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A CONSTRUÇÃO DA “BRASILIDADE” NA ÓPERA (O ESCRAVO), DE CARLOS GOMES

Ciro Flamarion Cardoso*

Resumo: empregando como método a Semiótica Textual em sua vertente narratológica, o artigo procura esclarecer por que meios, sendo a música operática de Carlos Gomes essencialmente italiana, o autor brasileiro mesmo assim constrói em sua ópera Lo schiavo, cujo libreto é de Rodolfo Paravicini, uma forte noção de brasilidade. O exame seletivo dos elementos de significação abordará a descrição dos cenários tal como aparece na partitura da ópera, a atorialização e a música. Abstract: this text, which employs methods created by textual semiotics (narratology), aims at explaining by which means, the operatic music written by Carlos Gomes being undoubtedly mostly Italian in character, the composer, born in , was successful even so in constructing in his Lo schiavo (libretto by Rodolfo Paravicini) a strong notion of it being “Brazilian”. A selective analysis of pertinent elements of signification includes the description of the sets as it appears in the published opera, actorialization and music.

1. O tema

Este artigo procederá a uma análise da ópera Lo schiavo, de Carlos Gomes, com uma única finalidade: procurar esclarecer, semioticamente, por meio da aplicação de dois métodos específicos “ a análise atorial e a leitura isotópica “ às diferentes matérias significantes intervenientes no gênero operístico (visuais e auditivas), de que modo se tentou construir determina-

* Ciro Flamarion Cardoso é professor Doutor Titular de História na Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antigüidade. (CEIA)

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da concepção de “brasilidade” na obra em questão. Outrossim, tratar-se-á de enfoque parcial, mediante exemplos, não de uma leitura exaustiva. A aná- lise será mais completa, porém, no relativo a um aspecto da narratologia: a atorialização.

2. Questões de método

A possibilidade de uma semiótica narrativa depende da noção de que existem estruturas narrativas. O ponto de partida é a distinção, nessa área de estudos, entre um nível aparente das narrações ou relatos, em que as significações dão a impressão de dependerem da linguagem específica em- pregada (línguas naturais faladas ou escritas, cinema, pintura figurativa, história em quadrinhos etc.), e um nível imanente, tronco estrutural mais profundo, cuja consideração faria perceber uma “narratividade” comum e mais geral que, ao ser especificada, consistiria exatamente nas tais estrutu- ras narrativas. Em outras palavras, as estruturas narrativas são logicamente anteriores às suas manifestações específicas nos relatos concretos. A signi- ficação das narrativas deve ser buscada num nível profundo que é prévio aos modos concretos de sua manifestação. Isto permitiu a constituição de uma gramática narrativa, ou teoria da narratividade, como parte da teoria semiótica geral. O termo relato (ou narrativa) se aplica a uma forma específica de discurso, caracterizado por ser ao mesmo tempo figurativo (ou seja, por comportar personagens que levam a cabo ações) e inscrito em coordenadas espaciais e temporais (predominando na realidade a dimensão temporal). A “narratividade” - o que há de comum a todas as narrativas consideradas superficialmente - seria uma organização discursiva imanente a cada narrati- va (CARDOSO, 1997: passim). Em narratologia, isto é, a parte da Semiótica textual que trata das narrativas, história é o significado, o conteúdo narrativo, aquilo que é con- tado, o argumento em suas linhas mais gerais. A diegese é algo mais englobante do que a história: trata-se desta mais o seu entorno, a história mais todo o universo ficcional sem o qual ela não se desenvolveria. Prefere- se falar de diegese e, não, de história ou enredo; em especial, o adjetivo diegético é empregado com freqüência (tempo diegético, espaço diegético, música diegética ou extradiegética, etc.). A diegese concerne a parte do rela- to que não é específica em relação ao meio: no caso do cinema, por exemplo, aquilo que a sinopse, o roteiro e o filme têm em comum, ou seja, um conteúdo

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independente do meio que o expressa. Se a diegese, no contexto de um relato, é o conteúdo, existe por outro lado a forma de expressão, esta total- mente dependente do meio em que a obra se expressa. No relato, conteúdo e expressão se encontram e se associam. Relato é o enunciado visto em sua materialidade, o texto narrativo que se encarrega daquilo que vai ser narrado. No fundo, a história é algo abstrato: uma história, ao ser contada, torna-se relato – que pode ser romance, filme, história em quadrinhos, etc. Assim, uma “mesma” história ou conteúdo diegético resultará em relatos diferentes entre si conforme seja narrada em romance, filmada, composta como ópera ou balé, etc. A narração é o ato narrativo produtor e, também, o conjunto da situação real ou fictícia em que ele ocorre. Vincula-se à relação entre enunci- ado e enunciação tal como o relato permite que estes sejam percebidos ou reconstituídos em função dos vestígios, no texto, das configurações enunciativas. Semioticamente falando, é no interior do próprio texto que se acham os índices de sua enunciação: a narratologia não tem a ver, em forma direta, com a noção de autor ou com outro agente enunciador ou narrador antropomórfico qualquer que fosse hipoteticamente responsável pela pro- dução do texto (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992: 39-41). Um termo que merece explicação especial é atorialização. Desig- na o processo que institui os atores numa narrativa “pela reunião dos dife- rentes elementos dos componentes semântico e sintáxico”, que podem ser analisados separadamente. Neste artigo, o interesse maior recairá no percur- so temático semanticamente considerado, mais do que no exame da sintaxe (GREIMAS; COURTÉS, s.d.: 34-35). Na terminologia semiótica de Algirdas Greimas e Joseph Courtés distinguem-se três níveis semânticos do discurso: o figurativo, o temático e o axiológico. Comecemos por examinar a oposição complementar entre /figura- tivo/ e /temático/. O figurativo é um significado passível de ser correlacionado em forma direta a um dos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e pala- dar): ou seja, que pareça ligar-se à percepção do mundo real, do mundo exterior ao texto. Assim, por exemplo, o /amor/ é temático; mas os gestos concretos através dos quais o amor se expressa (por exemplo: carícias, bei- jos, abraços, escrever missivas amorosas, etc.) são figurativos. O figurativo pode ser icônico ou abstrato. O figurativo icônico se caracteriza por uma ilusão referencial, isto é, por dar a impressão de remeter ao mundo real (quando, no texto, o que temos de fato são somente palavras, não o mundo real). O figurativo abstrato retém unicamente um número míni- mo de traços que pareçam ter como referência a “realidade”. Se quisermos

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uma analogia no campo das representações visuais, a foto de um político é do domínio do icônico; sua caricatura, do domínio do abstrato. A oposição figurativo icônico/figurativo abstrato é gradual, e não, categorial: admite posições intermediárias. Tenho notado, nas pesquisas concretas, que em muitos casos o historiador pode trabalhar com a oposição figurativo/temático deixando totalmente de lado a oposição figurativo icônico/figurativo abstrato. Falta enfocar o nível semântico axiológico, que tem a ver com algum sistema de valores – éticos, estéticos, religiosos ou outros quaisquer que os conteúdos dos textos manifestem. Em relatos populares, por exem- plo, trata-se amiúde de valores éticos em oposição: bem/mal, bom/malvado. Euforiza-se, então, a dupla bom comportamento/bom tratamento, disforizando-se mau comportamento/mau tratamento: é assim que, nos con- tos de fadas, os bons são finalmente recompensados e os maus, castigados. Num sistema axiológico religioso como o cristão, euforizar-se-ia a “santida- de” e se disforizaria o “pecado”. Num sistema estético, o “belo” é que seria euforizado, o “feio”, disforizado – e assim por diante (COURTÉS, 1991: 193- 198). Em Lo schiavo, ópera com libreto de Rodolfo Paravicini e música de Antônio Carlos Gomes, o sistema de valores é nacionalista: aquilo que se constrói como “brasileiro” é euforizado, o que aparece como “estrangeiro” se disforiza. Passando à questão da isotopia, começarei por reproduzir a defi- nição desta categoria semiótica por Algirdas Greimas:

Por isotopia, entendemos um conjunto redundante de categorias semânticas que torna possível a leitura uniforme do relato, tal como resulta das leituras parciais dos enunciados e da resolução de suas ambigüidades, guiada pela busca de uma leitura única. (GREIMAS, 1970: 188).

É possível, com apoio nas categorias semânticas isotópicas, a passagem da micro-semântica (entendida como a significação presente em cada frase ou enunciado que se tomar isoladamente) à macro-semântica (a significação do discurso completo, considerado no nível transfrasal). Seriam categorias semânticas isotópicas aqueles elementos de significação recor- rentes, redundantes, repetitivos: os quais, por tais características, são subjacentes à coerência textual. O método de leitura isotópica, para conseguir aquela transição da micro para a macro-semântica, consta de três etapas: 1) num primeiro mo- mento, o exame comparativo das partes componentes de um texto – frases,

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enunciados – descobre suas categorias sêmicas (de significação) subjacentes; 2) em seguida, isolam-se dentre elas aquelas categorias sêmicas que se repetem, que são recorrentes no texto: são estas, precisamente, as categorias isotópicas; 3) por fim, tais categorias isotópicas são distribuídas pelos três níveis semânticos de que falei anteriormente (figurativo, temático e axiológico). Umberto Eco mostrou, com razão, que seria preciso distinguir a isotopia discursiva da isotopia semântica, além de outras distinções no interior de cada tipo de isotopia (ECO, 1979: 92-101). Mas do que estou falando agora é, unica e exclusivamente, a isotopia semântica. Aceitando críticas como as de Eco ao menos parcialmente, Greimas e Courtés preferiram distinguir a isotopia gramatical (ou sintáxica, no sentido semiótico do termo) da isotopia semântica: de novo, só a segunda me interessa aqui; e ela não passa de um crivo de leitura, do ponto de vista do enunciatário (COURTÉS, 1991: 193-198). *** Como em todas as semióticas incipientes – e ainda é este o caso da semiótica do espetáculo –, o progresso da análise só pode ocorrer medi- ante o avanço da descrição dos elementos significantes intervenientes. Uma tentativa neste sentido foi a de Tadeusz Kowzan, em artigo pioneiro. Repro- duzimos adiante, em forma de quadro, a sua tentativa de descrição das maté- rias significantes que interessam às artes do espetáculo, quando pensadas em análises de tipo semântico ou semiótico. A totalidade dos elementos do quadro baseado em Kowzan é aplicável à ópera. A descrição a seguir, que tenta realizar tal aplicação, é de minha feitura. Nela, faz sentido, analiticamente, separar o espaço da concep- ção daquele da execução:

Concepção

- Libreto da ópera: trata-se de seu enredo ou história, dividido em atos e cenas, como no caso do balé já prevendo às vezes os números musicais. O libreto de uma ópera se parece a uma peça de teatro em versos (ou parcialmente em prosa – os recitativos por exemplo – e parcialmente em verso). O libretista é habitualmente um homem de Letras com experiência no gênero operístico, mas às vezes o compositor atua como libretista (como fez Richard Wagner sistematicamente), havendo também ocasiões em que com- põe à base de um texto já existente (seja um libreto usado no passado por

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outro compositor, como quando Mozart escreveu a música de La clemenza di Tito à base de um antigo libreto do italiano Metastasio, em 1791, seja de obra de outro tipo, como ao compor Strauss a sua Salome usando uma tradução da peça de Oscar Wilde para alemão). - Música: elaborada por um compositor de música erudita, o qual por vezes trabalha em estreita colaboração com o libretista (como ocorria com Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal), outras vezes impondo-lhe o que deseja (como costumavam fazer Giuseppe Verdi e Giacomo Puccini). - Direção de cena: esta função às vezes é assumida por um dire- tor teatral ou, em tempos recentes, por diretores de cinema (assim, Ken Russell dirigiu uma estranha versão do Fausto de Gounod para a Ópera de Viena e Andrei Tarkovsky, uma impressionante versão de Boris Godunov, ópera de Modest Mussorgsky). - Cenário(s) e guarda-roupa: como no caso do balé, o artista ou os artistas que concebe(m) estes elementos plásticos da ópera pode(m) (ou não) trabalhar em estreita colaboração com o diretor de cena e o produtor (quando este último não coincide com o primeiro). - Elementos adicionais na concepção do espetáculo: ilumina- ção, maquiagem, penteado, adereços, etc. Na atualidade, a iluminação costu- ma ser controlada por computador. Neste ponto, a ópera tem exigências semelhantes às de uma peça de teatro das mais sofisticadas, ou às do balé narrativo. - Coreografia: muitas óperas incluem um ou mais balés, o que implica a presença de um coreógrafo na concepção do espetáculo a ser montado.

Execução

Por mais que vários dos elementos acima exijam execução (por exemplo, quem concebe um cenário e quem o pinta podem ser pessoas dife- rentes, o mesmo quanto a roupas e adereços, etc.), estaremos falando agora da execução em seu âmago músical e dramático: - Maestro: decide a interpretação musical a ser dada à partitura da ópera, cortes eventuais nos números musicais da mesma, etc. No passado, como hoje é mais comum nos balés, introduzia enxertos tomados de outras obras do mesmo compositor ou até mesmo de compositores diferentes; nas apresentações, dirige a orquestra, com atenção às necessidades e movimen- tos dos cantores-atores, bem como à concepção do diretor de cena, que às vezes interfere até certo ponto na parte musical.

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- Orquestra: os músicos tocam a partitura da ópera, dirigidos pelo maestro. - Cantores-atores: hierarquicamente organizados (a prima donna e o protagonista masculino são os mais importantes, outros atuam como solistas, a maioria compõe o coro), executam tanto a partitura no relativo ao canto (mú- sica e palavras do libreto) quanto os movimentos decididos pelo diretor de cena. - Bailarinos: como já foi dito, muitas óperas contêm balés, o que implica a presença de dançarinos que interpretem a coreografia correspondente.

Elementos da linguagem das formas artísticas teatrais

Matérias Tipos de signos Elementos Suportes das Dimensões: significantes: envolvidos: concernidos: semioses: 1. Palavra auditivos ator textos tempo (representação) pronunciados 2. Tom auditivos ator textos tempo (representação) pronunciados 3. Mímica visuais ator expressão espaço e tempo (representação) corporal 4. Gesto visuais ator expressão espaço e tempo (representação) corporal 5. Movimento visuais ator expressão espaço e tempo (representação) corporal 6. Maquiagem visuais ator (figura) aparência espaço humana 7. Penteado visuais ator (figura) aparência espaço humana 8. Traje visuais ator (figura) aparência espaço humana 9. Acessórios visuais espaço cênico aparência das espaço e tempo coisas 10. Cenários visuais espaço cênico aparência das espaço (e coisas tempo, havendo mais de um cenário) 11. Iluminação visuais espaço cênico aparência das espaço e tempo coisas 12. Música auditivos efeitos sonoros sons em forma tempo musical 13. Ruídos auditivos efeitos sonoros sons sem tempo articulação

OBS.: O quadro baseia-se no artiggo de Kowzan mas tem forma diferente da que o artigo em questão apresenta. VER.: KOWZAN, Tadeusz. “Hacia una semiología del arte del espectáculo.” In: RODRIGUEZ, María Elia e LOPEZ, María Luisa. Signos, lenguajes y discursos sociales. San José (Costa Rica): Editorial Nueva Década, 1991, pp. 116-139.

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Nota-se a complexidade de um espetáculo operístico pela simples enumeração dos elementos nele implicados, bem como as múltiplas possibi- lidades de choque de personalidades, em diversos níveis que vão da con- cepção à execução, neste tipo de arte que exige ações e decisões envolven- do muitas pessoas de diferentes ramos e especialidades. Habitualmente, o maestro – às vezes o diretor de cena – considera-se o elemento mais impor- tante na execução, mas terá de negociar muitos detalhes com os cantores, em especial no caso dos protagonistas: o ego e os humores de uma prima donna famosa são pelo menos tão assustadores quanto os de um danseur noble ou de uma prima ballerina!

3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise

Antônio Carlos Gomes (1836-1896), nascido em Campinas, em sua fase de estudos – com Lauro Rossi, em Milão – e composições na Itália, onde chegou em dezembro de 1863, tornou-se um expoente brasileiro da ópera romântica italiana. Seu amadurecimento musical foi rápido e notável. Se a entrada de Cecília, “Gentile di cuore”, em Il Guarany (1870), com coro, recorda de perto a polacca que serve de entrada a Elvira, “Son vergin vezzosa”, na ópera muito anterior I puritani (estreada em 1835), de Vincenzo Bellini – o que certamente não coloca o Gomes de então na vanguarda da cena operística italiana, por mais sucesso que tenha tido a sua ópera (afinal, se pensarmos na obra de Verdi, de tamanha influência sobre a de Carlos Gomes nos anos seguintes, Don Carlo, na versão de Paris, é de 1867, Aida, de 1870) –, bem como a orquestração e a própria construção musical da ópera de 1870 apresentam defeitos muito visíveis, Lo schiavo, que estreou em 1889 mas vinha sendo composta desde 1883, mostra afinidades com o Verdi maduro e uma grande segurança na orquestração e no contraponto, se a compararmos com a obra estreada pelo compositor brasileiro em 1870. Lo Schiavo (“O escravo”) estreou no Rio de Janeiro em 27 de setembro de 1889 – menos de dois meses antes da proclamação da Repúbli- ca, portanto –, no Teatro Imperial D. Pedro II. No tocante ao gênero que integra, trata-se de um drama lírico (ópera séria). Seu libretista foi Rodolfo Paravicini, que se baseou “ muito frouxamente “ numa peça teatral do Vis- conde de Taunay. Mesmo tendo sido estreada no Brasil, a ópera sem dúvida alguma visava, em primeiro lugar, ao público italiano. O compositor dedicou- a à Princesa Isabel.

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Em minha opinião, o caráter “brasileiro” que o compositor Carlos Gomes pretendeu dar a esta sua obra, cuja linguagem musical é italiana no essencial, valeu-se dos elementos principais seguintes: 1) escolha de temas pseudo-históricos brasileiros, à base de uma obra literária também brasileira: os assuntos centrais são, nesta ordem de idéias, a escravidão indígena, a Confederação dos Tamoios (1567) posteriormente à eliminação da França Antártica e a expedição naval portuguesa contra tal insurreição; 2) evocação de um Brasil tropical exótico, estilizado e idealizado, presente nas descrições verbais dos cenários contidas na obra, bem como na própria música; 3) construção teatral do libreto, em especial no tocante à atorialização (estruturação dos atores-cantores e das inter-relações entre eles, conside- rando-se tanto as personagens propriamente ditas quanto o coro, ator cole- tivo); 4) recursos musicais. O primeiro ponto da lista recém-enunciada não se presta às moda- lidades de análises de tipo semiótico que quero empreender. Analisarei, pela aplicação da leitura isotópica, os pontos 2 a 4, já que são os que se referem aos conteúdos textuais da ópera (visuais “ no caso, os cenários “, verbais e musicais). O ponto 3 será abordado segundo as concepções da narratologia semiótica sobre a atorialização.

4. Os cenários

Interessa-me como aparecem descritos ou comentados os cenári- os na partitura de Lo schiavo, sem levar em conta realizações concretas em récitas da ópera.

4.1. Textos em italiano seguidos de minha tradução

Ato I: “Vasto cortile d’una fattoria del Conte Rodrigo presso il fiume Parahyba. A destra del proscenio l’abitazione del fattore Gianfèra, rustica e coperta di paglia. Accanto a questa la scuderia. A sinistra l’Oratorio, rozzo, col tetto acuminato a guisa di cupola. Presso l’Oratorio una grossa campana appesa a due travi di legno greggio. Su d’una altura, nel fondo, la casa padronale, di un solo pianterreno, con molte finestre di facciata ed una sola porta d’ingresso nell’estremo fianco, col tetto di paglia. Alberi di cocco, banane, palmizi sparsi per la scena e pittorescamente distribuiti pei campi. Nel vastissimo sfondo, le plantagioni di canne di zucchero. Più in là le foreste

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vergini. Fanno poi corona al grandioso paesaggio le altissime montagne in distanza. Nel mezzo, alquanto in fondo, alcuni carri di forma primitiva, tirati da buoi, stanno fermi ricevendo il carico di canne da zucchero” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 5). “Vasto pátio de um engenho do conde Rodrigo, perto do rio Paraíba [do Sul]. À direita do proscênio está a casa do feitor João Fera, rústica e coberta de palha. Perto dela, a casa de armas. À esquerda, a capela, tosca, com o alto do teto à maneira de uma cúpula. Junto à capela está um grande sino, pendendo de duas toras de madeira em estado bruto. Num ponto alto, ao fundo, está a casa grande, composta somente de um andar térreo, com muitas janelas na fachada e uma única porta de entrada num dos extremos desta; seu teto é de palha. Coqueiros, bananeiras e palmeiras estão espalha- dos pela cena e pitorescamente distribuídos pelos campos. No fundo vastíssimo estão as plantações de cana-de-açúcar e, além, as florestas vir- gens. Montanhas altíssimas, distantes, coroam a paisagem grandiosa. No meio, um tanto para o fundo, estão parados alguns carros de boi, cuja forma é primitiva, recebendo um carregamento de cana de açúcar”. Ato II: “L’interno d’un elegantissimo chiosco ottangulare, nei giardini della Contessa di Boissy a Nitheroy. Il chiosco à sostenuto da colonnette di bambù. Il tetto, che si parte a guisa di raggi, è coperto di rami di palme. Lunghe tende di paglia indigena e transparenti chiudono all’ingiro l’intiero chiosco, ma dalla transparenza delle tende si scorge il sontuoso giardino che lo attornia. Dall’ampio ingresso del fondale si vede il mare. Dovunque, fiori, parassite, orchidee, rampicanti appesi in eleganti canestri. A sinistra uno specchio grande che scende a terra. A destra, appeso a due grossi tronchi di bambù un elegante hamak indigeno. Un canapè. Poche sedie” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 106). “Interior de um elegantíssimo quiosque octangular nos jardins da condessa de Boissy, em Niterói. O quiosque sustenta-se em colunas delgadas de bambu. O teto descendente abre-se em pontas cobertas de folhas de palmeira. Longas tapeçarias de palha trançada à maneira indígena, transparentes, fecham todos os lados do quiosque. A transparência das cortinas permite perceber em torno o suntuoso jardim. Pela ampla porta de entrada, ao fundo, vê-se o mar. Por toda parte há flores, parasitas, orquídeas, trepadeiras presas a caramanchões elegantes. À esquerda está um grande espelho que se estende até o chão. À direita, pendurada em dois troncos grossos de bambu, vê-se uma elegante rede indígena. Um canapé, algumas cadeiras”. Ato III: “L’immensa foresta alle falde dei monti Giacarèpaguà. In distanza il lago Comorin. Accanto a folti e svariati gruppi di palme le rustiche

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abitazioni di Ilàra ed Iberè. Sul proscenio, a destra e sinistra, tronchi di alberi giganteschi abbandonati al suolo. Cespi di fiori e parassite sparse dovunque senza coltura” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 197). “A imensa floresta nas encostas dos montes de Jararepaguá. À distância, vê-se o lago Comorim. As residências rústicas de Ilara e Iberê estão perto de grupos de palmeiras frondosos e variados. No proscênio, à direita e à esquerda, vêem-se troncos de árvores gigantescas, abandonados no chão. Moitas de flores e parasitas estão espalhadas por toda parte sem terem sido cultivadas”. Ato IV: Neste caso, no início do ato se vê unicamente parte do cenário, sendo noite escura; posteriormente, com o nascer do Sol, o panora- ma se amplia. É preciso então, aqui, incluir também a descrição em palavras que acompanha o curto poema sinfônico ou interlúdio, a “Alvorada”. a) “Altipiano d’uno scoglio a Guanabàra sporgente sul mare e fortificato con lungo steccato di freccie e di grosse tronchi di bambù aguzzati. Tra i macigni e lo steccato del fondo s’intravedde un antro oscuro e segreto che discende a picco verso il mare. Accanto a quest’antro la tenda d’Iberè, di forma conica e coperta di fogliami di palme. Sul terreno a destra, irto e scosceso, vedonsi viali tortuosi e praticabili che confinano colla scena discendenti quasi a precipizio. Altri scogli costeggianti il mare si sperdono in distanza. Diversi antri oscuri fra i dumi e fra i sassi giganteschi spacatti. Scena orrida e selvaggia. Notte profonda” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 284). “Área plana no alto de um rochedo, na Guanabara, que dá para o mar e está fortificado com longa paliçada de flechas e grossos troncos agu- çados de bambu. Entre as rochas e a paliçada, no fundo, se entrevê uma grota escura e secreta que desce, íngreme, para o mar. Perto desta grota está a tenda de Iberê, cônica e coberta de folhas de palmeira. No terreno da direita, que é empinado e pedregoso, vêem-se veredas tortuosas mas prati- cáveis que, no extremo da cena, descem quase a pique. Outros rochedos, que costeiam o mar, perdem-se na distância. Diversos grotões escuros entre- meiam as dunas e os gigantescos penedos. Cena horripilante e selvagem. Noite profunda”. b) “Nel profondo silenzio della notte s’ode il cupo mormorio del mare che percuote le roccie più vicine alla tenda d’Iberè. L’orchestra, prelu- diando, descrive lo spuntare dell’aurora brasiliana e va crescendo sempre in variati suoni. Ad intervalli s’ode lontano il rauco suono dell’Inûbia guerriera nel campo Tamoio. Sul mare, in distanzia, si vede schierata la flotta Lusitana in assetto di guerra. Dalla nave ammiraglia si sentono gli squilli delle trombe che suonano la diana. Stormi di piccoli uccelli, svolazzando in ogni direzione, rallegrano con i loro svariati canti la novella aurora. Da lontano il Cûcco

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monotono ripete il consueto lamento. Fra i gruppi di palmizi della vicina sponda si nasconde e gorgheggia il gentile sabià. Ai primi raggi del sole l’immenso panorama si manifesta in tutto il suo splendore. Al di là del vastissimo golfo si vede l’imponente catena di montagne degli Organi. Dalla nave ammiraglia stessa parte un colpo di cannone salutando l’aurora, ed al frastuono di esso i Tamoios, dalla riva sclamano all’unisono: All’erta! Ullàa!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 308-315). “No silêncio profundo da noite, ouve-se o murmúrio sombrio do mar que bate nas rochas mais próximas da tenda de Iberê. Um prelúdio or- questral descreve o despontar da aurora brasileira e vai sempre crescendo em sons variados. Ouve-se ao longe, intermitentemente, o som cavo da inúbia guerreira no acampamento tamoio. No mar, à distância, vê-se a frota lusitana, enfileirada em formação de guerra. Da nau capitânia ouvem-se os sons das trombetas no toque da alvorada. Nuvens de passarinhos, esvoa- çando em todas as direções, alegram com seus cantos variados a nova auro- ra. Ao longe, o monótono cuco repete seu lamento costumeiro. Entre os grupos de palmeiras do litoral próximo, oculta-se e gorjeia docemente o sabiá gentil. Aos primeiros raios do sol, o imenso panorama se manifesta em todo o seu esplendor. Do outro lado do golfo vastíssimo se percebe a imponente serra dos Órgãos. Da própria nau capitânia parte um tiro de canhão saudan- do a aurora; ouvindo o som tonante, os tamoios, da margem, exclamam em uníssono: “ ‘Alerta! Ulá!’ ”.

4.2. Análise

A leitura isotópica revela, na construção das descrições dos ce- nários, a onipresença da /flora tropical brasileira/, único elemento presente nessas descrições em todos os atos, mas em modalidades diversas que apon- tam para uma segunda rede temática: /Europa: artificial versus Brasil: natural/. Esta aparece indicada, no cenário do primeiro ato, pelo contraste entre: as concepções alienígenas (“engenho”, ou seja, uma fábrica de açúcar com finalidades mercantis), as construções primitivas mas estranhas à terra (ca- pela, casa grande, casa de armas), as plantações e o transporte da cana-de- açúcar (cana e bois não pertencem a espécies nativas), de um lado; e, do outro: as “florestas virgens”; os “coqueiros, bananeiras e palmeiras” esparsos pela própria fazenda; e as montanhas distantes. No relativo à axiologia, os elementos brasileiros da paisagem são euforizados: os coquei- ros, bananeiras e palmeiras são “pitorescos” em sua distribuição; mas é a hipérbole a principal forma de euforização: o panorama que se abre para

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florestas e montanhas é “vastíssimo” e “grandioso”, as montanhas são “altíssimas” (o que, aliás, não corresponde à realidade). O conjunto (flores- tas “virgens”, panorama muito amplo, elementos grosseiros das constru- ções e dos veículos “ caracterizados por adjetivos como “tosco” e “primiti- vo” –, tetos de palha) dá uma impressão de rusticidade exótica, evoca um mundo pouco sofisticado no tocante às realizações humanas, grandioso, desmesurado mesmo, talvez um tanto assustador, no relativo à natureza: um mundo, em suma, muito diferente do europeu. Estava na moda, naquela segunda metade do século XIX, na Europa, o dépaysement na literatura popular (Pierre Loti) e na ópera (Lakmé, de Léo Delibes, Les pêcheurs de perles, de Georges Bizet, Aida, de Giuseppe Verdi, entre muitas outras); moda que persistiu até Pietro Mascagni “ Iris “ e Giacomo Puccini (Madama Butterfly, La fanciulla del West, Turandot). No segundo ato, o contraste apontado entre elementos forâneos (artificiais) e brasileiros (naturais) é ainda mais marcado, chegando ao auge: o cúmulo da artificialidade é o quiosque “octogonal” dando para jardins “suntuosos”, evidentemente cultivados e planejados, além do “grande es- pelho”, do “canapé” e das “cadeiras”. O adjetivo “elegante” aparece três vezes. A flora da terra, neste caso domesticada, está no entanto “por toda parte”, as matérias-primas são locais (com insistência no bambu, que reapa- recerá, num contexto “indígena”, no cenário do quarto ato), como também o são as tapeçarias e a rede. O que é brasileiro e natural, não modificado pelos europeus, fica, desta feita, por conta do /mar/: este, que obviamente não poderia aparecer no vale do Paraíba do primeiro ato, torna-se muito presente no segundo e no quarto atos. Neste segundo ato, não por acaso, são os elementos marítimos aqueles valorizados na evocação do panorama por um coro “ habitualmente eliminado nas encenações da ópera “ situado entre a primeira dança e as seguintes, na festa da condessa de Boissy (quinta cena do ato). Note-se que a elegância dos domínios da condessa européia não é axiologicamente euforizada: a música e as palavras que acompanham toda a primeira parte da atuação da francesa (primeira e segunda cenas do segundo ato) a mostram como fútil, insistentemente importuna e sarcástica: ver o comentário a respeito feito por Américo, no recitativo que precede sua ária da terceira cena: “L’importuna insistenza e insiem lo scherno” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 125), ou seja, “A insistência importuna em conjunto com o sarcasmo”); o mesmo ocorre no final do ato. A condessa só será euforizada, na parte central do mesmo, como anfitriã generosa e em sua qualidade de heroína da libertação dos escravos, ao comprar vários deles especificamente para alforriá-los em massa. Na maior parte do ato, entretanto, o caráter anti-

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pático e pretensioso da condessa de Boissy se reflete também no cenário que representa seus domínios. O cenário do terceiro ato é dominado pela flora brasileira natural, não cultivada, fazendo, portanto, significativo contraste com o do ato prece- dente. A euforização por hipérbole da paisagem do Brasil tropical continua aqui (floresta “imensa”, árvores “gigantescas”, mas tudo suavizado pela multiplicidade e onipresença das flores). O último ato é o mais complexo no tocante ao cenário. Este é único, mas revelado em duas etapas. Aparece como ambiente tétrico, domi- nado por um mar soturno e por rochas costeiras escarpadas, na parte inicial, noturna, do ato, quando é disforizado (“horripilante”, “selvagem”, “escu- ro”, sendo “sombrio” o ruído do mar): un cenário bem de acordo com as ruminações de Iberê sobre sua infelicidade amorosa e as tramas dos índios contra ele e Ilara. A seguir, alegrado por pássaros (e pelo reaparecimento da vegetação tropical, agora iluminada, representada pelas palmeiras onde o sabiá “gentil” se esconde e canta), transfigura-se em panorama euforizado “em todo o seu esplendor”; como sempre, hiperbólico, mostrando a baía de Guanabara (“golfo vastíssimo”), além dela a serra dos Órgãos, “imponente”. Ao mesmo tempo, a aurora repõe os contrastes /Europa-Brasil/, /artificial- natural/, pela visão da frota lusitana preparada para a guerra. No entanto, tal frota, elemento forâneo, não é axiologicamente disforizada. Talvez porque o “mocinho” da história – embora não seja o protagonista dela, como veremos –, Américo, lá esteja; e porque os índios rebeldes, de elemento positivo que eram, se transformaram em ameaça para o protagonista, o cacique Iberê, bem como para o casal de namorados. Seja como for, os sons afirmativos do toque de alvorada ajudam a desanuviar o ambiente; e, no recitativo da ária que sucede imediatamente à peça orquestral que descreve o amanhecer (quinta cena do quarto ato), Ilara, a heroína da ópera, tem a dizer o seguinte: “Come splendido e bello il sol fiammeggia su quelle navi! Sembra che ogni prora rifulga d’oro e di gemme...” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 317-318); ou, tra- duzindo: “Como o Sol flameja, esplêndido e belo, sobre aquelas naus! Cada proa parece refulgir de ouro e de pedras preciosas...”. Note-se que, embora só na descrição verbal da “Alvorada” apare- ça a menção a pássaros, este elemento da paisagem brasileira está muito presente na ópera, construído, porém, com meios principalmente sonoros (musicais).

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5. Atorialização

Vou exemplificar a construção de uma noção de “brasilidade”, no libreto da ópera, com a questão da estrutura de atores intervenientes (perso- nagens, coro). Tal estrutura é simples: as personagens brasileiras, nativas, e seu contexto, são axiologicamente positivas; as estrangeiras são, em princípio, axiologicamente negativas, bem como o é o seu contexto específico. Em suma, há um lado brasileiro valorizado e um lado estrangeiro desvalorizado. Mas a situação da condessa de Boissy é complexa, como também ocorre com a dos índios vistos como personagem coletiva. A leitura isotópica con- firma estas afirmações. Vejamos, em primeiro lugar, a oposição brasileiro (nativo)/estrangeiro. No primeiro ato (sexta cena), em duas falas suas, Américo se diri- ge a Iberê, dizendo “Libero fosti in questo suolo al par di me” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 28-29), isto é: “como eu, foste livre neste lugar” e cha- mando a si mesmo em relação a Iberê, pouco depois, “fratel di patria” (GO- MES; PARAVICINI, 1985: 30), ou seja, “irmão de pátria”, mais tarde desig- nando o índio como “Nobile stirpe del Brasilio suolo” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 38), traduzindo: “estirpe nobre do solo brasílico”. Na mesma cena, numa narrativa acerca de seu passado, Iberê chama o Brasil de “mia terra” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 30), “minha terra” e – anacronicamente – de “patria” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 31), “pátria”, associando o país tam- bém ao seu pai e à sua mãe, e à sua condição de guerreiro tamoio. Quando Américo confraterniza com Iberê, os índios e camaradas presentes (brasilei- ros) comentam que, com aquele gesto, o primeiro “che siam fratelli tutti ei dimostrò” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 40-41), “demonstrou que somos todos irmãos” “ sentimento que contrasta com o que é expressado na mesma ocasião pelo feitor e pelos capangas (sujeitos delegados do amo portugu- ês), para os quais, com aquele gesto, Américo “un covo di ribelli (...) per noi creò” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 40-41): “criou para nós um covil de re- beldes”. Iberê jurou fidelidade eterna a Américo, que o salvou do castigo desonroso do chicote (primeiro ato, cena sexta). Ele revelar-se-á, nos atos três e quatro, como “brasileiro” e “nacionalista”, em sua qualidade de líder dos tamoios amotinados, mas ao mesmo tempo leal ao juramento a ponto de, amando Ilara, com a qual fora casado à força por ordem do conde Rodrigo, viver ao lado dela sem tocá-la e, no final, trocar sua vida pela do casal. Trata- se de uma figura romântica, mais parecida à de um cavaleiro medieval idea- lizado pelo Romantismo do que à de um líder indígena do século XVI brasileiro.

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Quanto ao pai de Américo, o conde Rodrigo, em fala de Iberê (primeiro ato, quinta cena) é qualificado de “usurpator di questo suolo” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 26), “usurpador deste solo”; ele mesmo, na sétima cena do ato, associa a luta que ordena a Américo empreender como oficial da frota lusitana à idéia de “pátria” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 76): ao contrário do filho, nascido no Brasil, ele é um português, um estrangeiro. Isto se comprova a seguir no comentário (para si mesmo) de Américo a respeito da ordem que acaba de receber do pai: “Vestir l’insegna dello stranier... Pugnar domani in sua difesa forse contro i miei fratelli?” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 75-76): “Vestir o uniforme do estrangeiro... E, talvez, lutar amanhã, defendendo-o, contra meus irmãos?”. Tal conde estrangeiro é cruel, ardiloso, traiçoeiro; por exemplo, ao forçar no fim do primeiro ato, como planejara com antecedência, o casamento de Iberê com Ilara, logo que seu filho parte para a guerra, e ao impedir, no final do segundo ato, que Iberê conte a verdade ao enfurecido Américo acerca de tal casamento feito pela violência. O mesmo quanto a seus sujeitos delegados, os capangas e o feitor João, apodado “Fera”: este último é descrito pelos camaradas da fazenda (que são brasileiros) com as palavras seguintes, na primeira cena do primeiro ato: “Più zelante dei padroni il fattore diventò! Ei fu sempre un rinegato. (...) Rinegato! Mascalzon!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 10-12): “O feitor tor- nou-se mais zeloso do que os patrões! Ele sempre foi um renegado. (...) Renegado! Bandido!”. Renegado, por ter nascido no Brasil e, no entanto, agir em favor do amo estrangeiro (português). Ilara de início, na ópera (como desde criança), aparece como “es- crava de dentro de casa” (isto fica claro em seu dueto com Américo no primeiro ato, nona cena). Trata-se de personagem complexa, contraditória, tal como Iberê – que se vê dividido entre a liderança que exerce como caci- que maior dos tamoios, cheio de ânsia de vingança, e a lealdade a Américo, contra o qual não deseja guerrear. Como ele, Ilara é indubitavelmente brasi- leira. No início do terceiro ato (primeira cena), começa seu recitativo, prece- dendo uma famosa ária, saudando a aurora com as palavras: “Alba adorata del natio mio suol” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 198): “Adorada aurora de meu país natal”. Após a ária mencionada, canta, no entanto, como se a recordasse, uma “velha” balada de estilo europeu – conhecimento assaz estranho, convenhamos, para uma escrava índia, mesmo doméstica... (GO- MES; PARAVICINI, 1985: 205-206) A balada em questão tem a mesma melo- dia do início e do final do prelúdio da ópera: o qual, portanto, remete a Ilara em primeiro lugar (na parte central do mesmo, há uma seção que remete tematicamente a Iberê e à revolta dos tamoios). Ela e Iberê é que são os protagonistas da ópera, mesmo se o casal romântico é formado por ela e

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Américo, sobrando Iberê, que a ama sem ser correspondido. A estrutura musical deixa claríssima a hierarquia que privilegia os protagonistas índios sobre Américo. Ela adere de início, no terceiro ato, à revolta dos tamoios (quinta cena), cantando, junto com outros: “In quell’acento mesto e dolente udir mi sembra triste un lamento... Ed il materno pianto ramento dell’infelice che schiava fu!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 269-271): “Nestas palavras acabrunhadas e doridas parece-me ouvir um triste lamento; e lembro-me do pranto de minha infeliz mãe, que foi escrava!”. No entanto, em passagem eliminada da versão revista da ópera, quando os índios amotinados decidem atacar a fazenda do conde Rodrigo, ela se prepara para ir avisar do ataque; ocasião em que, falando de si mesma, afirma (sexta cena): “La donna brasiliana illuminata dai raggi d’amor sfidar saprà dell’imensa foresta il tenebror!”;1 em tradução: “A mulher brasileira, iluminada pela luz do amor, saberá desafiar a escuridão da floresta imensa!” – só não partindo ao dar-se conta de que os índios rebeldes, tendo ouvido o canhão da frota portuguesa na Guanabara, decidem dirigir-se para lá e dar-lhe combate, em lugar de irem em direção ao vale do Paraíba. Seja como for, o caráter positivo da figura de Ilara é afirmado em numerosas passagens do texto, bem como, repetidamente, pela música. Na condessa de Boissy temos, para começar, a personagem mais absurda de uma ópera já bem carregada de absurdos, como quase todas as do século XIX se levarmos a sério seus detalhes de enredo cheios de ana- cronismos. Trata-se de uma francesa cercada, como se vê em sua festa, de oficiais franceses, hostis, supõe-se, ao Brasil português, já que aliados aos tamoios amotinados; mas, ao mesmo tempo, a condessa tem relações cordi- ais com um português patriota como o conde Rodrigo, que gostaria de vê-la casada com seu filho e, ao que parece, está legalmente instalada em Niterói, na época (1567) inequivocamente sob controle dos portugueses, onde a visitam aqueles militares franceses! Ela só aparece no segundo ato, onde sua figura é contraditória; mas a contradição funciona de acordo com a lógica do esquema geral. Ou seja, ela é negativa, antagonista, em sua quali- dade de pretendente ao amor de Américo e também como estrangeira; mas, ao comprar e libertar escravos, está do lado dos brasileiros, dos índios e, em particular, dos protagonistas Iberê e Ilara, que figuram entre os alforriados. Transforma-se por algum tempo, assim, de fútil beldade, desagradável e sarcástica em sua infelicidade amorosa, em eloqüente arauto dos ideais da

1 Neste caso, cito segundo o libreto original de Rodolfo Paravicini, reproduzido em folheto que acompanha a edição em CD de Lo schiavo, récita realizada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 26 de junho de 1959, p. 5. Esta edição da ópera em CD é da Sonopress, Manaus, 1997, discos MC006-1 e MC006-2.

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libertação dos escravos (segundo ato, sexta cena): “Un astro splendido nel cielo appar, ravviva, illumina foresta e mar! Sotto quel raggio dell’astro s’innalza un grido che in ogni lido echeggierà! È l’inno eterno che non morrà, il grido unanime di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 155-156): “Um astro esplêndido aparece no céu, reanima, ilumina a floresta e o mar!... E sob o raio do astro, ergue-se um grito, que ecoará em todos os rincões! É o hino eterno, imorredouro: o grito unânime de liberdade!”. Por fim, os índios, personagem coletiva. No primeiro ato, são índi- os escravizados: com os camaradas da fazenda, integram o grupo dos brasi- leiros. São, portanto, positivos: desejam a liberdade, odeiam o feitor, interce- dem por Iberê e vêem em Américo – que se enxerga igualmente como brasilei- ro – seu amigo e protetor (primeiro ato, nona cena). Os índios do terceiro e quarto atos são diferentes: índios “bravos” que preparam e depois realizam uma revolta contra os portugueses escravizadores e usurpadores, os “emboabas”, os “estrangeiros”; como dizem em coro (terceiro ato, quarta cena): “L’Emboâba, armato, la nostra terra ha già varcato” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 240-241): “O emboaba, armado, já invadiu a nossa terra”. Ou, ainda (quarto ato, terceira cena): “Guerra feroce! Dalla riviera farem barriera all’invasor! Al grido nostro in terra l’eco risponda in mare. Schiavi non più, l’altare alziam di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 304-305): “Guerra feroz! Do litoral formaremos uma barreira ao invasor! Que o eco responda, no mar, ao nosso grido proferido na terra: ‘Não mais escravos, ergamos o altar da liberdade!’ ”. Toda a construção do libreto da ópera volta-se para a valo- rização axiológica desses ideais de alforria, de liberdade. No entanto, os mesmos índios se transformam em antagonistas e seu aspecto muda ? bem como, no quarto ato, o texto e a música acentuam seu “primitivismo” feroz (coisa que Ilara constata no final do terceiro ato, na porção eliminada da versão revista da ópera, sem que, então, tal sentimento seja seguido por Iberê, que a ele se associará só no último ato) – quando se voltam contra os protagonistas e, a seguir, contra Américo. Uma das formas mais insistentes em que o texto “constrói” os índios é por meio da multiplicação de termos tupis (às vezes adaptados à língua italiana): “inúbia” (no primeiro, terceiro e quarto atos); “Tupã”, “emboaba”, “Tupiberaba” (no terceiro ato); além de diversos topônimos de mesma origem. Musicalmente, nesta ópera como em Il Guarany, Carlos Gomes inventa – pois não há autenticidade ou pesquisa no que faz – uma “música que designa os índios”, caracterizada, entre outras coisas, por ritmos repetitivos e insistentes: designa-os, isto é, “para europeu ver”, como figuras exóticas. É interessante notar uma inversão em relação à ópera anterior: em Il Guarany (de 1870), o índio “bom” é o guarani que apóia os portugueses, os índios “maus” são os aimorés anti-lusitanos; em Lo

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Schiavo, os índios em princípio mais positivos são exatamente aqueles re- beldes aos portugueses.

6. Construção musical: o exemplo da “Alvorada”

Lo Schiavo foi composto para o Teatro Municipal de Bolonha, mesmo se, por uma série de circunstâncias, terminou por estrear no Rio de Janeiro. Sua música, como outros elementos (cenários, índios), busca uma visão pitoresca do Brasil tropical, visando a um público europeu. Vamos explicar como funciona a isotopia no nível da música tomando um exemplo: a página orquestral conhecida como “Alvorada” (quarto ato, quarta cena). Do ponto de vista isotópico, este interlúdio, espécie de pequeno poema sinfônico que descreve o nascer do Sol, aponta para os elementos musicais principais seguintes, anteriormente ouvidos na ópera, para o contexto em que apareceram então e, eventualmente, para as palavras na ocasião pro- nunciadas em conjunto com a música: 1) uma espécie de “hino” à liberdade dos escravos, que antes surgira duas vezes: no primeiro ato, sexta cena, na voz de Américo e depois do coro - quando fica explícita a metáfora da “aurora” para significar a liber- tação dos escravos, nas palavras “Coraggio ancora! lontan non è la desiata aurora per voi/noi di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 67-68, 73): “Co- ragem ainda! Não está distante, para vós/nós, a aurora desejada da liberda- de!”; e no segundo ato, sétima cena, em variante mais curta, na voz da condessa de Boissy, em seguida no coro, dirigindo aos escravos recém- alforriados as palavras: “In voi ritorna il dritto umano: che il cielo vi benedica” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 162-163): “Volta para vós o direito humano: que o céu vos bendiga”. Pouco antes (segundo ato, sexta cena), o Brasil havia sido aclamado pelo coro como “terra civile di libertà” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 157): “terra cortês da liberdade”; 2) a primeira frase musical (mais exatamente, um membro dessa frase) da ária de Iberê (quarto ato, terceira cena), “Sogni d’amore” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 300): “Sonhos de amor”, cujo texto comenta seu amor infeliz por Ilara, miséria que contrasta com seu esplendor de cacique (chama- do no texto, diversas vezes e inadequadamente, de “rei”); 3) uma ocasião anterior (segundo ato, terceira cena) em que, na ária de Américo, “Quando nascesti tu” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 127- 129): “Quando tu nasceste”, a linha melódica, na voz do , dialogava em contraponto com um canto de pássaro (madeiras).

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Ao tratarmos dos cenários, reproduzimos o texto que, na própria partitura da ópera, descreve a “Alvorada”. Ele corresponde bastante bem à estrutura musical da peça, que parece feita sob medida para um desempenho brilhante dos responsáveis pela iluminação. No Teatro Municipal do Rio de Janeiro, enquanto a ópera esteve no repertório habitual daquela casa de espetáculos, até o início da década de 1960, sua realização, com justiça, era muito famosa. Eis aqui a estrutura musical básica da “Alvorada”, cuja duração total é de aproximadamente sete minutos e meio: 2 1) Após uma longa nota ré (trompa), anunciadora da que será a tonalidade principal da página musical que comentamos, ouve-se, no regis- tro grave das cordas e depois também das madeiras, uma sucessão de acor- des - passagem lenta, cromática, modulante e sombria que representa o mar ondulante e seu embate nas pedras costeiras. Firma-se a tonalidade principal da “Alvorada” (Ré Maior) e aparece, lírica e suavemente exposto no agudo das madeiras, depois nas cordas em pianíssimo, um tema baseado na frase inicial da ária de Iberê (“Sogni d’amore”), ancorando assim a peça sinfônica no universo diegético da ópera e, ao mesmo tempo, reafirmando o cacique como protagonista da mesma. Um efeito sonoro grave e bizarro de instru- mentos de metal se ouve quatro vezes, sugerindo a inúbia indígena, e ocorre a introdução de temas vinculados aos pássaros (canto e revoada). Uma transição (começada pela harpa) prepara a parte seguinte (GOMES; PARAVICINI, 1985: 308-309). 2) Primeira execução do toque de despertar (ou de alvorada): trom- beta interna (fora de cena), efeito de eco. Nova intervenção da harpa leva ao reaparecimento de cantos variados e revoadas de pássaros, depois aconte- ce a segunda apresentação do toque de trombeta, agora com acompanha- mento dos passarinhos. O mar é evocado outra vez no registro grave, em sons que sugerem também a luz incerta da madrugada, antes da aurora plena, sempre com cantos de pássaros. Isto se transforma numa transição (GO- MES; PARAVICINI, 1985: 309-311). 3) Parte lírica baseada na primeira frase da ária de Iberê (cordas), com o canto do sabiá como contraponto (madeiras), seguida pelo retorno do toque de alvorada, sem que cessem os pássaros. Ao continuar em coda

2 A execução com que trabalhei ao elaborar este artigo foi a faixa 7 (cuja duração é de 7 minutos e 39 segundos) do CD: Carlos Gomes. Aberturas e prelúdios. Orquestra Sinfônica Brasileira. Regente: Yeruham Scharovsky. Edição da Sonopress, Manaus, patrocinada pelo Programa de Apoio às Orquestras do Ministério da Cultura, 1998. OSBCD0001/98.

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veemente, o próprio toque de corneta faz a transição à parte seguinte (GOMES; PARAVICINI, 1985: 311-313). 4) Voltam, subindo de tom em modulações sucessivas, as duas primeiras notas da ária de Iberê. Alvoroço da passarada e aceleração do andamento: a tensão e a expectativa crescem, preparando o clímax da peça, ao cantarem agora os pássaros em uníssono, pois a luz aumenta (GOMES; PARAVICINI, 1985: 314). 5) Surge, imponente, o “hino de liberdade” - que é ao mesmo tempo o tema da aurora - nos metais, conduzindo ao final grandioso: uma fanfarra, desta vez acompanhada pela orquestra em peso, saúda o Sol nas- cente, cujos raios, iluminando por fim as montanhas da Guanabara, são re- presentados pelos pratos ou címbalos (GOMES; PARAVICINI, 1958: 314- 315). A associação “hino de liberdade”/alvorada metaforiza o ato de abolição da escravidão - habitualmente, na época e também com freqüência em ocasiões posteriores, por exemplo em livros didáticos, atribuído à inicia- tiva de quem o assinou, a princesa Isabel (a quem a ópera foi dedicada pelo compositor) - como uma nova aurora para o Brasil. Esta noção é também preparada em palavras pelo coro interno dos índios que precede imediata- mente a “Alvorada” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 303-307). Em suma, um tema abolicionista pretensa e absurdamente situado no século XVI quis, na verdade, exaltar a abolição recente ocorrida em 1888 de modo a sublinhar em tom favorável o papel, nela, do regime imperial. O irônico - mas Carlos Gomes não o podia saber - foi que a metáfora da aurora/abolição soasse, num teatro do Rio de Janeiro, no crepúsculo do Império...

Conclusão

Na polêmica entre os que defendem um caráter essencialmente brasileiro para a música de Carlos Gomes e aqueles que acham que, pelo menos em sua fase européia, o compositor utilizou uma linguagem musical italiana (alguns preferem dizer “italianizada”, embora eu não veja muito bem a utilidade de uma distinção deste tipo) - o que não exclui, claro está, a presença eventual de elementos brasileiros -, pendo para a segunda posi- ção. Mas é evidente que, ao chegar a Milão aos 27 anos de idade, Carlos Gomes não era nem podia ser, ideologicamente, uma tabula rasa. A análise seletiva de Lo schiavo empreendida neste artigo mostra que o músico parti- cipava da preocupação do Império com a construção da nacionalidade bra- sileira, um projeto que, entre outros elementos, passou pela invenção literá-

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ria de um índio heróico e cavalheiresco e daquilo que se chamou nos manu- ais escolares, desde então, de “movimentos nativistas”: nesta ópera, o mo- vimento tamoio é construído como movimento nativista e seu chefe, Iberê, parece concentrar em si as virtudes de um cavaleiro medieval tal como o Romantismo o recriava. Deste ponto de vista, se não daquele de sua lingua- gem musical, mesmo enquanto trabalhava na Europa em suas óperas canta- das em italiano mas que desenvolviam temas brasileiros inspirados na litera- tura nacional - Il Guarany e Lo schiavo -, o compositor permanecia sem dúvida alguma brasileiro. Recordava, emocionado, a natureza do seu país e continuava bem próximo aos interesses do regime imperial, arrimo principal de sua carreira, o que lhe valeria alguns dissabores nos últimos anos de sua vida, após 1889.

Referências

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