “tem o espírito muito mais começa a reivindicar sua tando, sem críticas, qualquer teoria fantasiosa. despreparados para conviver com a aberto para a aventura intelectual, para a novi- Em segundo lugar, há outro motivo para discordância, com o pluralismo de idéias e, dade, para a discussão de idéias”. Defendia, situação de minoria, ela o descaso em relação a Wilson Martins: ele principalmente, para saborear o uso da iro- aliás, um ponto de vista iconoclástico em rela- confirma justamente aquilo que — pasmem! — não era de esquerda, não re- nia, finíssimo em seus textos, mas que al- ção ao “furor teórico” de que somos vítimas: zava pelo catecismo marxista, não acreditava guns preferiam entender como sarcasmo? para ele, certos críticos desejam, no fundo, ajus- quer condenar, que é o gueto. na irrefreável, fatal e invencível revolução que, Diante de tal personalidade, que se em- tar os livros analisados à teoria, o que é im- no galope leninista ou no trote gramsciano, penhou, durante décadas, na ingrata tarefa possível; e não deixou de salientar a subversão um dia levará o proletariado ao poder e à de “higiene crítica”, para usar a expressão por que passa o próprio processo criativo, apon- RASCUNHO 72, abril de 2006 completa destruição do capitalismo. E não de José Guilherme Merquior, e na elabora- tando o comportamento pernicioso de alguns ser de esquerda neste país, ainda mais nos dias ção de uma obra cujo valor raríssimas vezes escritores: “ficcionistas e poetas passaram a es- que correm, é pactuar com monstruosidades. foi alcançado neste país, que somava à eru- crever para os críticos, para agradá-los e con- Os autores descontentes sempre Hoje, são os liberais que comem criancinhas. dição uma metodologia avessa ao pedantis- firmar-lhes as respectivas teorias”. acham que o crítico está errado. Não interessa se Wilson Martins era um mo e à “arrogância epistêmica” que grassam Wilson Martins, com certeza, alcançou irredutível democrata, avesso a qualquer tipo entre nós, e que, contrariando todos os seus o ideal não apenas de crítico orteguiano, mas É normal. Nunca me incomodei de coerção por parte do Estado — um liberal detratores, agia como um gentleman, desti- também de homem: aquele que, verdadeira- muito com isso. Não perco o sono clássico. O que vale, para parcela da lando cavalheirismo, amizade e atenção, o mente nobre, não se contenta em ser apenas intelectualidade, é a carteirinha com a estrela que restou a alguns cardeais da nossa cultu- “reativo”, mas busca impregnar seu tempo porque alguém não gostou da vermelha, ou com a foice e o martelo. Não ra, senão o rancor? O rancor... Ora, o ran- com uma marca indelével — e para tanto minha crítica. O leitor tem o segue o rebanho? Tem idéias próprias? Fora! cor é apenas, segundo a sábia lição de Ortega vive em tensão permanente, num treinamen- Wilson Martins cometeu ainda um tercei- y Gasset, em seu Meditaciones del Quijote, to constante, ou, como nos lembra Ortega y direito tanto de concordar quanto ro pecado: apesar de não ser de esquerda e Gasset, em perfeita ascese. de discordar comigo. O autor não se vergar diante de modismos estrangei- uma emanação da consciência de inferioridade. Humanista, homem da Renascença deslo- ros, venceu. Além da brilhante e respeitável É a supressão imaginária de quem não podemos, cado entre dois séculos perturbadores, nos quais descontente tem o direito de estar carreira em uma das melhores universidades com nossas próprias forças, suprimir realmente. os filisteus impuseram a mediocridade como descontente e de me dizer uma do mundo, elaborou, com altivez e indepen- Aquele por quem sentimos rancor leva, em nossa regra de vida, Wilson Martins cumpriu o que dência, uma obra que será lida, relida e anali- fantasia, o aspecto lívido de um cadáver; com o de- se propôs: “não há espírito crítico que não co- porção de desaforos. sada, nos próximos séculos, por todos os que sejo, nós o matamos, o aniquilamos. E depois, ao mece por criticar a si mesmo, que não duvide pretenderem, de forma isenta, honesta e rigo- encontrá-lo firme e tranqüilo na realidade, parece- logicamente das suas certezas e das suas ver- rosa, estudar ou conhecer não só a literatura nos um morto indócil, mais forte que nossos poderes, dades, que não esteja disposto, se não a dar Quem vê a novela das oito brasileira, mas parte fundamental da nossa cuja existência significa a zombaria personificada, o razão ao adversário (...), pelo menos ‘repen- na tevê tem um conceito de cultura. E uma carreira vitoriosa — sem pen- desdém vivo frente à nossa débil condição. sar-se’ continuamente e recusar-se ao conforto sar ou agir como a maioria — é algo execrável. intelectual”. Graças a esse contínuo exercício, literatura que é diferente do Como alguém pode ganhar respeitabilidade Asceta e humanista a essa austeridade e disciplina realmente meu. O nível mental é outro. sem seguir a manada? A esses, aos que ousam E já que citamos o filósofo espanhol, lem- ascéticas, ele exerceu a crítica com alto construir seu próprio caminho, as igrejinhas bremos que Wilson Martins cumpriu o ide- discernimento, formou gerações de leitores, Não digo que seja inferior nem nacionais premiam com sua arma mais vil: a al orteguiano de crítico, compreendendo recuperou a história da inteligência em nosso superior. É diferente. Tem outros blindagem de mudo desprezo. É a tentativa de aqueles a quem criticava, agindo com a to- país e nos livrou dos piores males: a mesmice e garrotear aquele que cometeu o pior dos cri- lerância que é “própria de toda alma robus- a unanimidade. A esse insigne mestre, nestes parâmetros de julgamento. mes: não ser apenas mais um em meio à turba. ta”, introduzindo “em seu trabalho todas dias de luto, minha profunda reverência.•r 6 rascunho 119 • MARÇO de 2010 O cronista discreto

Antologia de textos de JOSUÉ MONTELLO reaviva a discussão de uma obra há muito tempo esquecida

FABIO SILVESTRE CARDOSO • SÃO PAULO – SP sólida como a de poucos escritores, daquela ge- ração ou mesmo da atual. Em certa medida, é possível dizer que o Exemplo disso se dá quando o autor co- escritor Josué Montello (1917-2006) e o di- menta acerca de seus primeiros dias no Rio plomata norte-americano Henry Kissinger de Janeiro. Aqui, evidentemente, Montello se possuem semelhanças entre si. Talvez nem coloca como protagonista e observador do tanto pela veia da ideologia política, mas, sem derredor, num esforço para resgatar sua traje- dúvida, pelo fato de que Montello e Kissinger, tória e, de quebra, acertar alguns detalhes no cada qual em seu idioma, escrevem o fino no tocante à narrativa de si mesmo, como é o que se refere à narrativa memorialística. E é caso da crônica Trinta anos depois. Do mesmo disso que se trata, aliás, a seleta Melhores modo, em outro momento, o autor não dei- crônicas, organizado por Flavia Amparo, xa de render homenagem a Juscelino Kubi- lançada pela Global. A editora, vale a pena tschek, quando o ex-presidente da República frisar, é responsável pela reedição de muitos decidiu publicar suas memórias. Hoje em dia, Melhores crônicas autores brasileiros relevantes do século passa- trata-se, a autobiografia de JK, de um texto Josué Montello Org.: Flavia Amparo do, mas que, por obra e graça dos novos obscuro, deixado de lado até mesmo pelos Global antologistas e, muito especialmente, das no- especialistas em História da República, que, por 400 págs. vas gerações, são cuidadosamente esquecidos, sua vez, preferem bem mais a narrativa de como se não merecessem um lugar na me- Ronaldo Costa Couto (Brasília Kubistchek mória dos leitores que ora se formam. Josué de Oliveira) e de Cláudio Bojunga (JK: o ar- Montello, um dos principais prosadores da tista do impossível). Ainda assim, Montello língua portuguesa escrita no Brasil, merece arruma um jeito de elogiar a autobiografia, estar nesse panteão não apenas por seu Os enaltecendo, em uma ginástica argumentativa, tambores de São Luís, ou, ainda, pelo Diá- o seu autor, como que emprestando ao texto o rio da Manhã, mas por ter se dedicado de brilhantismo e a imaginação do ex-presidente forma devota à causa da literatura, seja na da República: “Esse homem de letras Academia Brasileira de Letras, seja na impren- (Kubitschek) realizou-se agora, em plenitude, trecho • melhores sa nacional, para a qual colaborou durante nos seus livros de Memórias”. Em outras pa- crônicas décadas, como se lê nesta coletânea. lavras, tentou converter o amigo em bom es- Há duas maneiras de puxar Nesse sentido, observa-se que, mesmo como critor. A impressão que dá é a de que a crônica pela memória. Numa, começa- cronista, Montello nivelava seus textos com é melhor que o livro, novamente tentando es- se a convocar as lembranças base em parâmetros e perspectivas acima da tabelecer um sentido. com estas palavras introdu- média. De um lado, porque não fazia conces- Ao lado dessa premissa, é perceptível, tam- tórias: “Por esse tempo...” Na sões a esse ou aquele grupo de leitores, que, bém, a preocupação com a sua origem. A men- outra, principia-se em tom mais segundo informam as pesquisas de opinião dos ção a seu pai nas crônicas iniciais não é corri- evocativo, assim: “No meu tem- departamentos de marketing, poderiam não se queira, conforme se lê em O amigo que perdi. po...” Pela primeira fórmula, o interessar pela abordagem culta, educada e Ali, o escritor projeta em seu pai a razão de memorialista certamente ainda intelectualizada promovida pelo autor. De seus interesses intelectuais, bem como de suas não passou dos quarenta anos. outra parte, pode-se afirmar ainda que o autor afinidades eletivas: “Já confessei aqui que foi Pela segunda, já alcançou aque- imaginava, a partir de seus textos, estabelecer no exemplo de meu Pai, incansavelmente re- la fase da vida que Montaigne, certo diálogo junto aos leitores, como se estes lendo a sua Bíblia de 1 de janeiro a 31 de no reparo de um de seus En- o tivessem convidado para estar ali, ora na mesa dezembro, que recolhi o gosto da leitura”. Em saios, denominou de subúrbio do café, ora no bate-papo do café da tarde. uma sociedade claramente sectária e ciosa de da velhice. Todos nós, no mo- Assim, mesmo sem ter participado das revolu- seus membros da chamada classe intelectual, mento de recordar, respiramos ções sociais provocadas pelas novas tecnologias a gênese mundana de um nome como suspirando, consoante a frase (Twitter, Facebook, Wikipédia, Orkut e simi- Montello precisava estar articulada com uma de Stendhal. E talvez não haja lares), o escritor maranhense conversava com espécie de vaticínio, ou, melhor dizendo, de exagero de Poeta em Valle seus leitores, de forma franca, sem temer não presságio. Assim, se em Drummond lemos Inclan quando nos adverte que ser compreendido. Tanta segurança não se ori- “Vai, Carlos, ser gauche na vida”, em Montello “las cosas no son como las ve- mos, sino como las recordamos ginava na eventual arrogância de Montello, tal aviso poderia ser emendado como “o esti- ”. que, para o bem e para o mal, era um concili- lo faz o homem”. Ou seja, seu temas, suas ador. A natureza de sua influência, do ponto idéias e sua maneira de escrever estão associ- de vista literário, se baseava na clareza de suas adas diretamente à sua origem e, de forma idéias e na beleza de seus textos. mais específica, à sua formação como inte- lectual no epicentro do poder político e nas Formação sólida entranhas do meio literário. Divididas em sete partes (“Memórias”, “His- Por esse motivo, não é por acaso que Josué tórias da Academia”, “Óbices do ofício”, “Ami- Montello se notabiliza por sua discrição ou, me- gos de sempre”, “Homens e livros”, “Biblioteca lhor dizendo, sua forma comedida no cenário o autor íntima” e “Mestre ”), as Me- das idéias do Brasil. Ainda que tenha sido um lhores crônicas, nesse aspecto, se revelam como dos principais intérpretes da obra de Machado Nascido em São Luís (MA), em parte integrante de um projeto memorial talvez de Assis, como se lê em Uma trilogia da levianda- 1917, JOSUÉ MONTELLO foi um imaginado pelo autor como seu verdadeiro de feminina e em Uma cena erótica em Machado de dos principais escritores brasilei- ros do século 20. Aos 36 anos, leitmotiv literário. Quem lê Montello não tem Assis, talvez sua mais perfeita definição seja aque- chegou à Academia Brasileira de dúvida de que o verdadeiro tema de seus textos la relacionada à figura do homem conciliador. Letras, sendo, até hoje, um dos é a sua observação diante do mundo que o cer- Avesso às polêmicas, infenso ao confronto e, mais jovens imortais da ABL. Pu- ca. Um universo, a um só tempo, particular e infelizmente, desprovido daquela verve que ape- blicou vários volumes de ensaio a peculiar, repleto de amizades célebres, políticos nas faria crescer seu estilo. Em vez disso, respeito da obra do Bruxo do ilustres e, obviamente, repertório literário. Ora Montello preferiu o consenso, embora não fosse Cosme Velho, como Os inimigos de forma explícita, ora de forma implícita, um homem simplório que apenas regurgitasse de Machado de Assis. Entre seus Montello sempre dá um jeito, em seus textos, o senso comum. Um defeito de caráter, dizem livros, destacam-se, Diário da de imiscuir, aqui e acolá, uma referência aos alguns, é a incapacidade de se posicionar. Essa Manhã, Os tambores de São Luís, mestres: a diligência de ; o postura, tão comum entre certa intelectualidade, Histórias da vida literária e O talento de Eça de Queirós; o estilo de Machado em Montello talvez não fosse assim tão ingê- baile da despedida. Além de es- critor e jornalista, Montello foi, ain- de Assis. Para o escritor radicado no Rio de nua, mas premeditada. De qualquer maneira, da, embaixador do Brasil junto à Janeiro, as ocasiões sempre podem ser analisa- ao contrário de Henry Kissinger, Montello não Unesco e conselheiro cultural da das tomando emprestado o edifício sólido da permaneceu no debate de idéias. Morto em Embaixada do Brasil em Paris, literatura, sobretudo no tocante aos clássicos. 2006, a discussão sobre sua obra desapareceu além de presidente da Academia Nem sempre o efeito é o mesmo, pois, com o bem antes. Com essas Melhores crônicas, es- Brasileira de Letras. Morreu em tempo, algumas ilações soam desnecessárias. pera-se que seu nome volte à arena da qual 2006, no (RJ). Todavia, nota-se que a formação de Montello é jamais deveria ter saído.•r BREVE RESENHA ESPINOSA SOBREVIVE PAULO KRAUSS • CURITIBA - PR

No início de Céu de origamis, Garcia-Roza retorna com os tradicionais ingredientes das aventu- lia, secretária competente e dedicada do dentista desaparecido; e novo romance policial de Luiz Alfredo ras de Espinosa: mortes, suspense, uma linda mulher a atormentar o a mulher deste, que tenta seduzir Espinosa e busca armar uma Garcia-Roza, o delegado Espinosa delegado. Até o jovem filho de Espinosa volta do exterior para morar situação que coloque a carreira do delegado em xeque, justamen- ainda se recupera da cirurgia sofrida com o pai, adicionando à obra algumas páginas interessantes sobre a te no ponto que Espinosa mais valoriza, a ética profissional. Ela após o seu último caso, quando foi es- relação entre os dois. A verdade, porém, é que Espinosa não sabia ser consegue inverter a situação. De suspeita, passa a vítima e acusa- faqueado e quase morreu. Este novo pai. Faltava a ele a experiência continuada que é a única que habilita os dora, enquanto Espinosa passa de investigador a acusado. E o livro marca a sobrevivência de pretendentes a pais. Ele nem sequer era pai de fim de semana ou pai pior é que, se examinarmos fria e cuidadosamente cada acusação Espinosa, não apenas literalmente. quinzenal. Era pai de férias anuais. Surgira entre eles uma sintonia feita por ela, o conjunto é perfeitamente coerente, embora falso. Nos dois últimos trabalhos de cujo ajuste era anual, e não diário. Eram dois estranhos que se queriam Espinosa é tão bom que é lamentável que não tenha um tratamen- Garcia-Roza, Na multidão e Espinosa bem, e que não sabiam como praticar esse querer bem. to melhor na editora de Garcia-Roza. Sem dúvida, o delegado criado sem saída, os fãs do delegado pude- A trama é bem construída, bem escrita, instigante, com bons por Garcia-Roza é um personagem consolidado na literatura brasilei- ram temer pelo destino literário do diálogos e discussões realistas sobre a vida dos personagens. Dis- ra, que poderia ser mais popular com uma estratégia mais ousada de personagem, estrela de oito em nove cussões que fazem o leitor refletir mais que nos livros anteriores publicação e divulgação. Ele está muito acima do modelo simples de Céu de origamis romances do escritor carioca. Parecia do inteligente delegado. edição que a Companhia usa nos romances policiais que publica. Luiz Alfredo Garcia-Roza que Espinosa, ou mais propriamente São ingredientes que tornam os romances com Espinosa mais A volta de Espinosa, em grande e consistente estilo, é tão grati- Companhia das Letras seu criador, estava perdendo o fôlego. que simples histórias policiais, pois fazem o leitor encantar-se 264 págs. ficante que supera a falha nas três últimas linhas de Céu de origamis, Céu de origamis revigora com o carisma e com a consistência humana do personagem. em que Garcia-Roza sucumbiu à obviedade dos filmes policiais de Espinosa, ainda que o livro tenha Ingredientes que os leitores de Espinosa já estão acostumados a segunda linha. Não fosse o carisma de Espinosa e a alegria por seu uma derrapada feia em seu desfecho. Mesmo em licença médica, encontrar, e que nos dois últimos livros foram atrapalhados pela retorno, esta resenha poderia até ser sobre como três linhas podem Espinosa é procurado para investigar o desaparecimento misteri- inverossimilhança na trama, em Na multidão, e por erros de estragar um bom romance de 264 páginas, até então irretocáveis. oso de um dentista, que sumiu sem qualquer vestígio de violência continuidade, em Espinosa sem saída. Espinosa é um policial tão eficiente que salvou até seu criador, ou suspeita de que possa ter sido assassinado ou seqüestrado. Céu de origamis tem personagens interessantes, como Cecí- pelo menos nesta resenha. Bom retorno e vida longa ao delegado.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 7

ROBERTO LOTA • RIO DE JANEIRO – RJ

Quando estamos diante de um autor con- siderado “grande”, a crítica pode incorrer Vôo lírico em alguns erros: um será sempre o conserva- dorismo de repetir as mesmas máximas e opi- niões, mantendo-se sempre na confortável Com O ALBATROZ AZUL, João Ubaldo Ribeiro reforça posição de estar à margem das polêmicas; outro é cair na ofensa e na desconstrução seu nome entre os maiores escritores da literatura brasileira gratuitas, tentando o crítico buscar algum tipo de reconhecimento ou ainda a mera di- ferenciação, muitas vezes oca. Porém, essas duas linhas sempre convergem para a mes- ma direção: a completa nulidade da exegese da obra. Por isso, o maior respeito que um crítico pode destinar a esses autores é exata- mente aquilo que lhe cabe como função pri- mária: a análise da obra de forma a lhe pre- servar o frescor do ineditismo e não permitir que os livros recém-lançados sejam lidos como se fossem mais do mesmo. Ao longo da trajetória de um autor, a produção de uma única obra-prima, de uma única obra de arte já seria o suficiente para olharmos o artista com toda deferência e admiração. Se João Guimarães Rosa “só” tivesse escrito Grande sertão: veredas em toda sua vida, ou Stendhal “apenas” O ver- melho e o negro, nada mais precisaria ser escrito para já os considerarmos como os maiores. É o que acontece com autores da estatura de João Ubaldo Ribeiro. O baiano é um desses escritores que já marcaram seu nome nas nossas letras com pelo menos dois livros: Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio. Por isso, a publicação de O albatroz azul nos causa tanta emoção.

Renascimento João Ubaldo recentemente enfrentou vári- os problemas na sua vida particular — como a depressão e o alcoolismo — que, entre ou- tras coisas, influenciaram no hiato de sua pro- dução (o ficcionista não lançava um livro des- de 2002, o sombrio Diário do farol). “Co- mecei a fazer, mas tive problemas de computa- dor terríveis, parecia maldição. Aí perdi a em- bocadura”, disse o escritor numa entrevista a Cristiane Costa, para a revista Bravo!. “Então comecei a escrever outro livro, que parecia ser este. Mas estava me saindo descomunal, uma Montanha Mágica qualquer. Eu ia fazer um livrão, mas ele se recusava a sair. Aí pensei cá comigo: ‘Ninguém lê livrão’. Deixa sair pe- quenininho mesmo”. Vencidos os problemas, JOÃO UBALDO RIBEIRO por Ramon Muniz João Ubaldo viu sua vida dar uma guinada, alçando novos vôos. Em 2008, o autor foi agraciado com o prêmio Camões, atribuído aos maiores escritores de língua portuguesa. que nada saísse errado, por isso pretende dar de Tertuliano: “Até porque não somente sem entendemos porque, em mio a uma pós- Agora, seu mais recente livro, O albatroz azul, a seu neto toda a proteção possível. sinais consiste ele, mas em largo cabedal de modernidade de escritas vazias, de violências vem recebendo (merecidos) elogios da crítica. saberes zelosamente atabafados ao longo das e sexualidades gratuitas, o baiano é hoje uma A tudo isso, soma-se outro fator funda- E assim tudo foi feito, sem se perder a eras, cujo rol quiçá jamais se finde”. das referências da grande prosa brasileira. r mental: João Ubaldo Ribeiro vem mostrar cerimoniosidade do instante e sem se cair no exagero. Há também a fala religiosa de Iá Cencinha: • que o tempo só lhe fez bem. Como uma (...) Altina passou o menino ainda gosmento a seu escrita vigorosa nessa história lírica e sabo- avô, que o levantou com o traseirinho na direção da Deus sabia que ela era uma serva fiel e cumpridora rosa, o escritor transforma simplicidade em lua e assim o manteve enquanto rezava um padre- de seus deveres. Pecadora como qualquer filha de apuro estético e, assim como seu mais novo nosso e uma ave-maria, seu próprio rosto também Eva, desconhecia contudo dama mais assídua na protagonista, Tertuliano, mostra que o vi- voltado para o alto e muito sério, os olhos fechados e igreja, coração mais inundado de amor a Deus Oni- gor, a sabedoria e a experiência advindas as mãos vibrando. Algumas mulheres murmura- potente, à Imaculada Virgem Santíssima, ao glori- com o tempo são a base que solidifica uma vam orações em língua da terra, língua de padre ou oso Santo Antônio e a todos os santos, afinal. carreira fundamental nas letras brasileiras. língua de jeje ou ioruba, ou alguma outra de O albatroz azul é um livro que narra com trambolhada, de que só se sabe mesmo repetir a reza. E a fala repleta de ditos oriundos de uma singeleza e beleza a existência de Tertuliano sabedoria popular: “De burra que faz hin e Jaburu. Partindo da reflexão do protago- Após o nascimento e o vaticínio, Tertuliano de mulher que fala latim livra-te tu e a mim” nista a respeito da própria vida, o livro se se ocupa, primeiramente, das partes práticas no e “Noivar sem pensar é namorar com o azar”. constrói na confluência de dois momentos: que concerne à criação do neto. Num primei- na espera de Tertuliano pelo nascimento do ro momento, tratou de escolher o nome do A vida que poderia ter sido único neto, Raymundo Penaforte, nascido infante, “Raymundo Penaforte, nome escolhi- Quando Tim Burton dirigiu, em 2003, o O albatroz azul de sua filha Belinha — depois de sete meni- do por motivo relevante, boa ressonância, com- filme Peixe grande, fomos acometidos por João Ubaldo Ribeiro nas —, e na rememoração de sua existên- posição bem casada”. Aqui, João Ubaldo re- prazerosa emoção ante ao desfecho da histó- Nova Fronteira 240 págs. cia, que irá culminar na busca pela com- vela o sentimento que as pessoas mais simples ria que nos era contada com tanto lirismo. O preensão de seu fim. O que ocorre paralela- têm ao nomear o filho, conscientes de que o enredo versava sobre um homem que vivia entre mente a estes episódios são lições sobre a nome não só acompanha a criança a vida in- a realidade e o surreal. No desfecho de sua vida simples de uma ilha na Bahia, teira, mas é responsável também pelo destino vida, ocorre a reconciliação com o filho, coisa reveladora da importância dos ditos popu- delas. Após isso, Tertuliano passa à escolha dos que parecia improvável, e a transformação de trecho • o albatroz azul lares e da escolha dos nomes dos filhos. padrinhos. Nesse momento confirma-se o pre- seu corpo num grande peixe que nada para Dessa forma o livro funciona quase como núncio de uma vida de bem-aventuranças para longe. Em O albatroz azul esse lirismo é reto- Desde cedo, os mais velhos procu- um convite a sentarmos num banco de pra- Raymundo. Convidando Seu José Honório e mado, com alguns pontos de contato. ram mostrar aos novatos na vida que ça sob uma árvore e acompanharmos a his- Dona Roxa Flor, um casal rico que morava Um desses encontros é o final de um ciclo. nada resiste ao poder circunspecto da tória que se desdobra à nossa frente. nas proximidades da região, surge a surpresa É como se diante de todos os vaticínios e pres- maré, a qual não faz alarde nem estar- por parte do futuro padrinho. Querendo há ságios a vida esperasse o tempo que fosse ne- dalhaço, mas ignora o que lhe esteja à O espiritual e o telúrico muito adotar uma criança após ter os filhos cessário para que tudo se realize. No filme, a frente e cumpre infalivelmente o seu cur- Tertuliano é um homem que vive no li- criados, Zé Honório não só aceita como tam- reconciliação de pai e filho; no livro, a prepa- so, lição que, se levada em conta, con- miar entre os mundos telúrico e espiritual. bém faz questão do apadrinhamento. Resolvi- ração de Tertuliano para seu neto, para que ele duz a uma existência bem menos inqui- eta do que ela sempre procura ser. Somando isso à sabedoria que o tempo lhe das as questões de natureza mundana, tenha uma vida de acertos. Retomando o pon- imprimiu, o protagonista inicia ao longo do Tertuliano irá buscar na interioridade anímica to de contato com o surreal, ou melhor, o espi- livro uma grande travessia em que espera en- de si mesmo o sentido de sua existência. ritual, Tertuliano percebe que sua vida está no contrar o sentido da sua própria existência, fim, e que há outra vida ao lado da de reconciliando-se com o passado e buscando As vozes da consciência Raymundo Penaforte. Somente quando ele o autor compreender as nuances do futuro. Já no pri- Em Problemas da poética de descobre que essa era a vida de sua mãe — meiro capítulo, o personagem conhece o ca- Dostoievski, o teórico russo Mikhail Bakhtin vida essa que (lembrando ) JOÃO UBALDO RIBEIRO nasceu na Ilha minho o qual irá percorrer: “Tertuliano ima- afirma que “no romance polifônico a consci- podia ter sido, mas não foi — é que o ciclo se de Itaparica (BA), em 23 de janeiro de ginou que tudo o que iria ocorrer naquele ência do herói é dada como a outra, a consci- fecha totalmente. Todas as conclusões tiradas, 1941. Publicou seu primeiro roman- começo de dia já era sabido e ressabido em ência do outro, mas ao mesmo tempo não se Tertuliano se prepara para partir. É iniciado ce, Setembro não faz sentido, com algum lugar, de alguma forma”. apenas 21 anos. Escritor versátil, pos- objetifica, não se fecha, não se torna mero ob- brevemente por um holandês empedrado que sui obras que são verdadeiros marcos O ponto culminante dessas reflexões tem jeto da consciência do autor”. Essa é a realida- o leva a certos pensamentos filosóficos e a par- da literatura brasileira, como Sargen- como marco o dia do nascimento de seu neto de que encontramos em O albatroz azul. tir daí dorme. Numa mistura entre espaços re- to Getúlio e Viva o povo brasileiro. Raymundo Penaforte. De todos os outros Narrativa na qual escutamos as vozes dos per- ais e oníricos, Tertuliano tem a impressão que Prosador de escrita vigorosa, mas que netos que teve, com Raymundo há uma es- sonagens como vivos, guardando total indivi- seu corpo começa a voar e percebe que se tor- não se mantém hermético ao grande treita relação, sentida e sabida antes mesmo dualidade entre si, em mundi,vidências pró- nou um imenso albatroz azul, “singrando as público, João Ubaldo Ribeiro vendeu do nascimento do garoto. Tal relação é cor- prias que criam os tipos mais diversos. E essa é alturas de que doravante será morador” mais de 500 mil exemplares de seus roborada por seu amigo de infância, Nestor a força do texto de João Ubaldo Ribeiro. Um O livro de João Ubaldo Ribeiro, mais do últimos romances Miséria e grandeza Gato Preto, homem “familiar ao oculto, ao ponto fundamental a mencionar é que, no li- que um simples contar de histórias, é um tex- do amor de Benedita, A casa dos . sagrado e ao espiritual”, que vaticina que ao vro, as vozes dos personagens, a despeito de to que nos leva a grandes reflexões existenci- Budas ditosos e Diário do farol Co- lado da vida do recém-nascido havia “uma nem sempre suas falas aparecerem num dis- ais a partir da singeleza da vida. Construído laborador de diversos jornais no Bra- vida vazia, certamente a preencher”. sil e no exterior, o autor é Membro da curso direto, são plenamente ouvidas e extre- sobre os silêncios do pensamento e a certeza Academia Brasileira de Letras desde A força do espiritual do momento mamente diferenciadas. Nessa técnica do mo- de que a morte é mais uma etapa da vida, o 2003. Foi agraciado em 2008 com o é marcada, também, pelas condições do nas- nólogo interior associada à polifonia mencio- lirismo e a poeticidade pululam a cada pági- prêmio Camões, dado aos maiores es- cimento do menino. Aproveitando a rarida- nada anteriormente somos capazes de ouvir na. Em construções artesanais da prosa, além critores de língua portuguesa. de da situação, Tertuliano deseja fazer com com prazer o discurso recheado de sabedoria do fôlego que se mantém do início ao fim, 8 rascunho 119 • MARÇO de 2010

PALAVRA POR PA LAV RA RAIMUNDO CARRERO Tem barulho? O cenário resolve

UMA VIAGEM NA NARRATIVA MOSTRA O REQUINTE DA TÉCNICA

Atenção: não se pode transformar o ele- a intimidade da obra literária. Repito. Sem- léguas. Fazia horas que procuravam uma som- ra árida — e dá continuidade ao cenário mento artístico em trabalho burocrático. pre tive escrúpulos para escrever sobre esses bra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe de abertura. Neste caso o cenário é superior Cena aqui, cenário acolá, diálogo mais assuntos. No entanto, pouco a pouco, fui através dos galhos pelados da caatinga rala. à ação. Por isso o cenário sobre cena. E adiante. Todos sabemos disso. Criação é me convencendo de que essa espécie de di- depois cenário. Destaque-se bem este movi- disciplina, tudo bem. Mas é possível sepa- dática — tantas vezes considerada inútil Por que cenário sobre cena? Porque o mento interno. Mas é preciso fechar o pará- rar, cuidadosamente, as partes de um roman- — concede uma visão específica sobre a cenário encobre a ação dos personagens, grafo com o cenário. Se por acaso não se ce, por exemplo, para conhecê-lo na intimi- composição da obra de arte literária. embora examinado por esses mesmos per- fecha, a ação corre em paralelo, e não den- dade. O domínio da técnica é fundamen- O que é um cenário sobre cena? sonagens. Em síntese: o cenário prepara a tro do cenário. Não vão ter continuidade tal. De forma que além do estudo das cenas Basta observar o exemplo que temos apresentação dos personagens, ainda que sempre. Infinito. Está bem? — movimentos — e dos cenários — sem aqui em Vidas secas. Didaticamente: a) O seja numa única linha. movimento —, em separado, precisamos cenário abre o parágrafo, que terá b) conti- Agora copie, literalmente copie, o pará- verificar a forma como vão se relacionan- nuidade com uma cena, e c) fecha com um Cenário: “Na planície avermelhada os grafo de Graciliano Ramos. do sem que o leitor perceba. Além disso, os cenário. Esses movimentos rápidos, são juazeiros alargavam duas manchas verdes”. ______cenários podem esconder ações que não capazes de seduzir o leitor, com grande Cena: “Os infelizes tinham caminhado ______parecem importantes e vão, pouco a pouco, habilidade. O narrador, contudo, pode usá- o dia inteiro, estavam cansados e famintos. enredando o leitor desprevenido. la com várias finalidades. Entre outras coi- Ordinariamente andavam pouco, mas como Vamos criar um cenário que substitua o O cenário, já dissemos, esconde ou anu- sas, para esconder do leitor as verdadeiras haviam repousado bastante na areia do rio do livro. Só o cenário, a cena é a mesma. la a ação — vejam o exemplo de Educação intenções narrativas. Sempre assim: seco, a viagem progredira bem três léguas. Lembrando: abre-se o texto com um cená- sentimental, de Flaubert, ou Adeus às ar- O narrador deve usar as técnicas que lhe Fazia horas que procuravam uma sombra”. rio, e fecha-se com outro cenário. A cena mas, de Hemingway — e a cena permite pareçam mais apropriadas para aquilo que Cenário: “A folhagem dos juazeiros fica no meio. maior agilidade à narrativa: os romances quer alcançar. O que pretende? Qual é o jogo? apareceu longe através dos galhos pela- ______de sucesso geralmente trabalham com cena Como atrair o leitor para as conveniências do dos da caatinga”. (Copie a cena como está no livro) sobre cena. Aqui, vamos estudar cenários texto? Qual a estratégia? Quais as estratégias? ______sobre cena, que permitem equilíbrio no No exemplo seguinte, observaremos que Então agora se pode observar, com a mai- movimento interno do texto. Observem que o narrador do romance quer, de imediato, or clareza, os movimentos internos que com- Invente seu exercício, lembrando-se: pri- não estamos falando, de propósito, em his- colocar o leitor dentro da história, cujo põem o parágrafo. Através de leves referênci- meiro o cenário, depois a cena, e fecha com tória ou enredo, mas de narrativa e texto, cenário é o personagem principal, porque as ao cenário, que abre e fecha o texto, o um cenário. técnicas que, de forma alguma, são iguais. através dele transcorre o drama dos reti- narrador prepara o leitor para o drama dos ______Sem esquecer nunca que história é uma téc- rantes, junto com o cenário — que não se retirantes de Vidas secas. Aqui há uma técni- ______nica — não envolve trama, por exemplo — afastam um do outro. Portanto, nada mais ca, estamos examinando, que precisa ser estu- , enquanto enredo pede uma história com correto do que criar um cenário sobre cena. dada com atenção: um perfeito cenário sobre Não tenha vergonha ou escrúpulo de suspenses e movimentos. Ou seja, os movimentos dos personagens cena. Neste caso específico, o cenário prepara fazer aquilo que os músicos e os artistas Há, pelo menos, duas maneiras de con- — ação — são motivados pela inclemên- o leitor para o que vem a seguir. A boa litera- plásticos fazem continuamente. Todos os duzir o texto nessas situações: a) Cenário cia da seca — cenário. É aí que está a ver- tura é feita nesses mínimos detalhes. Algo artistas se exercitam sempre. Todos. Os es- sobre cena; e b) Cena sobre cenário. É aqui dade do texto. É claro que pode haver ou- quase imperceptível ao leitor, mas profunda- critores imaginam que podem tudo sem es- que esse tal trabalho burocrático começa a tra estratégia, como não. Contudo, o que mente bem elaborado. Aí se mostra o gênio tudar. Mesmo os cineastas gastam fortunas desaparecer. Desaparecem o cenário puro e importa aqui é análise pura e simples do do autor. Na obra de arte, a técnica sempre é para repetir cena por cena, diálogo por diá- a cena pura. Começam a confundir o lei- que temos diante dos olhos. sutil. Rápida, leve. A principal função é sedu- logo, cenário por cenário. Flaubert não só tor. A questão é que o cenário sobre cena Para estabelecer a função da cena, que zir o leitor. Repito sempre. Exaustivamente. escrevia e reescrevia como pedia ajuda a concede menor velocidade ao texto, e a cena é de atrair o leitor imediatamente, o É sempre interessante destacar que o ce- amigos. Lia, relia. Não acredite em litera- sobre cenário faz a leitura correr mais rápi- narrador procura os efeitos mais eficazes, nário sobre cena dá um privilégio à tura espontânea. Jack Kerouac chegou a da. Bastam observação e estudo. Sem es- impondo um cenário inquietante. ambientação onde se desenrola a ação. Por- escrever uma versão de On the road em quecer, ainda, um pouco mais adiante: a) Então vamos passar para o estudo des- tanto, o cenário prepara a ação/cena. E, francês, e reescreveu o romance várias ve- Cenário sobre cenário; e b) Cena sobre cena. ta técnica. logo depois da ação/cena, volta ao cená- zes. Aquela mentira de que ele escreveu o Usaremos textos de Graciliano Ramos rio. O que mostra, com clareza, que cenári- livro em quarenta dias é mentira mesmo. para o estudo de cenários sobre cenas. É Cenário sobre cena: os e personagens ocupam um só espaço, o Repita o exercício quantas vezes forem algo valioso e muito importante, porque mesmo espaço, estão unidos. Porque pode necessárias. Na próxima coluna, trataremos estabelece um jogo de sedução do narrador Na planície avermelhada os juazeiros alar- acontecer também de ambos ocuparem es- de cena sobre cenário. r sobre o leitor, fazendo-o apreender o espíri- gavam duas manchas verdes. Os infelizes ti- paços diferentes, criando uma contradição. • to do livro, segundo suas próprias estratégi- nham caminhado o dia inteiro, estavam cansa- Situações opostas. Sem dúvida alguma. NOTA: A coluna de Raimundo Carrero é publicada as. É preciso dominar o assunto, sem que dos e famintos. Ordinariamente andavam pou- Observando bem, a cena, embora indi- originalmente no jornal Pernambuco, de Recife. A re- signifique camisa-de-força. O artista é livre, co, mas como haviam repousado bastante na reta, subjetiva, se refere a um acontecimen- publicação no Rascunho faz parte de um acordo sempre. No entanto, é necessário conhecer areia do rio seco, a viagem progredira bem três to geral — a viagem dos retirantes pela ter- entre os dois veículos.

segunda a sábado 11h30 às 20h

domingo 12 às 15h30

gastronomia & cultura

Avenida Batel, 1440 41 3078.6044 www.quintanacafe.com.br twitter.com/quintanacafe 119 • MARÇO de 2010 rascunho 9 Sala de espera Protagonista de O MOMENTO MÁGICO, romance de Márcio Ribeiro Leite, espia a vida pela janela enquanto a morte não vem

ANDREA RIBEIRO • CURITIBA – PR cia do médico com pacientes idosos — mui- ceira vez o mesmo pensamento, a mesma tos deles terminais. Escrito em apenas dois vontade mórbida de se encontrar com o filho Não era só porque ele tinha cabelo branco e meses, O momento mágico parte do seguinte afogado, sentimos na pele o tédio, o desprazer pele flácida, não. Adalberto não via mais senti- questionamento: quando não há mais como e a angústia daquele homem. De que o leitor do em continuar vivendo porque já havia sido viver com dignidade, ainda vale a pena conti- vai querer que Adalberto morra — e logo — privado de sentir cheiros e gostos, tivera as per- nuar respirando, comendo bolachas, toman- , não há dúvidas. O problema é distinguir se nas paralisadas, um dos pés amputados, convi- do banho? O que se passa na cabeça de al- ele quer que o velho seja levado por Caronte via com uma tosse crônica — fruto de seu amor guém que não tem mais nenhuma perspecti- por se condoer e compreender sua situação pelo cigarro —, era praticamente surdo e não va de felicidade? Felizmente, o livro não nos ou porque está cansado da ladainha. r controlava muito bem suas necessidades fisio- dá respostas ou lições de moral. O escritor • lógicas. Inferno seria fichinha diante do que lhe preferiu se dedicar ao pensamento, às vezes sobrara. Logo ele, que sempre fora um apaixo- confuso, de um homem que já não vê na pas- nado — pela vida, pelo mar, pelo filho e pelas sagem do tempo mais do que tique-taques in- mulheres —, condenado a ser apenas especta- termináveis. Não há preocupação em justifi- o autor O momento mágico car os desejos e ações de Adalberto. Isso não dor de histórias alheias. Histórias, aliás, que Márcio Ribeiro Leite ele mesmo inventava. Do alto de sua cadeira de Record importa. O que importa é que aquele velho MÁRCIO RIBEIRO LEITE nasceu me rodas motorizada diariamente posicionada na 175 págs. está completamente desprovido de dignida- Salvador (BA), em 1957. Formou-se varanda do apartamento com vista para o mar de e quer ter o direito de morrer. em Medicina pela Universidade Fede- de Salvador, imaginava as belas vidas que teri- ral da Bahia, com especialização em am aquelas pessoas do outro lado da rua. Mais de uma hora se passou até que alguém Clínica Médica. Em 1985, começou a O protagonista do romance O momento dão, escolheu uma delas e levou para o aparta- viesse limpá-lo. Sentia toda a impotência de es- trabalhar como médico clínico, na ca- mágico, estréia literária do médico soteropo- mento. Mas não conseguiu fazer nada do que tar sobre um monte de merda, deslizar sobre ele, e pital baiana. Anos depois, insatisfei- litano Márcio Ribeiro Leite, sofre com a havia planejado. Pelo contrário. Ficou sem ar, nada poder fazer, a não ser esperar. Esperar que to com a medicina convencional, es- pecializou-se em homeopatia e psico- decrepitude de seu corpo de 88 anos. É um zum- desesperado e completamente roxo. Cereja do alguém o alcançasse em sua dignidade ferida, e logia junguiana. O momento mágico é bi, pele e ossos que a dona morte esqueceu de bolo, a puta lhe tacou alguma coisa pesada na fosse capaz de condoer-se a ponto de ajudá-lo. seu primeiro romance. levar. De vez em quando, ao observar o sol lam- cabeça e lhe roubou todo dinheiro. Aquele lugar ensinava-o a virtude da resignação, bendo aquela água salgada e deixando tudo dou- A vida de Adalberto era mesmo um infer- pois, quando a impotência supera todos os limi- rado, lembrava de sua própria vida. Bem ordi- no. Por que não tinha morrido com a porrada tes, é a única coisa que resta. nária, na verdade. Não fez nada de muito inte- na cabeça? A morte só podia estar de brinca- ressante. Sequer teve coragem ou disposição deira! Então, o negócio seria desafiá-la. Como? O momento mágico provavelmente se- para aprender a surfar, apesar do desejo de do- Suicídio é complicado. Não é qualquer um que ria mais contundente se se estruturasse como trecho • mar as ondas, como o faziam todos os dias aque- consegue dar cabo da própria existência. Deus uma novela, muitíssimo mais curta. O fôle- o momento les garotões sarados que ele admirava de longe. podia não gostar. Mas, como não era, assim, go necessário para um romance é pequeno. mágico um grande fiel, decidiu que ia se matar. Ele Teve três filhos: um homem e duas mulheres. O final é totalmente previsível. Ainda falta Não encontrava explicações. Re- tinha esse direito. Não dizem por aí que há o O preferido, ainda muito novo, foi levado pelo um pouco de traquejo para o escritor baiano. cusava-se a entender o motivo de tão livre-arbítrio? Então, ia escolher o caminho que mar — bem aquele que dividiam a bordo de A escrita é regular, sem muitos sobressaltos, angustiante espera. Todos deviam ter quisesse. Tentou várias alternativas: inanição, um barquinho. As duas meninas que sobra- mas o texto poderia correr mais suave, sem o direito de decidir o momento de mor- tiro, queda livre pela janela do apartamento... ram... Bem, ele não gostava muito das filhas. buracos. Como quando passamos por lom- rer, pensou. Mesmo admitindo a pos- Mas a morte não chegava. Nem mesmo por Acontece. Da mulher, Iracema, não gostava de badas na estrada, somos lembrados a todo sibilidade de alguém enganar-se com suas próprias mãos. Além de inválido, velho e lembrar. Ela já estava a sete palmos do chão instante que: Alberto tem 88 anos; o filho relação a esse momento, nada justifi- infeliz, Adalberto era um suicida fracassado. havia muito. Mas não era por isso que a lem- preferido morreu; ele acha que a morte o es- caria a torturante espera de um ve- Teria de esperar sua vez. Gostaria que fosse ao brança o incomodava. Era por culpa, mesmo. queceu; o corpo dele é decrépito e flácido; lho solitário abandonado à própria sor- nascer do sol, quando o mar estivesse brilhan- Fidelidade nunca foi seu forte. Experimentou ele ama o mar; na frente do apartamento dele te. Carregando sobre o corpo o fardo do feito ouro. Se não morresse nesse cenário, todo o tipo de rabo-de-saia que passou por seu há uma baiana vendedora de acarajés, uma da idade avançada, a maldizer os jo- pelo menos que as duas filhas respeitassem seu caminho. E — memória intacta, interessante! floricultura e surfistas; ele nunca aprendeu a vens, a morte, a Deus. Que alguém desejo de ser cremado e de ter suas cinzas espa- — lembrava delas todas, para seu desespero. surfar; ele acha que a melhor parte do dia é o tivesse piedade e fizesse alguma coi- lhadas pelo mar, ao amanhecer. Ter um harém mental e não poder fazer absolu- amanhecer, quando o sol tinge o mar de dou- sa. Ele não tinha mais forças nem para tamente nada a respeito era tortura chinesa. Foi rado; as filhas dele são chatas; ele quer mor- morrer decentemente. Estava esgo- por isso que, num estalo, decidiu que não ia Dignidade rer; ele quer ser cremado e jogado no mar. É tado. Onde estava a morte que não O romance, que recebeu o Prêmio Sesc de passar dessa para melhor sem sentir pela últi- visível a preocupação em colocar o leitor na se apresentava para o serviço? ma vez o gosto de uma mulher. Até foi ao calça- Literatura de 2008, é resultado da experiên- pele do velho. Ao ler uma e outra e uma ter- 10 rascunho 119 • MARÇO de 2010 Elogio ao simplório

No fraco REIMA, Dau Bastos erra ao se postar entre Cassandra Rios e

MAURÍCIO MELO JÚNIOR • BRASÍLIA – DF deslumbramento do estrangeiro frente ao exóti- co tropical, a xenofobia do europeu contra os A literatura brasileira atual cada vez mais pobres do terceiro mundo. E tudo dito com a se enfurna numa encruzilhada. Vencido o linguagem deliberadamente franciscana. ruralismo dos anos de 1930 e assumido de ma- neira definitiva o urbanismo como cenário e Ao cair da tarde Nicole ia para o mirante e per- ponto de apoio estético, entrega-se a dois te- manecia em pé, com os braços abertos, a saborear o mas básicos: a violência e o sexo. É certo que a vento. A visão do oceano levava-a a pensar no outro violência bate à porta de todos cotidianamen- lado, onde se encontrava sua França querida, po- te e a sexualidade se tornou uma espécie de rém antiga e arrumada a ponto de relegar as novas gênero de primeira necessidade, no entanto gerações ao tédio. Enquanto isso, o Brasil ainda es- uma das mais caras chaves da literatura é de- tava por ser feito, pois lhe faltava desde escolas até bater e alertar para o que se esconde sob a su- moradias, sem falar na partilha urgente do perficialidade. Graciliano Ramos sistematiza patrimônio nacional, que não podia ficar nas mãos Reima a fórmula ao escrever todo um romance no- de umas poucas famílias. Dau Bastos Record turno, Angústia, no cenário solar de Maceió. 384 págs Ao invés de transitar pela obviedade marinha, Supostamente para encontrar solução para prefere circular por quintais soturnos, umidi- estes, digamos, dilemas que assolam Brasil e ficados, plenos de mofo e musgos. França, dois personagens, Boiô e Nicole Já a maioria dos escritores atuais se entre- embrenham-se de cabeça na vida de estrangei- ga ao óbvio. Dau Bastos, romancista que es- ro. Aliás, os dois inicialmente são amantes, mas tréia em 1984 com uma narrativa instigante, ele, bissexual assumido, a abandona, e ela se Das trips, coração, em seu mais novo roman- manda para o Rio de Janeiro à sua procura. ce, Reima, cai na facilidade dual do sexo e da Como ele já voltara para a Europa com a dis- violência. O livro se passa no Rio de Janeiro posição de viver entre a miséria que lhe premia o autor onde um condomínio de classe média, o a música e o glamour que lhe oferecem os ca- Equitativa, no bairro da Santa Tereza, sobre- sos com ricos homossexuais, ela torna-se aman- DAU BASTOS nasceu em vive entre os tiros dos traficantes encastelados te e conselheira do chefe do tráfico Camarão. Maceió (AL), em 1960. Pu- nos morros dos Prazeres e do Cerro Corá. Novamente se imbricam o sexo e a violência blicou os romances Das Neste cenário circulam personagens chapados, numa solução já fartamente explorada pelas trips, coração, Sniff e estereotipados e sintéticos, como o músico pornochanchadas da década de 1970. Clandestinos na América, a bissexual Boiô, a sensualíssima síndica Cla- Há uma irrealidade cotidiana — termo cu- tese Céline e a ruína do ra, o nordestino violento e sexualista Reimoso, nhado por Umberto Eco — na prosa de Dau. Velho Mundo e a biografia Machado de Assis: num o porteiro, líder comunitário e bom de cama Os fatos que falam são reais, estão em todos os recanto, um mundo inteiro, Juca, o obsessivo e apaixonado Gabriel, o vo- jornais — guerra de traficantes, corrupção poli- entre outros livros. É profes- luntarioso e tarado Camarão, a romântica e cial, descaso das autoridades com as matas e sor de Literatura Brasileira quase frígida Nicole, a encantadora e ninfo- com as pessoas —, só que o tratamento ficcional na Universidade Federal do maníaca Manuela. Isso mesmo, cada perso- que recebem tais fatos, os torna distantes, Rio de Janeiro. nagem carrega seus predicativos como atribu- inverossímeis, quase irreais. Carmo, o coman- tos indissolúveis do caráter. dante policial que chora na Confeitaria A boa notícia é que, mesmo num romance Colombo e confiante monitora a guerra nos que enfada pelo excesso de recorrências e repe- morros, é uma reprodução caricata dos polici- tição de fórmulas, percebesse que Dau Bastos ais mexicanos que infestavam os antigos faroestes. manteve o controle narrativo. Em outras pala- Permanecendo na linguagem cinematográ- vras, o desenvolvimento do drama foi urdido fica, os roteiristas defendem a tese de que, para com segurança e precisão. O envolvimento pau- um bom filme, é preciso ter uma grande trama latino de Nicole com o universo marginal, a — chamada de plot — que se monta a partir de ascensão criminosa de Camarão, as reviravol- outras tantas pequenas tramas — os sub-plots. tas e descobertas das próprias potencialidades Reima segue este caminho. Há duas tramas bá- de Reimoso, as decisões adiadas de Rodapé sicas que têm a função de segurar o enredo: a trecho • reima formam-se como um caleidoscópio de tramas suspeita de Rodapé de que está contaminado Reimoso desenvolveu que são oferecidas aos poucos e que no final se pelo HIV e a perspectiva de guerra entre os mar- uma gratidão tal pelas mu- fecha como um quebra-cabeça da complexa ginais dos morros dos Prazeres e do Cerro lheres que adquiriu o hábito sociedade carioca. O problema é a sensação de Corá. No meio, uma seqüência de breves tra- de simular interesse por fei- déjà-vu que acompanha o leitor ao longo de mas, como o choque cultural de Boiô, a fatali- as ou maltratadas. Ao ver todo texto. O maniqueísmo primário formado dade de Seqüela, a sensualidade de Clara. O mostra de desprezo ou indi- a partir de uma leitura social básica da realida- problema é que todo o final é bem previsível. ferença da parte de homem, de enfraquece o enredo, pois a cada nova pági- A verdade é que o autor descreveu o Rio de acercava-se, esguelhava, es- na apresenta um novo elemento ao final óbvio Janeiro dos noticiários, sempre violento, cheio tabelecia contato com a víti- e previsível, infelizmente engolindo o artesa- de mulheres sensuais, machos perfeitos, sambis- ma e se colocava às ordens. nato do controle narrativo. tas, meninos de rua e sexo. No entanto, a leitura Nesses casos, o gozo de escritores novos, como Rodrigo Lacerda e decorria da generosidade: Meio-termo Marcelo Moutinho, mostra que a cidade está a mulher não era objeto, e Há um conselho bem interessante que Autran muito além dos morros e das areias de Ipanema. sim imagem merecedora de Dourado escreve num texto curto intitulado Bre- O Rio é uma cidade que, como qualquer cida- oferenda. Reimoso foi cole- ve manual de estilo e romance: “Procure imitar os de, não se limita ao estereótipo. As angústias e cionando histórias de sexo gregos, que diziam da maneira mais simples e alegrias de sua gente já desconstruíram o folclo- solidário, que encarava concreta as coisas mais profundas; ao contrário re, como perceberam Machado de Assis e Mar- como parcela reservada ao dos modernos, que dizem as coisas mais banais ques Rebelo. Outros tantos, infelizmente, prefe- santo. Achando-se em luta da maneira mais rebuscada e fluida”. Dau Bas- rem a convencionalidade. sagrada que na pior das hi- póteses o transformaria em tos se posta no meio-termo. Seu texto se cons- Narrador já de longo curso e com capacida- mártir, pouco se importava trói de maneira simples, sem qualquer de intelectual indiscutível, Dau Bastos errou ao com as ameaças de morte: rebuscamento lingüístico, até fluido, mas peca preferir a facilidade, ao se postar entre Cassandra mantinha a disposição de pela constante presença do lugar-comum tanto Rios e Paulo Coelho. Sua presença na literatu- engambelar quem despre- frasal quanto ideológico. Repetidas vezes mos- ra brasileira se dá em outro patamar, em um zasse a companheira. tra a violência como uma filha da miséria, o nível que se rebaixa com este fraco Reima.•r BREVE RESENHA REALIDADES ALTERNATIVAS SINVALDO JR. • UBERLÂNDIA - MG

O espaço é curto. O livro é longo sim, existir ficção científica. acompanha vidrado as cenas de ação e aventura da história. e os contos e autores são muitos (18 Após a leitura de livros como esse, surgem as questões: por Phlegethon passa a ser o seu quarto, caso o leitor aí esteja. autores com um conto cada). Futuro que nós, brasileiros, lemos tantas obras estrangeiras a ponto de Um dos requisitos básicos de uma boa obra literária é conse- presente — Dezoito ficções sobre o sempre proporcionar a elas o topo da lista dos mais vendidos da guir, astutamente, que o leitor entre em um novo plano, de forma futuro é uma antologia de contos (al- não-muito-confiável revista Veja? Por que assistimos a tantos fil- que ele esqueça, naquele momento da leitura, de todos os percal- guns curtos, outros nem tanto) do que mes vindos dos USA, inclusive àqueles futuristas com a irritante ços da vida e se preocupe com os percalços da ficção lida. Vários pode ser considerado ficção científica, mania de tentar convencer o resto do mundo de que os america- dos contos de Futuro presente conseguem essa proeza, entre eles organizada pelo famigerado Nelson nos salvarão o mundo do apocalipse, como bons heróis que são? o já citado Descida no Maelström, de Causo, e Nostalgia, de Luiz de Oliveira, coordenador de outras Os antropólogos e historiadores responderiam: dentre alguns Bras. Neste, Vitória encontra o seu próprio corpo boiando sem tantas antologias e projetos célebres traços característicos da cultural brasileira, um dos mais percep- vida na banheira de sua casa. Alucinação? Sonho? Realidade? e desbravadores, como o Projeto Por- tíveis é a valorização do estrangeiro em detrimento do que é Após este ponto de partida, perseguições, muita ação, a criação tal, também de FC e fantasia. nacional. Os sociólogos mais radicais responderiam: o capitalis- de uma hiper-realidade a fim de libertar o homem — libertaria? A capa da antologia é de muito mo é selvagem e privilegia os que possuem mais poder, mais Não é necessário se basear nas listas dos mais vendidos de Futuro presente — bom gosto, as orelhas idem. Preo- condições, mais ferramentas em mãos (dentre as quais as da pu- revistas não confiáveis nem assistir a filmes saturados de clichês Dezoito ficções cupação e esmero em relação ao que blicidade e propaganda), realidade que vale também para o mer- para buscar entretenimento, diversão e fruição. Na literatura bra- sobre o futuro é externo em um livro, como em Org.: Nelson de Oliveira cado cinematográfico e editorial. Outros responderiam: por pura sileira há muitos livros que conseguem, e bem, transportar o Record qualquer livro de Nelson de Olivei- diversão ou por necessidade de entretenimento e fruição. Cada leitor a uma nova realidade e ser um meio interessante de inves- 416 págs. ra e na maioria dos livros publica- qual com sua opinião, todos têm razão. tigação e imaginação. Em Futuro presente, há várias realidades, dos no Brasil. A escolha dos auto- Um dos contos de Futuro presente, o Descida no Maelström, de umas mais, outras menos convincentes, umas mais, outras me- res privilegiou a mistura de gerações e estilos — desde autores Roberto de Sousa Causo, com sua linguagem ora inovadora e nos cativantes. Em algumas delas é impossível sair intacto, tama- consagrados, como Márcio de Souza (cuja obra Mad Maria se difícil, proporciona ao leitor entrar em outra realidade, tão bem nha é a capacidade dela de maravilhar o leitor. tornou minissérie da Globo), a desconhecidos, com uma certa criada e tão detalhada, que os euro-russos, os robôs-tadai, os Experimente trocar aquele livro estrangeiro sobre pipas, ou predominância de autores que nasceram ou que moram no quadrúpedes esbeltos do Povo de Riv, os quase humanóides aquela superprodução estadunidense, ou aquele videogame com estado de São Paulo. Problemas de logística, provavelmente, folsoranos, os encarapaçados mukbukmabaksai, e Peregrino, o gráficos impressionantes pela antologia Futuro presente. Não porque em outros estados não representados no livro deve, protagonista, passam a ser personagens criadas pelo leitor, que sairá perdendo; ao contrário, só tem a ganhar.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 11 À maneira de poemas

MARCO LUCCHESI E IVAN JUNQUEIRA FAZEM CRÍTICA COMO CONJUNÇÃO AO POÉTICO

MARCOS PASCHE • RIO DE JANEIRO – RJ Há em nossa tradição segundo nenhum princípio de coesão ou reciprocidade. Os textos que o compõem Um crítico literário, para sê-lo de fato, intelectual um farto são, como sugere o título que lhes aponho, não necessariamente precisa ser autor de rol de críticos (de artes as cinzas de um espólio (...). Dou-os à es- literatura, ao menos no sentido mais ha- tampa como quem colhe as miudezas que bitual do termo, o que comprovam nomes em geral) notabilizados jazem no fundo das gavetas”. como Harold Bloom e António José Sa- principalmente pelo Há atualmente grande propagação da raiva, em âmbito internacional, e Anto- idéia (generalizada) de que os estudos lite- nio Candido e Alfredo Bosi, no espaço seu trabalho estético. rários são viciados em suas velhas fórmu- brasileiro. Apesar de reconhecidos eminen- las de falar sobre as obras, e não com as mes- temente pelo ofício reflexivo, tais autores mas. A orientação para que a ensaística não (e alguns outros não citados) são, ainda uma obra assentada sobre tão rico e varia- manifeste uma relação separatista entre su- que de outra estirpe, poetas. do arsenal. É muito comum que livros te- jeito e objeto com a literatura é sem dúvida Ao lado desse conjunto, há em nossa óricos sejam compostos por textos importante e fascina por seu caráter revolu- Ficções de um tradição intelectual um farto rol de críti- dispersos que seus autores apresentam em cionário (em algumas passagens, o livro de gabinete ocidental Marco Lucchesi cos (de artes em geral) notabilizados prin- conferências ou em jornais, o que os colo- Marco Lucchesi mostra-se adepto dessa pro- Civilização Brasileira cipalmente pelo trabalho estético, e então ca, normalmente, num patamar médio, posta), mas não se pode perder de vista que 287 págs. nos vêm os nomes — para ficar somente pois nestes não se encontra total unidade a justificativa de toda prática crítica, em seus com os nacionais — de Machado de As- ou o esforço de construção próprios das diversos matizes, é dar clareza, ou mais cla- sis, Mário de Andrade, Vinicius de Mo- teses ou dos tratados. Apesar disso, os tex- reza, àquilo que subjaz nas cavernas da raes, José Paulo Paes, Augusto de Cam- tos que compõem tais volumes críticos jus- incompreensão, devendo ser o crítico aquele pos e Ferreira Gullar. tificam-se por formular ou fortificar conhe- que se lança à brisa ou ao dilúvio da tare- Somando-se ao grupo dos que se cimentos a respeito de escritos ou concep- fa, sempre arriscada, da interpretação. E há bipolarizam entre criação e reflexão para ções, e Ficções de um gabinete ocidental nisso mais um ganho de Cinzas do espó- se confluírem na unidade da realização ar- tem sua maior falta justamente no tocante lio, porque em todos os seus textos o leitor tística (sim, porque a crítica é uma expres- a tal aspecto, pois os textos que o com- tem plena noção de onde pretende ir o au- são da arte), surgem os livros Ficções de põem carecem da apresentação de um ob- tor, sabendo também, ao final, que a pre- um gabinete ocidental e Cinzas do espó- jetivo mais específico, e vagam, quase sem- tensão foi alcançada com brilho. lio, de autoria, respectivamente, dos poetas pre, entre um impressionismo mais senti- Notável tradutor e genial poeta, Ivan cariocas Marco Lucchesi e Ivan Junqueira. mental do que analítico — “Fico aborre- Junqueira confirma com este livro ser um cido com Sílvio Romero. E enternecido distinto homem de letras também no que Mosaico intelectual com Mário de Alencar. Pedindo um pou- tange ao ensaísmo, daqueles que, raramen- O folheio prévio e a leitura detida são co mais a Viana Moog. E um pouco me- te, não são originários das faculdades de Cinzas do espólio ações complementares e consecutivas que nos a Magalhães Júnior”, diz O homem letras. Apesar da modesta intenção de to- Ivan Junqueira caracterizam as relações comuns entre subterrâneo, sobre Machado de Assis — e dos os textos, não há um só escrito em Record aqueles que lêem e aquilo que é lido. No a exibição algo gratuita da bagagem poli- que o autor não deixe patente sua fina in- 336 págs. entanto, em se tratando de Ficções de um glota do autor: “Trago outras montanhas teligência: “O problema é que não pode- gabinete ocidental, tais ações revelarão em meu horizonte: o Popocatépetel, na mos — e, mais grave ainda, não devemos duas realidades distintas do mesmo livro. Cidade do México, e o Illimani, em La — estar a todo instante reinventando a lín- Ao observar as seções que dividem o li- Paz. E assim confundo essas montanhas gua e a linguagem, sob o risco de jamais os autores vro, os títulos dos textos e as apresentações do Oriente e do Ocidente (...). Nado nas conseguirmos uma e outra enquanto rea- feitas no prefácio e nas orelhas, vê-se ime- águas de três línguas abissais: o turco, o lidades literárias”, afirma ele em A poesia MARCO LUCCHESI nasceu no Rio de diatamente o alto e sofisticado gabarito de árabe e o persa”, escreve Lucchesi em brasileira no fim do milênio, uma importan- Janeiro (RJ), em 1963. É poeta, tra- dutor, ensaísta, professor da UFRJ e Marco Lucchesi para a execução de suas Rumi: diário de um tradutor, a partir do qual te reflexão acerca da obsessão presente no cavaliere da república italiana. Autor tarefas literárias. Em seu “currículo” cons- ele relata sua empresa-aventura de tradu- discurso dos poetas contemporâneos, mui- de livros como A memória de Ulisses, tam, dentre outros fatores, a fluência sóli- zir, in loco, páginas da literatura iraniana, tos dos quais nascidos com a escrita já Sphera, Os olhos do deserto, Sau- da de mais de quinze idiomas; a gradua- mas sem que tenhamos uma clara apre- enrugada pelo estatuto da novidade. dades do paraíso e Bizâncio, entre ção em história e a pós-graduação em lite- sentação contextual da obra (nem da au- A senda mais percorrida por Junqueira outros. Vive em Niterói (RJ). ratura; o contato íntimo com culturas oci- toria da mesma) a ser decodificada. Além, em sua atividade reflexiva é a análise de po- dentais (famosas, como a italiana, ou há nos textos propriamente ditos e nas no- esia, porém isso não o impede de empreen- IVAN JUNQUEIRA nasceu no Rio de incomuns, como a romena) e orientais, mas tas explicativas num apêndice, incontáveis der firmes incursões pelas vias da prosa Janeiro (RJ), em 1934. É poeta, jor- sem prescindir das de algumas regiões do citações estrangeiras sem qualquer tradu- ficcional, cronística e também ensaística, nalista, crítico literário e imortal da interior do Brasil, como a nordestina; o ção, sendo duas delas em alemão. como provam os textos José Veríssimo e a crí- Academia Brasileira de Letras. Autor conhecimento efetivo de ciências como a O livro mostra-se também defasado da tica, Machado de Assis cronista e Cervantes e a de livros como Os mortos, Três me- filosofia, a teologia e (surpreendentemen- apresentação de uma razão de ser na seção literatura brasileira, com o qual, inclusive, o ditações na corda lírica, A sagração dos ossos e O grifo, entre outros. te) a matemática; e uma candura na escrita consagrada às relações entre literatura e autor mostra-se respeitável pesquisador. a revelar vivo interesse em tocar o leitor. matemática, o que, sem a menor dúvida, Estão presentes noutras partes do livro A reunião desses itens — aqui atribuí- aguça o interesse do leitor. A despeito de fatores de uma leitura global da realidade dos a um jovem de 46 anos — são um ver- contar com uma bela entrevista com o pro- e de outras vertentes artísticas, a fazer com dadeiro alento a quem assiste com pesar fessor e autor do conceito de etnomatemática que Cinzas do espólio não se circunscre- trechos aos empobrecedores tempos da especializa- Ubiratan D’Ambrosio (o qual não abre va somente à contemplação do fenômeno ção, nos quais grande parte dos estudiosos mão de salientar que o trabalho intelecto- literário (não se entenda com isso que a ficções de um gabinete ocidental literários limita-se a tratar exclusivamente educacional deve ter como diretriz primei- crítica específica de literatura seja menor), O desafio da língua persa consis- de imagens e de metadiscursos. São esses ra a busca de uma cultura da paz) e com sendo, antes, um livro de crítica de cultura: te em aglutinar e encompridar. itens que fazem de Lucchesi um intelectual mais quatro textos a respeito do assunto, “O piano incorporou-se à nossa vida soci- Uma gramática forte, cuja dificul- na acepção da palavra, visto que sua von- não se demonstra, com exemplos nítidos e al durante a segunda metade do século 19, dade não parece nem de perto com o quase impossível do turco, que é das tade de saber extrapola as nocivas frontei- convincentes, como as duas disciplinas po- quando chegou a tornar-se quase uma fe- línguas mais rochosas com as quais ras segregadoras das disciplinas, e todo o dem se tocar, estabelecer influências recípro- bre entre as jovens de família que o marte- me deparei. aparato com que se equipa o autor torna cas e constituir uma nova unidade. lavam para o deleite de pais e amigos”, cons- Mas como é bela a língua turca — seus estudos mais legítimos, pois as autên- Entretanto, devem ser salientadas boas tata Junqueira em Arte do piano: sabedoria e sem as restrições dos puristas do öz ticas obras de arte são movidas pela vonta- partes do livro, em especial aquelas que opulência. E é saudável aos que prezam a türkçe. Gosto das tremas curtas — de de integrar-se ao grão e ao turbilhão da retiram do limbo páginas importantes de associação entre intelectualidade e senso para as distinguir das longas, prati- existência, e o pensamento que intenta nossa história literária. Refiro-me mais es- crítico observar que o autor de O fio do cadas pelo húngaro, com a qual rela- entendê-las pela perspectiva da cissiparidade pecificamente a Frutas do Brasil, sobre o dédalo não se isenta de lançar juízos sobre tivamente se aparenta — e tento ima- é, de antemão, um pensamento traidor. livro homônimo escrito por Frei Antô- as tortas pernas com que tem caminhado o ginar a passagem da China para a Isso posto, não é fruto do acaso ou ape- nio do Rosário em nosso período colo- planeta — “(...) toda a humanidade, cujos Anatólia, partindo das longas carava- nas mero gosto a vocação do autor para a nial, e Jorge de Lima e o sertão, a versar so- mais estimados valores se aproximam ago- nas de suas palavras, como a dar pro- conciliação de práticas e saberes: “A minha bre a prosa ficcional do poeta alagoano. ra da ruína, sob o signo de uma única e vas das amplas fronteiras da noite em paixão tem sido a de conjugar as partes que- No mais, as páginas de Ficções de um melancólica preocupação: a do dinheiro”, que se perde a história dessa língua. bradas de um diálogo. E tenho como certo gabinete ocidental, embora grafadas com diz ou autor em Ernesto Sabato: 90 anos, e, que a cidadania vem dos âmbitos de uma um tocante afeto, ficam mais como um um pouco antes, em A criação literária: cinzas do espólio conversa toda marcada de adição (...). Não caderno de anotações particulares de seu “Quem sabe o Terceiro Milênio não nos Parece-me muito difícil — e se as- quero ‘ou’. Quero ‘e’”, diz com singular fe- autor do que como contribuição efetiva reserve um outro Renascimento ou um sim o considero sobretudo porque licidade em entrevista a Floriano Martins, aos estudos sobre literatura em geral. novo Século de Luzes que nos liberte do quase cotidianamente convivemos no texto que encerra o livro. Noutra decla- imediatismo pragmático e do desenfreado com o assunto de que iremos aqui nos ração, dessa vez no primeiro texto — Confis- As cinzas vivificadas hedonismo em que nos consumimos?”. ocupar — definir o que seja, com ra- sões na modernidade líquida —, Lucchesi reve- Não é só pela comparação ao livro de É como leitor de poesia — na espe- zoável exatidão, a poesia brasileira do la, com maior beleza, os desejos que lhe fre- Marco Lucchesi que Cinzas do espólio, cificidade de livros brasileiros ou na gran- fim do segundo milênio, depois de tan- quentavam quando menino: de Ivan Junqueira, faz-se um livro apreci- deza da tradição ocidental, em suas ver- tas idas e vindas das modas literári- ável. Mas o cotejo é bastante válido. tentes clássica e moderna — que Ivan as e dos gostos estéticos. É que, ao Olhava para as flores e as pedras e sonhava Ambas as obras têm caráter fragmentário, Junqueira eleva a maior grau sua ativida- tentarmos fazê-lo — o que, desde logo, implica assumir que deveríamos descobrir a secreta razão que as envolvia. Imagi- visto constituírem-se de escritos dispersos de crítica. Seja em comentários a respeito nos deter na produção poética da úl- nava fórmulas para a máquina do tempo. Desejo que seus autores produziram para finali- de , de Dante, seja so- A divina comédia tima década do século XX —, não dis- de voltar ao passado e conversar com Jesus sobre a dades diversas, especialmente para a apre- bre a poesia do injustamente estigmatiza- pomos de nenhum distanciamento his- sua infância. Testemunhar a morte de Sócrates. sentação de livros e para o discurso em do Lêdo Ivo, o autor conjuga, neste Cin- tórico ou crítico-literário que nos Visitar o Egito de Amenófis IV e a teologia de seus colóquios. Já a partir disso, o livro de Ivan zas do espólio, acuidade de leitura a uma credencie a formular um conceito pre- raios. Ter os olhos claros nas primeiras imagens Junqueira mostra-se mais bem arrumado escrita erudita e clara, tornando manifes- ciso ou definitivo sobre tão tormento- do Brasil. Contemporâneo de tudo, tomar parte em seus detalhes, e transmite, por isso, sua to seu apreço por determinadas obras ou sa e escorregadia questão, pois não nas assembléias da França Revolucionária; mensagem com maior êxito, fato verificável companheiros de ofício, como Otto Ma- há, a rigor, uma poesia da qual se pos- aplaudir Shakespeare no Teatro Globo; ir ao pa- na nota introdutória (na qual é flagrante a ria Carpeaux e Hélcio Martins. Numa des- sa dizer que seja específica ou carac- lácio do Czar de todas as Rússias. mão de um poeta, a extrair das palavras pretensiosa empreitada, o autor, poeta que terística do fim do milênio, e sim uma sons de violino): “Este pode ser entendido é, faz dela um feito notável, vivificando poesia que é de todos os dias e de Mesmo assim, o livro de Lucchesi não como um tecido algo fragmentário e as cinzas que porventura pareciam conde- sempre, ou então não é poesia. alcança o êxito que se poderia esperar de descontínuo cujas partes não se articulam nadas à morte do ocultamento.•r 12 rascunho 119 • MARÇO de 2010 13

MARCIO RENATO DOS SANTOS • CURITIBA – PR — E depois? LUÍS HENRIQUE PELLANDA • CURITIBA – PR — Vou embora. — O Lourenço Mutarelli poderia ser ho- — Pra sempre? LOURENÇO MUTARELLI vive um momento menageado por uma das escolas de samba — Sim, pra sempre. extremamente fértil e versátil de sua carreira. de Curitiba, bem que poderia. — Mas por que você veio justamente hoje?

” Após ter declarado que não mais se dedicaria — É que você, Marcio, durante muito às histórias em quadrinhos, anunciou, para bre- Estou na Avenida Cândido de Abreu. tempo falou mal do Carnaval de Curitiba... ve, o lançamento da HQ Quando meu pai se Você, leitor, leitora, percorre com os olhos — É que eu não tinha voz, eu repetia o encontrou com um ET fazia um dia quente, um texto que foi feito, ou aconteceu, duran- que outros falavam... pela Companhia das Letras. Além disso, pouco te o final da tarde e o início da noite do dia Um enredo — Pois é, mas agora que você viu, gos- depois de ver seu livro A arte de produzir efei- 13 de fevereiro. Sábado de carnaval. De como o resenhista atravessou a madrugada de sábado para domingo de carnaval ao lado de tou e sabe que é bom, que é realmente to sem causa ficar entre os vencedores do Prê- um ser misterioso com quem conversou sobre MIGUEL E OS DEMÔNIOS, de Lourenço Mutarelli inventivo e autêntico, eu, o Anti-Marcio, mio Portugal Telecom do ano passado, o artis- Quero um espeto. E uma cerveja. decidi estar com você pra ver e sentir... ta já se prepara para lançar dois novos roman- Caminho por uma das laterais da passa- — E qual a sua opinião? ces: Nada me faltará e Ninguém gritava na rela do samba de Curitiba. É uma noite só. — Vou usar uma fala sua: “Não tenho Amanhã cedo, domingo dia 14, direi: “Esta opiniões pra tudo”. ponte, este último pela coleção Amores Expres- noite foi o melhor presente de 2010 para — E sobre o livro do Mutarelli? sos. Mesmo assim, Mutarelli conta haver expe- mim, pelo menos até aqui”. — Pelo que você me conta, é bom, deve rimentado um grave bloqueio criativo a partir ser bom... de 2008, tendo voltado a beber recentemente, — Acho mesmo que uma dessas escolas — Mas é bom, mesmo. após uma longa abstinência. E, apesar de se de samba poderia homenagear o Mutarelli. — E que nota você daria pra ele? queixar de certo cansaço, o autor de Miguel e — Mas será? — Pro livro? os demônios também tem investido na carrei- — Claro que sim. Veja, coloca na comis- — Sim, para Miguel e os demônios? ra de ator, tanto de cinema quanto de teatro: são de frente uma múmia. — Pelo enredo, pela quebra na linearidade, integra o elenco de filmes como O cheiro do ralo, — Múmia? pelo diálogo com o cinema, pela recriação de Heitor Dhalia, e O natimorto, de Paulo — Do livro Miguel e os demônios. da realidade, pelas sacadas excelentes, pelos Machline — ambos baseados em romances de — O que tem a ver a múmia? diálogos funcionais, pelo humor e pela brin- sua própria lavra —, e da peça Música para ni- — A múmia é o mistério, o rosebud ou o cadeira com a noção de autoria, pelo misté- nar dinossauros, em que contracena com o dra- rififi do Mutarelli. rio sedutor, no mínimo, nota 10. r maturgo Mário Bortolotto. Na entrevista abai- — Mas e o público iria entender? • xo, concedida via e-mail, Lourenço Mutarelli — O público iria gostar. falou rapidamente sobre esses assuntos. Um — E? pouco a respeito de cada um deles. LOURENÇO MUTARELLI por Osvalter — Uma múmia. Pronto. Daria uma ale- goria bonita. E não tem esse negócio de en- tender. Tem que gostar. • Em determinado momento de O natimorto, o de O Globo, você contou que voltou a beber de- — Pois é, gostar já é alguma coisa... Agente narra uma história cuja moral sugere que pois de 15 anos de abstinência. Também revelou somos todos monstros. Já em Miguel e os demô- — Mas olhando isso, tenho a impres- que abandonou o uso de vários antidepressivos, nios, o protagonista diz que não somos nós que mantendo apenas um. O uso de álcool e de medi- são de que o livro Miguel e os demônios alimentamos os monstros, mas sim eles, os mons- camentos influencia, de algum modo, o seu pro- daria um enredo bacana pra desfilar no tros, que nos alimentam. Que monstros alimen- cesso de criação? Você nota alguma diferença? carnaval de Curitiba. tam o escritor Lourenço Mutarelli? Acredito que sim. Acho que até mesmo essa “ar- — Por quê? Acho que é um mesmo monstro, e que nos ali- rogância” é fruto de combinações químicas, naturais — Bom, pra começar, quem é você? corpo o mentamos alternadamente. A diferença desses mons- ou não. O problema com os excessos é o preço. É o — Eu sou o Anti-Marcio. tros nos textos em questão é que um seria um mons- cansaço. Principalmente o cansaço mental. Mas, por — E isso existe? tro que nasceu na minha infância e o outro, um mons- outro lado, esse cansaço também é fruto das cobran- — Pois você está falando comigo, mui- tro ancestral, que não me pertence. ças. Para quem trabalha combinando e associando Miguel e os demônios to prazer. Lourenço Mutarelli idéias, é muito difícil descansar. — Oi. Companhia das Letras • Tempos atrás, você declarou que abandonaria — Mas me conte... 116 págs. os quadrinhos por estar cansado do imenso tra- • Sobre seus interesses e influências: a que você — Ei, de onde você é? balho que lhe davam (cerca de dez horas diárias), assiste na tevê? — Do mundo... passando a se dedicar mais à literatura. De que Em família, assisto Two and a half man (série cômica — Desse? forma o trabalho literário seria menos cansati- americana estrelada por Charlie Sheen). Sozinho, gosto de — E importa? vo? Qual o seu processo de criação literária — se é Monsterquest (série de documentários sobre monstros notórios, — Bom... que possui algum processo fixo — e como ele como o Lobisomem e o Pé-grande) e Caçadores de óvnis, no — Fique tranqüilo, falávamos, você fala- o autor difere do seu método de produção de HQs? History Channel. Fiquei muito tempo sem ver tevê. Aí, va que Miguel e os demônios, do Mutarelli, No início, o trabalho literário era muito mais fá- no ano passado, minha mulher viajou e voltei a assistir. LOURENÇO MUTARELLI nasceu em cil, principalmente nos meus dois primeiros livros poderia dar samba aqui em Curitiba... 1964, em São Paulo (SP). Escritor, ar- (O cheiro do ralo e O natimorto); foram jogos. As coi- • Que tipo de música gosta de ouvir? — Acho que daria rock. tista gráfico, roteirista e ator, publicou sas simplesmente vertiam. A partir do terceiro livro Gosto de música concreta, minimalista ou, como — Rock? diversos álbuns de histórias em qua- (Jesus Kid), que foi uma encomenda e, mesmo assim, a chamaria Philip Glass, “música com estrutura — Rock em pleno carnaval. drinhos, hoje cultuados entre o públi- repetitiva”. Gosto de ouvir esse tipo de música por- — Como? co do gênero. O cheiro do ralo, seu fluiu de forma rápida, as coisas já não foram mais tão fáceis. Acredito que meu método para a produção que sinto que ele aciona regiões do meu cérebro que, — Sei lá, uma escola de samba poderia primeiro romance, saiu em 2002, se- literária seja fruto de fermentação. Vou pensando coi- de outra forma, não são acionadas. convidar as bandas da cidade, o Terminal guido por O natimorto e Jesus Kid. Também escreveu peças de teatro e sas, deixo-as fermentar e, em algum momento, sinto Guadalupe, o Copacabana Club, o Bardot que é hora de começar. Quanto aos quadrinhos, gos- • Que livros e filmes foram mais importantes à em Coma, e, com elas, fazer todo o desfile atuou em filmes baseados em seus li- vros, como O cheiro do ralo e O natimorto. taria mesmo de ter parado. São processos muito dife- sua formação? em homenagem ao Mutarelli. rentes. Mas percebi, a partir de um convite, que, na Kafka, com A metamorfose e O processo, e — Você acha que... verdade, o quadrinho será o meu ganha-pão deste ano Dostoievski, com Crime e castigo, pois foram os pri- — Veja, Miguel é um personagem reple- (ou seja, não tive muita escolha) e que ele pode ser meiros clássicos que li. Inúmeros filmes me marcaram, to de problemas, como qualquer pessoa. Mas interessante se eu mudar a forma como sempre traba- mas sempre destaco As três coroas do marinheiro (1983), ele tem uns demônios, que são temas ao re- lhei. Quando penso numa história em quadrinhos, a de Raoul Ruiz (cineasta chileno radicado na França). Além dor, que prendem a atenção, que tendem a... imagem vem junto, simplificando muita coisa. Acho de ter gerado em mim uma profunda sensação de fami- — A segurar o leitor no livro, é isso, Marcio? que o mais difícil, no caso dos quadrinhos, é conse- liaridade, o filme, ao mesmo tempo, me desnorteou. trecho • — Isso. miguel e os guir o prazer da experimentação, e é isso que busco — E o que mais? demônios no meu novo trabalho (Quando meu pai se encontrou • O que você está lendo agora? — Quer um gole de cerveja? Calor infernal. Dezembro. Interior com um ET fazia um dia quente, HQ a ser lançada em Diálogo no inferno entre Maquiavel e — Eu não bebo. de um Fiat Uno branco modelo 94. Rua breve, pela Companhia das Letras). Montesquieu, de Maurice Joly (obra política, desfavo- — Não? Domingos de Morais, Vila Mariana. Fa- rável a Napoleão III, escrita na França do século 19, e que — Eu sou o Anti-Marcio... chadas se alternam. Pequenas lojas, • Essa experiência mais profunda com a literatu- décadas depois teria sido plagiada com intenções anti- — Ah... pequenas portas, prédios comerciais ra já mudou alguma coisa na maneira como você semitas pelos autores de Os protocolos dos sábios de Sião). — Também não como carne... e residenciais. Blocos de três ou qua- escreve para os quadrinhos? — Bom, mas eu falava mesmo o quê? LOURENÇO MUTARELLI por Osvalter tro andares. Papai Noel por toda par- Acredito que sim. Acredito que todas essas expe- • E a literatura brasileira contemporânea, você te. Múltiplo. Ubíquo. Papai de plásti- riências afetam o meu trabalho. Mas o afetam num acompanha? — Do Miguel... co, papai de gesso, papai de pape- — É isso, lembrei. O protagonista do ro- sentido muito positivo. O que é perigoso — e, feliz- Por alguma razão não acompanho a literatura bra- lão. Postes e molduras cobertos de mente, percebi isso a tempo — é a profissionalização. sileira contemporânea. São poucos os que leio. Há mance do Mutarelli é um policial que, du- lampadinhas. Pisca-pisca. Ou seja, antes eu era um quadrinista obscuro, e tudo sempre muito para ler. rante o livro, tem toda a sua vida desmonta- Campana. avenida do carnaval curitibano. nado momento, o narrador reproduz um es- de uma maneira ou de outra me provoque que eu fazia eram experimentações. A partir do mo- da, desconstruída... — O livro fala sobre absurdos, e a vida, quema de roteiro, com marcas, sugerindo que alguma sensação forte... — Eu, minha mulher e minha filha. Pedro ainda ri às gargalhadas da mento em que meu nome ganhou certo destaque, apa- • É comum perguntarem aos escritores o que os — Isso significa que se trata de um bom a realidade muitas vezes, se não sempre, é há zoom, aproximação, e coisas do gênero... — Você é viciado em sensações fortes? receram muitas encomendas, e aí existe o risco de se faz escrever. Você escreve pelos mesmos motivos personagem? piada que ele mesmo conta enquanto um absurdo. — Você gostou, Marcio? — Sou. come Fandangos. Farfalhar, zunido. perder a espontaneidade. que desenha? — Sim. Ele se separa, passa a se relacionar — Você acredita mesmo nisso, Marcio? — Muito. Sabe, tem outra coisa... — Eu sei disso, Marcio. Miguel bufa como se reclamasse do Hoje, não mais. Desenhava de forma compulsi- com uma outra mulher, até que se apaixona — Não sei, mas é uma idéia. — O que é? calor. Pedro procura se conter. A risa- • Sua produção literária também o levou ao cine- va e desmedida. Hoje, me disciplino e me organizo loucamente por uma garota de programa. — E esses que passam aí? — Ano passado, na noite de entrega do Marcio chega em uma barraca e tira uma da vai perdendo o ritmo. ma e ao teatro, inclusive como ator. De que ma- para trabalhar. — Bom, isso é até que comum... — Sensacionais. Prêmio Portugal Telecom de Literatura, em nota de cinco reais e outra de dois reais. — Ele não vai sair — Miguel desaba- neira essa nova experiência, que envolve tanta — Não, não mesmo, porque a garota de — Mesmo? São Paulo, estive perto do Mutarelli... Paga sete reais por mais uma lata de cerveja fa enquanto limpa o suor com as mãos. exposição física, nos palcos e nas telas, interferiu • Numa rara e antiga entrevista (concedida a — Claro que vai. Nós vamos pegar programa é um travesti que tem ligações — É bloco Rancho das Flores, tem até — Falou com ele? e outro espetinho. Pega a lata e o espetinho no trabalho do Mutarelli escritor? Fernando Granato), Dalton Trevisan disse que com uma sociedade secreta que existe des- esse cara! ambulância. É a turma da terceira idade... — Falei. Foi a noite do apagão, do mais e sai dançando, sorrindo e cantando. O Anti- Miguel é branco, tem quarenta No início, principalmente em A arte de produzir todo escritor precisa “acreditar no demônio”. Você de a antiguidade... — E aquele músico ali? recente. Eu disse que o livro dele provoca Marcio apenas observa. anos, está acima do peso. efeito sem causa, eu tentei trazer a experiência física de acredita? O que é o demônio para você? — Ei, Marcio. — É o Glauco Sölter, o baixista. Conhece? alucinações... Pedro, de trinta e seis, é um negro um personagem para o trabalho literário. Por isso, eu O demônio, para mim, é o verdadeiro Senhor dos — O que foi? — E quem não conhece o Glauco Sölter, — Por quê? — O final do livro do Mutarelli é genial... forte. sentia a necessidade de criar os gráficos que o persona- homens. Nada de verdadeiramente sagrado nos espelha. — Você acha que esse enredo funciona- Marcio? — Por causa da tinta verde. — Genial? Polícia Civil. Investigadores. gem desenvolvia durante a trama; não pelo fator estéti- ria na passarela do carnaval curitibano? — Pois é. Acho que todos conhecem. — Tinta verde? — Não vou contar, até por que gostaria — É ele! — Pedro aponta. co, mas para compreender seu mecanismo físico. Fiz • Em Miguel e os demônios, o leitor se depara com a — Até demais. — Escute: “Sai pra lá, mau humor/ Vem — Em Miguel e os demônios, ao invés que você lesse o livro... Homem branco sai de um dos prédi- também alguns trajetos pelas ruas em que o personagem seguinte afirmação: “Eu te garanto que não há nada — Mas como você iria fazer essa repre- os. Aparenta mais de cinquenta, forte, caminhava, tentando sentir o que ele sentiria. Mas, de- melhor que a ficção”. Em relação às artes, você con- pra cá, alegria”. de preto, foi usada tinta verde para imprimir — Eu ler? Não vai dar, Marcio. Já esque- veste camisa estampada para fora da sentação? — É a letra da canção “Água, vida e o livro... ceu? Sou o Anti-Marcio... pois da experiência de protagonizar O natimorto, acho corda com o que diz o personagem Miguel? calça. Avança em direção a um carro que minha maior vontade é mergulhar mais fundo, pu- Nem lembro disso ter sido dito pelo personagem. — Com alegorias, com o Miguel, com a fantasia”, do Thadeu Wojciechowski e do — E isso te provocou... — Mas não vou contar. esporte, importado, japonês. Arranca. ramente, no campo da idéia. Quero esquecer o corpo. Não lembro o contexto. Mas a realidade só pode se ex-mulher, com a nova mulher, com o tra- Luiz Ferreira. — Eu li com luz de lâmpada amarela, — Por que não? — Vai! — grita Pedro. comparar à ficção através de uma mente muito criati- vesti, com a múmia, com elementos... numa madrugada... — Porque é um final que não pode ser Miguel, suando, tenta dar partida. • Como você lutou ou conviveu com seu primei- va. De um olhar extremamente poético, medicado e — Mas carnaval rima com alegria, não Marcio e Anti-Marcio caminham pela — Então você leu faz tempo? resumido. Te dizer que foi assim, ou de ou- O carro não pega. ro bloqueio criativo, sofrido quando se prepara- depois de algumas doses. com isso que você está me contando... — Merda! lateral direita da Cândido de Abreu. Marcio — Faz. E reli agora. tro jeito, seria reduzir demais uma cena que va para escrever o romance Ninguém gritava na — Ei, ainda não pensei em como repre- Pedro desce e começa a empurrar come espetinho de carne e bebe cerveja na — E viu coisas? mostra como o ser humano se vinga, como o carro. ponte, para a coleção Amores Expressos? • O escritor irlandês John Banville costuma dizer sentar na avenida o enredo do Mutarelli, lata. E dança. Anti-Marcio apenas caminha. — Vi muita coisa. Os livros do Mutarelli o olho por olho e dente por dente é o motor Quando ele desce, a mosca voa Esse bloqueio começou em 2008 e durou quase que sente um “ódio profundo e contínuo” de to- mas isso eu penso depois... Em uma rua perpendicular à Cândido de sempre me perturbam. humano... para fora. um ano. Foi horrível. Uma experiência amarga. Algo dos os livros que já escreveu. Que tipo de sentimen- — Depois? Abreu, há um palco com uma banda de rock — De que maneira? — Você também pensa assim? Miguel também desce e ajuda a em- próximo da impotência. Não sei como saí dele. Sei to você tem em relação à sua produção literária? — É, depois. que faz protesto contra o carnaval de Curitiba, — Os personagens são perturbados, têm — Não sei mais o que penso, não tenho purrar enquanto maneja o volante. que lutei, mas sinto que ficaram cicatrizes. Quando Com raras exceções, um certo embaraço. Costu- Um mendigo desdentado aponta — Depois quando? contra a festa momesca, contra os excessos problemas, vivem cotidianos difíceis, e a at- opinião, não tenho opiniões pra tudo... eu trabalhava, sempre existia algo de que não me dava mava dizer que não me orgulhava nem me envergo- — Depois que eu terminar esse texto. do consumo de bebida durante esse período. mosfera que ele cria me perturba... — Eu sei, Marcio. Conheço muito você. para a cena e começa a gargalhar. Gargalhada amplificada. Ensurde- conta e que eu chamaria de “arrogância criativa”. É nhava do meu trabalho. Hoje em dia, posso dizer que — Mas e o leitor, e a leitora do Rascunho? — Isso é bom ou ruim, Marcio? — Mas, me diga uma coisa... cedora. aquele momento em que se pega um papel e se atira me orgulho muito do livro O natimorto. E tenho — O que é que tem? — Sabe, Miguel e os demônios tem uma — Mais que bom, mais que ruim, é fato: — Até duas... Close na face do mendigo alucinado. sem medo de errar. Sem medo de ser julgado. Duran- uma vergonha profunda de alguns outros títulos. r — Acho que eles esperam que você justi- narrativa que não é convencional. perturba, provoca sensações... — Você vai ficar ao meu lado por quan- Vê-se a mosca pousar na cara do te o bloqueio, perdi essa arrogância. • fique, ainda neste texto, o porquê de dizer — E como é? — E você gosta? to tempo? mendigo.

que o enredo do Mutarelli daria samba na — Há blocos, cenas variadas. Em determi- — Me emociona. E gosto de texto que — Apenas por essa noite. esquecer “Quero • Numa edição recente do caderno Prosa & Verso, *COLABOROU Rogério Pereira. 12 rascunho 119 • MARÇO de 2010 13

MARCIO RENATO DOS SANTOS • CURITIBA – PR — E depois? LUÍS HENRIQUE PELLANDA • CURITIBA – PR — Vou embora. — O Lourenço Mutarelli poderia ser ho- — Pra sempre? LOURENÇO MUTARELLI vive um momento menageado por uma das escolas de samba — Sim, pra sempre. extremamente fértil e versátil de sua carreira. de Curitiba, bem que poderia. — Mas por que você veio justamente hoje?

” Após ter declarado que não mais se dedicaria — É que você, Marcio, durante muito às histórias em quadrinhos, anunciou, para bre- Estou na Avenida Cândido de Abreu. tempo falou mal do Carnaval de Curitiba... ve, o lançamento da HQ Quando meu pai se Você, leitor, leitora, percorre com os olhos — É que eu não tinha voz, eu repetia o encontrou com um ET fazia um dia quente, um texto que foi feito, ou aconteceu, duran- que outros falavam... pela Companhia das Letras. Além disso, pouco te o final da tarde e o início da noite do dia Um enredo — Pois é, mas agora que você viu, gos- depois de ver seu livro A arte de produzir efei- 13 de fevereiro. Sábado de carnaval. De como o resenhista atravessou a madrugada de sábado para domingo de carnaval ao lado de tou e sabe que é bom, que é realmente to sem causa ficar entre os vencedores do Prê- um ser misterioso com quem conversou sobre MIGUEL E OS DEMÔNIOS, de Lourenço Mutarelli inventivo e autêntico, eu, o Anti-Marcio, mio Portugal Telecom do ano passado, o artis- Quero um espeto. E uma cerveja. decidi estar com você pra ver e sentir... ta já se prepara para lançar dois novos roman- Caminho por uma das laterais da passa- — E qual a sua opinião? ces: Nada me faltará e Ninguém gritava na rela do samba de Curitiba. É uma noite só. — Vou usar uma fala sua: “Não tenho Amanhã cedo, domingo dia 14, direi: “Esta opiniões pra tudo”. ponte, este último pela coleção Amores Expres- noite foi o melhor presente de 2010 para — E sobre o livro do Mutarelli? sos. Mesmo assim, Mutarelli conta haver expe- mim, pelo menos até aqui”. — Pelo que você me conta, é bom, deve rimentado um grave bloqueio criativo a partir ser bom... de 2008, tendo voltado a beber recentemente, — Acho mesmo que uma dessas escolas — Mas é bom, mesmo. após uma longa abstinência. E, apesar de se de samba poderia homenagear o Mutarelli. — E que nota você daria pra ele? queixar de certo cansaço, o autor de Miguel e — Mas será? — Pro livro? os demônios também tem investido na carrei- — Claro que sim. Veja, coloca na comis- — Sim, para Miguel e os demônios? ra de ator, tanto de cinema quanto de teatro: são de frente uma múmia. — Pelo enredo, pela quebra na linearidade, integra o elenco de filmes como O cheiro do ralo, — Múmia? pelo diálogo com o cinema, pela recriação de Heitor Dhalia, e O natimorto, de Paulo — Do livro Miguel e os demônios. da realidade, pelas sacadas excelentes, pelos Machline — ambos baseados em romances de — O que tem a ver a múmia? diálogos funcionais, pelo humor e pela brin- sua própria lavra —, e da peça Música para ni- — A múmia é o mistério, o rosebud ou o cadeira com a noção de autoria, pelo misté- nar dinossauros, em que contracena com o dra- rififi do Mutarelli. rio sedutor, no mínimo, nota 10. r maturgo Mário Bortolotto. Na entrevista abai- — Mas e o público iria entender? • xo, concedida via e-mail, Lourenço Mutarelli — O público iria gostar. falou rapidamente sobre esses assuntos. Um — E? pouco a respeito de cada um deles. LOURENÇO MUTARELLI por Osvalter — Uma múmia. Pronto. Daria uma ale- goria bonita. E não tem esse negócio de en- tender. Tem que gostar. • Em determinado momento de O natimorto, o de O Globo, você contou que voltou a beber de- — Pois é, gostar já é alguma coisa... Agente narra uma história cuja moral sugere que pois de 15 anos de abstinência. Também revelou somos todos monstros. Já em Miguel e os demô- — Mas olhando isso, tenho a impres- que abandonou o uso de vários antidepressivos, nios, o protagonista diz que não somos nós que mantendo apenas um. O uso de álcool e de medi- são de que o livro Miguel e os demônios alimentamos os monstros, mas sim eles, os mons- camentos influencia, de algum modo, o seu pro- daria um enredo bacana pra desfilar no tros, que nos alimentam. Que monstros alimen- cesso de criação? Você nota alguma diferença? carnaval de Curitiba. tam o escritor Lourenço Mutarelli? Acredito que sim. Acho que até mesmo essa “ar- — Por quê? Acho que é um mesmo monstro, e que nos ali- rogância” é fruto de combinações químicas, naturais — Bom, pra começar, quem é você? corpo o mentamos alternadamente. A diferença desses mons- ou não. O problema com os excessos é o preço. É o — Eu sou o Anti-Marcio. tros nos textos em questão é que um seria um mons- cansaço. Principalmente o cansaço mental. Mas, por — E isso existe? tro que nasceu na minha infância e o outro, um mons- outro lado, esse cansaço também é fruto das cobran- — Pois você está falando comigo, mui- tro ancestral, que não me pertence. ças. Para quem trabalha combinando e associando Miguel e os demônios to prazer. Lourenço Mutarelli idéias, é muito difícil descansar. — Oi. Companhia das Letras • Tempos atrás, você declarou que abandonaria — Mas me conte... 116 págs. os quadrinhos por estar cansado do imenso tra- • Sobre seus interesses e influências: a que você — Ei, de onde você é? balho que lhe davam (cerca de dez horas diárias), assiste na tevê? — Do mundo... passando a se dedicar mais à literatura. De que Em família, assisto Two and a half man (série cômica — Desse? forma o trabalho literário seria menos cansati- americana estrelada por Charlie Sheen). Sozinho, gosto de — E importa? vo? Qual o seu processo de criação literária — se é Monsterquest (série de documentários sobre monstros notórios, — Bom... que possui algum processo fixo — e como ele como o Lobisomem e o Pé-grande) e Caçadores de óvnis, no — Fique tranqüilo, falávamos, você fala- o autor difere do seu método de produção de HQs? History Channel. Fiquei muito tempo sem ver tevê. Aí, va que Miguel e os demônios, do Mutarelli, No início, o trabalho literário era muito mais fá- no ano passado, minha mulher viajou e voltei a assistir. LOURENÇO MUTARELLI nasceu em cil, principalmente nos meus dois primeiros livros poderia dar samba aqui em Curitiba... 1964, em São Paulo (SP). Escritor, ar- (O cheiro do ralo e O natimorto); foram jogos. As coi- • Que tipo de música gosta de ouvir? — Acho que daria rock. tista gráfico, roteirista e ator, publicou sas simplesmente vertiam. A partir do terceiro livro Gosto de música concreta, minimalista ou, como — Rock? diversos álbuns de histórias em qua- (Jesus Kid), que foi uma encomenda e, mesmo assim, a chamaria Philip Glass, “música com estrutura — Rock em pleno carnaval. drinhos, hoje cultuados entre o públi- repetitiva”. Gosto de ouvir esse tipo de música por- — Como? co do gênero. O cheiro do ralo, seu fluiu de forma rápida, as coisas já não foram mais tão fáceis. Acredito que meu método para a produção que sinto que ele aciona regiões do meu cérebro que, — Sei lá, uma escola de samba poderia primeiro romance, saiu em 2002, se- literária seja fruto de fermentação. Vou pensando coi- de outra forma, não são acionadas. convidar as bandas da cidade, o Terminal guido por O natimorto e Jesus Kid. Também escreveu peças de teatro e sas, deixo-as fermentar e, em algum momento, sinto Guadalupe, o Copacabana Club, o Bardot que é hora de começar. Quanto aos quadrinhos, gos- • Que livros e filmes foram mais importantes à em Coma, e, com elas, fazer todo o desfile atuou em filmes baseados em seus li- vros, como O cheiro do ralo e O natimorto. taria mesmo de ter parado. São processos muito dife- sua formação? em homenagem ao Mutarelli. rentes. Mas percebi, a partir de um convite, que, na Kafka, com A metamorfose e O processo, e — Você acha que... verdade, o quadrinho será o meu ganha-pão deste ano Dostoievski, com Crime e castigo, pois foram os pri- — Veja, Miguel é um personagem reple- (ou seja, não tive muita escolha) e que ele pode ser meiros clássicos que li. Inúmeros filmes me marcaram, to de problemas, como qualquer pessoa. Mas interessante se eu mudar a forma como sempre traba- mas sempre destaco As três coroas do marinheiro (1983), ele tem uns demônios, que são temas ao re- lhei. Quando penso numa história em quadrinhos, a de Raoul Ruiz (cineasta chileno radicado na França). Além dor, que prendem a atenção, que tendem a... imagem vem junto, simplificando muita coisa. Acho de ter gerado em mim uma profunda sensação de fami- — A segurar o leitor no livro, é isso, Marcio? que o mais difícil, no caso dos quadrinhos, é conse- liaridade, o filme, ao mesmo tempo, me desnorteou. trecho • — Isso. miguel e os guir o prazer da experimentação, e é isso que busco — E o que mais? demônios no meu novo trabalho (Quando meu pai se encontrou • O que você está lendo agora? — Quer um gole de cerveja? Calor infernal. Dezembro. Interior com um ET fazia um dia quente, HQ a ser lançada em Diálogo no inferno entre Maquiavel e — Eu não bebo. de um Fiat Uno branco modelo 94. Rua breve, pela Companhia das Letras). Montesquieu, de Maurice Joly (obra política, desfavo- — Não? Domingos de Morais, Vila Mariana. Fa- rável a Napoleão III, escrita na França do século 19, e que — Eu sou o Anti-Marcio... chadas se alternam. Pequenas lojas, • Essa experiência mais profunda com a literatu- décadas depois teria sido plagiada com intenções anti- — Ah... pequenas portas, prédios comerciais ra já mudou alguma coisa na maneira como você semitas pelos autores de Os protocolos dos sábios de Sião). — Também não como carne... e residenciais. Blocos de três ou qua- escreve para os quadrinhos? — Bom, mas eu falava mesmo o quê? LOURENÇO MUTARELLI por Osvalter tro andares. Papai Noel por toda par- Acredito que sim. Acredito que todas essas expe- • E a literatura brasileira contemporânea, você te. Múltiplo. Ubíquo. Papai de plásti- riências afetam o meu trabalho. Mas o afetam num acompanha? — Do Miguel... co, papai de gesso, papai de pape- — É isso, lembrei. O protagonista do ro- sentido muito positivo. O que é perigoso — e, feliz- Por alguma razão não acompanho a literatura bra- lão. Postes e molduras cobertos de mente, percebi isso a tempo — é a profissionalização. sileira contemporânea. São poucos os que leio. Há mance do Mutarelli é um policial que, du- lampadinhas. Pisca-pisca. Ou seja, antes eu era um quadrinista obscuro, e tudo sempre muito para ler. rante o livro, tem toda a sua vida desmonta- Campana. avenida do carnaval curitibano. nado momento, o narrador reproduz um es- de uma maneira ou de outra me provoque que eu fazia eram experimentações. A partir do mo- da, desconstruída... — O livro fala sobre absurdos, e a vida, quema de roteiro, com marcas, sugerindo que alguma sensação forte... — Eu, minha mulher e minha filha. Pedro ainda ri às gargalhadas da mento em que meu nome ganhou certo destaque, apa- • É comum perguntarem aos escritores o que os — Isso significa que se trata de um bom a realidade muitas vezes, se não sempre, é há zoom, aproximação, e coisas do gênero... — Você é viciado em sensações fortes? receram muitas encomendas, e aí existe o risco de se faz escrever. Você escreve pelos mesmos motivos personagem? piada que ele mesmo conta enquanto um absurdo. — Você gostou, Marcio? — Sou. come Fandangos. Farfalhar, zunido. perder a espontaneidade. que desenha? — Sim. Ele se separa, passa a se relacionar — Você acredita mesmo nisso, Marcio? — Muito. Sabe, tem outra coisa... — Eu sei disso, Marcio. Miguel bufa como se reclamasse do Hoje, não mais. Desenhava de forma compulsi- com uma outra mulher, até que se apaixona — Não sei, mas é uma idéia. — O que é? calor. Pedro procura se conter. A risa- • Sua produção literária também o levou ao cine- va e desmedida. Hoje, me disciplino e me organizo loucamente por uma garota de programa. — E esses que passam aí? — Ano passado, na noite de entrega do Marcio chega em uma barraca e tira uma da vai perdendo o ritmo. ma e ao teatro, inclusive como ator. De que ma- para trabalhar. — Bom, isso é até que comum... — Sensacionais. Prêmio Portugal Telecom de Literatura, em nota de cinco reais e outra de dois reais. — Ele não vai sair — Miguel desaba- neira essa nova experiência, que envolve tanta — Não, não mesmo, porque a garota de — Mesmo? São Paulo, estive perto do Mutarelli... Paga sete reais por mais uma lata de cerveja fa enquanto limpa o suor com as mãos. exposição física, nos palcos e nas telas, interferiu • Numa rara e antiga entrevista (concedida a — Claro que vai. Nós vamos pegar programa é um travesti que tem ligações — É bloco Rancho das Flores, tem até — Falou com ele? e outro espetinho. Pega a lata e o espetinho no trabalho do Mutarelli escritor? Fernando Granato), Dalton Trevisan disse que com uma sociedade secreta que existe des- esse cara! ambulância. É a turma da terceira idade... — Falei. Foi a noite do apagão, do mais e sai dançando, sorrindo e cantando. O Anti- Miguel é branco, tem quarenta No início, principalmente em A arte de produzir todo escritor precisa “acreditar no demônio”. Você de a antiguidade... — E aquele músico ali? recente. Eu disse que o livro dele provoca Marcio apenas observa. anos, está acima do peso. efeito sem causa, eu tentei trazer a experiência física de acredita? O que é o demônio para você? — Ei, Marcio. — É o Glauco Sölter, o baixista. Conhece? alucinações... Pedro, de trinta e seis, é um negro um personagem para o trabalho literário. Por isso, eu O demônio, para mim, é o verdadeiro Senhor dos — O que foi? — E quem não conhece o Glauco Sölter, — Por quê? — O final do livro do Mutarelli é genial... forte. sentia a necessidade de criar os gráficos que o persona- homens. Nada de verdadeiramente sagrado nos espelha. — Você acha que esse enredo funciona- Marcio? — Por causa da tinta verde. — Genial? Polícia Civil. Investigadores. gem desenvolvia durante a trama; não pelo fator estéti- ria na passarela do carnaval curitibano? — Pois é. Acho que todos conhecem. — Tinta verde? — Não vou contar, até por que gostaria — É ele! — Pedro aponta. co, mas para compreender seu mecanismo físico. Fiz • Em Miguel e os demônios, o leitor se depara com a — Até demais. — Escute: “Sai pra lá, mau humor/ Vem — Em Miguel e os demônios, ao invés que você lesse o livro... Homem branco sai de um dos prédi- também alguns trajetos pelas ruas em que o personagem seguinte afirmação: “Eu te garanto que não há nada — Mas como você iria fazer essa repre- os. Aparenta mais de cinquenta, forte, caminhava, tentando sentir o que ele sentiria. Mas, de- melhor que a ficção”. Em relação às artes, você con- pra cá, alegria”. de preto, foi usada tinta verde para imprimir — Eu ler? Não vai dar, Marcio. Já esque- veste camisa estampada para fora da sentação? — É a letra da canção “Água, vida e o livro... ceu? Sou o Anti-Marcio... pois da experiência de protagonizar O natimorto, acho corda com o que diz o personagem Miguel? calça. Avança em direção a um carro que minha maior vontade é mergulhar mais fundo, pu- Nem lembro disso ter sido dito pelo personagem. — Com alegorias, com o Miguel, com a fantasia”, do Thadeu Wojciechowski e do — E isso te provocou... — Mas não vou contar. esporte, importado, japonês. Arranca. ramente, no campo da idéia. Quero esquecer o corpo. Não lembro o contexto. Mas a realidade só pode se ex-mulher, com a nova mulher, com o tra- Luiz Ferreira. — Eu li com luz de lâmpada amarela, — Por que não? — Vai! — grita Pedro. comparar à ficção através de uma mente muito criati- vesti, com a múmia, com elementos... numa madrugada... — Porque é um final que não pode ser Miguel, suando, tenta dar partida. • Como você lutou ou conviveu com seu primei- va. De um olhar extremamente poético, medicado e — Mas carnaval rima com alegria, não Marcio e Anti-Marcio caminham pela — Então você leu faz tempo? resumido. Te dizer que foi assim, ou de ou- O carro não pega. ro bloqueio criativo, sofrido quando se prepara- depois de algumas doses. com isso que você está me contando... — Merda! lateral direita da Cândido de Abreu. Marcio — Faz. E reli agora. tro jeito, seria reduzir demais uma cena que va para escrever o romance Ninguém gritava na — Ei, ainda não pensei em como repre- Pedro desce e começa a empurrar come espetinho de carne e bebe cerveja na — E viu coisas? mostra como o ser humano se vinga, como o carro. ponte, para a coleção Amores Expressos? • O escritor irlandês John Banville costuma dizer sentar na avenida o enredo do Mutarelli, lata. E dança. Anti-Marcio apenas caminha. — Vi muita coisa. Os livros do Mutarelli o olho por olho e dente por dente é o motor Quando ele desce, a mosca voa Esse bloqueio começou em 2008 e durou quase que sente um “ódio profundo e contínuo” de to- mas isso eu penso depois... Em uma rua perpendicular à Cândido de sempre me perturbam. humano... para fora. um ano. Foi horrível. Uma experiência amarga. Algo dos os livros que já escreveu. Que tipo de sentimen- — Depois? Abreu, há um palco com uma banda de rock — De que maneira? — Você também pensa assim? Miguel também desce e ajuda a em- próximo da impotência. Não sei como saí dele. Sei to você tem em relação à sua produção literária? — É, depois. que faz protesto contra o carnaval de Curitiba, — Os personagens são perturbados, têm — Não sei mais o que penso, não tenho purrar enquanto maneja o volante. que lutei, mas sinto que ficaram cicatrizes. Quando Com raras exceções, um certo embaraço. Costu- Um mendigo desdentado aponta — Depois quando? contra a festa momesca, contra os excessos problemas, vivem cotidianos difíceis, e a at- opinião, não tenho opiniões pra tudo... eu trabalhava, sempre existia algo de que não me dava mava dizer que não me orgulhava nem me envergo- — Depois que eu terminar esse texto. do consumo de bebida durante esse período. mosfera que ele cria me perturba... — Eu sei, Marcio. Conheço muito você. para a cena e começa a gargalhar. Gargalhada amplificada. Ensurde- conta e que eu chamaria de “arrogância criativa”. É nhava do meu trabalho. Hoje em dia, posso dizer que — Mas e o leitor, e a leitora do Rascunho? — Isso é bom ou ruim, Marcio? — Mas, me diga uma coisa... cedora. aquele momento em que se pega um papel e se atira me orgulho muito do livro O natimorto. E tenho — O que é que tem? — Sabe, Miguel e os demônios tem uma — Mais que bom, mais que ruim, é fato: — Até duas... Close na face do mendigo alucinado. sem medo de errar. Sem medo de ser julgado. Duran- uma vergonha profunda de alguns outros títulos. r — Acho que eles esperam que você justi- narrativa que não é convencional. perturba, provoca sensações... — Você vai ficar ao meu lado por quan- Vê-se a mosca pousar na cara do te o bloqueio, perdi essa arrogância. • fique, ainda neste texto, o porquê de dizer — E como é? — E você gosta? to tempo? mendigo.

que o enredo do Mutarelli daria samba na — Há blocos, cenas variadas. Em determi- — Me emociona. E gosto de texto que — Apenas por essa noite. esquecer “Quero • Numa edição recente do caderno Prosa & Verso, *COLABOROU Rogério Pereira. 14 rascunho 119 • MARÇO de 2010

RUÍDO BRANCO LUIZ BRAS Elogio do acaso Numa disputa intelectual, a vaidade e o orgulho sempre foram tão úteis quanto a inteligência e a erudição

1 anos de solidão, e qualquer outro título bem-sucedido Bill Gates que teve mais sorte. É só conferir Simpatizo muito com os poetas — me- que lhe vier à mente (se preferir o sucesso comercial, no elogio do acaso de meu amigo, Mlodinow. lhor dizendo, com os não-poetas — que pro- basta citar a série protagonizada por Harry Potter), o curaram a poesia bem longe da literatura e sucesso de público e de crítica que são até hoje. 5 da arte: no cotidiano. Que cruzada poderia A musa soprou talento em Dostoievski, Kafka e Muitos autores me confessaram que, cedo, ser mais poética e legítima? Refiro-me aos García Márquez? Claro que sim. A determinação e a na adolescência, peregrinaram para a terra san- não-poetas que, na Paris do entre-guerras, dedicação à literatura foram constantes na vida de ta da literatura apenas pra fugir da hipocrisia e estavam sempre receptivos a mim: o acaso, o cada um deles? Afirmativo, eu estava lá, acompanhan- do cinismo familiar e social, espécie de cativei- fortuito, o imprevisto. Eram errantes, erráticos, do tudo de perto. Mas também foram constantes na ro egípcio sem faraó. Não suportavam a su- errados. Gostavam de andar a esmo, sem vida de muitos outros autores talentosos cujos livros perficialidade, a burrice e a falta de destino, à espera das surpresas que a metró- desapareceram no vácuo do esqueci- discernimento dos pais, dos irmãos, dos avós, pole lhes reservava, que eu lhes reservava. À mento, ou jamais vieram a ser publi- dos tios e dos vizinhos. A boçalidade dos co- espera das iluminações profanas, para usar a cados. Autores e livros esquecidos, es- legas da escola também provocava náuseas. feliz expressão de Walter Benjamin. gotados, ou nunca conhecidos para Correram para os livros e se fecharam neles. Esses não-poetas andarilhos eram fasci- além de um restrito círculo de ami- Mais tarde começaram a escrever. Imagi- nados pelo aleatório e pelas infinitas mani- zades, porque, afinal, quem se inte- navam a sociedade dos escritores como uma festações do acaso objetivo (um sobrenome, Tereza Yamashita ressa pelos azarados? Ninguém. esfera elevada, distante da mesquinhez geral. enfim!), que, segundo Hegel, é “o lugar geo- Na sociedade humana as pessoas Imaginavam os poetas, os ficcionistas, os filó- métrico das coincidências”. Esses não-poe- aprendem cedo a idolatrar ape- sofos como homens plenos, generosos, sábios. tas atraíam e enfrentavam as coincidências, nas os vitoriosos. Criaturas que souberam controlar, por meio minhas oferendas. Gostavam de passear pe- A visão determinística do da reflexão refinada, os impulsos mais primiti- los objetos das galerias, das passagens e do mercado, errada mas aceita vos, os vícios que fazem dos obtusos, obtusos. Mercado das Pulgas. Pelo labirinto dos so- pelo senso comum, afirma que O fato é que os escritores são humanos, nhos e do automatismo verbal. Por que não- o sucesso é governado princi- demasiado humanos, e como qualquer poetas? Porque eram surrealistas e abomina- palmente pelas qualidades in- primata, evoluído ou não, são seres gene- vam a instituição literária e a artística. De- trínsecas da pessoa e do pro- ticamente agressivos obrigados a lutar em testavam as escolas literárias e os escrito- duto. Já a visão não-deter- duas frentes: para estabelecer os direitos res profissionais. Pensando bem, talvez não- minística — penso de territoriais em determinada região e para poetas sejam todos os outros, menos eles. novo nos filósofos, nos estabelecer o domínio numa hierarquia so- matemáticos e nos físicos cial (O macaco nu, Desmond Morris). Eu 2 de hoje — afirma que o sei, essa é a visão determinística do Homo Seis amigos que não se vêem há anos, sucesso é governado sapiens. Às vezes, diante de tanta estultícia escritores quarentões de vários pontos do por uma conspiração via satélite, institucionalizada, é difícil evitá- sudeste — dois contistas paulistas, três poe- de fatores pequenos e la. Confesse, você consegue continuar acre- tas cariocas e um romancista mineiro —, aleatórios, isto é, pelo ditando em livre-arbítrio, depois de assis- encontram-se no América e durante o jan- tir às macaquices automatizadas que ex- tar põem em dia a conversa. É óbvio que plodem nos reality shows? muito antes da sobremesa os seis já estão Em qualquer situação em que me vejo amaldiçoando nosso volúvel mercado edi- envolvido — num cassino, na bolsa de valo- torial. E destrinchando o sucesso ou o fracas- res ou na atividade literária — o segredo é so — quase sempre o fracasso — do último aumentar, sempre que possível, as probabili- título publicado não só por eles, individu- dades de sucesso. Isso vale para os sem talen- almente, mas também por todos os autores to e para os talentosos. Então, não pense que brasileiros que não estão por perto. seu autor predileto jamais cometeu um gesto O espanto sincero e indignado permeia reprovável, nunca trapaceou ou jogou sujo cada comentário. Como é possível que o para ver seus livros publicados, apreciados e romance (preencha este espaço com o títu- até premiados. Numa disputa intelectual, a lo que julgar mais adequado) esteja fazen- vaidade e o orgulho sempre foram tão úteis do tanto sucesso e o romance (preencha este quanto a inteligência e a erudição. espaço com o título que julgar mais ade- Proust desejava fama, prêmios e sucesso quado) não tenha sido sequer finalista do comercial, por isso pediu ajuda, sem pudor Prêmio Portugal Telecom e do Jabuti? algum, a todas as pessoas influentes que co- Confesso que esse espanto ingênuo e ino- nhecia, para promover sua obra. Guimarães cente sempre me desconcerta. Ele nasce de Rosa também escrevia aos amigos, pedindo uma interpretação errada da dinâmica so- resenhas. Neruda usou todas as armas e arti- cial. Escritores, que em geral demonstram manhas lícitas e ilícitas para manter o título de uma compreensão arguta do comportamen- Maior Poeta das Américas e, mais tarde, para to humano, costumam ser muito ignoran- ganhar o Nobel. Alejo Carpentier era outro tes quanto às leis imperiosas da estatística e que não se cansava da politicagem: bajulava da aleatoriedade. Minhas leis. Fidel (García Márquez bajula até hoje) e che- gou a dar palestras na Suécia, também de olho 3 no Prêmio. Aqui, Fernando Sabino não assi- Desde que foi descoberto por Robert nou a biografia da ministra Zélia Cardoso de Brown, em 1827, e explicado consistente- Mello, a maior gafe literária do final do século mente por Einstein, em 1905, o movimen- passado? Até mesmo entre os requintados to browniano — o movimento aleatório surrealistas, quantas disputas encarniçadas não das moléculas num fluido — tem sido usa- foram travadas, por poder e hegemonia? do com freqüência, em toda parte, como acaso, pela À socapa ou não, também na esfera li- uma pertinente metáfora para o movimen- sorte. Por mim. É cla- terária todas as regras de ética e etiqueta to dos indivíduos nas sociedades humanas. ro que o talento, a persistência e são regularmente quebradas. Os fins justi- Por exemplo, de que os jovens autores certo carisma social aumentam as proba- ficam os meios. ainda inéditos e desconhecidos precisam pra bilidades de sucesso de qualquer escritor, mas não É claro que existem artimanhas e artima- se tornar um autor editado e bem-sucedi- são a garantia de vitória. “Com sorte você atravessa o nhas. Há a adulação protocolar do candidato do? Se você fosse um escritor premiado com mundo, sem sorte você não atravessa a rua”, disse Nel- à Academia Brasileira de Letras em campa- o Nobel, o que diria? Essa cena é, ao me- son Rodrigues, num lampejo de não-determinismo. nha, de um lado, e a fedentina da relação de nos pra mim, bastante familiar. Presenciei Nelson e eu sempre nos demos bem. Heidegger e Hitler, do outro. E entre a primei- muitas vezes, assistindo a mesas-redondas ra e a segunda se esparrama toda uma gama e a palestras, um jornalista ou um curioso 4 de possibilidades. Mas não vamos falar sobre (um jovem autor ainda inédito e desconhe- A sorte e os movimentos brownianos na sociedade, os graus ou os degraus da ética e da integrida- cido?) perguntar aos autores veteranos de por estarem intimamente conectados a mim — ao aca- de. Não sou juiz. Nem jurado nem advogado que os jovens autores ainda inéditos e des- so, que não tem nada a ver com o caos, muito pelo nem promotor. Sou apenas uma testemunha conhecidos precisavam pra se tornar um Não pense contrário —, também conectam este breve, digamos, da História. Quem quiser atirar a primeira pe- autor editado e bem-sucedido. A melhor que seu autor auto-elogio — estou pensando agora no célebre Elo- dra, antes terá que provar que jamais pecou. resposta que ouvi até hoje foi: “Talento, gio da loucura, outro longo sucesso de público e críti- Falando diretamente para os jovens au- dedicação e sorte, muita sorte”. predileto jamais ca — à deambulação dos surrealistas, oito décadas atrás, tores ainda inéditos e desconhecidos, olhos Igual ao autor dessa resposta (será que cometeu um gesto e à conversação no América, na semana passada. nos olhos: “Se você quiser ser bem-sucedi- foi o Millôr?), também não vejo na pala- reprovável, nunca A visão não-determinística do mercado foi testada do, duplique sua taxa de fracassos”, suge- vra sorte nada de mágico ou sobrenatural. em laboratório, por pesquisadores frios e objetivos, e se riu Thomas Watson, um pioneiro da IBM. Ele e eu não estamos apoiando certas su- trapaceou ou saiu muito bem. O resultado de todos os testes foi o Faz sentido. Aumentar as possibilidades de perstições. A estatística não deixaria. Mi- jogou sujo para óbvio ululante (obrigado, Nelson): por aí, em toda par- sucesso significa jogar bastante, incansavel- nhas leis não deixariam. te, há muitos livros, pinturas, filmes, CDs, escritores, pin- mente, sem desistir. E perder muito. Estamos sendo bastante racionais. Os ver seus livros tores, atores e músicos de altíssima qualidade, porém des- No final de seu livro, Mlodinow cita filósofos, os matemáticos e os físicos de hoje publicados, conhecidos, e o que fará com que em cada área um deles Thomas Edson: “Muitos dos fracassos da já sabem que o acaso — o aleatório, sem- apreciados e se destaque, apenas um, será, em grande parte, a conspi- vida ocorrem com pessoas que não perce- pre eu — determina profundamente a vida ração de fatores pequenos e aleatórios de que falei. O beram o quão perto estavam do sucesso no humana, os projetos humanos. O sucesso e até premiados. encontro imprevisto, ou até então impossível, com um momento em que desistiram”. E lembra o o fracasso em qualquer área estão sujeitos editor ou marchand ou um produtor. Um prêmio (qua- caso de John Kennedy Toole, que, depois às leis da probabilidade, é o que afirma O se) inalcançável. Uma tragédia pessoal, como a morte de ser rejeitado muitas vezes, perdeu a espe- andar do bêbado, best-seller do físico nor- prematura (Mozart), a tuberculose (Kafka), a loucura rança de ver seu romance publicado e co- te-americano Leonard Mlodinow. Um best- (Van Gogh) ou o suicídio (Maiakovski). O acaso. Eu. meteu suicídio. Porém sua mãe perseverou seller sobre mim, enfim. Você ficará assombrado ao saber que Bill Gates não e onze anos depois Uma confraria de to- Foram os eventos imprevisíveis, mais do é melhor do que a dúzia e meia de outros Bill Gates da los foi finalmente publicado, ganhou o que os previsíveis, que fizeram de obras como informática que surgiram nos Estados Unidos na déca- Pulitzer de ficção e vendeu quase dois mi- Crime e castigo, A metamorfose e Cem da de 1980. Está provado cientificamente. Ele é apenas o lhões de exemplares.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 15 LANCE DE DADOS LUIZ RUFFATO Revistas literárias em Belo Horizonte

AS INICIATIVAS QUE AJUDARAM A CONSTRUIR A HISTÓRIA LITERÁRIA DE MINAS GERAIS

Desde sua inauguração, em 1897, Belo conclusões de Bueno, haja um traço clara- tros. Neste período, final da década de 1960 notas Horizonte, primeira cidade brasileira total- mente racista nas suas proposições. e início da de 1970, circularam várias revis- 1 Os irmãos Raposo estiveram à frente de um mente planejada, contou com uma grande Antes de radicar-se em definitivo no Rio tas em Belo Horizonte, a maioria de curta jornal simbolista de Curitiba, O Farol, publica- efervescência cultural, devido ao contingen- Grande do Sul, Guilhermino César esteve à duração, como Ptyx, Vereda, Texto, Pró-Textos do em 1898 (V. CAROLLO, Cassiana Lacerda. 16 Decadentismo e Simbolismo no Brasil - crítica e te de intelectuais que para lá afluiu, atraídos, frente, ainda, em 1942, de uma revista, de- e Porta — a exceção seria Estória . poética. Volume 1. Rio de Janeiro/Brasília: Li- principalmente, pela oportunidade de fazer pois jornal, chamada Mensagem, que tinha Fundada por Luiz Vilela, Luiz vros Técnicos e Científicos/INL, 1980, p. 61) e, logo depois, participaram de um grupo, no Rio carreira no funcionalismo público. Assim, como secretário João Etienne Filho (1918- Gonzaga Vieira (1936) e Wanda Figueiredo de Janeiro, ligado ao poeta Guerra Duval, fiel já em 1901, menos de quatro anos após sua 1997), segundo informa Humberto Werneck, (1930), entre outros, teve seu primeiro nú- à memória de Cruz e Souza (V. MURICY, An- drade. Panorama do Movimento Simbolista Bra- instalação, os irmãos Carlos e Alfredo de no seu fundamental O desatino da rapazia- mero lançado em outubro de 1965. Em sileiro. Volume 2. 3ª edição, revista e amplia- Sarandy Raposo (1880-1944)1, vindos de da9. Quatro anos depois, surgiria a revista 1966, dois novos volumes, em maio e de- da. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 1255). 2 In op. Cit., p. 1265. experiências com periódicos em Curitiba e Edifício, que reuniu em torno de seus quatro zembro; o nº 4 saiu em maio de 1967; em 3 Francisco Iglesias se refere a uma outra revis- no Rio de Janeiro, lideram um grupo, auto- números (entre janeiro e julho), a nova gera- 1968, saíram os números 5, em março, e 6, ta, Vida de Minas, de 1915, sem entrar em detalhes. V. IGLESIAS, Francisco. Meu amigo intitulado Jardineiros do Ideal, responsável ção, composta pelo historiador Francisco em junho, com tiragens de 5 mil exempla- Autran Dourado. In: Suplemento Literário de pela introdução do Simbolismo na cidade. Iglesias (1923-1999), o crítico teatral Sábato res e distribuição nacional. Apesar de o Minas Gerais. Belo Horizonte, Volume 20, nº 955, p. 4-5, janeiro de 1985. Deste grupo faziam parte Edgar da Mata Magaldi (1927), os romancistas Autran Dou- editorial do nº 6 acenar com a possibilida- 4 V. FRIEIRO, Eduardo. “Recordando os Amigos Machado (1878-1907), que vai dirigir a pri- rado (1926) e Otávio Mello Alvarenga de de ampliação dos interesses da revista, do Livro”. Suplemento Literário de Minas Ge- 10 rais. Belo Horizonte: Volume II, nº 68, p. 4-5, meira revista literária de Belo Horizonte, (1926) , e os poetas Jacques do Prado que até então só publicava contos de auto- dezembro de 1967. Minas Artística, de curtíssima duração, e Ál- Brandão (1924-2007) e Wilson Figueiredo res mineiros, a publicação não foi à frente. 5 O movimento teve como veículo inicial a Revis- 11 ta de Antropofagia, que circulou dez números, varo Vianna (1892-1936), responsável pela (1924) . A iniciativa se desdobrou em edito- Na década de 1970, em plena ditadura entre maio de 1928 e fevereiro de 1929, migran- segunda revista, Horus, que tirou dois núme- ra, que publicou a primeira novela de Autran militar, os resistentes culturais espalhados por do depois, como suplemento, para as páginas do jornal Diário de S. Paulo, onde permaneceu en- ros, em julho e agosto de 1902. Ainda liga- Dourado, A teia, e os livros de poemas de todo o país reuniam-se em torno de jornais e tre 17 de março a 1º de agosto de 1929. da aos ideais simbolistas, segundo o exausti- Figueiredo, Mecânica do azul, e de Brandão, revistas mimeografados — daí ficarem conhe- 6 In: O modernismo em Belo Horizonte: a década de 2 12 vinte. Belo Horizonte: UFMG/Proed, 1982, p. 101. vo levantamento de Andrade Muricy , hou- Vocabulário noturno . No ano seguinte, cidos como “Geração Mimeógrafo”. Entre 7 Poeta e crítico literário, Guilhermino César já ve uma terceira revista, A Época, em 1905, apareceu a revista Nenhum, com um número abril de 1972 e setembro de 1973, Jeferson havia participado da fundação da revista mo- 3 dernista Verde, de Cataguases (MG). Radicado sem indicação dos nomes dos diretores . apenas, capitaneada por Helio Pelegrino Ribeiro (1947), dono de uma copiadora em no Rio Grande do Sul, desde o começo da Alguns anos decorreram, até que no co- (1924-1988) e Silvio Vasconcelos (1916)13. Belo Horizonte, a Copibel, editou uma revis- década de 1940, tornou-se um dos principais estudiosos da cultura gaúcha. meço da década de 1920, surgem as primei- A década seguinte, sob a inspiração ta, Bel’Contos, que atingiu 10 números. Ribei- 8 In: Vanguarda européia e modernismo brasi- ras manifestações do Modernismo em Mi- desenvolvimentista do governador e depois ro criou ainda um selo, Edições Marginais, leiro. 8ª edição. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 368. 9 Poços de Caldas/São Paulo: Instituto Moreira nas Gerais, que culminariam com a publica- presidente Juscelino Kubistchek, será domi- que publicou três antologias: uma reunindo Salles/Companhia das Letras, 1998, 3ª reim- pressão, p. 114. ção dos três números de A Revista, em julho nada pelo grupo formado pelo crítico Fábio contos de Murilo Rubião (naquele momen- 10 17 Escritor, foi presidente da Sociedade Nacional e agosto de 1925 e janeiro de 1926, tendo Lucas (1931), pelo romancista Rui Mourão to esquecido da crítica) , Luiz Vilela e de Agricultura, órgão classista dos fazendeiros. como diretores os poetas Martins de Almeida (1929) e pelo poeta e ensaísta Affonso Ávila Roberto Drummond (1933-2002), que, em- 11 Figueiredo tornou-se jornalista combativo, diretor por décadas do Jornal do Brasil, em seu e Carlos Drummond de Andrade (1902- (1928), que lançaram em 1951 a revista Voca- bora houvesse ganhado o importantíssimo período áureo. 12 V. IGLÉSIAS, Francisco. Op. Cit. 1987) e redatores Emilio Moura (1902-1971) ção, semente da revista Tendência, de filiação Concurso de Contos do Paraná, ainda era 13 18 V. QUEIROZ, Maria José de. “Nenhum, uma e Gregoriano Canedo. A Revista colocou nacionalista e concretista, e que circulou a par- inédito em livro ; outra com três contos do revista única”. Belo Horizonte: Suplemento Li- Minas Gerais no mapa da revolução mo- tir de agosto de 195714. Para se contrapor à próprio Ribeiro; e uma terceira, que contava terário de Minas Gerais, Volume 25, nº 1176, 26/08/1992, p. 5. dernista, e abriu caminho para o aparecimen- hegemonia de Tendência, os romancistas Ivan com textos de Ribeiro, Luiz Fernando 14 V. ALMEIDA, Márcio. Tendência: 30 anos de to, na década seguinte, de uma das mais in- Ângelo (1936) e Silviano Santiago (1936), Emediato (1951) e Antônio Barreto (1954), exemplo cultural. Suplemento Literário de Mi- nas Gerais. Belo Horizonte, Volume 22, nº 1087, teressantes iniciativas editoriais da história da também poeta e ensaísta, lançaram a revista todos mineiros, e do gaúcho Caio Fernando p. 4-5, outubro de 1987. capital mineira, a cooperativa “Os Amigos Complemento, que durou quatro números en- Abreu (1948-1996), do fluminense Julio Cesar 15 V. WERNECK, Humberto. Op. Cit., p. 161-163. 16 V. As sextas estórias dos novos de Minas. Suple- do Livro”. Idealizada pelo crítico Eduardo tre 1956 e 1958, que contava com a colabora- Monteiro Martins (1955) e do paranaense mento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte, Frieiro (1889-1982), a publicação lançaria, ção de críticos de cinema (Maurício Gomes Domingos Pellegrini (1949)19. Esta antologia Volume 3, nº 108, p. 5-7, setembro de 1968. 17 Rubião, que havia publicado três livros de entre 1931 e 1937, 25 títulos, dentre eles al- Leite e Flávio Pinto Vieira), artes plásticas tornou-se a base da histórica Histórias de um contos, entre 1947 e 1965, voltaria a circular, e guns dos mais significativos da história da (Frederico Morais), teatro (João Marschner) novo tempo, publicada pela Codecri, editora em grande estilo, a partir de 1974, quando a Editora Ática resolveu publicar, na famosa co- literatura brasileira, como Brejo das almas, e música (Ezequiel Neves), conhecidos como do Pasquim, em 1977, marco do chamado leção Autores Brasileiros, dirigida por Jiro de Carlos Drummond de Andrade, Ingenui- a “Geração Complemento”15. O poeta boom da literatura da década de 1970. Takahashi, a coletânea O pirotécnico Zacarias, numa edição de 30 mil exemplares. A partir de dade e Canto da hora amarga, de Emílio Affonso Romano de Sant’Anna (1937) cir- Logo após a Bel’Contos, surgiu Silêncio, então, Rubião passou a ter sua obra reconheci- Moura, Galinha cega, de João Alphonsus culava por entre os grupos, sem aderir efetiva- editada por Lucia Afonso, então aluna de da pela crítica e pelo público como uma das mais originais da literatura brasileira. (1901-1944), Velórios, de Rodrigo M. F. de mente a qualquer deles. Psicologia da Universidade Federal de Mi- 18 Sua estréia seria com A morte de D. J. em Andrade (1898-1969), e O amanuense nas Gerais, que alcançou seis números, entre Paris, também publicado sob a chancela da 4 Editora Ática, na coleção Autores Brasileiros, Belmiro, de (1906-1994) . Suplemento 1973 e 1975. Nos dois últimos números, Lu- com enorme sucesso de vendas. Lançado em 3 de setembro de 1966, e em cia Afonso foi auxiliada por Emediato. A re- 19 Junto com Alexandre Marino e Marco Túlio Costa, Barreto esteve à frente do mais interessan- Grupos circulação até hoje, o Suplemento Literário de vista sofreu uma ferrenha perseguição da Cen- te projeto editoriais marginais de Minas Gerais, a Ainda na década de 1920, logo após a Minas Gerais faria época. Todos os grandes sura e, sob pressão, acabou fechando. revista Protótipo, que circulou, a partir de Passos, no underground literário brasileiro, entre 1972 e edição de A Revista, o jornal Estado de Mi- escritores e críticos literários, vindos de antes Emediato participaria ainda de duas outras 1973 (com um último número em 1976), e que nas publicou um suplemento, Leite Criôlo, ou recém-revelados, passaram pelas páginas experiências, as revistas Circus, de curta dura- será objeto de análise em outra ocasião. 20 Uma curiosidade: as várias gerações literárias filiado à Antropofagia, movimento lidera- daquele caderno cultural, que circulava aos ção, e Inéditos, que, lançada em 1976, com mineiras podem ser vislumbradas em livros de do em São Paulo por Oswald de Andrade sábados, sob a orientação, direta ou indireta, melhor acabamento, impressa em off set e de ficção. Assim, João Alphonsus (1901-1944) re- 5 trata sua época no conto O homem na sombra (1890-1954) . Segundo o pesquisador Antô- do grande contista Murilo Rubião (1916- circulação nacional, durou seis números. Iné- ou A sombra no homem, publicado em seu livro nio Sérgio Bueno6, o suplemento contou com 1991). Os jovens escritores reunidos nos anos ditos tinha como editor Vladimir Luz e dire- de estréia, Galinha cega, de 1931, e também no romance Rola-Moça, de 1938; Fernando dezesseis números, entre 2 de junho e 29 de iniciais em torno de Rubião adotaram o tor Ricardo Teixeira de Salles (Emediato apa- Sabino (1923-2004) conta a história de seu gru- setembro de 1929, tendo como diretores João epíteto de “Geração Suplemento”: Márcio rece como uma espécie de faz-tudo), e, junto po, formado por , Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, no roman- Dornas Filho (1902-1962), Guilhermino Sampaio (1941), José Márcio Penido (1941), com Escrita, de São Paulo, Ficção e José, do ce O encontro marcado, de 1956; Ivan Ângelo César (1908-1993)7 e Aquiles Viváqua (1900- Vladimir Diniz (1947-1986), Jaime Prado Rio, e O Saco, de Fortaleza, foi uma das mais (1936), em 1976, publica A festa, retrato de- 8 sencantado de sua turma, sob a ditadura mili- 1942). Para Gilberto Mendonça Telles , este Gouvêa (1945), Adão Ventura (1946-2004), importantes publicações literárias da década tar; e finalmente Luiz Vilela (1942), em Os foi o primeiro a colocar em questão a identi- Paulinho Assunção (1951), Luiz Vilela de 1970, talvez o momento mais interessante novos, de 1971, descreve com amargura os impasses de sua geração. dade negra brasileira, embora, seguindo as (1942) e Sérgio Sant’Anna (1941), entre ou- da história da literatura brasileira20.•r BREVE RESENHA UM POETA NA DIREÇÃO LUIZ HORÁCIO • PORTO ALEGRE - RS

Um romance com cor de poema, sugiro que se copie a receita, mas ela merece uma reflexão. São mais riquezas naturais do lugar e pelas características do seu povo, fruto com cheiro da melhor poesia, um de 50 personagens, quase um vaudeville regional. Um elegante vaudeville da mistura de negros e índios. Nesse cenário, o autor, a partir de romance com ritmo. Ritmo das pala- regional. As personagens aparecem e desaparecem sem maiores um triângulo amoroso, numa alegoria à democracia, permite que vras, ritmo da história, um ritmo de aprofundamentos psicológicos e, no entanto, isso não implica em todos os habitantes do lugar metam sua colher na vida desses per- sensualidade, um cheiro de vida, um prejuízo. A subjetividade, o material, é elemento de segunda ordem sonagens. Como é comum às democracias, e mais particularmente gosto de sonho. Pontal do Pilar, um em Pontal do Pilar, uma história que não se torna prolixa em instan- às democracias acéfalas, sobra espaço para tudo: tragédia, humor, romance a ser declamado. te algum. Tudo que está no livro é fundamental. É um entra-e-sai de drama, poesia e música. De forma caótica, ou misteriosa, mais O autor combinou erudição e personagens quase interminável, mas a forma como eles são apre- afeita à arte, mais adequada ao clima de Pontal do Pilar. coloquialismo. Resultado: emoção na sentados não é um lugar-comum: “Branca mesmo no Pilar, de raça Um triângulo amoroso. Drama, erotismo e exotismo. Seriam es- medida exata. E essa emoção invade ariana, só havia Ninda. O que tinha de alvura tinha de sem- sas as personagens principais? Não. Pode ser até que muitos leitores o leitor durante a leitura, perdura e vergonhice. De algodão-doce a pele, de paina o lábio. Loura de mi- lhes concedam esse status. Fruto da pressa, tão somente, pois a perso- deixa um gosto de quero mais. Doce lho, mas o pêlo de baixo preto como amora madura”. nagem principal deste impecável romance é a linguagem. Em vários feitiço de mestre Paulo César Pinhei- Arrisco afirmar que o poeta guia o romancista. Vem daí a con- aspectos, quer na erudição, quer no mais singelo coloquialismo, quer Pontal do Pilar ro. Pelas ruas de Pontal do Pilar, o cisão da obra. Não há originalidade nessa história quase sem enre- na forma de poema, quer no ritmo, onde o autor dá pistas de sua Paulo César Pinheiro aspecto sensorial guiará o leitor. Tudo do, a não ser a linguagem, e isso basta. Cabe ressaltar, no entanto, intimidade com a língua, ora aparece uma rima nos moldes de um Leya tem cor, perfume e textura nessa nar- que o autor trabalha com clichês dos mais batidos, que vão do 128 págs. poema, ora a rima aparece no meio da frase. Percebe-se, em frases que rativa onde o escritor parece mais de- erotismo destruidor ao artista conquistador — em Pontal do Pilar beiram o sublime, o talento de um dos maiores letristas da música cidido a nos apresentar alguns mora- representado por um músico. Não estará completamente equivo- popular brasileira. A forma popular de se expressar que a letra de dores do lugar do que narrar uma história convencional. Seriam cado quem interpretar a história de Paulo César como uma grande música exige aliada ao conhecimento da língua que um poeta/letrista/ personagens comuns, não fossem a sutileza, o lirismo, o carinho sátira. Entre as várias abordagens, temos o aspecto erótico, a exa- romancista do quilate de Paulo César sabe utilizar. e a inocência que o autor lhes empresta. Mesmo as cenas amargas gerada valorização das questões espirituais, esotéricas, ocultas etc. Pontal do Pilar é um livro diferente. O diferente aqui não é o são pintadas com as cores da poesia. O mistério como razão ou justificativa de determinadas atitudes. esconderijo buscado pelo crítico quando não consegue ou não Impressiona também que, com uma quantidade tão grande de Pontal do Pilar é um vilarejo à beira-mar. Tem um cais do quer dizer se tal obra é boa ou ruim. O diferente aqui é para dizer personagens, a emoção, o sentimentalismo da obra, aqui no melhor porto. Ali chegam navios cargueiros. A vila fascina um bom núme- que Pontal do Pilar é sensacional. Dá vontade de voar para lá, dos seus sentidos, não perca a força ou não soe exagerada. Não ro de estrangeiros, europeus a maioria. Um fascínio exercido pelas conhecer aquela gente, agradecer a Paulo César Pinheiro.•r 16 rascunho 119 • MARÇO de 2010

ATRÁS DA ESTANTE CLAUDIA LAGE A última página

A ANGÚSTIA QUE ATINGE BOA PARTE DOS ESCRITORES AO CHEGAR AO PONTO FINAL

Enquanto escrevia o romance Rayuela, de McCarthy profere, “são fantasmas sem espíritos. Fan- va destruí-la, não deixar de sua criação rastros mais de seiscentas páginas, o escritor argentino tasmas da nossa imaginação”. Por isso, provavelmen- nem vestígios. Só assim poderia recomeçar, ser Julio Cortázar passou por momentos difíceis. te, para alguns escritores é tão difícil chegar à última novamente criador, mas sem a lembrança de an- Exausto com o processo criativo que lhe exigiu página. Abandonar aquele universo que se criou. E tigas criaturas, eternos fantasmas ao seu redor. uma dedicação extrema, muitas vezes só se ali- por isso há escritores que reescrevem tanto. A reescri- Por isso há escritores que nunca relêem seus mentava porque sua mulher lhe forçava a comer, ta nada mais é do que o desenrolar da costura que livros, nem mesmo suportam olhá-los. “Tenho só dormia porque ela lhe levava para cama, só permite costurar de novo. Permite ao escritor um re- náuseas”, dizia Clarice. “Tenho medo”, confes- tomava banho porque ela exigia. “Cheguei num começo, eternamente, como a Penélope de Ulisses. sou Virginia Woolf. “Começo a rabiscar louca- ponto que eu não sentia mais o meu corpo, nem Borges já dizia: “Publicamos apenas para não pas- mente em todo o livro”, contou Katherine Anne a minha mente”, disse o escritor numa entrevis- sarmos o resto da vida reescrevendo o mesmo livro”. Porter. Realmente, uma vez, num jantar na casa ta, “era apenas uma espécie de massa sensível “Agora, livro meu, vai, vai para onde o acaso te de uma amiga, a escritora americana se deparou que escrevia”. Nessas horas, Cortázar lembrava- leve”, disse uma vez o poeta Paul Verlaine, tocando com um livro seu na estante. Apesar de saber se comovido de Marcel Proust. “Que emoção numa ferida íntima de todo escritor. Há vida após o que a amiga possuía o livro, que ela mesma o indescritível ele deve ter sentido ao escrever a livro? Para o livro, sim, provavelmente. Seja curta havia autografado, levou um susto imenso. Mi- última página de seu romance!”. Alcançar a úl- ou longa, iluminada ou obscura, frívola ou inten- nutos depois, a amiga veio da cozinha e encon- tima página, no caso de o autor de Em busca sa. Mas para o escritor... “Entre um livro e outro, trou a escritora sentada no sofá, com o livro aber- do tempo perdido, significa ter ultrapassado sete estou morta”, declarou Clarice Lispector. “Ando pe- to no colo, uma caneta feroz entre os dedos, re- volumes, vencido dois mil e quatrocentos e qua- las ruas sem rumo, entro e saio de lugares, numa tris- escrevendo-o veementemente. renta e oito páginas e sobrevivido a treze anos teza inexplicável, num vazio imenso”, disse Caio “A última página traz o alívio do trabalho sobre a escrivaninha. “Eu experimentava uma Fernando Abreu. “Quando termino um livro, tenho cumprido, mas também uma grande angústia”, sensação de imenso cansaço ao verificar que todo o mesmo sentimento da morte,” afirmou Ernest revela . Ao chegar na últi- esse tempo não só fora sem interrupção, vivido, Hemingway numa entrevista, “só que não há cor- ma página, o escritor fatalmente se depara com pensado, segregado por mim, mas era a minha po”. Para o americano Truman Capote, o próprio a questão mais vital da literatura. E que, por isso vida, era eu mesmo”, revelou Proust, em um de livro é esse corpo, que tanto falta fez a Hemingway, mesmo, talvez a tenha evitado obsessivamente seus cadernos de anotação, perto de terminar a mas que, apesar da sua presença e concretude ao al- durante todo o percurso, como a um espelho que sua saga literária. Escrever Em busca de um tem- cance da mão, nunca poderá ser enterrado. “Termi- evitamos olhar, com receio do que iremos ver. po perdido tomou um tempo tão longo que a nar de escrever um livro é como pegar uma criança, “Cheguei ao fim porque realmente não há mais escrita tornou-se a própria vida do escritor. levá-la ao quintal e matá-la a tiros”, Capote desaba- nada a ser dito?” Provavelmente, todo escritor se “Como então terminar um livro?”, indagou fou, numa conferência literária. A imagem, extrema- questiona, após o ponto final: “Ainda há algo a uma vez a escritora americana Mary McCarthy, mente violenta, revela o desamparo do criador dian- dizer?”. E ainda: “Disse tudo o que queria?”. E “se ele se torna a nossa própria vida?”. O proces- te de sua criatura. “Está feito”, continuou Capote, “e pior: “É importante e vital tudo o que disse?”. E so diário da escrita inverte as nossas referências, por mais belo e puro que seja, como uma criança, é mais: “O que mais posso fazer?”, ele se pergun- disse a escritora. “No decorrer dos dias e dos preciso desfazer, só assim é possível começar de novo”. ta, numa angústia interminável de recomeços. meses, os personagens vão se tornando mais for- O escritor americano, assim como Borges, mas de Tentativas de dizer de outro modo o que não foi tes, mais vivos do que as pessoas.” Tudo que faz forma totalmente inversa, ressurge com o mito de possível, ou o que foi mas ainda não se sabe, só parte do imaginário — do processo criativo — Penélope. Enquanto Borges quer libertar a criação do se saberá se deixarmos livre a criatura, como se torna real. O mais real. Dá para ver, tocar, seu criador, e o criador da criatura, para assim reco- Borges, se não matarmos a criança, como queria cheirar, falar, responder, escutar. “Virginia Woolf meçar a escrita, mas poupando a criatura, lançando- Capote. Se formos Penélopes de novas linhas e não ouvia vozes? Agora entendo o porquê”, a ao mundo para se fazer e se perder, Capote precisa- novelos, sobreviventes de nós mesmos.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 17 Memória do Rio

Obras de MARQUES REBELO retratam, com acidez e lirismo, a sociedade carioca da primeira metade do século 20

LÚCIA BETTENCOURT • RIO DE JANEIRO – RJ

Nas palavras de seu biógrafo, Luciano Trigo, o terceiro volume de Espelho partido, A guerra está em nós, é um “painel urba- no multifacetado, (…) uma obra que desa- fia classificações e ignora convenções nar- rativas, ao misturar ficção e memória, diá- rio e crônica de costumes, sempre pela lente da crítica social”. O próprio autor reflete sobre a forma de sua obra, na primeira ano- tação feita em 1944: “(…) vou prosseguin- do neste romance (…) manancial que desce do eternal e escondido Trapicheiro (…) A guerra está em nós É o meu rio! (…) se tiver sede, beba da Marques Rebelo José Olympio sua água, as mãos em concha. É água 592 págs. pura, não duvide — a Arte é um filtro”. Romance–rio, confessadamente, A estrela sobe Marques Rebelo mas também romance–Rio e romance- José Olympio mundo. A cidade se revela em peque- 224 págs. nos instantâneos nobres ou escusos. Uma ida à zona ombreando com uma reflexão sobre a notícia do extermínio de judeus. A morte de um acadêmico entre as páginas dos planos para o Carnaval no High Life, com a amante do momento. As incríveis dificuldades para se conseguir uma linha telefônica e as intrigas e ciumeiras do mundo literário. o autor Romance à clef, o leitor se distrai Nascido no Rio de Janeiro (RJ), no dia no jogo de identificação de perso- 6 de janeiro de 1907, e morto na mes- nagens reais da vida intelectual da ci- ma cidade, a 26 de agosto de 1973, dade. Escritores, críticos literários, pin- MARQUES REBELO, pseudônimo de Edi tores e jornalistas, quase todos podem ser Dias da Cruz, ocupou a cadeira 9 da identificados graças ao trabalho de pesquisa Academia Brasileira de Letras, para a de Luciano Trigo, em seu perfil de Marques qual foi eleito em dezembro de 1964. Rebelo. Seu biógrafo revela que, numa car- Dedicou-se ao jornalismo profissional no ta a Paulo Mendes de Almeida, crítico de início dos anos 20 e começou publican- arte e um dos fundadores da Sociedade Pró- do poemas nas revistas modernistas. Arte Moderna, o próprio acadêmico iden- Em 1931, publicou seu primeiro livro de contos, Oscarina, e, dois anos de- tificou figuras como (Ante- pois, Três caminhos, volume compos- nor Palmeiro), José Lins do Rego (Júlio to pelas novelas Namorada, Vejo a lua Melo) e o editor José Olympio (Vasco Ara- no céu e Circo de cavalinhos. Seu roman- újo), entre muitos outros. Manuel Bandei- ce Marafa, de 1935, recebeu o Gran- ra e Gilberto Freyre aparecem no livro como de Prêmio de Romance Machado de “o poeta” e “o famoso sociólogo”, enquan- Assis, da Cia. Editora Nacional, e foi se- to que Drummond e Mário de Andrade guido por seu maior êxito, em 1939, A aparecem com seus próprios nomes, sem- estrela sobe. Em 1959, publicou O pre elogiados por algum personagem tal trapicheiro, seguido de mais dois vo- como Joaquim Borba, pseudônimo do es- lumes: A mudança (1962) e A guerra está em nós critor Cyro dos Anjos. (1968), que formam o inconcluso projeto de O espelho partido, Neste registro muitas vezes ácido e, em painel da vida brasileira, especialmen- outras, de um lirismo algo fora de moda, te carioca, na primeira metade do sé- aparece um mundo em transformação, culo 20. Dos sete volumes planejados, uma cidade pré-industrial que rapidamen- Marques Rebelo só chegou ao terceiro. te se moderniza, e adota coisas percebidas como estrangeiras na época, tal como as churrascarias, trazidas pela moda gauches- ca da presidência de Getúlio Vargas. O cres- cimento desordenado da cidade, a moder- MARQUES REBELO por Osvalter nização nem sempre eficiente e muitas ve- zes danosa, tudo isso se revela nos lamen- tos autobiográficos, ajustados pelas reflexões trecho • a guerra de caráter político e social que não perdem o sabor da subjetividade. portamento padrão, e as mulheres que se problemática. Ciente de que sua beleza é um está em nós Retratando uma sociedade semelhante submetiam a ele viravam alvo do desprezo tipo de mercadoria, ela procura se beneficiar 13 de março à pintada por Nelson Rodrigues (afinal, são de suas famílias e conhecidos. As “perver- mesclando malícia, cálculo e ingenuidade. Ao Que a experiência não melhora nin- contemporâneos), Marques Rebelo se reú- sões sexuais” também provocavam o julga- fim e ao cabo, ao invés de admiração, ela só guém poderia ser uma tese, na pior das ne a outros grandes escritores que mantêm mento hipócrita de quem observava os es- consegue o desprezo e o isolamento. Leniza hipóteses literárias. Júlio Melo, com mais o espírito carioca registrado para nosso co- forços de sobrevivência e os sonhos de su- termina a história solitária, embora não per- de dez romances publicados e consa- nhecimento e observação. Desde Machado cesso de pessoas que, pelo sexo, estavam fa- ca sua persistência e petulância. grados, seria um exemplo. Mas não é de Assis, passando por e João dadas a serem “rainhas do lar”, “santas Essa denúncia da miséria e da falta de pers- pela força do exemplo, está visto, que o do Rio, alguns escritores conseguiram re- mãezinhas” e “anjos domésticos”. pectiva da incipiente sociedade urbana carioca mundo mantém a sua marcha. E temos best-seller tratar os tipos e a sociedade carioca em suas O romance de Marques Rebelo, que ser- é o que caracteriza Marques Rebelo como um mais um do romancista-em- saison obras, as quais hoje nos permitem entender viu de inspiração ao filme do mesmo nome, dos autores do que se conhece como Roman- baixador, inaugurando a em re- as modificações de pensamento e de atitu- de Bruno Barreto (1974), aborda um outro ce de 30. Leniza, com sua ânsia de liberdade, tumbante estilo, publicitário — Vasco des provocadas por mudanças sociais e eco- pesadelo feminino presente ainda nos dias sua ambição e sua fé num futuro melhor, se vê Araújo, generoso e ingênuo, não poupa insenso para turibular o semideus, nômicas. Talvez por isso, em A guerra está atuais: o aborto. Fora da lei brasileira, con- enredada pelo lado obscuro do rádio, o local alheio à mágoa, ou ao rancor, de muitos em nós o aspecto ficcional se coloca em tinua tendo que ser praticado às escondi- das intrigas e da glória, dos pesadelos e dos coeditados, o que valeu de Gustavo das, muitas vezes por “curiosos” que não segundo plano, e se atrofia frente à riqueza sonhos. A realidade, sempre um tantinho sór- Orlando o seguinte comentário: do material memorialístico. Mesmo escrito se preocupam com a higiene nem oferecem dida, avaliada em sexo e dinheiro, vai — Imagine-se um fabricante de sa- já na década de 60, o livro não se afasta recursos caso o procedimento tenha com- esgarçando os sonhos da moça que se vê usa- bões que, tendo na sua linha de produ- inteiramente do modelo dos romances da plicações. O drama está todo retratado no da por uns e outros, e que também tenta usar tos uns vinte sabonetes de perfumes geração de 30, marcados pela crítica social. romance e toma destaque dentro da narra- uns e outros como degraus para a fama. As diferentes, só fizesse propaganda do Outra característica preservada é a do tiva já que, a partir do episódio, a forma amizades que encontra, a sociedade em que se seu preferido sabonete de cravo! Pois, coloquialismo, que tempera o texto com narrativa sossobra e surje a narrativa em movimenta, reparte com ela suas fraquezas e incrível que pareça, é o caso de Vasco expressões retiradas da “língua gostosa do forma de diário, como se para corroborar estimula seus “deslizes”, desde que os mesmos Araújo. O seu ideal é que o mundo lei- povo”, como diria Manuel Bandeira. uma realidade que se sobrepuja à ficção. se mantenham, hipocritamente, escondidos. tor se ensaboe, única e exclusivamen- Os amores e desventuras de Leniza se de- Ao terminar a leitura de A estrela sobe, te, com o patchuli de Júlio Melo… Bem Mais resistente senvolvem a par e passo com verdadeiras ra- fiquei surpresa com o pouco tempo cronoló- fez o Antenor Palmeiro que mudou de Já no romance A estrela sobe, o fio con- diografias urbanas. A decadência da família gico que separa Leniza Máier de Leila Diniz. editor, não importando que menos fa- dutor da ficção se revela mais resistente. com a morte do pai é adiada, mas torna-se A personagem de ficção, se tivesse “vivido” moso, afinal, editores e costureiros são Contando a história de uma jovem subur- inevitável. Os flashes de memória que reve- uma geração após, teria como modelo não questão de moda. Eu é que estou amar- bana, Leniza Máier, Marques Rebelo, na lam a extorsão praticada por agiotas junto as hipócritas divas do rádio, mas a libertária rado, não posso dar o pira. verdade, revela a importância do rádio na aos profissionais que procuram sobreviver atriz. Desprezada nos anos 30, a mulher que — Por que não? sociedade carioca dos anos 30. Mas, mesmo com seus ofícios honestos, mas de pouco ren- se desejava dona de sua sexualidade foi ca- — Compromissos morais — escar- sem perceber, ele cria um romance cuja im- dimento, apiedam não apenas a empreende- paz de transformar o pensamento de um gru- rou vagamente, chupando o cigarrinho portância para o conhecimento da condição dora Leniza como os próprios leitores. Até po social, que hoje vê em Leila Diniz um amassado. da mulher carioca no início do século 20 se no desenvolvimento das relações amorosas ícone. Os problemas de Leniza parecem ter Natércio Soledade enfiou sua colher torna uma marca inquestionável. da moça, cujo primeiro amor possui um desaparecido, e com eles periga desaparecer a de pau: — Antenor é esperto como rato. Vivendo num mundo em que a “revo- nome emblemático, Astério, ou seja o nome compreensão da importância da militância Deu o fora antes que o seu barco edi- lução sexual” já é coisa do passado, em que do Minotauro aprisionado no labirinto, po- feminista. A leitura do romance de Marques torial soçobrasse. A glória de Júlio Melo demos perceber um modelo que a sociedade Rebelo, então, revela um aspecto do mundo as conquistas feministas abriram portas para é mais devastadora do que torpedo. a igualdade no trabalho e no estudo, as jo- cria para validar as diferenças entre os sexos. estreito do qual as mulheres estão conseguin- — Sabe administrar os seus inte- vens de hoje não têm idéia da agonia que a Aquele namoro onde o sexo — irrealizável do se libertar, conseguindo vitórias como o resses — ponderou Gustavo Orlando. “perda da virgindade” representou um dia. por causa dos ditames morais — é substituí- direito a voto, oportunidades de emprego e E arrematando com amargor: — Não Mulheres valiam pela preservação ou não do pela agressão já nos revela que, para de estudo, e, obviamente, libertando-se do fan- deixa de ser uma arte. de seus hímens. O assédio sexual era o com- Leniza, a entrega de seu corpo só pode ser tasma da gravidez indesejada.•r 18 rascunho 119 • MARÇO de 2010 A reinvenção da esperança Em BENDITO ASSALTO, Domingos Pellegrini mistura a tradição literária a uma postura mais experimental de composição

VILMA COSTA • RIO DE JANEIRO – RJ um assalto, há um código predefinido de lar a partir do seu estar no mundo ou da sua salto para ganhar algum dinheiro”. Paixão e moralidade ética que pretende frear a inadequação ao mundo vivido, num plano da interesses econômicos também configuram um Bendito assalto, de Domingos Pellegrini, banalização da vida e a violência gratuita. Basta realidade político social presente. sujeito em sua subjetividade. Isto impede a ob- gira em torno de um plano de assalto, envolve dizer que a primeira pretensão do mentor do Neste sentido, a atenção sobre o texto de ore- jetividade jornalística de se manter exclusiva. personagens com perfis bem distintos, unidos assalto era executar uma ação sem arma de fogo lha do livro é de fundamental importância. Tanto Mário, bancário, viciado em álcool e coca- entre si apenas pelo amadorismo profissional e, portanto, sem derramamento de sangue. pode funcionar como uma introdução à leitura, ína, idealiza o assalto, “inspirado num filme de criminosos em potencial. Num primeiro Ou seja, apesar de se diferenciar do roman- como uma conclusão da narrativa. Como um pre- baseado no conto The killers, de Hemingway”. momento, essas criaturas se apresentam mais ce de enigma, o livro também não se situa den- fácio, tenta estabelecer uma explicação “autoral” A paixão por cinema do personagem justifica a como tipos do que, propriamente, como per- tro do âmbito do romance negro moderno ou da estrutura fragmentada da narrativa. Mas vai forma textual de um roteiro cinematográfico, sonagens em perspectiva. Isso porque todo o contemporâneo. Dele se distingue por uma li- mais além, na medida em que pretende garantir a que muitas vezes é expressa na história. A sen- esforço narrativo parece estar em priorizar a nha da proposição ética que estabelece limites verossimilhança da trama, associada ao sibilidade feminina e esotérica de Lara é traba- ação e a maneira como essa ação se desenvol- e oferece perspectivas mais promissoras, como “descompromisso” do autor-narrador-diretor lhada através de um texto carregado pelo fluxo ve. Esses tipos só vão dizer a que vieram no se verá no desfecho da história. Mantém, en- com as possíveis incoerências das ações. Se a de consciência ou apelos poéticos e existenciais, desenrolar da trama. Esta, assumindo formas tretanto, desses tipos de texto, algumas linhas narratividade é construída por pontos de vistas e graficamente marcados por um tipo de letra di- diferenciadas, em referência a outras lingua- de construção que garantem o interesse perma- códigos de linguagens tão diferentes, não há por- ferenciada. Toninho, em sua condição homosse- gens, como a da entrevista jornalística, do ci- nente do leitor: “Não há história a adivinhar; que o diretor do espetáculo assumir as incongru- xual, é sensível e apaixonado pela arte dramáti- nema, do teatro, da música e até da poesia, vai não há mistério ou enigma. Mas o interesse do ências de um enredo que parece estar se desenro- ca. É assim que “várias passagens são narradas se constituindo a partir de fragmentos e mon- leitor não diminui por isso”. Há aqui uma for- lando à revelia de sua direção ou condução. em linguagem teatral”. Em meio a tudo isso, o tando seu tecido em mosaico. ma de interesse que garante o envolvimento do Cabe como jornalista forjar uma objetivida- segurança José Ferreira, o Lampião, no seu jeito A promessa de surpresas entra em tensão com leitor: segundo Todorov, “é o suspense (...) de ou, na posição de diretor de um espetáculo, estabanado de ser, entra em cena disposto a cum- conflitos sugeridos a partir do título: Bendito mostram-nos primeiramente as causas, os da- apresentar os fatos e os atores em suas falas, prir o seu dever a qualquer preço. Surge como assalto. Do ponto de vista moral e ético, como dos iniciais (gangsters que preparam um golpe) estabelecendo os efeitos de cor, som, cenários e signo do imprevisto e da ironia do acaso conspi- um assalto pode ser bendito? Seria ele um assal- e nosso interesse é sustentado pela espera do tempo através de recortes necessários para rador e soberano. Suas impressões e falas tam- to bem-sucedido, no qual seus autores realiza- que vai acontecer”. Aliado a tudo isso, os dife- viabilizar a encenação. Na orelha do livro, bém são marcadas por destaques gráficos que riam todos os seus sonhos e seriam felizes para rentes pontos de vista problematizados pela intitulada A quadrilha e a partilha, o autor- propiciam sua identificação. sempre? Seria um plano mirabolante do crime condição social e emocional de cada persona- narrador apresenta os personagens e o projeto perfeito no qual todos os passos e indícios se gem, assim como as suas diferentes formas de de construção do romance. Faz a “partilha” da Lucros e prejuízos apagam na impunidade preponderante da con- expressão, inibem qualquer tentativa de responsabilidade de cada ator-personagem com Em linhas gerais, o livro se divide, além da juntura política em que vivemos? Seria uma enquadramento do texto em algum gênero o que irá se desenrolar a partir daí, como se introdução e da capa, em quatro capítulos. No ação frustrada na qual a justiça se faz e os “cri- cristalizadamente consagrado. No seu conjun- desse “crime” pudesse sair de mãos limpas. primeiro, O plano, o mais extenso, são apresenta- minosos” sobreviventes são devidamente pu- to, o livro transita sob diversas formas e utiliza- “Dos quatro da quadrilha, o primeiro que co- dos os personagens, seus dramas de vida e de nidos ou premiados e aprendem a lição de que se de vários aspectos e recursos de gêneros e nheci foi Guto (...), jornalista, durante vários consciência na participação do assalto e a pro- “o crime não compensa”? Ou seria tudo isso, e linguagens, sem, contudo, limitar-se a algum encontros contou com objetividade e muitos posta do plano em si. A seguir, em A espera, dan- nada disso? Como isso tudo seria possível? modelo específico. Sabemos tratar-se de um detalhes sua participação no assalto, que pro- do continuidade a trama, os personagens vivem Não nos resta outra saída senão embarcar- romance pela discreta inscrição que vem na curei narrar com objetividade.” um período de transição e preparação para o mos na aventura e avançar na leitura virando a capa acompanhando o título. Em que consiste a pretensa objetividade passo seguinte. Em O assalto, a tão esperada ação folha dura de capa atentando para todos os si- Há a promessa de um bendito assalto, o pla- desse autor-narrador? A reprodução do texto se realiza. E no último capítulo, A partilha, acon- nais gráficos, título, autor, editora e imagens. no e a ansiedade da espera. Não há sequer, ex- falado pelo jornalista Guto não é suficiente para tece o desfecho no qual cada personagem, de Quatro elementos da quadrilha caminham um plicitamente, um narrador exclusivo, oniscien- garanti-la. É apenas um dos pontos de vista den- uma maneira ou outra, recebe sua parte na dis- ao lado do outro, não se sabe para onde. Bendi- te e detentor de todos os caminhos da ação com tro de tantos outros. Outras questões borram a tribuição dos lucros e prejuízos da ação. to, está inscrito em preto, assalto em branco, suas verdades. Há fragmentos que, como tal da narrativa jornalística “objetiva”. Esta está Como se vê, esses capítulos não serão aqui co- sobre um fundo azul. Uma pequena borboleta fotogramas, vão constituindo a narrativa cine- contaminada, inegavelmente, pelas paixões e mentados nos seus curiosos detalhes. Em parte, (ou será uma mariposa?) sobrevoa o título em matográfica através de diferentes câmeras ou pelos interesses do personagem em questão. por questão de espaço, há um limite de linhas a vôo aberto para a imaginação de autor-narrador pontos de vista. No caso do romance em ques- Destacam-se aí a paixão de Guto por Lara e os cumprir. Mas, principalmente, por não ser justo e leitores que se pretendem cúmplices. tão, a linguagem escolhida para cada um dos recursos poéticos que tira do fundo do baú da com tanto engenho do autor para manter o suspense A história começa, portanto, antes propri- fragmentos diz respeito à construção de cada memória na tentativa desesperada de da trama, um estraga-prazeres adiantar fatos que amente do primeiro capítulo. Já na capa sur- personagem, suas aptidões, paixões e maneiras sensibilizá-la. Segundo o narrador, o jornalista merecem ser apresentados no seu tempo, com o gem as primeiras indagações que suscitam as de encarar a construção do seu mundo particu- estava “interessado em contar a história do as- prazer da espera, sob o calor do suspense. primeiras curiosidades para se garantir o Não podemos esquecer que o escritor de suspense e as promessas de movimentada ação. Bendito assalto é chamado a participar da nar- Não se trata, entretanto, do que se pode cha- ração da trama a convite de Guto, o jornalista. mar de romance policial no sentido tradicio- No próprio romance, está sendo representado nal. Não há cadáver, arma do crime, detetive como um escritor de livros infanto-juvenis, investigador racionalmente munido de ferra- como o próprio Domingos Pellegrini. Em en- mentas e com uma imunidade garantida. Ou trevistas, o autor costuma afirmar: “A língua com melhor, não há enigma a ser desvendado acer- que escrevo um livro é basicamente a mesma ca de um crime já acontecido num passado pró- com que conto um caso para um amigo. Minha ximo ou remoto. Tzvetan Todorov, no seu es- meta é escrever como quem fala a uma criança”. tudo Tipologia do romance policial, investiga di- A vasta obra premiada em vários gêneros traz a versos tipos de textos do gênero. Ao romance marca da simplicidade de uma fala de contador de enigma, segundo suas definições, contrapõe- de histórias com uma carga significativa da se o romance negro, no qual o tema assume um oralidade do cotidiano popular e a curiosidade aspecto principal: “O romance negro moderno da criança e do artista, que lançam o olhar para constitui-se não em torno de um processo de cada acontecimento do mundo com o fascínio apresentação, mas em torno do meio represen- Bendito assalto da primeira vez. A simplicidade no dizer não Domingos Pellegrini tado, em torno de personagens e costumes par- Leitura impede a complexidade nas questões levantadas ticulares; por outras palavras, sua característi- 216 págs. do ponto de vista temático e formal. Ao mesmo ca constitutiva são seus temas”. Enquanto no tempo em que resgata formas e conteúdos da romance de enigma o detetive estava imune nossa tradição literária, inova com uma postura centrado nos recursos de sua racionalidade para experimental na composição de seus textos. descobrir o mistério do crime, no romance ne- Ainda com relação ao aspecto temático, pa- gro tudo é possível, o detetive se arrisca: “Aí rece que Pellegrini caminha na contramão de encontramos a violência — sob todas as for- uma literatura contemporânea de radicalização mas... A imoralidade está ali à vontade, tanto da desesperança de uma violência urbana desen- quanto os bons sentimentos”. freada, sem perspectiva de superação. Resgata DOMINGOS para isso elementos aparentemente ingênuos de PELLEGRINI uma esperança pautada na ética do trabalho, que Sem gênero nasceu em 1949, pressupõe o prazer de fazer o que se gosta e de Em Bendito assalto, apesar de a variedade em Londrina (PR), de linguagens e discursos conspirar para uma onde vive. É autor Nilo uma expressa solidariedade coletiva. seqüência vertiginosa de ações, há, subjacente- de diversos livros, Está claro que o mais importante não é a mente, uma discussão temática sob o pretexto da como O homem história em si, mas sim como ela se permite história do assalto propriamente dita. A vio- vermelho, No contar e ler. Num texto como este tudo impor- lência não é o tema central, pelo contrário, há coração das ta. Nada é gratuito para o poeta fingidor. É pau- uma perspectiva de busca de paz e harmonia, perobas e Os tado em fatos de uma realidade palpável e com- apesar dos conflitos que isso implica. Nem tudo meninos crescem, plexa que ele reinventa com simplicidade de- é permitido. Apesar de estar a ação voltada para entre outros. por PELLEGRINI DOMINGOS sencantos, esperança, sonhos e quimeras.•r BREVE RESENHA PA RA TODOS OS LEITORES ROBERTA ÁVILA • COTIA - SP

Luis Fernando Verissimo preen- ela. Ele, que vivia um casamento de fachada, que sonhou um dia ro quando criou o detetive Ed Mort, não é a de criar um grande che o romance Os espiões com alguns ser escritor, mas já não se atrevia a tanto. Quando chega a carta de suspense, ou cenas de extrema violência, que por sinal são pratica- de seus traços mais conhecidos e mais Ariadne, ele se agarra a ela como Teseu se agarrou ao novelo de mente ausentes na trama. A questão de Verissimo é outra. Ele reflete admirados: bom humor, paixão pelo fio que a filha do rei de Creta (a Ariadne original) lhe dera de sobre o papel do escritor, sobre o que cabe ao editor, sobre como as futebol, o flerte com o gênero polici- presente para que encontrasse a saída do labirinto, depois de matar pessoas se apegam a certezas na vida sem que de fato exista uma al e a despretensão. O livro narra a o Minotauro. A Ariadne escritora de Verissimo, que mora em certeza, como fica claro no final do livro. Ao invés de salvar Ariadne, história de um editor que recebe ori- uma cidade fictícia no interior do Rio Grande do Sul, é o fio que o editor descobre que na verdade ela não precisava ser salva e que a ginais para avaliação e vai se amargu- guia a trama. Seu desespero, sua desilusão com a vida e sua von- sua interferência foi a desgraça de uma criatura que ele amou muito, rando com o tempo. Não à toa, a fra- tade de morrer fazem o editor encontrar um novo sentido para sem nunca conhecer. Era ele quem precisava ser salvo. se que abre o livro resume a situação sua vida: salvar a autora do texto de seu purgatório. Verissimo também agrada a gregos e troianos ao dialogar com do protagonista: “Formei-me em Le- Esse objetivo é discutido na mesa do bar e os amigos do protago- leitores de todos os tipos. Satisfaz os intelectuais ao citar De Chirico, tras e na bebida busco esquecer”. nista também se envolvem na empreitada. Passam todos de simples le Carré, o mito grego de Ariadne. Mas fica ao alcance de todos Essa amargura faz do editor uma bêbados fracassados a espiões de primeira viagem. Fracassados, sim, quando satiriza o casamento e expõe os fracassos de suas persona- máquina de escrever cartas de rejei- porque Verissimo faz de seus anti-heróis criaturas deliciosas, com as gens. Ao fazer com que boa parte da história se passe em Frondosa, ção com as maiores ofensas possíveis mais inesperadas obsessões e manias, que cativam o leitor e dão uma pequena cidade genérica e inventada no interior do Rio Grande Os espiões aos pretensos autores, até que um dia leveza ao livro. As anedotas são disfarçadas pela narração de manei- do Sul, Verissimo se permite divagar sobre as cidadezinhas do Brasil Luis Fernando Verissimo chega à editora um pacote com o pri- ra a parecerem informações suculentas que complementam o desen- e seus tipos. Por mais metropolitana que uma pessoa seja, ela prova- Objetiva meiro capítulo da história de Ariadne, rolar da trama. É o caso da descrição sucinta e eficaz do rumo toma- velmente já esteve ou já ouviu falar de uma cidade exatamente como 142 págs. uma moça que escreve seu nome com do pelo casamento do protagonista: “A doce Julinha com quem me essa e passou pela mesma escolha que Verissimo. Ele podia enxergar uma florzinha em volta do “i”, que casei porque estava grávida desapareceu dentro de uma mulher gor- Frondosa como uma cidade pacata e sem graça, mas no fim das contas não coloca vírgulas no texto, comete erros de grafia e endereça as da e amarga do mesmo nome e nunca mais foi vista”. é por isso que vale a pena ler o livro, porque para Verissimo (ou com cartas para a editora com letras trêmulas. Além de tudo, ela pro- Apesar de não haver um crime, mas sim a intenção anunciada de ele) nada é sem graça. Os espiões carrega essa marca do conhecimento mete se matar quando o livro estiver pronto. um suicídio, o livro flerta com os romances policiais, mas a maior que Verissimo tem sobre o gaúcho, o brasileiro e o ser humano e que O protagonista, em sua própria desilusão, se identifica com conquista de Verissimo, que já mostrava a sua afinidade com o gêne- imprime com delicadeza e ironia em cada parágrafo.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 19 ALÉM DA LITERATURA A palavra repartida Em ABRAÃO E A ENCARNAÇÃO DO VERBO, Maria Carpi assume a tarefa de recuperar a dimensão sagrada da escrita

MARIANA IANELLI • SÃO PAULO – SP Para esse encontro, Maria Carpi se pre- a autora para em silêncio. À maneira de uma MARIA CARPI nasceu em Iniciar uma reflexão poética invo- semente, seu poema se vai desdobran- Guaporé (RS), em 1939. Poe- cando clareza e humildade não é tare- do em oferta, até dizer: “extrema com- ta, advogada e professora, es- fa que hoje se possa dizer costumeira paixão/ extenuada, corpo a corpo/ em treou na literatura em 1990, entre poetas, sobretudo no que se refere sequidão, é de repente,/ de ponta a pon- com o livro Nos gerais da dor, à humildade. Considerar, além disso, ta, estar maduro” (do 34.º Canto de com o qual obteve o prêmio que a palavra seja sagrada, talvez che- As sombras da vinha). de Revelação Poesia pela As- gue mesmo a provocar desconforto em Mas o amor do poeta, assim como sociação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Desde então, alguns. Pois é a partir desta fé, e desta a vizinhança do outro, nem sempre é publicou diversos livros de po- fidelidade, que Maria Carpi apresenta bem-vindo. Isto porque “somos tam- esia, entre os quais Deside- os fundamentos de sua arte poética em bém filhos da mesquinhez”, e, sobretu- rium desideravi, A migalha e Abraão e a Encarnação do Verbo. do, porque “há um pudor inexplicável, a fome, Caderno das águas e De origem italiana por parte de pai, Abraão e a doentio, em dizer a palavra interdita: O herói desvalido. Como De- Maria ainda guarda de sua infância em Encarnação do Verbo eu te amo na obra que não é minha”. fensora Pública, atuou na de- Maria Carpi fesa dos direitos da criança e Guaporé as memórias de uma planta- AGE Editora Há aqueles que quando lêem não com- ção de vinhedos e a imagem da mãe, 120 págs. parecem, nem compartilham. E ainda do adolescente. Entre os prê- com seu avental branco, preparando o aqueles que escrevem não para retribuir, mios recebidos ao longo de sua pão. Quanto à paternidade de espírito, mas para renegar a vida. Abraão e a carreira, estão o de Melhor Li- Maria se declara cristã-israelita, “essen- Encarnação do Verbo contempla tam- vro de 2004, da Associação Gaúcha de Escritores, Prêmio cialmente filha de Abraão e da bém esse vazio, esse território infértil Erico Verissimo e o Açorianos Encarnação do Verbo”. Têm-se aí os que coexiste com a literatura, a bana- em 1996 e 2004. pilares da história e da obra de uma lização do sagrado par a par com uma poeta que, ao entremear a escritura da religião pessoal, os sete ais das bem- vida com as Escrituras Sagradas, fez de ria Carpi reconhece que “toda criação aventuranças. Nada falta, portanto, aos sua visão de mundo uma “metáfora é um ato que transborda”, assim como fundamentos de uma arte poética, com viva”, o aprendizado do corpo e do “toda graça é sem causa provável”. toda uma ética, uma estética e uma sangue de Cristo desde o pão e o vi- mundividência reconhecíveis no teste- nho da casa de infância. Entrega sem limites munho de uma vida. Doação, comu- Em seu livro, Maria Carpi evoca os Inspirada pela narrativa bíblica, a nhão e apetência para o bem e para o autores que admira, como Martin poeta vai do Antigo ao Novo Testa- belo atuam nesse livro duas vezes: Buber e Simone Weil, para juntar-se a mento, refazendo nesse percurso de lei- como fé e como obra. Trata-se da pala- eles na experiência de uma reflexão tura o caminho do exílio à terra da vra encarnada, do sagrado tornado vi- sobre o sagrado tão digna de interesse promessa. Assim, a Graça e a Paixão sível na escada que sobra intacta, apon- quanto se esperaria de uma contribui- se encontram na exigência da vinda tando para o céu, no meio dos jardins ção no campo das reflexões científicas de Cristo contida nas palavras de de uma casa demolida. Aos olhos da trecho • abraão e... ou filosóficas. “E quem somos, por mais Abraão a Isaac: “Deus proverá ele poeta, essa é a escada de Jacob. Fica-se discutindo a prima- brilhante nossa capacidade de racioci- mesmo o cordeiro”. Por uma enun- Precioso, ao final do livro, o relevo zia do ser ou do ente, da nar, para arredar do mundo o espaço ciação poética, Abraão precipita a En- dado às mulheres da Bíblia, desde Rute, transcendência ou da imanên- do mistério?”, questiona a poeta, para carnação do Verbo. E quando “Deus Ester e Judite, até as irmãs de Lázaro, cia, dos melhores cânones ou quem “o invisível não é uma abstra- desentranha-se de Deus para entra- que já marcavam presença nos versos ausência de cânones, enquan- ção, mas uma concreção”. Deve-se a nhar-se Filho do Homem”, dá-se o de Os cantares da semente: “Marta to a vida na carne da palavra esta “ausência ardente” de Deus o prin- escândalo, o grande desconforto de sustenta, Maria consente/ e aquele, ir- e no pão repartido passa sem cípio de toda criação humana. Com a um sagrado que tem corpo, que preci- mão das duas, posto/ à prova, é sepul- percebermos. E os religiosos queda do homem para a mortalidade, sa ser amado, acolhido e respeitado tado, semente”. Pois é assim que, em também litigam pela fé. Tam- resta-lhe a virtude de ser fecundo, de no corpo do próximo, “justamente sua história de filha, mãe e avó, em seu bém gostam de desaprovar. continuar o “poema da criação” e dar aquele do qual nos desviamos”. trabalho de Defensora Pública e em sua Uma desaprovação que atin- fruto na palavra. A poesia cumpre aqui, Esta percepção de uma realidade sa- rotina de ocupações domésticas não giu o absurdo das guerras. tal como na vida, o caminho do re- grada entre os homens, e não acima separadas do espírito, a poeta Maria Uma fé confundida com pre- gresso, de um crescente despertar da deles, de um dever imediato para com Carpi convoca para sua vida as figuras ceitos, apoio moral, consola- atenção, a capacidade de um sopro cri- o próximo, e não para com um Deus emblemáticas de Marta e Maria, ação ção, visão dos deuses e, prin- ador que “devolve o alento originário” transcendente, incomoda pelo que de e contemplação jungidas pela frater- cipalmente, uma entrada ga- e faz recordar ao homem sua morada. laborioso exige, porque perturba a inér- nidade, para que um único dom se rantida ao paraíso cheio de Se na liturgia os divinos mistérios cia, delata o egoísmo e responsabiliza aprimore em seu mais alto grau de exer- anjos. Os interditos formam são celebrados por meio dos sacramen- a todos por aquele que sofre, aquele que cício: o dom de ver a dignidade nas um cerco em torno à murmu- tos, na poesia o Inominável se deixa está ao alcance dos olhos e das mãos, e coisas cotidianas tanto quanto na pa- ração dos homens “donos da verdade”. Constroem trinchei- vislumbrar através do véu do simbóli- que aparece como um intruso, ainda lavra que as designa. Entre as muitas ras e linhas divisórias, arre- co. Essa aproximação do ato poético e que seja um irmão. Pois na “prontidão razões para celebrar Abraão e a Encar- dando cada vez mais a fisio- do ato litúrgico, vale lembrar, também nação do Verbo, por ora basta desta- somos poucos”, diz Maria Carpi, so- nomia humana. Todos querem era cara à poeta italiana Cristina Cam- mos poucos na disponibilidade da do- car a corajosa tarefa que a autora ali polemizar. A polêmica é a fi- po, que via em ambos a presença da- ação sem reservas, no “milagre do pão assume, de recuperar para a palavra esta lha dileta do travo na boca, o quele “esplendor gratuito, delicado des- repartido”. E a poesia, por este mesmo dimensão sagrada, tantas vezes já de- gosto pelo desgosto. Se eu perdício, mais necessário do que útil”, critério de um pão que se reparte, re- preciada ou esquecida, da qual provém não polemizo não apareço, os um esplendor que remontaria ao gesto quer uma entrega sem subterfúgios nem uma poética dos sentidos, fonte da lin- holofotes não me alumiam. de Maria Madalena lançando o vaso limites, um abrir-se ao desconhecido de guagem e da experiência criadora, sem Polemizar: várias razões de nardo sobre o corpo de Jesus. Afi- tal modo que se possa acolher o outro, dúvida, mas, antes disso, uma virtude excludentes. E uma razão nada com essa gratuidade amorosa na ser o outro, e desta semelhança entra- simplesmente humana de se arriscar à triunfante com data vencida. raiz da poesia e da liturgia cristã, Ma- nhada desponte “a rosa do convívio”. vida e ao convívio. •r

BREVE RESENHA APENAS UM EXERCÍCIO CIDA SEPULVEDA • CAMPINAS - SP

Histórias populares de uma peque- Envolvida com lembranças e a necessidade de expô-las, a primeiro, apesar de sua condição material inferior, possui valo- na cidade do estado de Alagoas que se narradora o faz com um lirismo adocicado, acentuando o res, sensibilidade e sabedoria. imbricam produzindo um texto lon- bucolismo de paisagens intocadas pela urbanidade. Resgata o olhar As histórias de alguns personagens são as linhas que costuram go carregado de intenções poéticas não da menina de classe média que observava as diferenças sociais a variedade de outras, formando, como diz o título do livro, a realizadas. Memórias de uma narra- entre as pessoas da província. Ciranda de nós. A narradora apenas sobrevoa tais histórias, resig- dora ingênua, mas esforçada. Ela imi- Analisa e explica suas experiências culturais e afetivas, em- nando-se a contá-las com as tintas desbotadas de um tempo esvazi- ta, em algumas passagens, o linguajar pobrecendo o texto, já que seu olhar é protagonista único em ado. As personagens não têm força vital. São apenas decorativas. da terra. Em outras, se atém à sua pró- meio às tantas possíveis personagens que são arroladas, mas Ciranda de nós tem a qualidade da simplicidade. A autora pria língua. Esse tipo de miscelânea, que não exercem papéis. não é pretensiosa. Sua escrita flui, levando na corrente das pala- muito comum nas escrituras contem- Suas análises explicativas e interpretações, em geral, perpassam vras tendências estilísticas e influências, embora citações literá- porâneas, soa artificial. o lugar-comum, o que pode ser observado na seguinte passagem: rias um pouco forçadas dêem sinais de sua cultura letrada. Há um conteúdo rico, mas con- Não é de mim que eu quero falar. É que acabo dando comigo quan- É desnecessária a uma obra artística a citação de outros autores, teúdo não garante a arte literária. So- do me ponho a vasculhar a memória em busca de informações sobre São apenas para autorizar a artista e agradar ao leitor cult. Tal leitor, mui- Ciranda de nós mos conteúdos, as coisas o são. Re- José. Lá onde, como disse, desaprendi a viver. Ainda bem. Porque o que tas vezes, não passa de consumidor do que se propala alternativo. Maria Carolina Maia produzi-los literalmente não requer eu conhecia de vida até ali era muito sem graça. Quem ama a arte não fica restrito ao modismo, seja de massa Grua mais do que a capacidade de escre- 176 págs. Educar já é por princípio, reprimir, meter uma personalidade espon- ou de elites, mas se aprofunda na busca infinita pela originalida- ver com fluência. É o que faz a auto- tânea numa forma pronta. Lá em casa, além disso, a gente foi educada de. Originalidade que requer muita coragem para o desnudamento ra de Ciranda de nós, Maria Caroli- para ser católica na mais crespa nuança do termo. Na mais claustrofóbica. do corpo, da alma e da linguagem. na Maia: linguagem confessional, memorialista; produzida a Eu não era uma alma boazinha que achava tudo meigo porque era uma Outra qualidade de Ciranda de nós é o fôlego da autora em partir de um olhar indulgente sobre o mundo. santa. Eu era uma alma como que mutilada, alguém que tinha todas as manter de pé um texto que ao seu longo parece dissolver-se numa Olhar que nada revela, apenas reflete a visão limitada da nar- ações controladas, contidas, engolidas, censuradas. Era terrível. mesmice de histórias reais e irreais se metamorfoseando. radora que não se liberta de seu espaço-tempo mental e psicológi- Cada conto ou fragmento de texto é dedicado à história de um Colocados num mesmo plano, cotidiano e monstruosidades co para recriar o mundo, segundo a ordem-desordem das matéri- personagem. Em geral, personagens pitorescos; sem densidade revelam o imaginário da narradora-menina crescida. Como exer- as-prima a serem trabalhadas — vida e linguagem. psicológica. A maioria deles é pobre e se contrasta com a condi- cício literário, o texto tem valor. Bom para a autora. Mas, como Ela se atém a reproduzir a aparência natural da vida ou a ção social da narradora. arte literária, para leitores exigentes, não é indicado. r redimensioná-la buscando dar às histórias um caráter extraor- Esse fato, em vez de gerar conflitos internos e/ou externos, • dinário. Os personagens não passam de figuras descritas, anali- apenas sustenta a visão romântica da classe média que valoriza o sadas e interpretadas. pobre em detrimento do rico, com o objetivo de mostrar que o Leia na página 27 o conto Dever de casa, de Maria Carolina Maia. 20 rascunho 119 • MARÇO de 2010 Elogiemos os autores ousados Em clássico do jornalismo literário, JAMES AGEE evita a indulgência ao retratar a vida de meeiros no Alabama dos anos 1930

SERGIO VILAS-BOAS • SÃO PAULO – SP mostra um Agee irrequieto e ambicioso. Di- tentando, pessoal, mas é impossível me desfazer o autor zem que ele era mesmo uma força da natureza, da certeza de que a representação do real pela JAMES RUFUS AGEE, repórter, O lançamento de Elogiemos os homens ilus- o protótipo das angústias americanas de então. escrita é limitante e inútil”. Até parece que es- ficcionista, poeta, roteirista e critico de A década de 1920 ficou conhecida como a Era tou resenhando um ensaio e não uma super-re- tres é um claro sinal de que há hoje no Brasil um cinema, nasceu em Knoxville, Tennes- do Jazz, com suas músicas “amalucadas” e seus portagem escrita com técnicas de romance, cer- ambiente propício à apreciação de narrativas se, em 1909. Aos seis anos, perdeu o jornalísticas complexas, que escapam ao indivíduos excêntricos à maneira de alguns per- to? Certo. Mas este é apenas um dos aspectos. pai num acidente de carro e foi envia- impressionismo sociológico superficial e nos aju- sonagens de Scott Fitzgerald (incluindo ele mes- do para um colégio interno. Seu con- dam a repensar tanto a filosofia quanto os méto- mo e a sua mulher, Zelda). Mas a farra termi- Dois James selheiro na adolescência foi o pastor dos do jornalismo. Comparado com Hiroshima, nou numa quinta-feira de setembro de 1929 Falemos então de Agee em campo (um “tra- anglicano James Harold Flye. Apesar A sangue frio, O segredo de Joe Gould e Na pior com a falência da Bolsa de Nova York. balho de campo” sólido seria a primeira ins- de mau estudante, ingressou na Uni- em Paris e Londres — os melhores títulos da cole- Na década seguinte, o índice de pobreza nos tância definidora de uma boa reportagem de versidade Harvard. Casou-se três ve- ção Jornalismo Literário, sem dúvida —, Elogie- Estados Unidos era típico de “terceiro mun- jornalismo literário). Primeiramente, qual era zes e teve quatro filhos. Em 1942, mos... é certamente o mais desafiador. O próprio do”, e em parte por causa disso o país entrou o projeto original de Agee/Evans? Abordar a abandonou a reportagem para se de- coordenador da coleção, Matinas Suzuki Jr., que num processo profundo de revisão de consci- Grande Depressão pela convivência com dicar à crítica cinematográfica nas re- parece ter sofrido para produzir o posfácio, assu- ência. Era necessário desvendar, com ou sem o meeiros plantadores de algodão do Alabama. vistas Time e Nation. Seu ótimo texto miu: “Sente-se uma hesitação formal: o livro pa- patrocínio do Poder Público, a “América dos A escolha deles foi arbitrária, como toda esco- A grande era da comédia, de 1949, rece não ter começo e não ter um fim”. norte-americanos”. John Steinbeck e John dos lha em jornalismo, aliás: focar três “famílias publicado originalmente na Life, foi re- O que em princípio parecia “apenas” uma Passos, assim como muitos outros autores cé- típicas” de colonos brancos, tendo os Gudger produzido no número 2 da revista extensa reportagem extravagante sobre pobreza, lebres da época, são também fruto daquele mo- (que na verdade eram os Burroughs) em pri- Serrote, do Instituto Moreira Salles. ignorância e falência resultou numa perturbadora mento de realismo em que as mazelas sociais meiro plano. “Não encontramos uma só famí- Morreu de infarto dentro de um táxi etnografia. Há um embate entre o jovem repórter foram enfaticamente denunciadas. lia que estivesse plenamente representada na em maio de 1955, em Nova York. Seu culto residente em Nova York e “eles”, os meeiros Elogiemos... é uma das narrativas marcantes totalidade dos colonos daquela região”, Agee romance autobiográfico A death in the brancos do Alabama, lugar tão distante da “nos- daquele contexto, e expressa como poucas as an- escreveu logo na primeira página. family veio a público postumamente. sa” sofisticação quanto o sol da lua; e o pano de gústias em torno de temas como ética e moral. Seu Embora sua profusão verbal se sobrepo- fundo é a Grande Depressão, que afetou em cheio tema central é, na verdade, a própria consciência nha à “informação referencial” ao longo do o sul dos Estados Unidos, principalmente. do autor. Agee questiona seu papel como observa- livro, há momentos em que consegue ser aber- Antes de tudo, é importante lembrar: 1) que dor da “realidade”, o sentido do jornalismo, sua to, claro e direto: a condição de miséria expressa no livro já existia utilização, seu papel na sociedade, sua metodologia. nos EUA antes do Crash da Bolsa. Pior: ela con- Gudger — uma família de seis — vive com uma tinua a existir em outras partes do mundo; 2) a Quem, o quê, quando, onde e por quê (ou como) ração de dez dólares por mês durante quatro meses narrativa é precedida de 62 imagens estupendas são o clichê essencial e o bem-estar do jornalismo: mas do ano. Ele já viveu com oito, e com seis. Woods — do fotógrafo Walker Evans (1903-1975). Origi- não quero parecer falar do jornalismo favoravelmente. uma família de seis — até este ano não conseguia nalmente, as fotos não têm legendas, de propósi- Ainda não vi um artigo jornalístico que transmitisse mais que oito por mês durante o mesmo período; to. Algumas imagens estiveram expostas no mais que a mais exígua fração do que qualquer pessoa neste ano ele conseguiu elevar para dez. Rickets — Masp, em São Paulo, no ano passado dentro de mesmo que apenas moderadamente reflexiva e sensí- uma família de nove — vive com dez dólares por mês uma grande mostra sobre o trabalho de Evans. vel pretenderia e desejaria dizer com aquelas inatingí- durante o período desta primavera e começo do ve- Então, se você cair na armadilha de examinar veis palavras, e mesmo essa fração nunca vi limpa de rão. Essa dívida é paga no outono com juros de 8%. Elogiemos... com base no presente do indicativo um ou outro grau de patente falsidade. (...) O sangue Cobram-se 8% também no fertilizante e em todas as do jornalismo brasileiro (ou no que dizem por aí e o sêmen do jornalismo são uma ampla e bem-suce- outras dívidas que os colonos contraem. sobre “a literatura e o jornalismo”), você ficará dida forma de mentir. Retire-se essa forma de mentira tentado a dizer: “Mas que enrolação! E quanta e não se tem mais jornalismo. Este obstinado James, seguidor do outro mixórdia! Cadê o clássico, cadê?”. A forma atin- James, o Joyce, viveu com essas famílias e pene- Elogiemos os gida por Agee é tão engenhosa quanto confusa, e, Somada a uma energia verbal incontor- trou em todas as instâncias do ser daquelas pes- homens ilustres claro, ela reflete o que o autor era: uma criatura nável, essa preocupação exacerbada consigo soas. Registrou seus olhares, o modo de cami- James Agee e Walker Evans extremamente agitada por dentro e por fora. mesmo, sua profissão e seu tempo conduziu nhar e falar, de comer, vestir, dormir; as escolas Trad.: Caetano Vejam o que Evans escreveu na apresenta- Agee a uma linguagem que esfacelava as refe- e as igrejas que (não) freqüentavam; a maneira Waldrigues Galindo ção do livro (sob o título James Agee em 1936): rências básicas de comunicação jornalística como plantavam, colhiam e sofriam; pensamen- Companhia das Letras então vigentes (não seria exato rotulá-lo como tos em voz alta; a arquitetura, a casa, a mobília, 520 págs. A fala, no fim, era seu grande traço distintivo. “hermético”, embora aceitável). O tempo todo os odores, os bichos, o clima etc. Ele acreditava (...) Não se tratava de exibicionismo, e não era neces- ele se interroga também sobre os limites da ex- que uma “inspeção total” o levaria a uma com- sariamente fruto de uns tragos. O que estava por trás pansão e da colocação do nosso olhar sobre as preensão profunda e irrepetível, apesar das limi- dela era a pura energia da imaginação. Que encon- coisas animadas e inanimadas, e avisa-nos: “des- tações epistemológicas que ele mesmo aponta. trava correspondência em sua energia física. (...) crição é uma palavra de que se deve suspeitar”. Aí reside a principal qualidade desta obra que trecho • elogiemos... Muitas vezes você ficava com vontade de amordaçá- Sua habilidade com descrições (de geogra- se pretende “artística”: Agee deu o máximo de si lo e amarrar uma caneta em sua mão. (...) No fias, objetos, feições, temperamentos, situações) para evitar a complacência e a indulgência. Dife- Por ser parte de um abismo e de Alabama ele se viu possuído pelo trabalho, que o é mesmo notável. No entanto, esse afã descriti- rentemente de certos trabalhos de mestres do JL um atraso similares, a falta de vasos assoberbava dia e noite. Ele provavelmente não dor- vo acabou reproduzindo o que ele próprio cha- da primeira metade do século passado, Agee não sanitários é também de grande im- mia. (...) No Alabama ele suava a se coçava com uma mava de “ilusão de corporificação”. Agee con- idealiza seus personagens e tampouco explora-os portância. Mas aqui eu não preciso alegria profunda. (...) A rebeldia de Agee era irrefreável, fundia descrever com “decompor” ou “disse- com o intuito de vender ideologias, como fize- fazer tantas ressalvas. A essas famí- autodestrutiva, profundamente ética, infinitamen- car”. Daí ele se exaure: ram John Reed e Jack London, por exemplo. lias faltam não só “o encanamento”, te penosa e, em última instância, inestimável. Outros traços elogiáveis, e que tornam Elogie- mas também as “casinhas” que jo- O fracasso, de fato, é quase tão vigorosamente mos... um dos trabalhos de meta-reportagem mais cosamente supomos ser proprieda- O depoimento de Evans refere-se ao período uma obrigação quanto é uma inevitabilidade em ambiciosos e corajosos de que se tem notícia, são, de de um fazendeiro americano, e os em que conviveu com Agee no Alabama — julho tal trabalho: e aí repousa a mais mortal das armadi- repito, a investigação íntima e a linguagem. catálogos de pedidos pelo correio e agosto de 1936 — a serviço da Fortune, revista lhas da consciência exausta. (...) Dêem-me o nome Reconheço que, com os olhos de hoje, todas que, de novo com um estridente que começou a circular logo depois do Crash e de uma só verdade dentro do alcance do homem que essas características podem ser vistas também rirrirri, imaginamos ser o papel higiê- representava então o mainstream liberal do não seja relativa e eu me sentirei um grau mais pro- como deméritos, conforme o ponto de vista. In- nico desse fazendeiro. Eles se reti- empresariado americano. A reportagem acabou penso a me desculpar por isso. dependentemente disso, porém, Elogiemos... ram aos arbustos; e se limpam como não sendo publicada na revista, mas serviu de ras- continua capaz de implodir as falsas verdades (e podem com jornal se o tiverem pela cunho para o livro, que só conseguiu editora — a O mais desconcertante é que seu incrível as mentiras verdadeiras) de sempre sobre o que casa, caso contrário, com espigas de Houghton Mifflin — em 1941, mesmo assim com approach ontológico amplifica tanto quanto di- o jornalismo é e não é. Marcos Faerman (1943- milho, gravetos ou folhas. Dizer que ressalvas (e por fim as vendas da primeira edição minui, reconhece tanto quanto nega a própria 1999), repórter durante período áureo do Jornal quanto a isso eles se vêem forçados foram pífias: cerca de 600 exemplares). arquitetura verbal. Em algumas passagens tive a da Tarde, nos anos 1970, perguntava-se: “Como a viver “como animais” é um pouco sensação de que estava em contato com uma obra ser jornalista sem ler James Agee?”. Pergunto tolo, pois os animais levam vantagem Ética e moral contra si mesma, uma obra cujo objetivo é nos eu: “É honesto continuar fazendo jornalismo do sobre eles em muitos aspectos. Além de certeiro, o depoimento de Evans alertar para algo mais ou menos assim: “Estou mesmo jeito depois de ler James Agee?”.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 21 Em busca da mulher perdida Em seu segundo livro lançado no Brasil, JOHN HASKELL renova não só a linguagem de ficção como a arquitetura das narrativas

PAULO BENTANCUR • PORTO ALEGRE – RS pamentos, reservas, celeiros. No entanto, o ses não sabe se são legítimos) e a gula. ciso passar por tantos pontos nos quais erros que mais notamos é que ele, cena a cena, elementares e pecados capitais dizimam tudo, Em 2009, o californiano John Haskell, parece esvaziar-se do que mais nos move: o A grande guinada a começar pela própria noção de consciên- de 51 anos, lançou seu terceiro livro: Out orgulho (que, ele reconhece, já o levou a ter É a partir do sexto e penúltimo capítulo cia do que efetivamente está acontecendo. of my skin (Fora da minha pele), romance problemas em casa), a cólera (que ele até da quinta seção que a gula, o desejo de engo- E o que está acontecendo é o desapare- ainda não traduzido no Brasil. Ele estreou exalta como uma forma de sobrevivência lir a realidade em seus enigmas, extravagânci- cimento de Jack. Cinqüenta páginas de- lá e aqui com um livro de contos, Eu não nesse instante extremo, no qual uma única as e perdas (palavra seminal esta, a perda) se pois, na derradeira seção, Avareza, a tercei- sou Jackson Pollock (2003), que a Rocco hesitação pode ser um erro fatal rumo à so- revela. Mas aí o resenhista tem de omitir o ra guinada narrativa, a mais brutal, a mais editou três anos mais tarde e teve boa re- lução para o mistério), a inveja (que ele iden- que prova este fato para que o leitor inocente inesperada, aquela pela qual uma leitora cepção entre nós. Agora sai seu primeiro tifica crescendo em si à medida que sente seu do que vai enfrentar sofra o impacto produ- chegou a protestar (elogiando, claro, o romance, Purgatório americano, e a con- mundo desaparecendo, suas referências se zido pelo escritor durante 172 pacienciosas autor) que fora enganada a tal ponto que firmação de que, com Haskell, nunca po- diluindo, enquanto à sua volta as pessoas páginas. Trata-se não só da grande guinada lhe custava acreditar como pôde não ter demos estar seguros. E, em se tratando de vivem apegadas a vidas sólidas e que as jus- em Purgatório americano, talvez da grande percebido antes a história que se desenro- arte, quem quer estar? tificam), a luxúria (um dos pontos altos do guinada da literatura contemporânea. lava diante de seus olhos. Como o truque Antes de começar a leitura, é convenien- romance, quando, em busca do essencial Como se não bastasse, dez páginas adi- funcionou tão direitinho? E funcionou. O te dar aquela olhadinha básica no livro todo, desejo de prosseguir com a busca, ele vai ante, nova guinada. Surpresa dilacerante para resultado é um romance absolutamente quase folheando-o página a página. Agin- procurar no sexo — mesmo sem amor — o Jack e desconcertante para o leitor. Chega? singular, de onde não só saímos sob o sor- do assim, descobrimos que tipo de arquite- estímulo crucial para dar continuidade a uma Ainda não. Trata-se de John Haskell, e tra- tilégio de um estilo de primeira, mas sob a tura tem, se um traçado tipicamente grego, investigação que ele empreende ou totalmente ta-se de uma região imensa, maior que os perturbação do próprio protagonista. de linhas limpas e modernamente sem ara- sozinho ou aliado a estranhos cujos interes- Estados Unidos — o Purgatório —, e é pre- Nossa única sorte é que não somos ele. r bescos, ou o desenho vertiginoso de um • Gaudí. Às vezes ambos, a depender da es- trutura da narrativa e de em que seção nos encontramos. Purgatório americano pede outro tipo de construção, mais aquosa, mais pictórica, e nesse terreno alagado — às ve- trecho • purgatório zes tão extenso e profundo como um ocea- americano no — vamos nos afogando sem perceber. Da mesma forma como alguém que E não se pode perceber como essa compra sapatos novos fica prestando constatação se revela impossível exatamen- atenção aos sapatos das outras pes- te pela diluição da linguagem de que o es- soas, eu prestava atenção aos carros. critor se utiliza. Diluição que, ao invés de Fiquei dirigindo o resto do dia ao longo torná-la rasa, torna-a ainda mais consis- de Lexington, passando por conjuntos tente. O processo de reiteração de imagens, habitacionais, terrenos baldios, lojas de de idas e voltas de expressões como “des- bebidas e pelo centro da cidade “res- vanecimento” (talvez a palavra mais utili- taurado”, observando os carros e as zada no romance inteiro), traz-lhe uma pessoas que entravam e saíam. Pes- homogeneidade estilística e de sentido ao soas que viviam suas vidas, ou pare- mesmo tempo em que aumenta a tortura ciam viver, e que faziam o que podiam pela qual passa o protagonista até o pri- diante das circunstâncias que lhes meiro capítulo da parte 6, a penúltima. Tor- eram apresentadas. tura que, a bem da verdade, além da deso- Minhas próprias circunstâncias co- rientação de Jack, o narrador, só com 78% meçavam a se mostrar desgastantes. do livro lido é que o leitor vai escapar dela. A intuição que eu usava ou pensava Haskell montou uma armadilha que su- que usava para encontrar Anne tinha pera em muito os truques comuns e mes- acabado. E, mesmo que a tivesse re- mo os mais engenhosos em busca da con- novado, nem toda a intuição do mun- do seria capaz de encontrar Anne se sagrada surpresa (aquela que o resenhista ela não quisesse ser encontrada. Ela é está proibido de contar). que tinha me abandonado e, se real- mente não quisesse ser encontrada, A definitiva arte do desaparecimento mesmo que estivesse em algum lugar Não sabemos o ano em que os fatos se ali por perto (o que não era provável), dão, mas tudo leva a crer que foi agora eu não poderia fazer nada. mesmo, ontem, anteontem, há cinco anos, Eu me adverti de que estava lidan- por aí. Jack, que narra o romance do co- do com a situação de uma forma com- meço ao fim, esmera-se num detalhismo pletamente errada. Estava tentando que supera o entorno exatamente necessá- encontrar alguma coisa e, como a me- rio para ele reconstituir as pistas daquilo lhor forma de se encontrar alguma coi- que persegue. O desaparecimento da espo- sa é deixando de procurar, decidi que sa e de seu carro, que ele deixou no estacio- deixaria de procurar Anne. namento de um posto enquanto foi, rápi- do, a uma loja de conveniências, comprar alguma coisa para comer. Ao retornar, nada restava deles. E na ausência de pistas, a desorientação toma as rédeas e narra as próximas 180 páginas. Que pode ele fazer, sobretudo amando como amava a mulher? Liga para ambos os celulares, o seu, que ele deixou dentro do carro (não ia precisar mesmo) e o de Anne, a companheira. Ambos fora de área. Liga de um orelhão para casa: a secretária eletrônica atende e ele escuta uma mensa- gem da sogra, querendo saber se tudo está bem. As páginas voam na ansiedade sôfre- ga com que lemos esse quase thriller. Pare- ce mas não é. No começo, parece mesmo. Mas algo na linguagem fortemente evocativa nos vai preparando para algo novo, enquanto nos afoga nas ondas pode- rosas do universo verbal de Haskell. Jack pensa nas possibilidades mais dolo- Purgatório americano John Haskell rosas, mas mais previsíveis: um seqüestro, um Trad.: Daniel Frazão assalto, um estupro. Vai até em casa e, reme- Rocco xendo nas coisas de Anne, encontra um 240 págs. mapa — de que não tinha conhecimento — marcado com tinta colorida alaranjada des- de Nova York até a cidade onde ela nasceu, uma cidadezinha do oeste norte-americano. Espécie de trajetória, um tipo de recado, tal- vez. Mas entre o ponto de partida e o ponto de chegada, quantas centenas de cidades e lugarejos nos quais é preciso vasculhar? Uma das coisas de que Jack logo abre o autor mão é de pedir ajuda à polícia. Pelo menos não é só no seu mundo que a instituição JOHN HASKELL nasceu em 1958, na Califórnia, onde cresceu e estudou. não goza do prestígio da competência, da Tornou-se ator, dramaturgo e artista agilidade e, sequer, da respeitabilidade. performático, cofundador do Huron Para surpresa do leitor mais disposto, Theater, em Chicago. Estudou mesmo assim ele está decidido a atravessar dramaturgia na Universidade de Los os Estados Unidos em busca da mulher, viva Angeles e concluiu o MFA (Master in ou morta, e do carro, ou o que sobrar dele. Fine Arts) na Universidade de Nessa busca, encontra pelo caminho perso- Columbia. Seus textos foram publi- nagens extraordinários, diferenciados do que cados em importantes revistas como se vê por aí. Nenhum ser bizarro, nada dis- Granta, The Paris Review e so; mas pessoas com características que as Conjunctions. Reside no Brooklyn, em diferenciam do comum. Gente que vive de Nova York. Dele a Rocco já lançou, em 2006, os contos de Eu não sou forma alternativa, que cultiva hábitos natu- Jackson Pollock. rais e habita casas nada tradicionais. Acam-

JOHN HASKELL por Ramon Muniz 22 rascunho 119 • MARÇO de 2010 O diabo enamorado Com a novela O FÍSICO PRODIGIOSO, Jorge de Sena produziu um clássico da fantasia desregrada

GREGÓRIO DANTAS • CAMPINAS – SP Jorge de Sena da rainha, inicia-se um longo (e burocráti- trecho • o físico co) processo, o de investigar “uma gigan- prodigioso O escritor português Jorge de Sena recusa o realismo tesca conspiração do Demônio contra a (1919-1978) foi um intelectual versátil e pro- militante mais ordem estabelecida, envolvendo assassina- Ficou então completamente nu. Mas, lífico como não se vê mais hoje em dia. tos, vampirismo, sodomia, toda a escala de quando ia para entrar na água, e já os Poeta dos mais importantes do século 20 óbvio, o que era pecados contra a natura, e uma rede imen- pés lhe estavam dentro dela, ouviu de português, Sena é autor de ensaios sobre os raro em tempos sa de propaganda subversiva, em que in- leve um riso casquinado que, quase des- mais diversos temas literários (incluindo cluíam crimes como curar doenças, ressus- de o berço, lhe era familiar. E, arquean- estudos fundamentais sobre Camões e Pes- tão tumultuados. citar defuntos, e retrogradar no tempo de- do as sobrancelhas numa expressão de soa), peças de teatro, livros de contos (como corrido”. Não à toa, muitos críticos inter- tédio, recuou para a fina erva, e alongou- Os grão-capitães), um romance (Sinais de pretaram essa caricata perseguição do San- se no chão languidamente. Com paciên- fogo), e até mesmo uma tragédia em ver- to Ofício como uma alegoria da então de- cia, num abandono indiferente, com a so. Um de seus textos mais célebres, porém, licada situação política portuguesa. cabeça pousada nos braços, deixou que o Diabo se desesperasse invisível so- é a novela O físico prodigioso, lançada No já referido prefácio de Novas bre seu corpo. Carícias prolongadas que agora no Brasil pela editora 7Letras. , o autor faz uma para onde, pára sua jornada para um rápi- andanças do demônio leves lhe corriam pela pele, beijos sus- A novela foi escrita em Araraquara, in- do banho de rio. Basta, porém, estar nu, entusiasmada defesa da fantasia literária: surrados que o mordiam pelo corpo adi- terior de São Paulo. Em 1959, Sena decidi- para que um diabo apaixonado venha as- “Sejamos objetivos com a fantasia, e sub- ante, mãos que se obstinavam no seu ra deixar Portugal: envolvido em uma ten- sediar seu corpo, prática que o cavaleiro jetivos com a realidade”, diz, convencido sexo, durezas que se encostavam nele tativa frustrada de um golpe de estado con- aceita, resignado. Isso porque, quando ain- de que o realismo tradicional é incapaz de tentando penetrá-lo... — era o costume, tra o governo salazarista, ele se auto-exilou da era um jovem imberbe, sua madrinha dar conta da complexidade do real. Isso desde que primeiro se soubera homem no Brasil, onde manteve uma das fases mais havia convocado o demônio, que “logo se não significa, em absoluto, que seus livros e se despia todo, e estivesse só. Sofria produtivas de sua carreira. Professor das abraçara a ele apaixonado. Em troca, re- devam ser lidos como fábulas de interpre- aquilo como um vexame inapelável que universidades de Assis e Araraquara, Sena cebera poderes imensos”. Poderes estes que tação simplista, como se trouxessem uma o não excitava, e nem sequer lhe dava continuou bastante ativo politicamente, são logo postos à prova: três donzelas que única lição de moral. Pelo contrário, esse horror ou repugnância. E que, até certo colaborando para jornais e escrevendo in- dali se aproximavam lhe oferecem hospe- “realismo imaginoso” não pretende, ponto, o divertia de algum orgulho por tensamente. Com o golpe militar em 1964, dagem em um castelo cuja rainha, viúva, “como as parábolas pretendem, salvar as paixão tão teimosa e tão ridícula, a que porém, decidiu que não poderia viver sob encontra-se moribunda. Diz-se que seu almas: pretende, sim, perdê-las, fazer com não encontrava em si mesmo, por mais outro regime ditatorial e, no ano seguinte, aguardado salvador seria um grande ho- que sintam o chão fugir-lhes debaixo dos que se observasse, a mínima correspon- mudou-se para os Estados Unidos, onde mem, e que deveria cumprir três requisitos pés”. Não é outra a função da literatura. dência que a justificaria. viveu até o fim da vida. básicos: ser filho de um rei, ser um grande Ao seu modo, Sena recusa o realismo mi- Dentre os livros que escreveu no Bra- físico e ser virgem, condições (mais ou litante mais óbvio — em suas palavras de- sil, estão os volumes de contos Andanças menos) preenchidas por nosso herói. É cla- finido como o “realismo tradicional de do demônio e Novas andanças do demô- ro que, ainda que suas práticas sejam con- meia-tigela estética” — o que era raro em nio. Deste segundo volume constava origi- testadas pelo pároco local, o físico prodi- tempos tão tumultuados. nalmente a novela O físico prodigioso, que gioso cumpre seu papel, e salva a rainha, E ainda que os intérpretes de O físico mereceu uma edição autônoma apenas em Dona Urraca, que logo se apaixona por prodigioso tenham certa razão ao inter- 1977. Os dois volumes dessas “andanças” seu salvador. Seguem-se episódios libidi- pretar a novela como um libelo contra o incluem casos e personagens dos mais in- nosos, mágicos e diabólicos (como o ata- autoritarismo salazarista, é uma evidente sólitos: um frade que conversa com as pe- que das mulheres a um cavalo, que devo- redução considerá-la apenas uma narrati- dras e que desaparece dentro do hábito, ram vivo), mas o tom é sempre irônico. va política. É preciso dizer, por exemplo, como se de um fantasma se tratasse; um que O físico prodigioso estabelece um so- gênio que vive em uma árvore, onde recebe Contradições fisticado diálogo intertextual com fontes li- oferendas de leite e mel, embora goste, na A novela é marcada pela ambigüidade terárias medievais, análise que em muito verdade, “de uma asinha de frango”; o di- e pelas contradições. Ao leitor não será di- excederia os limites desta resenha e a com- abo que se disfarça de “Pai Natal” para fícil notar que o diabo (na verdade apenas petência deste resenhista. Por enquanto, enganar o menino Jesus, pois está claro que um pobre diabo apaixonado) é identifica- basta apontar para o fato de que o principal o Natal é muito mais antigo do que Cristo. do com o físico a ponto de poder ser consi- modelo para a novela são dois textos, ou O físico prodigioso Houve quem definisse essas histó- derado seu duplo, ou que o amor cortês de “exemplos”, de O orto do esposo, obra Jorge de Sena rias sob o rótulo de literatura fantástica, algumas passagens é indissociável de um anônima quatrocentista de feições pedagó- 7Letras e E. M. de Melo e Castro chegou a in- outro tipo de amor, mais carnal e místico. gicas e religiosas. Que Jorge de Sena tenha 160 págs. cluir O físico prodigioso em sua célebre Assim, quando Dona Urraca conta ao físi- criado uma interpretação moderna dessas Antologia do conto fantástico portu- co prodigioso sua história, “o que ele ou- narrativas pode ser comprovado, entre ou- guês, de 1974. Não se trata, porém, da- via dentro de si era diferente”: Jorge de Sena tras evidências, pela intrigante mistura de quela noção de fantástico descrita por T. dispõe a história, então, em duas colunas, registros textuais, o que inclui cantigas me- Todorov, para quem o fantástico nasce da uma reservada à fala da rainha (“Eu era dievais de sua autoria, incorporadas à nar- o autor hesitação entre uma explicação natural e muito moça e muito inocente quando meu rativa de maneira absolutamente funcional. outra sobrenatural para os eventos narra- pai me casou com Gundisalvo”) e outra Conforme nos explica a professora Gil- Nascido 1919, na cidade de Lisboa, dos. As histórias fantásticas de Sena es- reservada ao relato conforme foi compre- da Santos, especialista na obra de Jorge de JORGE DE SENA foi uma das figuras tão mais próximas daquilo que Todorov endido pelo físico (“Eu era muito moça, Sena, no prefácio desta edição, “a novela, mais importantes das letras portugue- chamaria de “maravilhoso”, já que os mas dia e noite sonhava com os homens, graças também à forte atemporalidade re- sas no século 20. É autor de ensaios eventos sobrenaturais não são questiona- desde que uma vez vira meu pai nu”). Por sultante da mescla de tecidos intertextuais importantes como A estrutura de Os Lusíadas dos, sendo considerados absolutamente causa deste e de outros eventos misteriosos, que entram em sua composição, é tida como e outros estudos camoni- “normais” para os personagens e para o a índole e os atos da rainha são postos em um libelo alegoricamente perene contra to- anos (1970) e Fernando Pessoa & Cia Heterônima (Estudos coligidos leitor. Isso porque a maioria desses con- dúvida: seriam a rainha e suas damas de das as manifestações de injustiça que o ho- 1940-1978) (1982), além de vários li- tos é ambientada na Idade Média, ou companhia verdadeiras bruxas? Teriam ex- mem produziu, produz e produzirá”. vros de poesia, dentre eles As evi- melhor, em uma Idade Média mágica terminado todos os homens do reino? Para o auxílio dos mais interessados, a dências (1955) e Metamorfoses como a dos países dos contos de fada. À Esse não será, porém, o maior de seus editora 7Letras tem dedicado edições (1963). Viveu no Brasil entre 1959 e mistura da ambientação histórica e o cli- problemas. A certa altura, angustiado por caprichadas para seus clássicos portugueses, 1965, período dos mais produtivos ma fantasioso Jorge de Sena chamaria, sua felicidade e por seus poderes divinos, o acompanhados por textos que, sem serem em sua carreira de escritor. Algumas no prefácio das Novas andanças do de- físico tenta voltar no tempo, e fazer com academicamente exaustivos, são bastante de suas ficções possuem inspiração mônio, de “realismo fantástico” ou que os últimos episódios de sua vida jamais esclarecedores do valor da obra literária que biográfica, como o conto Grã-canária, “historicismo imaginoso”. tivessem acontecido. Mas descobre que temos em mãos. A presente edição de O fí- do volume Os grão-capitães (1976), É assim em O físico prodigioso: des- “nunca sai certo o momento a que se vol- sico prodigioso traz ainda notas (introdu- e seu único romance, Sinais de fogo de o começo, estamos no terreno da fanta- ta”. E se não é possível apagar o passado, tória e final) do autor e uma bibliografia crí- (1979), que se passa durante a Guer- ra Civil Espanhola. Faleceu em Santa sia mais desregrada. Um jovem cavaleiro também não será possível evitar o destino, tica sobre a novela, bastante útil para futu- Barbara, Califórnia, em 1978. (nunca nomeado), em viagem não se sabe e a Inquisição. A partir da prisão do físico e ros leitores da obra de Jorge de Sena.•r 119 • MARÇO de 2010 rascunho 23 A descoberta da América Romance de JOSEPH O’NEILL trata de sonhos e identidade nos Estados Unidos pós-11 de Setembro

JOSÉ RENATO SALATIEL • SÃO PAULO – SP Randolph Walker Park, em Staten Island. trecho • terras baixas

Com Terras baixas, de Joseph O’Neill, Underground Ficamos sentados de lados opostos em silêncio. Então joguei meu casaco a cidade de Nova York ganhou um de seus O segundo fio narrativo de Terras bai- sobre uma cadeira e fui para o banhei- cronistas mais atentos à diversidade cultu- xas é a relação de Hans com Chuck ro. Quando apanhei minha escova de ral das ruas, e os Estados Unidos, o romance Ramkissoon, um carismático empresário de dentes, estava úmida. Ela a usara com que melhor define o Zeitgeist pós-11 de Se- Trinidad e Tobago envolvido com negóci- a intimidade impensada de uma espo- tembro. A despeito disso, o objeto da tra- os suspeitos. Eles se encontram pela primei- sa. Um soluço lamentoso subiu por meu ma é comum a qualquer cidadão que vive ra vez em agosto de 2002 num jogo de peito. Comecei a engolir em seco e ofe- numa grande metrópole. “Pertencimento”, críquete em que Chuck atuava como árbi- gar. Uma vergonha profunda, inútil, to- a saber, um conjunto de regras e conveni- tro independente. O críquete, descrito em mou conta de mim — vergonha por ter ências que nos conectam às pessoas e aos minúcias técnicas por O’Neill ao longo da fracassado com minha esposa e meu lugares, em relações pautadas por instabili- obra, torna-se o elo entre duas personalida- filho, vergonha por ser destituído dos dades e perspectivas miúdas. des distintas. Enquanto Hans é indiferente meios para seguir lutando, para dizer a Terras baixas Outros autores exploraram — ou exorci- e sem viço, Chuck é estimulante e sonha- ela que me recusava a aceitar que nos- Joseph O’Neill Trad.: Cássio zaram — a experiência da “guerra ao ter- dor, uma versão contemporânea de O gran- so casamento de repente estava de Arantes Leite ror” que se seguiu aos ataques ao World de Gatsby, de Fitzgerald. Segundo o escri- destruído, que todos, que todos os Alfaguara Trade Center. Don Delillo (Homem em tor irlandês, “um homem animadamente casamentos passam por crises, que 269 págs. queda) e Ian McEwan (Sábado), por exem- operando no modo subjuntivo”. outros casais haviam superado suas plo, ou Colum McCann, no recente e inédi- Mais que isso, o críquete é uma imagem crises e que nós faríamos o mesmo, to no Brasil Let the great world spin. Poucos, da América pós-colonialista. Hans é o úni- dizer-lhe que podia estar falando assim porém, encontraram metáfora mais precisa co branco entre jogadores naturais da Ín- por causa do choque ou de alguma ou- o autor tra contingência temporária, dizer-lhe que O’Neill com o jogo de críquete, cheio dia, Paquistão, Sri Lanka, Trinidad, Guiana JOSEPH O’NEILL que ficasse, dizer-lhe que eu a amava, nasceu em Cork, na de nuances e de popularidade “zero” entre e Jamaica. No campo irregular para parti- Irlanda, em 1964. De ascendência tur- dizer-lhe que eu precisava dela, que os americanos. O esporte de tradição euro- das do complexo esporte, no entanto, ele se ca e irlandesa, passou a infância em eu ia trabalhar menos, que eu era um péia se torna, em Nova York, uma ativida- torna mais um “estrangeiro”. Como diz países como Moçambique, Turquia e homem de família, um homem sem de exercida por imigrantes e, mais que isso, Chuck: “Quer saber qual é a sensação de ser Irã. Aos 12, foi para Holanda com a amigos e sem passatempos, que mi- uma promessa de harmonia, num mundo preto neste país? Vista o uniforme branco do família, onde terminou os estudos se- nha vida não era nada sem ela e nos- despedaçado pelo avesso da globalização. criqueteiro. Põe branco para se sentir preto”. cundários. Depois, fez faculdade de so filho. Senti vergonha — vejo isso O olhar estrangeiro que proporciona esse Outra América aos poucos se desvela na Direito em Cambridge, no Reino Uni- claramente, agora — com o reconhe- Terras baixas efeito peculiar à obra é autêntico. Nascido amizade entre o executivo holandês e o do. (2008) é seu mais cimento instintivo em mim mesmo de recente trabalho. A obra foi incluída na Irlanda, de ascendência turca e irlande- negociante trindadense. Ocorre que Hans um pavoroso fatalismo debilitante, na lista dos “10 Melhores Livros de sa, O’Neill passou a infância entre Moçam- precisa fazer um exame para tirar carta de uma sensação de que as grandes 2008” do New York Times, recebeu o bique, Irã e Turquia. Na juventude, morou motorista americana e o amigo se oferece conseqüências não estavam senão PEN/Faulkner Award de 2009 e foi elo- na Holanda e depois estudou Direito na In- para dar aulas em seu Cadillac 1996, enfei- aleatoriamente ligadas aos nossos giada pelo presidente Barack Obama glaterra, antes de se estabelecer com a famí- tado de banners da bandeira norte-ameri- empenhos, que a vida estava além em entrevista à rede BBC. O’Neill es- lia em Nova York para escrever romances. cana. Ao mesmo tempo, o protagonista da esperança de conserto, que o creveu outros dois romances, This Is Publicou duas ficções e um livro de memó- acaba servindo de chofer para Chuck e se amor estava perdido, que nada que The Life (1991) e The Breezes (1996), rias, até ser consagrado com Terras baixas, aventura pelos submundos do Brooklyn. Os valesse a pena ser dito era dizível, e a história de sua família em Blood- vencedor do PEN/Faulkner Award 2009 e negócios envolvem uma empresa lícita no que o entorpecimento era geral, que Dark Track (2001), todos inéditos no best-seller instantâneo por conta de uma re- ramo imobiliário, em sociedade com um a designação era irresistível. Senti Brasil. Mora no Chelsea Hotel, em Nova comendação do presidente Barack Obama. judeu russo, Mike Abelsky, e uma loteria vergonha porque era de mim, não do York, com a mulher, a editora da revis- ta Vogue Sally Singer, e três filhos. O romance começa com o protagonista, clandestina notória em Trinidad, chamada terror, que ela fugia. o executivo holandês Hans van den Brock, weh-weh. Chuck possui também dois apa- recebendo uma ligação em Londres de uma relhos celulares e duas mulheres, represen- repórter do New York Times. Ela relata o as- tando sua vida dupla. sassinato do amigo Chuck Ramkissoon, cujo Alguns dos melhores exemplos da pro- corpo foi encontrado algemado no canal do sa de O’Neill, simples mas pontuada de Brooklyn. O enredo se desenvolve a partir imagens criativas e poderosas, emergem das memórias de Hans no período passado destas viagens às sombras nova- nos Estados Unidos e que coincidiram com iorquinas. Como nessa descoberta de a queda das Torres Gêmeas em 2001. uma metrópole áspera, fria e inóspita, A aparente simplicidade narrativa é um em que esmaece a referência literal aos engano que oculta um escritor em pleno Países Baixos que dá título ao livro: domínio técnico e estilístico. Isso fica claro na intrincada rede de idas e vindas entre os E foi assim, em um estado de desamparo anos em Nova York até o retorno a Lon- raivoso, em que pus os pés na obscuridade dres (1998 a 2003) e a morte de Chuck, em invertida da tarde. Ali parado, atordoa- 2006, entremeada de recordações de viagens do com o fluxo de pedestres saindo da de Hans com a família e sua infância na Herald Square e com as amalucadas Holanda. O interessante é como o autor faixas diagonais do trânsito e com as costura tudo isso sem que o leitor se perca poças aparentemente sem fundo nas no meio do caminho. sarjetas, fui tomado pela primeira vez por um nauseante senso de América, Aftermath minha cintilante terra de adoção, sub- Há duas histórias principais que se cru- jugado pelo funcionamento secreto de zam. Na primeira, o foco é a relação de forças injustas, indiferentes. Os táxis Hans com sua mulher, Rachel, e o filho com sua película de umidade, sibilan- Jacke. Hans é um analista financeiro bem do na neve semi-derretida, reluziam sucedido que trabalha em um banco de como tangerinas; mas se você olhasse corretagem. Ele e a mulher, advogada in- abaixo, no vão entre a rua e os chas- glesa, se mudam de Londres para os Esta- sis, onde a matéria gelada cola nos dos Unidos a trabalho. Após os ataques, o tubos e a água escorre pelos proteto- casal é desalojado do loft em Tribeca, onde res de lama dos pneus, veria uma moravam, e passam a viver no Chelsea sórdida escuridão mecânica. Hotel. É quando a ansiedade provocada pela tragédia — ou o estado de euforia e Os encontros aos finais de entusiasmo pós-apocalipse, segundo o au- semana terminam sempre em tor — evidencia diferenças que levam um terreno localizado numa Rachel a abandonar o marido para ir mo- antiga pista de taxiamento no rar com os pais na capital inglesa. bairro, onde Chuck planeja A justificativa de Rachel é política: ela construir um clube e estádio de se recusa a criar o filho num país “ideolo- críquete com capacidade para gicamente enfermo” sob o governo de 8 mil pessoas. O campo seria George W. Bush (será esse o discurso que batizado como Bald Eagle fisgou Obama?). Hans, ao contrário, sente- Field (Campo da Águia-calva, se completamente apático frente às discus- símbolo dos Estados Unidos). sões públicas que antecedem a invasão do No local, eles aparam a gra- Iraque tanto quanto em conversas íntimas ma e um incrédulo Hans com a mulher. Ele descreve a si próprio ouve os sonhos de unir os como um “observador neutro” e um “idi- povos, mulçumanos, hindus ota ético-político”, que sofria de um desâ- e americanos, por meio do nimo comparável à paralisia que se apossa esporte. “Pense fantástico” é o das pessoas nos sonhos. lema de Chuck Ramkissoon, e A partida de Rachel, entretanto, é uma tudo termina com um corpo boi- fuga de um casamento monótono, sem novi- ando no canal. dades. “Cansaço: se havia um sintoma cons- Terras baixas é cheio de sutile- tante da doença que acometia nossas vidas zas em sua crítica à era Bush. Em nessa época, era o cansaço. No trabalho, éra- dois momentos, o protagonista usa mos infatigáveis: em casa, o menor gesto de o Google Maps, e as passagens de- vivacidade estava além de nossas forças.” finem o tom da análise do autor. Rejeitado, sem mulher ou amigos, Hans Primeiro, Hans vê no computador convive com os estranhos hóspedes do a casa em que a mulher e o filho Chelsea. Entre eles, um jovem turco chama- vivem em Londres, após a separação, do Mehmet Taspinar, que se veste de anjo. numa cena repleta de ternura. Na se- Na rotina entre o trabalho em Nova York e gunda vez, em Londres, usa a ima- viagens a Londres para ver o filho e tentar gem de satélite para localizar o terre- reconquistar a esposa, ele encontra uma ocu- no que seria o estádio de críquete proje- pação ao descobrir jogadores de críquete em tado pelo amigo. Ali não há nada, ape- um campo mais ou menos improvisado no nas o vazio de uma América invisível. r • JOSEPH O’NEILL por Ramon Muniz 24 rascunho 119 • MARÇO de 2010 A sabedoria da incerteza

Para MILAN KUNDERA, o romance nasce não do espírito teórico, mas do espírito do humor

MARIA CÉLIA MARTIRANI • CURITIBA – PR formização é criar uma espécie de despojamento, rário: a da harmoniosa convivência entre a eru- imagens, a excessiva luminosidade acabe por indo direto ao “coração das coisas”. dição e o leve riso dos que não precisam asseve- ofuscar a obra em detrimento da aparição de Para Milan Kundera, o termo que melhor pode Nesse caso, Kundera toma o exemplo do rar verdades, mas sim ancorar-se em incertezas: seu autor, que também sofre um significativo definir romance é, certamente, ambigüidade. Com músico que tanto admira: Leos Janacek, que desgaste, uma vez que tudo que é muito visto, efeito, em sua antologia de ensaios e entrevistas fugiu das regras “cibernéticas” da composição, Unir a extrema gravidade da questão e a extre- em pouquíssimo tempo, é posto de lado, assim sobre literatura A arte do romance, ele afirma: em que a originalidade perece em detrimento ma leveza da forma é minha ambição desde sempre. como o resto de um universo em que as coisas e de esquemas preconcebidos. E não se trata de uma ambição puramente artística. os seres, simplesmente, se descartam. Compreender com Cervantes o mundo como am- O que Janacek ensina é que somente a nota A união de uma forma frívola e de um assunto grave bigüidade, ter que afrontar, ao invés de uma só ver- que diz alguma coisa de essencial tem o direito desvenda nossos dramas (os que se passam em nossas O espanto de Kafka dade absoluta, um monte de verdades relativas que de existir. Esse ensinamento também deve se camas assim como os que representamos no grande Entre todos os nomes admirados e analisa- se contradizem (verdades incorporadas em egos ima- aplicar ao romance, para que sobreviva em meio palco da história) em sua terrível insignificância. dos por Kundera, a maior reverência é a desti- ginários chamados personagens), possuir portanto ao atravancamento criado pela “técnica”, pelas nada a Franz Kafka. como única certeza a sabedoria da incerteza exige convenções que trabalham em lugar do autor. Explorador da existência Ele o considera como uma verdadeira revo- uma força não menos grande. Em resumo, é imperativo desembaraçar o ro- Ao tratar da imagem do romancista, o autor lução estética, pois o que o torna único é que ele mance do automatismo da técnica romanesca. esclarece que este é, acima de tudo, um explorador não se pergunta — como os demais — quais são À vontade inerente ao homem de julgar an- da existência e não um historiador ou um profeta. as motivações interiores que determinam o tes de compreender, vontade sobre a qual se Da leveza Ao definir o romance como o gênero literá- comportamento do homem. O tipo de pergun- fundam as religiões e as ideologias que redu- Quanto mais o homem pensa, mais a verda- rio que se dedica a examinar não a realidade, ta que faz é radicalmente outro: zem a compreensão do universo a fórmulas de lhe escapa. Daí porque a sabedoria do ro- mas a existência — na perspectiva heideggeriana maniqueístas e dogmáticas, o romance respon- mance seja diferente da sabedoria da filosofia. de “ser-no-mundo” —, Kundera crê que o ro- Quais são ainda as possibilidades do homem de com a relatividade essencial das coisas hu- Ao enaltecer a arte de Rabelais, Kundera mancista toque de perto o campo das possibili- num mundo em que as determinantes exteriores tor- manas. Ele propõe um tipo de reflexão que se revela o que lhe é mais admirável: o fato de que dades humanas, tudo aquilo de que o homem é naram-se tão esmagadoras que as causas interiores traduz como sabedoria da incerteza, capaz de con- sua vasta erudição nunca franze o cenho, já que capaz, tudo aquilo em que pode se tornar. não pesam mais nada? frontar a implacável necessidade humana de ler nesse autor temos a exemplificação mais fide- Nesse sentido, tece crítica ferrenha contra o mundo sob o prisma do bem ou do mal, como digna de que o romance nasce não do espírito alguns escritores que se deixam fascinar pela es- Esse espanto de Kafka diante da opressão se fossem entidades nitidamente discerníveis. teórico, mas do espírito do humor. tética “massmidiática”, aparecendo e se proje- das ciladas do mundo externo assemelha-se ao Assim é que, exemplifica o autor, essa forma de O que pode conciliar a seriedade das pro- tando mais do que suas próprias obras. Retoma que, de modo análogo, afirma o autor checo em concepção induz a reducionismos: “é sempre fundas questões existenciais humanas com esse de Flaubert a idéia de que “o romancista é aque- A insutentável leveza do ser: o romance não é necessário que alguém tenha razão: ou Ana espírito é a forma da leveza, pois a arte inspira- le que quer desaparecer atrás de sua obra”, o que uma confissão do autor, mas uma exploração Karenina é vítima de um déspota obtuso ou da pelo riso de Deus é, em essência, não tributá- significa renunciar ao papel de homem público: do que é a vida humana, na armadilha em que então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ria, mas contraditória das certezas ideológicas. se transformou o mundo. ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal in- Não parece ser outra a fonte na qual se nu- Não é fácil hoje, quando tudo que é muito ou Em Kafka, essa armadilha tem nome: o uni- justo, ou então atrás do tribunal se esconde a tre o autor de A insustentável leveza do ser ou pouco importante deve passar pelo palco insuporta- verso burocratizado. O escritório, nesse sentido, justiça divina e K. é culpado”. Ao que podería- de Risíveis amores, que, mesmo quando se pro- velmente iluminado dos mass mídia que, contraria- não aparece como um fenômeno social entre mos acrescentar a famosa polêmica ao redor da põe a teorizar sobre seu ofício, busca argumen- mente à intenção de Flaubert, faz desaparecer a obra outros, mas como a essência do mundo. E o personagem Capitu de Machado de Assis: ou tos claros e uma tal leveza que o leitor dos tex- atrás da imagem de seu autor. Nesta situação, da mundo que oprime é aquele em que se abolem Capitu traiu Bentinho e é culpada ou tudo não tos desta antologia mal se dá conta de estar en- qual ninguém pode escapar inteiramente, a obser- as fronteiras entre o público e o particular. passou de elucubrações da mente atormentada trando em contato com famosos paradigmas das vação de Flaubert me parece quase uma advertên- Talvez aí esteja a chave de compreensão do do narrador e a ré é inocente. chamada “teoria da literatura”. cia: prestando-se ao papel de homem público, o ro- universo kafkiano, que toca de perto o problema No fundo, forjamos um estar sempre diante A obra, dividida em sete partes, trata de mancista põe em perigo sua obra que corre o risco de da violação da intimidade, em que as duas esfe- de um imenso tribunal que nós mesmos cria- conceituar o romance, lançando mão de artifícios ser considerada como um simples apêndice de seus ras da vida, a íntima e a pública, se espelham. mos e no qual imperam os veredictos dos que, que vão desde a constatação desse universo de gestos, de suas declarações, de seus pontos de vista. com o dedo em riste, julgam, ao pé da letra, a incertezas, a partir da análise de Cervantes até a Ora, o romancista não é o porta-voz de ninguém e Riso de Deus lei da alternância do ou isto ou aquilo, e não leitura atenta de Os sonâmbulos de Herman vou levar esta afirmação até dizer que ele não é nem A sétima parte desta antologia encerra o li- exercitam o dom abrangente da compreensão. Broch, passando por lições de composição musi- mesmo o porta-voz de suas próprias idéias. vro com o discurso de Kundera, por ocasião do Daí porque os totalitarismos jamais podem cal — que teriam interferido em toda a produção recebimento do Prêmio Jerusalém em 1985. se conciliar com o espírito do romance, cuja do romancista — até um denso capítulo dedicado Em tempos em que tudo se espetaculariza A partir do aprendizado que o autor nos base reside na interrogação e na complexidade. a Kafka. Finaliza com um pequeno dicionário de — como já percebera G. Debord —, de fato, a proporciona, concluímos, lançando mão de uma Para Kundera, ao aprendermos a exercitar verbetes de 64 palavras, chaves de entrada para a imagem do ficcionista tornou-se demasiada- sua poética afirmação, extraída do provérbio esse dom, entraremos em contato com o que só compreensão do universo ficcional. mente pública. Basta que lembremos, por exem- judaico O homem pensa, Deus ri: o romance nos pode oferecer: a liberdade e a Em todos, inclusive, diante dos temas mais plo, do grande espetáculo em que se têm trans- leveza de estar no mundo, iluminados pelo riso exigentes, tais como os da arte da composição e formado muitos dos eventos e feiras de livros. Agrada-me pensar que a arte do romance veio de Deus, que é o que retira o peso da gravidade da tradução, respiramos a leveza, no tom com Até os mais renomados e famosos escritores, ao mundo como o eco do riso de Deus. que nos prende racionalmente ao chão. que desfilam diante de nós os mais variados hoje, mais do que em outros tempos, precisam assuntos que povoam os estudos literários. “dar o ar de sua graça”, acompanhando uma Em tempos apocalípticos como os nossos, Abaixo os agelastes Desse modo, Kundera põe em prática uma estratégia de marketing em que, para verem suas de fim das utopias e morte da arte, ao menos há Contra a severidade extremada do “penso, de suas crenças fundamentais, não só como obras vendidas, precisam seguir a lei do merca- ainda quem acredite no romance como uma logo existo” cartesiano o romancista checo re- ficcionista, mas também como ensaísta, nessa do que exige deles ampla exposição pública. pincelada de vibrante leveza, na tela opaca das toma um interessante neologismo de François exímia capacidade de refletir sobre o fazer lite- O risco é que, no mundo super carregado de mesmices e superficialidades cotidianas. r Rabelais, a palavra agelaste, do grego “aquele • que não tem senso de humor”. Tal como o bri- lhante autor de Gargântua e Pantagruel, Kundera teme os agelastes, já que não existe paz possível entre eles e o romancista:

Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agelastes são convencidos de que a verdade é clara, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verda- de e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Ana nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendi- dos, tanto Ana como Karenin.

Melhor dizendo, a falta de capacidade de A arte do romance compreender o mundo por meio da relativização Milan Kundera da verdade gera a homogeneização que só aceita Trad.: Teresa Bulhões o igual ou parecido, vetando o que seria a rica Carvalho da Fonseca Companhia das Letras experiência de assimilar o diverso, rechaçando 160 págs. as idiossincrasias individuais.

Dissonância necessária Justamente porque escapa ao senso comum, alargando os processos de apreensão da realida- de, o romance cria a dissonância. Esta é, inclusi- ve, uma das características constitutivas que, se- gundo o autor, não permitirão que ele pereça. De fato, em tempos como os nossos, em que se fala em “crise do romance”, em que se diz que “o romance morreu”, Kundera reverte a questão ao afirmar que não é que esse gênero literário esteja no fim de suas forças, mas que se tem esforçado para encontrar lugar num mun- do que não é mais o seu. E acrescenta que se a razão de ser do romance é manter “o mundo da vida sob uma iluminação perpétua e nos prote- ger contra o esquecimento do ser”, então sua existência, hoje, é mais do que necessária. O espírito do romance, que é de complexida- de, se contrapõe ao espírito comum da mídia que caracteriza o nosso tempo. O problema se agrava uma vez que toda cultura, de modo geral, encon- MILAN KUNDERA por Osvalter tra-se nas mãos da mídia que, como agente de uni- ficação planetária, amplifica e canaliza o processo Nascido na Checoslováquia em 1929, de redução. De fato, ela tem o poder de distribuir MILAN KUNDERA radicou-se na França em no mundo inteiro os mesmos clichês e simplifica- 1975. É autor A arte do romance, A brin- ções suscetíveis de serem aceitos pelo maior nú- cadeira, A imortalidade, A insustentável mero, por todos, pela humanidade inteira. leveza do ser, Jacques e seu amo, O li- vro do riso e do esquecimento, Risíveis O coração das coisas amores, A valsa dos adeuses e A vida Uma possível reação a esse processo de uni- está em outro lugar.

26 rascunho 119 • MARÇO de 2010

FORA DE SEQÜÊNCIA FERNANDO MONTEIRO Uma lacuna editorial brasileira (1)

FRAGMENTOS DO DIÁRIO DO ARTISTA FRANCISCO BRENNAND

Não se compreende, não faz nenhum sen- Essa pintura realizada pouco tempo depois da do fogo, e assim foi que, sem o saber, empreen- tido que pelo menos uma parte das 1.064 pá- primeira versão de La rue e de La toilette de Cathy, demos nossa primeira aventura. O fogo não ginas (digitadas de um só lado, em três cader- ambas de 1933, é uma das menos conhecidas pegava de jeito nenhum, mesmo diante de toda nos) do Diário do pintor Francisco Brennand do pintor, em face do erotismo, mais que explí- a ortodoxia empregada correspondente aos ini- permaneça nadando no mar da indiferença dos cito, de sua figuração que, de uma certa manei- ciais conselhos da concierge. Queimamos todos editores brasileiros. ra, torna proibitivo o seu registro. O próprio os gravetos disponíveis, apenas para verificar Essas páginas contêm observações do artista artista reconhece a natureza equívoca deste qua- que não havia nenhuma tiragem na chaminé. sobre a vida, a pintura, a literatura etc. — desde dro, e, segundo me disseram, tentou destruí-lo, Uma nova carga de gravetos surtiu melhor efei- o dia 10 de janeiro de 1949, no Rio de Janeiro, não o fazendo, porém, devido à sua precipitada to, e o fogo rugiu no velho aquecedor; enfim, quando Brennand estava à espera de embarcar venda a um anônimo colecionador americano, chegara o momento de colocar as simpáticas no navio Alcântara, rumo a Paris. O conjunto que, pasmem os incrédulos, depois de alguns bolas de carvão em seu interior, e assim o fize- total das anotações — de toda ordem — progri- anos foi descoberto como o grande crítico James mos. Para nossa surpresa, também o carvão de até 11 de junho de 1999, data de aniversário Thrall Soby. Inclusive, já conhecia um dos inú- comportou-se como devia, e logo meia-hora do pintor-escritor. Na época, ele achou conve- meros desenhos preparatórios reservados para depois todo o atelier parecia aquecido. Era par- niente “parar de escrever, pois naquela data com- a execução definitiva da pintura (publicado na ticularmente agradável ficar nas imediações do pletava 50 anos de Diário”. Entretanto, dados revista Voir, em 1948) e posso dizer que este velho fogão, sentindo as suas ardências, quan- os acontecimentos a partir de 2001 (entrada do desenho é — sob todos os aspectos — mais ter- do, de repente, o quarto encheu-se de fumaça, terceiro milênio), percebi a necessidade de ain- rível ainda do que o quadro. Veio-me à lem- como se não houvesse chaminé alguma para da esclarecer uma centena de coisas que me afli- brança abordar este assunto pela enorme sugá-la. Abrimos, às pressas, a janela que dava giam, mais diretas e menos literárias, é verdade. similitude da expressão facial (rictus) da “even- para a Rua de Chateaubriand e a porta de entra- Cheguei a optar pela ficção, para dar vazão àquilo tual professora” de guitarra (que manipula sexu- da para fazer circular a fumaça. E, de fato, ela que muito justamente me indignava. De certo almente sua ainda impúbere discípula) com as foi embora. Mas o frio e o vento gelado não nos modo, como você costuma fazer — na sua boa figuras só aparentemente risonhas, de Leonar- permitiram esse luxo por muito tempo. literatura —, dando os nomes aos bois... do: aquele mesmo “insondável sorriso unido a Novamente o fogo mostrou-se instável, para Nossos editores, historicamente, sempre ale- algum funesto presságio”, de que nos fala Pater. logo em seguida resfolegar e atirar cortinas de fu- garam cumprir, na profissão, uma espécie de “sa- Na sua expressão pervertida, a manipuladora maça negra dentro do atelier. Eu não entendia de cerdócio cultural”, desde os velhos José Olympio, parece retirar um especial prazer em conduzir poêle, mas nascera praticamente dentro de uma Álvaro Machado e outros, até os atuais donos (estranha orquestra!) a sua vítima, instrumen- cerâmica, não ignorando, portanto, o que vem a dos selos mais importantes, hoje impregnados talizada, por mãos ávidas e dedos velozes, até o ser um forno e a indispensável complementação de um pragmatismo, digamos, que ainda não dis- orgasmo final. A pintura revela (e o desenho, de uma chaminé. Um não podia existir sem o pensa, mesmo nos tempos pragmatíssimos que mais ainda) o supremo interesse desse rictus, como outro. Qualquer dona de casa ou cozinheira co- correm, as tinturas ou o rouge de um resquício máscara adequada aos condutores do êxtase. nhece esse mecanismo. A essa altura me preocu- daquele “mecenato” alegado pelos fundadores Perdoem-me a interpretação, mas este obscuro pava com os vizinhos, pois a fumaceira que des- das nossas casas editoriais mais antigas. sorriso é leonardesco até a medula... E, certamen- cia escada a baixo me fez descerrar a porta do Porém, será que as anotações desse escritor te, o velho bruxo o aprovaria. Obra de Francisco Brennand andar térreo, justamente aquela que dava para o de primeira água que é Brennand (83 anos) — pátio, comum a todos os moradores. Esperava nosso mais importante pintor vivo — precisari- As notas parisienses começam a escassear, encabulado que a qualquer momento apareces- am de uma ação no plano do “mecenato”, para embora mantenham ainda um sem número de tuação. Suponho que o mais surpreendido de to- sem bombeiros e curiosos para debelar um come- virem à luz, editorialmente falando? Sabem, os pequenos lembretes. As noites insones em per- dos seria eu, se algum dia minha mulher resolves- ço de “incêndio” na casa dos brasileiros. nossos editores menos e mais “sacerdotes” (ain- seguição da pintura, o fervoroso empenho de se escrever as suas memórias ou, se mesmo na Retornei ao serviço pesado, o rosto, mãos e da), do que se trata, não só em termos de acertar com aquilo que Gauguin aconselhava: época, secretamente, mantivesse um diário e fa- roupas recobertos de fuligem, lembrando um memorialística, esse vasto Diário? Ou, enfim, o (“o principal é saber se estamos no bom cami- lasse na sua versão dos fatos, enfim, revelando desatento personagem de comédia. O fogo mais que significaria publicar os escritos de Francis- nho...”), os nomes de quadros, registros de lei- tão e simplesmente a sua quase crucificação... uma vez manteve-se estável e isto animou-me a co de Paula Coimbra de Almeida Brennand? turas, dúvidas e até revolta contra algumas opi- prosseguir em novas tentativas. Já não havia fu- Não importa que, muito recentemente, ele niões de Lhote — como bom francês — sempre Os dias caminhavam, as árvores perdiam as maça, mas estranhamente notei que minha mu- tenha quase ironizado o assunto: “É claro que excessivamente cartesianas. suas folhas, e o frio reinava por toda a parte. No lher parou de ajudar (ela sempre tão ativa), man- me lisonjeia a idéia de publicação ao menos de Em outras anotações, insossos relatos de pas- interior do antigo atelier de Francis Picabia não tendo-se sentada à distância, numa atitude entre parte dos três cadernos, embora, por conta de seios nos arredores de Paris, Bougival, os encan- existia lareira — luxo de gente rica. Resolve- sonolenta e sonhadora. Perguntei-lhe se estava minhas confusões anteriores, jamais estivesse tos do rio Sena e às vezes — só muito raramente mos, sem consultar a concierge, acender o velho bem e ela com voz sumida disse que sim. De- convicto da real necessidade dessa edição, desse — as tentativas de falar sobre a nossa situação aquecedor de ferro fundido. Monsieur pois, levantou-se, dirigiu-se para a cama, onde ato de expor uma vida para o grande público”... emotiva. A distância e a separação da nossa pe- Bousquet, o marido da velhota, já havia conser- permaneceu sentada na mesma atitude, indife- Apresentaremos fragmentos dessa parte quena filha, que ficara no Brasil, era propiciadora tado todos os condutos que levavam à chami- rente. Parei o trabalho e, supondo que tudo aqui- “ficcional” do Diário de FB nos próximos me- de amplos tormentos, sobretudo em Deborah, né, e, segundo o que pensamos, era o bastante lo não passava de cansaço, ajudei-a a deitar-se o ses, neste Fora de Seqüência especial em que se bastante mais acentuados nela do que em mim. para iniciarmos o ritual do fogo: acender no mais comodamente possível, puxando a coberta oferece uma amostra, apenas, daquilo que os Os raríssimos encontros com os bons amigos, atelier a nossa fogueira particular. e agasalhando-a como se fosse para dormir. Ora, editores brasileiros estão deixando passar de- amizades que devemos muito mais ao espírito Éramos “marinheiros de primeira viagem” ainda nem ao menos havíamos jantado e aquele baixo dos seus narizes de muitos faros (alguns social e solidário de Aloísio Magalhães do que e nada entendíamos de limpadores de chami- sono repentino de Deborah começava a afligir- dos quais levados para a Feira de Frankfurt anu- propriamente à nossa sempre canhestra iniciati- nés, a não ser nos contos de Dickens e nos fil- me e intrigar-me. Note-se que não foi por muito almente, em busca de autores europeus de im- va de nos aproximar de pessoas estranhas... De- mes cômicos americanos. No ano de 1949, che- tempo, porque eu também demonstrava repenti- portância altamente duvidosa). vemos, portanto, ao Aloísio, o conhecimento do gamos a Paris no mês de fevereiro, portanto, namente carregar nas costas ou na altura do pes- Velhinhos e meninos do mercado editorial jovem físico Carlos de Lira, do designer Geraldo em pleno inverno, mas acontece que atravessa- coço um peso de pelo menos cem quilos, com tupiniquim, é mais ou menos isso — na parte de Barros, de Leda e também de Radha Abramo mos os períodos mais rigorosos num hotel, com olhos lacrimejantes, gestos que se faziam cada francesa das 1.064 páginas — o que vosmicês (estudantes de arte) e Paulo Emílio Sales Gomes, calefação central e todas as comodidades mo- vez mais lentos e um caminhar desigual — per- estão “perdendo”: ligado à cinemateca de Paris, do lendário Paulo dernas, daí porque idealizamos o frio; não sa- nas muito abertas — lembrando aquele de cer- Carneiro. Enfim, era este o círculo das relações bíamos em profundidade o que era o frio. O ven- tos marinheiros no momento da tempestade. Eu Paris, começo do inverno de 1951 de Aloísio de que ele, certamente, nos supondo to gelado vindo do leste, o mistério das endia- também estava prestes a desabar. Foi a minha isolados, tentava nos aproximar. Creio que os bradas “courant d’air”, que tanto assustava os vez de sentar-me na cadeira, amortecido por um Nós fomos um diálogo. poucos que chegaram até ao meu atelier (ex- franceses, as camas igualmente geladas, os co- vago torpor que não me atingia ainda a consci- Hölderlin Picabia) devem ter, no mínimo, se surpreendido bertores e agasalhos insuficientes e, para com- ência, mas, seguramente, para quem me obser- de que alguém pudesse viver em Paris, naqueles pletar, no começo das manhãs, a água gelada vasse de fora, me tomaria por um sonâmbulo ou No catálogo de uma exposição de Balthus tempos, num tal isolamento. Até o excelente nas torneiras, anunciando no seu choque diário por um ator que, representando gestos em câma- no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Baltazar da Câmara temia pela nossa sobrevivên- que a vida recomeça ou deve recomeçar. E deve ra lenta, exagerava no seu papel. r coloquei numa página em branco uma repro- cia e por várias vezes tentou catequizar Deborah recomeçar no frio. Não tínhamos, portanto, por • dução em cores do La leçon de guitare (1934). para que se insurgisse contra uma tão insólita si- onde apelar. Urgia corrigir o frio com o calor CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO. 119 • MARÇO de 2010 rascunho 27

Os adultos, eles não levam a brincadeira a sério. Eles fin- Maria Carolina Maia gem que brincam, mas logo depois se cansam de fingir e pa- ram de brincar. Acho que adulto não gosta de fingir. Deve ser isso. Mamãe vive dizendo que mentir é feio. E, quando a gen- te vai brincar de escolinha, às vezes ela faz a professora. Mas não dura muito. Ela inventa uma desculpa e sai no meio da aula, aí a gente tem de escolher uma aluna para ser a profes- sora, e fingir que ela nunca foi aluna ou então que ela tomou um chá especial e ficou grande muito antes que as outras. Eu acho muito legal brincar. Gosto até de brincar de esco- linha, se bem que quando eu tô na escola de verdade não vejo a hora de chegar em casa e brincar de escolinha. É engraça- do, né? A escola de mentirinha é mais divertida que a escola da vida real. Vai ver que é por isso que eu gosto de brincar: a vida de brincadeira é muito mais legal que a vida real. Acho que é por isso que todo mundo gosta de novela, também. Eu adoro. Se bem que aqui em casa mamãe é quem mais gosta. Ela até aumenta o volume da tevê quando eu vou brincar com o papai. Acho que ela não quer perder fala nenhuma. Eu perco todas, não escuto nada. Adoro novela, mas gosto mais de brincar. Eu troco a televisão por qualquer brincadei- ra, e brincando esqueço de todo o resto. Quando eu brinco, é como se fosse um sonho. A brincadeira é um mundo só meu e da pessoa que brinca comigo. A gente decide o que pode e o que não pode, e então pode tudo o que a gente quiser. Quan- do a gente dorme, parece que a gente vai pra um outro lugar, onde tudo é do jeito que a gente imagina. E cada hora dá pra ir pra um lugar diferente. Na brincadeira, é a mesma coisa. É que nem os teatrinhos que a gente faz na escola de verdade. Eu já sonhei que tava na casa da vovó Maria e a casa da vovó Maria parecia a minha casa, mas com cachorro — eu adoro cachorro, mas mamãe não deixa ter um. A vovó Ma- ria tinha a cara da mamãe e o vovô João parecia o papai. Mas no sonho era ela quem queria brincar comigo. Ela bri- gava com o papai, falando que o papai queria que eu fosse só dele, e que eu era dela, também. Eu achei superlegal, por- que eu queria brincar mais com a mamãe, mas ela nunca tem paciência. Ela é adulta demais, eu acho. Papai sempre diz que a gente não pode deixar de ser crian- ça, ou fica chato. Que o mundo dos adultos é muito sério, só trabalho e trabalho, e que é por isso que a maioria das pessoas morre quando é adulta. Elas morrem porque deixam de ser criança. Papai sempre me pede pra não deixar de ser criança nunca. Mesmo que eu fique grande, ele fala, eu preciso cui- dar da criança que existe dentro de mim, assim como ele faz. Acho que eu aprendo muito com o papai. Ser adulto sem dei- xar de ser criança, nunca me esqueço. Porque quase todos os adultos que eu conheço são chatos, mesmo. Tudo com cara de bravo, tudo feio e sem graça. Eles não sabem brincar, não sabem contar piada engraçada, não sabem nem escolher presente de criança. Quando vai um ami- go da mamãe ou do papai lá em casa, eu sempre ganho roupa. Acho roupa um saco. Eu gosto é de jogo, de boneca, de histó- ria pra colorir. Acho que esse povo nunca foi criança. Aí, eles sentam em volta duma mesa e ficam bebendo cerveja, falan- do do trabalho, de alguma coisa que alguém leu no jornal. Adulto não tem imaginação. Eles precisavam brincar um pouco pra ter uma história boa pra contar. Brincar é um jeito de mexer com a imagina- ção. Às vezes, nem dá pra saber como a brincadeira vai aca- bar. Ela começa de um jeito e termina de outro, totalmente diferente. Eu adoro isso, mas esse povo chato não consegue achar graça em nada. Aí, enquanto eles ficam lá, com aquele papo bobo que eles têm, eu fico no tapete da sala, de lado, brincando sozinha com as minhas bonecas e torcendo pras visitas chatas irem logo embora, a mamãe ligar a tevê e eu brincar de novo com o papai. O único que gosta de brincar que nem criança é o papai. MARIA CAROLINA MAIA nasceu em São Paulo, em 1979. Ele fecha a porta do quarto, finge que eu sou a mamãe e fica Formada em Jornalismo e Ciências Sociais, trabalha como repórter no site da revista Veja. É autora do romance Ciranda horas nessa brincadeira. Não cansa nunca. O papai ainda de nós, vencedor do prêmio Nascente USP/2006. não deixou de ser criança.•r DEVER DE CASA 28 rascunho 119 • MARÇO de 2010 29

Marco Jacobsen guém perderá muita coisa por não me característica de alguns integrantes do mun- conhecer. Ao contrário do que imagina do literário. Temos em nossos arquivos có- boa parte dos leitores, os escritores são pia da procuração em que Juan Solis Uran- pessoas comuns, não raramente limita- ga nomeia Mauro Saldina seu representan- Jorge Figueroa das, exceto na vaidade — apenas são te no Brasil. Vamos submeter o documento dotadas de um dom especial para a lin- a perícia, para descobrir se foi forjado. A Usi- guagem. Assim, embora hoje se consi- na de Letras é uma editora séria, de prestígio dere que os autores devam ter também consolidado e não nos prestaríamos a uma TRADUÇÃO: Ronaldo Cagiano algo de um ator performático que encan- farsa. Se por ventura o público tiver sido en- te platéias, acho mais prudente que os ganado, nós também o fomos. E o autor da eventuais leitores formem de mim a ima- eventual ignomínia, se confirmada, respon- ela sabia do arco-íris gem que lhes aprouver, sem terem de derá na Justiça pelos danos que possa ter cau- falava-lhe dos sete mares correr o risco de uma decepção.” sado à imagem da nossa empresa”. ele a convidava a ver os trens O recuo de Uranga provocou algumas Mas por que teria Mauro Saldina apre- lhe presenteava com pipas reações indignadas e o editorial de um sentado à praça como tradução um tra- caderno de cultura mencionou que “al- balho ficcional que na verdade é seu? ela sabia do sol e das maçãs guns escritores cultivam o marketing do Também para essa pergunta Panorama dos caminhos que levam a roma mistério, recusando-se a mostrar o rosto acreditava ter encontrado uma resposta. ele odiava as gaiolas e a ter uma vida pública, o que é direito “Na varredura que procedemos no tra- as árvores secas seu; mas causa espécie esse tipo de atitu- balho literário de Saldina — que pode ser de, já que o escritor, queira ou não, é uma classificado como de boa qualidade, ainda a noite de sonhos despidos figura pública e não deveria se recusar a que sem a centelha do que se convencio- um diálogo mais amplo com o seu públi- nou chamar de gênio — e que incluiu arti- os uniu co. No fundo, tudo soa como uma espé- gos que publicou esparsamente e entrevis- com gritos de diamantes cie de sensacionalismo ao avesso, auto- tas que concedeu nos últimos vinte anos a promoção travestida de modéstia”. Mau- um ou outro jornal, sempre na busca de al- ••• ro Saldina limitou-se a comentar que um guma pista que pudesse esclarecer o misté- redator de jornal que se preze não deve- rio, nos deparamos com um artigo que pu- formigas e uvas ria usar uma expressão como “causa es- blicou num suplemento literário de Curiti- no bar do alberto pécie”, poeirenta e que ninguém sabe ba, alguns meses depois da publicação de feijão na cabeça da mesa exatamente o que significa. seu romance A fome do tigre, que teve es- marcam a sorte pelas costas Tudo teria terminado por aí se há cassa repercussão e vendeu até hoje, segun- quinze dias a poderosa revista semanal Pa- do apuramos, apenas 400 exemplares. Nele, dorme-se à noite norama não tivesse vindo às bancas com nosso autor, num tom irônico, defende a com fósforos e chamamé um título interrogativo demolidor: “Caso tese choramingas, certamente sem funda- espanto e magia Uranga: uma farsa literária?”. Há pergun- mento, de que a nossa grande imprensa não tas que valem por uma afirmação. se interessa de fato pela literatura sendo A matéria vinha ilustrada pela reprodu- produzida no país, só tendo olhos para o murmúrio de surpresa ção da capa do livro, por fotos de Mauro Sal- que vem de fora. ‘Nossa grande mídia’ sus- em lábios fronteiriços dina e de Carlos Mônaco, diretor editorial da tentava ele, ‘é na maior parte do tempo rodeados pelo ruído dos passos Usina de Livros, e de um quadrado negro so- mera reprodutora de matrizes culturais, qua- bre o qual se recortava um ponto de interro- se sempre importadas de fora (vide a im- ••• gação, com a legenda: Juan Uranga. portância concedida à transmissão todos os anos da festa do Oscar). Vivemos no capi- a sola do sol me pisa talismo e reproduzir em escala é muito mais um cão observa o coração estilhaçado barato do que produzir conteúdos. É a ló- sobre um assento rasgado gica do sistema. Embora não possa, ou não ouse, confessar isso abertamente, ela está cordas de loucura O misterioso escritor se lixando para a nossa pobre, em todos os em lugar de quê? Juan Uranga sentidos, literatura brasileira. Na medida em que nós, ficcionistas brasileiros, vendemos gritam despojos em terra muda Rubem Mauro Machado em geral quinhentos, mil, três mil quando vamos bem, exemplares, na medida em que os quatro ventos e suas promessas Desde J. D. Salinger não surgia escri- custaria a sua amizade. Portanto, é um autor ra combater bebendo uísque um pouqui- xando do bolso um papel com carimbos Sustentava a revista ter recolhido evi- as tiragens são pequenas, insignificantes devoram noites tor mais excêntrico, recluso e enigmáti- fora do mainstream, embora dotado de nho a mais do que deveria. Cidadão do e estampilhas. Deixou também a anota- dências para denunciar Mauro Saldina mesmo, em outras palavras, na medida em avançam co do que Juan Uranga. Como Salinger, grande imaginação e que escreve linda- mundo, arrepia-se com sentimentos xe- ção do número de uma conta bancária e como um impostor, ao inventar a figura de que a literatura sendo feita não tem rele- com violinos ao ombro e o nosso Dalton Trevisan, Uranga não mente, como você poderá constatar. nófobos e nacionalistas. Socialista de leve de um telefone para contato, ficando Sal- um escritor inexistente. Enviara um repór- vância econômica, ela também deixa de dá entrevistas, não se deixa fotografar — Mas como ele me conhece? matiz anarquista, despreza a burguesia e dina proibido de repassá-lo a quem quer ter a Cartagena, na Colômbia; por mais que interessar aos meios de comunicação. Qual- mãos de sal em espelhos quebrados (aliás, não se conhece foto sua) e sequer — Ele leu as traduções que você fez de sua voracidade cumulativa. Mas ao con- que seja, não importa a alegação. Uranga vasculhasse os meios jornalísticos, artísticos quer jovem cantor ou instrumentista lan- encontraram ouvidos com seu verbo machu- há certeza sobre a cidade ou país onde alguns contos de autores de fala hispâni- trário do que se poderia pensar está longe defende sua privacidade como um leão. e intelectuais, arquivos da Prefeitura e ser- çando seu CD tem quase garantido que seu cado mora. O pouco que se sabe dele é por ca, como Leopoldo Lugones, Horacio Qui- de ser um misantropo mal-humorado. O resto é sabido. O livro conseguiu viços de saúde, ele não foi capaz de encon- trabalho será avaliado, seja positiva ou ne- asas de areia informações de terceiros. roga e Augusto Monterroso, e gostou mui- Canta, toca violão, gosta de dançar e de boas resenhas nos principais jornais, re- trar traço do suposto Uranga. O correspon- gativamente, num maior ou menor espa- desgarradas O agora chamado Caso Uranga co- to. Comprou então por via postal o ro- festas, ainda que necessite também de pe- vistas e suplementos literários brasileiros, dente na Cidade do México fez idêntico ço; afinal, a indústria fonográfica tem peso. simulam infortúnios meçou quando há pouco mais de um ano mance e o livro de contos que você publi- ríodos de silêncio e isolamento. Aprecia que dedicaram ainda um razoável espa- serviço em Cuernavaca, com o mesmo re- Já o que determina hoje se um ficcionista a sola do sol me pisa o escritor e tradutor brasileiro Mauro Sal- cou e encontrou identidades entre a lite- futebol, pela estética do jogo: recusa-se a ço para conjecturas sobre o misterioso sultado. Varredura na internet acusou a pre- brasileiro terá direito à glória de uma rese- não dói dina bateu às portas da prestigiosa edito- escritor apátrida. Mauro Saldina teve de sença de alguns Urangas em diferentes se- nha, se um trabalho que consumiu às vezes ratura de ambos. Ele me disse que gosta torcer por qualquer equipe, alegando não beijo na boca ra Usina de Letras, de São Paulo, tendo sempre de ser traduzido por outro escritor. gostar de nenhum tipo de religião. Leitor repetir a mesma história a algumas deze- tores de atividade, nenhum Juan. As mui- anos merecerá míseras, ainda assim valio- o ramalhete de nuvens debaixo do braço os originais de um li- E com quem sinta afinidade. voraz, consome o que lhe cai nas mãos, nas de jornalistas, não esquecendo de tas editoras consultadas em Barcelona, Pa- sas, vinte ou pouco mais linhas de aprecia- vro de contos de Uranga, intitulado — Mas ele sabe português? gosta tanto de Borges quanto de Rulfo, e mencionar nas entrevistas o trabalho que ris, Cidade do México, Bogotá e Buenos ção, são fatores insondáveis e absolutamente que me guarda “Alma das pedras”, que, segundo disse, — Uranga morou dez anos no Bra- sua descoberta mais recente são os auto- lhe deu a tradução, por ter de encontrar Aires disseram ignorar o autor ou qualquer aleatórios, que nada têm a ver com mérito acabara de traduzir do espanhol. Saldina sil. Fala fluentemente sete idiomas, além res africanos, que acredita cheios de vita- correspondências em português para ex- obra sua em processo de tradução. “Como literário — bem, se tiver algum, melhor’”. ••• contou na ocasião a seguinte história: fora de ter boas noções de latim, grego, ára- lidade, como seus países, em oposição a pressões da linguagem coloquial, que o é possível, indagava a publicação, que al- E a revista concluía: “Panorama está con- procurado em 2007 em casa, depois de be e japonês. um, segundo ele, estéril cerebralismo eu- autor curiosamente mescla com uma lin- guém nos dias de hoje trafegue por tantos vencida: essa visão inteiramente divorcia- pela rodovia um telefonema solicitando a visita, por E foi então que Mauro Saldina muni- ropeu. Seus amigos são gente do povo, mo- guagem elaborada, “de recorte clássico, países, ao longo de tanto tempo, sem dei- da da realidade, baseada em meras suposi- vou ao teu universo um homem de fala espanhola, de nome ciou-se de algumas informações sobre o toristas, porteiros de hotel, professores, gar- quase tradicional”, como observou um xar nenhum rastro?” E desafiava Saldina a ções subjetivas, foi que levou o relativamen- para alegrar-me Montanaro, provavelmente, pelo sota- autor. Filho de pai espanhol e mãe vene- çons, músicos populares; aliás, embora ra- crítico. De modo geral, salvo um ou dois apresentar a edição espanhola dos contos te jovem escritor brasileiro a apresentar o e deixar para trás dias assassinos que, colombiano ou mexicano. zuelana, sendo ela por sua vez filha de ale- ramente fale de si, Uranga deixou escapar reparos, a tradução foi bastante elogia- e a informar o nome do tradutor que esta- trabalho ficcional de sua autoria como sendo — Vim procurá-lo, aproveitando esta mão com portuguesa, Uranga nasceu no que em diferentes épocas exerceu ofícios da. Em alguns meses “A alma das pedras” ria vertendo o livro para o francês. a tradução de um autor estrangeiro em vés- enquanto girassóis viagem ao Brasil, a pedido de um amigo, México e passou a infância e juventude proletários para sobreviver: foi por curtos vendeu 8 mil exemplares, número con- A revista foi além: contratou dois analis- peras de explodir no mercado internacio- bebem de minha alma o grande escritor Juan Uranga — disse fazendo do mundo a sua casa, por causa períodos carregador de malas num hotel siderado excelente para um livro de con- tas de textos, dois acadêmicos respeitados, nal. Ele imaginou que por meio desse ex- lágrimas amarelas Montanaro, sentado no sofá de Saldina do trabalho do pai, engenheiro de petró- londrino, lavador de pratos em Berlim, tos, num país que lê tão pouco. para uma comparação estilística entre os con- pediente baixo iria merecer da nossa mídia — Ele gostaria que você traduzisse o seu leo. Viveu no país natal, na Argentina, motorista particular na Cidade do Méxi- A pressão para que Uranga viesse ao tos de Uranga e os dois livros publicados pelo uma atenção que de outra forma seu livro celebro o ruído livro de contos, que está prestes a ser pu- nos Estados Unidos, na Indonésia, na In- co e músico de rua no Rio de Janeiro. Em- Brasil aumentou, até que Saldina anun- próprio Mauro Saldina, um de contos, o ou- não conseguiria. E tem de se reconhecer, blicado no México e que no momento está glaterra, no Oriente Médio, na África. Na bora escreva desde jovem, só recentemen- ciou em meados do ano que o escritor, tro um romance. Eles encontraram algumas conseguiu seu intento. Infelizmente à cus- das aves batendo asas sendo traduzido na França. meia idade, percorreu o Brasil de ponta a te decidiu-se a publicar um livro, quase contrariando seus hábitos, concordara inquietantes repetições de padrões semânti- ta da ética, fazendo de bobos não só os crí- — Juan Uranga? Nunca ouvi falar. ponta, acabando por se fixar em São Pau- por imposição de seus poucos amigos edu- em participar da Bienal do Livro do Rio cos e até mesmo temáticos, destacados pela ticos e jornalistas que lhe deram atenção, e ••• — Não me surpreende — contrapôs lo durante dez anos, cenário de alguns de cados. Atualmente Uranga conclui seu de Janeiro, no final do ano. Um frisson revista num quadro em que frases de ambos sua editora, mas principalmente os leitores, Montanaro — Uranga é um recluso, que seus contos. Mudou-se depois para Bar- primeiro romance, com o título provisó- percorreu as redações, ante a expectativa apareciam lado a lado em itálico, sugerindo as maiores vítimas desta fraude”. deixo cair a cinza devota ódio feroz ao exibicionismo e su- celona, passou longas temporadas em Pa- rio de “El caminante”. de se decifrar a esfinge e ver o monstro de que aquelas frases poderiam ter sido escritas Perseguido por repórteres de diferen- no olho de vidro perficialidade da nossa sociedade de con- ris, em Houston e Austin, no Texas, de lá Mauro Saldina então pediu a Monta- perto. Por isso, a frustração foi muito gran- pela mesma pessoa, ainda que os estilos não tes órgãos de comunicação, Mauro Sal- a rádio esfrega notícias sumo, à indústria de fabricação de cele- se mandou para a Colômbia, sobreviven- naro, conforme contou aos editores da de quando, no início de outubro, o escri- fossem exatamente iguais, o de Uranga mais dina anunciou que não daria entrevista, tudo é assim bridades instantâneas, para consumo des- do como tradutor e professor de idiomas. Usina de Letras, para ler as dez primeiras tor divulgou nota em que afirmava: “De- derramado, o de Saldina mais contido, de limitando-se a lhes entregar nota lacô- sempre cartável das massas alienadas. Despreza em Cigano sem paradeiro certo, já na metade linhas de seis dos 14 contos, escolhidos pois de muito ponderar, decidi que seria frases curtas. “Temos sérios motivos para crer nica, quase telegráfica: JORGE FIGUEROA nas- especial, e com todas as forças, a feira de de seus sessenta anos, divide-se hoje, na aleatoriamente; finda a tarefa, declarou mais útil para mim e, quem sabe, para os que o livro atribuído ao autor estrangeiro na “Não vou dar atenção a suposições e sobre um ventre solitário vaidades e favores mútuos a que se dá o maior parte do tempo, entre a Colômbia que aceitava a tradução e, depois dela, o leitores e a literatura, ficar em meu canto verdade não foi traduzido e sim escrito por aleivosias. Tenho a consciência tranqüi- ceu em 1956, em Santia- esqueço que dia é go del Estero (Argentina) nome de mundo literário. Não tem agen- e o México, vivendo em cidades do inte- encargo de oferecê-la a alguma editora escrevendo, ao invés de me deslocar mi- Saldina”, afirmou Panorama. la, não cometi crime algum. Se alguém e vive em Buenos Aires. tes, nem blog na internet. Aliás, recusa- rior, como Cartagena e Cuernavaca. De- brasileira. Montanaro sorriu: lhares de quilômetros para despejar nos O editor Carlos Mônaco se declarou sin- acha isso, prove: estou pronto a respon- É poeta e músico, tendo em que harmônico ponto iniciarei a volta? se a ter computador, cabeça dura escreve vido à vida errante, não formou o que se — Já contava com isso. Aqui está uma ouvidos alheios uma suposta sabedoria, de ceramente surpreso. “Não tínhamos motivo der por meus atos. O resto é silêncio.” r publicado os livros Rui- numa velha maquina Remington elétrica costuma chamar de “velhos amigos” e ao procuração de Juan Solis Uranga, dando- que não me sinto detentor. O que penso para desconfiar da história que Mauro Saldi- • dos pasajeros (2006) e Silencio abierto de décadas passadas. E quando falei que na casa fragmentos de risos (2008). que parece não teve filhos. Decorrência lhe plenos poderes para representá-lo no da literatura deve estar expresso no que na nos contou, por ocasião do oferecimento RUBEM MAURO MACHADO é escritor, jornalista e Integrante do grupo lite- iria inserir verbete a seu respeito na Wiki- da vida móvel, sofre de um profundo sen- Brasil, inclusive para o efeito de recebi- escrevo, não no que digo em tertúlias. dos originais, ainda que a achássemos de fato tradutor. Autor de livros como A idade da paixão, O pendem da cauda do inverno rário La panaderia, edita r pedia, respondeu prontamente que isso me timento de desenraizamento, que procu- mento de direitos autorais — disse, pu- Minha pessoa nada tem de especial e nin- bizarra; mas a debitamos à excentricidade executante e Lobos. Vive no Rio de Janeiro (RJ). hoje o mundo se parece com você• a revista La escalera. 28 rascunho 119 • MARÇO de 2010 29

Marco Jacobsen guém perderá muita coisa por não me característica de alguns integrantes do mun- conhecer. Ao contrário do que imagina do literário. Temos em nossos arquivos có- boa parte dos leitores, os escritores são pia da procuração em que Juan Solis Uran- pessoas comuns, não raramente limita- ga nomeia Mauro Saldina seu representan- Jorge Figueroa das, exceto na vaidade — apenas são te no Brasil. Vamos submeter o documento dotadas de um dom especial para a lin- a perícia, para descobrir se foi forjado. A Usi- guagem. Assim, embora hoje se consi- na de Letras é uma editora séria, de prestígio dere que os autores devam ter também consolidado e não nos prestaríamos a uma TRADUÇÃO: Ronaldo Cagiano algo de um ator performático que encan- farsa. Se por ventura o público tiver sido en- te platéias, acho mais prudente que os ganado, nós também o fomos. E o autor da eventuais leitores formem de mim a ima- eventual ignomínia, se confirmada, respon- ela sabia do arco-íris gem que lhes aprouver, sem terem de derá na Justiça pelos danos que possa ter cau- falava-lhe dos sete mares correr o risco de uma decepção.” sado à imagem da nossa empresa”. ele a convidava a ver os trens O recuo de Uranga provocou algumas Mas por que teria Mauro Saldina apre- lhe presenteava com pipas reações indignadas e o editorial de um sentado à praça como tradução um tra- caderno de cultura mencionou que “al- balho ficcional que na verdade é seu? ela sabia do sol e das maçãs guns escritores cultivam o marketing do Também para essa pergunta Panorama dos caminhos que levam a roma mistério, recusando-se a mostrar o rosto acreditava ter encontrado uma resposta. ele odiava as gaiolas e a ter uma vida pública, o que é direito “Na varredura que procedemos no tra- as árvores secas seu; mas causa espécie esse tipo de atitu- balho literário de Saldina — que pode ser de, já que o escritor, queira ou não, é uma classificado como de boa qualidade, ainda a noite de sonhos despidos figura pública e não deveria se recusar a que sem a centelha do que se convencio- um diálogo mais amplo com o seu públi- nou chamar de gênio — e que incluiu arti- os uniu co. No fundo, tudo soa como uma espé- gos que publicou esparsamente e entrevis- com gritos de diamantes cie de sensacionalismo ao avesso, auto- tas que concedeu nos últimos vinte anos a promoção travestida de modéstia”. Mau- um ou outro jornal, sempre na busca de al- ••• ro Saldina limitou-se a comentar que um guma pista que pudesse esclarecer o misté- redator de jornal que se preze não deve- rio, nos deparamos com um artigo que pu- formigas e uvas ria usar uma expressão como “causa es- blicou num suplemento literário de Curiti- no bar do alberto pécie”, poeirenta e que ninguém sabe ba, alguns meses depois da publicação de feijão na cabeça da mesa exatamente o que significa. seu romance A fome do tigre, que teve es- marcam a sorte pelas costas Tudo teria terminado por aí se há cassa repercussão e vendeu até hoje, segun- quinze dias a poderosa revista semanal Pa- do apuramos, apenas 400 exemplares. Nele, dorme-se à noite norama não tivesse vindo às bancas com nosso autor, num tom irônico, defende a com fósforos e chamamé um título interrogativo demolidor: “Caso tese choramingas, certamente sem funda- espanto e magia Uranga: uma farsa literária?”. Há pergun- mento, de que a nossa grande imprensa não tas que valem por uma afirmação. se interessa de fato pela literatura sendo A matéria vinha ilustrada pela reprodu- produzida no país, só tendo olhos para o murmúrio de surpresa ção da capa do livro, por fotos de Mauro Sal- que vem de fora. ‘Nossa grande mídia’ sus- em lábios fronteiriços dina e de Carlos Mônaco, diretor editorial da tentava ele, ‘é na maior parte do tempo rodeados pelo ruído dos passos Usina de Livros, e de um quadrado negro so- mera reprodutora de matrizes culturais, qua- bre o qual se recortava um ponto de interro- se sempre importadas de fora (vide a im- ••• gação, com a legenda: Juan Uranga. portância concedida à transmissão todos os anos da festa do Oscar). Vivemos no capi- a sola do sol me pisa talismo e reproduzir em escala é muito mais um cão observa o coração estilhaçado barato do que produzir conteúdos. É a ló- sobre um assento rasgado gica do sistema. Embora não possa, ou não ouse, confessar isso abertamente, ela está cordas de loucura O misterioso escritor se lixando para a nossa pobre, em todos os em lugar de quê? Juan Uranga sentidos, literatura brasileira. Na medida em que nós, ficcionistas brasileiros, vendemos gritam despojos em terra muda Rubem Mauro Machado em geral quinhentos, mil, três mil quando vamos bem, exemplares, na medida em que os quatro ventos e suas promessas Desde J. D. Salinger não surgia escri- custaria a sua amizade. Portanto, é um autor ra combater bebendo uísque um pouqui- xando do bolso um papel com carimbos Sustentava a revista ter recolhido evi- as tiragens são pequenas, insignificantes devoram noites tor mais excêntrico, recluso e enigmáti- fora do mainstream, embora dotado de nho a mais do que deveria. Cidadão do e estampilhas. Deixou também a anota- dências para denunciar Mauro Saldina mesmo, em outras palavras, na medida em avançam co do que Juan Uranga. Como Salinger, grande imaginação e que escreve linda- mundo, arrepia-se com sentimentos xe- ção do número de uma conta bancária e como um impostor, ao inventar a figura de que a literatura sendo feita não tem rele- com violinos ao ombro e o nosso Dalton Trevisan, Uranga não mente, como você poderá constatar. nófobos e nacionalistas. Socialista de leve de um telefone para contato, ficando Sal- um escritor inexistente. Enviara um repór- vância econômica, ela também deixa de dá entrevistas, não se deixa fotografar — Mas como ele me conhece? matiz anarquista, despreza a burguesia e dina proibido de repassá-lo a quem quer ter a Cartagena, na Colômbia; por mais que interessar aos meios de comunicação. Qual- mãos de sal em espelhos quebrados (aliás, não se conhece foto sua) e sequer — Ele leu as traduções que você fez de sua voracidade cumulativa. Mas ao con- que seja, não importa a alegação. Uranga vasculhasse os meios jornalísticos, artísticos quer jovem cantor ou instrumentista lan- encontraram ouvidos com seu verbo machu- há certeza sobre a cidade ou país onde alguns contos de autores de fala hispâni- trário do que se poderia pensar está longe defende sua privacidade como um leão. e intelectuais, arquivos da Prefeitura e ser- çando seu CD tem quase garantido que seu cado mora. O pouco que se sabe dele é por ca, como Leopoldo Lugones, Horacio Qui- de ser um misantropo mal-humorado. O resto é sabido. O livro conseguiu viços de saúde, ele não foi capaz de encon- trabalho será avaliado, seja positiva ou ne- asas de areia informações de terceiros. roga e Augusto Monterroso, e gostou mui- Canta, toca violão, gosta de dançar e de boas resenhas nos principais jornais, re- trar traço do suposto Uranga. O correspon- gativamente, num maior ou menor espa- desgarradas O agora chamado Caso Uranga co- to. Comprou então por via postal o ro- festas, ainda que necessite também de pe- vistas e suplementos literários brasileiros, dente na Cidade do México fez idêntico ço; afinal, a indústria fonográfica tem peso. simulam infortúnios meçou quando há pouco mais de um ano mance e o livro de contos que você publi- ríodos de silêncio e isolamento. Aprecia que dedicaram ainda um razoável espa- serviço em Cuernavaca, com o mesmo re- Já o que determina hoje se um ficcionista a sola do sol me pisa o escritor e tradutor brasileiro Mauro Sal- cou e encontrou identidades entre a lite- futebol, pela estética do jogo: recusa-se a ço para conjecturas sobre o misterioso sultado. Varredura na internet acusou a pre- brasileiro terá direito à glória de uma rese- não dói dina bateu às portas da prestigiosa edito- escritor apátrida. Mauro Saldina teve de sença de alguns Urangas em diferentes se- nha, se um trabalho que consumiu às vezes ratura de ambos. Ele me disse que gosta torcer por qualquer equipe, alegando não beijo na boca ra Usina de Letras, de São Paulo, tendo sempre de ser traduzido por outro escritor. gostar de nenhum tipo de religião. Leitor repetir a mesma história a algumas deze- tores de atividade, nenhum Juan. As mui- anos merecerá míseras, ainda assim valio- o ramalhete de nuvens debaixo do braço os originais de um li- E com quem sinta afinidade. voraz, consome o que lhe cai nas mãos, nas de jornalistas, não esquecendo de tas editoras consultadas em Barcelona, Pa- sas, vinte ou pouco mais linhas de aprecia- vro de contos de Uranga, intitulado — Mas ele sabe português? gosta tanto de Borges quanto de Rulfo, e mencionar nas entrevistas o trabalho que ris, Cidade do México, Bogotá e Buenos ção, são fatores insondáveis e absolutamente que me guarda “Alma das pedras”, que, segundo disse, — Uranga morou dez anos no Bra- sua descoberta mais recente são os auto- lhe deu a tradução, por ter de encontrar Aires disseram ignorar o autor ou qualquer aleatórios, que nada têm a ver com mérito acabara de traduzir do espanhol. Saldina sil. Fala fluentemente sete idiomas, além res africanos, que acredita cheios de vita- correspondências em português para ex- obra sua em processo de tradução. “Como literário — bem, se tiver algum, melhor’”. ••• contou na ocasião a seguinte história: fora de ter boas noções de latim, grego, ára- lidade, como seus países, em oposição a pressões da linguagem coloquial, que o é possível, indagava a publicação, que al- E a revista concluía: “Panorama está con- procurado em 2007 em casa, depois de be e japonês. um, segundo ele, estéril cerebralismo eu- autor curiosamente mescla com uma lin- guém nos dias de hoje trafegue por tantos vencida: essa visão inteiramente divorcia- pela rodovia um telefonema solicitando a visita, por E foi então que Mauro Saldina muni- ropeu. Seus amigos são gente do povo, mo- guagem elaborada, “de recorte clássico, países, ao longo de tanto tempo, sem dei- da da realidade, baseada em meras suposi- vou ao teu universo um homem de fala espanhola, de nome ciou-se de algumas informações sobre o toristas, porteiros de hotel, professores, gar- quase tradicional”, como observou um xar nenhum rastro?” E desafiava Saldina a ções subjetivas, foi que levou o relativamen- para alegrar-me Montanaro, provavelmente, pelo sota- autor. Filho de pai espanhol e mãe vene- çons, músicos populares; aliás, embora ra- crítico. De modo geral, salvo um ou dois apresentar a edição espanhola dos contos te jovem escritor brasileiro a apresentar o e deixar para trás dias assassinos que, colombiano ou mexicano. zuelana, sendo ela por sua vez filha de ale- ramente fale de si, Uranga deixou escapar reparos, a tradução foi bastante elogia- e a informar o nome do tradutor que esta- trabalho ficcional de sua autoria como sendo — Vim procurá-lo, aproveitando esta mão com portuguesa, Uranga nasceu no que em diferentes épocas exerceu ofícios da. Em alguns meses “A alma das pedras” ria vertendo o livro para o francês. a tradução de um autor estrangeiro em vés- enquanto girassóis viagem ao Brasil, a pedido de um amigo, México e passou a infância e juventude proletários para sobreviver: foi por curtos vendeu 8 mil exemplares, número con- A revista foi além: contratou dois analis- peras de explodir no mercado internacio- bebem de minha alma o grande escritor Juan Uranga — disse fazendo do mundo a sua casa, por causa períodos carregador de malas num hotel siderado excelente para um livro de con- tas de textos, dois acadêmicos respeitados, nal. Ele imaginou que por meio desse ex- lágrimas amarelas Montanaro, sentado no sofá de Saldina do trabalho do pai, engenheiro de petró- londrino, lavador de pratos em Berlim, tos, num país que lê tão pouco. para uma comparação estilística entre os con- pediente baixo iria merecer da nossa mídia — Ele gostaria que você traduzisse o seu leo. Viveu no país natal, na Argentina, motorista particular na Cidade do Méxi- A pressão para que Uranga viesse ao tos de Uranga e os dois livros publicados pelo uma atenção que de outra forma seu livro celebro o ruído livro de contos, que está prestes a ser pu- nos Estados Unidos, na Indonésia, na In- co e músico de rua no Rio de Janeiro. Em- Brasil aumentou, até que Saldina anun- próprio Mauro Saldina, um de contos, o ou- não conseguiria. E tem de se reconhecer, blicado no México e que no momento está glaterra, no Oriente Médio, na África. Na bora escreva desde jovem, só recentemen- ciou em meados do ano que o escritor, tro um romance. Eles encontraram algumas conseguiu seu intento. Infelizmente à cus- das aves batendo asas sendo traduzido na França. meia idade, percorreu o Brasil de ponta a te decidiu-se a publicar um livro, quase contrariando seus hábitos, concordara inquietantes repetições de padrões semânti- ta da ética, fazendo de bobos não só os crí- — Juan Uranga? Nunca ouvi falar. ponta, acabando por se fixar em São Pau- por imposição de seus poucos amigos edu- em participar da Bienal do Livro do Rio cos e até mesmo temáticos, destacados pela ticos e jornalistas que lhe deram atenção, e ••• — Não me surpreende — contrapôs lo durante dez anos, cenário de alguns de cados. Atualmente Uranga conclui seu de Janeiro, no final do ano. Um frisson revista num quadro em que frases de ambos sua editora, mas principalmente os leitores, Montanaro — Uranga é um recluso, que seus contos. Mudou-se depois para Bar- primeiro romance, com o título provisó- percorreu as redações, ante a expectativa apareciam lado a lado em itálico, sugerindo as maiores vítimas desta fraude”. deixo cair a cinza devota ódio feroz ao exibicionismo e su- celona, passou longas temporadas em Pa- rio de “El caminante”. de se decifrar a esfinge e ver o monstro de que aquelas frases poderiam ter sido escritas Perseguido por repórteres de diferen- no olho de vidro perficialidade da nossa sociedade de con- ris, em Houston e Austin, no Texas, de lá Mauro Saldina então pediu a Monta- perto. Por isso, a frustração foi muito gran- pela mesma pessoa, ainda que os estilos não tes órgãos de comunicação, Mauro Sal- a rádio esfrega notícias sumo, à indústria de fabricação de cele- se mandou para a Colômbia, sobreviven- naro, conforme contou aos editores da de quando, no início de outubro, o escri- fossem exatamente iguais, o de Uranga mais dina anunciou que não daria entrevista, tudo é assim bridades instantâneas, para consumo des- do como tradutor e professor de idiomas. Usina de Letras, para ler as dez primeiras tor divulgou nota em que afirmava: “De- derramado, o de Saldina mais contido, de limitando-se a lhes entregar nota lacô- sempre cartável das massas alienadas. Despreza em Cigano sem paradeiro certo, já na metade linhas de seis dos 14 contos, escolhidos pois de muito ponderar, decidi que seria frases curtas. “Temos sérios motivos para crer nica, quase telegráfica: JORGE FIGUEROA nas- especial, e com todas as forças, a feira de de seus sessenta anos, divide-se hoje, na aleatoriamente; finda a tarefa, declarou mais útil para mim e, quem sabe, para os que o livro atribuído ao autor estrangeiro na “Não vou dar atenção a suposições e sobre um ventre solitário vaidades e favores mútuos a que se dá o maior parte do tempo, entre a Colômbia que aceitava a tradução e, depois dela, o leitores e a literatura, ficar em meu canto verdade não foi traduzido e sim escrito por aleivosias. Tenho a consciência tranqüi- ceu em 1956, em Santia- esqueço que dia é go del Estero (Argentina) nome de mundo literário. Não tem agen- e o México, vivendo em cidades do inte- encargo de oferecê-la a alguma editora escrevendo, ao invés de me deslocar mi- Saldina”, afirmou Panorama. la, não cometi crime algum. Se alguém e vive em Buenos Aires. tes, nem blog na internet. Aliás, recusa- rior, como Cartagena e Cuernavaca. De- brasileira. Montanaro sorriu: lhares de quilômetros para despejar nos O editor Carlos Mônaco se declarou sin- acha isso, prove: estou pronto a respon- É poeta e músico, tendo em que harmônico ponto iniciarei a volta? se a ter computador, cabeça dura escreve vido à vida errante, não formou o que se — Já contava com isso. Aqui está uma ouvidos alheios uma suposta sabedoria, de ceramente surpreso. “Não tínhamos motivo der por meus atos. O resto é silêncio.” r publicado os livros Rui- numa velha maquina Remington elétrica costuma chamar de “velhos amigos” e ao procuração de Juan Solis Uranga, dando- que não me sinto detentor. O que penso para desconfiar da história que Mauro Saldi- • dos pasajeros (2006) e na casa fragmentos de risos Silencio abierto (2008). de décadas passadas. E quando falei que que parece não teve filhos. Decorrência lhe plenos poderes para representá-lo no da literatura deve estar expresso no que na nos contou, por ocasião do oferecimento RUBEM MAURO MACHADO é escritor, jornalista e Integrante do grupo lite- iria inserir verbete a seu respeito na Wiki- da vida móvel, sofre de um profundo sen- Brasil, inclusive para o efeito de recebi- escrevo, não no que digo em tertúlias. dos originais, ainda que a achássemos de fato tradutor. Autor de livros como A idade da paixão, O pendem da cauda do inverno rário La panaderia, edita r pedia, respondeu prontamente que isso me timento de desenraizamento, que procu- mento de direitos autorais — disse, pu- Minha pessoa nada tem de especial e nin- bizarra; mas a debitamos à excentricidade executante e Lobos. Vive no Rio de Janeiro (RJ). hoje o mundo se parece com você• a revista La escalera. 30 rascunho 119 • MARÇO de 2010

SUJEITO OCULTO ROGÉRIO PEREIRA Dois bules e uma corda

UMA FAMÍLIA EM VOLTA DA MESA E O FORMIGUEIRO A PERDER-SE POR INÚMEROS CAMINHOS

No centro da mesa, dois bules de café; à certeza de que estávamos em outro mundo. ria. Era sempre ele. Gostava de arar a terra, de arroz salgado com leite. Ou polenta com sua volta, uma família a esfacelar-se. Regressamos. E durante alguns dias, não de cuidar do arrozal que abrigava também leite. As panelas saíam direto do fogão a ••• seríamos mais os mesmos. A cidade grande pés de melancia. No descanso, o tio pegava lenha para o banquete: frango, arroz, fei- Da janela, avistávamos a pequena rodo- ainda não conseguira apagar de nossa pele uma melancia pequena, rachava-a numa jão, macarrão, milho cozido, carne de por- viária. O ônibus ia lento por entre as casas todos os rastros de carro de boi que a sulca- pedra e me passava a metade. Cuspia as se- co, quirera. Salames e queijos feitos pela avó de madeira e a rua de paralelepípedos. Uma ram. Cavoucávamos em nós os resquícios mentes na terra para onde nunca mais re- eram devorados em nacos gigantescos. O fina neblina cobria a cidade cujo nome ja- que nos ligavam aos nossos ancestrais. gressaria. Ajudava a avó a fazer vassouras calor de janeiro não arrancava nosso apeti- mais esqueci. Os olhos nebulosos espremi- A avó nos recebia com o avental gordu- de piaçava, a confeccionar os cabos de ma- te. Para acompanhar a pantagruélica refei- am-se na tentativa de ver mais longe. Íamos roso ou com uma colher de polenta nas deira, a limpar a palha. Ou, então, tocava o ção, a avó depositava dois enormes bules enroscados no mesmo banco para economi- mãos. Abraçava-nos a todos com mãos cilindro para amassar o pão ou a maquineta de café no centro da mesa. Aquilo sempre zar na passagem. O longo trajeto não des- gordas, braços fortes e um sotaque italiano de moer a carne para a lingüiça. Nunca o me pareceu muito estranho. Em casa, aos gastava nossos corpos infantis. Dali — a úl- que nunca a abandonou. Aos poucos, o trabalho nos causou tanto prazer. A avó domingos, tomávamos coca-cola gelada. tima parada antes de completar o regresso batalhão de tios se reunia à nossa volta. Os admirava nossa falta de jeito, nossos corpos Na casa da avó, café bem quentinho. Às àquela terra estrangeira — ainda percorrerí- vizinhos também apareciam. Era uma fes- já não se adaptavam mais àqueles afazeres. vezes, penso em pedir um bule de café no amos mais alguns bons quilômetros até a ta para receber os parentes recém-chegados Seríamos, a cada ano, eternos aprendizes. Os restaurante para acompanhar o almoço. casa da avó. Tínhamos os dedos lambuza- da capital. Mãos calosas e dedos reforça- tios riam quando corríamos dos bois, assus- ••• dos da gordura do frango que a mãe fritava dos nos afagavam a pele, matavam a curio- távamos-nos com o relincho estrondoso de Após a morte, a tempestade. Um dia, e jogava num pacote plástico — nossa refei- sidade em busca de descobrir em que ani- um cavalo. A distância, não sabíamos dis- encontraram o avô a balançar numa árvo- ção em direção a um território que a cada mais nos transformamos. Éramos todos já tinguir grandes pepinos maduros e amare- re. Em volta do pescoço, a corda. Deixou viagem transformava-se em esquecimento. muito diferentes. Nossas bocas pronuncia- los de melões. Aquele mundo nos cegava. um bilhete com os motivos. O formigueiro Quando as férias chegavam — após um vam palavras estranhas. Nossos gestos pa- Era escuridão e descoberta. Todos gargalha- começou a perder-se por inúmeros cami- ano de trabalho e muito estudo —, arru- reciam artificiais. Aos poucos, entrávamos vam, inclusive nós, da nossa cegueira urba- nhos. O movimento da sobrevivência. Qua- mávamos as malas. O nosso destino era no movimento daquele universo. Tínhamos na. Estávamos acostumados ao ronco de se todos, inclusive a avó, tomaram o cami- sempre o mesmo: a casa da avó. Para nós, de nos adaptar à ausência de energia elétri- carros e ônibus e a embalagens plásticas. nho de C. — esta inóspita roça cujo con- o outro lado do mundo. Até o dia em que ca e de água encanada — comodidades a Na encosta, sofríamos para catar o fei- creto refuga o talho da enxada. este destino se apagou completamente do que nos acostumamos com rapidez. jão. O trabalho tinha de seguir uma métri- ••• mapa e do nosso alcance. Era-nos impossí- Juntamente conosco, chegavam também ca cadenciada: arrancávamos uma quan- Há pouco tempo, minha avó me abra- vel resgatá-lo. Nunca mais voltaria. A mãe os demais parentes urbanos. Muita gente já tidade de pés e fazíamos um pequeno mon- çou forte e disse-me com o inesquecível so- catava um a um os três filhos, penteava-nos havia sido cuspida da roça e tentava ganhar te, atrás vinha a carroça a catar a nossa taque italiano: “Não lembra mais de mim. os cabelos curtos e partíamos à rodoviária a vida entre tijolos, trabalhos domésticos, produção. Exaustos, o sol a nos cozinhar Já não me visita”. Senti todos os dedos per- com as malas cheias de roupas, expectativa cartão-ponto e um salário no fim do mês. a alma, chegávamos ao plano. Lá, a correndo o meu rosto. As mãos e os braços e saudade. O pai quase nunca nos acompa- Aos poucos, a casa da avó ganhava delicio- trilhadeira — um estranho monstro de ainda guardam alguma força. Está perto do nhava neste retorno. Sempre fomos um ál- sos contornos, o vozerio se infiltrava pelas metal a mastigar grãos — esperava-nos. O fim. No caixão, um dos tios dos banquetes bum de figurinhas incompleto. frestas da madeira, percorria o galpão e se feijão atirado nas entranhas da máquina regados a café esperava o fim do velório. À ••• perdia pelos confins das plantações de mi- saía cheio de ciscos. Em seguida, tínha- sua volta, estávamos quase todos. O pai Havia sempre um rio. Na pinguela, éra- lho, feijão, uva, arroz. Aos poucos, a exci- mos de abanar os grãos e colocá-los em conversava lá fora. Às vezes, o álbum de mos um bando de formigas a equilibrar tação cedia lugar às histórias, aos causos, sacos de estopa. Com o suor a encharcar a figurinhas se completa. Os primos, as tias, malas. Logo em frente, a fumaça do fogão a às lembranças. Arrumávamos as tralhas nos pele, o pó grudava sem piedade alguma em os tios. Todos ali em torno da morte. To- lenha denunciava as lides da casa. Chegáva- quartos e ficávamos à espera dos planos para todos os pedaços do corpo. Todos, direto dos estrangeiros de nós mesmos. Não ha- mos pela manhã com a ansiedade a nos o primeiro dia de férias. para o rio e, em seguida, para o almoço. via assunto, não havia feijão para colher, impulsionar em direção àquele útero que sem Cada tio catava os voluntários predile- A mesa quase não suportava tanta gen- melancia para rachar na pedra, vassoura qualquer dó nos abortara havia tempo. O tos e seguiam para a lavoura. Todo ano era te. Os corpos se roçavam. Nunca estive tão para fazer. Estávamos espalhados pelo mun- cheiro dos animais no pasto fazia-nos ter sempre igual. Já sabia quem eu acompanha- perto deles. Guardo ainda na pele o cheiro do. Cada um em seu pequeno universo.•r

32 rascunho 119 • MARÇO de 2010

QUASE-DIÁRIO AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA Na Coréia, paz e poesia

12.08.2005 — Não levar câmara com filme a revelar, nossas mãos alguns objetos que podem pro- Três ônibus nos levam à Coréia do Norte. porque podem exigir que fique lá para ser re- vocar problemas ao retornarmos à fronteira. Somos 120 poetas, 20 convidados de outros velado, e cobram caro. Recolhem de Marina uma pequena folha de países. São seis horas da manhã. Embarco — Há (poucas) coisas piores que as caras árvore que ia levar como recordação, para representando o Brasil neste Festival de Poe- de um soldado da Coréia do Norte, impassí- botar dentro de um livro. sia pela Paz. Nos avisaram que não se pode vel, olhando nosso passaporte na DMZ. Cara E no longo caminho de volta nos param levar nenhum material escrito para o Norte. amarela como a de um mongol tardio, ne- numa espécie de churrascaria coreana onde sen- Nem o portfólio com biografias dos poetas nhum músculo de seu rosto se move. Já pas- tadas em longas mesas as pessoas assam carnes contendo poemas. Fico sem saber se o poe- sei pelo Brisky Point entre Berlim Oriental e em grelhas que enfumaçam o ambiente. A co- ma que apresentarei Os homens amam a guerra Ocidental, quando havia aquele muro, estive mida coreana não é para principiantes. Muita — em 3 línguas — deve ou não ser retirado na fronteira militarizada entre Israel e o Lí- gordura. Quase acabaram com a poesia italia- da pasta. Idem com uns recortes que tirei do bano, mas essa fronteira aqui é a fronteira onde na, americana e espanhola. Precavi-me. Le Monde sobre música de vanguarda, idem a o novo absurdo que achamos normal se de- Aqui está também o poeta nigeriano ga- matéria do Corriere della Sera sobre Il Postino para com a normalidade de outro mundo nhador do Prêmio Nobel de Literatura (1986) (O carteiro e o poeta — aquela estória do absurdo. Absurdidades diferentes. O guarda [Wole Soyinka]. Conversamos várias vezes. Skármeta sobre Neruda); igualmente essa separa quatro escritores — Robert Pinsk, poe- Houve uma bela sessão/recepção num tem- outra matéria sobre a arte contemporânea hoje ta americano; Antonio Colimas, espanhol; eu plo budista onde ele leu seus poemas. O poe- na China. Pergunto a alguns coreanos o que e Marina [Colasanti]. Temos que esperar, ta americano Pinsky promete me enviar um fazer, mas têm opiniões conflitantes. O po- aguardar que todos passem: as fotos de nos- DVD que apresentou na televisão americana der/temor faz isto: cria insegurança. sos documentos extras (além do passaporte) no qual as pessoas mais variadas, de Clinton Estamos atravessando agora a montanha não estavam de acordo. A de Colimas — ale- a fuzileiros navais e operários, dizem poemas Kumgang de pedras quase brancas. Viagem ga o guarda — tem livros atrás. Neste país, que sabem de cor e que marcaram suas vidas. longuíssima. Chegamos à Zona Desmilitarizada: nem em foto pode entrar livro estrangeiro. Há poetas do Kazaquistão, de Myanmar, DMZ. Claro que esse nome é um paradoxo, um Olhando as fotos dos companheiros, dedu- Mongólia, Sri Lanka, Tailândia, Japão e do oximoro. Cruzamos o histórico “Paralelo 36”, zo de onde veio o motivo de nossa segregação: é Ocidente. Vamos visitar templos e ruínas, com- do qual ouvia falar diariamente nos noticiários que de algum modo nossas fotos tinham um prar coisas eletrônicas. Meu guia coreano tra- da Guerra da Coréia (1950-1953). Há que passar certo sorriso. É proibido sorrir por aqui, deduzo. duziu Iracema e Paulo Coelho. O guia dos a alfândega do lado de cá. Descem todos dos O hotel em que ficamos na Coréia do italianos foi mais radical: traduziu Dante. ônibus, filas, carimbos. A gente de cara com as Norte foi construído pela Coréia do Sul e é Ocorre a cerimônia de encerramento des- cercas de arame farpado. Aliás, as praias que la- pessimamente administrado pelos do Norte. te encontro. No hall do grande auditório, re- deavam a estrada por onde vínhamos já estavam Em frente ao jardim de entrada do hotel uma cebo a informação de que fui escolhido para com essas cercas de arame farpado. inscrição num grande mural traz o nome do fazer uma fala curta de cinco minutos agra- Aqui e ali, pontuando a paisagem e o cami- ditador: KIM II O SOL DO SÉCULO 21. decendo pelos poetas estrangeiros, e que te- nho, soldados do Norte plantados em lugares Há uma longa apresentação à noite, poe- nho que terminar fazendo um brinde em insólitos, com aquele uniforme antigo, ao sol, tas lendo seus textos, a tradução em coreano coreano. Obedeço quase em pânico. com aquele boné de militares de cem anos atrás. num telão. Leio parte de Os homens amam a Nos trouxeram aqui porque acreditam que a Cruzada a Zona Desmilitarizada, chega- guerra. E me lembro que um dos primeiros poesia pode ajudar a fomentar a paz. Com efeito, mos finalmente à alfândega do Norte. E o poemas que escrevi, ainda na adolescência nesta semana, pela primeira vez em 50 anos, o clima é de medo. Haviam nos advertido: sob o influxo de , foi um épico ditador da Coréia do Norte veio à Coréia do Sul — Não levar celular (recolhem todos). sobre a Guerra da Coréia. e fez um gesto simbólico e forte: depositou flores — Não levar livros ou material escrito. No ônibus, voltando, os guias tiram de no túmulo do soldado desconhecido.•r