"Eles" E "Nós": Imprensa E Rivalidade Futebolística Entre Argentina E Brasil

"Eles" E "Nós": Imprensa E Rivalidade Futebolística Entre Argentina E Brasil

SEMINÁRIO TEMÁTICO “ESPORTE, POLÍTICA E CULTURA” "Eles" e "nós": imprensa e rivalidade futebolística entre Argentina e Brasil Ronaldo Helal – Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pós- Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires 1- Apresentação Este artigo analisa a cobertura jornalística sobre o futebol brasileiro e argentino na imprensa dos dois países. Países vizinhos e com tradição de rivalidade que se acirra no campo esportivo1, Brasil e Argentina são semelhantes nas formas como se utilizaram do futebol para “construir” o sentido de pertencimento à nação. A investigação averigua as imagens que ambos os países “constroem” sobre o futebol do “outro”. O recorte de análise nos jornais argentinos se concentra nas Copas do Mundo desde 1970 até 2002. O material das Copas de 1970 até 1994 é o jornal Clarín e a revista El Gráfico. Para os mundiais de 1998 e 2002 substituímos o El Gráfico pelo jornal Olé, devido à importância que o mesmo adquiriu nos últimos anos. Além disso, foram coletados e analisados material relativo aos dois confrontos que ocorreram em junho de 2005 – eliminatórias da Copa de 2006 e final da Copa das Confederações. Aqui, os jornais coletados foram Clarín, Olé e La Nación. O recorte de análise nos jornais brasileiros se concentra nos Mundiais de 1978, 1986, 1998 e 2002. Os jornais analisados foram Jornal do Brasil para as Copas de 1978 e 1986 e O Globo para as Copas de 1998 e 20022. A razão para esta assimetria se encontra nos fatos de que a Argentina não participou do Mundial 1970 e de que passei o ano de 2005 realizando uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires – com apoio da CAPES- o que me possibilitou uma coleta mais ampla do material na imprensa argentina. O material relativo ao futebol argentino na imprensa brasileira foi coletado generosamente por Tiago Bartholo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho3. O método utilizado foi ler todo o material sublinhando as reportagens que considerava mais relevantes do ponto de vista de como “um” vê o “outro”. Depois selecionei estas matérias e realizei uma leitura mais detalhada. Assim, ao final de cada período, tínha uma visão mais abrangente das narrativas sobre o “outro” naquele veículo, naquele momento. Feito isso, parti para a análise em ordem cronológica por Copa do Mundo, iniciando sempre com a primeira partida do “outro”. Aqui, apresento minhas primeiras impressões de pesquisa. Em seguida, me concentro no “olhar” argentino sobre o futebol brasileiro e depois no “olhar” brasileiro sobre o futebol argentino. 2 – Primeiras Impressoes: “eles nos admiram” Antes de vir para Argentina, amigos me alertaram sobre a possibilidade de meus filhos sofrerem alguma discriminação na escola. A acolhida de meus filhos em uma 1 Sobre a formação histórica da rivalidade entre Brasil e Argentina em jornais de Santa Catarina e Porto Alegre ver Jacks, N., Machado, M., e Muller, K. (2004). 2O critério utilizado foi o da “disponibilidade” e “gratuidade”. Quando os jornais colocavam à disposição suas edições passadas de forma gratuita, as matérias foram coletadas. Estes jornais estão entre os de maior circulação no Brasil. 3 Sou grato a Tiago que também coletou o material brasileiro relativo aos Mundiais de 1990 e 1994. Este material será analisado em breve. 1 escola pública — elas são boas e há várias, sem problemas de vagas — causou ótima impressão. Ao lado está a escolinha de futebol do ex-jogador Marangoni, onde vemos argentinos com camisas de times do Brasil e até da seleção brasileira. Cena desconhecida dos brasileiros, de uma forma geral. Cheguei no verão e a quantidade de pessoas com sandálias havaianas com a bandeira do Brasil colada na parte da frente me surpreendeu, pois não conseguia imaginar brasileiros usando um traje de vestuário com a bandeira da Argentina. O livro FIFA 100, com a foto do Pelé na capa, estava na vitrine das livrarias da cidade, assim como DVDs de gols de Pelé e Ronaldo. Neste período de “adaptaçao” aconteceu o “caso Desábato”4. As matérias sobre o “caso de racismo” chegaram às primeiras páginas dos jornais argentinos e o tom era de indignação. Havia fotos do jogador algemado e manchetes como “Vergonha” (Clarín, 15 de março) e “Inferno no Brasil” (Olé, 15 de março). Nos jornais brasileiros na internet não encontrei matéria que comprovasse o racismo de Desábato. Decidi escrever um artigo para a seção Opinião de O Globo relatando minhas “primeiras impressões” em Buenos Aires e levantando a hipótese de que poderia ter havido certo “anti- argentinismo” por parte do Brasil. Ao mesmo tempo, fiz uma versão em espanhol e a enviei para o Olé. Ambos os artigos foram publicados no dia 21 de abril. A publicação no Olé gerou uma amizade proveitosa para a pesquisa com o colunista e um dos fundadores do referido jornal, Walter Vargas, bem como uma discussão acadêmica com meu interlocutor na Universidad de Buenos Aires, Pablo Alabarces. Apesar de discordar de meu artigo, Alabarces me disse uma frase que tem me feito pensar na relação Brasil-Argentina: “os brasileiros amam odiar os argentinos, enquanto os argentinos odeiam amar os brasileiros”5. Ao mesmo tempo, Vargas me dizia que recebia e-mails insultuosos de brasileiros em várias ocasiões. Tentei verificar se o mesmo ocorria com jornalistas do Lance!, mas os que eu mantive contato me disseram nunca ter recebido e-mails ofensivos de argentinos6. Passei a suspeitar que “nós” implicamos mais com “eles” do que “eles” “conosco”. A rivalidade argentina conosco consegue manifestar admiração em meio ao conflito, enquanto nossa rivalidade traz à tona certo “ressentimento”7. 3 - A Argentina Vê o Brasil: a seleção brasileira de futebol na imprensa argentina 3.1 - “La Mejor Selección de Todos Los Tiempos”: a seleção de 70 no Clarín e El Gráfico durante a Copa do Mundo de 1970 A argentina não participou da Copa de 1970. Sua seleção foi eliminada nas eliminatórias pela seleção peruana, dirigida por Didi, ex-jogador do Brasil que conquistou os Mundiais de 1958 e 1962. Brasil e Argentina viviam momentos políticos delicados. O regime militar havia recrudescido no Brasil e na Argentina os Montoneros surgiam publicamente como movimento de oposição ao regime com o sequestro do 4 Como ficou conhecida a suposta agressão racista do zagueiro do Quilmes contra o atacante Grafite do São Paulo, em uma partida pela Copa Libertadores da América 2005, e a queixa de Grafite na polícia, que resultou na prisão do jogador argentino. 5 Alabarces disse que a frase era de um amigo argentino que vive no Brasil, mas que ele estava de acordo, tendo como base os quatro meses que passou na Unicamp em 2003. 6Vargas me encaminhou, generosamente, os e-mails recebidos após a vitória do Brasil na Copa das Confederações. Sua coluna diz que o Brasil tem melhores jogadores do que a Argentina. O título era: “A soñar, sin olvidar que son mejores” (Olé, 30 de junho de 2005). Talvez o fato dos jornalistas do Lance! não receberem e-mails de argentinos deve-se a que este jornal exige que o leitor se cadastre no site para ter acesso às reportagens, enquanto que no Olé o acesso não é restrito. 7 Talvez nós precisemos mais “deles” para marcar nossa alteridade do que “eles” de “nós”. Sou grato a Simoni Guedes por ter levantado esta hipótese. 2 general Pedro Eugenio Aramburu. A finalidade do sequestro era realizar uma “justiça histórica”, já que Aramburu era tido como responsável por torturas e fuzilamento de 27 peronistas durante a repressão de junho de 19568. Com a Argentina fora da Copa e o país vivendo este clima político, Clarín dedicou, no período, boa parte das primeiras páginas ao seqüestro de Aramburu. De qualquer modo, o jornal enviou dois jornalistas para fazer a cobertura da Copa do Mundo: Beto Devoto e Diego Lucero. A seleção de 70 é tratada como referência do “estilo de jogo” do futebol brasileiro. Como ocorre no Brasil durante as Copas9, esta seleção é sempre lembrada na imprensa argentina e é considerada a “melhor da história”. No dia 9 El Gráfico em “¿Por qué es el Rey?”, com foto do gol de Pelé contra a thecoeslovaquia, fala de como Pelé “matou” uma bola no peito: “cualquier otro hubiera sacudido apenas la pelota tocaba tierra. Pero Pelé no es “cualquier otro”. Es “EL REY” (grifos do jornal).10 A vitória do Brasil sobre a Inglaterra é explicada por “esa arraigada convicción de jugar siempre la pelota, de tratarla siempre”. Este “estilo de jogo” é a marca “intrínseca” do Brasil no “olhar” argentino e possui elementos da “construção” do futebol argentino tal como colocaram Archetti (2003) e Alabarces (2002). Contra o Uruguai, o fato de que o Brasil ia continuar jogando em Guadalajara, foi noticiado assim: “Brasil (…) obligado a jugar contra un rival que no le gusta nada, busca sacar la máxima ventaja, como supone jugar aquí, donde es local sin ninguna duda (…) Pero Uruguay es Uruguay y los brasileños lo saben” (Clarín, 15 de junho de 1970). A rivalidade Argentina-Uruguay era mais intensa no passado. Ela é distinta da rivalidade Argentina-Brasil. Os uruguaios são para os argentinos como “primos”. E, no confronto com o Brasil, a identificação com o “parente” se torna mais “natural”. Um dos jornalistas mais influentes de El Gráfico nas décadas de 30 e 40 e que contribuiu para a “construção” da mitologia do futebol argentino era uruguaio – Eduardo Lorenzo, o Borocotó - assim como Victor Hugo Morales, jornalista e locutor de televisão que passou para a “história” ao narrar o gol de Maradona contra os ingleses em 1986. Após a vitória na final contra a Itália, as matérias evidenciam a identificação com o Brasil.

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