Uma Ária Para Virginia Damerini: a Última Fosca De Carlos Gomes
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Uma ária para Virginia Damerini: a última Fosca de Carlos Gomes Marcos da Cunha Lopes Virmond (USC) Rosa Maria Tolón Marin (USC) Lenita Waldige Mendes Nogueira (UNICAMP) Resumo: Fosca, estreada em fevereiro de 1873, constitui-se em uma das mais importantes obras de Antônio Carlos Gomes. Entre suas óperas compostas em Milão, foi a que mais sofreu modificações ao longo do tempo. São quatro versões: 1873, 1878, 1889 e 1890. Entre os números que mais chamam a atenção está a ária de Fosca no segundo ato, Quale orribile peccato, que apresenta quatro versões. O objetivo deste estudo é discutir preliminarmente as diferentes versões dessa ária, focando particularmente a de 1890. Para tal, a metodologia inclui uma reconstrução musicológica e uma análise musical de fontes primárias e secundárias. O resultado revela que Gomes promoveu poucas modificações na ária na segunda e terceira versões, principalmente com vistas a obter maior efetividade na relação entre o discurso dramático e musical. Entretanto, a última versão, de 1890, praticamente constitui-se em uma obra nova, ainda que não superior às anteriores. Palavras-chave: Fosca. Antônio Carlos Gomes. Ópera. Quale orribile peccato. Title: An aria for Virginia Damerini: Gomes' last Fosca Abstract: Fosca, premiered in February 1873, is one of the most important works of Antônio Carlos Gomes. Among his operas composed in Milan, Fosca underwent the most change over time. There are four versions: 1873, 1878, 1889 and 1890. The music that calls the most attention in Fosca is the aria in the second act, Quale orribile peccato, which has four versions. The objective of this study is to first discuss the different versions of this aria, focusing particularly on the 1890 version. For this purpose, the methodology includes a musicological reconstruction and musical analysis of primary and secondary sources. The result reveals that Gomes made few modifications to the aria in the second and third versions, mainly in order to achieve greater effectiveness between the dramatic and musical discourse. However, the last version of 1890 is practically a new work, though not higher in quality than the others. Keywords: Fosca. Antonio Carlos Gomes. Opera. Qualle orribile peccato. VIRMOND, Marcos da Cunha Lopes; MARIN, Rosa Maria Tolón; NOGUEIRA, Lenita Waldige Mendes. Uma ária para Virginia Damerini: a última Fosca de Carlos Gomes. Opus, Porto Alegre, v. 19, n. 1, p. 111-140, jun. 2013. Uma ária para Virginia Damerini: a última Fosca de Carlos Gomes. ma característica das óperas de Antônio Carlos Gomes é sua constante reinvenção. De A Noite do Castelo (1861), com forte influência do molde estrutural, U harmônico e melódico de Donizetti e Verdi, até a original e inovadora Condor (1891), cada obra apresenta um novo desafio estilístico ao compositor. Talvez a reinvenção mais acintosa tenha se dado entre Il Guarany (1870) e Fosca (1873). Como afirma Mário de Andrade (1934: 118), nessa obra Gomes pretendeu se elevar acima de si mesmo e avançar em arte além do que ocorria na música italiana que lhe circundava. Assim, Fosca é considerada como a mais revolucionária dentre suas óperas, com a qual demonstrou maior avanço em sua arte (CONATI, 1982: 74) e a que tem suscitado maior controvérsia. O próprio compositor pareceu concordar com este último fato ao promover em Fosca o maior número de revisões, se comparado com suas outras óperas do período da maturidade1. A duvidosa recepção da obra, estreada no Teatro alla Scala de Milão em 16 de fevereiro de 1873, pode ter sido a razão principal dessa obsessão por revisões. Após a estreia, a crítica foi cautelosa em suas manifestações e o público não aceitou as inovações do maestro. Fosca foi um completo fiasco. Um resumo da pouca aceitação da ópera reside em um parágrafo de um cronista da Gazzetta Musicale di Milano: A inspiração e a originalidade que faltam nesta Fosca estão presentes no maestro. Quando Gomes, ao invés de dar ênfase à orquestra, colocar algo a mais na boca dos cantores, acabará sendo original e inspirado, sem que ele se dê conta disso (GAZZETTA...,1873: 62)2. De fato, considerava-se que o discurso orquestral exuberante que Gomes adota em Fosca obscurecia o discurso vocal, o que aproximava perigosamente esta obra à ideologia do Zukunftsmusik Wagneriano. A pobre recepção de Fosca incomodou Gomes, assim como seus editores da Casa Lucca, enquanto Giulio Ricordi, proprietário da editora rival, lançou um interessado 1 Para este contexto, se considera Período de Maturidade aquele em que Gomes escreve Il Guarany, Fosca, Salvator Rosa, Maria Tudor, Lo Schiavo, Condor e Colombo. 2 “L’ispirazione e l’originalitá che mancano a questa Fosca non mancano al maestro; quando Gomes invece di mettere il meglio in orchestra, come há fato ora, porrá il più e il meglio in bocca ai cantanti, riescirá senza avvedersene originale ed inspitrato” (GAZZETTA...,1873: 62). 112 . opus . VIRMOND; MARIN; NOGUEIRA olhar sobre o compositor com vistas ao futuro Salvator Rosa (1874), um de seus maiores sucessos comerciais. De fato, em abril de 1873, Giulio Ricordi já estava em contato com Gomes para tratar desta ópera. Entretanto, Gomes não deixou de lado Fosca e trabalhou em suas revisões desde 1874, com o auxílio de Carlos D'ormeville, nas alterações dos versos originais de Ghislanzoni. Após a estreia no Teatro alla Scala de Milão, a ópera foi revisada e teve nova apresentação no mesmo teatro, em 7 de fevereiro de 1878. Por fim, tendo o acervo da Casa Lucca sido adquirido pela Casa Ricordi, Gomes promoveu outras alterações para uma nova produção de Fosca em Modena, em 1889. Essas modificações ocorrem em diferentes partes da ópera, com a inclusão de novos números e alterações de menor monta em partes que permanecem (BROMBERG, 1999). Uma última e significativa modificação na partitura, restrita à ária de Fosca no segundo ato, ocorre para sua última apresentação na Itália, na temporada de 1890/1891 do Teatro Dal Verme, em Milão (VETRO,1982: 34) (Tab. 1). Versão 1º versão 2º versão 3º versão 4º versão Data 16 fevereiro 1873 8 fevereiro 1878 10 fevereiro 1889 1 novembro 1890 Teatro Teatro alla Scala Teatro alla Scala Teatro Comunale Teatro Dal Verme Cidade Milão Milão Modena Milão Regente Franco Faccio Franco Faccio Emilio Usiglio Arnaldo Conti Fosca Gabrielle Krauss Amalia Fossa Virginia Damerini Virgina Damerini Cambro Victor Maurel Gustavo Moriani Arturo Pessina Cesare Bacchetta Francesco Federico Paolo Carlo Bulterini Leopoldo Signoretti Tamagno Gambarelli Maria Roussle- Delia Cristina Lamare Adelina Garbini Leonilde Gabbi Giraud Gajolo Ormondo Maini Ormondo Maini Enrico Serbolini Giotta Angelo De Giuli Carlo Moretti Paolo Franzini Ferdinando Il Doge Ettore Marcassa Raffaele Terzi Zanutto Tab. 1: Distribuição do elenco das diferentes versões de Fosca. opus . 113. Uma ária para Virginia Damerini: a última Fosca de Carlos Gomes. Com exceção da última versão, e em uma visão geral, essas modificações foram preliminarmente estudadas, assim como a discussão das fontes documentais, em trabalho de Carla Bromberg (1999). As alterações nas unidades de abertura da ópera, prelúdios e sinfonia, mereceram detida análise por parte de Marcos Pupo Nogueira (1998, 2003). Entretanto, a ária de Fosca, Quale orribili pecatto, em suas diferentes versões, ainda não foi alvo de estudo mais circunscrito. Assim, este estudo pretende apresentar e discutir as quatro versões propostas por Gomes para esta mesma ária, focando-se particularmente na revisão de 1890. Para tal, a metodologia adotada previu a consulta de fontes primárias e secundárias, incluído o manuscrito autógrafo da versão original de 1873, as partituras para canto e piano das três versões (1873, 1878 e 1889) e cópia manuscrita da ária de Fosca, com autógrafo do compositor, especialmente escrita para a récita de 1890. Consultou-se também libretos publicados pela Casa Lucca e Casa Ricordi, de Milão, além de se proceder a análise musical das diferentes versões, utilizando-se as concepções de Cooper (1981) no que se refere ao contorno melódico, as recomendações de Gauldin (1997) para a redução da condução harmônica e os princípios gerais de análise propostos por White (1994). A ária de Fosca O libreto de Fosca foi retirado de um pequeno romance escrito por Luigi Capranica e publicado em 1869. O foco central da historieta é o rapto de virgens venezianas por piratas istrianos durante uma cerimônia coletiva de casamento que, após o terrível evento, passou-se a se chamar La Festa delle Maria, pois a maior parte das noivas raptadas na investida dos malfeitores tinha este nome (Fig. 1). 114 . opus . VIRMOND; MARIN; NOGUEIRA Fig. 1: Página de rosto e página inicial do capítulo que trata do rapto das noivas no romance de Luigi Capranica. A ação de Fosca ocorre no século X, parte dela no litoral da Ístria e parte em Veneza. Fosca pertence a um grupo de piratas istrianos especializados em sequestros, cujo plano imediato é realizar um rapto generalizado de virgens durante um casamento coletivo na igreja de San Pietro in Castello. O foco central do enredo é o conflitante amor de Fosca por Paolo, uma das vítimas dos piratas que se encontra em cativeiro na gruta da quadrilha. Ela pede ao irmão, chefe do bando, que não liberte o refém, pois que o ama perdidamente. Gajolo, o chefe, não aceita, pois a honra dos piratas não permite alterar o trato feito. O desespero de Fosca é enorme. Por sua vez, Cambro, um escravo veneziano a serviço de Gajolo e apaixonado por Fosca, sugere-lhe uma vingança, raptando Delia, a noiva de Paolo, durante o planejado ataque ao casamento comunitário na festa da igreja de San Pietro in Castello. Neste contexto, Quale orribile peccato é a grande ária de Fosca no segundo ato, opus . 115. Uma ária para Virginia Damerini: a última Fosca de Carlos Gomes. precedendo o dramático final em que ela vê consumado seu desejo de vingança, conforme sugerido por Cambro.