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O capital e a crítica ontológica

Resumo objetivo deste trabalho é defender a hipótese de que o procedi- mento de análise adotado em O capital pode ser descrito pelo Oque , filósofo da ciência do realismo crítico, cha- mou de crítica explanatória, e que esse procedimento é análogo ao que o pensador húngaro György Lukács chamou de crítica ontológica. Como a crítica ontológica caracteriza-se por colocar como momento prioritário não a crítica de distorções ou incorreções lógico-gnosiológicas de uma teoria, mas a crítica das bases ontológicas dessas distorções, tal proce- dimento crítico só se justifica se forem identificados mecanismos reais que gerem essas distorções. Portanto, para cumprir o objetivo principal de provar a primazia da crítica ontológica em O capital, é necessário cumprir o objetivo secundário de demonstrar que nessa obra é afirmada a existência de um mecanismo social que gera distorções nas teorias, mecanismo que Marx chama de fetichismo da mercadoria.

Palavras-chave: O capital; crítica explanatória; crítica ontológica.

Classificação JEL: B24; B40; B51.

Abstract Rodrigo Delpupo The purpose of this work is to defend the hypothesis that the procedure Monfardini Professor Adjunto do Departa- of analysis adopted in Capital can be described as what Roy Bhaskar, mento de Ciências Econômicas initiator of the philosophical movement of critical realism, calls expla- da UFF-Campos e membro do NIEP-Marx. natory critique. Additionally, it will be defended that this procedure is analogous to the procedure that the Hungarian artigo pretende-se mostrar a possibilidade de thinker György Lukács calls ontological criti- utilizar a abordagem de Lukács e Bhaskar na que. Because the ontological critique is charac- interpretação do método de análise empregado terized by taking as the priority moment of por Marx em O capital. Nesse sentido, a hipóte- critique not its logical-gnoseological distortions se a ser defendida é que o procedimento reali- or theoretical inaccuracies, but the ontological zado em O capital caracteriza-se como crítica bases of these distortions, this critical proce- ontológica, como intitulado por Lukács (2012), dure justifies itself only if it identifies the real procedimento que argumentaremos ser análo- mechanisms that generate these distortions. go ao que Roy Bhaskar (1998) chama de crítica Therefore, to accomplish the major purpose explanatória.1 Defenderemos que esse é um of this work (prove the primacy of ontological procedimento que faz uma crítica não apenas critique in Capital), it is necessary to achieve lógico-gnosiológica, i.e., voltada para a investiga- a secondary purpose of demonstrating that in ção das condições de validade das teorias sob this boot it is affirmed the of a social análise, mas também uma crítica ontológica, mechanism that generate distortions on the- voltada para a investigação dos pressupostos se theories, the mechanism that Marx called reais das teorias, investigando as estruturas re- fetishism of commodities. almente existentes que colocam aquelas teorias Keywords: Capital; explanatory critique; onto- como uma necessidade. logical critique. Será defendido que a crítica em O capital é direcionada não para as teorias da sociedade (o 1. Introdução que seria uma crítica lógico-gnosiológica), mas O filósofo húngaro György Lukács, em sua obra para as próprias estruturas da sociedade (uma Para uma ontologia do ser social (2012), recém- crítica ontológica), crítica que se justifica por -publicada no Brasil, faz um estudo do método essas estruturas requererem ideias distorcidas crítico empregado por Marx no conjunto de a seu respeito. Nessa perspectiva, a distorção sua obra. Outro autor que, como defendere- nas ideias é decorrência do caráter fetichista da mos, apresenta uma formulação análoga sobre mercadoria, pois se o fetichismo da mercadoria o método de Marx, é o filósofo da ciência Roy é a atribuição à mercadoria de uma propriedade Bhaskar, da corrente do realismo crítico. Neste que não é dela, mas da sociedade, esse caráter

Revista da sociedade brasileira de economia política 137 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 pode servir de base a um conjunto de ideias 2. A crítica marxiana distorcidas a respeito do funcionamento da Se é correta a tese de Marx e Engels de que sociedade. Além disso, pode-se dizer que, na o real precede a consciência (Marx & Engels, medida em que a estrutura econômica é dire- 2007, p. 94), isso significa que devem ser expli- cionada para a produção de mercadorias, às cadas as condições reais para o surgimento de categorias econômicas é também atribuído esse determinada teoria; se é assim inclusive teorias caráter fetichizado, como acontece explicita- falsas, quando socialmente difundidas, devem mente com as expressões “fetiche do dinheiro” ser explicadas a partir de condições reais. Em e “fetiche do capital” (Marx, 1996, p. 207; p. 267- outras palavras, para ser válida a tese da deter- 93), e também com as demais categorias que são minação da consciência pelo real, é necessário teoricamente desdobradas da forma mercadoria. que formas de consciência como o idealismo, Se o fetichismo é uma característica da atual que são aparentemente desconectadas do real, sociedade (capitalista), e não das formulações também possam ser explicadas a partir de con- ou teorias sobre a sociedade, as inconsistências dições reais. teóricas por ele causadas não podem ser re- O modo como esse procedimento crítico se solvidas por meio de uma mera crítica lógico- apresenta em O capital é algo que será tratado -gnosiológica, mas sim por meio de uma crítica nas seções 2 e 3. Por agora, apontaremos algu- que pode ser caracterizada como ontológica. É mas das implicações gerais da investigação das esse ponto específico da abordagem de Bhaskar bases reais das falsas ideias. Esse procedimento e Lukács que pretendemos destacar. crítico, que segundo Lukács (2012) e Bhaskar Para cumprir nossa hipótese, estruturaremos (1998) seria extensivamente usado por Marx, é o artigo da seguinte maneira. Na seção 1 apre- chamado por Lukács de crítica ontológica e por sentaremos o que seria, na visão de Bhaskar e Bhaskar de crítica explanatória. Uma descrição também de Lukács, o método crítico de Marx. sucinta desse procedimento é oferecida por Na seção 2, defenderemos a adequação desse Medeiros (2013): método ao papel central adquirido pelo fetichis- A crítica explanatória ou ontológica refere-se, na mo da mercadoria em O capital. Por fim, na se- verdade, a um tríplice procedimento crítico: ção 3, defenderemos a adequação do método de (1) a demonstração da falsidade das crenças ou crítica ontológica aos desdobramentos teóricos teorias criticadas; realizados no Livro I. (2) a simultânea apresentação de uma explicação alternativa e mais abrangente da causalidade de fenômenos anteriormente significados através

138 das crenças ou teorias em questão; mundo social, diferentemente dos objetos do mundo (3) a indicação dos motivos reais que levam à natural, dependem de práticas humanas para se re- produção e sustentação das concepções equivo- produzir (por exemplo, um idioma se reproduz cadas, mistificadas e/ou ilusórias e, ainda, das com a fala, o mercado com compras e vendas condições sociais que facultam a própria crítica. etc.); (ii) práticas dependem de ideias prévias (Medeiros, 2013, p. 77-8) que as orientem (por exemplo, falar pressupõe O caráter propriamente ontológico da crítica está o conhecimento do idioma, comprar e vender no ponto (3), no qual se busca as causas reais do pressupõe um conhecimento de como realizar surgimento de teorias falsas socialmente difun- essas ações e do que elas significam etc.); (iii) didas. A interpretação de que a crítica teórica logo, a existência dos objetos do mundo social em Marx aponta para essas bases reais é assim depende de uma pré-conceituação, por parte acusada por Lukács: dos indivíduos, desses próprios objetos. Para [N]ão é casual que a frase sobre a ciência e a defender esses três pontos é necessário realizar relação “fenômeno-essência” [toda ciência seria um comentário sobre a concepção de Bhaskar a supérflua se a essência das coisas e sua forma respeito da conexão entre indivíduos e socieda- fenomênica coincidissem diretamente] seja de. Feito isso, voltaremos rapidamente aos três escrita por Marx no quadro de uma crítica aos pontos indicados. economistas vulgares, em polêmica com concep- ções e interpretações absurdas do ponto de vista Bhaskar, para defender uma concepção acerca do ser, que se fecham nas formas fenomênicas e da conexão entre sociedade e pessoa, parte de deixam inteiramente de lado as conexões reais. um comentário sobre as vantagens e os proble- A constatação filosófica de Marx tem aqui, portan- mas de outros modelos de explicação, dos quais to, a função de crítica ontológica a algumas falsas podemos destacar dois: o modelo weberiano, representações, ou seja, tem por meta despertar a consciência científica no intuito de restaurar no segundo o qual a sociedade seria uma cons- pensamento a realidade autêntica, existente em si. trução realizada pelos atos dos indivíduos, e o (Lukács, 2012, p. 295; itálicos adicionados) modelo durkheimiano, segundo o qual a socieda- de é externa aos indivíduos e funciona de modo Para além da constatação da existência da coercitivo sobre suas ações. crítica ontológica em Marx, uma pergunta que se coloca é sobre o motivo desse procedimento. Cada uma dessas perspectivas possui capacida- Uma explicação para isso pode ser encontrada de explanatória para uma dimensão da socie- em Roy Bhaskar (1998), cujo argumento pode dade e incapacidade explanatória para outra ser sintetizado como segue: (i) os objetos do dimensão. O modelo weberiano, por exemplo,

Revista da sociedade brasileira de economia política 139 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 é capaz de explicar a possibilidade de a ação humanas em geral na medida em que só se humana transformar a sociedade, mas ao custo mantém existindo se for por elas reproduzida. de não explicar como a sociedade pode coagir Por exemplo, e aqui se está refraseando ilustra- a ação individual em determinado sentido. Já ções do próprio Bhaskar, para que a instituição o modelo durkeimiano é capaz de explicar a família seja reproduzida é necessário que as coação do agir humano, mas incapaz de expli- pessoas em geral se casem, mesmo que parte car como ações humanas podem transformar dos indivíduos decida não fazê-lo; para que a a sociedade. Ao erro do modelo weberiano, sociedade capitalista se reproduza é necessário que hipervalorizaria a autonomia das práticas, que as pessoas em geral trabalhem, mesmo que Bhaskar dá o nome de voluntarismo. Ao erro do parte dos indivíduos decida também não fazê- modelo durkheimiano, que hipervalorizaria a -lo. (ibidem, p. 215)

autonomia das estruturas sociais, Bhaskar dá o Uma conclusão a partir do final do parágrafo nome de reificação. anterior é que objetos do mundo social dependem Para resolver essa antinomia que perpassa as de práticas humanas para se reproduzir, exata- ciências da sociedade, a proposta de Bhaskar é mente a defesa do ponto (i) apresentado acima.2

formular um modelo que caracteriza a prática Para a defesa do ponto (ii), segundo o qual as humana e a sociedade como duas entidades práticas dependem de ideias prévias que as orien- ontologicamente distintas, porém internamente tem, temos que tratar especificamente daquelas dependentes. Assim, a prática humana, apesar categorias que dizem respeito às práticas huma- de diferente da sociedade na medida em que nas. Bhaskar destaca que as práticas humanas é dotada de características específicas, como são dotadas de fenômenos específicos, como a consciência e intencionalidade, é dependente da intencionalidade, fenômenos que estão presen- sociedade na medida em que só é exercida se tes no âmbito das práticas e ausentes no âmbito houver condições colocadas pela própria socie- das estruturas sociais. (ibidem, p. 215-6) E inten- dade. Por exemplo, “[a] fala requer a linguagem; ções dependem de ideias para indicar aos indi- a fabricação, materiais; as ações, condições; o víduos tanto as finalidades a serem perseguidas agir, recursos; a atividade, regras” (Bhaskar, como os meios para atingi-las. Assim, pode-se 1998, p. 214). Já a sociedade, apesar de diferente facilmente afirmar que as práticas dependem de da prática humana na medida em que é dotada ideias prévias que as orientem. de características específicas (como estruturas Se, por outro lado, essas práticas são compatí- que possuem independência de uma prática veis com a reprodução (ou com a transformação humana particular), é dependente das práticas

140 em um determinado sentido) das estruturas instância de explicação dos resultados da crítica sociais, é necessário um conjunto de ideias ade- lógico-gnosiológica. Em outras palavras, a quadas a esse tipo de práticas. A partir disso, crítica ontológica é decorrência necessária da pró- pode-se defender o ponto (iii), segundo o qual a pria crítica lógico-gnosiológica. É condição para existência dos objetos do mundo social depende de a explicação dos próprios resultados da crítica uma pré-conceituação, por parte dos indivíduos, lógico-gnosiológica. desses próprios objetos. Em O capital, talvez o capítulo onde essa prima- De acordo com esse raciocínio, a sociedade é zia da crítica ontológica é apontada de modo inseparável das ideias sobre ela, o que faz a mais explícito é o Capítulo XLVIII do Livro III, análise teórica ser, entre outras coisas, uma intitulado “A fórmula trinitária”. Os trechos a análise das concepções que sustentam a sociedade. seguir são bem ilustrativos das bases ontológi- Esse resultado, por si só importante, leva a cas de ideias logicamente refutadas, e isso tanto um segundo: se ideias socialmente difundidas no nível cotidiano quanto no nível teórico. orientam práticas socialmente difundidas, e, Primeiro, no nível cotidiano: portanto, sustentam determinada configuração […] é, no entanto, igualmente natural que os social, isso significa que ideias são sustenta- agentes reais da produção se sintam completa- das não somente por critérios cognitivos, como o mente à vontade nessas formas alienadas e irra- critério da verdade, mas também por critérios que cionais de capital – juros, terra – renda, trabalho dizem respeito a necessidades ligadas ao objeto das – salário, pois elas são exatamente as configura- ções da aparência em que eles se movimentam e práticas, i.e., à própria sociedade. Assim, mesmo com as quais lidam cada dia. (Marx, 1985, p. 280) as falsas ideias, quando socialmente difundi- das, possuem uma razão de ser que vai além de Depois, no nível teórico: critérios cognitivos. É dessa razão de ser que se Por isso é igualmente natural que a Economia ocupa a crítica ontológica. vulgar, que não é nada mais do que uma tra- dução didática, mais ou menos doutrinária, De acordo com esse raciocínio que, segun- das concepções cotidianas dos agentes reais da do Bhaskar, seria também empregado em A produção, nas quais introduz certa ordem com- ideologia alemã e O capital, a crítica lógico- preensível, encontre, exatamente nessa trindade -gnosiológica, i.e., a demonstração da falsidade em que todo o nexo interno está desfeito, a base de determinada concepção, levaria necessaria- natural e sublime, acima de toda e qualquer mente, em decorrência da própria relação entre dúvida, de sua jactância superficial. (Marx, 1985, objeto e ideias, à crítica ontológica, que é a p. 280)

Revista da sociedade brasileira de economia política 141 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 A partir da constatação do caráter teórico- Ciência envolve necessariamente argumentar -dependente dos objetos do mundo social e, contra teorias e visões das pessoas, isto é, opor-se por conseguinte, da constatação da necessida- criticamente a elas: ou, como dizemos às vezes, atacá-las. A representação da ciência simples- de de uma crítica ontológica das concepções mente como uma tentativa de compreender o que sustentam esses objetos, pode-se fornecer mundo esquece que seu intuito ao fazê-lo envol- uma explicação da 11ª tese sobre Feuerbach, ve também a mudança daquela parte do mundo segundo a qual “[o]s filósofos apenas interpre- que consiste de entendimento equivocado. “O taram o mundo de diferentes maneiras; o que real é parcialmente irracional: mude-o” – este é o importa é transformá-lo”. (Marx, 2007, p. 535) imperativo da ciência. (Edgley, 1998, p. 406) Isso porque, se ideias socialmente difundidas A crítica ontológica, portanto, além de colocar orientam práticas socialmente difundidas e, por como tarefa adicional para a ciência da socieda- conseguinte, sustentam determinados objetos de a mudança da parte da realidade que decorre do mundo social, uma determinada reinterpre- de entendimento equivocado, aponta também tação do mundo pode colocar como imperativo a limitação da ciência em eliminar a concepção uma transformação das práticas e, portanto, do sob análise justamente porque a eliminação de próprio mundo. Levando em consideração espe- tal concepção pressupõe a eliminação do objeto cificamente as ideias falsas, ideias que colocam que a requer. Essa é uma explicação para a ên- a necessidade dessa reinterpretação do mundo fase de Marx na prática transformadora.3 pode-se afirmar que, se um determinado objeto Essa parece ser também a base para a crítica social requer ideias falsas para subsistir, e se das formas de apreensão contemplativa do ideias falsas podem ser negativamente valora- mundo. No manuscrito “Feuerbach e história”, das (simplesmente por serem falsas, por não que compõe A ideologia alemã, essa rejeição à atenderem ao valor da verdade), pode-se valo- apreensão contemplativa é realizada justamente rar negativamente o próprio objeto que requer a partir da defesa do caráter prático-dependente essas ideias para existir, e assim transitar de do mundo social: uma valoração negativa dessas ideias para uma valoração negativa do objeto que requer essas [N]a contemplação do mundo sensível, ele [Feuer- bach] se choca necessariamente com coisas que ideias. Roy Edgley sintetiza bem esse tipo de contradizem sua consciência e seu sentimento, trânsito da crítica das ideias (crítica lógico-gno- que perturbam a harmonia, por ele pressuposta, siológica) para a crítica do próprio objeto que as de todas as partes do mundo sensível e sobretudo requer (a crítica ontológica): do homem com a natureza. Ele não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa

142 dada imediatamente por toda a eternidade e mercadoria uma etapa necessária à crítica das sempre igual a si mesma, mas o produto da demais categorias econômicas e de todo o modo indústria e do estado de coisas da sociedade, de produção capitalista. Cumprido este objeti- e isso precisamente no sentido de que é um vo, poderemos defender na próxima seção que produto histórico, o resultado da atividade de essa conexão objetiva (ontológica) explica o tipo toda uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram de procedimento crítico (lógico-gnosiológico) sua indústria e seu comércio e modificaram sua realizado ao longo dos três livros de O capital, ordem social de acordo com as necessidades que é de desdobramento lógico das categorias alteradas. Mesmo os objetos da mais simples econômicas a partir da forma mercadoria. “certeza sensível” são dados a Feuerbach apenas Como é da mercadoria que Marx desdobra as por meio do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial. Como se sabe, a cere- demais categorias econômicas, o primeiro passo jeira, como quase todas as árvores frutíferas, foi do nosso argumento sobre a crítica ontológica transplantada para nossa região pelo comércio, em O capital é tratar justamente da forma mer- há apenas alguns séculos e, portanto, foi dada à cadoria. Mercadoria antes de tudo é uma coisa “certeza sensível” de Feuerbach apenas mediante que, por suas propriedades, satisfaz necessida- essa ação de uma sociedade determinada numa des humanas, i.e., antes de tudo é uma coisa determinada época. (Marx & Engels, 2007, pp. útil. E tem que ser assim porque uma coisa que 30-1) não satisfaça nenhuma necessidade humana, O objetivo nesta seção foi apontar aquele pro- seja ela do estômago ou da fantasia, simples- cedimento crítico que acreditamos ser o utili- mente não é produzida. zado em O capital, que é de crítica ontológica. Esse caráter útil, entretanto, não é algo sub- Nas seções 2 e 3, a seguir, o objetivo é mostrar, jetivo ou místico, mas sim determinado pelas concretamente, a aplicação desse método em O propriedades objetivas, físicas, materialmente capital. inerentes à mercadoria.4 É isso que faz dela um valor de uso. Portanto, o valor de uso é o corpo 3. O fetichismo da mercadoria e a for- (parte material, tangível) da mercadoria, além mulação de falsas ideias de ser o conteúdo material da riqueza em qual- O objetivo nesta seção é defender que a forma quer forma de sociedade. Na sociedade espe- mercadoria é o fundamento objetivo (base onto- cífica em que vivemos, o valor de uso torna-se lógica) das categorias econômicas no capitalis- também portador material do seu contrário, o mo, e, em decorrência disso, torna a crítica da valor de troca.

Revista da sociedade brasileira de economia política 143 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 Vamos nos voltar agora para esse segundo Essa substância, o algo igual que estabelece a aspecto da mercadoria, que é o valor de troca. comensurabilidade e, assim, a possibilidade Valor de troca de uma determinada mercadoria do valor de troca, não pode estar nos valores é a quantidade de outra mercadoria que pode de uso. No raciocínio de Marx, se deixamos de ser obtida por ela no processo de troca (por lado os valores de uso, resta às mercadorias ape- exemplo, x da mercadoria ouro pode obter, por nas que elas são produtos do trabalho humano. meio da troca, y da mercadoria prata). Em ou- No entanto, o trabalho que produz as merca- tras palavras, valor de troca é a relação quanti- dorias é sempre trabalho concreto, qualitati- tativa pela qual se trocam duas mercadorias, ou vamente específico. Se a intenção é encontrar a equação da troca pela qual dois valores de uso o algo igual que estabelece a possibilidade da diferentes são equiparados (por exemplo, x ouro equiparação, e, portanto, da troca das mercado- = y prata). rias, devemos desconsiderar também as diferen- Mas se valor de troca é isso, uma pergunta ças qualitativas entre os trabalhos que produ- que se apresenta é como são determinados os zem as diversas mercadorias e buscar apenas a diferentes valores de troca das mercadorias. sua dimensão comum. Essa dimensão comum Marx busca responder a essa pergunta buscan- entre os trabalhos é que todos eles são dispên- do o que há de comum nas mercadorias que dio de força humana, seja ela dos músculos são comparadas no mercado. Isso porque, como ou do cérebro. E o trabalho abstraído de suas qualquer equiparação tem por pressuposto algo características específicas, o trabalho abstrato, comum a ser comparado (por exemplo, não se é a substância do valor. Com isso, uma equação pode comparar peso do ouro ao ponto de fusão de troca (forma do valor) como x ouro = y prata da prata, mas apenas os pesos de ambos ou os pode ser reescrita como a igualação do nível de pontos de fusão de ambos), a equiparação das esforço humano necessário à produção de cada mercadorias tem por pressuposto que elas sejam uma dessas mercadorias.5 reduzidas a uma dimensão comum, quer os in- Neste ponto é importante destacar que Marx divíduos envolvidos na troca saibam, quer não estabelece um método teórico de desconsiderar saibam que dimensão é essa. Esse algo comum as diferenças entre os diversos trabalhos porque não pode ser dado pelo valor de uso, pois sob essa é a maneira mais adequada de tratar do esse aspecto as mercadorias são qualitativamen- que realmente ocorre no mercado. O trabalho te diferentes (afinal, valores de uso iguais não se é abstrato não no sentido meramente teórico trocam). Mas enquanto valores, por outro lado, (gnosiológico), mas no sentido real (ontológico): as mercadorias são coisas de igual substância.

144 se o trabalho é, na própria realidade sob análise, forma do valor, e isso apesar de ser a análise da o algo comum entre as mercadorias, não pode forma do valor (procedimento teórico, lógico- sê-lo quando considerado em seu caráter con- -epistemológico) que permite a identificação creto, que varia de mercadoria para mercadoria, desse caráter fetichista da mercadoria. Segui- mas somente em seu caráter abstrato. Esse é o remos esse procedimento de Marx de analisar pressuposto real, consciente ou não, da troca, e primeiro a forma do valor e só depois o fetichis- por isso deve é levado em consideração na teo- mo da mercadoria, para então argumentar que ria. A teoria de Marx leva em consideração esse o fetichismo da mercadoria já está presente na caráter ontológico. forma mais simples do valor, 1, já está presente tão logo exista valor. Como afirmamos acima, na atual sociedade, na qual predomina o modo de produção capi- A forma do valor desenvolve-se com a amplia- talista, a mercadoria é a forma da riqueza, i.e., ção das necessidades impostas por um volume a forma do valor de uso. Esta forma da riqueza crescente de trocas. A generalização do processo consiste na unidade contraditória entre valor de troca faz surgir uma contradição entre o de uso e valor, e é nela que Marx encontra a caráter particular do valor de uso da mercado- origem do fetichismo da mercadoria. Entre- ria e a necessidade de sua comparação com as tanto, o autor não argumenta que o fetichismo demais mercadorias no processo de troca. E, da mercadoria venha nem do valor de uso e apesar de o valor entrar em contradição com a nem do valor. O fetichismo é característica da particularidade dos valores de uso, não pode própria forma mercadoria, i.e., do fato de que os eliminar essa particularidade visto que ela é produtores relacionam-se não diretamente, mas pressuposto da troca (valores de uso iguais não por meio das relações entre os produtos de seu se trocam). trabalho. É essa contradição que, com o avanço da Apesar de o fetichismo da mercadoria não vir economia mercantil, leva ao desenvolvimento do valor de troca, Marx formula a sua existên- da forma do valor. Isso porque à medida que o cia a partir da análise do desenvolvimento do volume de trocas vai aumentando e adquirin- valor de troca (ou desenvolvimento da forma do maior importância na sociedade, o caráter do valor). O fetichismo seria uma caracterís- particular do valor de uso, que não possibilita tica (real, ontológica) da forma de mercadoria equiparação com outras mercadorias, se coloca assumida pelos produtos do trabalho, além como um empecilho cada vez maior à troca, de ser o determinante do desenvolvimento da isto é, se contrapõe cada vez mais ao valor, e

Revista da sociedade brasileira de economia política 145 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 isso exige que o valor possua uma expressão espécie diferente, seja numa série de muitas mer- cada vez mais separada dos valores de uso. cadorias diferentes dela. Em ambos os casos é, Com a contradição entre valor e valor de uso, a por assim dizer, questão particular da mercado- ria individual dar-se uma forma valor e ela o re- forma simples do valor, na qual uma mercadoria aliza sem que contribuam as outras mercadorias. específica possui uma permutabilidade direta Estas desempenham, contrapostas a ela, o papel apenas com uma outra mercadoria específica, meramente passivo do equivalente. A forma valor torna-se insuficiente quando as trocas adqui- geral surge, ao contrário, apenas como obra comum rem maior importância. Todavia, como lembra do mundo das mercadorias. [...] Evidencia-se, com Marx, “o problema surge simultaneamente isso, que a objetividade do valor das mercadorias, com os meios de sua solução” (Marx, 1996, p. por ser a mera “existência social” dessas coisas, somente pode ser expressa por sua relação social 213).6 A forma total ou extensiva do valor supera por todos os lados, e sua forma, por isso, tem de essa dificuldade na medida em que o valor da ser uma forma socialmente válida. (Marx, 1996, mercadoria passa a ser representado numa série p. 193; itálicos adicionados) de outras mercadorias, o que implica perda de O valor, ao mesmo tempo em que se separa importância do valor de uso específico no qual dos valores de uso particulares, passando a se se manifesta. Mas, de acordo com o autor, a am- expressar em uma mercadoria específica, se alça pliação do volume de trocas com o desenvolvi- ao patamar de articulador impessoal dos dife- mento do caráter mercantil da sociedade torna rentes produtos do trabalho, ao papel de funda- insuficiente também essa forma, pois: “Primei- dor de uma forma de sociabilidade baseada na ro, a expressão relativa de valor da mercadoria é relação entre as mercadorias. A forma do valor incompleta, porque sua série de representações deixa de estar restrita a cada troca específica e não termina nunca. […] Segundo, ela forma um passa se colocar como o elemento articulador mosaico colorido de expressões de valor, desco- das trocas. De elemento subordinado a outros nexas e diferenciadas” (ibidem, p. 191). A insufici- tipos de relações sociais, passa a elemento ativo ência dessa forma exige que uma única merca- e criador de relações. doria sirva de referência para o valor de todas as outras, caracterizando a forma geral do valor. A forma dinheiro do valor, que sucede a forma geral, só se diferencia da anterior pelo fato de A forma geral do valor tem uma diferença qua- o ouro passar a ser a mercadoria que assume o litativa importante com relação às duas formas papel de forma ou de expressão do valor. antecedentes: As duas formas anteriores expressam o valor de Na passagem seguinte, Marx resume o proces- cada mercadoria, seja numa única mercadoria de so, gerado pela contradição entre valor e valor

146 de uso, de desdobramento da mercadoria em do valor como articulador de relações, caracte- mercadoria e dinheiro: rística que já está presente na forma simples do A ampliação e aprofundamento históricos da valor (afinal, se todo o processo destacado é de troca desenvolvem a antítese entre valor de uso desenvolvimento da forma do valor, isso signi- e valor latente na natureza da mercadoria. A fica que o valor estava já no começo), torna-se necessidade de dar a essa antítese representa- teoricamente apreensível (âmbito gnosiológico) ção externa para a circulação leva a uma forma apenas na forma mais desenvolvida do valor, a independente do valor da mercadoria e não se forma dinheiro, pois é nela que as determina- detém nem descansa até tê-la alcançado definiti- ções do valor estão desenvolvidas a ponto de vamente por meio da duplicação da mercadoria 9 em mercadoria e em dinheiro. Na mesma medi- explicitar o próprio valor. da, portanto, em que se dá a transformação do Desde que o valor assume a forma dinheiro, é produto do trabalho em mercadoria, completa- claro aos indivíduos no processo de troca que -se a transformação da mercadoria em dinheiro. as mercadorias têm a propriedade relacionar-se (Marx, 1996, p. 211-2) por si mesmas com relativa autonomia: quando Nessa forma, a contradição entre valor e valor duas mercadorias que são trocadas referenciam- de uso, apesar de não ser eliminada, cria o meio -se numa terceira (o dinheiro) não são os que possibilita a continuidade do movimento indivíduos que definem a proporção de troca, da troca: o dinheiro, sendo a mercadoria que mas uma força social que parece decorrer das 7 tem como seu valor de uso específico a função próprias mercadorias; quando duas mercadorias de servir de equivalente geral da riqueza, dá são trocadas, não são indivíduos que definem o 8 uma forma relativamente autônoma ao valor e, seus preços de mercado (forma do valor), mas o portanto, o liberta das restrições colocadas pelo próprio mercado. No entanto, apesar de ser uma caráter particular dos valores de uso. característica real que as mercadorias se autor- Tendo em vista a forma mais evoluída do valor, referenciam no mercado, essa característica real a forma dinheiro, é possível observar dois é atribuição às mercadorias de uma capacidade resultados desse processo de desenvolvimento: que elas não têm. Portanto, esse caráter fetichis- primeiro, o valor ganha expressão relativamente ta da mercadoria, que é real porque socialmente autônoma quanto ao valor de uso; e, segundo, atribuído, é analisado por Marx para desvendar torna-se possível apreender teoricamente o valor o mecanismo social que gera esse processo pe- como o articulador das relações sociais de pro- las costas dos indivíduos que trocam. dução. A característica real (âmbito ontológico)

Revista da sociedade brasileira de economia política 147 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 O fetichismo é uma característica que a merca- teórica da forma dinheiro é possível formular a doria realmente possui, e Marx busca explicar a existência de um caráter fetichista das merca- sua existência. Descoberto o valor como o algo dorias, i.e., de sua aparente capacidade de se re- comum às diversas mercadorias, a análise da lacionar de modo direto com as demais merca- sua forma permite descobrir qual característica dorias, ocupando o lugar dos produtores como possibilita que as mercadorias relacionem-se sujeitos da relação. Mas apesar dessa formula- aparentemente por si mesmas com as demais ção do fetichismo da mercadoria ser possível a mercadorias: partir da análise do desenvolvimento da forma [A] forma mercadoria e a relação de valor dos do valor, o próprio desenvolvimento da forma produtos de trabalho, na qual ele se representa, tem por pressuposto o fetichismo da mercado- não têm que ver absolutamente nada com sua ria, como fica claro na passagem em que Marx natureza física e com as relações materiais que afirma que o fetichismo “adere aos produtos daí se originam. Não é mais nada que determi- de trabalho, tão logo são produzidos como nada relação social entre os próprios homens que mercadorias, e que, por isso, é inseparável da para eles aqui assume a forma fantasmagórica de produção de mercadorias”, e isso independente- uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região mente de o valor ter como forma de expressão nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produ- o dinheiro ou outra mercadoria qualquer. Isso tos do cérebro humano parecem dotados de vida fica claro também quando Marx, logo no início própria, figuras autônomas, que mantêm rela- da descrição da forma simples do valor, afirma ções entre si e com os homens. Assim, no mundo que “[o] segredo de toda forma de valor encerra- das mercadorias, acontece com os produtos da -se nessa forma simples de valor” e que “[n]a sua mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere análise reside a verdadeira dificuldade” (ibidem, aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos p. 177). como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (Marx, 1996, p. 198- Tais relações são especificamente sociais, mas, 9; itálicos adicionados) por serem mediadas por coisas (mercadorias), Apesar de o fetichismo da mercadoria existir se dão como relação de coisas. Portanto, o desde que existe valor e, portanto, existir já na fetichismo da mercadoria surge junto com o forma simples, é a existência real da forma mais surgimento das próprias mercadorias, apesar de desenvolvida do valor, a forma dinheiro, que só poder ser apreendido conceitualmente tão permite descobrir teoricamente o fetichismo da logo se tenha apreendido o valor como conteú- mercadoria e o próprio valor. A partir da análise do do valor de troca e o trabalho abstrato como substância do valor.

148 As relações sociais estabelecidas na produção da condição de produtos de trabalho humano são relações entre produtores de mercadorias. em geral (conteúdo) que todas as mercadorias No entanto, Marx, para destacar o protagonis- possuem. A forma dinheiro, portanto, não é a mo que as mercadorias assumem nessas relações forma do valor na qual surge o fetichismo da sociais, afirma, logo no começo do primeiro ca- mercadoria, mas a forma máxima do desenvolvi- pítulo de O capital, que as mercadorias (linho, mento do valor de troca e, portanto, a expressão casaco, ferro etc.) parecem relacionar-se entre si mais desenvolvida do fetichismo da mercadoria. como trabalho abstrato incorporado e que a sua É justamente essa forma acabada – a forma- expressão como ouro (forma dinheiro) ou como -dinheiro – do mundo das mercadorias que vela outro valor de uso qualquer não faz diferença materialmente [sachlich], em vez de revelar, o quanto a esse ponto. caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores priva- Quando digo que o casaco, a bota etc. se relacio- dos. (Marx, 1996, p. 201) nam com o linho sob a forma da incorporação geral de trabalho humano abstrato, salta aos Pouco antes desse trecho, Marx ainda comenta olhos a sandice dessa expressão. Mas quando os o porquê de o caráter fetichista da mercadoria produtores de casaco, bota etc. relacionam essas ser analisado nessa forma invertida. mercadorias ao linho – ou com o ouro e a prata, A reflexão sobre as formas de vida humana, e, o que não altera em nada a questão – como portanto, também sua análise científica, segue equivalente universal, a relação de seus traba- sobretudo um caminho oposto ao desenvolvi- lhos privados com seu trabalho social total lhes mento real. Começa post festum e, por isso, com aparece exatamente nessa forma insana. (Marx, os resultados definitivos do processo de desen- 1996, p. 201) volvimento. As formas que certificam os produ- Essa citação de Marx, quando afirma que tos do trabalho como mercadorias e, portanto, relacionar as mercadorias ao linho ou ao ouro e são pressupostos da circulação de mercadorias, à prata não altera em nada a questão, também já possuem a estabilidade de formas naturais da indica que o fetichismo da mercadoria é ante- vida social, antes que os homens procurem dar- -se conta não sobre o caráter histórico dessas for- rior ao dinheiro, apesar de só com ele adquirir mas, que eles antes já consideram imutáveis, mas sua expressão mais desenvolvida. A igualdade sobre seu conteúdo. Assim, somente a análise dos de valor das mercadorias, pressuposto da forma preços das mercadorias levou à determinação da dinheiro, só pode apresentar-se na igualdade grandeza do valor, somente a expressão mone- das mercadorias como valores de troca. E o de- tária comum das mercadorias levou à fixação de senvolvimento do valor de troca (forma) é o de- seu caráter de valor. (Marx, 1996, p. 201) senvolvimento da capacidade de manifestação

Revista da sociedade brasileira de economia política 149 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 Depois de apresentado o argumento de Marx Essa passagem ainda sinaliza, na medida em de que o fetichismo está presente desde que que afirma que “[t]ais formas constituem pois existe mercadoria e que, portanto, antecede o as categorias da economia burguesa”, a cone- desenvolvimento da forma do valor, podemos xão entre caráter fetichista da mercadoria e as comentar agora como desse caráter fetichista categorias econômicas que são analisadas em O decorrem falsas ideias. capital. Uma decorrência direta do fetichismo da mercadoria, que já é apresentada na Seção O próprio fetichismo da mercadoria, apesar de I do Livro I, é o fetiche do dinheiro10, outra ser um fenômeno objetivo, existe ligado a falsas forma socialmente objetiva que é associada a ideias. É um fenômeno objetivo que as relações falsas ideias. Com o desenvolvimento da forma sociais se apresentem como relação entre merca- do valor até a forma dinheiro, na qual a merca- dorias, mas é uma falsa ideia considerar que as doria ouro assume a hegemonia na posição de relações sociais são das mercadorias e não dos equivalente geral, e na qual o ouro é desejado produtores. Somente seres humanos podem ter não por suas propriedades físicas que fazem relações sociais, e isso mesmo que essas relações dele um valor de uso, mas por seu valor de uso sejam indiretas e que as mercadorias assumam formal de ser o equivalente geral, o dinheiro não só o papel de mediação mas também de passa a ser o meio de obtenção da riqueza e, por protagonismo dessas relações. isso, aparece como a própria riqueza. Abaixo, O caráter ao mesmo tempo falso e socialmen- Marx comenta a base real das falsas ideias de te válido dessa ideia é afirmado por Marx no considerar o dinheiro como a própria riqueza, seguinte trecho: o capital como uma coisa com propriedades Tais formas constituem pois as categorias da sociais e a terra como a fonte de um excedente economia burguesa. São formas de pensamento social: socialmente válidas e, portanto, objetivas para as De onde provieram as ilusões do sistema mo- condições de produção desse modo social de pro- netário? Não reconheceu ao ouro e à prata que dução, historicamente determinado, a produção eles representam, como dinheiro, uma relação de mercadorias. Todo o misticismo do mundo social de produção, porém, na forma de objetos das mercadorias, toda a magia e a fantasmagoria naturais com insólitas propriedades sociais. E que enevoam os produtos de trabalho na base a Economia moderna, que sobranceira olha o da produção de mercadorias desaparecem, por sistema monetário de cima para baixo, não se isso, imediatamente, tão logo nos refugiemos em torna evidente seu fetichismo logo que trata do outras formas de produção. (Marx, 1996, p. 201-2) capital? Há quanto tempo desapareceu a ilusão

150 fisiocrática de que a renda da terra origina-se do Na próxima seção, faremos uma ilustração de solo e não da sociedade? (Marx, 1996, p. 207) como a mercadoria, por ser a forma da riqueza Ao longo de O capital Marx realiza o procedi- na atual sociedade, é ponto de partida para mento de analisar as categorias econômicas em explicar as demais categorias econômicas e, por sua objetividade socialmente válida, i.e., bus- isso, o caráter fetichista da mercadoria é o fun- cando explicar como as categorias específicas damento tanto das falsas ideias sobre o dinheiro desse modo de produção se desenvolvem e como quanto das demais falsas ideias (sobre o capital, elas provocam nos indivíduos determinadas sobre o valor da força de trabalho etc.). Todo imagens de mundo. Por exemplo, o autor busca esse procedimento crítico de O capital, ao ana- a categoria que explica o processo de troca (o lisar o desenvolvimento das categorias específi- valor) e como ela induz os agentes ao compor- cas do capitalismo, demonstra que são requeri- tamento de busca de dinheiro (forma especí- das falsas ideias que, apesar de falsas, possuem fica do valor), comportamento que atribui ao validade social objetiva. Trata-se, portanto, de dinheiro propriedades sociais que ele não pode crítica das condições reais que geram as fal- ter. Por isso, falsas ideias sobre essas categorias sas ideias – exatamente o tipo de crítica que estão ligadas à sua objetividade, e não a algum Lukács (2012) chama de crítica ontológica e que tipo de erro cognitivo por parte dos indivíduos: Bhaskar (1998) chama de crítica explanatória. se os indivíduos acreditam que as mercadorias ou o dinheiro possuem propriedades que eles 4. O fetichismo da mercadoria e o des- não têm, isso ocorre não porque essas proprie- dobramento lógico de categorias no dades são erroneamente atribuídas pelos indi- Livro I de O capital víduos, mas porque são realmente atribuídas Marx afirma, já na primeira frase de O capital, pela sociedade e reconhecidas pelos indivíduos que a análise começa pela mercadoria porque a enquanto tal. Por exemplo, numa sociedade em riqueza em nossa sociedade se apresenta como que os valores de uso assumem generalizada- imensa acumulação de mercadorias. (Marx, mente a forma de mercadorias, as relações entre 1996, p. 165) Isso já nos indica, de saída, que a os produtores apresentam-se generalizadamente forma mercadoria é fundamento do restante das como relações entre coisas (as mercadorias), e categorias analisadas em O capital. Se é assim, o o desdobramento da mercadoria em categorias fetichismo, característica da mercadoria, estará como dinheiro e capital é, ao mesmo tempo, presente nas demais categorias econômicas. o desenvolvimento da reificação das relações entre produtores.

Revista da sociedade brasileira de economia política 151 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 Essa formulação, por vezes, suscita o questio- de mercadorias, ao examinar a mercadoria e o namento de que o fetichismo seria uma formu- dinheiro, já demonstramos o caráter mistifica- lação filosófica, pré-científica, e, por isso, não dor que transforma as relações sociais, a que os elementos materiais da riqueza servem como seria adequada para avaliar o âmbito econômi- portadores na produção, em propriedades dessas co. Sobre esse ponto, comenta Néstor Kohan: próprias coisas (mercadorias) e, de modo ainda Marx realiza uma teoria científica em O capital mais explícito, a própria relação de produção em porque critica a Economia Política e porque essa uma coisa (dinheiro). Todas as formas sociais, à crítica se baseia na crítica ao fetichismo deste medida que levam à produção de mercadorias e à conjunto de formulações. Portanto, a crítica ao circulação de dinheiro, participam dessa distorção. fetichismo não só não é “pré-científica”, como (Marx, 1985, p. 277-278; itálicos adicionados) funda a própria possibilidade da ciência. (Kohan, Já apresentamos na seção anterior que no Livro 2001, p. 163) I de O capital o fetichismo da mercadoria tem Tomaremos essa formulação de Kohan como como desdobramento o fetiche do dinheiro. hipótese nesta seção, no qual defenderemos que Além dele, outro desdobramento é o fetiche do o Livro I de O capital é estruturado como um capital, que é a atribuição ao capital de carac- desdobramento lógico e teórico de categorias terísticas que são sociais. O dinheiro (forma do econômicas a partir da forma mercadoria e valor em seu estágio mais desenvolvido) trans- que, por isso, essas categorias têm um caráter forma-se em capital quando deixa de ser meio fetichizado. de troca e transforma-se no próprio objetivo no Apesar de o nosso comentário ser sobre o Livro processo de circulação, i.e., transforma-se em I, no final do Livro III Marx faz um comentário capital quando o objetivo na circulação é lançar a respeito dos desdobramentos teóricos realiza- dinheiro para retirar mais dinheiro (circuito D dos no início de O capital, desde o começo do – M – D’). Se dinheiro é forma do valor, então Livro I. Referimo-nos novamente ao Capítulo a sua transformação em capital significa que XLVIII do Livro III, no qual o autor já indica valor é lançado na circulação com o objetivo de que todas as formas sociais que apresentam o obter mais-valor.11 E valor que se valoriza por mundo de modo distorcido e que, portanto, si mesmo é fetiche, já que essa é uma caracte- merecem análise, decorrem da forma mercado- rística social atribuída a uma coisa (no caso, ao ria e, portanto, estão envolvidas pelo fetichismo capital). da mercadoria: A própria estrutura de O capital reflete um des- Ao examinar as categorias mais simples do modo dobramento de categorias a partir do fetichismo de produção capitalista e mesmo da produção

152 da mercadoria. Essa estrutura vale não apenas da produção e, na imediata sequência, comenta para a ordenação dos três livros, mas para a sobre o aumento das distorções geradas com ordenação interna de cada livro. No Livro I, por a formação do modo de produção capitalista. exemplo, a Seção I, “Mercadoria e dinheiro”, na Abaixo, a primeira passagem: qual Marx expõe o caráter fetichista da merca- [N]o modo de produção capitalista e no caso do doria e demonstra que o seu desenvolvimento capital, que constitui sua categoria dominante, leva ao fetichismo do dinheiro, é seguida pela sua relação de produção determinante, esse mun- Seção II, “A transformação do dinheiro em capi- do encantado e distorcido se desenvolve muito tal”, que é um novo desdobramento do fetiche mais. Considerando-se inicialmente o capital no processo de produção imediato – como sugadou- da mercadoria, mediado pelo fetiche do dinhei- ro de mais-trabalho, então essa relação é ainda ro, e que revela o caráter igualmente fetichi- muito simples e o nexo interno real se impõe aos zado do capital. Na sequência, na Seção III, “A portadores desse processo, aos próprios capita- produção do mais-valor absoluto”, há um novo listas e está em sua consciência. A violenta luta desdobramento, dessa vez a partir do capital. Se em torno dos limites da jornada de trabalho capital é valor que se valoriza, a sua valorização demonstra isso de modo contundente. (Marx, requer extração de valor de alguma fonte, e se 1985, p. 278) as trocas são de equivalentes, a extração genera- Mas na sequência Marx afirma que à medi- 12 lizada de valor não pode se dar na circulação. da que se desenvolve a produção de valor, o Como a substância do valor é o trabalho, é no que implica relações sociais apresentando-se processo de trabalho que ocorre o processo de cada vez mais sob a forma de coisas, surge um valorização, i.e., é no processo de trabalho que conjunto crescente de falsas ideias relacionadas ocorre a produção do mais-valor. Portanto, a a essas formas reificadas. Um desdobramento transformação do dinheiro (forma do valor) da reificação crescente é revelada na Seção IV em capital (valor que se valoriza) requer que a do Livro I, “A produção do mais-valor relativo”: produção de valores de uso assuma a forma de com o desenvolvimento do mais-valor relativo, produção de valor. as forças produtivas apresentam-se cada vez Ainda sobre Seção III do Livro I (“A produção mais deslocadas do trabalho social para uma do mais-valor absoluto”), Marx comenta que na coisa (o capital). O comentário de Marx, do produção de valor surge um conjunto de cate- Livro III, lida com o mesmo tema: gorias econômicas que dissimulam o processo Mas mesmo dentro dessa esfera não mediada, na real. Numa primeira passagem, Marx comenta esfera desse processo imediato entre trabalho e sobre o caráter ainda pouco distorcido da esfera capital, isso não fica tão simples. Com o desen-

Revista da sociedade brasileira de economia política 153 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 volvimento do mais-valor relativo no autêntico apenas pelos setores que produzem meios de modo de produção especificamente capitalista, subsistência dos trabalhadores, mas por todos com que se desenvolvem as forças produtivas os setores na medida em que empregam tra- sociais do trabalho, essas forças produtivas e as balho. Como o mais-valor relativo decorre da conexões sociais do trabalho aparecem no pro- busca por mais-valor extra, a fonte da amplia- cesso imediato de trabalho como deslocadas do trabalho para o capital. (Marx, 1985, p. 278) ção do mais-valor não fica clara aos agentes no processo de produção. Sobre essa diferença entre A apropriação do mais-valor relativo (Marx, objetivo do capitalista individual e o resultado 1996, p. 429-38) é decorrência inconsciente da de suas ações, comenta Marx: busca, pelos diversos capitalistas, do mais-valor Quando um capitalista individual mediante o extra. Se um capitalista individual consegue aumento da força produtiva do trabalho barateia, ter uma produtividade acima da média, i.e., se por exemplo, camisas, não lhe aparece necessa- consegue produzir mercadorias com uma quan- riamente como objetivo reduzir o valor da força tidade de trabalho inferior à média, ele pode de trabalho e, com isso, o tempo de trabalho se apropriar de um mais-valor extra ao vender necessário pro tanto, mas na medida em que, a mercadoria por um preço acima de seu valor por fim, contribui para esse resultado, contri- individual. buirá para elevar a taxa geral de mais-valor. As tendências gerais e necessárias do capital devem É óbvio que esse mais-valor extra deixa de exis- ser diferenciadas de suas formas de manifestação. tir tão logo a nova técnica de produção passe a (Marx, 1996, p. 432) ser adotada pelos concorrentes. No entanto, a Como o aumento da produtividade é obtido busca generalizada de mais-valor extra, atuan- com uma reorganização do processo de traba- do também sobre o setor que produz os meios lho realizada pelo capital, a força que organiza de subsistência dos trabalhadores, faz cair o o processo aparece como uma força do capital, valor dessas mercadorias e, portanto, o valor da e não do trabalho. Esse tipo de manifestação é força de trabalho (parcela do valor destinada consequência do fetiche do capital, pois o seu à reprodução do trabalhador), tornando possí- caráter de valor que se valoriza se desdobra nes- vel aumentar a parcela da jornada de trabalho sa característica mística do mais-valor relativo. destinada ao mais-valor. Isso é o mais-valor Essa é uma explicação de por que Marx afirma relativo, decorrência não-intencional da busca que “essas forças produtivas e as conexões so- pelo mais-valor extra. ciais do trabalho aparecem no processo ime- O mais-valor relativo, na medida em que reduz diato de trabalho como deslocadas do trabalho o valor da força de trabalho, é apropriado não para o capital” (Marx, 1985, p. 278).

154 Em conjunto, nas Seções III (“A produção do foi produzido antes de se entrar no mercado mais-valor absoluto”), IV (“A produção do mais- não é trabalho, mas a capacidade de fornecer -valor relativo”) e V (“A produção do mais-valor trabalho, que Marx chama de força de trabalho. absoluto e relativo”), Marx analisa o desdobra- Como a existência da força de trabalho supõe mento da forma mercadoria na produção de a existência física do trabalhador, e como essa mais-valor e, por conseguinte, o caráter fetichi- existência depende da satisfação de um conjun- zado das categorias envolvidas na produção de to de necessidades (como comida e vestuário), mais-valor. Na seção VI, “O salário”, Marx ain- a força de trabalho é ela própria produzida (e da avalia os desdobramentos, na produção, da reproduzida) e, como qualquer mercadoria, tem forma mercadoria, mas agora analisa a relação um valor dado pela quantidade de trabalho da forma salário com a produção de mais-valor. necessária à sua produção. Se no processo de produção de valor a mercadoria força de traba- A economia política explicou o salário como lho for capaz de fornecer uma quantidade de sendo o preço do trabalho: como o salário é trabalho superior àquela que foi necessária à dado em troca do trabalho fornecido, e como sua produção, terá havido a produção de um toda mercadoria é paga pelo seu valor (a troca é mais trabalho, que numa sociedade mercantil de equivalentes), o salário é o preço do trabalho. significa a produção de um mais-valor. No entanto, esse argumento, apesar de lógico, incorre em tautologia, pois se o valor é dado O trabalhador recebe por sua força de trabalho pelo trabalho, deve-se afirmar que o valor de o que cotidianamente é chamado de salário. uma jornada de 8h é 8h de trabalho. Além disso, Nesse ponto, além de destacar que o salário é nesse raciocínio a existência do mais-valor só uma necessidade do processo de valorização e, poderia ser explicada se o trabalhador recebesse portanto, uma decorrência da forma mercado- por sua mercadoria um valor inferior ao que ela ria, devemos destacar que essa categoria possui possui, o que anularia a lei segundo a qual a estreita conexão com falsas ideias. O salário não troca é sempre de equivalentes. é apreendido nem cotidianamente e nem pela economia política como um equivalente do va- Sobre esse ponto, Marx observa que, como lor da força de trabalho, mas como um equiva- qualquer mercadoria precisa ser produzida lente do próprio valor do trabalho, pois conside- antes de entrar no mercado, o trabalho, que rá-lo equivalente do valor da força de trabalho só é exercido no processo de produção, depois significa concluir a existência de trabalho não de já ter havido o procedimento de compra no pago. Nesse sentido, o salário explicado como mercado, não pode ser ele a mercadoria. O que valor do trabalho não é, como o fetichismo, algo

Revista da sociedade brasileira de economia política 155 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 objetivamente existente, mas sim, como diz seções seguem uma estrutura de crítica onto- Marx, uma expressão imaginária. No entanto, lógica. Primeiro porque o ponto de partida da não é uma expressão imaginária decorrente de análise, a mercadoria, é escolhido não de modo um equívoco dos indivíduos, mas sim decorren- arbitrário, mas sim por suas características te das próprias condições de produção. (Marx, objetivas (ontológicas): a mercadoria, unidade 1996b, p. 167) Nesse caso, trata-se de uma ideia básica da riqueza e, portanto, um universal falsa, mas um falso que atende necessidades re- que ao mesmo tempo é um singular, pode, por ais, que no caso são as necessidades do processo causa de sua singularidade, ser analisada sem de valorização. mediações e, por isso, pode ser analisada com poucas suposições arbitrariamente estabeleci- Em breve resumo, a partir da mercadoria das a seu respeito. Se o seu caráter de singular desdobra-se a forma dinheiro do valor, da forma permite uma análise com poucas suposições, o dinheiro desdobra-se o capital e do capital seu caráter de universal permite que as demais desdobra-se a produção capitalista. A produção categorias econômicas sejam dela logicamente capitalista é produção de mais-valor, e, por desdobradas: se a mercadoria é a unidade da ri- isso, requer a categoria salário, que remunera o queza, as demais categorias econômicas devem trabalhador com uma parte do produto inferior se vincular na realidade (de modo ontológico) ao trabalho exercido, possibilitando ao capital com esse caráter e, por isso, devem ser retrata- que se aproprie de parte do trabalho despendido das na teoria (âmbito gnosiológico) de modo na produção. Todas essas categorias e formas logicamente coerente com esse caráter, o que (valor, mais-valor, dinheiro, capital, salário) são Marx busca fazer na análise de formas como decorrência da forma mercadoria e, portanto, valor, processo de valorização, categoria salá- estão envolvidas no fetichismo da mercadoria, o rio etc. A crítica de Marx a qualquer categoria que significa que a elas são atribuídas, obje- econômica segue a estrutura de demonstrar a tivamente, características que não são delas, inconsistência lógica de uma categoria (como a mas da sociedade. Mas além dessa atribuição a do salário formulado como “valor do trabalho”) coisas de características que são sociais, existem sempre de modo associado ao vínculo ontológi- formas que Marx demonstra serem meramente co que ela mantém com as demais categorias. A imaginárias, i.e., falsas, ainda que sejam afirma- crítica de Marx é crítica ontológica do sistema das nas práticas dos indivíduos, como é o caso de produção. da forma salário como valor do trabalho. Todas as categorias econômicas analisadas em É possível ainda defender que todas essas O capital recebem a mesma forma reificada

156 apresentada no fetichismo da mercadoria (como é demonstração lógico-gnosiológica da falsidade por exemplo o trabalho que recebe a forma de de determinada teoria, mas a demonstração do capital variável, ou o excedente de trabalho vínculo ontológico dessas falsas teorias com o que recebe a forma de mais-valor), e, portan- objeto que representam. Esse é o caráter ontoló- to, devem levar em consideração o fetichismo gico da sua crítica e isso é o que ele realiza em da mercadoria. Assim, a crítica ontológica da O capital. mercadoria não se encerra no Capítulo I: todas as seções do Livro I de O capital tratam de cate- Bibliografia gorias econômicas que são apresentadas como BHASKAR, Roy. “Societies”. In: ARCHER, Margaret; BHASKAR, Roy; COLLIER, Andrew; LAWSON, Tony; NOR- desdobramento do fetichismo da mercadoria. RIE, Alan (eds.) Critical realism: essential readings. : Em outras palavras, a crítica da mercadoria não Routledge, p. 206-58, 1998. é mais uma entre outras críticas realizadas em CARCANHOLO, Marcelo Dias. “A importância da categoria valor de uso na teoria de Marx”, Pesquisa & Debate, São Paulo, O capital, mas o primeiro passo da crítica do PUC-SP, v. 9, n. 2(14), p. 17-43, 1998. modo de produção capitalista. E essa crítica, na DUAYER, Mario. “Marx, verdade e discurso”, Perspectiva, Florianópolis, UFSC, v. 19, n. 1, p. 15-39, jan./jun, 2001. medida em que é de algo objetivamente exis- EDGLEY, Roy. “Reason as : science, social science tente, e não de uma teoria específica, merece o and socialist thought”. In: ARCHER, Margaret; BHASKAR, título de crítica ontológica. Roy; COLLIER, Andrew; LAWSON, Tony; NORRIE, Alan (eds.) Critical realism: essential readings. London: Routledge, 1998.

KOHAN, Néstor. El capital: historia e método – Una introduc- 5. Considerações finais ción. Buenos Aires: Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo, 2001. Neste artigo espera-se ter demonstrado que o LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: método de Marx em O capital pode ser carac- Boitempo Editorial, 2012. terizado como sendo de crítica ontológica ou MARX, Karl. “Ad Feuerbach (1845)”. In: MARX, Karl & crítica explanatória. O capital é uma obra que ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 533-535. apesar de conter a crítica lógico-gnosiológica ______. O capital: crítica da economia política. Livro como um de seus momentos, não a possui I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1996. como sua finalidade última, pois a falsidade ______. O capital: crítica da economia política. Livro I, Tomo II. São Paulo: Abril Cultural, 1996b. das teorias sob análise é ressaltada não com o ______. O capital: crítica da economia política. Livro objetivo de mostrar a sua não-validade, mas III, Tomo II. São Paulo: Abril Cultural, 1985. sim com o objetivo de demonstrar como essas MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São teorias possuem validade na reprodução da- Paulo: Boitempo Editorial, 2007. quele objeto justamente por representá-lo de MEDEIROS, João Leonardo. A economia diante do horror econômico: uma crítica ontológica dos surtos de altruísmo da modo inadequado. O que interessa a Marx não ciência econômica. Niterói: Eduff, 2013.

Revista da sociedade brasileira de economia política 157 43 / fevereiro 2016 – maio 2016 Notas 4. Essa posição é oposta a das formulações neoclássicas em 1. O caráter ontológico da crítica marxiana já foi demonstra- ciência econômica, dominantes atualmente, que colocam a do por Duayer (2001). No nosso trabalho, por outro lado, o que utilidade como algo subjetivo, i.e., como algo atribuído pelos pretendemos é mostrar que a crítica ontológica está presente sujeitos a determinado objeto. Nesse enquadramento, uma na própria estrutura de O capital e no desdobramento teórico e mercadoria é tanto mais útil quanto mais utilidade é atribuí- categorial realizado na obra. da a ela pelos sujeitos. 2. Ainda demarcando a diferença entre práticas humanas e Em Marx a afirmação é de que o valor de uso é uma caracte- sociedade, não é necessário que a ação individual que repro- rística objetiva da mercadoria: uma cadeira serve a um deter- duz determinada estrutura social seja consciente dessa repro- minado uso, uma mesa a outro etc. As consequências desse dução. A consciência e intencionalidade são características tipo de abordagem de Marx serão destacadas na sequência dos indivíduos, e não da sociedade. Por isso, afirma Bhaskar: do nosso texto. Um comentário a respeito do caráter objetivo “Deveria estar clara agora a importância de distinguir catego- da noção de valor de uso em Marx poderá ser encontrado no ricamente entre pessoas e sociedades e, correspondentemente, texto de Carcanholo (1998, p. 23-8). entre ações humanas e mudanças na estrutura social. Pois as propriedades possuídas pelas formas sociais podem ser muito 5. É importante destacar que, no mercado, a igualação não é diferentes das possuídas pelos indivíduos de cujas atividades entre os dois trabalhos privados de cada um dos produtores elas dependem. Pode-se admitir, portanto, sem paradoxo ou de mercadorias, mas dos vários trabalhos que produzem as esforço, que propósito, intencionalidade e, por vezes, autocons- mesmas mercadorias. Isso porque o mercado é composto de ciência caracterizam as ações humanas, mas não as transforma- diversos produtores que, por competirem entre si, são obri- ções na estrutura social. A concepção que estou propondo é gados a pedir em troca um conjunto de mercadorias equiva- que as pessoas, em sua atividade consciente, na maior parte lente à média do esforço de todos os produtores com quem das vezes reproduzem inconscientemente (e ocasionalmente competem. Por isso, a substância do valor de troca, o valor, é transformam) as estruturas que governam suas atividades o quantum de trabalho abstrato definido socialmente e é por substantivas de produção. Dessa forma, as pessoas não casam isso chamado de trabalho socialmente necessário. para reproduzir a família nuclear ou trabalham para manter a economia capitalista. Não obstante, essa é a consequência 6. Citaremos extensivamente os três livros de O Capital, o que não intencional (e o resultado inexorável) de, e também uma pode gerar confusão na hora de identificar o livro ao qual a condição necessária para, sua atividade. Ademais, quando as citação se refere. Para facilitar a consulta, logo após cumprir- formas sociais mudam, a explicação normalmente não residi- mos a norma de indicar autor e data, colocaremos também o rá nos desejos dos agentes de mudá-las daquele modo, muito Livro e o Tomo de onde a citação foi tirada, o que evitará as embora isso possa ocorrer como um limite político e teórico constantes consultas à seção de referências bibliográficas. muito importante. Por isso, quero distinguir nitidamente, de Em outras palavras, o seu valor de uso formal. “O valor de um lado, a gênese das ações humanas, que repousam nas razões, 7. uso da mercadoria monetária dobra. Além de seu valor de uso intenções e planos das pessoas, e, de outro, das estruturas que particular como mercadoria, como ouro por exemplo serve governam a reprodução e a transformação das atividades sociais; para obturar dentes, como matéria-prima para artigos de luxo e, por conseguinte, entre os domínios das ciências psicológicas e etc., ela adquire um valor de uso formal decorrente de suas sociais.” (Bhaskar, 1998, p. 215-6) funções sociais específicas” (Marx, 1996, p. 214). Sobre esse ponto, comenta Duayer: “Parece, portanto, que 3. O “relativamente” nesse trecho é colocado porque o valor essas ilustrações [como o trecho do Capítulo XLVIII do Livro 8. só existe em função da relação entre diferentes produtos do III de O Capital, citado acima] são suficientes para demonstrar trabalho. Desse modo, uma autonomia da forma do valor que Marx não conferia primazia absoluta à crítica lógico- nunca pode ser absoluta, mas sempre relativa. -gnosiológica. Por outro lado, mostram igualmente que ele tinha plena consciência da eficácia social das teorias criti- 9. Quando analisa a forma simples do valor, Marx afirma cadas. Como eram objeto de sua crítica, naturalmente eram que o baixo grau de desenvolvimento da forma do valor na para ele falsas em maior ou menor grau. E, em consequência, Grécia Antiga foi o fator que impossibilitou que Aristóteles, imaginava que sua teoria era verdadeira, já que patentemente o primeiro pensador a analisar a forma do valor, fizesse uma construía uma teoria alternativa. Desse modo, ficamos com o formulação explícita sobre o valor. O argumento de Marx seguinte problema. De um lado, elaborava minuciosas críticas é de que numa sociedade que está baseada na escravidão, às teorias burguesas. De outro, no entanto, estava totalmente e, portanto, na desigualdade dos trabalhos, não é possível consciente de que a validade das teorias sob crítica não repou- encontrar o algo igual que possibilite a troca de mercadorias. sava em sua veracidade – muito pelo contrário! Isso parece Encontrar o algo igual só é possível numa sociedade que evidenciar, ou uma atividade crítica diletante, coisa que sua coloca de modo explícito o valor da igualdade humana, e essa atividade política desmente, ou uma atitude em tudo diferente sociedade só passou a existir historicamente quando a relação de muitas críticas de caráter acadêmico, megalômanas, que entre os indivíduos assumiu a forma predominante de relação se atribuem o poder de dissolver superstições, crenças e, sobre- tudo, converter interesses.” (Duayer, 2001, p. 21)

158 de possuidores de mercadorias, i.e., de relação entre indivídu- os formalmente livres e iguais. Sobre isso, comenta Marx: “O próprio Aristóteles nos diz em que fracassa o prosseguimento de sua análise, a saber, na falta do conceito de valor. Que é o igual, isto é, a substância comum que a casa representa para a almofada na expressão de valor da almofada? […] O segredo da expansão de valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, porque e na medida em que são trabalho humano em geral, somente pode ser decifrado quando o conceito da igualdade humana já possui a consciência de um preconceito popular. Mas isso só é possível numa sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral do produto de trabalho, por conseguinte também a relação das pessoas umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias é a relação social dominante”. (Marx, 1996, p. 187) 10. Outra decorrência direta, de que trataremos na próxima seção, é o fetiche do capital. 11. Neste trabalho optamos por usar a expressão “mais-valor” no lugar da tradicional expressão “mais-valia”. Para homoge- neizar o uso da expressão, também nas citações foi realizada a troca, com nenhuma outra alteração que não seja de adequa- ção ao gênero da expressão, como a troca do artigo “a”, de “a mais-valia”, para o artigo “o”, de “o mais-valor”. 12. Marx demonstra, no Capítulo IV do Livro I, que apesar de ser possível um capital conseguir mais-valor na circula- ção por meio da ação de comprar barato e vender caro, não é possível que todos os participantes do mercado ganhem mais-valor ao mesmo tempo. A apropriação generalizada de mais-valor requer a produção de mais-valor.

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