A Construção Da “Brasilidade” Na Ópera Lo Schiavo (O Escravo), De Carlos Gomes
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A CONSTRUÇÃO DA “BRASILIDADE” NA ÓPERA LO SCHIAVO (O ESCRAVO), DE CARLOS GOMES Ciro Flamarion Cardoso* Resumo: empregando como método a Semiótica Textual em sua vertente narratológica, o artigo procura esclarecer por que meios, sendo a música operática de Carlos Gomes essencialmente italiana, o autor brasileiro mesmo assim constrói em sua ópera Lo schiavo, cujo libreto é de Rodolfo Paravicini, uma forte noção de brasilidade. O exame seletivo dos elementos de significação abordará a descrição dos cenários tal como aparece na partitura da ópera, a atorialização e a música. Abstract: this text, which employs methods created by textual semiotics (narratology), aims at explaining by which means, the operatic music written by Carlos Gomes being undoubtedly mostly Italian in character, the composer, born in Brazil, was successful even so in constructing in his opera Lo schiavo (libretto by Rodolfo Paravicini) a strong notion of it being “Brazilian”. A selective analysis of pertinent elements of signification includes the description of the sets as it appears in the published opera, actorialization and music. 1. O tema Este artigo procederá a uma análise da ópera Lo schiavo, de Carlos Gomes, com uma única finalidade: procurar esclarecer, semioticamente, por meio da aplicação de dois métodos específicos “ a análise atorial e a leitura isotópica “ às diferentes matérias significantes intervenientes no gênero operístico (visuais e auditivas), de que modo se tentou construir determina- * Ciro Flamarion Cardoso é professor Doutor Titular de História na Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antigüidade. (CEIA) Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. 113 CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera... da concepção de “brasilidade” na obra em questão. Outrossim, tratar-se-á de enfoque parcial, mediante exemplos, não de uma leitura exaustiva. A aná- lise será mais completa, porém, no relativo a um aspecto da narratologia: a atorialização. 2. Questões de método A possibilidade de uma semiótica narrativa depende da noção de que existem estruturas narrativas. O ponto de partida é a distinção, nessa área de estudos, entre um nível aparente das narrações ou relatos, em que as significações dão a impressão de dependerem da linguagem específica em- pregada (línguas naturais faladas ou escritas, cinema, pintura figurativa, história em quadrinhos etc.), e um nível imanente, tronco estrutural mais profundo, cuja consideração faria perceber uma “narratividade” comum e mais geral que, ao ser especificada, consistiria exatamente nas tais estrutu- ras narrativas. Em outras palavras, as estruturas narrativas são logicamente anteriores às suas manifestações específicas nos relatos concretos. A signi- ficação das narrativas deve ser buscada num nível profundo que é prévio aos modos concretos de sua manifestação. Isto permitiu a constituição de uma gramática narrativa, ou teoria da narratividade, como parte da teoria semiótica geral. O termo relato (ou narrativa) se aplica a uma forma específica de discurso, caracterizado por ser ao mesmo tempo figurativo (ou seja, por comportar personagens que levam a cabo ações) e inscrito em coordenadas espaciais e temporais (predominando na realidade a dimensão temporal). A “narratividade” - o que há de comum a todas as narrativas consideradas superficialmente - seria uma organização discursiva imanente a cada narrati- va (CARDOSO, 1997: passim). Em narratologia, isto é, a parte da Semiótica textual que trata das narrativas, história é o significado, o conteúdo narrativo, aquilo que é con- tado, o argumento em suas linhas mais gerais. A diegese é algo mais englobante do que a história: trata-se desta mais o seu entorno, a história mais todo o universo ficcional sem o qual ela não se desenvolveria. Prefere- se falar de diegese e, não, de história ou enredo; em especial, o adjetivo diegético é empregado com freqüência (tempo diegético, espaço diegético, música diegética ou extradiegética, etc.). A diegese concerne a parte do rela- to que não é específica em relação ao meio: no caso do cinema, por exemplo, aquilo que a sinopse, o roteiro e o filme têm em comum, ou seja, um conteúdo 114 Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera... independente do meio que o expressa. Se a diegese, no contexto de um relato, é o conteúdo, existe por outro lado a forma de expressão, esta total- mente dependente do meio em que a obra se expressa. No relato, conteúdo e expressão se encontram e se associam. Relato é o enunciado visto em sua materialidade, o texto narrativo que se encarrega daquilo que vai ser narrado. No fundo, a história é algo abstrato: uma história, ao ser contada, torna-se relato – que pode ser romance, filme, história em quadrinhos, etc. Assim, uma “mesma” história ou conteúdo diegético resultará em relatos diferentes entre si conforme seja narrada em romance, filmada, composta como ópera ou balé, etc. A narração é o ato narrativo produtor e, também, o conjunto da situação real ou fictícia em que ele ocorre. Vincula-se à relação entre enunci- ado e enunciação tal como o relato permite que estes sejam percebidos ou reconstituídos em função dos vestígios, no texto, das configurações enunciativas. Semioticamente falando, é no interior do próprio texto que se acham os índices de sua enunciação: a narratologia não tem a ver, em forma direta, com a noção de autor ou com outro agente enunciador ou narrador antropomórfico qualquer que fosse hipoteticamente responsável pela pro- dução do texto (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992: 39-41). Um termo que merece explicação especial é atorialização. Desig- na o processo que institui os atores numa narrativa “pela reunião dos dife- rentes elementos dos componentes semântico e sintáxico”, que podem ser analisados separadamente. Neste artigo, o interesse maior recairá no percur- so temático semanticamente considerado, mais do que no exame da sintaxe (GREIMAS; COURTÉS, s.d.: 34-35). Na terminologia semiótica de Algirdas Greimas e Joseph Courtés distinguem-se três níveis semânticos do discurso: o figurativo, o temático e o axiológico. Comecemos por examinar a oposição complementar entre /figura- tivo/ e /temático/. O figurativo é um significado passível de ser correlacionado em forma direta a um dos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e pala- dar): ou seja, que pareça ligar-se à percepção do mundo real, do mundo exterior ao texto. Assim, por exemplo, o /amor/ é temático; mas os gestos concretos através dos quais o amor se expressa (por exemplo: carícias, bei- jos, abraços, escrever missivas amorosas, etc.) são figurativos. O figurativo pode ser icônico ou abstrato. O figurativo icônico se caracteriza por uma ilusão referencial, isto é, por dar a impressão de remeter ao mundo real (quando, no texto, o que temos de fato são somente palavras, não o mundo real). O figurativo abstrato retém unicamente um número míni- mo de traços que pareçam ter como referência a “realidade”. Se quisermos Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. 115 CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera... uma analogia no campo das representações visuais, a foto de um político é do domínio do icônico; sua caricatura, do domínio do abstrato. A oposição figurativo icônico/figurativo abstrato é gradual, e não, categorial: admite posições intermediárias. Tenho notado, nas pesquisas concretas, que em muitos casos o historiador pode trabalhar com a oposição figurativo/temático deixando totalmente de lado a oposição figurativo icônico/figurativo abstrato. Falta enfocar o nível semântico axiológico, que tem a ver com algum sistema de valores – éticos, estéticos, religiosos ou outros quaisquer que os conteúdos dos textos manifestem. Em relatos populares, por exem- plo, trata-se amiúde de valores éticos em oposição: bem/mal, bom/malvado. Euforiza-se, então, a dupla bom comportamento/bom tratamento, disforizando-se mau comportamento/mau tratamento: é assim que, nos con- tos de fadas, os bons são finalmente recompensados e os maus, castigados. Num sistema axiológico religioso como o cristão, euforizar-se-ia a “santida- de” e se disforizaria o “pecado”. Num sistema estético, o “belo” é que seria euforizado, o “feio”, disforizado – e assim por diante (COURTÉS, 1991: 193- 198). Em Lo schiavo, ópera com libreto de Rodolfo Paravicini e música de Antônio Carlos Gomes, o sistema de valores é nacionalista: aquilo que se constrói como “brasileiro” é euforizado, o que aparece como “estrangeiro” se disforiza. Passando à questão da isotopia, começarei por reproduzir a defi- nição desta categoria semiótica por Algirdas Greimas: Por isotopia, entendemos um conjunto redundante de categorias semânticas que torna possível a leitura uniforme do relato, tal como resulta das leituras parciais dos enunciados e da resolução de suas ambigüidades, guiada pela busca de uma leitura única. (GREIMAS, 1970: 188). É possível, com apoio nas categorias semânticas isotópicas, a passagem da micro-semântica (entendida como a significação presente em cada frase ou enunciado que se tomar isoladamente) à macro-semântica (a significação do discurso completo, considerado no nível transfrasal). Seriam categorias semânticas isotópicas aqueles elementos de significação recor- rentes, redundantes, repetitivos: os quais, por tais características, são subjacentes à coerência textual. O método de leitura isotópica, para conseguir aquela transição da micro para a macro-semântica, consta de três etapas: