Projeto Lo Schiavo
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PROJETO LO SCHIAVO PROJETO LO SCHIAVO As intermitências da criação DENISE SCANDAROLLI Université de Paris IV (Paris-Sorbonne) [email protected] REVISTA MÚSICA | v. 13 | no 1, p. 155-186, ago. 2012 | 155 DENISE SCANDAROLLI RESUMO A importância da obra de Carlos Gomes na história da música e das artes no Brasil já é conhecida, por sua presença significativa nas mudanças estéticas e políticas do país. Em vista disso, este texto busca acompanhar o processo de criação da ópera Lo Schiavo a partir da correspondência do compositor e sua relação com a crítica musical. Os caminhos seguidos por Carlos Gomes na estruturação de suas músicas começam por desconstruir algumas de suas imagens fixadas pela historiografia e se abrem para uma nova perspectiva sobre como o processo de concepção da obra era pensada pelo compositor. palavras-chave: Carlos Gomes, Ópera, História do Brasil, Lo Schiavo 156 | REVISTA MÚSICA | v. 13 | no 1, p. 155-186, ago. 2012 PROJETO LO SCHIAVO LO SCHIAVO PROJECT: THE CREATION’S INTERMITTENCES ABSTRACT We already know the importance of Carlos Gomes’ work in the history of music and the arts in Brazil, due to his significant presence in the aesthetic and political changes in this country. Thus, this text follows the composition process of the opera Lo Schiavo departing from the composer’s correspondences and his relationships with the music critics of his time. The paths followed by Carlos Gomes in structuring his music are beginning to deconstruct some of the prejudices set by history and open a new perspective on how the conception of the work thought was conceived by the composer. keywords: Carlos Gomes, Opera, History of Brazil, Lo Schiavo REVISTA MÚSICA | v. 13 | no 1, p. 155-186, ago. 2012 | 157 DENISE SCANDAROLLI EXPERIÊNCIAS COMO COMPOSITOR ão é difícil reconhecer o como a genealogia do mito “Carlos nome Carlos Gomes dentre Gomes”, o trabalho com suas com- os artistas brasileiros. So- posições, uma visão crítica sobre sua Nbretudo, quando se fala em ópera no trajetória, entre vários outros cami- Brasil, ou ópera brasileira, o primeiro nhos que podem ser traçados a partir nome e muitas vezes o único que sur- da quebra do apego à sua memória. ge de imediato é o dele. Ainda hoje, É indiscutível a importância de Carlos Gomes aparece como ícone e Carlos Gomes como compositor e maior representante do estilo operís- de suas composições para a história tico no Brasil, imagem que foi refor- do teatro brasileiro. O começo de çada pela difusão do tema principal sua trajetória como maestro “operis- da abertura de Il Guarany. Dessa for- ta” se dá com a sua participação no ma, a relação imediata entre Brasil e projeto de Ópera Nacional, o qual ópera é Carlos Gomes e Il Guarany, teve início em 1860 e se desenrolou mesmo o Brasil tendo outros vários por quase uma década. Dentro des- grandes compositores de ópera e se programa que tinha como meta a Carlos Gomes tendo composto mui- formação de artistas para a produção to mais títulos. de óperas nacionais, caracterizadas A permanência rígida e imutável por ter o texto em português, Carlos dessa personagem na história e na Gomes estreou duas óperas: A Noite memória brasileira a torna uma ines- do Castelo (1861) e Joana de Flandres gotável fonte para estudos diversos, (1863). 158 | REVISTA MÚSICA | v. 13 | no 1, p. 155-186, ago. 2012 PROJETO LO SCHIAVO Com o reconhecimento conquis- do movimento que ele próprio esta- tado com esses trabalhos, o império va definindo. Na Lettera sul Roman- brasileiro ofereceu a Carlos Gomes ticismo, de 1823, Manzoni diz que o um financiamento para seus estudos escritor deve tomar “l’utile per scopo de aperfeiçoamento na Itália. É assim il vero per soggetto, l’interessante per que segue nosso “herói” do “Novo” mezzo” (KIMBELL, s.d, p. 158). para o “Velho Mundo”. Carlos Gomes estreou sua primei- Na Itália do pós Risorgimento, ra obra num período de transição da onde as óperas de Verdi eram mais ópera italiana do fim do romantismo que entretenimento e tinham como e de crescente influência das formas público diversas classes sociais, Car- que vinham sendo desenvolvidas tan- los Gomes se deparou com um uni- to na Alemanha quanto na França. A verso de grandes produções e em estréia de Il Guarany (1870) represen- grandes quantidades, cuja estética tou para o Brasil, pela ótica dos dile- e forma tinham aplicação prática tantes, o seu próprio triunfo no teatro dentro de uma escola “romântica” Alla Scala, em Milão. Para a Europa, italiana que lutava para se distin- essa ópera é mais um exemplo do su- guir das outras escolas operísticas cesso da idéia de ambientação texto que tomavam cada vez mais fôlego. – música, pela qual a ópera francesa Em vista das manifestações do Ro- tanto se interessava e a Itália come- mantismo norte-europeu, que eram çava a se render. Il Guarany era uma cheias de indulgências para com os história com índios em uma terra jogos da fantasia, enfatizando o culto exótica, ornamentada de composição do mundo subjetivo do “eu interior”, musical com temas que faziam refe- sempre desejando atingir algo de dis- rência a esse ambiente indígena, or- tante ou transcendental, atraídas por questrada com uma grande orquestra tudo o que é estranho e sobrenatu- de extensa massa sonora, com linhas ral, a mais famosa definição italiana vocais potentes e dramáticas, mas do Romantismo pode parecer muito cantada em italiano, é claro. insólita. Quem a formulou foi Ales- Os discursos filosóficos e artísti- sandro Manzoni, poeta e romancista cos do período estão sempre presen- milanês, um dos maiores expoentes tes no corpo da ópera. No entanto, o REVISTA MÚSICA | v. 13 | no 1, p. 155-186, ago. 2012 | 159 DENISE SCANDAROLLI Peri1 musical de Carlos Gomes não Mas, depois de colocar em cena, parece ser pautado na exemplificação tanto na Europa quanto no Brasil, Il do “Bom Selvagem” Rousseauniano, Guarany e as óperas que a seguiram, mas de certa forma o exotismo do Fosca (1873), Salvador Rosa (1874) e “Bom Selvagem” era um dos temas Maria Tudor (1879), Carlos Gomes já que atraía o interesse do público na entendia muito mais do que teorias época, e um dos fatores do sucesso sobre estrutura estética e dramática de Aida, de Verdi, de L’Africaine, de da ópera, e vislumbrava não só aplau- Meyerbeer, ou de La Pérle du Brésil, sos, mas sim o interesse das editoras de David. e o sucesso financeiro de suas obras. Seguindo o discurso de Rousseau, Além de arte, a música era comércio que mesmo com mais de um século e estratégia de ganhos. de diferença ainda se fazia presente na ópera francesa e também na italia- O GUARANY MELHORADO na da metade do século XIX, ele ca- racteriza a ópera como um espetáculo Depois de Il Guarany e Fosca, o gran- dramático e lírico onde há o esforço de retorno de Carlos Gomes ao Brasil de reunir todos os charmes das Belas com uma nova ópera foi para estrear Artes, na representação de uma ação Salvador Rosa, colocada em cena no dramática, a qual provoca sensações Rio de Janeiro, em 17 de agosto de agradáveis e faz nascer o interesse e 1880. Mesmo com a experiência que a ilusão (ROUSSEAU, 1996, Verbete: ele adquiriu nos teatros italianos de ópera). É a ilusão que está presente no que o julgamento de valor de uma “modismo” do período, a adaptação ópera ultrapassa os limites da qua- das vestimentas, cenários e música da lidade da composição e depende da melhor forma possível ao texto, para forma como é executada pelos artis- criar uma ilusão na qual o espectador tas em palco, ele chega ao Brasil com se transporta para o universo que se exigências bem menos pontuais do pretende representar na ópera. que as realizadas para a representa- 1 Peri é a personagem principal da ópera Il Guarany, é um índio da tribo Guarany e é representado por um tenor. 160 | REVISTA MÚSICA | v. 13 | no 1, p. 155-186, ago. 2012 PROJETO LO SCHIAVO ção da ópera na Itália. Em busca de em fazer representações de trechos um novo sucesso de crítica e público, de suas composições pelos teatros na estreia de Salvador Rosa, na Euro- brasileiros, como forma de difusão pa, ele pediu que fossem levados em de seu trabalho. E se empenhou em consideração os artistas que iriam fa- fazer as modificações de suas óperas zer parte do espetáculo, “esta é uma anteriores, focando a renovação de parte importantíssima e é necessário contratos como o da Fosca, firmado um soprano leve de muito talento e com Carlo d’Ormeville, e de negocia- desembaraço em cena. Ficaria con- ções para apresentações de seus tra- tente com a Valleria2, aquela que balhos na Europa. cantou o Paggio de Baile de Máscaras Em 1883, surge um novo tema no Scala”3. Outra exigência referente para uma ópera, o qual Carlos Go- aos artistas foi encontrar um baríto- mes classificou como “um Guarany no para o papel de Masaniello, mas com um drama mais interessante”, era necessário ser um bom artista cujo tema foi definido por ele como italiano, pois o papel pedia uma boa “inspirado de um lado em D a n i c h e ff pronúncia por ser composto de reci- e de outro em um episódio da escra- tativos importantes, dessa forma, ele vidão brasileira”5. alegava não achar “conveniente con- Les Danicheff, citado por Carlos fiar a parte de um personagem tão Gomes, é um drama em cinco atos, conhecido como Masaniello a um de Pierre Newsky, pseudônimo de artista que não pronuncie bem e car- Alexandre Dumas Filho.