Jack, o estripador abordo do

O céu estava encoberto por nuvens acinzentadas, e o ar tomado com fumaça enegrecida, vinda do único recurso que centenas de famílias dos operários imigrantes utilizavam para se aquecer— o carvão. Em Whitechapel o restante da população ociosa recorria as mais diversas atividades ilegais, percorrendo ruas escuras do miserável bairro londrino, o ano era 1888. A prostituição predominava nos becos e pequenos quartos alugados nas arruinadas pensões do entorno. Mulheres famintas sujeitavam-se à servidão sexual pela recompensa mínima, recebendo alguns trocados que não lhes favoreciam. E neste ambiente imoral, cheio de hostilidades, surge um assassino impiedoso, apelidado de Jack, o estripador. Ele fez cinco vítimas, todas prostitutas, barbarizando-as sadicamente, utilizando sua inseparável faca afiada. Estes atos horripilantes ficavam impunes, porque a polícia nunca o identificou. Mais de vinte anos depois, nas águas tranquilas e geladas do oceano Pacífico, o maior navio já construído deslizava pomposo, levando consigo passageiros ilustres—Alguns nem tanto. O luxuoso RMS Titanic iniciara a viagem inaugural no dia 10 de Abril em 1912, partindo de , Inglaterra, cujo destino final seria Nova Iorque nos Estados Unidos.

Primeiro dia a bordo...

Os risos misturavam-se ao som da hábil orquestra, que tocava na sala de recepção. A primeira classe transluzia estimulante conforto, repleta com elegantes senhoras, e homens orgulhosos discutindo os melhores negócios no intento das grandes fortunas. Archie Spencer, o herdeiro deprimido, não diminuía a empolgação dos demais. Em um lance inesperado, a sorte o alcançou e, mesmo assim, aparentava estranha morbidez. Havia dispensado o convite de reunir-se ao ostentoso jantar; entretanto, houve pedidos insistentes, convencendo-o. Olhando de relance, o convidado ao lado pegou a garrafa e serviu o afortunado infeliz.

-Beba amigo! Aproveite a vida... -Não, obrigado! –Rejeitou Archie. -Então bebo eu...

O entusiasta Rilley Collins sorveu a bebida de uma vez, atraindo a atenção dos requintados convivas. Ele aplicou muito dinheiro para viajar na primeira classe; porém, não pertencia a grã- finagem. A sórdida rotina levada se diferenciava, transitando no meio da camada menos distinta e sombria.

-Vejo que está sedento–Comentou Edgar Hoffman; e todos riram, quebrando o mal-estar. -Tomei muito sol no convés–Soltou uma piada, referindo-se as baixas temperaturas.

Quando jovem Rilley Collins entrou no ramo de pedras preciosas, retiradas ilegalmente das jazidas africanas. O trabalho sofrido rendeu-lhe frutos. Anos mais tarde, abusou da bonança nas jogatinas regadas a bebidas. A ruina fora certa, ficando empobrecido. Somente alcançou êxito novamente graças às fraudes cometida em joalherias londrinas, com sua parceira Hellen Walton. Ela distraía os vendedores, passando-se por uma noiva apaixonada sendo presenteada, e Rilley subtraía joias originais colocando réplicas no lugar. O olhar presunçoso do inescrupuloso colunista Peterson Ludwicci passeava diante de potenciais oportunidades. Atento, não perdia qualquer assunto que julgasse dar boa matéria ao Atlantic Daily Bulletin. O jornal exclusivo circulava internamente no navio, noticiando boatos da vida social, resultados envolvendo corridas de cavalos e o cardápio oferecido a cada dia nos restaurantes. Do outro lado da mesa, Archie Spencer, sisudo, afrouxou a gravata; a face avermelhada transparecia sua irritação. Achou o assédio cometido inconveniente. A mulher ajeitou-se na cadeira pondo no rosto um risinho safardana. Hellen, sentada perto de Rilley, deu uma olhadela raivosa, censurando Harriet Parkson em suas atitudes indecorosas.

-Algum problema, senhor Spencer? –Incitou Peterson.

Recentemente, Peterson Ludwicci descobrira fatos relevantes e inapropriados a serem inclusos no jornal atual, que redigia. Todavia, recebera uma proposta irrecusável de um magnata chamado Hearst, que dominava a imprensa americana, gerando escandalosos noticiários de veracidade duvidosa. O breve contato deixou-o empolgado pela preferência deste famoso editor em seus indecentes escritos arquivados numa luxuosa pasta preta de couro macio.

-Vou repousar –Decidido, Archie levantou-se incomodado.

Cruzando o salão de jantar, fixou um olhar desaprovador na direção da provocante Harriet Parkson. As carícias secretas durante a reunião social lhe enraiveceu.

-O que há de errado? Esse senhor Spencer é ranzinza –Disfarçou a autora do vexame. -A timidez não permite certas investidas –Observou Ludwicci, deleitando-se frente ao embaraço da intrusa.

A fracassada atriz de teatro aparentava sofisticação somente no vestir. Socorreu-se como corista em cabaré, localizado nas imediações da decadente Whitechapel. Possuindo três magníficos vestidos, aplicou pequenos golpes nos desavisados, arrecadando valores necessários; e comprou duas passagens na terceira classe. Harriet embarcou levando junto a amiga Florence Blake no esplendido transatlântico, e ousadamente, arriscando os planos cuidadosamente arquitetados pela audaciosa Hellen Walton.

-Tímido? Ele é esquisito...Com licença! –Harriet abandonou o recinto. -Espere, por favor! Permita-me acompanhá-la –Pediu Edgar Hoffman. -Fico agradecida... –Surpreendida, a voz quase lhe faltou.

O bem adornado cavalheiro ofereceu o braço, enchendo a golpista de esperança. Pensava ter atraído um solteirão rico, ficando animada.

-Não se envergonhe! -Você também percebeu? Eu não devia, foi uma vontade irresistível de provoca-lo. Ele é tão azedo... -E a senhorita é encantadora –Elogiou, interrompendo-a. A intenção cortês permeava caminhos diferentes que o gentil homem traçava, induzindo gananciosa trapaceira a crer na ajuda benevolente do destino. -E o que a traz nesta grandiosa viagem? -Meu pai quer apresentar-me um futuro marido, e insistiu que nos víssemos em Nova Iorque. Deus... –Encostou a cabeça no ombro de Edgar. -Parece desiludida? -papai pensa que dinheiro é tudo. -Ele quer ao seu lado alguém de sua estirpe. -E eu, a quem amarei de verdade.

Hoffman achou incrível a representação perfeita de Harriet Parkson. Não entendia porque os produtores teatrais desprezam aquele talento artístico nato.

-Espero que encontre o genuíno amor desejado. -Não desisto fácil...

Ela lançou um olhar languido, e saiu saracoteando a cintura. Queria despistar Hoffman, tomando rumo oposto à terceira classe.

-Nós nos veremos amanhã? –Bradou ao longe. -Sim querido! –Afirmou esbanjando charme.

***

Enfurecido, Archie Spencer arrancou a impecável vestimenta, atirando-a distante, e mergulhou na banheira. Excedendo o tempo de controle respiratório, ergueu-se espavorido. Sentia uma presença impura através do toque duradouro. O pecaminoso desejo o consumia. Quase que esfolando a pele, esfregava frenético, áspera esponja. O banho não aliviou angustiante questão. Archie deitou-se despido, com o órgão genital ereto. Depreciado, reprimia aquela libido, recitando palavras de abnegação. Odiou Harriet Parkson, e o proceder desafiador. Spencer enrolou-se em um cobertor, adormecendo.

-Sim!

Estremecido, acordou ao chamado insistente do mordomo; levantando confuso, colocou o pijama.

-O senhor Goldestein está a sua procura. -Por favor, avise que estou indo.

Acanhada, Marcie Goldenstein, distante do pai, não disfarçava o nervosismo, mordendo o lábio inferior. O colar de pérolas pendia do pescoço esguio. Uma causticante ansiedade afetou Archie Spencer, que sentiu incontrolável vontade de enforcar inconveniente criatura, com a própria joia reluzente. Ele detestava a frivolidade feminina.

-Espero não estar ocasionando incomodo, chamando-o aqui. É a respeito do que conversamos – Desculpou-se, notando o desconforto de Archie. -Sua filha é muito amável. No entanto, jovem demais –Pelejava, querendo se ver livre da moça. -Uma menina na aparência. Cresceu aos meus cuidados desde que perdeu a mãe; eu asseguro que é gentil e responsável.

O primeiro sentimento amoroso transbordava no coração enamorado da inocente filha, e Isidor Goldestein viu-se obrigado a intervir na aproximação de ambos, porque Archie Spencer não dava alternativa, mostrando indiferença aos gracejos femininos.

-O que o senhor quer de mim, senhor Goldenstein?

Ao embarcar no Titanic, Marcie carregava seu cãozinho da raça Spitz, e este escapuliu. Archie, de pronto, capturou o animal. Os jovens conversaram trocando olhares, surgindo nela uma singela paixão.

-Faça-lhe companhia nos encontros festivos, dance, divirta-se como fazem casais felizes. -Receio que não seja possível.

O judeu ajustou os óculos de lentes arredondadas e pequenas. Goldesntein tornara-se pai tardiamente, aos cinquenta anos. A doce menina descobrira o amor da forma pura. A rejeição firmada, vinda do arrogante Archie Spencer, afrontava-o, ao menos devia manifestar apreço, aceitando conduzir uma moça decente nos festejos.

-Mostre o mínimo de cavalheirismo. -Não consigo simular tais propostas. -A mim, não parece ser rude. Quem sabe acabe gostando de Marcie... -Pelo amor de Deus! Ela tem toda uma vida, haverá quem queira amá-la...Do que adianta falsas esperanças? Irredutível, pegou a rosa do vaso de cima da mesa no Verandah Café, passou por Marcie Goldenstein e lhe entregou. -Boa noite, senhorita! –Sentindo um misto de piedade e repulsa, resistiu não virar para trás.

A madrasta volúvel de Archie Spencer, da qual soube castigar devidamente, induziu seu abandono no internato. Submetido a castigos nocivos na infância, segundo regras severas do reduto juvenil religioso, adquiriu graves distúrbios emocionais. A herança obtida da tia avó trazia conforto financeiro, não refrigero a alma atormentada. O que possuía parecia irreal, fugaz, sentia infelicidade.

*** Na cabine, o comandante Edward Smith recebera desagradável noticia. O assassinato da jovem transgressora dos bons costumes. A moral dela não o interessava e sim, o sigilo do trágico acontecimento, evitando pânico em alto-mar. Imediatamente, destacou uma equipe destinada a cuidar deste horrendo caso. Na lista de passageiros, viajava um renomado detetive disfarçado com seu inseparável amigo e a senhorita Margot Colley, fiel admiradora, dotada de alguns dons espirituais.

-Veja, Akar!

Elliot Carter notara estranha movimentação dos oficiais. Os homens caminhavam afoitos, transmitindo seriedade.

-Será o que houve? -Parece-me sério demais. Temos de descobrir! -A curiosidade te coroe... -E a você, não? -E quanto ao que viemos resolver? -Não irá nos atrapalhar.

E foram espreitar os arredores, convictos de não deixar escapar qualquer argumento proveitoso. Enquanto isso, no outro extremo do convés, Peterson Ludwicci falava gesticulando, indignado. O ouvinte, um senhor imponente, conservou invejada parcimônia.

-Edgar? –Interpelou Ludwicci, desobrigando-se da exigida formalidade, como fazem amigos de longa data. -Sim! –Hoffman vinha acendendo o cachimbo, e levantou a cabeça, atirando o palito de fósforo distante. -Podemos conversar?

Ludwicci despediu-se de quem proseava. O convés começou a se esvaziar rápido, a aragem fria do oceano expulsava os andantes noturnos.

-Não pretendia intervir nos teus assuntos particulares.

Alguém vigiava nas fileiras dos botes, acompanhando todo o diálogo.

-É sobre? -Você conhece o tipo de mulher que está se envolvendo? -Qual? -A que seguiu de braços dado, deixando à mesa do jantar, hoje. É uma vigarista –Pronunciou, dando ênfase a frase. A satisfação iluminou-lhe o semblante. -A vida ensinou-me a ser prudente. -Quer dizer que sabe onde está se metendo?

-Aquilo é uma doçura de mulher... –Percebeu a ponta do vestido da dama curiosa, sacodindo ao vento. -Tome cuidado! -Agradeço a consideração.

Edgar Hoffman saiu tragando o cachimbo, vigiado pelo astucioso Peterson Ludwicci e o da sensual sentinela.

-Pobre homem! Caiu na armadilha da larapia sedutora. Soltou um riso comedido, contemplando enormes pás que impulsionava o gigante a navegar em mar gelado.

-Olá querido! –A voz soou maligna. -Jogue a pasta! –Ordenou a mulher, ameaçando apertar o gatilho. -Você pensa que vai sair impune? -Cale a boca, inútil! A pasta... –O cano da pistola, direcionada no peito de Ludwicci, não lhe ofereceu alternativa.

E a noite rompia abominável espargindo violência.

*** O membro da tripulação sorriu, abrindo agilmente a passagem de acesso à terceira classe. Jimmy Roosevelt, satisfeito, cumprimentou a linda passageira, que fizera um acordo indecente, envolvendo favores sexuais, ganhando liberdade nos pontos proibidos aos viajantes desabonados.

-Teve um dia furtivo? -Razoável... E Florence o agradou? -Não cumpriu o trato... -Não foi visitá-lo? Estranho!

Harriet desapareceu no longo corredor. Chegando perto de sua cabine, avistou três oficiais. -Senhorita Harriet Parkson? -Sou eu! A que devo a honra da presença dos senhores? -Faça a gentileza de nos acompanhar. -Juro que pretendia somente arejar a mente –Ironizou. -Não vim corrigir seu oportunismo em invadir a primeira classe. -Hum... –Piscou maliciosa. -Mantenha a postura, por favor! –Ordenou Herold Lowe, um dos oficiais. -Não sei o que pretendem... –Ela nem ficou corada. -É obrigada a nos acompanhar. -Tenho que me recompor –Abriu a cabine. -Levem-na! –Determinou severamente. -Largue-me, abusados! -Comporte-se ou a deterei pela força. -Sobre qual acusação? -Incentivar práticas ilícitas. Certamente, Jimmy Roosevelt afirmará, caso queira amenizar as punições vindas dos superiores. -Bastardo! –Praguejou, olhando o delator involuntário.

O corpo de Florence Blake foi descoberto entre bagagens no porão número 2. Não ficou evidente se quisera estar ali exercendo aventuras sexuais, ou o assassino a levou, enganando-a com outro pretexto.

*** Filho de um próspero comerciante em Bagdá, Akar Xafur contrariou os interesses da família. Não dando procedimento nos negócios, optou por aventurar-se desgarrado pelo mundo, convivendo com culturas diferentes e vivenciando paixões, liberto das rígidas tradições religiosas do seu país, que o sufocava. Conheceu o detetive Elliot Carter, depois de salvá-lo das garras dos salteadores, na cidade turística onde visitava. A partir dali, passaram a viajar juntos, desvendando os prazeres e peripécias.

-Descobriu alguma coisa?

O detetive, transfigurado, encarou o amigo que o esperava na proa do navio.

-Meu caro Akar... –Franziu a testa e ergueu uma das sobrancelhas. -Elliot, o que houve? -Ele voltou! -Quem? -Jack... Eu o persegui durante minha juventude, há mais de vinte anos, em Whitechapel.

No intuito de alcançar méritos e tornar-se um afamado detetive da Yard, Elliot Carter praticamente destruiu sua vida, com a obsessão que o cegou –capturar o assassino do século, Jack, o estripador. Ignorou a esposa grávida, que teve complicações durante o parto prematuro, acabando por falecer. Arrependido, jamais se perdoou. Decidido, largou a profissão, perambulando mundo afora e, consequentemente, desafiado o tempo inteiro pelo traiçoeiro desejo das descobertas.

-Jack, o estripador? Impossível... -É o mesmo modus operandi. Esfaqueia o ventre, estripando a vítima e... -Incrível! Quer dizer que o assassino está entre nós? –Akar Xafur ficou estranhamente empolgado. -Trágico, meu amigo! Trágico! –Repetiu o detetive, começando a andar, transpirando de terror. -Aliás, o que diz destas roupas? -Peguei emprestado, ou não teria invadido à cena do crime. -Emprestado? –Akar encarou Elliot Carter. -Você sabe!

Justificou afobado, não admitindo abertamente o erro descabido a um cidadão de bem.

-Ahã. Sei! -Preciso pensar...Organizar o raciocínio –Gritou distante.

O conhecido criminoso denominado Jack, o estripador, atraía suas vítimas meretrizes, passando- se como cliente, levando-as a locais escuros e longe de possíveis curiosos. A maioria das prostitutas em Whitechapel praticava ações libidinosas, nas vielas imundas. Muitas delas, velhas ou acima do peso, exerciam seus desígnios recebendo uma retribuição miserável, impedindo oferecer acomodações aos solicitantes dos serviços. Dominante, Jack posicionava-se detrás da vítima e lhe tapava a boca, inviabilizando o pedido de socorro. Após isto, cortava a garganta do lado direito ao esquerdo com um instrumento afiado, provocando profundo ferimento na artéria carótida. Análises feitas pela polícia inglesa sugeriu que o assassino viera de família desestruturada, sujeitando abusos psíquicos e sexuais por uma mulher dominante. O fato de os crimes serem cometidos nos finais de semana, nas madrugadas, indicava desvinculo matrimonial, provavelmente um solteiro. Suspeitos foram interrogados, mas ninguém soube o paradeiro do esdrúxulo matador, restando especulações e rumores em interiores das habitações, que interligavam becos emporcalhados.

Madrugada do segundo dia a bordo...

A seringa escorregou lentamente da mão de Elliot Carter, caindo. Adormecera pensativo, sentado na cadeira. Algo não se encaixava, esteve averiguando a cena do crime, nada parecia fazer sentido. Nas diligências prestadas à Scotland Yard, o detetive presenciara como Jack, o estripador agia, havendo falhas significativas no modus operandi atual. Jack era silencioso, perspicaz. O homicida subjugava perfeitamente suas vítimas, e nas mãos Florence Blake apresentava sinais de autodefesa. Um dos pés ficou descalçado; a botina largada lateralmente ao corpo sugeria uma luta. Florence tentou se safar das garras medonhas que a vencia.

-Elliot! -Estou aqui! –Acordou do cochilo atordoado. -Venha dormir na cama, ou terá dores nas costas... –Pisou em um objeto. -Por Deus, Akar, vê por onde pisa! É material de investigação. -Do Jack? -Sim. -Se fosse uma faca, teria sentido... -Este caso, de repente, ficou esquisito. A idade fez nosso Jack perder a vitalidade, e precisa de auxilio para cometer atrocidades. -Ele sedou a vítima? -Tudo mostra que sim. A necropsia confirmaria essa suspeita. -Existe hospital dentro do navio... E obviamente médicos. -A seringa é um forte indício de que o assassino pertence ou tem contato com o hospital. Além do mais, são cirurgiões e não médicos legistas. -E se o assassino conhece a droga e a roubou? -É uma hipótese, meu caro “Watson”... –Elliot marchou de encontro à saída. -Verificou as horas? -O alvorecer está prestes a romper, preciso sentir a brisa –Carter girou a maçaneta. -E sairá sabendo dos riscos? -Não sou mulher, esqueceu? –Aludiu aos ataques específicos de Jack. -O ar congelante pode paralisar seu cérebro, “Sherlock” –Brincou.

Diferente do lendário detetive Sherlock Holmes da literatura ficcional, Elliot Carter mantinha um maior esforço, no intuito de compreender o que intercorria. Não adquiriu tamanha agilidade nas deduções como deste famoso personagem. O raciocínio de Carter exauria-se facilmente, surgindo premência em espairecer a mente. Desafiando o frio intenso, Elliot assoviava desafinado, parando apreensivo, soltou o ar quente dos pulmões, o detetive interceptara a projeção de uma silenciosa sombra perseguidora.

-Quem está aí? Margot, é você? –Virou-se.

A quietude predominou. Carter decidiu fingir não dar importância a quem o vigiava, rondando na escuridão. Ao retomar a caminhada, recebeu uma pancada no alto da nuca. Estonteado, apanhou a estimada Parabellum 9mm, mirando confuso, caiu dormente.

-Por que bateu na minha cabeça?

Com a visão embaçada, Elliot Carter tentava distinguir se fora um homem trajando roupas femininas que o agrediu. O detetive contraiu o canto da boca, sorrindo. Julgou-a parecida ao lenhador, seu antigo vizinho. Delirante, perdeu os sentidos. No convés, permaneceu desacordado, de rosto direcionado para o céu enevoado.

-Senhor! Senhor! –O marinheiro ajoelhado sacodia o detetive. -O que aconteceu? –Elliot colocou a mão na cabeça inchada. -Encontrei-o desmaiado. -Ai! Ajude-me! –Pediu dolorido. -Vou leva-lo ao hospital.

Preparado para atender eventuais emergências médicas, o hospital estava localizado no convés D. As instalações cirúrgicas posicionavam-se um andar acima, interligadas por uma escada privativa, que unia os dois andares. Toda a ala hospitalar tinha revestimento de painéis em madeira pintada na cor branca e o chão coberto com azulejos. Camas esmaltadas alternavam entre comuns ou beliches. A enigmática enfermeira apalpou o couro cabeludo de Elliot Carter, afastando os tufos dos fios grisalhos em seus cabelos avolumados, que impedia a observação da saliência na cabeça. -Aqui está! É bem grandinho, hein? Como se machucou? –Esfregou avaliando o tamanho -Não lembro... Um aspecto jubiloso nasceu no rosto másculo da truculenta enfermeira. -É mesmo? Vou informar o médico. Ele pode avaliar melhor o senhor.

Um aspecto jubiloso nasceu no rosto másculo da truculenta enfermeira, que mal abandonou a sala e, Elliot começou abrir as gavetas, puxando arquivos. O acidente serviu como valiosa oportunidade. O detetive enfiou dentro do casaco anotações da inspeção sanitária, sucedida a bordo, na hora próxima à morte de Florence Blake.

-Senhor Carter? –Finalmente o médico apresentou-se; e calmo, ouviu a explicação. -Sente náuseas? -Não. -Sonolência? -Sim. -Diga-me, qual o número da sua cabine? -Eu...Não sei...

Expressou-se em convincente grau de alienação. Sentia fortes dores na cabeça, mas mantinha consciência das suas ações. O fingimento da amnesia deu a Elliot a chance de demonstrar fraqueza, dispondo livre controle aos suspeitos. O exame não tardou. Liberado, o detetive recebeu remédios e vastas recomendações –caso manifestasse demais sintomas, deveria comparecer urgente no hospital. A perda de memória podia ser temporária, explicou.

-Enfermeira Krieger, o paciente veio acompanhado? -Na recepção... –Apontou.

O marinheiro certificou de encontrar a cabine certa. Tremente, Elliot girou a chave na fechadura.

-O senhor ficará bem? -Viajo com um amigo. -Parece estar recobrando a memória... -Fico grato por ter me trazido. Boa noite! -Boa-noite!

Minutos antes...

Ofegante, o invasor apanhou no bolso uma fotografia desbotada de Elliot Carter, uniformizado, da época que ele servia na polícia metropolitana de Londres. Em êxtase; bramiu irônico, frases ofensivas, guardando-a novamente, esmurrou o espelho da penteadeira. Fragmentos espalharam nas diferentes direções. O sangue escorreu dos dedos finos do agressor. Ignorando os ferimentos, destruiu moveis e pertences pessoais. Vasculhando o passado na mente doentia, resfolegou agitado. A infância conturbada ressuscitava magoas profundas, afetando o equilíbrio emocional. A malignidade brotou cedo no coração do jovem vingativo. Ambicionava concretizar a ira, que alimentara havia anos, dentro da mais luxuosa embarcação concedida pela aristocracia.

-Akar! –Chamou apavorado, vendo a situação lastimável da cabine. Haviam-na destruído, e Akar Xafur sumira. -É sangue! –Tocou, sujando as pontas dos dedos.

Em um regresso de memória, veio à tona lembranças dos dias árduos que o detetive enfrentou, seguindo pistas dos brutais assassinatos. O ano era 1888, no dia 16 de novembro. O chamado comitê de vigilância, em Whitechapel, recebeu uma carta aterradora respingada com sangue. No interior da caixa, o assassino Jack estripador enviou metade do rim, que supostamente pertencia à quinta vítima, Catarine Eddowes.

-Maldito! –Rangeu os dentes e escancarou a porta, deixando a cabine, furioso.

Atenta, e preocupada, Margot Colley não adormeceu. A sensitiva repetia Mentalmente, uma velha canção que gostava, procurando se acalmar.

-Margot!

Um tempestuoso chamado e, ela pulou da cama, atendendo.

-Elliot! Afinal o que aconteceu? -É o Jack! Levou Akar... -Não, Elliot! Ele esteve aqui e foi ao seu encontro. -Quando? -Há uns vinte minutos... -Graças a Deus! –Suspirou aliviado. -Olha! Lá vem ele –Indicou Margot.

O pincel recriava na tela o desenho abstrato perturbador. Em transe, Margot Colley transparecia o forte poder sobrenatural, exaurindo as forças existenciais do seu corpo. A melodia mística prevalecia no imaginário, fazendo-a embalar-se solitária; e de maneira simultânea, produzia leve pinceladas. Lentamente, o borrão colorido recriou o aspecto de um rosto. A friagem soprou o interior da cabine.

-Não se aproxime de mim –A rouquidão da voz sinistra tomou as cordas vocais de Margot.

Arrepiada, largou o pincel, tropeçando no cavalete. Carter segurou em tempo a reveladora obra artística. A chama da vela oscilou, querendo apagar.

-Psiu! Ela não saiu do transe –Avisou Elliot Carter. -O cavalheiro das trevas... –Margot apresentou a pintura, e esvaída desmaiou. -Margot!- O detetive pegou-a no colo. -Isto não é normal, sabia Carter? -Ajude-me a carregá-la de volta à sua cabine. -Não acha imprudência dois homens carregar uma mulher desacordada nos corredores? -Elliot...- As mãos de Margot alcançaram o rosto do detetive. -Estou aqui, minha querida! -Acontecera novamente... -Quando? -O bilhete...Pedaços de papel respingados de sangue, atirados ao vento, que soprou a vela. A fúria do temível malfeitor destina-se a você. -Obteve a identificação nítida do rosto? Porque a pintura ficou indecifrável. -O nevoeiro denso impediu de discernir. Ele caminhava nas ruas de Londres, atado a aparatos, desses usados nos manicômios, que contêm o furor da loucura. -Carter, não se apegue a crendices estupidas. Somos competentes e devemos seguir pistas reais. -Existe uma forte ligação, envolvendo suas vidas. Pude sentir –Margot ignorou os apelos de Akar. -É normal. Tornou-se minha caça desde o princípio. -A ligação segue além. -Como? -É uma mistura de sentimentos, que se perdeu no tempo. -Puro desvairo- Censurou Akar Xafur. -Não esperava que entendesse –O detetive Carter replicou. -Eu não compactuo com bruxarias- Revidou raivoso. -Parem!- Repreendeu Margot. -A vidência é um árduo presente, concedido àqueles meramente escolhidos. Portanto, Akar, respeite os intentos da senhorita Colley, porque carregar este dom dignamente, não é fácil. -Façam o que quiserem –Saiu revoltado.

***

O batom carmim marcava os traços perfeitos dos lábios carnudos. A pele alva, olhos verdes- esmeraldas e cílios longos atribuíam a Harriet Parkson irresistível beleza.

-Levará a senhorita, para que veja o estado deplorável da amiga? –Murdoch não mostrou sensibilidade.

Wilde estranhamente a olhou, afável. Harriet passara a madrugada dando explicações ao alto comando marítimo. Reviraram sua vida particular, constrangendo-a.

-Aonde vamos? O que fizeram a Florence? -Não faça perguntas, mocinha! Deve seguir ordens. -Eu não posso ser tratada como bandida. Sou passageira. -Que pagou as despesas da terceira classe e, queria viajar na primeira? -Ora, seu... -Chega, Murdoch! –Wilde o colocou no lugar de merecimento –a baixo dele.

Henry Tingle Wilde entrou na equipe dos oficiais do RMS Titanic de última hora, cumprindo o pedido solicitado. A mudança gerou novas recolocações. William McMaster Murdoch, que seria o oficial chefe, foi rebaixado a primeiro oficial; e o clima entre eles ficou desfavorável.

-Sim, senhor!

O xale escarlate escorregou e os ombros da senhorita Parkson ficaram despidos. Hanry Wilde acudiu, cobrindo-os. Cabelos cacheados cor de mel penderam graciosos, encobrindo o rosto. O vestido justo mostrava, em demasia, formas curvilíneas do corpo de Harriet Parkson. Insatisfeito, Murdoch endureceu as feições, percebendo o flerte de Wilde com a difamada senhorita. A censura era um sentimento proveniente do despeito, relativo à superioridade de comando, não oriundo da afetividade inoportuna dirigida à infame mulher.

-Procure uma cabine vazia na primeira classe, Murdoch. A senhorita Parkson ficará aos meus cuidados. -Como é? Quero dizer...Sim, senhor!

A claridade esmaecida e o odor etílico criaram uma expectativa tensa em Harriet, fazendo-a sentir o estomago contrair, doloroso. Sob o lençol branco repousava um cadáver, pele lívida, retalhada por navalha afiada. A enfermeira descobriu o corpo.

-Oh, meu Deus! –Tapou a boca, usando as mãos. -É Florence Blake? -Sim... –Confirmou estremecida.

Lágrimas escorriam abundantes no rosto assustado de Harriet Parkson, que tocava partes mutiladas da amiga.

-É cruel...Quem cometeu esta barbárie? -A pretensão é descobrir, não causando alarde.

Jimy Rosevelt, o empregado desleal, provou inocência, saindo da lista dos suspeitos do crime; e recebera punição, sendo afastado das funções.

***

Com descendência irlandesa, Margot Colley cresceu protegida, conforme intervenção abençoada de uma família católica. Ajudava o pai adotivo na tabacaria, esperançosa que cliente viesse a cortejá-la, realizando o sonho do casamento. Mas não aconteceu. Elliot Carter, frequentador assíduo da tabacaria, tratava-a gentilmente, bastando para surgir interpretações errôneas. O detetive esclareceu tratar-se de intenções amigáveis. Margot ignorou a realidade, permanecendo iludida; largou os familiares que lhe acolheu, acompanhando-o nas andanças.

No salão social da segunda classe, Margot esperava inquieta, consultando a hora no antigo relógio de bolso, usado nas ocasiões precisas em disfarces feito homem.

-Nossa! Que ridícula, Carter –Reparou Akar, detestando o desajeito de Margot. -Fique quieto! Ela é um ser humano com grandeza espiritual elevada. -Nem o espiritualismo entende tal criatura desengonçada- Lastimou o jovem presunçoso.

Eles aproximaram-se, e Margot Colley levantou espaventada. O penteado parecia um ninho de pássaros mal feito, os fios crespos dos cabelos não ornavam, virando uma maçaroca infernal.

-Bom dia, querida!- Saudou o detetive, abraçando Margot. -Carter...

Ela desmanchou-se de felicidade, apertando-o forte. Akar Xafur não reprimiu um risinho debochado, e Elliot o censurou dada a expressão facial feita, bastante conhecida, enrugando a testa como forma de insatisfação.

-Oi, Margot! –Ficou envergonhado. -Novidades? –Perguntou desconfiada, sabendo não passar de piada na visão do Akar e tantos homens que a olhava, discriminando-a. -Tenho.

O detetive narrou seus apuros, e a descoberta envolvendo membros da tripulação.

-Devem estar dando cobertura ao assassino infiltrado. A cabine não sofreu arrombamento. Estamos encurralados. -É um perseguidor perverso –Margot expôs preocupação. -Vamos nos dividir e redobrar os cuidados. Eu e a senhorita Colley iremos à caça do suposto Jack... -Por que suposto? -Nas investigações oficiais que fiz da Scotland Yard, imitadores influenciaram no caso real, matando mulheres como usualmente Jack fazia. -Elliot, você disse que o modus operandi era idêntico! -O sistema de atuar confere. O que dificulta avaliar Jack, é a diferença de idade, podendo inclusive estar enfermo, produzindo falhas significativas na cena do crime. -E a mim, resta perder a parte emocionante? -Entendo seu espirito aventureiro. Mesmo assim, sugiro que continue investigando o Rilley Collins, vejo ser mais apropriado a você.

O contraste dos dentes brancos sob o tom bronzeado da pele bem cuidada e roupas confeccionadas com tecidos finos, dando caimento perfeito, enriqueciam a aparência assemelhada a um integrante de alta nobreza estrangeira. Carter sabia que fizera uma escolha acertada –Akar era perfeito para se estabelecer disfarçado na primeira classe.

-Por quê? Não sou inteligente o suficiente? -Akar, por favor! -Não se sinta ofendido meu rapaz, a experiência é primordial em casos complexos.

Margot procurou ser gentil, não perdendo o brilho nos olhos ao encarar o detetive Carter, visivelmente agradecida, achou-se digna de ter sido eleita pelos talentosos feitos.

-Ganhara credibilidade um dia... –Esnobou Colley.

Um tanto afastados, o exasperado Akar Xafur ouviu definições do detetive Carter, resumindo o conceito que o levou a nomeá-lo cumpridor da tarefa em acompanhar os passos do ladrão de joias.

-Escolheu a mim, baseado na aparência? E não é você que tanto me critica por levar isto em consideração? -Não se exalte! Margot pode ouvir. -Cobre a feia de bonitos elogios e depois a despreza? -Não lhe devo explicações... -Fugindo da verdade? -Você não entenderia... -Tente! -A doçura de Margot excede a capacidade que tenho de retribuir à altura do seu merecimento. -Fazê-la feliz é fácil, percebeu como grudou em você? -Um relacionamento a dois não se resume a abraços. -Eu sei. É por isso que quer se esquivar, antes de encarar a parte mais temível? –Riu, satirizando. -Sua maturidade assusta-me, Akar. -E o que diz de tal covardia? -Cuide das ocupações. Anda! –Risonho, Carter o viu partir.

A camada nebulosa dos malcheirosos tabacos esvaecia nas aberturas espalhadas no salão de fumantes. Intrigado, Elliot Carter lançava na atmosfera a fumaça do habitual charuto acalentador, amainando uma apreensão tendenciada a crescer. O cérebro desatinou a latejar. Ele pressionou lateralmente a cabeça, usando as duas mãos.

-Cuidado, amigo! A curiosidade resulta em dor.

Carter corrigiu a postura. O sujeito alcoolizado, com os botões da camisa desalinhados, não parava de encarar o detetive.

-É mesmo? –Provocou Elliot.

Um impudico sorriso nasceu nos lábios ressequidos do ébrio, que ergueu uma garrafa de uísque, e veio ao encontro de Elliot Carter.

-Como está detetive? –Rilley Collins assentou-se à mesa.

Elliot, desprovido de palavras coerentes, rezingou ajustando o chapéu na cabeça, mal-humorado.

-Aproveitando da ilicitude de seus atos? –Não segurou a raiva, fora descoberto. -Eu sei viver a vida. Observe o luxo... A ilegalidade não vem ao caso. O tratamento que recebo é idêntico a dos negociantes íntegros.

Revestido com painés em mogno polido e madre pérola nos detalhes, o salão de fumo sustentava lindos vitrais coloridos, iluminado por luzes projetadas ao fundo, dando a sensação dos bares londrinos. O espaço comportava um mobiliário sofisticado, dividido nas laterais, oferecia pequenas alcovas a viajantes que desejassem privacidade. Era o único espaço que possuía uma lareira funcional.

-Quem contou a você? –Confrontou. -A lealdade de amigos é indiscutível. Não gastei uma única libra –Gabou-se o fora da lei. -É bom economizar, precisará de advogados.

Collins gargalhou e virou o restante da bebida, sugando as gotas finais.

-Aprecie a viagem, detetive. -Eu digo o mesmo, pode ser a derradeira que faz. -Duvido! –E se retirou, satisfeito. -Filho da mãe!

Estupefato, Elliot Carter, tendo a identidade revelada, apagou o charuto e fez menção de levantar. O disperso vozerio incorporou-se quando adentrou o lugar. Edgar Hoffman estava reunido a um seleto grupo dos mais ricos. Elliot, encolhido no sofá, aparentava uma criança amedrontada e supôs que a resposta às indagações feitas a Rilley viera espontânea. Quem poderia querer prejudica-lo? Hoffman, antigo rival expulso da Escotland Yard. Ele virou caçador de recompensa. Decerto, entregou-o ao salafrário do Rilley Collins, para abocanhar a gorda recompensa, tirando-o fora da jogada. E de brinde, ganhou confiança.

-Patife!

O detetive espalmou a aba do chapéu ao nível dos olhos, e se levantou rápido, saindo discreto. ***

A sinistra obra do tenebroso sicário, assinalada com sangue na cabine destruída, desnorteou Akar Xafur. Ele queria ver os raios solares rotineiros no céu límpido que sucedia na sua terra natal, ao contrário do soturno cinza, presenciado. Vagando observante, parou admirado. Raras ocasiões vira dama de igual formosura.

-Que inspiradora manhã! –Exclamou, esquecendo-se de que, há pouco, caminhava desmotivado, julgando o dia tedioso e triste. -Eu posso sentar? –Pediu educado, ocupando a espreguiçadeira. -É de direito, pagou a passagem, não? –Manteve o olhar no oceano. Ignorar Akar fez-lhe gozar da satisfação de sentir-se superior. -Perdão! Não queria causar incomodo... Apareci na hora errada? -Infelizmente!

Olheiras escuras marcavam os contornos dos delicados olhos esverdeados, que vagantes, perdiam-se na imensidão do mar.

-Eu lhe seria útil amenizando o infortúnio? Estou à disposição, senhorita! –Levantou-se.

Procurando vestígios indicadores da classe social do desconhecido, metido a bom samaritano, Harriet Parkson mirou-o de cima a baixo. E apreciou o que viu.

-Não se preocupe! Sutilmente obrigou-o a sentar-se de volta, tocando-lhe o braço. -Sou Akar Xafur... –Ele reclinou reverente saudando-a.

O atraente estrangeiro, adornado em vestes dispendiosas, irradiava opulência. A barba rala, tratada com desvelo, e os olhos graúdos vivazes afervorou nela uma frívola paixão. -Deve ir agora –Um oficial apareceu e anunciou ríspido. -É cedo! –Ela se opôs. -Queira ou não, é obrigada a vir –Murdoch a ergueu estupido. -Como ousa tocar nesta mulher...? -É assunto pertinente a nós, do comando interno, senhor –Encostou a mão no peito de Akar. -Afaste-se ou quebro seu pescoço –O rosto esfogueado de Akar Xafur incentivou Murdoch a obedecer. -Não pode impedir meu trabalho. -E qual é? Maltratar senhoritas indefesas? -Ao contrário! Nosso esforço é promover proteção aos passageiros. -O senhor pode sair do caminho, por favor? –Wilde chegou sereno.

Harriet suspirou, intentando amenizar o ritmo agitado do coração. Posicionada entre homens afeiçoados enfrentando-se, elevou seu orgulho feminino a imensurável patamar.

-Digam o que sucede? –Pediu Akar. -Senhorita... –Tolerante, Wilde estendeu a mão, guiando Harriet de encontro a si.

Os cabelos de Oliver Dean, sedosos e compridos, partido ao meio, caíam displicentes, vazando fora do quepe. Não se ajustando aos padrões rígidos da companhia , detentora do RMS Titanic.

-Espere! –Akar atalhou o mensageiro. -O que deseja? -Você estava ali parado e viu... -Que os oficiais a levaram? -Sabe quem é ela? -É tarefa da tripulação conhecer todos a bordo, e servi-los. -Entregaria um recado?

No rodapé do jornal que o mensageiro carregava, Akar Xafur rabiscou umas poucas palavras, improvisando um bilhete. -Algo mais, senhor? –Perguntou incomodado, fingindo cortesia, sorriu. -Não. -Com licença, senhor! -É sua... –Akar impulsionou os dedos lançando uma moeda no ar.

As mãos enluvadas agarrou o dinheiro.

-Obrigado!

Virando-se, Oliver resmungou baixinho, chamando Akar de idiota. O mensageiro pegou o acesso à escadaria principal. No corredor da primeira classe, entregou o jornal na cabine de , o engenheiro naval, responsável pelo projeto e supervisão do Titanic.

-Alfred! -Sim, senhor Andrews –O mordomo prontificou-se. -Veja! O meu jornal... -Inacreditável! -Mensageiro desatento. -Pegou-o de alguém. -Irei ver o capitão, Alfred. Cuide dessas anotações espalhadas. -Como queira!

Consciente da sua importância, entretanto destituído de vanglórias, Thomas Andrews perseguia a perfeição. No esforço diário, custava oferecer-lhe merecido repouso. Alcançara grandes méritos, criando o ambicioso projeto do colossal navio e supervisando uma multidão dos milhares de trabalhadores no estaleiro, pertencente à empresa náutica Harland and Wolff.

-A propósito...Tenha um bom dia! -Senhor... –O mordomo moveu a cabeça, despedindo-se. -Oh...Estava me esquecendo.

Andrews não desapartava do caderno de anotações, marcava qualquer ínfimo defeito na embarcação, corrigindo-os posteriormente.

***

Folhas retiradas da gaveta no arquivo hospitalar ficaram espalhadas; e uma, em especial, acordou os sentidos detetivescos de Elliot Carter. Apurando a vista, esforçou-se enxergar as minúsculas letras.

-Não encontro minha lupa... –Resistia ao uso dos óculos, apelando a um auxílio passageiro.

O relatório afanado notificava a presença da equipe que prestara serviço, na terceira classe, coincidindo com o acontecimento grotesco ocorrido horas adiante. A seringa encontrada elevava as suspeitas do factível elo, ligando o hospital à vítima.

-Quem se atrasou ou não voltou ao posto de trabalho? –O detetive não parecia lúcido, tagarelando solitário.

O detetive descobriu que a enfermeira Krieger não voltou dentro do tempo solicitado. Elliot circulava como um leão enjaulado a procura de uma boa ideia, querendo obter informações privilegiadas. Rondava os quatro cantos da cabine, beliscando o pedaço de pão trazido embrulhado no guardanapo, quando desistiu em tomar a sopa oferecida pelo restaurante. A angustia tornou-se inseparável, e Elliot Carter não consumia refeição descente há horas, imerso nas analogias conflitantes.

-Senhor Carter?

O grito quebrou a concentração. Sobressaltado, o detetive juntou seus escritos e os enfiou de volta na gaveta.

-Sim –Abriu a porta com migalhas de pão aglomeradas sobre o peito.

O comissário particular do capitão Smith, James Arthur, reparou o desjeito.

-O que quer? -O capitão Edward Smith aguarda sua inadiável presença. -Em qual lugar estou sendo requisitado? -Na suíte, perto da casa do leme. -Pois bem...

Expulsando faúlhas de pão, batendo desastroso no suéter, Carter derribou nos sapatos. Verificando a piora, suspendeu as pernas das calças e sapateou.

-Eu sigo logo. Preciso me assear. -Creio que sim –Concordou o comissário.

O capitão Edward John Smith nasceu em Hanley, Stanffordshire, Inglaterra. Tivera uma infância pobre. O pai oleiro fazia parte do proletariado. Smith abandonou a escola engajando-se na marinha mercante, seguindo carreira, entrou para a conceituada empresa marítima White Star Line.

-É o senhor Carter? -Ao seu dispor –Elliot Carter retirou o chapéu, firmando o hábito costumeiro. -Sente-se!

Charles Lightoller, o segundo oficial, não escondeu a antipatia gerada no encontro com o detetive.

-Recebi uma grave denuncia, envolvendo-o – Comunicou o capitão, esboçando desagrado. -E por qual agravo? -Roubo. -Acusa-me de ladrão? -Nega que se apossou dos uniformes da tripulação? -Não, capitão –Admitiu aviltado –Eu reconheço que foi ilegal, mas justificável, acredito. -Há justificativas válidas, subtrair pertences alheios? -Gostaria de expor a origem dos fatos. -Continue. -Eu pertencia a Scotland Yard; e em 1888, enfrentei a mais difícil investigação da minha carreira. O ataque do violento criminoso Jack, o estripador.

O capitão e o oficial Lightoller entreolharam-se, a história era verídica e conhecida, o espaço de tempo recorrente dos inúmeros assassinatos havia excedido os vinte anos. O caso relacionado à Florence Blake indicava pura coincidência.

-E o que aconteceu? –Instigou Lightoller. -Os senhores não sabem o desenrolar do acontecido? A imprensa noticiou amplamente as mortes, e provocou terror na população ao afirmar que a polícia perdera Jack... -Sim. Foi estarrecedor. Agora esperamos a resposta do engenhoso roubo. -A agitação criada na tripulação induziu-me investigar, e constatei um evento crítico. O ardil usado ofereceu facilidade no transitar. Uniformizado, pude penetrar nas várias instalações que demandava apurar a realidade. -E o que descobriu? -A lamentável cena de uma jovem cruelmente assassinada. -Senhor Carter, creio que se encontra ciente, infringiu normas e, sofrera punições –Exasperou-se o oficial. -Diga-nos, senhor Elliot Carter, em como acreditar que não cometeu o crime? -Tenho testemunhas que podem comprovar minhas alegações, isentando-me desta injúria. -E quem são esses? -Estive na companhia de um exímio cavalheiro. Acredito que coincida com o horário da eventual morte. -O cavalheiro tem nome? -Isidor Goldstein e sua adorável filha, a senhorita Marcie. -Enviarei um telegrama aos que foram seus superiores na Scotland Yard, e verei o álibi do dia anterior se corresponde. -Eu darei o nome de todos... -As indagações estão encerradas hoje. O senhor ficara sob nossa custodia. -Isto é uma lástima! Não posso ser aprisionado, enquanto o verdadeiro culpado continua rondando, à procura de vítimas. -A preocupação é parte do processo. Não o tornarei cativo, e sim convidado. -Espero que como bom anfitrião, o senhor entenda, abreviando meu retorno. Vidas inocentes podem se perder, Jack é mordaz e o pavor integra sua maligna diversão. -Tomara que esteja errado! –Desejou o capitão, intrigado. -Ora detetive! Jack, o estripador evaporou no tempo e se transformou em lenda –Abjurou Lightoller. -Quem nos garante isto? –Aguçou Elliot.

***

A exigente solteirona rica Rosalie Appleton, beirando os cinquenta anos, fazia jus á fama de petulante. Adorava buchichos da sua classe privilegiada, e costumava compartilhar boatos com Ludwicci. O brilho da luz natural atravessava janelas envidraçadas no Café Parisiense. Rosalie adoçou o chá e descansou a colher à beira do pirex, corroendo-se por dentro, não suportava a aflitiva ausência de noticias de Peterson Ludwicci.

-Desculpe o atraso, senhorita Appleton–O oficial Willian Murdoch entrou –Não o encontramos em parte alguma do navio. -Eu pressinto algo ruim. -E por que pensa o pior? -É bem obvio, não? Ontem, estive indisposta e enviei uma mensagem, avisando que faltaria ao jantar. Ficou acertado tomarmos o café da manhã juntos. Ele é pontual... -Poderia manter descrição a respeito? -Peterson é um jornalista contratado pela companhia White Star Line. Cumpra, com afinco, o dever de localizá-lo, ou todos saberão da frágil segurança oferecida. -Tentaremos tudo que estiver ao nosso alcance. -Ficarei à espera! -A senhorita notou nele diferença de comportamento? Nervosismo, mudança de hábito... -Ele reencontrou uma pessoa na primeira classe, que tivera desavenças dias anteriores ao embarque; e pareceu ansioso. -Conhece a circunstância? -O homem não queria que a vida privada virasse notícia nas colunas sociais. -E revelou o nome do oponente? -Não! Mas Ludwicci escondia, em um cofre particular, anotações confidenciais numa pasta que pretendia publicar. -Ótimo! -De que irá adiantar? Carregava a chave consigo. -A senhorita mencionou que se deu uma questão conflitante, envolvendo segredos registrados nesta pasta, que posteriormente entraria em publicação. Não bastaria eliminar o autor. O que sugere um provável resgate dos arquivos. A cabine de Ludwicci recebera cuidados especiais. -E quem aparecer... -Precisa justificar como conseguiu a chave –Completou, continuando –Talvez Ludwicci esteja sequestrado, e a garantia de vida que tem depende do executor da façanha, encontrar ou não estes escritos. -E se os encontrar, extermina com Ludwicci e as provas. -Sim...Quem procura os arquivos, quer certeza de que ele disse a verdade, não o matando antes.

A afinada orquestra embalava um ritmo contagiante. Exibindo ornamentos brilhosos nas vestes e cabelos, mulheres requebravam-se, acompanhado os passos dançantes dos parceiros na sala da recepção. Taças com champanhe reluziam enfileiradas nas bandejas de prata, servidas uma a uma aos celebres viajantes. Discretamente, Harold Miller apanhou um envelope branco, trazido pelo comissário de bordo. A companheira seguiu atenta ele ler o recado.

-Más notícias, querido? -Nada que comprometa nossa alegria –Silencioso, voltou os olhos no aviso ameaçador.

Saudações, Sr. Harold Miller. Isto não é um ato de vingança e sim, desespero. Devo adverti-lo que sou uma pessoa impaciente; e que a senhora Meredith, sua devotada esposa, ficará desapontada se conhecer a doce Lily. O valor em dinheiro pedido resolvera ambas as situações. Aguarde instruções...

-Meu bem, você perdeu o ânimo? -Deve ser algo que comi –Falou abatido. -O que comeu ou o que leu? -Lily, meu anjo. -Senhor Miller...- Rosalie chega discreta. -Senhorita! -Olá, Lily! -Oi, Rosalie...

A vozinha fina e melosa da amante de Harold, que ele mantinha dizendo ser sobrinha, irritava profundamente Rosalie Appleton. Lily Beatrice era desbotada, miúda, a vida parecia ter fugido do corpo.

-O que acha de irmos à biblioteca? Distanciarmos do barulho...O momento é festivo, eu sei. Gostaria de conversar. -Vamos, Lily? –Pegou-a pela mão, desconfiado.

Os três posicionaram-se nas confortáveis poltronas, e Harold olhou inquisitivo na direção de Rosalie. -Peça o que for, e nos deixe em paz! –Miller interpretou que ela enviara a proposta, chantageando-o. -Acalme-se, querido –Rogou a amante, envergonhada. -Não faz mal, Lily. Explico! Houve uma situação inesperada envolvendo meu amigo, e estou buscando solucionar. Vocês receberam um bilhete... -É o enxerido que escreve a coluna social no jornal? – Ele enervou-se. -O que levou a essa conclusão certeira? -Está supondo... -Omiti do oficial Murdoch que o passageiro descontente era o senhor, com quem Ludwicci esteve pouco antes de ele desaparecer. Ao testemunhar a entrega do envelope e a mudança tensa na sua fisionomia, conclui ser uma ameaça. Presenciou o acontecimento a Ludwicci, ou o senhor é o próprio autor do crime sofrendo extorsão? -Qual crime? Como ousa acusar-me de tal coisa incabível?

Esbravejou e empurrou a poltrona de canto, ficando em pé. O rosto esfogueado traduzia o poder da fúria sentida.

-Ele desapareceu? Duvido! –Retirou o papel do bolso –Quer saber, não fui o ultimo a encontrar aquele sangue suga. -Eu imploro, conte com qual outra pessoa ele se encontrou... -Vocês se merecem!

Miller picotou o bilhete e jogou os pedaços no ar, que flutuaram caindo aos pés de Rosalie.

-Harold! Pobre mulher... -Acusou-me de um crime. Você é tão inocente, meu anjo...Não conhece a maldade do coração desta gente. Eles são da mesma espécie, querida. -O que fizeram Harold?

Suspendendo o rosto de Lily, tocou-o delicadamente. Harold Miller possuía quase trinta anos de idade acima do que tinha a amante. -Venha! –Saíram apressados.

Estirando os pedaços de papel, Rosalie não reconheceu a caligrafia, e reputou nova hipótese. Alguém já devia ter afanado os arquivos das mãos de Ludwicci, por intermédio de uma emboscada.

Terceiro dia a bordo...

O alvorecer ressurgiu examine. A aragem matutina bafejava leve e continua. Hellen Walton folheava uma revista de moda feminina.

-É só no que vocês, mulheres, pensam... –Rilley esticou o pescoço, olhando as figuras das modelos exibindo roupas elegantes. -Você acha? -Admita! -Quer adivinhar meu pensamento?

Achou-se esperta por elaborar, na sua perspectiva, estratégia perfeita de tirar das mãos do parceiro salteador as cobiçadas joias.

-Volto num instante! –Hellen largou a revista. -Não! –Puxou-a. -Deixe de intimidades... -Que diferença faz? Acham que somos um casal. -A noiva não deve dormir com o futuro marido. -Mas você não dormiu comigo! -As pessoas não vão acreditar... -Por quê? -Porque estou saindo cedo demais de sua cabine... -Devia ter passado a noite. -E estragar a fama de boa moça? Continuo nas cabines reservadas para solteiras. -Você não parece do tipo que se incomoda com julgamentos alheios... -Não quer que nossos planos deem certo? A discrição é primordial! A sugestão de viajarmos separados foi sua. Assim, não seríamos pegos, juntos; afinal, procuram um casal... -Acho que não funcionou... -Você deve estar brincando! -Fomos seguidos. -O que faremos? -Exatamente o contrário do que fez...Não entrar em desespero. -Eu... -se não quiser ir presa, mantenha a calma! É um detetive meio sonso, e nós somos uma dupla esperta. -São desses que tenho medo. -Aja naturalmente, e deixe o resto comigo. -Tudo bem...Vejo você mais tarde! -Hellen! -Sim... -O que diria se eu a pedisse em casamento?

Pega de surpresa, Hellen Walton não soube aprimorar uma resposta inteligente que parecesse insuspeita, porque fingia, fazendo-o crer que ele era essencial na sua vida.

-Coisas do acaso? -Não! Acho a paixão um passa tempo, mas o amor é algo eterno... -Julga que estou apaixonada? -Negar, por quê? Vejo nos seus olhos...

A ilusão mascarou a percepção afiada de Rilley, que não previa experimentar o sabor amargo da traição. -Eu nunca fui boa em esconder sentimentos...

Hellen, languescida, abrandou a entoação ao falar, figurando a mulher que correspondia o amor recente. ***

Apesar de estranhar a ausência de Elliot Carter, que não via há horas, Margot Colley prosseguiu os tramite da investigação sozinha. Olhou-se no espelho, acertando o topete suspenso da peruca. Tomando valentia, abriu a porta e espiou saindo travestida. A sala, no lado estibordo da grande Escadaria traseira, era direcionada aos mordomos e criados dos passageiros de primeira classe. A decoração simples em painéis brancos retilíneos comportava seis longas mesas, arrodeadas por cadeiras almofadadas. Expressões curiosas despertavam-se nos rostos ao visualizarem o homem díspar, circulando de braços para trás das costas. Na lida, Margot pigarreou nervosa, procurando cortes recentes nas mãos dos serviçais.

-Senhor! –Uma criada interrompeu-a. -Sim! –Respondeu Margot, encorpando a voz. -O que deseja? -Estou fazendo a supervisão de rotina –Buscou entreter a abelhuda. -Quem o mandou? –Desafiou duvidosa. -Hugh McElroy.

Margot, esperta, pesquisou o setor, procurando o nome do encarregado em gerenciar o comissariado. A intrometida calou-se, voltando a ocupar-se da refeição. Colley alinhou o colete, e se encostou perto da criada.

-Sabe de alguém que venha a ter sofrido ferimentos? -De qual tipo? -Cortes nas mãos. -Hum... –Pensava, movendo o dedo no lábio. -E...? -Não me ocorre ninguém...

Uma sensação pavorosa fluiu ao redor. A sensitiva intuiu o perigo, e o apurado olfato entrou em ação, efluía um cheiro cruento. Nauseada, ela tonteou-se.

-O senhor não parece bem –Observou prestimosa a criada. -Um leve mal-estar...

O homem que Margot Colley delineou na tela com seus pincéis, ressurgiu autêntico, vagando nos cantos improváveis do navio vestido num grosso casaco. -Quem é ele? -Não o conheço de longe –Ela fez sinal e o estranho ignorou. -Espere! –Insistiu a sensitiva.

Andando trôpega, Colley raciocinou o quão seria difícil alcançar o agressor que invadiu a cabine do detetive Carter, criando desordem. A investida faliu, irritando-a, perdera de vista o assassino.

***

A sutil batida externa despertou Harold Miller do sono leve. Ele afastou o cobertor, descendo cuidadoso da cama para não acordar Lily. Miller abriu a porta e viu alguém desaparecer, fazendo a curva no fim do corredor. Abaixando-se, apanhou o envelope semelhante ao entregue anteriormente. As instruções eram claras e ameaçadoras. Lily virou-se nos lençóis, sonolenta, chamando-o baixinho.

-Amor...

Triste, Miller deitou-se abraçando a amante grávida.

-Oi... –Ela virou-se abrindo os olhos. -Vou buscar pães frescos. -Esta não é sua obrigação, querido. -Eu sei, meu bem –Saiu da cama. -Harold. -Sim, querida. -Sempre o amarei... -E eu a você, até os últimos dias da minha vida. -Preocupa-me saber como criaremos nosso bebê, se não podemos ficar juntos. -Não antecipe a tormenta, Lily. -Seus filhos e esposa... -Daremos um jeito de sermos felizes –Reclinando-se a beira do leito, Harold Miller beijou-lhe a tez. -Repouse, Lily. Volto logo!

O oficial Herbert Pitiman expedia ordens a um grupo de homens, e se virou na direção que veio o chamado.

-No que posso ser útil, senhor? -Havia me ocorrido algo...Desculpe!

Liberando o oficial da denúncia que pensou realizar, Harold Miller subiu ao convés de passeio na segunda classe, introduziu o pacote embaixo do bote salva vidas, como instruiu o atroz chantagista. No retorno, Rilley o cercou.

-Esqueceu-se dos amigos? -Lily anda indisposta. -A sua sobrinha devia estar na cabine com moças, falando de moda, joias...Bobagens que as divertem. -Ela é adoentada, e não se anima facilmente, a suíte é ampla provendo privacidade, Lily gosta de bordar, ler... -E do que sofre a moça? -Inapetência... -Hum... Percebi que é anêmica. -E sua esposa? -Helen? Não é minha esposa. -Desculpe-me! -E nem sobrinha –Debochou. -O que está insinuando? -Acompanha-me para beber? –Rilley emendou nova conversa. -Mal amanheceu... -Anda homem! –Tocou amigável nas costas de Miller. -Espera algo? –Suspeitou Harold, da alegria desmedida. -Não vivo de esperas, e sim de certezas. O pequeno bar, contíguo ao restaurante Palm Court, servia bebidas e lanches sofisticados. O alcoólico Rilley Collins escolhera o Drink, salivando de ânsia em encharcar a boca ressecada.

-Permitem que me junte a vocês? –Edgar Hoffman puxou uma cadeira, e se sentou.

***

A navalha fina penetrou firme na garganta de Lily. Ela ergueu o corpo agonizante, o sangue esguichou abundante da carótida rasgada. O facínora levantou a arma úmida, com visgo avermelhado, assistindo ao gotejar, passivelmente. A camareira, que limpava a cabine vizinha, ouviu pancadas bruscas e gemidos.

-Que desordem! Deviam ser discretos –Reclamou solitária, a empregada, pensando que fosse um casal divertindo-se e, continuou espanando a mobília.

O sombrio silêncio incidiu ao redor. A hábil mão do homicida pressionou a navalha no ventre de Lily Beatrice, fazendo brotar uma mistura aquosa e morna. O minúsculo feto retirado, envolto em poça sanguinolenta, foi posto diante da mãe esviscerada. Ofegoso, o assassino sentiu o peito inflar, tendo a nítida impressão dos pulmões fecharem. Temendo eminente vertigem, largou a navalha. Respirando forçado, retirou o casaco, enojado.

-Ande com cuidado! –Censurou Miller a quem esbarrou nele, derrubando o cesto de pães. -Que desajeito! -Reclamou a camareira –O senhor quer ajuda? -Olha o que o desastrado fez!

A camareira abaixou-se recolhendo os pães; e suspendendo as vistas, gritou esganiçada, cobrindo o rosto com mãos tremulas. -Oh, Deus!

Harold ficou paralisado, olhando através da porta entreaberta, Lily coberta de sangue.

***

A resposta satisfatória da Scotland Yard favoreceu o detetive Elliot Carter, dando margem a sua soltura imediata.

-O caso é seu, senhor Carter. É um alivio ter imensurável auxílio. -Será vital que eu seja informado de pendências. -Evidente que sim. -A cerca de minutos, ele atacou novamente. -Jack? -Que seja! Não podemos confiar se é o mesmo assassino de 1888. -Há grande probabilidade. E a vítima? -A sobrinha de um rico industrial têxtil, Harold Miller. -Rico? A tática de Jack era o ataque a prostitutas... -E tem mais uma coisa; o jornalista que redigia a coluna social dos nossos viajantes simplesmente evaporou. Não se consegue localizá-lo em parte alguma do navio. -Ludwicci? -Conhecia-o? -Eu o vi uma vez, transitando no corredor, acompanhado de mulheres.

O nefasto deslinde do romance extraconjugal levou Harold Miller a ficar catatônico, esvaindo em profunda dor. Sucessivos rumores ecoavam nos perímetros da embarcação. Os empregados segredavam dentre eles a violenta morte, infringindo ordens enviadas para agir naturalmente, e não espalhar a ocorrência.

-Senhor Miller, sou o detetive Elliot Carter –Retirou o chapéu.

O homem não se mexeu, e Elliot sentiu-se incomodado diante da mágoa externada no rosto infeliz do enlutado.

-Não tenho nada a dizer. -Lamento pelo que houve! Estou encarregado de descobrir o autor da morte de sua sobrinha.

Miller ignorou-o de mão estendida, e revelou:

-Ela não era minha sobrinha. -Como disse? -O que ouviu! E Ludwicci, aquele verme, descobriu. -E o que aconteceu? -Comecei a ser chantageado. Pensei denunciar... -Quando começaram as chantagens? -Por quê? Não faz a menor diferença o fato de Ludwicci ter desaparecido. -O senhor soube? E qual é sua teoria? -Ele vingou-se. -ocorreram manifestações que suspeite ser ele? -Recebi bilhetes ameaçadores, com letras diferentes. Aquele demônio tem ajuda de aliados. -Pode me ceder os bilhetes? -Despedacei o primeiro, e este é o recente –Entregou ao detetive.

Aproveitando a ligeira disposição de Harold Miller em expor o danoso evento, Elliot sacou a velha caderneta amarelada da época que investigava Jack, reiniciando anotações na relíquia. Antes de embarcar, ele resgatara pertences pessoais do antigo apartamento. Seria um prenúncio?

-Farei o que puder. -Não importa! Lily se foi... -E como eu disse: Lamento! Somente quem perde, consegue medir o tamanho da dor –Elliot Carter relembrou a morte precoce do filho e esposa.

O detetive recolocou o chapéu, e Harold, imóvel, voltou a olhar vagamente o transitar dos oficiais volteando perto da cabine, preservando o local do crime.

-Senhor Carter, o capitão perguntou se quer rever a cena do crime? –Conferiu o comissário James Arthur. -Sim. Preserve-a, por favor.

Esmaecida, Margot Colley esperava o chamado de Carter. Ela viu o criminoso e não conseguiu reagir, perdera o controle da mente. Energias negativas a influenciaram, suprindo suas forças. E este assassino escapou, arquitetando planos malignos, ceifou a vida de Lily Beatrice.

-Você parece triste. -Decepcionei o Carter. A culpa me consome... -Não seja dramática, senhorita Colley. O que esperava de bruxarias? -Sensitividade não é bruxaria, Akar. -Use de inteligência, você é capaz! -O dom nos contempla, sem escolha. -Margot! –O detetive a chamou. -Eu vou ir cumprir a sentença...

Elliot Carter não acreditava em sorte ou descuido do assassino. Deu algo errado na execução daquele crime. Saiu às pressas, abandonou a arma e o casaco que carregava um nome, identificando o proprietário. A navalha usada era familiar para o detetive. Agarrada aos objetos do suposto Jack, o estripador, Margot Colley buscava determinada sintonia, apurando os sentidos. O corpo reagiu, arrepiando-se.

-O que vê? -Um destino nebuloso te espera, a ligação é forte e destrutiva. Espere! Oh... -Margot... -Não interrompa! –Pediu ela, contraindo o rosto, aflita. A sentença impiedosa aplicada novamente a Carter, definiria o resto de vida que lhe restava, aniquilando-o. Sabendo do desfecho trágico, Margot resignou-se, encobrindo a realidade. Terminada a sessão, Margot Colley se disfarçou um bocado, procurando despistar as emoções.

-O que viu? Conte! -O momento não é propício.

Ele ficou de frente, olhando para ela, imaginando a magnitude da visão sobrenatural que atordoou Margot.

-Confio na sua dedução, e tenho que saber... Não retenha informações, querida Margot. A ocasião é de desespero! -Seria desumano entregar a você tamanho fardo agora –Recusava-se a confessar. -Não se aflija! Terminado o martírio, eu a recompensarei do enfado; afinal, é aliada nos dias dificultosos –Tentou persuadi-la.

A recatada senhorita Colley deslumbrava o matrimônio, e nas alusivas palavras proferidas, depositou esperança. Recriou no pensamento ilusório, um cerimonial festivo, ostentando infinda pompa ao lado do fiel esposo Elliot Carter. Ela interpretava da forma incorreta todas as promessas de recompensa, vindas do amado. A desesperada solidão tornava-a irracional.

-Margot? -Hum...? -Posso pedir remoção do corpo? -Sim. Não há mais nada a declarar. -Você empalideceu. Sente-se bem? -Quero descansar. -O degenerado deformou a mulher. Juro, se eu o pegar... -O que acha que vai fazer? -Eu vou esfolá-lo vivo.

-Com todo respeito Carter, não o considero hábil a cumprir este juramento. -Uma pessoa como Jack, merece o castigo mais terrível que possa existir. -A vingança pode se tornar culpa. -Não me sentirei culpado em arrancar a pele de um monstro maldito feito Jack, o estripador. -O destino guiara seu coração, Elliot. -Senhorita Colley, por favor, não oculte a verdade. Devia ser honesta... -A verdade está lá fora, procure-a, Carter.

Ele extinguia vida inocentes trazendo nas roupas indícios da brutalidade exercida covardemente. Em estado febril, tremia-se todo. Braços afetuosos o envolveram, acalentando-o. A roupa manchada de sangue foi lentamente removida, desnudo, encolheu-se no piso frio do hospital. O homem macilento chorava, intercalando silêncio e risos histéricos. A enfermeira conduziu-o à ala especial, reservada aos doentes infecciosos, inexistentes na ocasião.

-Eu falhei... -Você ainda pode vencer seus medos, querido.

No manicômio Bethlem Royal Hospital, a enfermeira Elsie Krieger, nomeada a cuidar do adolescente psicótico, converteu-se na inquestionável protetora dele. Ela, impedida da concepção natural de ter filhos, apegou-se ao paciente mentalmente transtornado.

-Você é meu menino!

Krieger tornou-se obcecada na realização conjunta de desejos bizarros da mente doentia e maléfica do homem raquítico, impossibilitado de amadurecer.

-Não quero dormir...

Ele reclamou, sentindo a agulha gelada da seringa penetrar na veia proeminente do antebraço esquelético. Adormecendo lentamente, ouvia murmúrios reconfortantes. Krieger o cobriu, deixando-o a respirar passivo, trancou a porta e saiu, não levantando desconfiança nos enfermeiros que chegavam para começar novo turno.

***

Suspeitos eram aludidos em grupos isolados, um nome transitava nas opiniões estabelecidas; Archie Spencer, o sombrio milionário que rejeitava mulheres. Ele saía ocasionalmente à procura de algo, e voltava ao confinamento. Hellen Walton apartou-se do conglomerado, atendendo o discreto chamado.

-Pare de invadir a primeira classe! -Prefiro a liberdade perigosa, a viver fora da luxúria. -E colocar os planos abaixo? -Ganhei o aliado que desejava, ele atua no alto comissariado, trata-se do oficial chefe Henry Wilde. -Permite que circule livremente? -Impôs pequenas restrições. Wilde diz que é desperdiço esconder a beleza que Deus me proporcionou. -Seja coerente e não leve na brincadeira. -Que alvoroço deste povo! –Parkson criticou a conversaria. -Não soube das mortes?

Harriet Parkson ficou ligeiramente tristonha, notando a desinformação de Hellen quanto às vítimas.

-O que se passa? -Sei que não é emotiva... -Pare de enrolar! -Blake morreu nestes ataques. -O que? –Hellen Walton desacreditou. -Apareceu morta em andares abaixo do navio... -Você se descuidou da Florence? -E quem imaginaria tal coisa? -É verdade! Significa que todas nós estamos correndo riscos, embarcou tanto tipo de pessoas...

Comentou indiferente. A estima tida por Florence Blake não ultrapassava o limite da vã convivência. Hellen Walton tinha interesses cruciais, que requeriam melhor atenção do que a morte prematura de uma prostituta.

-Há assassinos entre nós. -Estão especulando que Archie Spencer é forte candidato a ser o matador desvairado. -Concordo! Parece um cão raivoso, prestes a atacar. -Você injuriou o pobre homem. -Devia sentir-se fogoso. -Hoffman esteve a sua procura –Hellen deu rumo a novo assunto, descartando a ousadia de Harriet. -O encantador cavalheiro? -Rilley Collins é minucioso, e opinou a respeito. -Não dou importância... -E deve ter acertado. Rilley presume que Hoffman é caçador de recompensa, e eu acho que faz sentido, ele quer se aproximar, usando você. Edgar Hoffman contradisse uma afirmação feita antes, despertando a curiosidade de nosso mestre do crime. -Se Rilley fosse esperto, teria sabido que somos meias-irmãs. -E quem assegura que não sabe? Vamos nos manter atentas, dificultando Hoffman de agarrá-lo, ou daremos adeus a tudo. -Falando nisso, qual estratégia escolher para roubar o espertalhão do Collins? O miserável socou a fortuna no cofrezinho particular. -Olha! –Hellen exibiu a chave. -Confiou a você? -Afinal, eu não o ajudei? -Maravilha! Logo chegaremos à Nova Iorque. -Esteja atenta! A ação tem de ser coordenada, não fique distraída no desembarque. -A velha raposa aqui sou eu, tolinha! Estou acostumada á agilidade –Mostrou o dinheiro na bolsa avolumada. -Oh... -Aprenda!

Vangloriada, fechou a bolsa, afastou a cadeira e saiu sentindo-se triunfante, desatenta ao enamorado Akar Xafur, parado intencionando contemplar mulher ufania que o menosprezara, não correspondendo seu amorável convite registado improvisadamente na margem inferior de um jornal.

***

No emaranhado de fios, John George Phillips estava desesperado em dar conta do envio das mensagens acumuladas. Elliot Carter não podia esperar; atrelado ao pedido anexou um ofício expedido pelo capitão Smith, afirmando a urgência.

-Detetive Carter, reportaremos o mais rápido possível. -Não mande mensageiros, leve-me pessoalmente. -Entendido! -Obrigado.

No retorno à cabine, Carter encontrou Rosalie Appleton, que o interpelou.

-Elliot Carter? -Sim, sou eu... -É o detetive que está investigando o assassinato de Lily Beatrice? -Como soube? -Converso regularmente com os oficiais, enfim... -A quem devo a honra? -Desculpe! Senhorita Rosalie Appleton, muito prazer! –Apresentou-se. -Posso servi-la em algo? -O meu amigo desapareceu... -Ludwicci? -O senhor encarregou-se da investigação? -Tem o que acrescentar? Facilitaria o desvendar do mistério. -Tenho sim! -Não esqueça qualquer pormenor. -Juntei os fragmentos... -O que é? -Restos do bilhete endereçado ao senhor Miller. -Ele contou a mim que rasgou. Por que ficou aborrecido? -Tivemos divergências. Quer saber quais? -Estou pronto a ouvir.

A rigorosa faxina não liberou a cabine do odor lúgubre de morte. Harold Miller abriu o armário, retirou os pertences da falecida, e ajeitou-os na mala.

-Podem fechar. -Deixe que eu ajude –Ofereceu o mordomo. -Não! Cuido das coisas de Lily.

O detetive Carter aproximou-se receoso. Harold, apático, carregava uma pilha de bagagem.

-Senhor Miller... -Não cansa de aborrecer? -É inevitável! -Diga logo! -Qual o nome da pessoa que o senhor presenciou com Ludwicci? -Quem disse que... -A senhorita Appleton –Elliot cortou a indagação. -Ele chegou, e eu estava de saída... -Ele? -Hoffman...Edgar Hoffman. -O que conversavam? -Eu e Ludwicci? -Sim. -Queria garantia de que o intrometido não espalhasse meu romance proibido. -O que prometera como troca do silêncio? -Nada! Não aceitei a proposta abusiva sugerida. -E recebeu ameaças de morte? -Não.

Temendo chegar notícias do perecimento da amante grávida aos ouvidos de sua devotada esposa Meredith, Harold Miller preparava-se para o pior.

-Mudando de cabine? -É o que parece, não? -Evidente que sim... -desejo-lhe boa sorte, daqui em diante. -Agradeço!

Miller segurou nas alças das malas, ausentando-se da presença de Carter. O detetive pensativo, caminhou solitário. Confrontar Edgar Hoffman poria à prova frágeis emoções vividas.

-Carter? –Edgar fingiu surpreso. -Há quanto tempo... -Foram muitos anos.

Nas cores vibrantes, a sala de resfriamento corporal, deslumbrava os viajantes com a decoração no estilo árabe. Os passageiros saíam dos tratamentos terapêuticos e, esperavam confortáveis os desfrutes das impecáveis bajulações.

-Por que não relaxa? Goze das mordomias. -Não viajo por diversão. -A vida é curta! -Preciso que se vista, devemos conversar. A massagem agradava Hoffman e suas pálpebras fecharam.

-Levante-se! –Mandou Carter, austero. -É uma ordem? -Pode apostar! -Desconheço o grau de loucura que o afetou. Que trágico! Eu o admirava, sabia? -O capitão consentiu que eu tomasse à frente na elucidação de crimes a bordo. -Diga qual dos crimes cometi? Diverte-se me acusando, não é, Carter? -Não é nada divertido ver essa cara de traidor ordinário. -Continua culpando-me pela tragédia? -Sabotava minhas investigações a fim de ganhar uma droga de promoção.

Teve um dia que o desespero aplacou a paciência de Elliot Carter, e ele tomou uma atitude severa: entregar o parceiro falaz ao chefe da divisão na Scotland Yard, o inspetor Edmundo Reid. Acusando Hoffman de intervir negativamente no trabalho investigativo contra Jack, o estripador.

-O mundo é dos espertos. -Fui forçado no lavor dobrado, sacrificando Carol e meu filho. -A senhora Caroline, eu concordo; quanto ao seu bebê, correu um boato que sobreviveu.

A novidade transcendeu o limite da realidade. Elliot Carter, sensato, não se influiu. Hoffman costumava perder o senso de honestidade nas disputas.

-Você é intolerável! Querendo incutir ilusões em mim. -Deve se recordar que a família de sua esposa impediu você de participar do funeral. -Não vim ouvir argumentos evasivos do passado. -Eu sei, quer capturar Rilley Collins. Podíamos voltar a sermos parceiros... -Sou um profissional, e não caçador de recompensa, vigarista. -Perfeito! Deixe o Rilley comigo, e continue seguindo “Jack”. -Andou ocupado, não é? -Boas notícias andam, e as más voam.

O detetive interrogou Hoffman, que indiferente narrou a circunstância da proximidade dele e do jornalista na noite de desaparição.

-O improvável é você testificar a inocência dita. -Carter, não influencie o julgamento de hoje, baseado nas nossas antigas diferenças. Nada fiz de agravo a Ludwicci, trocamos meias palavras, e o larguei no convés refutando. -No que discordava? -Deu-me conselhos, pedindo que eu ficasse distante da senhorita Harriet Parkson. -Curioso! -Ludwicci é um intrigante explorador da alta sociedade. -Esteja visível, Hoffman, porque não terminamos...

Carter desvaneceu, deixando de ir avante, no interrogatório. Edgar Hoffman não titubeou, indicando que esteve perante o jornalista, por pura coincidência.

-Rixa não é ético na profissão, Carter. -E sabotagens? -Eu fui imaturo, mas sabia tirar você do sério, não é?

O detetive Elliot Carter inflou o peito e liberou a tensão, respirando vagarosamente; não podia perder a calma, existia grande chance de que esmurrace Hoffman sucessivas vezes, matando-o.

-Você não parece bem. -Pare de abusar da sorte, Edgar... –Virou-se rápido, pegando a saída mais próxima.

***

O mundo do crime inspirava manobras brilhantes, e o detetive Elliot Carter resolveu reunir seus dedicados assistentes.

-Eu tenho um palpite referente ao assassinato de Lily beatrice. Olhem os dois bilhetes. -Você remendou um deles? -Sim Akar...Vamos ao que interessa, por favor! -São letras aparentemente diferentes. -Boa observação, senhorita Colley –Elogiou Carter. -A mesma pessoa escreveu querendo induzir que outra o fez? –Akar fixou o olhar na folha de papel. -Acredito que não intencionava disfarçar a caligrafia, porque seria um descuido grosseiro deixar tantos detalhes aparente. Quem escreveu estes dois bilhetes é ambidestro. E o assassinato não tem ligação com o chantagista. Jack apenas aproveitou-se da oportunidade. O que provavelmente sondava a vítima. -No entendimento de Jack, Lily Beatrice transgrediu. -Sim. E o que fez nosso “Jack” abandonar a cena do crime depressa, foi que ele simulou ser canhoto, semelhante o que se suspeitava no verdadeiro matador. Tentando imitar o criminoso real, não teve sucesso, a mulher debateu-se muito, agonizante, assustou-o.

Uma analise inverídica, pois Carter desconhecia o potencial do criminoso. Adquiriu destreza no manejar da navalha. A insuficiência emocional era o empecilho que o barrava. Um turbilhão de emoções acarretava os tropeços.

-Então não é o mesmo Jack? -Claro que não! –Afirmou Margot, convicta. -E você sabe quem é... –Acusou Elliot. -Carter... –A senhorita Colley estranhou. -Por que recusa nos ajudar? Confiei em você... -E se eu estiver errada? -Errar é humano –Ele amainou a postura. -Eu não discordo da senhorita Colley –Ponderou Xafur, sorrindo. -Qual a graça? –Enfezou-se Carter. -A feitiçaria não funcionou! Se ela soubesse, teria dito. -É verdade que a senhorita Colley aparenta exaustão; no entanto, confio nas suas contemplações. -O que vejo é uma mulher de meia-idade, hipocondríaca –Repetou Akar, vendo-a tomar pílulas.

As injúrias de Akar Xafur começavam a ultrapassar limites. O ádvena não entendia os declínios espirituais que afetavam Margot Colley, provocando intensos sofrimentos na alma e corpo. -Não se atenha a vigilar a vida de Margot, viemos apurar descobertas feitas, alcançando um consenso –Carter livrou-a da coação. -Não poderia discordar; entretanto, possuo notícias precisas e não aleatórias baseadas em estesias. -Não subestime o desconhecido- Advertiu a sensitiva. -Diga o que sabe, Akar –Impacientou-se o detetive. -A suposta noiva de Rilley Collins e Harriet Parkson, amiga da primeira vitima de “Jack”, são meias-irmãs. -Intrigante... Bom trabalho! -E não encerra por aí. Harriet mostrou para a senhorita Hellen Walton, uma farta quantidade de dinheiro. -Faz sentido! Hoffman comentou desta graciosa mulher, que Ludwicci pediu-lhe cautela. O jornalista devia ter descoberto coisas impensadas da misteriosa dama. E me ocorre algo na mente, agora. Harold Miller saiu na manhã do assassinato de Lily, deixando-a desamparada. Ele disse ter ido apenas buscar pães. -Se estava sendo extorquido, é obvio que teve de pagar o preço estipulado, fugindo do que o traria constrangimento ou perigo. O romance secreto. -É estranho ter se esquecido de dizer do pagamento ao chantagista –Carter ficou pensativo. -E Harriet aparece cheia do dinheiro... -Conclui-se, portanto: ela é parte do esquema criminoso, ou mentora. -Hoffman poderia ser integrante? -Não creio. O que ele espera é grandioso, não poria em risco a recompensa da captura do Rilley, que valera milhares de dólares, aventurando-se reter um apanhado menor. -E não estarão essas duas moçoilas a enganar Rilley? –Sugestionou Margot, timidamente. -É provável! –Concordou Akar, integrando a senhorita Colley na conversa.

Margot ajeitou a manga do vestido, afugentando a vergonha de ser encarada subitamente.

Os sons ritmados do telégrafo emitiram a mensagem, e Jonh Phillips, atento na sonorização, transcreveu-a no papel. Dando vital importância, destacou o substituto , que assumiu o posto de transmissão. Phillips saiu procurando o detetive Elliot Carter.

-O senhor pediu que não entregasse a mensageiros... -Fico agradecido! Vou enaltecer sua presteza ao capitão. -Sempre as ordens!

Quando Phillips ia deixa-los, notou a mulher fora do comum, influída na conversa deles.

-Queira me desculpar! Esta é a fabulosa senhorita Margot Colley, que presta vital contribuição nas investigações, que atuo –Apresentou o detetive orgulhoso. -É um prazer conhece-la! –Disse em um grau perceptível de repugnância.

O coração endurecido de Akar Xafur indicou abrandar-se. Pensou na frustração que a feiosa se sujeitava diariamente. Belas mulheres desfilavam entre mesas dos restaurantes e, corredores interagindo com cavalheiros. A rejeitada senhorita Colley era privada em ousar ser feliz, porque sua aparência física chocava as pessoas.

-Meu bom amigo, Carter, daria permissão a um breve entreter? -Estamos no limite do tempo para agir. -Conceda alguns poucos instantes. -Não tarde a voltar –Rendeu-se o detetive, ao ímpeto inexplicável do amigo. -Daria a honra de me acompanhar? –Convidou simpático, Margot Colley. -Como disse? –Ficou embaraçada. -Desfrute! Akar cuidará bem de você.

Sozinho, propenso a cochilar, Carter levantou-se, juntando o comunicado recebido da polícia inglesa. Os dias exaustivos renderam-lhe uma canseira desmedida, eram raras as ocasiões disponíveis de parar e alimentar-se, ou dormir. Reparando o conteúdo do documento, atônito, Elliot Carter cessou o anda, relendo perplexo.

-Não é possível...

O casaco abandonado na cabine em que o assassino vitimou Lily Beatrice pertencia a um contratado da White Star Line, tendo como principal função a entrega de mensagens.

-Boa noite, senhor Carter! –Marcie vinha passando embevecida e parou. -Boa noite senhorita! –E Goldestein?

O detetive achou estranho ela estar acompanhada de Archie Spencer. O clamor popular interno o desaprovava.

-Ficou no restaurante. Não quer se juntar a ele? -Que boa ideia! Estou sem comer e, não me dei conta.

O frango cozido num molho acebolado, com alho, vinho e tomilho, emanava um cheiro singular. O estomago de Carter teimou resistir o Lyonnaise; fazendo pequeno esforço provou-o, convencendo-se do maravilhoso sabor.

-Não apreciou o prato? –Sondou Isidor Goldenstein. -É perfeito! Eu que não ando encorajado a comer. -Considero a refeição mais saborosa do banquete. -Permaneço surpreso ao ver que Archie Spencer aceitou conduzir em publico e, de braços dado, a senhorita Marcie. -O que disse? -Encontrei-os... -É inconcebível –levantou-se derribando o talher. -Isidor... -Mil desculpas, Carter! Fizeram-me de palhaço. Marcie mentiu que sairia com umas senhoras... -Deve ter havido um encontro casual. -É preocupante! Você sabe dos ataques, e não interferiu? -Achei muita pretensão intervir. -Carter, sabe que o respeito. -Não se alvoroce! Recomendei a um oficial que não a perdesse de vista. -Que aquele pretencioso não se atreva colocar as mãos na minha filhinha... -Vamos procurar o casal!

Corpulento, Isidor Goldenstein caminhava buliçoso. Carter não podia condenar o desespero de um pai extremamente cuidadoso, porque ele próprio falhara no esmero à família.

-Quando eu o encontrar irei malha-lo como um Judas. -É cedo para investir na truculência. -A filha é minha e a defendo do jeito que puder.

***

Distante da desesperação vigente, Margot Colley, invejada, vira o centro das atenções. Moças e senhoras admiravam a beleza máscula nos traços marcantes do acompanhante da estranha mulher. O buchicho alastrou-se, supondo Margot ser de grande poderio.

-Todos olham na nossa direção. É um jovem cheio de energia. Guardarei esses momentos inesquecíveis. -Julgo estar lhe cativando –Era a primeira vez que Akar Xafur a via sorrir radiante, na viagem – A senhorita é surpreendente, dominou a conversa, excluindo homens poderosos que recuaram sem contestar. De onde vem tanta inteligência? -A reclusão ao mundo social propicia tempo, aprendi que livros são companheiros de valor. -Peço perdão pelo meu excesso de vaidade e julgamento incorreto. -A falha é compreensível, propensa a todos. -Carter estava coberto de razão, sua nobreza é admirável. -Elliot...? –Embargou a voz emocionada. -Ele te elogia e a defende a qualquer custo. -Conhece-lo fez minha vida ganhar sentido.

A amargura de não encontrar um amor feneceu no dia que Elliot Carter cruzou as portas da tabacaria...

-Desculpe-me a indiscrição, mas indícios apontam que a senhorita o estima acima da amizade. -Sim...E se Carter não manifestou iniciativa, é porque desinteressa a ele compromisso afetivo. -Dê-lhe tempo. -Mais? –Lamentou desiludida.

***

O inusitado desfecho constrangeu Isidor Goldenstein, que furioso cometeu excessos. Marcie explicou de bom grado o mal entendido. Archie conduziu-a a sala de leitura, onde senhoras estariam reunidas. Elas planejavam uma noite espetacular, a bordo daquele memorável transatlântico.

-Obrigado, Carter! -Não precisa agradecer. -Terei enorme prazer em oferecer-lhe, amanhã, o jantar. -Agradeço! Não sei se estarei disponível. -Então ficará para uma próxima oportunidade. -Eu levarei o vinho –Despediu-se Carter.

Quarto dia a bordo...

Elliot Carter iniciou a leitura, que abordava a vida pregressa da maléfica enfermeira, suspeita de golpear sua cabeça. A competente Scotland Yard rastreou minucias ocultas do histórico de Elsie Krieger e demais informações, animando o detetive.

-Vejamos o que temos!

Elliot espalhou as anotações, e seus assistentes esperavam o enunciado.

-Baseado nos depoimentos, inclusive o narrado pelo Akar, o mensageiro presente, aqui, dentro do navio, é um impostor, não conferindo os traços físicos com a foto do profissional contratado, Joseph Morgan, dono deste casaco, deixando na cabine de Lily Beatrice e Harold Miller. Houve uma troca da identidade. -E o mensageiro real? -A polícia encontrou o corpo; e nos bolsos, documentos que o identificou como Oliver Dean Mayer. -É o nome do falsário! -E não é só isto! Oliver Dean recebeu os cuidados da enfermeira Elsie Krieger, no sanatório.

O detetive conteve-se em dar continuidade; o restante ficaria resguardado, considerando que possivelmente fizera uma descoberta pavorosa. -O que mais, Carter? -Não há! -E a navalha?

Diante da pergunta, Carter estremeceu, não queria omitir a verdade ao fiel amigo, mas procurou se esquivar.

-Não pertence à barbearia do navio...

***

Repudiando marcas de cansaço frente ao espelho, Harriet Parkson reavivava na mente o sonho tido muito antes da viagem, que voltara a inquietar seu repouso. Ela almejava atender ao inesperado convite em se deleitar no banquete matutino, apetecendo-se de um cheiro imaginário dos pães frescos e geleias, servidos nos finíssimos restaurantes. Besuntando a pele do rosto com pó de arroz, disfarçou imperfeições, saindo apressada.

-Por aqui, madame! –Indicou o comissário. -Bom dia, senhorita –O oficial Wilde levantou-se, e puxou uma cadeira. -Obrigada! –Harriet sentou-se pomposa.

Ao redor da ampla mesa, cúmpleces solenes do desjejum agiam naturalmente, impedindo Harriet de desconfiar, que prestes cairia na cilada arquitetada pelo detetive Carter.

-Como é bom revê-la, querida –Rosalie Aplleton simulou satisfação. -Fico linsojeada!

Enfileirados, os garçons entraram, trazendo deliciosos bolos e pães produzidos por , pasteleiro chefe. Wilde levantou-se, pedindo a palavra e anunciou:

-Quem desejar participar do jantar especial com o comandante, os oficiais e idealizadores desta obra prima, que é o colossal e surpreendente Titanic, assinem seus nomes no livro. -Devo assinar? Harriet antecipou-se, suplicante. -Por que não faz as honras? –Ofereceu Henry Wilde. O RMS Titanic realizou uma escala no segundo dia de viagem em Queenstown, na Irlanda. Wilde escrevera, dizendo a irmã que não apreciava o navio, porque inspirava um sentimento indecifrável. Tivera emoções contraditórias entre alegrias e temores. Fixando o olhar no rosto do oficial, Harriet parkson pressionou fortemente os dedos na caneta, demorando a relaxar a mão.

-Sente-se bem? -Hoje tive a sensação de que o conheci antes... -Não creio que a senhorita me passasse desapercebida. -Suas pupilas... -O que tem com elas? -Eu as vi dilatadas... -Quando? -Tive pesadelos, dias atrás, e nem pensava em viajar, repetindo-se nesta madrugada o sonho ruim. Eu o encontrava morto em espessas camadas de gelo. -Morto... –Ele ficou letárgico. -E a vida continua! Podem servir... – O capitão ordenou os garçons.

A conversa fluiu descontraída. Harriet calou-se melancólica, ingerindo lentamente os alimentos.

-Café? –Alguém tentou servi-la. -Não... –Respondeu aérea, tampando a xícara. -O café desagrada seu paladar? –Insistiu. -Com licença! –Saiu às presas.

As falsas atuações dos convidados encerraram-se. O livro, assinado ficou a critério do detetive Elliot Carter.

-É idêntica! –Afirmou Akar Xafur, comparando a caligrafia. -Ela é a chantagista. -E responsável pelo paradeiro do jornalista? -Se não apresentar um comparsa... ***

Pontualmente, às nove horas da manhã, um aviso chega à cabine de comunicação, no Titanic, proveniente do navio Coronia, notificando formações polares que cobriam alguns pontos oceânicos. O sacerdote ministrava a missa dominical no salão de jantar da primeira classe, e Henry Wilde, alheio, ouvia a voz de Harriet Parkson ecoar, lhe atrapalhando os sentidos. O alerta recebido a pouco seria mais um prenúncio do mau agouro? Finalizando o culto religioso, os passageiros, alegres, saíam falantes, risonhos. Aproximava o fim da longa viagem. O detetive Carter e o oficial viram Wilde, vindo de encontro a eles.

-Tarefa cumprida! –Confirmou Elliot Carter –Ela resistiu, dizendo-se inocente. -Não localizamos os arquivos de Peterson Ludwicci –Avisou Lightoller.

Wilde sentia-se insatisfeito, gostara da bela Harriet Parkson, porém conhecia os deveres.

-Continue procurando!

Uma hora se passou. Entre as mãos de Henry Wilde, estavam os arquivos de Ludwicci. Constava na relação dos bens acautelados que Harriet Parkson preenchera na ficha, declarando ser um livro de receitas com valor sentimental. Relatou o comissário responsável pelos valores deixados nos cofres.

-Por Deus, o que pensou alcançar usando de impensada estupidez? -Eu não matei Lily! -Não me refiro a ela. -Ludwicci escorregou Wilde... –Mentiu! Pediu que ele virasse de costas, empurrando-o ao mar. -E de quem é a culpa? A linda criminosa baixou a cabeça, ciente de que findara seus dias delituosos. Ela tocava insistente a pulseira dourada, presa pelo feixe no formato de cadeado coração. Henry Wilde respirou decepcionado. -Respondera diante da lei. -Você é influente... -Não desonrarei meus superiores, farei o que é de direito. -Morrerei, se ficar aprisionada. -Sua reflexão veio tarde. -Wilde, não... -Venha! –Puxou-a, amargurado.

O beijo arrebatador selou o ultimato a graciosa criminosa. A inesperada paixão doía no peito do respeitado oficial, escolhido pessoalmente pelo capitão Edward Smith, para a linha sucessória de comando na ponte. Henry Wilde era digno, justo e exemplar em dirimir conflitos.

-Adeus, Harrit!

Ela desapareceu, escoltada aos cuidados dos marinheiros. Ficaria aprendida dentro de uma cela improvisada. O toque do piano Steinway ressoava nos corredores. O oficial Wilde bateu a mão nas teclas que o sôfrego viajante dedilhava, encurvado.

-Senhor Wilde? -Você toca bem, Archie.

A temperatura fria não amenizava o suor, que emanava do rosto e pescoço de Archie Spencer. Ele decidiu se entregar as chateações da vida. Alucinado Archie protestava, questionando os cínicos pecadores no meio de frenética multidão que o elegeram lascivo ou suspeito dos crimes, desafiando-os em público.

***

A navalha de barbear afiadíssima, que Akar Xafur desdobrou, revelou imprevisível segredo. O nome Elliot Carter gravado sobressaiu-se no metal reluzente. O temor transpôs o nível da confiabilidade, depositada na bem constituída amizade. O detetive sofria de surtos e, revivendo o histórico de vida, reencarnava o famigerado Jack, o estripador? A mórbida senhorita Margot Colley aplacava essa execrável atrocidade, atada à doentia paixão que dominava a razão? Era a visão temerosa experimentada não exposta?

-O rosto que ela viu... –Raciocinou. -O que faz mexendo nessas coisas? -Eu reconheço que foge do seu controle... –Akar Xafur ficou afobado. -Que raio te atingiu? Perdeu o juízo? Devolva a navalha! –Requisitou Carter, como uma cobra preparando o bote. -Você matou aquelas mulheres... Não existe Jack algum! É algo recriado na sua mente. -Não seja ingênuo, Akar! O assassino é real. -Eu sei. É você!

Nisso, Akar Xafur pulou porta afora; ganhando velocidade, corria desencorajado de conferir se Elliot Carter o seguia. Ofegante, gritou o primeiro oficial que vira. Levado a se reunir na suíte do capitão, convenceu-os da loucura que dominava o detetive. A navalha proveu o resto, eliminando as dúvidas pendentes.

-Previna o pessoal do hospital, que traga a camisa de força. Ele é perigoso! Peça urgência... – Demandou o capitão, confuso. O dilema não tinha fim.

Na porta da cabine de Margot, batidas estremeciam a estrutura inteira. Elliot desesperou-se, antecipando o que viria perante o desastroso erro na interpretação do Akar.

-Querida Margot! Você é a única que poderá me salvar.

***

Nas ruas malcheirosas da movimentada Whitechapel, povoada por operários desempregados, marinheiros bêbados e prostitutas famintas, um garoto perambulava, recolhendo animais domésticos; não que ele primasse o bem das esqueléticas criaturas, destinos piores as aguardavam. A vizinhança reclamava a falta dos cães e gatos. Aves contorcidas, com pescoços quebrados, apareciam regularmente nas gaiolas. Certa vez, uma velhinha buscava encontrar o bichano. Entrando no quintal de Evie Meyer, paralisou-se dominada pelo pavor. Animais mortos apodreciam; desvalidos, outros agonizavam feridos.

-Um comunicado da Scotland Yard. Alguém viu o senhor Elliot Carter? -Ele está inapto a receber. -Pediu que o entregasse... -Eu recebo! -Sim senhor, capitão- Phillips o entregou.

A camisa de força anulava os movimentos básicos. Elliot Carter comparava-se a um casulo. Na esperança fútil da liberdade, projetava escapulir, contorcendo-se.

-Aceita conselhos, detetive? É bom ficar parado, ou piora –Recomendou o médico Francis Norman. -Estão cometendo grave erro. -O senhor recebera visitas, comporte-se!

A deprimida sensitiva Margot Colley entrou desgostosa, seguida do capitão Edward Smith e mais um oficial.

-O sobrenome Meyer lhe é familiar? -Era o sobrenome de solteira da minha falecida esposa Caroline. -O nome Evie meyer significa algo em suas lembranças? -A mãe de Caroline chamava-se Evie... A Scotland Yeard respondeu meu novo pedido? -Sim. -Deixe-me ler... -Livrem-no das amarras! –Mandou o capitão.

O médico obedeceu, sendo auxiliado. A enfermeira Elsie Kriger, escondida, ouvia a evolução dos recentes acontecimentos.

-Acompanhe-nos, senhor Carter.

Margot não tinha convicção se ajudou o grande amor de sua vida, revelando a dolorosa verdade ao comandante Smith. Jurou-lhe lealdade eterna, prometendo salvar Elliot em qualquer circunstância, por mais dificultosa fosse. Declarou-se acovardada, não tê-lo dito ao detetive o segredo que lhe custou horas angustiantes.

-Eu sabia que seria a salvadora, querida Margot! -Tenho muito a revelar, Elliot, e não terás a mim como estimada amiga. -O que ocultou? Que “Jack” pode ser meu filho? -Sim, ele é... –Margot ficou abismada da declaração de Carter. -Evidências na morte atual, apontavam que o assassino era um imitador e me conhecia, usou minha navalha de barbear, deixada na antiga casa em que eu residia, quando casado. Suspeitei do Hoffman, ele teria motivos para vingar-se, pedi sua exoneração, anos atrás. -E o que o fez tirá-lo da lista de suspeitos? -Pensei no que ele aduziu sobre o não falecimento de meu filho; a princípio, duvidei, pensando querer aborrecer-me. O telegrama da Scotland Yeard relatou o nome do mensageiro impostor, Oliver Dean Mayer e que este paciente foi levado pela enfermeira Elsie Krieger, que me atacou bruscamente. E por quê? Cooperava em defesa de alguém... -“Jack” é mesmo seu filho? –Reagiu o capitão espantado. -E se ocorreu uma infeliz coincidência? Pode ser outra Evie Meyer –Sugestionou o oficial. -Poderia sim. E para sanar estas dúvidas persistentes, sugiro prender e interrogar Elsie Krieger. A Scotlad Yard acabou de citá-la como criminosa procurada. Ela sabe o paradeiro do “Jack”. A enfermeira garantiu que não vira Elsie Krieger, a quem devia lhe render o plantão. A fuga indicou que ela meteu-se em esconderijo com o assassino.

***

Apesar do frio, o dia clareou. Elliot Carter refletia os próximos passos a tomar, observando pelas imensas janelas da sala de leitura, o perambular dos viajores no convés. Meditava qual aparência teria Oliver Dean, caso fosse seu filho. Assemelhava-se com a mãe ou puxara suas feições? A emoção o dominou. Mentalmente esgotado, Elliot encaminhou-se à cabine.

De cabelos cortados recentemente e vestindo trajes impecáveis, o serviçal moveu-se dócil, sondando o detetive.

-Senhor! – Saudou-o desconfiado. -O que faz dentro da minha cabine? -Fui designado a atender no que necessitar. -Um mordomo? Dispenso tais cuidados, sou estabanado e gosto de ser deste jeito. -Aceite, por favor! O capitão pensará que não agi correto, nos afazeres. -Não quero adulação, aprendi a tomar conta de mim muito antes de você vir ao mundo. -Acredito, senhor Carter –Sorriu afável.

Na mente do detetive, repercutia a recusa em acreditar que Oliver Dean não possuía nenhum senso de equilíbrio psicológico, e decidiu arriscar:

-Prossiga! Não fique parado, arranje-se. Encha as taças de licor e pegue o baralho na penúltima gaveta da cômoda.

O detetive Elliot Carter puxou a mesinha de cabeceira; e espalhando as cartas, reiniciou a conversa.

-Quero desanuviar meus pesares –Revelou, manuseando o baralho. -Calado, Oliver analisava possibilidades de ganhar no jogo, organizou suas cartas recebidas e ergueu a cabeça. -A culpa nos condena ao purgatório diário –A íris de Oliver cintilaram. Conhecera os declínios do pai. -Daria tudo a um novo recomeço de vida. -Julgo desnecessário retroceder. O sofrimento enriquece o aprendizado.

Ele virou o licor na boca e apresentou a boa jogada.

-Full house? Nada mal! –Admitiu Carter. -É conveniente ganhar, mesmo que apenas no jogo.

Forçar espontaneidade começou a enervar Elliot Carter, o detetive estava propenso a tropeçar nas palavras.

-Diga qual seu maior desejo? –Desafiou. -Derrota-lo senhor Carter. -E o que terá em troca? -A satisfação de testemunhar a queda do oponente, é impagável. -Não acho que valerá a pena. -O triunfo vem da luta feroz. -Que gera cicatrizes profundas. -As cicatrizes servem de lembranças dos desafios, que nos garantiu a glória. -Nem sempre! Muitas vezes restam-nos apenas cicatrizes, não é Oliver?

Num sobressalto, Oliver Dean largou suas cartas, retirando a arma da cintura, mirou no detetive.

-Você é o retrato vivo de sua mãe – Tentou quebrar a tensão.

Oliver tinha a aparência delicada de Caroline; o nariz afilado, rosto harmonioso e lábios finos.

-Mas herdei o gênio egoísta do pai –Retrucou, referindo-se ao abandono.

Impulsivo, o detetive avançou contra Oliver, esperando desarmar o filho, sem causar-lhe danos. A arma deslizou no piso, Oliver Dean agarrou a pesada cadeira e arremessou-a, acertando Elliot Carter. A queda fulminante tirou-o do embate.

-Por que, filho? –Grunhiu.

***

O coração de Hellen Walton batia desgovernado, e não eram atribuições românticas. Rilley dormia, babando no travesseiro, a embriaguez o derrubou. O infiel relógio conspirava, os ponteiros pareciam girar em um compasso letárgico. Walton alisou a chave dependurada ao pescoço, e volteou na cabine, segura que baniria a penúria. Roubar Rilley Collins exigia destreza, e ela passava a viagem se prontificando.

Meticuloso ele não vacilava, o aparente estado desleixado enganava a todos. Collins sabia que, além das autoridades, atrairia caçadores de recompensas, detetives particulares e uma infinidade dos mais ávidos oportunistas. Ciente do perigo em transportar as preciosidades furtadas, que acima de tudo seriam provas contundentes incriminando-o, decidiu embarcá-las para Nova Iorque, via serviço postal, um dia antes de seguir no faustoso transatlântico Titanic. Rilley Collins carregava réplicas usadas, para praticar o vergonhoso ofício, e a parceira Hellen Walton incorreu ao erro da ambição cega, não atestando a veracidade.

-Perdeu a cisma de ocupar o mesmo espaço, querida? –Rilley acordou com a cara marcada do travesseiro. -Pensei que não acordaria por este século. -E ficou zelando o seu homem? Venha cá! –Pegou na ponta do vestido de Hellen. -Que vergonha! Você veio carregado, Rilley. -Paguei caro, e mereço seviço completo. -Eu não faço parte –Puxou o vestido de volta. -Deite-se comigo, Hellen... -Não quero! Está fedendo feito a um gambá.

***

Ele almejava o ar como um peixe fora da água. Elzie Krieger amparou-o, oferecendo alívio à crise asmática, administrando o estrato de pólen.

-Pedi que não fosse-Reclamou possessiva. Preferia Oliver distante emocionalmente do pai. -Eles virão nos pegar de qualquer jeito. -Se me virem sozinha, não conseguirão provar nada. Livre, protegerei você; do contrario, estaremos condenados. -Eu o esmaguei... -Querido, não sinta culpa, a raiva é traiçoeira – Aliviada, Elsie contentou-se, e acariciou a nuca de Oliver Dean. -Ele pareceu alegre em ter interagido comigo...

O desvairado perseguiu Elliot Carter muitas vezes, contudo, a vontade destrutiva corrompia a clareza de enxergar o sentimento paterno que experimentara. Percebeu a felicidade na fisionomia do pai, por mais que soubesse que o filho era um bárbaro. Oliver, arrependido, não conteve as lágrimas.

-Pare Oliver! Ele não te amava. -Me larga!

O lunático afastou-se, cheio de revolta e indescritível dor. Enganou-se ao pensar que estivesse preparado em confrontar Elliot Carter. A indagação do pai ressoava nos ouvidos: “Por que, filho?” No olhar singelo daquele homem maduro, judiado pelo rigor do tempo, Oliver reavaliou sua triste vida deturbada. Oliver Dean cometera o lamentável equívoco de não conhecer a outra face da história e, sabia não ter chance de corrigir.

-Aonde pensa que vai? Ele morreu! -Não! –O som restrugiu no vazio.

***

Dores lombares castigavam o velho detetive. Ele insistia em dar continuidade ao trabalho. Desamassando o chapéu, pôs-se de pé, inflexível. Acamar-se não o faria melhorar, a inquietude impedia a recuperação. Estava aberta à caçada ao assassino impiedoso. Elliot recordou o dia da noticia recebida que Caroline engravidara, deixando-os eufóricos. O médico dissera das condições frágeis no correr gestacional, e a proibiu engravidar-se novamente. Embora o detetive tivesse ciência dos erros praticados por Oliver, desejou ter morrido no ataque irascível, porque não suportava a ideia de levar o filho à forca.

-O senhor é este da fotografia?

Destemido, um garoto segurando uma bola de futebol americano, ataiou Elliot Carter.

-Sim. Quem deu a você? -Não se parece. -Envelheci... –Mostrou os tons grisalhos no cabelo. -Pegue! O homem escondido mandou.

Ao virar às costas da fotografia, os olhos de Carter marejaram com a franqueza das palavras: “ Pai, perdoa-me, porque eu não soube agir, tive medo” A foto, de há muitos anos, pertencera a Caroline, Elliot Carter dera a ela no início do namora. O detetive tentou achar Oliver nos arredores.

-Onde ele estava? -Ali... -Não o vejo!

Elliot ofereceu uma gratificação à criança, que escapuliu satisfeita. Entristecido, o detetive permaneceu parado, refletindo. Pessoas com nível patológico túrbido, alternavam facilmente entre a lucidez e insanidade. Estaria o filho arquitetando uma armadilha? Os distúrbios mentais poderiam livrar Oliver Dean da punição severa; mas passaria o resto de sua vida condenado na solidão bizarra do sanatório.

***

Febril, Archer Spencer senta-se nos degraus da grande escadaria principal. Marcie Goldestein acarinhava seus cabelos. A opressão moral irrompeu em ímpetos de delírios incontroláveis. Os furores das fantasias reprimidas eclodiram. Ele transparecia a desventura que enfrentaria, não sabendo definir suas escolhas, despertando uma mistura de desejos amorosos, profanos e violentos. Homens lhe atenuavam o querer execrável, entrementes, sentia ausência emotiva encontrada no seio feminino. Archer levantou-se e guiou Marcie aos infindos corredores, abriu a porta da cabine, jogando-a na cama. Silenciada por um beijo arrebatador, não ofereceu resistência ao ser despida.

-De vagar! –Solicitou a virgem, abrindo as pernas.

Revisitando o passado sombrio e confuso, Spencer tomou ímpeto violento, agarrando brutalmente Marcie Goldenstein.

-Pare Archer! Largue o meu pescoço... –Lutava débil. O fecho do colar arrebentou, espalhando as pérolas no chão.

A repressão sexual, advinda da infância traumática no internato religioso, rompeu violenta. Archie Spencer mordia o corpo jovial de Marcie, desejava e odiava simultaneamente.

-Archie, não!

Marcie enxergou, no canto da cabine, um jovem franzino agachado, vestindo camisa branca e gravata borboleta. Ele esfregava o peito, massageando-o.

-Perdeu a motivação de machucar mulheres para punir o papai? Gosta disto, Oliver? -Você é patético! -Não diz que ficou enciumado?

O milionário firmou uma estranha ligação com Oliver Dean, atraído pelas estroinices dele, que vivia clandestino em Paris, recebendo resguardo da enfermeira Elsie Krieger. Archie Spencer, retraído, via beleza nas malignidades inventivas, onde o jovem exteriorizava uma fúria incompreendida. Não demorou a experimentarem o calor dos seus corpos entre lençóis, quebrando as regras hipócritas de uma sociedade denominada conservadora.

***

O esplêndido relógio de madeira, esculpido à mão, fixado no topo da majestosa escadaria principal, estadeava uma afamada inscrição: Honra e glória coroando o tempo.

-Não parou de se certificar da hora, senhor Goldestein, dando a impressão de querer escapulir logo do navio – Reclamou Joseph Ismay, o presidente da companhia White Star Line. -A meu ver, moraria nele –Riu Isidor, não perdendo o aspecto aflitivo. -Não é o que parece! -Minha filha Marcie ficou de encontrar-se comigo, aqui, e com os incidentes que ouve... -Os vigias permanecem em alerta. Destacamos oficiais e voluntários que asseguram à proteção de nossas mulheres. -A essa altura, a senhorita Marcie perdeu a noção do tempo, repare ao seu redor como elas agem frenéticas. É a noite de gala chegando.

Os prósperos viajantes designavam criados ao preparo dos vestuários e adornos, que exporiam na intensa comemoração, considerando o glamoroso jantar; o excitante baile e afirmações nas conquistas amorosas criavam um frenesi extenuante.

-Devo pedir desculpas... -Procure-a, e se acalme.

Fingindo adoentada, Marcie dormiu cedo, escondendo os arranhões. Isidor, preocupado, ameaçou chamar o médico e ela o impediu, dizendo ser um problema feminino. Cuidadoso, isidor Goldenstein não aceitou festejar, antepondo zelar a filha enferma.

***

Algumas embarcações avizinhadas expediram avisos de cautela ao Titanic. O capitão Edward Smith tomara precaução, desviando o transatlântico um pouco mais ao sul, livrando-se de ocasionais interposições dos icebergs.

-Avise aos observadores que redobrem a atenção. -Deve-se diminuir a velocidade, Capitão? -Não é preciso –Ele não esboçou maiores preocupações, voltando a conversar com os viajantes.

A euforia e luxúria imperavam nos salões de jantares, musicalmente animados. Enfadado, Harold Miller desejou que o navio naufragasse. A saudade massacrante de Lily Beatrice e a covardia em enfrentar a esposa traída, exigia-lhe disposição, queria se libertar do processo conflitante.

-Por que não acaba o castigo que começou? –Olhou para cima, convencido de que Deus o ouvia.

Do elevador saiu Archie Spencer impassível, vestido na elegante casaca preta e colete branco. O regozijo estampava o rosto mefistofélico, fugindo do entendimento dos que o contemplavam. -Você imaginei que tivesse a audácia de aparecer –Reclamou Rosalie Appleton, curiosa. -Sei que valerá a pena! Não devo nada a vocês. E advirto! Quem anda formulando acusações a meu respeito, recebera a visita de um advogado, se mantiverem persistência no erro em terra. -Chegando a Nova Iorque, pretendo não ver sua cara, eternamente –Refutou a mulher robusta. -E falando na eternidade, lamento que o seu amigo Ludwicci tenha virado comida de peixes. -Que falta de respeito! Quem disse a você? -Só estou devolvendo na medida correta, as amabilidades. E qual o informante, jamais saberá.

No cárcere, Harriet Parkson simula uma doença; e relutante, Henry Wilde a visita. Ela implora a soltura, dizendo ansiar eternizar a gloriosa noite. O que fosse justificado como último pedido.

-Peça permissão ao capitão, Wilde! –Suplica, abraçando-o. -Não é viável. -Eu aceito vigilância constante –Beijou-o. -Harriet... –Ele murmurou encalorado.

Às 10h55min, sonolento, o comunicador da estação de telegrafo Marconi, esforça-se atendendo aos pedidos pessoais dos passageiros, enviando mensagens. A embarcação SS Californian transmite mais advertências sobre o gelo no oceano. O estalido da comunicação ensurdece o operador Phillips, que reage irritado:

-Cale-se! Estou ocupado, falando ao Cabo race.

Na ponte de comando, receoso o oficial Willian Murdoch preocupa-se, reparando a vasta quantidade de gelo flutuante. Tudo se apresentava calmo, o mar parado e o céu estrelado.

-Parece tranquilo... –Disse ao companheiro do lado. ***

Certificando-se em organizar os poucos pertences do detetive, atendendo ao inusitado pedido, Margot tocou romanticamente uma camisa, sentindo calafrios. Apaixonada, cheirou afagando a peça, atestando vestígios das fragrâncias prediletas que Carter usava, incorporada ao modesto vidro do perfume Good Fir de Krigler. Um suspiro desolador a fez esmorecer. Abeirando o leito vazio, desejou ter feito amor com Elliot Carter. Ela auspiciava o fim.

-Sempre o amarei...

Às 11h20min, atendendo a seu sexto sentido, o detetive beirava à exaustão na custosa campana em um dos porões. A satisfação superou o cansaço ao ver Oliver Dean chegando, trazendo uma mala. Ele a pôs no chão e a abriu, trocando de roupas.

-Outro disfarce? Até quando pretende fugir? -Deixe-o em paz! –O cano da arma se sobressaiu da parte oculta.

A indomável enfermeira Kriger estendeu a mão chamando Oliver:

-Venha querido! -Você não pretendia me matar, não é, Oliver? -Queria leva-lo à loucura extrema, a ponto de se autopunir, suicidando-se. Não pense que te odeio menos agora. Nos deixou padecer, valorizando vadias extirpadas, esquecendo-se da mulher decente que carregava seu próprio filho no ventre. -E o que escrevera na fotografia? Oliver...Filho! -Não se aproxime Carter, ou atiro. -Cuidado! –Sussurrou Oliver Dean, indeciso.

Elliot Carter sentiu o coração palpitar, transpassado de intensa amargura paternal. O filho confuso mudava do repentino rancor ao impulso protetor. -Anda depressa, Oliver! –Gritou Krieger, engatilhando a arma, impaciente. -Pai! –Ele tomou instintivamente à frente.

O dedo de Elsie contraiu-se, pressionando acidentalmente o gatilho, crivando o projétil no peito do estimado Oliver. Elliot experimentou uma cegueira instantânea, os olhos tornaram-se opacos.

-Oliver! –Clamou irada, tornando apontar a arma.

Disparos foram ouvidos, e o corpo moribundo da enfermeira tombou ao solo.

-Você está ferido, Elliot? –Akar correu e verificou. -Sempre me salvando, não é Akar? -E condenando também... -Esqueça! Compartilho de culpa. Devia ter sido honesto.

A quebra de confiança que separou os amigos, pareceu nunca existir. Akar Xafur não desistira de acompanhar o detetive, silenciosamente.

-Traga uma maleta hospitalar... -Dará tempo? –Avaliou o estado de Oliver.

Desfalecendo, Oliver Dean, manchado de sangue, buscou forças e puxou a camisa do detetive, sujando-a no colarinho.

-Aguente firme, filho! -Eu não queria odiar você... –A golfada de sangue inundou a boca. -Por que, Oliver? –O detetive o abraçou. -Me perdoa... -Eu o perdoo filho.

***

Na escuridão, , um dos observadores do cesto da gávea, prestes a entregar o turno ao companheiro , avista o pico de um iceberg. Alarmado, chama a ponte de comando, repicando o sino pendurado.

-O que está vendo? -Iceberg à frente! –Fleet responde assustado.

Voltando à ponte de comando, Willian Murdoch ordena ao timoneiro quartel-mestre que vire todo o leme a bombordo, e liga para sala de máquinas pedindo marcha à ré a toda força. O motor silencia, diminuindo fatalmente a velocidade, porque o navio perdeu a potencia em contornar o iceberg, batendo a proa lateral, causando tremor ao rasgar o casco.

O capitão, retirado do seu repouso, acompanha o oficial Murdoch e o engenheiro naval Thomas Andrews. Eles desceram na zona atingida, analisando os estragos, percebem que a embarcação estava condenada. O comandante Smith pede que desliguem o motor, tentando evitar a explosão do navio com o choque da água fria nas caldeiras aquecidas.

-O navio está sentenciado a submergir! –Andrews esfrega o rosto. -Devemos preparar os passageiros. O pior virá! –Edward Smith saiu desalentado.

***

A água invadiu os porões, a sala dos correios, a casa das caldeiras e a quadra de squash-ball. Os pés de Akar Xafur tocaram águas geladas. Ele demorou a conseguir as provisões de primeiros socorros, perdendo minutos preciosos. Os marinheiros batiam nas cabines luxuosas, distribuindo coletes salva-vidas. Diferente da desassistida terceira classe, separada por grades.

O velho Isidor Goldenstein levanta-se de pijama e touca na cabeça, e solicita à filha que abra a porta. Nas espaçosas suítes da primeira classe tinha-se privacidade, podendo acolher mulheres das famílias em quartos separados.

-Marcie! É uma emergência –Ficou desconcertado, vendo o descaso da filha. -Eu quero dormir, papai! –Deitada de bruços, lágrimas respingavam no colchão.

Era o que marcava o relógio do monumental transatlântico, 00h10min. O capitão Smith dirigiu- se ao posto de telégrafo, ordenando Phillips e Bride que enviem o pedido de socorro. A embarcação Californian estava a umas dez milhas de distância. O terceiro oficial Grove perguntou:

-Que navio transmitiu? -Só o Titanic.

Respondeu Cyril Evans, radiografista do SS Californian, magoado com a resposta grosseira de antes, reportada por Phillips, o operador no Titanic. Groves colocou os fones tentando escutar alguma coisa, não conhecia direito os mecanismos do aparelho. Teria que dar corda no detector magnético.

***

Os primeiros botes salva-vidas começaram a ser lançados ao mar, levando uma porção insignificante de passageiros. Muitos se recusaram a embarcar, achando que o navio não afundaria.

Os lábios de Harriet parkson uniram-se aos de Henry Wilde, que abraçou-a emocionado. Apesar de ser infindamente requisitado, veio ao seu amparo.

-Entre no bote –Pediu Wilde, gentil. -Wilde, você não pode morrer... -Eu a verei em Nova Iorque! –Gritou, vendo o bote descer. A luva da fascinante e sedutora criminosa ficou nas mãos de Wilde.

A senhorita Margot Colley recitava palavras acalentadoras, direcionadas ao amado que sumira. Nos braços de Akar, que a trouxera forçada, chorava convulsivamente.

-Deixe-me procurar Elliot... -Com licença! –Ele empurrava a multidão, não dando atenção a Margot.

Inconformada, é posta em segurança no bote. O agradecimento surgiu de forma ingênua. Akar Xafur sentiu o toque macio do beijo amigável.

-Adeus, senhorita... -Não é ainda adeus, meu jovem –Sorriu, dando a certeza de que escaparia.

A saia do vestido de Hellen Walton estava encharcada. Ela se soltara de Rilley Collins, e voltou à cabine dele para destrancar o cofre, recolhendo o que pensava serem joias autênticas.

Os vapores da sala das caldeiras começaram a chegar às chaminés, produzindo um barulho ensurdecedor. O capitão recebeu o aviso de que o navio Carpathia respondera ao pedido do socorro, mas levaria quatro horas até alcançar o Titanic, e este obtinha menos de duas horas suspenso no mar. A tormenta continuaria insolúvel.

A orquestra liderada por tocava na fútil tentativa de amenizar o histerismo. A inclinação do navio era perceptível. Foguetes foram lançados ao ar, iluminando a desordem nas bordas do imponente transatlântico. A morte apresentou-se como a salvação esperada pelo velho Harold Miller. Na hora do juízo final, acobardou-se, pulando em qualquer bote. Enfrentar uma esposa revoltada pareceu-lhe ser à escolha sensata, a terminar morto e congelado no oceano. Tardiamente, liberaram mulheres e crianças da terceira classe. A escassez de botes não permitiu que tivessem muitas chances. Eram 2h05min da madrugada. Indo de um canto ao outro, o capitão desobrigava os marinheiros e oficiais das ardorosas funções.

-Os senhores cumpriram os seus deveres. Cuidem-se!

Ao contrario dos marinheiros que pulavam ao mar gelado tentando alcançar os botes, Thomas Andrews se entregou ao absoluto abatimento no salão de fumar. A confusão ficou incontrolável, e a água subia velozmente, atingindo a chaminé do navio. 2h15min, as luzes piscaram, vidros partiram-se aumentando o temor. Ao longe, nos botes, os viajantes sortudos viam o desespero dos que ficaram. E eles remavam incansáveis, afastando-se. A inclinação aumenta, desestabilizando o gigantesco Titanic. Centenas de pessoas restantes a bordo, escorregam nos corredores e conveses. A parte traseira fica na vertical. O navio quebra- se ao meio, tudo enegrece.

-Eu não quero morrer... –Hellen Walton lamenta, segurando firme nas grades laterais do convés.

A popa volta a deitar-se no mar, a dianteira não se desgruda e começa afundar, elevando-a novamente. Gritos desesperados das pessoas penduradas ressoam na negrura da noite. O titã dos mares mergulha indômito, nas profundezas do oceano.

***

Atingindo a velocidade máxima, o comandante , da embarcação Carpathia, navegou destemido, aportando a cerca de 3h30min da fatídica madrugada, avistando o primeiro bote salva-vidas.

Sentindo o desamparo a bordo do navio de resgate, Harriet parkson caminhava envolta no cobertor, parando ao reconhecer uma pessoa.

-Não encontro a Hellen... -Por que procura por ela, se mal a conhecia? -Somos meias-irmãs. -O que? Hellen teria apresentado você... -Não fazia parte do plano. -Vocês tramavam contra mim? -Oh, meu Deus! Hellen soltou-se da minha mão, voltando ao navio inundado. Eu guardei joias falsas no cofre –Refletiu. -Deixou Hellen morrer? -Quer saber? Fico aliviado por não ter mais sócia –Falou da boca para fora, porque se apaixonara.

Na troca de roupas, Margot Colley, ensopada, retirou a camisa do detetive Elliot Carter de cima das suas. Ela não podia carregar algo que estimava com maior segurança, na turbulência do naufrágio.

-Nem vestígio de Elliot? –Apertou a camisa ao peito. -Você é a vidente. -Senti a presença dele, se é o que quer saber, Akar, sei que não acredita...

Três dias depois, o Carpathia atracou no píer 54, da Cunard, na Décima-quarta Rua, em Nova Iorque. Os sobreviventes desembarcaram desorientados, sob Flashes dos repórteres e a comoção da multidão que esperava pelos náufragos debilitados.

Confirmou-se milhares de vidas perecidas no devastador acidente náutico, como o capitão Edward Smith, alguns oficiais e personalidades influentes, incluindo Isidor Goldestein e sua filha Marcie, que se recusou em abandonar a suíte, envergonhada pelo motivo do grotesco estupro. Não poderia ser esquecido o sarcástico milionário Archie Spencer, que vagou, tomando vinho no meio da balbúrdia, sendo sepultado definitivamente nas águas lodosas em mar profundo. Dias à frente...

Os raios do sol de outono iluminavam o caminho, coberto das folhas dispensadas pelas árvores. Na modesta lápide, o nome gravado extraía de Elliot Carter sentimentos intraduzíveis. Akar Xafur percebeu que tentar consolar o amigo seria inútil. O detetive depositou um ramalhete de flores no túmulo.

-Você sempre será minha dama preferida, Margot.

Redimindo-se, Edgar Hoffman cedera o lugar no derradeiro bote salva-vidas a Elliot e ao jovem ferido carregado por ele. O destino abonou-o de uma forma, punindo-o doutra. A pneumonia assolara sua fiel companheira.

-Eu não devia ter aceitado o que Hoffman oferecera. A nova chance de retornar a viver indica que não compensou. -Por que, Carter? -Explique você á razão que tenho para me alegrar? A descoberta de um filho assassino ou a constante saudade que sentirei de Margot? Com o passar do tempo, aprendi a amá-la, não a desejava, era simplesmente amor.

De repente, o vento soprou moderado, enchendo o ar da colônia feminina preferida da falecida.

-Sente o perfume? –Pergunta o detetive, suspenso.

Ela, sempre nostálgica, alentava-se aspirando aromas que recordava o amado, retribuindo este prazer de Carter senti-la também.

-Sim. -Pensei que estava ficando louco. -É a nossa eterna companheira –Elliot sorriu.

Ele soube, naquele instante, que a matéria física dos corpos podia separá-los, mas não havia barreira na união eterna entre seus espíritos e, onde estivesse, receberia abrigo eterno da meiga senhorita Margot Colley.

Continua...

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