O Rio De Janeiro Do Esquecido Marques Rebelo: Uma Tentativa De Revisão
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
O Rio de Janeiro do esquecido Marques Rebelo: uma tentativa de revisão ∗ Rafael Lima Alves de Souza Resumo : O presente trabalho constitui uma tentativa de revisão da obra do escritor Marques Rebelo (1907-1973). Hoje esquecido, Rebelo chegou a ser considerado pela crítica de seu tempo como o quarto e último de uma linha sucessória de ficcionistas cariocas, que teria se iniciado com Manuel Antônio de Almeida, passando por Machado de Assis e Lima Barreto. No entanto, tentamos mostrar que sua relação com a tradição só pode ser devidamente compreendida à luz do modernismo e, principalmente, das especificidades desse movimento no ambiente carioca. Eis aqui demarcado o nosso ponto de partida para tentar responder algumas indagações a respeito da relação de Marques Rebelo com o debate em torno da brasilidade, das especificidades da modernização da literatura nessa cidade e dos motivos para o seu esquecimento atual. Palavras-chave: Marques Rebelo; Modernismo; Rio de Janeiro. Abstract : This work is an attempt to review the work of writer Marques Rebelo (1907-1973). Now forgotten, Rebelo came to be regarded by critics of his time as the fourth and last of a line of succession of fiction writers Rio, which would have started with Manuel Antonio de Almeida, passing by Machado de Assis and Lima Barreto. However, we try to show that his relationship with the tradition can only be properly understood in the light of modernism, and especially the specificities of this movement in the environment in Rio. Here we mark our starting point and try to answer some questions about the relation of Marques Rebelo with the debate on the Brazilianness, the aspects of the modernization of the literature in this city and the reasons for their current oblivion. Keywords: Marques Rebelo, Modernism, Rio de Janeiro. A promessa de continuador da tradição. ∗ Doutorando no Programa de História Social da Cultura – PUC-Rio. Esta pesquisa conta com o apoio financeiro da Capes. No início da década de 1930, o lançamento de um livro de contos chamou singularmente a atenção de boa parte da fina crítica literária brasileira. Intitulava-se Oscarina e seu autor era o carioca Marques Rebelo. O conto de abertura, de nome homônimo, já havia sido publicado na revista Feira Ilustrada de São Paulo e Marques Rebelo não era um escritor assim tão desconhecido, uma vez que já havia participado como colaborador em algumas revistas modernistas da década de 1920. De toda forma, em 1931 sua estréia como escritor se tornou uma das mais promissoras. Vejamos o porquê nas palavras do escritor Ribeiro Couto, um dos primeiros a se manifestar sobre o volume . Por minha parte, seja permitido dizer que fui dos primeiros admiradores da sua prosa, rica de observações sobre o cotidiano. O conto intitulado Oscarina (que dá título ao livro a aparecer) saiu há cerca de quatro anos na Feira Literária de São Paulo; desde logo tive a alegria de sentir que, na minha geração, ou antes, na geração seguinte à minha, tão copiosa em poetas, a herança de Machado de Assis, de Raul de Pompéia, de Lima Barreto, não se perdera. Na maneira incisiva e calma, na atitude meio zombeteira, meio piedosa, a posição espiritual de Marques Rebelo é a de um continuador da tradição desses mestres admiráveis da novela urbana, homens para quem a vida citadina de todos os dias existe – a vida humilde, burguesa, monótona, difícil de Toda Gente e de Todos Nós. [...] A sua língua é característica, é verdadeira, está em função do meio carioca. (COUTO, 1975: 145) Para os propósitos iniciais deste trabalho, a crítica acima é bastante cara, pois traz consigo aspectos que sintetizam os pontos de vista a partir dos quais a obra de Rebelo seria lida e valorizada entre seus contemporâneos. Em primeiro lugar, temos facilidade com Marques Rebelo observa e traduz literariamente a vida cotidiana. Em segundo, a tópica da continuidade, pela qual Marques Rebelo era filiado, em espírito, à herança de Machado de Assis, Raul de Pompéia e Lima Barreto, e dava prosseguimento a essa tradição dos “mestres admiráveis da novela urbana”. Em complemento desta, em terceiro lugar, figura sua estreita relação com a cidade do Rio de Janeiro, da vida humilde e monótona do “meio carioca”. Com algumas variações, essa foi a visão que prevaleceu de maneira quase unânime e fez de Marques Rebelo a promessa de ser o quarto em uma linha sucessória iniciada com Manuel Antônio de Almeida, passando por Machado de Assis e Lima Barreto. Mário de Andrade, por exemplo, afirmou que o Rio de Janeiro era dotado de uma “raça de escritores”, cuja tradição, ao que lhe parecia, teria se iniciado com o autor de Memórias de um Sargento de Milícias . E seguindo essa linha de raciocínio, nota que “agora me aparece um moço” como 2 produto dessa linhagem, dessa “verdadeira escola de prosistas cariocas”, na qual ele inclui o próprio Ribeiro Couto, citado acima. Segundo o autor de Paulicéia Desvairada, cada cidade possuía uma atmosfera própria e, nesse sentido, era de se esperar que os escritores a elas ligados trouxessem consigo suas características mais peculiares. Contudo, o caso do Rio de Janeiro era ímpar e ganhava destaque perante as demais cidades pelo “realismo” com que os descendentes de Manuel Antônio de Almeida eram capazes de desvendar as tramas mais cotidianas de sua gente. No limite, era como se esses autores, mais do que realizarem um trabalho artístico, fossem capazes de apreender à vida simples ela mesma (ANDRADE, 1975: 146-147). Vemos assim que o moço Marques Rebelo, que contava com 24 anos de idade, despontava quase como um escritor já pronto e sua carreira literária despertou o mais vivo interesse a partir de então. Suas qualidades como escritor eram tidas com as das mais altas, muito acima da média dos jovens escritores de seu tempo, sobretudo na sua maneira de observar os detalhes da vida cotidiana e de revelá-los de maneira limpa, coesa e sem excessos e, descontadas as críticas a um certo sentimentalismo associado a sua inexperiência, concluía Mário de Andrade que “sem fazer tragédias das tristezas que conta, sem exasperos nem exageros de espécie alguma, Marques Rebelo valoriza os mínimos atos da vida com um dom de interessar que, repito, me parece excepcional”. (IDEM, IDEM) Visto esse seu excepcional “dom de interessar”, sua estreita relação literária com o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e com certa tradição realista de seus melhores “prosistas” – Manuel Antônio de Almeida, Machado e Lima Barreto com mais freqüência citados, mas também podendo se incluir aqui Raul de Pompéia, Ribeiro Couto, João do Rio e até mesmo o José de Alencar – antes de dar prosseguimento às minhas primeiras indagações, paremos um pouco e vejamos a trajetória de Rebelo para tentar compreender melhor como se dava sua relação com aqueles autores da “tradição”. A leitura engessada Marques Rebelo é pseudônimo adotado em 1926 por Edy Dias da Cruz, nascido em 6 de janeiro 1907 no bairro carioca de Vila Isabel. Filho de Manuel Dias da Cruz Neto, químico e professor da Escola Nacional de Química, e D. Rosa Reis Dias da Cruz. Ainda criança, aos 3 quatro anos de idade, mudou-se com a família para Barbacena (MG), onde fez o curso primário, só retornando ao Rio de Janeiro aos 11 anos de idade. De maneira geral, a bibliografia sobre Marques Rebelo costuma identificar já nesse período de sua infância sua paixão pela leitura, sobretudo dos “clássicos” como Buffon, Flaubert, Eça de Queiroz, Balzac, Vitor Hugo, Dumas, Dickens, Anatole, Stendhal, entre outros, os quais encontrava na biblioteca de seu pai. Outra referência literária, essa pouco destacada, seria a Bíblia, ganhada de presente de um pastor protestante amigo da família. Apesar de seu ateísmo manifesto, Rebelo confessaria aos 54 anos, em entrevista: “Nenhum de nós é batizado, a família toda é pagã, mas, aos 11 anos, por obra e graça de um pastor protestante, amigo nosso, eu já conhecia a Bíblia de trás para adiante. Foi um dos livros que mais me influenciaram como escritor”.(REBELO, 2003: 6) A essa primeira incursão na leitura, seguir-se-ia sua “descoberta” dos autores nacionais que viraram referência em sua vida como escritor: Machado de Assis e, sobretudo, Manuel Antônio de Almeida. Eis aqui um dado interessante, pois o próprio Marques Rebelo valoriza bastante e reforça sua identificação com Manuel Antônio de Almeida e, por conseguinte, sua filiação não a qualquer tradição, mas a uma tradição realista vinculada à cidade do Rio de Janeiro. No ano de 1943, Rebelo lançou o livro Vida e Obra de Manuel Antônio de Almeida , resultado de uma conferência encomendada seis anos antes pelo então ministro da saúde e educação Gustavo Capanema, realizada na Escola Nacional de Música, por ocasião da série intitulada “Os Nossos Grandes Mortos”, patrocinada pelo próprio Ministério. Logo de início, Rebelo chamava a atenção para a importância de Manuel Antônio de Almeida para a história da cidade do Rio de Janeiro do século XIX e deixava claro que o seu livro constituía uma tentativa de resgatar do esquecimento a memória desse ilustre “filho” da cidade, cujo nome não aparecia em nenhuma rua, praça ou logradouro da cidade. Para Rebelo, a singularidade do autor de Memórias residia no tratamento realístico dado à cidade por baixo e à contrapelo da corte, que a invadira. Nele, o tempo cronológico do rei não coincide com tempo urbano fluminense. Todos eles [os livros de viajantes estrangeiros sobre o Rio de Janeiro] pairam numa atmosfera de sonho, de febril fantasia, de mataria cenográfica ou de alcovas de cetim 4 escondendo virgens pálidas. Como única exceção temos Manuel Antônio de Almeida, que parece completar a obra de Debret.