ANO 12 / NÚMERO 143 R$ 14,90

NACIONALISTAS EUROPEUS POR QUE HOJE? EDUCAÇÃO RESISTE A ASCENSÃO DE O SOCIALISMO A VIVÊNCIA EM UMA SALVINI NA ITÁLIA RENASCE NOS EUA UNIVERSIDADE PÚBLICA POR MATTEO PUCCIARELLI 9 BHASKAR SUNKARA 18 POR ELVIO MARQUES 34

00143 LE MONDE 9 771981 752004 diplomatiqueBRASIL 2 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

ESCALADA CONTRA O IRÃ Um capricho norte-americano

POR SERGE HALIMI* © Daniel Kondo Daniel ©

m Estado que, sem motivo con- A Bolton, não faltam nem experiên- da monarquia saudita, ele se apegava Washington acha que seu embargo creto, rompe um acordo inter- cia nem coerência de ideias. Em março ainda mais à sua “mudança de regi- obrigará Teerã a capitular. Na verdade, nacional de desarmamento ne- de 2015, quando seu fanatismo em fa- me”: “A política oficial dos Estados Bolton e Pompeo não ignoram que es- gociado durante muito tempo vor da invasão do Iraque diminuía sua Unidos”, escreveu, “deveria ser o fim sa mesma estratégia de guerra econô- Upode depois ameaçar de agressão mi- influência, ele publicou no New York da revolução islâmica iraniana antes mica fracassou na Coreia do Norte e litar outro Estado signatário? Pode or- Times um artigo intitulado “Para deter de seu quadragésimo aniversário. Isso em Cuba. Esperam, pois, uma reação denar aos outros países que se ali- a bomba iraniana, é preciso bombar- apagaria a vergonha de termos tido iraniana que em seguida apresentem, nhem com suas posições caprichosas dear o Irã”. Após alegar que Teerã não nossos diplomatas mantidos como re- triunfalmente, como uma agressão a e belicosas, pois do contrário sofrerão negociaria jamais o fim de seu progra- féns durante 444 dias. E esses antigos exigir a “resposta” norte-americana. também sanções exorbitantes? Quan- ma nuclear, ele concluiu: “Os Estados reféns poderiam cortar a fita por oca- Deturpações, falsificações, mani- do se trata dos Estados Unidos, a res- Unidos poderiam efetuar um trabalho sião da inauguração de uma nova em- pulações, provocações: após Iraque, posta é “sim”. cuidadoso de destruição, mas só Israel baixada em Teerã”.2 Líbia e Iêmen, os neoconservadores já Em suma, é absolutamente inútil é capaz de fazer o necessário. [...] O ob- O atual presidente dos Estados escolheram sua presa. perder tempo estudando as razões in- jetivo será a mudança de regime em Unidos fez campanha contra a política vocadas pela Casa Branca para justifi- Teerã”.1 das “mudanças de regime”, ou seja, *Serge Halimi é diretor do Le Monde car sua escalada contra o Irã. É de su- Três meses depois, um acordo nu- das guerras de agressão. Portanto, ain- Diplomatique. por que John Bolton, consultor de clear com o Irã era assinado por todas da não se pode esperar o pior. Mas a Segurança Nacional do presidente as grandes potências, incluindo os Es- paz deve ser bem frágil para depender, Donald Trump, e Mike Pompeo, se- tados Unidos. Segundo a Agência In- aparentemente, da capacidade de cretário de Estado, confiaram aos di- ternacional de Energia Atômica, Teerã Trump de controlar os consultores 1 John Bolton, “To stop Iran’s bomb, bomb Iran” plomatas e serviços de informação respeita escrupulosamente os termos bravios que ele nomeou. Asfixiando [Para deter a bomba iraniana, é preciso bombar- norte-americanos uma missão do ti- desse acordo. No entanto, Bolton não economicamente o Irã com a ajuda dear o Irã], The New York Times, 26 mar. 2015. 2 Idem, “Beyond the Iran nuclear deal” [Além do po: “Encontrem os pretextos, eu me desiste. Em 2018, ultrapassando a pos- dos capitais e das grandes empresas acordo nuclear com o Irã], The Wall Street Journal, encarrego da guerra”. tura agressiva do governo israelense e ocidentais (coagidas e submissas), Nova York, 15 jan. 2018. JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL Idiotas úteis

POR SILVIO CACCIA BAVA © Claudius©

oucos sabem que o governo fe- É importante salientar que essas lhão de pessoas às ruas no dia 15 de Pois os “idiotas úteis” vão engrossar deral, no ano de 2017, deixou de isenções tributárias incidem, em sua maio. O governo não se sensibilizou a greve geral em 14 de junho. O que está arrecadar R$ 270,4 bilhões por maioria, nos tributos que financiam a com as mobilizações e o presidente em jogo é o futuro das novas gerações e conceder isenções tributárias a Seguridade Social, a Previdência. Isso classificou os manifestantes de “idio- a possibilidade de os pobres serem ad- empresáriosP de vários setores da eco- para não falarmos da isenção de tri- tas úteis”. Segundo Jair Bolsonaro, mitidos nas universidades – 61% dos nomia. Se somarmos às isenções tri- butos sobre os lucros e dividendos “são ‘massa de manobra’, manipula- alunos da Unifesp, por exemplo, são de butárias outros benefícios financeiros que, considerando os últimos dados dos por ‘uma minoria espertalhona’ família com renda mensal menor que e creditícios, a conta chega a R$ 373,3 divulgados pela Receita Federal, de que compõe as universidades públicas cinco salários mínimos.9 bilhões em 2017.1 A isenção fiscal se dá 2016, apontam a renúncia fiscal de R$ no Brasil”.7 Nesse mesmo dia, como As universidades e os institutos fe- quando o governo abre mão da co- 70 bilhões neste ano. Esses dados, já uma retaliação às amplas manifesta- derais podem fechar se os cortes não brança de determinado imposto para divulgados na edição anterior do Le ções por todo o Brasil, Bolsonaro assi- forem revertidos. E é em defesa da edu- um público específico.2 Monde Diplomatique Brasil, mostram nou um decreto presidencial retirando cação que novas e maiores mobiliza- Dois exemplos são marcantes. Em que o corte de R$ 1,7 bilhão que atin- a autonomia das universidades a par- ções vão ocorrer. A ampliação do mo- 2017, o governo abriu mão de receber giu as 63 universidades federais e os tir de 25 de julho. É um decreto incons- vimento de resistência é uma reação do setor do agronegócio, em impostos, 38 institutos federais de ensino pode- titucional. É uma provocação. esperada em razão da truculência do R$ 26,2 bilhões. Estima-se que essa re- ria ser facilmente evitado se apenas Esse decreto impõe que a nomea- governo Bolsonaro, que acende uma núncia seja de R$ 29 bilhões em 2018 e, uma pequena parte das renúncias fis- ção de pró-reitores e de outros cargos fogueira na qual pode se queimar. em 2019, segundo a Lei de Diretrizes cais fosse revertida.5 de direção das universidades seja sub- Orçamentárias, de R$ 33 bilhões. Em Os limites orçamentários, portan- metida à aprovação de órgãos federais. 2020, o valor deve chegar a R$ 35,1 bi- to, não são o que levou o governo Bol- O ministro da Educação e a Secretaria 1 Mauricio Lettieri, “Por que não se fala de benesses 3 fiscais quando o assunto é ajuste econômico?”, Le lhões e, em 2021, a R$ 37,2 bilhões. sonaro a cortar o orçamento das uni- Geral de Governo ficam responsáveis Monde Diplomatique Brasil, maio 2019. Já a Medida Provisória n. 795, pro- versidades e dos institutos federais. por aceitar ou vetar as indicações dos 2 Suno Research. Disponível em: . 3 Rute Pina, Brasil de Fato – São Paulo, 14 jun. 2018. Congresso em novembro de 2017, con- ção, Abraham Weintraub: “Universi- gência (Abin) é vista como parte desse 4 Fábio Góis, Congresso em Foco, 29 nov. 2017. cede benefícios fiscais a empresas pe- dades que, em vez de procurar me- aparato que ataca a autonomia univer- 5 Luiza Tenente e Patrícia Figueiredo, G1, 15 maio trolíferas, tais como a Shell e a British lhorar o desempenho acadêmico, sitária. Nesse cerco aos “idiotas mani- 2019. 6 Luiza Tenente e Patrícia Figueiredo, op. cit. Petroleum, que atuarão em blocos das estiverem fazendo balbúrdia terão pulados”, o governo anuncia também 7 Redação Rede Brasil Atual, 15 maio 2019. camadas pré-sal e pós-sal. Essa isen- verbas reduzidas”.6 corte drástico nas bolsas de pós-gra- 8 Informações apresentadas em recente reunião do ção tributária impõe perdas da ordem O corte nas verbas da educação, es- duação e o descredenciamento de Fórum Nacional de Pró-Reitores em Pesquisa e Pós-Graduação com a presidência da Capes. de R$ 1 trilhão à União nos próximos pecialmente das universidades e dos 1.200 cursos de mestrado até o fim do 9 Relatório Unifesp 25 anos – Universidade inclusiva 25 anos.4 institutos federais, levou mais de 1 mi- presente mandato.8 e com redução das desigualdades. 4 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

CAPA Os direitos LGBT sob o governo Bolsonaro

Mobilizando valores associados à defesa da família tradicional, à heterossexualidade compulsória e a uma visão de mundo religiosa, as bandeiras do presidente eleito refletem o êxito de um pânico moral há tempos alimentado e que coloca em linha de tiro, precisamente, a comunidade LGBT POR RENAN QUINALHA* © Caio Borges

Brasil é comumente representa- cias sexuais, afetivas e identitárias. diversas análises, ainda inconclusivas. além de respaldar os já alarmantes ín- do como um país que não ape- Basta lembrar, para colocar em pers- Certamente há variáveis explicativas dices de violência letal contra LGBTs. nas tolera, mas também procla- pectiva essa “ideologia de gênero” idí- que vão desde a violência estrutural Não à toa, o resultado eleitoral des- ma e até mesmo valoriza suas lica, que, apenas em 2018, de acordo naturalizada na formação da socieda- pertou uma severa apreensão da popu- Odiversidades. Prevalece, no senso co- com o Grupo Gay da Bahia (GGB), de brasileira até o colapso institucio- lação LGBT em relação aos possíveis mum e em alguns saberes especializa- contabilizou-se o assassinato de 420 nal da Nova República, passando pelo resultados dessa vitória. Homosse- dos, a narrativa autocomplacente de pessoas LGBT por crimes de ódio. Essa antipetismo alimentado pela mídia e xuais correram aos cartórios para re- uma nação paradisíaca construída pe- cifra, que nos coloca no topo dos ran- por setores do Judiciário em uma cru- gistrar casamentos; pessoas trans fize- las misturas e diferenças. kings internacionais de países que zada – um tanto seletiva – contra a cor- ram o mesmo para retificar seus Afinal, a maior instituição brasilei- mais matam LGBTs, é certamente su- rupção nos últimos anos. Todos esses documentos. Tudo com receio de que ra, apesar de todas as crises que insis- bestimada. Isso porque o Brasil não fatores são decisivos, mas uma dimen- os poucos direitos existentes fossem tem em nos assolar, segue sendo o conta, até hoje, com um sistema oficial são sobre a emergência da variante tu- imediatamente revogados com a mu- Carnaval. E não qualquer um, mas o e estatal de denúncia. piniquim do conservadorismo atual dança na Presidência. melhor do mundo. Imaginamo-nos O ano de 2018 parece ter contribuí- ainda é negligenciada no debate públi- Vale lembrar que o campo das polí- um povo avesso a distâncias. Carna- do com um novo ingrediente para esse co: sua íntima associação com uma ticas públicas concebidas e implemen- valizamos nossos desejos e identida- cenário LGBTfóbico: a ascensão me- política moral e sexual. tadas pelo Poder Executivo nos dife- des. Mulheres se vestem de homens e teórica e a vitória, nas eleições presi- Mobilizando valores associados à rentes níveis federativos tem sido uma homens se fantasiam de mulheres denciais, de Jair Bolsonaro. defesa da família tradicional, à hete- arena privilegiada para os avanços na enquanto dura a festa momesca. Velho conhecido das minorias se- rossexualidade compulsória e a uma garantia dos direitos LGBT. Isso se deve Aqui, do lado de baixo da linha do xuais e de gênero, Bolsonaro sempre visão de mundo religiosa, as bandeiras a uma marcante omissão do Poder Le- Equador, não há pudor ou pecado e as foi tido como um político de nicho do presidente eleito refletem o êxito de gislativo em torno da matéria, sobretu- fronteiras morais são meio borradas. bastante específico, com quase trinta um pânico moral há tempos alimenta- do por conta da hegemonia de uma Tanto é assim que realizamos anual- anos de atuação parlamentar dedica- do e que coloca em linha de tiro, preci- bancada fundamentalista religiosa, mente a maior Parada do Orgulho da a sustentar posições extremistas. samente, a comunidade LGBT. ainda mais fortalecida sob o governo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, tra- Dotado de uma forma de atuar carica- Um dos alvos privilegiados dos ata- Bolsonaro, com capacidade de veto em vestis e transexuais) do mundo, na ta, sempre à margem do centro do po- ques verbais de Bolsonaro antes mes- temas moralmente sensíveis. É sinto- cidade de São Paulo. der e com uma expressão pública irre- mo de ele ser eleito já eram os homos- mático, nesse sentido, que até hoje não Ainda que encarnem parte signifi- levante até muito recentemente, ele sexuais. “Ter filho gay é falta de tenha havido, no Congresso Nacional, cativa daquilo que construímos como conseguiu se viabilizar como a princi- porrada” e afirmações afins abundam a aprovação de uma única lei específi- nossa verdade, tais discursos têm tam- pal alternativa eleitoral. nas intervenções públicas do ex-depu- ca em favor dos direitos LGBT. bém por consequência o apagamento A eleição de Bolsonaro, em uma tado. São declarações que colocam em Outra arena privilegiada na traje- de hierarquias e exclusões que estru- campanha baseada em discurso de xeque, sem nenhum pudor, o direito de tória da cidadania sexual é o Poder Ju- turam e atravessam nossas experiên- ódio com fake news, tem despertado existir de um segmento da população, diciário. Em um momento de progres- JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 5

siva judicialização da vida social e laridade na atuação estatal, pois as alarmismo, pois a estratégia do bolso- mentiras como “mamadeiras eróti- vocacionado para uma atuação con- políticas públicas se modificam a de- narismo é justamente forjar subjetivi- cas” e “kit gay”. A contaminação do de- tramajoritária na proteção dos direitos pender do chefe do Executivo ou dos dades amedrontadas e acuadas. bate público sobre gênero e sexualida- fundamentais e das liberdades públi- membros das pastas responsáveis pela Qualquer medida ou projeto de lei de por um obscurantismo perverso já cas, o sistema de justiça tem sido en- implementação, comprometendo sua que atentem contra os direitos LGBT produziu consequências no imaginá- carregado cada vez mais da tarefa de continuidade e efetividade. poderão ser questionados perante o rio brasileiro que dificilmente serão fazer avançar os direitos LGBT. Exem- Desse modo, há uma precariedade STF, que fará o controle de constitucio- revertidas a curto prazo. plo disso é que os primeiros casos de congênita aos direitos LGBT no país. nalidade. Também podem ser questio- Assim, pode-se esperar, nos próxi- reconhecimento jurídico da união for- Some-se a isso a constatação de que nados perante a Comissão e até na Cor- mos anos, que se acentuará a dimen- mada por casais homossexuais acon- todo direito é, por definição, frágil, te Interamericana de Direitos Humanos, são moral dos conflitos políticos, com teceram, por decisões judiciais inova- fruto de luta política em torno de dis- que já têm posição consolidada na defe- investidas constantes da base gover- doras, em meados dos anos 1990. Isso putas de valores e sentidos. É, assim, sa dos direitos de livre orientação sexual nista no sentido de revogar direitos e não se deu sem resistência, conside- uma construção social e histórica que e identidade de gênero. ampliar restrições a formas de vida e rando o caráter conservador dos mem- pode abrir margem para avanços em Diante desse cenário, devemos le- de uniões que desafiem o padrão. O bros do elitizado e corporativo Judiciá- sua consolidação ou para sua total re- var a sério o conjunto de mais de uma bolsonarismo dependerá dessa polari- rio brasileiro. Instâncias superiores vogação. Não há direito adquirido que centena de agressões e provocações zação para sua sobrevivência, pois se frequentemente revogaram os efeitos seja eterno e imutável. homofóbicas proferidas pelo presiden- construiu e se fortaleceu com base no de decisões de juízes progressistas. Dito isso, é também importante te? Ou podemos acreditar no mantra pânico moral que os setores conserva- Essa batalha jurisprudencial só se destacar que há distintos graus de “as instituições estão funcionando dores vinham cultivando contra os resolveu com a decisão unânime do Su- formalização e de efetividade para perfeitamente no país”, agarrando- avanços das minorias sexuais. Mesmo premo Tribunal Federal (STF), proferi- os direitos reconhecidos em uma co- -nos à esperança de que as convicções que não sejam investidas exitosas que da em maio de 2011, quando, em uma munidade. O que designamos aqui pessoais e os impulsos homofóbicos se convertam em leis, seu efeito social ação de alcance abstrato e maior am- por direitos LGBT, como já aponta- do presidente serão enfraquecidos e será bastante concreto. plitude, foi reconhecida a união estável do, tem por origem e fundamento neutralizados por um sistema de justi- Isso porque essas conquistas jurídi- homoafetiva. Diante da resistência de decisões judiciais ou políticas públi- ça vigilante e comprometido com os cas da cidadania sexual, mesmo que certos cartórios para formalizarem os cas, havendo uma inegável precarie- direitos humanos? precárias na forma, são substancial- pedidos mesmo após a referida decisão dade nessa situação. Independentemente das respostas mente o reflexo de mudanças culturais do STF, em 2013, o Conselho Nacional que tenhamos para essas questões, é profundas na sociedade brasileira. As de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. provável que se agrave a violência so- lutas do movimento feminista a partir 175, que determinou não apenas o de- cial contra LGBTs, como já vem ocor- de 1975 e do movimento LGBT desde ver dos tabeliões de celebração da O sistema de rendo desde o contexto pré-eleitoral e 1978, ambos surgidos no período da união estável, mas também do casa- justiça tem sido mesmo com a provável criminaliza- liberalização da ditadura, produzi- mento civil entre pessoas do mesmo se- encarregado ção da LGBTfobia pelo STF. Também é ram mudanças significativas nos pa- xo. Mais recentemente, em março de cada vez mais da bastante factível que haja retrocessos drões de família e na gramática mo- 2018, foi julgado procedente no STF, por nos campos em que o Executivo tem ral vigentes. Os sentidos atribuídos maioria, o direito à identidade de gêne- tarefa de fazer maior protagonismo e autonomia pa- aos corpos, os papéis sociais de gêne- ro das pessoas trans (travestis, mulhe- avançar os ra a implementação de políticas públi- ro, os desejos afetivo-sexuais, as es- res e homens transexuais), possibili- direitos LGBT cas, como saúde, cultura e educação, truturas familiares e as relações de tando a alteração de prenome e sexo em como já temos visto. Já em relação aos parentesco foram disputados e res- seus registros civis diretamente nos direitos reconhecidos pelo STF, a ten- significados com a progressiva politi- cartórios, sem necessidade de laudo dência é que haja maior grau de cons- zação do privado operada pela con- médico, autorização judicial ou cirur- Tanto é assim que o movimento trangimento institucional para qual- testação cultural e dos costumes. Os gia de redesignação sexual, como se vi- LGBT não deixou de reivindicar que quer agenda regressiva que o Executivo códigos morais foram-se alterando nha exigindo até então. fossem aprovadas leis no Congresso tente impor. A Suprema Corte não po- significativamente. O padrão hege- Tais garantias de casamento ho- para dar maior segurança. Por outro derá permanecer indiferente diante de mônico de virilidade e de masculini- moafetivo e de mudança de prenome e lado, abundam iniciativas em senti- tentativas de boicote às suas decisões, dade deu lugar a uma pluralidade de sexo inserem o Brasil em uma seleta e do contrário, buscando revogar as sob pena de perda de sua autoridade e formas de vivência e identidade nos pequena lista de países que assegu- poucas garantias à população LGBT. legitimidade. Além disso, certamente campos do gênero e da sexualidade, ram, ao menos oficialmente, os princi- Contudo, não tiveram êxito nessa haverá resistência articulada do movi- que se constituíram como esferas da pais direitos de orientação sexual e cruzada moral porque nunca conse- mento LGBT à tentativa de retirada de liberdade e da autonomia humanas, identidade de gênero. Com efeito, além guiram maioria efetivamente com- direitos. não mais apenas da reprodução da da luta contra a violência e o precon- prometida no Legislativo e sabem, Ao menos desde os trabalhos do fi- espécie como destino biológico. ceito, essas foram as reivindicações também, que uma lei dessa natureza lósofo Michel Foucault,1 o poder, no É evidente que transformações de que constituíram as principais ban- não encontraria respaldo no Executi- campo da sexualidade, deixa de ser tal maneira estruturais gerariam uma deiras desse movimento social nas úl- vo e no Judiciário. visto apenas como interdição e proibi- reação com nível semelhante de inten- timas décadas. No entanto, agora esses projetos ção para ser entendido também como sidade e força, que tem sido caracteri- No entanto, a centralidade das polí- poderão ser ressuscitados, votados e algo positivo e produtivo. O poder não zada, aqui e em outros lugares do ticas públicas e das decisões judiciais, aprovados no Congresso. E Bolsonaro, apenas reprime e silencia, mas tam- mundo, como backlash. Daí ser mais diante da inexistência de lei em sentido que foi eleito com o apoio dessa base bém estimula e até compele a profu- adequado falar em reação do que em formal, confere certas particularida- de conservadorismo moral, poderá são de determinados discursos sobre a ofensiva conservadora. Talvez a maior des ao processo brasileiro de cidadani- dar a força que faltava para que essas sexualidade, pautando padrões de ingenuidade e fraqueza dos movimen- zação LGBT. Em primeiro lugar, pode- propostas saiam do campo da ameaça normalidade e, portanto, de exclusão, tos ligados a essas causas tenha sido -se destacar que há uma precariedade para a realidade. ainda mais quando menos permeável justamente não se preparar para ad- e uma fragilidade nas políticas de di- Há risco de revogação desses direi- às pressões democráticas. ministrar a reação que estavam a pro- versidade, pois a alteração de uma de- tos e de vários outros em um governo Nesse sentido, mesmo que não haja duzir com suas demandas. cisão do Judiciário ou de uma norma que, potencialmente, coloca-se como mudanças formais na garantia dos di- do Executivo é mais simples e fácil de contrário aos direitos fundamentais reitos, o maior estrago na esfera públi- *Renan Quinalha é professor de Direito da ocorrer do que a mudança de uma lei de algumas categorias de cidadãos. ca já está feito. De um período em que Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). em sentido formal, que demanda uma Mas não creio que isso esteja num ho- buscávamos formas de assegurar mais maioria parlamentar, além de estar su- rizonte tão imediato. É justificado o re- cidadania e maior reconhecimento, jeita a controle judicial. Ademais, nota- ceio, mas é preciso tomar cuidado com retrocedemos para uma discussão in- 1 Michel Foucault, História da sexualidade: a vonta- -se certa inconsistência e falta de regu- o modo como se mobilizam o medo e o fantilizada nas eleições baseada em de de saber, Graal, Rio de Janeiro, 1985. 6 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

MÃES PELA DIVERSIDADE “Nossos filhos não vão ser estatística”

ONG presente em quase todo o Brasil reúne mais de 2 mil pais e mães de pessoas LGBTQIA+ para lutar contra a violência cotidiana praticada contra seus filhos. A meta da Mães pela Diversidade é formar uma rede de proteção e espalhar informação para combater o preconceito, de modo que ninguém mais precise passar pelo que eles passaram POR MAJU GIORGI*

á aproximadamente cinco cujo pai, Avelino, também está conos- anos, as redes sociais uniram co. Neste caso, os assassinos já estão mães de pessoas LGBTQIA+ presos. Ou ainda a linda menina trans (lésbicas, gays, bissexuais, tra- Laura, de 18 anos, paulistana, morta Hvestis, transexuais, transgêneros, chegando em casa a pauladas por cin- queer, intersexo e assexual) preocu- co homens, filha de Jackson e Zilda, padas com a violência e com o dis- que também estão conosco. curso LGBTfóbicos, discurso esse As Mães pela Diversidade de São muitas vezes proferido por autorida- Paulo tem estado na porta do fórum des – inclusive, e muito especialmen- em todas as audiências desse caso, que te hoje em dia, pela maior delas! Nas- © Caio Borges ainda espera julgamento. Esses pais cia a Mães pela Diversidade. Hoje estão conosco, segundo eles, para que somos uma ONG e estamos em quase nenhum pai e nenhuma mãe mais te- todos os estados do Brasil. nham de passar pelo que eles passa- Nós acreditamos que o que fomen- ram. Além disso, a taxa de suicídio do ta o preconceito é a falta de informa- jovem LGBTQIA+ é oito vezes maior ção e a ignorância. Desse modo, nossa que a do jovem cis heterossexual. premissa é espalhar informação. Per- Nossa meta é formar uma rede de cebemos também que a pregação pa- proteção para nossos filhos e nossas ra convertido é enxugar gelo – apesar famílias e trazer a sociedade para jun- do carinho em nosso ego –, o que nos to de nós. Num mesmo dia, por exem- leva de nada a lugar nenhum, porque a Queremos dizer que nós também a oferecer acolhimento e apoio profis- plo, podemos palestrar no hospital, na informação tem é de furar as bolhas somos contra a erotização de crianças sional. Entendemos que os LGBTQIA+ multinacional e na pastoral. Estare- do preconceito! e a pedofilia; que na expressão da se- adultos falam por si, lutam com suas mos onde nos derem voz para contar Quem tem o conhecimento empí- xualidade e da identidade de gênero de armas, e não nos cabe falar por eles. nossas histórias, seja na superelitista rico somos nós, mães e pais da pessoa nossos filhos na infância não existia Assim, a Mães pela Diversidade quer feira de design ou na feira de gastrono- LGBTQIA+. E a primeira lenda que desejo sexual – este só apareceu natu- jogar luz e dar voz à criança LGBT invi- mia orgânica ou ainda no popular cli- queremos desconstruir é a da “opção”. ralmente na adolescência, como em sibilizada, silenciada e injustiçada. E pe da Jojo Todynho! Com a autoridade da experiência que todo ser humano! Queremos destruir também à sua família. Acreditamos que avançamos mui- nos cabe, dizemos que nossos filhos o rótulo da promiscuidade que tão le- Vai ser difícil nos colar a tarja de es- to nessa guerra cultural. Hoje temos não optaram; eles expressam sua se- vianamente colam em nossos filhos. querdopatas, já que entendemos que exemplos de representatividade posi- xualidade e sua identidade de gênero Queremos destruir também o rótulo uma causa humana tem de permear tiva. Podemos dizer para os jovens que desde a primeira infância. da marginalidade, já que é a sociedade todo o tecido social. Sendo assim, te- o senador da República, que o diplo- Queremos descontruir também a que os empurra para as bordas ao pri- mos mães e pais de todas as raças, reli- mata do Itamaraty e que o juiz da Lava lenda de que os pais são “culpados” pe- vá-los da inclusão social, principal- giões, ideologias políticas, profissões, Jato são gays assumidos, que a CEO da la orientação sexual e pela identidade mente na escola, quando eles são eva- classes sociais etc. Temos mães auxi- maior consultoria do mundo no Brasil de gênero dos filhos. Temos, por exem- didos por não suportarem o bullying. liares de limpeza, professoras do ensi- é uma mulher trans, que temos inú- plo, várias famílias com três ou mais Temos uma história clássica, a da no infantil ao pós-doutorado, médicas, meras mulheres lésbicas em altos car- filhos em que só um é gay, ou ainda fa- Clarice. Ela soube que, aos 8 anos, o fi- trabalhadoras domésticas, advogadas, gos jurídicos e corporativos! mílias com vários filhos e só um trans. lho era vítima da homofobia do pro- procuradoras, jornalistas, donas de ca- Não acreditamos em retrocesso Queremos contar para a sociedade fessor de francês, que escrevia “Bam- sa. Temos pais engenheiros, empresá- por meio de discurso de autoridade que nossas crianças são – ou foram, já bi” na lousa e convidava todos os rios, diretores de multinacional, geren- LGBTfóbica. Queremos plantar a se- que muitos de nós já temos filhos adul- demais alunos a rirem dele. Ela desco- tes de venda, seguranças, professores, mente da esperança no coração de ca- tos – aquelas que, ainda cheias de ino- briu isso quando o filho tinha mais de evangélicos, católicos, espíritas, ju- da brasileiro LGBTQIA+ e dizer que cência, não entendiam por que nin- 30 anos e não teve a menor dúvida de deus e ateus. eles não estão sozinhos. Hoje somos guém queria tomar lanche com elas na ir atrás do professor mais de vinte E temos também pais cujos filhos mais de 2 mil mães e pais espalhados escola, por que elas eram as únicas que anos depois para tirar satisfação. Por- foram assassinados. Um deles, Ale- pelo Brasil e unidos para gritar em não eram convidadas para a festinha, que tudo isso dói demais em nós, os xandre Ivo, filho da Angélica, uma de uníssono: “Nossos filhos não vão ser por que eram sempre as últimas esco- pais! Queremos dizer também que a nossas mães do Rio de Janeiro, foi tor- estatística, tire seu preconceito do ca- lhidas para os jogos nas aulas de Educa- homotransfobia estrutural destrói vi- turado durante horas antes de ser as- minho, queremos passar com nosso ção Física ou por que ninguém gostava das, famílias, casamentos, coloca ir- sassinado aos 14 anos em 2010, crime amor! Nosso amor salva vidas, o pre- delas. Ou ainda por que eram humilha- mãos uns contra os outros. reconhecido como homofóbico pela conceito mata! É crime, sim! É cruel- das e muitas vezes sofriam violência fí- Quando essas mães vêm até a Mães polícia e pela justiça. Caso também do dade em nome de Deus!”. sica. Queremos mostrar a crueldade pela Diversidade, elas chegam a nós jornalista goiano Lucas, de 27 anos, as- contra nossos filhos e a injustiça da hie- com ameaça de suicídio, depressão sassinado e desfigurado numa praia *Maju Giorgi é coordenadora nacional da rarquização do ser humano! profunda e fobia social. Isso nos levou do Recife, onde estava a trabalho e Mães pela Diversidade. JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 7

CONTRA O PATRIARCADO E O CAPITALISMO A resistência LGBTI+ e a política de morte bolsonarista

Levantamo-nos, nos unificamos e obtivemos legítimos e brilhantes 6×0 no STF, que já conseguiu maioria para estabelecer a criminalização da LGBTfobia. Agora, tanto o Congresso, omisso há anos, como o governo LGBTfóbico, patriarcal, racista e machista terão de correr atrás e nos engolir como garantidores de direitos mesmo assim POR SYMMY LARRAT* © Caio Borges

narrativa de ódio que chegou preocupação com a família e com o tos homens de bem que enriquecem à curso e a ação que provocam e estimu- ao poder arrasando com políti- combate à corrupção. Aliás, o com- nossa custa, mas não querem que nos lam essa violência. Ainda querem nos cas sociais, culturais e educa- bustível para o fascismo é exatamente aposentemos. matar! Esta é a política que querem cionais, extinguindo direitos de a moralidade e o medo. Primeiro co- Em vez de levantarmos a plaqui- nos impor: a política da morte! trabalhadoresA e perseguindo índios, meçam a falar, com insistência, de pá- nha do “EU JÁ SABIA!”, decidimos lu- Mesmo vitoriosas desse processo, negros, mulheres e LGBTI vai sofrer tria, família, Deus, religião e moralida- tar por nossa existência! Assistimos ao isso não bastará para que parem de sua primeira derrota pública: a crimi- de, e que seriam esses os valores que fim da Secretaria de Educação Conti- nos perseguir. Acreditar num cami- nalização da LGBTfobia. Exatamente salvariam nossa sociedade do caos. nuada, Alfabetização, Diversidade e nho viável de luta perpassa por reco- a população que eles colocaram no Não à toa, nossas periferias estão re- Inclusão (Secadi), que tocava o debate nhecermos que erramos e que o arco- centro de seus discursos, criados para pletas de igrejas e farmácias: nossa so- de diversidade nas escolas; à persegui- -íris é nossa bandeira, assim como nos colocar como inimigos no cons- ciedade está doente, e curas milagro- ção ao turismo friendly; à divulgação tantas outras tradicionais da esquerda ciente popular, será aquela que vai sas e messias são prometidos às da possibilidade de turismo sexual no brasileira e mundial. Não há constru- lhes impor goela abaixo a obrigatorie- populações como alternativas únicas Brasil; ao enxugamento da política ção de sociedade possível sem incluir dade de aceitar que suas próprias ati- de salvação. cultural, do Sistema Único de Saúde todas as manas, monas, minas, manos tudes são criminosas. Quando decidimos, como esquer- (SUS) e do Sistema Único de Assistên- e todas as expressões possíveis e in- O movimento nacional LGBTI+ já da e governo, esconder as pautas de cia Social (Suas); aos discursos de ódio ventáveis, sejam todas, todos, todes, havia alertado sobre o perigo que eram gênero, antiproibicionistas, de orien- de ministros e ministras e diversas todxs, enfim, todas as nossas existên- os acordos feitos com a bancada do tação sexual e identidade de gênero barbaridades propagadas contra nos- cias devem ser incluídas no rolê de ódio rifando nossas pautas. Foi ali que como necessárias para a mudança da sa população. Mas nos levantamos, uma relação social de igualdade. geramos o ovo da serpente que hoje sociedade no caminho da igualdade nos unificamos e obtivemos legítimos Qualquer revolução sem levar con- tenta nos dizimar enquanto esquerda entre as pessoas, vendemos essas pau- e brilhantes 6×0 no STF, que já conse- sigo essa possibilidade e pensando e campo popular e progressista. Com tas como errôneas, reforçando o dis- guiu maioria para estabelecer a crimi- que somente o pragmatismo eleitoral e o cenário que se desenhava com o curso moral cristão que diariamente nalização da LGBTfobia. Agora, tanto os acordos de cavalheiros nos garan- avanço conservador evangélico, era persegue e mata as LGBTI+, sobretudo o Congresso, omisso há anos, como o tem a vitória é a prova de que o golpe óbvio que a extrema direita no Brasil ia as transgêneras, negras e negros. Ou governo LGBTfóbico, patriarcal, racis- não nos ensinou nada. Só demonstra- chegar ao poder e, com isso, ia querer não são os homens de bem que procu- ta e machista terão de correr atrás e remos que saímos grandes e recon- destruir a todas nós; hoje vivenciamos ram nossos corpos travestis à noite pa- nos engolir como garantidores de di- quistaremos lutadores para nossas uma ditadura fascista com apoio do ra serem possuídos pagando e finan- reitos mesmo assim. trincheiras quando nos reconhecer- voto popular. ciando nossa prostituição, mas negando Não satisfeitos, contudo, eles ainda mos como uma revolução trabalhista, Há aqueles, mesmo do nosso cam- nossos direitos trabalhistas e nosso tentam esvaziar o conteúdo da vitória, socialista e do lacre. Caso contrário, po, que afirmam que não vivemos acesso à cidadania? Podemos existir buscando elaborar legislações que um dia poderemos vencer Bolsonaro, nem fascismo nem ditadura, mas em numa esquina, mas nunca numa esco- continuem legitimando a violência mas nunca venceremos o patriarcado tempos de golpe, fragilidade dos ritos la. Não são os moralistas a sexualizar LGBTfóbica, justificando para isso as e o capitalismo. democráticos, fake news e redes so- crianças e defender o turismo sexual liberdades de discurso religioso e ten- ciais, não precisamos dos formatos vendendo os corpos femininos como tando extinguir a injúria como possí- antigos – a opressão se reinventa como possíveis de serem estuprados? Não vel para uma legislação pró-LGBTI. Ou *Symmy Larrat é presidenTRA da Associa- que numa start-up em que todas as são os moralistas a defender o uso de seja, seria possível punir a agressão ção Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, práticas fascistas se disfarçam de arma e a resolução à bala? São esses di- que nos matou, porém jamais o dis- Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). 8 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

NEM TODA POSSE DEVE SER ABOLIDA O mito de que o comunismo é contra a propriedade privada

O que o comunismo defende é a expropriação da propriedade privada capitalista pelo povo. Não se trata de não ter casa, sítio... Não é desse tipo de propriedade que o comunismo tem ojeriza, mas daquela que se constituiu de forma violenta, por meio do roubo e da invasão POR RAPHAEL SILVA FAGUNDES*

orrorizai-vos porque queremos aos meios de produção. Cultivava sua mercado é criado dessa forma forçada, mentada na exploração do trabalho abolir a propriedade privada. horta, seu pasto, fazia sua própria rou- em que uma parcela da população é alheio, livre apenas formalmente.”5 Mas em vossa sociedade a pro- pa etc. Existia mais-valia quando o obrigada a trabalhar para a outra. Portanto, ao apropriar-se dos bens “ priedade privada está abolida camponês era obrigado a trabalhar “Antes, a família camponesa pro- alheios, “a propriedade privada capi- Hpara nove décimos de seus membros. gratuitamente para o senhor feudal duzia e elaborava os meios de subsis- talista é a primeira negação da pro- E é precisamente porque não existe durante parte do ano. tência e as matérias-primas que eram, priedade privada individual”.6 O que o para esses nove décimos que ela existe Contudo, ocorreu o pecado origi- em sua maior parte, consumidos por comunismo defende é a expropriação para vós. Acusai-nos, portanto, de nal da economia. O Estado moderno ela mesma. Esses meios de subsistên- da propriedade privada capitalista pe- querer abolir uma forma de proprieda- saiu dos conflitos entre as casas me- cia e matérias-primas transforma- lo povo. Não se trata de não ter casa, de que só pode existir com a condição dievais, algo similar ao que vimos em ram-se agora em mercadorias.”3 sítio... Não é desse tipo de propriedade de privar a imensa maioria da socieda- Game of Thrones, em que batalhas Foi o capitalismo que aboliu a pro- que o comunismo tem ojeriza, mas da- de de toda propriedade. Numa pala- sangrentas entre nobres foram trava- priedade privada, pois esta, “antítese da quela que se constituiu de forma vio- vra, censurai-vos por querer abolir das pelo trono de ferro. propriedade coletiva, social, só existe lenta, por meio do roubo e da invasão. vossa propriedade. De fato, é exata- O capitalismo surgiu de forma pare- quando o instrumental e as outras con- “A lenda teológica conta-nos que o mente isso o que queremos.”1 cida. Os pequenos produtores tiveram dições externas do trabalho pertencem homem foi condenado a comer o pão Essa passagem do Manifesto do suas terras roubadas, expropriadas vio- a particulares”. Ou seja, “a propriedade com o suor de seu rosto.” Marx nos Partido Comunista foi muito mal inter- lentamente pelo grande proprietário privada do trabalhador [...] só floresce” mostra como “a lenda econômica ex- pretada. Embora os próprios autores que os expulsou de seus lares. Assim os quando “o camponês é dono da terra plica-nos o motivo por que existem deixem claro que não querem abolir a trabalhadores ficaram sem os meios de que cultiva, e o artesão, dos instrumen- pessoas que escapam a esse manda- propriedade privada, muitos críticos produção, isto é, as terras e as ferramen- tos que maneja com perícia”.4 Mas, para mento div ino”.7 do comunismo insistem em afirmar tas necessárias para produzir seus ali- o capital acumular-se, tudo deve ser ar- justamente o contrário. mentos, vestimentas etc. rancado do trabalhador. *Raphael Silva Fagundes é doutor em His- Nas últimas páginas do segundo vo- “A expropriação e a expulsão de “A expropriação do produtor direto tória Política pela Uerj e professor da rede lume do primeiro livro de O capital, uma parte da população rural liberam é levada a cabo com o vandalismo municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí. Marx explica que, para existir capitalis- trabalhadores, seus meios de subsis- mais implacável, sob o impulso das mo, é preciso que um grande número tência e seus meios de trabalho, em paixões mais infames, mais vis e mais 1 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido de pessoas seja privado dos meios de benefício do capitalista industrial; mesquinhamente odiosas. A proprie- Comunista, Martin Claret, São Paulo, 2006, p.62. produção (terras, ferramentas, máqui- além disso, criam mercado interno.”2 dade privada, obtida com o esforço 2 Karl Marx, O capital: crítica da economia política: li- vro 1, v. 2, tradução de Reginaldo Sant’Ana, 30.ed., nas etc.) e seja obrigado a se vender a Esse último ponto é chave. Privados pessoal, baseada, por assim dizer, na Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p.860. um pequeno número de pessoas. Sem a dos meios de produção, os trabalhado- identificação do trabalhador indivi- 3 Ibidem, p.861. venda voluntária de parcela da popula- res são incapacitados de produzir sua dual isolado e independente com suas 4 Ibidem, p.875. 5 Ibidem, p.875-876. ção, não é possível haver capitalismo. subsistência, sendo forçados a se condições de trabalho, é suplantada 6 Ibidem, p.876-877. Antes o servo tinha acesso direto transformar em consumidores. O pela propriedade capitalista, funda- 7 Ibidem, p.827. JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 9

COMO CONQUISTOU A ITÁLIA Nacionalismo europeu acha seu arauto

Quando Matteo Salvini assumiu a direção da Liga Norte, em 2013, esta vivia um impasse, incapaz de seduzir os eleitores do sul, os quais o partido não parava de fustigar. O atual ministro do Interior então mudou o alvo, voltando-se aos tecnocratas de Bruxelas e aos “migrantes aproveitadores” – uma estratégia vitoriosa, que transformou seu partido em pivô da política italiana e, quem sabe, europeia POR MATTEO PUCCIARELLI*

Itália tem um novo homem for- do e dependente. Assim, cada um deve- desconhecido entre os eleitores italia- lógico para a sucessão de Maroni na te. Na opinião de muita gente, ria seguir seu próprio destino. nos. Mas não entre os militantes de Mi- direção da Liga Norte. até um novo salvador. Em Ro- Os partidos democrata cristão e so- lão, onde nasceu, em 1973, filho de um O contexto histórico favoreceu essa ma, o verdadeiro chefe do go- cialista, na época, estavam ruindo por empresário. Aos 17 anos, ainda na épo- ascensão. Evidentemente, os sonhos vernoA não é o presidente do Conselho, causa do escândalo Tangentopoli.1 O ca da escola, o rapaz juntou-se à Liga de Altiero Spinelli – um dos pais fun- Giuseppe Conte, nem o vencedor das divisionismo reinava, e o Partido Co- Lombarda. Sete anos depois, tornou-se dadores da União Europeia, feroz par- últimas eleições gerais, o líder do Mo- munista Italiano (PCI) abandonou vereador. Nesse período, frequentou o tidário de um federalismo continental vimento Cinco Estrelas (M5S), Luigi Di qualquer referência ao comunismo Leoncavallo, o mais importante centro – não se concretizaram. Pelo contrá- Maio. O verdadeiro chefe do governo é após a queda do Muro de Berlim. A Liga social da cidade, um enclave da mili- rio: as altas esferas do bloco europeu o ministro do Interior, Matteo Salvini. conseguiu seu primeiro avanço nas tância alternativa e radical, onde se en- são cada vez mais povoadas por buro- É como se, de um dia para o outro, um eleições gerais de 1994, obtendo 8,7% contram as várias tendências da es- cratas que ditam suas políticas a go- obscuro vereador de Milão, militante dos votos em nível nacional e mais de querda milanesa. Ele bebia cerveja, vernos eleitos, sem se preocupar com de longa data da formação separatista 17% na Lombardia. Depois, participou assistia a espetáculos e cultivava sua mandatos democráticos, e impõem a Liga Norte, tivesse se tornado a perso- do governo de centro-direita de Silvio paixão pelo cantor anarquista Fabrizio austeridade neoliberal sob a ameaça nalidade mais poderosa do país. Em Berlusconi. Mas, irritado com seu papel De André. Como vereador, defendeu o de um cataclismo a qualquer país que suas mãos, um partido que parecia subalterno, Bossi, um franco-atirador centro contra Marco Formentini, o pre- pretenda seguir outro caminho. uma relíquia transformou-se no prin- truculento, não tardou a deixar a alian- feito da época, também membro da Li- Na Itália, país que sofreu mais que cipal agente da política italiana e tal- ça, derrubando de passagem Berlusco- ga, que desejava derrubá-lo. Quando, outros as consequências do Tratado de vez europeia. ni. Bancando o cavaleiro solitário nas em 1997, a Liga organizou “eleições pa- Maastricht, o ano de 2014 assistiu ao As raízes dessa incrível transfor- eleições seguintes, a Liga ganhou 10% danianas” para nomear o parlamento advento de um dos governos mais ar- mação chegam muito longe, não no dos votos em 1996, caindo depois para paralelo de sua pretendida nação, Sal- rogantes do pós-guerra, determinado tempo, mas no espaço. Desde 2014, as 4,5% nas eleições europeias de 1999. vini tornou-se chefe dos “comunistas não apenas a destruir o direito traba- guerras e a pobreza levaram milhões Ela voltou à aliança liderada por padanianos”, uma lista adornada com lhista por decreto, mas também a des- de habitantes da África e do Oriente Berlusconi, na qual, durante a década a foice e o martelo. mantelar algumas disposições funda- Médio a atravessar o Mediterrâneo em seguinte, atuou como parceira minori- mentais da Constituição de 1946, a fim busca de trabalho, liberdade e paz em tária, vociferante, mas altamente inefi- TRÊS MILHÕES DE SEGUIDORES NO FACEBOOK de concentrar mais poder em suas uma Europa rica, antiga, porém cada caz. Enfraquecido por um acidente vas- Seu assento na Câmara Municipal mãos. Matteo Renzi assumiu o cargo vez mais desigual. A resposta do Velho cular cerebral e atolado em um caso de de Milão permitiu-lhe dar amplo eco a de presidente do Conselho em feverei- Continente resumiu-se ou a fingir que corrupção, Bossi foi afastado por seu suas diatribes, sobretudo em relação ro de 2014. Ele chegou ali sem nem se- não via, ou a explorar os fantasmas do número dois, Roberto Maroni, que as- aos “ciganos muçulmanos” e às ques- quer ter sido deputado antes: assumiu desespero alheio: em vez de ajudar, sumiu a liderança do partido em 2012. tões securitárias. Assim, apoiou um pai o controle do Partido Democrático – identificar um inimigo e lançar um Nas eleições gerais de 2013, a Liga caiu de família que atirou em um ladrão e enterrando de passagem as reivindica- concurso de humilhações. Os últimos novamente para 4,1%, parecendo con- propôs o estabelecimento de uma linha ções tradicionais desse partido para e os penúltimos dos abandonados do denada à insignificância. Em seu feudo telefônica gratuita para denunciar atos encarnar uma força de esquerda – e fez planeta foram jogados uns contra os lombardo, porém, Maroni conseguiu de delinquência cometidos por imi- um pacto com Berlusconi. Benefician- outros, e os mais favorecidos foram conquistar a presidência da região. Ele grantes. Arroz de festa, logo se tornou do-se do apoio sem reservas do presi- deixados em paz. Na Itália, Salvini ini- então decidiu abandonar o cargo de se- convidado regular dos canais de televi- dente da República, do principal sindi- ciou a revolta dos penúltimos. Com cretário-geral, acreditando que seu são locais. Ele também se mostrou cato patronal, dos bancos e das certo talento, aprendeu a comunicar- partido não teria futuro em nível nacio- muito ativo nas mídias controladas pe- multinacionais, sem falar dos meios -se com suas necessidades. nal e que seria melhor aproveitar os be- la Liga, escrevendo principalmente pa- de comunicação, Renzi considerou-se A Liga Norte foi fundada em 1991, às nefícios de um mandato regional. ra o jornal Padania, antes de se tornar popular o bastante para lançar um re- vésperas da implosão dos três partidos Em 15 de dezembro de 2013, a Liga diretor da Radio Padania Libera. À ima- ferendo sobre suas emendas constitu- de massa – o democrata cristão, o co- Norte organizou uma primária interna gem do PCI de outrora, a Liga era uma cionais. O conjunto das forças políti- munista e o socialista – que domina- para designar o sucessor de Maroni, organização que atuava em todas as cas voltou-se contra ele, e os eleitores vam a Itália desde a Segunda Guerra mas a consulta parecia mera formali- áreas, envolvendo seus militantes em infligiram-lhe uma severa derrota.2 Mundial. Apresentando-se como “nem dade. O futuro do partido foi decidido uma ampla variedade de atividades. Entre os jovens eleitores, que ele dizia de esquerda nem de direita”, ela nasceu em um almoço entre Maroni e dois de Em 2004, o dinamismo de Salvini representar, 80% escolheram o “não”. da fusão entre a Liga Lombarda de Um- seus seguidores, Salvini e Flavio Tosi, o acabou por levá-lo a Bruxelas, onde se Entre os vencedores dessa rodada elei- berto Bossi, surgida em meados dos popular prefeito de : a posição tornou eurodeputado pela Liga, com a toral, Salvini, que lutou vigorosamente anos 1980, e algumas forças regionalis- ingrata de secretário-geral caberia ao maior parte de seus votos vinda dos contra o projeto de reforma, adquiriu tas que operavam no norte do país. Sua primeiro, reservando-se ao segundo a subúrbios carentes de Milão. Ele re- uma estatura nacional. articulação se dava em torno de um ob- possibilidade de se tornar o porta-ban- nunciou em 2006 para liderar o grupo Para chegar a isso, o chefe da Liga jetivo particularista: a independência deira da centro-direita quando Berlus- da Liga na Câmara Municipal de Mi- teve de operar duas grandes mudan- da Padânia, uma nação imaginária que coni, cada vez mais desacreditado, não lão, mas voltou a seu mandato euro- ças: adotar uma nova estratégia elei- se estenderia ao redor do Pó, uma vez pudesse mais exercer esse papel. peu em 2009. Tornou-se secretário-ge- toral e estabelecer uma relação inova- que o norte, próspero e trabalhador, es- Salvini venceu a primária com mais ral da Liga Lombarda em 2012. Foi dora com o digital. A Liga Norte, taria cansado de pagar pelo sul, atrasa- de 82% dos votos. Ele era então quase então que se impôs como o candidato movimento separatista fundado por 10 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

contra o inimigo do dia (os “ilegais”, os passado, se divide e se perde em lutas magistrados venais, o Partido Demo- internas, Salvini vai falar com os tra- crático, a União Europeia), depois pu- balhadores nas fábricas, sempre arras- blica uma foto do mar, de seu almoço tando as câmeras de televisão atrás de ou uma foto sua abraçando um mili- si. Ele lhes oferece um momento de tante ou pescando. A opinião pública atenção midiática após décadas de se alimenta de um fluxo interminável isolamento. Enquanto a esquerda gere de imagens de Salvini comendo Nutel- seu eleitorado em miniatura multipli- la, cozinhando tortellini, chupando la- cando pactos e alianças, remoendo ranja, ouvindo música ou assistindo à seus vãos apelos à unidade, ele brada televisão. Diariamente, uma fatia de contra as deslocalizações de fábricas sua vida é assim compartilhada com para o exterior e pede medidas prote- milhões de italianos, seguindo uma cionistas contra a concorrência des- estratégia na qual o público e o priva- leal de países que pisoteiam os direitos do se misturam permanentemente. trabalhistas. Os resultados não demo- Esse ecletismo tem o objetivo de con- ram a chegar. Em 2016, a Liga tornou-

© Reuters / Alessandro Garofalo ferir-lhe uma imagem humana e re- -se o segundo partido da “Toscana Matteo Salvini: “Quando me confundem com um fascista, eu rio” confortante, permitindo que continue vermelha”, alcançando suas melhores suas provocações. Sua mensagem: pontuações nos subúrbios populares. Bossi, definira dois inimigos: Roma, o Ele assumiu Salvini em uma época na “Apesar da lenda que me apresenta co- Na Emília-Romanha, na Úmbria e nas centro da corrupção burocrática, e o qual este já era inseparável de seu ta- mo um monstro retrógrado, um popu- Marcas – áreas outrora dominadas pe- sul, terra de vagabundos e parasitas. O blet e amplamente familiarizado com lista pouco sério, eu sou uma pessoa los PCI –, ela ganha terreno. impasse dessa estratégia apareceu o Twitter, mas com uma presença ain- honesta. Falo assim porque sou como As eleições gerais de 4 de março de claramente no início de 2010. A sepa- da insignificante no Facebook. Seu no- você, então confie em mim”. 2018 marcaram uma etapa decisiva. ração não era nem real nem plausível, vo consultor digital disse que ele preci- A estratégia de Morisi também se Aliada a Berlusconi e ao Fratelli d’Itália e a sobrevivência do partido – que os- sava mudar de estratégia. O Twitter é baseia na “transmidialidade”: aparecer (“Irmãos do Norte”), um resíduo neo- cilava entre 3% e 4% das intenções de uma camisa de força, explicou. Segun- na televisão enquanto publica no Face- fascista do pós-guerra, a Liga – que de voto nas pesquisas – estava em ques- do ele, a plataforma é fundamental- book, analisar os comentários ao vivo e passagem abandonou o complemento tão. Como secretário-geral, Salvini to- mente autorreferencial e privilegia as citá-los durante o programa; uma vez “Norte” – multiplicou sua pontuação mou um novo rumo: atacar Bruxelas mensagens de confirmação. “As pes- terminado o programa, montar resu- por quatro e atingiu 17,3% dos votos. em vez de Roma, e os imigrantes em soas estão no Facebook e é lá que pre- mos e postá-los no Facebook. Essa Embora sua base permaneça seten- vez dos habitantes do sul. Assim, fala- cisamos estar”, afirma. Uma equipe abordagem, na qual Salvini se tornou trional, ela agora também está no sul. ria em nome de todos os italianos, de dedicada às redes sociais foi montada mestre, não tardou a dar frutos: entre Pela primeira vez, ultrapassou o Forza toda a nação, contra os opressores e e logo se tornou um dos serviços mais meados de janeiro e meados de feverei- Italia, partido de Berlusconi. No total, contra os invasores. Abandonando a importantes da Liga. ro de 2015, ele recebeu quase duas ve- a coalizão de centro-direita teve 37% oposição entre duas Itálias, a Liga con- Morisi definiu o decálogo que o zes mais tempo na mídia do que Renzi. dos votos e conquistou o dobro de as- seguiu reunir agricultores da Puglia, chefe do partido deveria seguir. As Em 2013, não tinha mais do que 18 mil sentos da centro-esquerda, ainda que pescadores da Sicília, empresários ve- mensagens em sua página do Face- seguidores no Facebook; em meados o verdadeiro vencedor tenha sido o nezianos e executivos lombardos, to- book tinham de ser escritas pelo pró- de 2015, eles eram 1,5 milhão, e hoje são M5S, liderado por Luigi Di Maio, um dos apresentados como vítimas de um prio Salvini, ou dar essa impressão. mais de 3 milhões – um recorde entre napolitano de 30 anos: ele ultrapassou poder distante e desalmado, e enfren- Deveria haver publicações todos os os dirigentes políticos europeus. de longe todos os outros partidos, com tando um tsunami de estrangeiros. dias, o ano todo, e comentários inclusi- 32% dos votos. Salvini começou explorando a frus- ve sobre eventos que acabaram de UM RIVAL REDUZIDO À IMPOTÊNCIA Como nenhum dos três blocos tração em relação à União Europeia, acontecer. A pontuação deveria ser re- Por muito tempo Salvini foi consi- conseguiu maioria parlamentar, foi em um país onde cada orçamento deve gular, os textos simples, as chamadas à derado por seus adversários como ca- preciso acertar um casamento de con- ser aprovado pela Comissão, a qual exi- ação recorrentes. Morisi também suge- prichoso e indisciplinado, capaz ape- veniência. Após três meses de blefes e ge sacrifício após sacrifício com o con- riu usar, tanto quanto possível, o pro- nas de gesticulações midiáticas. Mas, negociações, o M5S e a Liga finalmen- sentimento tanto da centro-direita co- nome “nós”, mais capaz de promover a em um mundo político marcado por te chegaram a um acordo sobre um mo da centro-esquerda. Seu discurso identificação dos leitores, além de ler uma extrema personalização,3 o se- “contrato de governo”, que descreve, de posse dava o tom: “Temos de recon- os comentários e, algumas vezes, res- cretário-geral da Liga tem um grande em termos muito gerais, as áreas de quistar a soberania econômica que ponder a eles, a fim de sondar a opinião trunfo. Berlusconi se dirige à nação atribuição de cada um. Um governo se perdemos na União Europeia. Já esta- pública. Resultado: a página de Salvini em seus canais de televisão, do grande formou em junho. Salvini e Di Maio mos de saco cheio deles [...]. Isso não é no Facebook passou a funcionar como escritório de sua vila em Arcore; Renzi tornaram-se vice-presidentes do Con- União Europeia, é União Soviética, um um jornal, sobretudo graças a um sis- organiza eventos multimídia em Flo- selho, enquanto o cargo de chefe de gulag de onde queremos sair, com tema de publicação criado interna- rença, onde aparece com escritores e governo coube a um membro do M5S, quem mais estiver disposto a fazê-lo”. mente e conhecido como “a besta”. O estrelas da música; Giuseppe “Beppe” Conte, um professor de direito desco- As eleições europeias de 2014 se aproxi- conteúdo é publicado em horários fi- Grillo, com seu espírito mordaz do nhecido do grande público. Essa coa- mavam, e ele continuava sua ofensiva xos e replicado por uma infinidade de tempo em que era comediante e arras- lizão “verde-amarela” foi recebida por contra Bruxelas, exortando a Itália a outras contas; as reações são monito- tava multidões, depois de fundar o uma apoplexia geral na grande mídia, abandonar o euro, uma ideia até então radas continuamente. Morisi e seus co- M5S prefere ficar na sombra e contro- que execra o “populismo” em todas as relegada às margens do discurso políti- legas redigem entre oitenta e noventa lar seu movimento a distância. Já Sal- suas formas. Então, quando dois de co pela esquerda e pela direita. A rei- status por semana, enquanto Renzi – vini aparece como um homem do po- seus representantes se aliam... vindicação não arrastou multidões. então presidente do Conselho – e sua vo, autêntico, que ama acima de tudo As semelhanças entre os dois parti- Longe de melhorar sua pontuação, a equipe não passam de dez. Para man- se misturar com as massas. Basta vê-lo dos são mais comportamentais do que Liga perdeu três de seus nove deputa- ter os seguidores, Morisi tem um tru- em ação em uma discoteca, com um políticas: veemência implacável, retó- dos no Parlamento Europeu. que: insistir nas mesmas palavras, copo na mão, cercado por militantes e rica antissistema, referências constan- Foi então que entrou em cena Luca mantendo uma linguagem que mais admiradores curiosos que aguardam tes aos inimigos internos e externos, Morisi. O especialista em informática lembra uma conversa de boteco do que uma foto: nenhum dirigente italiano invocação do “povo”, organização ver- de 45 anos dirigia, com um sócio, a a fala de um político tradicional. poderia produzir tais imagens com ta- tical, presença on-line agressiva que empresa Sistema Intranet, que não ti- O tom das mensagens oscila entre a manha naturalidade. tende a transformar qualquer assunto nha nenhum funcionário, mas uma irreverência, a agressividade e a sedu- Enquanto a esquerda, ou o que res- em slogan ou em piada de mau gosto. multidão de clientes institucionais. ção. O chefe da Liga lança seus leitores ta dela, refugia-se nos símbolos do Sua principal semelhança ideológica é JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11

a hostilidade a Bruxelas e o ceticismo um bom xerife. Ele confiou a seu braço trir a esperança de dirigir um governo. Estados Unidos contam mais que a em relação à moeda única, acusada de direito o Ministério da Família, outra Ele tem, de fato, um grande trunfo. Na Rússia, e suas afinidades – em termos ser a responsável pela austeridade e pe- excelente tribuna para declarações de Itália, o neofascismo está há muito de estilo e personalidade – são muito la estagnação econômica na Itália. Mas grande impacto na mídia. Mas reser- tempo integrado ao sistema político, o maiores com o ocupante da Casa os programas que cada um pretende vou para si a mais importante respon- que permite à Liga apresentar-se como Branca do que com o do Kremlin. Isso colocar em prática para quebrar esses sabilidade moral de um governo ho- “diferente”. Ideologicamente, embora significa, em particular, um alinha- elos mostram uma grande divergência nesto: a cruzada contra a imigração pertença à direita radical, seu chefe mento com a tentativa de Trump de política. A Liga quer introduzir um flat clandestina, efetivada por meio da ne- nunca negou suas meias origens de es- subjugar a China. Em contraste, e para tax (imposto proporcional), a receita gação dos direitos portuários a ONGs querda. “Quando me confundem com grande desgosto de Salvini, Di Maio clássica da direita para atrair os peque- que salvam vidas no Mediterrâneo. Os um fascista, eu rio”, ele diz. “Roberto recebeu na Itália o presidente Xi nos empresários que formam sua base anos de propaganda do M5S contra a Maroni desconfiava que eu fosse um Jinping, que chegou cheio de presentes social no norte. Já o M5S deseja criar “invasão” deixaram traços, forçando- comunista dentro da Liga, pois eu era relacionados à Nova Rota da Seda. uma renda mínima garantida para aju- -o hoje a seguir a Liga nesse campo o mais próximo deles em alguns as- dar os desempregados, os precários e minado, às vezes com alguns discur- pectos, inclusive no meu modo de ves- ARRANJOS COM BRUXELAS os pobres, sobretudo no sul. Em termos sos ineficazes contra atos xenófobos tir.” Em 2015, ele ainda era admirador A diferença é igualmente visível no de redistribuição, as consequências particularmente cruéis. do Syriza, partido de esquerda grego, e interior da União Europeia, onde o di- dessas duas medidas diametralmente Poucos meses após a chegada ao continua a enfeitar suas declarações rigente do M5S adotou uma aborda- opostas traçam uma linha de fratura poder da coalizão “verde-amarela”, com reivindicações outrora típicas da gem muito mais radical, expressando entre os dois partidos na clivagem clás- não há mais dúvidas sobre qual cor do- esquerda, como a necessidade de um um caloroso apoio aos “coletes amare- sica entre direita e esquerda. mina.4 Embora tenha tido metade dos banco público de investimento ou a los” franceses, que Salvini considera No governo, o M5S assumiu os mi- votos de seu parceiro, a Liga impôs sua revogação das reformas neoliberais do vândalos. No nível da União Europeia, nistérios com forte peso socioeconô- hegemonia, como se tivesse tido o do- sistema previdenciário. o chefe da Liga contentou-se em batu- mico, enquanto a Liga ficou com aque- bro. As três eleições regionais realiza- Salvini tem a vantagem de atuar car sobre as barras da “jaula” de Bruxe- les que têm uma dimensão simbólica e das entre janeiro e abril de 2019 trans- em um contexto no qual a esquerda, las, sem tentar quebrá-las. Ele aprovou identitária. Entre os novos ministros, formaram essa inversão em um fato reformista ou radical, praticamente o atual orçamento italiano, finalmente 90% não tinham nenhuma experiên- político frio. Todas ocorreram no sul, desapareceu. Na França, na Espanha, em consonância com o “parecer” da cia no poder executivo antes de serem onde, em 2018, houvera um tsunami a no Reino Unido e até na Alemanha, as Comissão. Um compromisso assumi- nomeados. Salvini tornou-se ministro favor do M5S. Em Abruzzo, ele passou forças populares que resistem à doxa do em um conflito institucional, e não do Interior e Di Maio assumiu as ré- de 39,8% para 19,7%, quando a Liga do poder estão sempre à esquerda do apenas verbal, com a Europa parece deas do Desenvolvimento Econômico, saltou de 13,8% para 27,5%. Na Sarde- espectro político. Na Itália, não é as- menos provável do que uma adaptação Trabalho e Assuntos Sociais. À primei- nha, afundou (de 42,4% para 9,7%), en- sim. Ali entram em cena algumas con- pragmática ao status quo. A base social ra vista, o M5S, que venceu as eleições, quanto o partido de Salvini progrediu dições socioeconômicas e geográficas. da Liga talvez seja hostil aos grandes conquistou os melhores postos – espe- ligeiramente (de 10,8% para 11,4%). Na Nenhum outro país importante da bancos, às regulamentações comuni- cialmente Infraestrutura, Saúde e Cul- Basilicata, o movimento de Di Maio União Europeia sofreu mais com a ca- tárias e às multinacionais, mas sua tura –, os de maior impacto potencial viu sua pontuação cair pela metade misa de força do euro do que a Itália, sensibilidade continua sendo indubi- sobre o eleitorado. (de 44,3% para 20,3%), quando a Liga cuja renda per capita quase não au- tavelmente capitalista. Em seu tempo, No entanto, a formação do gover- triplicou a sua (de 6,3% para 19,1%). mentou desde que a moeda única en- Bossi também protestou contra Bruxe- no esteve, desde o início, sob a vigi- Aliada ao , ao Fratelli d’Ita- trou em vigor5 e cujas taxas de cresci- las, o que não impediu a Liga Norte de lância do “Estado profundo” italiano: lia e a vários outros grupos, ela assu- mento eram miseráveis. Além disso, votar a favor dos Tratados de Maas- a presidência da República (Sergio miu o controle dessas três regiões. As- sendo uma península com a mais lon- tricht e de Lisboa. Mattarella), o Banco da Itália, a Bolsa sim, venceu em todas as frentes, ga costa contínua de todos os países da Para Salvini, a moeda única tem si- de Valores e, sobretudo, o Banco Cen- juntando-se ao Forza Italia e à extrema União Europeia, a Itália tornou-se um do um espantalho útil em sua ascen- tral Europeu. Este cuidou para que os direita em nível local, ao mesmo tem- entroncamento migratório, situação à são, mas que, uma vez que esta seja ministérios que realmente importam po que manteve a aliança com o M5S qual o tradicional país de emigração, atingida, pode ser reacomodado. A de- em termos de economia (Finanças e em Roma. Por fim, a Liga venceu as que tanto alimentou os fluxos popula- núncia das “fronteiras-peneiras” con- Assuntos Europeus) não ficassem eleições europeias de 26 de maio, com cionais mundiais, não estava acostu- tinua sendo seu verdadeiro passaporte com nenhum dos dois partidos. Além 34% dos votos contra 22,7% do Partido mado e que se deu em um contexto de para o poder. E, sobre esse assunto, a disso, quando a coalizão propõe can- Democrático (PD) de Renzi, 17,1% do retração econômica e de feroz compe- União Europeia não lhe impõe nenhu- didatos que Mattarella considera in- M5S e 8,8% do Forza Italia. tição por emprego e assistência social. ma dificuldade. suficientemente submetidos à União A Liga agora ocupa o centro da vida À medida que essas tensões se tornam Europeia, o presidente não hesita em política italiana. Salvini dá as cartas e cada vez mais elétricas, Salvini apre- *Matteo Pucciarelli é jornalista e autor de usar seu veto. Desse modo, a influên- define as regras do jogo, forçando a mí- senta-se como o para-raios ideal para Anatomia di un populista. La vera storia di cia do M5S nas políticas orçamentá- dia a seguir servilmente o que diz – suas descarregar um potencial conflito de Matteo Salvini (Anatomia de um populista. A rias foi amplamente neutralizada des- promessas, suas provocações e seu classes e transformá-lo em uma luta verdadeira história de Matteo Salvini), Feltri- de o início. Não é novidade que, assim “bom senso”, o qual, difundido há anos dos pobres contra os pobres. nelli, Milão, 2016. Uma versão mais longa que uma das propostas do M5S ou da via televisão, jornais e internet, parece Caso conquistasse o Palazzo Chigi, deste artigo foi publicada na New Left Re- Liga ameaçou transformar-se em lei ter realmente se tornado um. A política viria ele a se tornar um novo Berlusco- view, n.116-117, Londres, mar.-jun. 2019. (seja a renda mínima garantida ou a italiana passou por uma “liguização” ni que, apesar de toda sua fanfarroni- redução da idade de aposentadoria), a (leghizzazione). Agora é considerado ce, não mudou muito? Sua atitude em Comissão Europeia e seus emissários normal – e isso se aplica à centro-es- relação à União Europeia é um teste 1 O caso Tangentopoli, que explodiu em 1992, era internos intervieram. Meses de luta querda – acusar ONGs de serem “táxis decisivo. O Cavaliere se distinguiu um vasto sistema de subornos entre líderes políti- cos e empresários. Deu origem à operação judicial acabaram adoçando as medidas e es- marítimos” mancomunados com pas- mais por suas gafes do que pela má Mani Pulite (“Mãos Limpas”). vaziando-as de significado. Tanto que sadores de imigrantes; afirmar que os conduta no Conselho Europeu. Salvini 2 Ler Raffaele Laudani, “Matteo Renzi, un certain Di Maio não tem, até agora, nenhum cidadãos precisam de segurança em é mais implacável e mais ideológico. goût pour la casse” [Matteo Renzi, um certo gosto pelo roubo] e “Matteo Renzi se rêve en Phénix” sucesso para exibir em seu quadro de primeiro lugar; ou ver a imigração ex- Ele fez campanha nas eleições euro- [Matteo Renzi pensa ser uma fênix], Le Monde Di- honra governamental. clusivamente como um problema. Te- peias de 2019 prometendo o surgimen- plomatique, jul. 2014 e jan. 2017, respectivamente. ses que outrora eram apanágio da Liga to de um bloco populista de direita – a 3 Ver Mauro Calise, La Democrazia del leader [A de- mocracia do leader], Laterza, Roma-Bari, 2016. “LIGUIZAÇÃO” DA POLÍTICA e dos círculos neonacionalistas são “internacional soberanista”, idealiza- 4 Ler Stefano Palombarini, “En Italie, une fronde an- Salvini, por sua vez, maximizou quase unanimemente admitidas. da por Steve Bannon, ex-assessor do tieuropéenne?” [Uma revolta antieuropeia na Itá- sua presença. Como ministro do Inte- Entre os dirigentes da direita euro- presidente dos Estados Unidos, Do- lia?], Le Monde Diplomatique, nov. 2018. 5 O salário bruto anual médio passou, em preços rior, está quase sempre vestindo ja- cética dos grandes países da União Eu- nald Trump. Por muito tempo, ele foi corrigidos, de 28.939 euros em 2001 para 29.214 queta de policial ou de fuzileiro, como ropeia, Salvini é o único que pode nu- admirador de Vladimir Putin. Mas os euros em 2017. 12 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

MÍDIA BRITÂNICA TENTA DESTRUIR JEREMY CORBYN Antissemitismo, o golpe final

“Incompetente”, “espião russo”, “perigoso radical”... O líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, já foi tudo isso, de acordo com seus adversários. Contudo, apesar de ser tão infundada como as outras, uma acusação parece ter se imposto na mídia dominante: a de antissemitismo. Uma operação para desqualificar de cara qualquer oponente POR DANIEL FINN* © Mari Casalecchi Mari ©

polêmica em torno do antisse- Desde 2015, esse tipo de prática cutida nas colunas do próprio The New Estado que afetam a vida de amplos mitismo que infestaria o mundo tornou-se rotina na grande mídia bri- York Times. Mas ela não disse uma pa- setores da população. político britânico ultrapassou tânica – inclusive entre seus represen- lavra sequer sobre “lobby judaico”:3 as fronteiras do Reino Unido. O tantes mais famosos, como o The diante disso, o jornal excluiu essa pas- ACUSAÇÕES E INVECTIVAS Aparágrafo inicial de um artigo recente Guardian e a BBC, que parecem ter sagem em sua edição on-line, mas não A pedra fundamental desse edifí- do The New York Times combinou o aberto mão de verificar as informa- se incomodou em redigir uma errata. cio minuciosamente construído foi “profundo antissemitismo” do Partido ções que publicam, desde que se trate Em que se baseiam exatamente as assentada na primavera de 2016, num Trabalhista com a profanação de um de acusar Corbyn. Repetida à vontade, acusações contra Corbyn e seu parti- momento em que a posição de Corbyn cemitério judeu na França para suge- a acusação – cheia de afirmações que do? Os deputados trabalhistas e os co- ficava ainda mais fragilizada pelo fato rir que o ódio aos judeus “constitui o não correspondem à realidade – ga- mentaristas progressistas são fre- de que o conjunto das mídias alterna- ponto de convergência de famílias po- nhou um caráter de evidência que par- quentemente chamados a admitir a tivas – que desde então se desenvolveu líticas geralmente consideradas dis- te da população nem questiona mais. ideia de que “o Partido Trabalhista tem para apoiá-lo diante dos deputados tantes: a extrema direita, algumas Os mesmos métodos são usados em um problema de antissemitismo”, sem blairistas do partido – ainda engati- franjas da extrema esquerda, o isla- outras partes do mundo para desacre- que, no entanto, seus crimes sejam nhava.5 Na época, a campanha pre- mismo radical europeu e diversas fra- ditar líderes políticos de esquerda que, claramente expostos. Qualquer mani- tendia colocar o novo líder do Partido ções dos dois principais partidos dos como Corbyn, são conhecidos por festação de antissemitismo seria natu- Trabalhista como responsável por Estados Unidos”.1 apoiar a causa palestina. No primeiro ralmente um problema para o Partido desvios que estavam fora de seu con- A produção editorial do grande jor- artigo do The New York Times citado, Trabalhista, mas o discurso dominan- trole (especialmente os comentários nal norte-americano ilustra, acima de que compara o Partido Trabalhista bri- te não se contenta em evocar esta ou antissemitas da deputada Naz Shah, tudo, o modo como a mídia lida com o tânico ao partido do presidente húnga- aquela frase proferida por um de seus embora eles tivessem sido proferidos suposto antissemitismo das forças de ro de extrema direita, Viktor Orbán, o (muitos) militantes de base: ele tam- antes de Corbyn assumir a direção do esquerda e, em particular, com o Par- jornalista Patrick Kingsley escreve que bém sugere que, sob a liderança de partido e de Shah ser eleita para o Par- tido Trabalhista de Jeremy Corbyn. Em a deputada democrata norte-america- Corbyn, o partido teria se tornado lamento) ou que simplesmente nunca outubro de 2017, Howard Jacobson, em na Ilhan Omar foi “unanimemente “hostil aos judeus” e “institucional- aconteceram – como a suposta conta- um artigo desse jornal, descreveu a condenada por recorrer a estereótipos mente antissemita”. Seus líderes for- minação de um círculo do partido na conferência anual do Partido Traba- antissemitas, sugerindo que a vida po- mariam uma panelinha animada pelo Universidade de Oxford pela hostili- lhista como uma explosão de ódio, lítica do país estaria sob a influência de “ódio dos judeus”, aos quais teriam dade aos judeus, o que se provou ser afirmando, por exemplo, que uma das lobbies judeus”, antes de imputar-lhe “declarado guerra” – eles estariam co- uma fantasia. moções votadas questionava a reali- ligações com “círculos islâmicos radi- locando o Reino Unido sob um “perigo Já então o tratamento do tema pela dade do Holocausto: uma mentira a cais”. Na verdade, Omar falou sobre o ex istencial”.4 As acusações nunca vêm mídia caracterizava-se pela recusa em serviço da qual o The New York Times American Israel Public Affairs Com- acompanhadas de comprovação, mas colocar em contexto os incidentes não hesitou em colocar o prestígio de mittee (Aipac), cuja influência, de no- são mais difundidas pela imprensa do mencionados – fossem eles reais ou que ainda desfruta.2 toriedade pública, é regularmente dis- que os casos concretos de racismo de não. Em um grupo com mais de meio JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13

milhão de membros, preconceitos an- cional do Partido Trabalhista viu-se artista representou um grupo de ban- do que revelar suas inclinações carrei- tissemitas dificilmente vão deixar de instada pelo coro da mídia e dos ad- queiros expressava ou não antissemi- ristas, eles colocaram uma moeda na existir. Se os mesmos esforços tives- versários de Corbyn a adotar a defini- tismo. Após receber diversas denún- jukebox favorita da mídia: estavam sem sido feitos para descobrir mani- ção mais ampla de antissemitismo cias, Lutfur Rahman, então subprefeito saindo do Partido Trabalhista por cau- festações de hostilidade aos judeus na formulada pela Aliança Internacional do distrito, pediu à polícia que apagas- sa da intolerância de seu chefe... época em que Tony Blair, Gordon Bro- para a Memória do Holocausto (IHRA). se a pintura, salientando que o projeto Até que ponto o partido sofreu com wn e Edward Miliband estavam no A Executiva apresentou diversas do artista e suas convicções não foram esses ataques? Corbyn sobreviveu e, controle do partido, não há dúvida de emendas para proteger o direito dos determinantes: “De modo intencional de acordo com as pesquisas, não pare- que elas teriam sido encontradas (em- trabalhistas a defender os direitos dos ou não, a imagem dos banqueiros re- ce ter tido grandes danos. Mas uma bora fosse mais difícil achar provas palestinos. A ideia de que tais emendas mete à propaganda antissemita que energia preciosa tem sido dedicada a antes do advento das redes sociais). poderiam representar qualquer amea- sugere que os judeus dominam as ins- repelir os ataques dos adversários. Isso A questão central, portanto, não é ça para os judeus britânicos era absur- tituições financeiras e políticas”.10 sem falar da confusão que a situação se existem membros antissemitas nas da, mas a deputada Margaret Hodge, As coisas provavelmente teriam pa- provoca em parte da militância, que fileiras do Partido Trabalhista, mas uma virulenta oponente de Corbyn rado por aí se Corbyn não se envolves- agora hesita em formular a menor crí- mensurar qual é sua representativida- que encarna a ala à direita do partido, se. Quando o artista reclamou no Face- tica a Israel. de e observar as medidas disciplinares aproveitou a ocasião para lançar uma book sobre a destruição de seu trabalho Paradoxalmente, a acusação do tomadas para enfrentar o problema. nova ofensiva, bradando, durante uma (do qual publicou uma foto), Corbyn Partido Trabalhista coincide com um Todas as análises sérias dos elementos sessão na Câmara dos Comuns – pou- postou um comentário perguntando ressurgimento real do antissemitis- disponíveis chegaram à mesma con- co acostumada a tais explosões –, que os motivos do subprefeito, sem dizer mo. Não dentro das formações políti- clusão: bolsões de intolerância, reais, o líder de seu partido não passava de uma palavra sobre a obra em si. Quase cas de esquerda, mas à direita. Teorias envolvem apenas uma pequena pro- um “bastardo do antissemitismo” e de seis anos depois, esse comentário vira- da conspiração envolvendo os Illumi- porção dos membros. Mas os esforços um “racista”. Seu discurso conseguiu ria manchete por longas semanas. Até nati ou o financista George Soros já empreendidos pela direção do partido quebrar um tabu: a partir desse mo- hoje ele é citado como prova esmaga- não são apanágio de trolls delirantes para eliminá-los, igualmente reais, mento, líderes políticos e jornalistas dora de seu antissemitismo. na internet: o presidente dos Estados em geral não são reconhecidos pelos passaram a achar normal taxar Cor- Unidos, Donald Trump, e diversas per- adversários. byn de antissemita sem ter de apre- MONSTRO OU FANTASMA? sonalidades de direita têm se empe- Primeiro Corbyn tentou extinguir a sentar nenhuma prova disso. Corbyn devia ter prestado mais nhado em promovê-las, o que inspirou polêmica encomendando um relatório Após um verão sob fogo aberto, a atenção ao simbolismo da obra e per- ataques a sinagogas nos Estados Uni- à especialista em direitos civis Shami Executiva Nacional capitulou, adotan- ceber que ela era pelo menos ambígua. dos. Agora, um desvio parecido ocorre Chakrabarti, em junho de 2016. Investi- do o texto da IHRA sem mudar uma Ele imediatamente pediu desculpas no Reino Unido. Os livros de história gação modelo, sensível e minuciosa, ela vírgula. Alguns dias depois, um mili- por não ter feito isso. O episódio pode- devem reservar páginas severas àque- concluiu que o partido “não está toma- tante de extrema direita assassinou ria ter sido uma excelente oportunida- les que soam o alarme contra o fantas- do pelo antissemitismo, pela islamofo- onze pessoas em uma sinagoga de de para mostrar como as teses antisse- ma do antissemitismo de esquerda, no bia ou por qualquer outra forma de ra- Pittsburgh, nos Estados Unidos. O The mitas podem às vezes ser formuladas mesmo momento em que um monstro cismo”. Mas observa “sinais óbvios Guardian não conseguiu mencionar a de maneira cifrada. Mas críticas fun- muito mais real e ameaçador aparece (que datam de alguns anos atrás) de homenagem feita por Corbyn às víti- damentadas como essa se perderam no horizonte. comportamentos minoritários carac- mas sem descrevê-lo como “o líder tra- em uma enxurrada de invectivas. A terizados pelo ódio e pela ignorância”. balhista acusado de permitir que o an- cobertura da mídia levou parte do pú- *Daniel Finn é editor da New Left Review. “Eu ouvi muitas pessoas judias dizen- tissemitismo gangrene o partido”.8 É blico a imaginar que o mural era uma do-se preocupadas porque o antisse- quase como se o político e o atirador peça da mais caricata propaganda na- mitismo não foi suficientemente levado fossem a mesma coisa... zista, o que apenas Corbyn teria se re- a sério pelo Partido Trabalhista e pela O historiador Geoffrey Alderman cusado a perceber. Em suma, seu co- esquerda em geral”,6 escreve Chakra- recentemente desconstruiu esses ex- mentário no Facebook em apoio ao barti, antes de propor diversas medidas cessos. Zeloso defensor de Israel e pro- artista foi, de certa forma, equiparado 1 Patrick Kingsley, “Antisemitism is back, from the concretas para remediar o problema. fundamente divergente das posições a uma moderna saudação hitlerista. left, right and islamist extremes. Why?” [O antisse- Em um primeiro momento, nin- pró-palestinas de Corbyn, Alderman, O Partido Trabalhista teria tentado mitismo está de volta, dos extremismos de esquer- da, direita e islamista. Por quê?], The New York Ti- guém tentou refutar a constatação. Po- no entanto, descartou a ideia de que o de tudo para conter a enxurrada de mes, 4 abr. 2019. rém, meses mais tarde, críticos do Par- líder trabalhista cultivaria a menor ataques de que foi alvo. Muito com- 2 Howard Jacobson, “The phony peace between the tido Trabalhista voltaram à ofensiva: o hostilidade aos judeus: “Na verdade, preensivelmente, a tendência de res- Labour Party and Jews” [A falsa paz entre o Partido Trabalhista e os judeus], The New York Times, 6 relatório não passava de uma tentativa todos os elementos reunidos destacam ponder de forma sensata a acusações out. 2017. pouco séria de maquiar a situação – que Jeremy Corbyn sempre apoiou ini- de racismo desprovidas de qualquer 3 Nathan Thrall, “How the battle over Israel and anti- embora ninguém se desse ao trabalho ciativas comunitárias judaicas”.9 Ele fundamento desmotivou os ativistas semitism is fracturing American politics” [Como a batalha contra Israel e o antissemitismo estão fratu- de dizer por quê. Algumas semanas prossegue, sugerindo que Corbyn “age que queriam lançar uma contraofensi- rando a política norte-americana], The New York depois, uma comissão parlamentar, muitas vezes de forma leviana em rela- va franca. Outros acharam que, comu- Times, 28 mar. 2019. cujos membros estavam longe de cul- ção à sensibilidade judaica”, embora o nicando as medidas tomadas para re- 4 The Guardian (18 mar. 2016 e 9 set. 2018), The Daily Mirror (2 set. 2018), The Jewish Chronicle tivar algum tipo de idolatria corbynis- retrato pintado pelo historiador seja solver os problemas observados em (22 ago. 2018) e The Guardian (26 jul. 2018). ta, também não conseguiu estabelecer muito diferente do monstro de ódio re- suas margens, o partido dissolveria a 5 Ler Paul Mason, “Élections, club-sandwichs et “nenhuma evidência confiável da ideia tratado pela grande mídia. Isso por- polêmica. Em vão: é muito difícil que nids-de-poule au Royaume-Uni” [Eleições, sanduí- ches e ruas esburacadas no Reino Unido], Le de uma prevalência mais acentuada que, quando o líder trabalhista chega a os oponentes de Corbyn abram mão Monde Diplomatique, jun. 2017. de comportamentos antissemitas cometer erros que mereceriam uma de uma arma capaz de alimentar com 6 “The Shami Chakrabarti Inquiry” [O inquérito de dentro do Partido Trabalhista do que crítica legítima, o exagero dos ocorri- tanta facilidade o dilúvio de acusa- Shami Chakrabarti], Londres, 30 jun. 2016. Dispo- nível em: . nas outras formações políticas” – sem- dos pela mídia acaba impedindo uma ções. O último episódio desse tipo da- 7 “Antisemitism in the UK” [Antissemitismo no Reino pre se esforçando em destacar os erros discussão serena, como ilustra a polê- ta de fevereiro de 2019, quando um pe- Unido], House of Commons – Home Affairs Com- atribuídos ao Partido Trabalhista.7 mica em torno de um mural pintado queno grupo de deputados trabalhistas mittee, Londres, 16 out. 2016. 8 Harriet Sherwood, “Pittsburgh shooting: Jewish Até 2018, os juízes midiáticos de em Londres. da ala à direita do partido se separou. organizations express horror at attack” [Tiroteio de Corbyn achavam que as acusações Elaborada em 2012, a obra inspira- Hostis a Corbyn, eles empenhavam-se Pittsburgh: organizações judaicas expressam hor- (baseadas ou não em fatos comprova- -se em certas teorias da conspiração em sabotar qualquer iniciativa sua – ror diante do ataque], The Guardian, 28 out. 2018. 9 Geoffrey Alderman, “Horrors! Corbyn’s a ‘PM in dos) deviam pelo menos referir-se à que sugerem que um pequeno grupo por isso, estavam certos de que não waiting’ – accept it” [Horror! Corbyn é “primeiro- manifestação de uma hostilidade con- de banqueiros maçônicos teriam ins- poderiam concorrer pela sigla nas pró- -ministro em potencial” – aceite isso], Jewish Tele- tra a população judaica. A partir de taurado uma “nova ordem mundial”. ximas eleições gerais. Considerando graph, Londres, 18 abr. 2019. 10 Marcus Dysch, “Mayor: Tower Hamlets mural ‘to be 2018, eles se desembaraçaram de tal Logo teve início um debate na mídia que seria mais esperto bancar os ofen- removed’” [Prefeito: hora de remover o mural de restrição. Em junho, a Executiva Na- para determinar se a maneira como o didos pelo antissemitismo de seu líder Tower Hamlets], The Jewish Chronicle, 4 out. 2012. 14 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

AUTORIDADES FRANCESAS RENUNCIAM A SEU PAPEL Urbanismo à deriva

Para reconstruir a catedral de Notre-Dame de Paris, o governo francês planeja contornar as regras que disciplinam os concursos de arquitetura e os contratos públicos. No entanto, essa decisão, que pôs em alerta os profissionais da área, apenas dá sequência a um movimento de desregulamentação existente há cerca de dez anos POR PIERRE PASTORAL* © Raphael Baggas

França se destacou durante presentar, a cada ano, mais da metade poradores privados. Sem domínio do sos. Além do risco de uniformização muito tempo por sua gestão do das moradias sociais construídas na ramo de construção, ainda assim a ci- da paisagem urbana, a renovação des- setor da construção e do plane- Île-de-France. dade pretende gerir o negócio. Ela di- sas megaestruturas é problemática. jamento, resultado do forte Esse processo permite aumentar, vide o terreno em lotes para os quais Com efeito, permitindo a obtenção de compromissoA do Estado e das coletivi- a curto prazo e em tempo recorde, o exige concursos de arquitetura priva- um efeito de massa, o macroloteamen- dades locais, ao mesmo tempo regula- estoque de moradias disponíveis, dos, com especificações precisas. Para to elimina o terreno separado, no qual doras, construtoras, financiadoras, mas, a longo prazo, gera problemas. ir depressa e criar programas varia- a construção pode ser renovada, de- administradoras... Ora, já faz alguns Com a Vefa, os financiadores se veem dos, requeridos pela coletividade, o se- molida, reconstruída, substituída. O anos que esse sistema passou a correr privados de seu papel de construto- tor da construção inventa assim um que acontecerá quando esses lotes en- riscos por causa de diversos dispositi- res. Perdem a cultura da construção, produto oportuno: o “macrolotea- velhecerem? Como se fará a renovação vos que, frequentemente testados sob passando a ser meros gestores de mento”. Seu princípio? Uma megaes- desses locais pertencentes a emprei- pretexto de circunstâncias excepcio- bens. Esse sistema repousa, além do trutura que contém tudo (parques, es- teiros diferentes, dotados de diferentes nais, foram sendo pouco a pouco ba- mais, em uma contradição funda- paços livres, comércio, escritórios, meios financeiros? E que dizer dos co- nalizados, concedendo mais poder mental. Enquanto os financiadores serviços públicos, moradias privadas e proprietários prósperos, que deverão aos atores privados. devem manter suas construções, es- coletivas...) e pressupõe diversos em- preservar seus bens juntamente com É o caso, por exemplo, da “venda no tando, portanto, muito interessados preiteiros que se coordenam sob a égi- outros menos abastados e talvez até estado de consecução futura” (Vente na qualidade e robustez dos mate- de de um líder (em geral, o incorpora- mesmo pobres? en l’État du Futur Achèvement, Vefa). riais utilizados, os incorporadores dor privado mais poderoso). Terceiro exemplo: as parcerias pú- Inexistente, depois marginal no setor constroem e vendem moradias pelas Esse é um modo de produção que blico-privadas (PPPs). Surgidas no de moradia social, a Vefa – comumente quais não assumem nenhuma res- permite aos construtores racionalizar Reino Unido no início dos anos 1990, chamada de “venda na planta” – insta- ponsabilidade. Os ganhos imediatos, suas obras e fazer economias em esca- elas atravessaram a Mancha graças a lou-se na esteira da crise de 2008. Em em tempo e dinheiro, podem se la, aproveitando áreas de cidades; re- uma decisão de 17 de junho de 2004. O resposta à crise imobiliária, o presi- transformar em custos adiados. presenta uma nova concessão das co- princípio dos “contratos de parceria” à dente Nicolas Sarkozy solicitou aos fi- Outro produto bastante valorizado letividades locais relativamente às francesa é simples: na falta de meios, nanciadores que comprassem cerca de pelo meio da construção, o “macrolo- suas ambições urbanas. A maior parte as autoridades apelam a prestadores 30 mil imóveis construídos, mas ainda teamento”, apareceu no início dos das metrópoles, contudo, se deixa se- privados para financiar e gerir instala- não comercializados pelos incorpora- anos 2000 em Boulogne-Billancourt. duzir: bairro da Tripode em Nantes, ções coletivas, garantindo um serviço dores. Dez anos depois, esse modo de Implantada nesse subúrbio do oeste Lyon-Confluence, Clichy-Batignolles público ou para ele contribuindo (hos- construção “chave na mão” tornou-se parisiense desde o período entreguer- em Paris, Mantilla em Montpellier pitais, estádios...) em troca de aluguel moeda corrente no setor de habitação ras, a empresa Renault demoliu suas etc.: todas essas operações se baseiam ou de taxa. Na origem, esse modo de de aluguel moderado (Habitation à fábricas para vender os terrenos (cerca no dispositivo do macroloteamento, financiamento devia ser reservado a Loyer Modéré, HLM), até passar a re- de 70 hectares) a investidores e incor- cujos limites, entretanto, são numero- situações excepcionais, segundo crité- JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15

rios precisos, como a urgência e a com- não se circunscreve às realizações em ser creditada à prefeitura de Paris: um FRUTAS E LEGUMES plexidade do projeto, mas sua utiliza- si: aparece também por ocasião dos sistema genial de contornar a lei sobre No fim das contas, essas novas soli- ção se expandiu após a crise de 2008, estudos anteriores aos projetos. contratos públicos, permitindo-lhe vi- citações de projetos deram origem a como uma maneira de compensar o A cidade de Paris inaugurou a festa brar um golpe de comunicação ini- uma arquitetura específica. À primei- desinvestimento público. E sem condi- no final de 2014. Desejosa de vender al- gualável sem desembolsar um centavo ra vista, as propostas pareciam bas- ções limitadoras: agora basta que a PPP guns terrenos, lançou o concurso “Re- de dinheiro público. Reinventar o con- tante singulares, rivalizando em cria- seja economicamente mais vantajosa inventar Paris”, situado no cruzamento trato público, apoiando-se na espe- tividade. Na verdade, eram muito para ser adotada. Depois da atribuição entre a cessão de ativos e o contrato pú- rança desmedida de uma geração de parecidas. A rapidez da primeira fase à França da organização da Eurocopa blico. No comando, Jean-Louis Missika, arquitetos desesperados, vindos em de consulta – intensa e não (ou mal) re- em 2016, várias cidades decidiram re- vice-prefeito encarregado do urbanis- massa para trabalhar sem garantia al- munerada – dificilmente permitiu aos novar seu estádio ou construir um no- mo. Incumbido da inovação durante o guma de remuneração e acabar sacri- projetistas ir a fundo na questão. Pe- vo valendo-se das PPPs. Em agosto de mandato de Bertrand Delanoë (2001- ficados no altar duvidoso da inovação. diu-se a eles, sobretudo, que impres- 2018, o Estado havia assinado 63, e as 2004), ele conhecia bem o mundo das Cumpria pensar nisso!”.1 sionassem, e isso favorece inovações coletividades locais, 171. start-ups. Imaginou então essa consulta superficiais e cosméticas, como a pro- As PPPs permitem fazer economias como uma transposição para o setor fusão vegetal. As imagens dos projetos a curto prazo, mas são um produto fi- imobiliário dos pedidos de apresenta- de “Reinventar Paris” não pouparam, nanceiro que mobiliza os poderes pú- ção de projetos do setor da pesquisa e do Começa, entretanto, assim, frutas e legumes. Anne Hidalgo blicos por um período muito longo, desenvolvimento industrial. A prefeitu- a organizar-se se felicitou pelo fato de “a agricultura com uma real assimetria de informa- ra desejava vender alguns de seus terre- uma reação a esse urbana não ser mais uma engenhoca”. ção. Quando da lavratura do contrato, nos e propôs 22 locais aos compradores movimento de Está certo; mas isso responde verda- o Estado e as coletividades locais, em potencial – também chamados deiramente às prioridades dos cida- cujos serviços de planejamento e ur- “candidatos”. Solicitou-lhes projetos desregulamentação, dãos numa cidade em que os preços banismo veem seus meios e sua capa- “inovadores”, instaurando uma pro- propondo o retorno dos imóveis vão às alturas, os trans- cidade se reduzir continuamente, fi- gramação de oferta, e não de deman- do poder público portes estão saturados e o comércio cam diante das equipes de Bouygues, da. Equipes de designers (arquitetos, independente vem sendo substituído Eiffage ou Vinci. Pletóricas, à altura paisagistas, consultores de todos os ti- por grandes redes? das dezenas de PPPs que assinam há pos...) examinaram os projetos, que, Começa, entretanto, a organizar- quinze anos, elas conseguem tirar o uma vez aceitos, seriam financiados e A venda de 22 terrenos devia pro- -se uma reação a esse movimento de melhor partido dos contratos. concretizados por incorporadores ou porcionar mais de meio bilhão de eu- desregulamentação, propondo o re- De certo modo, as PPPs existem des- grandes grupos de construção e obras ros. A cidade não poderia, ela também, torno do poder público. Sofrem para de a Antiguidade romana. Já naquela públicas. Esse procedimento suscitou inovar e imaginar modalidades de in- formar uma frente comum, enquanto época, capitais privados eram reunidos certo mal-estar no setor da construção denização para os projetistas? “As re- os financiadores não hesitam em de- para construir certas infraestruturas e da administração, que certamente é gras do ‘Reinventar Paris’ eram conhe- nunciar o regime estrito que o gover- necessárias à coletividade (aquedutos, conservador, mas sobretudo “não ube- cidas de todos desde o lançamento. As no do primeiro-ministro Édouard estradas, agências postais...). No século rizado”: normas são respeitadas, pro- equipes que se dispuseram a partici- Philippe lhes impõe. Um número XIX, o barão Georges Eugène Hauss- fissões são protegidas. Apresentado par sabiam, pois, quais seriam suas crescente de coletividades e planeja- mann também realizou seus trabalhos por Missika como um contrato públi- vantagens, mas também as exigências, dores vai percebendo, além disso, parisienses segundo um princípio pró- co, “Reinventar Paris”, contudo, igno- e o fizeram por iniciativa própria”,2 que os “parceiros” privados não sa- ximo da PPP: o capital privado cons- rou a lei de 1985 sobre o controle da contentou-se em responder a prefeita bem gerir tão bem quanto eles a lon- truiu a malha de ruas e lugares públi- obra pública, que protege os ditos con- de Paris, Anne Hidalgo, orgulhosa de go prazo. Uma vez confrontados com cos, e ele financiou a administração tratos. O regulamento dessa consulta sua invenção: um contrato público, as inevitáveis demoras regulamenta- destes últimos; em troca, obteve o direi- não detalhou de modo algum as condi- mas sem a lentidão, a papelada e tudo res, financeiras e técnicas, alguns to de construir ao longo das novas ave- ções de retribuição das equipes de pro- o que, no entanto, assegura a igualda- prefeririam desistir, como foi o caso nidas. Mas, se o Estado precisava de in- jeto. Seiscentos e cinquenta dossiês fo- de de tratamento entre os candidatos, com a PPP do hospital Corbeil-Esson- vestimentos privados, era igualmente ram apresentados em resposta ao sua remuneração nas últimas fases de ne, rescindida em 2014, três anos capaz de controlá-los e direcioná-los, pedido e 75 finalistas foram seleciona- seleção e a transparência da decisão. após a entrega do estabelecimento impondo especificações draconianas, dos. Em um concurso de arquitetura Depois, houve “Reinventar Paris pela Eiffage. No Reino Unido, país como se vê pela homogeneidade das fa- comum, os finalistas recebem uma re- 2”, “Inventemos a Metrópole da Gran- pioneiro das privatizações e PPPs, o chadas de Haussmann ou a coerência muneração que cobre boa parte do de Paris” (1 e 2), “Reinventar o Sena”, Estado recuperou em 2018 o controle dos espaços urbanos, da pracinha ao custo do trabalho executado. No con- mas também “Imagine Angers” e ain- de uma prisão e de uma linha ferro- parque de grandes dimensões. curso imaginado por Missika, a maio- da “Desenhe Toulouse para mim”. Às viária outrora entregues à iniciativa ria das equipes de projetistas traba- vezes, com o mesmo procedimento: privada. Hoje em posição desfavorá- lhou de graça, obrigadas que foram a uma coletividade vende terrenos em vel, o Estado e as coletividades locais aceitar essas condições de trabalho. De troca de projetos imaginados por gru- talvez um dia retomem o controle, As PPPs permitem resto, o regulamento da consulta não pos privados e liderados por bancos, pois a coletividade precisa de seu pa- fazer economias a curto previa nenhum método de avaliação companhias de seguros, incorporado- pel como reguladores e, sobretudo, prazo, mas são um dos projetos apresentados nem nenhu- res... Como para as PPPs, o risco e o como investidores. produto financeiro que ma obrigação de publicar as avaliações custo parecem insignificantes. Além e o conteúdo das propostas financei- disso, tranquilizam-se os escolhidos *Pierre Pastoral é arquiteto e urbanista e tra- mobiliza os poderes ras. Nessas condições, é impossível sa- por essas belas imagens, todos esses balha para o Estado e coletividades locais. públicos por um ber se a cidade escolheu os vencedores projetos que fazem sonhar. Wikibuil- período muito longo por seu sentido de “inovação” ou sim- ding, coliving, crowdfunding, fablab: plesmente optou pela melhor proposta os usos vislumbrados pelos projetistas – como se faz habitualmente numa dão ao prefeito a impressão de estar cessão de ativos. diante de ideias que não lhe haviam “REINVENTAR PARIS”, PRECEDENTE FUNESTO Um grupo de arquitetos que criou ocorrido. É claro: ele não se dera o tra- Esses três exemplos mostram co- uma paródia do concurso, o “Reinven- balho de pensar nelas. Outrora, as 1 Cf. “Ré-inventer Pourris” [Reinventar Corruptos], Le Courrier de l’Architecte, 18 jun. 2017. Disponível mo os poderes públicos se despem vo- tar Corruptos [Pourris]”, comentou as- municipalidades realizavam ou enco- em: . luntariamente de suas prerrogativas sim essa “maneira mais inteligente e mendavam estudos a fim de definir 2 Citado por Sébastien Chabas, “L’appel à projet, un em proveito do setor privado, que se virtuosa de ceder nossos ativos” (nas com clareza seus contratos públicos, format de concours qui dérange” [Consulta de pro- jetos: um formato de concurso que incomoda], torna o ator dominante da produção palavras de Missika): “Dessa feira de fornecendo-lhes um quadro de orien- BatiActu, 8 fev. 2016. Disponível em: . 16 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

CIDADES VIGIADAS Safe city, ou o governo dos algoritmos

As ferramentas de vigilância policial com base no Big Data e na inteligência artificial se multiplicam em várias cidades francesas. Graças a experiências lideradas por grupos privados que procuram alcançar o nível da concorrência norte-americana ou chinesa, a smart city revela seu verdadeiro rosto: o de uma cidade vigiada POR FÉLIX TRÉGUER*

ver, prevenir e ajustar – mas também, quando necessário, vigiar e reprimir. Para tanto, a safe city se apoia em duas grandes inovações tecnológicas. Primeira: a possibilidade de reunir e analisar diversos conjuntos de dados, como arquivos de polícia, informa- ções pessoais compiladas na internet – principalmente nas redes sociais – etc., a fim de produzir estatísticas e ajudar na tomada de decisões segundo a lógica da polícia preventiva. As ferra- mentas de vigilância testadas nos últi- mos dez anos pelas grandes agências de informação vão dominando o con- junto das atividades policiais... Em Marselha, o projeto do “observa- tório Big Data da tranquilidade públi- ca”, confiado desde janeiro de 2018 à empresa Engie Ineo, pretende integrar fontes oriundas dos serviços públicos municipais (polícia, transporte, hospi- tais etc.), mas também de “parceiros ex- © Reuters / Thomas Peter ternos”, como o Ministério do Interior, Estande da Tiandy Technologies, fabricante de produtos para vídeos de vigilância, na feira Security China 2018 que centraliza numerosos arquivos e dados estatísticos, ou das operadoras o dia 28 de dezembro de 1948, Reino Unido, é na França que grandes (criminalidade, terrorismo etc.). Nada de telecomunicações, cujos dados rela- no Le Monde, o lógico Henri grupos industriais ocupam esses mer- de indagar a respeito das consequên- tivos à localização de aparelhos celula- Dubarle publicou um dos pri- cados em aliança com escolhidos lo- cias econômicas, sociais e políticas res permitem cartografar em tempo meiros artigos consagrados cais, adeptos do solucionismo tecnoló- desses fenômenos, e menos ainda de real os “fluxos de população”. Naos novos computadores aperfeiçoa- gico.2 Como que ecoando as predições agir para combatê-las. O que importa, Os cidadãos também serão chama- dos nos Estados Unidos durante a Se- de Dubarle, eles pretendem multipli- antes de tudo, é “avaliar cada situação dos a contribuir, fornecendo direta- gunda Guerra Mundial. De início, ten- car as ferramentas informáticas no es- para antecipar incidentes e crises”, mente informações (textos, vídeos, fo- tou antecipar os efeitos políticos paço público urbano para supervisio- “identificar os sinais fracos” para pro- tografias, rapidez de deslocamento, daquilo que logo seria chamado de in- nar, analisar, prever e controlar os piciar uma “ajuda à planificação”, fazer nível de estresse...) por meio de “um formática. A cibernética balbuciava e o fluxos de pessoas e mercadorias. O go- “predições com base em cenários”, tu- aplicativo no smartphone ou objetos capitalismo de vigilância ainda não era verno das cidades entra, assim, na era do isso no quadro de uma “gestão em conectados”. Haverá igualmente a vi- uma realidade,1 mas ele compreendeu do controle algorítmico. E, afora algu- tempo real” por meio da exploração do gilância de conversas em redes sociais que, no fim, essa tecnologia acabaria mas iniciativas em matéria de abertu- “máximo de dados existentes” em um como Twitter e Facebook, para “recu- transformada em uma “máquina de ra de dados e de gestão “inteligente” da “centro de hipervisão e comando”.3 perar publicações cujos temas tenham governar”: “Imaginemos”, escreveu, iluminação pública ou da coleta de li- Os “riscos” são assim reduzidos a interesse para a segurança da cidade”, “uma máquina de coletar este ou aque- xo, a smart city se define sobretudo por uma situação de fato, com o poder pú- a fim de “antecipar ameaças”, avaliar o le tipo de informação, dados sobre a sua vertente securitária, a tal ponto de blico se contentando em controlar os “risco de reuniões perigosas por meio produção e o mercado, por exemplo, os industriais já falarem em safe city: efeitos. Entre os planejadores da safe da análise de tuítes” ou, ainda, proce- para depois determinar, em função da cidade segura. city, a polícia retoma sua antiga função der à “identificação dos atores”, desco- psicologia média dos homens e das Os documentos administrativos li- teorizada no século XVIII: gerar um brindo “quem fala, quem age, quem medidas passíveis de tomar em deter- gados a esses projetos revelam a poro- saber sobre a população, orientar sua interage com quem”. Para hospedar e minado instante, quais serão os des- sidade entre administração urbana e conduta agindo sobre as variáveis que tratar esses imensos volumes de da- dobramentos mais prováveis da si- doutrinas saídas do mundo militar. a determinam, assegurar sua docilida- dos, a cidade de Marselha adquiriu vá- tuação”. Dubarle predisse que, à Assim, a convenção de experimenta- de e produtividade. A novidade está no rios servidores da empresa Oracle. Ela medida que as capacidades de arma- ção concluída em junho de 2018 entre abandono do horizonte decididamen- dispõe agora de um espaço de arma- zenamento e tratamento de dados a prefeitura de Nice e um consórcio de te fugidio da “ordem pública”. Agora, zenamento de 600 terabytes, capaci- aumentassem, a informática condu- quinze empresas dirigidas pela Thales basta gerir a desordem. Graças à esca- dade equivalente à da Biblioteca Na- ziria ao “surgimento de um prodigio- parte da constatação de uma “urbani- lada tecnológica, os tecnocratas acre- cional da França, para sua política de so Leviatã político”. zação galopante na superfície do mun- ditam poder detectar na nuvem do arquivamento de dados da internet. Setenta anos depois, projetos de do”. Evocando “ameaças cada vez caos certas características ou regulari- Segundo fundamento técnico da “cidade inteligente” (smart city) se es- mais graves”, coloca no mesmo plano dades estatísticas com base nas quais safe city: a análise automática dos flu- palham pelo mundo. Depois de Esta- “riscos naturais”, como mudanças cli- se possa categorizar, classificar, corre- xos de videovigilância. Agora que o Es- dos Unidos, China, países do Golfo e máticas, e “riscos de origem humana” lacionar e, finalmente, antecipar, pre- tado e as coletividades francesas in- JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 17

vestiram perto de 200 milhões de de indivíduos ou comportamentos sus- te nesses grupos com 32,8% e 26,4%, mento policial de certos bairros, agra- euros na compra de câmeras, desde peitos. Em junho de 2018, em um dis- respectivamente. vamento nas discriminações que já 2007 (tendo tido com isso resultados curso sobre as doutrinas de manuten- Além das coletividades comandi- afetam algumas categorias de pes- irrisórios),4 a automatização promete ção da ordem, o ex-ministro do Interior tárias, numerosos organismos públi- soas, repressão dos movimentos so- uma pletora de maravilhas – e, cereja Gérard Collomb anunciava ferramen- cos participam dos novos desdobra- ciais. Nada disso, obviamente, é invo- do bolo, sem contratar funcionários tas de inteligência artificial que logo se- mentos. Desse ponto de vista, o projeto cado pelos defensores da ideia. para a visualização. Projetos de video- riam capazes de “detectar na multidão de safe city conduzido pela Thales em Já a Comissão Nacional de Infor- vigilância dita “inteligente” pululam indivíduos de comportamento bizar- Nice é emblemático. Concebido para mática e Liberdades (CNIL) se atém a em Toulouse, Nice, Marselha, Valen- ro” – perspectiva de novo invocada no seguir os eixos temáticos identificados um laissez-faire indolente. Abrigada ciennes, Paris e até nos departamen- Parlamento francês neste inverno, por pelo Comitê do Setor Industrial de Se- por trás de sua penúria de meios e ale- tos de Gard e Yvelines. ocasião do debate sobre a lei antima- gurança – que assegura o contato en- gando que o regulamento europeu so- O prefeito de Nice, Christian Estro- nifestação adotada pelo governo em tre governo e setor privado –, ele se be- bre a proteção de dados pessoais lhe si, está entre os responsáveis políticos resposta ao movimento dos “coletes neficia de um rótulo outorgado por tirou o poder de autorização a priori, mais entusiasmados com as potencia- amarelos”. Por meio de emendas final- esse mesmo organismo. Dentro do ela clama por um “debate democráti- lidades dessas tecnologias. Em de- mente rejeitadas, deputados do parti- Programa de Investimento para o Fu- co” que “defina os enquadramentos zembro de 2018, ele fez o Conselho Re- do Os Republicanos tentaram legali- turo, o Banco Público de Investimento apropriados”6. No entanto, reconhece, gional da Região Sul assinar uma zar a comparação das imagens de lhe concedeu uma ajuda de 11 milhões pela ausência de um quadro jurídico deliberação que autorizava o teste de videovigilância com diversos arquivos de euros sob a forma de subvenções e específico, aquilo que, em virtude da equipamentos de reconhecimento fa- a fim de automatizar “a identificação adiantamentos recuperáveis, sendo o jurisprudência da Corte Europeia de cial em dois colégios, a fim de vigiar as de indivíduos perigosos no seio de custo total do projeto de 25 milhões Direitos Humanos, basta para de- entradas e saídas, em colaboração uma manifestação”. Afora o caso de em três anos. Enfim, várias tecnolo- monstrar a ilegalidade pura e simples com a empresa norte-americana Cis- militantes políticos considerados peri- gias propostas foram aperfeiçoadas desses projetos. O governo, que anun- co. O último Carnaval da cidade, aliás, gosos ou suspeitos de atividades terro- graças a projetos de pesquisa que as- ciou uma revisão da lei relativa à infor- serviu de laboratório para testes de ristas, a multiplicação de arquivos bio- sociaram atores industriais e organis- mação para 2020, poderia se valer des- dispositivos semelhantes. métricos – notadamente os ligados à mos públicos, como o Instituto Nacio- se texto para viabilizar no plano Nice é uma das municipalidades imigração ou o arquivo dos títulos ele- nal de Pesquisa em Informática e legislativo as experiências em curso e francesas que pretendem associar a vi- trônicos de segurança (TES), que des- Automação (Inria), por meio de finan- preparar a generalização dos disposi- deovigilância a algoritmos de reconhe- de 2016 reúne dados de todos os solici- ciamentos da Agência Nacional de tivos de vigilância policial – a menos cimento de emoções. Os vereadores tantes de carteiras de identidade ou Pesquisa ou da Comissão Europeia. que as mobilizações de cidadãos não entraram em contato com a start-up passaportes – torna possível uma ex- No mesmo sentido, a safe city pres- contestem essas experiências. Two-I para adotar sua solução nos bon- tensão rápida do reconhecimento fa- supõe uma privatização nunca vista des da cidade. Em Nancy e Metz, a cial a categorias cada vez mais vastas.5 das políticas de segurança. A capaci- *Félix Tréguer é pesquisador e membro de Two-I trabalha com um financiador Juntamente com o Reino Unido, a dade técnica está inteiramente confia- La Quadrature du Net. para avaliar os sentimentos dos habi- França hoje lidera na Europa a utili- da aos atores privados, enquanto os tantes. Em Irigny, perto de Lyon, a polí- zação dessas tecnologias de controle parâmetros que regem seus algorit- 1 Ver Shoshana Zuboff, “Un capitalisme de surveil- cia preferiu uma concorrente, a DC social. Se, em 2016, seus serviços de mos permanecerão, segundo todas as lance” [Um capitalismo de vigilância], Le Monde Diplomatique, jan. 2019. Communication, para analisar o “esta- informação precisavam adquirir fer- aparências, submetidos ao segredo 2 Cf. Evgeny Morozov, Pour tout résoudre, cliquez do de espírito” do público que frequen- ramentas de análise de dados da em- empresarial. No plano jurídico, ainda ici. L’Aberration du solutionnisme technologique ta seus espaços. Essas ferramentas, presa norte-americana Palantir, o não existe nenhuma análise séria da [Clique aqui para resolver tudo. A aberração do solucionismo tecnológico], FYP Éditions, Lyon, nascidas do neuromarketing, detec- aparecimento de paladinos nacio- conformação desses dispositivos ao 2014. tam as expressões faciais associadas à nais em matéria de Big Data de segu- direito à vida privada ou à liberdade de 3 Referências do documento. alegria, à tristeza, ao medo e ao despre- rança se tornou agora uma priorida- expressão e consciência que, no en- 4 Cf. Laurent Mucchielli, Vous êtes filmés! Enquête sur le bluff de la videosurveillance [Você está sen- zo. “O algoritmo depois passa a medir de. Os projetos de safe city permitem tanto, são aqui postos em causa. Por do filmado! Pesquisa sobre o blefe da videovigilân- essas emoções a fim de destacar a que às empresas prestadoras de serviços enquanto, apenas os advogados das cia], Armand Colin, Paris, 2018. está mais presente”, explica Rémy Mil- às coletividades, tal como a Engie empresas envolvidas procuram, sem 5 Ver François Pellegrini e André Vitalis, “L’Ère du fi- chage généralisé” [A era do fichamento generaliza- lescamps, fundador da DC Communi- Ineo, ou de defesa e segurança, como zelo excessivo, respeitar a legislação do], Le Monde Diplomatique, abr. 2018. cation e policial da reserva. a Thales, posicionar-se nesses novos vigente, revista em 2018, mas já ultra- 6 “La CNIL apele à la tenue d’un débat démocratique Embora os usos potenciais da video- mercados diante da concorrência nor- passada. Os efeitos políticos desses sur les nouveaux usages des caméras vidéo” [A CNIL convoca para um debate democrático sobre vigilância “inteligente” sejam muitos, a te-americana ou chinesa, apoiadas desdobramentos anunciam-se bas- os novos usos das câmeras de vídeo], CNIL, Paris, prioridade é a identificação automática pelo Estado acionista que está presen- tante significativos: excessos no trata- 19 set. 2018. 18 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

RENASCIMENTO DE UMA IDEOLOGIA HÁ MUITO DESPREZADA Socialismo nos Estados Unidos: por que hoje?

Nem a eleição de um bilionário nem o forte crescimento econômico impediram a alta na popularidade de personalidades que se proclamam socialistas nos Estados Unidos. A desigualdade de renda e a precariedade do emprego explicam esse paradoxo aparente. Porém, no século XX, quando o capitalismo norte-americano também não tinha um caráter social, poucos o combatiam POR EDWARD CASTLETON*

m entrevista recente na CNBC (6 que sua empregada ou seu mordomo. versidades norte-americanas e das va do pleno emprego ou da indepen- maio 2019), Bill Gates insinuou Essa mistura de inquietação e filan- despesas médicas igualmente extra- dência energética, que poderiam favo- que o entusiasmo suscitado por tropia distingue os bilionários norte- vagantes que o sistema de saúde nos recer a exploração do gás de xisto e a personalidades políticas como o -americanos dos ricos romanos da Estados Unidos favorece. Se o primei- reabertura das minas de carvão – pre- senadorE Bernie Sanders e a deputada época de Santo Agostinho, os quais, ro tema é uma preocupação constante conizadas por Donald Trump e seus por Nova York Alexandria Ocasio-Cor- seduzidos pelo além que lhes prome- das classes médias, zelosas do futuro aliados protecionistas, ansiosos por re- tez, que defendem ideias “socialistas” tia o cristianismo, se convertiam à no- dos filhos (e inquietas com seu endivi- patriar suas cadeias de produção. no seio do Partido Democrata, não o va religião esperando conservar sua damento após a obtenção do diplo- Alguns ecos dessas reivindicações assusta de modo algum. A concepção fortuna após a morte... ma), o custo proibitivo da assistência socialistas contemporâneas são per- que eles têm do socialismo exprimiria, As recentes declarações de Gates médica deixa angustiadas todas as ca- ceptíveis em outros setores do Partido segundo Gates, o desejo (compreensí- não são apenas um alarde de boas in- tegorias sociais, com exceção das Democrata: por exemplo, quando a se- vel), por parte de alguns de seus conci- tenções, mas exprimem também um grandes fortunas do país. nadora Elizabeth Warren, candidata dadãos, de aumentar os impostos, mas contexto mais geral e mais radical. Nenhum desses dois temas remete nas primárias para a eleição presiden- não a vontade de abolir o capitalismo Sem dúvida, com seus aliados políti- ao “socialismo” de outrora, mais facil- cial de 2020, propõe que os assalaria- como tal. Ora, Gates se diz adepto de cos, Sanders e Ocasio-Cortez, mesmo mente associado a imagens de operá- dos tomem assento, em grande núme- uma maior progressividade do impos- se proclamando “socialistas democra- rios trabalhando e fábricas transbor- ro, nos conselhos de administração to e de um aumento das taxas sobre tas” (ver artigo virando a página), não dando de atividade. Pelo visto, o que se das grandes empresas. Mesmo candi- heranças, reduzidas a quase nada pelo exigem a nacionalização de setores- entende por “socialismo” mudou mui- datos mais moderados que Bernie San- presidente Donald Trump, ele tam- -chave da economia. O entusiasmo to na era do Antropoceno e das crises ders ou Elizabeth Warren, como Pete bém bilionário. suscitado pela campanha de Sanders ecológicas. Os militantes que gravitam Buttigieg, justificaram a popularidade E ele não é o único a pensar assim. nas primárias democratas de 2016 de- em torno de Sanders não idealizam as atual do “socialismo” ao reconhecer Warren Buffett declarou que, propor- veu-se sobretudo à denúncia das taxas fábricas de chaminés fumegantes nem que “o capitalismo desenganou muita 1 © Daniel Kondo Daniel © cionalmente, pagava menos imposto astronômicas das matrículas nas uni- resumem suas esperanças à perspecti- gente”. De fato, os eleitores democra- JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 19

tas têm hoje uma visão mais positiva prazeres; aos poucos, adaptava seu es- de classe dos norte-americanos se de- saparecer com a virada liberal dos do “socialismo” que do capitalismo pírito aos mecanismos da economia via a uma dupla ausência: a de uma or- partidos de esquerda europeus, os (57% contra 47%). Este continua favori- capitalista, para finalmente sucumbir dem social estruturada pelas corpora- quais, à força de privatizar suas in- to para a maioria da população, mas aos encantos que a rapidez das mudan- ções de ofício em um período feudal fraestruturas, acabariam por se pare- numa proporção (56% contra 37% de ças e o aumento considerável das anterior e a da experiência de uma re- cer com o Partido Democrata de Bill opiniões desfavoráveis) nada habitual quantidades mensuráveis exercem de volução social burguesa.5 Recorrendo Clinton. Ele não podia adivinhar que na história norte-americana2 – a ponto maneira irresistível sobre quase todas a uma fórmula frequentemente citada, novas gerações de norte-americanos de a quase inexistência de proposta po- as pessoas. Uma pontinha de patriotis- um contemporâneo de Hartz, o histo- se descobririam socialistas nem que lítica socialista nos Estados Unidos ser mo – o orgulho de saber que os Estados riador Richard Hofstadter, concluiu militantes democratas se aproxima- considerada há muito tempo, por so- Unidos ultrapassavam todos os outros que a América, em lugar de possuir riam de Sanders quando se sentissem ciólogos e historiadores, como consti- povos no caminho do ‘progresso’ (ca- ideologias, é sua própria ideologia.6 desprezados por um partido que, sob tutiva da “exceção norte-americana”. pitalista) – reforçava na base seu espí- Contudo, entre a publicação do li- a presidência de Barack Obama, per- Numa série de trabalhos que se tor- rito comerciante, transformando-o vro de Sombart e o armistício da Pri- mitiu que a crise financeira de 2008 se naram leitura obrigatória para muitos em empresário sóbrio, calculista e meira Guerra Mundial, o país contou transformasse em uma das maiores estudiosos das ciências sociais, o cien- desprovido de ideais, tal como o co- com um Partido Socialista poderoso, transferências de renda para o alto na tista político conservador Seymour nhecemos hoje. Assim, todas as uto- durante muito tempo encarnado por história dos Estados Unidos. Martin Lipset (1922-2006) tentou expli- pias socialistas fracassavam diante do Eugene Victor Debs. Em 1910, o nú- Esses militantes procuram redefi- car por que o socialismo conseguiu se rosbife e da torta de maçã”. À mobili- mero de socialistas eleitos nos Esta- nir a classe operária em termos que enraizar praticamente na Europa in- dade social, que punha obstáculo ao dos Unidos era maior que o de traba- não se aplicam tanto à indústria e à teira, mas nunca nos Estados Unidos. A enraizamento do socialismo nos Esta- lhadores eleitos no Reino Unido. Em produção quanto à tecnologia e aos seu ver, essa peculiaridade se deve a dos Unidos, acrescentava-se a mobili- 1912, os socialistas controlavam as serviços, pouco importando a cor da quatro fatores principais: a natureza dade geográfica. A existência de uma cidades de Milwaukee (Wisconsin), pele dos assalariados. Esperam que, do sistema político norte-americano (a fronteira sempre aberta e de terras Flint (Michigan), Schenectady (Nova assim, as lutas de professores, enfer- hegemonia de dois partidos, um só tur- disponíveis e baratas permitia aos in- York) e Berkeley (Califórnia). No mes- meiras, empregadas domésticas ou no para as eleições presidenciais, um satisfeitos com o trabalho industrial mo ano, Debs conseguia 6% dos vo- funcionários de restaurantes encon- colégio eleitoral que privilegia o voto esperar concretizar o “sonho norte-a- tos na eleição presidencial, enquanto trem um lugar tão digno e legítimo no dos estados e o sufrágio universal in- mericano” do produtor autônomo, do seu partido acumulava números li- movimento socialista quanto os tra- direto etc.); uma classe operária he- proprietário individual. sonjeiros, não apenas em estados co- balhadores de siderúrgicas, os minei- terogênea (fruto das vagas sucessivas Segundo Sombart, os trabalhado- mo Wisconsin (com forte população ros ou os operários, esses ícones prole- de imigração); a ausência histórica res norte-americanos, pelo fato de de operários imigrantes alemães, já tários de outrora, quase todos brancos de alianças sólidas e duradouras en- quererem se libertar de sua classe, sensíveis à causa da social-democra- e do sexo masculino. tre os partidos políticos e os sindica- não concebem a ideia de que esta cia) e Nova York (onde viviam muitos Por enquanto, porém, os militantes tos; e, finalmente, o apego “cultural” possa acompanhá-los em sua ascen- judeus recém-chegados de origem democratas mais à esquerda são recru- a valores individualistas opostos às são social; raciocinam em termos de russo-polonesa), mas também em al- tados principalmente entre os jovens ideias socialistas.3 progresso individual, não de ação co- guns estados rurais do sul (Oklaho- oriundos das classes médias, que per- As análises de Lipset retomavam as letiva. Os sucessores do sociólogo ma, Arkansas, Texas e Luisiana). cebem a decadência de sua condição. do sociólogo alemão Werner Sombart, alemão, como Lipset, insistiram mui- Todavia, esses primeiros sucessos Seu radicalismo político conseguirá amigo de Max Weber e autor, em 1906, tas vezes no papel que a imigração não tiveram futuro. Após a entrada dos mobilizar outras categorias sociais, de um estudo hoje clássico [Pourquoi le possa ter desempenhado ao tornar Estados Unidos na guerra, em 1917, antes sensíveis aos combates de Debs e socialisme n’existe-t-il-pas aux États-U- ainda mais difícil a constituição de Debs e a maior parte dos dirigentes so- hoje tentadas pela demagogia de nis? (Por que o socialismo não existe uma classe operária militante. Os cialistas que a ela se opunham foram Trump, que não moram mais nos mes- nos Estados Unidos?)].4 Bom conhece- trabalhadores estrangeiros que che- presos. A Revolução Russa exacerbou mos bairros, cidades ou regiões dos no- dor dos textos econômicos de Karl garam aos Estados Unidos no come- as tensões no seio de um partido já de- vos “socialistas” norte-americanos? Marx e simpatizante do Partido Social- ço do século XX julgavam sua situa- bilitado pela repressão, pois o socialis- -Democrata alemão, Sombart se inte- ção temporária. O objetivo deles era mo da maioria de seus adeptos lança- *Edward Castleton, historiador, é coautor ressou pelas formas que a modernida- enriquecer rapidamente e voltar a va raízes mais no evangelismo cristão de Quand les socialistes inventaient l’avenir, de assumiu nas sociedades capitalistas. seu país de origem. A grande imigra- e na crítica populista dos monopólios 1825-1860 [Quando os socialistas inventa- Concluiu então que, embora a socieda- ção dessa época também tornou mais que nas obras de Marx e Lenin. vam o futuro, 1825-1860], La Découverte, de norte-americana fosse sem dúvida difícil uma aliança entre os operários Vários observadores aventaram Paris, 2015. aquela em que o capitalismo aparecia qualificados da indústria (a maior par- que o sucesso de Sanders em 2016, da maneira mais crua, ela era, diferen- te nascida nos Estados Unidos), que bem como sua popularidade atual, se temente das sociedades europeias da tendiam a se sindicalizar, e os não qua- explica pelo fato de ele atuar politica- mesma época, avessa ao socialismo lificados (majoritariamente imigran- mente dentro de um partido já conso- por razões em grande parte ligadas ao tes), bem mais dispostos a aceitar con- lidado, com a esperança de mudá-lo 1 New Day [Novo dia], CNN, 16 abr. 2019. aburguesamento de sua classe operá- dições de trabalho deploráveis. Enfim, para que se torne veículo de outras 2 Frank Newport, “Democrats more positive about socialism than capitalism” [Democratas têm uma ria. Segundo ele, os trabalhadores não a experiência comunitária dos imi- ideias, menos tributárias dos anseios e visão mais positiva do socialismo que do capitalis- se opunham nem ao capitalismo nem grantes nas grandes cidades reforçava do financiamento das grandes empre- mo] e “The meaning of ‘socialism’ to Americans a seu governo, acomodando-se a um mais sua identidade étnica que sua sas. Nem o ecologista independente today” [O significado de “socialismo” para os nor- te-americanos hoje], Gallup, respectivamente 13 sistema político majoritário que favo- identidade de classe. Ralph Nader nem o socialista Debs in- ago. e 4 out. 2018. Disponível em: . dois partidos. Mais ricos que seus cole- REDEFINIR A CLASSE OPERÁRIA Mas o mais importante é, talvez, que 3 Cf., sobretudo, Seymour Martin Lipset e Gary Mar- ks, It Didn’t Happen Here: Why Socialism Failed in gas europeus, tinham também mais Sombart observava também que o em uma sociedade marcada pela in- the United States [Não aconteceu aqui: por que o chances de se libertar de sua condição grau mais elevado de integração cívi- consciência de classe das categorias socialismo não prosperou nos Estados Unidos], social graças ao trabalho. ca, obstáculo ao desenvolvimento de populares o aburguesamento identifi- Norton, Nova York, 2000. 4 Werner Sombart, Pourquoi le socialisme n’existe- Na passagem mais famosa do livro, uma consciência de classe, se explica- cado por Sombart como um obstáculo -t-il pas aux États-Unis? [Por que o socialismo não Sombart escreve: “À medida que a si- va pela inscrição do princípio da sobe- ao socialismo nos Estados Unidos não existe nos Estados Unidos?], Presses Universitai- tuação material do assalariado melho- rania popular na Constituição, pela seja mais tão consistente. Com o desa- res de France, Paris, 1992. 5 Louis Hartz, Histoire de la pensée libérale aux État- rava e seu modo de vida ganhava em abolição do sufrágio censitário e pelo parecimento da mobilidade social nos s-Unis [História do pensamento liberal nos Estados conforto, ele se deixava tentar pela de- direito de voto concedido à população últimos quarenta anos, a “vacina” con- Unidos], Economica, Paris, 1990 (1. ed.: 1955). pravação materialista. Via-se cada vez masculina e branca a partir de 1812. O tra o socialismo se tornou inócua. 6 Sobre esse assunto, cf. “Peut-on être socialiste aux États-Unis? Hier et aujourd’hui” [Podemos ser so- mais constrangido a gostar do sistema cientista político Louis Hartz, de seu Lipset, de seu lado, imaginava que cialistas nos Estados Unidos? Ontem e hoje], Ci- econômico que lhe oferecia todos esses lado, postulou que a fraca consciência a exceção norte-americana fosse de- tés, n.43, Paris, 2010. 20 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

SOCIALISTAS NORTE-AMERICANOS “Não tínhamos dinheiro nem para comprar um bebedouro”

Há cerca de dez anos, ser socialista nos Estados Unidos ainda era um trabalho para abnegados. A candidatura de Bernie Sanders nas primárias democratas de 2016 – quando ele surpreendeu as expectativas, mas perdeu a indicação para Hillary Clinton – tornou essa opção menos ingrata, assim como testemunha a narrativa de uma nova experiência militante POR BHASKAR SUNKARA*

uando foi que todo mundo vi- e do Partido Democrata para formar rou socialista?”, perguntou re- uma coalizão social-democrata à eu- centemente, na capa, a revista ropeia, em um país cuja cultura políti- “ New York. Para muitos jovens ca ignora esse termo. O DSOC acabou norte-americanos,Q constatava esse pe- por se fundir com o New America Mo- riódico da moda, “apresentar-se como vement [Movimento Nova América], socialista parece mais sexy que exibir organização herdada da Nova Esquer- qualquer outro qualificativo”.1 da, tornando-se os Socialistas Demo- A mudança pode surpreender. cratas da América em 1983. Durante a segunda metade do século O novo partido lutou pelo pleno XX, era preciso ser masoquista para emprego, combateu o apartheid na se dizer adepto dessa corrente. Além África do Sul e aplaudiu, no começo do risco de ser desprezado ou ridicu- dos anos 1980, os governos socialistas larizado, tal declaração colocava a da França e da Grécia. Mas isso não te- pessoa à margem da cena política. ve nenhum efeito sobre um Partido Juntei-me aos Socialistas Democra- Democrata que, nessa época, operou tas da América (Democratic Socia- uma brusca virada à direita, rompen- lists of America, DSA) em 2007, ainda do com o espírito do New Deal e sua adolescente. Essa era, na época, a vontade de desenvolver o Estado de maior organização “socialista” dos bem-estar social. Willy Brandt, então Estados Unidos, a única representada líder do Partido Social-Democrata ale- no seio da Internacional do mesmo mão, dizia que Harrington poderia go- nome (saiu em 2017). O movimento vernar um país europeu. Mas, como contava com apenas 5 mil membros, escreveu o jornalista conservador Wil- num país, o mais capitalista do mun- liam F. Buckley, ser o mais eminente do, de 327 milhões de habitantes. socialista dos Estados Unidos é mais Na época, nossas reuniões aconte- ou menos como ser “o prédio mais alto ciam geralmente em casas de particula- de Topeka, no Kansas”.2 Quando Har- res ou em locais que nos eram cedidos rington morreu, em 1989, poucos me- de graça. Na assembleia, frequente- ses antes da queda do Muro de Berlim, mente com cerca de dez pessoas, viam- o socialismo e mesmo a social-demo- -se alguns jovens, como eu, mas sobre- cracia haviam praticamente desapare- tudo militantes com mais de 60 anos e (Socialist Party of America, SPA), um (Socialist Party, USA). Ela perpetua a cido do cenário político. Privados de ninguém da geração intermediária. grupo outrora influente cujo represen- tradição de Debs, apresentando-se de seu comandante e mal conseguindo Aprendemos a cantar a Internacional, tante mais emblemático continua sen- forma independente nas eleições. Mas, angariar novos recrutas, os DSA se ouvíamos relatos dos filhos de comu- do Eugene Debs (ver artigo na pág. an- se Debs conseguiu perto de 1 milhão contentavam com viver a duras penas. nistas ou veteranos da Nova Esquerda terior) e que, no início dos anos 1970, de votos em 1912, seu sucessor de 1976 Durante esse tempo, em Vermont, a dos anos 1960 e 1970. Cultivávamos a contava apenas com algumas cente- obteve apenas 6.038, e o de 2012, 4.430. algumas centenas de quilômetros de mesma linguagem, a mesma luta, mas nas de membros. Abalado por divisões Por fim, a corrente centrista se uniu nossas pequenas localidades nova-ior- estávamos totalmente deslocados. quanto à atitude a tomar diante da No- em um Comitê de Organização dos quinas, Bernie Sanders se preparava Trabalhei, durante um verão, na sede va Esquerda, do Partido Democrata e Socialistas Democratas (Democratic para criar um novo foco de resistência. nacional em Nova York, num imóvel da Guerra do Vietnã, o SPA cindiu-se Socialists Organizing Committee, Sua carreira política começou no ano- que partilhávamos com executivos em três em 1972. Sua ala direita fun- DSOC), liderado por Michael Harring- nimato e, como a de Harrington, den- elegantíssimos. Não tínhamos dinhei- dou os Sociais-Democratas, EUA (So- ton. Segundo esse professor de Ciência tro do que restara do Partido Socialista ro para comprar um bebedouro e ter cial Democrats, USA), dirigidos por Política e militante socialista de longa da América. Estudante nos anos 1960, água fresca: íamos encher nosso copo Bayard Rustin, um militante típico do data, a natureza antidemocrática das ele lutou ao lado dos trabalhadores no- com água morna na pia dos banheiros, movimento pelos direitos civis que foi leis eleitorais norte-americanas – en- va-iorquinos e pelos direitos civis, mas sob o olhar zombeteiro de nossos vizi- consultor de Martin Luther King. Pro- tre outros obstáculos – torna vã qual- acabou deixando seu Brooklyn natal nhos. Os socialistas democratas da fundamente anticomunista, essa orga- quer tentativa de apresentar candida- para se instalar no Estado rural de Ver- América pareciam sobreviventes, e nos nização se contenta em ser um grupo tos independentes nas eleições. mont. Sua primeira experiência eleito- acostumamos a essa situação. de pressão que procura, sem sucesso, Harrington propugnava então pela ral, em 1972, refletiu a confusão da es- O partido dos DSA nasceu de uma influenciar decisões sindicais. A ala es- união dos movimentos sociais (estu- querda norte-americana da época: só

© Daniel Kondo Daniel © cisão do Partido Socialista da América querda criou o Partido Socialista, EUA dantes, voluntários...), dos sindicatos obteve 2,2% dos votos em uma eleição JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 21

parcial para o Senado. Mas isso não Hillary pagou caro por isso. Em 4 de plano estadual, socialistas foram elei- impediu o tenaz Sanders de continuar novembro de 2016, poucos dias antes tos para as assembleias da Virgínia e a fustigar “o mundo de Richard Nixon, do confronto eleitoral com Donald de Nova York. dos milionários e bilionários que ele Trump, várias dezenas de socialistas Já no nível federal, a organização representa”. “Vivemos num mundo on- democratas – entre os quais o autor contribuiu ativamente, por ocasião do de 2% da população possui mais de um destas linhas – tomaram distância da escrutínio de meio mandato de 2018, terço da riqueza pessoal nos Estados candidata democrata: “Na prática, fa- para a eleição de uma nova geração de O olhar da cidadania Unidos”, martelava já naquela época.3 zer campanha por Clinton implica democratas, cujo representante mais Essas palavras singelas acabaram por convencer os eleitores de que ela e seu famoso é sem dúvida Alexandria Oca- impressionar os eleitores. Após um iní- partido evoluíram para sugerir algu- sio-Cortez, eleita pelo estado de Nova cio de carreira semeado de fracassos, mas medidas (atacar o setor das finan- York para a Câmara dos Deputados. Sanders conquistou a prefeitura de ças, opor-se aos maus acordos de livre- “AOC”, como é chamada, está mais Burlington em 1981, apresentando-se -comércio, aumentar o salário mínimo próxima do Partido Democrata que a como “socialista independente”. nacional para US$ 15 por hora, defen- maior parte dos DSA. Ela não esconde Na luta Seu discurso, centrado nas desi- der e aperfeiçoar a seguridade nacio- suas convicções socialistas e, graças a gualdades, alimentou uma populari- nal etc.), sabendo que, muito prova- seu carisma e hábil utilização das re- dade local que por fim o levou a velmente, eles não farão isso. Os des sociais, soube conquistar fama na- Washington, à Câmara dos Deputados socialistas não devem escolher esse cional, o que permite a nossos discur- pela (1991 a 2007) e depois ao Senado (a caminho, que poderia anular os esfor- sos ter enorme audiência, malgrado partir de 2007). No momento de en- ços para construir uma base após as nossa fraqueza numérica. Desde 2016 frentar Hillary Clinton nas primárias eleições, pois, o mais das vezes, a ten- e da campanha de Sanders, milhões democratas de 2016, o senador de Ver- tativa de ‘exigir dos democratas uma de norte-americanos puderam assim construção mont ainda era, contudo, pouco co- prestação de contas’ não leva a nada”.4 conhecer nossas ideias. nhecido no plano nacional; seu pro- Essa postura provocou um áspero de- Não obstante, começamos a perce- grama audacioso (seguro-doença bate à esquerda, com os representan- ber os limites de nossa capacidade mi- para todos, universidade gratuita, sa- tes do Partido Comunista dos Estados diática e daquilo que ela pode obter. de uma lário mínimo de US$ 15 por hora...) e Unidos considerando, por exemplo, Existe atualmente, nos Estados Uni- seus discursos insistentes contra as que a necessidade de derrotar Donald dos, um forte movimento de rejeição desigualdades seduziram milhões de Trump obrigava todos a se alinhar das desigualdades, que entretanto não norte-americanos, que em sua maio- com Hillary Clinton. é perfilhado pelos DSA. Sanders tem ria jamais tinham ouvido falar em so- Logo após a eleição, ficamos agra- poucos vínculos com ele. Já Ocasio- sociedade cialismo, mas estavam dispostos a davelmente surpresos. Receávamos -Cortez procura transformar o Partido apoiar uma política capaz de priorizar ser responsabilizados pela derrota da Democrata a partir de dentro. Enfim, suas necessidades. Derrotado por sua candidata democrata por termos nos os DSA lembram essencialmente os rival, o senador socialista ainda assim encarniçado tanto contra ela nos últi- militantes brancos oriundos das clas- mais justa, conseguiu 11 milhões de votos. Em mos anos. Isso não aconteceu. A mídia ses médias. poucos meses, ele tirou o socialismo e os caciques democratas preferiram Trata-se, pois, de nos fixarmos do- norte-americano do torpor, remon- pôr a culpa nos russos. Os DSA, por seu ravante em um movimento de classe. tando às suas raízes: a luta de classes e turno, assistiram à chegada de uma Os militantes estavam na linha de solidária e uma base classista. torrente de novos recrutas e contam frente por ocasião das greves de 2018- O contexto social desempenhou hoje com 50 mil membros. Após a elei- 2019, em escolas e hospitais. Intensifi- um papel determinante nesse renasci- ção, o número de assinantes da Jaco- cando essas ações sindicais e ativistas, mento. Desde a crise financeira de bin dobrou, passando de 15 mil para 36 eles esperam aumentar sua influência sustentável. 2008, a raiva provocada pelo poder das mil em apenas dois meses. A midiati- junto aos trabalhadores. Milhões de grandes empresas e pela estagnação zação de algumas personalidades e a norte-americanos já estão convenci- dos salários precipitou o retorno dos superexposição de nossos membros dos da necessidade de uma mudança movimentos de protesto: longa greve nas redes sociais trabalharam sem dú- em grande escala. O movimento socia- dos assalariados do setor público no vida a nosso favor. lista não está mais, portanto, receben- Wisconsin e movimento Occupy Wall O partido dos DSA está aberto a to- do uma transfusão de sangue, embora Street em 2001, mobilização dos traba- dos e a adesão pode ser feita pela in- apenas inicie sua convalescença. Quartas, às 17h, lhadores de fast-food pelo aumento do ternet. Como era de esperar, ele se tor- Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM salário mínimo em 2014, greve dos nou um refúgio onde anarquistas e *Bhaskar Sunkara é fundador e diretor da Ribeirão Preto: 107,9 FM) professores e enfermeiros em 2018, pa- comunistas se misturam com parti- revista Jacobin (Nova York), vice-presidente ra só citar alguns. Publicações acom- dários de Sanders. Sua estrutura des- do Partido dos Socialistas Democratas da panharam essa renovação, tentando centralizada permite às seções locais América e autor de The Socialist Manifesto. Quartas, à meia-noite definir uma linha política clara à es- funcionar de maneira bastante autô- The Case for Radical Politics in an Era of Ex- TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da querda do Partido Democrata. A revis- noma, o que favorece uma grande di- treme Inequality [O Manifesto Socialista. A Vivo Fibra e 186 da Vivo. ta Jacobin, fundada em dezembro de versidade de formas de participação: política radical numa era de extrema desi- 2011, viu o número de seus assinantes desde ajuda à criação de associações gualdade], Basic Books, Nova York, 2019. triplicar nos dez primeiros meses de de inquilinos até uma mãozinha aos 2016, por ocasião da campanha de que precisam consertar o farol do car- Sanders, e chegar a 15 mil. A maior ro, passando pelas grandes campa- parte dos novos leitores é formada por nhas nacionais como “Medicare for 1 Simon van Zuylen-Wood, “When did everyone be- jovens de menos de 30 anos, com fre- All” (Assistência Médica para Todos, come a socialist?” [Quando foi que todo mundo virou socialista?], New York, 4 mar. 2019. observatorio3setor quência filhas e filhos das classes -su do nome do seguro-doença público 2 Capital do Kansas, Topeka é uma cidade de porte periores ou de membros das profissões destinado aos idosos). médio cujo edifício mais alto tem 117 metros. liberais. Na internet, não é raro ver es- Os DSA adquiriram também certo 3 Fala no rádio em 16 de outubro de 1973, citada por Michael Kruse, “Bernie Sanders has a secret” observatorio3setor ses convertidos atacarem o Partido peso no cenário político, a ponto de re- [Bernie Sanders tem um segredo], Politico Maga- Democrata e a mídia dominante, exi- presentarem um adversário eleitoral zine, 9 jul. 2016. bindo o pictograma da rosa, símbolo cada vez mais duro de roer. Em Chica- 4 “The Left is under no obligation to support Hillary Clinton” [A esquerda não tem obrigação de apoiar www. observatorio3setor.org.br de sua adesão ao movimento socialis- go, dos sessenta vereadores, seis per- Hillary Clinton], In These Times, 4 nov. 2016. Dis- ta. Nas últimas primárias democratas, tencem ao movimento socialista. No ponível em: . 22 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE Simulacros: a hiper-realidade do extermínio Trabalhamos com 316 ocorrências de resistência seguida de morte, que somavam 388 vítimas da ação policial letal. Em 22 dessas ocorrências foram apreendidos apenas simulacros de arma de fogo e em catorze não houve apreensão de arma alguma. Confira o quinto artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019 POR CAROLINA CHRISTOPH GRILLO E RAFAEL GODOI*

Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chama- aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios dos simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de con- paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder flitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobili- dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que zam técnicas de fazer sumir, parte integrante de uma ampla maquinaria de produção de marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais. morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.

m dos pontos mais polêmicos perfícies à inscrição das semelhanças. representação – no limite, o problema do menor potencial de dano efetivo? Pa- do “pacote anticrime” proposto Objetos que se parecem com armas, da ideologia. Agora, e cada vez mais, é ra nós, o que está em jogo não é tanto a pelo ministro da Justiça, Sérgio sons que se parecem com tiros, gestos importante encarar a proliferação dos capacidade de uma arma de brinquedo Moro, é a ampliação das previ- que se parecem com ameaças, corpos simulacros e, principalmente, “a pre- enganar ou não uma vítima ou um poli- sõesU do que seria a legítima defesa nos que parecem criminosos, territórios cessão dos simulacros”, sua anteriori- cial – sua relação equívoca com a verda- casos de ação policial e/ou militar le- que remetem ao “risco” e investiga- dade relativa ao real. Desfaz-se en- de do dano e da ameaça –; interessa-nos tal. Outrora chamados “autos de resis- ções e processos que simulam a busca tão a dualidade estrutural entre, de inquirir um conjunto de situações e tência”, no Rio de Janeiro, e “resistên- da verdade. Somos induzidos ao ardil um lado, a verdade dos fatos e, de ou- eventos em que esses artefatos são mo- cia seguida de morte” em São Paulo, os de nos colocar na perspectiva daque- tro, os símbolos, imagens e repre- bilizados e geram efeitos; interessa-nos, casos registrados como “homicídio les que devem distinguir o falso do sentações que lhes seriam ulterio- principalmente, perscrutar com quais decorrente de oposição à intervenção verdadeiro na urgência do instante. E é res. Resta perscrutar a verdade dos outros simulacros o simulacro de arma policial” dependem hoje – ao menos num esforço de escapar dessa armadi- símbolos, o fato das imagens, a reali- de fogo se encadeia, forma rede e com- formalmente – da presunção de que lha que recuperamos algumas refle- dade das representações. põe uma particular realidade. foram praticados para “revidar” ou xões de Jean Baudrillard1 acerca dos Por meio de uma parceria com o “cessar” uma “injusta agressão”. Tal é simulacros. SIMULACRO DE ARMA Núcleo Especializado de Cidadania e o requisito para que sejam legitimados Muito antes de as fake news dita- Tomamos essas sugestões como Direitos Humanos da Defensoria Pú- pela agora famosa “excludente de ilici- rem destinos (inter)nacionais e a pós- provocação para refletirmos sobre um blica do Estado de São Paulo, tivemos tude”. Mas a proposta em voga é de que -verdade se tornar um problema teóri- tipo particular de simulacro: os simu- acesso a cópias do universo total de a anistia seja prevista também para os co e político dos mais urgentes, esse lacros de arma de fogo, não raro boletins de ocorrência das então cha- policiais que se utilizarem da violência filósofo francês já falava do simulacro apreendidos em posse de pessoas mor- madas “resistências seguidas de mor- letal para “prevenir” a agressão, e não como um componente fundamental tas pela polícia. Lembremos que o “pa- te”, registrados pelo Departamento mais apenas “revidar”, incluindo na da realidade contemporânea. Seu pro- cote anticrime” é ainda um projeto, lo- Estadual de Homicídios e de Proteção letra da lei a ideia de “risco iminente de blema central não é a maneira pela go a resistência violenta à ação policial à Pessoa (DHPP), no município de São conflito armado”. qual o simulacro falsifica o real, e sim deve, em tese, anteceder a morte dos Paulo, no ano de 2012. Trabalhamos Somos aqui capturados pelo labi- o fato de ele ser capaz de, por si mesmo supostos opositores, como requisito esse material em conjunto com outros rinto de imaginação acerca das situa- e por sua própria proliferação, instau- para caracterizar uma situação de legí- pesquisadores da Universidade de São ções em que seria possível identificar rar uma nova realidade – uma “hiper- tima defesa e estrito cumprimento do Paulo2 e, além de traçarmos um perfil riscos potenciais a serem eliminados. -realidade”, nos termos do autor. O si- dever policial. Assim, a dificuldade que dos registros de ocorrência, desarqui- Adentramos o terreno movediço dos mulacro não remeteria a um problema esses simulacros de arma impõem às vamos e analisamos os processos de confrontos armados virtuais, que pro- da ordem da representação do real, instituições da ordem não deveria ser uma amostra aleatória e representati- duzem efeitos de morte antes mesmo mas, sobretudo, a um problema da or- fácil de contornar. Afinal, como pode va. Foi nessa experiência de pesquisa de se tornarem reais. Uma nebulosa de dem da produção de realidade. O mo- alguém efetivamente resistir à prisão que o problema do simulacro de arma significações ao redor de tudo aquilo vimento cognitivo fundamental e ur- com uma arma de brinquedo? Como de fogo se nos impôs à reflexão. que pode se parecer com o que não ne- gente já não é, portanto, desvelar a pode alguém desferir uma “injusta Trabalhamos com 316 ocorrências

© Alves cessariamente é, porque oferece su- realidade encoberta pela falsa (ou má) agressão” com um artefato desprovido de resistência seguida de morte, que JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 23

somavam 388 vítimas da ação policial com o carro de “bandidos”, matando, concreto, cobrindo o rosto humano de delitos e, in casu, os averiguados fo- letal. Em 22 dessas ocorrências foram no bairro de Guadalupe, no Rio de Ja- com um véu; substituindo-o por um ram forçados a usar as armas que por- apreendidos apenas simulacros de ar- neiro, o músico Evaldo dos Santos Ro- duplo, uma máscara, um simulacro de tavam para conter o agressor que con- ma de fogo e em catorze não houve sa e o catador de materiais recicláveis rosto. O racismo opera, portanto, co- tra eles atentou. A propósito, verifica-se apreensão de arma alguma. É possível Luciano Macedo. No dia 4 de maio de mo força de desvio do real que fixa afe- que estes atuaram dentro dos rígidos afirmar, portanto, que em aproxima- 2019, dez tiros foram disparados de tos; como dispositivo de segurança limites da lei, sem que tenha sido cons- damente 12% dos casos de resistência um helicóptero da Core da Polícia Civil que marca indivíduos como “tipos” tatado abuso ou excesso, inclusive seguida de morte, ocorridos no muni- do Rio de Janeiro – que tinha em seu dentro de um cálculo geral do risco. providenciando o socorro necessário à cípio de São Paulo em 2012, as pessoas interior o governador Wilson Witzel – Assim, a “sujeição criminal” deve ser vítima”. Dez dias depois, a juíza deter- mortas por policiais não portavam ar- contra uma tenda de orações de evan- compreendida em sua relação com es- minou o arquivamento do caso. mas de fogo. O peso relativo dos casos gélicos confundida com uma casama- se olhar que tem o corpo como objeto No processamento judicial do ca- de resistência seguida de morte envol- ta de traficantes em Angra dos Reis. de fixação da disputa sobre a humani- so, portanto, o fato de se tratar de um vendo simulacros, pessoas desarma- Casos como esses mostram que o pro- dade de terceiros; o olhar que, dentro simulacro não faz a menor diferença. das e mesmo armas brancas nos pare- blema do simulacro não é tanto se ele de uma economia de signos e imagens, Se o simulacro, por representar uma ceu no mínimo instigante, dada a já efetivamente replica ou não uma arma ao menor sinal de semelhança com al- arma de verdade, é assimilado pela mencionada dificuldade que se impõe de fogo. Mais propriamente, esses ca- guma ameaça, substitui o corpo negro justiça como se fosse uma arma de à comprovação de uma resistência à sos sugerem que o simulacro é um por um simulacro de bandido. verdade, o mesmo se passa com a ação policial que justificasse a neutra- agenciamento que ultrapassa o objeto atuação no caso da Polícia Civil, do lização letal do opositor. e, no limite, independe dele – compon- SIMULACRO DE JUSTIÇA Ministério Público e da magistrada: si- do-se fundamentalmente de um cor- As mortes causadas pela polícia mulacros de investigação, de controle ENGANO? po – sobretudo negro – e de um territó- por conta de simulacros de várias na- da atividade policial e de justiça. To- Uma longa série de “enganos” poli- rio – sobretudo pobre. turezas não podem ser vistas como dos seguem um protocolo de atuação ciais ensina que os mais diversos obje- “engano”. Tal percepção se confirma que remete ao ideal de um sistema de tos podem ser considerados simula- SIMULACRO DE BANDIDO ao considerarmos o destino que o sis- justiça, mas, assim como insistimos cros de armas de fogo. Em 19 de maio A interpretação circunstancial da tema de justiça costuma assegurar a no caso do simulacro de arma de fogo, de 2010, policiais do Bope da Polícia ameaça pela semelhança remete dire- tais ocorrências: o arquivo. O caso do o problema central desses simulacros Militar do Rio de Janeiro assassinaram tamente aos processos sociais de acu- policial que matou Hélio portando de processamento penal não é o que Hélio Barreira Ribeiro, no bairro do sação que, segundo Michel Misse,3 uma furadeira nem sequer foi a tribu- eles falseiam, e sim seus efeitos – estes, Andaraí, por confundirem com uma contribuíram para a “acumulação so- nal. O próprio Ministério Público – sempre verdadeiros: a legitimação ins- submetralhadora a furadeira que ele cial da violência”. Misse formulou o instituição constitucionalmente res- titucional dos homicídios cometidos usava para fixar uma lona em sua laje. conceito de “sujeição criminal” para ponsável pelo controle da atividade por policiais. No dia 29 de outubro de 2015, Jorge Lu- designar a incriminação de um supos- policial – defendeu a inocência do réu. cas Paes e Thiago Guimarães circula- to sujeito autor de crimes que antece- Entre os processos que desarquiva- UMA SOLUÇÃO FAKE? vam numa moto, na Pavuna, quando de a classificação de um curso de ação mos em nossa pesquisa, constava ape- Diante de tal quadro, podemos re- policiais abriram fogo ao confundi- em um tipo penal. O crime se desloca nas um envolvendo simulacro de ar- conhecer no “pacote anticrime” do rem com uma arma o macaco hidráu- do fato para o sujeito, produzindo a in- ma, no qual, segundo os policiais, um ministro da Justiça mais um simula- lico que um deles carregava. Em 17 de criminação preventiva de tipos sociais rapaz encapuzado estaria assaltando cro. Ao tentar legalizar a “confusão” e setembro de 2018, na favela Chapéu considerados potencialmente crimi- uma mercearia e teria esboçado o mo- o “engano”, apelando para termos co- Mangueira, Rodrigo Alexandre da Sil- nosos, processo que incide sobre a vimento de sacar uma arma quando mo “escusável medo” e “violenta emo- va Serrano foi morto a tiros depois de identidade pública e íntima dos sujei- os viu chegando. O que chama a aten- ção”, o ex-juiz não está mais do que policiais da Unidade de Polícia Pacifi- tos. Dos jovens negros de periferia de- ção nesse processo é que, não obstante reafirmando o entendimento que seus cadora (UPP) local confundirem um tidos pela polícia a caminho da praia se tratar de um simulacro, a investiga- colegas já manifestam nos autos. E en- guarda-chuva com um fuzil e um can- às pessoas executadas por possuírem ção e o posicionamento do Ministério tão, uma vez mais, devemos deixar de guru de carregar bebês com um colete antecedentes criminais, não faltam Público e da juíza são em tudo simila- lado a dimensão falaciosa da iniciativa à prova de balas. exemplos de assujeitamento criminal. res aos que encontramos nos demais para poder vislumbrar seus efeitos po- Para ser morto num “engano” poli- Misse, contudo, deixou de fora de seu casos que analisamos. A investigação sitivos: a sinalização às forças da or- cial nem é preciso portar um objeto esquema teórico uma reflexão acerca policial foi técnica e protocolar como dem de uma licença para matar am- que possa parecer uma arma de grosso do racismo. todas as outras. Os policiais requisita- pla, geral e irrestrita. calibre. Em 16 de maio de 2017, no bair- Entre as 388 vítimas apontadas nos ram e compilaram laudos periciais di- ro da Lagoa, em Belo Horizonte, Paulo boletins de ocorrência por nós anali- versos e a investigação se completou *Carolina Christoph Grillo é pesquisadora César Miranda foi morto depois de po- sados, havia, conforme a atribuição com os depoimentos da mãe e da irmã de pós-doutorado e professora colaboradora liciais confundirem com uma arma policial, 242 pessoas negras (62%), 131 da vítima, ambas confirmando que se do Programa de Pós-Graduação em Sociolo- um telefone celular, como os que nós pessoas brancas (34%) e outras quinze tratava de um dependente químico gia da Universidade Federal Fluminense; Ra- carregamos todos os dias. O simulacro sem registro de raça/cor das vítimas com antecedentes criminais. fael Godoi é pesquisador de pós-doutorado que motiva a reação letal da polícia (4%). É digno de nota que tal propor- O inquérito foi concluído em pouco do Programa de Pós-Graduação em Sociolo- nem sequer carece de materialidade: ção é diametralmente inversa à distri- mais de um ano e encaminhado ao gia e Antropologia da Universidade Federal pode ser um barulho ou um simples buição populacional da cidade de São Ministério Público, que imediatamen- do Rio de Janeiro. movimento. Em 28 de outubro de 2012, Paulo, onde 60,6% da população se au- te formalizou a “promoção de arqui- 4 Rafael Costa conduzia um automóvel todeclarou branca ao Censo de 2010. vamento” nos seguintes termos: “[os 1 Jean Baudrillard, Simulacros e simulações, Reló- em Cordovil, no Rio de Janeiro, quando Observamos ainda que, nos casos sem policiais,] uníssonos em suas declara- gio D’Água, Lisboa, 1992. um pneu estourou. O barulho foi con- arma de fogo apreendida, a proporção ções, alegaram que, ao se aproxima- 2 Juntamente com Juliana Tonche, Fábio Mallart, Paula de Braud e Paula Telles, no âmbito do Proje- fundido com um tiro e o carro foi alve- de vítimas negras era ainda maior: 26 rem da vítima, esta se virou brusca- to Temático Fapesp “A gestão do conflito na produ- jado pela polícia – atingido no pescoço, negros e doze brancos. mente na direção deles, com o desígnio ção da cidade contemporânea: a experiência pau- o rapaz não resistiu. Em 3 de janeiro de O racismo fundamenta-se em pre- de pegar a arma de fogo que portava, lista” (2014-2018), sob coordenação de Vera da Silva Telles. Contamos também com a colabora- 2018, em Nova Iguaçu, Luis Guilherme tensas diferenças biológicas ou genéti- quando, então, foi surpreendida por ção de Thiago Oliveira. dos Santos foi morto a tiros depois de cas lidas no fenótipo pelo “olhar bran- disparos efetuados por estes [...] vis- 3 Michel Misse, “Crime, sujeito e sujeição criminal: deixar a mochila cair durante uma co”, mecanismo a que Frantz Fanon5 lumbra-se a existência de causa exclu- aspectos de uma contribuição analítica sobre a ca- tegoria ‘bandido’”, Lua Nova, São Paulo, n. 79, abordagem policial. se referiu como “epidermização”, ou dente de ilicitude em favor dos poli- 2010, p.15-38. No dia 7 de abril de 2019, oitenta “esquema corporal”. Não se trata aqui ciais militares averiguados, qual seja, 4 Ver: . dos mais de duzentos tiros disparados de um efeito óptico, e sim de uma dis- o estrito cumprimento do dever legal. 5 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, Edu- fba, Salvador, 2008. por soldados do Exército atingiram o torção do real que, segundo Achille Isso porque a polícia tem o dever de ze- 6 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, Antígona, carro de uma família, confundido Mbembe,6 escapa às limitações do lar pela sociedade e reprimir a prática Lisboa, 2014. 24 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

ENTREVISTA JON LEE ANDERSON “A Venezuela é a grande questão da América Latina no século XXI”

O premiado repórter da The New Yorker discorda de quem chama Nicolás Maduro de ditador e ouviu Guaidó declarar-se um “social-democrata” e fã de Bernie Sanders POR VINÍCIUS MENDES*

ara escrever uma série de repor- LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL vista, que as pessoas consideram ine- militar de alta patente me disse que tagens sobre a crise na Venezue- – Qual é a dimensão da crise venezue- ficaz e corrupta, por outro encontrei não gosta da maneira como Guaidó se la, Jon Lee Anderson, escritor e lana para o contexto da América Lati- muita gente que apoia o governo pela expressa e que o Exército jamais o dei- repórter especial da revista The na no século XXI? nostalgia de Chávez. A oposição afir- xará ser presidente. PNew Yorker, circulou por três conti- JON LEE ANDERSON – A Venezuela é a ma que Maduro encontrou um jeito de nentes de fevereiro para cá: ouviu ne- grande questão da América Latina do coagir a população por meio dos pro- Você esteve com Guaidó durante a gociadores venezuelanos em Londres, século, porque, apesar da situação gramas sociais e exemplifica isso com viagem? entrevistou assessores do presidente dos migrantes centro-americanos e o plano de remessas de alimentos que Falei em particular com ele em vá- dos Estados Unidos, Donald Trump, de toda a história do muro na frontei- chegam uma vez ao mês: dizem que rias ocasiões e ele insistiu que é menos em Washington, e finalmente viajou a ra com o México, o país está colap- uma pessoa que sai de um bairro po- liberal do que se imagina. Obviamente Caracas em maio para observar a si- sando em um cenário internacional bre para protestar no centro de Cara- que ele não quer perder o apoio de tuação do país com os próprios olhos. que é quase uma segunda Guerra cas corre o risco de não receber sua Washington, mas me revelou que gosta Quando desembarcou no aeropor- Fria e em que a declaração de vitória caixa de comida. Para mim, é evidente do [pré-candidato democrata ao go- to Simón Bolívar, a capital venezuela- de um ou de outro lado teria impac- que a manutenção de Maduro no car- verno dos Estados Unidos] Bernie San- na ainda vivia a ressaca de uma ofensi- tos significativos sobre vários atores go é totalmente dependente de sua ders e que se considera um social-de- va militar forjada pelo presidente da globais. Ela está no olho do furacão sustentação militar e, sendo assim, mocrata. O mais difícil na Venezuela Assembleia Nacional, Juan Guaidó, de um mundo em transformações ra- considero que a Venezuela não é mais de hoje é saber a verdade. Todo mundo autoproclamado presidente do país, dicais econômicas e políticas e num uma democracia. usa uma espécie de guerra psicológica no dia anterior. Sua tentativa de demo- momento em que os Estados Unidos, para empurrar sua agenda e minar a ver Nicolás Maduro da presidência ao surpreendentemente, são governa- reputação dos adversários. Isso é frus- lado de dissidentes do Exército não te- dos por um presidente antidemocrá- “Não é à toa que trante para um repórter, porque, além ve êxito e, enquanto Anderson fazia tico. Não é à toa que oportunistas oportunistas mundiais, de ter de observar o que está à sua fren- check-in em um hotel, Leopoldo Ló- mundiais, como China e Rússia, ob- te, você tem de tentar descobrir quem pez, opositor do chavismo até então servam a crise venezuelana como como China e Rússia, está movendo as cordas das cortinas. mantido em prisão domiciliar, pedia uma chance de aumentar zonas de observam a crise As fontes parecem sempre estar escon- asilo político na embaixada do Chile. influência. Além disso, a Venezuela é venezuelana como uma dendo algo. Não é a primeira vez que o jornalis- o primeiro país das Américas no sé- chance de aumentar ta vai à Venezuela: em 2001, já como culo XXI cujos problemas foram in- Maduro resistiu há pelo menos duas repórter da New Yorker, ele entrevistou ternacionalizados: a crise já não pesa zonas de influência” tentativas de demovê-lo do cargo só o então presidente Hugo Chávez de- mais apenas sobre os ombros dos ve- em 2019 – como você disse, muito por baixo de uma árvore do Palácio de Mi- nezuelanos, mas também é sentida causa do apoio do Exército. Mas esse raflores, sede do governo nacional – no exterior, à medida que o mando do governo ainda tem alguma mobiliza- Chávez ainda lhe concederia outra país está sendo disputado entre Ma- E onde reside a força da oposição? Vo- ção popular? entrevista em 2008. Testemunha das duro e os Estados Unidos, por meio cê sente que a autoproclamação de Não sei quanto, mas tem. É preciso transformações sociais do período da figura de Juan Guaidó. Guaidó foi legitimada socialmente? recordar que boa parte da população chavista durante toda a década de Não se pode dizer que a Assembleia venezuelana é pobre e venera Chávez 2000, quando visitava o país anual- Você encontrou um país socialmente Nacional não é legítima. Ela foi o Con- – algo muito parecido com Lula no Bra- mente, Anderson diz que percebeu a fraturado entre apoiadores de Guaidó gresso do país até Maduro manobrar sil. Maduro não tem o mesmo carisma, derrocada do projeto um ano antes da e Maduro, como parece ser a divisão para criar outro parlamento com a in- mas sua chegada ao poder coincidiu morte do líder, em 2012. “Chávez já es- político-institucional? tenção de marginalizá-la. Guaidó tem com o colapso do modelo econômico e tava moribundo, fraco, e a história da Sim. O país está muito polarizado, apoio popular, mas é difícil dizer dos preços do petróleo. É um fato tam- Torre de David era a expressão de uma apesar de ser difícil medir essa fratura quanto. Vi grandes concentrações de bém que a Venezuela nunca foi bem ge- crise que se avizinhava”, revela, refe- por meio de pesquisas. A oposição usa gente nas assembleias e nas tribunas renciada durante o chavismo: o que se rindo-se à carcaça abandonada de um as suas para dizer que quase 90% da em que ele participou. No entanto, via como um “êxito” eram basicamen- edifício gigante no centro de Caracas população rechaça o governo Madu- Maduro também consegue reunir te as quantidades de uma única merca- que, naquele ano, fora ocupado por ro. A situação faz o mesmo do outro multidões no Palácio de Miraflores. É doria exportada e a presença de um lí- movimentos de moradia popular. lado. Maduro parece ter pouca popu- possível dizer que o apoio de Guaidó se der como Chávez. Sem o dinheiro e Autor de seis livros, entre eles o fa- laridade, mas tampouco há um con- situa mais entre as classes médias e al- sem o carisma, até os pobres venezue- moso Che Guevara: uma biografia (Ob- senso entre os venezuelanos, porque tas, tradicionalmente opositoras ao lanos se deram conta de que tinham jetiva, 1997), e em via de terminar a estão divididos entre classes e entre chavismo, e se estendeu agora aos um Estado bastante débil, mas ainda biografia do líder cubano Fidel Castro, quem mora nas cidades e no campo. mais pobres, antes o baluarte de Chá- assim são leais a ele pela semelhança: o Anderson concedeu esta entrevista ao Se por um lado há uma sensação de vez. Ele não é bem-visto apenas pelos governo se parece e fala como eles. É Le Monde Diplomatique Brasil. frustração com a administração cha- militares – e não se sabe por quê. Um mais moreno do que branco. JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 25

muito crítico. Tanto o presidente como Bolton e o senador Marco Rubio – tam- bém vinculado a essa política – se lan- çam contra Maduro, muitas vezes in- ventando coisas e apelando a um golpe de Estado, o que é muito irresponsável para um país como os Estados Unidos. Quando a Casa Branca se vê na neces- sidade de invadir militarmente um país da América Latina, trata-se de um fracasso da política norte-americana. Entrevistei alguns membros da diplo- macia atual que rechaçam o compor- tamento de Trump com relação à Ve- nezuela – e que só não o criticam publicamente porque temem por seu emprego. Mas em particular acredi- tam que os Estados Unidos estão le- vando essa situação ao ponto de uma “Guerra Fria 2.0”. © Esther Vargas/cc Jon Lee Anderson: “é evidente que a manutenção de Maduro no cargo é totalmente dependente de sua sustentação militar” Em 2016, após a eleição de Trump, você argumentava que a América Latina estava em segundo plano no projeto Alguns chavistas da oposição, como o A figura de Hugo Chávez segue sendo uma postura ideológica que lhe per- político dele. A Venezuela trouxe a re- ex-secretário de Relações Exteriores de uma unanimidade na sociedade, co- mitiam mudá-las ou suavizá-las, de- gião de volta ao foco ou ela segue sen- Maduro, Temir Porras, promovem mo parecia ser até sua morte? pendendo das circunstâncias – o que do marginal para a Casa Branca? uma campanha de solução da crise Ele não é unânime porque há uma Maduro não consegue fazer. A chegada de Trump ao poder coin- sem Guaidó nem Maduro. É uma al- oposição que critica seu legado, não sei cidiu com o desmoronamento da Ve- ternativa em jogo? se de maneira honesta ou estratégica. Qual é a compreensão política de nezuela. Não é seu objetivo principal, Não. Trata-se mais de chavistas Mas também existe muita gente na Maduro? mas falei com um ex-assessor dele al- que querem se perpetuar usando essa oposição que reconhece os méritos, as Ele se acredita um “revolucionário” guns dias atrás em Washington e ele visão de que são uma alternativa à virtudes, o carisma, a vontade e a en- e, de fato, foi de esquerda muito antes estava me contando que, no segundo dualidade entre Guaidó e Maduro. trega de Chávez durante seus anos no de Chávez. Ao contrário de Maduro, dia de mandato, Trump o chamou pa- Eles podem chegar a ter alguma voz poder. Essa situação afeta até meu tra- Chávez poderia abarcar todas as ideo- ra perguntar sobre a crise venezuela- em uma eventual transição, mas por balho como jornalista, porque muitas logias, ainda que tivesse a sua, o que na. Ele também revelou que, durante o ora o chavismo está em desvantagem fontes me relacionam com a figura de fazia dele um populista nacionalista primeiro semestre do governo, foram em termos eleitorais. Chávez por causa das entrevistas que de esquerda. Mas no começo de seu convocadas dezenas de reuniões para fiz com ele. Mas nos bairros pobres en- primeiro mandato, em 2000, havia falar sobre a Venezuela. Certamente se Boa parte da imprensa internacional contrei uma grande impaciência e vá- gente de direita próxima a seu gover- tornou um foco. decidiu chamar Maduro de ditador. rias críticas a Maduro, que não ganhou no, e Chávez podia fazer isso porque Como você vê essa decisão jornalística, a população da mesma forma que Chá- era capaz de escutar pessoas de outras Como você observa a cobertura da mí- assim como os atos desse governo que vez, a quem as pessoas ainda são leais. linhagens políticas e até concordar dia estrangeira, sobretudo a dos Esta- fazem a acusação ser possível? com elas. Maduro, sendo um “revolu- dos Unidos e a da Europa, sobre a si- Ainda resisto a chamá-lo de dita- cionário”, determina a si mesmo toda tuação na Venezuela? dor. Primeiro, porque não gosto dessas uma visão do poder, da sociedade e de Acho que as televisões deixaram de campanhas que, como são os memes, “Os Estados Unidos seus inimigos. fazer entrevistas com Maduro depois parecem ser uma nova forma de co- conseguiram vender ao do episódio em que ele encerrou uma municação coletiva em que os outros mundo que a Venezuela é Qual é sua percepção sobre a atuação conversa com Jorge Ramos [jornalista se sentem no direito de exigir que se do governo dos Estados Unidos ao lon- da rede de TV mexicana Univision] e mude uma semântica ao gosto deles, um país em crise, que o go da crise? ordenou que apagassem as imagens, sejam de esquerda ou de direita. Se- êxodo de gente é um É preciso reconhecer, em primeiro afirmando que as perguntas tinham gundo, porque prefiro encontrar mi- exemplo de desastre do lugar, que a iniciativa ao redor de Juan sido desrespeitosas. Acho que existem nhas próprias definições. Não acho chavismo” Guaidó foi engenhosa e, até certo pon- esforços positivos da imprensa, mas que Maduro seja uma pessoa demo- to, exitosa. Com ele, os Estados Unidos muito da cobertura internacional crática – ele se diz “revolucionário” –, conseguiram vender ao mundo que a mantém uma óptica alinhada com a mas é questionável julgar sua admi- Como um “amigo crítico” de Chávez, Venezuela é um país em crise, que o política ideológica de Trump. Quando nistração dessa forma. Ele assumiu pelas palavras dele próprio, você con- êxodo de gente é um exemplo de desas- ele acusa a Venezuela de alguma coisa, poderes ditatoriais? Um pouco sim, corda com as afirmações de que, se vi- tre do chavismo, que Maduro é um di- os jornais saem em busca das evidên- um pouco não. Todo dia ele recebe vo, ele condenaria o governo Maduro? tador e que o socialismo, como crença cias dessa acusação. Há ainda linhas grupos com quem mantém diálogo, Em particular, creio que ele teceria – ainda que a Venezuela não seja socia- editoriais que dificultam o trabalho seu governo conduz várias conversa- críticas, mas em público ficaria cala- lista –, é um fracasso. Foi uma estraté- dos jornalistas, e nisso a oposição apa- ções com a oposição e ele nunca man- do, porque perceberia que quem está gia de isolamento de Maduro e de colo- rentemente tem uma vantagem sobre dou a polícia entrar em um estádio ati- do outro lado agora são seus inimigos car o intempestivo Guaidó como Maduro: ela conseguiu se vender mui- rando em todo mundo. É uma situação de sempre. Além disso, Maduro é re- alternativa que convenceu mais de to bem na mídia internacional. Ainda complexa, de fato, mas não chego a sultado de sua obra. Mas, sinceramen- cinquenta países, o que, reconheça-se, assim, minha crítica é mais existen- chamá-la de ditadura. Quando me der te, se Chávez estivesse vivo, a situação foi um golpe diplomático vigoroso. No cial: tem mais a ver com o comporta- vontade de considerar Maduro um di- nem sequer teria chegado a esse ponto, entanto, desde que John Bolton se tor- mento dos meios em relação ao poder tador, o farei não porque me disseram porque ele sabia ser diplomático de nou assessor de segurança nacional da do que com a situação específica da para fazê-lo ou porque o presidente da uma forma que Maduro é totalmente administração Trump, os Estados Uni- Venezuela. OEA [Organização dos Estados Ameri- incapaz. Sem contar que Chávez che- dos assumiram uma postura muito canos] acha. gou a uma compreensão da política e a mais bélica e ameaçadora, à qual sou *Vinícius Mendes é jornalista. 26 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

UMA NOVA CONSTITUIÇÃO SUCEDE À DE 1976 Um grande debate... à cubana

Desde que tomou posse, em 2006, Raúl Castro luta pela “atualização” do modelo cubano. Inicialmente, limitou suas ambições às reformas econômicas, garantindo que poderiam abrir as vias para uma nova organização política. Um primeiro passo nesse sentido ocorreu em fevereiro, quando os cubanos foram convidados a se pronunciar sobre a nova Constituição POR SIMONE GARNET E GRÉGOIRE VARLEX*, ENVIADOS ESPECIAIS © Daniel Kondo Daniel ©

les estão por todos os lados: nos ou simples cidadãos com competên- aviso para que fosse levado em conta. PELO SOCIALISMO E PELA PROPRIEDADE PRIVADA elevadores, nas portas de entrada cias em direito. Quantos cidadãos concordam com de- Retorno ao bairro Vedado. A enu- e a cada andar das escadas de edi- Outra reunião começa ao mesmo terminada opinião? Impossível saber. meração dos artigos foi mantida, as- fícios. Sempre o mesmo anúncio: tempo em Vedado, bairro central da Para alguns, esse modo de funciona- sim como as propostas – que de forma E“Consulta popular. Reunião de todos os capital. Os organizadores lembram mento permite o surgimento de boas geral se referiam à forma do texto, e cidadãos”. No dia estabelecido, bancos que não se trata de debater o texto em ideias, independentemente de serem não ao seu sentido profundo. Mas nem e cadeiras estavam a postos nos Comi- geral, e sim de propor emendas: cortar apoiadas por uma ou mais pessoas. sempre. O caráter comunista de Cuba, tês de Defesa da Revolução (CDRs) – or- um artigo, inserir outro; modificar Para outros, a ausência de medidas proclamado na Constituição de 1976 – ganizações encarregadas de acompa- uma formulação, esclarecer outra etc. quantitativas permite sufocar reivin- “O socialismo e o comunismo permi- nhar a vida cotidiana1 –, em salas de A consulta não tem como objetivo or- dicações majoritárias, porém incômo- tem ao homem se libertar de todas as escritórios, escolas e até na rua. Em to- ganizar um debate em torno do texto das ao governo. formas de exploração” – foi suprimido dos esses lugares, os habitantes da ilha em si, nem mesmo medir o nível de Em um país habituado à quase na versão submetida à população. foram convidados a se expressar sobre o adesão da população. É, antes, um unanimidade política há mais de meio Cuba não era mais “comunista”, e sim novo texto constitucional proposto pela convite de participação, concebido século, surgiram 783.174 propostas de “socialista”. A consulta popular con- Assembleia Nacional. De acordo com os como (e limitado a) uma possibilidade modificações, ajustes ou supressões duziu à restauração da afirmação da números oficiais, 130 mil reuniões pú- de sugerir modificações. no texto constitucional. Presumindo natureza socialista e comunista do Es- blicas foram organizadas entre 13 de A leitura do preâmbulo começa. um “exercício de democracia”, as auto- tado cubano. No momento em que o agosto e 15 de novembro de 2018. Nota-se que o projeto de Constituição ridades revisaram a primeira versão: a próprio Estado autoriza pouco a pouco No bairro de Altahabana, uma pe- acrescenta o nome de Fidel na lista de comissão de redação retificou 60% do a contratação de assalariados por arte- riferia popular de Havana, todas as “guias políticos” da pátria: José Martí, texto. De fato, após o fim da consulta sãos e empresas, a população deseja pessoas que desejassem, em geral um Karl Marx, Friedrich Engels e Lenin. popular, todas as propostas foram reu- que a noção de “exploração” – no senti- por família, puderam se reunir uma Uma historiadora toma a palavra: ela nidas e sistematizadas em um único do marxista, segundo a qual o empre- segunda-feira às 18h, quando a maior lamenta que o texto não mencione a relatório, que foi remetido à Comissão gador absorve uma parte do trabalho parte dos habitantes voltava do traba- luta clandestina que precedeu a Revo- Nacional de Reforma Constitucional. de seus funcionários – permaneça co- lho ou da escola. Camila E. levou o tex- lução de 1959. Os secretários da sessão Para triar e sistematizar as propostas, mo algo a ser banido: “Estamos con- to do projeto de Constituição, que foi tomam nota de sua intervenção. foram constituídas equipes de traba- vencidos de que Cuba jamais retornará impresso e distribuído gratuitamente, Após a reunião, os relatores e os lho nos níveis municipal, estadual e ao capitalismo, regime fundado sobre ou vendido por um peso cubano (equi- eleitos de diversas instâncias locais se nacional, formadas por juristas, pro- a exploração do homem pelo homem, e valente a uma porção diária de pão). reuniram em nível municipal para fessores universitários, pesquisadores que apenas o socialismo e comunismo Quem organizou a reunião? Quem compilar as proposições, antes de di- e técnicos em informática. Essas equi- permitem a plena dignidade do ser hu- coordenou o encontro? E. não sabe. A gitalizá-las. Segundo as autoridades, o pes conceberam um documento final mano”, proclama a nova Constituição. pergunta chega a surpreendê-la: mecanismo permite visibilizar os arti- que foi apresentado, discutido e vota- No entanto, a “linha ideológica” das “Imagino que os presidentes das CDRs gos que geram questionamentos, os do pela Assembleia Nacional. De acor- emendas aportadas pela população se reuniram em nível municipal para que não correspondem às expectati- do com Homero Acosta, coordenador não é um bloco monolítico. O artigo 22 decidir como seria o processo”. De vas da população. As reuniões não ti- da comissão, “essa Constituição é uma da primeira versão do texto propunha acordo com nossas observações, tra- veram nenhuma votação, e continua expressão autêntica do caráter demo- o reconhecimento da propriedade pri- tava-se de pessoas implicadas na vida impossível depreender o número exa- crático e participativo de nosso povo, vada. Apesar de incompatível com do bairro (via CDR ou não), membros to de pessoas que se opuseram a deter- pois emana dele e acolhe seus senti- uma concepção comunista de mundo, do Partido Comunista Cubano (PCC), minado artigo ou das que se mostra- mentos”. A proposta da historiadora o artigo foi mantido e ampliado aos eleitos em diversas instâncias locais ram determinadas a que outros não sobre a guerrilha, por exemplo, será estrangeiros, atualmente autorizados (delegados da zona de circunscrição) fossem suprimidos. Bastava emitir um mantida no texto final. a comprar imóveis na ilha. O artigo 28, JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27

que a consulta não alterou, declara García, bispo de Santiago de Cuba, a de Castro de desconcentrar o poder aeroporto ao centro de Havana, co- que “o Estado encoraja e assegura as segunda maior cidade do país, o ca- político. Além disso, limita para dois o nhecida pelo imponente painel lem- garantias ao investimento estrangeiro samento homoafetivo revela um “co- número de mandatos presidenciais e a brando que a ilha está sob embargo há para manter o desenvolvimento eco- lonialismo ideológico”. 65 anos a idade limite para se apresen- cinquenta anos, apareceu durante a nômico do país”. tar ao mandato supremo. campanha um segundo painel, com Da mesma forma, o artigo 36 ressal- Outra novidade: o artigo 55 esta- três “sins” em segundo plano; no pri- ta, após a consulta, que “a aquisição de belece a “liberdade de expressão”, en- meiro, a frase: “Por nossa cultura, nos- outra nacionalidade não implica a per- “Estamos convencidos quanto a Constituição de 1976 reco- sas tradições, nossas convicções, nos- da da nacionalidade cubana”, algo que de que Cuba jamais nhecia apenas uma liberdade de sas crianças, pela juventude, pela o projeto original nem sequer mencio- retornará ao expressão e de imprensa “de acordo democracia, pelo socialismo e pela pá- nava. Esse ponto estava proscrito no capitalismo, regime com os objetivos de uma sociedade tria”. A campanha pelo “não” se res- texto de 1976, apesar de muitos cuba- socialista”. Essa liberdade deverá ser tringiu às redes sociais, mais acessí- nos não terem respeitado a interdição. fundado sobre a construída, assim como o processo de veis desde a abertura do 3G, no dia 6 de Dessa forma, a nova Constituição lega- exploração do homem elaboração da nova Constituição: li- dezembro de 2018. A maior parte de liza situações antes à margem da lega- pelo homem” mitado a falas públicas – portanto, seus animadores são os mais críticos lidade, já experimentadas por muitos sem a possibilidade do anonimato –, o ao regime e se recusam a apoiá-lo par- cubanos, e permanece alinhada ao modo de expressão de pontos de vista ticipando do que eles consideram um trabalho de legalização de operações já não favoreceu a crítica. simulacro de democracia ou um ple- existentes levado adiante por Raúl Cas- No total, 195 mil propostas relacio- Vários depoimentos relatam o biscito em favor do presidente Miguel tro no âmbito da economia. nadas a esse artigo foram consignadas mesmo tipo de cena: durante as reu- Díaz-Canel. A questão do casamento homoafe- nas reuniões públicas: 35 mil favorá- niões públicas, uma pessoa sugere re- Domingo, 24 de fevereiro de 2019: o tivo suscitou os debates mais caloro- veis e 160 mil opostas. O texto final da formular um artigo sensível ou faz dia do referendo chegou. Todos os ci- sos. O projeto da Constituição apre- Constituição conservou a ambiguida- uma demanda incômoda para o go- dadãos de mais de 16 anos estão aptos sentado não falava na união de “um de e a neutralidade para permitir uma verno, como o fim do partido único.2 a votar, exceto os que residem fora do homem e uma mulher”, e sim entre potencial evolução do Código da Fa- Sua sugestão é acolhida pelos relato- país. A contagem dos votos aconteceu “duas pessoas”. As igrejas católicas e mília. A redação do artigo 82 se conso- res, de acordo com o procedimento na mesma noite, em público. Mas seria protestantes emergiram como uma lidou da seguinte maneira: “O casa- habitual. Alguns dias depois, essa pes- preciso esperar dois dias para saber os forma de contrapoder inimaginável mento é uma instituição social e soa é convocada a comparecer na de- resultados nacionais completos, anun- alguns anos antes, mas seu peso não é jurídica [...] que se funda sobre o livre legacia, onde ela deve explicar os moti- ciados pela comissão eleitoral nacional a única explicação para a rejeição des- consentimento e a igualdade de direi- vos que a fizeram apresentar tal e publicados no jornal oficial Granma. se artigo pela população. Em Vedado, tos, obrigações e capacidades legais emenda. Na sequência, passa por um A apresentação leva em conta as abs- um habitante pede a palavra e explica dos cônjuges”. A redação marca um re- longo interrogatório, em que as autori- tenções, votos brancos e nulos. Partici- que Cuba “não está pronta ainda, em cuo em relação à proposta inicial, mas dades buscam garantir que não há al- pação: 84,41%. Sim: 86,85%. Não: 9%. relação às mentalidades e à história, há um avanço em relação ao texto de gum interventor pagante (notada- Brancos: 2,53%. Nulos: 1,62%. Resulta- para assumir uma mudança como es- 1976. Contudo, o poder prometeu um mente uma potência estrangeira) para do final: 73,31% de votos efetivos a fa- sa”. Uma vizinha se levanta e se in- novo referendo sobre a questão do ca- que a pessoa formule essa proposta – vor da aprovação do texto. A Constitui- digna, objetando que se trata de um samento homoafetivo daqui a dois procedimento que convida a ponderar ção entrou em vigor em 10 de abril de direito elementar e que esse artigo anos. Supõe-se que o Estado não quis o otimismo de Acosta. 2019, publicada no boletim oficial da não poderia estar em contradição arriscar que uma parte grande da po- República. com o artigo 42, que ela cita: “Todas pulação votasse “não” à Constituição CAMPANHA PELO “NÃO” as pessoas são iguais perante a lei, re- para expressar seu veto a esse artigo Além disso, a campanha em favor *Simone Garnet e Grégoire Varlex são cebendo a mesma proteção e gozan- em particular. do “sim” sobre o texto final a ser apro- jornalistas. do dos mesmos direitos e oportuni- O artigo 109, que reorganiza os po- vado no referendo parecia ocupar to- dades, sem discriminação de sexo, deres, cria os cargos de presidente da dos os espaços. Nem a televisão, o rá- gênero, orientação sexual, identidade República e primeiro-ministro. Na an- dio ou os cartazes evocavam o “não”. de gênero, idade, origem étnica, cor tiga Constituição, existia apenas a O Instituto Cubano da Música e o Mi- 1 Ler Marion Giraldou, “À Cuba, José ne s’est pas da pele, crença religiosa [...] ou qual- função de presidente do Conselho de nistério da Cultura lançaram um ape- levé” [Em Cuba, José não se levantou], Le Monde quer outra circunstância pessoal que Estado, que centralizava as funções de lo aberto aos artistas para que compu- Diplomatique, fev. 2016. 2 Ao total, segundo números oficiais, 10 mil propos- implique uma distinção em termos chefe de Estado e chefe do governo. O sessem uma canção chamando para o tas foram coletadas a favor da abertura ao multipar- de dignidade humana”. Para Dionisio novo texto faz jus, assim, à promessa “sim”. Na Avenida Boyeros, que liga o tidarismo.

À margem da história Relatos astecas da conquista Contra os O último livro organizado por Euclides da Cunha, A ideia de que “a história é escrita pelos astrólogos publicado postumamente em 1909, vencedores” aplica-se sobremaneira à O grego Sexto Empírico (século II ganha primorosa edição. A conquista das Américas. d.C.) deixou escritos sobre os mais partir do exame das 14 Mas engana-se quem variados assuntos. Nesta tradução edições anteriores, acha que os inédita e bilíngue, o filósofo e periódicos e manuscritos, os conquistados não médico problematiza a suposta pesquisadores Leopoldo M. produziram sua própria capacidade de associar os eventos Bernucci, Francisco Foot visão. Georges Baudot e celestes aos acontecimentos ligados Hardman e Felipe Pereira Tzvetan Todorov às vidas dos homens, como se Rissato resgatam questões reúnem relatos aqueles pudessem fornecer, para que vão desde a destruição produzidos no “calor da estas, suas origens, causas e da Amazônia, passando invasão”, muitos deles a predições seguras. pelo embate sobre a partir do nauatle, o fronteira com o Peru e idioma asteca, bem Produzir conteúdo chegando aos debates sobre como rica iconografia Compartilhar conhecimento. o socialismo inspirado na com ilustrações dos Desde 1987. socialdemocracia. manuscritos originais. www.editoraunesp.com.br 28 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

UM PROCESSO REVOLUCIONÁRIO DE LONGO PRAZO O Sudão e a Argélia reacenderam a chama da Primavera Árabe?

Os movimentos populares que se opõem aos regimes argelino e sudanês contrastam com a regressão contrarrevolucionária que atravessa o mundo árabe desde o início da década. Em ambos os casos, os poderes constituídos sob bases militares não podem conduzir eles próprios uma transição destinada a eliminar sua influência no Estado e em seus recursos POR GILBERT ACHCAR*

os últimos meses, as notícias muitos esperavam em 2011, mas como vindas do mundo árabe volta- o primeiro momento de uma cadeia de ram a ser dominadas por ima- “estações” destinadas a durar muitos gens de mobilizações popula- anos, até muitas décadas. resN que lembram a onda de choque O imperativo no mundo árabe, na revolucionário que sacudiu a região verdade, não é a adaptação do sistema em 2011. Revoltas se iniciaram no Su- político a uma sociedade e a uma eco- dão, em 19 de dezembro 2018, e na Ar- nomia que chegaram à maturidade – gélia, com as grandes marchas da sex- como o que se viu nos países da Améri- ta-feira, 22 de fevereiro de 2019. Em ca Latina ou do Leste Asiático, cuja uma ilustração impressionante da modernização política veio completar teoria do dominó, elas reviveram a a modernização socioeconômica. memória da primeira fase, maciça e Aqui, trata-se antes de eliminar um pacífica, das convulsões vividas, há sistema político que bloqueia o desen- oito anos, por seis outros países da re- volvimento econômico e social desde gião: Tunísia, Egito, Bahrein, Iêmen, os anos 1980. O sintoma mais proemi- Líbia e Síria. nente disso é o desemprego dos jo- Desta vez, porém, os comentaristas vens, indicador no qual a região é há têm sido mais cautelosos, a maioria de- muito tempo líder entre os principais les formulando seus julgamentos de Manifestação de estudantes em Argel, capital da Argélia grupos geopolíticos do planeta.2 um modo interrogativo, como o título Nessa perspectiva, o ponto de ebuli- deste artigo. O motivo de tal comporta- entusiasmo deu então lugar à melan- mandade Muçulmana, Catar e Tur- ção alcançado em 2011 só poderia levar mento é a amarga desilusão que suce- colia do que passou a ser descrito como quia, tornando obsoleta a mediação a um novo período de estabilidade du- deu à euforia da Primavera Árabe de “Inverno Árabe”, em um cenário de da ONU para uma nova solução con- radoura por meio de uma mudança ra- 2011. A repressão da revolta no Bahrein avanço regional do empreendimento sensual. No Iêmen, a guerra civil con- dical nas orientações econômicas. Mas algumas semanas após seu início, com terrorista totalitário denominado Or- tinua, com consequências fortemente essa ruptura era inconcebível sem uma a participação de outras monarquias ganização do Estado Islâmico. Embora agravadas pela intervenção criminosa mudança sociopolítica que pusesse fim petrolíferas do Conselho de Coopera- esse último avatar da Al-Qaeda tenha da coalizão liderada pela Arábia Sau- aos sistemas estatais responsáveis pelo ção do Golfo (CCG), poderia ter sido sido destruído no Iraque e na Síria – en- dita e os Emirados. Nada permite cul- bloqueio. Sem isso, a contestação, em uma exceção, dada a natureza bastan- quanto grupos da mesma franquia tivar esperanças de uma paz duradou- vez de ser reabsorvida, estaria conde- te especial desse clube de Estados. No continuam castigando a Líbia, o Sinai ra nem de reunificação desse país nada a se perpetuar e até mesmo a se entanto, dois anos depois, toda a região egípcio e áreas para além do mundo pobre em um futuro próximo. intensificar, na medida em que a deses- entrava em uma fase de refluxo con- árabe –, outros atores da contrarrevo- tabilização criada pela Primavera Ára- trarrevolucionário, com uma nova rea- lução se mantêm na ofensiva. UM PROTESTO CONDENADO A SE PERPETUAR be só poderia agravar a fadigada econo- ção em cadeia... em sentido contrário. O clã Al-Assad ainda controla a Dada essa permanência da dege- mia geral. Os fatos confirmaram isso: Após a ofensiva lançada na Síria, na maior parte do território sírio, com a neração contrarrevolucionária, as apesar da ofensiva contrarrevolucioná- primavera de 2013, por Bashar al-Assad ajuda da Rússia e do Irã. No Egito, des- agitações no Sudão e na Argélia, em ria, diversos países do mundo árabe com a ajuda do Irã e seus auxiliares re- prezando o potencial impacto das re- vez de aparecerem como uma nova têm passado por novos e fortes surtos gionais, veio a instauração, no Egito, de beliões no vizinho Sudão e na Argélia, Primavera Árabe, continuam até o de febre social desde 2011. uma ordem estruturada sob a égide o regime cada vez mais despótico do momento isoladas em um contexto É o caso da Tunísia, muitas vezes dos militares e, na Tunísia, o retorno de marechal Abdel Fattah al-Sissi brin- indefinido e contraditório. Elas po- apresentada como exemplo de sucesso parte dos homens do antigo governo. dou-se com uma mudança constitu- dem tanto crescer e se espalhar como da Primavera Árabe, porque soube Nesses dois últimos países, o ímpeto cional destinada a permitir que o pre- serem brutalmente interrompidas. E o preservar suas conquistas democráti- revolucionário inicial foi confiscado sidente fique no poder até 2030.1 Seu destino da região depende muito do cas. Mas, mesmo que isso seja geral- pelas forças ligadas à Irmandade Mu- colega líbio, o general Khalifa Hafter – que acontecerá com os movimentos mente ignorado em benefício de con- çulmana. Na Líbia e no Iêmen, os re- com o apoio do Egito, Emirados Ára- populares nesses dois países. siderações extasiadas a respeito de manescentes do antigo regime reco- bes, Arábia Saudita, Rússia e França, O que é certo é o fato de a explosão uma suposta diferença “cultural” – em braram a ousadia e fizeram alianças aos quais os Estados Unidos acabaram de 2011 ter sido apenas a primeira fase razão sobretudo da persistência de um oportunistas com grupos que tinham também se juntando –, empenha-se de um processo revolucionário de lon- Estado tunisiano ao longo dos últimos tomado o trem da revolução em mar- desde abril em uma ofensiva militar go prazo. Nessa perspectiva, o termo três séculos –, a “exceção tunisiana” cha e que, como eles, eram hostis à Ir- no oeste do país para completar a con- “Primavera Árabe” pode ser utilizado está ligada principalmente ao papel mandade Muçulmana, a fim de tentar quista do território. A operação atinge desde que não no sentido de uma fase desempenhado pela União Geral dos tomar o poder pela força, mergulhan- o compromisso assumido entre o go- de transição democrática de curta du- Trabalhadores da Tunísia (UGTT),

© Reuters / Ramzi Boudina do ambos os países na guerra civil. O verno da Líbia e as Nações Unidas, Ir- ração e relativamente pacífica, como único movimento trabalhista organi- JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29

zado e ao mesmo tempo autônomo e entre 2011 e 2013, serviram apenas para são oscilante do poder, que acabaria vera Árabe foi descrita como “pós-mo- poderoso do mundo árabe.3 O país criar um regime que faz ter saudade de fatalmente em conflito armado. derna” por causa da ilusão de óptica continuou sendo abalado por erup- Hosni Mubarak.4 E essa resignação O Sudão e a Argélia pertencem, co- que a fazia parecer um movimento ções sociais, locais e nacionais, entre agrava ainda mais a ausência de qual- mo o Egito, à categoria dos regimes de sem liderança. Mas nenhum movi- elas a de Kasserine, cidade no centro quer solução alternativa crível. estrutura militar-securitária. E, como mento popular consegue se estabele- do país, em janeiro de 2016, e as gran- A experiência egípcia, no entanto, no Egito, os militares acabaram ten- cer longamente sob tais condições: des manifestações de janeiro de 2018. não foi em vão. Os povos dos países vi- tando apaziguar a população rebelde mesmo aqueles cuja gênese é espontâ- Entre os outros países da região onde zinhos aprenderam a lição: eles estão sacrificando o presidente. Abdelaziz nea devem ter uma liderança caso surgiram movimentos sociais de gran- vacinados contra o tipo de ilusão que Bouteflika foi obrigado pelo comando queiram perseverar. de amplitude desde 2011, figuram o acometeu os egípcios quando estes for- militar argelino a renunciar, no dia 2 Marrocos, particularmente na região çaram a renúncia de Mubarak, em 11 de abril; Omar al-Bashir foi deposto COMPROMISSO DA OPOSIÇÃO do Rif, desde outubro de 2016; a Jordâ- de fevereiro de 2011, e depois quando pela junta militar sudanesa e preso no Na experiência da Tunísia, os sindi- nia, especialmente na primavera de derrubaram seu sucessor eleito, mem- dia 11 de abril. calistas da UGTT tiveram um papel 2018; e o Iraque, de maneira intermi- bro da Irmandade Muçulmana, Moha- Trata-se de dois golpes de Estado fundamental para a extensão do levan- tente desde 2015. Quanto ao Sudão, ele med Morsi, em julho de 2013. Ficou cla- conservadores, semelhantes àquele te em escala nacional e para a derruba- passou por diversas ondas de protesto ro para todos que, quando os militares orquestrado pelos militares no Egito da da ditadura em janeiro de 2011. No social desde 2011, incluindo a de 2013, constituem a ossatura do poder políti- em fevereiro de 2011, quando anuncia- Egito, um conglomerado de organiza- severamente reprimida. co, o presidente e seu círculo imediato ram a “renúncia” de Mubarak: golpes ções políticas da oposição iniciou a re- Em todos esses lugares, as ques- são apenas a ponta do iceberg. A massa por meio dos quais o Exército se livrou volta e assumiu sua liderança até a saí- tões do emprego e/ou do custo de vida submersa é essencialmente constituí- da ponta do iceberg para preservar a da de Mubarak. No Bahrein, membros estão no centro das reivindicações. da pelo complexo militar-securitário – massa submersa. Do mesmo modo, os da oposição política e sindicalistas es- Esses problemas foram muitas vezes que parece então conveniente chamar militares argelinos e sudaneses entre- tiveram na linha de frente. No Iêmen, agravados pela mão muito visível do de “Estado profundo”, o que combina garam aos manifestantes o círculo parte das forças do regime se uniram a FMI, a qual se mostrou de uma lealda- bem com a metáfora do iceberg. próximo ao presidente deposto e os forças de oposição para lucrar com o de inabalável ao credo neoliberal que personagens e instituições mais dire- movimento, em detrimento dos jovens a anima. O órgão exibiu um dogmatis- tamente envolvidos nos abusos e irre- revolucionários que tiveram um papel mo totalmente contrário às lições da gularidades do regime. Mas, tanto na fundamental em seu desencadeamen- experiência, corroborando a acusação Em janeiro de 2018, Argélia como no Sudão, o movimento to. Na Líbia, a rápida evolução para um que lhe é dirigida de ter mais relações popular, que aprendeu com a expe- conflito armado deu origem a uma li- com a representação dos interesses do protestos provocados riência egípcia (e também com expe- derança na qual se misturavam anti- grande capital do que com uma racio- pelas imposições do riências locais anteriores das gerações gos e novos oponentes, incluindo dissi- nalidade pragmática. Para o FMI, a FMI agitaram sudanesas precedentes), não caiu na dentes do regime. A Síria passou pela implosão do mundo árabe é resultado simultaneamente três armadilha. Ele continuou exigindo, mais longa experiência de liderança da aplicação insuficiente de suas pres- com notável tenacidade, o fim do con- horizontal – o que evidentemente não é crições, embora seja claro que ela é países da região: Irã, trole do poder político pelos militares o mesmo que ausência de liderança – uma decorrência direta de tais pres- Sudão e Tunísia e o advento de um governo verdadei- com a constituição de “comitês de crições, totalmente inadequadas ao ramente civil e democrático. coordenação” que funcionavam por contexto regional. Esses novos levantes têm em co- meio das redes sociais, até que o Con- Defendendo o afastamento do Es- Os sistemas políticos do mundo mum a extraordinária amplitude da selho Nacional da Síria, criado em Is- tado e postulando um jamais atestado árabe são todos dominados por castas mobilização e suas modalidades cheias tambul sob a égide da Turquia e do Ca- papel de liderança do setor privado no que controlam e exploram os Estados e de entusiasmo, na tradição de alegria tar, assumiu o papel de líder. desenvolvimento, o FMI contribuiu seus recursos. Esses sistemas dividem- das grandes revoltas emancipatórias O conjunto formado pela Turquia e enormemente para produzir a parali- -se em duas categorias: famílias que que colocam “a imaginação no poder”.5 pelo Catar conseguiu colocar sob sua sia econômica regional. Desde 2011, a reinam em um contexto monárquico Elas também têm em comum a cons- tutela todas as revoltas de 2011, com ex- entidade aumentou a pressão sobre os ou pretensamente republicano de ciência muito clara de que se chocam ceção do caso particular do Bahrein. E governos para que estes cumpram es- apropriação privada do Estado (djou- contra um regime cuja ossatura é cons- conseguiu isso graças ao fomento que tritamente seus planos de austerida- mloukiya, ou “republimonarquia”) e tituída pelos militares, portanto não se- deu para a Irmandade Muçulmana de. As consequências não demora- castas militar-securitárias e burocráti- ria seu alto-comando a enterrar tal re- que, embora não estivesse na origem ram: aos casos citados, pode-se ainda cas cujos membros gozam do usufruto gime. Tanto na Argélia como no Sudão, da revolta em lugar nenhum, logo se acrescentar a agitação social no Irã, do Estado em um cenário neopatrimo- a mais alta instância militar se preten- juntou a ela e começou a ganhar a lide- onde causas idênticas deram mais de nial. É a diferença entre essas duas ca- de a ponta de lança da mudança revolu- rança. A Irmandade Muçulmana e uma vez resultados similares desde tegorias que determinou o destino cionária aspirada pela população, ao seus partidários já tinham organiza- dezembro de 2017, apesar da especifi- contrastante das insurreições de 2011, modo do Movimento dos Oficiais Li- ções grandes e bem estabelecidas no cidade do sistema político iraniano não as decisões tomadas por governos vres liderado por Gamal Abdel Nasser Egito e no Iêmen. Apesar de estarem na em relação a seus vizinhos árabes. Em cuja fragilidade já foi comprovada. em 1952, no Egito, ou do Movimento clandestinidade na Líbia, na Tunísia e janeiro de 2018, protestos provocados das Forças Armadas de Portugal, de na Síria, elas contavam nesses países pelas imposições do FMI agitaram si- PRESIDENTES SACRIFICADOS PELO EXÉRCITO 1974 – dois casos de rebeliões de jovens com uma importante rede que recebia multaneamente três países da região: Em 2011, nos Estados neopatrimo- oficiais contra sua hierarquia. Mas isso apoio vindo de seus ramos legais ou se- Irã, Sudão e Tunísia. niais da Tunísia e do Egito, o aparelho não engana muita gente. Já no Egito, em milegais de outros países, além de Não é por acaso, aliás, que o único estatal foi rápido em se livrar do grupo 2013-2014, a propaganda estatal teve apoio material e televisivo (por meio do governo que conseguiu impor em bloco dirigente, que começou a atrapalhar. sucesso em apresentar Al-Sissi como canal Al Jazeera) do Catar. as medidas de austeridade exigidas pelo Nos Estados patrimoniais, porém, as uma nova encarnação de Nasser. No cenário de fragilidade geral, no FMI foi o regime autoritário do mare- famílias reinantes não hesitaram em Para além dessa semelhança entre espaço árabe, das organizações da chal Al-Sissi. Dessa “terapia de choque” recorrer a seus guardas pretorianos as duas revoltas de 2019, há uma gran- oposição liberal (no sentido político iniciada em novembro de 2016, a popu- para afogar as insurreições em sangue, de diferença que as separa, relaciona- do termo) e da esquerda, desprovidas lação egípcia até agora só experimentou precipitando seus países nas guerras da à natureza de suas lideranças. Esta de apoio estatal externo e exauridas o choque. No entanto, ao contrário dos civis da Líbia e da Síria, enquanto no é uma questão crucial: o óbvio fracas- pela repressão, a rede da Irmandade outros povos da região, ela não se rebe- Bahrein a intervenção das monarquias so da maioria das revoltas de 2011, as- Muçulmana e seus simpatizantes che- lou. Essa letargia decorre tanto do clima do CCG dissuadiu o movimento popu- sim como o sucesso parcial da única gou ao auge da influência regional em repressivo mantido pelo governo como lar de pegar em armas. O Iêmen estava entre elas cujas conquistas democráti- 2011-2012. Ela se beneficiou muito com da resignação motivada pela constata- em uma categoria intermediária: a re- cas foram preservadas, tem relação a realização de eleições de curto prazo ção de que os três anos de turbulência, volta de 2011 terminou com uma divi- com esse mesmo problema. A Prima- na Tunísia e no Egito, chegando ao po- 30 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

der em ambos os países. Já no Marro- nascer uma forte desconfiança em re- ticas da oposição, que vai do Partido Assim, fica mais fácil entender por cos, a monarquia assumiu a liderança lação a esses dois atores. A grande Nacional Umma – dirigido por Sadiq que a revolta sudanesa provoca nas e tentou evitar a amplificação do pro- maioria daqueles que se mobilizam al-Mahdi, duas vezes primeiro-minis- forças reacionárias da região uma an- testo popular iniciado em 22 de feve- nas ruas argelinas desde fevereiro se tro nos anos 1960 e 1980, liberal e chefe siedade muito maior do que o movi- reiro de 2011, cooptando no governo o oporia a qualquer pretensão das forças de uma ordem religiosa muçulmana mento argelino. Os irmãos inimigos do ramo marroquino da Irmandade. fundamentalistas de liderar o movi- sufi – ao Partido Comunista do Sudão, CCG – a Arábia Saudita e emirados co- Houve apenas uma surpresa: o fra- mento com tanta ou mais energia do o maior dos partidos comunistas ainda mo o Catar – ofereceram ajuda a Al- casso da Irmandade Muçulmana nas que aquela com que rejeitam a preten- ativos no mundo árabe (embora consi- -Bashir antes de sua queda. O eixo que eleições parlamentares de julho de são do alto-comando de tornar-se por- deravelmente enfraquecido desde os une sauditas e emirados redobrou seus 2012 na Líbia, onde foi amplamente tador de suas aspirações. anos 1960), passando por movimentos esforços para apoiar os militares, agora vencida pela Aliança das Forças Na- No Sudão, a oposição popular aos regionais de luta armada contra o regi- liderados por oficiais que lutaram ao cionais, coalizão de grupos políticos e dois polos reacionários é ainda mais me de Al-Bashir. Dela também partici- seu lado no Iêmen. Seu objetivo é des- ONGs de orientação liberal que ga- radical pelo fato de que eles governa- pam dois grupos feministas, a iniciati- truir a coalizão progressista, voltando nhou quase metade dos votos (com ram juntos desde o golpe de Estado va Não à Opressão das Mulheres e os à sua fração “moderada”, especialmen- uma taxa de participação de 61,6%), perpetrado em 1989 por Al-Bashir. Grupos Feministas Civis e Políticos, te o Partido Nacional Umma, enquan- com perto de cinco vezes mais votos Chefe de uma ditadura militar aliada cuja influência é clara no programa da to o Exército é encorajado a recorrer à que a Irmandade Muçulmana. Esse re- à Irmandade Muçulmana (com altos e coalizão. Esta pode ser vista, por exem- demagogia religiosa – ele acusa a FDLC sultado veio após o primeiro turno das baixos), este último era uma combi- plo, na reivindicação de uma cota de de querer expurgar a lei sudanesa da eleições presidenciais no Egito, em nação de Morsi e Al-Sissi.7 Um dos as- 40% para mulheres na Assembleia Le- xaria – com o apoio dos salafistas, liga- maio de 2012, quando o total de votos pectos mais fortes da insurreição su- gislativa, defendida pela coalizão. A dos aos sauditas. dispersos dos dois candidatos dos par- danesa – de uma radicalidade política Associação de Mulheres Democratas Para ficarmos com a comparação tidos liberais e de esquerda excedeu o superior à de todas as revoltas ocorri- também teve um papel significativo no do jornalista do Financial Times, a si- resultado combinado dos dois princi- das no mundo árabe desde 2011 – é sua protesto e no processo constituinte da tuação levará a uma radicalização re- pais candidatos (o da Irmandade Mu- oposição declarada tanto ao poder dos Tunísia, mas ali a reivindicação femi- volucionária, como na Rússia em 1917, çulmana e o do antigo regime), totali- militar quanto ao de seus compadres nista foi menos central. ou a uma “semana sangrenta”, como a zando mais que o dobro da pontuação islâmicos, e a proclamação inequívoca David Pilling, jornalista do Finan- que pôs fim à Comuna de Paris? O de Morsi. Isso deu mais uma mostra de da aspiração a um governo civil e laico, cial Times, fez um comentário que, se principal trunfo dos revolucionários que, ao contrário da ideia preconcebi- democrático e até feminista. estivesse em um jornal de extrema es- sudaneses é sua grande influência so- da de inspiração orientalista – no sen- querda, não passaria impune: “Embo- bre soldados e oficiais subalternos, al- tido de Edward Said6 –, as populações ra o levante se deva muito à tecnologia guns dos quais usaram suas armas pa- da região não estão “culturalmente” do século XXI, com a força organiza- ra defender os manifestantes. Foi isso assimiladas àquilo que alguns cha- A Primavera Árabe dora dos smartphones e das hashtags, que impediu o alto-comando de lan- mam de “islã político”. foi descrita como um movimento que apresenta aspec- çar as tropas contra o movimento Mais que cultural, o problema é “pós-moderna” por tos ao mesmo tempo laicos e sindicais quando Al-Bashir o incitou a fazê-lo. classicamente de ordem político-orga- parece algo retrorrevolucionário. Não Esse fator determinará o destino da re- nizacional. Em primeiro lugar, está em causa da ilusão de podemos saber com certeza como era volução sudanesa, como determinou questão a incapacidade de organizar- óptica que a fazia a Rússia em 1917, quando o czar foi os destinos opostos de suas predeces- -se em coalizão apresentada pelas for- parecer um movimento derrubado, ou a França durante os soras russa e parisiense. ças democráticas – dos liberais (laicos sem liderança dias de entusiasmo e idealismo da efê- e muçulmanos) à esquerda radical –, mera Comuna de Paris, em 1871. Mas *Gilbert Achcar é professor da School of que em toda parte traduzem as aspira- devia haver algo parecido no ar, em Oriental and African Studies (SOAS), da Uni- ções majoritárias dos movimentos po- Cartum, em abril de 2019”.8 versidade de Londres. Autor, entre outras pulares; em segundo lugar, está em Tal radicalidade é estreitamente li- A FDLC disputa com o alto-coman- obras, de Symptômes morbides. La rechute questão sua incapacidade de apresen- gada a outra vantagem que contribui do militar duas questões cruciais: du soulèvement arabe [Sintomas mórbidos. A tar-se em conjunto como uma alterna- para a superioridade do movimento quem deve exercer o poder durante o recaída das revoltas árabes], Actes Sud, Ar- tiva aos dois polos reacionários forma- sudanês: sua liderança política excep- período de transição e quanto tempo les, 2017. dos pelos antigos regimes e por seus cional. O movimento argelino é limita- esse período deve durar? A coalizão rivais muçulmanos fundamentalistas. do pela própria pluralidade e horizonta- exige que se forme um “conselho de so- Infelizmente, em todos os países que lidade de suas instâncias organizadoras, berania” com sua predominância e 1 Cf. Bahey Eldin Hassan, “Égypte. Le coup d’État permanent” [Egito. O golpe de Estado permanen- estiveram na vanguarda da Primavera nas quais cooperam, por meio das redes participação militar minoritária, en- te], Oriente XXI, 15 abr. 2019. Disponível em: Árabe de 2011, os grupos de oposição sociais, estudantes de ambos os gê- quanto as Forças Armadas insistem . liberal e de esquerda cometeram o er- neros organizados em seus locais de em manter o controle do poder sobera- 2 A análise e os números desse bloqueio podem ser consultados em Le Peuple veut. Une exploration ro de ceder a um dos dois polos reacio- estudo, grupos da oposição política no. Pode parecer paradoxal que a coa- radicale du soulèvement arabe [O povo quer. Uma nários para lutar contra o outro, às ve- liberal e de esquerda, coletivos de lizão exija um período de transição de exploração radical da revolta árabe], Sindbad/Ac- zes até passando de um a outro, de trabalhadores e profissionais libe- quatro anos até a realização das elei- tes Sud, Arles, 2013. 3 Sobre a UGTT, ganhadora do Prêmio Nobel da acordo com a identificação feita por rais, sem que nenhuma instância ções, enquanto os militares querem li- Paz de 2015, ler Héla Yousfi, “Un syndicat face à cada grupo do principal perigo do mo- possa reivindicar a liderança. Já no mitá-lo a dois. Mas ela aprendeu com Ennahda” [Um sindicato diante do Ennahda]. In: mento. Isso resultou na marginaliza- Sudão, ninguém contesta o protago- as eleições constitucionais, legislativas “Le Défi tunisien” [O desafio da Tunísia], Manière de Voir, n.160, ago.-set. 2018. ção desses grupos no cenário político. nismo das Forças de Declaração de e presidenciais organizadas a curto 4 Ler Pierre Daum, “Place Tahrir, sept ans après la Em grande medida, as revoltas em Liberdade e Mudança (FDLC). prazo na Tunísia e no Egito, que favore- ‘révolution’” [Praça Tahrir, sete anos após a “revolu- curso no Sudão e na Argélia estão imu- Nessa coalizão formada em torno ceram a polarização reacionária em ção”], Le Monde Diplomatique, mar. 2018. 5 “‘L’imagination au pouvoir’, une interview de Daniel nizadas contra sua apropriação pelos da declaração que lhe dá nome, adota- detrimento dos progressistas. A coali- Cohn-Bendit par Jean-Paul Sartre” [“A imaginação fundamentalistas muçulmanos, o que da em 1º de janeiro de 2019, a Associa- zão quer ter tempo para construir no- no poder”, uma entrevista de Daniel Cohn-Bendit reforça também sua oposição às intri- ção de Profissionais Sudaneses ocupa vas instituições para um poder civil, para Jean-Paul Sartre], Le Nouvel Observateur, Pa- ris, 20 maio 1968. gas militares: a Irmandade Muçulma- um lugar central. Ela foi criada em ou- democrático e laico, progressista no 6 Edward W. Said, L’Orientalisme. L’Orient créé par na foi uma preciosa aliada dos milita- tubro de 2016, na clandestinidade, por plano socioeconômico e na questão da l’Occident [Orientalismo. O Oriente criado pelo res no Egito durante os primeiros médicos, jornalistas e advogados, aos mulher – dimensões refletidas em seu Ocidente], Seuil, Paris, 1980. 7 Cf. “The fall of Sudan’s “Morsisi” [A queda do meses de 2011. Na Argélia, a provação quais se uniram outros coletivos – pro- projeto de Constituição de transição. “Morsisi” do Sudão”], Jacobin, 12 maio 2019. Dis- da “década negra” – o confronto san- fessores, engenheiros, farmacêuticos, Ela também quer tempo para construir ponível em: . grento entre o complexo militar-se- artistas e, mais recentemente, operá- uma força política progressista capaz 8 David Pilling, “Sudan’s protests feel like a trip back to revolutionary Russia” [Protestos do Sudão pare- curitário e os fundamentalistas após o rios, ferroviários etc. A FDLC também de consolidar sua liderança em uma cem uma viagem de volta à Rússia revolucionária], golpe de Estado de janeiro de 1992 – fez inclui uma ampla gama de forças polí- estrutura partidária, hoje inexistente. Financial Times, Londres, 24 abr. 2019. JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 31

CIDADE AFRICANA CHACOALHADA PELOS DITAMES DA UNIÃO EUROPEIA Agadèz, o muro anti-imigração da Europa

Situada às portas do Saara, Agadèz tornou-se um posto de controle dos movimentos populacionais em direção ao norte da África e ao Mediterrâneo. Sob pressão da União Europeia, que instalou uma força militar na região, o Níger proibiu a ajuda à imigração, afundando a economia local no caos POR RÉMI CARAYOL*, ENVIADO ESPECIAL

m suave torpor envolve a rodo- viária de Agadèz nesta manhã de quarta-feira. A estação quen- te se aproxima. No amanhecer, umU véu de poeira caiu sobre a cidade. Mas não é a meteorologia que explica a escassez de viajantes. “Não há mais viajantes há muito tempo”, lamenta um atendente. “As pessoas que vão pa- ra o norte estão se escondendo”, conti- nua, deitado em uma esteira ao lado de um colega adormecido. Chamada pelas agências de turis- mo de “a porta do deserto”, Agadèz, principal cidade do norte do Níger, já não merece esse nome. Antigamente, porém, a rodoviária central, de onde saíam os comboios em direção à cida- de de Dirkou e depois à Líbia, era o co- ração de Agadèz. Toda segunda-feira, dezenas e dezenas de veículos, às ve- zes duas centenas deles, seguiam para o deserto, transportando gado e pas- sageiros. Estes, oriundos da África Oci- dental e, mais raramente, do centro ou do leste do continente, tentavam, em sua maioria, chegar à Líbia e, inch’Al-

lah, à Europa. Escoltados pelo Exército © Flavia Bomfim até a fronteira com a Líbia, os com- boios eram, para quem neles seguia, sinônimo de grandes esperanças e, ternalizar sua luta contra a imigração, dafi pela coalizão franco-britânica, e da luta contra o tráfico de seres hu- para os habitantes de Agadèz, uma lu- com a cumplicidade de alguns Estados em 2011, Agadèz se tornou o principal manos não é suficiente para esconder fada de ar fresco. “Toda a cidade vivia africanos. A União Europeia sabe bem ponto de passagem para o Velho Con- um objetivo muito mais prosaico: con- disso”, suspira, com o pensamento como convencer seus “parceiros”: tinente. Em 2016, cerca de 400 mil mi- ter, se necessário à força, o fluxo de mi- longe, Mahaman Sanoussi, um conhe- quantias colossais (mais de 2 bilhões grantes teriam passado por ali, a ca- grantes para a Europa (ver boxe). cido ativista local. “A migração era líci- de euros) foram prometidas a gover- minho do Magreb2 e, depois, para Parte dos fundos deve ser usada ta. Os transportadores estavam bem nos sem dinheiro para “acompanhá- muitos deles, rumo ao Mediterrâneo. para a reconstrução do Estado e para o estabelecidos. Eles pagavam seus im- -la” na retenção daqueles que queriam Assim, em 2015, a União Europeia ele- controle das fronteiras: fortalecimen- postos como qualquer empresário. A tentar a grande viagem. Um Fundo Fi- geu a cidade como um dos principais to das forças de segurança nigerianas Lei 2015-36 mudou tudo”. duciário de Emergência “em prol da alvos de sua política de contenção mi- pela criação de uma unidade de elite Descrita como um flagelo no norte estabilidade e da luta contra as causas gratória. País mais pobre do mundo, contra as migrações e implementação do Níger, a lei de 26 de maio de 2015 profundas da migração irregular e do de acordo com o Programa das Nações de uma equipe conjunta de investiga- “sobre tráfico ilícito de migrantes” tor- fenômeno das pessoas deslocadas na Unidas para o Desenvolvimento, o Ní- ção para perseguir “redes criminosas nou ilegal, do dia para a noite, o que África” financia muitos projetos no ger enfrenta muitas ameaças em suas ligadas à imigração irregular”. Criada antes era um comércio como qualquer contexto do que a Comissão Europeia fronteiras: Boko Haram no sudeste, em 2012, a Missão Civil de Reforço das outro, colocando na prisão dúzias de chama de uma “cooperação sob medi- grupos armados malineses no noroes- Capacidades da União Europeia (Eu- jovens do país. O ano de 2015 foi aquele da”1 com a Nigéria, o Senegal, a Etió- te, milícias tubus no norte. O Estado cap-Níger) também foi chamada a em que a União Europeia construiu pia, o Mali e o Níger. liderado por Mahamadou Issoufou, contribuir, por meio de uma antena um muro invisível para barrar os mi- aliado da França, precisa de dinheiro e instalada em Agadèz. Desde 2015, sua grantes vindos do sul; o ano da Agenda PRINCIPAL DESTINO DA “AJUDA” DE BRUXELAS de apoio militar. O Fundo Fiduciário “unidade de migração” organiza trei- Europeia da Migração e da cúpula de Fazendo fronteira com a Argélia e de Emergência alocou ali, em três namentos para as forças de segurança, La Valette. Reunidos na capital malte- com a Líbia, o Níger ocupa um lugar anos, mais do que em qualquer outro além de distribuir equipamentos. Ofi- sa, os 28 membros do bloco dedica- central na estratégia europeia. Após a país, 266,2 milhões de euros. O discur- cialmente, os policiais vindos dos qua- ram-se a pensar em uma forma de ex- liquidação do regime de Muamar Ka- so oficial da ajuda ao desenvolvimento tro cantos da Europa não intervêm em 32 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

campo: eles coletam informações e Felipe González Morales, após uma pre foi um lugar de passagem para o A cada partida, as agências tinham transmitem conhecimento técnico. missão no Níger.3 sal, para os escravos, para o gado... “Em de dar à polícia um roteiro com o no- A elaboração da Agenda Europeia da Para a Europa, a política é um su- 2002, criei uma agência de viagens”, me e a nacionalidade dos passageiros. Migração e a adoção da Lei 2015-36 fo- cesso. Mas a que preço? Segundo a Eu- conta Boss. “Tínhamos um escritório O governo chegou até a incentivar os ram praticamente simultâneas. Dentro cap-Níger, as chegadas à Itália caíram na rodoviária. Na época, os migrantes antigos rebeldes tuaregues e tubus, do governo nigerense, ninguém nega: a 85% em três anos. De 2016 para 2018, o vinham de ônibus, depois partiam pa- que haviam pegado em armas na dé- lei foi inspirada, se não imposta, pela número de migrantes fazendo parada ra Dirkou em caminhões basculantes. cada de 1990, a se lançar nessa ativida- Europa – aliás, ela foi parcialmente re- em Agadèz passou de 350 para menos Dali, pegavam um 4×4 para chegar à de, para abandonar de vez a guerra. digida por funcionários franceses. de cem por dia. No posto de Séguédi- Líbia.” Ao longo dos anos, os clientes “Eles tinham veículos, não tinham “Houve pressões, é verdade”, admite ne, localidade situada no deserto entre foram se tornando cada vez mais nu- trabalho, conheciam as estradas...”, que o general Mahamadou Abu Tarka, Dirkou e a fronteira com a Líbia, o nú- merosos. Boss expandiu sua rede: seus argumenta Mohamed Anako. Tendo presidente da Alta Autoridade para a mero de pessoas registradas passou de contatos o procuravam da Nigéria, de se tornado presidente do conselho re- Construção da Paz (HACP), órgão liga- 290 mil, em 2016, para 33 mil, em 2017. Gana, da Gâmbia, do Senegal e de Bur- gional de Agadèz, aquele que fora um do à presidência e responsável pelo mo- No entanto, como frequentemente kina. Depois de receber os viajantes, dos líderes da primeira rebelião tuare- nitoramento da implementação da lei. ocorre em tempos de proibição, a ativi- ele cuidava de tudo até a partida deles: gue (1991-1995) imaginou essa recon- “Mas já pensávamos nisso havia algum dade não parou: as pessoas simples- documentos, hospedagem, alimenta- versão quando dirigia a HACP. “Então tempo. Desde 2012, a explosão dos flu- mente arrumaram um jeito de desa- ção. “Era uma atividade de transporte os incentivamos a entrar nesse negó- xos migratórios tornou-se uma grande parecer dos radares, o que torna bastante comum. Tínhamos de esta- cio. Tomamos medidas para ajudá-los preocupação para nós. Nós a toleramos incerto qualquer cálculo dos fluxos. belecer uma relação de confiança entre a regularizar os veículos e a se regis- no início, principalmente porque era De acordo com um pesquisador que os clientes, seu ‘padrinho’ no país, que trar. Tudo era legal e, além disso, eles uma forma de nossos cidadãos ganha- vive no Níger e acompanha de perto a nos contatava, e nós. Tínhamos de fa- nos informavam sobre o que estava rem a vida. Mas ela era uma fonte de trá- mudança das rotas de migração (e que zer as coisas corretamente, garantir acontecendo no deserto.” ficos diversos. Quando a Europa disse: pediu anonimato), “foram principal- que os clientes chegassem com segu- As dificuldades começaram após a ‘Vamos lhe dar o dinheiro’, aproveita- mente os ‘pequenos’ transportadores rança e saúde, se quiséssemos ter ou- queda de Kadafi, em 2011. O “guia” fazia mos a oportunidade.” Como adverte que foram afetados; os ‘grandes’, que tros”, explica, ciente de que a imagem o trabalho da guarda costeira europeia. um ditado local: “Quando você está no têm contatos políticos e meios para su- dos “passadores” mudou. Era quase impossível chegar ao mar pa- fundo de um poço, aceita qualquer coi- bornar as forças de segurança, conti- ra alcançar o Velho Continente. Em sa que venha de cima, até uma cobra”. nuam”. Nesse país minado pela cor- compensação, podia-se ficar na Líbia Agora, qualquer pessoa que ajude rupção, algumas dezenas de milhares Como adverte por quanto tempo se desejasse. Não fal- um migrante a entrar ilegalmente no de francos CFA (10 mil francos CFA = tava trabalho, e ele era bem remunera- território, ou a sair dele, em troca de al- R$ 65) por passageiro bastam para um ditado local: do. “Quando Kadafi caiu, as portas da gum benefício financeiro ou material comprar o silêncio das patrulhas. “Quando você está Europa se abriram. Foi como uma lufa- pode ser punida com prisão de cinco a no fundo de um poço, da de ar. Começaram a chegar mais e dez anos e multa de até 5 milhões de PASSAGEIROS ABANDONADOS NO DESERTO aceita qualquer coisa mais migrantes”, lembra Boss. O núme- francos CFA (7.630 euros). Oferecer O visível tornou-se invisível e, por- ro de migrantes em trânsito na cidade ajuda durante a estadia – abrigar, ali- tanto, incontrolável: modificadas para que venha de cima, teria quadruplicado entre 2013 e 2016. mentar, fornecer roupas – resulta em escapar dos controles, as estradas tor- até uma cobra” Nesse último ano, a polícia de Agadèz penas de dois a cinco anos de prisão. naram-se mais perigosas; os “guetos”, contabilizou cerca de setenta “guetos”. Desde 2016, cerca de trezentas pes- grandes casas onde os migrantes se Para Boss, foi uma época de con- soas, motoristas ou “passadores”, fo- abrigam e se alimentam em Agadèz, corrência. Muitos nigerenses que vi- ram presas, e mais de trezentos veícu- tornaram-se clandestinos, às vezes Tudo era organizado em detalhes. viam na Líbia fugiram da guerra e do los foram apreendidos. parecendo uma prisão cujos ocupan- Quando os candidatos ao exílio chega- caos e foram para o transporte de mi- Os defensores da lei têm o cuidado tes não podem sair sem correr o risco vam à barreira de entrada da cidade, grantes. Os recém-chegados não res- de especificar que ela incrimina os de serem pegos; os preços triplicaram; pagavam uma taxa informal aos poli- peitavam todas as regras estabeleci- passadores, não os clientes. Mas, para quando surpreendidos pela aproxima- ciais. Uma vez na rodoviária, ficavam a das pelos veteranos. “Bandidos sem fé estes, que muitas vezes deixaram tudo ção de policiais, transportadores aban- cargo das agências. Homens os condu- nem lei”, segundo um mediador so- na esperança de ingressar na Líbia, na donam passageiros, às vezes crianças, ziam ao seu “gueto”.6 Quando saíam, cial, que não hesitavam em extorquir Argélia e até na Europa, a lei parece no deserto.4 Para os habitantes da re- pagavam novamente uma taxa na saí- os migrantes em pleno deserto, para muito com uma punição. Qualquer gião, a vida cotidiana se deteriorou. Se- da da cidade, que retornava para o mu- abandoná-los diante do mais leve pro- pessoa que não consiga provar sua na- gundo vários estudos, mais da meta- nicípio. A taxa de 1.100 francos CFA (R$ blema ou vendê-los às milícias – que os cionalidade nigerense e esteja viajando de das famílias de Agadèz vivia da 7,10) por pessoa era uma pequena for- extorquiam novamente – assim que ao norte de uma linha que vai de Aga- migração; quase 6 mil empregos di- tuna. Para o município, as receitas po- chegavam à Líbia. Foram esses crimes, dèz a Dirkou – ou seja, várias centenas retos dependiam dela: passadores, deriam variar de 3 milhões a 7 milhões somados ao tráfico de produtos ilícitos de quilômetros distante das fronteiras coxers (intermediários), proprietários de francos CFA (R$ 19,5 mil a R$ 45,5 (drogas, tabaco, armas), que levaram com a Argélia e a Líbia – é considerada de “guetos”, motoristas. E milhares de mil) por semana. Esse dinheiro ajudou as autoridades a reagir e a cooperar candidata à imigração clandestina. outros eram indiretamente beneficia- a financiar muitos projetos. com a União Europeia. Uma simples presunção basta para dos: cozinheiros, comerciantes, moto- As regras eram as mesmas em to- Assim como a casa de Boss, o “gue- mandá-la de volta para o sul do país, às ristas de táxi, bem como suas famílias. dos os lugares, e os preços também: to” de Mohamed D., na periferia da ci- vezes após passar alguns dias na pri- Mohamed Abdul Kader é uma das para chegar à Líbia, era necessário pa- dade, esvaziou-se. Nas paredes do pá- são. “Na realidade, a aplicação da lei pessoas atingidas. No bairro situado gar 150 mil francos CFA (R$ 950). É ca- tio há vestígios da passagem de clientes provocou uma proibição de fato de próximo ao centro histórico, ele é cha- ro para um africano. Para um nigeren- antigos: um nome, um número de tele- qualquer deslocamento ao norte de mado de “Boss”. Com 48 anos, nascido se, é uma fortuna. “Eu ganhei muito fone. “Não tenho mais nada”, resmun- Agadèz [...]. Além disso, a falta de clare- em Agadèz, Boss viveu por um tempo dinheiro”, confirma Boss. “Nas melho- ga o antigo passador. “Meus dois veí- za do texto e sua aplicação repressiva – na Líbia. Ele começou a abrigar mi- res épocas, havia quinze pessoas tra- culos foram apreendidos. Passei seis em vez da tentativa de proteger as pes- grantes no fim dos anos 1990. O “negó- balhando comigo. Por semana, eu meses preso. Não tenho mais renda.” soas – levaram à criminalização de cio” estava engatinhando. As estradas mandava entre 400 e 450 migrantes O dinheiro que ganhou durante a épo- qualquer migração, pressionando os para a Mauritânia e para o Marrocos para a Líbia. Ganhávamos 5 milhões ca de abundância? “Comi. Toda a mi- migrantes a se esconder, o que os torna via Mali tinham acabado de ser fecha- de francos CFA [R$ 32,5 mil] por sema- nha família comeu”. mais vulneráveis a abusos e a violações das por causa da rebelião tuaregue.5 na”. Às segundas-feiras, dia de com- A frustração é ainda maior pelo fato dos direitos humanos”, constatou em Assim, a rota do Níger se impôs natu- boio, os bancos e as agências de trans- de que a lei chegou sem dar aviso. Nin- outubro de 2018 o relator da ONU para ralmente: localizada na intersecção de ferência de dinheiro ficavam lotados. guém em Agadèz sabia o que estava os Direitos Humanos dos Migrantes, várias rotas comerciais, Agadèz sem- O mercado era uma festa. acontecendo. “Era uma segunda-feira”, JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 33

lembra um passador. “Todos os veículos carregados com migrantes foram para- MIGRANTES INVISÍVEIS dos na saída de Agadèz. Pensamos que havia algum problema de segurança no oje não vemos mais os migrantes. ratórios relacionados ao clima. Quem tem meio do areal. “O contrabandista disse deserto. Mas não. Os motoristas foram HMas eles continuam lá.” Na sede da problemas de saúde não se atreve mais a que outro veículo viria nos pegar. Mas jogados na cadeia e os veículos foram associação Alternative Espace Citoyen procurar ajuda. Ibrahima F., um senegalês nunca veio. Acabamos encontrando outra apreendidos. Só depois nos explicaram [Alternativa Espaço Cidadão], da qual é de 24 anos, conta que escapou por pouco pessoa. Levou dez dias para chegarmos à a lei.” Anako, que não se opõe à proibi- coordenadora regional em Agadèz, Nana da morte em um dos “guetos” (locais de fronteira.” Do lado da Líbia, seu grupo foi ção das atividades, lamenta que as auto- Hekoye lamenta as consequências da Lei hospedagem) da cidade. “Éramos muitos atacado por uma milícia árabe. “Quem ti- 2015-36, que penaliza o tráfico de mi- e estávamos muito apertados. Nunca tí- nha dinheiro conseguiu continuar a jorna- ridades não tenham levado em conta a grantes. “Eles já foram vítimas de violên- nhamos comida suficiente. Eu fiquei da. Eu não tinha mais nada. Eles me leva- situação socioeconômica da região cia; tornaram-se presas fáceis para os doente. Foi a Cruz Vermelha que me sal- ram para uma casa em Sebha, onde fiquei nem preparado sua conversão econô- passadores; seus documentos são con- vou.” Isso foi em 2017. Ele conseguiu vol- trancado por dez meses até que um hu- mica. “Teria sido necessária uma tran- fiscados; recebem comida estragada; são tar à Líbia, de onde fugiu depois de ser manitário me ajudou a sair.” sição para encontrarmos uma alterna- alojados em lugares insalubres; mulheres preso e torturado por uma milícia. Os números fornecidos pela OIM, em- tiva. Os projetos financiados pela União são estupradas. O fato de se tornarem Outra consequência direta da lei: cada bora parciais, ilustram a mudança da si- Europeia podem até dar resultado, mas clandestinos e não poderem mais se vez mais migrantes passam pelo Mali, ape- tuação: em 2016, a organização resgatou em quantos anos? O problema é que as queixar a ninguém os enfraqueceu. Além sar da insegurança na área,1 depois pela 147 migrantes em perigo no deserto da pessoas precisam de trabalho hoje. E disso, os preços explodiram.” Desde que a Argélia, Marrocos e Espanha. Na estrada, Nigéria; em 2018, atendeu 9.419; apenas não há nenhum.” lei entrou em vigor, custa cerca de 500 os passadores, mais bem organizados, pe- em janeiro de 2019, foram 1.145. O nú- Na década de 1980, Agadèz recebia mil francos CFA (R$ 3.250) voltar à Líbia, gam caminhos indiretos. “Isso significa que, mero de pessoas mortas nas estradas da contra 150 mil (R$ 950) antes. quando partem, eles não sabem nem se Argélia e da Líbia subiu de 71, em 2015, milhares de turistas vindos da Europa Os migrantes precisam se mudar cons- terão água no caminho [no deserto]”, des- para 427, em 2017. E são só aquelas cujo e da América para conhecer o deserto tantemente para não serem pegos. Em taca um alto funcionário da Organização corpo foi encontrado. Para Hekoye, “com do Ténéré, as dunas de Bilma e as mon- vez de passarem dois ou três dias em Internacional para as Migrações (OIM). certeza o número é muito maior”. (R.C.) tanhas de Aïr. A cidade vivia então no Agadèz antes de seguirem para o norte, Os passadores tornaram-se todo-po- ritmo dos grandes aviões que pousa- eles podem acabar esperando até dois ou derosos. Youssouf N., um malinês que 1 Ler “Au Mali, la guerre n’a rien réglé” [No Mali, a vam na pista de seu aeroporto interna- três meses. Isso os expõe a doenças, es- conseguiu chegar à Europa, conta ter si- guerra não resolveu nada], Le Monde Diploma- cional. Mas os visitantes desaparece- pecialmente distúrbios digestivos e respi- do abandonado na estrada de Dirkou, no tique, jul. 2018. ram após a segunda rebelião tuaregue, em 2007, com a classificação da cidade como zona vermelha (“formalmente desaconselhável”) pelo Ministério das ram tanto dinheiro, foi por causa da Chade e a Líbia. Em 2016, uma rebelião grantes clandestinos está se tornando, Relações Exteriores da França. Quanto amplitude do fenômeno e do grande tubu, nascida nas províncias de Kawar no Níger, uma fonte potencial de renda às minas de urânio, elas estão em de- número de clientes”. e Manga, a leste de Agadèz, reivindica- para aqueles que antes os ajudavam. clínio, como todo esse setor.7 Antigo passador, Bachir Amma ago- va a restituição dos veículos apreendi- Com o Fundo Fiduciário de Emer- ra preside o Comitê de Ex-Prestadores dos por causa da lei. *Rémi Carayol é jornalista. gência, a União Europeia financiou um de Serviços da Migração, associação A “porta do deserto”, no entanto, programa de reintegração, oferecendo criada em 2016 para intermediar a rela- não acabou com as migrações. Por um 1 “Managing migration in all its aspects: progress under the European Agenda on migration” [Gestão 8 milhões de euros (5% dos fundos dis- ção entre os provedores de fundos, as curioso efeito de pêndulo, a cidade, da migração em todos os seus aspectos: progres- poníveis) aos outrora envolvidos no se- autoridades e as pessoas outrora sus- outrora centro de passagem para os sos no âmbito da Agenda Europeia para a Migra- tor da migração. Chamado de Plano de tentadas pelas atividades relativas à mi- fluxos que iam do sul para o norte, tor- ção], comunicação da Comissão Europeia, Bruxe- las, 4 dez. 2018. Ação de Impacto Econômico Rápido gração. Em seu escritório, uma loja no nou-se o principal ponto de trânsito 2 Jérôme Tubiana e Claudio Gramizzi, “Lost in Trans- em Agadèz, seu nome não corresponde estádio de futebol de Agadèz, onde trei- para os que fazem a viagem na direção -nation. Tubu and other armed groups and muito à verdade. Cada “antigo presta- nam diariamente as equipes do clube oposta. Em 2016, a Organização Inter- smugglers along Libya’s Southern border” [Perdi- do na transnação. Contrabandistas, tubus e outros dor de serviços” recenseado que tem que ele mesmo dirige, Amma admite nacional para as Migrações (OIM) grupos armados na fronteira sul da Líbia], Small seu projeto de conversão validado re- que houve abusos na gestão dos pedi- criou, na periferia norte da cidade, um Arms Survey, Genebra, dez. 2018. Disponível em: cebe uma ajuda de 1,5 milhão de fran- dos: “Alguns candidatos nem eram centro de acolhimento para migrantes . 3 “Déclaration de fin de mission du rapporteur spé- cos CFA (2.290 euros). Mas o processo é prestadores de serviço da migração. expulsos da Argélia e da Líbia. Em cial des Nations unies sur les droits de l’homme lento: apenas 400 dos 5 mil casos foram Eles tinham relações, eram de boas fa- 2017, o Alto Comissariado das Nações des migrants, Felipe González Morales, lors de sa tratados. Quase 1.500 foram reprova- mílias, e souberam se aproveitar do di- Unidas para os Refugiados (Acnur) visite au Niger (1er-8 octobre 2018)” [Declaração final de missão do relator especial das Nações Uni- dos, inclusive os dos proprietários de nheiro disponível”. A União Europeia construiu um acampamento, 12 quilô- das para os Direitos Humanos dos Migrantes, Feli- “guetos” e veículos. A União Europeia perturbou a economia local e causou metros ao sul da cidade, para acomo- pe González Morales, durante visita ao Níger (1º-8 os considera privilegiados – de fato, frustração. “Fomos enganados”, la- dar cerca de 2 mil sudaneses que pe- de outubro de 2018)], Alto Comissariado das Na- ções Unidas para os Direitos Humanos, Genebra, eles ganharam, durante anos, somas menta. “Prometeram que o dinheiro dem asilo após fugirem de abusos na 8 out. 2018. Disponível em: . colossais, se comparado com o padrão chegaria rápido. Três anos depois, 371 Líbia. Sua chegada repentina criou 4 Fransje Molenaar, Jérôme Tubiana e Clotilde Wa- de vida dos nigerenses –, ou, pior, cri- projetos foram financiados. Para nós, tensões em Agadèz. “Fazem tanto por rin, “Caught in the middle. A human rights and pea- ce-building approach to migration governance in minosos. Para as autoridades da Eu- isso não é reconversão da economia, é esses migrantes, mas nós, que perde- the Sahel” [Preso no meio do caminho. Uma abor- cap-Níger, deve-se ter em mente que a apenas uma ajuda de emergência. Eles mos nosso emprego, não recebemos dagem de direitos humanos e construção da paz atividade é “antes de mais nada tráfico oferecem 1,5 milhão de francos CFA a nada. Onde está a justiça?”, lamenta para a governança da migração no Sahel], Institut Clingendael, Haia, dez. 2018. Disponível em: de seres humanos” e que as pessoas pessoas que ganhavam 5 milhões por Mohamed el-Hadi, ex-coxer. . que vivem disso “bebem as lágrimas de semana! Isso é ridículo. Como espe- Antes recebidos de braços abertos, 5 Ler Philippe Baqué, “Des Touaregs doublement seus irmãos”. Mas a realidade vivida ram que aceitem isso?” os migrantes se tornaram uma fonte de dépossédés” [Tuaregues duplamente expropria- dos], Le Monde Diplomatique, fev. 1993. pelas populações é muito diferente, divisão: despertam inveja e preocupa- 6 Cf. Julien Brachet, “Migrants, transporteurs et mesmo considerando que haja crimi- ABERTURA DE UM CAMPO DA ONU ção. Círculo vicioso: a lei os dissuade agents de l’État: rencontre sur l’axe Agadez-Se- nosos entre os antigos passadores. O O que será daqueles que não têm de passar para a Líbia, ao mesmo tem- bha” [Migrantes, transportadores e agentes do Estado: encontro no eixo Agadèz-Sebha], Autre- pesquisador já citado esclarece que os emprego, especialmente os jovens? O po que os impede de se estabelecer na part, n.36, Marselha, abr. 2005. passadores ganham, realmente, muito banditismo já aumentou: assaltantes região de Agadèz, pois a população lo- 7 Ler Juan Branco, “Aux sources du scandale Ura- dinheiro, mas que as fortunas acumu- de estradas extorquem os migrantes, cal teme ser acusada de tráfico. Antigos Min” [Na fonte do escândalo UraMin], Le Monde Diplomatique, nov. 2016. ladas são resultado do agravamento da antigos passadores convertem-se ao passadores começaram a perseguir os 8 Cf. Fransje Molenaar e Nancy Ezzedinne, “Sou- situação econômica e política no Sah- tráfico – abundante – de drogas; ou- migrantes em nome da União Euro- thbound mixed movement to Niger. An analysis of el, e não de uma extorsão vergonhosa tros vendem seus serviços aos muitos peia. Como na Líbia, para cujas milí- changing dynamics and policy responses” [Movi- mento misto em direção ao sul do Níger. Uma aná- dos migrantes: “Os preços estavam grupos armados que pontilham a “zo- cias a Europa terceiriza a vigilância de lise das dinâmicas de mudança e das respostas corretos perante a lei. Se eles ganha- na das três fronteiras” entre o Níger, o sua fronteira,8 a perseguição aos mi- políticas], Institut Clingendael, dez. 2018. 34 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

CAEM OS PEQUIS, PASSAM-SE OS TEMPOS, SURGEM OS AVANÇOS, OS DESAFIOS E O 2019 DO CAOS Relato da vivência na universidade pública de quem não é um idiota útil POR ELVIO MARQUES*

ra outubro de 2008. Os pequis, gundos estão preocupados apenas pública do Estado, porém uma mino- pouco a pouco. “Sem terra, sem nossa frutos típicos do Cerrado, já es- com os conteúdos escolares – portu- ria conseguia. “Universidade federal é cultura”, falava meu avô Manoel tavam caindo do pé com cheiro guês, matemática, física e a tal da quí- para quem estudou em escola boa”, di- Pankararu. Minha mãe – Pankararu – e sabor marcantes, sol forte – 40 mica, tão complexa –, os primeiros zia minha avó materna, à sombra de casou-se com meu pai, que é gaúcho e E°C –, como é de costume por aqui. Esse precisam lidar com estruturas físicas uma mangueira. Felizmente, a frase agricultor familiar. “Então você não é é o Tocantins, o mais novo estado do escolares degradadas e professores de- da minha avó, com o passar dos anos, índio, já que seu pai é gaúcho?”; “Então Brasil, com apenas trinta anos, locali- sestimulados pelos baixos salários, já não era mais uma verdade absoluta. você não é índio porque nasceu na ci- zado no Norte do país, no centro geo- sem falar nas realidades periféricas. Graças às horas e horas em frente aos dade?”. Equivocadamente me pergun- désico, antigo norte goiano. Nesse ce- Eu vi muitos estudarem com fome, ou- livros, com direito a fazer promessa tam isso diariamente. Darcy Ribeiro nário estava eu, jovem, estudante, com tros vivenciarem violência em casa. para Nossa Senhora de Natividade foi sábio e incisivo ao dizer: “No Brasil, sonhos imensos, inclusive de ter uma Meninas trocavam os livros pela gravi- (padroeira do Tocantins), e especial- todo mundo é índio, exceto quem não formação acadêmica. E via na univer- dez indesejada, os meninos trocavam mente aos programas de inclusão às é”, reforçando que o grande problema é sidade pública do estado mais quente a sala de aula pelo trabalho. Era evi- universidades, uma parcela significa- provar quem não é indígena, visto que da federação a possibilidade de tornar dente que o aprendizado deles estava tiva da população iniciou a graduação. a sociedade brasileira foi formada ini- meus sonhos uma história real de comprometido. Problemáticas enfren- Alguns em faculdades particulares, cialmente por indígenas que aqui já es- conquistas. tadas em escolas públicas que dificil- por meio do ProUni e do Fies. Outros, tavam, sem desmerecer as outras co- Antes de continuar essa história, mente são vistas em escolas particula- por meio do sistema de cotas para in- munidades importantíssimas na preciso afirmar que há um consenso res, isso é fato. O que interfere também dígenas e quilombolas. Como foi meu constituição da população brasileira, no jornalismo e na antropologia de no acesso à graduação. caso. Você deve estar se perguntando como os africanos. Entretanto, a socie- que ninguém melhor para falar sobre se eu sou indígena ou quilombola. Sou dade nega, não reconhece e rejeita a determinada condição sociocultural Pankararu do Tocantins. ideia de sermos brasileiros e ao mesmo do que aquele que vive imerso nessa Figueirópolis é também onde vi- tempo indígenas. Sou, portanto, a pro- realidade. Por esse motivo relato aqui A escolarização vem os Pankararu. Infelizmente, sem va desse hibridismo cultural, da diver- minha própria história e as percep- de muitos era precária, uma demarcação do território indíge- sidade, do conhecido termo “miscige- ções que tive durante a trajetória aca- já que as escolas na. E, por isso, poucos sabem ou pou- nação” – prefiro usá-lo a apenas dêmica, da graduação à pós-gradua- cos os reconhecem. O Tocantins pos- “descendente de indígenas”, visto que ção. Penso que, talvez, eu seria o indígenas sofriam sui, em sua totalidade, onze etnias, isso ignora o fato de “ser”. Indígena é retrato de uma parcela representativa (e ainda sofrem) sendo os Akwe-Xerente, Apinajé, primeiramente autoidentificação, va- de alunos, que perpassaram escolas com o descaso e a falta Krahô, Krahô-Kanela, Karajá, Javaé, lorização, pertencimento e respeito. públicas, vindo do interior do Brasil, de investimentos Xambioá, além dos Avá-Canoeiros, Em resposta à segunda pergunta, é de uma diversidade sociocultural e Atikum, Kanelas do Tocantins e preciso entender de uma vez por todas numa vontade de mudar determinada Pankararu, originários de outros esta- que, além de ser um direito vivermos realidade por meio da educação. Bus- dos. Vale lembrar que cada uma dessas na cidade, nas aldeias ou em qualquer co, por fim, refletir os avanços e os de- Ora, se a educação básica não é de etnias tem suas expressões culturais lugar, somos ainda brasileiros. Como já safios da universidade pública brasi- qualidade, dificilmente terão o mesmo próprias e difere uma das outras. Pro- escrito, temos o direito de ir e vir (acres- leira. E, claro, a triste situação das acesso daqueles que tiveram bons en- va de que índio não é tudo igual. E o cento morar), resguardado pela Cons- universidades federais atualmente. sinos. Nesse contexto, a disputa por Tocantins também possui indígenas – tituição Federal de 1988. As terras dos Volto à história. Em 2008, quando uma vaga nos cursos de graduação é, frase crítica àquele termo preconcei- indígenas foram e estão sendo brutal- aos 17 anos me preparava para o vesti- quase sempre, desigual. Por esse e por tuoso “No Tocantins ou Norte do país mente invadidas, mas mesmo assim bular da Universidade Federal do To- outros motivos, são de extrema impor- não tem só indígenas”, que desconsi- não podemos dividir o mesmo espaço cantins (UFT), eu ainda morava na pa- tância os programas educacionais de dera a existência dos povos nativos. com os não indígenas? Repense, isso cata cidade de Figueirópolis, uma inclusão às universidades, como o sis- Minha comunidade veio do extre- pode ser um tanto preconceituoso. cidade interiorana com pouco mais de tema de cotas, o ProUni e o Fies, im- mo sertão de Pernambuco, expulsa por Peço desculpas por me alongar 5 mil habitantes no sul do Tocantins, a plantados e efetivados a partir da pri- fazendeiros e posseiros de suas terras nesse assunto. Mas vejo como extre- cerca de 250 km da capital, Palmas. Eu meira década de 2000. Falarei mais originárias, além da falta do que comer mamente relevante para este texto. A e a maioria dos meus colegas da escola sobre eles posteriormente. E, que fique ou beber, como os outros milhares de UFT foi a primeira entre as universida- pública almejávamos dias melhores, o claro, a educação das escolas públicas nordestinos. Meu avô, tios e parentes des públicas brasileiras a incluir o sis- que ia muito além do desejo de apenas precisa melhorar, sim! Mas vale refle- vieram para Figueirópolis e Gurupi há tema de cotas. Uma luta que começou ter uma profissão. Ao mesmo tempo tí- tir: o que faremos com todos os alunos mais de setenta anos, quando ainda com representantes da União dos Es- nhamos de lidar com os medos e as in- que não tiveram acesso ao ensino de éramos o antigo norte goiano. Vivemos tudantes Indígenas do Tocantins certezas da juventude. qualidade ou passaram por inúmeras numa luta e espera constantes por de- (Uneit), iniciada em 2001, mas que se Reconheço que pré-vestibulandos dificuldades sociais? Não podemos marcação da nossa terra indígena e pe- efetivou apenas em 2004, por uma re- de escolas públicas e particulares têm simplesmente deixá-los sem acesso. la sobrevivência nos centros urbanos. solução que reservou 5% de vagas no algo em comum: estão sempre mergu- Volto à história, ainda em 2008. Vá- Por vivermos nos centros urbanos de vestibular para indígenas. E, em 2013, lhados em inúmeras leituras e releitu- rios colegas da pacata Figueirópolis Figueirópolis e Gurupi, nossas tradi- destinou mais 5% das vagas para qui- ras. A diferença é que, enquanto os se- tentavam uma vaga na universidade ções culturais foram sendo esquecidas lombolas. De lá para cá, o sistema de JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 35

Bolsas de permanência aos acadêmi- cos de escolas públicas, quilombolas, indígenas ou de baixa renda. Porém, quando tudo parecia ir bem, eis que o caos se instala. Dois mil e dezenove chega com tantas notícias ruins para a educação. O Ministério da Educação (MEC) anuncia, em abril, corte nos repasses para todas as uni- versidades federais. E as obras em an- damento? Aquelas necessárias? E o principal, as bolsas que ajudam na per- manência de tantos alunos com vulne-

© Daniel Kondo Daniel © rabilidade social? Como ficarão meus parentes: retornarão às suas casas, al- deias e comunidades? São tantos ques- cotas se tornou realidade. Além disso, outro programa de inclusão acadêmi- versidade (em 2001), e com poucos tionamentos, medos. Acadêmicos, graças ao sistema, alunos como eu pu- ca, o Programa Institucional de Moni- exemplares na biblioteca, nos cursos de professores, simpatizantes da educa- deram ter uma oportunidade maior na toria Indígena (Pimi), passei a ser mo- Medicina e Engenharia Civil a realida- ção superior foram às redes, com pro- concretização do sonho da graduação. nitor e a ajudar no reforço escolar de de era bem diferente. Eram considera- testos em todo o país. E no Tocantins As barreiras da desigualdade estavam acadêmicos. No entanto, isso ajudou dos internamente os mais beneficia- não poderia ser diferente. “Não somos começando a se quebrar. apenas em parte, não na totalidade, dos, com laboratórios novos, salas de idiotas úteis, ok, idiota inútil!?”, era o Volto à história, agora em 2009, pois, como escrevi, não havia apenas aulas estruturadas e os acervos biblio- principal grito de guerra. quando efetivamente eu já estava na dificuldades no aprender, mas tam- gráficos mais completos da universida- E o tempo do pequi? Tudo indica graduação e me apresentava como in- bém aquelas problemáticas sociais que de. Falta de equidade sempre foi notá- que este ano deve ter um florada bem dígena para minha turma de Comuni- certamente influenciam no ensino- vel entre os cursos de graduação. mais tarde do que o normal e o gosto cação Social – Jornalismo. Naqueles -aprendizagem. Ou seja, para muitos, Formei-me em 2013. A dedicação não será o mesmo de tantos anos, mas primeiros meses de graduação, os viver na cidade, sem trabalho, sem foi imensa durante os anos. As lutas fo- amargo, como o que estamos vivendo equívocos, as “piadinhas”, os questio- uma renda, em meio a preconceitos ram diárias. A festa do término durou nos tempos difíceis. namentos preconceituosos surgiam a (até mesmo na academia), os distancia três dias. Era outubro, lá se ia mais Os problemas nas universidades todo tempo. Ouvi de outros parentes das universidades, da graduação. Por- uma temporada do pequi. Deixava pa- públicas sempre foram frequentes, co- indígenas: “É melhor não deixar claro tanto, aprendi nesse tempo que de na- ra trás os mesmos problemas encon- mo se fosse a temporada do pequi (que que você é índio”. Tínhamos de viver, da adiantava o acesso à universidade trados em 2009. acontece anualmente entre outubro e muitas vezes, num casulo pela sobrevi- se as políticas públicas universitárias Tornei-me jornalista. Trabalhei des- fevereiro). No entanto, neste ano de vência, já que a universidade pública ou governamentais não ajudassem na de então, de sol a sol, da produção ao fe- 2019 estamos vendo nossos direitos a não estava ou muitas vezes não está permanência e no fim da evasão. chamento de um jornal, de atendimen- uma educação superior, de acesso a preparada para receber essa pluralida- Há muitos professores qualificados to a construção de briefing publicitário. todos e de qualidade, serem devasta- de social. O corpo administrativo e o em suas áreas técnicas, mas a estrutu- Nesse tempo, resolvi fazer uma pós- dos. Triste. É como não ver a florada do docente dificilmente sabem nos incluir ra da universidade pública é precária, e -graduação, em 2015, e novamente por pequi (sem flor, sem fruto). Estamos no processo de ensino-aprendizagem. a UFT me provou isso. Nos quatro anos meio de um sistema de cotas para indí- diante de um governo que não está E, como a maioria dos ambientes so- da minha graduação (segundo semes- genas. Lá estava eu, retornando para a preocupado em solucionar problemá- ciais, as universidades trazem também tre de 2009 ao segundo semestre de UFT, vendo as mesmas dificuldades ticas recorrentes; estamos vendo um consigo aqueles que insistem em achar 2013), o que vi foram laboratórios defa- deixadas em 2013, além de colegas com descaso com as universidades, com que esses grupos e suas particularida- sados, uma biblioteca com poucos as mesmas ideias equivocadas sobre os enormes cortes que podem paralisar o des não existem e os negam. Depois de exemplares, salas de aula sem estrutu- povos indígenas. Mudam-se os tempos ensino, como já anunciado por insti- tamanha luta pelo acesso, o problema ra física adequada. A era da informáti- e os lugares, no entanto as problemáti- tuições como a UFT, que prevê a au- então era a permanência e a sobrevi- ca já estava a todo vapor e poucos sa- cas permanecem. O coitado do pequi sência de água e energia nos próximos vência na universidade. bíamos, na prática, de jornalismo sobrevive em meio às queimadas e ao meses, nos campi de todo o estado. Nesse meio-tempo, já me deparava on-line ou telejornalismo. desmatamento ilegal do Cerrado. As manifestações continuarão. Re- também com as dificuldades de ou- Nesse tempo de graduação, passei Em 2016, comecei o mestrado em sistiremos, como os povos indígenas tros indígenas. A escolarização de por três greves que atrasaram a con- Comunicação e Sociedade. Adivinha, de todo o país, desde a invasão dos muitos era precária, já que as escolas clusão do meu curso de quatro anos, na mesma universidade, na temporada europeus. indígenas sofriam (e ainda sofrem) greves essas iniciadas por professores, do pequi – outubro. Os preconceitos Por aqui, 40 °C no Cerrado tocanti- com o descaso e a falta de investimen- alunos e técnicos administrativos por estavam enraizados nos colegas e nos nense. Volto para minha história em tos. A educação indígena grita por melhores condições de ensino em to- professores. Surgiriam novas lutas ou construção, para meus sonhos. Sou mais investimentos. Por isso, muitos do o país, não apenas no Tocantins. seriam lutas antigas? Sentia-me lá em jornalista, especialista e mestre em tinham dificuldades em língua portu- Antes com greves do que à mercê de 2001, quando meus parentes de diver- Comunicação, tudo graças a uma uni- guesa, matemática e tantas outras um descaso, sem nenhuma voz. Preci- sas etnias lutavam pela inclusão do sis- versidade pública do Norte do Brasil. disciplinas cobradas no processo de sávamos ser ouvidos. “Máquina a va- tema de cotas na graduação. Dezesseis Pertenço à comunidade Pankararu do graduação. Sem falar que estes vi- por não é computador”. Eu nunca me anos depois, lá estávamos nós, discu- Tocantins. E, como tantos outros indí- nham de difíceis realidades socioeco- esqueço desse grito de guerra dos alu- tindo novamente o acesso de indíge- genas estudantes, tive uma oportuni- nômicas. Morar, se alimentar e pagar nos de Ciência da Computação, du- nas, negros e quilombolas. Havia dou- dade única, que não pode ser silencia- transporte público eram as principais rante uma greve por equipamentos tores e pós-doutores contrários à da, tudo isso pelo nosso povo, nossas dificuldades. Em Palmas, até havia tecnológicos de qualidade. E tantos inclusão, infelizmente. Mas, por fim, o comunidades, por nosso país. Que o uma casa indígena para abrigar os outros gritos foram entoados. direito foi respeitado. O sistema de co- respeito, a solidariedade e a empatia alunos, mas a situação também era Por outro lado, o baixo investimen- tas passou a ser uma realidade no Mes- prevaleçam, seja na terra dos pequis, precária. Por esses fatores, os estu- to na estrutura não era uma realidade trado de Comunicação e Sociedade da seja em qualquer outra região do país. dantes indígenas não permaneciam para todos os cursos. Enquanto Comu- UFT em 2018. Nesse tempo vi outros E que fique claro: não irão nos calar. na universidade. Deixavam os cursos nicação, Ciências da Computação e Ar- programas sociais sendo implementa- pelo meio. Eu precisava fazer algo. quitetura, por exemplo, tinham poucos dos. Vi concursos. Mais professores. *Elvio Marques é jornalista e mestre em Co- Em 2010, resolvi colaborar para mo- laboratórios, estudavam em “blocos” Menos greves. Os laboratórios de jor- municação e Sociedade pela Universidade dificar essa realidade. Com ajuda de antigos e degradados, do início da uni- nalismo ficaram prontos, finalmente. Federal do Tocantins (UFT). 36 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

BOB WOODWARD Um ícone do jornalismo

Os autênticos lançadores de alerta nos últimos anos – Chelsea Manning, Julian Assange, Edward Snowden –, aqueles que nos “transmitem a informação, qualquer que seja seu custo”, são mais frequentemente perseguidos pela justiça norte-americana do que clientes do departamento de publicidade da CBS, como o Washington Post POR SERGE HALIMI**

m 3 de fevereiro de 2019, durante cionou à dupla lendária Carl Berns- despesas médicas de idosos fosse re- to aquela que ele próprio acaba de con- a transmissão do Super Bowl pe- tein-Bob Woodward os meios de forçar duzida para responder ao desafio das sagrar aos primeiros meses da presi- la CBS, os intervalos comerciais um presidente poderoso à renúncia, se “realidades do século XXI”.3 Segundo dência de Trump, inimigo declarado custaram US$ 5,25 milhões por meta, como a Monsanto, em uma o herói de Watergate, os lucros que ele de Bezos. Euma mensagem de trinta segundos. O campanha de relações públicas. aufere dessas atividades impuras sus- Há trinta anos, as receitas de Woo- Washington Post reservou um spot de Mas é possível entender por quê. tentam a fundação que traz seu nome. dward não variam nunca: escolher um um minuto, lido pelo ator Tom Hanks Mais ou menos no momento em que Mas semelhante generosidade, permi- personagem de destaque impopular – ou seja, sua transmissão custou mais seu jornal se convidava para o Super tindo-lhe reduzir sua renda tributável, ou em torno do qual haja algum con- ou menos o volume de negócios anual Bowl, Woodward publicava um novo beneficiou sobretudo um destinatário: senso (garantia de best-seller), recom- do Le Monde Diplomatique. Ele disse o livro, Medo, sobre os primeiros meses a escola privada da elite de Washing- pensar seus delatores (ou informan- seguinte: “Quando vamos à guerra, da presidência de Donald Trump.1 ton que seus filhos frequentaram. tes), atribuindo-lhes um papel bonito, quando exercemos nossos direitos, Dessa vez, ele não corria nenhum ris- O Libération descreveu nosso ícone e destruir todos os que se recusam a quando nos alçamos o mais alto possí- co, tal o ponto em que a crítica a nos seguintes termos: “Com 75 anos, cooperar. Cada qual fala a Woodward vel, quando homenageamos um mor- Trump, suas obsessões e mentiras se dois prêmios Pulitzer, dezoito livros como se falasse a um procurador, e to e rezamos, quando nossos vizinhos tornou uma indústria. O sucesso foi dos quais doze foram best-sellers, Bob ainda ignoram o que outras testemu- estão em perigo ou quando nossa na- instantâneo: mais de 2 milhões de Woodward ostenta uma reputação im- nhas lhe hajam porventura confiado... ção é ameaçada, alguém junta os fatos exemplares vendidos nos Estados Uni- pecável. [...] Até aqueles que no passa- Gary Cohn e Rob Porter devem ter se e transmite a vocês a informação, dos em poucas semanas. E Woodward, do foram alvo de suas investigações mostrado loquazes, pois Medo os trata qualquer que seja seu custo, pois saber já riquíssimo, gosta muito de dinheiro. ferozes reconhecem sua ética”.4 Isso como heróis. O primeiro passou da pre- é poder. O saber nos ajuda a decidir, o Um investigador zeloso da ética não bem que merecia ir para a seção de sidência do banco Goldman Sachs à ad- saber nos mantém livres. Washington cobraria cachês de US$ 50 mil a 100 checagem de fatos “Checknews” do ministração Trump – certificado duplo Post: a democracia morre nas trevas”. mil para falar2 diante de assembleias jornal francês. Pois “feroz” Woodward de retidão moral... Livre-cambista co- A publicidade não diz forçosamen- de empresários tão preocupados com não é com todos. Em Medo, ele não re- mo Woodward, cujo conformismo é ab- te a verdade... Os autênticos lançado- o bem comum quanto o Citibank e o siste à tentação de se ajoelhar aos pés solutamente seguro em relação a quais- res de alerta nos últimos anos – Chel- Instituto Norte-Americano de Comida de seu empregador, o homem mais ri- quer assuntos, Cohn enfrentou na Casa sea Manning, Julian Assange, Edward Congelada [American Frozen Food co do mundo: “A todos aqueles que são Branca os arroubos protecionistas de Snowden –, aqueles que nos “transmi- Institute]. Da mesma forma, um jor- empregados pelo Washington Post ou seu patrão. Na primeira cena do livro, tem a informação, qualquer que seja nalista escrupuloso hesitaria antes de com ele têm relações não faltam moti- ofegante, ele surge prestes a surrupiar seu custo”, são com mais frequência exigir, entre um “arranjo” com uma vos para agradecer o fato de Jeff Bezos, no Salão Oval um documento que, se perseguidos pela Justiça norte-ameri- companhia de seguros e outro com fundador e presidente-diretor-geral da assinado, anularia um acordo de livre- cana do que clientes do departamento um lobby farmacêutico, que o Estado Amazon, ser também proprietário do -comércio com a Coreia do Sul. Isso sig- de publicidade da CBS. O crédito do deixasse de regulamentar indevida- jornal. Ele gastou muito tempo e di- nificaria, ao que parece, uma “possível Washington Post deve, portanto, estar mente seus setores para que “as forças nheiro a fim de que esse periódico dis- catástrofe para a segurança nacional”. bem comprometido para que o jornal do mercado possam cumprir sua obra pusesse de recursos editoriais para fa- Woodward se rejubila então por esse responsável pela denúncia do caso inestimável”. Talvez ele renunciasse a zer pesquisas aprofundadas”.5 Tão “golpe de Estado administrativo”, a su-

© Cau Gomez Watergate em 1972, quando propor- propor que a cobertura pública das aprofundadas, compreende-se, quan- gerir que a existência de um “Estado JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 37

profundo” não é mera invenção de pa- ton Post – e do próprio Woodward. logo entre os dois cônjuges, em 1991, se em lugar desses brutos o mundo fos- ranoicos. Realizada a façanha, Cohn se O ex-presidente do Federal Reser- em sua cama de casal. O casal examina se povoado de dirigentes esclarecidos sente tentado a pedir demissão em pro- ve, Alan Greenspan, também não teve a ideia da candidatura de “Bill” à Casa como “o carismático Mohammed bin testo contra a reação benevolente de motivos de queixa contra nosso inves- Branca no ano seguinte. “Você vai che- Salman! MBS tem visão, tem energia. Trump à passeata racista e antissemita tigador lendário. O título de sua bio- gar lá”, diz Hillary ao marido. “Acha Cheio de encanto, fala em reformas au- de Charlotesville. Mas, quando o patrão grafia, Maestro (Simon & Schuster, mesmo?”, pergunta ele. “Sim”, insiste a daciosas e modernizadoras”. Pouco apela para seu patriotismo, ele adia a 2000), já era um elogio de sua severida- esposa. “O que acha que vai aconte- depois desse elogio por parte de um partida a fim de concretizar o projeto de de. Mas foi uma cartada ruim para cer?”; “Acho que você vai ganhar”; ícone vivo do jornalismo, “MBS” orde- ambos: reduzir os impostos dos mais ri- Woodward, pois o Fed iria desempe- “Acredita realmente nisso?”; “Acredito, nou o assassinato de Jamal Khashoggi, cos. Quanto ao outro grande resistente nhar um papel de relevo na eclosão da sim”. Na introdução do mesmo livro, editorialista do Washington Post. do interior, Porter, acusações de violên- crise financeira deste século. Woodward se gaba de sua arte, que cias domésticas o obrigaram também a Infelizmente, Trump confia seus “mistura a exatidão da história com a *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplo- pedir demissão. Segundo Woodward, sentimentos ao Twitter, e não a Wood- contemporaneidade do jornalismo”: matique Brasil. ele se dedicará doravante a “melhorar ward! Ainda assim, por causa de vaza- “Os diálogos e as citações provêm ao suas relações e a se cuidar”.6 mentos de oportunistas convictos de menos de um participante ou de notas A benevolência do autor para com que, traindo seu chefe, ganharão fama, que alguém tomou durante a discus-

suas fontes não abre exceções. Como Woodward parece saber tudo sobre as são. Quando se diz que uma pessoa 1 Bob Woodward, Peur. Trump à la Maison Blanche nenhum hóspede da Casa Branca ja- reuniões da Casa Branca, a ponto de po- ‘pensou’ ou ‘sentiu’ uma coisa, essa [Medo. Trump na Casa Branca], Seuil, Paris, 2018. mais falou tanto a Woodward quanto o der conseguir ler os pensamentos de ca- descrição vem da própria pessoa ou de 2 “Bob Woodward”, All American Speakers. Dispo- nível em: . presidente George W. Bush, três livros da um dos participantes. Sua técnica outra que a confiou a ela diretamente”. 3 Ken Silverstein, “Bob Woodward’s Moonlighting” lhe foram consagrados, os dois pri- narrativa, bem antiga, consiste em colo- Técnica das mais confiáveis, pois Woo- [O trabalho clandestino de Bob Woodward], Bro- meiros hagiográficos. O terceiro, me- car entre aspas diálogos que dificilmen- dward pode escrever que um ator de wsings, 12 jun. 2008. Disponível em: . nos elogioso, saiu quando a Guerra do te foram reproduzidos ao pé da letra pe- seu relato “pensa mais ou menos que...” 4 Frédéric Autran e Charlotte Oberti, “Un costard Iraque começou a andar mal. No en- las testemunhas, tornando a leitura de À diferença de seu antecessor, que taille Woodward pour Trump” [Um terno tamanho tanto, Bush não foi o único responsá- seus livros mais excitante – mesmo que “não era suficientemente firme”, Woodward para Trump], Libération, Paris, 6 set. 2018. vel pelo desastre: as mentiras referen- esse “novo jornalismo” retome os tru- Trump teria de qualquer forma com- 5 Bob Woodward, op. cit. tes às armas de destruição em massa ques mais surrados da narrativa... preendido que “não se pode agir de 6 Cf. Tim Weiner, “No heroes here” [Não há heróis pretensamente em mãos de Saddam Assim, o livro que Woodward con- maneira normal no mundo dos Kha- aqui], The New York Review of Books, 8 nov. 2018. 7 Bob Woodward, The Agenda: Inside the Clinton Hussein teriam sido menos mortíferas sagrou aos primeiros meses da presi- menei, dos Putin, dos Al-Assad”. Ah, White House [A agenda: dentro da Casa Branca sem o concurso militante do Washing- dência de Clinton começa por um diá- suspirou Woodward no ano passado, de Clinton], Simon & Schuster, Nova York, 1994.

LEI ESTADUAL DE INCENTIVO A CULTURA

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1_bonfilm_fvcf2019_anuncio_lemonde_190423.indd 1 5/21/19 10:52 AM 38 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2019

MISCELÂNEA

livros internet

NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem o seu tempo

GPS IDEOLÓGICO O jornal Folha de S.Paulo fez uma infografia interativa que coloca lado a lado perfis de in- fluenciadores que estão no Twitter, posicio- nando cada um de acordo com a afinidade ideológica de seus seguidores e pares. Na posição mais à esquerda ficaram perfis como Lola Aronovich, Rosa de Nagasaki e Haddad Tranquilão (perfil de sátira; Fernando Haddad SINTOMAS MÓRBIDOS: ECONOMIA PARA POUCOS: está próximo de Manuela d’Ávila, Brasil 247 e A ENCRUZILHADA DA IMPACTOS SOCIAIS DA AUSTERIDADE Xico Sá). Bolsonaro e Danilo Gentili estão pró- ESQUERDA BRASILEIRA E ALTERNATIVAS PARA O BRASIL ximos, mas distantes ainda da ponta direita do Sabrina Fernandes, Ana Luiza Matos de Oliveira, espectro. Pelo menos para esse algoritmo, há Autonomia Literária Esther Dweck e Pedro Rossi, quem esteja ainda muito mais à direita. Autonomia Literária

ormalmente, quando pensamos no sintoma de esde 2015, o Brasil embarcou na austeridade. A Numa doença – uma tosse persistente, por exem- Dcrise no mercado de trabalho, causada pelo cho- MAPA DAS FAZENDAS DOS POLÍTICOS plo –, pensamos na relação entre um grande proble- que na política econômica naquele ano e agravada Consideradas as últimas fronteiras agríco- ma, a infecção nas vias respiratórias, e um pequeno pela perpetuação desta política, e o corte nas políticas las do país, regiões do Tocantins e partes do problema, a tosse. Contudo, do ponto de vista de sociais têm tido grande impacto na qualidade de vida Maranhão, Piauí e Bahia, além da Amazônia causas e efeitos, a tosse, por mais que seja incômo- da população brasileira. Legal, concentram a maior parte das terras da, não é tanto um problema, mas uma solução, uma Este segundo ponto – o impacto social da política dos congressistas brasileiros, segundo levan- tentativa do corpo de expelir uma secreção. É claro fiscal – é discutido em Economia para poucos. O livro tamento feito pelo De Olho nos Ruralistas. A que o doente a experimenta como problema, porque traz contribuições de diversos especialistas da acade- análise leva em conta as fazendas dos donos atrapalha, mas para pensar esse sintoma é necessá- mia e de organizações da sociedade civil, discutindo de mais de 100 hectares de terra, segundo de- rio deixar o incômodo de lado e aprender a olhar para como a política fiscal tem impacto na questão social de clarações entregues no ano passado à Justiça ele como uma resposta a um impasse subjacente. forma teórica e prática: de que modo os cortes impac- Eleitoral. No site, pode-se ver um mapa com Esse difícil esforço de mudança de perspectiva é tam a educação básica e superior, a seguridade social, todas as fazendas, separadas entre senadores um dos grandes méritos do novo livro de Sabrina Fer- a saúde, o meio ambiente, a cultura, a segurança públi- e deputados. Ao todo, os deputados federais nandes: o esforço de colocar o sintoma em perspec- ca, a questão federativa, o direito à moradia, a questão são donos de 43,9 mil hectares de terra, espa- tiva, olhá-lo sobre o pano de fundo de um panorama agrária, a igualdade de gênero e de raça e os direitos lhados por treze estados. Os senadores, ape- mais geral. A obra é um exercício exemplar daquela humanos. Ou seja, discute-se como a austeridade im- sar de serem em menor número – 81 para 513 imaginação sociológica sem a qual, nos lembra Wri- pacta a garantia dos direitos sociais assegurados pela deputados – respondem por uma área maior. ght Mills, o pensamento social e político é incapaz de Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6º. No total, somam 107,8 mil hectares. distinguir causa e efeito, problema e sintoma, tática e Os resultados não são positivos. Em todas as áre- estratégia. Pois não basta termos informações sobre as, os autores mostram que, desde que a austeridade o que ocorre à nossa volta para que sejamos capazes foi adotada, em 2015, indicadores sociais diversos do de ascender a uma análise da conjuntura global na Brasil no mínimo deixaram de melhorar e muitos regre- NSA COLABORATIVA qual estamos inseridos: é preciso ainda ser capaz de diram. Na verdade, o país tem descumprido tratados Um projeto de arte na web criou uma interface reconhecer nas invariâncias e padrões que os dados internacionais que garantem a realização progressiva para que você experimente como trabalha um apresentam os traços de uma estrutura subjacente. dos direitos humanos, que ditam que não se podem to- agente de inteligência que vigia mídias sociais E é exatamente assim que Sintomas mórbidos opera mar medidas que promovam retrocessos na realização para prever crimes. O sistema – como fazem uma transformação no sentido de “sintoma”: de pro- de direitos. os sistemas reais de vigilância – retira posts blema central, para uma resposta a um problema es- Em tempos de perpetuação dos contingenciamentos da sua timeline para que você avalie se são trutural e histórico mais geral. para a política social no Brasil sob o argumento de que ameaças reais de terrorismo ou se apenas es- Por meio de uma leitura robusta da tradição do mar- “não há dinheiro”, para além de apontar os impactos tão fora de contexto. A ideia é perceber o quão xismo humanista, a autora utiliza sua extensa pesqui- negativos dos cortes já ocorridos nessas áreas des- invasivos são esses sistemas e o quanto a pri- sa de campo com as organizações de esquerda para de 2015 e constitucionalizados por meio da Emenda vacidade é invadida em nome da segurança. dar corpo a uma interpretação da dinâmica contem- Constitucional n. 95/2016, o livro dá pistas sobre o Além de site, virou app e instalações de arte porânea da pós-política e da ultrapolítica como duas que pode ocorrer com a ampliação dos cortes para a já em museus. respostas a um problema estrutural mais profundo, desfinanciada área social. E aponta também possíveis a chamada crise da práxis, um “contexto em que os alternativas à política de arrocho social perpetrada nos obstáculos à síntese [da teoria com a prática] preva- últimos anos no país. lecem”, criando uma desconexão praticamente insu- perável entre fragmentos da esquerda, cada vez mais ilhados entre si, presos em um diálogo de surdos. [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, [Raul Ventura Neto] Professor adjunto da Faculda- professor de Jornalismo na ESPM, mestre em [Gabriel Tupinambá] Psicanalista e doutor em Fi- de de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Fede- Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou- losofia pela European Graduate School, na Suíça. ral do Pará. torando em Design na FAU-USP. JUNHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO LE MONDE BRASIL Edição de abril diplomatique Só pela coragem em falar verdadeiramente o que é Ano 12 – Número 143 – Junho 2019 a reforma da Previdência, não tenho dúvidas de www.diplomatique.org.br que vocês têm comprometimento real com o leitor. DIRETORIA Agradeço por não aceitarem a disseminação da Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava mentira e da superficialidade das informações que ESCALADA CONTRA O IRÃ Diretores outros meios de comunicação divulgam todos os 2 Um capricho norte-americano Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves dias. É uma verdadeira lavagem cerebral! Tem tele- Por Serge Halimi jornais que, de vinte matérias, inserem em dezeno- Editor EDITORIAL Luís Brasilino ve “a necessidade da aprovação da reforma” – uma 3 Idiotas úteis vergonha, um descaramento. De tanto mentirem, a Por Silvio Caccia Bava Editor-web Cristiano Navarro necessidade da reforma nos moldes em que está se tornará uma verdade no subconsciente da socieda- CAPA Editores de Arte 4 Adriana Fernandes e Daniel Kondo de. Povo sem cultura é gado. Obrigado mais uma Os direitos LGBT sob o governo Bolsonaro Por Renan Quinalha vez, Le Monde Diplomatique Brasil! Coordenador multimídia “Nossos filhos não vão ser estatística” Henrique Santana James de Meneses Por Maju Giorgi A resistência LGBTI+ e a política de morte bolsonarista Estagiária Taís Ilhéu “Terrorismo demográfico”? É fato que, com as na- Por Symmy Larrat talidades continuando em queda e a expectativa Revisão NEM TODA POSSE DEVE SER ABOLIDA Lara Milani e Maitê Ribeiro de vida aumentando, alguma coisa vai acontecer. 8 O mito de que o comunismo é contra Agora, sobre como a reforma está sendo feita e pa- a propriedade privada Gestão Administrativa e Financeira ra quem, aí são outros quinhentos... Por Raphael Silva Fagundes Arlete Martins Jonas Wilhiam Assinaturas COMO MATTEO SALVINI CONQUISTOU A ITÁLIA Viviane Alves 9 Nacionalismo europeu acha seu arauto Tradutores desta edição Por Matteo Pucciarelli Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Capa – O Brasil tem muito dinheiro Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Mais uma vez vão sacrificar o povo no altar do MÍDIA BRITÂNICA TENTA DESTRUIR JEREMY CORBYN 12 Conselho Editorial equilíbrio fiscal, enquanto “eles” ficam observando. Antissemitismo, o golpe final Por Daniel Finn Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Ricardo Souza Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor AUTORIDADES FRANCESAS RENUNCIAM A SEU PAPEL Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. A capa é primorosa! Um infeliz retrato de nós pró- 14 Urbanismo à deriva Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Por Pierre Pastoral Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, prios, como sociedade brasileira. Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Luiz Henrique Monteiro Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. CIDADES VIGIADAS 16 Safe city, ou o governo dos algoritmos Assessoria Jurídica Por Félix Tréguer Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Nós devemos temer os chineses? Escritório Comercial Brasília Depende. Se continuarmos a ficar debaixo das 18 RENASCIMENTO DE UMA IDEOLOGIA Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior asas dos estadunidenses (que nunca nos deram HÁ MUITO DESPREZADA Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – [email protected] Socialismo nos Estados Unidos: por que hoje? nada), com certeza. Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação Por Edward Castleton da associação Palavra Livre, em parceria com o Daniel Cordeiro “Não tínhamos dinheiro nem para comprar um Instituto Pólis. bebedouro” Por Bhaskar Sunkara Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005 World Press Cartoon [email protected] DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE www.diplomatique.org.br Cau Gomez, ilustrador do Le Monde Diplomatique 22 Simulacros: a hiper-realidade do extermínio Brasil, ficou em terceiro lugar, na categoria “Carica- Por Carolina Christoph Grillo e Rafael Godoi Assinaturas [email protected] tura”, do importante prêmio World Press Cartoon Tel.: 55 11 2174-2015 – 2019. A arte agraciada representa Martin Luther 24 ENTREVISTA JON LEE ANDERSON King no texto de Sylvie Laurent, “O último combate “A Venezuela é a grande questão da Impressão América Latina no século XXI” Plural Indústria Gráfica Ltda. de Martin Luther King”, publicado em nossa edição Por Vinícius Mendes Av. Marcos Penteado de Ulhôa de abril de 2018. Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001 Em seu Instagram, Gomez 26 UMA NOVA CONSTITUIÇÃO SUCEDE À DE 1976 MISTO comemorou o prêmio: Um grande debate... à cubana “Fico honrado e com Por Simone Garnet e Grégoire Varlex, enviados especiais a sensação de dever cumprido! UM PROCESSO REVOLUCIONÁRIO DE LONGO PRAZO Distribuição nacional 28 DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda. Sigo na trilha do O Sudão e a Argélia reacenderam a chama Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte – humor gráfico, da Primavera Árabe? Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624 Por Gilbert Achcar na resistência LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) e na luta contra CIDADE AFRICANA CHACOALHADA PELA UE Fundador a intolerância!”. 31 Agadèz, o muro anti-imigração da Europa Hubert BEUVE-MÉRY Por Rémi Carayol, enviado especial Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI

CAEM OS PEQUIS, PASSAM-SE OS TEMPOS, SURGEM Redator-Chefe 34 OS AVANÇOS, OS DESAFIOS E O 2019 DO CAOS Philippe DESCAMPS Relato da vivência na universidade pública Diretora de Relações e das Edições Internacionais Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas de quem não é um idiota útil Anne-Cécile ROBERT Por Elvio Marques críticas e sugestões para [email protected] Le Monde diplomatique As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France se necessário, resumidas para a publicação. BOB WOODWARD [email protected] 36 Um ícone do jornalismo www.monde-diplomatique.fr Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus Por Serge Halimi autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava do periódico. com 37 edições internacionais em 20 línguas: MISCELÂNEA 32 edições impressas e 5 eletrônicas. 38 ISSN: 1981-7525 Capa: © Caio Borges LE MONDE diplomatiqueL

O PODCAST DO LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL.

ENTREVISTAS COM:

ESTHER SOLANO HENRIQUE COSTA JESSÉ SOUZA LUCIANA ZAFFALON ROSANA PINHEIRO-MACHADO LADISLAU DOWBOR FÁBIO MALLART ROGÉRIO DE CAMPOS MARCIA TIBURI THIAGO B. MENDONÇA HENRIQUE CARNEIRO ANNE RAMMI E MONICA SEIXAS RENATA SOUZA CLAUDIA ROSALINA ADÃO ALEXANDRE FUCCILLE ELIZA CAPAI DANIELLE TEGA JULIÁN FUKS VINICIUS VALLE LUDMILA COSTHEK ABILIO GRAZIELLE ALBUQUERQUE CAMILA ROCHA ANA PAULA CORTI E FERNANDO CÁSSIO SABRINA FERNANDES

DISPONÍVEL EM

TODAS AS QUINTAS-FEIRAS DIPLOMATIQUE.ORG.BR/ESPECIAL/GUILHOTINA