SEMINÁRIO TEMÁTICO “ESPORTE, POLÍTICA E CULTURA”

"Eles" e "nós": imprensa e rivalidade futebolística entre Argentina e Brasil

Ronaldo Helal – Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pós- Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires

1- Apresentação Este artigo analisa a cobertura jornalística sobre o futebol brasileiro e argentino na imprensa dos dois países. Países vizinhos e com tradição de rivalidade que se acirra no campo esportivo1, Brasil e Argentina são semelhantes nas formas como se utilizaram do futebol para “construir” o sentido de pertencimento à nação. A investigação averigua as imagens que ambos os países “constroem” sobre o futebol do “outro”. O recorte de análise nos jornais argentinos se concentra nas Copas do Mundo desde 1970 até 2002. O material das Copas de 1970 até 1994 é o jornal Clarín e a revista El Gráfico. Para os mundiais de 1998 e 2002 substituímos o El Gráfico pelo jornal Olé, devido à importância que o mesmo adquiriu nos últimos anos. Além disso, foram coletados e analisados material relativo aos dois confrontos que ocorreram em junho de 2005 – eliminatórias da Copa de 2006 e final da Copa das Confederações. Aqui, os jornais coletados foram Clarín, Olé e La Nación. O recorte de análise nos jornais brasileiros se concentra nos Mundiais de 1978, 1986, 1998 e 2002. Os jornais analisados foram Jornal do Brasil para as Copas de 1978 e 1986 e O Globo para as Copas de 1998 e 20022. A razão para esta assimetria se encontra nos fatos de que a Argentina não participou do Mundial 1970 e de que passei o ano de 2005 realizando uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires – com apoio da CAPES- o que me possibilitou uma coleta mais ampla do material na imprensa argentina. O material relativo ao futebol argentino na imprensa brasileira foi coletado generosamente por Tiago Bartholo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho3. O método utilizado foi ler todo o material sublinhando as reportagens que considerava mais relevantes do ponto de vista de como “um” vê o “outro”. Depois selecionei estas matérias e realizei uma leitura mais detalhada. Assim, ao final de cada período, tínha uma visão mais abrangente das narrativas sobre o “outro” naquele veículo, naquele momento. Feito isso, parti para a análise em ordem cronológica por Copa do Mundo, iniciando sempre com a primeira partida do “outro”. Aqui, apresento minhas primeiras impressões de pesquisa. Em seguida, me concentro no “olhar” argentino sobre o futebol brasileiro e depois no “olhar” brasileiro sobre o futebol argentino.

2 – Primeiras Impressoes: “eles nos admiram” Antes de vir para Argentina, amigos me alertaram sobre a possibilidade de meus filhos sofrerem alguma discriminação na escola. A acolhida de meus filhos em uma

1 Sobre a formação histórica da rivalidade entre Brasil e Argentina em jornais de Santa Catarina e Porto Alegre ver Jacks, N., Machado, M., e Muller, K. (2004). 2O critério utilizado foi o da “disponibilidade” e “gratuidade”. Quando os jornais colocavam à disposição suas edições passadas de forma gratuita, as matérias foram coletadas. Estes jornais estão entre os de maior circulação no Brasil. 3 Sou grato a Tiago que também coletou o material brasileiro relativo aos Mundiais de 1990 e 1994. Este material será analisado em breve.

1 escola pública — elas são boas e há várias, sem problemas de vagas — causou ótima impressão. Ao lado está a escolinha de futebol do ex-jogador Marangoni, onde vemos argentinos com camisas de times do Brasil e até da seleção brasileira. Cena desconhecida dos brasileiros, de uma forma geral. Cheguei no verão e a quantidade de pessoas com sandálias havaianas com a bandeira do Brasil colada na parte da frente me surpreendeu, pois não conseguia imaginar brasileiros usando um traje de vestuário com a bandeira da Argentina. O livro FIFA 100, com a foto do Pelé na capa, estava na vitrine das livrarias da cidade, assim como DVDs de gols de Pelé e Ronaldo. Neste período de “adaptaçao” aconteceu o “caso Desábato”4. As matérias sobre o “caso de racismo” chegaram às primeiras páginas dos jornais argentinos e o tom era de indignação. Havia fotos do jogador algemado e manchetes como “Vergonha” (Clarín, 15 de março) e “Inferno no Brasil” (Olé, 15 de março). Nos jornais brasileiros na internet não encontrei matéria que comprovasse o racismo de Desábato. Decidi escrever um artigo para a seção Opinião de O Globo relatando minhas “primeiras impressões” em Buenos Aires e levantando a hipótese de que poderia ter havido certo “anti- argentinismo” por parte do Brasil. Ao mesmo tempo, fiz uma versão em espanhol e a enviei para o Olé. Ambos os artigos foram publicados no dia 21 de abril. A publicação no Olé gerou uma amizade proveitosa para a pesquisa com o colunista e um dos fundadores do referido jornal, Walter Vargas, bem como uma discussão acadêmica com meu interlocutor na Universidad de Buenos Aires, Pablo Alabarces. Apesar de discordar de meu artigo, Alabarces me disse uma frase que tem me feito pensar na relação Brasil-Argentina: “os brasileiros amam odiar os argentinos, enquanto os argentinos odeiam amar os brasileiros”5. Ao mesmo tempo, Vargas me dizia que recebia e-mails insultuosos de brasileiros em várias ocasiões. Tentei verificar se o mesmo ocorria com jornalistas do Lance!, mas os que eu mantive contato me disseram nunca ter recebido e-mails ofensivos de argentinos6. Passei a suspeitar que “nós” implicamos mais com “eles” do que “eles” “conosco”. A rivalidade argentina conosco consegue manifestar admiração em meio ao conflito, enquanto nossa rivalidade traz à tona certo “ressentimento”7.

3 - A Argentina Vê o Brasil: a seleção brasileira de futebol na imprensa argentina 3.1 - “La Mejor Selección de Todos Los Tiempos”: a seleção de 70 no Clarín e El Gráfico durante a Copa do Mundo de 1970 A argentina não participou da Copa de 1970. Sua seleção foi eliminada nas eliminatórias pela seleção peruana, dirigida por Didi, ex-jogador do Brasil que conquistou os Mundiais de 1958 e 1962. Brasil e Argentina viviam momentos políticos delicados. O regime militar havia recrudescido no Brasil e na Argentina os Montoneros surgiam publicamente como movimento de oposição ao regime com o sequestro do

4 Como ficou conhecida a suposta agressão racista do zagueiro do Quilmes contra o atacante Grafite do São Paulo, em uma partida pela da América 2005, e a queixa de Grafite na polícia, que resultou na prisão do jogador argentino. 5 Alabarces disse que a frase era de um amigo argentino que vive no Brasil, mas que ele estava de acordo, tendo como base os quatro meses que passou na Unicamp em 2003. 6Vargas me encaminhou, generosamente, os e-mails recebidos após a vitória do Brasil na Copa das Confederações. Sua coluna diz que o Brasil tem melhores jogadores do que a Argentina. O título era: “A soñar, sin olvidar que son mejores” (Olé, 30 de junho de 2005). Talvez o fato dos jornalistas do Lance! não receberem e-mails de argentinos deve-se a que este jornal exige que o leitor se cadastre no site para ter acesso às reportagens, enquanto que no Olé o acesso não é restrito. 7 Talvez nós precisemos mais “deles” para marcar nossa alteridade do que “eles” de “nós”. Sou grato a Simoni Guedes por ter levantado esta hipótese.

2 general Pedro Eugenio Aramburu. A finalidade do sequestro era realizar uma “justiça histórica”, já que Aramburu era tido como responsável por torturas e fuzilamento de 27 peronistas durante a repressão de junho de 19568. Com a Argentina fora da Copa e o país vivendo este clima político, Clarín dedicou, no período, boa parte das primeiras páginas ao seqüestro de Aramburu. De qualquer modo, o jornal enviou dois jornalistas para fazer a cobertura da Copa do Mundo: Beto Devoto e Diego Lucero. A seleção de 70 é tratada como referência do “estilo de jogo” do futebol brasileiro. Como ocorre no Brasil durante as Copas9, esta seleção é sempre lembrada na imprensa argentina e é considerada a “melhor da história”. No dia 9 El Gráfico em “¿Por qué es el Rey?”, com foto do gol de Pelé contra a thecoeslovaquia, fala de como Pelé “matou” uma bola no peito: “cualquier otro hubiera sacudido apenas la pelota tocaba tierra. Pero Pelé no es “cualquier otro”. Es “EL REY” (grifos do jornal).10 A vitória do Brasil sobre a Inglaterra é explicada por “esa arraigada convicción de jugar siempre la pelota, de tratarla siempre”. Este “estilo de jogo” é a marca “intrínseca” do Brasil no “olhar” argentino e possui elementos da “construção” do futebol argentino tal como colocaram Archetti (2003) e Alabarces (2002). Contra o Uruguai, o fato de que o Brasil ia continuar jogando em Guadalajara, foi noticiado assim: “Brasil (…) obligado a jugar contra un rival que no le gusta nada, busca sacar la máxima ventaja, como supone jugar aquí, donde es local sin ninguna duda (…) Pero Uruguay es Uruguay y los brasileños lo saben” (Clarín, 15 de junho de 1970). A rivalidade Argentina-Uruguay era mais intensa no passado. Ela é distinta da rivalidade Argentina-Brasil. Os uruguaios são para os argentinos como “primos”. E, no confronto com o Brasil, a identificação com o “parente” se torna mais “natural”. Um dos jornalistas mais influentes de El Gráfico nas décadas de 30 e 40 e que contribuiu para a “construção” da mitologia do futebol argentino era uruguaio – Eduardo Lorenzo, o Borocotó - assim como Victor Hugo Morales, jornalista e locutor de televisão que passou para a “história” ao narrar o gol de Maradona contra os ingleses em 1986. Após a vitória na final contra a Itália, as matérias evidenciam a identificação com o Brasil. Em “Exponente de la Verdad”, o jornalista assume sua “torcida para o Brasil” (…)Entonces sentimos perder la objetividad porque deseábamos de todo corazón la victoria de Brasil que es la victoria de la escuela sudamericana, esa que nos pertenece también (…) y la que responde al fútbol de más alto nivel de creación, de talento, de ingenio y de sorpresa. Por eso el 4-1 es la distancia exacta e inobjetable entre sudamericanos y europeos” (Clarín, 22 de junho de 1970. Os grifos são meus)

Este acionamento de identidade sul-americana poder ser entendido como uma forma de “construir” o “pertencimento” em ocasiões onde é impossível reviver a

8 Os Montoneros matam Aramburu, negociam seu corpo pelo de Evita e marcam, desta forma, sua aparição no cenário político do país. Para uma análise mais detalhada deste tema, ver Sarlo (2003). 9 Ver Soares, Helal e Santoro (2003) para uma análise das narrativas desta seleção em 1970 e nas Copas de 1978 e 2002. 10 Pelé é tratado na imprensa argentina como “O Rei”, quase sempre em português. O debate Pelé- Maradona não aparece nos jornais até a Copa de 1998. Pelé foi colunista do Clarín nas Copas de 1978, 1982, 1986 e 1990, sendo que nesta o jornal o anunciava como “el mejor del mundo” (Clarín, 5 de junho de 1990). Um livro editado pelo Clarín, em 1998, intitulado El Libro de Oro del Mundial: 1930-1998, traz uma reportagem de oito páginas com o título “Ellos Dos y Sólo Ellos Dos”, falando sobre as trajetórias de Pelé e de Maradona. A de Pelé sempre vindo antes da de Maradona. O texto deixa margens ao entendimento de que Pelé era o rei e Maradona seu herdeiro legítimo. As primeiras epígrafes da reportagem dizem que: “Entre los genes y el trabajo atlético, Pelé modeló un cuerpo perfecto para el fútbol. Maradona es la revelación, el mito, la llama, la picardía, la alegría y la consecuente tristeza”. “Pelé es el signo sensato y pausado. Diego es vitalidad y energía”.

3 rivalidade no contexto nacional, já que um dos rivais está fora da competição. Mas é reveladora a “torcida explícita” do jornalista e sua identificação com o futebol brasileiro, ainda mais dizendo que tinha “perdido a objetividade11.”

3.2 – “Brasil no se parece a Brasil” ou “Brasil es siempre Brasil”: a seleção brasileira nas matérias do Clarín e El Gráfico nas Copas do Mundo desde 1974 até 1998 No material relativo às Copas de 1974 e 1978 evidenciamos uma forte nostalgia em relação à seleção de 70. A partir daí elaboramos duas categorias. Uma que diz que “Brasil no se parece a Brasil” e outra que diz que “Brasil es siempre Brasil”. As duas categorias remetem a uma admiração por um “estilo de jogo brasileiro”. Não foi possível analisar, no Clarín, a cobertura de Brasil e Argentina do dia 30 de junho. A edição de 1º de junho não foi encontrada. Na Biblioteca Nacional, as edições do Clarín de julho de 1974, começam no dia 6. Na Biblioteca do Congresso, as edições começam no dia 2 e até o dia 6 estão repletas de reportagens sobre a morte de Perón, ocorrida no dia 1º de julho. Mas no dia 7 de julho, após perder a disputa pelo terceiro lugar para Polônia, Clarín diz que Brasil “En vez de la despedida a lo grande prefirió otra vez el planteo mezquino, el renunciamiento casi total al fútbol de ataque (…)”. El Gráfico de 7 de maio, antes da Copa, publica “Aquella Magia que Ya no Estará: Las Inolvidables Jugadas del Rey Pelé en México” e a vitória do Brasil sobre a Argentina por 1 a 0, no dia 30 de junho, é considerada “injusta” porque “este Brasil no es ni fue mejor que nosotros.” Estas narrativas se encaixam em “Brasil no se parece a Brasil” que predominou em 1974 e em 1978. Em 1978, Clarín anuncia Pelé como seu colunista, reverenciando-o como o “melhor do mundo”. No início da Copa, as reportagens criticam a seleção dizendo que “preocupa el nivel de Brasil”. Helenio Herrera diz que “es la segunda vez que Brasil hace un partido pésimo y eso nos preocupa a todo”. Se o Brasil é o rival da Argentina, este Brasil que está “decepcionando” não deveria ser motivo de preocupação. A admiração pelo “estilo de jogo” está acima das rivalidades entre os dois países. Nas Copas de 1982 e 1986 a categoria “Brasil es siempre Brasil” predomina. Clarín anuncia Pelé como seu colunista e apresenta uma reportagem sobre a conquista do tri no México. El Gráfico de 15 de junho apresenta “Los Conejos que Pelé sacó de su galera”, matéria de Juvenal, enfatizando que em uma equipe sensacional Pelé era o grande astro. 12 anos depois, Clarín e El Gráfico acionam a memória de Pelé e do Brasil de 70 como um futebol “mágico”. Sobre a seleção de 1982, suas vitórias são narradas pelo seu “estilo de jogo”. El Gráfico, do dia 22 de junho, em matéria de Juvenal, diz que os triunfos do Brasil se sustentam em um fator fundamental: “LA CONVICCIÓN PARA SER SIEMPRE BRASIL” (grifos da Revista) e que “por todo eso (…) decimos que Brasil volvió a las fuentes (…) Siendo fiel a su estilo, a su línea y a su filosofía de juego.”. Em 2 de julho de 1982, antes da partida contra Argentina, Clarín diz que “Brasil es el candidato de todos. Para este partido y para el título”. E após a eliminação lemos: “Y ahora qué decimos? ¿Qué el fútbol brasileño no sirve más? ¿Qué la verdad la tiene Italia: No (…) Seguimos creyendo que Brasil fue la gran potencia futbolística de este Mundial. Por su talento y su vocación ofensiva. Por la verdad de su juego. (grifos do jornal). Prevalece a categoria “Brasil es siempre Brasil”. A narrativa elogia o “estilo de jogo” e não se regozija com a eliminação.

11 Hipoteticamente, creio que o Brasil reagiria naquela ocasião de forma semelhante, caso estivesse na mesma situação. Algo parecido ocorreu nas narrativas brasileiras sobre a Argentina de 1986, principalmente em torno da figura de Maradona.

4 Na Copa de 1986, as reportagens continuam focando no “estilo”. Em 13 de junho, após vitória sobre a Irlanda do Norte, Clarín diz que “Brasil llegó con toda su música” e que “respetó su tradición, su estilo (...)”. Enfatiza-se também que Brasil e França fizeram a melhor partida da Copa e lamentam a derrota do Brasil. Clarín, de 22 de junho, em matéria de Manuel Epelbaum, destaca que a partida “Fue un Monumento al Fútbol”. El Gráfico, de 24 de junho de 1986, destacou que Brasil “respetó su tradición, demostró la vigencia de su fútbol”. Apesar da eliminação, o predomínio da categoria “Brasil es siempre Brasil” é evidente. Não há reportagens que se regozijam com a eliminação do Brasil.. Ainda em 24 de junho, El Gráfico publica reportagem de Juvenal: “Nace uma polémica que no morirá jamás: Maradona fue más para Argentina que Pelé para Brasil”. Trabalha-se com a hipótese de que Brasil teria conquistado o tri mesmo sem Pelé, enquanto que Argentina não teria conquistado a Copa sem Maradona. Enfatiza-se a importância de cada um para seu país sem hierarquizar suas qualidades. Em 1990, Pelé é anunciado como colunista do Clarín . A nota, com foto de Pelé e Maradona diz que é “la coluna de quién fue el mejor del mundo en la apasionante actividad de jugar al fútbol...” (5 de junho). Mesmo após a conquista da Argentina em 1986 e a consagração de Maradona como “o melhor do mundo”, não se estimula o debate sobre quem foi o melhor da história. As matérias durante a Copa de 1990 caem na categoria “Brasil no se parece a Brasil”. Em 17 de junho, após vitória sobre a Costa Rica por 1 a 0, Clarín diz que “Brasil siempre se divirtió y consiguió divertir a la gente, más allá de cualquier resultado”. E conclui: “Brasil no se parece a Brasil. Y eso es lo peor que podía pasarle. (grifos meus). Lamenta-se a ausência de um “estilo” que seria “típico” do Brasil. Após a vitória da Argentina por 1 a 0, Clarín de 25 de junho colocou na primeira página: “Argentina eliminó a Brasil y vuelve a soñar”, ocupando metade da primeira página, entre texto e foto do gol de Caniggia. O texto diz que “En Corrientes y 9 de Julio festejaron casi como si hubiesen ganado el Mundial”. El Gráfico colocou na capa: “Eliminamos a Brasil poniendo lo que había que poner”, com foto dos jogadores comemorando o gol de Caniggia. Dentro, uma reportagem diz que “eliminamos a Brasil, al candidato de todos, al gigante invencible con el que no podíamos desde hace 7 años (...) al rival que nunca habíamos podido superar en la Copa Del Mundo”. E no meio da revista tem uma foto do gol de Caniggia com o título: “El gol de la vida” e a legenda: “minuto 79, monumental arranque de Diego, habilitación a Caniggia (…) y este zurdazo con el arco vacío para estampar este 1-0 histórico”. A importância dada a esta vitória, mesmo sobre um Brasil que “no se parecía a Brasil” nos mostra a dimensão da rivalidade entre os dois países, do ponto de vista argentino. Títulos como “gol de la vida” ou “1-0 histórico” permeam as reportagens. Não há indício de provocação. As reportagens referem-se a Brasil como “el candidato de todos” ou “el gigante invencible”, enaltecendo ainda mais a “façanha argentina”. Na Copa de 1994, as matérias iniciam com elogios baseando-se no “estilo”: “Sale a la cancha Brasil. Y, por supuesto, todo es distinto (…) el eterno candidato (…) el del ‘jogo bonito’( Clarín de 20 de junho de 1994. Grifos meus)12. O primeiro indício de uma provocação ocorreu em 29 de junho de 1994, em coluna de Nestor Straimer sob o título “¿Brasil Ya Está Sufriendo?” O colunista parte de uma provocação de “O Globo”. Straimer escreve que os humoristas brasileiros “juegan con Maradona. Lo ridiculizan, lo humillan” e que dizem que “Romário

12 Neste Mundial, o colunista convidado para escrever sobre o Brasil foi o ex – técnico do Brasil nas Copas de 1982 e 1986, Telê Santana. Tornou-se comun ter um brasileiro escrevendo no Clarín, o mesmo não verificamos em O Globo.

5 demostró que es mucho más que Maradona”. E termina assim: “por todo eso, sueño con una final con Brasil. Y les pido a ellos, por favor, que sigan burlándose de Diego. El triunfo lo vamos a disfrutar muchísimo más”. Ao lado da coluna, aparece uma charge de O Globo, com Maradona levantando a camisa deixando à mostra um cinto apertando a barriga. Embaixo, Maradona gordo, roendo as unhas. O texto “Diego, según los brasileños” diz que: “En la última semana ‘O Globo’ publicó estas caricaturas de Maradona. Lo ridiculizan una vez más. ¿No será porque temen una final con Argentina? ¿No será porque Maradona volvió con todo y parece opacar la estrella de Romário?” Esta foi a primeira nota com tom de provocação e partiu de uma charge de O Globo. Ainda assim, foi uma nota isolada no meio do material sobre a Copa de 199413. Depois da vitória contra Holanda que colocou Brasil na semifinal, Clarín diz que Romário “ya perfila como el mejor jugador del mundial.” A capa da seção de esportes é: “Romariazo” (con foto grande) e a legenda diz que: “fue otra vez la figura de Brasil (…)”. A provocação de O Globo não rendeu mais que uma nota de um colunista14. No dia 11 de julho, em “Prefieren a los de Parreira”, lemos que “a pesar de la rivalidad, existente entre ambos países, los porteños desean que el próximo campeón del mundo sea Brasil, según una encuesta telefónica realizada sobre un universo de 550 personas.” E continua: “Quizás influidos por el hecho de que el equipo de Carlos Alberto Parreira es el único sudamericano que sigue en carrera, el 59,5 por ciento de los consultados elegió a Brasil com su equipo favorito”. A matéria destaca que a pergunta foi sobre qual equipe queriam que ganhassem o Mundial e não qual ganharía. A publicação da pesquisa reforça a “identidade sul-americana” e isto em um momento em que Argentina “perdeu” seu maior ídolo e foi eliminada do Mundial logo em seguida. No dia 15 de julho, Clarín publica uma reportagem sobre a final de 70, com foto de Pelé. Ao lado um box: “El Más Grande”. Uma coluna de Menotti, com o título “aquel partido glorioso”, fala do estilo brasileiro como sendo o de “toque, el talento y la imaginación al servicio del espectáculo”. Notemos o acionamento da memória do “Brasil de 70”, 24 anos depois. A final contra a Itália provocou este acionamento. Mas a reportagem corrobora que o Brasil de 70 é o paradigma do melhor futebol. E os elogios a Pelé em 1994, na Copa que Maradona foi suspenso por acusação de doping, mostra que o debate entre os dois não tinha ainda sido “construído”15. Em 1998, notamos, pela primeira vez, ainda que suavemente, narrativas de provocação ao Brasil. E isso mais no Olé do que no Clarín16. Antes da Copa, Clarín de 1º de junho lamenta a ausência de Romário. Olé, do mesmo dia, coloca a foto de Romário chorando na primeira página e diz que “(…) El

13A suspensão de Maradona neste Mundial e seu subseqüente declínio por conta da adição às drogas, somado aos fatos de que Brasil venceu dois mundiais deste então e Maradona ganhou a eleiçao da FIFA sobre o melhor jogador da história, criaram as condições para que Olé e Lance! – que surgem depois de 1996 – pudessem estimular a rivalidade entre os dois países em termos de “provocação” e “regozijo” com o fracasso do rival. Os dois diários tornaram-se referência desta rivalidade, com provocações mútuas e até mesmo edição conjunta na Copa de 1998. As matérias publicadas nestes veículos foram difundidas em jornais “não esportivos”, “influenciando” algumas de suas reportagens. 14 Ver também, Clarín do dia 14 de julho, após a vitória sobre a Suécia. A matéria “Romário colocó a Brasil en la final” diz que: “Cómo le ocurrió en todo el Mundial, el esquema de cauteloso de Parreira y la poca audacia de Brasil, terminó salvado por la gran capacidad de Romário para definir”. 15A narrativa em El Gráfico se refere a Romário como “El Chapulín”. Logo após a conquista da Copa pelo Brasil lemos que – “se ha consagrado un gran campeón”. Na mesma edição, há uma matéria com o título “El trono sigue vacante”. E, como subtítulo: “Maradona era el Rey; Romário es el Príncipe” (…) Diego fue número uno, Romário es un gran jugador”. A comparaçao aquí é com Romário e nao com Pelé, ainda que explicita a hierarquia entre os dois. 16 Olé foi lançado pelo grupo Clarín em 1996.

6 Chapulín fue el jugador que más hizo por un fútbol distinto al que jugó la mayoría” (…)”. A provocação de O Globo em 1994, ficou restrita a uma única matéria no Clarín. Até a final contra a França, as reportagens oscilam entre “Brasil no se parece a Brasil” e “Brasil es siempre Brasil”. No dia 10 de junho lemos que “es distinta la idiosincrasia del jugador brasileño (...) Pero el problema ‘moderno’ es que entregan menos de lo que pueden (…) Una pena de fútbol es ver a Brasil cuando no se parece a la estirpe de Brasil” (grifos do jornal). Lamenta-se que “Brasil não se parece a Brasil”. Não seria plausível uma narrativa que se regozijasse deste “fato”? Afinal, não é o principal rival da Argentina? No dia 8 de julho, lemos que “El gigante de los Mundiales sigue de pie” A narrativa mistura as categorias “Brasil no se parece a Brasil” e “Brasil es siempre Brasil”. As vitórias se devem a uma “tradição” que aparece devido à qualidade dos jogadores. Nesta ediçao, Clarín publicou a reportagem “Batucada” de Eleonora Gosman na qual ela diz “Estos periodistas y técnicos reconocieron, por primera vez por TV, que el sábado pasado el pueblo brasileño había festejado los goles de Holanda contra la Argentina. Hasta ayer, era un sentimiento que había experimentado en carne propia esta corresponsal, pero que nadie había admitido en público”. (grifos meus). O “povo brasileiro” comemorou a derrota da Argentina, simplesmente por comemorar, ou pelo fato de que não queriam enfrentá-la nas semifinais? De qualquer modo, o registro é um convite à rivalidade, pois informa ao leitor argentino sobre a comemoração brasileira pela derrota de sua seleção. No dia 10 de julho, lemos que “no consiguieron quebrarle la tradición al jugador nativo (…) la llama del estilo quedó encendida.” (grifos meus). Reforça-se a “tradição” baseada em um “estilo de jogo”. É um discurso que evidencia o “prazer” por esta “característica nativa” do Brasil. No dia 11 de julho, Clarín titulava: “Los Unos y Los Otros” com fotos de Ronaldo e Zidane. A a reportagem de Pagani “Así Juega Brasil” diz: “No hay manera de frenar el instinto futbolero de los brasileños (…) No hay tampoco una estructura de equipo (…) y está otra vez en la final de una Copa del Mundo. Es Brasil. Y vale el instinto entonces” (grifos meus). O mesmo Pagani assina “Así juega Francia”, fazendo elogios a Zidane. Pela forma como estão editadas as reportagens e pelos seus conteúdos, inferimos que “los unos” seriam os brasileiros e “los outros” os franceses. Identificação sul-americana por meio do “estilo de jogo” do Brasil? Brasil estava disputando seu quinto título, o que o distanciaria ainda mais da Argentina. E, mais uma vez, estamos diante de uma “construção” que “mitifica” o “estilo de jogo” brasileiro. Olé faz pela primeira vez a cobertura de uma Copa do Mundo17. As matérias começam lamentando o corte de Romário. O ex-jogador da seleção brasileira, , e vários jornalistas do jornal brasileiro Lance! escrevem colunas sobre Brasil. No dia 10 de junho Olé diz que: “Juega Brasil, el último campeón, el único tetra (...) llega com problemas. Pero siempre quiere ser ‘o mais grande’”. Esta tentativa de colocar palavras ou frases em português é freqüente no Olé. A reportagem traz um quadro sobre as Copas vencidas por Brasil. A de 1970, com foto de Pelé tem como título: “Algo Nunca Visto. No hubo nadie que pudiera contra la máquina brasileña de los cinco números 10. Será muy difícil que vuelva a aparecer un equipo igual”. Embaixo

17 Desde seu surgimento, Olé se torna muito popular, ocupando o lugar de El Gráfico. A linha editorial do jornal é provocativa e debochada. Isto ocorre também nas rivalidades locais. No que diz respeito ao Brasil, o jornal mantém um “diálogo” com o Lance! (que surge logo depois do Olé). Muitas vezes, jornalistas do Lance! escrevem artigos no Olé e o diário noticia as provocações do jornal brasileiro. Durante a Copa do Mundo de 1998 os dois – Olé e lance! – fizeram edições conjuntas, em espanhol e português, para argentinos e brasileiros que se encontravam na França, sede do Mundial.

7 da foto lemos que “en su último Mundial, se coronó como O Rei, con piruetas y goles de antología”. Destaquemos esta narrativa, já que Olé vai fazer provocações a Pelé durante a Copa de 2002 e por ocasião dos confrontos em 200518. No dia 11 de junho, lemos que “Brasil puso el hombró y zafó – (…) no jugó bien y cuando las papas quemaban ganó con un gol en contra” e ainda “Como Apichonados”. As críticas ao Brasil são permeadas por uma linguagem provocativa – “como apichonados”. Ainda assim, elas aparecem misturadas a outras de respeito19. No dia 13 de julho, após a vitória da França por 3 a 0 a manchete “¡Qué Penta!” (com um x no t) diz que “Brasil se quedó sin el quinto título y, encima, tendrá que jugar con Argentina en las eliminatórias”. Observamos ainda as manchetes “El Gallo”, com foto de Zidane com a taça e “El Pollito”, com foto de Ronaldo cabisbaixo. Olé misturou algumas reportagens com cunho mais “investigativo” com outras que se regozijavam com a derrota brasileira.

3.3 – “Provocação ao Brasil” e “Brasil es siempre Brasil”: a seleção brasileira nas matérias do Clarín e do Olé durante o Mundial de 2002 No material relativo à Copa de 2002, observamos que a categoria “Brasil no se parece a Brasil” dá lugar a uma que definimos como “provocação a Brasil”. “Brasil es siempre Brasil” continua aparecendo, mas com menos intensidade que nas Copas anteriores. A “provocação ao Brasil” é mais intensa e evidente no Olé que no Clarín. No dia 18 de junho em “Brasil com ayuda ‘extra’ y el peso de sus estrellas” lemos que “Marcos (goleiro) Ronaldo, y el árbitro jamaiquino desactivaron una bomba de tiempo y Brasil sigue con vida (…)”. Elogia-se o ataque da equipe mas, em um tom irônico, colocando o árbitro da partida fazendo parte da seleção. A categoria “provocação a Brasil” surge e começa a predominar20. No dia 20 de junho, na primeira página, a manchete “Encuesta de Clarín - ¿Inglaterra o Brasil? Que pierdan los dos” diz que “más de 18.000 personas votaron en la consulta del diario. El 52,1% dijo que prefería que pierda Inglaterra. Y el 47,9% se inclinó por Brasil”. Embaixo: “Medición de la FIFA – Diego volvió a dejar atrás a Pelé (…) La encuesta fue para armar um equipo ideal y Diego fue el más votado. Maradona:111.035, Pelé: 107.539”. Na seção de esportes lemos que “Maradona ‘venció’ outra vez a Pelé”. Sobre a outra matéria o título foi: “Los argentinos quieren um poquito menos a Inglaterra”. A pesquisa poderia ser lida como “maioria prefere Brasil”. Brasil ia para seu quinto título e Inglaterra para seu segundo, o que explicaria o “placar apertado”. Uma pesquisa como esta nas Copas anteriores teria provocado outra manchete. A narrativa sobre a pesquisa da FIFA para “armar um time ideal” aparece no Clarín em tom mais “neutro” que em Olé, como veremos adiante. Após a vitória sobre a Inglaterra, a capa do Clarín de 22 de junho, traz duas manchetes. Uma que estava em cima da foto de Beckham (jogador inglês) estirado no gramado e que dizia: “En economia, Brasil tiembla. El riesgo país se disparó y subió el dólar”. Outra, embaixo que dizia: “En el Mundial, Brasil ríe” . Interessante esta edição que tenta “compensar” uma “façanha” futebolística do Brasil com um “fracasso” econômico. Implicitamente, esta edição se encaixa em “provocação a Brasil”. Em 29 de junho lemos que: “mañana termina un Mundial (…) mediocre como pocos”. Ao qualificar a Copa como “medíocre”, se minimiza a “façanha” do Brasil que

18 Olé anuncia neste dia a edição Olé-Lance!, com 16 páginas para cada um (espanhol e português). 19 Ver Olé do dia 24 de junho, após a vitória do Brasil sobre Marrocos: “Goleó Brasil y ahora sí que mete miedo”. 20Antes, no dia 4 de junho, após a vitória sobre a Turquia, Clarín colocou na primeira página “Voce ayudó”, com foto do atacante Luisão caindo no gramado.

8 estava na final. Não encontramos esta narrativa nas Copas anteriores, nem mesmo em 1994, quando Maradona saiu da Copa sob acusação de doping e o Brasil venceu uma final nos pênaltis. Em 1994 as condições eram mais propícias para esta narrativa.21 No dia 1º de julho, Clarín coloca na primeira página uma foto de Ronaldo beijando a taça com o título: “Brasil, outra vez rey del fútbol”. Na seção esportiva, Ariel Sher diz que “a Brasil lo acompaño la actitud ganadora y su rica tradición” (grifos meus). Em um box enumeram-se 5 pontos chaves, sempre iniciando com “Eso es Brasil” (em negrito) Destaquemos a chave número 5: Eso es Brasil. Una historia que tiene nombre, camiseta, herencia (…) Brasil es Brasil casi siempre que la realidad se lo reclama. Aunque este equipo no juegue como aquellas selecciones que fueron campeonas en 1958, 1962 y 1970, aunque no tenga un genio como Pelé como conductor (…) Pero hay un hilo que no se ve y que anuda este tiempo con éste, un secreto que es casi identidad y que se revela cuando gambetea (…) o cuando alguno (…) hace un movimiento que desde la tribuna y desde la memoria se define como bien brasileño.” (O primeiro grifo – Eso es Brasil – e o último – bien brasileño – são dos jornais. Os outros são meus)

É uma narrativa “romântica” que se encaixa na categoria “Brasil es siempre Brasil”. Os recursos utilizados falam de “nome”, “camisa”, “herança”, um “fio que liga o passado ao presente”, uma “identidade” que se revela em um “estilo” “bem brasileiro”. As reportagens no Clarín oscilaram entre “provocação a Brasil” e “Brasil es siempre Brasil”, com uma leve tendência para a primeira categoria. No Olé22, de 2 de junho de 2002, lemos: “No Huyan, Cobardesl” com foto mostrando os jogadores correndo, como se estivessem “fugindo”, enquanto os reservas tentam segurá-los com cordas; um exercício comum de treinamento de resistência23. No dia 20 de junho, antes da partida entre Brasil e Inglaterra em “Mamá Yo Quiero: Se viene Brasil-Inglaterra y se largó la polémica: ¿por quién hinchan los argentinos? Por ahora el Scratch va adelante y el que no salta es un inglés.¿Y si pierden los dos?” lemos que 56,9 por cento iam torcer pelo Brasil. Olé publica uma coluna do Leo Farinella com o título “Ojalá gane Inglaterra” e outra de Adrian Maladeski com o título “Ojalá gane Brasil”. Farinella escreve: “Hay un sólo partido que quiero que Brasil gane: contra Boca. Después que pierda siempre. Que no le gane ni a Inglaterra. Los ingleses no me caen simpáticos, pero yo no mezclo (…) Yo hablo de fútbol. Y aunque muchas veces en la tribuna canté: “el que no salta es un inglés”, siento que el clásico es con Brasil. Es al rival que más odio, futbolísticamente hablando” (Olé, 20 de junho de 2002. Grifos meus)

21 No mesmo dia, o jornal publica que: “El mejor futbolista del mundo (…) hoy, en Yokohama, cumplirá exactamente sus primeros 500 meses de vida. Un “cumplemeses” que quizás hasta él ignore”. O acionamento da figura de Maradona nesta Copa e nos confrontos de 2005 “reforça” uma “memória” de um tempo glorioso do futebol argentino, em um momento onde o rival está mais em evidệncia. 22 Olé “cria” o personagem Kleber Lanatao, que seria brasileiro – está sempre com a camisa da seleção - e escreve uma coluna em “portunhol”. Por conta deste personagem o jornal recebeu muitas críticas de leitores argentinos. Em entrevista realizada com Leo Farinella no dia 3 de outubro de 2005, soube que Lanatao era uma referência ao jornalista Jorge Lanata, um dos mais críticos da política argentina, devido à semelhança física de Lanata com o jornalista do Olé. Sobre a visão crítica de Lanata sobre a Argentina, ver Lanata (2004). 23 A mesma foto aparece no Clarín do dia 1º de junho só que com a legenda: “Brasil entrena pensando em su presentación del lunes frente a Turquia”. Um discurso mais próximo da “objetividade jornalística”.

9

Em uma partida entre Brasil e Farinella torceria pelo Brasil (é torcedor do River Plate), evidenciando que as rivalidades clubísticas são maiores do que as geradas pela seleçãol24, apesar de deixar claro que Brasil “es al rival que más ódio”. Já Adrian Maladesky diz: “Hablando de fútbol y sin Argentina en la ruta, quiero que Brasil sea campeón del mundo. Puedo ¿No? (…) Más por historia (…) Pero Brasil tiene a Rivaldo, más todos los Ronaldos e inhos posibles que en cualquier momento clavan un caño, un sombrero, un poco de buen gusto. Yo no puedo tenerle bronca, porque Brasil también es Caetano Veloso, Bahía, Vinicius, Sonia Braga, Falcao, el equipo de 82 (el mejor que vi en mi vida aunque ya sé fracasó)…”(Olé, 20 de junho de 2002. Grifos meus)

O jornalista se utiliza de uma construção “essencializada” de “brasilidade” e de “futebol brasileiro” que fala de “arte” e “alegria”, juntando futebol com música e atriz- mulher brasileira (Sonia Braga). O fato de Olé publicar a coluna de Maladesky ao lado da de Farinella, mostrando duas posições antagônicas em relação ao Brasil, demonstra certa ambigüidade em relação ao sentimento que provoca o Brasil. Ódio ou ódio de amar? A citação do Brasil de 82 é, uma vez mais, emblemática. No dia da partida contra a Inglaterra (21 de junho) Olé coloca na capa um desenho de um lutador de sumô esmagando Beckham y Ronaldo (também desenhados). O título dizia: “Sumo Placer” (um jogo de palavras com a arte marcial “sumô”) e a legenda “juegan Iglaterra-Brasil y Olé te cuenta lo que debe ocurrir para que pierdan nuestros dos enemigos”. Tendo em conta a pesquisa mencionada acima e as colunas de Farinella e Maladesky, vemos que Brasil e Inglaterra são os maiores rivais da Argentina, sendo que Brasil provoca sentimentos explícitos de admiração e identificação sul-americana. No mesmo dia, Olé publica a pesquisa da FIFA: “Diego arrasó en otra mega encuesta de la FIFA y volvió a dejar claro que es más grande que Pelé. Llora Brasil”. Eles reproduzem, em um desenho, um campo de futebol com todos os 11 jogadores eleitos e dizem que, como Pelé não vai aceitar jogar com a camisa 9, eles vão colocá-lo no banco de reservas com a camisa 1325. O desenho mostra Pelé, de costas, cabeça baixa, com a coroa, e ao lado a epígrafe: “Pelé que Debutó con un Garoto”. Este “fato” de que Pelé teria tido sua primeira relação sexual com um “garoto” é muito difundida na Argentina. Nunca encontrei esta referência em jornais brasileiros26.

24 O mesmo ocorre no Brasil. Na partida entre Brasil e Japão pela Copa das Confederações 2005, os jornais brasileiros noticiaram que um percentual expressivo de brasileiros torceria pela seleção nipônica, porque – considerado o melhor jogador da história do Flamengo - era seu treinador. A polêmica ressurgiu assim que foram sorteados os grupos para o Mundial 2006 e o Japão ficou no grupo do Brasil. 25 Lembremos que a mesma notícia teve uma outra conotação no Clarín. Permanecia a idéia de “mais uma vitória de Maradona sobre Pelé”, mas o jornal não “ridiculariza” Pelé. 26 A pesquisadora Ana Paula da Silva, que realiza um trabalho sobre a biografia de Pelé, me disse não ter encontrando nenhuma referência a respeito. Notemos que as “canções” que os argentinos costumam cantar nos estádios em jogos contra o Brasil possuem conotações racistas (ou estereotipadas) e homofóbica. Uma delas diz: “Siga, siga, siga el baile al compás del tamboril, que esta noche nos cogemos a los negros del Brasil”. “Coger” em castelhano tem uma conotação sexual, de “trepar”. No entanto, esta música também é cantada nas partidas locais, trocando “negros” por “putos”. Acho importante relativizar e contextualizar um pouco o significado da canção. Ela é comum nos estádios de futebol argentino. Notemos também que a primeira versão de “Siga el Baile” foi uma canção composta nos anos 30 pelo uruguaio Alberto Castillo que “exotizava” a “brasilidade” naquilo que ela tinha de mais “mistura”, tema que era muito “problemático” para o Brasil da época. Agradeço a Pablo Seman por esta observação. A outra música mais especificamente referente ao Brasil diz: “ahora todos saben que Brasil está de luto; son todos negros, son todos putos”. Sobre os esterótipo do “brasileiro” na Argentina ver Frigerio (2002). Ele

10 Apesar de toda a provocação, na véspera da partida, o jornal publica duas pesquisas. A primeira com jornalistas do Olé e personalidades e jornalistas de outros veículos – um total de 93 pessoas. O resultado diz que 78,5 por cento (73 votos) acreditavam que o Brasil ia ganhar da Alemanha. Ao lado, temos o texto: “Acá manda la razón: los periodistas de Olé y varias figuras destacadas del fútbol argentino pensaron un buen rato y, despojados de cualquier sentimiento, dieron su veredicto. Y no hay lugar para la discusión: Brasil es claro candidato a ganarle a Alemania y lograr su quinto título mundial. Vamos hermanos brasileños, tienen nuestra confianza, no se van a caer ahora, ¿no?” (Olé, 29 de junho de 2002).

Na outra página, a pesquisa realizada com 10801 internautas na página web de Olé diz que 55,6 por cento (6030 votos) preferiam que Brasil ganhasse o Mundial. Brasil iria para seu pentacampeonato, enquanto Alemanha iria para seu tetra, o que torna o “olhar” do argentino sobre o Brasil ainda mais emblemático. Hipoteticamente falando, será que teríamos resultados semelhantes em um confronto final entre Argentina e Alemanha nas mesmas condições? O texto diz: “Acá manda el corazón. La encuesta en la página web de Olé también es clara: la gente se expresó y decidió mayoritariamente que desea que el equipo de Scolari gane el penta. Pesó, seguramente, la última final perdida por Argentina en 1990 con un penal escandaloso. Vamos, hermanos brasileños, tienen nuestra confianza, no se van a caer ahora, ¿no?” (Olé, 29 de junho de 2002)27.

A ironia continua na última frase, como padronização da matéria e marca do Olé. É reveladora a preferência pelo Brasil, ainda mais entre leitores do jornal que provocou o Brasil durante toda a Copa. A publicação e o destaque dado a pesquisa podem estar evidenciando a ambigüidade do sentimento em relação ao Brasil. “Ódio de amar”? Após a vitória do Brasil, Olé publica na capa: “Faltam 25 días para que empiece el Apertura”. No alto da página, em um espaço menor, lemos “Brasil Pentacampeón – Por Qué Ellos y no Nosotros” (com foto de Ronaldo beijando a taça). Farinella disse que, na ocasião, alguns editores queriam dar o destaque para a conquista do Brasil enquanto outros achavam que o jornal tinha que manter sua “linha editorial diferenciada”. Prevaleceu esta e aí a capa do jornal foi uma “grande piada”, já que os 25 dias para começar o campeonato argentino não poderiam despertar muito interesse28. Mas dentro do jornal, temos elogios à seleção e Ronaldinho, publicações ofensivas de cartas de brasileiros, outras de argentinos reclamando destas cartas, uma matéria sobre os mundiais ganhos pelo Brasil e uma série titulada “Porque Ellos y no Nosotros.

coloca que “quando o caso é futebol, velhos estereótipos podem vir à tona novamente e fazer com que os imigrantes se vejam em situações desagradáveis”. A tese central de Frigerio diz que os brasileiros são “exotizados” na Argentina e esta “exotização” pode ser avaliada positivamente, “levando à maior aceitação social” (Frigerio, 2002: 16). 27 Farinella acredita que muitos brasileiros votaram nesta pesquisa, já que eles acessavam a página de Olé na web e enviavam cartas para a redação (entrevista com Leo Farinella realizada no dia 3 de outubro de 2005). Ainda assim, considero o resultado significativo. Hipoteticamente pode ser que, sem os votos dos brasileiros, o resultado ficasse em 50 por cento e não em 55,6 por cento, o que continuaria sendo significativo, tendo em vista a intensidade da rivalidade, a provocação do jornal e o fato de que o Brasil estava indo para sua quinta conquista Mundial, se distanciando ainda mais da Argentina. 28 Entrevista com Leo Farinella realizada no dia 3 de outubro de 2005.

11 Uma razão das publicações das cartas dos brasileiros pode ser para demonstrar que o jornal é “democrático”29. Outra pode ser a de tentar estimular ainda mais a rivalidade.30 Na matéria sobre as Copas vencidas pelo Brasil, a que se refere a 1970 diz: “El Equipo Maravilla” e “casi todos eran creadores, con un solista impresionante como Pelé. Fue acaso la mejor selección de todos los tiempos” (Olé, 1º de julho de 2002). Não há ironias a Pelé e a “seleção de 70” é reverenciada como a “melhor da história”. Na série de reportagens sobre “porque ellos y no nosotros”, Roberto Perfumo, ex- jogador de futebol do Cruzeiro nos anos 70 e atualmente jornalista do Olé diz que os brasileiros são mais “habilidosos”, enquanto que os argentinos são mais “fortes” e se adaptam melhor em condições adversas. (Olé, 1º de julho de 2002). Notemos, no entanto, que o quesito “força” é antagônico à “construção” do futebol argentino, mas ele vai ser acionado nos confrontos com o Brasil na atualidade.

3.4 - “Jogo bonito”: Brasil e Argentina nas matérias do Clarín, Olé y La Nación entre os dias 6 e 10 e entre os dias 28 e 30 de junho de 2005 A coleta de material relativo aos dois confrontos entre Brasil e Argentina em um espaço de 21 dias em junho de 2005, bem como minha presença in loco em Buenos Aires nas duas ocasiões, foram de muita valia para a análise. Se para os articulistas argentinos a “essência” do futebol argentino está no “futebol criollo”, não inglês, e seu emblema é a “gambeta”, característica típica dos “potreros”31, para os articulistas brasileiros (principalmente o jornalista Mario Filho, com o “aval” do sociólogo Gilberto Freyre32), a “essência” do futebol brasileiro está no “drible”, no “jogo de cintura”, na “malandragem”, características que se aprendem no “futebol de rua”, e onde sua principal figura é o negro, o mestiço, o “futebol não- branco.” Os argentinos “construíram” uma imagem de futebol nacional muito semelhante à dos brasileiros. O que eles fazem então quando olham para “nós”? Identificam-se conosco ou constroem um outro sentido de “argentinidade”? No Mundial de 1970, notamos a existência de uma identificação com o Brasil. No entanto, nestes confrontos de 2005, ao se deparar com o Brasil, o argentino “muda sua identidade” e traz para si um elemento mais “europeizado” que seria a “força”. Não é que este atributo não exista na Argentina, mas ele é secundarizado nas partidas com os europeus. Nestas partidas contra o Brasil, evidencia-se a crença de que os brasileiros são os donos do “jogo bonito”. A identidade do futebol argentino atrelada ao “futebol-arte” se modifica diante do Brasil33, visto como emblema deste futebol.

29 Farinella disse que a razão estava em que o “jornal tinha respeito pelos seus leitores e havia muitos leitores brasileiros”. (Entrevista realizada no dia 3 de outubro de 2005). 30 Mas por que os brasileiros debocharam tanto da Argentina? Foi porque ela era favorita e foi para “casa” mais cedo? Esta pode ser uma resposta plausível. Mas comemorar o triunfo sobre a Alemanha “debochando” dos argentinos pode estar dizendo algo a respeito do “amor de odiar”. O Globo de 3 de junho de 2002 publica uma matéria com o título: “Cariocas viram a noite para torcer contra a Argentina”. Em nenhum momento apareceu um registro semelhante no Olé. Devido à linha editorial do jornal, seria improvável Olé não fazer este registro, caso ele tivesse ocorrido. 31 O jornalista que influenciou a “construção” simbólica deste “estilo argentino” foi Eduardo Lorenzo, o Borocotó. A gambeta pode ser definida como o drible com malícia, jogo de cintura, com “malandragem”. Na Argentina se usa a expressão “viveza criolla”. Já “potrero” teria seu similar no Brasil nos “campos de várzea”. Ver Alabarces (2002), Archetti (2003) e Caparrós (2004). 32 Freyre assina o prefácio de O Negro no Futebol Brasileiro de Mario Filho, o que conferiu ao livro um estatuto quase “acadêmico”. A este respeito, ver a crítica de Soares in Helal, Soares e Lovisolo (2001) 33Estamos partindo da identidade “construída” pelos argentinos de seu futebol, tendo como base as análises de Archetti (2003), Alabarces (2002) e Caparrós (2004). Ver também Guedes (2002) para uma análise sobre estas “constuções” nos dois países. Guedes aponta que “nossas diferenças” situam-se nos

12 Em 6 de junho, Olé dizia que “con fallos polémicos, Brasil se puso 2-0. Y después, baile y floreo”. Ao lado aparece uma foto de Simeone, ex – jogador da seleção argentina e que estava promovendo a partida no país, com a frase “Brasil saca cracks y Argentina, grandes jugadores`”. Esta frase será repetida diversas vezes nos dois confrontos. Oscar Ruggeri diz que Brasil “históricamente, a ellos siempre se les complica cuando tienen que venir a jugar acá”. Esta foi uma crença muito difundida: o Brasil “treme” quando joga contra a Argentina, principalmente quando a partida é no Monumental de Nuñes. A frase completa de Simeone diz: “La diferencia es que ellos siguen sacando cracks (…) y nosotros tenemos un montón de grandes jugadores, pero que se abastecen del equipo (…) Pero Brasil tiene este don de ganarte con la inspiración de uno.”(grifos meus). A Argentina teria que jogar “coletivamente” para vencer aos que têm inspiração “individual”. É o mesmo antagonismo que encontramos na construção do futebol argentino diante de seu “outro”, o inglês. Só que aqui os papéis estão invertidos. No La Nación de 6 de junho, Juan Pablo Varsky diz: “Ronaldinho ama al fútbol. Lo disfruta, se divierte, transmite alegría (…) por eso, también nosotros estamos contando las horas para verlo jugar 90 minutos” (grifos meus). A “essencialização” da “alegria” e o registro de que os argentinos estão “contando as horas para ver Ronaldinho por 90 minutos” corrobora a frase de que os argentinos “odeiam amar os brasileiros”. No dia 7 de junho, Olé traz uma entrevista com Caniggia falando sobre a vitória Argentina na Copa de 1990. Rememorar esta vitória “engrandece” a Argentina diante de um rival que vem “agrandado”, conforme eles escreviam. O Clarín do mesmo dia, destaca “La Selección tiene su R” e publica uma entrevista com Riquelme dizendo que “a seleção argentina é a melhor do mundo”, discordando frontalmente de Simeone. La Nación de 7 de junho diz que “el espíritu colectivo de la Argentina y la distribución de los volantes (…) serán vitales para superar el brillo individual de los brasileños”. “Espírito coletivo” e “distribuição de jogadores de meio campo”, são elementos do “futebol inglês” na construção do “futebol argentino”. No dia 8 de junho, dia do confronto, os três jornais traziam na capa a foto de Maradona abraçado a Ronaldinho Gaúcho. O Clarín legenda a foto: “El más grande y su discípulo” e diz que “fue un auténtico abrazo de fútbol entre el jugador más extraordinario que dio la historia, , y su posible heredero, Ronaldinho”. Olé a legendou assim: “el mejor de la historia con el mejor de hoy. Jogo bonito”. Observemos aí a expressão “jogo bonito”, em português, como é freqüentemente escrita ao referir-se ao Brasil. Esta foto aciona a memória de um passado recente onde o mito do “futebol criollo” estava em evidência na Argentina e demonstra a tensão entre a “construção” do futebol argentino e os atributos “europeizados” acionados no confronto com o Brasil. Com a vitória da Argentina por 3 a 1, os jornais publicaram matérias com fotos nas primeiras páginas. No Clarín, quase toda a capa está ocupada por uma foto de Crespo e Riquelme e o título: “Argentina Gozó con Brasil y va al Mundial”. Na seção de esporte lemos que “el brillo propio de la selección apagó a las estrellas de Brasil” e que “por eso la alegría esta vez fue sólo Argentina34” (Clarín, 8 de junho de 2005. Grifos meus). En La Nación, Daniel Arcucci menciona a foto de Maradona com Ronaldinho e diz que “hoy por hoy, la Argentina debía recurrir a la historia – y a la más rica – para oponerse a los Ronaldinho (…)Hoy la Argentina debe recurrir más que elementos étnicos que compuseram a história de Brasil e Argentina: “de um lado italianos, espanhóis e gauchos, de outro indíos, negros e brancos”. 34 Uma música de Charly Garcia diz que “la alegría no es sólo brasileira”. Se chama “Yo no quiero volverme tan loco”. O mito da “alegria brasileira” é evidente nas análises sobre o futebol brasileiro.

13 nunca al conjunto para oponerse a las individualidades” (La nación, 9 de junho de 2005. Grifos meus) A narrativa explicita a tensão entre futebol “coletivo” e “jogo bonito”, que seria a “marca” do Brasil, apesar de estar na “construção” do futebol argentino e na figura de Maradona. A Argentina derrota o “jogo bonito” com atributos “europeus”. Nos momentos de “crise de estilo” no Brasil, como em 82 e 94, não atribuímos ao nosso “outro” elementos estéticos de jogo. Quando o fazemos, o colocamos sob a rubrica “futebol sul-americano”. O nosso “outro” não é visto da mesma forma como eles se vêem em suas “construções”. No Olé, Farinella diz que “los cracks no eran ellos, eran los nuestros. Para no exagerar, porque después en el Mundial los negritos se despiertan, digamos que anoche los cracks fueron los nuestros” (Olé, 9 de junho de 2005. Grifos meus). Apesar do estereótipo (“negritos”), evidencia-se a tensão mencionada acima, dizendo que “eles” foram “nós”. É uma declaração de admiração, que mostra a eficácia da construção do “estilo brasileiro” na visão do nosso “outro”. O material mais emblemático deste período foi publicado nas páginas 20 e 21 do Olé de 10 de junho: uma foto “maquiada” dos onze jogadores argentinos. Todos estão escurecidos, com os lábios grossos, como se fossem negros. Embaixo da foto, no canto direito, está escrito: “Jogo Bonito”. Preconceito ou estereótipo? Naquela seleção brasileira só Kaká era branco, por isso, aposto em estereótipo. Era como se a foto estivesse dizendo tudo que Farinella e outros estavam colocando. Algo como nesta partida “nós” fomos “vocês”. Desprezo pela superioridade esportiva e racial que não era tanto (pelo menos neste dia) ou uma forma de ostentar um dos traços do “outro”: sua estirpe negra de campeões históricos? São questões importantes para pensar35. Brasil e Argentina se classificaram para a final da Copa das Confederações realizada na Alemanha em 2005. Ao mesmo tempo ocorreria também um confronto entre as equipes sub 20 pelas semifinais e um outro entre São Paulo e River Plate pela Copa Libertadores da América. Por conta da vitória nas eliminatórias, as matérias antes da partida eram mais otimistas e o elemento “europeu” foi menos acionado. Olé de 28 de junho coloca na capa um boneco de Pelé (o rosto é uma foto de Pelé) todo espetado, como se fosse um vudu, com o texto: “Hoy debutamos con los pibes y mañana vs. los hijos mayores. Argentina-Brasil, el mayor duelo del fútbol mundial, dos días en continuado a pura final. Vamos muchachos, no nos pinchen la ilusión”. En La Nación do mesmo dia, Daniel Arcucci fala de “duelo de estilos, los nombres de los dos más grandes jugadores de la historia como reyes (…)” (La Nación, 28 de junho). O texto não especifica quais são os estilos de Brasil e Argentina, mas se refere a Pelé e Maradona como os maiores da história. No dia 29 de junho, após a vitória Argentina sobre o Brasil na Sub 20, Olé traz uma foto de Messi com o título: “O Rei: Messi es el Diego del sub 20”. Ao lado da letra “O”, o boneco-vudo de Pelé. Atentemos para o título em português: “O Rei”. Lemos também que depois de muito tempo a Argentina “enfrentará a Brasil a la brasileña o a la argentina (...) Brasil siempre es Brasil, con cualquier DT. Argentina varió su identidad cada vez que asumió un técnico. Y la elegida en este caso se asemeja muchísimo a la brasileña” (Olé, 29 de junho de 2005. Grifos meus). Temos a crença de que Brasil nunca abandonou seu estilo e a afirmação que esta Argentina se parece com o Brasil. Estaria o “fútbol criollo” se aproximando do “jogo bonito”? Após a derrota por 4 a 1 e a conquista do Brasil, Clarín e La Nación do dia 30 de junho colocaram fotos dos jogadores argentinos de cabeça baixa, recebendo a medalha

35 Sou grato a Fernando Andacht pelas observações a respeito desta foto.

14 de vice-campeões, na primeira página de suas edições. La Nación titulou a foto: “La alegría fue sólo brasileña”. Daniel Arcucci escreve: “La imagen era la misma, repetida tantas veces en los últimos años (…) Brasil levantando una Copa por allá, Argentina lamentándose por acá. Los cracks con camiseta verdeamarelha, los buenos jugadores con camiseta argentina”. A frase de Simeone é destacada nas matérias. Arcucci aponta “Los diez golpes que llevaron al knock-out”. A razão 9 dizia: “Porque se provocó al monstruo…”. E a razão 10 fala que “la máxima de Simeone, tiene más vigencia que nunca: Brasil tiene cracks. La Argentina buenos jugadores.” Clarín, com foto semelhante a do La Nación, titulou: “La derrota que más duele” e diz que “quedó claro que el potencial de Brasil es de otra categoría que supera ampliamente el buen material que pueda tener Argentina” (grifos do jornal). Miguel Bossio escreve: “(…) quedó comprobada una vez más la máxima que anda dando vueltas desde hace tiempo en el mundo futbolero: que Argentina cuenta con muchos buenos jugadores, pero que Brasil es el único que tiene los cracks.” O texto diz que os jogadores brasileiros saíram do vestiário “cantando alegremente” e que “no hablaron con la prensa, pero a nadie le importó: dieron una lección de alegría difícil de imitar. Muy difícil…” (Clarín, 30 de junho de 2005. Grifos meus). O tema da alegria e toda a sua dimensão mítica. Na seção cultural do jornal, uma charge com os mapas do Brasil e da Argentina, com a legenda: “!Una transfusión de alegría, por favooor!” Olé publicou uma de suas capas mais famosas. Jornais brasileiros noticiaram o fato e, segundo o Olé, jornais de todo o mundo. Na capa só havia o seguinte texto em um fundo amarelo: “ERROR: 30-06-2005. Por razones técnicas no se pudo imprimir esta tapa. Disculpen, hasta mañana” (Olé, 30 de junho de 2005). Dentro do jornal, a reportagem de Marcelo Sottile titulava: “Felicitaciones: por un rato dan ganas de aplaudir a Brasil”. E o texto começa advertindo ao argentino fanático para não ler a nota pois “por un día, o por un rato dan ganas de aplaudir a Brasil con más envidia que odio por el talento ajeno” (Grifos meus). O jornalista fala de “batucada” e diz que: “Así se muestran. Bailando con sus mejores sonrisas, cantando ante ojos extraños como un grupo que se divierte sin que los rivales le saquen la pelota. Porque son así, son profesionales del juego bonito (…) Como supo decir Simeone: Brasil tiene varios cracks. La Selección grandes jugadores. (….) A decirlo de una vez: felicitaciones. Igual. Maradona es argentino. Y fue mejor que Pelé…” (grifos meus)

A narrativa louva o futebol brasileiro, com os estereótipos de “alegria” e “diversão”. No final, logo após os “parabéns”, vem a frase que “Maradona é argentino e foi melhor que Pelé”. Se no “olhar” argentino, a marca do futebol brasileiro é o “jogo bonito” – que talvez seja o ideal do “fútbol criollo” -, o jogador que mais soube jogar desta forma é argentino. A referência a Maradona nos dois confrontos de 2005 é emblemática. Pois se nestas partidas, a Argentina buscou atributos considerados mais “europeus” – futebol coletivo, marcação e força – a figura de Maradona seria o contraponto destes atributos, remetendo o leitor à “construção” do futebol argentino36.

3.5– Considerações Sobre “Argentina Vê o Brasil”

36Farinella, na entrevista concedida ao pesquisador, afirma que “Excepto sacando el caso de Maradona a nosotros nos gustaría tener los jugadores que tienen Brasil”. E depois explica que Maradona tinha todos os atributos do “fútbol criollo” somados à “garra”, ao fato de “jogar com o tornozelo inchado”, por exemplo. Teríamos assim, condensadas em sua figura, um ideal do “melhor futebol”: aquele que consegue juntar o “jogo bonito” (marca registrada do Brasil no “olhar” argentino) com a “garra” (elemento mais acionado pelos argentinos nos confrontos com o Brasil).

15 Tendemos a olhar o “outro” de forma “homogênea” e, neste processo, os recursos acionados são invariavelmente os estereótipos. As relações entre brasileiros e argentinos não poderiam ficar imunes a este processo de homogeneização, principalmente em um terreno onde as rivalidades se acirram. Na análise do material ficou evidente a estereotipização no “olhar” argentino sobre o futebol brasileiro. Características como “alegria” e “diversão” e são vistas como marcas intrínsecas do futebol brasileiro. E elas juntam formam o que se denominou chamar de “jogo bonito”. O futebol argentino foi “construído” com atributos do “futebol-arte” em oposição à “rigidez de esquemas táticos”, entendida como “futebol-força”, onde o principal antagonista seria o inglês. O que fazem então os argentinos quando “olham” para seu vizinho que “construiu” seu futebol em bases semelhantes? Pela análise do material da Copa de 1970, o “olhar” marca uma identificação com o Brasil. O fato da Argentina não ter participado daquela Copa pode ter sido uma das razões para o acionamento desta identificação, como uma forma de “construir” o pertencimento. Pelas análises do material relativo às Copas desde 1974 até 1994, as narrativas se alternavam em duas categorias: “Brasil no se parece a Brasil” (categoria saudosista) e “Brasil es siempre Brasil” (categoria de reforço de uma “tradição”). O “Brasil no se parece a Brasil” nunca é visto como regozijo. E no “Brasil es siempre Brasil” admira-se o “estilo de jogo”, “construído” com atributos presentes na “construção” do “fútbol criollo”. Nas Copas de 1998 e 2002 (principalmente nesta) observamos a categoria que denominamos de “provocação ao Brasil”. Ainda assim, mais no Olé do que no Clarín. No entanto, o “Brasil es siempre Brasil” não desapareceu neste período. Nas análises dos confrontos de 2005, percebemos uma “mudança” na identidade argentina. Elementos mais secundarizados vem à tona: a “força”, o futebol coletivo, que seriam nas “construções” do passado, típicas do futebol inglês. Seja na identificação ou na marcação de uma “outra singularidade” argentina (mais européia37), a admiração pelo futebol brasileiro é explícita na maioria das matérias analisadas.

4- O Brasil Vê a Argentina: a seleção argentina de futebol na imprensa brasileira 4.1 “Argentina Europeizada” e “Argentina Sul-Americana”: a seleção argentina nas matérias do Jornal do Brasil nas Copas do Mundo de 1978 e 1986 No material relativo aos dois Mundiais vencidos pela Argentina as narrativas oscilavam entre “Argentina Euopeizada” e outras que a vêem jogando o “futebol-arte”. A “Argentina Europeizada” é narrada como um abandono de suas “origens” e a Argentina com “futebol- arte” representa a “escola sul-americana”. Em 1986, as

37 Gustavo Ribeiro (2002) pensa que é a Europa o “grande e subjacente referencial distintivo da argentinidade”. Falando de futebol, creio que há uma tensão entre os referenciais “criollistas” e “europeístas”, mas com um predomínio dos primeiros. A revista Viva do Clarín do dia 31 de julho de 2005 publica uma matéria sobre estrangeiros que vêm para Buenos Aires para filmar ou “fazer negócios” e sobre argentinos que são contratados por empresas de outros países depois da crise de 2001. A matéria destaca a frase de um cineasta italiano: “Nunca antes, en ningún país, había encontrado semejante adaptabilidad al trabajo y a las circunstancias imprevistas que suelen surgir en los sets de filmación. Aquí, ningún problema tarda más de cuatro o cinco minutos en superarse; siempre hay predisposición, ingenio y mucha maña, como dicen por acá” (grifos da matéria). Temos aí um estereótipo mais próximo do “ethos criollista” ou do jeitinho brasileiro”. Em outro momento, a matéria destaca a seguinte epígrafe, retirada da fala de um dos entrevistados: “La garra, el ingenio, y el compromiso con el trabajo son valoradas por los extranjeros que nos contratan”. Aqui temos a junção de esterótipos “criollistas” (ingenio) con otro más “europeísta” (el compromiso con el trabajo) como sendo a marca da “argentinidade”. A narrativa deixa transparecer uma tensão existente entre os dois referenciais, mesmo em Buenos Aires.

16 matérias evidenciavam a torcida pela Argentina, principalmente por Maradona, demonstrando que a “provocação” ao rival, também é recente no jornalismo brasileiro. Na Copa de 1978 a tensão entre o estilo “europeu” e o “sul-americano” aparece logo no início. No dia 3 de junho, em “Argentina derrota a Hungria com a arma dos europeus” lemos que “embora pareça paradoxal, o triunfo argentino foi conquistado mais com as qualidades geralmente atribuídas as equipes européias – a força e a preparação física do que com a técnica decantada dos sul-americanos”. A narrativa se adequa à “Argentina europeizada”, mas ao falar do que se esperava da Argentina a engloba dentro da “técnica sul-americana”. Esta identificação é semelhante à narrativa argentina sobre o Brasil neste período. A diferença é que não há uma seleção argentina como referencial (como o Brasil de 70 na imprensa argentina). A questão do estilo volta a aparecer em “Argentina e Polônia (...) se enfrentam numa partida em que novamente a rigidez de esquemas da escola européia poderá ser confrontada com a habilidade e o jogo descontraído, características do futebol sul- americano.” (14 de junho). O futebol argentino “representa” um “estilo” que se baseia na “habilidade”, no “jogo descontraído” que seriam “características do futebol sul- americano.” A narrativa não chega ao “deslumbramento” da imprensa argentina com o “jogo bonito” do Brasil. Lembremos, que neste período o “olhar argentino” sobre o futebol brasileiro o caracterizava como “Brasil no se parece a Brasil”. Este “olhar” foi registrado no Jornal do Brasil, em uma entrevista do então técnico da seleção argentina, César Luiz Menotti, no dia 18 de junho de 1978, na qual ele diz que “só teme no jogo de logo mais, que seus jogadores se deixem influenciar de forma negativa pela mística que envolve a seleção brasileira (...) O tema da palestra antes do jogo já é conhecido por todos: o Brasil não é mais o mesmo.” O registro é distinto ao publicado no Clarín na ocasião que dizia que Menotti afirma que “Brasil es siempre Brasil”. Só após o empate, Clarín “explica” o empate pelo “temor” que a camisa brasileira continuava impondo. Pode ser que a entrevista de Menotti seja a mesma e que os dois jornais a editaram de forma distinta, superdimensionando certas frases e minimizando outras. Após a goleada da Argentina sobre o Perú (6 a 0) que eliminou o Brasil38, as manchetes diziam: “Coutinho39 acusa Peru de facilitar o jogo” e “Técnico do Perú não aparece para explicar goleada”, registrando que “quando deixou o gramado fez questão de apertar a mão de todos os adversários e, como a torcida insistia em gritar o seu nome (já em tom de gozação) ficou encabulado baixou a cabeça e deixou o campo”. As matérias criticavam o Brasil ao mesmo tempo em que insinuavam favorecimento do Peru para a Argentina. Na Copa de 1986, as reportagens exaltavam Maradona e identificavam o “estilo de jogo” da Argentina, como um “estilo” “sul-americano”. No dia 15 de junho, véspera da partida contra o Uruguai, a rivalidade entre os dois países é destacada. Em uma entrevista Maradona diz que “os uruguaios não gostam de perder, e às vezes usam de muita energia. Eu diria até demais (...)” E este tom continua no dia seguinte: “até hoje elas só se enfrentaram uma vez em Copa do Mundo, na decisão do primeiro mundial o de 1930, em Montevidéu, ganho pelos donos da casa. Mas desde aquele encontro que entrou para a historia como a ‘Batalha do Prata’.” (grifos do jornal). Notemos o destaque dado à rivalidade contra o Uruguai naquele momento. Durante décadas, a rivalidade futebolística entre Brasil e Uruguai também era muito grande, devido à derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 1950.

38 O Brasil terminou com o mesmo número de pontos que a Argentina, mas foi eliminado no saldo de gols. A Argentina deveria vencer o Perú por uma diferença de quatro gols e acabou marcando seis. 39 O então treinador da selção brasileira Claudio Coutinho.

17 Em 22 de junho40, o noticiário sobre Argentina e Inglaterra titulava: “Força contra a arte na ‘guerra’ do futebol” com o texto dizendo “Os ingleses são a força (...) os argentinos a arte” e que “estarão em confronto as escolas sul-americanas, comandada por Diego Maradona, e a européia, liderada pelo apoiador Hodge.” (grifos meus). Notemos a palavra arte para adjetivar o futebol argentino e que no momento em que a Argentina é superior (Brasil havia sido eliminado) e possui Maradona como o “jogador da Copa”, seu “estilo” é fortemente englobado pelo “sul-americano”. Após a vitória sobre a Inglaterra, Jornal do Brasil de 23 de junho, colocou na primeira página uma foto no alto de Airton Senna vencendo uma corrida de Fórmula 1 e outra, embaixo, de Maradona com a legenda: “Maradona dá o drible final em Shilton no gol mais belo da Copa”. A vitória de Senna aparece com mais destaque do que a vitória Argentina. Esta “edição” pode estar “compensando” o fato de que Brasil tinha sido eliminado pela França. Na seção de esportes, João Saldanha41 escreve que: “Bilardo armou uma defesa bastante sólida, que eu mesmo duvidava que pudesse ser feita por sul-americanos.” Aí a narrativa tende para “Argentina europeizada”, porém em tom elogioso. Temos ainda a manchete “Genialidade e esperteza no ‘show’ de Maradona”. São varias fotos de Maradona driblando com a legenda: “Segurar Dieguito era impossível e aos ingleses só restou a alternativa de caçar o dono da bola e do jogo”. A narrativa junta “talento” com “esperteza” características muito cultuadas nas narrativas de trajetórias de vida de nossos ídolos esportivos42. Talvez, se a jogada tivesse sido executada por um brasileiro, a palavra “esperteza” seria substituída por “malandragem”. De fato, ambas as culturas se crêem “donas” desta característica43. Desde momento em diante, as narrativas sobre a Argentina são quase todas englobadas pelas de Maradona. Em 26 de junho, lemos que “Maradona leva a Argentina à final” com adjetivos como “craque excepcional” e Argentina é “o time de Maradona”. Para a partida final, as narrativas vão ganhando contornos ainda mais “míticos”. Em 29 de junho, Jornal do Brasil dizia que “o futebol tem um novo rei. Talento, astúcia e surpresa fazem dele o novo gênio dos estádios. Em seus pés a bola parece pequenininha e dominada pela magia: dela ele faz o que quer para o drible irresistível, o lançamento mortal ou o gol diabólico.” (grifos meus). A reportagem fala da trajetória de Maradona, e diz que agora ele “está mais maduro, luta pela fundação de uma classe dos jogadores de futebol para se organizar e lutar por seus direitos.” O jogador é exaltado por seus atos dentro e fora de campo. Em “O Dia de Maradona”, Sandro Moreyra44 escreve: “Vou torcer pela Argentina, levado pelo futebol de Maradona, que me encanta desde que o vi jogar ainda com 19 anos, jogando pelo Boca Juniors [...] Agora, com 25 anos (...) Maradona viu chegar o momento de se tornar, aos olhos do mundo, o verdadeiro sucessor de Pelé (...) Os alemães tem mais equipe, mais forca técnica. Mas tudo pode cair diante de Maradona. Ele sozinho pode traçar

40 Neste dia, o jornal noticia a eliminação do Brasil para a França com a manchete “Belo futebol e muita emoção no adeus do Brasil à Copa”. 41João Saldanha era um dos jornalistas mais importantes daqueles tempos. Saldanha foi inclusive técnico da seleção brasileira nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970 42 Para uma análise comparativa entre as biografias de Romário e de Zico, duas figuras antagônicas na mitologia do futebol brasileiro, ver Helal (2003 ) 43 Bernstein (1997) em uma análise sobre Maradona diz que: “de los diversos atributos que el azar, la divina providencia o ls inescrutables leyes del cosmos suelen agraciar a los hombres, existen dos, al parecer, com los cuales se ha distinguido a los argentinos: el talento y la trampa (grifos do autor). É muito provável que o mesmo já tenha sido dito por vários escritores brasileiros ao tentar definir a cultura de seu país. Em termos sociológicos, DaMatta (1978) trouxe para academia o tema da “malandragem” como emblema definidor do “caráter nacional”. 44 Moreyra era junto com Saldanha e Armando Nogueira um dos colunistas mais influentes da época.

18 os destinos desta Copa. E tomara que consiga. O futebol-arte precisa vencer. Sua vitória vai esvaziar o balão desse gente que levou o futebol brasileiro a uma ridícula tentativa de imitar os europeus.”(grifos meus)

Tal como ocorreu com os correspondentes argentinos na Copa de 1970, o colunista deixa a “objetividade jornalística” de lado e explicita que está “extasiado” com Maradona e que a torcida pela Argentina, “levado pelo futebol de Maradona”, é uma “torcida” por um “estilo de jogo” identificado com as “raízes” do futebol brasileiro que teria “tentado imitar os europeus”. No dia 30 de junho, após a conquista do bicampeonato pela Argentina, Jornal do Brasil coloca, na primeira página, a foto de Maradona beijando a taça e ao lado: “Argentina ganha a Copa em jogo de muita emoção”. Embaixo, o registro que “Beckenbauer, técnico da Alemanha (...), reconheceu os méritos dos argentinos a cujo futebol classificou de ‘primitivo’, no sentido de mais espontâneo, mais próximo dos princípios do jogo.” (grifos meus). É uma narrativa “romântica”, “nostálgica”, que qualifica de “primitivo” – porém “superior” – um futebol mais “próximo dos princípios do jogo”. Enquanto os jornais argentinos, em situações semelhantes a essa (como na Copa de 70 ou nas partidas de 2005) definem este futebol de “jogo bonito”, a imprensa brasileira não se refere a este “estilo” como “fútbol-criollo”. A marca definitória continua sendo “futebol-arte”, tal como os brasileiros vêem seu próprio futebol. Na seção de esportes, a manchete dizia “Armando Diego Maradona é campeão do Mundo e a Argentina também”. É uma narrativa em cima de um jogador.. Nas narrativas argentinas sobre o Brasil de 70 destacava-se a figura de Pelé, mas falava-se muito bem do time brasileiro. No entanto, a coluna de Saldanha enfatiza a preparação da Argentina: “Os alemães tão científicos nas suas coisas cometeram um gravíssimo erro. Não estavam adaptados [a altitude]. Os Argentinos estavam tão bem preparados que davam a impressão de poder jogar outra partida.” O Brasil de 70 também havia se preparado muito, apesar de que as narrativas pós 70 só enfatizam a “arte” e a “magia” daquela seleção45, tanto nos jornais brasileiros quanto nos argentinos. Porém, Moreyra, em “A beleza vence a força física” diz que: “Faltam seis minutos para terminar o jogo quando começo a escrever esta coluna. O Estádio Azteca está em delírio. A Argentina acaba de marcar o seu terceiro gol (...)Depois de assistir a tantas finais de copas, pensei que não me emocionasse mais (...) O gênio de Maradona me reabilitou para o futebol do qual andava descrente (...) Pelo seu talento inigualável, vi que ainda se pode, com arte e beleza, vencer a forca física e a correria desabalada (...) O time da alemanha é tecnicamente bom, mas seu forte está no físico avantajado de seus jogadores e na saúde de touro de exposição que todos ele tem. A Argentina ao contrário, joga no toque de bola, usa o drible, tem criatividade e tem Maradona. O talento venceu o músculo e quando isso acontece sempre é bom.” (grifos meus)

O colunista explicita sua emoção: está escrevendo a coluna quando ainda “faltam seis minutos para terminar o jogo”. A razão desta emoção é o “gênio de Maradona” e aí ele não poupa adjetivos: “talento inigualável”, “arte e beleza”, “criatividade” etc. Moreyra produz uma narrativa semelhante as que encontramos na imprensa argentina sobre a seleção de 70 e em outros Mundiais. A diferença estaria no fato de que o

45 Uma vez mais ver Soares, Helal e Santoro (2004). Ver também a matéria “Talento e coração fazem o campeão do mundo” do mesmo dia, onde o tom é semelhante à coluna de Saldanha. Mas foram exceções no período.

19 colunista centra sua narrativa em torno de um único jogador: Maradona. E, neste sentido, sua coluna está mais encaixada dentro do bojo das narrativas desta época.

4.2 – “Argentina Europeizada” e “Provocações à Argentina: a seleção argentina nas matérias do O Globo nas Copas do Mundo de 1998 e 2002 Para as Copas do Mundo de 1998 a 2002, o jornal utilzado foi O Globo, que tal como Jornal do Brasil, é um jornal que circula nas capitais mais importantes do país. Nestas Copas, as categorias observadas anteriormente voltam a aparecer. Porém, em 2002 a categoria predominante passa a ser “provocação à Argentina” . No Mundial de 1998, as narrativas se encaixam na categoria “argentina europeizada”, apesar de que encontramos narrativas provocativas, principalmente nas colunas do jornalista Renato Mauricio Prado. Após a vitória de 1 a 0 sobre o Japão, Renato Maurício Prado escreveu no dia 15 de junho: “e o Japão, hein? Com um ‘tamagochi’ no gol e um tal de ‘nana-neném’ no meio-campo, deu um calor na Argentina no final do jogo e podia até ter empatado. Tal como a grande maioria dos favoritos desta Copa, o time de ficou devendo na estréia.” E mais adiante registra que “o japonesinho que fez aquela tremenda jogada (passando pelo meio de dois argentinos) no final da partida é brasileiro naturalizado - chama-se Lopes.” Por um lado, poderíamos dizer que Prado estaria provocando os japoneses, com adjetivos pejorativos (“japonesinho”, “tamagochi”, “nana-neném”). Mas ao utilizar estes recursos para falar da seleção japonesa, o colunista ridiculariza a Argentina. As colunas de Prado geralmente possuem este tom, mesmo nas partidas locais. Não podemos afirmar que seja algo deliberado contra a Argentina. Sua coluna é para ser “lida” da mesma forma como “lemos” Olé. Na reportagem sobre a vitória Argentina lemos que “a Argentina ficou devendo, pois foi ameaçada pelo Japão (...)”.A idéia de que a Argentina ficou devendo é semelhante à que vimos em narrativas argentinas sobre o Brasil. Não arriscaria uma categoria como “Argentina não se parece à Argentina”, já que o jornalismo brasileiro não “definiu” uma seleção específica como parâmetro do futebol argentino”46. Dentro da categoria “argentina europeizada” temos o registro Simeone afirmando que a seleção “vai continuar jogando com um esquema tático rígido e defensivo e que priorize o resultado”. No entanto, após a vitória sobre a Jamaica por 5 a 0, O Globo de 22 de junho, em uma narrativa repleta de analogias relacionadas ao tango, diz: “O Estádio Parc des Princes, em Paris, viveu ontem um animado baile, cadenciado no ritmo de Carlos Gardel. (...) O tango, porém, não é daqueles ritmos que sugerem dançarinos solistas. Faltava a parceria ideal para o brilhante Ortega. De jogada em jogada, o até então apagado Batistuta não resistiu e se deixou contagiar pela sintonia fina do futebol argentino.” (grifos meus)

É uma narrativa “romântica” que mistura futebol com tango, produzindo “essencializações” semelhante às que os jornais argentinos fazem com o Brasil, ao juntar futebol e samba. No confronto contra a Inglaterra, O Globo de 28 de junho diz que a “rivalidade entre Argentina e Inglaterra vai muito além dos confrontos esportivos” A reportagem rememora a partida na Copa do Mundo de 1986 e diz que naquele momento, a seleção argentina tinha a seu favor:

46 No dia 18 de junho de 1998, O Globo publica “Imprensa estrangeira se curva ao Brasil” e diz que “na eterna rival Argentina, os principais jornais do país exaltaram o time brasileiro”. A visão do rival é importante para a “construção” da identidade.

20 “um guerreiro invencível: Maradona. E foi ele quem decidiu a partida a favor de sua equipe, ao marcar dois gols que entraram para a história dos Mundiais. O primeiro, num lance antológico, que aliou genialidade e muito vigor físico. ‘El Pibe’, como fora apelidado pelos argentinos, partiu com a bola desde a linha central e driblou quase meio time inglês antes de chutar sem defesa para Peter Shilton. No segundo gol da vitória por 2 a 1, a malandragem típica do futebol sul-americano fez a diferença. Maradona fez um gol com a mão ao disputar a bola no alto com Shilton. Todo mundo viu a infração, menos o árbitro. Mais tarde, Maradona comentaria que o gol fora marcado pela "mão de Deus".(grifos meus)

Apesar do registro equivocado, já que a ordem dos gols está trocada, ressaltemos a expressão “malandragem típica do futebol sul-americano”. Uma faceta considerada pelos brasileiros como “típica de sua cultura”47 está identificada como típica do “futebol sul-americano”. Observemos também a exaltação a Maradona, que aparece em várias matérias sobre esta partida48. Após a vitória da Argentina sobre a Inglaterra O Globo de 1 de julho de 1998, depois de registrar um suposto erro de arbitragem que teria favorecido a Inglaterra, diz que “se a Argentina tocava a bola, tentando abrir espaços, a arma inglesa era Owen. Veloz e talentoso, ele lembra craques sul-americanos.”(grifos meus). O texto mistura “garra inglesa”, “toque de bola argentino” e ao se referir ao jogador inglês Owen diz que ele lembra “craques sul-americanos”. O “talento” parece ser mesmo uma marca “indelével” na “construção” do futebol destes países. Ainda na mesma edição, Renato Maurício Prado diz que: “A Inglaterra foi terrivelmente prejudicada. Além do pênalti que não existiu, os ingleses tiveram um jogador expulso, numa decisão de excessivo rigor, um gol pessimamente anulado no segundo tempo e, pra fechar com chave de ouro, outro pênalti a seu favor, não marcado, na prorrogação - mão na bola. Para o seu lado só teve mesmo o pênalti de seu primeiro gol - obviamente marcado pelo péssimo juiz como uma forma de compensação da falha anterior.

O texto de Prado possui uma narrativa distinta da reportagem acima, na qual “registrava” um suposto erro de arbitragem contra a Argentina e enfatiza mais aspectos da partida. A coluna de Prado está dentro da categoria de “provocação à Argentina”. Após a desclassificação da Argentina para a Holanda, O Globo de 5 de julho de 1998 registra que “Argentinos saem da Copa calados, mas sem empáfia” (grifos meus). O texto diz: “os jogadores da Argentina saíram da Copa da mesma forma como entraram: calados. A diferença é que ontem passaram pelos jornalistas de cabeça baixa. A empáfia ficara no campo, desmontada pelos pés de Bergkamp e Kluivert, os dois heróis da vitória holandesa.” No entanto, o texto tenta “explicar” a razão do termo “empáfia” com um “registro” do que havia ocorrido depois da vitória sobre a Inglaterra: “Brigados com a imprensa de seu país, os jogadores da seleção argentina, depois do dramático jogo contra a Inglaterra, que venceram na cobrança de pênaltis, chegaram ao requinte de dar entrevistas em italiano para que os jornalistas argentinos não entendessem. Ontem, nem em italiano. Apenas o técnico Passarella, obrigado pelo regulamento da Fifa, parou para a entrevista protocolar.”

47 Ver, uma vez mais, DaMatta (1978) e Bernstein (1997). 48 Ver, por exemplo, “Ingleses querem vingar gol de ‘mão de Deus’” (O Globo, 29/06/1998) e “Argentina x Inglaterra, clássico sob tensão” (O Globo, 30/061998)

21 Mesmo com a “explicação”, a narrativa reforça um dos estereótipos sobre os argentinos: a “empáfia”49. Um outro estereótipo sobre o futebol argentino apareceu na matéria “Holanda será a adversária do Brasil”, na mesma edição. Aqui, lemos que “os reis da catimba levaram uma lição de malandragem. Pouco depois que Ortega tentou dar uma de espertalhão, se jogando dentro da área holandesa (...) a Holanda marcou o gol que eliminou o time de Passarella no último minuto do jogo”(grifos meus) A “catimba” quando “usada” pelo Brasil é vista como positiva, mas quando usada pelo “rival” é vista como deboche ou em tom moralista, como foi no “caso da água com sonífero” na partida entre as duas seleções em 1990. O mesmo em relação à cobertura Argentina sobre o Brasil, como vimos no Olé, em uma partida em que Rivaldo teria simulado uma falta que acabou resultando na expulsão do jogador adversário50. A “malandragem” de um é vista em tom moralista ou debochado no “olhar” do outro. No material da Copa de 2002, predominam reportagens que se encaixam na categoria “provocação à Argentina” – tal como ocorreu no material argentino sobre o Brasil. No dia 3 de junho de 2002, O Globo em “Cariocas viram a noite para torcer contra a Argentina” registra que: “De olhos bem abertos e muita torcida contra, os cariocas estenderam a noitada para acompanhar a primeira partida do Grupo F, entre Argentina e Nigéria. (...) ‘Eu fiz questão de juntar uns amigos para secar a Argentina. Se ela não passar das oitavas-de-final, vamos fazer festa como se o Brasil tivesse ganhado a Copa’ - exagerava o arquiteto Fernando Meireles, numa mesa animada de um bar no Leblon.”(grifos meus)

Na “fala” do entrevistado, Fernando Meireles, a reportagem “relativiza” e a trata como um exagero. É uma narrativa de “provocação à Argentina”. Na edição do mesmo dia, Arnaldo Bloch51 escreve: “nestes tempos em que a África corre para a ponta, quando é que a racista Argentina vai ter, enfim, um jogador negro?” Esta narrativa “provoca” e estimula uma “visão negativa” do vizinho. A reportagem sobre a vitória Argentina sobre a Nigéria diz que: “Os argentinos fizeram uma bela festa azul e branca. Nas arquibancadas, várias bandeiras com homenagens ao ídolo Diego Maradona, que não teve visto concedido para entrar no Japão por seu envolvimento com drogas. Uma delas provocava os brasileiros: ‘Pelé será rei, mas Diego é Deus’”. A narrativa mistura uma imagen “positiva” da Argentina – “a bela festa azul e branca” com outra “negativa” que lembra o envolvimento de Maradona com as drogas e registra uma bandeira que provoca o duelo entre Maradona e Pelé. Dentro do clima de tensão criado pelas reportagens de ambos os países, o ex- técnico da seleção brasileira, Zagallo, escreve no dia 4 de junho que “Olé tenta ridicularizar o Brasil” e que “vão debochar de novo dizendo que vencemos graças ao juiz, mas é melhor ganhar com os pés do que com as mãos, como naquele gol do Maradona em 86”. Zagallo fala ainda do “escândalo do resultado armado contra o Peru no Mundial de 1978” e conclui: “só nós somos tetra. Mas o respeito que eles não demostram pela gente, eu tenho pela escola argentina. Pelos jogos da Copa até agora, a Argentina encheu-me os olhos pelo alto nível técnico e competitividade. Mesmo assim só ganharam da Nigéria em jogada de bola parada.” Zagallo se baseia no passado de títulos do Brasil para “provocar” a Argentina, ainda que o tom seja de alguém que esteja

49 Ver, por exemplo, Jacks, N., Machado, M., e Muller, K. (2004). 50 Ver Olé, 4 de junho de 2002. 51 Arnaldo Bloch escreve regularmente no caderno de cultura do jornal. Mas em períodos de Copa do Mundo é comum que vários colunistas de outras seções escrevam sobre o assunto como, por exemplo, Artur Dapieve e o renomado escritor Luis Fernando Veríssimo.

22 se defendendo de um ataque. Ao mesmo tempo diz que respeita a “escola argentina” e elogia a atual seleção pelo “alto nível técnico e competitividade”. Esta narrativa não seria possível se Olé não chamasse a atençao dos jornais brasileiros. Antes da partida contra a Inglaterra, as reportagens voltam a destacar a rivalidade que transcende o universo esportivo entre os dois países e “rememoram” a “façanha” de Maradona em 1986. Assim, no dia 7, lemos que: “Diego Maradona entrou para a história com um dos momentos mais polêmicos do futebol. Aos seis minutos da segunda etapa (...) ganhou uma bola dividida pelo alto do goleiro Peter Shilton. O mundo inteiro viu que o argentino usara a mão para ganhar a disputa, menos o árbitro tunisiano (...). Após o jogo, Maradona diria que quem marcara o gol fora a mão de Deus. Três minutos depois, o próprio Maradona entraria novamente para a história, desta vez pela porta da frente. Ele dominou a bola antes do meio de campo e, numa arrancada espetacular, driblou adversários até fazer o segundo gol.”

O gol conhecido como “mão de Deus” recebe uma crítica sutil, como se tivesse entrado para a história pela “porta dos fundos”, demonstrando que a “malandragem” do “outro” não é vista como tal na narrativa do rival. Após a derrota da Argentina por 1 a 0 para a Inglaterra, os registros de provocações dos brasileiros são intensos. No dia 8 de junho de 2002, O Globo registra que “site portenho diz que brasileiros se reuniram para festejar o resultado e provoca: 'Pode ser o medo de um encontro'”. Mais adiante, a importância de Olé na imprensa brasileira é evidenciada da seguinte forma: “Ontem, o jornal argentino Olé publicou em seu site uma nota destacando a comemoração dos brasileiros pela derrota argentina. Segundo o diário esportivo, nas grandes cidades do Brasil os torcedores ´gritaram com força` no gol de Beckham e se reuniram para torcer contra em bares lotados, em torno de televisões em estações de trens e de ônibus e em lojas de eletrodomésticos. Segundo o site, as TVs brasileiras teriam mostrado muitas imagens das provocações aos argentinos e um portal de internet teria publicado uma pesquisa na qual 85% dos participantes teriam ficado satisfeitos com a derrota da Argentina. A nota comenta ironicamente: ‘Pode ser o medo de um futuro encontro. Ou pode ser que, por não confiarem em seu time, se conformem em festejar as derrotas alheias’” (grifos meus)

A matéria menciona o site do Olé, por isso não a identificamos no material coletado. Estamos diante do “amor de odiar os argentinos”? O jornal tende a passar uma narrativa de “mero registro” da comemoração brasileira pela derrota do rival. Não encontramos nenhum similar no material argentino, mesmo quando o Brasil perdeu a final para a França em 1998 ou até mesmo antes da final contra a Alemanha em 2002, apesar de todas as provocações de Olé.. “Amor de odiar”? Algumas condições, já mencionadas anteriormente, propiciaram esta atitude e pode ser que Olé tenha encontrado um espaço mais favorável para estimular nos brasileiros o acirramento da rivalidade que o Lance! em relação aos argentinos. No dia 12 de junho, Arthur Dapieve escreve que “se a arrogância fosse receita certa para o insucesso, o futebol da Argentina simplesmente jamais teria existido (...) Ela insiste em considerar aquele gordote cheirador melhor que Pelé. Para não falar de Garrincha...” O colunista se utiliza de um estereótipo – a “arrogância” – e despreza Maradona. O texto é muito provocativo. Não encontramos similar em nenhuma coluna do Clarín, jornal mais próximo da linha editorial de O Globo. Até o renomado escritor e

23 colunista, Luis Fernando Veríssimo, se deixou levar por este “anti-argentinismo” em coluna de 13 de junho, intitulada “Pena da Argentina”: Estranho. Não sinto aquela natural alegria brasileira com a desgraça da Argentina. Sei que deveria estar soltando urras impiedosos, mas não consigo. O que será? Solidariedade sul-americana, terceiro mundista, essas coisas? Pouco provável. Compaixão, bons sentimentos? Você deve estar brincando. Estamos falando da Argentina. Não posso entender minha completa ausência de selvagens instintos revanchistas satisfeitos. Estou com pena da Argentina, pode? Não sei o que me acontece. Não estou me reconhecendo. Para não admitir que sucumbi ao reles sentimentalismo só porque vi o Batistuta chorando (...) prefiro pensar que lamento a queda da Argentina por razões puramente técnicas. Frias e técnicas. Com a Argentina fora, acabou a única novidade tática que esta Copa tinha apresentado até agora.

Veríssimo deixa claro que em se tratando de Argentina não se pode ter “compaixão” ou “solidariedade sul-americana” e menciona “instintos revanchistas”. Deixou-se levar pelos registros publicados em O Globo sobre Olé? Até mesmo um escritor da estirpe de um Veríssimo se “contagiou” pelo “anti-argentinismo”. Ele justifica a sua falta da “natural alegria brasileira com a desgraça da Argentina” pelo falto de que sem a Argentina a Copa não apresentaria nenhuma “novidade tática”. Como o próprio Veríssimo definiu, seu sentimento se baseava em “razões puramente técnicas”. Não podemos desconsiderar a ironia do texto, característica de Veríssimo. No entanto, não encontramos registros semelhantes no Clarín. E mesmo no Olé, talvez somente as colunas de Farinella possuíam um tom semelhante.

4.3 Considerações Finais Sobre “Brasil Vê a Argentina” Na análise do material coletado não observamos uma definição do “estilo de jogo” do futebol argentino no “olhar” da imprensa brasileira, como havíamos observado do lado argentino. Nas Copas de 1978, 1986 e 1998, observamos uma oscilação entre uma “argentina europeizada” e uma “argentina sul-americana”. Mas o estilo de jogo não era tão evidenciado como observamos no “olhar” da imprensa argentina sobre o futebol brasileiro – que o define como “jogo bonito”. Em momentos em que predominava um “olhar” que via o futebol argentino em melhor posição que o brasileiro, seu estilo era considerado “estilo sul-americano”. Porém, com adjetivos mais “econômicos” que os verficados nas narrativas da imprensa argentina sobre o Brasil. Não encontramos uma uma marca intrínseca ao futebol argentino nas narrativas brasileiras. Ora ele se encaixava em um “estilo europeu”, mas com dívidas com seu “estilo”, ora ele se encaixava em uma categoria mais genérica que seria “futebol sul-americano”. Também não observamos a “eleição” de uma equipe como referencial do futebol argentino, como os argentinos fazem com o Brasil de 70. A narrativa sobre a seleção de 1986, por exemplo, foi quase toda centrada na figura de Maradona. Os elogios, a exaltação e o tom emocionado nestas narrativas eram evidentes, porém, o “alvo” era Maradona. As narrativas em torno de Maradona foram muito semelhantes às narrativas argentinas em torno de Pelé em 1970. A diferença é que a imprensa argentina enaltecia – e continua enaltecendo nas narrativas subseqüentes ao período - toda a equipe de 70, o que não ocorreu do lado brasileiro em relação à Argentina de 1986. As narrativas sobre Maradona no Mundial de 1986 ofuscavam as narrativas sobre a Argentina e as “rememorações” daquele período na Copas subseqüentes continuam fazendo o mesmo. Não verificamos, nestes períodos, nenhuma comparação com Pelé, como nos termos atuais, apesar de termos encontrados narrativas que colocavam Maradona como seu

24 sucessor, o que evidencia que o debate foi uma “construção” recente dos meios de comunicação. A rivalidade contra a Inglaterra foi destacada na imprensa brasileira. Até mesmo a rivalidade contra o Uruguai veio à tona em 1986, quando houve uma partida entre os dois países. As narrativas brasileiras destacam que a Argentina possui outros “rivais” importantes, além do Brasil. Não detectamos uma “tendência” da imprensa nestes confrontos, exceto em 2002, quando observamos registros de brasileiros “torcendo” contra os argentinos e até mesmo narrativas de colunistas que demonstravam seu contentamento com a derrota da Argentina. Em termos de estereótipos, encontramos alguns como “empáfia”, “arrogância”, “racismo” e “reis da catimba”. Não verificamos um estereótipo predominante em relação ao “estilo de jogo”. Notemos também que foi só no material de 2002 que identificamos um predomínio de matérias que “provocavam” a Argentina, da mesma forma como ocorreu em relação ao material argentino sobre o Brasil. No entanto, chamou-nos a atenção o fato do jornal analisado ser O Globo, com uma linha editorial mais próxima do Clarín. Observamos também que Olé tornou-se um referencial nestas narrativas e O Globo registrava muitas de suas reportagens. Neste período foi possível perceber sentimentos “anti-argentino”, que pareciam extrapolar o universo esportivo. Fato que não havíamos verificado até 1998. Por isso, apostamos que a rivalidade se acirrou nos últimos anos devido a uma série de fatores mencionados anteriormente e que voltaremos a enumerá-los adiante.

5 – Consideraçoes finais Em um terreno onde as rivalidades estão mais acirradas, como é o caso da relação Brasil-Argentina no universo futebolístico, evidenciamos vários estereótipos no “olhar” de “um” para o “outro” e vice-versa. No “olhar” da imprensa argentina sobre o futebol brasileiro, os estereótipos falam de características como “alegria”, “diversão”, “habilidade” e “individualismo”, como marcas intrínsecas do futebol brasileiro. Características que se denominou chamar de “jogo bonito” e cuja equipe símbolo deste “estilo” seria a seleção brasileira de 70. No “olhar” da imprensa brasileira sobre o futebol brasileiro não encontramos uma definição clara, uma marca intrínseca ao futebol argentino nas narrativas brasileiras. Havia certa tendência a identificá-lo como “futebol- arte” ou “toque de bola”, mas de uma forma muito genérica, geralmente englobado na expressão “futebol sul-americano”. Também não observamos a “eleição” de uma equipe como referencial do futebol argentino. Após 1986, a referência ao futebol argentino está toda centrada na figura de Maradona. Em termos estritamente futebolísticos encontramos os estereótipos “garra” e “catimba” (sendo que este último apareceu de forma negativa em 2002). Em termos extra-futebolísticos encontramos, em 2002, estereótipos negativos como “empáfia”, “arrogância” e “racista”. A identificaçao com o futebol sul-americano apareceu nos dois lados, em diversos momentos, com a diferença que as narrativas argentinas acrescentavam alguma singularidade ao futebol brasileiro – “la convicción de ser simpre Brasil”, “el instinto futbolero de los brasileños”, “país que vive el fútbol como pocos” “tradición del jugador nativo”, entre outras. Por isso, acreditamos que uma parte da frase dita pelo amigo de Alabarces de que os “argentinos odeiam amar os brasileiros” faz sentido nestas narrativas e tornou-se ainda mais evidente no material argentino sobre os confrontos de 2005, quando percebemos uma “mudança” na “identidade argentina” e a visão do futebol brasileiro como os “profissionais do jogo bonito”. As narrativas sobre Brasil na imprensa argentina são mais “generosas” que as narrativad sobre a Argentina na imprensa brasileira.

25 Em relação ao acirramento da rivalidade, observamos alguns indícios em 1998 e toda sua intensidade em 200252, em ambos os materiais. Podemos arriscar a hipótese de que uma conjugação de fatores contribuiu para este acirramento: 1 – A suspensão de Maradona na Copa de 1994 e seu declínio desde aí até 2004; 2 – A conquista do tetra pelo Brasil justamente no Mundial em que Maradona foi suspenso, se distanciando outra vez da Argentina em Copas do Mundo; 3 – O fato do Brasil ter ido às finais da Copa de 1998 e de 2002, tendo vencido a última e se distanciando ainda mais da Argentina; 4- A eleição da FIFA sobre o “melhor de todos os tempos” vencida por Maradona; 5 – A eleição de vários jogadores brasileiros como “melhores do mundo”: 6 – O surgimento dos jornais esportivos Olé e Lance a partir de 1996. Deixamos por último o surgimento dos dois diários esportivos justamente por considerar que eles não teriam sido eficazes na “construção” do acirramento da rivalidade se os outros fatores não tivessem ocorrido. Observamos que a “implicância” brasileira é maior do que a argentina, principalmente se levarmos em conta de que os fatores acima mencionados são mais favoráveis ao Brasil. Chamou-nos a atenção as provocações explícitas, muita vezes carregadas de “preconceitos”, nas reportagens e colunas de O Globo. Neste sentido, acreditamos ser procedente a outra parte da frase do amigo de Alabarces: “os brasileiros amam odiar os argentinos”. Por que isso? Uma resposta simples poderia apontar o fato dos jornais argentinos – neste caso, Olé principalmente – permitirem a navegação em suas páginas web por qualquer internauta, sem necessidade de cadastramento. Não desconsideramos este fato, por mais simples que possa parecer, já que a leitura de “reportagens provocativas” tende a levar a “instintos revanchistas” (nos termos de Veríssmo). No entanto, arriscamos também uma outra hipótese de que “talvez nós precisemos mais “deles” para marcar nossa alteridade que “eles” de nós”. E esta “necessidade” pode ser devida ao fato de que a idéia de “nação brasileira” foi “construída” em grande parte por meio do futebol enquanto que na Argentina o “nacional” já existia antes do futebol, principalmente por meio das escolas públicas. Certamente o futebol contribuiu para reforçar sentimentos nacionalistas, mas estes já existiam aqui antes do seu surgimento. Esta é uma hipótese plausível que, apesar de transcender os limites deste trabalho, merece uma reflexão de nossa parte.

6- Referências Bibliográficas Alabarces, Pablo. Fútbol y Pátria: el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2002. Archetti, Eduardo. Masculinidades: fútbol, tango y pólo en La Argentina. Buenos Aires, Editorial Antropofagia, 2003. Caparrós, Martín. Boquita. Buenos Aires, Editorial Planeta, 2004. DaMatta, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. Frigerio, Alejandro. “A Alegria é Somente Brasileira: a exotização dos migrantes brasileiros em Buenos Aires”. In Frigerio, Alejandro e Riberio, G. Lins (orgs.) Argentinos e Brasileiros: encontros, imagens e estereótipos. Petrópolis, Vozes, 2002. Guedes, Simoni. “De Criollos e Capoeiras: notas sobre futebol e identidade nacional na Argentina e no Brasil” Caxambu, ANPOCS, 2002 (CD-ROM)

52 Não temos o material brasileiro sobre os confrontos de 2005. Por isso não foi possível uma análise comparativa.

26 Helal, Ronaldo.”Jogo Bonito: el fútbol brasileño en la prensa argentina”. Buenos Aires, Lecturas, vol.88, 2005 (meio eletrônico) Helal, Ronaldo. “Los Porteños nos admiran.” Buenos Aires, Olé, 21 de abril de 2005. Helal, Ronaldo. “Exagero na Punição”. Rio de Janeiro, O Globo, 21 de abril de 2005. Helal, Ronaldo. “Mídia e Esporte: a construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro”. Rio de Janeiro, Alceu, vol 4. Número 7, PUC-RJ., 2003. Helal, Ronaldo; Soares, Antonio y Lovisolo, Hugo. A Invenção do País do Futebol: mídia, raça e idolatria. Río de Janeiro. Mauad: 2001. Jacks, Nilda., Machado, Márcia., Muller, Karla. – Hermanos, pero no mucho: el periodismo narra la paradoxa de la fraternidad y rivalidad entre Brasil y Argentina. Buenos Aires, La Crujía, 2004. Lanata, Jorge. ADN: mapa genético de los defectos argentinos. Buenos Aires, Planeta, 2004. Lovisolo, Hugo. “Tédio e Espetáculo Esportivo”. In Alabarces, Pablo. Futbologías: fútbol, identidad y violencia en América Latina. Buenos Aires, CLACSO, 2003 Ribeiro, Gustavo Lins. “Tropicalismo e Europeísmo: modos de representar o Brasil e Argentina” In Frigerio, Alejandro e Riberio, G. Lins (orgs.) Argentinos e Brasileiros: encontros, imagens e estereótipos. Petrópolis, Vozes, 2002. Sarlo, Beatriz. La Pasión y La Excepción: Eva, Borges y el Asesinato de Aramburu. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2004. Soares, Antonio. “História e a Invençao de Tradiçoes no Futebol Brasileiro”. In Helal, Ronaldo; Soares, Antonio e Lovisolo, Hugo. A Invenção do País do Futebol: mídia, raça e idolatria”. Rio de Janeiro, Mauad. 2001. Soares, Antonio; Helal, Ronaldo e Santoro, Marcelo. “Futebol, Imprensa e Memória”. São Leopoldo, Revista Fronteiras, 2004. Soares, Antonio e Lovisolo, Hugo. “Futebol: a construção histórica do estilo nacional”. Revista Brasileira de Ciencias do Esporte, volume 25, número 1, Campinas, Editora Autores Associados, 2003.

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