Enredos Negros: O Tema Da Abolição Da Escravidão Nos Desfiles Das Escolas De Samba Do Rio De Janeiro Nos Carnavais De 1948 E 1988
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ENREDOS NEGROS: O TEMA DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NOS DESFILES DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO NOS CARNAVAIS DE 1948 E 1988 Ynayan Lyra Souza1 Introdução As escolas de samba, desde suas origens, constituíram-se em importantes espaços de sociabilidades e de agregação para uma parte significativa da população carioca, marcadamente preta, pobre e excluída. A trajetória desses grêmios carnavalescos envolveu resistências e negociações que, por um lado, significou se submeter a certos interesses do Estado (que patrocinava e assegurava a realização dos seus concursos), e por outro, lhes garantiu a aceitação social e a projeção de seus desfiles como um grande espetáculo. As exibições anuais realizadas por essas agremiações permitiram aos seus membros compartilhar narrativas, vivencias e visões de mundo ligadas a cultura afro-brasileira. Nesse sentido, devemos considerar que as escolas de samba são instituições associativas que surgiram em decorrência de um processo de dispersão e fragmentação gerado pela experiência da escravidão. Se a diáspora africana (causada pelo tráfico escravagista de seres humanos para as Américas) dispersou, coube a cultura oriunda dessa diáspora agregar, isto é, (re)criar redes de colaboração e espaços de pertencimento – as escolas de samba se inserem nessa perspectiva de redefinir a cultura e as identidades comunitárias desses grupos negros do Rio de Janeiro (SIMAS, 2020; 46). Quando falamos de enredos que enfocam o negro e a cultura afro-brasileira, somos levados por grande parte das fontes e da bibliografia disponível sobre o carnaval carioca a pensar na Acadêmicos do Salgueiro e no carnavalesco Fernando Pamplona como os grandes artífices da inserção desse tipo de temática nos desfiles das escolas de samba.2 No entanto, essa versão cristalizada que apresenta os anos 1960 como o grande marco de uma “revolução 1 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da UNESP, Campus de Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. E-mail: [email protected] 2 Existe uma bibliografia significativa que compartilha dessa visão. Duas obras foram determinantes para propagar a ideia de uma “revolução salgueirense”, foram elas: “Salgueiro: academia do samba” (1984) de Haroldo Costa e “As escolas de samba do Rio de Janeiro” (1996) de Sérgio Cabral. salgueirense”, tem sido relativizada por pesquisas mais recentes que, sem excluir a importância da escola e do carnavalesco citados, demonstram como essa memória acabou se consolidado em detrimento de outras que a antecedem.3 Partindo das reflexões de Edilene Matos (2001; 125-126), é possível encontrar representações do negro nos desfiles das escolas de samba ainda na década de 1940 – A pesquisadora ressalta, por exemplo, as menções feitas ao poema Navio Negreiro de Castro Alves em exibições do Império Serrano e da Unidos de Vila Isabel no carnaval de 1948. Mattos afirma ainda que o mesmo poema voltou a ser tema de outras duas escolas na década seguinte (Mocidade Independente, em 1956, e Salgueiro, em 1957). O Salgueiro também foi lembrado no trabalho de Monique Augras (1998; 91) pelo samba-enredo “Romaria à Bahia” (1954), no qual pela primeira vez teria aparecido uma expressão de origem africana na letra de uma composição do gênero. Vale dizer que, nas décadas de 1940 e 1950, além das homenagens prestadas à Bahia (que possui forte relação identitária e religiosa com as comunidades negras do Rio de Janeiro), o mote que prevaleceu entre as temáticas negras foi o de retratar o processo de escravidão no período colonial e imperial da História do Brasil. Nesse aspecto, a experiência do cativeiro e o sofrimento dos negros escravizados ganharam espaço nos sambas-enredo. No entanto, como defende Augras: A negritude, e os temas correlatos, por constituírem aspectos de pouco destaque na história oficial, tem escassa presença no período em que os sambistas buscam nos livros escolares as suas fontes de inspiração. [...] o que se encontra no discurso do samba-enredo é a adesão a crítica aos estereótipos vigentes, que fazem do Brasil modelo insuperado de democracia racial. (AUGRAS, 1998; 20). Nos anos 1960, houve a inserção dos enredos que homenageavam personagens negros historicamente relacionados a luta e a resistência contra a escravidão. Nesse aspecto, destacam- se os carnavais desenvolvidos pelo já mencionado Fernando Pamplona no Salgueiro sobre Zumbi dos Palmares (1960), Chica da Silva (1963) e Chico Rei (1964). Se a bibliografia mais 3 Essa abordagem pode ser encontrada nos trabalhos desenvolvidos, por exemplo, pelos historiadores Guilherme Motta (2014) e Danilo Bezerra (2016). recente tem questionado o pioneirismo exclusivo do Salgueiro, algo permanece como uma novidade desses desfiles: o tipo de abordagem do enredo (especialmente, o protagonismo dado a personagens negros) e seu desdobramento plástico, pautado em uma estética reconhecida como “afro”. Já na década seguinte, houve um aumento expressivo e um importante deslocamento temático quanto aos enredos negros, que passaram a enfocar aspectos culturais e religiosos de matriz africana. Nesse sentido, nenhum tema foi mais explorado que o universo do candomblé e das mitologias. Como destaca Fabio Fabato e Luis Antônio Simas, nesse contexto “[...] teremos menos Zumbi e mais Xangô, menos história e mais mito” (2015; 45). Quando se inicia os anos 1980 essas temáticas já estavam bastante consolidadas, sendo momento de novos pontos de reflexão e de tensão no campo das representações do negro e da cultura afro-brasileira, que já haviam se tornado recorrentes na avenida. Nesse aspecto, o carnaval de 1988 é sintomático, pois, nesse ano, a abolição da escravidão completou o seu centenário e os desfiles foram marcados por abordagens críticas, dialogando com questões discutidas pelo próprio movimento negro. Neste trabalho, portanto, pretendemos analisar como a abolição da escravidão foi representada pelas escolas de samba do Rio de Janeiro nos carnavais de 1948 e 1988. O foco foi desenvolver uma análise comparativa dos discursos construídos acerca do referido evento histórico pelos enredos das agremiações carnavalescas cariocas nesses dois contextos distintos. Dessa forma, buscamos identificar e estabelecer diferenciações entre as leituras veiculadas pelos enredos apresentados nos dois concursos a fim de compreender aspectos universais e particulares que envolveram a escolha das temáticas para seus enredos e abordagens adotadas. Para desenvolver este estudo, foram analisadas fontes variadas, como sinopses de enredos, letras de sambas-enredos, além de imagens (fotos e vídeos) de alguns desfiles. A temática negra no carnaval de 1948 Apesar de toda a dificuldade que existe em recuperar e precisar uma trajetória das temáticas negras nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, o carnaval de 1948, realmente, parece ter sido um marco importante nesse processo. No referido ano se comemorou o sexagésimo aniversário da assinatura da lei Áurea (1888), que oficialmente teria extinguido o regime escravista no país, e, um número expressivo de agremiações apresentaram enredos cujos temas estavam diretamente ligados ao universo cultural e histórico da população negra. No quadro abaixo é possível ver uma relação de algumas dessas escolas de samba que levaram para avenida motes que trataram mais diretamente do processo de libertação dos escravizados no Brasil: Quadro 1 – Enredos com temáticas relacionadas ao negro no carnaval de 1948 ESCOLA DE SAMBA ENREDO CLASSIFICAÇÃO Unidos da Tijuca Assinatura da Lei Áurea 2º lugar Portela Exaltação à redentora 3º lugar Paz e Amor A lei do ventre livre 6º lugar Unidos da Capela Treze de maio 15º lugar Cada ano sai melhor Exaltação a Princesa Isabel 20º lugar Fonte: Quadro elaborado com informações retiradas do site Galeria do Samba4 Como é possível observar no Quadro 1, cinco agremiações versaram tiveram sobre o processo de abolição da escravidão. Alguns os enredos fazem menção a “Lei Áurea” ou a própria Princesa Isabel (responsável por assinar tal lei). Os títulos de tais enredos são simples e diretos, sugerem que o conteúdo dos seus desfiles seguiu numa linha de homenagem, o que podemos deduzir, por exemplo, pelo uso do termo “exaltação” nos enredos da Portela e da “Cada ano sai melhor”. Apesar da escassez de fontes sobre os carnavais do período, encontramos duas letras de sambas-enredos que foram apresentados no carnaval do referido ano e que nos permite observar algumas questões quanto a abordagem do tema – o primeiro samba é o da Portela (de autoria do compositor Manacéa José de Andrade) e, o segundo, é da Unidos da Capela (assinado por Inha): Foi a Princesa Isabel/ Que nos deu a liberdade/ Libertando aqueles que sofriam/Foi para ela uma glória/ Deixar o nome na história/ Do Brasil.../ Somente ela quem via/ Como o preto sofria, noite e dia/ Hoje no mundo,/Preto tem o seu valor profundo (PORTELA, 1948). A redentora do Brasil/ O povo jamais esquecerá/ Foi a princesa Isabel/ Que no dia 13 de maio/ Teve a honra de assinar/ A lei Áurea concedendo a 4 <http://www.galeriadosamba.com.br/carnaval/1948/resultado/>. Acesso em: 19 ago. 2019. abolição/ Dando liberdade aos pretos/ Que residiam nesta nação/ Liberdade, liberdade/ Abre as asas sobre nós/ Nas lutas da mocidade/ Já ouvimos a tua voz (UNIDOS DA CAPELA, 1948). Como é possível observar nos versos acima, ambos os sambas apresentam a princesa Isabel como a heroína redentora, aquela que pôs fim a escravidão. Nesse sentido, a abolição é entendida como um ato de benevolência da princesa branca que supostamente “enxergou” o sofrimento dos negros e lhes concedeu a liberdade. Aos negros coube apenas o papel passivo de serem gratos e jamais esquecer do ato bondoso da princesa. Os versos do samba da Portela que dizem que “Foi a Princesa Isabel/ Que nos deu a liberdade” confirmam essa visão, por outro lado, é possível notar que o uso da primeira pessoa do plural (nos) revela certa tentativa de causar identificação dos membros da escola com a ancestralidade negra representada por aqueles que no passado viveram sobre o julgo da escravidão.