Anais Eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC Campinas – 2006 ISBN - 978-85-61621-00-1

Civilização britânica, barbáries americanas: a passagem de Robert FitzRoy e o HMS Beagle pela Argentina Gabriel Passetti Doutorando/USP

Durante as décadas de 1820 e 1830, expedições britânicas percorreram as costas sul-americanas objetivando o mapeamento cartográfico das rotas do comércio imperial e a formalização de contatos comerciais e políticos com os Estados em formação após as independências ibéricas. Um dos locais mais visados foi a passagem do Oceano Atlântico para o Pacífico, rota obrigatória para o comercio imperial, o Estreito de Magalhães. Para ele, foram enviadas duas expedições que, juntas, permaneceram praticamente ininterruptamente entre 1827 e 1834, capitaneadas por Philip Parker King e Robert FitzRoy. Este artigo procura apresentar algumas observações iniciais desta documentação, procurando identificar os projetos para a América Latina e a visão construída da região e os povos que a habitavam. O final do século XVIII foi marcado pelo crescente interesse britânico e francês pelas rotas de circunavegação do globo e pelo mapeamento de regiões até então praticamente intocadas do interior das Américas, da África e da recém-descoberta Oceania. As expedições de James Cook (1768-1779) foram marcos importantes, pois estabeleceram as principais rotas, enquanto que as de Alexander von Humboldt (1799- 1804) construíram os modelos científicos a serem adotados pelos navegadores posteriores. O fim das guerras napoleônicas marcou a consolidação do poderio naval britânico e proporcionou um novo avanço, pois a Marinha Real, ampliada durante os combates, assumiu a posição de reguladora dos mares. Grandes veleiros foram enviados para verificar e detalhar as antigas cartas náuticas ibéricas das Américas, da África e da Ásia. Auxiliados por pequenos botes expedicionários e dotados de grande autonomia de viagem, as embarcações saíram da Inglaterra com a missão de identificar portos seguros, ameaças, climas e oportunidades para o comércio imperial britânico em franca expansão.

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Com estas grandes expedições financiadas pelo governo, foram enviados artistas e naturalistas, responsáveis pela elaboração de imagens e pela coleta de amostras para a ambiciosa coleção mundial do British Museum de Londres. Longas e cansativas, as viagens eram intensamente programadas e contavam com uma mescla entre oficiais de carreira – veteranos das guerras napoleônicas – e jovens tenentes formados pela Escola Naval. Auxiliados por tripulações de algumas dezenas de marinheiros, estes oficiais precisavam lidar com o clima inóspito, a constante ameaça do escorbuto e com povos nativos nem sempre interessados em contatos com os europeus. Apesar de mais rápidas e bem preparadas, as expedições do início do século XIX ainda em muito se assemelhavam às primeiras viagens intercontinentais de portugueses e espanhóis. Além dos naufrágios, o maior temor dos navegadores da época era o desfecho mortal de negociações com nativos, assim como ocorrera com Fernão de Magalhães nas Filipinas, em 1521, e James Cook no Havaí, em 1779. Em 22 de maio de 1826, o comandante-explorador Philip Parker King partiu da Inglaterra com os veleiros HMS Adventure e HMS Beagle para explorar e mapear as costas sul-americanas entre o rio da Prata e a ilha de Chiloé, no Chile, estabelecer contatos comerciais e diplomáticos com os governos locais, seguir para as colônias britânicas em Nova Gales do Sul, na Austrália, e depois ao Cabo da Boa Esperançai. Seu principal foco recaia sobre o temido, inóspito e pouco conhecido Estreito de Magalhães. Caminho obrigatório para os navios que objetivavam o lucrativo comércio com a Ásia, para as ainda pouco conhecidas terras da Oceania e para a costa oeste mexicana, aquele ainda era um dos principais pontos da lucrativa indústria de caça aos cetáceos e mamíferos marinhos em geral. O Estreito era o principal objetivo da viagem e também um desafio, pois seu clima hostil demandava organização, paciência e um pouco de sorte. Sabendo que esta passagem certamente avariaria as embarcações, Philip Parker King partiu diretamente para o local, sem se ater, a princípio, às zonas entre o rio da Prata e o sul da Patagônia, pois pretendia evitar estabelecer o primeiro contato com o Estreito durante o inverno. O comandante conhecia as dificuldades enfrentadas naquela região ao ler anteriormente os relatos de alguns dos navegadores que por lá passaram – os ingleses John Narborough (1652), John Byron (1765), Samuel Wallis e Philip Carteret (1767), os espanhóis Jofre

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García de Loyasa (1525), Pedro Sarmiento de Gamboa (1579) e Antonio de Córdova (1785), além do francês Louis-Antoine de Bougainville (1767). O primeiro contato com o Estreito foi bastante produtivo, pois foi possível estabelecer uma base de operações em um de seus pontos mais importantes, o (chamado de Port Famine), antiga base de vigilância espanhola do século XVI. Enquanto o HMS Adventure permaneceu ancorado, o HMS Beagle vasculhou a região e suas principais baías, ilhas e canais em um levantamento preliminar. Talvez a principal dificuldade encontrada durante a estadia em Port Famine foi o controle da alimentação da tripulação e o combate ao escorbuto, tendo em vista que o frio extremo e os ventos da região impedem o crescimento de plantas que possam fornecer vitamina C em quantidade suficiente para dezenas de homens. A estratégia adotada pelo comandante King para superar esta dificuldade foi o contato e o comércio recorrentes com os povos nativos da região, aptos e interessados em fornecer carne de guanacoii e artesanato em troca de objetos manufaturados, armas de fogo, moedas, objetos metálicos, roupas e, eventualmente, bebidas alcoólicas. Philip Parker King dividiu os povos que encontrou baseado na origem geográfica, classificando-os como patagones e fueginos, originários da Patagônia e da Terra do Fogo, respectivamente. Os primeiros eram da família lingüística Tehuelche, utilizavam largamente os cavalos para caçar guanaco e viviam em pequenos grupos familiares semi-nômades. Desde os primeiros navegadores europeus que freqüentaram a região, foram descritos como gigantes – mito conhecido, mas questionado pelo comandante britânico. Após medi-los, King chegou à conclusão de que eram maiores do que os ingleses, mas não gigantes, e sim da altura dos holandeses. Segundo ele, pode ter havido uma redução na altura dos patagones desde os primeiros contatos com os europeus, através do convívio com os povos fueginos. Estes, das etnias Ona e Selk’nam, viviam basicamente do que conseguiam extrair do mar, ou seja, eram caçadores de focas e pescadores e também viviam em pequenos grupos familiares semi-nômades. O comandante King conviveu e comercializou com ambos grupos étnicos, mas desenvolveu um apreço maior pelos patagones, vistos como superiores na escala evolutiva por já terem conhecimentos rudimentares do idioma espanhol e alguns conceitos cristãos – provavelmente derivados da missão solitária evangelizadora do

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jesuíta Thomas Falkner, entre 1740 e 1768. Para o britânico, tanto fueginos quanto patagones estavam aptos a alcançar a civilização – cujo ápice era a sociedade inglesa anglicana – desde que atentos aos ensinamentos religiosos, afastados da idolatria, da ignorância ibérica e das bebidas alcoólicas. Os indígenas não estavam necessariamente interessados na evangelização e nos costumes britânicos, mas procuraram se aproximar e chamar a atenção daqueles navegadores, pois com eles era possível estabelecer proveitosas relações comerciais. Alguns contatos mais intensos foram estabelecidos, com momentos de convivência indígena nos navios ou nos acampamentos militares, mas a regra era o estabelecimento de pequenas feiras de escambo e a separação física entre europeus e nativos, especialmente para conter as investidas sexuais dos marinheiros, que poderiam atrair a animosidade dos homens de quem se dependia para o combate ao escorbuto. Philip Parker King estava convencido da superioridade do Império e da civilização britânicaiii. Ele comungava das idéias que dividiam as sociedades em uma hierarquia civilizacional e considerava que fueginos eram inferiores aos patagones, estes aos ibero-americanos, menos evoluídos do que católicos europeus, que estavam abaixo dos anglicanos ingleses. Para ele, a cultura católica – e em especial a ibérica – era atrasada e retrógrada, caracterizada pela preguiça e pela inoperância, sendo sua idolatria aos santos responsável pela incapacidade em afastar os indígenas americanos da barbárie. Após meses levantando a geografia do Estreito de Magalhães, a expedição britânica zarpou para executar os levantamentos cartográficos da costa até o rio da Prata. Após passarem por Montevidéu, se dirigiram ao Rio de Janeiro, pois, naquele período, o Império Brasileiro era tido como o Estado mais estável da América do Sul e sua capital-porto era tida como a mais segura e confiável, sendo o principal centro de comércio de materiais e equipamentos navais da região. Além de comprar víveres, naquela cidade foi possível reparar os estragos nas embarcações, receber a correspondência proveniente do Almirantado de Londres e estabelecer metas e roteiros em reuniões com Robert Waller Otway, o comandante-geral britânico para o Atlântico Sul, baseado no Rio, responsável pela poderosa frota do Atlântico e pela vigilância e defesa dos interesses britânicos na região.

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Após a parada de meses no Rio de Janeiro, as embarcações voltaram a se dirigir rumo ao Estreito de Magalhães, desta vez mapeando a zona de navegação mais afastada da costa, mas igualmente perigosa devido à quantidade de ilhotas, rochedos e bancos de areia. Durante a segunda estada no Estreito, foram retomados os contatos comerciais com os patagones e os fueginos, bem como ampliado o serviço de medição e exploração do arquipélago. Enquanto o HMS Adventure permaneceu um ano ancorado em Port Famine para a observação climática de um ciclo anual completo, o HMS Beagle ficou responsável pelo mapeamento e exploração das regiões ainda praticamente desconhecidas ao redor do Estreito e que poderiam ser alternativas importantes para aquela já conhecida via marítima. Apesar do clima inóspito e das dificuldades para a navegação, o Estreito de Magalhães era, na década de 1820, ponto central para as atividades das companhias baleeiras e caçadoras de foca, que encontravam na região farta caça. Responsáveis pelo fornecimento de peles e óleos para os mais distintos mercados globais, empresas sediadas em Nova York, Nova Jersey e no Canadá – caso da enorme Hudson’s Bay Company – ampliavam as zonas de caça do extremo norte da América para o extremo sul. O comandante King comentou eu seus diários o encontro com os vestígios da passagem de tais navios por aquelas águas e encontrou com alguns deles, como o Adeona, o Uxbridge e o Mercury, por exemplo. É interessante notar a predominância de comerciantes provenientes dos EUA, em especial da cidade de Nova York – responsáveis pelo fornecimento de peles à Inglaterra – e as relações cordiais e amistosas estabelecidas entre estes e os exploradores britânicos. Além da troca de informações, houve o envio de correspondências por estes navios, a troca de marinheiros, havendo, inclusive o salvamento da tripulação de um dos baleeiros, naufragado em um dos canais do Estreito. Na década de 1820, é possível identificar um movimento de aproximação de interesses entre ingleses e norte-americanos no tocante ao Estreito de Magalhães. Enquanto os primeiros viam o local como ponto estratégico de passagem para o comércio com o Oriente, os segundos já apresentavam uma intensa expansão de suas atividades econômicas e comerciais, controlando grande parte do comércio de peles, sendo os principais freqüentadores dos campos de caça do Estreito. Sem uma

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concorrência direta, mas com uma complementariedade econômica e tática, ingleses e norte-americanos passaram, exploraram e mapearam o Estreito de Magalhães entre as décadas de 1820 e 1840. Em um local ermo como o Estreito, qualquer tipo de contato humano distraía tripulações baseadas por muito tempo. No caso da expedição comandada por Philip Parker King, nota-se o empenho em estabelecer relações contínuas com determinados grupos familiares patagones e fueginos, bem como a ansiedade pelo encontro com outros navegadores. O isolamento dos navios apenas potencializava o isolamento pessoal dos oficiais. Estes homens se viam e eram vistos como distintos e superiores aos marinheiros, possuindo poucos vínculos sociais com o restante da tripulação, pois deveriam manter a rígida hierarquia da Marinha Real. No contexto das viagens de mapeamento e exploração, intencionalmente longas, duradouras e focadas em locais pouco habitados, três ou quatro oficiais conviviam diariamente e durante meses entre si, situação que, em diversos momentos, levou os capitães à depressão. Este foi o caso do capitão Pringle Stokes, comandante e explorador do HMS Beagle que, após executar a tarefa de mapeamento da costa oeste do Estreito, tentou o suicídio durante o retorno a Port Famine. Sua morte não foi instantânea, mas se prolongou por alguns dias, o suficiente para o veleiro encontrar o HMS Adventure, deixando o posto de capitão da embarcação vago. Diante desta situação, Philip Parker King, comandante geral da expedição, elevou o capitão-tenente e explorador-assistente W. G. Skyring ao cargo de capitão do HMS Beagle e ambas embarcações se dirigiram novamente a Montevidéu e ao Rio de Janeiro, após concluída mais um estágio da missão. Ao passarem por Buenos Aires e Montevidéu, as tripulações se encontravam duramente abaladas pelo escorbuto e ansiosas para aportar e se alimentar propriamente, mas os portos sofriam o bloqueio naval brasileiro, decorrente da Guerra Cisplatina. O comandante King supôs que a intermediação política britânica no conflito e que sua missão de exploração lhes autorizavam a furar o bloqueio e entrar no porto de Montevidéu. Porém, o comandante brasileiro do bloqueio não interpretou a inusitada situação da mesma maneira e enviou uma salva de tiros de mosquete como aviso. King

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apenas retornou e procurou se identificar ao avistar o navio de guerra Maranhão se posicionar e mirar os dezoito canhões contra os HMS Adventure e Beagle. Em poucas horas, este incidente diplomático estava resolvido, mas o comandante King não aceitou as explicações do comandante brasileiro – que afirmou apenas ter seguido as normas técnicas exigidas pela situação – considerando aquela atitude incivilizada. Politicamente, King respeitava os Estados latino-americanos em formação, mas supunha que estes deveriam reconhecer o poderio e a superioridade britânica. Após finalmente aportar em Montevidéu, a tripulação não conseguiu rapidamente sanar o problema do escorbuto, tendo em vista o desabastecimento geral da cidade em decorrência do bloqueio naval. Quando já se preparavam para sair, conseguiram um lote de laranjas com um inglês que vivia nas redondezas e soube do caso. O HMS Adventure então partiu para o Rio de Janeiro e houve mais um encontro com o comandante Robert Waller Otway, enquanto o HMS Beagle permaneceu em Montevidéu para reparos. O encontro com o comandante-geral da frota do Atlântico Sul, em seu veleiro HMS Ganges, resultou em nova troca no comando do HMS Beagle. O tenente-capitão W. G. Skyring, provisoriamente capitão da embarcação, foi substituído por outro, de igual patente, mas pertencente à equipe de Otway, o tenente-capitão Robert FitzRoy. Acompanhados pela escuna HMS Adelaide, os dois veleiros retornaram para um último mapeamento do Estreito de Magalhães e a continuação da missão com a exploração da costa até a ilha de Chiloé, no Chile. Durante esta passagem, os antigos contatos com fueginos e patagones foram mantidos, bem como foram novamente avistados os baleeiros norte-americanos. Como previamente acertado com o comandante Otway, o HMS Adventure se dirigiu ao cabo Horn, extremo sul da América, e lá se encontrou por poucos dias com outro navio expedicionário, o HMS Chanticleer, sob o comando do comandante Henry Foster em missão de reconhecimento das ilhas Shetland do Sul – descobertas há pouco mais de uma década. Naquela oportunidade, foram trocadas informações e correspondências, mas, acima de tudo, mapas e cartas náuticas elaboradas por ambos os exploradores. Em um momento histórico em que a Inglaterra partia para o reconhecimento preciso dos oceanos, era constante a presença de navios exploradores

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nos mais distintos confins do planeta, e estes tinham a obrigação de trocar informações e dados técnicos. O interesse britânico pelo mapeamento da região sul da América está expresso na quantidade de missões de mapeamento enviadas à região a partir da década de 1810 e pode também ser atestada pela voracidade atrás de relíquias históricas e objetos curiosos para a crescente coleção do British Museum, para o qual o suicida comandante Stokes, do HMS Beagle, conseguiu importantes aquisições. Além de diversos animais da fauna local, um especialmente chamava a atenção dos naturalistas do começo do século, e foi caçado, empalhado e levado a Londres: o misterioso condor da cordilheira dos Andes. Quando atravessava o Estreito pela primeira vez, o comandante Stokes se dirigiu a um dos montes descritos pelos antigos navegadores e lá encontrou uma relíquia, uma garrafa contendo mensagens de boas-vindas escritas por Magalhães, Córdova e Bougainville. Foram feitas cópias das mensagens, adicionada uma descrição da missão dos HMS Adventure e Beagle e estas foram deixadas no local, enquanto que as cartas originais foram recolhidas e levadas para o acervo do British Museum. A Inglaterra estava convicta de sua superioridade militar e cultural e se via na obrigação de recolher informações de todo o globo, devendo seus expedicionários levantar os mais distintos espécimes para que fosse possível a compreensão do planeta e de sua natureza, sendo também sua missão guardar e preservar a memória da humanidade, identificada com relíquias do passado como a garrafa-memória do Estreito de Magalhães ou tantos outros objetos de civilizações antigas, levadas dos cinco continentes. Durante a passagem pelo Chile, o comandante King conheceu a cidade de Santiago e o governo local, de onde saiu bastante admirado e feliz pela pronta recepção. Sua impressão não foi a mesma, porém, após visitar a alguns chefes indígenas araucanos da região do rio Bío Bío, com os quais conviveu por poucas horas, intermináveis, segundo ele. Para o comandante, os povos nativos podiam ser civilizados, mas, em seu atual estágio na escala civilizatória, eram insuportáveis e apenas interessantes cientificamente. Após o mapeamento das costas chilenas e da ilha de Chiloé, o comandante King recebeu correspondência do Almirantado cancelando o restante da expedição (Nova

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Gales do Sul, na Austrália e o Cabo da Boa Esperança) e ordenando seu retorno imediato à Inglaterra. Em sua última passagem pelo Estreito de Magalhães, o comandante King novamente contatou os indígenas, mas enfrentou problemas e uma pequena sublevação nativa que levou à estratégica retirada antecipada da expedição da região. Após alguns contatos infelizes que incluíram um oficial inglês cortar uma mecha do cabelo de uma índia, e a acidental quebra de alguns instrumentos de medição, pelos indígenas, o comandante disparou seus mosquetes contra os nativos, que prontamente revidaram com um ataque de pedras. No caminho de volta ao Rio de Janeiro, o tenente-capitão Robert FitzRoy também enfrentou problemas com os fueginos, pois um pequeno grupo furtou um de seus botes de exploração. Indignado com a situação, o capitão seqüestrou três indivíduos até receber o bote e os levou à Inglaterra para sua cristianização e, como diriam à época, civilizados. Após quatro anos e meio de viagens, entre maio de 1826 e outubro de 1830, as embarcações retornaram à Inglaterra. Porém, pouco mais de um ano depois, o HMS Beagle partiu sozinho para ampliar o reconhecimento das costas sul-americanas, bem como da Nova Zelândia e da Austrália, e em seu comando seguiu Robert FitzRoy. FitzRoy pertencia a uma destacada família da aristocracia inglesa, cuja linhagem se iniciou com relações extraconjugais do rei Charles II com Bárbara Villiers, na segunda metade do século XVII. Deste relacionamento, nasceu o filho Henry, que recebeu como sobrenome uma tradução livre para o inglês da expressão francesa fils du roi (filho do rei)iv. Henry FitzRoy se tornou o primeiro duque de Grafton, título herdado por seus herdeiros, como o avô e o tio de Robert. O lorde Charles FitzRoy, pai de Robert, se casou com a lady Frances Anne Stewart, de família igualmente aristocrática, e meia-irmã de respeitado Robert Stewart, lorde Castlereargh, marquês de Londonderry. Este tio era especialmente influente, pois, apesar de sua origem irlandesa, foi Secretário de Estado da Guerra e Colônias, líder da House of the Commons e representante britânico no Congresso de Viena. Político extremamente influente e sob pressão, se suicidou em 1822. Terceiro filho do lorde Charles FitzRoy, Robert entrou na Escola Naval em 1818, aos treze anos, se tornou capitão-tenente e ingressou na esquadra do Atlântico sob

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o comando de Robert Waller Otway, até alcançar o comando do HMS Beagle. Logo após retornar à Inglaterra, investiu politicamente para a formação de uma nova expedição ao Atlântico Sul. Após intensos reparos no veleiro, FitzRoy pôde finalmente comandar sua própria expedição. Contando apenas com uma embarcação, seus objetivos eram extensos e ousados, pois incluíam o mapeamento das costas sul-americanas e das ilhas do Pacífico, das recentes e prósperas colônias da Nova Zelândia e da Austrália, além da travessia do Cabo da Boa Esperança, concluindo a circunavegação do globo. Conhecedor das aflições e angústias que levaram ao suicídio do antigo capitão do HMS Beagle, Pringle Stokes, FitzRoy procurou encontrar um parceiro que pudesse ser útil à expedição, mas também um gentleman capaz de manter a sanidade mental do capitão. Após algumas recusas, localizou um jovem naturalista formado pela Universidade de Cambridge, Charles Robert Darwin. A expedição partiu da Inglaterra em 27 de dezembro de 1831, atravessou o Atlântico e iniciou sua missão de mapeamento pelo arquipélago de Abrolhos, seguindo até o cabo Horn. Ao passarem pela Argentina, FitzRoy e Darwin conheceram Juan Manuel de Rosas, governador da província de Buenos Aires, visitaram estancias e acompanharam à distância as matanças de indígenas promovidas pelas tropas portenhas em seu avanço territorial rumo ao sul, durante as chamadas “Campanhas do Deserto”, de 1833. Durante a estada na Argentina, os britânicos tiveram a oportunidade de conviver com a elite agrária portenha e seus dilemas diante das invasões e ataques indígenas. Tanto FitzRoy quanto Darwin foram enfáticos ao afirmar a superioridade da colonização britânica diante da ineficiência ibérica, responsável pela tensão, pelo extermínio dos indígenas e pelo atraso econômico da América Latina. Cristão fervoroso, FitzRoy investiu pessoalmente para a catequização e transformação dos dois fueginos em missionários anglicanos, pois pretendia devolvê-los à Terra do Fogo para que pudessem propagar a religião cristã. Ao retornar à região, os indígenas foram desembarcados e nunca mais se soube deles – inclusive por não ter sido frutífera a objetivada cristianização da região. Da Argentina, o HMS Beagle contornou o Cabo Horn e se dirigiu ao Oceano Pacífico, seguindo a costa americana até as ilhas Galápagos. Aquele arquipélago já era conhecido, pois era ponto tradicional de parada dos baleeiros e caçadores de foca,

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interessados em seu clima ameno e farta alimentação. Mapeado o local, o veleiro seguiu para as ilhas do Pacífico Sul, tendo permanecido um tempo considerável no Taiti até se dirigir às zonas de recente colonização britânica, a Nova Zelândia e Nova Gales do Sul, na Austrália. Naqueles locais, a interpretação de FitzRoy e Darwinv das resistências indígenas diferiu daquela proferida na Argentina. Enquanto a América Latina era vista como local retrógrado e a colonização ibérica era tida como responsável pela letargia no que se entendia como a civilização dos indígenas, a interpretação diferia quando se tratava da Oceania. Ambos viam como positiva a atuação dos missionários anglicanos e identificavam o afastamento dos nativos das propostas de sedentarização e ocidentalização como o atestado de sua ignorância e selvageria. Afinal, na interpretação destes britânicos, negar a civilização britânica e repudiar sua missão era o atestado da indolência e da incapacidade intelectual dos Maori da Nova Zelândia e dos aborígines da Austrália. Apesar das situações serem semelhantes – ocupação branca de terras, propostas evangelizadoras e resistências indígenas pacíficas ou não – os viajantes a bordo do HMS Beagle as interpretaram a partir de suas realidades, interesses e referenciais culturais. Procuraram e identificaram a América Latina como o local do atraso e da barbárie e localizaram na Oceania os focos de civilização. Enquanto a cultura ibérica era responsável pelas resistências nativas na Argentina, nas colônias britânicas estas atitudes somente poderiam ser justificadas a partir da total ignorância e falta de vontade dos povos conquistados, pois as oportunidades estavam oferecidas a quem quisesse aprovetá-las. A Inglaterra partiu, nas primeiras décadas do século XIX, para os mares, objetivando controlar o comércio internacional, identificar as potencialidades econômicas locais, mapear as rotas transoceânicas, estabelecer e fortalecer relações diplomáticas com Estados em formação, recolher animais, plantas, rochas e objetos históricos para suas coleções, e identificar os povos nativos das diferentes regiões do globo. Para tal, foram enviadas diversas missões de exploração e um dos pontos mais visados foi justamente o Atlântico Sul, naquela época já controlado por sua esquadra sediada no Rio de Janeiro, mas ainda bastante desconhecido para os cartógrafos e geógrafos.

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Neste contexto, Robert FitzRoy foi uma figura emblemática, pois aristocrata de nascimento e longa tradição, ingressou na frota do Atlântico, combateu o tráfico intercontinental, mapeou a costa sul das Américas sob o comando do experiente Philip Parker King e comandou uma expedição de circunavegação do globo e reconhecimento de diversos pontos ainda pouco explorados. Indiretamente, esta expedição foi responsável por uma das maiores revoluções científicas da história, a criação da teoria da evolução por Charles Robert Darwin. Naturalista de carona no HMS Beagle, Darwin nem deveria ter entrado na viagem e tampouco era uma figura conhecida ou prestigiada à época, mas sim apenas uma interessante companhia para o então famoso e importante comandante Robert FitzRoy. Darwin tinha consciência da polêmica que sua teoria geraria e procurou retardar por décadas sua publicação. Desde o retorno do HMS Beagle à Inglaterra, em 2 de outubro de 1836 até a publicação de On the origin of speciesvi, em 1859, foram longos anos de reflexão e inquietação diante de uma teoria que desconstruía diversos dogmas cristãos. Assim que o livro foi publicado, Robert FitzRoy se tornou um de seus maiores opositores, pois havia convidado Darwin para a expedição justamente para confirmar o criacionismo. Diante de uma teoria que abalava suas crenças, FitzRoy se sentia culpado, diante de Deus, por ter convidado Darwin para sua expedição. Abalado e ofuscado no meio científico pela impressionante ascensão do naturalista, o antigo comandante naval, ex-governador da Nova Zelândia e inventor do sistema de previsão do tempo sucumbiu à pressão e, assim como seu tio, Robert Stewart, lorde Castlereargh, marquês de Londonderry, e seu predecessor no HMS Beagle, Pringle Stokes, cometeu suicídio, em 30 de abril de 1865. i Os diários da viagem foram publicados em FITZROY, Robert. Narrative of the surveying voyages of His Majesty’s Ships Adventure and Beagle, between the years 1826 and 1836. Londres: Henry Colburn, 1839. ii Guanaco: Lama Guanicoe. Camelídeos da América do Sul, parentes da lhama, da alpaca e da vicunha. Habitavam a região entre o Peru e a Terra do Fogo, chegando até o sul do Brasil. Pesam entre 65 a 70kg, sendo, portanto, alvo fácil para diversas etnias indígenas e uma de suas bases alimentares. iii Cf. HORDERN, Marsden. King of the Australian Coast. The work of in the Mermaid and Bathurst (1817-1822). Melbourne: Melbourne University Press, 2003. iv Cf. GRIBBIN, John & GRIBBIN, Mary. FitzRoy. The remarkable story of Darwin’s Captain and the invention of the weather forecast. New Haven/Londres: Yale University Press, 2004. v Cf. DARWIN, Charles. ’s Beagle Diary. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. vi DARWIN, Charles. On the origin of Species – by means of natural selection or the preservation of favoured races in the struggle for life. Harvard: Harvard University Press, 2005.

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