MARINA HENRIQUES COUTINHO

A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

Rio de Janeiro – RJ 2010

MARINA HENRIQUES COUTINHO

A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do , como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutoramento em Artes Cênicas.

Orientadora: Profa. Dra. Beatriz Resende Coorientadora: Profa. Dra. Márcia Pompeo Nogueira

Rio de Janeiro – RJ 2010

Coutinho, Marina Henriques. C871 A favela como palco e personagem e o desafio da comunidade - sujeito / Marina Henriques Coutinho, 2010. 247f.

Orientador: Beatriz Resende. Coorientador: Márcia Pompeo Nogueira. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

1. Teatro comunitário. 2. Teatro e sociedade. 3. Favelas. 4. Teatro aplicado. 5. Globalização. 6. Inclusão social. I. Resende, Beatriz. II. Nogueira, Márcia Pompeo. III. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Curso de Dou- torado em Artes Cênicas. IV. Título. CDD – 792.022

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Centro de Letras e Artes – CLA Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC Mestrado e Doutorado

A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

por

Marina Henriques Coutinho

Tese de Doutorado

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Beatriz Resende (orientadora) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Profa. Dra. Márcia Pompeo Nogueira (coorientadora) Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Profa. Dra. Beatriz Azeredo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof. Dr. Narciso Telles Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Profa. Dra. Elza de Andrade Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Prof. Dr. Zeca Ligiéro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Aprovada em 19 de Maio de 2010, Rio de Janeiro.

À minha mãe, por tudo que me ensinou. Minha eterna gratidão.

Ao David e ao meu filho Miguel, Pela amizade, apoio incondicional e paciência ao longo desta caminhada, todo o meu amor.

Ao meu querido irmão Bruno, que me apresentou , A minha querida irmã Paula,

Ao meu pai, Pelas boas memórias de minha infância, pela sua história de luta em benefício da favela.

AGRADECIMENTOS

Às Profas. Dra. Beatriz Resende e Dra. Márcia Pompeo Nogueira, minhas orientadoras, o meu agradecimento pelo incentivo, apoio e compreensão ao longo da trajetória desta pesquisa; pela generosidade demonstrada em todas as fases de desenvolvimento do trabalho, pela disponibilidade à construção de um rico diálogo, sem o qual teria sido impossível a realização desta tese. Todo o meu afeto e gratidão.

Ao Professor Tim Prentki, o meu especial agradecimento pelo carinho com que me recebeu na Universidade de Winchester, Inglaterra, durante o período que participei do curso Theatre and Media for Development, pelo seu entusiasmo e dedicação aos nossos encontros “tutoriais”, os quais trouxeram para este trabalho preciosa contribuição.

Aos Professores Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho, Dra. Evelyn Furquim Werneck Lima e Dr. Zeca Ligiéro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio na ocasião da avaliação de minha candidatura pelo European Union Programme AlBan of High Level Scholarships for Latin América (Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia para a América Latina).

Ao professor David Herman, que além de companheiro na vida, é também meu grande companheiro na arte. Meu especial agradecimento pela revisão de minhas traduções do inglês dos textos de autores citados neste trabalho. Além de todo o incentivo e encorajamento durante o período em que vivemos na Inglaterra.

Aos Professores Dra. Ana Tereza Jardim e Dr. Charles Feitosa, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pelas observações acertadas na ocasião de minha banca de qualificação, as quais contribuíram para o aprimoramento deste trabalho.

Aos integrantes do grupo Nós do Morro, especialmente Guti Fraga, Fred Pinheiro, Maria José da Silva, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Regina Melo; aos integrantes da Cia. Marginal e do Grupo Código pela confiança que me dedicaram na realização da pesquisa.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa de estudo o que possibilitou a realização desta tese.

Ao Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia para a América Latina pela concessão da bolsa que possibilitou a minha estadia na Universidade de Winchester.

Aos meus colegas no Brasil e na Inglaterra, pela enriquecedora troca de experiências.

O problema de todas as épocas é saber como se vai dar a ruptura. E as rupturas se deram antes que todos soubessem que elas iam se dar, os que em épocas anteriores, pensavam na possibilidade de mudança podiam ser tidos como otimistas ou visionários.

Milton Santos RESUMO

Este trabalho aborda as relações entre teatro e comunidade no âmbito dos projetos artísticos e sociais desenvolvidos em favelas do Rio de Janeiro. Apresenta o contexto da nova ordem global e os efeitos da globalização na realidade da favela, espaço geográfico aqui considerado como o território da luta. O trabalho aponta indícios de que o modelo socioeconômico atual não caminha em direção ao bem-estar das populações mais pobres do planeta, mas considera a capacidade de luta de comunidades em busca de soluções criativas para as dificuldades enfrentadas no seu cotidiano. A argumentação opta por uma perspectiva otimista que enxerga a possibilidade da emersão de narrativas alternativas capazes de oferecer às comunidades o direito de voz, indicando o teatro como um dos caminhos possíveis para a construção de um discurso alternativo. Para refletir sobre as relações entre teatro e comunidade, o trabalho analisa bibliografia originalmente em língua inglesa, referente ao campo do Teatro Aplicado, terminologia que vem ganhando força no cenário internacional. O corpo teórico utilizado permitiu a formulação do conceito de teatro pela comunidade, como resultado do respeito à ética e a estética da comunidade-sujeito. As noções de teatro pela comunidade e comunidade-sujeito são postas em diálogo com três estudos de caso: o grupo Nós do Morro (Vidigal), a Cia. Marginal (Parque União, Complexo da Maré) e Grupo Código (Japeri, Baixada Fluminense). A situação das iniciativas consideradas pelo trabalho como exemplos de teatro pela comunidade é, entretanto, problematizada diante do desafio que se impõem aos projetos sociais/artísticos atualmente: transitar pelas novas redes de sociabilidade, resguardando os interesses do território da luta. Diante da intricada trama social, econômica, política e cultural, que envolve a realidade desses projetos hoje, as iniciativas mostram o potencial do território da luta em fazer emergir no palco comunitário um teatro que representa a expressão de narrativas alternativas com poder para resistir ao pensamento único.

Palavras-chave: 1 Teatro e Comunidade - 2 Favela –3 Teatro Aplicado- 4 Pedagogia.

ABSTRACT

This work deals with the relationship between theatre and community within the sphere of social and artistic projects developed in the favelas of Rio de Janeiro. It describes the new global order and the effects of globalization as the background to life in the favela, a geographical space that this work considers a territory of struggle. The work points to indications that the current socio-economic reality does not lead to an improvement in the welfare of the poorest communities on this planet. However, it also takes into consideration the capacity for struggle within these communities in search of creative solutions for the difficulties of everyday life. The thesis opts for an optimistic point of view which considers the possibility of the emergence of alternative narratives able to offer the “right to a voice”, and points to theatre as one of the possible ways in which this alternative discourse may be constructed. In order to consider the relationship between theatre and community this work analyzes a bibliography, originally in English, which refers to the field of “Applied Theatre”; a term which has been growing in usage internationally. This theoretical basis allowed for the formulation of the concept “theatre by the community” which results from a respect for the ethics and aesthetics of the community as active agents. The ideas of theatre by the community and community as active agents are discussed through three case studies: the group Nós do Morro (Vidigal), the Cia. Marginal (Parque União, Complexo da Maré) and Grupo Código (Japeri, Baixada Fluminense). The situation of these initiatives, considered by their action as examples of theatre by the community is examined with regard to the challenge which presently confronts social/artistic projects: how to find a way through the paths of the new networks of sociability while at the same time safeguarding the interests of the territory of struggle. Faced by the intricate social, economic, political and cultural web which envelopes the reality of these projects today, these projects demonstrate the potential of territories of struggle in bringing to the community stage a theatre which represents the expression of alternative narratives with the power to resist hegemonic thought.

Key words: Theatre and Community – Favela – Slum – Applied Theatre – Pedagogy.

SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO p. 1

CAPÍTULO 2 - FAVELA – O TERRITÓRIO DA LUTA.

2.1 - Desenvolvimento e globalização – duas promessas desencantadas. p.16 2.2 - Em busca da narrativa alternativa. p.35 2.3 - O lugar da Favela. p.46 2.4 - A favela pela favela e a chance da narrativa alternativa. p.59

CAPÍTULO 3 - O TEATRO APLICADO – ABRANGÊNCIA, PERCURSO E TEORIA.

3.1 - O universo do teatro aplicado. p.76 3.2 - Transformações na cena ocidental e o percurso do teatro aplicado. p.89 3.2.1- O teatro e a alforria da sala convencional. p.89 3.2.2 - A relação entre teatro e política na trilha do teatro aplicado. p.95 3.2.3 - O impulso dos anos 60 e 70. p.100 3.3 - Pistas do teatro aplicado no Brasil. p.106 3.4 - e - alicerces teóricos do teatro aplicado. p.118 3.5 - As noções de diálogo e participação: desdobramentos e desafios na trajetória do teatro aplicado. p.122 3.6 - O teatro aplicado e a dinâmica do “pela comunidade”. p.131

CAPÍTULO 4 - A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO. p.143

4.1- Vidigal, favela palco e personagem. A conquista da comunidade-sujeito no percurso do Grupo Nós do Morro. p.147 4.2 - Cruza-se a fronteira, se ganha um dilema: a ameaça da comunidade-objeto. p.179 4.3 - Década de 90: sociedade civil organizada, ONGs, “responsabilidade social” e o dilema da comunidade sujeito/ objeto. p.183 4.4 - Em outras comunidades o mesmo desafio. p.199 4.4.1 - A Nova Holanda como palco e personagem. p.201 4.4.2 - Japeri como palco e personagem. p.215 4.5 - Os três grupos e a relevância do papel do artista facilitador no desafio da comunidade- sujeito. p.226

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS. p.231

6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. p.236 1

1 - INTRODUÇÃO

Foi o teatro que me levou até a favela. Era ainda bem menina quando meu pai, médico ativista social da década de 80, engajado no movimento “saúde é um direito de todos”, me pegou pela mão e disse: “Vamos ao teatro”. Para minha surpresa, não era um teatro como aqueles que eu costumava frequentar. Guardo ainda fresca na memória a imagem de uma encosta, a subida do morro, a entrada em um galpão lotado de gente muito vibrante, quando chegamos a peça já havia começado. Em cena, num palco improvisado, apresentavam Flicts, o clássico de Ziraldo.

Naquele dia, o teatro me apresentou um mundo ainda distante, o da favela. Um encontro, cuja dimensão e importância para mim, somente hoje, consigo compreender com mais clareza. Foi aquele convite inesperado, que permitiu que a menina, filha da classe média carioca, começasse a formular outra percepção sobre a favela e também sobre o teatro; ambos ganharam novos e poderosos significados. Constatei que a favela não era um território tão distante, estava logo ali, fazia parte da cidade; descobri que o teatro podia acontecer em outros espaços que não naquelas salas especiais; percebi que lá, naquele galpão, por algum motivo especial, o diálogo entre palco e platéia trazia tal força e vitalidade que eu não havia sentido nos teatros pertinho de casa, na Zona Sul do Rio.

Não lembro bem onde ficava a favela ou o porquê daquele evento. Anos mais tarde, quando visitei o Vidigal pela primeira vez, tive a impressão de que talvez eu já tivesse subido aquela ladeira, mas não tenho certeza. A memória da infância guarda também momentos em que a família se reunia nos almoços de domingo e meus pais falavam sobre suas causas em benefício das comunidades mais pobres da cidade. Foi assim que eu cresci.

Na hora de escolher uma profissão, resolvi primeiro ser atriz, depois jornalista. Nos anos

90, quando deixei a escola de teatro e a Faculdade de Comunicação, eu mesma tratei de 2

arranjar um novo encontro com a favela. Ele aconteceu na Associação de Moradores do

Parque União, uma das comunidades que compõem o Complexo da Maré. Um projeto de teatro de minha autoria foi aprovado por um programa social que naquela década, de plena expansão do terceiro setor, financiou muitas iniciativas no Rio de Janeiro e também em outras capitais do país.

A aprovação do projeto foi mais do que uma surpresa, um susto. Eu havia estado na

Maré apenas uma vez para conversar com o presidente da Associação, que apreciou a ideia trazida pela moça “da Universidade”: criar um projeto de teatro para jovens. Encaminhei a proposta à concorrência e veio a aprovação. No dia seguinte, parti do Leblon em direção ao

Parque União. A experiência de dois anos na Maré foi definitiva, descobri um novo sentido para a minha vida no teatro. Depois dela, participei de outras iniciativas, em diferentes comunidades do Rio, como Acari, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Chapéu Mangueira e

Vidigal.

Esses encontros revelaram para mim as características específicas de cada um desses espaços e também de suas pessoas, mas, sobretudo, confirmaram as histórias que meus pais haviam me contado. A favela é o “território da luta” e da solidariedade, o lugar onde os indivíduos sempre desenvolveram ações criativas e encontraram soluções alternativas para enfrentar as suas dificuldades; é também o lugar de onde sempre despertaram as manifestações mais originais da cultura do Rio de Janeiro. A oportunidade de aliar a arte que eu havia escolhido como profissão e o trabalho comunitário foram os aspectos responsáveis pelo entusiasmo com o qual me engajei em todos os projetos; junto com isso, bem aflorada naquela fase de minha juventude, a sede de “mudar o mundo”.

Não precisou muito tempo para que, além da euforia, eu começasse também a formular importantes perguntas: qual seria o meu papel ou contribuição ali, inserida naquela realidade, tão diferente da minha? Haveria uma maneira especial de pessoas como eu, artista/educadora 3

“de fora”, se relacionar com as comunidades? Que fatores teriam contribuído com a construção de uma imagem que vê a favela como um território à parte da cidade, nicho da desordem, da carência, da violência? Imagem tão diferente da que eu enxergava no convívio com aquele espaço e com as pessoas de lá? Quais estratégias desenvolveram essas comunidades para sobreviver aos problemas estruturais provocados pela negligência do

Estado em garantir às suas populações os bens públicos como educação, saúde, segurança, lazer? Quis saber por que o contexto sócio, político e econômico da década de 90 favorecia um verdadeiro boom do chamado terceiro setor e dos projetos promovidos pelas organizações não governamentais (ONGs), dos quais, eu mesma fazia parte; por que o discurso da

“responsabilidade social” ganhou tanta força nas propagandas das grandes empresas, tendência que se intensificou ainda mais nos últimos anos. Mas, sobretudo, me indaguei, muitas vezes, sobre qual deveria ser o papel do teatro ali, qual poderia ser a sua maior contribuição; que teatro fazer, que teatro colocar em cena?

Depois de uma vivência como coordenadora e professora de teatro em um grande

“projeto” promovido em parceria por uma importante ONG da cidade, o Governo do Estado do Rio de Janeiro, a UNESCO e a TV GLOBO, decidi que havia chegado o momento de retornar à Universidade para tentar responder as perguntas acumuladas ao longo de vida prática, ou pelo menos para encontrar um lugar no qual eu pudesse sobre elas refletir. Nas instalações bem equipadas no alto do Morro do Cantagalo, o “projeto” ao qual me refiro,

“atende” crianças e jovens das comunidades próximas, ocupando o seu “tempo disponível” com atividades esportivas e artísticas. Ele é um dos exemplos de iniciativa que justifica a sua ação utilizando como argumento a promoção da cidadania e o fomento da “Cultura de Paz”.

Nesses “projetos”, planejados por organizações do terceiro setor, pela iniciativa privada e por instituições governamentais, o esporte e as artes aparecem como ferramentas capazes de conter o caos social e a violência, na medida em que oferecem a crianças e adolescentes, 4

considerados em risco social, alternativas emocionantes, com as quais possam se identificar e transformar em opção de vida. Não há como negar que essas iniciativas tragam melhorias para a qualidade de vida dessas crianças e jovens, despertando o seu interesse para atividades criativas e saudáveis. Mas é preciso estar atento ao fato de que alguns desses projetos, ao divulgarem seus feitos na mídia, sublinhando o perigo da relação juventude/violência acabam

“vendendo” a idéia de que caso eles não existissem, todos os jovens favelados, se tornariam bandidos. O slogan de projeto “salva criança da criminalidade” tem sido incorporado por algumas dessas iniciativas. Ele, além de divulgar a ideia de que moradores de favelas são, em grande maioria, suscetíveis à cooptação pelo tráfico de drogas, o que não corresponde à realidade, flagra também um outro equívoco: encarar o morador da favela como alguém que precisa “ser salvo”, e a favela como um espaço de “ausências”. Ao usar o slogan, essas ações assumem o papel de os “salvadores”, por que evidentemente, se existem os que devem ser salvos, existem, aqueles que podem “salvar”.

Percebi que a minha proposta como artista/educadora estava definitivamente em desacordo com esta perspectiva. De fato, aos poucos comecei a constatar muitas contradições entre as intenções do “projeto” e as minhas próprias intenções. Discordava do fato de, por exemplo, em ocasiões como as idas à noite ao teatro, eventos “chiques” para os adolescentes, nós tivéssemos que vestir uniformes, camisetas onde se estampavam as logomarcas

“benfeitoras” do “projeto”. Lembro-me do incômodo, deles e meu, da sensação de estarmos vestidos como “outdoors ambulantes” prestando um serviço de publicidade gratuita aos promotores da iniciativa.

Também me perturbavam as constantes visitas das celebridades da TV, que “abriam” espaço em suas agendas para conhecer o “projeto” e acenar sorridentes às crianças da favela.

Em outras situações, crianças desapontadas com a falta da professora do CIEP, situado no mesmo prédio do “projeto”, mas em condições precárias de funcionamento, me perguntavam 5

com voz embargada se podiam passar o dia comigo, pois não haveria almoço nem na escola, nem em casa. Passei a me perguntar sobre os motivos que teriam determinado aquelas circunstâncias, que teriam permitido que lado a lado convivessem uma escola em estado miserável e um “projeto” bem patrocinado, tão confortável. Percebi que, por melhores que pudessem ser as intenções da iniciativa e de muitos indivíduos nela envolvidos, aquele modelo de projeto, mais do que instigar a mudança, alimentava a dependência. Levou algum tempo até que eu finalmente enxergasse que o meu lugar não era ali, e também para entender que as perguntas que eu fazia não seriam tão fáceis de serem respondidas.

Quando ingressei no Mestrado, o grupo Nós do Morro já era uma referência entre as práticas artísticas provenientes das comunidades populares da cidade. Na época o grupo, que nasceu do resultado do diálogo entre alguns artistas de teatro e jovens moradores da favela do

Vidigal, estava perto de completar vinte anos em plena atividade, a maior parte deste tempo sem contar com um apoio financeiro estável. O fato de o grupo ter surgido espontaneamente de “dentro” da comunidade e também de ter sobrevivido durante muito tempo contando apenas com o apoio comunitário, além da repercussão de suas produções artísticas não só dentro do Vidigal, mas também fora dele, eram aspectos que me chamavam atenção. A história do grupo me atraía talvez por representar um contraponto à experiência anterior no

Cantagalo, no projeto implementado de “cima para baixo”. O ponto de partida do grupo do

Vidigal foi de fato bem diferente.

Encontrei lá um grupo fortalecido por anos de muita “batalha”, que transformou, a golpes de marretada, um buraco de pedra num pequeno teatro, que usava latas de leite em pó, como refletores para iluminar a cena. Um grupo que em meados dos anos 80 começou envolvendo a participação de aproximadamente vinte pessoas e àquela altura já engajava mais de trezentas. O Nós do Morro criou cena e dramaturgia próprias, para falar à sua comunidade transformou os temas do cotidiano da favela em matéria artística, brincou com situações 6

fantásticas do imaginário “vidigalense”, reverenciou no palco a sua comunidade-mãe. A cena do Nós do Morro, seja a que revelou o Vidigal como sua personagem protagonista, ou a que explorou universos distantes, como os de , trouxe impregnada, no corpo e na voz dos atores, a “alma vidigalense.” Os processos de criação desenvolvidos pelo Nós do

Morro favoreceram a emersão de uma cena própria do Vidigal, parida do diálogo estabelecido entre os artistas e a comunidade. Diálogo traduzido no palco em forma cênica materializada.

Lembro-me das vezes que fiz parte como espectadora da platéia no pequeno Teatro do

Vidigal, e no Casarão, outro espaço que abriga as atividades do grupo, momentos em que a comunicação entre palco e platéia provocou o que Peter Brook definiu como verdadeiras

“explosões de vida”. Constatei no Vidigal a expressão de um teatro criado pela comunidade.

Naquele momento, o encontro representou para mim a satisfação de descobrir uma iniciativa que respondia a dinâmica que eu estava à procura: a da comunidade-sujeito. Dediquei ao grupo a minha dissertação.1

Já no final do Mestrado, a professora Márcia Pompeo Nogueira (UDESC) me apresentou um vasto leque de publicações em língua inglesa, dedicado aos estudos da área de pesquisa teatro e comunidade em outras partes do mundo. A ampla literatura já vinha sendo trazida ao nosso conhecimento por meio dos artigos de Nogueira. Eu estava concluindo a dissertação, mas percebi que o material poderia servir como um consistente apoio teórico para uma futura tese de doutoramento. Encorajei-me a permanecer na Universidade e encarar de

1 COUTINHO, Marina Henriques. Nós do Morro: percurso, impacto e transformação. O grupo de teatro da favela do Vidigal. Orientador: Prof. Dr. Zeca Ligiéro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2005. Na primeira parte do estudo (capítulo 1), fiz um breve histórico do grupo, avaliando os aspectos que garantiram a continuidade de sua ação dentro de sua comunidade-mãe, a favela do Vidigal, bem como a sua projeção e reconhecimento fora dela. A pesquisa de campo, realizada em 2003, permitiu a minha aproximação em relação aos dois campos de atuação do Nós do Morro: o da sala de aula (ensino do teatro a crianças e adolescentes) e o da companhia profissional de atores, através do acompanhamento dos ensaios do espetáculo Burro sem Rabo (2003). As visitas ao Nós do Morro revelaram-se uma fonte riquíssima, tanto de informações, imprescindíveis para a pesquisa, quanto de entusiasmo para realizar o trabalho. As entrevistas colhidas e o acompanhamento de aulas e ensaios serviram como ponto de partida para a reflexão dos dois capítulos seguintes da dissertação, nos quais avalio o impacto da ação do Nós do Morro na vida de alguns integrantes do grupo e investigo os procedimentos teatrais adotados por ele no processo de montagem do espetáculo Burro sem Rabo.

7

vez o desafio. A dificuldade que senti durante o Mestrado, de encontrar um suporte teórico no qual pudesse apoiar as minhas argumentações sobre a relação entre teatro e comunidade no

Vidigal, agora parecia solucionada.

A vivência frustrada naquele “projeto” do Cantagalo, que insistia em permanecer em minha memória, o resultado da dissertação e o encontro com a nova bibliografia trouxeram ainda mais perguntas, que somente ao longo do Doutorado, puderam ser investigadas mais profundamente. São elas: quais circunstâncias favorecem a comunidade/favela exercer o seu papel como autora dos processos criativos ou a sua autonomia dentro de um “projeto”; que tipo de política estabelecida entre “agentes externos” e comunidades é capaz de criar uma relação que garanta à comunidade o seu verdadeiro direito de voz? Ou ainda, que circunstâncias permitem que os projetos respirem dentro da dinâmica da comunidade-sujeito, assegurando à favela/comunidade o seu direito de por meio do teatro nomear o mundo? Essas perguntas, somadas as outras apontadas anteriormente, norteiam este trabalho.

O mergulho na investigação dessas questões levou-me a percorrer caminhos inesperados. Visitei, além do Teatro e da Pedagogia, diversas áreas do conhecimento como a

Sociologia, a Economia, a Cultura, a Geografia e a Política. A experiência multidisciplinar foi particularmente intensificada durante o período em que participei do curso Theatre and media for development (Teatro e Mídia para o desenvolvimento), na Universidade de Winchester,

Inglaterra, sob a supervisão do Professor Tim Prentki. A chance surgiu devido a aprovação de minha proposta de “formação complementar” ao Doutorado pelo European Union

Programme AlBan of High Level Scholarships for Latin América (Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia para a América Latina) em 2007.

Sem dúvida, os conteúdos abordados no curso tiveram um impacto direto na elaboração desta tese. Assuntos como políticas de desenvolvimento, macroeconomia, globalização e neoliberalismo contribuíram para ampliar a minha compreensão sobre as regras que regem o 8

mundo hoje e me ajudaram a construir, especialmente, o capítulo 2 deste trabalho: Favela – O território da luta. Nele, a partir dos conceitos de desenvolvimento e globalização procuro apresentar o contexto da nova ordem global e as conseqüências, ou os efeitos da globalização, que Milton Santos define como perversa, na realidade da favela, espaço geográfico que decidi chamar de “território da luta”. O ponto de partida é a constatação de que tanto as políticas desenvolvimentistas, que começaram a ser implementadas nos países do Sul do mundo pelos países do Norte após a Segunda Guerra Mundial, quanto a globalização, baseada nas leis do mercado, competente para gerar riquezas, porém negligente para cuidar das necessidades sociais, fracassaram na tentativa de garantir à maior parte da população do planeta previsões mais positivas para o futuro.

Ao contrário, como afirmam diversos autores aos quais recorro no capítulo, entre eles

Wolfgang Sachs, Oswaldo de Rivero, Noam Chomsky e George Soros, tudo indica que o modelo socioeconômico global caminha na contramão da garantia a uma realidade mais digna e humana para as pessoas mais pobres do planeta. No capítulo, o fenômeno da “favelização do mundo”, termo utilizado por Mike Davis, é examinado como uma conseqüência da globalização neoliberal. Mas, a partir da perspectiva mais otimista de Milton Santos em Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal, e das formulações do professor Tim Prentki em Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão procuro argumentar em favor da possibilidade da criação de narrativas alternativas ao pensamento

único, em favor da chance de que surjam do “território da luta” ações criativas capazes de proporcionar aos “vetores de baixo” o direito de voz.

Após apresentar um panorama global, focalizo o espaço mais localizado da favela carioca, abordando aspectos de sua historiografia, as suas representações pelo imaginário da cidade e a luta para se livrar dos estigmas da “ausência”, da “carência” e da violência.

Apresento exemplos de um movimento acentuado recentemente que vem trazendo à tona, por 9

meio de diversos canais expressivos, como a música, a dança, a literatura, o audiovisual e também o teatro, iniciativas que emergem do “território da luta” com o potencial de se afirmarem como narrativas alternativas. Nas letras do rap, na poesia da literatura marginal, na programação das rádios comunitárias ou na cena de teatro, diversas ações, encontram brechas no discurso hegemônico para indicar a possibilidade da produção de um novo discurso, baseado na versão daqueles que estão “de dentro.”

No Rio de Janeiro, organizações como o Grupo Nós do Morro, o Grupo Cultural

AfroReggae, a Central Única das Favelas – CUFA e o Observatório das Favelas, encabeçam hoje o movimento que ganhou corpo a partir dos anos 90 e que disseminou projetos sociais/artísticos em diversas comunidades da cidade. Aponto alguns aspectos de um novo cenário de cidade, que naquele momento começa a se desenhar a partir do surgimento de uma complexa rede social que facilitou o encontro ou o estabelecimento de “parcerias”, no

“território da luta”, entre diversos “atores sociais” como: órgãos governamentais, organizações internacionais, universidades, empresas, fundações, associações de moradores, organizações não governamentais (ONGs), veículos de comunicação etc. E apresento, neste momento, o dilema que se coloca para essas iniciativas, especialmente para aquelas que surgiram a partir da mobilização comunitária: a medida em que as ações da favela passaram, gradualmente, a responder às vontades de seus múltiplos parceiros, incluindo aqueles que muitas vezes refletem os interesses dos “vetores de cima”, até que ponto a negociação entre todos os “atores”, ou entre os “vetores de baixo e de cima”, como define Milton Santos, consegue garantir situações em que a comunidade/favela é de fato autora, de fato sujeito do projeto? Não existiria o risco dela se tornar um mero objeto do interesse de grupos, representantes dos vetores “de cima”? Finalizo o capítulo 2 formulando aquela que talvez seja a questão-chave deste trabalho: Será possível aos projetos sociais/artísticos hoje, ainda que fazendo parte da intricada trama social, política, econômica e cultural, oferecer à arte, 10

especialmente ao teatro, foco desta tese, a chance de assegurar a vez e a voz dos “vetores de baixo”, transformando o palco da favela num espaço apto a provocar mudanças?

No terceiro capítulo, O Teatro Aplicado – abrangência, percurso e teoria, apresento o corpo teórico ao qual tive acesso durante o curso na Inglaterra, mas antes descrevo brevemente o cenário do campo da Pedagogia do Teatro no Brasil, que nos últimos anos viveu um período de expansão devido a grande diversidade de práticas teatrais agindo em contextos como, o dos projetos realizados nas periferias e favelas das grandes cidades; das ações na área da educação não formal; dos programas em defesa dos direitos humanos, da saúde etc. O fato despertou a atenção do meio acadêmico que se antes concentrava as suas pesquisas em experiências de teatro na escola, hoje, mais atento ao fenômeno contemporâneo, alargou seu campo de reflexão. A variedade de iniciativas que incluem a parceria entre teatro e educação nesses diversos contextos obrigou uma resposta da academia à nova realidade; dilatou o foco de seus estudos teóricos, o que vem contribuindo, por exemplo, com a maior atenção à investigação de práticas artísticas comunitárias, bastante numerosas em nosso país hoje.

Como no Brasil, em outras partes do mundo as pesquisas acadêmicas vêm tentando responder à emergência dessa diversidade de iniciativas. Na Inglaterra, desde os anos 90 surgiram muitas publicações dedicadas a investigar a relação entre teatro e comunidades. Com a intenção de contribuir com os debates na área de nossa Pedagogia do Teatro e na tentativa de encontrar respostas para as perguntas que levantei, trago neste capítulo as reflexões de alguns autores que se debruçaram no estudo de “segmentos teatrais” como performance comunitária, teatro para mudança social, teatro popular, teatro de intervenção, teatro para o desenvolvimento, teatro comunidade e teatro para solução de conflitos. Entretanto, embora cada uma dessas “modalidades” apresente na Inglaterra formulações teóricas específicas, me detenho na tendência mais atual, evidente em recentes publicações, de concentrar essas 11

práticas num termo abrangente e inclusivo que vem ganhando repercussão internacional – applied theatre (teatro aplicado). A escolha por um termo mais inclusivo como este indica a intenção desses estudos em se concentrar em conceitos que regem as práticas no campo, mais do que se dedicar às nuances entre elas. Portanto, assumo neste momento do trabalho o termo teatro aplicado, e passo a me dedicar a sua trajetória e conceituação teórica. Parte do desafio do capítulo foi o estudo da bibliografia em língua inglesa; bem como a tradução de trechos de autores como Baz Kershaw, Eugene Van Erven, Helen Nicholson, Tim Prentki, Philip Taylor,

Kess Epskamp e Nugugi Wa Thiong’O, tarefa supervisionada por David Herman.

Ao longo do capítulo, apresento o percurso do teatro aplicado. Dedico boa parte dele à discussão das transformações sofridas pela cena ocidental a partir do século XX, que teriam colaborado com o surgimento do embrião do teatro aplicado. A ruptura com a sala italiana, ou a explosão do espaço, me pareceu um aspecto fundamental para trilhar este caminho. A recusa gradual à sala tradicional que levou à alforria do teatro; a iniciativa de encenadores em recuperar o espaço urbano como um ambiente livre para o acontecimento teatral e a vontade de reencontrar a platéia popular; desejos que iriam se acentuar ao longo daquele século de rupturas e profundas mudanças na cena ocidental. Outro aspecto que destaco é o fortalecimento da relação entre teatro e política, desde o teatro engajado soviético, até os desdobramentos desta parceria no pensamento teórico, dramaturgia e cena de Bertolt Brecht, que exerceram grande influência no movimento do teatro político manifestado em diversas partes do mundo durante os anos 60 e 70. Décadas em que grupos teatrais inovadores, desprezaram os espaços convencionais do “mainstream” para retomar o contato com as platéias populares, levando o teatro aos mais variados espaços da cidade e até os de áreas não urbanas.

Neste trecho do capítulo coube uma passagem para o Brasil e a investigação também aqui dos movimentos de ruptura e transformação que alteraram o curso da história do Teatro 12

Brasileiro. Como a atuação de grupos que, assim como em outras partes do mundo durante as décadas de 60 e 70, deixaram a sala tradicional em busca de recuperar a ideia do teatro como um ato de cidadania compartilhado. Este contexto nacional me permitiu introduzir o que chamei de “alicerces teóricos do teatro aplicado” - as obras de Paulo Freire e Augusto Boal. A rigor, como será possível constatar, além de Brecht, as obras dos dois brasileiros são reconhecidas pelos autores estrangeiros como pilares da teoria do teatro aplicado.

A base teórica do teatro aplicado defende que os processos criativos, que envolvem quase sempre a colaboração entre artistas e grupos comunitários, devam permitir a emersão de um teatro que responda à comunidade, que exerça uma comunicação e impacto específicos para os seus participantes e platéias; que os interesses, temas, histórias, e formas estéticas da comunidade sejam aproveitadas pela cena. Compreender a teoria do teatro aplicado, bem como a análise de alguns exemplos no final do terceiro capítulo, ajudaram-me a identificar as circunstâncias favoráveis à emersão de um teatro pela comunidade, ou de uma cena que reflita a manifestação de narrativas alternativas. A fundamentação me permitiu apontar os caminhos da construção de práticas teatrais com o potencial para responder à dinâmica da comunidade-sujeito.

No capítulo 4, analiso os exemplos de três grupos teatrais, com ênfase no estudo de um deles, o veterano Nós do Morro. Os outros dois representam iniciativas mais recentes, que já nasceram inseridas no amplo leque de ações teatrais presentes em comunidades hoje: o Grupo

Código (Japeri, Baixada Fluminense), que é o resultado da extensão das ações do grupo do

Vidigal e a Cia. Marginal (Nova Holanda, Complexo da Maré), uma iniciativa que nasce no

Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), hoje Redes de Desenvolvimento da

Maré (REDES), uma organização que, assim como o Nós do Morro e o Código, surge a partir da mobilização de moradores de sua comunidade. Durante o Mestrado, no segundo semestre de 2003, iniciei meu trabalho de campo no Nós do Morro, acompanhei os ensaios do 13

espetáculo Burro sem Rabo, assisti aulas para crianças e adolescentes e fiz entrevistas com os diretores do grupo, atores/multiplicadores e alunos. As visitas semanais me permitiram uma aproximação com o grupo, a compreensão de sua trajetória e métodos de trabalho. As informações colhidas durante aquele período estão presentes em minha dissertação e também no presente trabalho.

Depois, ao longo do Doutorado, retomei a pesquisa em campo, acompanhando os ensaios de Os Dois Cavalheiros de Verona (2006), espetáculo que tive o prazer de ver encenado no Casarão do Vidigal, no Teatro e em Londres, no

Barbican, por ocasião de minha estadia na Inglaterra. Entre agosto de 2006 e março de 2007, a convite do Nós do Morro, atuei como colaboradora do grupo na área de coordenação de cursos. Esta aproximação se por um lado foi muito positiva, porque passei a compreender com olhos de quem está “de dentro” a realidade do grupo, de outro embaraçou o meu trabalho como pesquisadora. Optei por manter uma razoável distância entre mim e o meu “objeto”.

Foi em 2006, que conheci o Grupo Código, de Japeri, que na época já representava um orgulho para o Nós do Morro. O Código nasceu do encontro entre integrantes do grupo do

Vidigal e jovens artistas da Baixada Fluminense, história que será melhor contada no capítulo

4. As duas vezes em que estive em Japeri fui levada pela artista facilitadora do Nós do Morro,

Miwa Yanagizawa. Ela havia supervisionado os trabalhos do grupo e dirigido suas montagens. Na primeira visita, em 2006, passei o dia em Japeri e assisti à noite a estreia do espetáculo Censura Livre; na segunda, em 2007, assisti a montagem de Do lado de cá. Nas ocasiões, além de conferir o impacto da iniciativa na comunidade, que já reconhecia e frequentava o espaço cultural criado pelo grupo, também realizei entrevistas com Miwa e os jovens atores do Código. Percebi que seria importante incluí-lo na pesquisa, primeiro por se tratar de uma “cria” do Nós do Morro, segundo por ele estar desenvolvendo um processo muito semelhante ao do grupo do Vidigal, baseando sua pesquisa cênica em temas 14

provenientes de sua comunidade, e terceiro porque me emocionei com a sua valentia; constatei que naquele espaço tão atacado pelas privações estruturais, respirava o teatro.

Em 2007, após a experiência intensa no Nós do Morro, senti a necessidade de me afastar e procurar outras iniciativas de teatro no âmbito dos projetos sociais ofertados naquele momento. Não tinha certeza o que incluiria na pesquisa, mas comecei a investigar outras organizações. Visitei o AfroReggae, instituição mais reconhecida por seu trabalho musical, e conheci o seu grupo de teatro. Na época, a experiência me pareceu ainda principiante. Decidi então retornar a Maré, agora como pesquisadora, e ver o que acontecia por lá na área teatral.

Já conhecia o projeto de pré-vestibular e o de dança promovido pelo Centro de Estudos e

Ações Solidárias da Maré (CEASM), hoje Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES), mas tive a feliz surpresa de encontrar também por lá a Cia. Marginal, que naquele momento ensaiava o espetáculo Qual é a nossa cara?. Visitei os ensaios do grupo uma vez por semana entre julho e setembro de 2007, quando estreou a peça na Casa de Cultura da Maré. Durante este período realizei entrevistas com os atores e também com a sua diretora Isabel Penoni.

O encontro com a Cia. Marginal foi curioso, eu havia acabado de assistir Do lado de cá, em Japeri, que trazia a comunidade como protagonista da cena, e novamente na Maré, me deparava com a mesma escolha. Em Qual é a nossa cara?, a favela de Nova Holanda, uma das que compõem o Complexo da Maré, inspirava dramaturgia e encenação. As duas iniciativas também tinham em comum o fato de terem surgido a partir do encontro entre artistas “de fora” e jovens das comunidades. As situações eram bem semelhantes à vivida pelo

Nós do Morro na década de 80 e esses foram, sem dúvida, alguns dos motivos que me levaram a incluir o Grupo Código e a Cia. Marginal neste trabalho.

A partir dos três exemplos abordo o conceito do teatro pela comunidade, como resultado do respeito à ética e a estética da comunidade-sujeito, mas problematizo o tema, na medida em que a realidade dos projetos sociais/artísticos hoje, como falamos antes, desafia os 15

“vetores de baixo” a transitar pelas tramas das “novas redes de sociabilidade”, resguardando os interesses do “território da luta”.

Afinal, será possível para a favela/comunidade como palco e personagem construir narrativas alternativas ao pensamento único, apresentando ao mundo a sua versão, com a sua voz, tomando as rédeas de seu destino e assumindo-se como dona de sua história?

Retomo as imagens gravadas em minha memória, um espaço improvisado, repleto de gente vibrante, na Maré, no Vidigal, ou em Japeri, uma emoção rara e arrebatadora no encontro entre o palco e a plateia, aquela que eu havia experimentado pela primeira vez ainda menina. Este trabalho representa mais do que o resultado do curso de Doutorado, a conclusão de um ciclo de vida. Foi o meu afeto pelo teatro, pelas pessoas que encontrei e com as quais trabalhei no “território da luta” que me estimularam a seguir em frente e chegar até aqui.

16

2- FAVELA – O TERRITÓRIO DA LUTA.

Acho que devemos ser (cautelosamente) pessimistas em nossos diagnósticos, mas (severamente) otimistas em nossas esperanças.2

Zygmunt Bauman

2.1– Desenvolvimento e globalização – duas promessas desencantadas.

A descoberta de uma política socioeconômica que garanta a todos os povos e nações uma perspectiva mais positiva para o futuro, capaz de garantir a superação do quadro de pobreza global, é o principal desafio para o mundo contemporâneo. As previsões mais otimistas resistem diante de um cenário que anuncia um futuro mais ameaçador do que promissor. A “era” do desenvolvimento fracassou na ideia de erradicar a pobreza, o atual modelo socioeconômico fracassa na promessa de que o livre comércio, a privatização e as leis do mercado distribuiriam a riqueza internacionalmente. Tanto o desenvolvimento quanto a globalização mais prometeram do que cumpriram. A “boa vontade” dos países ricos continua sendo desafiada a construir um mundo que seja bom para todos. Aos mais pobres permanece também um mesmo desafio: cultivar um estado de luta capaz de modificar o que está estabelecido.

A primeira promessa desencantada, a do desenvolvimento, foi feita logo após o fim da

Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos ganharam o centro do mundo e decidiram deixar clara esta posição. A posse do Presidente Truman em 1949 marcou o início da “era do desenvolvimento”. Em 20 de janeiro daquele ano, ele anunciou ao mundo: “É preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços científicos e o nosso progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso

2 BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 17

das áreas subdesenvolvidas.”3 Pela primeira vez, a partir deste discurso histórico, o mundo estava dividido entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos; nas décadas seguintes os

Estados Unidos e a Europa ditaram como o resto do planeta devia se organizar econômica, política e culturalmente. A estratégia da doutrina Truman era “desenvolver” os segundos pelos primeiros. De acordo com Gustavo Esteva:

Naquele dia, dois bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. Em um sentido muito real, daquele momento em diante, deixaram de ser o que eram antes, em toda a sua diversidade, e foram transformadas magicamente em uma imagem inversa da realidade alheia: uma imagem que os diminuiu e os enviou para o fim da fila.4

A partir daquela data uma enorme indústria do desenvolvimento surgiu, as organizações do mundo desenvolvido começaram a ir para os lugares subdesenvolvidos para “ajudar” a elevar o nível daquelas áreas consideradas atrasadas, por meio das políticas do desenvolvimento. Apostar nas forças produtivas e buscar ajuda externa em capital e tecnologia para alimentar o parque industrial tornaram-se a tônica da economia e da política a partir daquele momento. A industrialização seria o principal caminho para a superação do subdesenvolvimento dos países da América Latina. No Brasil, com a chegada de Juscelino

Kubitschek ao poder em 1956, a chamada fase desenvolvimentista ganhou vapor por meio do

Plano de Metas, que se por um lado modernizou a indústria, de outro provocou um forte endividamento externo.

Na África, as políticas desenvolvimentistas envolviam projetos em diversas áreas, desde o controle da natalidade até projetos de desenvolvimento rural. No momento em que muitos ganhavam a independência, outro tipo de dependência começava a se construir. As estratégias para o desenvolvimento incluíam empréstimos do Fundo Monetário Internacional

3 ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. p. 59-60 In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. 4 Ibidem, p. 60. 18

(FMI), assim como a presença do Banco Mundial nas economias. Como afirmou Eduardo

Galeano:

Nascido nos Estados Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos Estados Unidos, o Fundo opera, de fato, como um inspetor internacional. (...) O FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda Guerra o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional.5

Paralelo a isso, organismos filantrópicos e organizações não governamentais (ONGs), como são hoje bem conhecidas e que têm exercido um crescente papel nas sociedades em todo o mundo, ganharam força por meio de projetos intervencionistas em países do Sul. As relações entre Norte e Sul passaram a ser formuladas de acordo com este modelo desenvolvimentista, que segundo Wolfgang Sachs: “Forneceu um marco de referência fundamental para aquela mistura de generosidade, chantagem e opressão que caracterizou as políticas dirigidas ao Sul”.6

Mas, embora a “era” do desenvolvimento tivesse inspirado diversas maneiras de intervir nas situações de vida das populações dos países subdesenvolvidos, depois de quatro décadas, como explica Sachs, ela entrou em declínio. Segundo o autor, a maioria das condições históricas que deram origem à perspectiva desenvolvimentista deixou de existir. A “era” do desenvolvimento afirma Sachs: “Entrou em declínio porque as premissas que lhe serviram de

5 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 29a.edição. p. 239. 6 SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 11. Um bom exemplo desta relação entre Norte e Sul foi a Revolução Verde, cuja proposta era transferir pessoas da chamada “agricultura de baixa produção” para uma integração com a economia nacional. De acordo com essas políticas os “experts” do Norte planejaram como mudar rapidamente o Sul através da imitação das soluções da agricultura, especialmente as dos Estados Unidos. Como explica a professora Márcia Pompeo Nogueira em Teatro para o Desenvolvimento e sua contribuição (Revista Ouvir e Ver – no prelo), o modelo imposto não era compatível com o conhecimento e recursos existentes. O conhecimento das sociedades tradicionais aprendido em anos de vida ligados à terra foi invalidado. Nogueira explica que o efeito desta política em zonas rurais foi devastador, o sistema de “baixa produção” dos pequenos produtores, que plantavam para sua família e comunidade fora substituído pela agricultura industrial. Tendo excluído o pequeno produtor, a conseqüência deste desenvolvimento economicamente orientado foi o aumento de pobreza. Ao anular a participação das populações ou comunidades nos processos de formulação e implementação dos projetos, as políticas desenvolvimentistas cavaram, em muitos casos, o seu próprio fracasso. 19

base foram superadas pela história”.7 O progresso dos países industrializados, principalmente dos Estados Unidos, não garantiu um futuro melhor, ao contrário, já existe bastante evidência de que essa corrida levou a um abismo. A difícil situação ecológica que vive o mundo deixa bastante claro que as sociedades “avançadas” não são modelo que se preze. Também a garantia aos americanos de “uma visão reconfortante de uma ordem mundial na qual eles estariam à frente”8 foi abalada.

De acordo com Sachs, por mais de quarenta anos o desenvolvimento foi uma arma na competição entre sistemas políticos, com o fim do confronto Leste-Oeste, o projeto de

Truman perdeu o vapor; o mundo se tornou cada vez mais policêntrico; hoje, muito mais do que nas sedes de governo ou nos parlamentos, o destino das economias e culturas globalizadas

é decidido nos mercados financeiros de Nova York, Chicago, Londres, Tóquio, Cingapura,

Hong-Kong, Frankfurt, Paris, e nas diretorias das empresas transnacionais.

Se houve algum avanço por parte dos países do Sul, mesmo assim os do Norte sempre estiveram em grande vantagem. Já em 1960 os países do Norte eram 20 vezes mais ricos que os do Sul. Em 1980 essa proporção havia aumentado para 46 vezes. De acordo com Sachs, o fracasso das premissas do projeto do desenvolvimento teria colaborado com o seu desmoronamento:

O ‘desenvolvimento’ foi, por várias décadas, aquela ideia que, como um altíssimo farol orientando marinheiros até a praia, guiava as nações emergentes sem sua viagem pela história do pós-guerra. Ao se libertarem do jugo colonial, todos os países do sul, fossem estes democracias ou ditaduras, proclamavam com sua aspiração primordial o desenvolvimento. Quatro décadas se escoaram e, no entanto, tanto governos como cidadãos continuam a manter seus olhos fixos naquela luz que apaga e acende à mesma distância em que sempre esteve: para atingir aquela meta, todos os esforços e todos os sacrifícios foram e são justificáveis... no entanto a luz insiste em recuar, cada vez mais na escuridão. 9

7 SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p.13. 8 Ibidem, p.13. 9 Ibidem, p.11. 20

O autor é categórico ao afirmar que: “O conceito do desenvolvimento é como uma ruína na paisagem intelectual. Ilusões e reveses, fracassos e crimes foram seus assíduos companheiros e todos eles relatam uma mesma história: o desenvolvimento não deu certo.” 10

Assim como Sachs, Oswaldo de Rivero em O Mito do Desenvolvimento11 divulga a mensagem corajosa de que os benefícios prometidos pelo desenvolvimento nos últimos cinquenta anos não atingiram a maior parte das nações. Segundo Rivero, muitos países e grande parte de suas cidades estão se transformando em “entidades caóticas ingovernáveis” sob o controle de opressores e mafiosos. O autor destaca o caso do Peru, que em 1987 permanecia preso à exportação de bens primários, endividado, cuja população dobrara e cuja situação estratégica ficara enfraquecida ao torna-se importador de energia e de alimentos.

No início do século XXI, o Peru era considerado pelo Banco Mundial um dos países mais pobres do mundo, com mais de 40% da população vivendo com renda menor que dois dólares por dia. De acordo com Rivero, a falta de entrosamento na economia global não seria uma característica exclusiva do Peru. Outros países da América Latina, Caribe, África e Ásia têm vivido uma gradativa situação de “disfunção e marginalidade mundial”.12 Até 2020 estima-se que a população dos países pobres terá quase dobrado e será majoritariamente urbana. Rivero atenta para o perigo de que:

A menos que haja uma queda drástica e sem precedentes da taxa de natalidade, e um aumento também sem precedentes na disponibilidade de alimentos energia, água e empregos, grande parte da população do mundo subdesenvolvido viverá em megalópoles caóticas com milhões de pobres desempregados, subnutridos, cercados de poluição e violência.13

10 SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 12. 11 RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. 12 Ibidem, p.10. 13 RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.p. 186. 21

Na América Latina, países como Bolívia, Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua e Peru já são os mais afetados pela falta de segurança alimentar. Esses países, onde o abastecimento de alimentos é ameaçado por altas taxas de expansão da população urbana, explica Rivero:

“Não conseguirão importar cada vez mais alimentos com as reduzidas receitas obtidas com suas exportações primárias e de manufaturas pouco intensivas em tecnologia.”14 O grande poder de penetração das empresas transnacionais produtoras de alimentos no comércio agrícola mundial deixaram de fora os agricultores do países pobres. De acordo com Rivero:

“Esta situação os levará a depender ainda mais da ajuda alimentar externa.”15 O destino dessas nações será o da “indigência”.

Em algumas partes do globo, como no Haiti, o presságio, infelizmente, já se confirmou.

A ilha é o cenário perfeito para o quadro descrito por Oswaldo de Rivero. A situação do Haiti, que permanecia esquecida ou silenciada há muitos anos, veio à tona em janeiro deste ano devido ao terremoto que atingiu a sua capital, Porto Príncipe, despertando os olhares do mundo inteiro para uma conjuntura que Fidel Castro definiu como: “Uma vergonha da nossa

época, de um mundo onde prevalecem a exploração e o roubo das riquezas da imensa maioria dos habitantes do planeta.”16 O Haiti foi a “menina dos olhos” da colonização francesa, teve o seu território devastado pela monocultura da cana de acúcar; entre 1915 e 1934 foi invadido por tropas norteamericanas; foi vítima de ditaduras sangrentas durante 30 anos, acumulou dívida com o FMI, viveu anos de instabilidade social e política; hoje figura em 146º lugar entre os 177 medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. Mais da metade da população vive com menos de US$ 1 por dia, e 78% com menos de US$ 2.

Desmatadas, apenas 2% das florestas do país estão de pé; com as terras afetadas por anos de queimas e desmatamento, o país importa a maior parte dos alimentos que consome. A ajuda

14 Ibidem, p.190. 15 Ibidem, p.190. 16 Mesmo afastado da política o líder cubano escreveu carta à imprensa onde consta a declaração. Fonte: Cuba abre seu espaço aéreo aos EUA. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 16/01/2010. Mundo. P. 28. 22

humanitária que agora trabalha nos escombros de uma tragédia provocada pelo desastre natural acabou atraindo a atenção também para outro desastre, o provocado por séculos de produção de pobreza, repressão, opressão e racismo.

A verdade é que enquanto em menos de cem anos a Europa e os Estados Unidos quase acabaram com a sua pobreza, em vários países ela se tornou hereditária. Contudo, a situação de atraso tecnológico e pobreza da América Latina ainda é boa se comparada com a de muitos países da África, Ásia e Oriente Médio. Hoje, alerta o economista Joseph Stiglitz, diante da variedade de estatísticas e histórias que descrevem os países “em desenvolvimento”, algumas menos promissoras, outras mais esperançosas, é importante não esquecer que: “Sucesso significa desenvolvimento sustentável, equitativo e democrático que tenha seu foco na melhoria dos padrões de vida e não apenas no PIB medido.”17 O autor nos lembra que nem sempre crescimento econômico significa desenvolvimento social. Ao contrário, em muitos lugares, o crescimento tem sido frequentemente acompanhado pelo aumento da pobreza. Na

América Latina, de 1981 a 1993, enquanto o PIB aumentou 25%, a parte da população que vivia com menos de 2,15 dólares por dia aumentou de 26,9% para 29,5%. O economista adverte: “Se o crescimento econômico não é compartilhado por toda a sociedade, então o desenvolvimento fracassou.”18

O Brasil, que vem sendo considerado por muitos como a caminho de se tornar uma potência econômica mundial, amarga números preocupantes em relação à distribuição de renda. Em 2007, os mais ricos do país, 1% da população (cerca de 560 mil domicílios) detinham 12,5% da renda familiar; já os 50% mais pobres, que representam 28 milhões de

17 STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117. O produto interno bruto (PIB) representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região, que pode ser um país, durante um período determinado (mês, trimestre, ano, etc). O PIB é um dos indicadores mais utilizados na macroeconomia com o objetivo de mensurar a atividade econômica de uma região. 18 Ibidem. p. 118. 23

domicílios, ficavam com apenas um pouco mais: 14,7% do bolo.19 Recentemente um relatório apresentado na abertura do 5o. Fórum Urbano Mundial da Organização das Nações Unidas

(ONU), no Rio de Janeiro, revela que cinco cidades brasileiras estão entre as mais desiguais do mundo, demonstrando as maiores diferenças de renda entre ricos e pobres do país.20 O documento intitulado O Estado das Cidades do Mundo 2010/2011: Unindo o Urbano

Dividido também mostra que o Brasil é o país com a maior distância social na América

Latina.

Outra recente pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) também não revela dados muito positivos. O levantamento intitulado Síntese dos

Indicadores Sociais mostra que quase a metade das crianças e jovens de até 17 anos estava em situação de pobreza em 2008, 44,7%, o equivalente a cerca de 11 milhões de pessoas.21 No início de 2010, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura

(UNESCO) divulgou resultados de uma pesquisa que mostrou que, embora programas governamentais como o Bolsa Família, o Fome Zero e o Brasil Alfabetizado tenham ajudado a melhorar os índices na área da educação, ainda assim, estes avanços não foram suficientes para tirar o país de uma posição intermediária no continente. O relatório Educação para

Todos, divulgado pela UNESCO mostra que a baixa qualidade do ensino nas escolas

19 Fonte: ALMEIDA, Cássia; LINS Letícia. Menos pobre, porém tão desigual. Jornal O Globo, Rio de Janeiro 23/08/2009, Economia. P. 29-30. A informações trazidas pela reportagem estão apoiadas no estudo da pesquisadora, economista Sonia Rocha (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade) com dados dos censos demográficos de 1970, 1980 e Pnads ( Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) nos anos seguintes; pesquisas do IBGE e o estudo do pesquisador Marcelo Néri, no Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, com dados do Censo, Pnad e Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE. 20 As cinco cidades são: Goiânia (10a.), (13a.), Fortaleza (13a.), Brasília(16a.) e Curitiba (17a.) consideradas pela ONU cidades também com alto índice de desigualdade, o Rio de Janeiro aparece na 28a. posição e São Paulo na 39a. posição. Na pesquisa nove municípios da África do Sul lideram o ranking. As capitais da Nigéria, Etiópia, Colômbia, Quênia e Lesoto estão também entre as mais desiguais. No total foram analisadas 138 cidades de 63 países em desenvolvimento. Fonte: Cidades brasileiras integram a lista das mais desiguais. Disponível em: São Paulo, 19 de marco de 2010. Acesso em: 20/03/2010. 21 Pelos critérios da pesquisa, um pobre tem um rendimento domiciliar per capita de até meio salário mínimo por mês, ao passo que o extremo pobre tem uma renda de até um quarto do mínimo. O salário mínimo em 2008 era de R$ 415,00. O levantamento apontou que 18,5% dos jovens de até 17 anos residiam em uma casa com renda per capita de até um quarto do salário mínimo e, 26,2% tinham uma renda por pessoa de até meio salário mínimo ao mês. Fonte: Quase metade dos jovens do país esta em situação de pobreza, Mostra IBGE. Disponível em: Publicada em 09/10/2009. País – indicadores sociais. Acesso em: 10/10/2009. 24

brasileiras ainda deixa milhares de crianças para trás e é diretamente responsável por manter o país na 88ª posição no Índice de Desenvolvimento Educacional (IDE), atrás de países mais pobres como Paraguai, Equador e Bolívia.22

Também em 2010, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou dados preocupantes em relação à área da Educação. De acordo com os resultados da pesquisa

Juventude e Políticas Sociais no Brasil23, mais da metade dos jovens entre 15 e 17 anos não está cursando o ensino médio, etapa de ensino adequada para esta faixa etária, e apenas 13% dos jovens de 18 a 24 anos freqüentavam o ensino superior em 2007. Os fatores que mais interferem nas oportunidades de acesso à Educação são o local de moradia, a cor da pele e o nível de renda.

Mesmo assim, a última lista divulgada pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD) mostrou que o país melhorou suas condições socioeconômicas em

2007, frente a 2006, tendo conquistado mais pontos no Índice de Desenvolvimento Humano

(IDH) 24. Com o índice de 0, 813, ocupando a 75a. posição, o Brasil se manteve na categoria de “desenvolvimento humano elevado”, mas permanece atrás de países como Chile,

Argentina, Uruguai, Cuba, México, Venezuela e Panamá.

22 Fonte: Unesco: Brasil avança na educação, mas segue em posição intermediária. Disponível em: Publicada em 20/01/2010. Educação. Acesso em: 20/01/2010. A reportagem revela que em 2000, mais de 160 países assinaram o compromisso Educação para Todos, que previa o cumprimento de seis metas incluindo a universalização do ensino fundamental, a redução da taxa de analfabetismo e a melhoria da qualidade do ensino a serem cumpridas até o ano de 2015. Ao analisar o cumprimento das quatro principais metas estabelecidas pela UNESCO, constata-se que o Brasil tem um bom desempenho no que se refere à alfabetização, ao acesso ao ensino fundamental e à igualdade de gênero. Mas tem um baixo desempenho quando se analisa o percentual de alunos que conseguem passar do 5° ano do ensino fundamental. O relatório aponta que o Brasil apresenta alta repetência e baixos índices de conclusão da educação básica. Na região da América Latina e Caribe, a taxa de repetência média para todas as séries do ensino fundamental é de 4,4%. Mas no Brasil, o índice é de 18,7% - o maior de todos os países da região. 23 Fonte: Mais da metade dos jovens de 15 a 17 anos não esta cursando o ensino médio. Disponível em: Publicada em 19/01/2010. Educação. Acesso em: 20/01/2010. A pesquisa traz uma análise profunda das políticas públicas voltadas para os jovens no Brasil. Foi publicada em livro pelo IPEA em 19/01/2010. 24 O Índice que serve como indicador para o bem-estar humano é calculado anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O PNUD, instituição da ONU voltada para o desenvolvimento, calcula o IDH a partir do Produto Interno Bruto per capita, longevidade (expectativa de vida), e educação (índice de analfabetismo e taxa de matrícula dos estudantes). 25

Uma contagem planetária da pobreza realizada pelo Banco Mundial em 2000 revelava que o número total de seres humanos vivendo com menos de dois dólares por dia chegava a

2,8 bilhões. Isto sem contar com aqueles que viviam com três ou quatro dólares por dia, o que somaria um total de cerca de quatro bilhões de pessoas, ou seja, a maioria da humanidade.25

São estatísticas que não aparecem com muita freqüência nos veículos da mídia, mais interessados em promover massivamente o espírito do consumo e da competitividade.

Em setembro de 2008, quando a economia norteamericana entrou em colapso após a quebra do Banco Lehman Brothers, e o mundo viu desmoronar, assim como havia testemunhado a queda das torres gêmeas, a estabilidade da maior economia do planeta, discutir as leis que regem a macroeconomia tornou-se pauta de todo o dia. O abalo nos

Estados Unidos trouxe consequências para todas as economias, uma onda de instabilidade tomou conta do mundo. Até hoje, o assunto domina diversas esferas, como a das lideranças políticas, dos fóruns econômicos ou nas manchetes das organizações de comunicação. A crise, como ficou mais popularmente conhecida, ganhou também lugar no vocabulário do dia a dia das pessoas, na fala da dona de casa, na roda de bar, entre os jovens estudantes. De repente, começamos a entender que o que acontecia lá, no hemisfério norte, entre os países desenvolvidos, de alguma forma também nos afetaria.

Em algum instante do 15 de setembro de 2008, ou dos dias que se seguiram, ampliamos a nossa percepção sobre outra face da globalização, não aquela que se refere à circulação de informação e cultura, da Internet e outras formas de difusão de ideias, mas a outra, em relação

às leis que regem a economia global, e que, naquela data, revelaram às pessoas “comuns” o seu potencial de interferir nas simples relações de trabalho/emprego, na mesa das famílias, no cotidiano de todos nós.

25 Dados do Relatório de desenvolvimento do Banco Mundial 2000/2001 apud Oswaldo de Rivero. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 75. Este mesmo relatório revelava que o Brasil, atualmente considerado uma das economias mais promissoras do mundo, possuía 28% de sua população vivendo com menos de dois dólares por dia. 26

Todas as noites nos noticiários, manchetes destacavam os números da bolsa de valores das principais capitais mundiais, o valor das moedas, o desafio daquele que iria comandar a maior economia do mundo, as declarações e os semblantes preocupados dos governantes.

Nós, espectadores, nos perguntávamos quando e de que forma a “crise” chegaria em nosso país, se estávamos ou não “preparados” para enfrentá-la; quase sem sentir questões, até então submersas sobre o difícil assunto da economia, começaram a emergir no vocabulário leigo de todos nós. Perguntas até então não formuladas passaram a despertar interesse: Como a quebra de um banco americano pode nos afetar? Qual o controle que exerce a ordem econômica mundial sobre as nossas vidas? Qual a relação que existe entre o “mercado financeiro desregulado”, entre os acordos das corporações multinacionais e as estatísticas assustadoras sobre a pobreza calculadas pelos cientistas especializados? Ou ainda, qual a relação entre o simples toque no teclado de um especulador da bolsa e os quatro milhões de habitantes, moradores das três maiores favelas da Cidade do México?

A globalização, a segunda promessa desencantada, é considerada a culminância de um processo de internacionalização do mundo capitalista. No fim da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países mantinha um controle rigoroso sobre as transações internacionais de capital. Instituições como o Bretton Woods, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o

Banco Mundial foram criadas para facilitar o livre comércio e os investimentos internacionais. Já com o final da Primeira Guerra Mundial cresceu a interdependência global, o mundo aprendeu a criar instituições internacionais. A primeira delas foi criada após do grande primeiro conflito, a Liga das Nações, que fracassou na sua missão de preservar a paz.

Veio a Segunda Guerra e criou-se a Organização das Nações Unidas. As conferências de

Bretton Woods, definindo o Sistema Bretton Woods de gerenciamento econômico internacional, estabeleceram em 1944 as regras para as relações comerciais e financeiras entre os países mais industrializados do mundo. O sistema foi o primeiro exemplo, na história 27

mundial, de uma ordem monetária totalmente negociada, tendo como objetivo governar as relações monetárias entre Nações-Estado independentes. Preparando-se para reconstruir o capitalismo mundial delegados de todas as 44 nações aliadas encontraram-se em Bretton

Woods, New Hampshire, para a Conferência monetária e financeira das Nações Unidas. Os delegados assinaram o Acordo de Bretton Woods (Bretton Woods Agreement) definindo um sistema de regras, instituições e procedimentos para regular a política econômica internacional; também estabeleceram o Banco Internacional para a Reconstrução e

Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction and Development, ou BIRD) (mais tarde dividido entre o Banco Mundial e o "Banco para investimentos internacionais") e o

Fundo Monetário Internacional (FMI). Essas organizações tornaram-se operacionais em 1946, depois que um número suficiente de países ratificou o acordo. Segundo o economista Joseph

Stiglitz, na época, boa parte do mundo em desenvolvimento ainda estava colonizada: “Essas instituições eram clubes dos países ricos, e sua governança refletia esta posição. Eles estabeleceram regras da ‘velha turma’ para aumentar o seu controle.” 26

O novo sistema passou a facilitar a livre movimentação do capital. Como conseqüência da crise do petróleo de 1973, cresce a necessidade de se criar um “ajuste estrutural” (ou um ajuste neoliberal), que favoreça a internacionalização das empresas e dos meios de produção; ocorre uma rápida expansão dos mercados financeiros. Na década de oitenta, com o incentivo das lideranças de Ronald Reagan e Margaret Thatcher a livre movimentação do capital se tornou um processo irreversível. A queda do bloco comunista e o fim da Guerra Fria também abriram oportunidades para o movimento. A morte do comunismo significava que os governos podiam deixar de lado as batalhas ideológicas para se voltar aos interesses do capital.

26 STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.81. 28

Em 1989, a reunião que ficou conhecida como o Consenso de Washington serviu para orientar o processo de globalização econômica e instituir de vez o “fundamentalismo de mercado.” O famoso consenso, que Noam Chomsky chama de “Consenso [neoliberal] de

Washington”, traçou um conjunto de princípios orientados para o mercado, traçados pelo governo americano e pelas principais instituições financeiras internacionais. As regras ditadas por ele, e que posteriormente viriam a influenciar decisões inclusive do governo brasileiro27, incluíam: a liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação de preços pelo mercado

(“ajuste de preços”), fim da inflação (“estabilidade macroeconômica”) e privatização. Para

Noam Chomsky crítico radical do neoliberalismo, o evento teria defendido a ideia de que os

“governos devem ficar fora do caminho.”28

No início da década de 90, os mercados financeiros tornaram-se, de fato, globais. A globalização trouxe transformações definitivas para os mecanismos econômicos e sociais em todos os cantos do mundo. De acordo com George Soros:

A capacidade do capital de movimentar-se para outros lugares solapou a capacidade do Estado de exercer controle sobre a economia. (...) Os objetivos dos governos Reagan, nos EUA e Thatcher, no Reino Unido, consistiam em reduzir a capacidade do Estado de interferir na economia, e a globalização foi muito útil para este propósito.29

Um dos mais importantes conflitos que se coloca em discussão quando o assunto é globalização é a relação entre o papel do Estado (governos) e o dos mercados. Soros, embora defenda que a globalização é um processo desejável sobre vários aspectos, como a maior eficiência da empresas privadas do que do Estado na criação de riquezas, é critico quando destaca o fato de que muitos países menos desenvolvidos foram atropelados pela globalização

27 No Brasil, o governo Fernando Henrique Cardoso iniciou reformas com base nas decisões do Consenso. As medidas favoreceram a passagem do controle do Estado para o controle da livre concorrência (livre-mercado). Foi um período marcado por privatizações de empresas estatais; a desvalorização da moeda nacional, redução da renda per capita, com o aumento da concentração de renda na mão de poucos. 28 CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 22. 29 SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 45. 29

sem o amparo de redes sociais de segurança. Segundo o autor a globalização provocou uma má distribuição entre bens privados e públicos:

Os mercados são eficazes na criação de riquezas, mas não servem para cuidar de outras necessidades sociais. (...) Os mercados servem para facilitar a livre troca de bens e serviços entre os participantes voluntários, mas não são capazes, sozinhos, de cuidar de necessidades coletivas, como lei e ordem, e da própria manutenção dos mecanismos de mercado em si. Tampouco são competentes para garantir a justiça social. Esses bens públicos dependem, por sua natureza, de processos políticos. 30

De acordo com George Soros os bens públicos representam aspectos como a preservação da paz, o alívio da pobreza, garantia à educação e saúde, a proteção ao meio ambiente, a melhoria das condições de trabalho ou a defesa dos direitos humanos. Aspectos que, não apenas segundo Soros, mas de acordo também com outros autores, estão sendo negligenciados pela ordem econômica global. A distorção está no fato de que o desenvolvimento econômico, que favoreceu a produção de bens privados, assumiu uma posição à frente do desenvolvimento social, isto é, o fornecimento de bens públicos. Embora seja um defensor da livre circulação de capitais Soros admite que as regras do jogo da economia global lançaram para o escanteio as preocupações sociais e demonstraram a sua incapacidade para atender as necessidades essenciais das populações. O sistema neoliberal expandiu suas relações monetárias para todas as áreas da esfera pública: educação, saúde e serviços sociais.

Para Noam Chomsky as novas regras ditadas pelos “arquitetos do Consenso de

Washington”, teriam levado à “diminuição do Estado”, ou seja, “a transferência do poder decisor da arena pública para outros lugares: para as pessoas na retórica do poder; para as tiranias privadas, no mundo real.”31 Segundo Chomsky, a dinâmica do neoliberalismo atende aos interesses da tirania privada e promove o enfraquecimento do papel do Estado. As

30 Ibidem, p. 47. 31 CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. pg. 144 30

doutrinas neoliberais, afirma ele: “Debilitam a educação e a saúde, aumentam a desigualdade social e reduzem a parcela do trabalho na distribuição da renda.”32

Joseph Stiglitz, ex-diretor do Conselho de Assessoria econômica do presidente Clinton e ex-vice-presidente do Banco Mundial, reconhece que a globalização não beneficiou tanta gente como poderia e deveria. Em A globalização e seus malefícios33 e em Globalização como dar certo34, Stiglitz propõe uma série de reformas que poderiam garantir à humanidade um planeta mais democrático, menos desigual e saudável. O autor afirma que a globalização poderia ter funcionado para os países mais pobres, se os mais ricos tivessem construído um sistema econômico e político internacional baseado em princípios e valores destinados a promover o desenvolvimento nos países pobres, ao contrário de terem criado um regime “de comércio global que ajudou seus interesses especiais empresariais e financeiros.”35 Stiglitz, embora otimista sobre a possibilidade da criação de um outro mundo, é categórico ao afirmar que: “A globalização tem o potencial de trazer enormes benefícios para as populações tanto do mundo desenvolvido, quanto para o mundo em desenvolvimento. Mas há provas avassaladoras de que ela não tem estado à altura desse potencial.”36

Entre as principais preocupações dos fóruns antiglobalizantes estão: as regras do jogo são projetadas para beneficiar os países industrializados avançados; a globalização promove valores materiais acima de outros valores, tais como a preocupação com o meio ambiente e a própria vida; o modo como a globalização foi administrada tirou grande parte da soberania dos países em desenvolvimento e de sua capacidade de tomar decisões em áreas essenciais que afetam o bem estar de seus cidadãos.

32 Ibidem. p.. 36. 33 STIGLITZ, Joseph E. A globalização e seus malefícios. A promessa não cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura, 2002. 34 STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 35 Ibidem, p. 43. 36 Ibidem. p.. 63. 31

O fato que ganha maior destaque nas discussões entre os críticos da globalização é o número crescente de pessoas vivendo na pobreza. Um estudo chamado Vozes dos pobres37, realizado pelo Banco Mundial, enquanto Stiglitz ainda era seu economista-chefe, entrevistou

60 mil pobres em sessenta países diferentes a fim de obter informações sobre como eles percebiam a sua situação de vida. Os depoimentos enfatizaram a renda inadequada, os sentimentos de insegurança e impotência. Stiglitz explica que a globalização expôs os países em desenvolvimento a riscos maiores, mas, diferente do que acontece nos países desenvolvidos as garantias dos mercados contra esses riscos são ausentes porque os governos não conseguem oferecer os direitos básicos do cidadão.

Por isso, argumenta Stiglitz, o papel central dos governos na promoção do desenvolvimento é fundamental. O economista explica, que mesmo no caso dos Estados

Unidos, cujo desenvolvimento é muitas vezes considerado o resultado de um capitalismo desenfreado, os governos sempre assumiram um papel central nas finanças: “O sucesso dos

Estados Unidos se deveu, em parte, ao papel que se governo desempenhou na promoção do desenvolvimento, na regulamentação dos mercados e na oferta de serviços sociais básicos.”38

A grande questão que se põe em jogo no caso dos países em desenvolvimento é se eles possuem poder comparável aos dos governos dos países desenvolvidos. Se eles são fortes o suficiente diante da agressividade do mercado. Stiglitz exemplifica:

Os governos que tentam controlar os fluxos de capital podem se ver impotentes de fazê-lo, na medida em que os indivíduos encontram formas de driblar as regulamentações. Um país talvez queira elevar o salário mínimo, mas descobre que não pode porque as empresas estrangeiras que nele operam decidirão mudar-se para um país com salários mais baixos. A incapacidade dos governos de controlar as ações de indivíduos e empresas é

37 De acordo com Stiglitz, o projeto Vozes dos pobres foi realizado enquanto ele era economista-chefe do Banco Mundial, como parte da preparação para o relatório decenal sobre pobreza (World Development Report 2000/20001: Attacking Poverty). Ele implicava num esforço de compreender a pobreza do ponto de vista dos próprios pobres. Os resultados foram publicados em três volumes: Can anyone hear us? (v.1); Crying out for change (v.2) e From many lands (v.3). (Washington, DC:World bank,2002). 38 STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 84. 32

cada vez mais limitada também pelos acordos internacionais que interferem no direito dos Estados soberanos de tomar decisões.39

Segundo Stiglitz, o Estado-nação que foi o centro do poder político econômico ao longo dos últimos 150 anos está sendo espremido hoje; de um lado pelas forças da economia global e, de outro pelas exigências políticas de devolução do poder: “A globalização – a integração estreita dos países do mundo – resultou na necessidade de ação mais coletiva, da ação conjunta de povos e países para resolverem seus problemas comuns.”40 De fato, a globalização integrou o mundo, mas ainda não criou instituições globais democráticas o suficiente para tirar, sobretudo os países mais pobres, das armadilhas que ela mesma preparou.

A crise econômica mundial deflagrada em 2008 e as medidas de intervenção adotadas pelos governos dos Estados Unidos e pelos países europeus são a prova da necessidade da mão visível do Estado-nação.41 Curiosamente, naquele momento em que o feitiço virava contra o feiticeiro, e o modelo econômico patrocinado principalmente pelos EUA desafiava a sua estabilidade econômica, apelou-se não só para a mão forte do Estado, como também para a solidariedade entre os governos dos países que mandam no mundo. A crise estremeceu a dominância econômica dos EUA; em anos que ainda estão por vir, eles terão que lidar com os desafios que se impuseram à sua realidade.

O momento de abalo é também o de reavaliação. Especialistas no assunto, como

Stiglitz, antes mesmo do colapso americano já anunciavam a necessidade de mudanças no sistema financeiro global. A reforma sugerida pelo economista resolveria, segundo ele, um

39 Ibidem, p. 84. 40 Ibidem, p. 85. 41 A crise atual, precipitada por uma bolha no mercado de imóveis, é considerada por George Soros como o clímax de uma superexpansão (super-boom) ocorrido nos últimos 60 anos. Segundo Soros, os processos de expansão-contração (boom-bust ) giram ao redor do crédito, e envolvem uma concepção erronea, que consiste na incapacidade de se reconhecer a conexão circular reflexiva entre o desejo de emprestar e o valor das garantias colaterais. Crédito fácil cria uma demanda que aumenta o valor das propriedades, o que por sua vez aumenta o valor do crédito disponível para financiá-las. As bolhas começam quando as pessoas passam a comprar casas na expectativa de que sua valorização permitirá a elas refinanciar suas hipotecas, com lucros. Isso foi o que aconteceu nessa última crise. 33

dos maiores problemas do mundo: “A falta de fundos para promover o desenvolvimento, combater a pobreza e propiciar educação e saúde para todos.”42 Hoje cerca de 80% da população do planeta vive em países em desenvolvimento, marcados por renda baixa e alta pobreza, alto desemprego e baixa educação. A abertura das portas ao capital estrangeiro e o crescimento do PIB não quer necessariamente dizer melhoria na vida da maioria dos habitantes de um país.

Em desacordo com o Consenso de Washington, cuja política minimizou o papel do governo, enfatizou a privatização, a liberalização do comércio e do mercado de capitais,

Stiglitz defende como alternativa a retomada do poder mais ativo do Estado, tanto na promoção do desenvolvimento, como na proteção dos pobres:

Na prática, os partidários dessa visão alternativa também enfatizam mais o emprego, a justiça social e valores não materialistas, como a preservação do meio ambiente, do que aqueles que defendem um papel mínimo para o governo.43

Assim como Stiglitz, George Soros também defende maior participação dos governos como, por exemplo, através da intervenção de organismos públicos no financiamento de políticas públicas para corrigir as deformações que a globalização vem provocando.

Enquanto aguardamos que venham à tona perspectivas mais humanistas e ações que correspondam mais aos interesses da maioria da população do mundo, o cenário que descrevemos não é muito promissor. Em 2002, John Pilger escreveu:

Hoje o Banco Mundial reconhece que são poucos os países mais pobres que conseguirão atingir suas metas de redução da pobreza até 2015. Em outras palavras, os programas de “ajuste estrutural”, consistindo em privatizações, endividamento e desmontagem dos serviços públicos, empobreceram e descontentaram uma porcentagem ainda maior da população mundial. Num mundo pobre e menos desenvolvido, as pessoas percebem que existe um

42 Ibidem, p. 380. Entre as medidas propostas pelo economista estão: perdão da divida externa dos países miseráveis ate a cobrança de um imposto mundial sobre emissões de carbono e uso de combustíveis fósseis (para combater o aquecimento global), a limitação do sigilo bancário, e a criação de uma nova moeda internacional de reserva. 43 Ibidem, p.95. 34

sistema de triagem determinando se elas e suas famílias devem morrer ou continuar vivendo.44

A perspectiva de Pilger tira o fôlego de previsões mais otimistas. Para ele, por baixo da

“camada de verniz” das trocas financeiras, dos telefones celulares e lanchonetes do

McDonald`s, esconde-se outra globalização – a da pobreza: “Um mundo em que a maioria dos seres humanos nunca telefona e vive com menos de dois dólares por dia, no qual 6.000 crianças morrem diariamente de diarréia por não terem acesso à água potável.”45 Tudo indica que o atual modelo socioeconômico global pode estar caminhando, como afirmou Cristóvão

Buarque, para uma “catástrofe ética e social”.46 As duas promessas já foram desencantadas, nem as políticas desenvolvimentistas, nem os “ajustes estruturais”, baseados na mais-valia universal e no encolhimento das funções sociais e políticas dos Estados, conseguiram garantir aos cidadãos mais desfavorecidos do mundo uma realidade mais digna e humana.

É esse o mundo que não deve ficar fora do alcance de nossa visão. A queda do banco americano e os desdobramentos da crise que nos trouxe mais insegurança, incerteza e desamparo, podem ter servido para nos despertar para outra realidade: a de que mesmo que a maioria de nós viva localmente em nossas comunidades, estados ou países, fazemos parte, ao mesmo tempo, de outra comunidade, a global. Aprender a pensar sobre essa existência é indispensável para compreender as regras que regem o mundo, de que maneira elas afetam o nosso dia a dia e até que ponto somos capazes de interferir nelas. Esta tentativa de compreensão nos deixa mais próximos de possíveis respostas para a pergunta que já fizemos: afinal que relação pode existir entre o toque no teclado de um investidor da bolsa e a realidade das favelas da Cidade do México, de Luanda, de Mumbai, Porto Príncipe, Bagdá ou

Rio de Janeiro?

44 PILGER, John. Os novos senhores do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 144. 45 Ibidem, p.12. Dados extraídos pelo autor do Relatório sobre Desenvolvimento das Nações Unidas, publicado em The Guardian. (22/10/2001). 46 BUARQUE, Cristóvão. Prefácio à edição brasileira. In: SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 35

Adquirir uma consciência crítica global é também um passo fundamental na busca por alternativas capazes de, alguma forma, alterar o rumo de um processo que parece irreversível.

2.2 – Em busca da narrativa alternativa.

Uma grande cidade de algum país em desenvolvimento é o palco para um cenário no qual as deformações e contradições do mundo capitalista globalizado ficam ainda mais evidentes. Desde 1950, grandes capitais absorveram quase dois terços da explosão populacional global, a força de trabalho urbana do mundo mais que dobrou desde 1980, e a população urbana atual, de 3,2 bilhões de pessoas, é maior do que a população total do mundo em 1960. Na maior parte dessas cidades, o tamanho de suas economias tem pouca relação com o tamanho de sua população; isto quer dizer, o crescimento do número de pessoas é muito superior ao dos meios de produção e emprego.

O processo de crescimento e empobrecimento das grandes cidades é assunto do estudo de Mike Davis em Planeta Favela.47 Nele, o autor faz um diagnóstico mundial sobre o fenômeno da favelização, acentuada pela globalização neoliberal. De acordo com Davis, em países da África, América Latina, no Oriente Médio e em parte do sul da Ásia, o fenômeno da urbanização acelerada e da ausência do crescimento do emprego representa:

Uma herança da conjuntura política global – a crise mundial da dívida externa do final da década de setenta e a subsequente reestruturação das economias do Terceiro Mundo sob a liderança do FMI nos anos 80. (...) Além disso, a urbanização do Terceiro Mundo continuou em seu passo aceleradíssimo (3,8% ao ano entre 1969 e 1993) durante os difíceis anos da década de oitenta e no início dos anos 1990, apesar da queda do salário real, da alta dos preços e da disparada do desemprego urbano.48

47 DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. 48 Ibidem, p. 24. 36

Apesar da estagnação do emprego urbano e da paralisia da produtividade agrícola, a

África, por exemplo, manteve durante as últimas décadas uma taxa de urbanização anual de

3,5% a 4%. Por trás desses dados, argumenta Davis:

Existem as políticas de desregulamentação agrícola e de disciplina financeiras impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial, que continuaram a promover o êxodo da mão de obra rural excedente para as favelas urbanas, ainda que as cidades deixassem de ser máquinas de empregos.49

Os governos africanos endividados, condicionados às políticas do FMI, submeteram-se a planos que desmantelaram a produção dos camponeses de médio e pequeno porte. A redução de investimentos na infraestrutura na área rural e a desregulamentação do mercado nacional arremessaram esses produtores para um mercado global, no qual eles tinham pouquíssimas chances de competir. Ao mesmo tempo, as guerras civis crônicas, lideranças gananciosas e a desorganização econômica provocada pelos “ajustes estruturais”, colaboraram com o esfacelamento do campo.

Em consequência, embora as cidades não contassem com o investimento necessário em

“bens públicos”, como infraestrutura, saneamento, saúde e educação, começaram a receber as populações do campo, “colhendo o produto da crise agrária mundial.”50 Como afirma Mike

Davis: “A superurbanização, em outras palavras, é impulsionada pela reprodução da pobreza, não pela oferta de empregos. Essa é apenas uma das várias descidas inesperadas para as quais a ordem mundial neoliberal vem direcionando o futuro.”51 Assim como na África, em muitas partes do mundo em desenvolvimento, as forças globais empurraram a população do campo para a cidade, que desprotegida pelo Estado “diminuído”, produziu como receita inevitável a produção em massa das favelas. Segundo Davis, desde 1970 o crescimento das favelas em todo o hemisfério sul ultrapassou a urbanização propriamente dita.

49 Ibidem, p. 25. 50 Ibidem, p. 26. 51 Ibidem, p. 26. 37

O relatório The Challenge of Slums (O desafio das favelas) publicado em outubro de

2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat) é destacado por Davis como a “primeira auditoria verdadeiramente global da pobreza urbana”.52 Davis, que utilizou o relatório como fonte para seu estudo, afirma que atualmente mais de um bilhão de pessoas vivem em favelas espalhadas pelas cidades do “sul do mundo”.53 O estudo descreve os mecanismos da produção em grande escala dessas moradias precárias e delineia a sua trajetória global desde a década de sessenta até as “megafavelas” que marcam as cidades contemporâneas. Segundo Davis: “Os favelados, embora sejam apenas 6% da população urbana dos países desenvolvidos, constituem espantosos 78,2% dos habitantes urbanos dos países menos desenvolvidos, isto corresponde a pelo menos um terço da população urbana global.”54

De acordo com o UN-Habitat, os maiores percentuais de favelados do mundo estão na

Etiópia (99,4% da população urbana), no Afeganistão (98,5%) e no Nepal (92%). Em

Mumbai, 12 milhões de pessoas moram em favelas, a cidade é considerada a capital dos favelados; em Cidade do México e Daca, 9 a 10 milhões cada. As conclusões de Mike Davis sobre a realidade da favela no Brasil são contestadas por Ermínia Maricato no posfácio do livro do autor. Segundo ela, Davis teria cometido um erro ao ter atribuído ao país a proporção de 36,6 % da população urbana (51,7 milhões de pessoas) morando em favelas. Para chegar a este número o autor teria somado na conta das favelas, locatários informais, cortiços, loteamentos ilegais e moradores de rua.

De acordo com Maricato, há diferenças fundamentais no interior das diversas formas de moradia classificadas como favelas. A autora corrige Davis utilizando dados do trabalho

52 Ibidem, p. 31. 53 O autor observa que no relatório da UN-Habitat prevalece a definição clássica da favela, adotada oficialmente numa reunião da ONU em Nairobi, em outubro de 2002. Segundo ela, a favela é caracterizada por: “excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança de posse na moradia.” p. 33. 54 Ibidem, p. 34. 38

Déficit Habitacional do Brasil, elaborado pela Fundação João Pinheiro a pedido do

Ministério das Cidades, baseado em dados do Censo IBGE e da Pesquisa Nacional por

Amostra de Domicílios. Segundo este estudo, a soma dos domicílios improvisados, rústicos, que se reduzem a cômodos ou que apresentam coabitação familiar perfaz 13,2% do total dos domicílios brasileiros ou 11,2% dos domicílios urbanos. Apesar da controvérsia, Maricato não tira o mérito do livro, mas afirma que a sua revisão pretende avançar “A leitura a partir do enfoque da produção do espaço na periferia do capitalismo.”55 Davis, entretanto, é taxativo quando afirma que:

As cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deteriorização.56

As informações colhidas pelo autor são de tirar o fôlego, e deixam, a princípio, uma sensação amarga de impotência. Mas, ainda que os números sejam, de fato, assustadores, há quem acredite que existam possibilidades de mudança. O geógrafo brasileiro Milton Santos é um deles. Em Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal 57, ele propõe uma tripla leitura do mundo, segundo a qual precisaríamos observá-lo por meio de

55 Mesmo assim, afirma a autora, há uma classificação de domicílios inadequados em áreas urbanas que exigem melhorias e que apresentamos seguintes percentuais em relação aos domicílios urbanos: inadequação fundiária, 5,8%; adensamento excessivo, 7,5%; domicilio sem banheiro, 8,6%; e domicilio carente de infra-estrutura (água de rede publica e/ou rede de esgoto ou fossa e/ou energia elétrica e/ou coleta de lixo), 32,4%.A discussão é ampla. Para mais informações: MARICATO, Ermínia. Posfácio. In: DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 221. 56DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 29. O autor acrescenta ainda dados sobre o crescimento das favelas na Rússia, principalmente nas antigas “cidades de empresas socialistas” que dependiam de uma única fábrica, fechada atualmente. Em 1993, dados do Programa de indicadores urbanos da ONU citou taxas de pobreza de 80% no Azerbaijão e na Armênia. Davis observa, no entanto, que a população urbana mais pobre talvez esteja em Luanda, em Maputo (Moçambique), Kinshasa e Cochabamba (Bolivia), onde dois terços ou mais dos moradores ganham menos que o custo da nutrição mínima necessária por dia. Em Luanda, a mortalidade infantil (crianças com menos de 5 anos) foi de 320 a cada 1000 em 1993, a mais alta do mundo. Esta taxa é quatrocentas vezes maior que a menor taxa de mortalidade infantil do mundo, em Rennes, na França. p. 35. 57 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007. 39

três diferentes perspectivas: a da globalização como fábula, como perversidade e por uma outra globalização. As perspectivas que Santos nomeia de “três diferentes mundos” a rigor compreendem três maneiras de se enxergar o mundo contemporâneo. A primeira, mais fantasiosa, apresentaria o “mundo tal como nos fazem vê-lo”; a segunda, mais realista, o

“mundo como ele é”; e a terceira mais esperançosa – “por uma outra globalização”.

Na perspectiva da globalização como fábula, percepções enganosas estariam nos fazendo crer, por exemplo, em ideias como: “aldeia global” e “uniformidade”; uma empenhada em nos fazer acreditar que a difusão instantânea de notícias realmente nos informa, como se o mundo se “houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão”; a outra, nos fazendo crer que o mercado global homogeneizou, realizou o “sonho de um mundo só”, uniu o planeta, quando sabemos que na verdade ele está mais dividido do que nunca.

Na perspectiva que vê o mundo como ele é, a globalização perversa, Santos, assim como os demais autores, utiliza um discurso duro, baseado em dados que mais uma vez assustam: “Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações características do período atual, a realidade pode ser vista como uma fábrica de perversidade.”58 O autor destaca que a fome atinge 800 milhões de pessoas em todos os continentes e que os avanços na medicina não impedem que 14 milhões de pessoas morram todos os dias, antes do quinto ano de vida:

Ser pobre é participar de uma situação estrutural, com uma posição relativa inferior dentro da sociedade como um todo. (...) Vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é, também, criador de insegurança.”59

De acordo com Milton Santos entre os fatores constitutivos da globalização perversa encontra-se uma dupla tirania: a do dinheiro e a da informação:

58 Ibidem, p.59. 59 Ibidem, p. 59. 40

São duas violências centrais, alicerces do sistema ideológico que justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações, as percepções fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos totalitarismos – isto é dos globaritalismos, a que estamos assistindo.60

Para o geógrafo, a combinação nefasta entre a tirania da informação, condicionada pelos interesses apenas de certo grupo de atores globais, alguns Estados e empresas, somada a violência do dinheiro ou ao “fetichismo do dinheiro” 61 representam as bases do pensamento que ele chamou de “único” e, uma ameaça a nossa existência cotidiana.

Mesmo assim, a terceira perspectiva que Santos nos oferece como possibilidade para uma leitura contemporânea do mundo – por uma outra globalização - é bastante otimista.

Segundo ele, algumas pistas estariam apontando para os limites da evolução da globalização tal como ela é, perversa, e anunciando um novo período, de uma outra globalização:

A promessa de que as técnicas contemporâneas poderiam melhorar a existência de todos caem por terra e o que se observa é a expansão acelerada do reino da escassez, atingindo as classes médias e criando mais pobres. As populações envolvidas no processo de exclusão assim fortalecido acabam por relacionar suas carências e vicissitudes ao conjunto de novidades que as atingem. Uma tomada de consciência torna-se possível ali mesmo onde o fenômeno da escassez é mais sensível. Por isso, a compreensão do que está se passando chega com clareza crescente aos pobres e aos países pobres cada vez mais numerosos e carentes. (...) Os fenômenos a que muitos chamam de globalização e outros de pós-modernidade na verdade constituem, juntos, um momento bem demarcado do processo histórico. Preferimos considerá-lo um período. 62

Santos destaca a participação dos pobres como fundamental na passagem entre esses dois períodos. Segundo ele, aos pobres, atores vivos do drama, cuja sobrevivência depende de uma luta diária, cabe um papel determinante na produção do presente e do futuro: “A pobreza

60 Ibidem, p. 38. 61 Além do termo “fetichismo do dinheiro”, Milton Santos (em trecho que merece ser transcrito) para falar sobre o papel central do dinheiro na realidade, não só das economias globais como na vida de cada indivíduo, utiliza o conceito do “dinheiro em estado puro”. Segundo ele, não só as economias, como a vida de cada um de nós são chamadas a se adaptar a onipresença do dinheiro: “Fundado numa ideologia, esse dinheiro sem medida se torna a medida geral, reforçando a vocação para considerar a acumulação como uma meta em si mesma. Na realidade, o resultado dessa busca tanto pode levar à acumulação (para alguns) como ao endividamento (para a maioria). Nessas condições, firma-se um círculo vicioso dentro do qual o medo e o desamparo se criam mutuamente e a busca desenfreada do dinheiro tanto é uma causa como uma conseqüência do desamparo e do medo.” p. 56. 62 Ibidem, p.118. 41

é uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível.” 63 Embora as grandes cidades sejam os espaços nos quais o capitalismo globalizado propicia o contágio da pobreza, é nelas também onde podem se construir alternativas.

A cidade é um território propício à comunicação. A sociabilidade urbana cria um ambiente que favorece o estado de luta, a criação de uma política que pertence aos pobres, que é o resultado da convivência com a necessidade e com outro. Esta nova política, que

Milton Santos chama de “política dos de baixo”, nada tem a ver com a política institucional, fundada na ideologia do crescimento e da globalização, mas está baseada no “cotidiano vivido por todos, pobres e não pobres, e é alimentada pela simples necessidade de continuar existindo.”64 A situação de convivência e vizinhança, própria das grandes cidades, obriga as pessoas a se compararem e a se perguntarem sobre o porquê de suas diferenças, esta indagação já é de ordem política, e mesmo que nem sempre seja possível para elas um entendimento dos sistemas que regem o seu lugar e também o mundo, existe uma vontade de ultrapassar a própria situação.

Na cidade – sobretudo na grande cidade – os efeitos de vizinhança parecem impor uma possibilidade maior de identificação das situações. (...) Dessa maneira torna-se possível a identificação, na vida material como na ordem intelectual, do desamparo a que as populações são relegadas, levando paralelamente, a um maior reconhecimento da condição de escassez e a novas possibilidades da ampliação da consciência.65

Desta forma, embora seja o espaço vivido da cidade aquele no qual as forças socioeconômicas hegemônicas operem com grande intensidade, é nele também o lugar onde se instala a possibilidade do surgimento de uma nova ordem. Para Santos o papel do lugar é

63 Santos diferencia pobres de miseráveis. Segundo ele: “O exame do papel atual dos pobres na produção do presente e do futuro exige, em primeiro lugar, distinguir entre pobreza e miséria. A miséria acaba por ser a privação total, com o aniquilamento, ou quase, da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível. Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam.” p. 132. 64 Ibidem, p. 133. 65 Ibidem, p.166. 42

determinante: “Ele não é um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite ao mesmo tempo a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo.”66

O cotidiano da cidade, contraditório e desigual, é propício ao surgimento de atitudes de rebeldia e inconformidade violenta, mas também aberto a ações criativas, ao surgimento de movimentos alternativos capazes de modificar o presente estado das coisas. Mas, para alcançar o que Santos define como “sistema alternativo de idéias e de vida”67 faz-se necessária a passagem do estágio de descoberta da diferença para o da consciência da diferença, a compreensão crítica dos indivíduos sobre a sua relação com o lugar e o mundo.

O otimismo com que Milton Santos se lança em defesa da possibilidade da produção de um novo discurso ou de um “novo grande relato” baseado, como destaca Maria da Conceição

Tavares, numa “nova horizontalidade na luta dos oprimidos”68, irritaria aqueles que acreditam na irreversibilidade da narrativa única, promovida pela ordem econômica e pela superestrutura ideológica que se alastraram após o consenso neoliberal; desafiaria aqueles que, conformados ou coniventes com este pensamento único, taxam a fala dos mais otimistas como socialista ultrapassada.

Se hoje a história se realiza a partir da dominação dos vetores “de cima”, a perspectiva esperançosa de Milton Santos enxerga a possibilidade da produção de outra história, na qual a vez será dos vetores “de baixo”. As reflexões do geógrafo podem ser vistas por uns como utópicas, mas por outros como eventos de uma realidade que já pode ter começado a se desenhar. A aglomeração de pessoas nos espaços das favelas, fenômeno da urbanização concentrada, pode estar produzindo uma dinâmica na qual nem sempre a busca pelo consumo,

66 Ibidem, p. 114. 67 Ibidem, p. 116. 68 TAVARES. Maria da Conceição. Contracapa In: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007. 43

“visão limitada e unidirecionada” prevalecerá, mas que poderá ser substituída pela busca da cidadania, “elaboração de visões abrangentes e sistêmicas”69; que a falta de emprego e os baixos salários poderão inspirar soluções inventivas no mundo do trabalho; anunciando também um tempo em que a cultura popular ganhará mais força e que a mídia deixará de representar apenas o senso comum imposto pelo pensamento único. É neste momento, que verificamos a possibilidade da produção de um novo discurso, de “um novo grande relato”.70

No artigo, Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão71, as reflexões do professor Tim Prentki caminham na mesma direção que as de Milton Santos. Nele, Prentki discorda da perspectiva pós-moderna de que as grandes narrativas foram dissolvidas nos conflitos globais do século XX, para argumentar que, ao contrário, esses conflitos deram lugar: “A dominância de uma única e totalizante supernarrativa do capitalismo em sua forma corrente: o modelo neoliberal de globalização.”72 Mesmo que este modelo já esteja dando sinais de mudança, uma vez que a dominância econômica e a influência política dos EUA, seu principal patrocinador, estejam abaladas, ainda assim é válido nos referir ao modelo neoliberal como “a narrativa que controla nossas vidas.”73 Este controle não está evidente apenas nos mercados financeiros, mas se manifesta também nas operações das mídias globais, por meio das quais um pequeno número de atores diz à maioria o que acontece no mundo, decide o que devemos saber e pensar, como nos comportar, o que devemos consumir ou até mesmo, sentir. Prentki recorre a Paulo Freire para afirmar que o que está em jogo é a nossa impossibilidade de “dar nome ao mundo”, uma vez que outros estão fazendo isto por nós.

69 Ibidem. p. 166. 70 Ibidem, p. 21. 71 PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.) Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades. Florianópolis: UDESC, 2009. 72 Ibidem, p.1. 73 Ibidem, p.1. 44

De acordo com o professor, a retomada da capacidade de nomear o mundo74 não estaria condicionada a criação de contra-narrativas, mas sim à produção de narrativas alternativas, essas sim capazes de perturbar a supernarrativa em vigência. Tim Prentki questiona a noção de contra-narrativa que, segundo ele, seria um resultado direto da ação da narrativa dominante, “como uma imagem no espelho da resistência”75, e cuja motivação, assim como a daquela que lhe deu origem, seria o desejo pelo poder ou a tomada do “poder sobre”. Assim, os bombardeios de Clinton ao Sudão e ao Afeganistão em 1998 criaram efetivamente a Al

Qaeda, ou ainda, a emergência do fundamentalismo islâmico violento, surge como imagem no espelho do fundamentalismo Cristão patrocinando o terrorismo de Estado do governo Bush.

Prentki argumenta que: “A presença da contra-força é um ingrediente chave no processo de justificativa do uso da violência para a manutenção da dominância econômica através do controle de recursos.”76 Segundo o raciocínio, a contra-narrativa dos terroristas de Bin

Laden, responsável pelo ataque aos EUA no 11 de setembro, teria oferecido grande impulso ao discurso e prática da “guerra contra o terror”, autorizando ações igualmente violentas, convenientes e interesseiras ao discurso dominante77; narrativa e contra-narrativas representam noções de “poder sobre”.

De acordo com o autor, nas narrativas alternativas, as relações são construídas na base da dignidade e não do dinheiro, a noção de poder ganha outro significado, o de “poder para”.

Prentki aproveita os argumentos de John Holloway quando este afirma que:

O que está em questão na transformação revolucionária do mundo não é de quem é o poder, mas a existência do poder. O que está em questão não é quem exerce o poder, mas como criar um mundo baseado no reconhecimento

74 Ao se remeter ao pensamento de Paulo Freire, Prentki retoma a noção maior da “educação como prática da liberdade” que é devolver ao homem a sua responsabilidade histórica - o homem como sujeito que elabora o mundo, que emerge do lugar de mero objeto para assumir o papel de autor crítico e consciente da história. 75 PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009..P. 16. 76 Ibidem, p.16. 77 Está claro, por exemplo, que Bin Laden é um produto desta narrativa dominante, das necessidades do modelo capitalista neoliberal de ter uma contra-narrativa. 45

mútuo da dignidade humana, na formação de relações sociais que não são relações de poder.78

Ao contrário de apostar na lógica do “poder sobre”, as narrativas alternativas estão empenhadas em, por meio de ações sociais criativas e da “autodeterminação de agrupamentos formados por relações horizontais e não verticais”79, construírem novos poderes, permitirem que se manifeste a voz dos vetores “de baixo”, citando as palavras de Milton Santos. Assim, a despeito do mundo tal como ele é – perverso - outras narrativas estariam revelando, ainda que em doses discretas, o poder para provocar mudanças.

É verdade que as transformações sofridas pelo mundo nas últimas décadas do século XX e também mais recentemente trouxeram para as pessoas uma onda de conformismo ou mesmo uma espécie de anestesia que caracteriza o nosso tempo. De acordo com Milton Santos: “É muito difundida a ideia segundo a qual o processo e forma atuais da globalização seriam irreversíveis (...) levando a pensar que não há alternativas para o presente estado das coisas.”80 Entretanto, ele desafia o pensamento único afirmando que possibilidades de mudança, ainda que não realizadas, já se apresentam como tendências ou como promessa de realização.

Uma das evidências da eminência do novo período previsto por Milton Santos é a maneira como se vê revigorada a cultura popular. A vida cultural não escapa da influência que exerce a globalização sobre a nossa existência. Se por um lado observa-se a ação da cultura de massas, buscando impor-se sobre a cultura popular, de outro é notório também a reação da

78 HOLLOWAY, John. Como mudar o mundo sem tomar o poder. O significado da revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003. Apud PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. p.19. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.) Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades. Florianópolis: UDESC, 2009. 79 Na opinião de Prentki, o movimento dos zapatistas representaria um exemplo de narrativa alternativa. O levante, que começou aos olhos do mundo como a última de uma “longa linha de movimentos revolucionários românticos e perdedores”, logo deixou claro que não era uma contra-narrativa: “eles estavam no processo contínuo de criar alternativas de narrativa na luta pela autodeterminação das populações dos Chiapas.” Nascida de um movimento de resistência às forcas corporativas liberadas pela implantação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, Exército de Libertação Nacional Zapatista (ELNZ) evitou o roubo de terras indígenas pelo exército mexicano. 80 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.160. 46

cultura popular. Essa reação, que Milton Santos chama de “revanche” é evidente, por exemplo, nas manifestações expressivas próprias das comunidades populares que reinventam a música, o corpo, a fala. Essas manifestações exercem a sua qualidade de narrativas locais, e tem colocado em relevo, como observa Santos: “O cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias.”81 As deformações do mundo atual favorecem nos lugares onde elas são mais visíveis, a possibilidade da produção de uma outra história, cujos narradores não serão os mesmos da super-ideologia. São desses locais, como as favelas, de onde podem surgir as narrativas alternativas; a cultura e a arte têm se revelado cada vez mais um caminho pelo qual elas emergem; por meio delas cidadãos artistas cultivam um estado de luta com a certeza de que, como afirmou Milton Santos:

O futuro são muitos; e resultarão de arranjos diferentes, segundo nosso grau de consciência, entre o reino das possibilidades e o reino da vontade. É assim que iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a força das estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas.82

2.3 – O lugar da Favela.

São fotografias de uma gente simples que vi crescer neste chão árido e escuro da senzala moderna chamada periferia (...) A beleza fica por conta de quem vê, não tive tempo para amenidades, a poesia só registrou a verdade.83 Sérgio Vaz

Na língua inglesa slum é a palavra que significa favela.84 Tanto o Português, quanto o

Inglês, não absolvem o sentido de suas palavras de uma imagem, a maior parte das vezes, muito negativa. Mike Davis nos lembra que a primeira definição para slum de que se tem

81 Ibidem, p. 144. 82 Ibidem, p.161. 83 VAZ, Sérgio. A poesia dos deuses inferiores – a biografia poética da periferia. Taboa da Serra, Edição Independente, 1988. Apud NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. p. 182. Sérgio Vaz é poeta do movimento da Literatura Marginal. 84 O termo favela também pode ser traduzido para o inglês como shantytown, definido como parte pobre de uma cidade cujas casas são construídas precariamente e sem infraestrutura. 47

conhecimento foi publicada no Vocabulary of the Flash Language, (Vocabulário da linguagem vulgar) de 1812, do escritor condenado à prisão James Hardy Vaux, no qual é sinônimo de racket, “estelionato”, ou “comércio criminoso”. No entanto, comenta Davis:

“Nos anos da cólera 1830 e 1840, os pobres já moravam em slums em vez de praticá-los.”85

Por todo o mundo espalharam-se definições para esses espaços caracterizados, principalmente, pela concentração de gente pobre. Davis cita alguns exemplos: em 1895, os fondaci de Nápoles apareciam num estudo sobre os pobres das grandes cidades como “as mais apavorantes moradias humanas da face da Terra”; Gorki elegeu o famoso bairro

Khitrov, em Moscou como o “fundo mais fundo”, já Kipling considerava Colootollah em

Calcutá como o “mais vil de todos os esgotos, na cidade da noite assustadora.”86 Nos Estados

Unidos, em 1894, a primeira pesquisa científica sobre a vida nos cortiços de Baltimore,

Chicago, Nova York e Filadélfia definia slum como: “Uma área de becos e ruelas sujas, principalmente quando habitada por uma população miserável e criminosa.”87 De acordo com

Davis:

Essas favelas clássicas eram lugares pitorescos e sabidamente restritos, mas em geral todas se caracterizavam por um amálgama de habitações dilapidadas, excesso de população, doença, pobreza, vício. É claro que para os liberais do século XIX, a dimensão moral era decisiva e a favela era vista, acima de tudo, como um lugar onde o “resíduo” social incorrigível e feroz apodrecia em um esplendor imoral e quase sempre turbulento: na verdade uma vasta literatura excitava a classe média vitoriana com histórias chocantes do lado “negro da cidade.88

Entre a Inglaterra vitoriana ou a distante Rússia de Máxim Gorki e o Brasil, embora existissem sem dúvida muitas diferenças, havia pelo menos uma semelhança: o estigma imposto a esses espaços populares e a seus moradores. Em 1897, no Morro da Providência,

85 DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.32. 86 Ibidem, p.32. 87 Ibidem, p.32. 88 Ibidem, p. 33. 48

Rio de Janeiro, surgia o “Morro da Favella”89, que teria transmitido o nome às outras ocupações com as mesmas características. O ano é reconhecido como um marco que situa o início da ocupação dos morros cariocas. Este período marca também, de acordo com o professor Jaílson de Souza: “O momento em que essas formas de habitação começam a ser percebidas como um problema higiênico, estético e populacional pelas autoridades e grupos dominantes da cidade do Rio de Janeiro.”90

Para Pierre Bourdieu a compreensão dos diversos aspectos que giram em torno da ideia de lugar depende de uma análise rigorosa sobre as relações entre as estruturas do espaço físico e as estruturas do espaço social. O lugar, segundo ele, pode ser definido como o ponto do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado concretamente “tem lugar, existe.” Nele, entretanto reside o espaço social, uma espécie de conjunto de idéias ou conceitos aplicados a um determinado espaço físico. De acordo com Bourdieu, o espaço social se retraduz no espaço físico, mas sempre “de uma maneira mais ou menos confusa”, porque se deve levar em consideração “o poder sobre o espaço que a posse do capital proporciona.”91 Bourdieu argumenta que:

O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se apresenta, assim como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens ou de serviços e também de agentes individuais ou grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes (em função de seu capital e também da distância física desses bens, que depende também de seu capital). É na relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado. 92

89 O termo "favela" evoca em suas origens o local do sertão baiano onde se concentravam os seguidores de Antônio Conselheiro, tendo-se difundido no Rio de Janeiro a partir da ocupação dos morros de Santo Antônio e da Providência pelos soldados que voltavam da guerra de Canudos. Ao chegarem no Rio, os soldados receberam permissão para instalarem-se nos morros. O Morro da Providência recebeu o nome de "Morro da Favela", como referência a um arbusto abundante no sertão de Canudos. 90 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 25. 91 BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis RJ, Vozes 1997. p. 160. 92 Ibidem, p. 161. 49

Desta forma, os diferentes espaços sociais “fisicamente objetivados” tenderiam a se sobrepor uns aos outros. A concentração de bens mais raros e de seus proprietários em certos lugares do espaço físico, como os endereços nobres do Rio de Janeiro se oporiam aos lugares que agrupam as populações mais pobres, como as favelas cariocas, ou como definiria

Bourdieu: “lugares de densa concentração de propriedades positivas ou negativas

(estigma)”.93 A capacidade de dominar o espaço, apropriando-se de bens raros depende, portanto, do capital que se possui. De acordo com Bourdieu: “O capital permite manter à distância as pessoas e as coisas indesejáveis ao mesmo tempo que aproximar-se de pessoas e coisas desejáveis.” 94

Neste mesmo sentido segue o raciocínio de Zigmunt Bauman, quando ao examinar a relação entre a pobreza e a ocupação do espaço, afirma que:

Não é possível livrar-se do poderoso estigma territorial ligado à moradia numa área publicamente reconhecida como depósito de pobres de casas de trabalhadores decadentes e grupos marginais de indivíduos. (...) O mecanismo de segregação e exclusão pode ou não ser complementado e reforçado por fatores adicionais de raça/pele, mas no limite todas as suas variedades são essencialmente a mesma: ser pobre numa sociedade rica significa ter o status de uma anomalia social. 95 (grifos nossos)

O caso do Rio de Janeiro é curioso. Diferente das cidades cuja população mais pobre concentra-se nas periferias, à margem, mantendo-se a distância física e social entre pobres e ricos, aqui, embora se mantenha a distância social, há uma proximidade espacial entre algumas favelas e os bairros mais “nobres”. Talvez isso explique, em parte, porque elas têm sido vistas ao longo de sua existência como um verdadeiro incômodo à urbanidade da cidade, o estigma territorial é acentuado, porque a anomalia social está bem ao alcance de nossa vista, basta virar uma esquina do Leblon ou de Ipanema. O aspecto comum entre as favelas

93 Ibidem, p. 161. 94 Ibidem, p. 164. 95 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p 108. 50

brasileiras, os slums vitorianos, o bairro russo, as ruelas e becos do mundo todo é, além da exclusão socioeconômica, o peso simbólico que esses lugares e seus moradores carregam.

No Brasil, o estigma é um problema a ser enfrentado pelos moradores das favelas desde o início do século XX, quando as populações mais pobres começaram a ocupar os morros da cidade.96 Falar da favela é também falar da história do Brasil, mas particularmente da cidade do Rio de Janeiro, capital federal na virada do século XIX para o XX. No Rio e em São

Paulo, a crise habitacional tornou-se grave a partir da Abolição da escravatura (1888) e, consequentemente, da expansão do trabalho remunerado e do aumento da migração.

Desenvolveram-se várias formas de moradia popular entre elas os cortiços e as favelas.

De acordo com o estudo de Maria Laís Pereira da Silva entre o final do século XIX até as primeiras décadas do XX, o Estado foi movido pela “prioridade à questão higienista e pela ideologia do progresso, que pressupunha a modernização da cidade.”97 Foram três as principais intervenções higienistas e modernizadoras adotadas pelo Estado: a desinfecção das

áreas de moradia consideradas contaminadas e causadoras de epidemias da época (cólera e febre amarela), como cortiços98 e estalagens; controle e repressão dessas formas de moradia; estímulo à iniciativa privada – com a concessão de privilégios para a construção de casas operárias99. Essas ações causaram um impacto na cidade levando as populações pobres dos cortiços para os morros, charcos ou áreas vazias em torno da capital:

Quando Pereira Passos, o prefeito ‘bota-abaixo’ que governou a capital federal entre 1902 e 1906, iniciou a sua reforma urbana, os cortiços e casas

96 Em Um século de favela os autores Alba Zaluar e Marcos Alvito fazem uma retrospectiva da história das favelas cariocas comprovando com documentações datadas do início do século XX, de que maneira as autoridades policiais e do governo tratavam a ocupação dos morros da cidade pela populações despejadas dos cortiços e pelos ex-combatentes da Guerra de Canudos. Os autores argumentam como ao longo de sua existência a favela, no plano das representações, inspirou dos sentimentos humanitários ao imaginário preconceituoso. 97 PEREIRA DA SILVA, Maria Laís. Favelas Cariocas 1930-1964. Rio de Janeiro; Contraponto, 2005. p. 38. 98 Um exemplo marcante de demolição foi a do cortiço Cabeça de Porco, em 1897. Situado no centro da cidade e considerado o maior cortiço da época, ele fora demolido para a construção da atual Avenida Rio Branco. Uma parte de seus moradores mudou-se para o Morro da Providência, depois Morro da Favella. 99 De acordo com Maria Laís: “Essa parece ser uma das formas principais de ação estatal, a julgar pelo grande número de concessões obtidas por empresários do final do século XIX para os anos iniciais do séc.XX. Observa- se também que muitas dessas concessões caducaram, e poucas moradias operárias foram efetivamente construídas.” p. 165, nota 55. 51

de cômodos eram cada vez mais escassos e os morros pareciam ser a principal saída para uma população pobre que aumentava a cada dia.100

Jaílson de Souza e Silva observa que a expansão das favelas passa a chamar a atenção da imprensa e cita como exemplo uma matéria do Correio da Manhã de 2 de junho de 1907.

Diz ele: “Nela, afirmava-se que, para a grande leva de banidos da cidade só restava as montanhas agasalhadoras... Quase todos os morros que forma a cinta da cidade.”101 De acordo com Silva foi a partir do Morro da Favella que se começou a difundir na imprensa a associação do termo favela à imagem de perigo e de desordem.102

Para Alba Zaluar e Marcos Alvito, a favela representa no imaginário urbano, desde

1908, um foco de doenças, sítio de malandros, berço de bandidos, nicho da desordem:

“Apesar do que se afirma com freqüência na literatura da favela, esta já começa a ser percebida como um “problema” praticamente no momento em que surge, muito embora, a despeito desta clara oposição a sua presença na cidade, tenha continuado a crescer sem interrupção.” 103

Mesmo o ativo Pereira Passos nada fez de concreto em relação à Favella, muito embora o Morro da Providência despertasse a atenção das autoridades. Uma famosa caricatura publicada em 1908, destacada por Zaluar e lembrada também por Jaílson de Souza, mostrava o Dr. Oswaldo Cruz, ostentando no braço um símbolo da saúde e passando um pente gigante pelos cabelos do “morro” (representado no desenho por um grande rosto mal humorado) e extraindo deles, como se extraem piolhos de uma cabeça infestada, toda a sua população. A

100 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 25-26. 101 Ibidem, p.27. 102 Alba Zaluar e Marcos Alvito esclarecem que já no início do século XX os morros do Rio eram vistos pela polícia e alguns setores da população como locais perigosos e refúgios de criminosos. Entretanto, um estudo realizado por um especialista em história da polícia desmente essa ideia; o estudo de Marcos Bretas afiança que, nas diversas regiões da capital federal de então:“a distribuição dos tipos de crimes e contravenções é semelhante.” BRETAS, Marcos. A Guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1997. p. 74. Apud ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.P. 10 103 ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.P. 10 52

legenda dizia: “A Higiene vai limpar o morro da Favella, do lado da estrada de ferro Central”.

Para isso intimou os moradores a se mudarem em 10 dias.104 Mas a campanha não teve nenhum resultado.

Somente em 1927, a favela passa a constar de um plano oficial, embora não implementado. Idealizado pelo urbanista francês Alfred Agache, o plano, que ficou conhecido como o Plano Agache, previa a “remodelação, extensão e embelezamento” do Rio.

Nele, o capítulo que se referia às favelas propunha a transferência da população ali residente.

A idéia do francês era remover a população das favelas e o operariado para casas e edifícios coletivos instalados nas zonas industriais, nos subúrbios, isolando desta forma da

área central ou nobre da cidade o lugar dos pobres, seu espaço físico e social. Na opinião de

Jaílson de Souza, o discurso do Agache ainda baseava-se nas concepções higienistas “A necessidade não era garantir melhor fluidez ao organismo urbano, mas também proporcionar uma pedagogia civilizatória por meio das novas delimitações territoriais. Uma bela paisagem da cidade passa a ser privilégio dos ricos.”105

De acordo com Maria Laís Pereira da Silva, durante a década de trinta as favelas crescem rapidamente e ganham visibilidade como “emblemas da pobreza”. Vista como um problema a favela passa a ser alvo de proibições, planos e projetos de ordenamento. A ameaça de remoção, por exemplo, e em alguns casos a sua concretização, foi uma dificuldade enfrentada por todas as favelas do Rio de Janeiro. No início dos anos quarenta, a solução encontrada pelo Estado para resolver o “problema”, foi a construção de parques proletários.106

O resultado da ação, ao contrário de surtir o efeito esperado pelo governo, colaborou com a

104 Ibidem, p.11. 105 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 33. 106 Entre 1941 e 1943, três parques foram construídos na Gávea, no Leblon e no Caju para onde foram transferidas cerca de 4 mil pessoas, mais tarde expulsas, devido a valorização principalmente dos dois primeiros bairros. 53

organização das comissões de moradores, que a partir dali, fortaleceram o seu papel como atores políticos.

Nos anos sessenta, a mobilização das lideranças comunitárias passa a ser determinante para a vida das comunidades cariocas. Com o golpe militar de 1964, o perigo da remoção fica ainda maior. A política autoritária do regime adota o remocionismo como alternativa para a erradicação das favelas do cenário urbano do Rio e passa a investir recursos na construção de conjuntos habitacionais, para os quais a população deveria ser transferida. O plano, contudo, enfrentaria uma forte reação dos moradores, é o que afirma o professor Marcelo Burgos:

Organizados politicamente e representados por uma [Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara] FAFEG que congregava cerca de 100 associações de moradores, os moradores das favelas lutariam de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade politicamente construída de favelado. A história dessas remoções ocorridas entre 1968 e 1975 representa um dos capítulos mais violentos da longa história de repressão e exclusão do Estado brasileiro. Na verdade sabe- se muito pouco ao seu respeito, mas o que se sabe permite supor a extensão de sua dramaticidade.107

Em A palavra é: favela108 as pesquisadoras Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense

Marcier destacam a incidência da temática da remoção na música popular brasileira, sobretudo entre os anos 50 e 70. A seleção de composições musicais, realizada pelas pesquisadoras demonstra que, de fato, mesmo antes do período do regime militar, as populações faveladas conviviam com a ameaça constante de remoção. Os versos de Adoniran

Barbosa em Despejo na Favela (1975) e os de Zé Keti em Opinião (1963) imortalizaram o drama vivido pelas populações:

107 BURGOS, Marcelo. Dos parques proletários ao Favela-Bairro. In Um Século de Favela. Alba Zaluar e Marcos Alvito, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 36. No texto o autor lembra o episódio de remoção dos moradores da favela Praia do Pinto, no Leblon. Diante da resistência dos moradores a favela foi incendiada sem que os bombeiros fossem chamados. As famílias perderam seus pertences e os líderes da resistência passiva desapareceram. No lugar da favela construiu-se um conjunto de prédios conhecido como a Selva de Pedra, com apartamentos financiados para militares. A Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) foi fundada em 1963, pelas lideranças de moradores das favelas. 108 OLIVEIRA, Jane Souto e MARCIER, Maria Hortense. A palavra é: favela. In: Um Século de Favela. Alba Zaluar e Marcos Alvito. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.61. 54

Quando o oficial de justiça chegou/ Lá na favela/ E contra o seu desejo/ Entregou pra seu Narciso/ Um aviso, uma ordem de despejo/ Assinada seu doutor/Assim dizia a petição:/ Dentro de dez dias/ Quero a favela vazia/ E os barracos todos no chão/ É uma ordem superior/. Adoniran Barbosa

Podem me prender/Podem me bater/Podem até/deixar-me sem comer/que não mudo de opinião/Daqui do morro? Eu não saio não/Se não tem água eu furo um poço/Se não tem carne eu pego um osso/e ponho na sopa/e deixa andar/fale de mim quem quiser falar/aqui eu não pago aluguel/se eu morrer amanhã, seu doutor/estou pertinho do céu/ Zé Keti109

As remoções, como ressalta Jaílson de Souza, tiveram um papel central para a expansão imobiliária vinculada ao acelerado crescimento econômico do país – “o milagre brasileiro”.110

Neste período ocorreu a erradicação das favelas localizadas à margem da Lagoa Rodrigo de

Freitas, como Ilha das Dragas, Praia do Pinto e Catacumba; mais uma vez as ações do Estado se sustentaram nos argumentos da higienização e da recuperação moral, social e econômica das famílias faveladas. Entre 1962 e 1973 quase 140 mil pessoas foram removidas para conjuntos habitacionais111:

Os impactos foram profundos: redes sociais desfeitas e a proximidade do local de trabalho, que proporcionava uma economia significativa com o transporte não existiam mais. (...) A política remocionista não considerou a voz, o sentimento nem a própria vida dos moradores das áreas ocupadas.112

109 O compositor paulista Adoniran Barbosa e o carioca Zé Keti imortalizaram em suas letras o problema da ameaça de remoção, drama enfrentado pelas populações faveladas em São Paulo e no Rio de Janeiro, principalmente durante o período do regime militar. 110 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 46 –47. 111 A Cidade de Deus conhecida fora do Brasil graças ao filme de foi um desses conjuntos habitacionais construído nos anos 60 para abrigar moradores transferidos de 23 favelas da cidade. Entre elas a da Praia do Pinto, no Leblon, e a Macedo Sobrinho, no Humaitá. Criado durante a onda de remoções do governo Carlos Lacerda, o projeto foi tocado com dinheiro da Aliança para o Progresso, financiada pelo governo americano. O nome foi pensado pelos próprios políticos da época. Não se sabe exatamente o motivo. Talvez para tentar convencer seus novos habitantes das qualidades da região, então desabitada e sem infra-estrutura da Zona Oeste carioca. Informações disponíveis no site: Na mesma época, o Governo do Estado construiu outros conjuntos habitacionais pela cidade com verba do governo norte-americano, principalmente na Zona Oeste. São desta mesma época as vilas Kennedy, Aliança e Esperança. 112 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 46 -47 55

De acordo com Jaílson de Souza, a partir do final da década de setenta uma série de fatores contribuíram com o fim das remoções e a adesão à idéia da urbanização das favelas.

Souza destaca alguns aspectos que teriam colaborado com essa mudança de perspectiva:

A preocupação de instituições internacionais, como Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BIRD), com o crescimento das periferias do Terceiro Mundo; crescimento das favelas como redutos oposicionistas, já que as políticas de remoção fortaleceram a organização dos moradores; reconhecimento da gravidade do problema da favela, que teria crescido em 14 anos, 317% (...); a reorganização em 1979 da FAFEG (...); A pressão da Igreja Católica, por meio da Pastoral das Favelas, marcada entre outras ações, pela Campanha da Fraternidade de 1979 e a visita do Papa ao Morro do Vidigal, em 1980; a desaceleração da construção civil para a classe média em função da crise econômica; a percepção dos grupos políticos do potencial eleitoral das favelas.113

Na década de oitenta, os moradores das favelas começam a ser percebidos como atores políticos. As associações ganham força em muitas comunidades do Rio de Janeiro. As transformações na conjuntura política do país relacionadas à transição democrática, ao fim do regime militar, e também à eleição de Leonel Brizola (1983-86) para o governo do Estado do

Rio e Saturnino Braga, para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, colaboraram com a aproximação entre autoridades e lideranças comunitárias, proporcionando para estas, benefícios relacionados principalmente ao saneamento básico, abastecimento de água e luz, bem como a construção de creches e escolas.

O Estado inaugura uma série de ações políticas, investindo na urbanização, na construção de postos de saúde e escolas, e na transformação de algumas delas em bairros, como foi o caso, já nos anos noventa, da Rocinha e da Maré.114 Mas, mesmo que essas ações tivessem contribuído para uma transformação física no cenário das favelas, a representação

113 Ibidem, P. 51. 114 O Programa Favela-Bairro é o maior exemplo de projeto de urbanização das favelas. Ele foi posto em prática em algumas comunidades a partir de 1994. Coordenado pela Secretaria Municipal de Habitação e pelo Instituto Pereira Passos, a proposta do programa é integrar a favela à cidade, oferecendo-a toda a infraestrutura, serviços e políticas sociais. 56

negativa dele no imaginário da cidade permaneceu hegemônica. Essa representação nos leva novamente aos conceitos do espaço físico e espaço social de Bourdieu. Ao território da favela impregnou-se um peso simbólico, um ônus do qual ela ainda luta para se livrar.

De acordo com Alba Zaluar e Marcos Alvito, encarar a favela como um fantasma que assombra a cidade, determinou historicamente uma divisão, uma dualidade, que separa radicalmente o morro do asfalto.115 Na década de setenta, entretanto, o discurso sociológico destacava a vida na favela como: “Um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação voluntária e vizinhança.”116

Os estudiosos da época não deliravam, de fato o ethos predominante entre os favelados contradizia a imagem negativa que já povoava o imaginário urbano. Mas o discurso sociológico retoma a metáfora dualista na década seguinte, quando uma atividade subterrânea começa a transformar definitivamente a vida nas favelas – a chegada do tráfico de cocaína.

Assim, comentam os autores:

Com a chegada do tráfico da cocaína em toda a cidade, a favela – onde as quadrilhas se armavam pra vender no mesmo comércio que movimenta o resto da cidade e do país – passou a ser representada como covil de bandidos, zona franca do crime, habitat natural das classes perigosas. (...) a despeito de diferentes roupagens, sempre de acordo com um contexto histórico específico, o favelado foi um fantasma (...).117 (grifos nossos)

Os artigos contidos no estudo de Zaluar e Alvito combatem o senso comum que já possui longa data e que aprisionou a imagem da favela a um contexto de desordem e à idéia da carência. O estudo cumpre essa função desmistificadora, na medida em que mostra que os

100 anos de história das favelas cariocas são anos de conquistas; onde a capacidade de luta dos moradores rendeu melhorias na urbanização, moradias e saneamento. Mas, sobretudo, mostrando que no espaço da favela sempre se produziu:

115 O termo “asfalto” é utilizado, embora esteja já caindo em desuso, pelas pessoas que moram nas favelas para denominar os bairros. 116 ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003. p. 15. 117 Ibidem.p.15. 57

O que de mais original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o bloco de carnaval, o pagode do fundo de quintal. (...) Onde se escreveram livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não musicados, onde se montam peças de teatro.118

A luta que parece longe de terminar. Atualmente, a favela enfrenta o terror imposto pela polícia e por traficantes, num conflito que vem rendendo as primeiras páginas dos jornais. Em

Favelas - além dos estereótipos119, Jaílson de Souza argumenta que em contraponto à idéia da favela como um “espaço de ausências urbanas, sociais, legais e morais” ou “a própria expressão do caos” seja necessária a construção de uma nova representação dessas comunidades populares – “para além das ausências mais visíveis”. Onde possamos enxergar que nesses espaços as pessoas “desenvolvem formas ativas e criativas para enfrentar as dificuldades do dia a dia, que estabelecem vínculos sociais na comunidade, que buscam canais alternativos para o acesso a instituições culturais e educacionais”120, que enfim enfrentam “os limites sociais e pessoais de suas existências”121.

A imprensa teria também uma participação determinante na construção de uma visão estereotipada sobre a favela. Assim como aquela famosa caricatura publicada no jornal de

1908, a dos “piolhos” retirados do Morro da Providência, aqui uma representação mais atual atribui à favela uma imagem semelhante. Observa Jaílson de Souza:

No mês de dezembro de 2000, a revista Veja expressou, na capa de uma edição, esse juízo marcado pelo temor. Acompanhada da manchete "a periferia cerca a cidade" apresenta-se uma imagem na qual as construções de alvenaria, em cor escura - remetendo à visão de formigas saúvas em movimento - devoram gradativamente prédios brancos e limpos. O exemplo, recorrente nos meios de comunicação, é ilustrativo do temor, que é atávico em amplos setores sociais do Rio de Janeiro e de outras metrópoles, de que o morro desça, e a cidade seja dominada pelo caos.122

118 Ibidem, p. 22. 119 SILVA, Jailson de Souza. Favelas - além dos estereótipos. Disponível em: Acesso em: julho/2004. 120 Ibidem, p.11. 121 Ibidem, p.10. 122 Ibidem, p. 14. 58

Constatamos com esse breve histórico das favelas no Rio de Janeiro que ao longo de mais de um século de existência essas comunidades populares têm sido vistas como um lugar externo à organização da pólis e que, ainda hoje, elas lutam para descolar a sua imagem dos espectros da carência, do caos, do crime. De fato, essa é a perspectiva crítica que vem sendo trazida à tona pelos estudos mais recentes sobre a historiografia da favela no Brasil. Da mesma forma que eles procuram mostrar como essa imagem estigmatizada foi sendo construída por aqueles que estão “de fora” da favela, eles também apontam algumas estratégias desenvolvidas pelos “de dentro”, os moradores da favela, tanto para garantir a sua sobrevivência, quanto para reagir à atitude excludente adotada pelos “de fora”.

É interessante observar que, principalmente a partir dos anos 90, vários autores vêm optando pelo uso da palavra favela, no lugar da palavra comunidade.123 O termo comunidade ainda é bastante utilizado por moradores e não moradores das favelas, como uma definição mais “amena” para os aglomerados populacionais. Entretanto, diversas publicações têm preferido o uso da palavra original - favela. Este fato indicaria uma tendência de afirmar o termo, talvez como um contraponto ao estigma que ele mesmo carrega, uma tentativa de positivá-lo, de incluí-lo num vocabulário autorizado e aceito pela cidade. É notório também um crescente interesse pelas “coisas que vem da favela”; ela não só passou a ser mais estudada pelos “de fora”, como também ela mesma passou a encontrar espaços para falar de si mesma, para falar com sua própria voz – a favela pela favela.

123 Neste trabalho optei por utilizar a palavra favela e comunidade como sinônimos.

59

2.4 – A favela pela favela e a chance da narrativa alternativa.

Vou nas ruas da cidade encontrar/Onde estou/ Se cale por não ter o que dizer/ Sou do Rio de Janeiro,CDD meu cativeiro/ Então,respeita nóis aqui tem voz / E hoje eu sei o que você falava pro meu povo não é lei/ Se cale por não ter o que dizer Sou do Rio de Janeiro/ Lobo em pele de cordeiro/ Então respeita nóis aqui tem voz.124 MV Bill

Mike Davis pergunta se não seriam as grandes favelas contemporâneas, vulcões à espera de explodir. Segundo ele, dentro de uma só cidade, a população pode apresentar uma enorme variedade de reações à privação e à negligência estruturais, que vão desde: “As

Igrejas carismáticas, as gangues de rua, ONGs neoliberais até movimentos sociais revolucionários”.125 O fato é, que uma enorme quantidade de atos de resistência vem emergindo de dentro dessas comunidades por todo o mundo, mesmo que eles guardem entre si características muito diferentes.

Davis afirma que: “O futuro da solidariedade humana depende da recusa combativa dos pobres urbanos a aceitar a sua marginalidade terminal dentro do capitalismo global.”126 As recusas vêm ficando cada vez mais evidentes, um grau de insubordinação por parte dos mais

“fracos”, tem sido expresso inclusive por manifestações violentas, motivo de preocupação por parte das instâncias do poder.

Esta recusa pode assumir faces bastante radicais. Uma delas, citada pelo próprio Davis, seria, por exemplo, o engajamento de jovens pobres dos arredores de Istambul, Cairo,

Casablanca ou Paris ao movimento de Salafia Jihadia.127 Podemos considerar também como outra face violenta desta recusa, a adesão de jovens do mundo todo à economia do narcotráfico, com o qual eles selam um pacto quase sempre de morte; uma “integração

124 Aqui tem voz. Letra do rapista MV Bill. CDD refere-se à Cidade de Deus. 125 DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.201. 126 Ibidem.p. 201. 127 Estabelecido em meados dos anos 90, o Salafia Jihadia é uma organização islâmica terrorista com base no Marrocos. 60

perversa entre a pobreza e o tráfico de drogas,” título de uma das publicações de Alba

Zaluar.128

Davis chama atenção para o fato de que, como na época vitoriana, a “criminalização categórica dos pobres urbanos é uma profecia que leva ao seu próprio cumprimento e configura de modo garantido, um futuro de guerra interminável nas ruas.”129 Mas, embora a criminalização seja um fenômeno presente no cotidiano das favelas, no caso do Rio de

Janeiro, ao contrário do que imagina o senso comum, são muito poucos os moradores que se envolvem com a vida no crime. De acordo com Jaílson de Souza, uma parcela muito pequena, cerca de 1%, dos jovens moradores das favelas no Rio estaria envolvida com o tráfico.130

Mas a “recusa combativa” sobre a qual se refere Mike Davis pode também, felizmente, ganhar feições mais pacíficas. Àquelas expressas, por exemplo, através da criatividade e do espírito crítico dos artistas populares. No passado, , Zé Kéti, e outros compositores cantaram a favela com a voz de quem enxerga a sua realidade “de dentro” dela.

128 ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004. No livro, Zaluar examina com profundidade as teses clássicas que supõem as causas da violência como pobreza, desemprego, crise na família, escolarização insuficiente, surgimento das gangues do tráfico e a natureza de seus integrantes. No Rio de Janeiro, de acordo com a pesquisa Crianças combatentes em violência armada organizada realizada pelo Viva Rio entre dez 2001 e junho de 2002: “Os homicídios por armas de fogo são a maior causa externa de morte de crianças e adolescentes no Rio. Os níveis dessas mortes de jovens menores de 18 anos cresceram muito desde o fim dos anos 70. O grupo etário entre 15 e 17 anos é o mais afetado pelas mortes por tiros, em particular nas regiões da cidade onde são mais comuns os conflitos entre facções, refletindo que o número de menores que trabalham na segurança armada dos territórios das facções é maior nessa faixa etária. Entre 1990-1999, os níveis de mortalidade de menores na cidade e no estado do Rio de Janeiro foram bem mais elevados do que nos estados norte-americanos da Califórnia, Washington e Nova York. Além disso, os índices de mortes de menores por tiro no estado do Rio são piores que em alguns lugares do mundo em estado de conflito armado tradicionalmente definido. Por exemplo, morreram oito vezes mais menores no Rio, por tiro, entre 1987 e 2001, do que crianças israelenses e palestinas em conflitos nos territórios ocupados no mesmo período.” DOWDNEY, Luke. ISER, Viva Rio. Crianças combatentes em violência armada organizada, um estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas territoriais das facões de drogas no Rio de Janeiro, 2002. 129 DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.202. 130 PAIVA, Anabela. Doutor da periferia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9/9/2003. Caderno B, Capa. Na reportagem o professor contesta a atuação de alguns projetos sociais que ao divulgar suas realizações na mídia, sublinham o perigo da relação juventude/violência, vendendo a idéia de que caso eles não existissem, todos os jovens favelados se tornariam bandidos em potencial. Fato incompatível com a realidade. Afirma ele: "Dizem que se o jovem não estivesse participando deste ou daquele projeto, estaria no tráfico. Ora, o tráfico recruta no máximo 1% dos jovens. Parece até que o jovem é um débil mental que pode ser puxado de um lado para o outro." A pesquisa Crianças combatentes em violência armada organizada confirma a informação: “Especialistas em segurança pública estimam que os empregados das facções do tráfico totalizam cerca de 1% da população das favelas, ou seja, por volta de 10.000 pessoas, a maioria armada.” p.5. 61

Hoje, na mesma perspectiva, o vigor das letras e atitudes dos rapistas, a atuação das rádios comunitárias e outras manifestações de dentro da favela são exemplos de estratégias de

“combate” desenvolvidas pelas comunidades para enfrentar as suas dificuldades.

No campo da literatura também se verifica o fenômeno. É o que observa Beatriz

Resende em Literatura brasileira na era da multiplicidade.131 De acordo com autora, uma das maiores novidades da produção literária contemporânea é a presença das vozes que emergem dos espaços “até então afastados do universo literário.” Segundo Resende: “Usando seu próprio discurso, vem hoje, da periferia das grandes cidades, forte expressão artística que, tendo iniciado seu percurso pela música, pelo teatro e pela dança, chega agora à literatura.”132

Na opinião de Beatriz Resende os escritores, como Paulo Lins, autor do romance

Cidade de Deus, vindos do espaço da exclusão estariam dispensando os “tradicionais mediadores, os intelectuais, que, até recentemente falavam por eles” preferindo definitivamente falar com suas próprias vozes. A autora afirma que:

A Cidade de Deus se sucederão outras obras que pretendem trazer para o erudito campo do literário o universo de parcelas da cidade que já se manifestaram de maneira expressiva em outras formas de expressão artística, como a música (principalmente pelo funk, hip-hop e rap) e a dança com companhias como o Corpo de Dança da Maré e a importante Cia. Étnica de Dança, do Morro do Andaraí, e ainda no teatro com o já sólido grupo Nós do Morro, que existe na favela do Vidigal há 18 anos.133

O movimento de emersão das vozes da periferia é investigado também por Érica

Peçanha do Nascimento em Vozes Marginais na Literatura134. No livro, a autora analisa as edições especiais da revista Caros Amigos/Literatura Marginal que ofereceu mais

131 RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira na era da multiplicidade. In: Cultura e Desenvolvimento. Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.148. 132 Ibidem, p.150. 133 Ibidem, p. 171. 134 NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. O objetivo da pesquisa de Nascimento foi compreender a que se refere a expressão “literatura marginal” por escritores da periferia de São Paulo, buscando investiga-la a partir de uma dupla perspectiva. Como explica a autora: “(...) de acordo com os aspectos relacionados aa produção e à circulação de alguns dos seus produtos literários; e segundo os signos culturais e objetivos amplos, que dizem respeito à construção e divulgação de uma cultura de periferia e à formação de identidades coletivas.”p. 22. 62

visibilidade a obra de 48 autores, residentes em São Paulo, incluindo 80 textos entre crônicas, contos, poemas e letras de rap. No estudo, Nascimento enfatiza o discurso de três dos escritores: Sergio Vaz, Ferréz e Sacolinha (Ademiro Alves). De acordo com a autora, entre os anos 1990 e 2005 a produção literária contemporânea trouxe à tona a expressão literatura marginal para:

Designar a condição social de origem dos escritores, a temática privilegiada nos textos ou a combinação de ambos, disseminando-se para caracterizar os produtos literários dos que se sentem marginalizados pela sociedade ou dos autores que trazem para o campo literário, temas, termos, personagens e linguagens ligados a algum contextos de marginalidade.135

Como observa Heloisa Buarque de Hollanda, na passagem dos séculos XX para o XXI a “nova cultura da periferia” se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país:

“Com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Alguns traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural.”136

Como parte deste mesmo contexto cultural contemporâneo, que afirma o lugar das vozes periféricas, ganha força também a atuação das rádios comunitárias. O radialista Tião

Santos é categórico ao afirmar que: “Num país como o nosso, marcado pelo silêncio das maiorias, desde os processos de colonização até os anos da ditadura militar, era de se esperar que, ao primeiro sinal de liberdade de expressão, a voz das maiorias se fizesse ouvir nos quatro cantos deste país.”137 As quinze mil rádios comunitárias em funcionamento hoje no

Brasil representam uma conquista popular. Elas estão no ar em favelas, pequenos e médios municípios, áreas rurais, aldeias indígenas e comunidades quilombolas. De acordo com

Santos:

135 Ibidem, P. 112. 136 HOLLANDA, Heloísa Buarque. In: NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. 137 SANTOS, Tião. Rádios Comunitária: “Balangando o beiço” pelo direito de comunicar! In: Cultura e Desenvolvimento. Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2004. P. 177. 63

A diferença é que esse novo jeito de comunicar vem ganhando cada vez mais o gosto popular. Num contraponto a chamada comunicação globalizada, normalmente pasteurizada em seus conteúdos, as rádios comunitárias estão resgatando o bom conceito do rádio “amigo íntimo”, que entende a fala a linguagem do ouvinte, dos seus problemas, dos seus sonhos, das coisas que fazem parte de seu cotidiano.138

O rap do MV Bill, a literatura marginal ou a pauta das rádios comunitárias representam expressões desse movimento de luta diária, onde a existência no espaço da pobreza permite que se desenvolva um estado de ação/reflexão sobre o seu próprio lugar e o mundo. O que verificamos com isso é que, na contramão do discurso hegemônico, aquele que estabeleceu uma representação negativa da favela, existe também a possibilidade da produção de outro; de um novo discurso, baseado na versão daqueles que estão “de dentro.”

É notória no Rio de Janeiro a presença de inúmeras ações oriundas dos espaços populares, que vêm trazendo à tona narrativas locais, colocando em relevo o cotidiano das comunidades. Ao contrário de estar sujeita a uma escrita e a uma leitura de “fora para dentro”,

é ela mesma, a favela, quem vem abrindo brechas para apresentar o seu próprio relato - “de dentro para fora.”

O novo discurso, que insurge do território da favela, é reforçado pela atuação de organizações que surgiram a partir da mobilização comunitária como o Grupo Nós do Morro, o Grupo Cultural AfroReggae, a Central Única das Favelas – CUFA e o Observatório das

Favelas. As quatro organizações, com forte e reconhecida atuação social têm em comum um poderoso elemento: todas foram criadas por pessoas que moram ou moraram em comunidades populares e que, portanto, reconhecem suas potencialidades, as possibilidades que têm de desenvolver estratégias comuns de luta e resistência, cultural e política. Outro aspecto em comum é que consideram prioritário fortalecer políticas públicas de emprego de jovens, bem

138 Ibidem, P. 180. No artigo, Tião Santos esclarece que apesar da multiplicação das rádios comunitárias no país e da aprovação da lei 9.612 (19/02/1998) que regulamenta o funcionamento delas, das estimadas quinze mil existentes, apenas mil foram autorizadas definitivamente pelo Ministério das Comunicações. 64

como necessário o desenvolvimento local dos espaços populares, favelas e periferias. Como ironia ao G8, as quatro entidades formaram recentemente o grupo Favela 4 – F4 que pretende promover ações conjuntas, solidárias, de mobilização, com vistas à redução da violência contra crianças, adolescentes e jovens no Rio de Janeiro. 139

Essas organizações, que emergem do lugar da favela, encabeçam um movimento que explodiu na década de noventa. Hoje, uma complexa rede social constituída por iniciativas oriundas de dentro das comunidades e por outras, implementadas por organismos externos a elas, porém dentro delas, têm ampliado o espaço para diversas formas de expressão artística, como o teatro, a música, a dança ou o audiovisual. A partir dos anos noventa, quando ocorre um verdadeiro “boom” do ‘terceiro setor’140, fortalecendo a atuação das organizações não governamentais (ONGs) dentro das comunidades do Rio, o palco ganha um sentido quase milagroso.

Na área teatral, o pioneiro grupo Nós do Morro tornou-se uma inspiração para diversos projetos sociais que tem descoberto o teatro como uma atividade sedutora e emocionante para a vida de crianças e adolescentes. Em quase toda comunidade carioca, difícil é não encontrar pelo menos um ‘projeto’ de teatro.141 É fato: longe dos refletores das salas de espetáculo mais

139 O conselho gestor do F4 está constituído por Celso Athayde da CUFA, José Júnior do AfroReggae, Guti Fraga do Nós do Morro e Jailson de Souza e Silva do Observatório de Favelas. Foi criado como ironia ao G8 - Grupo dos Sete e a Rússia, uma cúpula internacional que reúne os sete países mais industrializados e desenvolvidos economicamente do mundo, mais a Rússia. Todos os países se dizem nações democráticas: Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá (antigo G7), mais a Rússia - esta última não participando de todas as reuniões do grupo. Durante as reuniões, os dirigentes máximos de cada Estado membro discutem questões de alcance internacional. Fonte: Acesso em: 14/02/2008. 140 De acordo com Rubem César Fernandes, o "Terceiro Setor" é composto por organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não governamental, dando continuidade às práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil. Disponível em: Redes de informação para o terceiro setor. 141 O crescimento do número de projetos sociais no Brasil que percebem a arte (inclui-se o teatro) como uma ferramenta poderosa de adesão do jovem que vive em áreas de risco social fica bastante evidente a partir dos meados da década de 90. Segundo dados do relatório de atividades do Programa Capacitação Solidária , por exemplo, entre os anos de 1996 e 2000, das 2967 propostas de capacitação aprovadas para financiamento por instituições, ONG’s, associações e cooperativas, a modalidade “artes e espetáculos” esteve em segundo lugar, com percentual de 9,13%; perdendo apenas para informática 10,84%. Fonte: Painel Solidário. Capacitação Solidária, folder de divulgação, 2000. É evidente também o aumento de propostas de financiamento para projetos que envolvam a arte; exemplos disso são: o Cidadão 21 - Arte do Instituto Ayrton Senna, lançado no 65

sofisticadas da cidade, em quase toda favela do Rio, um grupo de teatro está em plena atividade.

Um surto de projetos implementados nas comunidades populares da cidade aposta no teatro, e também nas outras artes, como uma alternativa para a melhoria da qualidade de vida de crianças e jovens. 142 O fenômeno é responsável pela disseminação de palcos em muitas favelas da cidade. Os resultados alcançados por alguns desses projetos, bem como a sua crescente divulgação nos veículos de comunicação, afirmou a ideia de que as linguagens artísticas exercem uma influência poderosa sobre crianças e adolescentes, representando um contraponto, ou um elemento estratégico para enfrentar e combater a violência, muito presente no cotidiano das comunidades. Esses projetos surgem com a preocupação de oferecer as atividades como uma alternativa às situações de perigo ou risco social.143

Uma pesquisa realizada pela UNESCO intitulada Cultivando Vida, desarmando violências destaca iniciativas espalhadas pelo país, direcionadas aos jovens em situação de risco social e que têm colaborado para o fomento de uma “Cultura de Paz”. O estudo reconhece que a arte, o esporte, a educação e a cultura representam:

Um contraponto, elemento estratégico para enfrentar e combater a violência (...) um incentivo aos jovens para afastarem-se de situações de perigo, sem lhes negar meios de expressão e de descarga dos sentimentos de indignação, protesto e afirmação positiva de suas identidades.144

início de 2002 e o Transformando com Arte, do BNDES, lançado no mesmo ano. Na edição 2006/2007 foi criada uma nova linha de atuação no Programa Petrobrás Cultural, a de “Formação”, que integrou as Artes e a Cultura à Educação. A área Formação e Educação para Artes pretende contemplar propostas no campo social, envolvendo o ensino das artes. 142 A crítica e professora de dança Silvia Soter realizou uma pesquisa entre agosto de 2001 e agosto de 2002, intitulada: A dança no Rio de Janeiro: uma alternativa contra a exclusão pelo Programa RioArte, 2002. Soter mapeou 32 experiências que ofereciam atividades de dança (incluindo diversas modalidades) gratuitamente aos jovens de baixa renda no Rio de Janeiro. A pesquisa constata que o crescimento dos projetos sociais em dança nas comunidades do Rio de Janeiro é um fenômeno recente. Até 1997, existiam apenas seis dos 32 projetos localizados, e, o ano de 2001 foi o período de criação do maior número de projetos (dez projetos no total). 143 CASTRO, Mary. Cultivando Vida, desarmando violências. Brasília: UNESCO, Brasil Telecom, Fundação Kellogg, Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2001. O livro é resultado de uma pesquisa que pretendeu ampliar a visibilidade social de experiências inovadoras no trabalho com jovens, em particular aqueles em situação de pobreza no campo da arte, cultura, cidadania e esporte. No livro um capítulo é dedicado ao Nós do Morro, dentre os trinta projetos mapeados em vários estados do país, o grupo é um dos pioneiros. 144 Ibidem. p.19. 66

Mesmo que algumas dessas instituições, como o Nós do Morro, tenham nascido antes da década de noventa, quando as favelas ainda não estavam tomadas pelas facções do tráfico de drogas como estão hoje, o surgimento da maioria desses projetos é consequência do agravo da negligência do Estado em relação às necessidades básicas dessas populações.

Organizações como o AfroReggae, a CUFA, ou grupo de teatro do Vidigal, além de terem incentivado o “palco comunitário”, também promoveram outra tendência que se verifica nas manifestações artísticas provenientes das comunidades. Elas elegem a própria favela como personagem principal de suas obras. Seja como tema central de peças de teatro, nas letras de rap, ou nos curtas produzidos pelo cinema de ‘periferia’, o que observamos é a vontade de falar sobre a favela, uma explosão de vozes que querem, por meio de múltiplas possibilidades e expressões, contar a sua história, desta vez, com versão própria.

A favela sempre produziu arte, mas nunca com tanta força e diversidade. Não são poucos os exemplos que podemos citar, com razoável frequência eles aparecem nas páginas dos jornais. Uma reportagem intitulada O morro pede passagem145 destacou iniciativas que integram a “virada cultural” promovida pelas favelas do Rio para “transcender a realidade de miséria e violência.” Nela ganham destaque o curta premiado Neguinho e Kika, de Luciano

Vidigal, diretor cria do Nós do Morro146; um curso audiovisual promovido pela CUFA, cujo patrono é o famoso cineasta Cacá Diegues; o grupo Teatro na Laje, da Vila Cruzeiro no

Complexo do Alemão, que montou Romeu e Julieta adaptado para a realidade de guerras entre as facções armadas, espetáculo que ganhou destaque na matéria Da laje para a pista147; os shows do AfroReggae; os atores formados pelo Nós do Morro; as bailarinas do projeto

145 CEZIMBRA, Márcia. O morro pede passagem. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 4.6.2006. Revista O Globo. P. 20-26. 146 Neguinho e Kika é o terceiro curta–metragem produzido pelo núcleo de cinema grupo Nós do Morro. O curta ganhou o prêmio do júri de melhor filme curto no festival Reencontres Cinematographiques, na cidade francesa de Marselha. Trata-se da história de amor de um casal de adolescentes em que ela tenta salvá-lo do ingresso no tráfico. 147 CEZIMBRA, Márcia. Da laje para a pista. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Revista O Globo. P.16-17. 67

Dançando para não dançar148.

No campo da dança, ganharam destaque nos últimos anos a Cia. Étnica de Dança149 e as experiências do coreógrafo com o Corpo de Baile da Maré, nas montagens dos espetáculos Folias Guanabaras (2001) e Dança das Marés (2002). Os espetáculos foram objeto de estudo de Silvia Soter em Cidadãos Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré.150 A autora explica que Folias guanabaras “apresentou o

Complexo da Maré, uma quase-cidade dentro da cidade, como alegoria para a ação: um corpo-cidade.”151 Já em Dança das marés, completa a autora “o zoom de Bertazzo trouxe para o centro da cena cada jovem do corpo de dança: um corpo-memória.”152 Na última peça, segundo Soter, o cotidiano da favela é espetacularizado através da incorporação de danças dos jovens da comunidade e de “relatos constituídos pelas lembranças de suas infâncias e pela leitura que fazem de suas histórias e do ambiente em que vivem.”153 Comenta a autora:

Desde o início, o processo de construção desse espetáculo esteve intimamente ligado à Maré e aos seus jovens moradores. (...) As ações que estiveram na origem do espetáculo – os encontros para a discussão do tema e as incursões na Maré, seguindo o mapa desenhado a partir do trajeto cotidiano de cada jovem – fizeram com que a realidade local estivesse presente no cerne da obra. Através da narrativa dos jovens sobre a passagem da infância para a adolescência, o lugar e suas práticas se transformaram em matéria-prima desse espetáculo. Os grupos de discussão e a construção dos diversos mapas da região, que tiveram os jovens como ponto de partida, refletem a tentativa de aproximação da equipe de criação com a realidade local. Pela primeira vez na experiência de Bertazzo com o Corpo de Dança da Maré, a criação do espetáculo partiu, de forma muito íntima, das experiências de seus jovens integrantes. (...) A maturidade da experiência, já

148 Criado e coordenado pela bailarina Thereza Aguilar o projeto democratizou o acesso das crianças e jovens cariocas ao balé, além de prepará-los para a prova de admissão da Escola de Dança Maria Olenewa – a única escola pública de formação de bailarinos do Rio de Janeiro. 149 O projeto foi criado pela bailarina Carmem Luz e é sediado próximo ao Morro do Andaraí. 150 SOTER, Silvia. Cidadãos Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio de Janeiro: UniverCidade Ed., 2007. Entre 2000 e 2002, Ivaldo Bertazzo esteve associado ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), uma organização não-governamental criada em 1997 por moradores e ex-moradores do Complexo da Maré. A parceria entre o professor e o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré deu origem a três espetáculos dirigidos e coreografados por Bertazzo, os quais contaram com a participação de até 66 crianças e jovens da Maré – que formavam o Corpo de Dança da Maré, além de músicos, atores e bailarinos profissionais: Mãe gentil (2000), Folias guanabaras (2001) e Dança das marés (2002). 151 Ibidem, p.32. 152 Ibidem, p.32. 153 Ibidem, p.32. 68

em seu terceiro ano consecutivo, fez com que o diretor e coreógrafo confiassem na capacidade do grupo de estar sozinho em cena.154

Sem dúvida, como afirma a própria autora, a experiência de Bertazzo com os bailarinos da Maré apresentou as crianças e jovens como “porta-vozes, em cena, de ricos saberes locais” 155 “valorizou a periferia e transformou-a em centro”.156 O projeto, entretanto, não obteve uma sobrevida maior do que a montagem dos espetáculos. Com o término do patrocínio da Petrobrás, encerrou-se também o trabalho do coreógrafo com o elenco da

Maré.157

Recentemente, também no Complexo da Maré, o movimento da dança foi revigorado por meio de uma parceria estabelecida entre a companhia de dança da bailarina Lia Rodrigues e a organização comunitária Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES). Num grande galpão em reforma na favela de Nova Holanda, a companhia apresenta a dança contemporânea aos moradores locais. Os olhares curiosos, tímidos, das crianças da Nova

Holanda, observam os ensaios dos bailarinos da companhia através da sempre aberta porta do galpão; à noite alguns moradores se arriscam na descoberta da linguagem ainda muito pouco familiar em aulas oferecidas gratuitamente para a comunidade. Espetáculos da companhia, que cumprem turnê internacional, desembarcam em temporada na Maré.158

154 Ibidem, p.98-99. A autora esclarece que DrauzioVarella e outros membros da equipe de Bertazzo percorreram as diferentes comunidades da Maré, acompanhando os jovens em seus trajetos diários, visitando suas casas, conhecendo aquele lugar a partir de seus olhares e passos. Essas visitas guiadas alimentaram a criação do espetáculo e deram origem ao livro Maré: vida na favela, assinado por Drauzio Varella, Ivaldo Bertazzo e Paola Berenstein Jacques. 155 Ibidem, p.106. 156 Ibidem, p.32. 157 Dali em diante o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM em parceria com um grupo de bailarinas providenciou a continuidade de projetos em dança dentro da comunidade. 158 A Lia Rodrigues Companhia de Danças, companhia de dança contemporânea de abrangência nacional e internacional, comemora em 2010 vinte anos de atividades de criação. Para comemorar, estreou dia 12 de março no Centro de Artes a Maré o espetáculo "Pororoca", e até o dia 04 de abril apresentou espetáculos que marcaram esses anos de trabalho, como "Encarnado", "Formas Breves" e "Aquilo de que somos feitos". A parceria entre a Redes de Desenvolvimento da Maré com a Lia Rodrigues Companhia de Danças viabilizou a criação do Centro de Artes da Maré: um lugar de partilha, convivência e de troca de saberes, direcionado para a formação, criação, difusão e produção das artes. No Centro de Artes da Maré a Companhia desenvolveu sua última criação "Pororoca", e atualmente realiza ensaios, apresentações e está a frente do projeto «dança para todos» com aulas gratuitas de consciência corporal, dança contemporânea para jovens e dança criativa para crianças. Informações disponibilizadas em: 69

A dança também ganhou espaço na Cidade de Deus. O Programa Educação pelo

Movimento (PEM), idealizado pelo coreógrafo Sylvio Dufrayer em 2001, é assunto do artigo

No palco da Cidade de Deus, de Solange Caldeira.159 Na favela, mundialmente conhecida após o filme de Fernando Meirelles (Cidade de Deus – 2002), setenta crianças se espalham pelo chão para aprender capoeira, dança folclórica, dança de rua, ginástica olímpica e circo.

A reportagem A cidade unificada 160 confere ao trabalho de iniciativas de notoriedade como o Nós do Morro e o AfroReggae, um movimento que “costura” as fissuras entre o morro e o asfalto na cidade que foi um dia considerada, fazendo alusão à obra de Zuenir Ventura, partida. Na matéria, é o próprio Zuenir quem comemora o surgimento nos últimos anos de ações afirmativas como os movimentos que se empenham em sair do gueto e ganhar visibilidade “não pelos tiros de AR15, mas pelos sons, cores e gestos da arte e da cultura.”

Nas artes plásticas, foi divulgada pela imprensa a maquete Morrinho, resultado da brincadeira de um grupo de meninos da favela do Pereirão que, utilizando materiais como azulejos quebrados e tijolos, criou um cenário da favela em miniatura com mais de 300 metros quadrados.161 Nas Artes Cênicas destacam-se também os trabalhos do Instituto

Stimulu Brasil por meio das ações do Galpão Aplauso, e da ONG Spectaculu. 162

159 CALDEIRA, Solange. No palco da Cidade de Deus. In: Teatro e dança como experiência comunitária. Org. Narciso Telles, Victor Hugo Adler Pereira e Zeca Ligiéro. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009. 160 AUTRAN, Paula. A cidade unificada. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Rio. p. 30. 161 A matéria divulgou o feito dos meninos do Pereirão. Parte da maquete viajou para a Bienal da Veneza, virou documentário e ganhou exposição também no Centro Cultural da Caixa, Rio de Janeiro. MONTEIRO, Karla. Favela Chique. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15/07/2007. Revista de O Globo. P. 18-20. 162 A Spectaculu é uma instituição não-governamental sem fins lucrativos que se propõe a complementar a educação escolar, oferecendo atividades artísticas, culturais e de iniciação profissional, para jovens de 16 a 21 anos, de comunidades da periferia do Grande Rio, em situação de risco. Localiza-se em um Galpão na area portuária do Rio. O Instituto Stimulu Brasil, organização sem fins lucrativos, foi criado para viabilizar programas, projetos e ações sociais cujos beneficiados são os jovens de diversas comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro. O Instituto idealizou e desenvolveu os programas Talentos da Vez, Espaço do Artesão e os Laboratórios de Práticas inclusivas, além de coordenar a Cia. Aplauso, (companhia de teatro) e o Centro Espacial (centro de artes plásticas), formados por jovens que já passaram pelo Talentos da Vez. O Instituto participa também do PróJovem, programa do Governo Federal. O Galpão Aplauso localiza-se perto da Rodoviária Novo Rio. Informações disponíveis em: < http://www.spectaculu.org.br> e < http://www.aplauso.art.br> 70

Em 2007, uma capa de revista exibia como manchete: A favela se diverte. 163 A convite da revista sete fotógrafos oriundos de diferentes comunidades cariocas capturaram imagens que retrataram o tema título da reportagem. Dizia o texto: “Um olhar de dentro para fora, sem preconceitos ou estereótipos.” O grupo de fotógrafos fazia parte da primeira turma formada pela Escola de Fotógrafos Populares, criada pelo Observatório das Favelas164. As fotografias mostram cenas alegres do cotidiano de crianças e adultos nas favelas, as brincadeiras com bolinha de gude e pião, a recreação na piscina da laje, o churrasco de fim de semana, a garotada soltando pipa. Também organizado pelo Observatório das Favelas, o Festival de

Audiovisual Visões Periféricas165 exibiu uma diversidade de vídeos, demonstrando a força do que vem sendo produzido pelas periferias de todo o Brasil. As produções trouxeram diferentes visões que a periferia apresenta sobre si mesma, uma variedade de retratos e relatos que a cada dia se colocam cada vez mais no centro do debate. O editorial do programa do Festival dizia:

É a periferia se colocando na ofensiva, mostrando-se capaz de operar linguagens e meios. Mais do que isso de se representar, de falar por ela mesma, de fazer arte. Aqui não há carência. Não se briga pelo direito ao discurso. O discurso já está sendo feito. 166

Um projeto cinematográfico, agora reformulado, é também destaque dentro deste movimento. Em 1961, cinco jovens cineastas de classe média, oriundos do movimento estudantil universitário, realizavam o filme Cinco Vezes Favela. , Joaquim

163 Fonte: A favela se diverte. Lá no morro que beleza. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 18/03/2007. Revista O Globo. p. 20-27. 164 O Observatório de Favelas é uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. O Observatório busca afirmar uma agenda de Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no âmbito das políticas públicas. Criado em 2001, sua sede fica na Maré, no Rio de Janeiro, mas sua atuação é nacional. Foi fundado e é composto por pesquisadores e profissionais oriundos de espaços populares. Informações Informações disponíveis em: 165 O Festival aconteceu em junho de 2007 no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal no Centro do Rio e contou com o financiamento também da Petrobrás, SESC, Projeto Reperiferia, Prefeituras do Rio e de Nova Iguaçu. Fonte: Informativo Oficial do Festival (junho de 2007). Festival Audiovisual Visões Periféricas. No ano seguinte, 2008, uma outra mostra audiovisual incluiu a participação de produções provenientes da periferia. Promovida pela Light o concurso de vídeos amadores recebeu o nome de Mostre a sua Comunidade. 166 Informativo Oficial do Festival (junho de 2007). Festival Audiovisual Visões Periféricas. P. 2. 71

Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges foram os jovens que tornaram o filme um marco do cinema moderno brasileiro e um dos fundadores do Cinema

Novo. Passadas quatro décadas, Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos reúne dessa vez jovens cineastas moradores de favelas do Rio de Janeiro167, treinados e capacitados a partir de oficinas profissionalizantes de audiovisual ministradas por grandes nomes do cinema brasileiro, como Nelson Pereira dos Santos, , Walter Lima Jr., Daniel Filho,

Walter Salles, Fernando Meirelles, João Moreira Salles e outros. O projeto apresenta cinco filmes de ficção, de cerca de 20 minutos cada um, sobre diferentes aspectos da vida em suas comunidades.

Em comum a todos esses eventos e ações, que aos poucos encontram mais lugar nos veículos de comunicação, está o fato de que todas elas, por meio de diferentes linguagens, alteram, mesmo que ainda discretamente, a perspectiva hegemônica que aprisiona a imagem da favela a noções negativas. São vozes que se manifestam e falam por si mesmas, que procuram tornar a favela mais autora de sua história. Gradualmente, elas vêm forçando uma mudança no discurso da mídia, que muitas vezes preferiu associar o jovem favelado como um indivíduo “carente”, ou altamente suscetível a cooptação pela criminalidade. O diretor teatral

Amir Haddad, do grupo Tá na Rua, aplaude a explosão de grupos teatrais nas comunidades que, segundo ele, recupera o teatro como arte pública: “O teatro é uma atividade de todo e qualquer cidadão. Não se trata de ensinar arte para salvar o favelado da miséria, para que ele não assalte a minha mãe na esquina, mas para formar cidadãos capazes de interferir no seu destino.”168

A favela é o lugar onde a tensão entre os vetores “de cima” e “de baixo” trava uma batalha diária. Um território atacado pela globalização neoliberal, perversa, cujos disparos

167 São eles: Luciana Bezerra, Cacau Amaral, Rodrigo Felha, Wavá Novaes, Manaíra Carneiro, Cadu Barcellos e Luciano Vidigal. 168CEZIMBRA, Márcia. O Morro pede passagem. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Revista O Globo. P.22. 72

privam as populações mais pobres do direito aos “bens públicos” como Educação, segurança, lazer, saúde; mas um espaço de onde emergem ações criativas, movimentos capazes de reagir

à situação de privação. Há mais de um século a favela faz parte do Rio de Janeiro, e durante a maior parte deste tempo ela tem sido vista como um território à parte. A ampla rede social que se formou nos últimos anos, incluindo movimentos comunitários e a participação de organismos da sociedade como um todo tem tentado construir outra perspectiva, que enfrenta a cultura histórica de exclusão e que procura ver a cidade como menos partida e mais unificada.

A dinâmica deste novo projeto de cidade permite o encontro entre diferentes grupos sociais e territoriais, autoriza o trânsito da produção artística e cultural da favela por todos os circuitos, cria sociabilidades inéditas. As celebridades que se tornam parceiras da juventude da periferia, os rostos da favela nas capas de revista, os empresários “responsáveis sociais”, a favela na telenovela. Mas, diante desta complexa trama de transações sociais, políticas e também econômicas cabe desconfiar; perguntar em que situações a comunidade/favela é de fato sujeita, de fato favela pela favela, ou mero objeto do interesse de grupos, representantes dos “vetores de cima.”

É que a narrativa dominante cria a doença da exclusão, mas ao mesmo tempo prepara adocicados remédios paliativos. Algumas vezes seus interesses ocultos, objetivos ilusórios, criam um simulacro de transformação social; assim, as comoventes campanhas de doação na

TV ou o reconhecimento pela mídia dos rostos da favela, ameaçam isentar a sociedade, deformada e desigual, da responsabilidade maior que são as verdadeiras mudanças estruturais, a democratização real das oportunidades na educação, saúde, moradia, emprego, serviços, cultura. Isto não quer dizer que devam ser negadas as “parcerias”, ou que deva ser rejeitada a

“poliglosia da sociabilidade”169, necessária para que ocorra o diálogo entre os mais variados

169 A expressão “poliglotas da sociabilidade” é de autoria de Rubem César Fernandes. Ao descrever a necessidade da construção de diálogo entre os mais diversos segmentos sociais, tarefa especialmente importante 73

atores sociais como órgãos governamentais, agências de cooperação internacional, universidades e escolas, empresas, políticos, artistas, intelectuais, organizações comunitárias, associações de moradores; mas, que se deva avaliar em que medida a favela/comunidade tem sido tratada como sujeita de seus desejos ou como objeto de interesses alheios.

O diálogo ampliado entre diversos setores da sociedade obriga uma constante negociação entre personagens que guardam entre si diferentes posições de poder. Esta é uma negociação inevitável, faz parte do convívio com a tensão entre os vetores “de cima” e “de baixo”. Mas o que está em jogo nessa tensão é a seguinte pergunta: a quem interessa mais o

“projeto”? Até que ponto nele está assegurado a participação e autonomia da favela/comunidade? O que se faz necessário é refletir sobre quais circunstâncias favorecem a favela/comunidade o seu verdadeiro direito de, nas palavras de Paulo Freire - nomear o mundo.

Mesmo que o fenômeno recente da explosão de grupos e iniciativas oriundas da favela tenha esgarçado redes de parcerias e trocas, dentro do território da luta as pessoas sempre descobriram formas alternativas para enfrentar as suas dificuldades, compartilhando a experiência da escassez, mas também a da convivência e da solidariedade, produzindo cultura, desenvolvendo ações como resposta às suas próprias necessidades; encontrando meios para se tornarem mais donas de sua história. É ela mesma, a favela pela favela quem protagoniza a luta para ocupar o seu lugar na cidade, proferindo narrativas alternativas.

Sem dúvida, o encontro entre variados atores sociais tem contribuído com, nas palavras de Jaílson dos Santos, “a criação de novas redes de sociabilidade” e estimulado, nesses para as organizações do terceiro setor, Fernandes afirma que: “Os ativistas do terceiro setor devem aprender a arte da tradução, tornar-se poliglotas da sociabilidade, ser capazes de entrar e sair dos vários espaços sociais com um mínimo de elegância e reconhecimento.” Ela será mais abordada no capítulo 4 deste trabalho. Cf. FERNANDES, Rubem César. Público porém privado – o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. George Yúdice, fazendo alusão a expressão criada por Rubem César, compara a atuação de José Junior, coordenador do AfroReggae, que se tornou um expert na articulação de parcerias para o grupo de Vigário Geral, como a de um poliglota da sociabilidade. Cf. YÚDICE, George. A Conveniência da cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.206-207.

74

espaços populares e também fora deles, o surgimento de ações inovadoras, que buscam: “O reconhecimento e afirmação de identidades entre os jovens de origem popular. De quebra, promovendo também a construção afirmativa de uma identidade plural para o Rio.”170

São exemplos de iniciativas que favorecem a produção de genuínas narrativas alternativas, baseadas em relações de troca, solidariedade e criatividade; ações que indicam um caminho em direção a fé de Milton Santos: “Se a realização da história, a partir dos vetores “de cima”, é ainda dominante, a realização de uma outra história a partir dos vetores

“de baixo” é tornada possível.”171 A arte tem nesta proposta grande significado. De acordo com Tim Prentki:

A narrativa alternativa é aquela na qual as relações são formadas na base da dignidade, e não do dinheiro. É a narrativa que tem como objetivo a criatividade e imaginação e, portanto, uma narrativa onde a arte tem papel importante. No entanto, não me refiro à narrativa da satisfação pessoal através do afastamento das injustiças do mundo, mas de um processo de satisfação social através da autodeterminação de agrupamentos formados por relações horizontais, e não verticais.172

Em tempos de insegurança e desengajamento, a arte, especialmente o teatro, que neste estudo mais nos interessa, tem o poder para criar espaços nos quais ganharão voz e representação narrativas alternativas; nele se restitui o espírito comunitário, o sentido do coletivo, o sentimento de pertencimento. O palco da favela pode ser uma arena na qual cidadãos se redescobrem mais críticos, menos espectadores e mais autores, ou nas palavras de

Amir Haddad mais “capazes de interferir no seu destino.”

A favela como palco e personagem pode significar a expressão legítima de uma comunidade-sujeito em busca de seu desenvolvimento, uma “recusa combativa”173 ao modelo neoliberal de globalização. Para Tim Prentki: “O teatro desenvolve espaços onde alternativas

170 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p.109. 171 Ibidem, p. 166. 172 PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p. 19. 173 Expressão utilizada por Mike Davis em Planeta favela. 75

podem ser colocadas, onde, através da força da narrativa dramática, os atores podem ser transformados de objetos em sujeitos de seu próprio desenvolvimento.”174 Bertolt Brecht confiou ao teatro a tarefa de modificar o mundo. É com a mesma confiança, que o palco da favela pode assumir-se como um agente ativo e transformador; resta refletir sobre em que circunstâncias ele poderá exercer este papel.

174 PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p.26. 76

3 - O TEATRO APLICADO – abrangência, percurso e teoria.

3.1 - O universo do teatro aplicado.

Todo dia o teatro encontra um lugar diferente para acontecer. Um fenômeno constatado aqui no Brasil e também em outras partes do mundo tem levado esta arte aos mais variados contextos e ampliado o seu acesso a diversos segmentos da população. Uma grande diversidade de práticas teatrais cruza a fronteira das salas convencionais do teatro comercial, para alcançar e agir sob outras esferas, como em projetos comunitários realizados nas periferias e favelas das grandes cidades; em ações na área da educação não formal, fora dos muros das escolas; em programas em prol dos direitos humanos e da saúde; nas ações patrocinadas por empresas, pela igreja ou nos projetos das ONGs. Apesar de se tratar de um universo que se amplia com grande velocidade, a reflexão teórica e crítica sobre este campo, entre nós, ainda é pouco sistematizada. Muito embora, recentemente, elas tenham começado a atrair a atenção do meio acadêmico e a despertar reflexões sobre o tema também aqui no

Brasil.

Uma publicação de 2009 revela o crescente interesse da universidade em discutir experiências artísticas em contextos comunitários. Teatro e Dança como experiência comunitária175 reúne textos de professores de diversas universidades brasileiras interessados em debater o tema ainda pouco visitado pelas pesquisas acadêmicas. Na apresentação do livro a professora Márcia Pompeo Nogueira afirma que: “Apesar de muito praticadas, essas experiências artísticas comunitárias tem pouca visibilidade, pois estão fora dos holofotes do

175 LIGIÉRO, Zeca; PEREIRA, Victor Adler; TELLES, Narciso. (Orgs.) Teatro e dança como experiência comunitária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.

77

teatro comercial e acontecem em regiões periféricas.”176 Como sugere a autora, o caráter periférico dessas experiências “talvez explique a distância da academia, que só recentemente abriu espaço para discussão e reflexão sobre trabalho nessa linha.”177 Até então, muitos estudos estiveram mais dedicados às manifestações do teatro em âmbito escolar.178

Em Dentro ou fora da escola?179, a professora Maria Lucia de Barros Pupo reconhece a multiplicação das iniciativas no campo da educação não formal que têm levado o “fazer e fruir” teatral a espaços diversificados, além da escola:

Demandas de entidades as mais variadas, tanto ligadas a sociedade civil quanto às ONGs, quanto instituições ligadas ao poder público na área da cultura como é o caso de centros culturais, alem de setores da área de saúde, constituem algumas das múltiplas esferas nas quais os processos de criação em teatro – e de modo mais abrangente, nas artes da cena – revelam uma área em plena expansão.180

As experiências teatrais destacadas por Pupo envolvem pessoas “comuns”, grupos de não atores, como atuantes e espectadores. De acordo com a professora, essas iniciativas estão inseridas em uma noção ampla de educação “baseada no princípio de que as ações interativas entre os indivíduos promovem a construção de saberes.”181 Pupo inclui neste quadro de ações, por exemplo, as desenvolvidas por alguns grupos teatrais, como o mineiro Galpão que inaugurou um núcleo pedagógico que oferece cursos de teatro para iniciantes, sejam crianças, jovens ou adultos interessados em aprender teatro. Também o grupo Oi Nóis aqui Traveiz, que criou uma escola na periferia de Porto Alegre “também voltada a um trabalho teatral com

176 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Um olhar sobre o teatro e a dança como experiência comunitária. In: Teatro e dança como experiência comunitária. Organização, Victor Hugo Adler Pereira, Zeca Ligiéro, Narciso Telles – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. p. 8. 177 Ibidem, p. 8. 178 Como aponta Arão Paranaguá em Teatro e formação de professores, durante os anos 80 e 90 foram produzidas muitas pesquisas no Brasil sobre teatro na educação escolar. O autor cita, a título de exemplo, as pesquisas realizadas na ECA-USP por Ingrid Koudela, Maria Lúcia Pupo e Ricardo Japiassu, entre outros. Cf. SANTANA, Paranaguá Arão. Teatro e formação de professores. São Luís: EDUFMA, 2000. p. 28. 179 PUPO, Maria Lúcia de Barros. Dentro ou fora da escola? In: URDIMENTO - Revista de Estudos em Artes Cênicas – Especial. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro. – vol. 1, n.10 (dez, 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. Anual. P. 59. 180 Ibidem, p 59. 181 Ibidem, p. 60. 78

iniciantes, importante eixo da função social almejada pelo grupo.”182 São exemplos, que segundo a professora, atestam um quadro singular, no qual coletivos teatrais revelam uma

“notável capacidade de intervenção na vida social. (...) O teatro transborda das margens que até há pouco pareciam conter o seu percurso.”183 Por isso, se antes as atenções do meio acadêmico estiveram mais voltadas para as experiências do teatro dentro da escola, hoje investigar a relação entre teatro e educação levando em consideração apenas esta perspectiva já não é mais suficiente. A variedade de iniciativas que incluem a parceria entre teatro e educação nos diversos contextos citados neste início de capítulo, obrigou uma resposta da academia à nova realidade; dilatou o foco de seus estudos teóricos, o que vem contribuindo, por exemplo, com a maior atenção à investigação de práticas artísticas comunitárias, bastante numerosas em nosso país hoje.

A constatação de que atualmente existem múltiplas esferas acolhendo as artes da cena redimensionou o campo que trata da relação teatro/educação e despertou entre professores e pesquisadores um debate sobre o uso de uma terminologia a ele mais adequada. Em

Pedagogia do Teatro184, Ingrid Koudela argumenta sobre a questão do uso de terminologias dentro da área de conhecimento que aborda as interelações entre o teatro e a educação; questão que, como aponta a autora, sempre gerou muitas polêmicas entre os estudiosos da

área. De acordo com Koudela, aqui no Brasil o recente batismo do termo Pedagogia do

Teatro e Teatro na Educação pelo grupo de trabalho da Associação Brasileira de Pesquisa e

Pós-Graduação em Artes Cênicas (GT da ABRACE) buscou “incorporar as novas dimensões da pesquisa que vem sendo realizada na área.”185

182 Ibidem, p. 60. 183 Ibidem, p. 61. 184 KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do IV Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124. 185 Ibidem, p 124. O termo Pedagogia do Teatro e Teatro na Educação foi mantido no V Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – ABRACE, realizado em 2008. 79

No texto, a autora nos oferece como novidade a existência de um dicionário publicado em língua alemã intitulado Dicionário de Pedagogia do Teatro186. Segundo Koudela, o

Dicionário traz o desafio de constituir-se como um programa de pesquisa em Pedagogia do

Teatro. No verbete “campos profissionais de pedagogia do teatro” há uma descrição sobre o

“espectro profissional desta área teórico-prática na Alemanha.”187 Nele estão distintas oito

áreas de trabalho nucleares que incluem diversos perfis de iniciativas inseridas no campo da

Pedagogia do Teatro, entre elas: as desenvolvidas junto a grupos de alunos da Educação

Infantil, dos Ensinos Fundamental e Médio; em iniciativas extracurriculares, como as que acontecem em museus ou centros culturais; no “lazer”, que se refere a projetos de jogo e teatro com crianças em centros de férias; em projetos de integração, prevenção e socialização promovidos por organizações comunitárias ou religiosas; no contexto terapêutico e de saúde, no trabalho realizado em hospitais, centros de reabilitação ou psiquiátricos etc. Esta abordagem, que chega da Alemanha, indica a tendência de incluir dentro de uma mesma nomenclatura o crescente leque de práticas teatrais em ação nos mais diferentes contextos daquele país.

Aqui no Brasil, a adoção do termo Pedagogia do Teatro, ou Pedagogia Teatral, parece apontar a mesma tendência. O seu uso já é bastante freqüente em publicações na área, como apontam os exemplos a seguir: Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo188, de Flávio

Desgranges e Pedagogia do Teatro e o teatro de rua189, de Narciso Telles; ou ainda no artigo:

186 KOCH, Gerd e STREISAND, Marianne (Orgs.) Wörterbuch der Theaterpädagogick. Berin; Scribni-Verlag, 2003. Apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124 - 125. 187 KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós- graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124. 188 DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Ed.Hucitec, Edições Mandacaru, 2006. 189 TELLES, Narciso. Pedagogia do Teatro e o teatro de rua. Porto Alegre: Mediação, 2008. 80

Da pedagogia do ator à pedagogia teatral: verdade urgência, movimento190, de Gilberto Icle.

O termo Pedagogia do Teatro foi também reconhecido em verbete pelo Dicionário do Teatro

Brasileiro191. Muito embora, sejam também correntes entre nós, outras terminologias como: teatro em comunidades, teatro na prisão, teatro no hospital e ação cultural.192 Como observou Koudela, a “questão da terminologia sempre foi polêmica”193, por isso, os estudos no campo trocam o convívio com o consenso pelo convívio com a multiplicidade de abordagens.

Em Cartografias do Ensino do Teatro194, os professores Adilson Florentino e Narciso

Telles nos oferecem a curiosa imagem de um caleidoscópio para ilustrar o universo cada vez mais plural desta área nomeada como Pedagogia do Teatro. O desafio de compreendê-la exige do observador a atitude de quem “olha” por meio de um caleidoscópio, que a cada

“giro” ilumina um novo modo de ver, investigar, entender a área.

Estudos publicados em língua inglesa revelam que a tarefa de buscar uma compreensão sobre a pluralidade de nomenclaturas, abordagens, métodos, formulações teóricas e históricas

é compartilhada por estudiosos também de outros países. Em vários lugares do mundo, pesquisas acadêmicas vêm tentando responder, em alguns casos com maior, em outros, com menor agilidade, à emergência dessa diversidade de iniciativas.

190 ICLE, Gilberto. Da pedagogia do ator à pedagogia teatral: verdade urgência, movimento. Disponível em: Percevejo online. Vol.1. no. 2 (2009). 191 GUINSBURG, Jacob, FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves. (Orgs.) Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. p.239. Verbete escrito pela colaboradora Ingrid Dormien Koudela. (IDK) 192 O termo Teatro em Comunidades é assumido por Márcia Pompeo Nogueira (UDESC), para delimitar os estudos em torno da experiências de teatro com comunidades “periféricas”. Cabe neste sentido destacar a contribuição das reflexões da professora, cujos artigos, direcionados a este segmento têm ampliado e enriquecido as discussões teóricas sobre o tema aqui no Brasil. A professora é também a idealizadora do Banco de dados em teatro na comunidade, que conta com o apoio da UDESC e com a participação de estudantes bolsistas do Departamento de Artes Cênicas. (Fonte: ). O segmento teatro na prisão é o foco dos estudos de Vicente Concílio (UDESC), de Maria de Lourdes Naylor Rocha (UNIRIO); teatro no hospital assunto da pesquisa da professora Lucia Helena de Freitas (UNIRIO) e o termo ação cultural, que aparece em textos recentes de Maria Lúcia Pupo (USP) quando a autora se refere a inciativas de teatro no campo da educação não-formal ou do trabalho das ONGs. 193 KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós- graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124. 194 FLORENTINO, Adilson e TELLES, Narciso. (Orgs.) Cartografias do Ensino do Teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009. 81

Na Inglaterra, por exemplo, a literatura dedicada à área também acolhe diversos termos e “modalidades teatrais” tais como: performance comunitária, teatro para mudança social, teatro popular, teatro de intervenção, teatro para o desenvolvimento, teatro comunidade e teatro para solução de conflitos. Embora cada uma delas apresente formulações teóricas específicas, não é difícil identificar entre elas algumas características comuns: todas acontecem longe do âmbito das salas tradicionais de espetáculo, além do território do mainstream, ou do teatro comercial195; são iniciativas que levam o teatro a determinadas comunidades, que envolvem a participação de pessoas comuns, suas histórias, lugares, desejos, prioridades e que são motivadas pelo desejo político de transformar, por meio do teatro, realidades individuais e coletivas. Em recentes publicações em língua inglesa, como veremos mais adiante, essas práticas foram reunidas num termo abrangente e inclusivo que vem ganhando destaque pelo mundo – applied theatre (teatro aplicado).

No âmbito internacional, desde os anos noventa, cresceu o número de pesquisas dedicadas à atuação desses “segmentos” teatrais. As obras de autores como Eugene Van

Erven, Helen Nicholson, Baz Kershaw, Zkes Mda, Kees Epskamp e Tim Prentki contribuem com importantes reflexões sobre este “universo”. Em títulos como: Community Theatre,

Popular Theatre, Theatre for Development, Applied Drama e Applied Theatre Reader196, os autores optam pelo uso de diferentes termos e elaboram suas próprias definições para explicar as práticas que povoam a área. Em Defining the Territory (Definindo o território), capítulo do

195 No inglês a palavra mainstream recebe as seguintes definições: alguma coisa que pertence a uma área estabelecida de atividade; uma tendência de opinião ou modo que prevalece, domina. Cf. Shorter Oxford English Dicionary. O uso da palavra no caso deste trabalho estaria relacionado à noção de um teatro estabelecido, dominante. Optei por usar mainstream como sinônimo de teatro comercial, ideia que considero mais próxima da sugerida pela definição da palavra em inglês. 196 EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London and New York: Zed Books, 2006. KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London: Routledge, 1992. MDA, Zakes. When people play people. Development communication through theatre. London and New Jersey: Zed Books, 1993.NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2005. PRENTKI,Tim and PRESTON, Sheila. (orgs.) The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London and New York, 2001. 82

livro Popular Theatre in Political Culture (Teatro Popular na Cultura Política), Tim Prentki aponta para a necessidade de esclarecer a “linguagem neste campo e clarear o uso de termos.

Embora algumas separações possam ser vistas apenas como diferenças semânticas, um preciso delineamento entre as atividades teatrais com interesse social parece ser necessária”.197

O autor afirma que o território cresce com rapidez e que definições e a utilização cuidadosa de terminologias podem ajudar na compreensão dos trabalhos realizados na área, suas intenções, metodologias, processos e uso de formas teatrais. Assim como Prentki, durante os últimos anos outros estudiosos se dedicaram à tarefa de procurar distinguir cada um desses segmentos e práticas interdisciplinares, híbridas, que envolvem o teatro, a educação, a sociologia, os estudos culturais, a psicologia e a antropologia. De acordo com o autor, cada uma dessas linhas possui hoje, sua própria teoria, debate e prática especializada.

Entretanto, a necessidade de estabelecer e conceituar divisões, categorias, vem sendo questionada. O próprio Prentki, em recente publicação, opta por abordar o “universo” utilizando uma perspectiva mais abrangente e menos segmentária.198 Além do termo, teatro aplicado, outro também inclusivo, é encontrado nos estudos britânicos - o drama aplicado.

Como esclarece Helen Nicholson:

Esses termos começaram a ser utilizados a partir dos anos noventa, e aceitos por acadêmicos, práticos do teatro e elaboradores de projetos como uma espécie de abreviação para descrever formas de atividades dramáticas que existem prioritariamente fora do mainstream convencional das instituições teatrais e que estão especificamente destinadas a beneficiar indivíduos, comunidades e sociedades.199

197 PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. p.13. 198 No livro The Applied Theatre Reader, os editores Tim Prentki e Sheila Preston incluem uma série de reflexões sobre iniciativas no mundo todo, envolvendo as áreas do teatro na educação, teatro na prisão, teatro de intervenção, entre outros. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. 199 NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2005. p.2. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 83

A autora enfatiza que: “Incluído nesta pasta de drama/teatro aplicado estão práticas diversas como, por exemplo, o drama na educação e o teatro na educação, teatro e educação para saúde, teatro para o desenvolvimento, teatro nas prisões, teatro comunidade (...)”.200

Ainda segundo Nicholson, o drama aplicado seria o teatro que acontece “em lugares sem muito glamour”201, como nos asilos para velhos, abrigos para desempregados ou em prisões.

Helen Nicholson explica que práticos do teatro têm trabalhado em áreas da educação, da terapia e das comunidades por muitos anos, mas a emergência dos termos teatro/drama aplicado revela um interesse em encontrar uma teoria e uma motivação política comum a todas às práticas que se incluem neste campo.

A autora também afirma que por se tratarem de termos relativamente novos ainda não existe um real consenso sobre como cada um deles deve ser usado. As controvérsias entre o uso de um ou outro giram em torno, segundo ela, de um debate muito próximo do levantado entre os anos 70 e 80 na Inglaterra, que distinguia, naquele país, o drama in education – DIE

(drama na educação), do theatre in education – TIE (teatro na educação). Comenta Nicholson:

“DIE estava baseado no ensino de conteúdos do currículo através do teatro e o TIE envolvia atores-professores trabalhando com estudantes em programas de performance participativa”.202 O primeiro estaria mais interessado na utilização do teatro como um meio para abordar outros conteúdos, enquanto que o segundo estaria mais focado nas questões próprias desta arte e na educação estética dos alunos.203

De fato, a própria autora observa que não há como estabelecer nítidas diferenças entre um e outro, são termos que se referem a práticas flexíveis e intercambiáveis. Os cursos de educação superior na Inglaterra em teatro/drama aplicado revelam sutilezas e diferentes

200 Ibidem, p.2. 201 Ibidem, p.2. 202 Ibidem, p.4. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 203 A discussão sobre o drama, proveniente da vertente anglo-saxã, vem sendo trazida para o Brasil pela professora Beatriz Ângela Vieira Cabral. Cf. Drama como método de ensino. São Paulo: Editora Hucitec, 2006. v. 1. 84

interpretações para as nomenclaturas. A Central School of Speech and Drama, em Londres, por exemplo, descreve a prática do teatro aplicado como “intervenção, comunicação, desenvolvimento, autonomia e expressão no trabalho com indivíduos e comunidades específicas”.204 Para o departamento de drama da Universidade de Manchester o teatro aplicado refere-se ao teatro que acontece em “espaços não tradicionais e que envolve comunidades marginalizadas”.205 Nicholson assume o hibridismo dos termos e comenta:

Se o drama aplicado e o teatro aplicado são gêneros híbridos, minha escolha pelo drama aplicado como título deste livro, e a minha menção ao “teatro” no subtítulo, não tem a intenção de causar uma grande controvérsia. Eu estou tentando ser o mais inclusiva possível, oferecendo igual peso aos dois termos.206

A autora prossegue nos lembrando a etimologia das palavras drama e teatro. O drama207 derivado do grego dran guarda o sentido do fazer, enquanto que teatro (theatron) significa lugar de assistir. As duas palavras combinadas, segundo Nicholson, indicariam um processo de ação e reflexão que residem nas práticas do drama/teatro aplicado. A autora justifica a opção pelo termo drama aplicado no título de seu livro Applied Drama, the gift of theatre208 argumentando que a palavra teatro tem sido mais associada com a ideia de prédios especializados, iluminação e figurinos, ao invés de com as mais diversas e menos ostentosas práticas do drama/teatro aplicado.

204 NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom and United States: Palgrave Macmillan, 2005. p. 3. 205 Ibidem, p.3. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 206 Ibidem, p.4. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 207 A etimologia da palavra drama vem do verbo grego dran, agir, atuar e da palavra grega drama ação, ato, feito. Cf. The New Shorter Oxford English Dicitionary. Embora em inglês a palavra drama possa também ser associada a peças com conteúdo mais sério, em sua acepção mais ampla refere-se a todas as manifestações das artes dramáticas, por exemplo: drama school (escola de artes dramáticas), drama festival (festival de drama). Patrice Pavis esclarece que: “No Brasil, de um modo genérico, para um público não especializado, drama significa o gênero oposto à comedia. E dentro de uma tradição americana adotada por nosso teatro, o drama é imediatamente associado ao drama psicológico.” Ainda segundo Pavis, em francês o termo é usado apenas para qualificar um gênero em particular: o drama burguês (sec. XVIII), e posteriormente o drama romântico e o drama lírico (sec. XIX).Cf. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. GUINBURG J. e PEREIRA, Maria Lúcia. São Paulo: Perspectiva, 1999. 208 NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. (Drama Aplicado, uma dádiva do teatro). United Kingdom and United States: Palgrave Macmillan, 2005. 85

Nicholson assume a dificuldade em categorizar os trabalhos neste campo como drama aplicado ou teatro aplicado e atenta para o perigo de que um discurso único e homogêneo possa reduzir a rica diversidade de teorias e práticas artísticas presentes neste universo. Para ela, mais do que rotular ou estabelecer definições rigorosas, o que mais importa nestes termos

é o significado da palavra aplicado; é levantar questões sobre porque ou “em quem” o teatro deve ser aplicado, por que razões, com quais intenções. A autora nos chama atenção também para o fato de que os termos podem ser problemáticos se vistos como oposição ao drama/teatro como forma artística; quer dizer, se o aplicado for encarado como algo secundário, com um status inferior, que privilegia o aspecto instrumental e utilitário do teatro em prejuízo do aspecto artístico e da qualidade estética dos trabalhos neste campo. Nicholson

é enfática ao afirmar que: “Qualquer que sejam os objetivos, a qualidade do trabalho do drama aplicado precisa ser alta, ele não pode se basear em repertório artístico empobrecido ou limitado”.209 A assertiva nos provoca a pensar sobre uma perspectiva corrente tanto no meio profissional do teatro, como também em alguns circuitos acadêmicos, de que as manifestações do drama/teatro aplicado não incorporam todas as qualidades da arte teatral “pura”. Na verdade, existe um fantasma que assombra as práticas teatrais que acontecem fora dos espaços tradicionais e que as rotula com frequência como algo que não está à altura do verdadeiro teatro, uma espécie de teatro “de segunda”. Nos últimos anos, muitas dessas experiências vêm provando o contrário, que o teatro pode acontecer em sua plenitude em outros espaços, assumindo diversas formas, atingindo e interagindo com diversas platéias, em diferentes contextos.

Enquanto Helen Nicholson se divide entre o uso dos termos drama ou teatro aplicado,

Tim Prentki assume de vez o segundo como o mais eficiente para alinhavar as práticas incluídas no campo. Para ele, o uso do teatro é mais adequado quando se trata de processos

209 Ibidem, p.6. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 86

que resultem em espetáculos a serem apresentados para uma audiência. Já o drama estaria mais restrito a experiências que envolvem apenas os participantes, sem o resultado final de uma performance com a presença de platéia. Todavia, o autor esclarece que não existe um consenso sobre essas abordagens entre os estudiosos da área.210 De acordo com Prentki teatro aplicado significa:

Um amplo leque de práticas teatrais e processos criativos que levam os participantes e as audiências além do teatro convencional e mainstream para o mundo de um teatro que responde a pessoas comuns, suas histórias, suas localidades e prioridades. O trabalho que acontece, quase sempre, em espaços informais, em lugares não teatrais, numa variedade de ambientes geográficos e sociais: escolas, rua, prisões, centros comunitários, conjuntos habitacionais, ou qualquer outro lugar que possa ser específico ou relevante aos interesses da comunidade. 211

Segundo o autor, o teatro aplicado funciona normalmente em contextos onde a obra criada, e apresentada, tem uma comunicação e impacto específicos para os seus participantes e platéias. Como observa Prentki, os ativistas do teatro aplicado são motivados pela crença que esta arte, vivenciada pelos participantes e assistida pelas platéias, pode fazer alguma diferença na maneira “como as pessoas interagem umas com as outras e com o mundo a sua volta.”212 Prentki afirma que: “Existe um desejo político declarado de usar os processos de teatro a serviço de uma mudança social e comunitária.”213 Em outros casos, mesmo que a intenção seja menos evidente (mas potencialmente não menos política no que diz respeito ao seu efeito) as ações do teatro aplicado estão mais interessadas em revelar as histórias ocultas de uma comunidade.

A escolha por um termo mais inclusivo como este indica a tendência desses estudos em se concentrar em conceitos que regem as práticas no campo, mais do que se dedicar às

210 Informação verbal. 211 PRENTKI,Tim and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. p.9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 212 Ibidem, p. 9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 213 Ibidem, P.9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 87

nuances entre elas. Márcia Pompeo Nogueira contribui com o debate acerca das nomenclaturas para o teatro em ambientes comunitários aqui no Brasil. Em Teatro em

Comunidades: questões de terminologia, assim como Prentki, Nogueira assume que não existe um consenso sobre “a melhor terminologia para se referir a práticas teatrais de cunho educacional, mas que não são dirigidas para sala de aula.”214 No mesmo caminho que os demais autores, ela reconhece que, embora seja vasto o leque de termos e definições, tudo indica que as práticas inseridas neste “tipo” de teatro possuam aspectos bastante comuns:

Trata-se de um teatro criado coletivamente, através da colaboração entre artistas e comunidades específicas. Os processos criativos têm sua origem e seu destino voltados para realidades vividas em comunidades de local ou de interesse. De um modo geral, mesmo usando terminologias diferentes, esboça-se um método baseado em histórias pessoais e locais, desenvolvidas a partir de improvisação. Cada terminologia, a seu modo, guarda relações com um processo educativo entendido ou não como transformador. Do meu ponto de vista podemos, no Brasil, chamar essas práticas de Teatro em Comunidades.215

A opção de Nogueira pelo termo teatro em comunidades deve-se ao fato de que aqui no

Brasil pairem sobre os termos artes aplicadas, ou teatro aplicado, resquícios dos tempos da ditadura, quando, segunda ela:

A terminologia fazia parte das diretrizes curriculares das licenciaturas curtas em educação artística, propostas durante a ditadura militar. Os argumentos a favor do uso de nova terminologia, nesse período, destacavam uma visão de que aos professores de arte bastava uma formação superficial nas linguagens artísticas já que se objetivava sua aplicação educacional.216

Mesmo assim, a autora admite que não há como ignorar o fato de atualmente o termo esteja sendo reconhecido em todo o mundo. De acordo com Nogueira: “Trata-se de um termo que vem ganhando destaque internacionalmente. A última Conferência Internacional de

Exeter, Inglaterra, por exemplo, que recebia o nome de Pesquisa em Drama e Teatro na

214 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro em comunidades, questoes de terminologia. ANAIS do V Congresso da ABRACE, 2008. Disponível em: http://www.portalabrace.org/vcongresso/progpedagogia.html (arquivo pdf, p.1) 215 Ibidem, p. 4. 216 Ibidem, p.4. 88

Educação, ganhou agora o nome de Pesquisa em Drama e Teatro aplicado e Performance. 217

O fato é também observado por Philip Taylor. Segundo ele:

O termo ‘Teatro Aplicado’ tem sido usado cada vez mais nos últimos anos. Intuições de educação superior ao redor do mundo, especialmente na Austrália, Inglaterra e os Estados Unidos, vêm formulando cursos de graduação e centros de pesquisa dedicados a investigar a questão: Como é que o teatro pode ser utilizado em ambientes não teatrais para ajudar construir comunidades mais fortes? (...) Teatro Aplicado se tornou uma descrição particularmente útil por que inclui uma gama de trabalhos que os projetos de teatro foram criando dentro e fora de ambientes educacionais, principalmente em ambientes não teatrais por motivos diversos – conscientização, propondo alternativas, tratando feridas ou barreiras psicológicas, questionando discursos prevalentes, dando voz às opiniões silenciadas e marginais.218

Por isso, para efeitos deste estudo, apesar de interpretações ou traumas que o termo possa ter suscitado em nosso passado, no momento em que ele é escolhido como referência internacional, parece-nos importante trazê-lo novamente à cena, agora com um novo significado.

Para Kees Epskamp existem intersessões entre todas as modalidades teatrais que povoam o universo do teatro aplicado, e que o que mais importa é identificar um “conceito denominador comum” capaz de abraçar todas as manifestações na área, como, sugere ele, o de teatro participativo.219 De fato, o conceito comum a todas essas práticas, destacado atualmente com unanimidade por esses estudos, é o que garante às pessoas, ou às comunidades, a sua participação, colocando em primeiro plano o envolvimento delas no processo criativo.

217 The Sixth International Exeter Conference. Researching Applied Drama, Theatre and Performance. School of Arts, Languages and Literature. Department of Drama. University of Exeter, Inglaterra (2/04 a 5/04/2008). Outro encontro internacional, a ser realizado este ano no Brasil, também utiliza o termo. A programação acadêmica do próximo Congresso da Associação Internacional de Drama/Teatro e Educacão – IDEA, que será realizado na cidade de Belém (Pará) em Julho de 2010, já inclui o termo Teatro Aplicado. Informação disponível em: . 218 TAYLOR, Philip. Applied Theatre. Creating transformative encounters in the community. Portsmouth, NH: Heinemann, 2003. p. xxi. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 219 EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London and New York: Zed Books, 2006. p.11. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.

89

Esta noção é aplicável aos mais diferentes contextos, seja o da escola, o da prisão, o da zona de guerra, da comunidade rural ou da favela. O termo teatro aplicado assume, portanto, que diferentes categorias como teatro na educação, teatro na prisão ou teatro para o desenvolvimento não são áreas necessariamente separadas, mas um grupo de práticas que se interconectam, porque comungam os mesmos valores. É certo, porém, que antes de chegar a esta perspectiva mais unificadora, vários autores contribuíram com debates em torno de cada uma das categorias em questão. Mas de onde vem o teatro aplicado, qual a sua história? E qual seria a origem dos princípios comuns às ações que nele se incluem?

As práticas incluídas no campo do teatro aplicado transitam por diferentes áreas do conhecimento como o teatro, a educação, a sociologia, a política. Por isto, não seria possível traçar a sua trajetória, sem realizar uma investigação multidisciplinar capaz de apontar os principais movimentos dessas vertentes, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.

Quando separadas essas vertentes são como peças esparsas de um quebra-cabeça; mas juntas, nos permitem compreender melhor o cenário e os fatores que contribuíram com o surgimento do teatro aplicado.

3.2 - Transformações na cena ocidental e o percurso do teatro aplicado.

3.2.1 – O teatro e a alforria da sala convencional.

Os movimentos de transformação pelos quais passou o teatro ocidental durante o século

XX exerceram significante influência na origem e trajetória do teatro aplicado. O século presenciou uma explosão de práticas artísticas encorajadas pelo ativismo político e o desejo de redemocratizar o teatro. Já em 1903 na França, um dos primeiros debates que começou a inflar o movimento pela democratização do teatro colocava em questão a estrutura da sala 90

italiana. De fato, como observa Jean Jacques Roubine, “a sala italiana representa o espelho de uma hierarquia social.”220 O autor acrescenta: “A qualidade desigual das localidades, quer se trate da visibilidade, da acústica ou do conforto, não deriva de uma impossibilidade técnica: ela reproduz uma ordem na qual não convém que o pequeno comerciante se beneficie das mesmas facilidades que o príncipe”.221 Romain Rolland sugere um caminho que será mais tarde efetivamente adotado, o de tirar o teatro da sala italiana e instalá-lo em outros lugares:

“Uma única condição me parece necessária para o teatro novo: a de que tanto o palco, como a sala possam abrir-se a multidões, conter um povo e as ações de um povo”.222

Na época, os partidários da democratização do teatro opunham-se à desigualdade perpetuada pela organização da sala. Roubine afirma que: “Os que sonham com uma nova estética de palco contestam a imposição que a sala italiana impõe ao espectador: uma relação com o espetáculo, fundamentalmente estática e basicamente passiva”.223 Ainda de acordo com o autor, o espectador havia se acostumado durante mais de três séculos à tradição ilusionista; o teatro havia se tornado uma “caixinha de mágicas”.

É verdade, entretanto, como admite o próprio Roubine, que as experiências mais inovadoras de tentativas de rompimento com a estrutura italiana, foram acontecimentos excepcionais na rotina do teatro ocidental. Um dos raros exemplos é Jean Vilar que em 1947 venceu o desafio de abandonar o teatro italiano e alcançar uma “autêntica repercussão junto ao público.”224 Naquele ano, Vilar inaugura o festival de teatro de Avignon225, como uma tentativa de resolver vários problemas decorrentes das limitações inerentes a estrutura italiana.

Em primeiro lugar, os diferentes “status” sociais, já que a sala italiana condicionava uma

“prática social de identificação (cada um reconhecendo-se nos seus vizinhos de platéia ou de

220 ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 83. 221 Ibidem, p. 83. 222 Ibidem, p.84. 223 Ibidem, p. 87. 224 Ibidem, p. 94. 225 O Festival de Avignon aconteceu no pátio do Palácio de Papas, em Avignon. Vilar optou sempre por encostar seus espetáculos contra o muro do palácio. Foi uma iniciativa de bastante importância na história do teatro francês até 1951, quando Vilar foi convidado para dirigir o Teatro Nacional Popular. 91

balcão) e de exclusão (apenas a burguesia dispõe dos recursos materiais e culturais necessários para frequentar o teatro.)”.226

Além disso, os três séculos de centralização haviam concentrado a base da vida teatral francesa dentro de alguns bairros parisienses. De acordo com Roubine: “Tratava-se não só de um teatro da burguesia, mas da burguesia parisiense”.227 O sonho de Vilar era criar “um teatro que unisse o público, que abolisse provisoriamente as discriminações sociais”.228 Embora a iniciativa de Vilar tivesse mantido a relação frontal com a platéia, ele optou sempre por manter os espetáculos contra o “muro de Avignon”, as proporções, a largura e profundidade do palco, além da distância entre os espectadores e o proscênio transformava radicalmente a convenção formal que estamos abordando.

De acordo com Roubine, o festival criou um contexto favorável a mudanças de comportamento do público em relação ao espetáculo. Segundo ele, os eventos ali tiveram um caráter de assembléia festiva, evocando o tempo em que o teatro refletia uma festa de congregação popular, muito distante do ritual burguês parisiense. Não há dúvida que historicamente a experiência de Avignon teve bastante importância na transformação dos hábitos e práticas do teatro francês. No decorrer da década de 50 multiplicou-se o número de festivais de verão, “em qualquer lugar onde o ambiente natural propiciasse o encontro, ao ar livre, entre o público e o espetáculo”.229

Assim, a explosão do teatro para além do espaço convencional durante o século XX, além de significar um impulso para a descoberta de novas possibilidades formais e de linguagens, representou também um movimento de disseminação desta arte e facilitou o seu reencontro com uma população que, ao contrário da classe burguesa, não podia pagar os ingressos do circuito oficial. Ele colocou em discussão a natureza do evento teatral, que desde

226 ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 94. 227 Ibidem, p 95. 228 Ibidem, p 96. 229 Ibidem, p. 97. 92

o final da Idade Média até a época moderna o havia transformado em uma transação comercial.

Quatro séculos antes da explosão do espaço, o teatro havia sido confinado nos edifícios teatrais; o espetáculo se transformara em “produto”, algo a ser consumido por aqueles que por ele pudessem pagar. Em Londres, no século XVI, o aumento muito grande da população possibilitou a apresentação de teatro em prédios construídos para esta função específica, além,

é claro, de uma audiência comercialmente viável. Não foi à toa, que o primeiro edifício teatral londrino ganhou, em 1576, o nome de The Theatre (O Teatro), lugar onde o público primeiro pagava, para depois assistir ao espetáculo. Até então, aquela cidade, e outras européias, acolhiam como expressão popular e espontânea os Mistérios230 medievais, que apoiados em histórias bíblicas aconteciam diante das catedrais e agrupavam todas as classes da sociedade em total participação e comunhão. Como explica Ricardo Brugger Cardoso:

As manifestações artísticas se integraram à realidade daquela comunidade, em espaços que literalmente se confundiam: o comércio, as residências, o céu o chão, todo aquele ambiente participava do espetáculo, transformando a cidade, um espaço cotidiano, em espaço teatral. 231

Naquele momento, concretizava-se a ideia da cidade como teatro, já que, de acordo com o autor, “os limites físicos entre a cena teatral e a cena cotidiana eram muito tênues.” Como esclarece Cardoso, as encenações pertenciam, portanto, ao universo urbano, as representações estavam livres para ocorrer em praças públicas, nas salas dos palácios, no interior de um convento ou nos pátios das igrejas. Durante o século XVI, o espaço teatral foi deixando de

230 Esses eventos ofereciam para todas as classes da população o ensinamento da história sagrada, sob a forma da linguagem teatral. 231 CARDOSO, Ricardo Brugger. Relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. (org) Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras FAPERJ, 2008. p.81. No artigo Brugger analisa a ideia da cidade como palco. No texto o autor reconhece que, ao mesmo tempo em que houve um expressivo desenvolvimento técnico no edifício teatral, observa-se também que houve certo interesse pela realização de espetáculos cênicos em espaços não especializados, e, portanto, a noção de que as ações do espetáculo não dependem necessariamente de uma estrutura arquitetônica. 93

ocupar o espaço comunitário das cidades, das praças públicas e da feira popular, para residir nos salões ducais e depois nos edifícios construídos para este fim específico.

Ben Johnson, dramaturgo inglês contemporâneo de Shakespeare, em uma de suas peças,

A Feira do dia de São Bartolomeu,232 critica a perda do aspecto de festa popular do teatro em função de sua formalização. Johnson, apesar de ele mesmo ter feito parte daquele teatro, foi capaz de enxergar as perdas e contradições daquela nova realidade, que confinava o teatro dentro dos teatros e o submetia a critérios de rentabilidade e ao gosto das classes que por ele podiam pagar.

Assim, o que observamos é que os processos de modernização do teatro e evolução do espetáculo a partir do início do século XX, que refletiu mudanças em relação a vários aspectos como a rejeição à cena naturalista, o surgimento da figura do encenador, os avanços nos recursos de iluminação, as discussões sobre a relação entre o texto dramático e a encenação, trouxe à tona também a flexibilização em relação ao uso do espaço. Em 1922,

Adolphe Appia e Gordon Craig previam possibilidades mais variadas para o futuro do teatro.

Craig escreveu nas margens de um catálogo:

Uma necessidade me surgiu: o teatro deve ser um espaço vazio com apenas um telhado, com um piso e paredes, no interior desse espaço é preciso erguer para cada novo tipo de peça, um novo tipo de palco e de auditório temporário. Descobriremos assim novos teatros, por que cada tipo de drama exige um tipo especial de lugar cênico.233

232 A Feira do Dia de São Bartolomeu (1614) é uma comédia de Ben Jonhson, a enorme vitalidade da feira e não o enredo é o foco de atenção da obra. Nesta barulhenta e animada peça, puritanos e prostitutas, rústicos e batedores de carteiras, vendedores, trapaceiros, galãs e caridosos se esbarram e por vezes se enfrentam. Entre os muitos incidentes, um juiz reformador, porém desajeitado se encrenca e acaba preso; um tolo jovem perde sua noiva pela própria tolice; e um monge evangélico perde um debate com um fantoche sobre a imoralidade do teatro. A exuberância da peça dá a ela lugar entre as melhores de Jonhson. Cf. BENÈT, William Rose. The Reader´s Encyclopedia. New York: Thomas Y. Crowell Company, 1965. 233 Estas anotações foram feitas por Craig na margem de um catálogo da Exposição Internacional de Teatro de Amsterdã, da qual ele participou. Cf. BABLET, Denis. Lê lieu théâtral dans la societé moderne. Paris: Éditions du CNRS, 1988. p. 23. (Collection Arts do Spetacle. Spectacles, histoire, société) apud BRUGGER, Ricardo Cardoso. Relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como palco. Org. Evelyn Furquim Werneck Lima, 7 Letras FAPERJ: Rio de Janeiro, 2008.p.85. 94

Também Max Reinhardt234 defendia mais flexibilidade. Nas décadas de 1920 e 1930,

Reinhardt realizou experimentações inovadoras levando suas montagens teatrais para praças públicas, igrejas, bosques e ruas. A partir da segunda metade do século XX, muitos diretores começam a explorar as possibilidades de espaços não convencionais. O teatro pôde ser revisto nas ruas, e avenidas, praças, parques, fábricas, em diversos tipos de edifícios. Ou seja, ele voltou a interagir com o espaço público comunitário, resgatando a ideia do teatro como um ato de cidadania compartilhado.

Pelo mundo afora o desejo de transformações e o cansaço diante de práticas conhecidas provocaram o florescimento de experiências que explodiram de vez a cena italiana influenciadas também pelas teses artaudianas. Roubine destaca: “As tentativas do Living

Theatre nos Estados Unidos e, a seguir, na Europa, as buscas de Peter Brook na Inglaterra e de Jerzy Grotowski na Polônia constituem, sem dúvida os empreendimentos mais rigorosos e bem-sucedidos sob esse aspecto”.235

A partir dessas mudanças o teatro ganhou alforria, estava livre para acontecer em qualquer lugar. Durante os anos 60 e 70 espalham-se pelas cidades européias uma série de festivais de teatro, música, dança e circo. As metamorfoses do espaço teatral provocam também mudanças na condição do espectador, que agora, diante das novas possibilidades é instigado também a adotar uma atitude menos passiva e mais ativa em relação ao espetáculo.

A ruptura com o espaço convencional do teatro colocou em xeque a perspectiva que via o fazer teatral como uma tarefa exclusiva dos atores.

Multiplicaram-se as experiências baseadas em criação coletiva e improvisações, a cena reinventou o uso da palavra, passou a criar dramaturgia por meio de processos de

234 Reinhardt viveu o momento em que o teatro moderno desenvolvia novas ideias. O elemento chave de seu trabalho era o expressionismo, ele recorreu a inovações como o palco giratório ou desmembrado em vários níveis, projeção de slides, rampas laterais ou plataformas colocadas no meio da platéia. 235 ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 100. Roubine esclarece entretanto que as propostas de Artaud, por terem permanecido muito tempo no campo da teoria, só viriam a ter uma efetiva influência sobre a evolução do espetáculo anos mais tarde. Artaud faleceu em 1948. 95

experimentação cênica, colaborativos, participativos. O fazer teatral passou a ser visto por alguns artistas como uma tarefa que poderia se estender e alcançar também os espectadores, transformando-os em atores. Assim, além de livre para acontecer em qualquer lugar, o teatro estava livre também para ser feito por qualquer pessoa, fatos que nos indicam as pistas do desenvolvimento do teatro aplicado.

3.2.2 - A relação entre teatro e política na trilha do teatro aplicado.

O rompimento com a estrutura arquitetônica foi também amplamente aceita pelos artistas do chamado teatro político. A rua passou ser vista como símbolo de liberdade política, enquanto que o edifício teatral como um símbolo do poder dominante. O período presenciou uma explosão de práticas artísticas criadas para encorajar a intervenção política através da criação de performances e o desenvolvimento de processos de trabalho que questionaram as hierarquias sociais no teatro comercial.

O teatro sentiu revigorada a sua relação com a política; a associação (teatro-política) já apontava no início do século um fortalecimento, evidente em movimentos relacionados com a

Revolução soviética. A partir de 1917 o teatro engajado soviético, através de grupos especialmente treinados para o agitprop (propaganda de agitação), assumiu a organização de eventos nas capitais e em todo o país. Patrocinado pelo Partido Central, o seu objetivo era mobilização das massas em prol dos ideais comunistas.236

Na mesma época despontaram como importantes encenadores Meyerhold, Vakhtangov e

Taírov, os três procediam do Teatro de Arte de Moscou, de Konstantin Stanislavski.

Meyerhold havia se separado do mestre Stanislavski para fundar a Sociedade do Drama Novo

236 De acordo com Margot Berthold: “Uma das mais imponentes realizações de massa do período foi A Tomada do Palácio de Inverno, encenado em Petrogrado, em 7 de novembro de 1920, como uma celebração dramática e teatral dos eventos históricos da Revolução em seu terceiro aniversario. Houve salvas de canhão, fanfarras e holofotes. Exibia-se a estrela soviética grande e vermelha e toda a assembléia cantava a Internacional.” Cf. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, p. 493. 96

(1902) e trabalhar em oposição à estética naturalista. O encenador começara a desenvolver um estilo próprio de vanguarda, por meio das técnicas para atores, a biomecânica, e de recursos como projeções de filmes, inovadoras maquinarias e estruturas cenográficas. Nos anos que se seguiram a Revolução de 1917, Meyerhold, que a princípio apoiou o regime, montou peças que falavam também sobre problemas de interesse imediato para o espectador soviético como as relações da URSS com o Ocidente capitalista e a luta revolucionária na China.237

O ideal de uma sociedade sem classes atraiu o interesse do proletariado, artistas e intelectuais também fora da Rússia. Em 1919, Erwin Piscator, em seu manifesto endereçado aos trabalhadores de Berlim escreveu: “A Rússia é o rochedo que propagará a onda da revolução mundial.” 238 Piscator conclamou e idealizou o teatro proletário,239 cuja finalidade era usar o teatro como meio de propaganda política em salas e locais de reunião de trabalhadores, nos bairros de periferia. Inspirado pelas idéias de Marx, o teatro de Piscator servia como um instrumento da luta de classes, dirigindo-se à inteligência dos espectadores por meio de uma argumentação política, social e econômica. Sua proposta pedagógica influenciou Bertolt Brecht.

De fato, como afirma Gerd Bornhein, Piscator foi o primeiro mestre importante que

Brecht teve no aprendizado da teoria marxista, aprendizado significativo “já porque ele se fazia vinculado sempre à prática do teatro – queria-se um marxismo posto em cena”.240 A ideia do uso do teatro em serviço da mudança social é a essência da teoria e prática de Bertolt

237 Na montagem de Terra Revolta, de Sergei Tretyakov , Meyerhold fez uma reprodução da Revolução no palco. Em determinada cena os soldados vermelhos tomavam de assalto o palco, o auditório e o foyer, sacudiam as bandeiras vermelhas e entoavam a Internacional. Embora tivesse apoiado e recebido o apoio do regime comunista soviético, em 1930, a arte e o posicionamento de Meyerhold passaram a ser considerados incompatíveis pelo governo. Seu teatro foi fechado em 1938, o encenador preso e executado em um campo de concentração (1940). 238 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo:Perspectiva, 2000. p. 499. 239 BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 122. De acordo com Gerd Bornhein, o ponto de partida do pensamento de Piscator encontra-se em expressões como: teatro proletário (foi a primeira denominação utilizada por ele), teatro popular, teatro de tendência e teatro político. A primeira expressão foi logo esquecida, observa Bornhein, mas as outras duas se tornaram frequentes na linguagem de Piscator. 240 Ibidem, p.131. 97

Brecht. Brecht adaptou o pensamento de Marx nas Teses sobre Feuerbath, “a filosofia apenas

241 interpretou o mundo, a meta é modificá-lo” e aplicou isso à prática do teatro. A influência do marxismo na obra de Brecht é admitida pelo próprio dramaturgo em 1927: “Quando li O

Capital, de Marx, compreendi as minhas peças.”242 Tim Prentki destaca a influência do teatro de Brecht, sobretudo das peças didáticas, no desenvolvimento do teatro aplicado. O autor afirma que:

Brecht deve ser considerado como o “pai” fundador do teatro aplicado, e existem evidencias de que o seu projeto de as Peças Didáticas, que aboliam a distinção entre atores e espectadores, teria acelerado o desenvolvimento deste campo, não fosse a vitória dos nazistas em 1933, que interrompeu as suas atividades. 243

Para Brecht, o público não deveria entrar no teatro para esquecer a vida ou esquecer o mundo “exterior”. As peças didáticas são exercícios de dialética, nos quais o texto é experimentado cenicamente com objetivo de proporcionar aos participantes um envolvimento ativo e imediato no dilema das personagens. Como explicou o próprio Brecht: “A peça didática ensina quando nela se atua, não quando se é espectador.”244

Para Gerd Bornhein, o projeto das peças didáticas de Brecht abandonava a ideia do teatro como “diversão perdulária”, e optava pela “seriedade do pedagógico, com o exercício ascético da racionalidade”.245 O fato de as peças didáticas terem sido consideradas por muitos especialistas como obras pertencentes a uma fase “menos madura” do teatro brechtiano, à

241 As Teses sobre Feuerbach (em alemão: "Thesen über Feuerbach") são onze curtas notas filosóficas escritas por Karl Marx (provavelmente) em 1845. Eles explicitam a crítica de Marx sobre seu colega filósofo jovem hegeliano, Ludwig Feuerbach. As “Teses” identificam a ação política como a única forma verdadeira de filosofia, concluindo que: “Filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo”. 242 Como sabemos, Marx definiu a doutrina marxista em O Capital (1867) baseando-se em uma explicação materialista dos fatos econômicos e históricos. O filósofo e economista alemão considerava que o sistema capitalista, na medida em que concentrava a riqueza em poucas mãos, não poderia resistir à ação dos trabalhadores agrupados. Ele acreditava que tais trabalhadores, se organizados, poderiam tornar-se senhores, numa sociedade coletivista. Marx considerava que a revolução que tornaria os trabalhadores donos dos meios de produção dependia de uma ação organizada e coletiva. Cf. BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 145. 243 PRENTKI, Tim and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. p.12. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 244 BRECHT, Bertolt. Para um teoria da peça didática. Apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p.16. 245 BORNHEIM, Gerd. Brecht - A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 182. 98

margem ou esteticamente inferiores à sua dramaturgia posterior, é amplamente debatida e contestada por Ingrid Koudela em Brecht: um jogo de aprendizagem.246 De acordo com

Koudela, as peças didáticas contêm, sobretudo, a preocupação genuína de Brecht como educador. Um texto escrito pelo dramaturgo em 1930, Teoria da Pedagogia, reflete o seu objetivo de estabelecer “um procedimento que reunisse teatro, política e aprendizagem.”247

No texto, Brecht deixa explícita a proposta de “educar os jovens através do jogo teatral” o que significa “fazer com que sejam ao mesmo tempo atuantes e observadores”. A radicalidade das peças didáticas, de abolir a separação entre atuação e observação, transformando espectadores de seres passivos a ativos, contribui com a perspectiva que vê a vivência teatral, o ato artístico coletivo, como uma experiência capaz de gerar atitude crítica e comportamento político.

A Decisão e a Exceção e a Regra, ambas de 1930, encerram o ciclo das peças didáticas.

Mas, o fato é que a partir delas todo o teatro de Brecht, até a escrita do Pequeno Organon para o Teatro (1948), considerado o coroamento de todas as idéias teóricas do autor, assume uma dimensão pedagógica, empenhada em “ensinar o homem a ver o mundo em que vive”.

Nos textos do Organon, Brecht concilia os dois tópicos que em sua opinião constituem o teatro: o prazer e o conhecimento. A relação entre estas duas noções é um dos pilares da obra do dramaturgo e teórico, se a princípio ele privilegiou o conhecimento em detrimento do prazer, no Pequeno Organon ele revê essa posição. Nesta obra, ele afirma que:

Embora o teatro não deva ser incomodado com uma série de matérias de conhecimento que não lhe confiram o caráter recreativo, ele ainda é livre para se recrear com ensino e investigação. Constrói suas representações sociais de forma válida e capaz de influenciar a sociedade, com uma grande diversão.248

246 KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p 1- 2. 247 Ibidem. p.15. 248 BRECHT, Bertolt. Pequeno Organon para o teatro. In: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 192. 99

De acordo com Brecht, a síntese entre as noções estaria em fazer da “crítica, isto é, do grande método da produtividade, um prazer”.249 Não se trata, portanto, afirma o professor

Gerd Bornhein, “do divertimento pelo divertimento, mas sim de uma forma bem determinada de divertimento: o supérfluo prazer que sentia Galileu quando espiava os astros”.250 O

Organon esclarece também o que seria para Brecht a razão de ser do teatro, e que estaria fora do teatro. O importante está em tornar o espectador “produtivo, que vá além da simples visão passiva”.251 Para Brecht, o teatro deveria estar empenhado em provocar na platéia o impulso de mudança da sociedade, um movimento que, segundo ele, deveria ultrapassar as salas de teatro e atingir a realidade do espectador. A proposta de Brecht consistia em tirar o espectador de uma atitude confortável e passiva, instigando-o a adotar uma perspectiva mais crítica diante da cena apresentada. Como explica Thelma Lopes Carlos:

O dramaturgo pretendeu “despertar” a platéia, proporcionando situações cênicas diante das quais o público se assombrasse com aquilo que, até então, lhe parecia natural, pois deste modo, acreditava ele, o teatro evitaria uma visão determinista e conformada do mundo. O teatro épico, ao se utilizar do distanciamento, objetiva representar o mundo como passível de transformação.252

Para Brecht, o teatro deveria provocar no espectador uma atitude de investigativa diante do mundo, incitando-o a estender “tal atitude ao mundo social”.253 Thelma Lopes destaca a posição de Brecht a atitude deste novo espectador:

Diante das representações do mundo dos homens levadas ao palco, ele adota a mesma atitude que diante da natureza, como homem do nosso século. O teatro também o acolhe como transformador, aquele que é capaz de intervir

249 BRECHT, Pequeno Organon (VII,22-3) apud BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 371. 250 BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 371. 251 BRECHT, Pequeno Organon (VII,57) apud BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 373. 252 CARLOS, Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três Versões Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado- Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. p.58. 253 Ibidem, p. 58. 100

nos processos da natureza e nos da sociedade, que não encara o mundo apenas como é, mas que se faz senhor dele.254

Para Tim Prentki, a grande contribuição de Bertolt Brecht à poética do teatro aplicado foi a de desenvolver uma dramaturgia capaz de demonstrar “a necessidade e a inevitabilidade de mudança social”.255 Prentki afirma que:

O efeito do distanciamento, elemento chave do seu teatro épico, é em essência, um meio pelo qual se pode apontar as contradições capazes de minar as versões oficiais e dominantes da história da política e da cultura. (...) Esta prática, contra hegemônica, pretende proporcionar às platéias uma autonomia intelectual, que a torna capaz de praticar mudanças fora do teatro.256

O pensamento do dramaturgo alemão exerceu grande influência no movimento do teatro político que se manifestou em diversas partes do mundo durante os anos 60 e 70 e que representou um impulso no percurso do teatro aplicado. Durante aqueles anos, grupos teatrais inovadores257, inspirados também pelo movimento da contracultura, desprezaram o mainstream para levar o teatro a diversos lugares, proporcionando um encontro desta arte com populações pouco acostumadas à sua presença.

3.2.3 – O impulso dos anos 60 e 70.

Em 1968, Peter Brook escreve O Teatro e seu espaço, obra que reflete o momento pelo qual passava o teatro ocidental. O texto de Brook representa a voz dos artistas cansados das obras “mortas” do teatro comercial. No livro, o diretor analisa quatro tipos de teatro: o Morto,

254 BRECHT, Bertolt. O Teatro Dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 138. Apud CARLOS, Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três Versões Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado- Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. P.58-59. 255 PRENTKI, Tim, PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. p. 20-21.Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 256 Ibidem, p.21. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 257 Entre eles podemos destacar: nos Estados Unidos o Bread and Puppet, Welfare State, Squat Theatre e Living Theatre; Teatro-Laboratório de Grotowski, na Polônia; Armand Gatti e Teatro de Soleil, na França, entre outros. 101

o Sagrado, o Rústico e o Imediato. O primeiro, segundo ele, estaria “diretamente ligado ao tão desprezado e atacado teatro comercial”258, já o Rústico, que aqui mais nos interessa, estaria associado às experiências distantes das salas tradicionais e mais próximas das platéias populares. Essas experiências, segundo Brook, seriam capazes de provocar verdadeiras

“explosões de vida”, tal o seu poder de comunicação com o público:

É sempre o Teatro Popular que vem salvar a situação. Através dos tempos ele tem tomado muitas formas e todas com um só traço em comum – uma aspereza. Sal, suor, barulho, cheiro: o teatro que não está dentro de um teatro (...) Teatro em quartos de fundo, quartos de sótão, em celeiros; espetáculos de uma noite só, o lençol rasgado pendurado na entrada, o biombo gasto para esconder as rápidas mudanças de roupa – e assim: um único termo genérico, teatro, compreende tudo isto além dos lustres cintilantes dos teatros ricos. Já tive muitas discussões abortivas com arquitetos empenhados na construção de novos teatros, tentando, em vão, encontrar palavras para comunicar a minha convicção de que não é uma questão de construções boas ou más: um lugar lindo talvez nunca provoque explosões de vida, enquanto que um salão qualquer pode ser um lugar muito vivo.259

Mais adiante o autor completa:

Os anos passam enquanto as experiências mais vitais acontecem fora dos lugares oficialmente construídos e usados para este fim. (...) O Teatro Rústico é muito próximo do povo: pode ser um espetáculo de fantoche, ou como é nos vilarejos gregos até o dia de hoje – um espetáculo de sombras animadas. (...) O Teatro legítimo tem sido considerado o importante, enquanto que o Teatro Rústico tem sido considerado menos sério. Mas a verdade é que toda tentativa de revitalizar ou renovar o teatro tem-se voltado para as fontes populares. 260

A perspectiva de vivenciar experiências teatrais mais próximas da descrição de Brook, vivas e isentas dos critérios de qualidade impostos pelo teatro burguês, somada à fermentação política, própria dos movimentos sociais da época, motivaram inúmeros artistas pelo mundo.

A trajetória da companhia 7:84, do Reino Unido, é um bom exemplo disso; ela exerceu grande influência nas práticas do teatro comunitário e político por lá. Esta companhia,

258 BROOK. Peter. O Teatro e seu Espaço. Petrópolis: Vozes Ltda., 1970. p.2. 259 Ibidem, p. 65. 260 Ibidem, p.67-69. 102

fundada pelo escritor, diretor e produtor, John McGrath, recebeu este nome curioso depois que uma estatística nos anos 70 revelou que 7% da população acumulavam 84% das riquezas do Reino Unido.

O objetivo do 7:84 era levar o teatro político popular aos lugares rejeitados pelas companhias oficiais nacionais e regionais. A Escócia foi o seu campo de atuação principal e também assunto preferido de MacGrath em sua dramaturgia. Ele escreveu 60 peças de teatro, mas a sua obra mais famosa é The Cheviot, The Stag And The Black, Black Oil (O Carneiro, o veado e o óleo negro) (1973), baseada numa festa popular, contando a história da exploração do país desde as remoções nos Highlands pelos proprietários aristocratas, até o boom do petróleo na região. A produção viajou muito e também recebeu uma adaptação bem sucedida pela BBC TV. O 7:84 atuou na Inglaterra e na Escócia. Mas a companhia inglesa encerrou suas atividades em 1984, quando o Conselho Nacional de Arte retirou o patrocínio do grupo por motivos políticos. Em 1988, McGrath se retirou do grupo escocês em protesto contra mudanças recomendadas pelo Conselho Nacional de Artes da Escócia.

O 7:84 foi um dos grupos que integrou o movimento que ficou conhecido no Reino

Unido como popular political theatre. Desde os anos 60, muitos artistas começaram a sentir a necessidade de criar companhias fora do teatro comercial. Entre 1968 e 1969, grupos à margem floresceram e circuitos alternativos de tournée emergiram. Como explica McGrath, a partir daquele momento companhias teatrais descobriram que não precisavam de um teatro

(edifício) para fazer teatro:

Nós queríamos viajar com espetáculos que tivessem uma conexão forte, imediata e atual, que levantasse uma perspectiva socialista dos eventos contemporâneos, que entretece as pessoas da working class (classe operária) e tivesse apelo a esta classe, e aos aliados da classe operária, como estudantes e intelectuais, que tinham um pé na classe média e outro nos movimentos liberais. Nós queríamos apresentar essas peças no intuito de agitação, de intervenção nas comunidades. 261

261 MCGRATH, John. Naked Thoughts that roam about. London: NHB, 2002. p.48. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 103

O 7:84 desejava atrair uma platéia não acostumada a ir ao teatro, e para conseguir isto,

McGrath concluiu primeiramente, que a solução seria deixar o ambiente tradicional do teatro e ressituá-lo em territórios onde aquelas platéias já frequentavam, como os clubes dos operários, os sindicatos e os salões comunitários. Além disso, os trabalhos deveriam usar como fonte e temas as histórias locais, lutas, atitudes e comportamento das comunidades. Os espetáculos precisavam estabelecer um diálogo com as platéias, por isso o 7:84 optou pela utilização de elementos como show de variedades, música ao vivo, comédia, sátira e caricatura.262 Na opinião de Baz Kershaw, era fundamental para John McGrath identificar as formas populares locais e os interesses da comunidade, sua realidade socioeconômica e cultural:

Os atores tinham que deixar claro que os interesses da comunidade eram compartilhados e valorizados, qualquer que fosse a linguagem cênica utilizada na apresentação. Portanto, a ideia de identidade de McGrath é diferente de empatia, indica uma consonância ideológica entre o intérprete e a audiência, a companhia e a comunidade. A base de tal solidariedade, sugere McGrath, pode ser proporcionada pelas formas teatrais populares.263

De acordo com Kershaw, o diretor acreditava que o “localismo” é crucial para o impacto da obra na comunidade porque “a melhor resposta da platéia operária provem de personagens e acontecimentos com sabor local.”264 O processo de criação das peças incluía o diálogo com os habitantes das comunidades e a criação coletiva entre os membros da companhia.

Comentando o processo de The Cheviot, McGrath diz:

Obviamente, como autor, eu tinha uma ideia clara e exata de como eu queria o espetáculo. Eu sabia para quem ele era, e eu sabia o que queria dizer. Mas

262 Em A Good Night Out (Um bom programa a noite) este assunto, a comunicação plena com a audiência, é particularmente desenvolvido por McGrath. No livro, o autor descreve as características da audiência da working class e aponta aspectos, que segundo ele, seriam necessários para o engajamento dessas platéias populares. Segundo ele, os elementos da comédia, música, emoção, efeitos, imediatismo, localismo (assuntos próprios da localidade) seriam importantes para o estabelecimento de uma comunicação mais imediata com este público. Em The Cheviot, por exemplo, cantos, músicas e danças do folclore Escocês foram incorporados ao espetáculo, inclusive letras cantadas em “gaélico,” língua original da Escócia, que ao longo dos anos fora substituída pelo inglês. A good night out. Popular theatre: audience, class and form. London and New York: Methuen, 1981. 263 KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London: Routledge, 1992. p.153. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 264 Ibidem, p. 154. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 104

eu queria também que todos da companhia estivessem envolvidos no processo de criação. (...) Então nós todos sentávamos no chão como blocos de papel em branco. Eu apenas esboçava os temas principais da peça em blocos.265

Mais adiante o autor comenta sobre a interação entre o espetáculo e a platéia de uma comunidade em Glasgow, na Escócia:

Aquela noite em Kinlochbervie, a 250 milhas de Glasgow, naquela área considerada atrasada, as pessoas nos mostraram como o teatro deve ser. E aquela foi a lição que aprendemos muitas vezes depois, em cinquenta ou 60 halls comunitários pelo norte. (…) Nós sabíamos que nós teríamos muito trabalho pela frente, mas nós sentimos naquele momento que aprendemos não apenas como fazer o teatro, mas também, e pela primeira vez numa experiência viva, por que fazê-lo.266

O movimento do popular political theatre (teatro popular e político) no Reino Unido envolveu artistas que decidiram cruzar a fronteira do mainstream e ir à busca de outra platéia, como a das comunidades remotas do Highlands da Escócia ou das vilas de operários do País de Gales. Baz Kershaw considera as experiências de McGrath, o 7:84 e, especialmente, a montagem de The Cheviot, uma contribuição determinante para o movimento que explodiu no Reino Unido:

The Cheviot...McGrath e 7:84 criaram um modelo flexível que foi adaptado e modificado por um amplo espectro de companhias de teatro político e comunitário durante os anos 70 e também nos anos 80. Espalhados pelo país, grupos se estabeleceram para explorar novas interfaces entre teatro e comunidade.267

Em meados dos anos 70, o movimento havia proliferado no Reino Unido e originado dezenas de grupos com perfis variados. De acordo com Baz Kershaw: “No final da década, aproximadamente 70 companhias atuavam num circuito ‘alternativo’, que se opunha ao teatro

265 MCGRATH, John. Naked Thoughts that roam about. London: NHB, 2002. p. 62. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 266 Ibidem, P.67. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 267 KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London: Routledge, 1992. p.166. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 105

do centro/mainstream).”268 Alguns deles foram denominados community theatre companies

(companhias de teatro comunitário), cuja meta era tornar o teatro acessível a comunidades afastadas. Segundo o autor, algumas companhias assumiram como objetivo estabelecer vínculos mais estreitos com as comunidades, ficar cada vez mais “perto” delas “para que os projetos fossem criados e determinados pela comunidade, como parte do processo de seu fortalecimento.”269 Elas ficaram conhecidas como community-based companies (companhias com base na comunidade).

Kershaw explica que todas essas companhias definiam seu público alvo a partir da localização geográfica, que podia variar entre áreas urbanas de baixa renda, vilas rurais, cidades industriais e até condados. Algumas preferiam visitar diferentes espaços dentro de uma mesma comunidade, como escolas, centros comunitários, clubes de jovens, hospitais, pubs, asilos, ruas e creches; outras preferiam alvos mais específicos, optando apenas por escolas e centros comunitários. O tipo de contato com as platéias podia variar, desde a estética mais direta, sem a participação do público, até processos complexos de engajamento dos espectadores; a programação também era diversa, podendo partir de peças criadas pela comunidade, encomendadas, de textos pré-existentes ou até de espetáculos apresentados segundo um modelo mais convencional de repertório, levando o teatro às áreas rurais ou suburbanas, consideradas desertos culturais.

Assim como no movimento britânico, em outras partes do mundo, o teatro abriu definitivamente a porta de saída da sala convencional, visitou outros espaços, aconteceu em praça pública, reencontrou a platéia das comunidades populares, empenhou-se em sua capacidade de provocar mudanças sociais e políticas. As transformações sofridas pela cena ocidental ao logo de todo o século influenciaram a trajetória do teatro aplicado, mas foi durante aquelas duas décadas que se fortaleceram as condições para o seu surgimento. Aqui

268 Ibidem. p. 139. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 269 Ibidem, p. 141. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 106

em nosso país não foi diferente. O período de grande ebulição na vida política e também teatral que antecedeu o golpe militar de 1964 preparou o terreno para as sementes do teatro aplicado no Brasil.

3.3 - Pistas do teatro aplicado no Brasil.

No início da década de 60 o Brasil entrava em um momento da história marcado pela mobilização em torno de grandes temas de interesse para o país como a conquista da posse de

João Goulart, a euforia nacionalista da luta pelas reformas de base, principalmente pela reforma agrária, o aumento do número de conflitos entre latifundiários e posseiros, a extensão do voto ao analfabeto, o fortalecimento da organização das classes trabalhadoras com a criação do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT. No campo da cultura, como observa

Silvana Garcia em Teatro da Militância270:

O sentimento nacionalista inflava a luta pela valorização do artista nacional e exigia, nas telas e nos palcos, a presença do homem brasileiro. Assim, enquanto o cinema era povoado por favelados, marginais, lumpens e cangaceiros, o operário subia ao palco em Eles não usam black-tie, confirmando o Teatro de Arena paulista como posto avançado de defesa da dramaturgia nacional engajada.271

Como observou Yan Michalski, a evolução assumidamente nacionalista do teatro “ia de par com a sua cada vez mais radical politização.”272 No Nordeste, movimentos de cultura popular passaram a utilizar técnicas teatrais em campanhas de “conscientização e catequização política das populações interioranas.”273 Em Recife, o governo de Miguel Arraes promove, como afirma Silvana Garcia, “uma experiência pedagógica integrada de base

270 GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 99. 271 Ibidem, p. 100. 272 MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 15. 273 Ibidem, p. 15. 107

renovadora”274, o Movimento de Cultura Popular – MCP. Apoiado no método do educador

Paulo Freire e voltado para um programa de educação popular, o MCP ampliou a sua atuação para a esfera da produção cultural popular “promovendo festivais de cinema, teatro e música, mantendo Centros e Praças de Cultura.” 275

Na área teatral, o MCP cria os Clubes de Teatro, organizados nos Centros Educativos e sindicatos, os Clubes eram grupos de teatro formados por operários que se apresentavam em bairros do Recife e também no interior do Estado.276 Diversos grupos se reuniram em torno do Teatro de Cultura Popular do MCP, que tinha como frentes de ação: promover espetáculos junto às organizações estudantis, sindicatos e associações de bairros e a preparação de esquetes para as conferências de Paulo Freire nos Centros e Praças de Cultura; a formação de núcleos teatrais nos Centros Educativos e Operários e a organização de espetáculos na zona da mata (norte e sul).

De acordo com Silvana Garcia, o Movimento de Cultura Popular exerceu naquele período grande influência no Nordeste, mas atraiu atenção também no sul do país. O encontro dos artistas do Teatro de Arena paulista com os nordestinos teria, segundo a autora, inspirado em 1961, no Rio de Janeiro, a criação do Centro Popular de Cultura – CPC da União

Nacional dos Estudantes - UNE.277 O grupo, composto em sua maioria por estudantes universitários, artistas e intelectuais, atuou entre 1961 e 1964 e tinha como objetivo a conscientização de massa. O discurso proferido pelos jovens, quase todos filiados ao Partido

274 GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 100. 275 Ibidem, p. 100. 276 Que é o MCP? Arte em Revista. São Paulo 2(3):71,mar.1980. apud GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 100 277 O CPC foi fundado em 1961, vinculado a União Nacional dos Estudantes (UNE), órgão combativo do movimento estudantil brasileiro desde 1937. O grupo adquiriu um estatuto jurídico em 8 de marco de 1962, onde consta no segundo artigo as suas finalidades: “promover atividades culturais nos setores teatrais, cinematográficos, musicais, das artes plásticas e outras e elevar o nível de conscientização das massas populares.” De acordo com Fernando Peixoto é impossível resumir as atividades do CPC da UNE: conferências, debates, seminários, espetáculos, musicais, teatro em comícios, teatro na rua, em caminhões, universidades e sindicatos. “movimento essencialmente multiplicador, passou pelo CPC uma geração de artistas e intelectuais.” Cf. PEIXOTO, Fernando. O melhor teatro do CPC da UNE. São Paulo: Global, 1989. p.14. 108

Comunista, pretendia levar ao povo idéias revolucionárias. Como afirma Garcia, foi com o

CPC que o teatro de agitprop ganhou força de permanência e alcance no Brasil. A história deste grupo militante, entretanto, começa um pouco antes, de dentro do Teatro de Arena, em

São Paulo; um percurso que convém rememorar.

Fundado em 1955 por ex-alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo – EAD278, o

Teatro de Arena, em sua primeira fase, visava montar espetáculos com o mesmo apuro do

Teatro Brasileiro de Comédia – TBC279, adotando, porém, uma forma de produção mais econômica e abolindo o ilusionismo. No ano seguinte, como esclarece o Dicionário do

Teatro Brasileiro280, o grupo inicia uma colaboração com o Teatro Paulista do Estudante, um grupo amador simpatizante do Partido Comunista Brasileiro. Dessa fusão, e da presença de

Augusto Boal, como diretor, vai resultar um novo programa artístico para a companhia.

O palco em arena passa a ser compreendido como um instrumento para acolher o teatro protagonizado pelas classes populares, igualmente a disposição circular dos espectadores, por eliminar um ponto de vista privilegiado, torna-se a metáfora da democratização do espetáculo.

Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Francisco de Assis escrevem peças inspiradas por esta ideologia. Em 1958, estreia Eles não usam black-tie, peça ainda moldada sob o estilo realista, mas entremeada por uma canção que prenuncia os recursos do teatro

278 Escola de Arte Dramática é uma unidade complementar da USP, ligada à Escola de Comunicações e Artes (ECA). Popularmente conhecida como EAD, foi fundada em 1948 sob a coordenação de Alfredo Mesquita e passou, ao longo de mais de meio século de existência, por incontáveis reestruturações e reformulações. Numa destas surgiu o Departamento de Artes Cênicas da ECA. A EAD é uma escola pública (gratuita) e uma das mais importantes escolas de formação de atores do Brasil, sendo que muitos de seus ex-alunos são figuras nacionalmente conhecidas, no teatro, cinema e televisão. 279 Teatro Brasileiro de Comédia –TBC foi fundado em 1948, pelo industrial italiano Franco Zampari,em São Paulo. Durante as várias fases por que passou e durante os anos em que existiu como companhia estável, de 1948 a 1964, o palco do TBC chegou a ter melhor elenco do país, em que se distinguiam: Cacilda Becker, Tônia Carrero, , Cleyde Yáconis, Nydia Lícia, , Tereza Rachel, , Sérgio Cardoso, Jardel Filho, , Ítalo Rossi e muitos outros. A encenação estava confiada a europeus e, em certos momentos, até quatro deles se alternavam nas montagens: Adolfo Celi, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi, Ziembinski, Flaminio Bollini Cerri, Maurice Vaneau, Alberto D'Aversa e Gianni Ratto..Acusado de certo conservadorismo, tanto na encenação quanto na escolha de seus textos, além de certo privilégio a uma cultura oficial que mantinha laços com a burguesia dominante, o TBC entrou em sua última fase, alterando suas diretrizes. Passou a confiar as encenações aos brasileiros Flávio Rangel e Antunes Filho, além do belga Maurice Vaneau, e o repertório privilegiou os dramaturgos nacionais Dias Gomes, Jorge Andrade e . 280 Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. J. Guinsburg, João Roberto Faria, Mariângela Alves de Lima (orgs.) – São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. 109

épico. Em 1960, com Revolução da América do Sul, sob a direção de Boal, o Arena inova a cena apresentando um espetáculo que incorpora procedimentos épicos extraídos da teoria brechtiana.

De acordo com o Dicionário do Teatro Brasileiro, a partir de 1960 “a lembrança aristofanesca, o circo, o teatro de revista, os autos medievais, tornam-se fontes para construção de textos e espetáculos que pretendem minimizar a função empática da cena, e em contrapartida acentuar a função instrutiva.”281 Após o golpe militar em 1964, os vinte anos de ditadura que se seguiram, testemunharam a multiplicação do formato em arena em trabalhos de grupos por todo o país, que produziram peças em palco de formato circular, muitas vezes em espaços adaptados, como afirma o Dicionário do Teatro Brasileiro:

Emulando ao mesmo tempo o formato e o compromisso de resistência política dos pioneiros paulistas. Quando o Teatro de Arena é dissolvido pela repressão da ditadura, a associação entre a morfologia peculiar e a atuação política permanece nas equipes que, fora do circuito profissional, continuam a fazer uma arte de resistência. Em paralelo a esse efeito multiplicador sobre grupos de resistência a ditadura, alguns projetos arquitetônicos passam a considerar o espaço em Arena como uma alternativa estética às convenções do palco italiano e, nesse sentido, um alternativa espacial ideologicamente “neutra.” 282

De fato, o Arena representou um momento de significante mudança no rumo do Teatro

Brasileiro. A sua principal contribuição foi inaugurar um movimento de nacionalização do nosso teatro. Esta nacionalização consistia em não mais tentar montar peças estrangeiras de acordo com as normas do gosto europeu, mas revelar através da dramaturgia e das personagens, as temáticas nacionais, que dissessem respeito ao nosso país.

O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes - CPC surge a partir do questionamento de alguns integrantes do Arena sobre o alcance e o impacto de seus espetáculos. Vianninha, um dos idealizadores do grupo, afirmou: “O Arena era o porta-voz

281 Ibidem, p.38. 282 Ibidem, p. 38. 110

das massas populares num teatro de cento 50 lugares. O Arena não atingia o público popular e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para seu trabalho.”283 Para Vianninha existia uma contradição entre o público que o Arena atingia, classe média paulistana e intelectuais, e a dramaturgia do grupo, destinada ao conjunto do povo brasileiro.

O CPC é criado, portanto, com o intuito de difundir as peças nacionalistas em maior escala. Assim, em 1960, quando se encerra a temporada carioca do Arena, Vianninha e Chico de Assis decidem ficar na cidade para montar um espetáculo, o tema da peça seria a “mais- valia”.284 O CPC criou e produziu dezenas de peças, como explica Julian Boal “algumas feitas em poucas horas, outras ensaiadas durante semanas. Foram apresentadas em sindicatos, assembléias estudantis, em plena rua, em qualquer lugar onde fosse possível reunir espectadores.”285

O grupo teve uma produção bastante fértil e diversificada. Em dois anos e meio de vida, além de cursos e do trabalho com o teatro, produziram um longa metragem, Cinco Vezes favela, gravaram os discos O Povo Canta e Cantigas da Eleição, produziram a coleção Violão de Rua para a série Cadernos do Povo Brasileiro, editados pela Civilização Brasileira, além de outras publicações.286 Mas, como observa Silvana Garcia:

O aspecto mais relevante do CPC foi a multiplicação da experiência que tinha no coletivo da UNE o seu foco de irradiação. Dali se produziram as peças, as músicas e os cartazes que eram distribuídos para os outros Centros, que rapidamente foram se multiplicando pela Guanabara, pelo Rio de Janeiro e pelos outros Estados.287

283 BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 19. 284 A primeira peça do CPC é intitulada Mais-Valia vai acabar, Seu Edgar. Foi apresentada durante seis meses na Faculdade de Arquitetura, Urca. A peça contava com músicas de Carlos Lyra e com a utilização de técnicas inspiradas em Piscator. 285 BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p.14. 286 GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 104. 287 Ibidem, p. 104. 111

Com suas incursões, o CPC acreditava na possibilidade de realizar uma revolução, levando à população idéias políticas capazes transformar a sua situação de opressão.

Entretanto, como assumiu o próprio Vianninha, o discurso do grupo não chegou com o impacto esperado à platéia popular. Isto porque, o seu modo de intervenção talvez tivesse carecido de uma atitude mais dialógica em relação às comunidades e menos depositária.288

Em 1974, Vianninha constata:

Você me perguntou se eu vi o resultado no trabalho do CPC. E eu lhe digo que quem aproveitou melhor o trabalho fomos nós, integrantes do CPC. Descobrimos que na horizontalização da cultura há necessidade, em primeiro lugar, de um trabalho de continuidade, e essa continuidade para nós não existia. Eu acho que realizei espetáculos teatrais em todas as favelas do Rio de Janeiro, mas devo ter realizado um ou dois em cada uma. Isso significa uma total descontinuidade e não tinha nenhum significado. Nós trabalhávamos em sindicatos, mas as condições de trabalho eram utópicas. Era paixão pela atmosfera, a paixão pelo encontro do intelectual com o povo e realmente, para nós, era incandescente, mas ao mesmo tempo muito romântico, e que informou muito mais a nós do que à massa trabalhadora.289

A trajetória do CPC foi interrompida e destruída pelo golpe militar em 1964.290 Talvez tivesse sido possível para o grupo ter adotado práticas que buscassem uma maior interação com as platéias ou mesmo um trabalho mais contínuo nas comunidades que buscaram atingir.

Em As Imagens de um Teatro Popular, Julian Boal, aponta qual teria sido o maior equívoco do CPC: uma ação verticalista, que pretendia ensinar ao povo, ou levar a ele a “verdade capaz de libertá-lo.” 291 Sobre a atuação do grupo, o autor afirma que:

288 Os termos dialógica e depositária, de autoria de Paulo Freire, serão mais adiante esclarecidos. 289 O. VIANNA FILHO, "A Última entrevista", Revista de Teatro, Rio, SBAT, jul-ago 1974, transcrito do Jornal do Brasil de 17.07.1974. In: PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. p.100. 290 De acordo com Yan Michalski, em março de 64, quando as tropas militares desceram de Minas para o Rio “o CPC se achava na reta final das obras através das quais o precário auditório da UNE estava sendo transformado numa moderna sala de espetáculos. (...) No 1o. de abril, o prédio da UNE ardia em chamas, que destruiu completamente o que seria o teatro. O incêndio não se limitava a transformar o auditório num monte de escombros: nas suas chamas morria também o CPC, imediatamente colocado como a UNE, fora da lei. E morria todo o projeto de um teatro engajado ao qual muitos dos melhores artistas do país se vinham dedicando nos últimos anos.” Cf. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 16. 291 BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 123 112

A sua ação verticalista, sua linguagem, e a própria posição que adota em relação ao Povo, faz com que considere que esse Povo deva, na concepção desse grupo, recorrer a esse mesmo grupo intelectual, que está acima das divisões das classes. No que diz respeito ao pensamento e à reflexão, o único papel do Povo é absorver e, em seguida, travar as lutas políticas que lhes foram recomendadas, tendo com armas as idéias elaboradas pelos outros.292

Julian Boal sugere como antídoto contra esta ação “de cima para baixo” o método que poucos anos depois começaria a ser desenvolvido por seu pai, Augusto Boal, e que resultaria na publicação de o Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas (1975). Para Julian Boal, no Teatro do Oprimido a “ação verticalista” é abolida “visto que somente as pessoas que sofrem igualmente da mesma opressão sentida pela plateia e pelos personagens serão aceitas para entrar em cena e para apresentar suas alternativas de libertação.”293

Diferente do CPC, que encerrou suas atividades em 64, o Teatro de Arena, sob a liderança de Boal, conseguiu sobreviver à pressão do regime autoritário até 1971. Naquele ano, além da montagem de A resistível ascensão de Arturo Ui, de Bertolt Brecht, o diretor inicia sua pesquisa em torno do teatro que ele nomeou de Teatro Jornal, cuja proposta era mostrar “que qualquer pessoa, mesmo que não seja artista, pode fazer do teatro um meio de comunicação”, constituindo-se assim um primeiro esboço do que viria a ser o Teatro do

Oprimido. Infelizmente, no mesmo ano, desfez-se o Arena294; Boal foi preso e exilado. Já fora do Brasil escreveu o Teatro do Oprimido, obra fortemente influenciada pela Pedagogia do Oprimido (1970), de Paulo Freire. Como veremos mais adiante, o pensamento desses dois brasileiros representa significativa contribuição para o desenvolvimento do teatro aplicado.

A poética do oprimido de Boal defende o teatro como “carnaval e festa”, “o povo cantando ao ar livre”; enfrenta “as classes dominantes que se apropriaram do teatro e construíram muros divisórios, separando atores de espectadores: gente que faz e gente que

292 Ibidem, p. 124. 293 Ibidem, p.125. 294 A última montagem do grupo foi Arturo Ui, com a fraca repercussão do espetáculo, os problemas com a censura e o agravamento da crise econômica do grupo, bem como a prisão de Boal, o Arena entra em colapso. 113

observa”295; clama pela “libertação do povo oprimido”, a derrubada dos muros dos edifícios teatrais e a participação ativa dos espectadores na cena. A trajetória de Boal, construída, principalmente, a partir do Arena e do CPC desemboca nas conclusões do Teatro do

Oprimido e outras poéticas políticas, obra que lhe daria o reconhecimento internacional, influenciando por todo o mundo práticas direcionadas a contextos comunitários, em espaços alternativos, envolvendo grupos de não atores; uma tendência que, apesar do golpe militar em

1964, também se confirmou aqui no Brasil.

Mesmo que durante os anos que se sucederam ao golpe, os meios intelectuais e artísticos tivessem sofrido com a repressão e o exílio de nomes importantes, no teatro, como nos lembra

Silvana Garcia: “O sentimento de resistência brotou como em todas as esferas da atividade social onde se manteve um laivo de consciência.”296 Alguns teatros se tornaram redutos de resistência como foram os casos do Teatro São Pedro e , em São Paulo, e Teatro

Ipanema no Rio. Como explica Yan Michalski, apesar de rotulado pelo regime como um perigoso inimigo público, perseguido e reprimido “com requintes de perversidade e tolice, o teatro constituiu-se numa importante frente de resistência ao arbítrio e desempenhou destacado papel na sociedade de seu tempo.”297 Em Teatro sob pressão, Michalski destaca a realização de espetáculos símbolos do período de efervescência vivida pelo teatro brasileiro nos palcos profissionais.298 Além disso, dezenas de grupos e palcos alternativos proliferaram.

No capítulo Teatro Popular de Periferia dos anos 70, Silvana Garcia destaca que:

À margem dos grupos alternativos e elencos profissionais vão surgir, de modo mais ou menos espontâneo, dezenas de grupos que se deslocam para a

295 BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a. edição. P. 135. 296 GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intencao do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 122. 297 MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 7. 298 De acordo com o crítico, no circuito profissional tiveram destaque, entre outros, as montagens: Os Pequenos Burgueses, de Gorki (, SP,1964), A Ópera dos três vinténs, de Brecht (Teatro Ruth Escobar, SP,1964), Arena conta Zumbi, de Guarnieri, Boal e , direção de Paulo José (RJ,1965); Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto (TUCA paulista, 1965); Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos (SP e RJ, 1966). 114

periferia das capitais à procura de um público mais popular, totalmente apartado do acesso aos bens culturais produzidos no centro.299

Como esclarece a autora, esses grupos guardavam entre si muitas semelhanças, o que permite indicar um perfil básico para todos eles. Há a mesma intenção de não atuar no mercado profissional do centro, o que se deve por um lado à insatisfação com o alcance do

“teatrão” junto às camadas mais populares, de outro o fato de discordarem com teatro produzido no centro afinado com os setores das classes média e alta. De acordo com Silvana

Garcia:

Há um consenso no sentido de ir buscar o público no seu habitat, ou seja, nos bairros periféricos mais afastados, e de produzir um teatro que atraia e corresponda a realidade dessas populações. Esse teatro, portanto, deve ser popular, no sentido de uma linguagem acessível, e também à medida que propõe conteúdos que digam respeito à vida desse homem da periferia. 300

Silvana Garcia aponta os aspectos que aproximavam os grupos integrantes do movimento do teatro popular de periferia dos anos 70. Segundo ela, a “tônica” do movimento era: a produção coletiva; a atuação fora do âmbito profissional; o desejo de levar o teatro ao público da periferia; a produção de um teatro popular e o compromisso de solidariedade com o espectador e sua realidade. Outra característica levantada pela autora diz respeito à composição heterogênea dos grupos. Como observa Garcia, na formação inicial predominava geralmente os integrantes da classe média, com exceção de grupos que já nasciam na periferia, todavia, durante a itinerância, no contato com os bairros, os grupos podiam agregar novos membros, como “colaboradores periféricos.”Além disso, eventualmente, a itinerância podia também promover nos bairros a formação de novos grupos.

299 GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 122. 300 Ibidem, p.124. 115

A autora aponta como marco significativo na história da maioria dessas iniciativas a decisão de deixar o aspecto “mambembe” para encontrar uma sede, um espaço físico permanente para sua atuação. Afirma a autora:

O projeto de sede traz, em geral, atrelada a ideia de uma casa de cultura que o grupo pretende colocar à disposição de uma comunidade. A intenção é a de suprir a carência de espaços culturais e de lazer da periferia, ao mesmo tempo em que se pretende estimular os artistas locais.301

Garcia escolhe para objeto de análise a trajetória de sete grupos paulistas: Núcleo

Expressão de Osasco; Teatro-Circo Alegria dos Pobres; Teatro União e Olho Vivo; Núcleo

Independente e Truques, Traquejos e Teatro; Galo de Briga e Forja. Não cabe neste estudo aprofundar as conclusões da autora sobre a trajetória dos grupos, mas destacar informações que nos ajudem a encontrar pistas do percurso do teatro aplicado no Brasil.

Como observa Garcia, no eixo central dos projetos desses grupos está uma dupla proposta a “intenção de ser popular e a motivação política”. De acordo com a autora: “Na sua formulação mais pretensiosa, o grupo se propõe a interferir na consciência dessas populações periféricas, utilizando o teatro como instrumento de uma ação politizadora.”302 O modo coletivo de produção é também destacado por Garcia como um aspecto comum ao trabalho dos grupos. Em relação à leitura e à influência de teóricos do teatro no trabalho dos grupos, entrevistas realizadas com seus integrantes, revelam que os parâmetros mais frequentes são

Brecht e Boal. A autora aponta também como característica comum à atuação dos grupos, a realização de debates após os espetáculos.

A proposta de aproximação com as platéias, a partir da promoção desses fóruns de discussão após os espetáculos, revela o traço marcante da atuação dos grupos, o desejo de provocar e estabelecer um diálogo coletivo com as comunidades receptoras de seus espetáculos. Como observa Silvana Garcia, alguns dos grupos entendiam que o debate é

301 Ibidem, p. 125. 302 Ibidem, p. 144. 116

também um momento chave para a realização de uma reflexão coletiva sobre a realidade sociopolítica; muitas vezes esses fóruns eram direcionados à discussão de temas locais, próprios das comunidades envolvidas. Mas, apesar das semelhanças, os grupos estudados pela autora guardavam também diferenças. Segundo ela, os “pontos nevrálgicos”, assuntos que geravam discordância entre eles constavam: a “instrumentalização do trabalho artístico”, a

“ditadura da mensagem”, “a predominância do objetivo político sobre a pesquisa estética.”303

Apesar das divergências e das nuances presentes neste conjunto de grupos, é certo que eles surgiram como uma resposta em uníssono àquele determinado contexto político e que, como confirma a autora:

Tinham a pretensão de agenciadores de uma organização popular (...) um projeto cultural mais amplo, que alcança a esfera não só da circulação de bens culturais pela periferia, mas também da produção que essa população pode desenvolver.304

Assim, durante os anos 60 e 70, encontramos no Brasil movimentos semelhantes aos que aconteceram em outras partes do mundo. O teatro também descobriu a porta de saída do edifício convencional, buscou espaços mais populares e o ativismo político, desejou a socialização do fazer teatral. O teatro popular de periferia dos anos 70, como um exemplo desse movimento, herdou, por vias diversas e indiretas, aspectos do agitprop “cepetista”, incorporou matrizes populares como o circo, o folguedo, as danças, o cordel, a revista, estudou Brecht e Boal, encenou no meio do espaço público. Ao longo dessas duas décadas a relação entre artistas de teatro e o universo das comunidades sofreu nítidas transformações.

O encontro entre os dois “mundos” desafiou a construção de relações menos verticais e mais horizontais. A ação verticalista do CPC e as práticas inspiradas pela poética do oprimido

303 Ibidem, p.189. 304 Ibidem, p. 202. 117

de Boal, que elaborou um teatro em que “o espectador liberado se lança na ação”305, ilustram bem o percurso de modelos adotados pela relação entre teatro e comunidade. Como explica

Márcia Pompeo Nogueira:

Pode-se dizer que esses modelos partem de práticas decididas de cima para baixo, para práticas cujo objetivo e métodos são decididos pelas pessoas que participam dos projetos teatrais. Entretanto este percurso não é único, pois todas essas etapas podem ser encontradas ainda hoje.306

A relação entre teatro e comunidade pode assumir, portanto, diferentes feições, desde as menos participativas, como as “peças de mensagem” até as mais dialógicas – quando o teatro, como observa Nogueira, passa a “incluir as próprias pessoas da comunidade no processo de criação teatral.”307 O movimento de irradiação do teatro e a sede política pelo reencontro com a plateia popular, colaboraram também aqui no Brasil com a ampliação da diversidade de contextos nos quais os processos de criação cênica podem acontecer e o acesso às populações

à realização teatral; indícios da trajetória do teatro aplicado.

Entre os artistas, o movimento levantou uma questão chave, que é, ainda hoje, objeto de debate no campo do teatro aplicado; ela é bem observada por Silvana Garcia: “O trabalho artístico-cultural das populações periféricas passa, por sua vez, pela organização própria da comunidade e nada impede que os artistas contribuam para esta mobilização, mas sem alimentar a pretensão de se tornarem os seus promotores.”308 É neste ponto que ganham força no percurso e teoria do teatro aplicado as contribuições de Paulo Freire e Augusto Boal.

305 BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a. edição. P. 139. 306 NOGUEIRA. Márcia Pompeo. Teatro e Comunidade. In: Cartografias do ensino do teatro. FLORENTINO, Adilson e TELLES, Narciso. (orgs.) Uberlândia: EDUFU,2009. p. 177- 183. 307 Ibidem, p 177. 308 GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p.208. 118

3.4 - Paulo Freire e Augusto Boal - alicerces teóricos do teatro aplicado.

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” 309 Paulo Freire

“Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena no palco e na vida.” 310 Augusto Boal

A pedagogia Freireana tem uma influência decisiva na trajetória do teatro aplicado. De fato, como veremos a seguir, são muito frequentes as citações à obra de Paulo Freire nos estudos internacionais neste campo de pesquisa. Em meados dos anos 70, a Pedagogia do

Oprimido começa a ser traduzida para línguas estrangeiras, o pensamento de Freire a ser difundido e adotado em outros países. No Reino Unido, por exemplo, algumas vertentes da educação já procuravam uma pedagogia que estivesse mais voltada para o conceito do aluno

“no centro do processo”, e encontraram apoio na obra de Freire, que defendia um tipo de educação progressista e contestava os métodos tradicionais de ensino.

Em Pedagogia do Oprimido, e em publicações posteriores, Freire explora as possibilidades da aprendizagem através de um processo que depende da criação de um diálogo verdadeiro entre aluno e professor, no qual as duas partes assumem ambos os papéis - educador e educando. Freire critica as abordagens baseadas na imposição de conteúdos, estabelecidas fora das comunidades, o que ele chamou de educação “bancária”. Segundo ele, a educação bancária baseia-se na ideia de que apenas um lado possui o conhecimento, e que o outro é passivo, mero recipiente de depósitos; dele não se espera nenhuma contribuição.

Freire critica aqueles que, “de fora”, consideram os membros das comunidades apenas como

309 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 52 310 Boal faleceu em 2 de maio de 2009. Um mês antes, foi nomeado embaixador mundial do teatro pela UNESCO, em Paris. A citação é parte do trecho final de sua mensagem, que reafirmava a sua crença no poder transformador do teatro. 119

objetos; para ele, o processo educativo deve estar baseado num diálogo entre sujeitos, o fundamento de uma educação libertadora. De acordo com o educador:

A razão de ser da educação libertadora está no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma de educação implique a superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos. Na concepção bancária que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica, nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da cultura do silêncio a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição.311

A educação como prática da liberdade de Paulo Freire está baseada na confiança e crença nos saberes dos educandos e comunidades. Para ele, a alfabetização de adultos significa garantir a estes o direito de voz na sociedade. Em sua proposta, o ato de conhecimento tem como pressuposto fundamental a cultura do educando; não para cristalizá-la, mas como “ponto de partida” para que ele avance na leitura do mundo, compreendendo-se como sujeito da história. É por meio da relação dialógica que se consolida a educação como prática da liberdade.

Na pedagogia Freireana, os educadores não são conduzidos a “negar” seus saberes ou intenções pedagógicas, mas convidados a construir em colaboração com os educandos o processo pedagógico. Isto é, estabelecer uma prática de intercâmbio, de troca entre os saberes entre um lado e o outro. De acordo com Freire, para que esta dialogicidade exista é necessário que:

Creiamos nos homens oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo também. Se esta crença nos falha abandonou a idéia, ou não a temos, do diálogo, da reflexão, da comunicação e caímos nos slogans, nos comunicados, nos depósitos, no dirigismo. Esta é a ameaça contida nas inautênticas adesões à causa da libertação dos homens. 312

311 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, ed. 2002. p.59. 312 Ibidem, p.53. 120

Esta noção foi incorporada aos processos do teatro aplicado. Embora o método de

Freire, reconhecido em todo o mundo como referência de uma concepção democrática e progressista de prática educativa, tenha sido concebido como recurso para a alfabetização, seus conceitos, aliados àqueles desenvolvidos posteriormente por Augusto Boal, começaram a ser utilizados também em experiências de teatro. Enquanto na Educação, Paulo Freire questionou a situação passiva do educando diante da prática da educação bancária e propôs uma pedagogia na qual o aluno assumisse o seu papel de sujeito no processo ensino- aprendizagem; no Teatro, Augusto Boal subverteu a situação da plateia, propondo um teatro no qual o espectador se transforma de “ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática.”313 Boal afirma que:

O que a poética do oprimido propõe é a própria ação! O espectador não delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para a ação real.314

Os estudos na área do teatro aplicado reconhecem a contribuição dos dois brasileiros.

Kees Epskamp, por exemplo, defende a obra dos brasileiros como verdadeiros alicerces para a teoria da área. Afirma ele:

Dois pioneiros devem ser vistos como em primeiro plano neste contexto devido ao empenho deles em desenvolver e sistematizar alguns princípios didáticos durante os anos 60 e 70: Paulo Freire, o brasileiro educador e filósofo e o diretor teatral Augusto Boal. Durante os anos 1960 Freire experimentou no Brasil um inovador método participativo no contexto da alfabetização de adultos. Durante a década seguinte aquelas idéias inspiraram o seu conterrâneo Boal a aplicá-las ao drama, estimulando a ativa participação dos membros da platéia na cena, contribuindo com um processo de conscientização e solução de problemas.315

313 BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a. edição. p 138. 314 Ibidem, p. 138. 315 EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London and New York: Zed Books, 2006. p.9 Em sua primeira experiência, em 1963, Freire ensinou 300 adultos a ler e escrever em 45 dias. Esse método foi adotado em Pernambuco, um estado produtor de cana-de-açúcar. O trabalho de Freire com os pobres, internacionalmente aclamado, teve início no final da década de 40 e continuou de forma ininterrupta até 1964. 121

Assim como Epskamp, outros autores também destacam a contribuição de Freire e Boal na trajetória do teatro aplicado. O fato é comprovado também por Márcia Pompeo Nogueira que reconhece a forte presença dos brasileiros na bibliografia dedicada à área:

Apesar da diversidade de entendimento do significado do trabalho voltado para comunidades e da terminologia usada para designá-lo, existe uma unanimidade no reconhecimento da influência de Paulo Freire e Augusto Boal.316

Helen Nicholson afirma que: “Existem duas vertentes da pedagogia que influenciaram o teatro aplicado: uma deriva do educador marxista brasileiro Paulo Freire e a outra de modelos europeus de educação progressista.”317 Sobre Boal a autora acrescenta: “Freire esteve preocupado com a alfabetização de adultos, e seu trabalho teve profunda influência no de

Augusto Boal, que se tornou uma figura poderosa e uma forte presença no drama aplicado.”318 Para Tim Prentki, Boal transportou a essência da teoria Freireana para a arena do teatro, tendo se transformado “num guru do teatro aplicado, reconhecido por todo o mundo.”319

Em 1964, com o golpe militar que derrubou o governo do Presidente João Goulart, eleito democraticamente, Freire foi acusado de pregar o comunismo, sendo detido. A obra de Freire fica mais conhecida pelo mundo devido ao seu exílio, em 1964. Os 16 anos de exílio foram períodos tumultuados e produtivos: uma estadia de cinco anos no Chile como consultor da UNESCO no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária; uma nomeação, em 1969, para trabalhar no Centro para Estudos de Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Harvard; uma mudança para Genebra, na Suíça, em 1970, para trabalhar como consultor do Escritório de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné Bissau, que se concentravam na reafricanização de seus países; o desenvolvimento de programas de alfabetização em algumas ex-colônias portuguesas pós-revolucionárias como Angola e Moçambique; ajuda ao governo do Peru e da Nicarágua em suas campanhas de alfabetização. 316 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. A opção pelo Teatro em Comunidades: alternativas de pesquisa. In: Urdimento – Programa de Pós-Graduação em Teatro., Revista de Estudos em Artes Cênicas. Universidade do Estado de Santa Catarina. Vol 1,no.10 (dez 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. p. 137. 317 NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom and United States: Palgrave Macmillan, 2005. p.9. 318 Ibidem, p. 9. 319 Tim Prentki, assim como Helen Nicholson, reconhecem além das influências de Freire e Boal na teoria e prática do teatro aplicado, também a de outras vertentes como das metodologias baseadas no aprendizado ativo, desenvolvidas pelo Teatro na Educação (TIE) na Inglaterra durante os anos 60, e compartilhadas por outros países. Não caberia neste trabalho um aprofundamento sobre este assunto, entretanto, podemos apontar alguns autores que são referência dentro deste movimento: Dorothy Heathcote, Gavin Bolton, Jonathan Neelands e John O'Toole. 122

O contexto do teatro aplicado se remodelou ao longo de seus anos de evolução. O que aconteceu de muito significativo foi a incorporação em seus processos dos conceitos de participação e autonomia das pessoas e comunidades envolvidas. As ações de “cima para baixo”, aos poucos começaram a ceder algum espaço para aquelas mais “de baixo para cima”.

No palco, as comunidades ganharam mais vez; se antes apareciam como personagens da cena, representadas por agentes “de fora”, com o tempo elas passam a atuar nele, como atores. Em muitos lugares do mundo espalharam-se iniciativas que descobriram o teatro como uma linguagem capaz de fazer emergir a voz de comunidades.

A rigor, a presença de Freire e Boal na história do teatro aplicado é marcante por ter colaborado para a mudança de abordagem daqueles que são “de fora” em relação às comunidades alvo de suas atuações. Tanto nas ações pedagógicas, como nas ações teatrais, o que os dois pensadores defendem é uma atitude política que inclui as noções de diálogo, troca de conhecimentos, autonomia, participação, reflexão e ação, colocando as pessoas e comunidades no centro do processo. Este tipo de abordagem, dialógica, orienta a prática e a teoria do teatro aplicado; constitui o seu alicerce.

3.5 – As noções de diálogo e participação: desdobramentos e desafios na trajetória do teatro aplicado.

As idéias apresentadas ao mundo por Paulo Freire e Augusto Boal serviram como uma espécie de antídoto contra os projetos “de cima para baixo.” É curioso observar este aspecto da evolução do teatro aplicado a partir, por exemplo, de uma de suas subáreas, a do Theatre for Development – TFD (Teatro para o Desenvolvimento). A história do TFD revela com nitidez a maneira gradativa com que as noções de diálogo e participação foram incorporadas em suas práticas. 123

O Teatro para o Desenvolvimento tornou-se conhecido nos últimos quarenta anos e principalmente após a independência dos países africanos. De acordo Tim Prentki, o TFD começou a ser aplicado durante os anos 70 como “estratégia para educação de adultos na

África subSaarana, no subcontinente indiano e na América Latina, principalmente em projetos direcionados às áreas da agricultura, infraestrutura e saúde”. 320

Como explica Márcia Pompeo Nogueira, o TFD teria passado por diferentes fases, desde o teatro de propaganda de mensagens até um modelo de teatro mais participativo. No artigo Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento321, a autora propõe um debate acerca da evolução do TFD entre a sua etapa mais “de cima para baixo” até a mais “de baixo para cima.”Nogueira aprofunda a análise do fenômeno do Teatro para o Desenvolvimento dialogando com autores como Ross Kidd que em From People´s Theatre for Revolution for

Popular Theatre for Reconstruction: Diary of a Zimbabwean Workshop322 (Do Teatro

Revolucionário do Povo para o Teatro Popular para Re-construção: Diário do Workshop no

Zimbábue) identifica as transformações sofridas pelo TFD ao longo das décadas. Nogueira observa que:

Começando em 1950, Kidd nos dá exemplos do Teatro para o Desenvolvimento usado como propaganda das políticas do governo colonial. Teatro era feito por agentes do desenvolvimento para disseminar idéias como a da imunização, política sanitária, produção comercial da agricultura. O exemplo dado por Kidd do Teatro para o Desenvolvimento dos anos 1960 está relacionado aos grupos de teatro itinerantes. Grupos de estudantes universitários levavam peças para vilarejos rurais e periferia das cidades enquanto uma forma de democratização da cultura, fazendo o teatro acessível para as massas.323

320 PRENTKI, Tim. Prefácio. In: EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. London: Zed Books, 2006. p.xiv. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 321 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Entendendo o teatro para o Desenvolvimento (artigo inédito). Cf. Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de Doutorado) 322 KIDD, Ross. From People's Theatre for Revolution to Popular Theatre for Reconstruction: Diary of a Zimbabwean Workshop. The Hague: CESO, 1984. P. 5. Apud NOGUEIRA Márcia Pompeo. Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento (artigo inédito) Cf. Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de Doutorado) 323 Ibidem, P.14. 124

A autora observa que a partir dos anos 70 surge uma outra perspectiva para o Teatro para o Desenvolvimento: “No lugar de fazer turnês de espetáculos prontos, a nova abordagem de TFD nos anos 1970 optou por um formato mais participativo.”324 Em When people play people 325 (Quando as pessoas representam as pessoas), Zkes Mda apresenta a mesma discussão. Também segundo ele, o Teatro para o Desenvolvimento nem sempre teria utilizado formas de expressão pertencentes às comunidades. Em projetos implementados pelo governo ou por agências do desenvolvimento, onde peças eram escritas para serem apresentadas às pessoas ou pelo rádio, o objetivo teria sido, afirma ele, o de “disseminar mensagens e conscientizar as pessoas sobre sua situação social e política.”326

Mda defende a adoção de critérios como: diálogo com a comunidade, a criação coletiva, o uso de improvisações e a participação da platéia durante as performances, também nos projetos de teatro para o desenvolvimento. O autor é critico daqueles projetos que entregavam mensagens prontas às comunidades. Segundo ele: “A comunicação precisa ser descentralizada e criada entre as comunidades rurais, que são a maioria das populações dos países africanos.

Isto dará a população acesso não somente a mensagens produzidas pelos outros, mas os meios de produzir suas próprias mensagens.”327

As conclusões de Kees Epskamp sobre o TFD em publicação posterior revelam que as ideias defendidas por Mda foram com o tempo aproveitadas. Epskamp em Theatre for

Development (Teatro para o Desenvolvimento), livro em que faz ampla citação às obras de

Freire e Boal, afirma que o TFD é usado “para encorajar comunidades a expressar suas

324 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento. (artigo inédito) Cf. Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de Doutorado) 325 MDA, Zakes. When people play people. Development communication through theatre. London and New Jersey: Zed Books, 1993. 326 Ibidem, p.49. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 327 Ibidem, p.1. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 125

preocupações e a refletir sobre possíveis causas e soluções para os problemas.”328 A evolução do Teatro para o Desenvolvimento, no sentido de incorporar uma abordagem mais participativa, fica evidente em outro artigo da professora Márcia Pompeo Nogueira.

Em Buscando uma interação poética e dialógica com comunidades329 a autora explica como as obras de Freire e Boal foram sendo difundidas pelo mundo e aproveitadas em experiências do Teatro para o Desenvolvimento. De acordo com a professora, a prática de interação com comunidades através do teatro começou a acontecer com mais freqüência em outros países do terceiro mundo do que no Brasil, principalmente na África, a partir dos anos oitenta. No artigo, Nogueira descreve trabalhos que se enquadram no conceito da abordagem dialógica do teatro:

Eles visam ao fortalecimento de comunidades, contribuindo enquanto um meio de comunicação entre diferentes setores da comunidade e enquanto forma de identificação e solução de problemas. Trata-se de um teatro que envolve a comunidade em todo o processo teatral, incluindo a criação do texto e representação, que são baseadas em problemas apontados pelos participantes. O método de abordagem das comunidades é baseado no respeito ao conhecimento e às formas de expressão da cultura local.330

O método, afirma a autora, foi sendo “desenvolvido e aprimorado por meio de intercâmbios entre facilitadores que tomaram parte em oficinas e conferências internacionais muito freqüentes nos anos oitenta principalmente no continente Africano”.331 No artigo,

Márcia Pompeo, utilizando como exemplo dois workshops que aconteceram na década de 80, um no Zimbabwe e outro na Nigéria, sistematiza o método dialógico do teatro para o desenvolvimento, dividindo em etapas o processo de interação com a comunidade. De acordo

328 EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London and New York: Zed Books, 2006. p. 3. Tradução própria com revisão de David Herman.Atualmente o uso do TFD é freqüente em projetos promovidos por ONGs internacionais voltados para a prevenção da AIDS e para a resolução de conflitos. 329 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades. Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. p.70. Os trabalhos citados pela autora no artigo foram estudados em sua pesquisa de doutorado, cujo resultado é a tese inédita intitulada: Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. 330 Ibidem, p. 70. 331 Ibidem, p. 70. 126

com a autora, ao penetrar numa comunidade, com a autorização da mesma, o grupo de facilitadores deve encorajar os indivíduos a colocar suas idéias em prática, deve assumir a atitude de quem vai “coordenar um processo aberto para as contribuições dos membros da comunidade.”332 Nesses primeiros momentos, o objetivo deve ser, de maneira gradual, conhecer as pessoas e se informar sobre o que acontece no local.

Os passos seguintes são a pesquisa dos problemas vividos pela população, até a escolha daquele que mais a aflige. Adiante, o problema identificado torna-se o assunto de improvisações, onde os indivíduos, representando os personagens da história buscam através cena, possíveis soluções. Nas experiências citadas no artigo pela professora, as etapas de aproximação previstas na abordagem Freireana, aliam-se às técnicas de Augusto Boal para, através do teatro, levantarem e debaterem temas e problemas pertinentes à realidade das comunidades. De fato, uma das mais conhecidas formas de encarar o teatro como instrumento para discussão concreta de temas ligados à realidade de determinadas comunidades são as técnicas do Teatro do Oprimido333, especialmente as do teatro fórum, que convidam o espectador a participar da encenação e a através da ação propor possíveis soluções para um problema apresentado.

Os projetos desenvolvimentistas reconheceram o método participativo (baseado nas idéias de parceria, “de baixo para cima”, diálogo, comunidades no centro do processo, coletivo etc.) como mais eficiente para atingir suas metas do que as abordagens convencionais (“de cima para baixo”, centradas em objetivos planejados por agentes externos

à comunidade.) Ficou evidente que excluindo a participação das populações ou comunidades nos processos de formulação e implementação dos projetos, as políticas desenvolvimentistas cavaram, em muitos casos, o seu próprio fracasso. Nos anos 70, tanto doadores como os

332 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades. Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. p. 71. 333 Durante o exílio, Boal viajou pelo mundo levando suas idéias, suas técnicas estão hoje amplamente difundidas pelo mundo em práticas teatrais que buscam a interação com comunidades. 127

governos dos países beneficiários perceberam que bilhões haviam sido gastos com projetos, sem que estes tivessem obtido os resultados esperados. A palavra participação ganhou então lugar de destaque no vocabulário das políticas do desenvolvimento. Incluir estratégias de participação passou a ser prioridade para elas. O teatro passou a ser considerado como um importante aliado dentro deste contexto. Muitos projetos, crentes na eficiência desta arte como promotora do diálogo com as comunidades, começaram a incluí-la como uma ferramenta em prol do desenvolvimento.

Para estimular a participação das comunidades, as campanhas de desenvolvimento passaram a financiar projetos teatrais participativos. Como já foi visto, primeiro eles adotaram modelos semelhantes ao teatro de propaganda, levando mensagens prontas às populações.

Depois, gradualmente, devido à divulgação dos métodos de Paulo Freire e Augusto Boal, começaram também envolver as comunidades em todo o processo teatral, incluindo a construção do texto até a performance final. Teatro e participação passaram a ser considerados ingredientes mágicos para as políticas do desenvolvimento. Se a princípio a necessidade de comunicação entre as agências do desenvolvimento e as comunidades originou um teatro de caráter mais instrumental, preocupado em disseminar mensagens preparadas pelos escritórios “desenvolvidos” ou nos centros universitários sobre assuntos como: a importância do uso de fertilizantes, da irrigação e da construção de represas; mais tarde, devido à crescente desconfiança das comunidades em serem tratadas como objeto de decisões alheias a elas, as agências do desenvolvimento passaram a incluir os métodos mais participativos.

Majid Rahnema explica que ativistas sociais e funcionários de organizações internacionais atuantes nos países “em desenvolvimento” e que “haviam embarcado neste trem com a esperança de poder ajudar os oprimidos” 334 ao perceber as deficiências dos

334 RAHNEMA, Majid. Participação. In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 191. 128

projetos de cima para baixo passaram a defender a inclusão de métodos de interação participativos, utilizando estratégias de ação planejadas que não fossem impostas. Chegou-se

à conclusão de que quando as populações locais eram incluídas, sendo ouvidas suas verdadeiras necessidades, que os projetos obtinham melhores resultados. Sobre a participação

Rahnema afirma:

Tendo-se assim chegado a um consenso entre os planejadores, as ONGs e os trabalhadores de campo lograram efetuar uma mudança profundamente importante nos relacionamentos entre várias partes envolvidas nas atividades relacionadas com o desenvolvimento. Com isso, a palavra que anteriormente teria sido sistematicamente desprezada por economistas, planejadores e políticos perdeu, subitamente, toda aquela conotação subversiva que antes possuía.335

Assim, o conceito de participação tornou-se um elemento chave para o estabelecimento de um desenvolvimento alternativo, cuja premissa é permitir aos oprimidos que atuem livremente como sujeitos de seu próprio destino ou, como ironicamente afirma Rahnema:

“Envolver os pacientes em sua própria cura.”336 O autor explica que em princípio os métodos inspirados pela abordagem participatória, entre eles o teatro, fizeram renascer a esperança entre aqueles que trabalhavam nas bases comunitárias. Segundo Rahnema, a corrida para a criação de um “saber popular” capaz de dar “fim ao paradigma dominante foi um incentivo para a difusão de atividades nas áreas da alfabetização e de regeneração de técnicas tradicionais.”337 Embora o autor concorde com esta noção de “poderes à população” e que acredite que as intenções dos pioneiros da participação fossem puras e nobres, ele questiona a lógica que está por trás desta ideia. De acordo com ele: “Quando A considera essencial dar poderes a B, A presume não só que B não tem poder – ou não tem um tipo de poder apropriado – mas também que A tem uma fórmula secreta de um poder no qual B terá que ser

335 Ibidem, p. 192. 336 Ibidem, p.198. 337 Ibidem, p.198. 129

iniciado”.338 O autor questiona também o papel dos “agentes de transformação” e das ONGs, que foram, segundo ele, considerados os instrumentos com as qualificações necessárias para envolver os pacientes em sua própria cura:

Agindo, na maior parte das vezes como promotor da participação, ou até como profissional no assunto, e não como parte sensível ao processo de aprendizado mútuo, ele se transformou algumas vezes em ideólogo militante, outras em uma autoridade que atribuía a si mesmo o total conhecimento das necessidades da comunidade e suas estratégias para satisfazê-las. (...) Poucos foram os atores que genuinamente buscavam aprender com a comunidade local como definir e entender a mudança e qual o método mais adequado para implementá-la na visão da própria comunidade.339

Sobre as ONGs, o autor comenta que sendo organizações não governamentais foram consideradas, inicialmente, um mecanismo mais eficiente e menos burocrático para a implementação de projetos, mas, depois, passaram a ser vistas pelos “doadores” como boas aliadas em qualquer tipo de projeto que pudesse gerar fins publicitários. Rahnema é categórico ao afirmar que, de modo geral, nem as promessas dos agentes de transformação, nem das ONGs, conseguiram de fato envolver os pacientes em sua própria cura, salvo algumas exceções, devido às qualidades pessoais dos mediadores. Do ponto de vista dos

“ajudados” o autor conclui:

Os próprios pacientes, que eram encorajados a retornar as suas antigas tradições, tornaram-se dependentes dessa nova raça de especialistas descalços, enviados do estrangeiro como voluntários, para cair de pára- quedas nas aldeias ou treinados no próprio local.340

As assertivas de Majid Rahnema deixam dúvidas sobre a eficiência das abordagens participativas no contexto dos projetos desenvolvimentistas e a sua capacidade de por meio do diálogo e da conscientização fazer cessar os processos de dominação e manipulação. Como o próprio autor afirma, essas são questões difíceis de serem respondidas. É fato, porém, que

338 Ibidem, p.199. 339 Ibidem, p. 200. 340 Ibidem, p. 201. 130

inúmeros movimentos de base foram e ainda são particularmente interessantes e realmente capazes de ouvir o que têm a dizer os membros das comunidades. Para ele, a obra de Paulo

Freire representou importante contribuição ao movimento participatório, sobretudo devido à teoria desenvolvida pelo pedagogo sobre a dualidade existencial do oprimido. A teoria elaborada por Freire afirma que os oprimidos só poderão contribuir para a pedagogia libertadora quando se descobrirem “hospedeiros” do opressor.

De acordo com Freire, o oprimido, imerso na engrenagem da estrutura dominadora, teme a liberdade, enquanto não se sente capaz de correr o risco de assumi-la; ele vive um conflito interno, uma divisão que o empurra em dois movimentos opostos:

Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de dentro de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores.341

Freire acredita que o problema da libertação é que a realidade opressora, ao constituir-se como um mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências. Para vencer isto só a práxis, a ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.

Apesar de confiar a Freire grande contribuição na tarefa de compreender a mente colonizada, Rahnema o desafia quando questiona a imunidade dos “ativistas da transformação” ou dos estrangeiros “encarregados da conscientização alheia” em relação a uma falsa percepção da realidade. Segundo o autor, Freire não leva em consideração a possibilidade de muitos destes agentes externos às comunidades estarem também contaminados e absorvidos pelos valores dominantes. Isto poderia, segundo ele, explicar os

341 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 35.

131

casos freqüentes em que os “agentes” utilizam os métodos de participação e conscientização, apenas como formas de “docilização” ou manipulação mais sutis.

Como podemos constatar, a noção de participação foi adotada pelas políticas desenvolvimentistas, mas, em muitos casos, serviu mais como um discurso conveniente; bem longe da práxis eficiente, na qual acreditava Paulo Freire. De fato, alcançar o ideal participatório, nos termos que defendeu o pedagogo e, posteriormente em versão teatral,

Augusto Boal, não é tarefa fácil. Mas Rahnema finaliza seu artigo com uma perspectiva um pouco mais otimista. Por meio de duas perguntas ele restabelece a fé no ideal:

Se o ideal participatório em termos simples for redefinido para incluir qualidades tais como a atenção, a sensibilidade, a bondade ou a compaixão e tiver como apoio ações regeneradoras como aprender, relacionar-se e ouvir, não serão essas, justamente, as qualidades e talentos que jamais poderão ser cooptados? E também não são essas mesmas qualidades e talentos as que sempre contribuem para o florescimento, em outros, de suas potencialidades de transformação interna? 342

Hoje, mesmo que a noção de participação seja em geral uma condição sine qua non na

área do teatro aplicado, isto não quer dizer que as metas de Freire e Boal estejam em todas as iniciativas sendo sempre plenamente atingidas. É que o conceito de participação tornou-se um slogan politicamente bastante atraente. A efetiva presença da política defendida pelos dois brasileiros depende das intenções do “projeto”. E elas podem variar: algumas comprometidas com a verdadeira interação entre as pessoas, o questionamento da realidade, e a necessidade de mudança; outras fruto de agendas mais ocultas, servindo como instrumento para objetivos ilusórios e sem qualquer impacto na vida das pessoas.

3.6 - O teatro aplicado e a dinâmica do “pela comunidade”.

342 RAHNEMA, Majid. Participação. In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 207. 132

Ao longo dos anos, o percurso do teatro aplicado trouxe à cena ações cada vez mais inspiradas nas ideias de engajamento comunitário e protagonismo das comunidades. Existem inúmeras maneiras de construir a relação entre o teatro e a comunidade. Mas, em geral, o grau de engajamento e participação de uma comunidade em determinado projeto pode refletir a medida de sua autoria, ou até que ponto ela pode ser considerada a “dona” do evento; se, de fato, o projeto representa uma resposta às suas necessidades e aos seus desejos, ou se foi preparado por um outro grupo, cujos interesses nem sempre são compatíveis com os seus. A busca pela legítima participação das comunidades como sujeitas dos processos teatrais é um assunto que ganhou lugar de destaque nos debates que hoje fazem parte do campo do teatro aplicado.

Os professores Márcia Pompeo Nogueira e Tim Prentki sistematizam critérios muito semelhantes que agrupam a diversidade das relações entre teatro e comunidade em três diferentes tipos de “transações teatrais”: o teatro para a comunidade, teatro com a comunidade e teatro pela/por comunidade. A primeira transação partiria de um movimento

“de fora para dentro” ou “de cima para baixo” quando, por exemplo, um grupo teatral leva às escolas espetáculos sobre educação sexual, doenças sexualmente transmissíveis ou outros temas, com o intuito de promover uma mudança de comportamento. Como esclarece Márcia

Pompeo: “Este modelo inclui o teatro feito por artistas para comunidades periféricas, desconhecendo de antemão sua realidade.”343 Na segunda “transação”, agentes externos lideram o processo, incluindo parcialmente os integrantes da comunidade com a finalidade de discutir temas relevantes para determinado local.

Em alguns casos esses agentes “pesquisam” os temas durante workshops com os participantes, depois preparam e levam um espetáculo pronto à comunidade; na terceira

“transação”, teatro pela/por comunidade todo ou quase todo o processo é comandado pela

343 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro e Comunidade. In: Cartografias do ensino do teatro. (orgs.) FLORENTINO, Adilson. TELLES, Narciso – Uberlândia: EDUFU, 2009. P. 173-182. P. 177. 133

própria comunidade, mesmo que contando com a presença de um artista facilitador344. De acordo com Prentki:

No teatro pela comunidade, a comunidade faz e apresenta o teatro por si própria na tentativa de se comunicar com um local e audiência específica. Isso pode envolver um alto grau de facilitação por um artista de teatro aplicado para facilitar a tomada de decisões e a apresentação pela comunidade, ou por outro lado, ser gerado pela comunidade, comgen (“community generated”, gerado pela comunidade), onde a comunidade/participantes dirigem e planejam o evento inteiro sendo diretores, artistas e atores, com pouca ou nenhuma intervenção de fora.345

Nos critérios estabelecidos pelos autores, o uso das preposições (para, com, pela/por) serve para esclarecer os níveis de participação das comunidades ou o grau de envolvimento dos integrantes dos grupos nos processos teatrais. Como vimos, as influências de Freire e

Boal foram decisivas para que o conceito de participação fosse incorporado ao discurso e prática do teatro aplicado. Se fosse possível “medir” o grau de participação comunitária, poderíamos, aproveitando os critérios de Prentki e Nogueira, imaginar uma escala que flutuaria entre as iniciativas mais “de cima para baixo” (para a comunidade) até as mais “de baixo para cima” (pela comunidade).

O teatro pela inclui iniciativas nas quais o grau de participação comunitária é grande, isto quer dizer, que a partir do impulso ou de um facilitador ou de algum membro da comunidade, o processo teatral promove a emersão de um teatro que pertence e diz respeito especialmente aquele local e àquelas pessoas, caracterizando-se como um movimento “de baixo para cima”. Experiências como essas envolvem as pessoas em todo o processo de criação, buscando por meio do teatro, criar um espaço no qual a sua cultura, voz e expressão possam se manisfestar. No extremo oposto ao teatro pela, encontram-se as iniciativas de teatro para, identificadas por projetos que levam peças prontas às comunidades abordando

344 O termo “artista facilitador” é utilizado com frequência na literatura do teatro aplicado (applied theatre) para designar os indivíduos que penetram nas comunidades para coordenar processos teatrais. 345 PRENTKI, Tim, PRESTON, Sheila. (orgs.) The Applied Theatre reader. London and New York:Routledge, 2009. p 10. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 134

conteúdos pré-determinados, a maioria das vezes decididos por organizações externas às elas, caracterizadas por um movimento “de cima para baixo”.346

Nos estudos do teatro aplicado, a “modalidade” do community theatre (teatro de comunidade) é freqüentemente associada a um tipo de prática cuja dinâmica equivale a noção do teatro pela comunidade. Seus exemplos vêm crescendo em grande número e em várias partes do mundo a partir da ação de membros dos próprios grupos comunitários, ou por meio da colaboração de um “facilitador”, um artista “de fora”, que semeia na comunidade o apetite pelo teatro, encorajando um processo que será liderado não por ele, mas por ela própria. Em

Community Theatre, Eugene Van Erven afirma que:

O community theatre é um fenômeno do mundo inteiro que se manifesta de várias maneiras diferentes, proporcionando um largo leque de estilos performáticos. Essas manifestações têm em comum, acredito eu, a ênfase em histórias locais e/ou pessoais (em vez de textos pré-escritos) que são primeiro processadas em improvisações e depois transformadas em teatro coletivamente sob a direção, ora de artistas profissionais de fora - que podem ou não, terem sido ativos em outros tipos de teatro profissional - ora por artistas amadores locais.347

Van Erven observa o fato de que as experiências do community theatre (teatro de comunidade) proporcionam performances que emergem das comunidades, cujos residentes atuam e contribuem significativamente com os processos criativos. Erven salienta: “O teatro de comunidade privilegia o prazer artístico e o fortalecimento da autonomia dos participantes da comunidade.” 348 E acrescenta que: “Sua matéria-prima e formas estéticas sempre provém diretamente (senão exclusivamente) da comunidade, cujo interesse este teatro tenta

346 Para ilustrar esta transição do o teatro para e o teatro pela, Prentki conta, por exemplo, que estudantes universitários na África, especialmente na Nigéria durante os anos 70 e 80, preparavam peças para serem levadas prontas às comunidades. Depois perceberam que aquelas peças não faziam muito sentido para a platéia que buscavam, não causavam impacto algum porque tratavam de assuntos sem significado para ela. Mais tarde passaram a visitar as comunidades e a pesquisar os temas de seu interesse, voltavam para universidade e lá escreviam as peças. Num terceiro estágio, mais próximo do teatro pela, as peças passaram a ser criadas junto com as comunidades, através de processos criativos, incluindo seus membros como atores, na cena. (informação verbal) 347 VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London and New York, 2001. p. 2-3. 348 Ibidem, p. 2-3. 135

expressar.” 349 Além do envolvimento da comunidade como sujeita do processo criativo, o fenômeno do community theatre (teatro de comunidade) vem favorecendo o surgimento de experiências que apostam menos na “discussão de problemas” e mais na ideia de que o fazer teatral pode representar, em si, a afirmação da voz e do corpo das comunidades, explorando o espaço teatral como um lugar onde podem se manifestar as suas formas artísticas, os valores da cultura local, o seu protagonismo.

Helen Nicholson está de acordo com Erven quando comenta que: “O community theatre tende a enfatizar o potencial dramático das histórias da comunidade local ou de suas pessoas.”

350 Nicholson também esclarece que ele vem sendo caracterizado pela participação de membros da comunidade envolvida nos processos de criação de espetáculos que possuem especial ressonância para as suas comunidades. Kees Epskamp também concorda com os demais autores quando afirma que são “iniciativas teatrais desenvolvidas pela própria comunidade, muito baseadas em formas artísticas locais.” 351

Em geral, são práticas que permitem que as comunidades não apenas participem, mas se tornem autônomas nos processos criativos, isto porque, mesmo que ocorra a colaboração de um artista/facilitador, o projeto está sob a liderança dos membros da comunidade; favorecem a emersão de histórias e formas de expressão locais; permitem uma comunicação imediata e plena com a platéia local, para a qual a performance é elaborada.

No Brasil, a relação entre teatro e comunidade vem sendo batizada com diversos nomes.

Além de teatro de comunidade aparecem outras versões como: teatro e, teatro na, teatro em comunidade ou, simplesmente, teatro comunidade. Para evitar entrar num labirinto de

349 Ibidem, p. 2-3. Nesta obra, Van Erven, que é um dos principais experts em teatro político asiático, organizou o primeiro estudo comparativo dos trabalhos e tradições metodológicas que têm se desenvolvido no campo do teatro comunitário pelo mundo. Trata-se de um estudo abrangente baseado em suas próprias experiências com grupos de teatro comunitário em seis países diferentes. O community theatre é considerado pelo autor como um instrumento importante por meio do qual as comunidades podem compartilhar histórias coletivamente, participar de um diálogo político e desconstruir a crescente exclusão e marginalidade de grupos de cidadãos. É praticado em todas as partes do mundo por um número crescente de pessoas. 350 NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of the theatre. Palgrave Macmillan, 2005, UK, p. 10. 351 EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London and New York: Zed Books, 2006. p. 11. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 136

justificativas em torno do uso de preposições mais ou menos adequadas, ou investir em discussões terminológicas, para efeito deste estudo, acreditamos que optar pelo uso do conceito do teatro pela comunidade seja mais pertinente. Ele é preciso, reflete a dinâmica de um teatro que surge a partir da comunidade, que emerge dela e a ela pertence. Ele nos será útil para dialogar não só com os exemplos a seguir, como também com os que serão investigados no capítulo seguinte.

A transição de um teatro que é levado às pessoas para um teatro que é feito pelas pessoas, premissa do teatro pela comunidade, tem como exemplo marcante a experiência do

Kamiriithu, no Quênia. Em Decolonising the mind - the politics of language in African

Literature352 (Descolonizando a mente, a política da linguagem na Literatura Africana), o escritor Ngugi wa Thiong`o353 descreve a sua vivência enquanto coordenador de um grupo de teatro naquela comunidade em 1976. Thiong`o foi procurado por uma moradora do local que desejava a sua contribuição nas atividades de um centro comunitário.

O resultado do encontro entre o escritor e a comunidade foi além da criação de um espetáculo marcante, a construção de um teatro pelos próprios moradores do lugarejo. O centro comunitário, um barraco com quatro salas e paredes de barro, era utilizado para alfabetização de adultos. Havia também um espaço ao ar livre, onde os camponeses e operários da vila construíram um palco, um tablado semicircular em torno do qual a platéia se acomodava.

A peça Nagaahika Ndeenda (Me caso quando quiser), escrita por Thiong`o, em colaboração com comunidade e aproveitando as experiências de vida de seus moradores, falava sobre a história de luta pela terra e pela liberdade do povo queniano. A escolha da

352 WA THIONG’O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London: James Currey.1986. p.44 -45. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 353 Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em 1938 no Quênia. A partir da experiência em passou a escrever, além de em língua inglesa, também em Gĩkũyũ. Seu trabalho inclui romances, pecas, contos, ensaios, artigos eruditos, críticas e literatura infantil. Ele é fundador e editor do jornal Gikuyu-language, Mutiiri. Foi exilado quando saiu da prisão em 1977. Vivendo nos Estados Unidos lecionou por alguns anos na Yale University e desde então é professor de duas cadeiras na New York University, Literatura Comparada e Estudos da performance; leciona também na University of Califórnia. 137

língua local para a escrita e representação da peça foi um desafio para o autor. Educado em língua inglesa, exigência dos colonizadores britânicos durante os anos de dominação,

Thiong`o precisou redescobrir a sua língua natal a “Gikuyu” e reaprendê-la com a comunidade, guardiã do dialeto. A peça mostrava a transição do Quênia de uma colônia na qual os interesses britânicos predominavam a uma neo-colônia com as portas abertas aos interesses imperialistas mais largos do Japão e EUA. Thiong`o explica que:

[A peça] retratava as condições sociais do momento, particularmente, a dos operários nas fábricas e plantações multinacionais. Muitos dos operários do Kamiriithu haviam participado da luta pela terra e liberdade (...) Muitos deles fugiram para as florestas e montanhas, outros foram para as prisões e campos de detenção coloniais. (...) Muitos tiveram suas casas queimadas, suas filhas estupradas pelos britânicos, sua terra confiscada, seus parentes mortos. De fato, Kamiriithu foi um produto daquela história de luta heróica contra o colonialismo e da subsequente traição monumental do neo- colonialismo. A peça celebrava aquela história enquanto mostrava a continuidade da luta.354

O espetáculo foi apresentado durante nove meses em ensaios abertos assistidos por cerca de trezentas pessoas. A dança e o canto, elementos fortes da cultura local, foram incorporados ao espetáculo. Thiong`o afirma que: “O teatro voltou a ser o que ele havia sido um dia - um festival coletivo.”355 O sucesso da peça, que atraiu público também de outras regiões, assustou o governo que agiu com violência. Em novembro de 1977, o governo do Quênia proibiu as apresentações de Ngaahika Ndeenda; Thiong`o foi preso no mesmo ano e banido de suas atividades como professor da Universidade de Nairobi. Apesar dos esforços da comunidade do Kamiriithu em manter as atividades, em 1982, o centro educacional e cultural foi posto abaixo. Nas palavras de Thiong`o:

A destruição do Kamiriithu representou mais do que a destruição de um teatro ao ar livre. Em sua busca por uma linguagem africana autêntica de teatro, o Kamiriithu havia transformado em forma palpável o futuro do

354 WA THIONG`O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London: James Currey.1986. p.45. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman. 355 Ibidem, p.57. 138

Quênia – o Quênia dos quenianos, um Quênia independente, para um povo independente.356

Em seu curto período de existência, entretanto, o teatro de Kamiriithu exerceu um impacto no teatro queniano. Cresceu um movimento teatral que defendia o uso das línguas africanas no palco; o próprio Thiong`o passou, a partir daquela experiência, a militar pelo ressurgimento das línguas africanas:

Escritores quenianos não tem outra alternativa a não ser retornar às raízes, retornar às fontes de seu ser, nos ritmos da vida, da fala e das linguagens das massas quenianas para que elas possam estar à altura do grande desafio de recriar em seus poemas, peças e romances a grandeza épica de sua história.357

A história de Kamiriithu inspirou outras experiências teatrais em diferentes países africanos. Aqui no Brasil, também existem registros do teatro pela comunidade. Exemplo disso é a pesquisa realizada por Zeca Ligiéro no final da década de 70, intitulada Teatro e comunidade - uma experiência.358 O estudo relata a vivência do professor com um grupo amador de teatro em São Gonçalo. Ligiéro foi convidado pelo Departamento de Cultura do

Estado do Rio de Janeiro para realizar um “curso de teatro” na região. O primeiro contato do professor com o teatro realizado na região foi por meio de um festival de teatro amador.

Ele se surpreendeu ao constatar que os grupos locais optavam, quase sempre, por um repertório motivado por imitações de espetáculos do teatro profissional que haviam visitado

São Gonçalo. De acordo com Ligiéro: “Eles pareciam ignorar o que é fazer teatro para a sua própria comunidade.”359 Por este motivo, o professor estabeleceu como metas para o “curso” instigar os integrantes a descobrir a sua maneira própria de fazer teatro, provocar uma reflexão sobre a sua realidade e recriá-la através da cena. Para ele, o teatro deveria surgir a

356 Ibidem, p.61. 357 Ibidem, p.73. 358 LIGIÉRO, Zeca. Teatro e comunidade: uma experiência. Uberlândia: Universidade de Uberlândia,1983. A reflexão sobre esta experiência é desenvolvida por Ligiéro em publicação mais recente. Cf. LIGIÉRO, Zeca. Teatro a partir da comunidade. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2003. 359 Ibidem, P.3. 139

partir da comunidade, ao contrário de tentar reproduzir, ou impor, uma estética distante daquele contexto. O resultado do curso foi a montagem do espetáculo Realidades e Lendas de

São Gonçalo que, de acordo com o relato, refletiu o intercâmbio de experiências e conhecimento entre o professor e o grupo.

Outro registro, um pouco mais recente, vem de Santa Catarina. Entre 1991 e 1998, a professora Márcia Pompeo Nogueira desenvolveu um projeto de teatro pela comunidade em

Ratones, um lugarejo no interior de Florianópolis. De acordo com Nogueira, um grupo de jovens da comunidade visitou a Universidade para apresentar um espetáculo, que se limitava apenas a apresentar cópias de programas de humor da televisão. A partir dali uma parceria entre a universidade e o grupo se firmou360; coordenado por Nogueira o objetivo da parceria foi criar um projeto teatral baseado em histórias próximas da realidade, do imaginário e da cultura de Ratones. Juntos eles criaram três peças, que resultaram de processos de um ano e meio cada: País dos Urubus, História do Não sei e A Outra História do boi.

Os três espetáculos foram criados a partir de um processo que privilegiou os interesses do grupo de Ratones. A primeira peça abordava a história de um país muito corrupto, onde tudo acontecia ao contrário de como deveria acontecer, como por exemplo, o objetivo do ministro da educação que era ensinar as crianças a não tomar banho e falar palavrão. O tema foi levantado pelo grupo de adolescentes e aproveitado pela equipe da universidade como tema da peça.

A segunda, História do não sei, emergiu de um workshop e impressionou os facilitadores pelas suas possibilidades simbólicas. Não sei era um personagem em busca de sua identidade de gênero, a história surgiu a partir de dúvidas dos adolescentes sobre as mudanças ocorridas em seus corpos naquela etapa da vida. A terceira peça criada em Ratones,

A Outra História do boi, tinha como tema uma manifestação cultural do Boi mamão, própria

360 O projeto tornou-se um campo de estágio para alunos da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. 140

daquela região, este espetáculo serviu como um resgate da memória cultural da comunidade.

Márcia Pompeo explica que: “Nós não chegamos a Ratones com uma peça teatral pré- estabelecida. Queríamos pesquisar os interesses do grupo, em torno do que nós criávamos as peças a serem apresentadas pelos adolescentes de Ratones, baseadas em histórias próximas de sua cultura e realidade”.361

Ao descrever os três espetáculos, Nogueira destaca o fato de que aquele projeto de teatro não fora criado para funcionar como um fórum para identificar e resolver os problemas da comunidade. “O trabalho em Ratones tinha seu foco na prática teatral a ser desenvolvida por um grupo específico de adolescentes.” Segundo ela, o trabalho estava “relacionado com a realidade, mas não era uma simples cópia de aspectos da vida quotidiana. Era uma abordagem poética e lúdica da realidade.”362 A professora, utilizando o conceito de codificação363 de

Paulo Freire, defende a idéia de que é possível para uma comunidade desvelar e transformar a sua realidade também através da investigação de formas imaginativas:

Do meu ponto de vista, as imagens simbólicas escolhidas no centro de cada peça criada em Ratones podem ser identificadas com codificações. Não eram aspectos da realidade concreta. Não Sei era um personagem fictício, mas exatamente porque era imaginário, ele nos deu uma distância para explorar questões íntimas relacionadas com a realidade do grupo. (...) Sob o meu ponto de vista, enquanto artistas, podemos levar adiante o conceito de codificação, no sentido de incluir abordagens fantásticas e imaginativas que possam contribuir para aprofundar nosso entendimento da realidade.364

O trabalho de longo prazo desenvolvido em Ratones indica, além da evolução do teatro levado às comunidades para o teatro feito pelas comunidades, a incorporação de elementos

361 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades. Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. 362 Ibidem, p.84. 363 Uma das etapas do "Método de Paulo Freire", expressão universalizada como referência de uma concepção democrática, radical e progressista de prática educativa, é a codificação. Trata-se de uma representação ou a ilustração (desenho ou fotografia) de um aspecto da realidade, de uma situação existencial construída pelos educandos em interação com seus elementos. O mecanismo proporciona uma percepção distanciada da realidade pelos indivíduos, ela passa a ser observada, analisada. Freire admitiu também a eficácia da dramatização como codificação: "Funcionaria a dramatização como codificação, como situação problematizadora, a que se seguiria a discussão de seu conteúdo." In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 118. 364 Ibidem, p. 87. 141

mais poéticos e lúdicos no processo de criação e também no resultado dos espetáculos. A escolha por levantar temas locais por meio de uma abordagem mais “fantástica”, investigando metáforas criadas pelos jovens participantes e também presentes no imaginário da comunidade, diferencia, e muito, este projeto, daqueles que, como vimos anteriormente, buscavam a disseminação de mensagens prontas. Abordagens como esta, garantem além da efetiva participação comunitária a emersão de formas mais artísticas e menos áridas de contar histórias, tristezas ou alegrias de uma comunidade.

Experiências como a de Ratones têm se tornado mais freqüentes do que as baseadas em abordagens instrumentais e incolores. Atualmente, embora não possamos afirmar que projetos de mensagem, ou de cima para baixo, sejam um fenômeno do passado, muitas iniciativas, no mundo todo, além de adotar métodos mais participativos têm explorado as possibilidades do palco como um espaço que vai além de uma arena para a discussão de problemas locais, mas como um lugar onde a cultura, as memórias, lutas e conquistas de uma comunidade podem ser tratadas a partir de uma perspectiva mais artística.

A explosão deste leque de estilos e formas de expressão próprias das comunidades não pode ser explicada somente a partir do ponto de vista dos que aplicam o teatro, e que teriam gradualmente percebido que a natureza de sua relação com os grupos comunitários deveria oferecer, ou ceder, mais espaço a voz dos “excluídos.” Esta transição acontece em razão também, e talvez principalmente, da crescente desconfiança dos grupos comunitários em relação às “ações generosas” neles aplicadas, da necessidade urgente desses grupos em eliminar a mediação dos que vem “de fora” e seguir em busca da construção de uma narrativa própria - alternativa.

Aplicar significa sobrepor, apor, empregar em alguém; aplicado quer dizer que se aplicou, que foi sobreposto.365 Como uma injeção que se aplica em alguém, passivo, paciente.

365 FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Miniaurélio: o mini dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Ed. Positivo, 2008. p.130. 142

Helen Nicholson oferece relevante observação quando atenta para a questão de que no campo do teatro aplicado é importante levantar o porquê, com que intenções ou em quem o teatro é empregado. Curioso é o fato de que o termo teatro aplicado nos traga a imagem de uma prática que é posta sob alguém, enquanto que a sua própria teoria, caminhe em direção contrária, defendendo a ideia de um teatro que surge de alguém. É neste ponto que cabe a observação de Nicholson. As doses de teatro, quando aplicadas, surtirão efeitos positivos, transformadores, na medida em que as próprias comunidades, com autonomia, se tornem as agentes da “cura”.

No momento em que o universo do teatro aplicado encontra-se em franca expansão, descobrindo a cada dia novos contextos para o acontecimento teatral, refletir sobre o porquê, as intenções e em quem o teatro é sobreposto torna-se uma tarefa importante; indispensável para quem acredita que deva ser garantido à comunidade o seu verdadeiro protagonismo.

Mais uma vez o que está em jogo aqui é a tensão entre o poder da narrativa dominante e a possibilidade da criação de narrativas alternativas; é o discernimento sobre a diferença entre as iniciativas desenvolvidas como estratégia pelos “vetores de cima”, a fim de perpetuar a dependência dos “vetores de baixo”; e as iniciativas que colaboram com a realização de outra história, ações imunes a vícios perigosos como aquele alimentado pela noção de que alguém, atrasado, precisa ser assistido ou atendido por outro alguém, supostamente mais evoluído. As ações do teatro aplicado podem incidir sobre a estrutura social como forma de mantê-la como está, ou no sentido de modificá-la; aquelas que se demonstrarem mais comprometidas com a

ética e a estética da comunidade-sujeito, estarão, sem dúvida, mais próximas do caminho da transformação. Este é o verdadeiro desafio para as iniciativas do teatro aplicado.

143

4 – A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

O palco é um espaço que hoje faz parte da realidade de muitas favelas do Rio de Janeiro.

Nele, a música, a dança e o teatro vêm ampliando as possibilidades de expressão da voz e do corpo dos moradores dessas comunidades populares. Diversas iniciativas, promovidas por atores sociais “de dentro” das comunidades, por grupos ou organismos externos a elas, “de fora”, têm criado a oportunidade da favela contar a sua própria história. Em contraponto ao discurso hegemônico que aprisionou a imagem da favela a uma representação negativa, as práticas e produções artísticas oriundas do seu território abrem brechas para que um novo discurso, uma narrativa alternativa ganhe vez. Como vimos no segundo capítulo, essa produção cultural, com muita freqüência elege a própria favela como o personagem protagonista de suas obras. Nas letras do rap, nos versos da literatura marginal, ou em peças teatrais, constata-se a emersão de vozes que assinam a sua história.

Também no capítulo 2 abordamos que este novo cenário de cidade, e de país, porque o fenômeno não se restringe ao Rio de Janeiro, que alarga o diálogo entre diferentes segmentos da sociedade criando novas redes de sociabilidade, começa se desenhar com mais força nos anos 90, quando ocorre a explosão do terceiro setor e dos projetos que apostam na arte como uma alternativa para a melhoria da qualidade de vida de crianças e jovens favelados. As atividades artísticas assumem um papel quase que de “curandeiras” das feridas abertas pelos problemas estruturais provocados pelo abandono do Estado e pela privação dos bens públicos.

Combater a violência, “ocupando o tempo disponível” da juventude das comunidades é a tônica do discurso de muitos desses projetos que conquistaram destaque na mídia. No lugar apenas das más notícias sobre o crescente poder das facções armadas do tráfico de drogas que 144

dominam o espaço da favela, as páginas dos jornais passam a divulgar os bons resultados de projetos sociais e artísticos.

Com grande velocidade, novas redes de sociabilidade criaram tramas que envolvem a parceria entre associações comunitárias, organizações não governamentais, o terceiro setor,

órgãos governamentais, veículos da comunicação, empresas nacionais e internacionais. As ações implementadas no território da luta passaram gradualmente a responder às vontades de seus múltiplos parceiros. A trama, ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de ações criativas com o potencial de trazer à tona a voz dos vetores “de baixo”, obriga a negociação entre os interesses de seus diversos atores, entre eles, aqueles que representam os vetores “de cima.” Diante desta intricada transação, social, econômica, política e cultural, parece importante recuperar a questão formulada no segundo capítulo: em que situações a comunidade/favela é de fato autora, de fato favela pela favela, ou mero objeto do interesse de grupos, representantes dos vetores “de cima”? Ou ainda, no que diz respeito ao foco deste trabalho, em que circunstâncias o teatro aplicado favoreceria a emersão de narrativas alternativas, assegurando à favela/comunidade o seu direito de nomear o mundo por meio de um teatro que responda a dinâmica do pela comunidade, como acabamos de ver no terceiro capítulo?

Para tentar responder a essas questões apresentaremos ao longo deste capítulo os exemplos de três grupos teatrais. O primeiro deles, o grupo Nós do Morro é uma referência entre as práticas teatrais desenvolvidas com moradores das comunidades faveladas no Brasil.

O pioneirismo, a longevidade da iniciativa, bem como a repercussão de suas realizações dentro da favela do Vidigal, e também fora dela, reserva ao grupo um lugar de destaque neste trabalho. Mas a sua trajetória não é um exemplo raro apenas no campo do teatro comunitário, representa também uma experiência única na História do Teatro Brasileiro. É o que afirma a professora Tânia Brandão: 145

Uma história de grupo que é uma exceção, sem paralelo qualquer no passado recente de nossa cena. (...) Não há registro de qualquer grupo proveniente de uma realidade comunitária que tenha conquistado projeção inquestionável em nosso teatro, como é o caso do Nós do Morro. (...) É essencial, portanto, reconhecer como, em cerca de vinte anos, a paisagem teatral e humana do Rio de Janeiro foi alterada por obra e graça de um pequeno grupo que acreditou em si e resolveu apostar no seu desejo de fazer acontecer. O grupo Nós do Morro se inscreveu no tempo, mudou a História do Teatro Brasileiro.365

De acordo com Brandão, ao longo dos hoje mais de vinte anos de vida, “não foram poucas as realizações – O Nós do Morro tem uma folha de serviços impressionante, um ritmo de trabalho invejável.”366 Durante as últimas duas décadas, tempo em que o grupo construiu passo a passo a sua história “em etapas progressivas de muita luta, mas consolidadas”367, não foram poucas as transformações ocorridas na realidade do grupo. De fato, enquanto o Nós do

Morro se afirmava como um empreendimento de sucesso, transformando-se como observa

Tânia Brandão num “acontecimento da favela”, muitas mudanças ocorriam no próprio

Vidigal, território de onde emergiu a experiência, na cidade do Rio de Janeiro e no país.

Focalizar com uma lente de aumento as transformações ocorridas na trajetória do grupo, como também em instâncias mais amplas nos aproximará de uma compreensão sobre, por exemplo, os aspectos que favoreceram o aparecimento das diversas iniciativas do teatro aplicado atualmente em atividade no território da luta. Entre elas, as que surgiram depois do

Nós do Morro e que nos servirão como exemplos mais recentes, incluídos no vasto leque de ações teatrais presentes em âmbitos comunitários hoje: o Grupo Código (Japeri, Baixada

Fluminense), que é o resultado da extensão das ações do grupo do Vidigal e a Cia. Marginal

(Nova Holanda, Complexo da Maré), uma iniciativa que nasce no Centro de Estudos e Ações

Solidárias da Maré (CEASM), hoje Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES), uma organização que, assim como o Nós do Morro e o Código, surge a partir da mobilização de

365 BRANDÃO, Tânia. Paisagens de luz e outras histórias. In: PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos. Coordenação editorial e edição. Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009. p.131. 366 Ibidem, p. 132. 367 Ibidem, p. 131. 146

moradores da comunidade, guardando, por isso, um inegável compromisso com a sua comunidade-mãe.368 Mesmo que este capítulo se dedique principalmente ao estudo do Nós do

Morro, trazer esses outros dois exemplos é importante. Primeiro porque um deles reflete o impacto da ação do Nós do Morro também em outra comunidade, Nova Belém, Japeri; segundo porque são iniciativas mais recentes, que já nascem inseridas no contexto atual das novas redes de sociabilidade; terceiro porque, enquanto práticas do teatro aplicado, elas compartilham com o Nós do Morro, uma mesma intenção original: criar, a partir da parceria entre a comunidade e os artistas, processos criativos cuja meta é estabelecer um diálogo com as suas comunidades, transformando ela mesma, a comunidade, em matéria artística para o palco – teatro pela comunidade.

Como veremos a seguir, a história do veterano Nós do Morro mostra que para selar a relação entre palco e platéia, e fazer acontecer o teatro dentro do Vidigal, o grupo descobriu que precisava “contar” a sua própria comunidade. Para consolidar o palco no Vidigal, foi preciso tornar a própria favela, a sua personagem central. Hoje, a sua história já ultrapassa geografia do morro, e deixa a sua protagonista falar também em outros lugares. Se por um lado, alargar o horizonte de atuação, passando a dialogar não apenas com novas platéias, mas também com outros atores sociais como patrocinadores, veículos da comunicação, mídia, critica especializada, empresas, mercado, marketing, traz muitos benefícios, de outro, pode também oferecer riscos. O principal deles sendo o de ter que conviver com o assédio de vetores, com interesses nem sempre de acordo com os valores de uma organização, cuja origem revela um forte compromisso comunitário, enraizado na ética da comunidade-sujeito.

Diante desta contradição, que a realidade contemporânea impõe, caberá às iniciativas como as

368 Em 2006, após um intenso trabalho de campo no Nós do Morro que começara em 2003, quando iniciei a pesquisa direcionada ao Mestrado, senti a necessidade de me aproximar de outras ações teatrais no âmbito das favelas do Rio. A minha intenção era encontrar pontos de afinidade entre a experiência do grupo e outras mais atuais, principalmente no que diz respeito ao uso da abordagem dialógica e a transformação da favela/comunidade como personagem da cena. Desde 2006 venho acompanhando a trajetória do Grupo Código, em Japeri. A sede do Código está situada na comunidade de Nova Belém, Japeri. Embora a área não seja considerada favela, as suas características de extrema pobreza nos deixam considerá-la também como território da luta. Em 2007, conheci a Cia. Marginal, cuja sede está na favela de Nova Holanda, Complexo da Maré. 147

destacadas por este trabalho e que serão mais profundamente analisadas a seguir, o desafio de transitar pelas tramas das novas redes de sociabilidade, defendendo os seus interesses, que a rigor, representam os interesses do território da luta.

4.1 – Vidigal, favela palco e personagem. A conquista da comunidade-sujeito no percurso do Grupo Nós do Morro.

Seguindo a trilha do teatro aplicado no Brasil, chegamos à segunda metade da década de 80, quando um grupo de artistas, inspirados pelo movimento da contracultura, pela ebulição do teatro político das décadas anteriores e motivados pelo desejo de vivenciar experiências teatrais mais próximas das camadas populares, decide apostar na criação de um núcleo de teatro dentro da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro. Em 1986, nasce o grupo Nós do Morro, fundado pelo ator e diretor Guti Fraga, em parceria com Fred Pinheiro, Fernando

Mello da Costa, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Maria José da Silva. Naquele ano, o grupo inicia suas atividades contando com a participação de aproximadamente vinte pessoas. O teatro, que apenas havia visitado o morro em curioso episódio a ser contado mais adiante, ganhou naquela favela outro papel, não se tratava mais de um visitante representado por atores do asfalto; ele ganhou voz e corpo na expressão dos próprios vidigalenses. Naquela favela, longe das salas sofisticadas da cena carioca, o teatro foi aplicado.

Nos primeiros anos de sua existência, o Nós do Morro selou uma forte comunhão com a comunidade vidigalense, uma relação que seria responsável pelo crescimento do número de participantes no grupo, pela duração e originalidade do projeto. Ali, eles consolidaram outro palco, um espaço no qual se revelou o teatro pela comunidade, que elegeu o Vidigal como personagem protagonista.

A trajetória do Nós do Morro faz parte de um contexto maior que é a história de sua comunidade-mãe, protagonista de lutas e conquistas. A continuidade das atividades propostas 148

pelo grupo foi assegurada, ao longo dos anos, pelo engajamento e participação dos moradores do Vidigal. A mobilização comunitária é uma característica marcante daquela população, que aprendeu a se organizar, principalmente para reagir às tentativas de remoção durante as décadas de 50, 60 e 70. Situado numa das áreas mais valorizadas da cidade do Rio de

Janeiro, a encosta do Morro Dois Irmãos, entre os bairros do Leblon e São Conrado, o Vidigal sempre foi alvo da especulação imobiliária, interessada na construção de casas e hotéis de luxo.369

A capacidade de organização da comunidade vidigalense se reflete na atuação da

Associação de Moradores do Vidigal (AMV), que escreveu importantes páginas da história das favelas cariocas. A política remocionista foi uma das batalhas enfrentadas pela AMV.

Fundada em 1967, a Associação protagonizou a luta em defesa da consolidação da comunidade naquela área considerada “nobre” da cidade. Em 1977, a Associação impediu a derrubada de 320 barracos decretada pelo governador do Estado, atendendo solicitação do

Prefeito do Rio, que alegava perigo de deslizamento das encostas do morro. Na realidade, procurava ele defender os interesses de uma grande empresa imobiliária, que pretendia utilizar o terreno para a construção de um complexo hoteleiro de luxo. Na época, o movimento da comunidade contou com a participação também da Igreja Católica. O apoio do Cardeal Dom

Eugênio Salles e a atuação da Pastoral das Favelas370 exerceram grande pressão junto ao

369 Também a existência de uma pequena praia na parte baixa da encosta tornava a região um convite irresistível à construção de hotéis. A história da praia do Vidigal sempre esteve diretamente ligada à da favela. Os moradores do Vidigal freqüentam a praia desde 1940, quando os primeiros barracos começaram a se instalar na região. Desde 1967, existe no local o Hotel Sheraton, que fora construído no lugar do antigo Hotel Colonial. De acordo com o relato de moradores antigos da favela, o Colonial teria dividido a praia com uma colônia de pescadores. Esses pescadores teriam sido os primeiros moradores do morro. A origem do nome Vidigal, também nos remete à história da localidade; trata-se do sobrenome de um de seus antigos donos. Em 1820, as terras na encosta do pico do Morro Dois Irmãos, se tornaram propriedade do Major de Milícias Miguel Nunes Vidigal, autoridade maior na cidade durante o Primeiro Império (1822-31). Vidigal passou a denominar a praia e no século seguinte, também a favela. 370 A Pastoral das Favelas foi criada em 1977 pela Arquidiocese do Rio de Janeiro para oferecer apoio aos moradores das favelas, fornecendo inclusive assistência jurídica. A relação com a Igreja é responsável por uma famosa passagem na vida do Vidigal. Não poderíamos deixar de lembrar a visita do Papa João Paulo II à favela, em 1980. Segundo o relato de um agente de pastoral de favelas registrado no estudo O Papa e o povo370, o Vidigal havia sido selecionado entre todas as demais comunidades para a visita do Pontífice, devido ao espírito de luta de seus moradores. Acontece que o que seria, na ótica do povo, um verdadeiro encontro com a santidade, 149

governo e à opinião pública. Uma letra de música, escrita pelo cantor Sérgio Ricardo, inspirada pela resistência dos moradores do morro, ilustra bem aquele momento: “No Vidigal

/Tem uma turminha de bamba/ Que não se assusta com as ameaças do rei/ Se vem o mal toda a favela se levanta/ Tuas tramóias já sei/ Não se brinca com o poder/ Que poder do povo é bem maior.” 371 Com a vitória, a comunidade revigora a sua força política e passa a integrar o quadro de movimentos associativos, que a partir do final dos anos setenta e início dos oitenta começa a colaborar com mudanças significativas na vida das favelas cariocas.

Os versos do compositor registram também o espírito que tomou conta das favelas cariocas durante o período da ditadura militar, quando nelas ganharam força, principalmente a partir dos anos 70, as noções de: trabalho comunitário e movimento social. Como a comunicação com os canais do Estado superior foi totalmente rompida durante o regime, surgiu à necessidade de se fomentar ações que buscassem soluções para problemas num plano mais local, por isso as pessoas começaram a se organizar para criar estratégias de sobrevivência em suas próprias comunidades. Como nos lembra Renato Boschi, dizia-se que a favela era “um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação voluntária e vizinhança.”372 Alba Zaluar e Marcos Alvito destacam as experiências associativas e o espírito cooperativo como o “ethos predominante entre os favelados” 373 na

época.

marcou cenas de total desapontamento. Patrulhas policiais bloquearam a entrada do morro, a multidão se aglomerou por trás do cordão de isolamento e mal conseguiu vislumbrar a figura do Papa, tal foi a rapidez que o carro pontifício passou. O trajeto percorrido por João Paulo II, havia sofrido várias melhorias, embora um grupo de moradores tivesse ido à Prefeitura solicitar que nenhum tipo de “embelezamento” fosse feito na área, para que a santidade tivesse uma “visão real da favela”. A história é até hoje lembrada por moradores da comunidade. Na ocasião da visita do Papa, o decreto de desapropriação do terreno do Vidigal para fins sociais já havia sido assinado. Após o enfrentamento de setenta e sete, uma disputa judicial foi travada mobilizando moradores e advogados da Pastoral, até que em 1978, o decreto foi assinado pelo então governador Chagas Freitas. 371 Trecho de música extraído da reportagem de Marcelo Monteiro intitulada: Paraíso cobiçado, publicada em 07/05/2004 no site 372 BOSCHI, Renato. População favelada do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro, dados, 1970. apud ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba.(orgs) Um século de favela. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 15. 373 ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba.(orgs) Um século de favela. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 15. 150

Fortaleceu-se o sentido da comunidade, a ideia de que um ajuda o outro. Curiosamente, como afirma Rubem César Fernandes, foi durante o período autoritário que a expressão comunidade ganhou maior peso, atraindo não só no Brasil, como em outros países da América

Latina “um sem-número de agentes sociais.”374 Isto num momento em que as cidades inflavam de gente e que, como consequência disso, aumentavam os problemas urbanos. Neste período a demanda por bens públicos cresceu geometricamente, problemas como espaço para moradia, saneamento e transporte, instigaram o surgimento dos movimentos sociais. Segundo

Rubem César, “foi nestas condições que a palavra comunidade brilhou na imaginação.”375

Fernandes argumenta que:

Os mecanismos de comunicação civil com as esferas superiores da vida pública foram estrangulados e as oposições armadas percorreram um caminho de tragédias. O movimento sindical que no passado constituíra a coluna vertebral das mobilizações populares foi violentamente reprimido. Em suma, reduziu-se a um mínimo a participação cívica no Estado e nas empresas. Estancado assim o ímpeto participativo gerado na década anterior, uma saída restou para os que olhassem em outra direção: para baixo e para o plano local, justamente para as “comunidades”. Se agir sobre a sociedade como um todo já não era possível, quem sabe então as transformações pudessem ser preparadas, numa outra escala de tempo, trabalhando-se pelas bases do edifício social. 376 (grifos nossos)

De acordo com o autor, em toda a América Latina, o trabalho comunitário conseguiu escapar dos controles e se alastrar mesmo sob os regimes mais violentos como o de Pinochet, no Chile. A comunidade iluminou-se com uma “aura positiva”, passou a ser discutida em

“reuniões”, nas quais sentavam num mesmo círculo de cadeiras, lideranças comunitárias, padres da Teologia da Libertação377, educadores freireanos e ativistas políticos de diversas origens.

374 FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: relume Dumará, 1994. p. 34. 375 Ibidem, p. 44. 376Ibidem, p. 34. 377 A Teologia da Libertação é uma corrente teológica que engloba diversas teologias cristãs desenvolvidas no Terceiro Mundo ou nas periferias pobres do Primeiro Mundo a partir dos anos 70, baseadas na opção pelos pobres contra a pobreza e pela sua libertação. Desenvolveu-se inicialmente na América Latina. Estas teologias utilizam como ponto de partida de sua reflexão a situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã. Esta 151

Neste período, cresceram em número as associações de moradores nas favelas do Rio, organizações autônomas, formadas pelos próprios moradores para discutir e levantar soluções para as questões de suas comunidades. Foi o período também em que a Igreja Católica ganhou grande participação na vida comunitária, através das “comunidades eclesiais de base” e da

Teologia da Libertação. As associações de moradores valorizavam a noção de autonomia, de fazer por si só, com as próprias mãos; situadas em espaços abandonados pelo Estado insensível e ameaçador, as associações foram levadas a encontrar alternativas de atuação tornando-se parceiras de movimentos e de iniciativas não governamentais; combinadas aos núcleos comunitários eclesiais e a projetos subsidiados por agências estrangeiras apresentaram, como afirma o Rubem César um “suporte civil para o aprendizado de uma pequena cultura de ação não governamental que se formava pelas bases a despeito dos governos autoritários.”378

No Vidigal, o momento favoreceu um encontro inusitado, que seria responsável pelo surgimento do Nós do Morro na década seguinte. Na época, alguns artistas “alternativos”, remanescentes do movimento da contracultura, foram morar no conjunto de prédios construídos na base da encosta do Vidigal, o Condomínio Pedra Bonita. Lá eles conheceram a

“rapaziada” jovem da favela e, juntos, imbuídos pelo espírito comunitário e mobilizados pela pequena cultura da ação não governamental, prepararam o terreno para o nascimento de um núcleo de teatro no morro, batizado, primeiramente, como Projeto Teatro Comunidade379.

Nos anos 80, o Brasil se preparava para retomada da democracia. O Vidigal, assim como outras comunidades cariocas, havia aprendido a se organizar, e com as transformações na conjuntura do país, adquiriu mais espaço como ator político, ampliando lutas em benefício de sua população. Este contexto aumentou a disposição dos artistas do Vidigal em criar, com situação é interpretada como produto de estruturas econômicas e sociais injustas, influenciada pela visão das ciências sociais, sobretudo a Teoria da Dependência na América Latina, que possui inspiração marxista. 378 FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 46. 379 Cf. PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos. (Ed.) Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009. p. 35. 152

as próprias mãos, o núcleo teatral. Baseado numa relação de troca, solidariedade e criatividade surgia o embrião do projeto, que passou a pulsar como o coração do Vidigal, a alma da comunidade-sujeito.

O teatro, por sua vez, começava a se livrar das restrições impostas pela censura dos militares. O alívio, entretanto, na opinião do crítico Yan Michalski, não impediu que os palcos vivessem um período pobre em matéria de novas idéias, dramatúrgicas ou cênicas, acusando

“um nítido retrocesso em relação à efervescência que reinava nos anos anteriores, nos piores momentos de pressão.”380 Para Michalski, a crise econômica que se abateu sobre o país com o fim da utopia do “milagre brasileiro” atingiu em cheio o teatro, obrigando-o a optar por produções mais seguras, com retorno de bilheteria mais garantido.

O crítico observa que a década é um momento onde os produtores adotam uma atitude de prudência, optando por um cartaz que conta com a presença de uma estrela consagrada ou ainda pela escolha de um texto estrangeiro, aprovado pelas platéias do exterior. Neste contexto, de “risco zero”, na opinião de Michalski, as iniciativas mais inquietas e experimentais refugiam-se em grupos jovens e amadores, com poucas chances de continuidade. Assim comenta ele:

Por um lado, não existe, em geral, uma idéia suficientemente clara, seja no plano ideológico existencial ou estético, para dar ao empreendimento uma base de continuidade; por outro, os individualismos exacerbados e a falta de um real espírito coletivo – frutos em parte, da educação e formação que prevaleceram nos anos do autoritarismo – tornam problemático o convívio grupal; e as dificuldades econômicas, aliadas ao quase total insucesso de público ao qual essas iniciativas são condenadas, acabam por impossibilitá- las de desenvolver e aprofundar uma proposta definida de trabalho. 381 (grifos nossos)

Em contraponto a este cenário descrito por Michalski, nasce o Nós do Morro, uma iniciativa que, naquele momento, ainda que embrionária e bem distante do circuito

380 MICHALSKI, Yan. O Teatro sob pressão – uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 87. 381 Ibidem, p. 89-90. 153

profissional, desafiava a tendência dos anos oitenta, e prometia surpresas nos seguintes. Guti

Fraga abandonava uma carreira individual para acreditar na idéia de um teatro de grupo.

Mas, embora a década de 80 tenha sido identificada pelo crítico como um retrocesso em relação à verdadeira “trincheira teatral” instaurada contra o regime militar nas décadas anteriores, que rendeu à cena e à dramaturgia brasileiras talvez o momento mais fecundo de sua história, os anos oitenta marcam também um tempo em que alguns artistas, como os do

Nós do Morro, persistiram na ideia de cruzar a fronteira do circuito oficial para levar o teatro a diferentes lugares da cidade.

Foi o que aconteceu no contexto urbano do Rio de Janeiro durante aquela década.

Ricardo Brugger Cardoso exemplifica com a experiência do grupo Tá na Rua. Segundo

Cardoso, o diretor Amir Haddad reivindicou um espaço “livre público da cidade como o mais importante local para as suas encenações e manifestações artísticas.” 382 O grupo de Haddad, o Tá na Rua, participou de projetos de difusão cultural, implantado pelos órgãos de cultura municipais da época e realizou no período, explica Cardoso: “Uma extensa incursão teatral em vários locais da cidade, na busca de um espaço livre, aberto, que não poderia ser encontrado entre as paredes institucionalizadas das salas de espetáculos.”383 As incursões do

Tá na Rua revelam um curiosa história, que guarda significativa relação com a origem do Nós do Morro. Ricardo Cardoso Brugger destaca uma entrevista concedida por Haddad ao arquiteto e urbanista Ítalo Campofiorito, que explica o episódio. Na entrevista Amir Haddad tece considerações sobre as descobertas do Tá na Rua em apresentações realizadas em variados espaços da cidade:

Comecei a entrar por todas as ladeiras e ruelas da cidade, para me apresentar. Conheci uma população que vai passando, e é interrompida para ver um acontecimento provocador: o espetáculo de teatro. Quando o povo reage

382 CARDOSO, Ricardo Brugger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. (org). Espaço e Teatro. Do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 90. 383 Ibidem, p. 90. 154

diante desse acontecimento, ele se revela e, de repente, mostra-se ativo. O que mais me autoriza a falar do urbanismo é que temos chegado a extremos. Do alto do morro do Vidigal, na favela lá em cima, a Brasília. São modos de vida totalmente diferentes. Na favela, entre os caminhos, as praças apertadas e as casas, uma em cima da outra, com a população vivendo fora das portas, numa vida conjunta, ou nos espaços enormes e geométricos de Brasília, onde as pessoas mal se vêem e tem pouquíssimo contato. Foi tão forte este contraste, que para o desenvolvimento da nossa linguagem, durante muito tempo privilegiamos as favelas e os bairros pobres, como lugar ideal para desenvolver uma linguagem capaz de ser absorvida por todos os cidadãos, sem distinção de classe.384

No mesmo período, o diretor também começou a realizar experiências no espaço aberto da cidade. A investida dos dois diretores no teatro ao ar livre levou a participação de ambos em projetos de democratização da cultura, desenvolvidos na

época pela Fundação Rio (depois Rioarte). Como explica Brugger, as inter-relações entre teatro e cidade, como aquelas que naquele momento se manifestaram, têm o potencial para

“desencadear ações e movimentos no campo da cultura, fundamentais para a invenção de novas formas de sociabilidade, ao estabelecer um via direta de comunicação e de interação entre os diversos segmentos da sociedade.”385 De fato, como veremos a seguir, a incursão do

Tá na Rua no Vidigal é narrada como um episódio marcante na vida de Luiz Paulo Corrêa e

Castro, jovem morador da favela, que naquela época, motivado pela visita do Tá na Rua e influenciado pelos artistas que moravam no local, agarrou de vez o destino do Nós do Morro.

384 HADDAD apud CAMPOFIORITO, Italo. Enquete Tendenciosa. In: Revista do IPHAN, no. 23 1994. p.243- 244. apud CARDOSO, José Ricardo Brugger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras,2008. p. 91. 385 Ibidem, p. 92. 159

De acordo com Corrêa e Castro, nos anos oitenta, o morro era uma espécie de província onde todos circulavam por todos os lugares, se conheciam e cumprimentavam-se. Um bar chamado Bar-raco era um dos pontos altos desse encontro. Lá se misturavam no bate-papo, usando as palavras de Paulo, a “galera cabeluda doidona dos prédios, cabeça anos 70” e a

“rapaziada do morro”. Fraga, Mello da Costa e Fred Pinheiro representantes da “galera cabeluda”, e Paulo, da “rapaziada do morro.” A interação entre essas duas “tribos” gerou o embrião do Nós do Morro. De um lado a “rapaziada” querendo “beber” a informação dos

“cabeludos”; esses por sua vez dispostos a compartilhar o saber com a “rapaziada”.386

Segundo Fraga, o núcleo seria a oportunidade de provocar uma interação entre os grupos que ocupavam o Vidigal e, sobretudo, oferecer o acesso à arte aos moradores menos favorecidos:

Eu já tinha uma vivência legal no teatro amador, profissional e experimental e eu via aqui, as pessoas que eu conhecia, os talentos que eu percebia, pessoas que nem imaginavam qualquer possibilidade de acesso à arte. Eu achei que o grupo de teatro iria criar um elo entre todo mundo, por que na época existia no morro uma divisão entre favela e não favela.387

Para Luiz Paulo Corrêa e Castro, o Paulo Tatata, que havia até aquele momento tido pouco contato com o teatro resolveu apoiar a ideia dos “artistas ripongas”:

Eu me lembro que a primeira peça que eu assisti foi o Guti que me levou, Adorável Júlia, com a Marília Pêra. A gente não tinha acesso, mas eu acho que era mais por preguiça. Uma coisa que me marcou muito também foi uma vez que o Guti conseguiu levar o Tá na Rua no Vidigal. A verdade é que o teatro não estava na nossa pauta, a gente queria era jogar bola. Mas os artistas abriam caminhos, lá tinha pintor, escultor, era outra realidade. Eles indicavam peças, emprestavam livros, era um convívio mesmo, uma troca de informações, além disso, a vida liberada deles, os ripongas, a cabeça anos 70, era tudo novidade.388

386 Guti Fraga já trabalhava como ator num grupo de teatro amador no Mato-Grosso do Sul, quando resolveu vir para o Rio de Janeiro se profissionalizar na Escola de Teatro Martins Penna e ingressar na faculdade de jornalismo; Fernando Mello da Costa havia chegado do Rio Grande do Sul e abandonado a carreira de ator para trabalhar como artesão e cenógrafo. Os dois se encontram no Vidigal no final da década de setenta, quando Fraga, para sobreviver no Rio, começou a trabalhar confeccionando bolsas no ateliê de Mello, instalado no Vidigal. Entre uma bolsa e outra, surgiu a idéia de criar no morro um núcleo de teatro. 387 O depoimento de Fraga esclarece a distinção entre as classes que ocupavam o Vidigal na época: a favela (moradores pobres, residindo em barracos) e a não favela (moradores dos prédios e casas da parte inferior do morro). 388 Em entrevista pessoal 14/08/2003. 160

A parceria rendeu frutos. Corrêa e Castro firmou ao longo dos anos o seu posto como dramaturgo do Nós do Morro. A oportunidade para concretizar a idéia do núcleo teatral só chegaria em 1986, quando Fraga fora convidado para realizar um projeto no Centro Cultural

Padre Leeb 389:

Tudo começou com o convite para visitar o Centro, conhecer o padre e armar um projeto de teatro. Lá, após conhecer o padre e Joana, a sua companheira de batalha, descobri nele a pessoa com quem gostaria de trabalhar. Expus para ele um projeto que vinha desenvolvendo mentalmente e eles resolveram me ajudar. Desci o morro pensando em como poderia dar forma ao projeto. Resolvi parar no Bar-raco para tomar uma cerveja. De repente apareceu o Paulo Tatata [Luiz Paulo Corrêa e Castro], amigo de muito tempo, e resolvi perguntar se ele toparia ser meu assistente num projeto. Ele topou. Em novembro de 86, estava formado o Nós do Morro. 390

Corrêa e Castro conta que na época andavam pelo Vidigal diversos tipos de

“personagens”. Os que moravam nos prédios, parte inferior da encosta do morro, era o pessoal da classe artística, por lá passaram pintores, escultores, atores e cantores, alguns bem conhecidos. Os casarões eram ocupados por famílias mais abastadas e tradicionais; subindo a encosta, crescia a favela. 391 Os moradores mais pobres ocupavam barracos nas partes médias e altas do morro. O grupo surge a partir do diálogo estabelecido entre alguns artistas residentes Vidigal e jovens considerados pertencentes à comunidade “favelada” entre eles,

Luiz Paulo Corrêa e Castro. Guti Fraga, Fernando Mello e Fred Pinheiro392 trocam a “praça” profissional dos teatros do “asfalto” carioca, pelo projeto de difundir e democratizar o teatro no Vidigal.

389 O Centro Cultural Padre Leeb foi fundado pelo padre austríaco Humberto Leeb e por Joana Batista Costa. O Padre Leeb, sacerdote da Congregação dos Oblatas de São Francisco de Sales, chegou ao Brasil em 1976, e fundou um centro social em Porto do Mato comunidade carente no Sergipe. Após essa primeira experiência o padre veio para o Rio de Janeiro, onde implantou na favela do Vidigal um Centro de Encontros e Ajuda Social e Cultural. O Centro pertencia a uma escola de missionários alemães. Em 1995, assustados com a violência encerram as atividades no Vidigal. 390Texto escrito por Guti Fraga no programa da primeira peça montada pelo grupo: Encontros (1987). O programa foi escrito à mão, reproduzido e distribuído aos espectadores. 391 Os moradores das classes média e alta dividiam a região com os moradores pobres; este forte contraste entre classes é, até hoje, uma característica marcante no local, apesar de a violência gerada pelo avanço do tráfico de drogas ter ao longo dos anos espantado aqueles moradores mais favorecidos. 392 Na época, os três artistas já atuavam no mercado profissional. Fraga como ator, Mello da Costa como cenógrafo e Fred Pinheiro como iluminador. 161

As instalações precárias de um salão no Centro Cultural Padre Leeb serviram ao grupo entre os anos de 1986 e 1991. O Centro se tornou, no período, uma referência de lazer e diversão para a população da favela. Naquele lugar aconteceram, relembrando as palavras de

Peter Brook, verdadeiras explosões de vida. De fato, as primeiras produções do Nós do Morro tinham que ser cheias de vida e vibrantes. Isto por que, o grupo de artistas fundadores junto com alguns jovens da favela, interessados em aprender teatro, tinha pela frente o desafio de conquistar uma platéia cuja maioria dos indivíduos sequer havia colocado os pés em um teatro, ou sequer haviam assistido a uma representação “ao vivo”.393

A maneira encontrada pelo grupo para seduzir os espectadores vidigalenses foi desenvolver performances que falassem com humor e irreverência sobre o universo da favela.

Assim criou-se um intenso vínculo entre as primeiras produções do grupo e a platéia vidigalense. O movimento que começa com a interação entre os artistas, que absorveram e respeitaram os valores da comunidade local, e os “rapazes do morro”, que apreenderam os conteúdos artísticos trazidos pelos artistas, transforma-se aos poucos num movimento próprio da comunidade/favela, por que passa a ser produzido por ela e para ela – teatro pela comunidade. Isso nos permite afirmar que o teatro do Nós do Morro reflete com legitimidade a cultura local, a cultura da favela do Vidigal.

Desta forma, a implementação do palco vidigalense através da experiência do Nós do

Morro acontece devido a um fator chave: a comunhão, a cumplicidade entre o palco e a platéia. De fato, os depoimentos, fotos e vídeos documentados pelo próprio grupo394 demonstram a vibração das apresentações de espetáculos, eventos, performances, e a igualmente calorosa recepção da platéia do Vidigal.

393 Em depoimento ao Jornal O GLOBO (11/06/88) Guti Fraga, principal idealizador do Nós do Morro, conta que noventa por cento do público da favela havia ido ao teatro pela primeira vez para assistir uma peça do Nós do Morro. Disse ele: “Eles deliram, aplaudem em cena aberta, riem e comentam, tem uma espontaneidade e um entusiasmo muito grandes. É emocionante.” 394 Por ocasião da realização de minha pesquisa de mestrado tive acesso a uma série de documentos que me foram cedidos pelo grupo Nós do Morro. 162

Essa cumplicidade que citamos, talvez seja conseqüência do encantamento dos espectadores pela novidade da magia teatral, e da surpresa de reconhecer a sua realidade retratada no palco, sob uma perspectiva artística. Naqueles instantes, pouco importava o espaço físico precário do salão, ou mesmo certa desordem provocada pela excitação do momento; o mais importante é que pulsava o “centro dinâmico”, como escreveu Etienne

Souriau sobre a relação espaço teatral/atores/espectadores.

Em O cubo e a esfera, Souriau, defende a idéia de que o ato da representação deve assegurar a existência de um “núcleo central”, um “centro ativo” pulsionado por um “coração palpitante”. O autor rompe com os limites da sala tradicional de espetáculos, que obedecem segundo sua inventiva analogia à imagem de um cubo aberto em um dos lados, explodindo as possibilidades do evento teatral para um espaço livre, sem limites, onde vibra a relação atores e espectadores, como que envoltos em uma esfera. Neste sentido, podemos dizer que a dinâmica implementada na realização daquelas primeiras apresentações dos espetáculos do

Nós do Morro estaria de acordo com o princípio esférico pensado por Souriau. Segundo ele:

Os actores ou o grupo de actores encarnam esse coração, esse punctum saliens, esse centro dinâmico do universo da obra, são oficinantes, mágicos cujo poder se exerce sem limites fixos, num espaço infinitamente aberto e livre. O mundo fictício de que são o centro desenvolve-se e coloca-se tão vastamente quanto for possível ao poder sugestivo e encantatório. Eles são o centro e a circunferência não está em parte alguma – trata-se de a prolongar até o infinito, englobando os próprios espectadores, englobando-os na sua esfera ilimitada. Nada de cena! Claro que é sempre preciso um solo utilitário, um tablado qualquer para sustentar, para deixar evoluir os atores; é preciso um lugar, um edifício, abrigo, anfiteatro, para aí colocar com eles os espectadores (...) esse lugar da teofania teatral não limita coisa alguma, não impõem a sua forma ao que se passa, não tem outro objetivo que não seja reunir actores e espectadores em torno desse centro em que vibra e palpita mais ardentemente do que noutro lado a aventura de que se anima o universo da obra.395

395 SORIAU, Etienne. O cubo e a esfera. In: O Teatro e sua estética, Redondo Júnior. 2o. volume. Arcádia Lisboa, s/data. p.35-36. 163

Por tudo isso, podemos ampliar o nosso entendimento sobre a implementação do palco vidigalense, se pensarmos que na verdade ele estabeleceu-se ao mesmo tempo em que se formava uma platéia curiosa, que acompanharia suas realizações em espaços variados dentro do Vidigal. As produções do grupo incluíram a platéia da comunidade dentro de uma esfera, que passou a se deslocar por diversos lugares dentro da favela. É essa esfera que, com seus contornos seguros e núcleo pulsante, vibra há mais de vinte anos.

A falta de recurso financeiro e a dificuldade de encontrar uma sede própria foram dificuldades enfrentadas pelo Nós do Morro. Em 1991, suas atividades são transferidas do

Centro Cultural Padre Leeb para ao auditório da Escola Municipal Djalma Maranhão. O padre havia firmado um convênio com a Secretaria Municipal de Culturas, que passou a administrar o Centro. Segundo a diretoria do Nós do Morro, as medidas implantadas pela

Secretaria interferiam no trabalho do grupo. Guti Fraga reagiu às intervenções da nova administração e transferiu as atividades para o auditório da Escola Djalma Maranhão, na

Avenida Niemeyer, entrada do morro do Vidigal. Nessa escola, durante alguns meses o Nós do Morro funcionou, mas devido à total falta de infra-estrutura uma nova mudança foi feita para os fundos da Escola Municipal Almirante Tamandaré; primeiramente ocupando duas salas durante o período da noite, depois, um espaço vago nos pilotis da escola.

Ali, integrantes do grupo, a golpes de marretada, transformaram um buraco de pedra num pequeno teatro, como revela o depoimento de Fernando Mello da Costa: “Isso aqui era tudo pedra, tinha só um buraco ali. Um dia o Guti perguntou: Será que a gente consegue quebrar aquela pedra? E a gente quebrou. Depois com sobras de material da minha cenotécnica da Praça Mauá a gente fez o teatrinho.”396

396 Em entrevista pessoal 9/12/2003. 164

A renda obtida pelo evento Show das Sete397, colaborações de comerciantes da comunidade e do Conselho Britânico também ajudaram na construção do teatro, com acomodação para oitenta espectadores. Somente em 1998, o grupo consolida uma sede própria e consegue recurso suficiente para equipar o seu pequeno teatro. Atualmente, suas atividades se dividem entre o Casarão398, onde acontecem aulas para suas turmas regulares, e o Teatro do Vidigal, onde além de aulas ficam em cartaz seus espetáculos.

O que podemos constatar é que a sobrevivência do grupo em seus primeiros anos de atividade acontece principalmente devido à mobilização da comunidade em torno do projeto, tanto no que diz respeito à integração de membros para o grupo, quanto à formação de uma platéia fiel. É, portanto impossível pensar a experiência do Nós do Morro e a consolidação de seu palco, deixando de lado a platéia, por que de fato, foi esse pacto selado entre um e outro, o pilar fundamental de sua vivência dentro do Vidigal. A experiência teatral, quando vivida em espaços populares, como uma favela carioca, nos deixa pensar sobre a essência do Teatro, e a sua mais forte vocação que é comunicar, emocionar, mobilizar uma platéia. Lá reside a força de uma arte, freqüentemente esquecida nas sofisticadas casas de espetáculo.

A ousadia dos artistas inventores do Nós do Morro reside no fato deles terem rompido com o teatro eleito como “legítimo” e apostado na idéia de criar outro teatro, num outro lugar.

O impulso criativo de Guti Fraga, Mello da Costa e Fred Pinheiro ganha força primeiro devido ao desejo de compartilhar com aquela população o conhecimento adquirido no teatro

397 Em 1990, o Nós do Morro inventa o Show das Cinco, um espetáculo de variedades que ganha a comunidade, principalmente as crianças; elas passam a se enfileirar na porta do Centro Cultural Padre Leeb. O Show era comandado por Guti Fraga e as atrações eram os jovens talentos do Vidigal. Simulando um programa de auditório, aos domingos, o show incluía números de dança, humor, dublagens, música e sketches de teatro. A partir de 1992 o evento passa a se chamar Show das Sete. 398 O Casarão Branco, antigo ateliê do pintor Giuseppe Irlandini, havia sido herdado pela esposa do artista. Guti Fraga negociou com a proprietária, que acabou cedendo a casa para as atividades em troca do pagamento do IPTU, luz e água. Mais tarde o imóvel foi doado ao grupo após a compra pela organização não-governamental IBISS – Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social. A mansão de três andares comporta escritórios da administração, um amplo salão para aulas e ensaios, uma cozinha, duas salas para aulas (uma o antigo porão), uma biblioteca, uma sala de vídeo e banheiros. A área externa é bastante ampla, arborizada e possui vista para o mar.

165

profissional, segundo do desejo de incorporar a esse conhecimento elementos e valores da cultura local.

Do outro lado, os jovens da favela, detentores da sabedoria local querendo apreender o conhecimento dos artistas. Estabelece-se a relação dialógica, da qual falamos no capítulo anterior, uma troca de influências entre aqueles que traziam o conhecimento teatral e aqueles a quem pertencia à cultura da favela. Na prática, o que observamos sobre as primeiras experiências teatrais do Nós do Morro é a “materialização cênica” desse diálogo entre os artistas, que apresentavam à comunidade o conhecimento teatral, e a comunidade, que apresentava aos artistas a sua cultura, a sua linguagem, o seu universo. Nos espetáculos

Encontros (1987) e Biroska (1989), por exemplo, o Nós do Morro escolhe colocar em cena o dia a dia da favela.

As peças foram criadas a partir de improvisações realizadas pelos integrantes do grupo; na segunda, o cenário reproduzia uma birosca do morro, em ambas, as personagens foram inspiradas em personalidades do Vidigal. De fato, essas escolhas naqueles primeiros momentos, foram fundamentais para que o grupo ganhasse, como já vimos, a adesão de um personagem importante, a platéia vidigalense.

Desta forma, os artistas “dialógicos” aproximaram-se da população da favela adotando uma postura que previa antes de tudo o reconhecimento e valorização dos elementos da cultura local. Tomando como parceiros os próprios moradores da favela, eles interpretaram aquela cultura, não exatamente com um propósito etnográfico, mas com a intenção de transformar em matéria-prima para o teatro os elementos mais significativos daquela realidade.

Podemos citar como experiência análoga à inserção desses artistas na realidade do

Vidigal, àquela vivida por Hélio Oiticica no Morro da Mangueira, na década de sessenta.

Impregnado também por uma atitude dialógica, Oiticica se redescobre como artista plástico ao 166

mergulhar no universo daquela favela. Lá ele descobre o corpo, o samba, o ritmo e a pulsação da Mangueira.

Essas descobertas servem como inspiração para a criação de Parangolés. Na obra, o artista utiliza panos, fragmentos de tecidos, plásticos, materiais semelhantes àqueles usados pelos favelados na construção de seus barracos e cria espécies de capas, bandeiras, estandartes que deviam ser vestidos e dançados pelos espectadores.

Em A Estética da Ginga, Paola Berenstein Jacques afirma que Oiticica não imitou os favelados ou simplesmente ilustrou a favela em sua arte: “Ele, viveu na Mangueira, na sua escola de samba, experimentou essa favela, vivenciou-a. Reproduziu subjetivamente em seu trabalho de artista sua experiência no morro.”399 Assim como ele, Guti Fraga, Mello da Costa e Fred Pinheiro viveram intensamente o Vidigal, moravam no Vidigal. Através da arte,

Oiticica da plástica, e os outros da teatral, eles souberam interpretar aquelas realidades, aqueles espaços. Iniciativas como a dos artistas do Nós do Morro, bem como a de Hélio

Oiticica representam uma ação favorável para a reversão da imagem negativa sobre a favela, já que através da arte elas contribuem com o fortalecimento dos valores e tradições dessas comunidades em seu próprio âmbito, como também divulgam positivamente a sua cultura para além de seus limites.

No caso da implementação do palco vidigalense o que podemos evidenciar é que a inserção dos artistas na comunidade esteve de acordo com a atitude dialógica, ela permitiu que se estabelecesse um forte elo entre eles e os primeiros integrantes do grupo, moradores da favela; num segundo momento, após firmada esta primeira aliança, o pacto se estendeu também à platéia comunitária.

Mas todo esse movimento, importante observar, tem como ponto de partida o desejo de criar uma síntese cultural, ao contrário de uma invasão cultural. A síntese cultural, conceito

399 JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga. A Arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. p.36. 167

desenvolvido por Paulo Freire, acontece quando o processo de aproximação com uma dada comunidade parte de uma ação cultural dialógica, na qual, aproveitando as palavras do educador: “Os investigadores ainda que cheguem de outro mundo chegam para conhecê-lo com o povo e não para ensinar ou transmitir, ou entregar nada ao povo.”400 Constatamos, portanto, a evidente compatibilidade entre o conceito de síntese cultural e as experiências dos artistas “dialógicos” do Vidigal. Fica evidente também, que os processos teatrais desenvolvidos pelo grupo naqueles primeiros anos de vida são compatíveis com as idéias levantadas no capítulo anterior sobre a prática de interação dialógica com comunidades, de autoria de Freire, que passaram a ser adotadas por experiências do teatro aplicado. A atuação dos facilitadores, os artistas dialógicos do Vidigal, favoreceu a criação de uma relação baseada na ética e na estética da comunidade-sujeito.

O processo dialógico instaurado entre o grupo e a comunidade permitiu a consolidação de palco/platéia vidigalenses, como desdobramento disso, o Nós do Morro descobre em um de seus integrantes o talento para a dramaturgia. Luiz Paulo Corrêa e Castro, nascido e criado no

Vidigal, é um dos primeiros jovens da favela a se interessar pelas novidades que traziam aqueles artistas de teatro para a sua comunidade. Paulo Tatata, como é mais conhecido, inicia sua carreira como dramaturgo transformando em texto as improvisações criadas no palco pelos integrantes do grupo.

Encontros (1987) foi o primeiro espetáculo montado pelo Nós do Morro. Baseado em improvisações criadas pelos atores, Tatata e Tino Costa, escrevem um texto inspirado no cotidiano da favela. O espetáculo era composto por esquetes que apresentavam um panorama da vida dos jovens do Vidigal. As situações criadas para o palco inspiravam-se em experiências comuns à maioria dos jovens da favela: os meninos reclamando da fome e péssima qualidade da merenda oferecida na escola, a menina que conta às amigas sobre a

400 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 32ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.180. 168

preocupação de estar grávida, o grupo de jovens na praia sonhando com o dia em que ficariam ricas. Com a peça, o grupo inicia um currículo de montagens que alternam a encenação de textos criados a partir da temática da comunidade e dramaturgia nacional. O espetáculo marca o início da carreira de Corrêa e Castro como dramaturgo401 do grupo.

O próximo passo do autor seria a peça Biroska (1989), que fortalece a relação do grupo com a comunidade, e vira notícia em alguns jornais. A encenação de Biroska representa um marco no fortalecimento do elo entre o grupo e a comunidade. Não apenas pelo assunto da peça, mas também pela estética da encenação. O texto, escrito por Luiz Paulo Corrêa e Castro a partir de improvisações criadas pelos atores conta a história de Neguinho, um morador do morro, que acreditando ter ganhado no “jogo do bicho” paga cerveja para todos os companheiros de bar, ignorando o fato de que tudo não passava de um engano, posteriormente descoberto pelo protagonista. O enredo brinca com a possibilidade remota que o jogo pode proporcionar ao brasileiro pobre: a de “ficar rico da noite para o dia”. Na peça, ao contrário de utilizar um tom dramático para falar sobre a pobreza e a difícil realidade de vida do morador do morro, o grupo trata a situação de Neguinho com humor. Esse será um ingrediente fundamental na dramaturgia do grupo, nas peças que abordarão os temas do cotidiano na favela.

O cenário para a trama reproduzia com exatidão uma biroska conhecida do Vidigal (um pequeno estabelecimento com terra no chão, paredes de ripas de madeira e telhado de zinco), nele desfilavam situações da noite do Vidigal e personagens marcantes da comunidade. A iluminação para o espetáculo foi improvisada com latas de leite adaptadas como refletores, e o

401 O trabalho de Luiz Paulo Corrêa e Castro enquadra-se nas definições dos termos: dramaturgo (autor de dramas) e dramaturg (que colabora na criação coletiva de textos, que executa a adaptação de textos já escritos, que é uma figura presente e com voz ativa nos ensaios, um colaborador do diretor, uma espécie de conselheiro literário do grupo). Optei pelo termo dramaturgo, porque sua obra tornou-se ao longo dos anos, cada vez mais autoral. A sua primeira peça, Encontros (1987), em parceria com Tino Costa, organiza no papel situações surgidas em improvisações criadas pelos atores. Já a partir de Biroska (1989), suas próprias idéias, sugestões de situações e conflitos começam a predominar, em parceria com as direções de Guti Fraga e Mello da Costa. Em todos os processos de criação do grupo, mesmo naqueles em que o autor entregou um texto pré-concebido (É proibido brincar, Abalou- um musical funk e Noites do Vidigal) foi aproveitado o material proveniente de improvisações. 169

preço do ingresso equivalia ao valor simbólico de uma cerveja.402 O elemento musical também estava presente no espetáculo e desempenhava um importante atrativo para a platéia da comunidade. Foram incorporados ritmos musicais próprios da cultura dos morros do Rio de Janeiro, o samba e o pagode. As músicas eram cantadas e tocadas pelos atores.

A resposta da platéia em Biroska refletia o acerto do grupo na comunicação com a comunidade. A cena materializava um ambiente reconhecido pelo público, caracterizado por elementos visuais, cenário, figurinos e adereços próximos da realidade de uma birosca real da favela. Além disso, a representação dos atores levava para a cena um comportamento descontraído, um humor popular, o espírito próprio do morador da favela, que apesar das dificuldades da vida, não se deixa abater, ri, canta e dança. Um fato curioso é, por exemplo, o programa da peça. Desenhado a mão, na capa ele trazia o cenário da birosca numa ruela da favela, um negro apoiado no balcão tomando cerveja e segurando um pandeiro. Com todos esses recursos o Nós do Morro arrebata a comunidade, tomando-a a partir dali como parceira fiel. A mágica dessa parceria entre palco e platéia desenvolve no grupo a habilidade de transformar temas do cotidiano da comunidade em matéria artística.

402 O Nós do Morro adotou como prática a cobrança de um valor simbólico para o ingresso em seus espetáculos. A partir de Biroska este valor esteve sempre baseado no preço de uma cerveja. 172

Corrêa e Castro assina todos os textos encenados pelo grupo, onde protagonizam o morro e a comunidade. 403 E, embora o Nós do Morro tenha ao longo dos anos montado também textos da dramaturgia nacional e estrangeira, os espetáculos mais marcantes de sua carreira são aqueles que encenam a dramaturgia do autor Corrêa e Castro. A criatividade de seus enredos é surpreendente, sua irreverência e humor são, em grande parte, responsáveis pela comunicação plena com a platéia vidigalense. Ao contrário de retratar com aridez a realidade da favela, ele a transforma num cenário fantástico onde até fantasmas podem interferir na vida dos mortais.

É o que acontece em Abalou - um musical funk (1997). Na trama, um trio de fantasmas, personagens inspirados em figuras do Vidigal das décadas de 50, 60 e 70, observa a juventude nos bailes funks do morro. No início da peça, cena três, Eládio e Waldemar, os espectros mais velhos, reclamam da “zoeira dos seiscentos diabos”, Ricardo o mais jovem explica que a

"barulheira" vem de um baile funk. Os outros dois curiosos aceitam dar uma "descidinha" para ver o que está acontecendo lá em baixo. Os três observam o mundo dos vivos, e nostálgicos, resgatam coisas do passado. Entre os mortais, a trama principal gira em torno de

Maestro e Tininha. Ela tentando conquistá-lo, ele querendo fazer sucesso como MC. Além disso, tipos curiosos perambulam pelo enredo, como é o caso de Esther e Cleuzéia, irmãs evangélicas que freqüentam o baile escondidas da mãe. Um final feliz para Maestro e Tininha pontua a história com a ajuda dos fantasmas.

Já em Noites do Vidigal (2002), um trágico desfecho encerra a história de amor entre

Tião, o mestre-sala, e Aparecida, a porta-bandeira da escola de samba Acadêmicos do

Vidigal. A peça resgata a atmosfera dos anos oitenta, quando apesar da incipiente violência

403 Nas duas primeiras experiências cênicas do grupo, Encontros e Biroska, Luiz Paulo Corrêa e Castro fica responsável por transcrever as improvisações criadas pelos atores. Com isso, ele desenvolve a habilidade para a dramaturgia. Atualmente ele é o dramaturgo do grupo, foi reconhecido pela crítica especializada no Brasil principalmente com os textos de Noites do Vidigal (2002) e Burro sem Rabo (2004). De acordo com Corrêa e Castro não existe um registro dos textos de Encontros e Biroska. As informações sobre os espetáculos estão baseadas em entrevistas com o autor. 173

ainda havia muita festa e boêmia na favela. Neste texto, mais uma vez o morro aparece não apenas como um cenário, mas como um personagem vivo, povoado por personalidades e pela tradição da comunidade. Assim como Abalou, Noites leva para a cena, o passado, o presente, os conflitos, as alegrias, as pessoas do Vidigal, com ingredientes poéticos e fantásticos. O que significa elevar a realidade da comunidade do campo do concreto ao terreno da fantasia, brincando com o seu imaginário.

O cenário de Noites foi um elemento muito especial do espetáculo. Assinado pelo cenógrafo Fernando Mello da Costa, que dividiu a direção da peça com Guti Fraga, ele recria a favela em estruturas de madeira, praticáveis com escadas, pequenos corredores, simulando as vielas do morro, rampas e desníveis. Uma favela cenográfica, por onde circulavam os atores/personagens, dando ao espectador a impressão quase “real”, dos deslocamentos dos populares pelas ruelas do Vidigal. Pedaços de materiais compunham os barracos cenográficos nos remetendo à característica fragmentária da construção dos barracos reais.

Em Noites do Vidigal, a vida na favela, suas práticas e hábitos estão presentes o tempo todo no texto de Corrêa e Castro. Das palavras do autor se descola a própria imagem da favela. Essa imagem se concretiza em cenários que sugerem tanto o espaço geográfico, quanto a arquitetura do Vidigal. Para contar a tragédia de Tião, o mestre-sala, a ação se desenrola em alguns ambientes: uma birosca, uma quadra da escola de samba, a casa de Dona Feliciana (um terreiro), a casa de Cícero e outras, a rua e o tanque comunitário. Em Vozes da favela, o professor Luís Eduardo Franco do Amaral analisa a obra de Corrêa e Castro e observa o fato de que no Vidigal construído pelo autor, “os becos e os cantos dizem respeito à arquitetura peculiar da favela”:

Os personagens circulam em seu ambiente e se referem aos nomes das ruas, aos topônimos locais, criando referências entre eles e também com o 174

público. Quando introduz uma birosca, ele territorializa seu texto, referência inequivocamente a favela e seu espaço.404

De acordo com Amaral “o texto de Luiz Paulo é movido pela necessidade de contar a favela, de torná-la relato.”405 O que podemos constatar é que, de fato, na dramaturgia de

Corrêa e Castro o Vidigal é o personagem principal. Essa dramaturgia nasce de maneira espontânea com o propósito de sedimentar os pilares do palco vidigalense. Para selar a relação palco e platéia, e fazer acontecer o fenômeno teatral dentro do Vidigal, o Nós do

Morro descobriu que precisava “contar” a sua própria comunidade, criar uma narrativa própria. A necessidade de criar uma linguagem que se comunicasse com a platéia vidigalense, o grupo descobriu também uma estética própria. Para consolidar o palco no Vidigal, foi preciso tornar a própria favela - a sua personagem central. Envolvendo seus integrantes em todo o processo de criação, o grupo promoveu a emersão de um teatro que pertencia ao

Vidigal, criando um espaço no qual a sua cultura, voz e expressão pudessem se manifestar.

Durante a maior parte do seu tempo de vida, até 2001, quando chega o patrocínio da

Petrobrás, o Nós do Morro sobreviveu sem qualquer suporte financeiro permanente, durante quinze anos contou muito pouco com apoios externos.406 A sua sobrevivência dependeu, principalmente, da persistência de seus integrantes e da rede de social criada dentro da instância da própria favela, da contribuição dos comerciantes locais, das famílias dos jovens participantes, do boca a boca dos amigos, simpatizantes, ou o da quantia arrecadada pela

404AMARAL, Luís Eduardo Franco. Vozes da Favela - representações da favela em Carolina de Jesus, Paulo Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC, 2003.p.96. A dramaturgia de Corrêa e Castro é assunto da dissertação de mestrado de Luís Eduardo Franco Amaral, que procura mapear através das manifestações artísticas das favelas, a cultura da favela e desenvolver o conceito de literatura da favela. 405 Ibidem, p.99. 406 As primeiras montagens do grupo (até 1988), no Centro Cultural Padre Leeb, receberam, em virtude da rede de conhecimentos do padre alemão, o apoio da Câmara de Comércio Brasil-Alemanha e de algumas empresas alemães, que contribuíram com pequenas quantias para a produção de material impresso: folders, cartazes, programas. Já em 1996, a renda obtida em suas apresentações, somada colaboração de comerciantes da comunidade e do Conselho Britânico ajudaram a construção do Teatro do Vidigal. Também a produção do filme Testemunho Nós do Morro, de Rosane Svartman e Vinícius Reis, colaborou destinando uma porcentagem do orçamento para o grupo. 175

cobrança do ingresso “simbólico”. Assim, eles conseguiram manter o projeto vivo, afirmando a identidade vidigalense, construindo uma narrativa alternativa e assumindo o palco como um espaço no qual a comunidade pudesse agir como sujeito.

Mas, embora a experiência tenha tido como ponto de partida a atuação dentro de sua comunidade, agora a ação do Nós do Morro não está circunscrita apenas ao âmbito do

Vidigal, ela expandiu os seus limites. O percurso que começa bastante enraizado na comunidade, com foco na formação da platéia comunitária e com um diálogo discreto com o asfalto, com o passar dos anos ganha repercussão, passa a receber a visita de indivíduos do asfalto, que sobem o morro para assistir aos seus espetáculos, conquista o acesso ao circuito profissional do teatro carioca, recebe prêmios, é consagrado pela crítica especializada, ganha patrocínios e amplia parcerias.

Hoje, todos que se interessam pelo teatro, por experiências artísticas com origem comunitária, conhecem o Nós do Morro. As realizações do grupo ganharam reconhecimento e projeção no âmbito nacional e também internacional. O filho bem criado desgarrou-se de sua comunidade-mãe para experimentar o mundo lá fora.

179

4.2 - Cruza-se a fronteira, se ganha um dilema: a ameaça da comunidade-objeto.

Os espetáculos Machadiando (1995), Abalou, um musical funk (1997) e É proibido brincar (1998), marcaram o início da carreira do Nós do Morro fora do Vidigal. Em 1998, as três peças, que haviam estreado no Teatro do Vidigal, ganham uma temporada Casa de

Cultura Laura Alvim.407 Na época, o grupo já havia recebido dois prêmios: IX Prêmio Shell de Teatro (1996) na categoria especial por Machadiando e pelo mérito de seus trabalhos junto

à comunidade do Vidigal, e o Prêmio Coca Cola de Teatro Jovem (1997), categoria especial por Abalou, além de seis indicações. As premiações, o crescente reconhecimento pela imprensa e a conquista em 2001 do patrocínio da Petrobrás, favoreceram a estréia do Nós do

Morro no âmbito profissional.408

O ano de 2002 é um divisor de águas em sua trajetória devido, principalmente, ao sucesso de Noites do Vidigal, que rendeu boas críticas, com aprovação inclusive da por muitos temida Bárbara Heliodora, e à estréia de Cidade de Deus, cujo elenco incluía muitos atores do Nós do Morro. A partir dali, o grupo cruza de vez a fronteira entre morro e asfalto, passando a encenar em diversos espaços do circuito teatral carioca. Depois do sucesso de

Noites do Vidigal, o grupo estreia Burro sem Rabo (2003), com dramaturgia de Corrêa de

Castro e direção de Fernando Mello da Costa, no Teatro Maria Clara Machado; no ano

407 Na época a Casa de Cultura Laura Alvim, situada na Av. Delfim Moreira, em Ipanema, convidava grupos para fazerem temporada em repertório. De acordo com o relato de integrantes do Nós do Morro, a repercussão de seus espetáculos na imprensa e a conquista de espectadores do asfalto, que subiam o Vidigal para assistir Abalou, foram fatos que motivaram o convite para a temporada na Casa de Cultura. 408 Também merece destaque entre esses fatores, o desenvolvimento do Núcleo Audiovisual do Nós do Morro. Em 1996, após a realização do filme Testemunho Nós do Morro, os diretores Rosane Svartman e Vinícius Reis passaram a oferecer oficinas de iluminação, cenografia, atuação, roteiro e direção aos integrantes do grupo. O grupo ganha autonomia no mercado cinematográfico e produz o seu primeiro curta-metragem O jeito brasileiro de ser português (2001), escrito e dirigido por Gustavo Mello, ex-aluno das oficinas promovidas por Svartman e Reis. A equipe também fora formada, quase toda, por moradores do Vidigal. O roteiro ganhou o concurso Riofilme de curta-metragens, o que viabilizou a sua produção. Em 2002, os atores do Nós do Morro participaram de uma oficina de preparação para o filme Cidade de Deus , de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Os jovens atores Jonathan Haagensen e Roberta Rodrigues conseguem personagens e participam do elenco do filme. Esses eventos contribuíram para a visibilidade do grupo. Neste trabalho optei por não aprofundar o estudo sobre esta vertente de ação cinematográfica do grupo. 180

seguinte, Sonho de uma Noite de Verão, uma intromissão do Nós do Morro no mundo de

Shakespeare, ocupa um dos palcos do Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB.

Hoje, as produções do grupo têm um alcance ainda maior, viajam por outras cidades do

Brasil e também do exterior; em 2006, a convite da Royal Shakespeare Company, a sua versão bem brasileira para Os Dois Cavalheiros de Verona estreou em Stratford-upon-Avon, na Inglaterra.409 Em 2008, foi a vez de Londres receber a produção do Vidigal.410 Ao longo da carreira o grupo alternou a montagem de espetáculos a partir da dramaturgia Luiz Paulo

Corrêa e Castro, e outras a partir da dramaturgia de autores nacionais e estrangeiros. Em todas elas, entretanto, observa-se a “ginga” do Vidigal. Em Os Dois Cavalheiros de Verona, por exemplo, a performance dos dezesseis jovens atores do grupo emprestava à primeira comédia romântica do bardo inglês uma pulsação impregnada de brasilidade. Como novidade, foram introduzidos trechos escritos por Corrêa e Castro, musicados pelo elenco em ritmos como repente, samba, rap e reggae. O resultado era um Shakespeare vibrante, que cantava, dançava, jogava capoeira - um Shakespeare com a ginga do Nós do Morro.

O grupo cumpre um percurso que se inicia como um projeto de teatro comunidade, criado pelo e para o Vidigal, e alcança o status de grupo famoso, preparando e inserindo atores no mercado profissional do teatro, do cinema e da televisão. Seus acordos e negociações agora não são mais firmados apenas com a comunidade vidigalense, mas também com patrocinadores, diferentes platéias, mídia, crítica, organizações, empresas, marketing,

409 O espetáculo fez parte do Festival das Obras Completas (Complete Works Festival), que reuniu em Stratford companhias de teatro do mundo inteiro, cada uma delas representando uma peça de Shakespeare. O convite partiu da diretora de voz da RSC, Cicely Berry, que mantém, há alguns anos, uma relação de amizade com o Nós do Morro. Em 2008, à convite do professor e diretor inglês de Paul Heritage, o espetáculo esteve em cartaz no Barbican Centre, em Londres, participando das comemorações dos 10 anos do festival “Bite”. O Barbican é o maior centro de multi-arte da Europa e o festival desenvolve há oito anos um programa de caráter único pela multiplicidade de produções abrangendo teatro, música, artes visuais, dança e comédia, sempre com novas idéias e propostas artísticas. A parceria com personalidades do teatro britânico começou em 1995, quando Berry visitou a sede do grupo e ofereceu uma oficina aos seus atores. Na ocasião da visita de Berry, a reportagem O teatro inglês sobe o Morro (O GLOBO - Segundo Caderno - 18/07/95) destacou o encantamento dos britânicos com o grupo. 410 Merecem destaque também as montagens de Carmem de tal..., texto e livre adaptação de Corrêa e Castro a partir da obra de Mérrimée e Georges Bizet, no Teatro Villa Lobos em 2007 e em 2008 Machado a 3 X 4, texto e livre adaptação de Corrêa e Castro para a obra O Alienista de Machado de Assis. 181

mercado, um movimento natural de quem alargou o horizonte, passando a dialogar com uma ampla rede de atores sociais.

A guinada na carreira veio acompanhada por mudanças na estrutura do grupo, que recebeu o formato de escola de profissionalização de atores. Até então, os alunos experimentavam livremente os cursos oferecidos; pertenciam a uma turma de interpretação e optavam por outras atividades como, por exemplo, música e artes plásticas. Com a mudança, o aluno passou a cursar todas as atividades, agora com um perfil de disciplinas obrigatórias. O

Nós do Morro deixa de ser um núcleo de livre experimentação teatral e ganha o caráter de escola, assumindo o objetivo de profissionalizar atores e técnicos.411 Curiosamente, a reviravolta vem no momento em que ganha maior visibilidade e pode refletir uma preocupação em não decepcionar as exigências do mercado. O corpo docente também ganhou outro perfil, além de incluir alguns jovens multiplicadores412 formados pelo grupo, incorporou também profissionais do meio teatral e cinematográfico.

Uma recente publicação institucional do grupo afirma: “A hora é de conquistar o mercado e firmar a inserção profissional dos artistas do morro.”413 De fato, uma mostra de teatro estudantil realizada anualmente pelo Centro Cultural Banco do Brasil reconhece o grupo como escola de formação profissional. Na lista das “instituições que se dedicam ao ensino da arte da interpretação”414 constavam escolas públicas e particulares, como a Martins

Penna e a Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), além da Escola de Teatro da Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

411 Atualmente a estrutura do grupo dividi-se em Jogos Cênicos - Iniciação às Artes Cênicas (8 a 13 anos); Formação de Ator (14 anos em diante). 412 Jovem ator veterano do grupo que trabalha como educador no grupo, multiplicando os conhecimentos adquiridos ao longo de sua vivência no grupo. O trabalho não é voluntário, mas remunerado. 413 Nós do Morro 20 anos. PORTO, Marta. Coordenação editorial e edição. Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009.p. 65. 414 Informações extraídas do programa impresso da II Mostra Estudantil de Teatro CCBB. 15 de março a 1º. De abril de 2007. Neste evento o Nós do Morro apresentou o espetáculo Gota D’Água, com direção de Miwa Yanagizawa. 182

Para facilitar o acesso dos atores formados pelo grupo aos veículos de audiovisual foi criado um departamento de elenco, que é, de acordo com o site do grupo: “O núcleo responsável pelo casting dos atores. Nele, produtores de cinema e televisão podem acorrer e encontrar atores com o perfil desejado para suas produções.”415 Hoje as vagas do grupo são disputadas por centenas de crianças, adolescentes e adultos provenientes não só do Vidigal, como de outras comunidades do Rio. No início de 2009, foram 600 candidatos a passar pelo teste de seleção, concorrendo a 80 vagas apenas.416

A fusão sóciocultural, fenômeno assim definido por Guti Fraga, mistura no Casarão do

Vidigal, jovens de várias favelas do Rio e até gente que vem de fora do Estado. Embora Guti

Fraga alerte os alunos sobre o “deslumbramento” e avise aos pais: “Se pensa que o Nós do

Morro é para levar alguém para a TV, tire o seu filho”417, não há como duvidar do fato de que a estampa dos rostos do Vidigal em novelas da Rede Globo, capas de revistas e jornais, não tenha colaborado com o aumento da procura por oportunidades dentro do grupo. Mesmo que

Fraga revele a sua preocupação em alertar aos alunos e responsáveis sobre a importância de

“deixar o pé no chão”, o fato é que, pertencer a um grupo que “está na mídia” acaba assumindo na consciência popular a chance de dar um salto do anonimato para o estrelato.

São inúmeras as matérias jornalísticas realizadas por diversos veículos sobre as suas realizações, também a propaganda contribui com a notoriedade. Em 2007, uma delas, de página inteira, anunciava em grande manchete: “A gente até abaixa a cabeça pra você, mas só se for para receber aplauso depois.” Em seguida destacava que as peças encenadas pelo grupo:

415 De acordo com informações do site do grupo, o departamento funciona desde 2001 e foi o responsável pela seleção dos atores que integraram os elencos de produções como Cidade de Deus, Tropa de Elite, O Diabo a Quatro, Xuxa -Gêmeas, O Redentor, O maior amor do mundo, Do outro lado da rua, O passageiro, Anjos do sol, entre outros filmes de projeção nacional e internacional. 416 Curiosamente observou-se um fenômeno. Entre os candidatos existiam jovens do Vidigal, de outras comunidades, até de fora do Rio, jovens de outros segmentos da sociedade, inclusive, atores formados por outras escolas de teatro. Em 2010, como forma de contornar a forte procura por parte de não moradores do Vidigal, o grupo decidiu oferecer vagas apenas para residentes de sua comunidade. 417 Em entrevista a Mauro Ventura. Duas caipirinhas e a conta... Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 26/08/2007. Revista O Globo. P. 6. 183

“Mudaram a vida não só de quem assistiu, mas, principalmente, de quem atuou. Porque subir no palco, para muita gente, foi apenas o primeiro passo para subir na vida.”418

As transformações pelas quais atravessa o Nós do Morro acontecem concomitantes a importantes mudanças ocorridas também nos contextos maiores, da favela, da cidade, do país.

Tudo mudou, e não podia ser diferente. Sem dúvida, ao ultrapassar o limite do Vidigal, o grupo acumula muitos ganhos, mas de outro lado, passa a conviver com um dilema: até que ponto é possível preservar os interesses do Vidigal como comunidade-sujeito, se hoje, outros vetores da sociedade interferem na realidade do grupo? À luz da experiência deste grupo específico, de novo cabe perguntar, a quem interessa mais o “projeto”? Qual é a participação e autonomia da comunidade nele? Encontrar respostas para essas perguntas, não é uma tarefa fácil. Para tentar escapar de uma análise simplista é necessário olhar novamente para um cenário mais amplo.

Ao ultrapassar a fronteira entre o Vidigal e o asfalto, o Nós do Morro imprime uma nova marca na geografia da cidade e, junto com isso, desbrava caminhos que levam à criação de novas parcerias e alianças, estabelecidas com diferentes atores sociais. Os meados dos anos noventa, momento em que tem início a saga do grupo, favorecia a criação de novas redes de sociabilidade; os aspectos sociais, políticos e econômicos que regiam aquele período ajudaram a sustentar a travessia do Nós do Morro.

4.3 - Década de 90: sociedade civil organizada, ONGs, “responsabilidade social” e o dilema da comunidade sujeito/ objeto.

Com a chegada da democracia, que engatinhava no início dos anos 90 após a primeira eleição presidencial pós-regime militar em 1989, o Brasil afunda numa crise econômica acompanhada por inflação, dívida externa, deteorização dos serviços públicos e, conseqüente

418 Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 25-01-2007. Rio. 184

aumento da miséria. Como explica Rubem César Fernandes: “A democratização trouxe mais do que uma “abertura”. Trouxe também uma confusão. Como se não bastassem às inseguranças de uma tal transição, as mudanças ocorreram em condições de graves dificuldades econômicas.”419 Ao mesmo tempo em que se difunde pela sociedade inteira a categoria do cidadão, ocorre à perda da credibilidade nas leis e no sistema estatal. No contexto das comunidades pobres das grandes cidades crescem, como observa Rubem César,

“os circuitos paralelos e marginais, embalados pelos negócios da droga, que desconheceram a depressão.”420 Nas favelas, as quadrilhas do tráfico de cocaína passam a se armar para garantir o comércio que movimenta o resto da cidade e do país. O cenário é uma herança perversa deixada pelo regime militar.

Como vimos no início do capítulo, o período autoritário, por haver cortado os laços de comunicação com o Estado maior, acabou estimulando uma pequena cultura da ação não- governamental, refletida em movimentos associativos locais, organizados com o propósito de buscar a melhoria da qualidade de vida das comunidades. Rubem César observa que enquanto a ditadura havia trazido o gosto pelas noções de comunidade e movimento social, a democracia “abriu novos horizontes para a presença participativa dos indivíduos-cidadãos.”421

Dali por diante, mesmo que tivessem permanecido as noções anteriores, a abertura democrática pôs a mostra e estimulou inúmeros outros tipos de formas associativas, menos condicionadas ao pertencimento territorial, e mais agrupadas livremente num universo, como definiu Fernandes - dispersivo. É neste contexto que frutificou o conceito de sociedade civil organizada. De acordo com Rubem César Fernandes:

As inseguranças do Estado reforçam, por contraste, o valor das iniciativas civis, livres das antigas dependências para com os órgãos do governo. A ineficácia dos serviços públicos estimula a busca de alternativas autônomas

419 FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 92-93. 420 Ibidem,. p. 94. 421 Ibidem, p. 90. 185

que, embora não sejam capazes de enfrentar os problemas em toda a sua extensão, reforçam as idéias de ajuda mútua e de iniciativa própria. As carências orçamentárias dos governos estimulam a busca de recursos para fins sociais no setor privado. 422

Ocorre uma pulverização de iniciativas que passam a se articular com liberdade por diversas instâncias do organismo social permitindo o diálogo entre os seus mais variados atores. No prefácio do livro de Fernandes, Miguel Darcy de Oliveira comenta o fenômeno:

Iniciativas privadas que não visam ao lucro; iniciativas na esfera pública que não são feitas pelo Estado. Nem empresa, nem governo, mas sim cidadãos participando, de modo espontâneo e voluntário, em um sem-número de ações que visam o interesse comum. (...) Em contraponto à lógica do poder que prevalece nas relações entre Estados e à lógica do lucro que orienta a ação das empresas no mercado, iniciativas empreendidas por cidadãos afirmam o valor da solidariedade. Um terceiro setor – não lucrativo e não governamental coexiste hoje no interior de cada sociedade, com o setor público estatal e com o setor privado empresarial. 423

Escrita no exato momento em que a história se desenrolava, a descrição de Oliveira enxerga uma tendência que se fortaleceu ao longo dos anos 90, estabelecendo-se definitivamente na virada do milênio. Dentro do conjunto de iniciativas que caracterizam o terceiro setor estão as incontáveis organizações não governamentais - ONGs, associações civis, e formas tradicionais de filantropia e ajuda que ganharam ainda mais impulso no período. As ONGs avançaram com força total, mesmo que a sua existência já fosse um caso confirmado no Brasil em décadas anteriores.

Aliás, desde os anos 70, em toda a América Latina, elas já trabalhavam por meio de projetos subsidiados pela Igreja e por agências estrangeiras. Segundo Rubem César

Fernandes, as primeiras organizações desse tipo na América Latina concentraram suas energias principalmente na área da “educação para o desenvolvimento com ênfase na

422 Ibidem, p. 94. 423 OLIVEIRA, Miguel Darcy. Prefácio. In: FERNANDES, Rúbem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p.11. 186

promoção social.”424 Esta área abrangente incluía ações no campo da educação popular, formação qualificada, saúde, direitos das minorias (índios, negros, mulheres), meio ambiente, direitos humanos. Essas organizações recebiam o apoio direto da “cooperação internacional”, visto que as relações com o Estado e com empresas privadas, durante os regimes militares em vigor em boa parte da América Latina, inexistiam.

Assim, para incentivar as ações comunitárias e os movimentos de promoção social, surgiram no sul do continente americano as ONGs - parceiras da ajuda que vinha de fora, e aliadas à promessa do desenvolvimento, já abordada no segundo capítulo. Como explica

Fernandes, elas surgiram com um caráter emergencial, como uma solução para falta de opção, que se imaginava ser conjuntural no sistema institucional existente – “centros de pesquisa que se formavam à margem de universidades submetidas a pressões do Estado autoritário, núcleos de educação popular paralelos ao sistema educacional oficial, grupos de apoio a movimentos sociais.”425

O que não se imaginava é que essas iniciativas fossem ter uma longa duração. Afinal, pesquisas deveriam ser feitas dentro das Universidades, educação, dentro das escolas públicas e a saúde teria que ser um direito de todos. O advento do Estado democrático decepcionou, e essas premissas foram paulatinamente deixadas de lado. O que parecia ser uma situação de emergência, na qual essas organizações entrariam com funções emergenciais, acabou se tornando uma situação permanente, mesmo ao longo do novo Brasil. As ONGs se transformaram numa espécie de parasita, alimentado pela falência do Estado, incapaz de garantir aos cidadãos os bens públicos essenciais, e pela ascensão da lógica do mercado.

Os anos 90 testemunham o crescimento do terceiro setor, especialmente a proliferação das ONGs, sobretudo nas áreas urbanas da região Sudeste. Se antes elas contavam mais com a ajuda internacional, agora a receita provém também de dentro do país. As organizações

424 FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 72. 425 Ibidem, p. 66. 187

passam a recorrer ao apoio financeiro nacional, do Estado ou de empresas privadas. Como afirma Rubem César, as características das ONGs “resumem-se com nitidez na ideia do privado com funções públicas.”426 Elas são as principais integrantes do time de ações do terceiro setor, um terceiro personagem que surge no mundo para negociar com outros dois segmentos: o Estado (primeiro setor) e a iniciativa privada (segundo setor).

Seguindo a filosofia do não governamental e do não lucrativo, as ONGs se impuseram, sobretudo, na realidade de vida de grande parte das comunidades populares dos centros urbanos brasileiros, onde o desmaio do Estado se tornou cada vez mais evidente, e os disparos da globalização perversa ainda mais violentos. O sucateamento dos bens públicos, principalmente nas áreas da educação e saúde, o crescimento desordenado das favelas, desemprego, o agravo dos índices de violência e criminalidade, fertilizaram o terreno para a atuação dessas organizações, seus projetos e parcerias.

Desde a explosão da década de 90 até agora, parece evidente que por mais positivas que fossem, ou que sejam, as intenções das ONGs, é difícil escaparem ilesas dos interesses do capital, que penetram, “de fininho”, nas entranhas de suas ações, mesmo das mais verdadeiramente solidárias. Ao selar alianças inevitáveis, para não dizer irrecusáveis, com o segundo setor, elas acabam tendo que se adequar também às demandas das corporações financiadoras. No início daquela década, quando Rubem César registrava as primeiras páginas dessa história, ainda era incipiente um tipo de atitude empresarial que o sociólogo chamou de

“comportamento cidadão das empresas.”427

A ideia de que o empresariado deveria além de assumir compromissos com seus funcionários, ampliar a sua responsabilidade também em relação ao mundo ao seu redor, o

“ambiente natural e urbanístico”, apenas começava a florescer. Crescia a opinião de que não era mais suficiente pagar impostos e esperar pelo governo, porque ele já não estava “dando

426 Ibidem, p. 65. 427 Ibidem, p. 98. 188

conta”; surgem as fundações privadas e ganha espaço na retórica das empresas o termo responsabilidade social.

Os slogans “nós fazemos a nossa parte” ou “somos uma empresa cidadã” se destacam nas propagandas institucionais. No país entregue ao modelo neoliberal, a súbita generosidade dos empresários é desmascarada por Fernandes: “O aumento da pobreza e a proliferação da violência urbana envenena o dia a dia das elites, forçando-as a se indagarem sobre o que pode ser feito.”428 A responsabilidade social torna-se assim uma atitude bastante conveniente: recebe o mérito de “fazer a sua parte”, se sobrepõe ao poder do Estado, muitas vezes assumindo funções que não são suas e, além do mais, esconde a face nociva da atuação das corporações, que baseada nas leis do capital são, a rigor, as maiores vilãs da história. Seria injusto, é claro, não reconhecer que a responsabilidade social se manifesta também por meio de intenções positivas, genuínas, e que muitas empresas, à medida que obtém mais poder econômico, reconhecem a necessidade de reinvestí-lo se tornando, solidariamente,

“responsáveis sociais.”

Na prática, a ideia bonita adquiriu feições distorcidas, e nem sempre respondeu as necessidades daqueles em quem os projetos da responsabilidade social foram, ou ainda estão sendo, aplicados. Muitas vezes, eles não representam uma resposta a um desejo que foi gerado pelas comunidades a serem “atendidas”, são criados por aqueles que, sentados nos escritórios da “responsabilidade”, decidem, a seu gosto, quais projetos precisam aquelas pessoas, moradoras daqueles lugares “problemáticos”.

De acordo com esta lógica, o poder de decisão permanece nas mãos daqueles cuja ética raras vezes escapa de valores pouco humanos. De um lado eles alimentam o sistema, de outro providenciam uns “paninhos quentes.” Afinal, depois de lucrar bastante, por que não doar um pouco às ONGs, para que elas façam suas benfeitorias? A articulação que se instalou entre

428 Ibidem, p. 98. 189

público e o privado na proposta do terceiro setor está fatalmente atrelada aos interesses do mercado. É o que confirma a assertiva de Rubem César Fernandes:

Enquanto os serviços oferecidos pelo Estado são financiados por impostos compulsórios, os serviços oferecidos pelo terceiro setor dependem, em grande medida, de doações voluntárias. O setor sobrevive porque, em algum momento, a busca do lucro dá lugar a uma doação. Sua existência envolve uma troca triangular pela qual alguns dão para que outros possam receber. Incluir despesas alheias na minha contabilidade é a expressão econômica da tese moral que alimenta a dinâmica do terceiro setor: importar-se com o outro (vizinhos, marginalizados, estrangeiros distantes, gerações futuras etc.) é parte constitutiva da consciência individual. Palavras como gratidão, lealdade, caridade, amor, compaixão, responsabilidade, solidariedade etc. são as moedas correntes que alimentam o patrimônio do setor. Quanto mais sonoras e convincentes forem, maiores recursos advirão para as atividades que o compõe. (...) Ser não governamental e não lucrativo não significa, é claro, estar em algum outro mundo, além das esferas da influência do Estado e do mercado, ou infenso aos condicionamentos sociais. O terceiro setor não é feito de matéria angelical. 429 (grifos nossos)

Submetidas à ética do mercado, as ações sociais propostas pelo terceiro setor correm o risco de assumir apenas o caráter de negócio, obedecendo a leis que são, a priori, do universo financeiro, incorporando em seu vocabulário palavras como orçamento, contrapartida, vantagem, demanda, retorno, produto, marketing, recurso, valor, quantidade, visibilidade, projeção, estratégia etc. A obediência ao financiador é flagrada nos relatórios, monitoramentos, avaliações, cancelamento ou renovações de contratos etc. Devemos obediência a quem detém o poder, e este é, por sua vez, o sujeito da história. No que diz respeito ao primeiro setor, o Estado, o pacto com os outros dois, parece também ter vindo em boa hora. Como indagou George Yúdice: “Será que a efervescência das ONGs não será uma

“faca de dois gumes”, ajudando a escorar um setor público abandonado pelo Estado, ao mesmo tempo, possibilitando ao Estado se abster de algo que já foi visto como sua responsabilidade?” 430

429 Ibidem, p. 24. 430 YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 153. 190

Para Milton Santos, a existência do terceiro setor representa o surgimento de uma política que agora é feita no mercado: “Agora fala-se muito num terceiro setor, em que as empresas privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes deferido ao poder público.”431 De acordo com Santos, ao assumir as funções do Estado, as empresas escolhem à conveniência de seus cálculos quais beneficiários devem ou não receber a sua assistência, privilegiando apenas uma fração do território e da sociedade, enquanto a maior parte fica de fora: “Essa política das empresas equivale à decretação de morte da Política.”432 Santos argumenta que a política, por definição, é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto, realizável apenas quando há a consideração de todos e de tudo:

A eliminação da pobreza é um problema estrutural. Fora daí o que se pretende é encontrar formas de proteção a certos pobres e a certos ricos, escolhidos segundo o interesse dos doadores. (...) nas condições atuais, e de um modo geral, estamos assistindo à não-política, isto é, à política feita pelas empresas. Sobretudo as maiores.433

Todavia, seria precipitado “satanizar” por completo a existência desses organismos que estão, afinal, estabelecidos na vigência da nova ordem global. Se por um lado este complexo tecido social, político e econômico favorece mecanismos que alimentam dependências e que contribuem para que os vetores de cima permaneçam no poder; de outro, ele também é capaz de estabelecer diálogos entre as suas diversas instâncias, criando situações nas quais os vetores de baixo podem falar aos de cima como esses devem aplicar a sua “responsabilidade social”; circunstâncias em que os de baixo, como cidadãos ativos e conscientes, recusam o papel de meros objetos para assumir, ao contrário, o de sujeitos do jogo. Este é o desafio que se impõem a grupos como o Nós do Morro que, embora tenha surgido em momento um pouco

431 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007. P.67. 432 Ibidem, p.67. 433 Ibidem, p.67. 191

anterior ao “boom” do terceiro setor, hoje encontra-se inserido na realidade dos projetos apoiados pela noção da “responsabilidade social”.

O dilema de administrar a tensão entre os vetores de baixo e de cima não é tarefa encarada apenas pelo grupo, mas por muitas outras iniciativas, atuantes no contexto das favelas cariocas. Mesmo as organizações que surgiram a partir da mobilização comunitária, como é o caso do grupo do Vidigal, do AfroReggae, ou da Redes de Desenvolvimento da

Maré (REDES), precisaram desenvolver a poliglosia da sociabilidade, conceito que será adiante abordado. A estrutura da rede adotada por estes grupos é, na opinião de George

Yúdice:

Estratificada por atores de diferentes posições sociais, a saber, os grupos de ativistas culturais, a comunidade em cujo nome o ativismo é desenvolvido, fontes de fomento que variam desde órgãos governamentais e fundações locais até corporações transnacionais e ONGs, inclusive o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os discursos desses grupos são amplamente influenciados por aquela rede de colaboradores e intermediários.434

Ainda que seja arriscado afirmar que o discurso dos grupos seja “amplamente influenciado” pela sua rede de colaboradores, como diz Yúdice, não há dúvida de que ao sentar à mesa com representantes de corporações, instituições de peso e com a iniciativa privada, as organizações comunitárias precisam desenvolver um estado de alerta, que seja capaz de garantir o seu direito de voz. De fato, os “atores de diferentes posições sociais” aparecem nos sites do AfroReggae, da REDES ou do Nós do Morro. Neles a área parcerias divulga as instituições que costumam negociar com os grupos comunitários. No endereço eletrônico da REDES, por exemplo, constam parcerias estabelecidas com o Canal Futura,

Petrobrás, Ashoka, Banco do Brasil, Instituto Ayrton Senna, WorldFund entre outros. No site do AfroReggae, a área “patrocínio institucional” mostra as logomarcas da Natura, Petrobrás,

Banco Santander e Governo do Estado do Rio; o Nós do Morro conta atualmente com os

434 Ibidem, p. 20. 192

financiamentos dos Programas Petrobrás Social e Cultural, BNDES, SESC Rio, da Empresa de calçados Azaléia, e já recebeu eventuais apoios da Coca-Cola, Furnas e Eletrobrás.

Em 1987, o Nós do Morro já se constituía como uma Associação Cultural sem fins

Lucrativos, apta a receber apoios externos, mesmo assim, sobreviveu por quinze anos sem nenhum financiamento estável. Somente em 2001, depois que as suas realizações já chamavam bastante atenção, veio o patrocínio da Petrobrás Social, que como explica um folder de divulgação do Programa: “Constitui importante vertente da responsabilidade social da Empresa. Com ele, a Petrobrás evolui de patrocinadora financeira de projetos para agente de desenvolvimento humano sustentável. Deixa de ser coadjuvante e torna-se co-protagonista das ações.”

Assim como a Petrobrás, e em nome da responsabilidade social, muitas outras empresas, bancos e corporações despertaram um súbito interesse em estabelecer parcerias com organizações sociais. Se por um lado os patrocínios são bem-vindos, mesmo que no caso do Nós do Morro tenha chegado bem tarde, de outro, as empresas, ao se colocarem como “co- protagonistas das ações” obrigam as organizações comunitárias a conviver com o desafio de garantir o lugar da comunidade-sujeito, enfrentando o risco de se tornarem um exemplo de comunidade-objeto.

De movimento sóciocultural, enraizado no seio da comunidade, a pessoa jurídica, apta a receber recursos e a negociar com as mais diversas instâncias da sociedade, o Nós do Morro vive um processo que George Yúdice, ao analisar semelhante situação experimentada pelo

Afroreggae, chamou de “ONG-ização da cultura”. Yúdice questiona se a participação de grupos como o do Vidigal e o de Vigário Geral em redes de trabalho com instituições do governo e também da iniciativa privada representaria uma oposição efetiva ao poder 193

dominante, uma vez que essas alianças poderiam ser caracterizadas como uma “absorção dentro de iniciativas hierarquizadas.”435

O autor afirma que ao operar dentro dessas redes de trabalho, negociando com os diversos atores que dela fazem parte, é preciso que os grupos comunitários mantenham “uma

436 posição face à cooptação” . Se por um lado as parcerias institucionais sejam indispensáveis para a sobrevivência e expansão das atividades desses grupos hoje, de outro o conselho de

Yúdice parece válido.

De acordo com o autor, diante do diálogo que se pretende estabelecer “com uma gama de organizações, trabalhando com as interfaces e intermediando sua articulação entre as diversas agendas (...) um governo local, uma ONG nacional ou regional e junto às fundações internacionais”437 convém, segundo Yúdice, que os grupos comunitários, desenvolvam a

“poliglosia da sociabilidade”, expressão de autoria de Rubem César Fernandes. Esta poliglosia é destacada pelo autor como um talento exercitado com destreza por José Júnior, diretor do AfroReggae.

A habilidade de Júnior segue o conselho de Rubem César ao afirmar que os ativistas do terceiro setor devem aprender “a arte da tradução, tornar-se poliglotas da sociabilidade, ser capazes de entrar e sair dos vários espaços sociais com um mínimo de elegância e reconhecimento.”438 É grande o desafio desses poliglotas: manter abertos os canais de comunicação e troca entre variados segmentos, substituindo relações verticais por horizontais, nas quais os grupos, por eles representados, ganharão o direito de voz. Para conseguir isso o

435 Ibidem, p. 215. 436 Ibidem, p. 215. 437 Ibidem, p. 215 438 FERNANDES, Rubem César. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 139. 194

segredo estaria, segundo um DJ do AfroReggae, em “dançar com o demônio sem sair queimado.”439

Como observou Yúdice a negociação requer que se mantenha uma posição face à cooptação; de fato, para enfrentar o demônio é necessário antes de tudo exorcizá-lo de dentro de si. A tarefa não é fácil e obriga um questionamento permanente por parte dos poliglotas, como Júnior, Guti Fraga e tantos outros, sobre em que medida estão sendo satisfeitos os seus interesses, e, sobretudo, se em suas atuações estão sendo satisfeitas as necessidades de suas comunidades, afinal é em nome delas que eles trabalham e tomam decisões. Por isso, ainda que cruzando fronteiras, é necessário continuar olhando também, e talvez principalmente, para dentro. A realidade obriga aos poliglotas da sociabilidade o desafio de conviver com a dialética da comunidade sujeito/objeto. O seu grau de discernimento e lucidez sobre ela é que dirá quais ações caminham verdadeiramente em direção à construção de narrativas alternativas.

439 DJ do AfroReggae, nome não citado. apud YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 214. 199

4.4 - Em outras comunidades o mesmo desafio.

Em outros pontos do Rio de Janeiro, bem mais jovens do que o Nós do Morro, porém com o mesmo desafio, nasceram recentemente dois grupos: a Cia. Marginal (Nova Holanda,

Complexo da Maré) e o Grupo Código (Japeri, Baixada Fluminense). Como no Vidigal, as primeiras experiências artísticas dos dois grupos estão fortemente enraizadas no seio de suas comunidades-mãe. São exemplos de iniciativas que surgem com as características de teatro pela comunidade. A Cia. Marginal é composta por um grupo de atores, a maioria deles moradores da Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. Em

2007, o grupo montou o espetáculo Qual é a nossa cara? que esteve em cartaz na Casa de

Cultura do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), agora Redes de

Desenvolvimento da Maré (REDES).440

Assim como os primeiros espetáculos do Nós do Morro, em Qual é a nossa cara? a

Cia. Marginal optou por falar de sua própria história, seus moradores, suas conquistas e tragédias, num processo de criação coletiva e autoral. O espetáculo tratou de temas como a

440 O CEASM foi fundado em 1997 por 11 moradores de diferentes comunidades do Complexo da Maré. Apesar de suas trajetórias serem distintas, os fundadores do CEASM tinham em comum pelo menos três características: haviam nascido ou morado por muito tempo em alguma das 16 comunidades do Complexo da Maré, possuíam longa história de atuação em movimentos coletivos locais e, sobretudo, tinham conseguido chegar à universidade. Naquele ano, eles inauguram um curso pré-vestibular aberto aos jovens da Maré, o Pré-Vestibular Comunitário da Maré, que iniciou suas atividades em 1998. O CEASM construiu sua primeira sede no Morro do Timbau entre 1999 e 2000. Em 2002, uma nova sede foi inaugurada na comunidade de Nova Holanda. Em 2003, um comerciante local doa ao CEASM um grande galpão, onde a hoje se situa a Casa de Cultura da Maré e o Museu da Maré. Ao longo dos anos, as atividades do CEASM se ampliaram, passando a oferecer diversos outros cursos, como de informática, línguas estrangeiras, linguagens artistico-culturais e reforço escolar para crianças, biblioteca e projetos voltados para a saúde. No ano de 2007, o Centro foi dissolvido, dando origem a uma outra instituição: A Redes de Desenvolvimento da Maré – REDES, que incluiu ativistas que antes participavam do CEASM. A REDES é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) dedicada a articular pessoas e instituições para realizar projetos de desenvolvimento para a Maré, um dos maiores bairros populares do Rio de Janeiro. A título de curiosidade, o Museu da Maré foi inaugurado com a presença do Ministro da Cultura, , em 8 de maio de 2006, destaca-se por ser o primeiro museu, do país, localizado dentro de uma favela. O seu acervo é constituído por objetos de uso cotidiano e relatos de origem da comunidade local, além sugestões que forem sendo fornecidas ao longo do tempo pelos moradores, dentro do Projeto Memória Viva, que atua na comunidade desde 1997. A exposição permanente é dividida em doze tempos não-cronológicos, onde, por exemplo, uma sala conta a história dos migrantes, outra refere-se à infância dos moradores, outra ainda recorda episódios da resistência social das comunidades. 200

convivência entre as diferentes religiões presentes na Maré, o conflito entre as tradições do candomblé e a Igreja Evangélica, preconceito, homossexualismo, guerra entre traficantes e polícia. A temporada do espetáculo na Casa de Cultura obteve bastante sucesso junto à comunidade; a casa lotada todas as noites era a prova da plena comunicação atingida entre o palco e a platéia comunitária. Na época, o grupo de jovens atores já desenvolvia com a orientação da atriz Isabel Penoni, um trabalho de seis anos. Juntos eles embarcaram num processo de investigação cênica que resultou na criação da companhia e na estréia do espetáculo que contava a própria comunidade - a Nova Holanda como palco e personagem.

Já o Grupo Código é resultado de um encontro entre o Nós do Morro e jovens artistas da Baixada Fluminense. O Código é um dos projetos de multiplicação, como são chamados pelo seu mentor, o Nós do Morro. A partir de 2004, por meio de uma parceria estabelecida com o Serviço Social do Comércio – SESC-RIO, o Nós do Morro promoveu oficinas teatrais em várias localidades do Estado do Rio de Janeiro, compartilhando a sua experiência com artistas locais e interessados no teatro. Desses encontros firmaram-se como grupos autônomos, o Código, de Japeri, o grupo Casa do Nós, em Saquarema e o grupo AIA,

Associação Itaocarense de Artistas (AIA), em Itaocara. Outro projeto de multiplicação do

Nós do Morro acontece em Nova Iguaçu. As Oficinas Culturais do Nós do Morro em Nova

Iguaçu recebem o patrocínio da Petrobrás e contam com a parceria também da prefeitura da cidade. Dez lonas culturais instaladas em escolas da rede municipal de ensino de Nova Iguaçu abrigam as atividades culturais. Em 2006, cerca de 1440 crianças e jovens participaram do projeto.441

O encontro entre o Nós do Morro e os jovens atores que hoje integram o grupo Código aconteceu durante as oficinas teatrais promovidas pelo SESC em parceria com o grupo do

441 Para efeitos deste estudo optei por recortar a experiência do grupo Código, devido à consistência do trabalho realizado, e à dificuldade de deslocamento para os outros locais. Além disso, a experiência do Nós do Morro com as escolas em Nova Iguaçu é muito vasta, demandando além de muitas visitas, um outro segmento para este trabalho. 201

Vidigal num centro cultural em Nilópolis. A decisão de formar um núcleo teatral permanente em sua comunidade, Japeri, veio depois. Lá eles alugaram o espaço de uma creche abandonada e mantêm, há quatro anos, o Grupo Sóciocultural Código, realizando espetáculos e oferecendo atividades culturais para a comunidade. O espetáculo Do lado de cá, terceiro do grupo, dirigido pela ‘facilitadora’ do Nós do Morro Miwa Yanagizawa, escolheu colocar em cena, no palco de Japeri, a sua comunidade como protagonista - Japeri como palco e personagem.

Assim como o veterano Nós do Morro, ou como a Cia. Marginal, o Grupo Código vem, por meio do teatro, abrindo espaços para a voz de sua comunidade. Uma espécie de relato teatral que ganha variadas formas, influenciadas não só pelos elementos da cultura local, sempre incorporados à cena, mas também pela colaboração daqueles profissionais “de fora”, que entram nas comunidades para aplicar o teatro. O estabelecimento de uma relação de troca e intercâmbio de influências entre as partes envolvidas nessas iniciativas permite, mais uma vez, a emersão de temas e formas artísticas próprias das comunidades (favela como personagem) e colabora com a consolidação da ação cultural (favela como palco), dentro das mesmas.

4.4.1 - A Nova Holanda como palco e personagem.

A Nova Holanda É um pedaço de terra que fica situado à beira mar Tem um segredo de bamba, onde impera o samba, nosso lema é cantar Eu sinto um orgulho em viver, na Nova Holanda, Para mim é um prazer Eu vejo a alegria estampada no rosto da rapaziada Eu sinto um orgulho em viver, na Nova Holanda, Para mim é um prazer.442

442 Samba cantado no espetáculo. 202

O encontro dos jovens atores que compõem a Cia. Marginal com a atriz Isabel Penoni aconteceu em 2002, no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré o – CEASM.443 Na

época, o projeto Viver com Arte, uma parceria entre a organização comunitária e o Instituto

Ayrton Senna oferecia aos jovens da comunidade oficinas de música, teatro e artes plásticas.

Além dele, outro projeto o Adolescentro444, financiado pela Prefeitura do Rio, visava à formação de adolescentes como promotores de saúde abordando assuntos como sexualidade,

DST, gravidez na adolescência; neste segundo projeto, o teatro entrou como um recurso para desinibir os jovens agentes, que teriam como tarefa falar sobre esses assuntos a juventude de outras comunidades. Isabel Penoni445 era uma das responsáveis pelas oficinas teatrais nos dois projetos. O embrião da Cia. Marginal surge quando um seleto grupo de adolescentes446, contagiado pelas experiências que o teatro havia lhes proporcionado nos projetos do CEASM, decidiu se manter unido para, junto com Isabel, desenvolver um trabalho de pesquisa teatral mais duradouro.

Em 2005, a companhia, que na época ainda não havia sido batizada, criou a performance

Você faz parte desta guerra, com ela o grupo realizou um circuito de apresentações durante o primeiro semestre de 2006 que incluiu as dezesseis comunidades que compõem o Complexo

443 Originalmente incorporada às atividades do CEASM, hoje a Cia. Marginal faz parte dos projetos desenvolvidos pela Redes de Desenvolvimento da Maré – REDES. 444 Adolescentro foi um projeto constituído por noventa agentes comunitários de saúde, todos jovens que desenvolvem atividades no campo da promoção de saúde nas comunidades. O projeto incluía também uma equipe técnica de 32 profissionais das áreas de pediatria, ginecologia, odontologia, psicologia, serviço social e atividades desportivas e culturais, que atendem adolescentes, aos sábados, em dois postos de saúde. 445 Em entrevista pessoal, realizada em 18/12/2007, Isabel falou sobre a sua história com o teatro, que começou ainda quando estudante, no Colégio Aplicação da UFRJ. Mais tarde participou de grupos de teatro de rua, se envolveu com atividades circenses até ingressar no curso profissionalizante de atores da Casa das Artes de Laranjeiras. Participou das companhias Ensaio Aberto e Mistérios, depois dos Grupos Moitara e Umbu. Seu trabalho com atriz está muito baseado no teatro físico. Isabel trabalhou durante dois anos com o diretor iraniano Massoud Saidpour, cuja pesquisa cênica segue em linha direta com o teatro de Grotowski. O trabalho na Maré surgiu a convite de uma amiga que havia integrado o projeto de dança desenvolvido por Ivaldo Bertazzo. Com o término do projeto alguns jovens demonstraram o interesse em fazer teatro. Isabel aceitou o convite de orientar o grupo, e durante algum tempo, sem qualquer apoio financeiro trabalhou com os jovens. A coordenação do CEASM, percebendo o envolvimento deles com a atividade, incorporou o teatro nos projetos Viver com Arte e Adolescentro. 446 Em 2007, quando conheci a Cia. Marginal e acompanhei alguns ensaios de Qual é a nossa cara? o grupo era dirigido por Isabel Penoni e integrado pelos jovens Priscilla Andrade, Geandra Nobre, Jaqueline Andrade, Wallace Lino, Tatiane Charlene e David Santana. Todos os jovens permanecem na companhia, com exceção de David Santana. 203

da Maré447. A performance já indicava um tipo de linguagem que nos anos seguintes o grupo iria desenvolver. Por meio de elementos da farsa, da sátira e do grotesco, a performance apresentava um retrato tragicômico das favelas cariocas. A repercussão desta experiência fortaleceu o grupo, que, em 2007, foi contemplado com o Prêmio FUNARTE Myriam

Muniz448 para a montagem de Qual é a nossa cara?.

O espetáculo é o resultado de um processo que vasculhou memórias não só dos integrantes do grupo, como também de outras personalidades da Maré. O ponto de partida para a sua criação foram entrevistas com personagens chave da favela de Nova Holanda, pessoas que tinham histórias para contar sobre o local, comunidade que eles decidiram, naquele trabalho, homenagear. Histórias pessoais e coletivas foram exploradas por meio de improvisações e mais tarde incluídas na peça. O espetáculo é composto por diversos planos de ação. Em alguns momentos os próprios atores revelam diretamente à platéia suas memórias pessoais, em outros estão caracterizados por figuras emblemáticas da Nova Holanda como o

Jorge Negão, o lendário chefe do tráfico na favela dos anos 80, ou o senhor Joaquim Severino,

77 anos, um dos primeiros moradores da Maré; situações marcantes da história de Nova

Holanda são levadas ao palco por meio de imagens ‘fantásticas’ construídas através de formas e movimentos executados pelo corpo dos atores.

447 O Complexo da Maré é um bairro formado por 16 comunidades situadas à margem da Baía de Guanabara, entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha, duas das principais vias de acesso à cidade do Rio de Janeiro. O Complexo é visto por aqueles que desembarcam no Rio de Janeiro pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim, conhecido como Aeroporto do Galeão, no trajeto em direção aos demais bairros da cidade. A Maré possui cerca de 132 mil habitantes distribuídos em aproximadamente 38 mil domicílios. Esse bairro possui, portanto, um número de habitantes superior ao de importantes cidades do estado, como Cabo Frio, Araruama, Angra dos Reis, Resende, Queimados e Itaguaí. No que se refere à infra-estrutura educacional, estão instaladas na Maré 15 escolas públicas – entre elas sete CIEPs –, sete creches comunitárias, além de várias escolas privadas voltadas para a educação infantil e para o ensino fundamental. A Maré e os seus arredores contam com apenas duas escolas de ensino médio, número insuficiente para atender a demanda da região. Cf. SOTER, Silvia. Cidadãos Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio de Janeiro:UniverCidade Ed., 2007. p. 35-36. 448 O Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz foi criado para incentivar a produção e a montagem de peças das mais variadas modalidades e gêneros (teatro para crianças, para adultos, teatro de bonecos, teatro de rua, etc.) e para apoiar grupos e companhias teatrais envolvidas em projetos de pesquisa teórica, de experimentação de linguagem, de arte-educação, entre outras atividades. Realizado pela primeira vez em 2006 o Prêmio, que tem patrocínio da Petrobrás, se consolidou como uma das principais ações de estímulo à produção teatral do país. 204

A narrativa entrecortada mostra um painel de situações do passado e do presente da

Nova Holanda, posta em cena não a partir de uma estrutura realista, mas por meio de um jogo cênico corporal, no qual a fisicalidade dos atores desenha, esgarçando toda a sua expressividade, figuras como a ‘pomba gira’ ou as mulheres do ‘dono’ da favela. Na estrutura fragmentada do espetáculo, que contou com a supervisão de dramaturgia de Rosyane Trotta, um momento invade o outro, num fluxo contínuo que não deixa para o espectador pistas do que acontecerá adiante. Assim, um terreiro de candomblé, com mães de santo dançando ao som de atabaques, é invadido por um pastor da Igreja Evangélica que, executando movimentos frenéticos, grita: “Aleluia senhor!” Uma luta coreográfica é travada entre as duas linhas religiosas, presentes na realidade do cotidiano da Maré. A transição entre este e o próximo momento é costurada por um dos atores que fala à platéia sobre a personalidade de

Jorge, o ‘dono’ da favela, que inspirava ao mesmo tempo medo e admiração nos moradores da comunidade. Não há um fio condutor lógico, mas uma imprevisível sucessão de acontecimentos cênicos, inspirados pelos depoimentos reais e por representações ficcionais de histórias do imaginário da Nova Holanda. A estrutura da encenação não acompanha a lógica linear da ação ou da contação de uma fábula, mas diferente, baseia-se num repertório de situações. A escritura cênica criada pelos atores e pela diretora, a partir de um processo evidentemente colaborativo responde às feições da cena contemporânea, e às qualidades do teatro pós-dramático, caracterizado por sua “intensidade, força e pulsões de presença”449, como observou Hans Thies-Lehmann.

Um dos momentos mais marcantes do espetáculo mostra um mascarado tentando atravessar uma linha de fronteira. A figura, que não fala, apenas age, brinca com a expectativa da platéia. O tom bem humorado do momento é ajudado pela música, percebemos que a linha imaginada pelo mascarado é um limite, mas ainda não sabemos o porquê. Em seguida uma

449 LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro pós-dramático. Apud FERNANDES, Sílvia. Teatros pós-dramáticos. In: O pós-dramático. GUINSBURG, J. e FERNANDES, Silvia. (orgs.) São Paulo: Perspectiva, 2008. 205

das atrizes entra em cena e desenha um mapa, explica um determinado evento ocorrido na favela. Ela rabisca no papel ruas da Nova Holanda e revela o episódio histórico, um pacto entre ‘Jorge Negão’ e os ‘Irmãos Metralha’, duas facções do crime nos anos 80, que resolveram colocar as armas no chão e selar um acordo de paz. A narrativa deixa a cena e outros mascarados, segurando armas de brinquedo, entram para ilustrar o episódio. São figuras engraçadas e o público ri. O momento foi criado para ser engraçado.

Assim como este, outro trecho do espetáculo é bastante divertido, quando um grupo de personagens vê um incêndio num ‘duplex’ de madeira da favela. Olhando em direção a algum ponto na platéia, as personagens tecem comentários sobre a cena trágica, que ganha no comportamento daqueles tipos populares, um tom farsesco. Os comentários e a gritaria das figuras se intensificam até a chegada dos bombeiros, que é saudada por todos com aplausos entusiasmados. Momentos como este, também sedem espaço para outros mais íntimos, serenos, como o que uma das atrizes abre uma caixa de memórias e expõe para a platéia pedaços de sua história pessoal. A caixa de segredos de Priscilla foi levada por ela mesma a um dos ensaios da companhia. Isabel pediu que ela contasse ao grupo sobre as memórias que estavam ali guardadas. Mais tarde, este momento, vivido na intimidade do grupo, virou cena do espetáculo.

Nela, Priscilla, com delicadeza, remexia o seu passado, mostrava e comentava para a platéia os seus “cacarecos”. O ticket da primeira ida ao teatro, um livro adquirido no Fórum

Social Mundial; um quarto de dormir desenhado depois de um estudo sobre o quarto de Gogol na aula de artes da escola. No trecho, mostrando ao público um quarto desenhado com capricho, Priscilla explicava que aquele era o quarto de seu sonho, já que “quarto de verdade mesmo”, ela não tinha. A moça também comentava sobre outras memórias como: cartões de inscrição para o vestibular em diversas universidades, tentativas frustradas por quatro anos consecutivos, além de um texto de sua autoria publicado no Jornal da Maré, O Cidadão. Nele, 206

ela se pergunta: Maré, porque não? A caixinha da Priscilla representa a memória não apenas de uma, mas de muitas jovens da Maré: os mesmos sonhos, as mesmas frustrações, a mesma força para resistir e seguir em frente.

Outra passagem do espetáculo revelava também o seu aspecto crítico e irônico. Um grupo de jovens é abordado por uma câmera de TV. Eles vestem camisetas coloridas, fazendo referência às que são oferecidas aos jovens pelos patrocinadores de ‘projetos’. A câmera pede que eles façam “um pedacinho da peça”, bem como fazem os repórteres de televisão quando visitam projetos na favela. Os jovens obedecem, um sussurra para o outro: “diz que seu pai é traficante” ou “diz que o projeto tá te salvando”. Um dos jovens é empurrado pelo grupo, ele é pressionado pelo corpo dos atores, como uma ameaça. Uma espécie de ‘monstro opressor’ ganha forma na corporeidade do grupo, que luta com o jovem; ele parece enfrentar o conflito entre se libertar ou aceitar os rótulos de ‘pobre coitado’ ou ‘quase’ bandido.

É um dos momentos do espetáculo onde fica mais evidente uma atitude de crítica por parte do elenco sobre a sua realidade social. Mais do que procurar retratar eventos ou histórias locais, o grupo imprimiu em todas as situações colocadas em cena uma perspectiva crítica, expôs as contradições presentes no seu contexto social e ofereceu ao público, especialmente aquele ao qual o espetáculo se destinava, a oportunidade de refletir e construir alguma opinião. Isto foi possível porque o processo foi orientado de forma que favoreceu um debate, um desvelamento daquele contexto por parte de todo o elenco e também da facilitadora, Isabel

Penoni. De fato, os atores são unânimes ao afirmar que o teatro os alertou para a importância de perguntar o “porquê das coisas”, de não deixar as “coisas passarem despercebidas”.

Geandra Nobre revela o que sentiu quando descobriu que no teatro ela podia pensar:

No começo eu não gostava não. Odiava. Tinha que pensar! Eu não tinha o hábito de fazer isso. Ninguém nunca me pediu para pensar. Em todos os espaços, o familiar, o da escola, dos projetos, ninguém nunca me disse que eu tinha que pensar. Aqui eu encontrei um lugar. A Isabel disse: “aqui eu não mando, nós construímos o espaço”. Porra, ninguém nunca disse isso 207

para mim! Mas depois eu descobri que é bom pensar. Que é gostoso. É fascinante descobrir que você pode ir além do que você imagina.450

Assim, o passado e o presente da Nova Holanda, foram remexidos pelo grupo por meio de um processo crítico-reflexivo num espaço muito particular, o do palco. Isabel tem uma explicação para o envolvimento dos jovens com o teatro:

Eu sou uma pessoa muito apaixonada pelo teatro. E acho que muitos deles se apaixonaram também. Daí vem a transformação. Acho que tem uma coisa de um teatro mais engajado, de reflexão, de questionamento, que faz as pessoas se depararem com questões pessoais e públicas, questões silenciosas, sufocadas, na medida em que você vai colocando para fora, aquela prática vai se tornando vital por que você se sente mais forte, vai criando um vício, de se conhecer mais, de poder expandir seus limites.451

Qual é a nossa cara? esteve em cartaz por dois fins de semana na Casa de Cultura da

Maré. O espaço, lotado todas as noites, indicava o acerto do grupo na comunicação com a sua platéia, que retornava nas noites seguintes para, junto com os atores, dizer as falas da peça.

Muitos rostos atentos, assim como os do Vidigal, repetiam na Maré um espetáculo à parte – o da plateia.452 A ‘cara’ do espectador revelava a compreensão de que aquele acontecimento teatral dizia respeito a ele. Naquelas noites da Maré, ocorreu uma rara sintonia entre o palco e a platéia. O depoimento de Márcio Libar, fundador do Teatro de Anônimo453, resume bem a experiência de participar daquele evento:

Tenho uma tendência natural de gostar ou no mínimo respeitar todo e qualquer resultado artístico oriundo do subúrbio ou da periferia (...). Mas dessa vez, confesso que fui realmente arrebatado. O que eu vi foi um espetáculo emocionante e maduro (...). Um espetáculo que não defende uma tese social, mas que expõe com liberdade as próprias contradições dos

450 Em entrevista pessoal (25/08/2007). 451 Em entrevista pessoal (18/12/2007). 452 A primeira sede do CEASM, hoje REDES, está localizada no Morro do Timbau. Em 2002, uma outra sede foi inaugurada na comunidade de Nova Holanda. A criação de um novo espaço respondia à necessidade de ampliar o atendimento aos moradores das diversas comunidades, já que sua livre circulação era restrita pela guerra entre organizações criminosas. É interessante observar que a Casa de Cultura da Maré está situada mais próxima ao Timbau, mas nas noites de espetáculo a platéia da Nova Holanda não deixou de comparecer. 453 O Teatro de Anônimo foi fundado em 1986 e dedica-se à pesquisa técnica e artística no que define de Teatro Popular Circense, com enfoque principal na arte da comicidade, nas técnicas de números aéreos e no universo teatral das festas populares. 208

jovens inseridos naquela realidade. (...) Mas a bela surpresa ficou mesmo por conta do trabalho dos atores, que aparentavam uma tranqüilidade e uma segurança na comunicação que só emerge na cena quando aqueles que a defendem, sabem exatamente o que estão fazendo e o que querem dizer. Durante àquela hora, esqueci por completo que estava diante de mais um “Projeto Social”, e me senti tocado por uma obra de arte, tamanho o grau de maturidade, profissionalismo e sensibilidade daquele elenco. Por fim, saí com uma sensação de que este espetáculo deveria ser visto pelo maior número de pessoas possíveis em todo o Brasil, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, (...) para poder nos inundar de esperança de que ainda há vida inteligente no teatro carioca.454

O samba que celebra a Nova Holanda é novamente cantado ao final do espetáculo. O momento deixa para o público a impressão de que da caixinha de Priscilla saltaram muito mais histórias do que as dela mesma; parece que nela cabiam as memórias da comunidade inteira. Depois de Qual é a nossa cara? a Cia. Marginal consolidou o seu espaço dentro da

REDES. Desde então, a Cia. Marginal vem ampliando cada vez mais o seu diálogo com outros segmentos da sociedade. Depois da Casa de Cultura o espetáculo foi apresentado no

Espaço Teatro de Anônimo (Fundição Progresso/Lapa/Rio de Janeiro), a um público de 250 pessoas, como uma das atividades previstas pelo Território Cultural 2008, evento realizado pela CASA – Cooperativa de Artistas Autônomos, em parceria com organizações da sociedade civil.

No mesmo ano, a Companhia foi uma das vencedoras dos Editais de Cultura 2008 da

Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, passando a receber desta entidade, em

2009, patrocínio para a manutenção de suas atividades de formação.455 Mais recentemente a

Cia. Marginal ganhou o Prêmio de Apoio a Pequenos Eventos do Ministério da Cultura-

454 Disponível em: 455 Concretamente, o patrocínio possibilitou aos atores trabalharem com bolsa durante todo o ano e, além disso, foram oferecidas ao grupo três oficinas, todas elas ministradas por profissionais do teatro que atuaram ou atuam em colaboração com a Cia. Marginal há cerca de cinco anos. A partir de 2009 o grupo inicia uma série de apresentações de FRAGMENTOS, onde são costuradas algumas cenas de trabalhos passados, entre elas cenas do Qual é a nossa cara?. Entre os eventos estão: o Primeiro Encontro pela Vida e Por Outra Política de Segurança Pública (UFRJ - 08/08/2009); 15º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC - 13/11/2009), V Seminário de Psicologia e Direitos Humanos (CRP – 05/11/2009); I Seminário de Educação da Maré (UFRJ – 07/11/2009). 209

MINC para a remontagem de Qual é a nossa cara?. Com isso, realizará uma nova temporada, baseada, contudo, em duas etapas: a primeira na Nova Holanda, sua comunidade-mãe, e no

Centro de Artes da Maré456, e a segunda, em um teatro da Zona Sul carioca. Assim como o

Vidigal, a Nova Holanda também será vista pelo mundo lá fora.

456 Um novo pólo de produção artística próximo da Maré, criado a partir da parceria entre a bailarina Lia Rodrigues e a REDES. 215

4.4.2 – Japeri como palco e personagem.

A sede do Grupo Código é na comunidade de Nova Belém, em Japeri, município que faz parte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro conhecida como Baixada Fluminense. A

área é considerada uma das mais pobres do Estado do Rio, obtendo os piores resultados nos campos da educação e saúde.457 Desde 2005, em uma rua discreta de Nova Belém, chão de terra e precário saneamento, funciona a sede do Grupo Código. A ideia de criar um núcleo de artes em Japeri surgiu depois que um grupo de jovens da comunidade participou do projeto

Tempo Livre, promovido pelo Serviço Social do Comércio SESC, no Centro Cultural de

Nilópolis, município próximo a Japeri. Neste projeto, do qual participaram cerca de trinta jovens de diversas comunidades da Baixada Fluminense, entre elas Nilópolis, Nova Iguaçu,

Duque de Caxias e Mesquita, os integrantes do grupo Nós do Morro ministraram oficinas teatrais.458 Nessas oficinas os jovens tiveram contato com multiplicadores do grupo do

Vidigal, inclusive com seus fundadores, Fred Pinheiro, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Guti

Fraga. Os artistas deixaram a Zona Sul do Rio em direção à Baixada para incentivar a ideia de

457 De acordo com as Estimativas da população para 1º de julho de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (29 de agosto de 2008), a população de Japeri, era de 100.055 habitantes, menor do que a do Complexo da Maré. Uma matéria publicada em O Globo (, 23/08/2009), destaca o acelerado nível de desenvolvimento de alguns municípios do Estado do Rio. No ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) Japeri obteve os piores resultados nas áreas de educação e saúde, ficando atrás de outras regiões pobres do Estado como Belford Roxo e Duque de Caxias. O levantamento foi realizado pela Firjan (IFDM – Índice de Desenvolvimento Municipal). Para se ter uma ideia da realidade da Educação em Japeri, uma outra reportagem de O Globo (, publicada em: 12/05/2008) revelou que em 2008 dois mil alunos de 5a. a 8a. série estudavam em sistema de “rodízio” na Escola Municipal Bernardino de Melo. Das quinze turmas da escola, todo dia, três ficavam em casa. O motivo era a falta de carteiras para todos os estudantes. 458 O Serviço Social do Comércio - SESC, mantido por empresários do comércio de bens e serviços, é uma entidade que atua nas áreas da Educação, Saúde, Lazer, Cultura e Assistência. Em 2004, o SESC-RIO promoveu o Projeto Tempo Livre, uma iniciativa que visava a construção de quadras esportivas em municípios do interior do Estado do Rio, além de oferecer oficinas artísticas aos jovens das comunidades. O Nós do Morro orientou as atividades teatrais, o Afroreggae, as musicais, e a Cia. Étnica de Dança, as de dança. O projeto tinha também a meta de estimular a atuação de artistas/agentes que já desenvolvessem atividades dentro de suas comunidades. As oficinas com o Nós do Morro em 2005 aconteceram no Centro Cultural de Nilópolis, onde jovens dos municípios próximos se encontraram. As atividades aconteceram entre Maio e Novembro, quinzenalmente, nos fins de semana. Começavam sexta-feira à noite e terminavam domingo à tarde. No mesmo ano os jovens de Japeri se organizaram para criar a sua própria sede. Receberam o apoio do SESC e do Nós do Morro até 2007. Durante este período a atriz Miwa Yanagizawa, facilitadora do Nós do Morro, acompanhou o grupo, dirigindo os seus espetáculos. 216

disseminar núcleos teatrais naquela região. Guti Fraga aceitou o convite do SESC, mas defendeu a ideia de que o projeto Tempo Livre, não se restringisse apenas a um contato temporário dos jovens com o teatro, mas que servisse como um estímulo para que eles se organizassem e criassem em suas próprias comunidades outros grupos teatrais.

Mobilizados por esta ideia, após o término do projeto, os vinte e três jovens, a maioria deles moradores de Japeri se uniu para fundar um grupo. A primeira iniciativa foi conseguir um local para a sua sede. Eles alugaram uma casa em Japeri, lugar de uma antiga creche abandonada.459 O espaço foi adaptado com o recurso dos próprios integrantes, com a ajuda de familiares e doações de comerciantes da comunidade. Uma área externa e coberta da casa foi dividida em dois espaços, um para o palco, outro para a platéia. No telhado de zinco, latas de leite em pó transformadas em refletores foram instaladas. O chão é de cimento; no lado da platéia cadeiras simples organizadas em algumas fileiras. Uma pequena área destinada à uma mesa para operação de som e luz. Dentro da casa, os cômodos se transformaram em camarins. No seu muro externo, o nome do grupo pintado à mão. Na rua, que ainda não ganhou asfalto, um valão a céu aberto. Quem passa em frente ao muro da casa se surpreende quando descobre que lá dentro um grupo de teatro se prepara para entrar em cena.

Em novembro de 2005, o grupo estreou o espetáculo Código, uma colagem de situações típicas do trem suburbano, que fazia uma crítica bem-humorada sobre os problemas enfrentados pela população da “Baixada”, dependente do meio de transporte precário para se deslocar. A viagem tinha início na estação de Japeri e a cada nova parada, outras personagens se apresentavam ao público. O destino de algumas era a praia, o de outras o trabalho.

Momentos de empurra-empurra, confusão e mal-estar, característicos do cotidiano dos trens foram transportados para a cena. Personagens curiosas, como o pastor evangélico que “prega” como cantor de rap ou a falsa mendiga que engana os desavisados, compunham um painel de

459 O aluguel da casa era pago com o recurso dos próprios jovens que dividiam o valor de 300,00 reais. 217

tipos populares e situações caóticas vividas por aqueles que deixam as regiões mais afastadas rumo ao centros urbanos.

No início de 2006, a casa movimentada pelos jovens já começava a chamar mais a atenção da comunidade. A estréia de Censura Livre, segundo espetáculo montado em sua sede, conquistou de vez a freqüência dos moradores ao espaço. Desde então, além da apresentação de espetáculos, o grupo multiplica seus saberes oferecendo gratuitamente à comunidade atividades como: aulas de teatro, capoeira, desenho e artesanato. Outros moradores de Japeri também se envolveram no projeto.

Com a parceria deles, o grupo conseguiu ampliar a sua oferta de atividades. Além das oficinas culturais, o espaço abriga o projeto de alfabetização de jovens e adultos, Brasil

Alfabetizado, e promove os eventos Cine Belém460 e o Tempero Cultural, um encontro bimestral que oferece o espaço do palco para a expressão artística de membros da comunidade e convidados. Uma biblioteca também foi organizada no local. Em 2009, o grupo foi contemplado com um prêmio oferecido pelo concurso Pontos de Leitura do Ministério da

Cultura; os recursos disponibilizados pelo prêmio foram investidos na melhoria da infra- estrutura da biblioteca, que já funcionava no lugar.

Censura Livre, espetáculo baseado em Liberdade, Liberdade de Millor Fernandes e

Flávio Rangel, texto que marcou a história do teatro brasileiro por ter sido um dos maiores sucessos do teatro de protesto, com forte crítica à repressão imposta pelo golpe militar de

1964, foi adaptado e dirigido por Miwa Yanagizawa.461 A peça, cuja versão original estreou em 1965 tendo alcançado grande repercussão principalmente entre os jovens universitários na

época, ganhou em Japeri uma abordagem mais atual, repleta de ironia e sarcasmo.

460 O projeto de cinema do Grupo Código exibe filmes gratuitamente em um telão improvisado e possibilita a discussão dos temas apresentados na película. 461 O SESC-RIO, devido ao desejo do grupo de dar continuidade às suas atividades em Japeri, continuou financiando as visitas de Miwa Yanagizawa ao grupo. Para a montagem de Censura Livre (2006), bem como de Do lado de cá (2007), Miwa, visitou o grupo durante os fins de semana, quinzenalmente. Nos outros dias da semana os próprios jovens se organizavam para os ensaios. Assim, podemos dizer que embora sob a orientação de Miwa, o grupo trabalhou com bastante autonomia nos processos de criação dos dois espetáculos. 218

Entretanto, o tom de protesto presente na obra de Millor e Rangel não perdeu o seu lugar, os jovens atores da Baixada queriam, desde o início do projeto realizar um teatro engajado, comprometido com a crítica social e com o bom humor. Os números musicais e as letras, compostas por integrantes do grupo, eram os pontos altos do espetáculo que entusiasmou a platéia comunitária.

Logo na abertura da peça, os atores, em trajes que sugeriam a vestimenta de toureiros, sacudiam panos vermelhos e cantavam ironizando sobre possíveis soluções para problemas do

Brasil. Dizia a letra:

Olé, Eu acredito e porque não? Dando uma de toureiro, o mundo tem solução. Olé, Eu acredito e você não? Tem que ter muita coragem e fé na constituição. Quem roubar um dia vai ser condenado. Vinte anos de cadeia em regime fechado. Ou melhor, não haverá policiais. Pois não terá nenhum ladrão, bandido ou marginais. É, não haverá mais desemprego. E nem trabalho escravo, exploração.... É só sossego! A classe baixa, média, alta, isso não mais haverá. E toda renda do país agora eu vou partilhar, companheiros! (...) Descobrirão que o problema da fome tem solução. A receita é... Menos desperdício e mais distribuição. (...) No SUS servirão até café com biscoitos. E os funcionaram nos trataram com educação é claro. E com remédios gratuitos sobra mais do meu salário...(...) E a nossa Educação? Ah, dessa vez vai pisar fundo. Colégios públicos com computadores em sala. Cursos técnicos. E com meninos bonitos, e meninas também. Universidades em todas as cidades!

Em outro momento, uma empregada doméstica, a Maria do Céu, dirigia-se à platéia para reclamar da patroa “muquirana” e do salário atrasado. A personagem perguntava ao público o que é a liberdade, e debochava afirmando que “liberdade de verdade” ela só conhecia aquela da estátua nos Estados Unidos. A opção pelo elemento do humor crítico, pela música e também por tipos populares como Maria do Céu arrebatou o público de Japeri. A iniciativa ganhou força na região que até então não possuía nenhum tipo de opção cultural ou de lazer.

Além de consolidar o público para os espetáculos, também cresceu o número de moradores, principalmente crianças, interessadas em participar das atividades. Algumas mães de integrantes do grupo passaram a se envolver na confecção de figurinos e comerciantes 219

disponibilizaram materiais para os cenários. Mesmo sem um apoio financeiro, uma rede de sustentabilidade comunitária se formou, permitindo que a iniciativa ganhasse continuidade.

Hoje a ação é mais uma prova de que mesmo abandonadas pelo poder público, comunidades como Japeri sabem se organizar e descobrir estratégias criativas para desenvolver seus projetos.

A terceira produção do grupo, Do lado de cá, também foi dirigida por Miwa

Yanagizawa. Assim como em Censura Livre, eles optaram pelo uso do humor e da música, mas desta vez, ao invés de basear-se num texto já pronto, decidiram criar, a partir de improvisações inspiradas por temas do cotidiano de Japeri, um texto próprio. O título da peça

Do lado de cá já revela a intenção do grupo: mostrar com versão própria as diversas faces de sua comunidade. O processo de criação do espetáculo, orientado por Miwa, teve como ponto de partida o desejo dos jovens de falar sobre Japeri de uma maneira crítica, mas engraçada.

Miwa perguntou ao grupo: “E agora, sobre o que é que nós vamos falar?” A resposta foi:

“Sobre Japeri”. A diretora explica como ideia ganhou forma:

Depois do Censura Livre nos perguntamos sobre o próximo projeto. Eles [jovens] têm uma linguagem muito próxima da linguagem local mesmo, eles entendem da coisa, eles entendem das pessoas de lá. Então foi uma opção. Partiu de uma conversa, de várias conversas. Todos preferiram criar um espetáculo que representasse a voz da Baixada, porque se você fala de Japeri, você fala sobre a Baixada, sobre as pessoas, a solidariedade entre elas, suas necessidades, a precariedade da administração. Todos contaram situações de convívio em Japeri, família, vizinho etc. Daí surgiu muita improvisação.462

A temática das improvisações partiu de situações do dia a dia de Japeri, brigas entre vizinhos, tipos muito próximos das personalidades da vida real de Nova Belém, o

“churrasquinho” do domingo, as reclamações e os desejos das pessoas da comunidade. A trama principal gira em torno de uma aposta na mega-sena. Reunidos como de costume para um churrasco de fim de semana, momento da peça em que todos os conflitos do grupo vêm à

462 Em entrevista pessoal em 23/03/2008. 220

tona, a falta de dinheiro, rivalidades entre as mulheres da comunidade, a malandragem dos homens, ciúmes entre casais etc, o grupo subitamente recebe a visita de uma vidente. Na cena, a visitante inesperada, num instante de transe sobrenatural, adivinha os números da mega- sena. Um dos vizinhos anota o palpite e todos resolvem fazer um “bolão”. As personagens estão certas de que vão ganhar o prêmio e na semana seguinte, um novo encontro é organizado. Desta vez, Beth elegantemente vestida, a anfitriã do quintal onde acontecem os churrascos, esnoba o comportamento de “emergente”.

A cena é preenchida pelas mesmas personagens, agora ricamente vestidas, ouvindo

ópera e tomando champanhe, o clichê da festa burguesa. Um interessante trecho da encenação mostra num vídeo que projeta o depoimento de alguns moradores de Japeri contando o que fariam com o dinheiro, caso ganhassem na loteria. Em seguida, o prêmio é anunciado, e conforme o esperado o grupo de personagens é o vencedor. Mas, para desespero de todos,

Charles, o vizinho que havia ficado responsável por fazer a aposta na casa lotérica, havia sumido com o dinheiro do bolão. O roteiro de improvisações deu origem a um texto alinhavado por Luiz Paulo Corrêa e Castro, o dramaturgo do Nós do Morro. A “tecnologia” desenvolvida no Vidigal passou a ser também ali aplicada.

Do lado de cá, obteve grande sucesso junto a comunidade de Nova Belém, lá, mais uma vez, assim como no Vidigal e na Maré, a comunicação entre palco e platéia era imediata, o público se reconhecia em cena e percebia que aquele teatro falava sobre eles e para eles. Até então, distante do espaço onde são maiores as possibilidades para a criação de novas redes de troca, a soluções encontradas pelo grupo para sobreviver se agarravam quase sempre nas mãos de quem estava ao lado, a própria comunidade. Como observou Miwa Yanagizawa:

“Em Japeri o senso de comunidade está muito presente. Eles sentem na pele todos os abandonos. É um lugar muito prejudicado. A preocupação com o coletivo vigora muito. Eles 221

são muito preocupados com as necessidades de sua comunidade.” 463 Em 2008, a iniciativa ganhou o nome de Grupo Sóciocultural Código, associação sem fins lucrativos, a partir dali, para ampliar recursos e expandir as suas atividades o grupo conquistou novas parcerias.

A poliglosia da sociabilidade rendeu aos jovens empreendedores, além do apoio do

Ministério da Cultura em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, através do projeto Pontos de Cultura, também o incentivo da BrazilFoundation, uma ONG que capta recursos nos EUA para investir em organizações sociais brasileiras.464 Para 2010, o grupo aguarda a confirmação de um acordo também com o programa Mais Educação.465

Enquanto os recursos disponibilizados pelos parceiros estiverem valendo, as atividades do

Código acontecerão, sem dúvida, com mais conforto; mas, ainda que eles sejam suspensos, tudo indica que a criatividade e perseverança do grupo, somadas ao apoio comunitário continuem garantindo a sua sobrevivência. Entretanto, a sua realidade hoje não foge da regra, se por um lado a ameaça de que os interesses de sua comunidade-mãe não sejam atendidos pareça possibilidade remota, de outro, é certo que ao encontrar novos parceiros ele também não escapará do desafio de conviver com a dialética da comunidade sujeito/objeto.

463 Em entrevista pessoal em 23/03/2008. 464 A BrazilFoundation possibilita que pessoas físicas e jurídicas nos Estados Unidos possam doar a iniciativas sociais no Brasil e deduzir o valor das doações do Imposto de Renda Americano. De acordo com informações fornecidas pelo site da ONG, a captação é realizada através de “campanhas de mobilização, objetivando não só a geração de recursos, como também o desenvolvimento de uma comunidade doadora qualificada e cada vez mais consciente de seu papel para a construção de um Brasil melhor e mais justo.”As informações são do site http://brazilfoundation.org. Em 2009, a organização doou ao grupo de Japeri o valor de 30 mil reais. 465 O Programa Mais Educação é direcionado às crianças, adolescentes e jovens da rede pública de ensino básico e tem como objetivo otimizar as ações e os investimentos, já existentes no país, para que complementem a formação escolar com uma visão integradora do ensino. Quatro ministérios irão atuar conjuntamente na formulação das políticas públicas do Programa - Educação (MEC), Cultura (MINC), Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Esporte (ME). As informações são do site: http://www.cultura.gov.br.

226

4.5 - Os três grupos e a relevância do papel do artista facilitador no desafio da comunidade-sujeito.

As histórias dos grupos, o do Vidigal, o da Nova Holanda e o de Japeri partem de um mesmo ponto. Suas intenções originais estavam voltadas para a criação de um teatro que respondesse e falasse para as suas comunidades; histórias, lutas, alegrias e desejos transformados em obra artística, por meio da parceria estabelecida entre os ativistas do teatro aplicado, os artistas facilitadores, e os integrantes dos grupos, jovens moradores das comunidades.

Nos três grupos, o tipo de parceria estabelecida entre os artistas, que compartilharam com as comunidades o seu conhecimento teatral, e os jovens, contribuiu com o surgimento de um teatro baseado na dinâmica do pela comunidade, que assegura a participação das comunidades como autoras dos processos teatrais. O papel dos artistas assume neste processo uma importância fundamental. No caso da Nova Holanda, o resultado do espetáculo final reflete o diálogo estabelecido entre Isabel, a atriz, e o grupo de atores da favela. De um lado a facilitadora, sua história, cultura e formação teatral; de outro o corpo, a voz, a cultura, a história dos jovens da Nova Holanda. O palco promove o encontro, nele se apresenta uma estética particular que sintetiza na cena, na expressão, o diálogo entre os dois universos. Cabe ao artista facilitador utilizar uma “mão delicada”, que não exclui o seu conhecimento, mas que o põe a serviço de alguém cuja vez deve-se entender como prioritária.

No campo do teatro aplicado a maneira como age o artista facilitador é determinante.

Nas ações do Vidigal, Nova Holanda e Japeri, o tipo de abordagem escolhida pelos artistas encorajou nos grupos comunitários, a expressão de narrativas locais. Isto não teria sido possível se a relação entre os artistas e os grupos não tivesse sido moldada pela ética da comunidade-sujeito. 227

Nas três experiências, os artistas facilitadores provocaram os participantes a reinventar na cena o território da luta; juntos tornaram a favela/comunidade um objeto de reflexão e criatividade, inventaram linguagem cênica e dramaturgia próprias. A favela como palco e personagem, inaugurou além de um novo espaço para o acontecimento teatral, também um novo discurso, uma outra palavra.

As representações da favela/comunidade por ela mesma nos levam de volta ao pensamento de Bertolt Brecht, quando este defendeu o potencial do teatro em provocar o homem a adotar uma atitude semelhante a do cientista diante da natureza: “O teatro também o acolhe [o homem] como transformador, aquele que é capaz de intervir nos processos da natureza e nos da sociedade, que não encara o mundo apenas como é, mas que se faz senhor dele.” 466 Este tipo de perspectiva investigativa, sobre o qual argumentou Brecht, é na opinião de Tim Prentki um “pré-requisito chave para o teatro aplicado.”467

Enxergar a realidade com as lentes de um observador crítico, um fazedor de perguntas,

é uma atitude indispensável para os participantes do teatro aplicado; instigá-la nos grupos comunitários é uma das principais tarefas do facilitador. Segundo Prentki, “tornar estranho o mundo familiar, encontrando diferentes maneiras de olhá-lo” possibilita o embarque “em uma jornada em direção à auto-definição que não é a delimitada pelo discurso dominante.”468 A

“auto-definição” mencionada por Prentki se associa aos processos que engajaram os três grupos na descoberta da favela como personagem.

Para criar um discurso próprio, que “contasse” as suas comunidades com a própria voz, o Nós do Morro, a Cia. Marginal e o Código precisaram adotar a atitude recomendada por

Brecht. Em busca de sua narrativa alternativa, a dramaturgia do Nós do Morro escreveu com humor até as dificuldades da vida na favela, o grupo da Nova Holanda perguntou “Qual é a

466 BRECHT, Bertolt. O Teatro Dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 138. 467 PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p.32. 468 Ibidem, P.32. 228

nossa cara?” e os jovens de Japeri mostraram no palco como é a vida do lado de “lá”. As intenções dos artistas na “aplicação” do teatro na realidade dessas comunidades, pelo menos nos primeiros passos dos projetos, criaram circunstâncias favoráveis ao surgimento de narrativas alternativas.

Neste sentido, o início do percurso dos três grupos guardou a devida distância de um perigo que ronda os projetos do teatro aplicado. Como afirmou Tim Prentki: “O pressuposto fundamental que está na base do teatro aplicado é o de que os indivíduos e as sociedades em que eles vivem são capazes de transformação.”469 Todavia, como o próprio Prentki observa, a busca por essa “missão transformadora” pode implicar em armadilhas. Ao artista facilitador cabe um aviso especial:

A tendência de trabalhar com aqueles que são vítimas da maneira como o mundo é dirigido, em vez daqueles que dirigem o mundo, pode tentar o teatro aplicado ao território do terapeuta, encorajando participantes a se adaptar mais efetivamente ao mundo, em vez de imprimir suas cores no mastro da mudança social, através do encorajamento da análise e ações que buscam adaptar o mundo às necessidades e direitos da maioria das espécies. Ao trilhar o caminho da inclusão social os facilitadores podem facilmente encontrar-se operando como o braço (leve) da política governamental, representando a sociedade civil e as parcerias do setor voluntário. Aparentemente, as iniciativas democráticas, podem tropeçar facilmente na domesticação, em situações onde o poder de definir a agenda e de agir sobre ela não foi dividido com os participantes.470

Cabe aos artistas facilitadores, a linha de frente das ações do teatro aplicado, uma avaliação permanente sobre as armadilhas apontadas por Prentki. No caso dos três grupos em questão, diferente do que acontece hoje em projetos atuantes no contexto das favelas cariocas, que são criados por pessoas sentadas nos escritórios da “responsabilidade social” e endereçados às comunidades por vezes sem que elas tenham participado das decisões, as iniciativas do Vidigal, Nova Holanda e Japeri surgiram de dentro das comunidades, demonstraram um vínculo forte com os seus interesses. Mesmo que a princípio a ideia tenha

469 Ibidem, p.29. 470 Ibidem, p.30.

229

partido dos artistas “de fora”, a relação por eles estabelecida com os grupos garantiu a efetiva atuação da comunidade-sujeito.

No momento em que essas iniciativas passam a dialogar com a complexa rede que se formou em torno de seus projetos, e inclui em sua pauta de conversas os mais diferentes atores sociais, empresas, agências governamentais, os escritórios da responsabilidade social, cabem a elas avaliar o significado da adesão a determinadas estruturas e, em que medida, essas negociações estão garantindo o espaço para a voz de suas comunidades. Esta avaliação, que representa a rigor o questionamento sobre a dialética da comunidade sujeito/objeto, é também tarefa dos artistas facilitadores do Vidigal, da Nova Holanda e de Japeri, que assumiram, junto com os grupos comunitários, a “gerência” dos projetos.

Hoje, a participação na ampla rede social traz para essas ações não só a chance de agregar novos parceiros, como também a de falar para outras e diferentes plateias. No caso do Nós do Morro, em especial, o teatro pela comunidade já circula por outros territórios.

Inaugura-se uma nova operação em que uma iniciativa do teatro aplicado, por definição mais localizada em espaços alternativos, “sem glamour”, dialoga também com o mainstream. A narrativa alternativa ganha a oportunidade de se pronunciar para um público maior, tendência que já se anuncia no percurso da Cia. Marginal e do Código.

Se por um lado colocar o “pé lá fora” possa aumentar o risco de que se afrouxem os laços comunitários, que representam os alicerces do projeto, de outro, atuar em contextos mais amplos, dialogando com outras audiências, pode suscitar novas e mais positivas percepções sobre a favela/comunidade, alterando a maneira que o olhar dominante a enxerga.

E este é um ganho significativo. Mas é claro que esses novos encontros podem influenciar mudanças no teatro que foi originalmente produzido pela e para a comunidade; tornar-se um produto apto a ser consumido em teatros comerciais, pode significar a obrigação de que sejam atendidas e respondidas as exigências e demandas próprias desses espaços, do mercado e de 230

seus consumidores. Para participar da trama da narrativa dominante o Nós do Morro se arrisca num jogo delicado. A ousadia é valida desde que não haja o prejuízo da integridade do corpo e da palavra que um dia o teatro pela comunidade deu expressão.

Conseguir articular as relações com múltiplos atores sociais, resguardando as intenções originais do projeto é uma tarefa que grupos como o Nós do Morro, e outros mais jovens como a Cia. Marginal e o Código terão que aprender, refletindo sobre as suas escolhas, avaliando perdas e ganhos, mas, sobretudo, se perguntando, sempre, sobre que lugar ocupa o interesse e as necessidades da favela/comunidade no âmbito de suas ações. Uma vigilância permanente sobre as suas próprias opções poderá afastar a ameaça de que a qualquer momento seja perdida a autenticidade de sua voz. Assim, retomando as palavras de Milton

Santos, ainda que a realização da história, a partir dos vetores de cima, seja dominante, o teatro aplicado terá possibilitado ao território da luta a chance da realização de outra história

- a partir dos vetores de baixo.

231

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Pedagogia da Autonomia Paulo Freire nos alerta sobre o perigo de uma ideologia fatalista e imobilizante que, animada pelo discurso neoliberal, anda solta pelo mundo assumindo “ares de pós-modernidade”. Para Freire este sistema de ideias “insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar quase natural.”471 De fato, o mundo globalizado, baseado nas tiranias da informação, do dinheiro, da competitividade e do consumo investe todos os dias em nos convencer de que nada pode ser feito diante da realidade que se apresenta, de que somos incapazes de provocar mudanças na ordem estabelecida.

Como afirmou Zigmunt Bauman: “Vivemos em tempos implacáveis, tempos de competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e poucos se interessam em ajudar-nos”.472 Ainda assim, a teimosia de muitas ações criativas, corajosas, põe em xeque a competência da narrativa dominante. A dinâmica da nova ordem global, que estimula as sensações de incerteza, insegurança, solidão, medo do futuro, é posta a prova quando nos deparamos com iniciativas como as do Vidigal, da Nova Holanda, de Japeri e tantas outras.

Nascidas no território da luta, essas ações do teatro aplicado enfrentam a ideologia imobilizante para provar que, mesmo que estejamos vivendo em tempos de

“desengajamento”, a arte, sobretudo o teatro, por se tratar de um evento sempre coletivo, é capaz de recriar a comunidade e engajar grupos em projetos inspirados pela cultura da mudança. O teatro abre a oportunidade para que se realize uma ideia hoje quase fora de nosso

471 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p.19. 472 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.p.8. 232

alcance a de comunidade. Mesmo nos espaços onde a ação da globalização perversa ganha contornos mais violentos, como nas favelas dominadas pelas facções armadas do tráfico de drogas, onde o medo e o terror cultivam a fragmentação, o isolamento, ainda assim encontramos grupos mobilizados por projetos que resgatam o espírito comunitário, a noção de comunidade.

O Rio de Janeiro é hoje o palco de ações articuladas por meio do diálogo entre inúmeros atores, pertencentes aos mais diferentes segmentos da sociedade. A cidade é o resultado de uma criação coletiva, plural; ela representa um verdadeiro caleidoscópio de encontros, desencontros, movimento, transformações. Pelo Casarão do Vidigal transitam personagens das mais diversas origens, artistas facilitadores, jovens integrantes provenientes de diversas comunidades, gente de todas as idades, de todos os lugares; nas platéias do Teatro do Vidigal encontramos rostos de lá mesmo e de outras partes da cidade. Em contrapartida ao crescente desprezo do Estado pelo território da luta, a omissão diante da tarefa de prover os bens públicos como educação, saúde, segurança, lazer, e em conseqüência disso, o avanço do domínio das facções criminosas, constatamos a persistência do grupo do Vidigal, a sua desobediência à atitude fatalista que deixou os artistas “vidigalenses” escreverem uma história de mais de vinte anos.

Na Maré, as apresentações da Cia. Marginal e da Lia Rodrigues Cia. de Danças revelam na platéia um espetáculo à parte, a mistura de indivíduos, um espaço democrático, que rompe barreiras e dilui fronteiras no instante efêmero da cena. Em Nova Belém, Japeri, o grupo Código, “cria” do Nós do Morro, também atrai espectadores “de fora” mesmo que o lugar guarde bastante distância em relação ao centro do Rio. Em Vigário Geral, o AfroReggae acumula vasta experiência em receber visitantes, cariocas, estrangeiros, curiosos, pesquisadores, artistas, empresários, todo tipo de gente. De outro lado, as bandas musicais do grupo se apresentam em eventos na cidade e também no exterior. 233

Não são poucos os exemplos que demonstram o trânsito deste heterogêneo “elenco da cidade” por seus diversos espaços e até por espaços distantes. A favela como palco e personagem com suas produções artísticas, tem favorecido o tráfego, a fluência pelo Rio de

Janeiro de seus diversos atores, por seus diversos territórios; um movimento que parece costurar os fragmentos de uma cidade, transformando ela mesma numa obra de arte, tecida pelas mãos de seus variados personagens.

Nos últimos anos, a divulgação das realizações artísticas dos grupos provenientes das favelas pelos canais de informação parece criar em nós uma sensação mais confortável de cidade unificada. Os mesmos canais nos sensibilizam a fazer contribuições para campanhas do terceiro setor, quase sempre estampando o rosto sorridente de uma criança negra, também mostram no noticiário a cantora Madonna, escoltada por um batalhão de seguranças visitando o Dona Marta, favela “pacificada”, e na novela do horário nobre, um grupo de personagens subindo o morro para uma comemoração.

Não há como negar que todas essas ações agem sobre o imaginário coletivo e acabam de alguma forma conduzindo à construção de outro olhar sobre a favela, menos baseado no estigma da ovelha negra da cidade, expressão de autoria de Jaílson de Souza. Mesmo assim, não podemos nos enganar de que muitas vezes os canais da informação animam uma falsa ideia de mudança social, porque, como afirmou Souza, a verdade é que a visão negativa sobre o território da favela ainda permanece hegemônica.

Diante da recusa de muitos atores sociais, especialmente dos próprios moradores das comunidades e dos artistas facilitadores, atuantes em grande número em projetos sociais nos espaços das favelas do Rio, em aceitar a realidade social, histórica e cultural, como um fato, como observou Freire, quase natural, e das reflexões apresentadas ao longo deste trabalho, cabe perguntar, e estimular que esses atores perguntem para si próprios: em que projetos desejam se engajar? A que tipo de política em relação às comunidades se pretende aderir? 234

Que valores regem determinados projetos e porque participar deles? Até que ponto determinadas ações indicam algum comprometimento com a cultura da mudança? Ou ainda, que tipo de teatro se pretende fazer e colocar em cena?

Não resta dúvida que parte da tarefa de todos os indivíduos, sejam eles os membros comunitários ou os ativistas externos, engajados em ações do teatro aplicado, como as examinadas aqui, e em todas as ofertadas pela cidade hoje, é desenvolver um estado de alerta crítico permanente sobre o seu papel dentro dos “projetos”. Um questionamento diário sobre o intuito de sua “missão transformadora” e as armadilhas que nela possam estar escondidas.

O impulso solidário, corajoso, e até heróico, que muitas vezes motiva a participação nessas ações não é suficiente se não se desenvolve um processo de ação-reflexão sobre as estruturas que sustentam a existência desses projetos, se não se procura discernir entre as ações que incidem na estrutura social com o intuito de transformá-la e aquelas cujas agendas estão mais preocupadas em docilizar o território da luta. Não há receita para se escapar do equívoco, mas é provável que este estudo tenha contribuído para ampliar a reflexão acerca do fenômeno, que por ser tão recente, desafia uma percepção crítica e distanciada.

O dilema de articular uma negociação entre os vetores “de baixo” e os “de cima” sem dúvida indica na trajetória dos exemplos analisados por este trabalho, muitos acertos, mas também fragilidades, inevitáveis diante da difícil tarefa de conviver à força com esta tensão.

O grande mérito de todos eles, entretanto, está não apenas na reação inconformada diante da realidade que se apresenta como quase natural, mas no compromisso com a ética e a estética da comunidade-sujeito; compromisso materializado no palco em forma de arte teatral.

No Vidigal, na Maré e em Japeri, o palco comunitário trouxe para atores e espectadores a possibilidade de se tornarem cidadãos mais críticos, mais autores de sua história, capazes de interferir em seus destinos e nomear o mundo. Do território da luta surgiu um teatro que se 235

manifesta na expressão de narrativas alternativas com poder para resistir ao pensamento

único.

No mundo em que vivemos hoje não seria esta talvez a maior contribuição do teatro?

Não seria talvez este o seu maior desafio? Permitir que os canais da palavra, da imagem, do som falem com independência, por si próprios, livres da “castração estética” promovida pela narrativa dominante que, como nos lembra Augusto Boal, vulnerabiliza a cidadania obrigando-a “a obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos”? 473 Num tempo como o nosso não seria também um indispensável papel do teatro permitir que se revelem histórias escondidas, que ainda não tiveram a chance de serem contadas com a palavra e no corpo de seus verdadeiros sujeitos, alterando a nossa maneira de ver e compreender o mundo?

Acreditamos que este estudo deixe questões úteis para aqueles que já estão engajados em projetos do teatro aplicado, ou para os que ainda pretendem se engajar, somando-se como atores na trama das novas redes de sociabilidade. Mesmo que permaneçam as perguntas, resta pelo menos uma certeza: a de que o teatro, ainda que diante do mundo “implacável” em que vivemos, guarda o potencial para provocar mudança, a força para travar uma luta contra a apatia e a desesperança, e a crença de que a invenção de um outro mundo é possível.

473 BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não cientifico. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 15.

236

6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABAH, S. O. Performing Life: Case studies in the Practice of Theatre for development. Zaria: Bright Printing Press, 1997.

ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.

AMARAL, Luiz Eduardo Franco. Vozes da Favela – representações da favela em Carolina de Jesus, Paulo Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica - PUC/ Pós-graduação em Letras, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003...... Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000.

BERENSTEIN JACQUES, Paola. A Estética da Ginga. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980...... O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003...... Arco Íris do Desejo: Método Boal de Teatro e Terapia. Rio de Janeiro: Civ Brasileira, 1996...... Teatro Legislativo. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1998...... A Estética do Oprimido. Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não científico. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000.

BORDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis RJ, Vozes 1997.

BORNHEIM, Gerd. Brecht- A estética do Teatro. Rio de Janeiro:Graal,1992.

BRECHT, Bertolt. Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

BROOK. Peter. O Teatro e seu Espaço. Petrópolis: Vozes Ltda., 1970.

CABRAL, Beatriz Ângela Vieira. Drama como método de ensino. São Paulo: Editora Hucitec, 2006. v. 1. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. São Paulo : Edusp,2003 ...... Consumidores e cidadãos:conflitos multiculturais da globalização. RJ – UFRJ 4 ed. 1999. 237

CARDOSO, José Ricardo Brugger. A cidade como palco: o centro urbano como lócus da experiência teatral contemporânea. Rio de Janeiro – 1980-1992. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, 2008. v. 1400, 250 p. CARLOS, Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três Versões Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. 2000.

CASTRO, Luiz Paulo Corrêa. Biroska (texto inédito, 1989)...... Abalou- um musical funk. (texto inédito,1998) ...... Noites do Vidigal. (texto inédito, 2002) ...... Burro sem Rabo (texto inédito 2003) ...... Carmem (texto inédito 2006)

CASTRO, Mary Garcia. Cultivando Vida, Desarmando Violências. Experiências em Educação, Cultura, Lazer, Esporte e Cidadania com Jovens em situação de pobreza. Brasília: UNESCO, 2001.

CHACRA, Sandra. Natureza e sentido da improvisação teatral. São Paulo: Perspectiva, 1991.

CHOMSKY Noam. Lucro ou pessoas? Neoliberalismo e Ordem Global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

COUTINHO, Marina Henriques. Nós do Morro: percurso, impacto e transformação. O grupo de teatro da favela do Vidigal. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2005.

DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo:Boitempo, 2006.

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Ed.Hucitec, Edições Mandacaru, 2006.

DOWDNEY, Luke. ISER, Viva Rio. Crianças combatentes em violência armada organizada, um estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas territoriais das facões de drogas no Rio de Janeiro, 2002.

EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. London:Zed Books, 2006.

FERNANDES, Rubem César. Público porém privado – o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987...... Pedagogia da Esperança- um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992...... Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996...... Educação como prática para a Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002. 238

...... Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FLORENTINO, Adilson e TELLES, Narciso. (Orgs.) Cartografias do Ensino do Teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009.

GALEANO Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GUINSBURG, Jacob, FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves. (Orgs.) Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006.

GUINSBURG, J. e FERNANDES, Silvia. (Orgs.) O pós-dramático. São Paulo: Perspectiva, 2008.

HALL, Stuart. 2001. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A...... Da Diáspora.Identidades e mediações culturais. (Org) Liv Sovik. Tradução: Adelaine La Guardiã Resende...[et.al]. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília, Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

HEIKKINEN, Hannu. Special interest fields of drama, theatre and education. The IDEA Dialogues. Department of Teacher Education, University of Jyvaskyla, 2003.

HERITAGE, Paul (ed.). Mudança de cena – o uso do teatro no desenvolvimento social. Rio de Janeiro: British Council, 2000...... e CORDEIRO, Paula (ed.). Mudança de Cena II – o Teatro construindo cidadania. Recife: Companhia Editora Pernambuco, 2001.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. (Org.) Cultura e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

HOLLOWAY, John. Como mudar o mundo sem tomar o poder. O significado da revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003.

IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

ICLE, Gilberto. Teatro e construção de conhecimento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002.

INGS, Richard. From the favela to our manor. Translating AfroReggae: the impact and implications of an international intervention in arts work with young people at risk. London: Queen Mary University of London, 2007.

239

JÚNIOR, Redondo. O Teatro e sua estética. 2o. volume. Arcádia Lisboa, s/data.

KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as Cultural Intervention. London: Routledge, 1992.

KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine:the Rise of disaster capitalism. UK: Penguin Books, 2008.

KOUDELA, Ingrid. Jogos Teatrais. São Paulo. Perspectiva, 1984...... Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991...... Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações.

LIGIÉRO, Zeca. Teatro a partir da comunidade. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2003...... ; PEREIRA, Victor Adler e TELLES, Narciso. (Orgs.) Teatro e dança como experiência comunitária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009...... Teatro e comunidade: uma experiência. Uberlândia: Universidade de Uberlândia,1983.

LIMA, Evelyn Furquim Werneck. (Org.) Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras FAPERJ, 2008.

MCGRATH, John. A good night out. Popular Theatre: audience, class and form. London: Methuen, 1981...... ……..Naked Thoughts. Refletions on theatre. London: NHB, 2002.

MDA, Zakes. When People Play People. London:Zed Books, 1993.

MICHALSKI, Yan. O Teatro sob pressão – uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

MIGNOLO, Walter. Capitalismo y geopolítica del conocimiento. El eurocentrismo y la filosofia de la liberación en el debate intelectual contemporáneo. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2001.

NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.

NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades. (Org.) Florianópolis: UDESC, 2009...... Teatro com meninos de rua. São Paulo: Perspectiva, 2008...... A opção pelo Teatro em Comunidades: alternativas de pesquisa. In: Urdimento – Programa de Pós-Graduação em Teatro. Revista de Estudos em Artes Cênicas. Universidade do Estado de Santa Catarina. Vol 1, no.10 (dez 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. p. 131...... Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades. In: Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. 240

…………………………………Community theatre and change. Reflections on form and content. In: Drama Research. London: National Drama Publications,Vol. 1, Abril, 2002. …………………………………..Community theatre in Florianópolis. Research in Drama Education, Vol.1, No. 1, 1996...... Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento. (artigo inédito) ...... Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de Doutorado).

NICHOLSON, Helen. Applied Drama. The gift of Theatre. Great Britain: Palgrave Macmillan, 2005.

PANDOLFI, Dulce e GRYNSZPAN, Mario. A favela fala. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. GUINBURG J. e PEREIRA, Maria Lúcia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PATEL, Raj. Stuffed and Staverd: Markets, Power and the Hidden Battle for the World’s Food System. London: Portobello Books Ltd., 2007.

PRADO, Décio de Almeida. Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001

PEIXOTO, Fernando. (organizador) O melhor do CPC da UNE. São Paulo:Global,1989.

PEREIRA DA SILVA, Maria Laís. Favelas Cariocas 1930-1964. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos. (Ed.) Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico – uma aventura teatral. São Paulo; Perspectiva, 2005...... Dentro ou fora da escola? In: Urdimento – Programa de Pós-Graduação em Teatro., Revista de Estudos em Artes Cênicas. Universidade do Estado de Santa Catarina. Vol 1,no.10 (dez 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART.

PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. ……………… and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre Reader. London: Routledge,2008.

PILGER John. Os novos senhores do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

RESENDE, Beatriz. Apontamentos de crítica cultural. Rio de Janeiro, Aeroplano/DNL, 2002...... A Cidade, a literatura e a tragédia. Disponível em: Programa Avançado de Cultura Contemporânea: www.pacc.ufrj.br/beatriz...... A literatura brasileira na era da multiplicidade. In: Cultura e Desenvolvimento. Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2004.

RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis no século XXI. Petrópolis, RJ: Editora Vozes Ltda., 2001. 241

ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998...... Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro : Zahar, 2003

SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ: Editora Vozes Ltda., 2000.

SANTANA, Paranaguá Arão. Teatro e formação de professores. São Luís: EDUFMA, 2000.

SANTOS, Milton. Território e Sociedade. Entrevista com Milton Santos. Entrevistadores: Odette Seabra, Mônica de Carvalho e José Corrêa Leite. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2ª. Edição, 3ª. Reimpressão, 2007...... Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 14ª. Edição. Rio de Janeiro: Record,2007. SCHMIDT, Suzana Viganó. As regras do jogo: a ação sócio-cultural em teatro e o ideal democrático. São Paulo: Hucitec, 2006. SOARES, Luiz Eduardo, MV Bill e ATHAÍDE Celso. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

SILVA, Jaílson de Souza. Por que uns e não outros? Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003.

SILVA, Jaílson de Souza; BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio, [X] Brasil, 2005.

SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

SOTER, Silvia. Cidadãos dançantes - a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio de Janeiro: UniverCidade Ed., 2007.

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

STIGLITZ, Joseph. Globalização, como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007...... A globalização e seus malefícios. A promessa não cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura, 2002.

TAYLOR, Philip. Applied Theatre. Creating transformative encounters in the community. Portsmouth, NH: Heinemann, 2003.

TELLES, Narciso. Pedagogia do Teatro e o teatro de rua. Porto Alegre: Mediação, 2008.

TROTTA, Rosyane. Paradoxo do teatro de grupo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós- Graduação em Teatro UNIRIO, Rio de Janeiro, 1995.

VALLADARES, Lícia do Prado e MEDEIROS, Lidia. Pensando as favelas do Rio de Janeiro - 1906-2000. Uma bibliografia analítica. FAPERJ e Relume Dumará: Rio de Janeiro, 2003.

242

YÚDICE, George. A Conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte, UFMG, 2004.

VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London and New York, 2001.

VARELLA, Dráuzio; BERTAZZO, Ivaldo; BERENSTEIN JACQUES, Paola. Maré vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2002.

VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV,2004.

WA THIONG`O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London: James Currey, 1986.

Matérias Jornalísticas (organizadas em ordem crescente por ano de publicação):

Biroska também é cultura. Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 22/04/1989. Caderno D.

Nós do Morro apresenta Biroska no Vidigal. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 08/05/89. Ipanema.

Nós do Morro - Grupo de teatro amadurece. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 05/06/89. Ipanema.

HIDALGO, Luciana. TV de mentirinha é sucesso entre as crianças do Vidigal. Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 17/11/1989. Caderno D

Vidigal em clima de programa de TV. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/06/1990. Ipanema.

Teatro inglês sobe o morro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 18/07/95. Segundo Caderno.

Teatro tem novo espaço no Vidigal. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 28/09/1995. Barra.

Ingleses ensaiam Hamlet com grupo do Vidigal. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 04/04/97. Segundo Caderno.

LADIM, Pedro. Lutando pela brincadeira. Prestes e comemorara 15 anos o grupo Nos do Morro inaugura seu novo teatro com peca infantil. O DIA - O Dia D - 30/08/2001.

Unesco reconhece trabalho de ONGs. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 30/08/2001. Zona Sul. P. 24.

GOIS, Antonio. Teatro com capacidade para 70 pessoas é reinaugurado em favela. Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 01/09/2001. FolhaCotidiano. P. C1.

Nós do Morro completa 15 anos com musical. Jornal O Globo, Rio de Janeiro 08/05/2002. Segundo Caderno. 243

GHIVELDER, Débora. Estréia no asfalto. Nós do Morro troca o Vidigal pelo Planetário. Revista Veja, Rio de Janeiro, 08/05/2002. Veja Rio.

A Vez do asfalto. Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 9/05/2002. Caderno D. Capa.

A princesa e o plebeu das favelas cariocas nos palcos paulistanos. Jornal Diário de São Paulo, São Paulo. 20/06/2002. Teatro.

NESPOLI, Beth. Samba, amor e violência em Noites do Vidigal. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20/06/2002. Caderno 2 – Teatro.

Não basta dizer não! Nós do Morro faz aposta na profissionalização. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 8/09/02. Segundo Caderno.

LUIZ, Macksen. O excluído sobre ao palco. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30/12/2002. Caderno B. p. B1.

ALVES, Patrícia. Palco vira sonho da favela. Embalados por Cidade de Deus, jovens carentes querem ser profissionais de cinema e teatro. Jornal Extra, Rio de Janeiro, 24/11/2002.

Da favela do Vidigal para o show bizz. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 4/01/03. Segundo Caderno.

Mudança de tela. Atores de Cidade de Deus estão em novela da Globo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04/01/2003. Caderno B.

OLIVEIRA, Roberta. Nós do Morro vira companhia e se apresenta em Londres. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 07/06/03, Segundo Caderno. Capa.

PAIVA, Anabela. Doutor da periferia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9/9/2003. Caderno B, Capa.

AMORIM, Cláudia. Como incluir as exclusões. Autor do Grupo Nos do Morro, Luiz Paulo estréia peca sobre o mundo além Vidigal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27/11/2003. Caderno B. p. B4.

OLIVEIRA, Roberta. Olhar além do Vidigal. Grupo Nos do Morro cria 14 “células” em cidades do Estado do Rio. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 14/11/2005. Segundo Caderno. Capa.

AUTRAN, Paula. A cidade unificada. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Rio.

CEZIMBRA, Márcia. O morro pede passagem. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 4/6/2006. Revista O Globo...... Da laje para a pista. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Revista O Globo.

244

BIAGGIO, Jaime. Curta do Nos do Morro é premiado na França. Neguinho e Kika, de Luciano Vidigal, é escolhido o melhor no Festival de Marselha. Jornal O Globo, Rio de janeiro, 9/04/ 2006. Segundo Caderno. P 3.

FILHO, William Helal. 20 anos desatando nós. O morro pede passagem. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 26/09/2006. Megazine. Capa.

DUARTE, Alessandra. Festa para o teatro nascido e criado no Vidigal. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 22/10/2006. Segundo Caderno. P 2.

Eventos põem lenha no caldeirão cultural. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 19/11/2006. Globo Baixada. P 10.

AZEREDO, Beatriz. Garra e Talento. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 24/04/2006.

A favela se diverte. Lá no morro que beleza. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 18/03/2007.

MONTEIRO, Karla. Favela Chique. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15/07/2007. Revista de O Globo.

SOLER, Alessandro. ONGs atuantes em favelas do Rio se unem no F4, contraponto irônico ao G7, e propõem concerto social a partir da periferia. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 04/02/2007. Revista O Globo. P. 16...... AfroReggae abre oficinas de artes em zona de guerra. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 04/08/2007. Rio. P 26.

VELASCO, Suzana. Na ponta do mundo. Dançando pra não dançar cria companhia e mostra os frutos de um projeto social de 12 anos. Jornal O Globo. 12/08/2007. Segundo Caderno. Capa.

AfroReggae é companhia associada ao Barbican Centre. Maior Centro artístico-cultural da Europa convida o AfroReggae para parceria em reconhecimento a qualidade artística da banda. Revista Conexões Urbanas. Rio de Janeiro, 08/2007- no. 4.

MONTEIRO, Karla. Uma salva de palmas. Matéria sobre o Galpão Aplauso. Jornal O Globo. Rio de janeiro, 15/02/2009. Revista O Globo. P 16.

ALMEIDA, Cássia; LINS Letícia. Menos pobre, porém tão desigual. Jornal O Globo, Rio de Janeiro 23/08/2009, Economia.

Quase metade dos jovens do país esta em situação de pobreza, Mostra IBGE. Disponível em: Publicada em 09/10/2009. País – indicadores sociais.

Mais da metade dos jovens de 15 a 17 anos não esta cursando o ensino médio. Disponível em: Publicada em 19/01/2010. Educação.

Unesco: Brasil avança na educação, mas segue em posição intermediária. Disponível em: Publicada em 20/01/2010. Educação. 245

Cidades brasileiras integram a lista das mais desiguais. Disponível em: São Paulo, 19 de março de 2010.

Cuba abre seu espaço aéreo aos EUA. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 16/01/2010. Mundo. P. 28.

MONTEIRO, Karla. Maré Alta. Cia. de dança abre espaço para balé, aulas e pecas num dos maiores complexos de favelas do Rio. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 21/02/2010. Revista O Globo, p. 12.

DALE, Joana. A novela sobre o morro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/04/2010. Revista da TV. Capa. p. 12-14.

Críticas (espetáculos do grupo Nós do Morro, organizadas em ordem crescente por ano de publicação):

BRANDÃO, Tânia. Teatro do crioulo doido. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/06/88. Segundo Caderno.

FISCHER, Lionel. Grupo Nós do Morro comemora 15 anos com ótimo espetáculo. Jornal Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30/05/2002. Teatro/crítica.

HELIODORA, Bárbara. Uma festa com muito humor e alegria. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 24/05/2002. Segundo Caderno...... Com talento, garra e pouco dinheiro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 03/12/03. Segundo Caderno...... Mesmo irregular montagem tem seus encantos. Jornal O Globo, Rio de Janeiro,23/04/2004. Segundo Caderno...... Os Dois Cavalheiros de Verona. Um Shakespeare com alegria e seriedade. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 29/10/2006. Segundo Caderno.

LUIZ, Macksen. O entusiasmo do Nós do Morro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro 04/12/03. Caderno B...... Sonho de uma noite de verão ganha ótica popular. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,19/04/04. Caderno B...... Uma excelente montagem do grupo Nós do Morro. Os Dois Cavalheiros de Verona. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Caderno B.

Sites pesquisados:

246

< http://www.spectaculu.org.br> < http://www.aplauso.art.br>

Entrevistas:

Com integrantes do Grupo Nós do Morro:

Diretores: Fernando Mello da Costa em 09/12/2003. Guti Fraga e Fred Pinheiro em 23/12/2003. Luiz Paulo Correa e Castro em 14/08/2003 e 16/12/2004. Maria José da Silva em 04/04/2004. Atores: Luciano Vidigal em 16/07/03. Cristiano Lima dos Santos 22/09/2003. Roberta Santiago 02/10/2003. Rosana Rego Barros 02/10/2003 e 09/12/2003. Cintia Rodrigues Martins Rosa 13/10/2003. André Luís Alves da Cunha 21/10/2003 e 09/12/2003. Roberta Rodrigues da Silva em 13/11/2003.

Entrevistas com os atores integrantes do Grupo Código (18/11/2006): Sérgio Cardoso Filho Felipe Adler Rita de Cássia da Silva Bruno Wetto Mebsta 247

Com a atriz facilitadora Miwa Yanagizawa em 23/03/2008.

Entrevistas com os atores integrantes da Cia. Marginal: Diogo Vitor Araújo em 6/08/2007 . Geandra Neves do Nascimento em 25/08/2007. Jaqueline Silva de Andrade em 25/08/2007. Wallace Gonçalves Lino em 27/8/07. Tatiane Sharlene Antonio dos Santos em 27/8/07. Priscilla Monteiro de Andrade em 27/8/07. Com a atriz facilitadora Isabel Penoni em 18/12/2007.

Fotos

COUTINHO, Marina Henriques. Espetáculos do Nós do Morro, imagens do Vidigal, de Japeri e de Do lado de cá, do Grupo Código.

YBARRA, Chico. Apresentação do Grupo Tá na Rua no Vidigal (RJ), em 01 de nov. 1981. Acervo do Grupo Tá na Rua. (gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Ricardo Brugger Cardoso).

PENONI, João. Fotos de Qual é a nossa cara? (Cia. Marginal).