JULIA VILELA CAMINHA

OS DIFERENTES SENTIDOS DE SE OKUPAR:

experiências brasileiras e europeias

Rio de Janeiro 2015

JULIA VILELA CAMINHA

OS DIFERENTES SENTIDOS DE SE OKUPAR:

experiências brasileiras e europeias

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Orientadora: Profa. Dra. Luciana Corrêa do Lago

Rio de Janeiro 2015 CIP - Catalogação na Publicação

Caminha, Julia Vilela C183d Os diferentes sentidos de se okupar: experiências brasileiras e europeias / Julia Vilela Caminha. -- Rio de Janeiro, 2015. 121 f.

Orientadora: Luciana Corrêa do Lago. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional, 2015.

1. Ocupações. 2. Movimentos sociais. 3. Geografia humana. 4. Direito à moradia. 5. Planejamento urbano. I. Lago, Luciana Corrêa do, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

JULIA VILELA CAMINHA

OS DIFERENTES SENTIDOS DE SE OKUPAR:

experiências brasileiras e europeias

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Aprovado em ____/_____/_____

BANCA EXAMINADORA

______Profa. Dra. Luciana Corrêa do Lago Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ

______Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Junior Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ

______Profa. Dra. Tatiana Tramontani Ramos Departamento de Geografia - UFF

AGRADECIMENTOS

Este trabalho só pode ser construído com diferentes tipos de auxílios, a começar pelos diversos autores a quem recorri, além deles, inúmeras pessoas me ajudaram na pesquisa e na escrita deste trabalho. Arriscando me esquecer de alguém... O primeiro agradecimento é para a professora Luciana Lago, pela orientação paciente ao longo tempo. Aos professores da banca, Orlando Junior e Tatiana Ramos, pela leitura e conselhos. Aos amigos do mestrado por me ajudarem a continuar o curso e me divertirem, em especial Mari, Thai, Mila, Dani, Nayana e Ana, pelas inúmeras trocas e ensinamentos. Aos amigos da especialização que me fizeram entender o IPPUR: Heitor, Rodrigo e Vanessa. Às amigas de toda a vida: Ma, Lili e Popó. Ao CAp UERJ pelos amigos que me trouxe: Bici, Carol, Dito, Elisa, Érika, Fabi, Fezi, Garritano, Joanão, Jojo, Karen, Lilu, Marcelo, Natália, Naná e Saulo. Aos amigos da Geo-UFF sem os quais nunca chegaria ao final da graduação: Barrão, Broch, Chico, Clark, Dani, Digão, Felipe, Igor, Justin, Lelê, Luana, Mari, Miguel, Play, Preah, Rafa, Ricardo, Sasá, Teto, Tutu, Vercilo, entre tantos outros. Aos amigos do Direito e “cunhados”: Renan e Bruninho. Aos amigos mais recentes, mas não menos importantes: Flack, Mari Feijó, Marianinha e Pither. Ao Michael pelo acolhimento e histórias. Ao Rodrigo, meu bem, pelas discussões, fotos e apoio nos momentos finais e decisivos. À Zazá pelos mapas, resmungos característicos e amizade. À Maria Clara pelas traduções, conversas noites adentro e ensinamentos. À Lolô, minha afilhada, amiga da Geo, do mestrado e da vida. À Laila, essa amiga sem a qual a gente não vive.

Aos membros do SqEK, em especial Ju Canedo – companheira de congresso e ex-vizinha –, além de Claudio Cattaneo e Miguel Martínez, que possibilitaram minha ida à . Aos amigos (e conhecidos) de Barcelona, sem os quais não descobriria o que são okupas, em especial Luci e Ma. À Paola e ao Alex por me acolherem, alimentarem, divertirem e pelos bate- papos. À família, muitos agradecimentos: à vovó Olga, aos irmãos João e Pedro, à Lucila e aos meus pais, Ana e Chico, os amores da minha vida. Ao meu pai também pela leitura lado a lado, essencial para a finalização. À minha mãe, um agradecimento mais que especial, pelas leituras e palpites pacientes. A todos que estão na luta, acreditam e defendem ocupações. Ao CNPq pela bolsa que ajudou a me dedicar ao mestrado.

“Cuando vivir es un lujo, okupar es un derecho” (lema dos okupas)

RESUMO

As ocupações de imóveis ociosos são uma alternativa de acesso à moradia de extrema relevância em alguns países, especialmente na últimas décadas, quando ocorre a intensa mercantilização das cidades e o aumento da especulação imobiliária. Assim, as ocupações podem ser entendidas como resultado tanto da espoliação quanto de ações subversivas e contestatórias realizadas do/pelo trabalhador. O objeto deste trabalho é um tipo específico de ocupação: a ocupação urbana, resultante da associação entre pessoas com o intuito de ocupar um imóvel. Cada local possui uma racionalidade específica, resultante de suas condições sociais, políticas, econômicas e culturais. Observou-se que, na Europa, as ocupações contêm sentidos múltiplos, para além da questão da moradia, lidando com novas formas de gestão e socialização como alternativas às relações socioeconômicas forjadas no capitalismo. Em termos metodológicos, a pesquisa se utilizou de técnicas como observação de ocupações na Europa e no Brasil, além de revisão bibliográfica sobre o tema, em especial os textos desenvolvidos pelo SqEK e o NuPed. A dissertação explora o caso das ocupações europeias Vall de Can Masdeu, e bancos expropriados, localizados em Barcelona; Christiania, em Copenhagen; Regenbogenfabrik, em Berlim; e 59 Rivoli, em Paris; e, por fim, o exemplo brasileiro do MNLM e sua ocupação carioca Manoel Congo. Espera-se demonstrar que as ocupações tratam de práticas espaciais emancipatórias, ajudam na conscientização e emancipação das pessoas, levando-as a exigir mais do que a satisfação das carências “não radicais”, entendendo que as necessidades radicais são parte fundamental da vida do ser humano.

Palavras-chave: Ocupação de imóveis. Imóveis ociosos. Valor de uso. Necessidades radicais. Práticas espaciais. Squat.

ABSTRACT

Squatting empty buildings is an alternative access to housing of extreme relevance in some countries, especially in the recent decades, with the intense commercialization of cities and the rise of real estate speculation. About it, the squats can be understood as a result of both spoliation and subversive actions and or contestatory, made of/by the workers. The major concern of this paper is a specific type of occupation: the urban squat, resulting from the association between individuals with the aim of a building. Each place has a specific rationality, resulting from their social conditions, political, economic and cultural. It was observed that, in Europe, the squats contains multiple senses, in addition to the issue of housing, dealing with new forms of management and socialization as alternatives to socioeconomic relations forged in capitalism. In methodological terms, the research used techniques such as observation of squats in Europe and in Brazil, as well as a review of the literature on the subject, in particular the texts developed by SqEK and the NuPed. The dissertation explores the case of squats Vall de Can Masdeu, Can Vies and banks expropriated, located in Barcelona; Christiania in Copenhagen; Regenbogenfabrik, in Berlin; 59 Rivoli, Paris; and, finally, the example of Brazilian MNLM’s squat Manoel Congo, in Rio de Janeiro. It is expected, with this dissertation, show that squats are emancipatory spatial practices, and help in raising awareness and empowering people, leading them to demand more than the satisfaction of the "no radical" need to understand that the radical needs are key for human being .

Keywords: Squat. Empty buildings. Radical needs. Spatial practices.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fotografia 1– CSA Can Vies após o despejo: um dia após ...... 56 Fotografia 2 – CSA Can Vies após o despejo: quatro dias após ...... 56 Fotografia 3 – CSA Can Vies em reconstrução: segundo dia ...... 56 Fotografia 4 – CSA Can Vies em reconstrução: uma semana ...... 56 Fotografia 5 – Entrada do Banc Expropiat ...... 57 Fotografia 6 – Pôster de apoio ao Banc ...... 57 Fotografia 7 – Entrada do Ateneu La Porka ...... 58 Fotografia 8 – Entrada do Ateneu La Porka com membros do SqEK ...... 58 Fotografia 9 – Cartaz feminista no Ateneu La Porka ...... 59 Fotografia 10 – Casal Tres Lliris ...... 59 Fotografia 11 – Aftersquat 59 Rivoli: escadaria ...... 62 Fotografia 12 – Aftersquat 59 Rivoli: fachada...... 62 Fotografia 13 – Vall de Can Masdeu: o edifício okupado e parte de suas hortas...... 64 Fotografia 14 – Área de cultivo do Vall, com a cidade de Barcelona ao fundo ...... 66 Fotografia 15 – Símbolo okupa no topo do edifício de Can Masdeu...... 67 Fotografia 16 – Regenbogenfabrik, em 1981, durante a ocupação ...... 72 Fotografia 17 – Regenbogenfabrik, em 1982, no início da recuperação ...... 72 Fotografia 18 – Regenbogenfabrik, em 2009, com área recuperada ...... 73 Fotografia 19 – Uma festa na Regenbogenfabrik, em 2013 ...... 73 Fotografia 20 – Exemplos de edificações existentes em Christiania: antigos edifícios militares ...... 77 Fotografia 21 – Exemplos de edificações existentes em Christiania: casas construídas ...... 77 Fotografia 22 – Cartaz com as regras de Christiania ...... 78 Fotografia 23 – Um dos inúmeros cartazes espalhados por Christiania ...... 78 Fotografia 24 – Placa informando as regras e os limites do Green Light District...... 79 Fotografia 25 – Bicicletas produzidas em Christiania ...... 79 Fotografia 26 – Protesto em imóveis vazios, em Salvador ...... 88 Fotografia 27 – Símbolos okupa e anarquista em imóvel no Morro da Conceição.... 89 Fotografia 28 – Ocupação Edith Stein, localizada na Lapa, Rio de Janeiro ...... 90 Fotografia 29 – Ocupação Inês Etienne, localizada na Lapa, Rio de Janeiro ...... 90

Fotografia 30 – Antiga ocupação Carlos Marighella ...... 92 Fotografia 31 – Pixação em ônibus no Rio de Janeiro...... 93 Fotografia 32 – Edifícios construídos pelo PMCMV na Colônia Moreira ...... 94 Fotografia 33 – Casas do condomínio Esperança, na Colônia Juliano Moreira...... 96 Fotografia 34 – Fachada da Manoel Congo, no Rio de Janeiro ...... 104

Imagem 1 – Logo da campanha Obra Social La PAH, da PAH...... 53 Imagem 2 – Logo da campanha Stop Desahucios, da PAH ...... 53 Imagem 3 – Logo da Cooperativa Liga Urbana, do MNLM-RJ ...... 103 Imagem 4 – Convite para comemoração na ocupação Manoel Congo ...... 103 Imagem 5 – Convite para comemoração na ocupação Mariana Crioula ...... 103

Mapa 1 – Localização das ocupações visitadas em Barcelona...... 60 Mapa 2 – Localização da Regenbogenfabrik, em Berlim...... 75 Mapa 3 – Localização de Christiania em Copenhagen...... 82 Mapa 4 – Centro do Rio de Janeiro, com alguns serviços e ocupações ...... 109

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANAMPOS - Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais BNH - Banco Nacional da Habitação CEF - Caixa Econômica Federal CMP - Central de Movimentos Populares CONAM - Confederação Nacional de Associações de Moradores CSA - Centro Social Autogestionado CSOA - Centro Social Okupado Autogestionado CSOAs - Centros Sociais Okupados Autogestionados DAL - Droit au Logement FAR - Fundo de Arrendamento Residencial FEHIS RJ - Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social do Rio de Janeiro FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FIST - Frente Internacionalista dos Sem-Teto FLM - Frente de Luta pela Moradia FLP - Frente de Luta Popular FNHIS - Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social INSS - Instituto Nacional do Seguro Social ITERJ - Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro MFST - Movimento das Famílias Sem Teto MLB - Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas MMC - Movimento de Moradia do Centro MMRC - Movimento de Moradia da Região Centro MNLM - Movimento Nacional de Luta pela Moradia MNLM-RJ - Movimento Nacional de Luta pela Moradia - Rio de Janeiro MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto MTSTRC - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Região Central NuPeD - Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial NUTH - Núcleo de Terras e Habitação PAH - Plataforma de Afectados por la Hipoteca PCS - Programa Crédito Solidário

PIC - Punt d’Interacció de Collserola PMCMV - Programa Minha Casa, Minha Vida PMCMV-E - Programa Minha Casa, Minha Vida Entidades PNA - Programa Novas Alternativas PNHR - Programa Nacional de Habitação Rural PSH - Produção Social do Habitat SqEK - Squatting Europe Kollective UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro ULC - Unificação das Lutas dos Cortiços UNMP - União Nacional por Moradia Popular

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 15 1.1 Justificativa e questões ...... 19 1.2 Metodologia ...... 21 1.3 Estrutura ...... 25 2 PONTO DE PARTIDA: PRESSUPOSTOS DA ANÁLISE ...... 27 2.1 Os valores de uso e de troca e a construção do espaço urbano ...... 27 2.2 De carências a necessidades radicais ...... 34 2.3 Movimentos sociais urbanos e as ocupações com projetos políticos .... 36 3 OKUPAS, SQUATS, BESETZEN HÄUSE E FRISTADEN ...... 46 3.1 Ocupação por privação, a forma mais comum de se okupar ...... 49 3.1.1 O caso espanhol da PAH ...... 52 3.2 As ocupações empresariais ...... 53 3.2.1 Os Centros Sociais Okupados ...... 54 3.2.1.1 Novos modelos de centros sociais: os bancos expropriados ...... 56 3.2.2 As ocupações de artistas em Paris ...... 61 3.3 As ocupações como estratégia de habitação alternativa: o exemplo do Vall de Can Masdeu, Barcelona ...... 63 3.4 As ocupações conservacionistas: o exemplo da Regenbogenfabrik, em Berlim ...... 69 3.5 De ocupação a fristaden: Christiania, Copenhagen ...... 76 4 OCUPAÇÕES BRASILEIRAS: DA PRIVAÇÃO ÀS NECESSIDADES RADICAIS? ...... 83 4.1 A questão habitacional no Brasil ...... 84 4.2 O contexto do “desmanche” e as ocupações no Brasil ...... 86 4.3 A relação com o Estado brasileiro: da repressão à aceitação? ...... 91 4.4 O MNLM: surgimento, objetivos e atuação ...... 101 4.4.1 A ocupação Manoel Congo, no Rio de Janeiro ...... 103 4.4.1.1 Organização da ocupação ...... 104 4.4.1.2 Localização da ocupação: aspecto importante ...... 106 4.4.1.3 Legalização e financiamento ...... 107 5 CONCLUSÃO ...... 110

REFERÊNCIAS ...... 113 ANEXOS ...... 121 ANEXO A – Folder de Christiania com um mapa simplificado da área ...... 121

15

1 INTRODUÇÃO

Em 2004, em Barcelona, na Espanha, entrei em contato com o universo okupa, primeiro através de festas e eventos em Centros Sociais Okupados Autogestionados (CSOAs) e, em seguida, em casas e apartamentos okupados por conhecidos e amigos. Uma experiência desconhecida e instigante. Pensava, à época, que este tipo de movimento era exclusivo da Europa, mas de volta ao Brasil descobri que aqui também existiam movimentos de ocupações, porém com características bem diferentes das conhecidas em Barcelona. No contexto europeu, as ocupações começaram a ganhar destaque nos anos 1960, durante a época de expansão da contracultura1. No Brasil, porém, as ocupações – conforme nosso entendimento, a ser explicado adiante – começaram a se destacar a partir dos anos 1990, ganhando mais força com a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, quando se estabeleceram instrumentos urbanísticos com intuito de garantir a função social da propriedade. Deve-se ressaltar, primeiramente, que as ocupações são uma alternativa de acesso à moradia de extrema relevância em países, como o Brasil, onde se acumula nas grandes cidades um grande contingente de imóveis ociosos2. Porém, ao invés de incentivadas – através de políticas de desapropriação e concessão da propriedade ou de subsídios para a compra e reforma do imóvel –, elas têm sido combatidas no Brasil, muitas vezes com violência pelo Estado3, em especial nos últimos anos, quando se iniciou a preparação das cidades para grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016. Durante as últimas décadas o acesso a imóveis, especialmente os urbanizados, em países capitalistas, tem sido dificultado pela intensa mercantilização das cidades e, consequentemente, pelo aumento indiscrimidado da especulação imobiliária. Estados e mercados fracassaram no seu papel de locadores do espaço para todos os segmentos sociais, permitindo o surgimento de

1 Aqui entendida como a contestação social dos valores e regras instituídos pela cultura ocidental. 2 Periodicamente até mesmo a grande mídia publica matérias sobre o assunto, como a edição de 31 de agosto de 2015 do jornal O Globo: afirma que o país tem mais de 6 milhões de imóveis desocupados (VALENTE; CARNEIRO, 2015). 3 A respeito, ver o documentário “Atrás da Porta”, de Vladimir Seixas (2010), que mostra a ocupação e o desalojamento do “Guerreiros do 234”, no centro da cidade do Rio de Janeiro. 16

inúmeros imóveis vazios e, ao mesmo tempo, de pessoas sem casa (MARTÍNEZ, PIAZZA e PRUIJT, 2013, p.11). Assim, a própria população procura criar alternativas de acesso à habitação, sendo a ocupação de imóveis vazios uma delas. Na Europa, as ocupações de edifícios ociosos contêm sentidos múltiplos. O movimento squatter – nome dado ao movimento em países de língua inglesa4 – vai além da questão da moradia, lidando com novas formas de gestão e socialização como alternativas às relações socioeconômicas forjadas no capitalismo. As ocupações podem ser entendidas como resultado da espoliação5 e de ações subversivas e contestatórias do/pelo trabalhador, a partir do momento que ele se dá conta de sua situação social e econômica, inspiradas e/ou empreendidas por movimentos sociais. Neste sentido, as ocupações possuem potencial para o empoderamento e a ‘liberação cognitiva’ da população, já que permitem a visualização de oportunidades e de apoio coletivo (PRUIJT, 2013, p.17). É importante compreender como essas ocupações se diferenciam das favelas e loteamentos, estabelecidos historicamente como resultado de ocupações graduais de terras por famílias pobres, fenômenos que sempre existiram e caracterizam parte da urbanização de diversos países, entre eles o Brasil. Neles, as organizações associativas – como as associações de vizinhos ou de bairros – surgiram posteriormente à ocupação propriamente dita. Neste sentido, observamos a existência de inúmeras ocupações desorganizadas6 em prédios vazios.

Esta gigantesca ilegalidade não é fruto da ação de lideranças subversivas que querem afrontar a lei. Ela é resultado, de um lado, de um processo de urbanização/industrialização baseado em baixos salários e, de outro, de uma tradição de especulação fundiária alimentada por investimentos

4 É interessante notar que a palavra utilizada é diferente da que designa os movimentos de ocupação de praças e ruas a partir da crise de 2008 na Europa e nos Estados Unidos: occupy, o que mostra diferenciação entre os dois movimentos. Porém, os movimentos occupy (conhecido como 15M na Espanha) e squatter estão ligados, sendo diversas as manifestações de apoio mútuo, como o caso do 15M e diversos okupas. Ressaltamos que algumas vezes nesse trabalho poderemos utilizar as palavras estrangeiras referentes ao universo das ocupações, por isso um breve glossário segue: em inglês, squat significa ocupação, squatting é ocupar e squatter se refere ao ocupante (quem ocupa); em espanhol se utiliza a letra “k” no lugar de “c” e “q” como forma de protesto e de inconformidade, assim, ocupar é escrito como okupar, ao passo que uma ocupação pode ser designada como okupación ou como okupa (que também pode se referir ao próprio ocupante). 5 Espoliação entendida como a sobre-exploração do trabalhador produzida pelas condições precárias de reprodução social na cidade (Kowarick, 1979). 6 No sentido de não possuírem uma organização política “tradicional”, sendo fruto da necessidade econômica do trabalhador. Podemos entendê-las como “ocupações organizadas” pelo capitalismo, na medida em que ele cria trabalhadores hiperprecariados sem acesso às necessidades básicas, como moradia. 17

públicos regressivos e concentrados, além de uma legislação, cuja forma de aplicação exclui e segrega (MARICATO, 2011, pp. 155-156).

O objeto deste trabalho é um tipo específico de ocupação, a ocupação urbana de imóveis ociosos, fruto de uma associação entre pessoas com o intuito de ocupar um imóvel.

Ocupação urbana é viver em - ou usar - uma habitação, sem o consentimento do proprietário. Ocupantes tomam edifícios com a intenção de utilização a relativo longo prazo. Ocupação urbana pode ser diferenciada de ocupações em terrenos baldios. [...] O “relativo longo prazo” significa que a ocupação tem a intenção de fazer uso a longo prazo, porém não necessariamente pelas mesmas pessoas. De fato, em algumas ocupações os moradores mudam rapidamente (PRUIJT, 2013, p.17-21, tradução nossa)7.

No Brasil é comum designar ocupações como favelas8 ou cortiços, porém, estas duas tipologias habitacionais, atualmente, estão submetidas à lógica mercantil9, enquanto as ocupações a serem estudadas neste trabalho são ações

7 “Urban squatting is living in – or otherwise using – a dwelling without the consent of the owner. Squatters take buildings intending relatively long-term use. Urban squatting can be distinguished from squatting on vacant land. [...] Relatively long-term use’ means that the squatting action is intended to make relatively long-term use possible, though not necessarily by the same people. In fact, in some squats inhabitants and users come and go in rapid succession” (PRUIJT, 2013, p.17-21). 8 Como exemplo, citamos a ocupação do edifício e terreno da empresa Oi, que logo começou a ser conhecida como “Favela da Telerj”. A “Torre de David” – caso famoso de ocupação no centro de Caracas (Venezuela) – é conhecida como a maior favela vertical do mundo; trata-se de uma torre de 45 andares, abandonada em 1994, antes do término de sua construção. Chegou a abrigar mais de 3 mil pessoas, que começaram a ser removidas em julho de 2014 pelas autoridades venezuelanas. 9 Apesar de muitas favelas e cortiços serem ocupações de edifícios ou terrenos vazios, elas possuem, em sua maioria, um caráter mercantil, no qual se aluga ou se vende uma casa ou cômodo, enquanto em okupas isso não ocorre. Não negamos, porém, a possibilidade de okupas se tornarem cortiços ou favelas. Gondim (2009) afirma que, em decorrência da falta de uma discussão conceitual rigorosa, “favela” é entendida como todas as formas de morar dos pobres urbanos, porém, isto não se adequaria às especificidades e diferenciações entre os grupos e lugares. Este aspecto poderia explicar a designação comum de ocupações como favelas. Conforme salienta Piccini (2004), são diversas as definições de cortiços, mas aqui adotamos a utilizada pela autora em seu livro “Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro urbano de São Paulo”, entendendo-os como habitação precária de aluguel, com algumas características como ocupação excessiva, subdividida em vários cômodos que possuem diversas funções sendo exercidas, acesso e uso comum de espações não edificados e instalações elétricas e sanitárias e circulação e infraestrutura precárias. Em uma tentativa de definição, o Observatório das Favelas (2009) considera favela como parte constituinte da cidade, caracterizada por alguns aspectos específicos: “insuficiência histórica de investimentos do Estado e do mercado formal, principalmente o imobiliário, financeiro e de serviços; forte estigmatização sócio-espacial, especialmente inferida por moradores de outras áreas da cidade; edificações predominantemente caracterizadas pela autoconstrução, que não se orientam pelos parâmetros definidos pelo Estado; apropriação social do território com uso predominante para fins de moradia; ocupação marcada pela alta densidade de habitações; indicadores educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do conjunto da cidade; níveis elevados de subemprego e informalidade nas relações de trabalho; taxa de densidade demográfica acima da média do conjunto 18

políticas e contestatórias – de consciência política, seja contra o princípio da propriedade privada ou ao uso dado a determinado lugar. Admite-se, porém, que uma ocupação possa adquirir caráter mercantil, por isso o trabalho de formação política dos ocupantes é importante. Entendemos que nenhuma atividade é 100% contestatória, pois também almeja a reprodução da vida, o atendimento de necessidades individuais; mas também não é totalmente mercantil, pois sempre provoca, pelo simples fato de existir, um outro olhar ao redor, uma nova forma de se apropriar do mundo. Também precisamos diferenciar as ocupações de imóveis estudadas neste trabalho das ocupações de espaços públicos subutilizados – como viadutos e praças – que têm se espalhado pelas grandes cidades brasileiras. Estas ocupações se assemelham às ocupações temporárias para festas, comuns na Europa. São, portanto, reações à falta de espaços públicos de lazer e aos altos preços de bares, discotecas e restaurantes. São também, muitas vezes, temporárias e espontâneas, e, até mesmo, autorizadas pelo Estado. Como exemplos podemos citar os casos do “Buraco da Minhoca”, em São Paulo, o “Leão Etíope do Méier” e o “Faz na Praça”, no Rio de Janeiro, e o “Viaduto de Santa Tereza”, em Belo Horizonte. Embora todos os tipos de ocupação sejam relevantes, pois significam formas de “viração” dos trabalhadores hiperprecariados em um sistema que os exclui e renega, neste trabalho buscaremos mostrar formas de ocupações que apresentam projetos políticos, pois acreditamos que nelas haja um maior nível de engajamento contra à propriedade privada, à especulação imobiliária e ao próprio sistema capitalista. Ademais, aqui consideraremos apenas as ocupações de edifícios (e seus terrenos adjacentes), deixando de lado a ocupação de terrenos, pois as primeiras costumam possuir localizações mais centrais e por isso mesmo, provocam conflitos urbanos com maior visibilidade. A ocupação de terrenos, por sua vez, tende a ocorrer em áreas periféricas da cidade ou de expansão da franja urbana e, por vezes, possui caráter rururbano – uma mescla de características urbanas e rurais.

da cidade; ocupação de sítios urbanos marcados por um alto grau de vulnerabilidade ambiental; alta concentração de negros (pardos e pretos) e descendentes de indígenas, de acordo com a região brasileira; grau de soberania por parte do Estado inferior à média do conjunto da cidade; alta incidência de situações de violência, sobretudo a letal, acima da média da cidade; relações de vizinhança marcadas por intensa sociabilidade, com forte valorização dos espaços comuns como lugar de encontro.” (OBSERVATÓRIO DAS FAVELAS, 2009, pp. 22-23). 19

1.1 Justificativa e questões

Se a ocupação é considerada como uma ação direta contra o capitalismo, tanto por atacar a noção da propriedade privada, quanto por permitir aos participantes a oportunidade de entrar em atividades de sua própria escolha, em vez de serem obrigados a trabalhar de forma a pagar o aluguel, é por isso que os governantes caracterizam os ocupantes como algo "ruim" (DEE, 2013, p. 257, tradução nossa)10.

Para responder à pergunta “qual a legitimidade das ocupações?” é importante entender a diferença entre ocupação e invasão, ações diretas distintas. A mídia e grande parte da população denominam, de forma pejorativa, a ação de ocupação de imóveis urbanos ociosos como invasão11. Segundo Miagusko (2012) e Souza e Teixeira (2009), a palavra “invasão” demonstra a forte presença da lógica policial e liberal na nomeação da ação e do confronto dos direitos “à propriedade” e “à moradia”, em que o primeiro prevalece sobre o segundo, além de buscar criminalizar a ação, já que “invasão” designa a apropriação (indevida) de um imóvel que cumpre, minimamente, sua função social. O termo “ocupação”, por sua vez, se caracteriza pela posse e apropriação de um imóvel ocioso – abandonado ou vazio – que não está exercendo a função social da propriedade. Assim, “invade-se” um espaço com função e “ocupa-se” um espaço vazio, sem função12. No âmbito habitacional popular, favelas, bairros periféricos e conjuntos habitacionais são muito estudados dentro e fora do Brasil, porém a ocupação de imóveis vazios e/ou abandonados, como uma “nova” forma de acesso à moradia, ainda é pouco conhecida. Assim, a criação de redes entre okupas, ativistas e acadêmicos é essencial. No Rio de Janeiro podemos citar o “Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial” (NuPeD) – vinculado ao Departamento de

10 “If squatting is considered as direct action against capitalism, both because it attacks the very notion of private property and because it allows participants the opportunity to indulge in activities of their own choosing rather than being compelled to work so as to pay their rent, it is of course clear why those in positions of power would want to characterize squatters as ‘bad’” (DEE, 2013, p. 257). 11 Podemos citar o exemplo de Caco Barcelos que, durante o programa “Profissão Repórter” (exibido em 28 de julho de 2014, pela Rede Globo), ignorou a advertência de seu repórter associado e continuou a chamar os ocupantes de invasores. Ainda, na chamada do programa, o jornalista diz “como nasce uma favela”, referindo-se ao início da ocupação de um terreno. 12 Souza; Teixeira (2009) apontam que outros termos também são utilizados pelo movimento de sem- teto no Brasil: acampamento e assentamento. Acampamento se refere ao momento inicial da ocupação de um terreno e possui caráter provisório; sendo assentamento o estágio mais avançado da ocupação, com caráter mais permanente. O termo “ocupação” pode designar tanto a ação de adentrar um imóvel, como a territorialização mais permanente, sendo esta última designação a adotada para imóveis verticais ocupados. Assim, as formas de ocupação estudadas neste trabalho estão ligadas a este último significado. 20

Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenado pelo Prof. Dr. Marcelo Lopes de Souza –, que desenvolve extensa pesquisa e trabalho acerca das ocupações na cidade. É importante destacar a existência do coletivo Squatting Europe Kollective (SqEK), uma rede composta por acadêmicos e ativistas, em sua maioria europeus, que se uniram visando um melhor entendimento da história e do desenvolvimento dos movimentos de ocupação. Segundo o site do coletivo, trata-se de

una red de investigación centrada en el movimiento okupa. Nuestro objetivo es generar un conocimiento fiable y preciso sobre este movimiento no solamente como un fin en sí mismo, sino también como un recurso público, especialmente para militantes okupas y activistas en general. Compromiso crítico, transdisciplinariedad y un enfoque comparativo son los pilares básicos de nuestro proyecto (SQUATTING EUROPE KOLLECTIVE, 2010)

Para o coletivo, a ocupação vai além de satisfazer as necessidades de moradia e de espaços de sociabilidade, trata-se de uma prática de diferentes modelos de organização do trabalho e da tomada de decisões internos, mais participativos e horizontais, indo também além da dimensão interna da ocupação, protestando em conjunto com movimentos sociais maiores sobre diversos temas, como contra a especulação urbana, o racismo, a guerra etc. Assim, os ideais de ocupação do coletivo estão de acordo com o que irá ser proposto neste trabalho, como pertencentes a um grupo de práticas espaciais insurgentes. O SqEK é um coletivo socialmente comprometido, que se disponibiliza como um recurso social, através de uma participação ativa no debate público sobre o tema. Neste sentido, o coletivo busca romper com a dicotomia entre investigadores e sujeitos/objetos (no caso, ativistas okupas) em prol de uma aproximação entre os dois para um melhor desenvolvimento não só do estudo como também da própria ação de okupar. Assim, o coletivo também luta pelos direitos de ocupação. A própria criação e existência deste coletivo demonstra que não só no Brasil, como em diversos países, a temática das ocupações continua sendo marginal, sendo necessária a congregação transnacional e interdisciplinar para um melhor entendimento e estudo da temática. As ocupações se aproximam também da noção de Produção Social do Habitat (PSH), proposta por Rodríguez (2007) e entendida como uma das formas de autoprodução encontrada pelos setores populares para suprir as necessidades e demandas não satisfeitas pela produção capitalista de moradia e de habitat – que 21

inclui, também, o acesso a serviços e infraestrutura. Assim, por meio da PSH buscam-se novas formas de gestão e de produção, autônomas e diferentes às do modelo dominante, caracterizando-se pela autoprodução nos âmbitos habitacional e do habitat (cidade). Para Rodríguez (2007), a PSH é um conceito abrangente, capaz de incluir processos que combinam o componente individual-familiar e o componente coletivo- organizado, com o objetivo de “satisfazer as necessidades do habitar”, colocando nas mãos dos atores o poder de decisão da autoprodução social. Assim, a PSH insere-se na lógica da necessidade, ou seja, não prioriza a finalidade do lucro (ou o valor de troca), mas a necessidade do uso (ou o valor de uso)13, sendo uma expressão do ato de habitar e não um objeto. A gestão autônoma da produção ligada às ocupações é uma ação de ruptura das regras do sistema, estabelecendo-se por meio de ações que estão parcialmente fora do sistema. Neste sentido, o habitat é algo que se conquista, sendo a PSH um processo de iniciativa popular e de autogestão pela população historicamente excluída. A PSH, portanto, se caracteriza pelo protagonismo da própria população na produção da moradia e do espaço urbano. Estas investigações prévias levaram à construção de algumas questões que norteiam a pesquisa, mas que não serão totalmente respondidas neste trabalho: As ocupações têm o mesmo sentido em diferentes lugares?; existem diferentes configurações de ocupações? Quais são?; as ocupações buscam cumprir que tipo de carências/necessidades?; quem são as pessoas que necessitam ocupar para viver?; as ocupações apresentam possibilidade emancipatória para o homem?; as ocupações podem ser entendidas como anti-capitalistas?.

1.2 Metodologia

Em termos metodológicos, a pesquisa se utilizou de técnicas como observação de ocupações na Europa e no Brasil, busca no portal de teses da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e levantamento bibliográfico sobre o tema. Os artigos, livros e site do SqEK serviram como apoio

13 É importante ressaltar que Rodríguez (2007) não descarta a possibilidade de que lógicas rentistas sejam adotadas com o tempo dependendo, porém, dos contextos sociopolíticos em que se desenvolvem. 22

bibliográfico e material para o desenvolvimento da dissertação, assim como o material (artigos, dissertações e teses) desenvolvido por pesquisadores do NuPed. Devido ao seu prévio conhecimento de ocupações na Europa, onde entrou em contato com okupas pela primeira vez, a autora optou por trazê-los à sua pesquisa. Por diversas vezes a dúvida entre se concentrar em ocupações europeias e apenas trazer exemplos brasileiros permeou a direção a ser dada a esta dissertação. Embora a decisão tenha sido pelo privilégio às ocupações européias, fez-se questão de incluir o caso brasileiro da Manoel Congo, pela importância desta ocupação no Movimento Nacional de Luta pela Moradia do Rio de Janeiro (MNLM- RJ), sendo um símbolo e vitória dos sem-teto e dos movimentos de moradia. Neste sentido, a autora teve a oportunidade de visitar, entre maio e julho de 2014, quatro experiências de ocupações europeias: Vall de Can Masdeu, localizada em Barcelona; Christiania, em Copenhagen; Regenbogenfabrik, em Berlim; e 59 Rivoli, em Paris. Também esteve presente nos momentos de desocupação e de consequente recuperação do Centro Social Autogestionado Can Vies, em Barcelona. A pesquisadora ainda pode contar com a participação no encontro anual do SqEK, realizado de 20 a 25 de maio de 2015, na cidade de Barcelona, na Espanha. O workshop internacional teve como tema “Ocupação de casas, centros sociais e espaços de trabalho: workshop de alternativas de autogestão ao capitalismo”14. Na oportunidade a autora apresentou trabalho relacionado à pesquisa da dissertação e pode visitar mais ocupações na cidade, como três bancos ocupados: Ateneu La Porka, El Banc Expropiat de Gràcia e Ateneu L’Entrebanc; a e voltar ao Vall de Can Masdeu. Estes encontros ocorrem desde 200915 e a cada ano cresce o número de representantes e suas origens: em 2012 houve pela primeira vez a participação de estadunidenses e no ano de 2015, de representantes do leste europeu (Polônia e República Checa) e da América Latina (Brasil e México), além do Canadá. A escolha das ocupações a serem visitadas ocorreu por meio de leituras prévias de diferentes casos, o que a levou a escolher determinadas cidades – com maior história de ocupações – para serem visitadas em meados de 2014. Em sua

14 No original: Squatting Houses, Social Centers and Workplaces: a workshop on self-managed alternatives to capitalism. 15 Os encontros ocorreram em: Madrid (2009 e 2012), Milão (2009), Londres (2010), Berlim (2011), Amsterdã (2011), Copenhagen (2011), Nova York (2012), Paris (2013) e Roma (2014). 23

análise, a autora verificou que os casos se encaixavam na tipologia de configurações proposta por Pruijt (2013) – a ser explorada no capítulo 2 –, o que acabou por definir novos rumos à pesquisa e à estrutura da dissertação. Isto não significa, porém, que no Brasil não existam essas configurações de ocupações. É importante ressaltar que em todos os casos não foram feitas entrevistas pré-planejadas, mas a autora manteve um diário de campo para todas as situações. Da mesma forma, a autora fotografou os ambientes e, quando possível, as pessoas. Estas fotos servem como ilustração do que é dito nesta dissertação. Em virtude do uso por alguns acadêmicos (e da mídia) das ocupações como casos de estudo, sem interesse real nos projetos e ideias envolvidos, muitos ocupantes não confiam nesses segmentos16. Assim, a autora optou por fazer das visitas algo mais natural – na medida do possível, já que em algumas situações havia grupos de visitantes –, deixando os próprios ocupantes guiarem as conversas, falando por si mesmos e não por meio de perguntas iguais pré-formuladas. Em Can Masdeu, a autora esteve, acompanhada de amigos, pela primeira vez em 08 de junho de 2014, um domingo, tradicional “dia aberto”, quando há uma visita pela ocupação, almoço e atividades desenvolvidas no centro social. Em 24 de maio de 2015, devido a atividades relacionadas ao workshop do SqEK, a autora pode voltar à ocupação, também em um domingo. Igual ao ano anterior, houve um tour, almoço e atividades no centro social, porém o tour – apenas com membros do SqEK, entre eles o “guia” Claudio Cattaneo, um morador do Vall – foi mais intimista e detalhado. A autora passou também esta noite na ocupação, podendo conhecer as dependências internas que não são abertas aos visitantes, como as cozinhas e os quartos. A autora passou tardes e noites em Christiania de 16 a 19 de junho de 2014, quando pôde conversar com pessoas que lá vivem ou viveram, além de frequentadores. Durante essas visitas, a autora circulou por toda a área, frequentou restaurantes e bares e durante o dia 18, em especial, pôde andar pelo espaço acompanhada de um ex-morador e sua irmã – atual moradora –, apresentados por um amigo em comum, Michael, que explicaram o funcionamento dos aparatos coletivos e das reuniões.

16 Reclamação recorrente no workshop do SqEK, conforme observado pela autora. 24

A Regenbogenfabrik organiza visitas guiadas em alemão para grupos, porém, pelo problema do idioma, ofereceram uma alternativa à autora: uma visita guiada por uma moradora que fala inglês, Christine Ziegler. O encontro ocorreu na tarde do dia 03 de julho de 2014, e durou cerca de duas horas. Christine, moradora desde o início da ocupação, mostrou todas as dependências e contou a história, funcionamento e problemas da ocupação. Em 59 Rivoli a autora fez apenas uma visita, por conta própria, em 11 de julho de 2014, na qual pode observar diferentes ateliês e exposições. Com relação à ocupação Can Vies a autora participou de manifestações contra o despejo nos dias 26, 27, 28 e 31 de maio de 2014, além da reconstrução no dia 01 de junho. Nesses momentos, pode observar o apoio dado ao projeto por pessoas de diferentes lugares da cidade e idades. A amiga Paola – à época, vizinha à ocupação – avisou à autora do início do despejo, possibilitando o acompanhamento de grande parte da ação. A visita à Kasa de la Muntanya, realizada em 22 de maio de 2015, ocorreu por meio do SqEK, que organizou, em conjunto com os ocupantes, uma visita guiada e um jantar em seu restaurante. Em relação aos bancos ocupados, o SqEK organizou visitas para os participantes de seu workshop: do Ateneu La Porka em 21 de maio de 2015 e do El Banc Expropiat de Gràcia 22 de maio de 2015. Em ambos os casos, ocupantes e participantes dos centros sociais tiveram conversas com o grupo, narrando suas experiências e respondendo a indagações. No dia 25 de maio de 2015, a reunião interna do SqEK ocorreu no Ateneu L’Entrebanc, proporcionada por Galvão – membro do SqEK e ativista do Entrebanc. Após a reunião, houve um almoço coletivo com outros envolvidos com o centro social. Com relação às ocupações no Rio de Janeiro, a autora pode visitar, durante o período de sua pesquisa, duas ocupações do MNLM-RJ: Mariana Crioula, na Gamboa, e Manoel Congo, na Cinelândia. Na primeira, por meio da professora- orientadora Luciana Lago, as visitas ocorreram em duas reuniões do grupo com uma possível arquiteta para o projeto de requalificação do imóvel, Beatriz Petrus. Na Mariana Crioula a autora conheceu duas coordenadoras do movimento e moradoras da Manoel Congo: Lurdinha e Elisete. Ambas foram solícitas ao pedido de conhecer a ocupação e, assim, a autora visitou a Manoel Congo, já em reforma. 25

O maior problema enfrentado pela autora foi adequar as configurações propostas por Pruijt (2013) à realidade brasileira e como incluir a ocupação Manoel Congo nessa tipologia. Afinal, a tipologia apresentada faz parte de um contexto cultural, social, econômico e político determinado, o europeu, que difere muito do contexto brasileiro. Sabemos que a tipologia dessas configurações não é exaustiva e que uma ocupação pode pertencer a mais de uma configuração. Em sua pesquisa, porém, a autora optou por enquadrar cada ocupação abordada na configuração que melhor atendesse às suas características, com exceção da Manoel Congo, que é tratada em um capítulo a parte, inserida no contexto habitacional brasileiro e dialogando com as configurações de Pruijt.

1.3 Estrutura

A dissertação está estruturada em cinco capítulos: o primeiro, que inclui esta seção, apresenta o objeto, a justificativa, as questões e a metodologia. O segundo capítulo apresenta a teórica para o desenvolvimento da dissertação. Assim, começamos apresentando conceitos-chave para o entendimento das ocupações: valores de uso e de troca, carências e necessidades radicais. Em seguida, entramos na discussão de movimentos sociais, buscando definir o objeto do trabalho como um movimento social urbano e uma prática espacial emancipatória. Por fim, adentramos em características particulares das ocupações, por meio de uma tipologia desenvolvida por Pruijt (2013). O terceiro capítulo exploramos as características que fazem as ocupações adquirirem cada vez mais importância no contexto dos movimentos sociais urbanos europeus. Assim, através da apresentação de diferentes tipos de ocupações, demonstramos os principais aspectos e diferenças entre as configurações: (i) por privação, (ii) empresarial – com foco nos Centros Sociais Okupados (CSOs) –, (iii) ocupação como estratégia de habitação alternativa e (iv) ocupação conservasionista. Para finalizar, apresentamos o caso de Christiania, uma ocupação que hoje é considerada uma “cidade-livre”. No quarto capítulo apresentamos um caso de ocupação no Brasil – a ocupação Manoel Congo, no Rio de Janeiro. Contextualizamos a questão habitacional e econômica do Brasil e, por fim, apresentamos o Movimento Nacional 26

de Luta pela Moradia (MNLM): sua origem, objetivo e atuação, esta através do caso da ocupação Manoel Congo. Por fim, na conclusão tratamos alguns aspectos que acreditamos serem os mais importantes sobre a temática das ocupações.

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2 PONTO DE PARTIDA: PRESSUPOSTOS DA ANÁLISE

2.1 Os valores de uso e de troca e a construção do espaço urbano

Não podemos desassociar a dinâmica urbana do modo de produção capitalista. Neste sentido o capitalismo necessita da urbanização para absorver os produtos excedentes, assim, a urbanização representa um

papel ativo [...] na absorção do produto excedente que os capitalistas estão produzindo perpetuamente em sua busca pela mais-valia (HARVEY, 2012, pp. 6-7, tradução nossa)17.

Desta forma, o processo de urbanização pelo qual passamos é uma parte ativa para a obtenção da mais-valia pelos capitalistas, acompanhando uma sucessiva despossessão da grande maioria da população. Para demonstrar isto, Harvey (2012) cita o exemplo das reformas promovidas por Haussmann em Paris, no século XIX, que visavam resolver, por meio da urbanização, o problema de mais- valia gerada pelo capital e o problema do desemprego; outro exemplo seria também o modelo dos subúrbios estadunidenses empregados a partir dos anos 1960. Assim, o capitalismo busca (n)a cidade para resolver os problemas oriundos de suas crises de produção. A ocupação de imóveis ociosos é uma resposta à desigual distribuição de serviços e recursos no ambiente urbano e também à despossessão; podemos, pois, melhor compreendê-la através da atuação dos agentes produtores do espaço que buscam valores de uso e de troca distintos e irão afetar direta (ou indiretamente) a renda real da força de trabalho. Em seus estudos, Adam Smith afirmava que

a palavra VALOR [...] tem dois significados diferentes; algumas vezes expressa a utilidade de algum objeto particular e algumas vezes o poder de compra de outros bens que a posse daquele objeto transmite. O primeiro pode ser chamado ‘valor de uso’ e outro ‘valor de troca’ (SMITH, 1776, apud HARVEY, 1980, p.131).

17 “active role [...] in absorbing the surplus product that capitalists are perpetually producing in their search for a surplus value” (HARVEY, 2012, pp. 6-7).

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Harvey (1980) salienta, porém, que Marx completa (e resolve certas ambiguidades) (d)a análise de Smith propondo uma concepção relacional dos valores de uso e de troca, na qual estes só possuem significado através das relações entre si e com outros conceitos, em determinada circunstância ou situação. Neste sentido, o valor de uso serve diretamente como meio de existência ou de reprodução social, estando vinculado às nossas necessidades e ao processo de consumo. O valor de troca, por sua vez, está vinculado à proporção pela qual os valores de uso são trocados por outros; “a criação de valor de troca reside no processo social de aplicação de trabalho socialmente necessário aos objetos para criar objetos materiais (mercadorias) apropriados para o consumo (uso) pelo homem” (HARVEY, 1980, p.133); portanto, ele se vincula ao processo de produção de mercadorias que podem ser consumidas (ou usadas) pelos homens.

A mercadoria é um valor de uso, mas como mercadoria, ela em si simultaneamente não é valor de uso. Não seria mercadoria se fosse valor de uso para seu possuidor [...], é, ao contrário, não valor de uso, que é meramente depositário físico do valor de troca ou simplesmente meio de troca. O valor de uso como ativo portador de valor de troca torna-se meio de troca. A mercadoria é valor de uso para seu possuidor somente na medida em que é valor de troca. A mercadoria, por isso, tem ainda que se tornar valor de uso (...) um valor de uso para outros (MARX apud HARVEY, 1980, p. 133, grifo no original).

As mercadorias possuem, então, os aspectos de valor de uso e de valor de troca, que variam de acordo com a finalidade dada pelo seu possuidor em determinado momento: quando determinada mercadoria satisfaz a necessidade particular de alguém, ela possuirá um valor de uso, sendo este superior ao valor de troca; porém, a situação também pode ser inversa, quando o valor de uso da mercadoria está subordinado ao seu valor de troca ou à lógica mercantil. Neste sentido, a diferença é se a produção ou apropriação da mercadoria ocorre para o uso ou para a troca no mercado. Por exemplo, um imóvel possui valor de uso e valor de troca para o seu possuidor, o valor de uso será o dominante enquanto o dono não tiver interesse ou necessidade em obter mais-valia com o imóvel; entretanto, o valor de troca estará “disponível” para que o imóvel seja posto no mercado. Diante disso, observamos que o modo de produção capitalista transformou o espaço urbano em mercadoria, através da ação de diferentes agentes e de conflitos 29

de interesse18. Segundo Ribeiro (1997), atuariam neste contexto seis agentes19: o capital em geral; o capital da construção civil; o capital imobiliário; proprietários fundiários; o Estado e a força de trabalho. De forma resumida, os capitais geral e da construção referem-se ao capital produtivo, produtores de bens e com a mais-valia como fonte de lucro, através da apropriação da força de trabalho; o capital imobiliário trata-se de capital mercantil, relacionado à apropriação e circulação de bens, com o lucro garantido pela renda da terra; o proprietário atua de forma a aumentar a renda da terra, estando interessado no valor de troca do solo; o Estado atua de diferentes formas sendo, por vezes, consumidor de espaço e terra urbana e, em outras, proprietário, mas sua característica principal é a de regulação do uso do solo; por fim, os trabalhadores estão essencialmente interessados no valor de uso do solo, porém existem diferentes níveis de acesso a bens e serviços, sendo grande parte da força de trabalho responsável pela produção de seu próprio espaço. O solo urbano e suas benfeitorias (como a moradia, por exemplo) são parte essencial do espaço urbano e se conformam como mercadorias especiais, devido a alguns aspectos destacados por Harvey (1980): são imprescindíveis para a vida na cidade; possuem localização fixa, ou seja, não podem ser transportados como as demais mercadorias; mudam de mãos (proprietários) com pouca frequência; possibilitam a oportunidade de acumular riqueza; sua troca no mercado ocorre num um dado momento, mas seu uso se estende por um período de tempo; possuem diferentes usos que não são mutuamente exclusivos para o usuário. Sendo o solo urbano uma mercadoria, um objeto mercantil, um objeto a ser consumido, ele será comercializado segundo as regras do mercado de troca, da valorização do capital e da propriedade privada, possuindo um preço determinado pela regulação do mercado imobiliário, o que acarretará em seu acesso ser difícil para parte da população. Afinal, só possuem acesso à terra aqueles que possuem renda suficiente para a sua compra.

18 Harvey (1980) enumera seis agentes que atuam no mercado de moradia, com diferentes modos de determinação de valor de usos e valor de troca: os usuários de moradia; os corretores de imóveis; os proprietários fundiários; os incorporadores; as instituições financeiras e as instituições governamentais. 19 A quantidade e definição dos atores/agentes sociais e seus modos de agir se diferenciam de acordo com a perspectiva metodológica e ideológica adotada por alguém. Neste sentido, Roberto Lobato Corrêa (1989) define cinco agentes sociais que atuam no espaço urbano: os proprietários dos meios de produção, sobretudo os grandes industriais; os proprietários fundiários; os promotores imobiliários; o Estado; e os grupos sociais excluídos. 30

A atuação dos agentes e suas distintas formas de apropriação do espaço urbano influenciam significativamente nas condições de acesso ao solo (principalmente à moradia) pela população. Enquanto para os diferentes tipos de capital a cidade trata-se de um valor de troca, como forma e/ou produção de mais valia ou renda da terra; para a força de trabalho trata-se de um valor de uso, uma produção para o bem-estar, para a vida. Assim, “o que é valor de uso para um é valor de troca para outro, e cada um concebe o valor de uso diferencialmente” (HARVEY, 1980, p. 142). A lógica do capital imobiliário mercantil é transformar o solo através de inovações e infraestruturas que valorizarem a área, sendo a busca pela distinção a base deste capital. Ou seja, buscam criar novos valores de uso para obter maior valor de troca. Os proprietários também buscam o valor de troca, através da máxima valorização de suas propriedades. A mercantilização do solo urbano agrava as condições de reprodução dos trabalhadores, pela diminuição da renda real de parte da população. A partir de Harvey podemos compreender a noção de renda como “receitas que aumentam o poder do indivíduo sobre o uso de recursos escassos de uma sociedade” (HARVEY, 1980, p.41), assim, a renda real é dada por um valor além do monetário, sendo resultado de diversas condições, entre as quais a rapidez e o grau de ajustamento em um sistema, o preço de acessibilidade, o custo de proximidade e os efeitos de exteriorização. Tais condições podem ser traduzidas, respectivamente, pela velocidade em que as diferentes partes se adaptam às mudanças do sistema urbano; pelo preço que o acesso a serviços e/ou recursos sociais possuem, que se refere tanto ao custo monetário quanto ao custo emocional e social; pelos efeitos de se estar junto de algo sem se fazer uso direto dele; e, por fim, pelos efeitos positivos ou negativos (benefícios ou custos), conforme a natureza do efeito e quem é o afetado, resultantes de atividades públicas ou privadas. Segundo o autor, os efeitos de exteriorização variam conforme a complexidade do sistema urbano e, quanto maior os efeitos, maior a necessidade de interveção pública. Neste sentido, o mercado não consideraria igualmente as diferentes localizações na distribuição e consumo dos elementos do sistema urbano, não havendo, portanto, universalidade no acesso aos serviços e bens públicos. A localização é, portanto, essencial para o aceso a diversos bens, serviços ou recursos, como habitação, emprego, saúde, educação e lazer. Assim, “a mudança na forma espacial da cidade e nos processos espaciais que operam na cidade, 31

provocam mudanças na renda do indivíduo” (HARVEY, 1980, p.42). Harvey ainda afirma que muitos programas sociais elaborados pelo Estado buscam manter a distribuição de renda no sistema social, ou seja, não buscam a redistribuição de renda entre os diferentes grupos. Kowarick (1979) nos alerta para características do processo de urbanização brasileiro, mas que são comuns a diversos outros países: a associação dos problemas urbanos ao processo de acumulação capitalista e a participação diferenciada do Estado nos benefícios (bens de consumo coletivos) gerados por ele. A cidade surge como fruto da acumulação e da especulação – através de vazios urbanos. Assim, a classe trabalhadora acaba por ser “empurrada” para as periferias – aqui compreendidas para além do sentido geográfico de sua localização e, sim, como espaços de precarização, com carência e/ou ausência dos diferentes bens coletivos – enquanto as classes mais abastadas vivem em locais dotados desses bens coletivos e infraestrutura. A segregação espacial urbana, o acesso diferenciado a equipamentos e serviços urbanos, o aumento do perímetro urbano, os problemas de mobilidade e os vazios urbanos surgem como consequências de ações especulativas que visam somente aumentar o valor de troca e caberia ao Estado proporcionar uma distribuição que dimininuisse as desigualdades do sistema urbano. Porém, conforme afirma Ribeiro (1997), o Estado é uma condição para a reprodução ampliada do capital, pois regula e garante a cooperação entre as empresas no mercado, além de socializar os custos da manutenção do sistema capitalista. Para Corrêa (1989), o espaço urbano possui características antagônicas, sendo ao mesmo tempo, fragmentado e articulado, reflexo e condição social, que são vivenciados de formas diferentes entre as pessoas, adquirindo, portanto, dimensões e significados variáveis para cada um, o que leva o espaço a se caracterizar também como conjunto de símbolos e campo de lutas. Assim, o espaço urbano é constituído por distintos usos do solo e possui a desigualdade como característica marcante e definidora. Diante dessa conjuntura, cabe à força de trabalho, em especial a que ocupa os estratos mais baixos na divisão social do trabalho, solucionar os problemas de seu ambiente construído, lutando por melhores condições de moradia, transporte, saúde, educação. É neste contexto de tensão social que os movimentos sociais urbanos adquirem importância, pois será, principalmente, através deles que as classes excluídas do processo de apropriação do espaço urbano irão se manifestar. 32

Concordamos com Harvey (2012) que a luta anti-capitalista proposta por Marx estaria desatualizada pelo surgimento de uma nova classe trabalhadora – não restrita somente ao operário fabril descrito por Marx, incluindo também a grande parcela de trabalhadores responsáveis pelo funcionamento diário da vida citadina, além do enorme setor de trabalhadores informais, temporários e liberais, constituídos por “hiperprecariados”20. Ademais, a exploração do trabalhador não está restrita somente ao local do trabalho, ela se inicia no espaço vivido dos trabalhadores, pelos proprietários de terras, locadores e comerciantes, caracterizando a espoliação urbana, definida como

o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudiza ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho (Kowarick, 1979, p.59).

Assim, ocorre uma dupla exploração: no local do trabalho e fora dele, no âmbito da (re)produção urbana, enquanto a primeira só é possível pelo grande exército industrial de reserva. A segunda exploração ocorre por meio das maneiras que os trabalhadores encontram para solucionar os problemas advindos da rápida urbanização, que privou as camadas populares do acesso aos serviços de consumo coletivo – como habitação, transporte, saúde e educação. No Rio de Janeiro, por exemplo, a saída encontrada para suprir a demanda de habitação foram as favelas e os loteamentos irregulares e clandestinos, relacionados também à autoconstrução. Tanto para Kowarick (1979) como para Harvey (2012), o aumento da desigualdade econômica afeta diretamente a forma sócio-espacial das cidades, que se tornam cada vez mais fragmentadas e segregadas, sendo os enclaves

20 Marcelo Lopes de Souza propõe o conceito de hiperprecariado, definido pelo “heterogêneo universo de trabalhadores informais e todos aqueles que sobrevivem em circunstâncias de vulnerabilidade e mesmo perigo, morando em espaços extremamente desconfortáveis e muitas vezes insalubres ou improvisados e exercendo ocupações estigmatizadas” (SOUZA, 2008, pp.131-132). Segundo o autor, a precarização das classes trabalhadoras em países europeus e no Estados Unidos não pode ser considerada a mesma que a vivida em países de industrialização tardia, como o Brasil, nos quais as camadas pobres sempre estiveram em situação de precariedade. No contexto de ajustes estruturais, a precarização torna-se ainda maior, por isso o autor propõe o termo hiperprecarização, a ser completado pelo conceito de hiperprecariado, definido pela massa composta por trabalhadores de baixo nível salarial, trabalhadores informais e desempregados crônicos. Em contraposição ao lumpemproletariado de Marx – que somente possuiria papel reacionário, agindo da forma direcionada pelas classes dominantes, caso desempenhasse algum papel – os hiperprecariados podem assumir um papel não-conservador e até mesmo certo protagonismo crítico e político, como os piqueteros argentinos e os próprios sem-teto brasileiros. 33

fortificados, a vigilância constante e a transformação do espaço público em privado (como os shoppings centers) exemplos dessa mudança que tornam os valores da política neoliberal de defesa da propriedade privada hegemônicos21. É neste sentido que

o direito à cidade está caindo nas mãos de interesses privados ou quase- privados, estando limitado, na maioria dos casos, nas mãos de uma pequena elite política e econômica que está na posição de moldar a cidade cada vez mais segundo as suas próprias necessidades e desejos (HARVEY, 2012, pp.23-24, tradução nossa)22.

Diante da hegemonia de tais valores e da atenção, prioritariamente, nas necessidades das elites, existem movimentos sociais urbanos – entre eles o de ocupações – que buscam diminuir e acabar com as diferenças na cidade, através da construção de novos ideais urbanos. Assim, muitos buscam o direito à cidade constituído pelo controle democrático da mais-valia gerada pela urbanização capitalista. Na construção do espaço urbano – repleta de intensos conflitos, embates e alianças entre os agentes – é comum observar que alguns agentes buscam maximizar seus lucros, em detrimento da qualidade de vida da população, em especial a de mais baixo nível socioeconômico. Assim, os movimentos de ocupação de imóveis ociosos se configuram como uma alternativa de acesso aos serviços e recursos às populações que, devido à sua baixa renda real, não se apropiam ou usufruem deles. Por exemplo, a ocupação de imóveis para moradia localizados no centro da cidade diminuiria os preços de acessibilidade e de proximidade, possibilitando tanto acesso à uma melhor moradia, quanto à educação, oportunidades de trabalho, o que, por fim, levaria ao aumento da renda real da

21 Em seus estudos sobre as novas formas das cidades Teresa Caldeira (1997) afirma que os enclaves fortificados se opõem à cidade e à vida pública, “lhes dão as costas”, negando seus elementos básicos, como: “a primazia das ruas e sua abertura; a circulação livre de multidões e veículos; os encontros impessoais e anônimos entre pedestres; o lazer e os encontros públicos em ruas e praças; e, sobretudo, a presença de pessoas de diferentes origens sociais circulando e observando os que passam, olhando as vitrines, fazendo compras, freqüentando cafés ou bares, tomando parte em manifestações políticas ou usando os espaços que foram durante muito tempo desenhados especialmente para o entretenimento das massas (passeios públicos, parques, estádios, pavilhões de exposições)” (CALDEIRA, 1997, p. 164). Segundo a perspectiva de Souza (2010), seriam formas de se conseguir uma falsa autonomia, pois esta seria baseada no poder heterônomo – a ser discutido mais adiante. 22 “the right to the city [is] falling into the hands of private or quasi-private interests [...], is far too narrowly confined, in most cases in the hands of a small political and economic elite who are in a position to shape the city more and more after their own particular needs and hearts’ desire.” (HARVEY, 2012, pp.23-24). 34

pessoa. Neste sentido, o solo urbano configura-se como um valor de uso para tais movimentos, sendo seus interesses a sobrevivência e reprodução social.

2.2 De carências a necessidades radicais

Segundo Edison Nunes (1989) os movimentos sociais urbanos são “uma forma de reação popular ao surgimento de ‘novas carências’ originadas nas ‘contradições urbanas’, comprometedoras da ‘reprodução da força de trabalho’” (NUNES, 1989, p.67), desta forma, as carências seriam construídas historicamente. O autor ressalta dois aspectos da carência: o primeiro é que o conceito tem por referência o indivíduo, sendo, então, um processo subjetivo e individual; o segundo diz respeito ao conjunto de carências cujo atendimento é entendido socialmente como legítimo, sendo, portanto, uma obrigação política saciá-lo. Neste sentido, a carência, mesmo sendo um atributo subjetivo, só pode ser entendida a partir das condições históricas que as determinam, pois “somente é possível sentir carência de algo já produzido ou, ao menos, possível de o ser” (NUNES, 1989, p. 81). Assim, o conjunto de carências é entendido por cada pessoa de forma simbólica, de acordo com sua vivência e moral sociais, seus hábitos e normas, de maneira que

a escolha ou preferência por alguma carência faz referência ao sistema de carências, onde se reflete “o modo de viver”. Portanto, as escolhas feitas no interior de um sistema de carências significa uma preferência por um ou mais modos de viver em relação a outros (NUNES, 1989, p. 84).

Desta forma, as necessidades e carências para a reprodução da classe trabalhadora decorrem da luta social de cada país, sendo modificadas constantemente. O entendimento geral é de que carências na reprodução social são aquelas que podem ser satisfeitas pelo salário, porém, existem carências sociais e intelectuais que variam de acordo com o estado (político, econômico, social e cultural) da sociedade. Estas carências são as “necessidades radicais” analisadas por Agnes Heller (1996). 35

Para o entendimento destas necessidades ou carências23, faremos um retrospecto a partir de Heller (1996). A autora salienta que é comum dividir as necessidades em “falsas” e “verdadeiras”, mas para um real entendimento delas é necessário considerar três aspectos separadamente: ontológico, ético e político. Pelo primeiro aspecto, toda necessidade deve ser reconhecida, não existindo, então, uma diferença entre necessidades “reais” e “imaginárias”, já que todas as necessidades sentidas pelos homens como reais, assim devem ser consideradas. No aspecto ético, Heller (1996) ressalta que, se considerarmos todas as necessidades como passíveis de serem satisfeitas – entendendo que todas são reais –, as necessidades de explorar e oprimir outros deveriam ser reconhecidas, porém, este reconhecimento poderia entrar em conflito com a satisfação de necessidades de outras pessoas; assim, existe uma divisão entre necessidades “boas” e ruins, de acordo com o sistema social vigente. Deste modo, pela regra moral vigente, pode-se definir que “todas las necesidades han de ser reconocidas y satisfechas con la excepción de aquellas cuya satisfacción haga del hombre un mero medio para otro” (Heller, 1996, p. 67). Por fim, o aspecto político das necessidades está baseado no sistema de necessidades, o que significa a preferência por uma determinada forma de vida, guiada por valores próprios do sujeito. O problema em satisfazer as necessidades está na manipulação que a pessoa pode sofrer, modificando o caráter subjetivo delas, o que infringiria o aspecto ético. Heller (1996) conclui, então, que

dondequiera que las relaciones sociales estén basadas en la subordinación y en la jerarquía, dondequiera que haya detentadores y desposeídos con respecto al poder, dondequiera que la posesión de propiedad (el derecho de disposición) esté garantizado a unos pero no a otros, existe la necesidad de usar a otro individuo como mero medio. En estas sociedades es prácticamente imposible reconocer todas las necesidades, por no hablar de satisfacerlas (HELLER, 1996, p.75).

É diante deste contexto que a autora mostra o surgimento e a existência das necessidades radicais, ou seja, carências sociais e intelectuais que não podem ser satisfeitas pelo salário e o capital, pois “las necesidades radicales son las

23 Nunes (1989) afirma que a palavra “necessidade” é ambígua em português, denotando “tanto aquilo que tem de ser, como aquilo que alguém sente que precisa” (NUNES, 1989, p. 79) e, por isso, opta por utilizar “carência” em seu texto e traduções. A tradução de Heller (1996), por sua vez, utiliza a palavra necessidade. Aqui entenderemos as duas como sinônimos. 36

necesidades que demandan satisfacción cualitativa; [...] constituyen la diferencia, lo único, lo idiosincrásico de la persona singular y también de las comunidades” (HELLER, 1996, p.120). Essas necessidades, conforme abordado por Nunes (1989), não são necessariamente funcionais para o Capital, mas, por vezes, compõem a gênese de lutas sociais, sendo o núcleo dos movimentos de autogestão, feminista e de transformações no sistema capitalista e de formas de vida (HELLER, 1996). Heller salienta que os movimentos centrados em torno das necessidades radicais ainda são minoritários, porém, buscam transcender e acabar com a subordinação e a hierarquia, pois esta é a única forma de reconhecimento e satisfação de todas as necessidades. Desta forma, os movimentos radicais buscam a exclusão das necessidades que oprimem ou defendem o uso de um indivíduo como simples meio para outro. Lembramos, porém, que esses movimentos também representam as necessidades “não radicais”, aquelas que podem ser satisfeitas na atual sociedade. Diante do exposto, procuraremos demonstrar, ao longo da dissertação, que as ocupações de imóveis ociosos buscam satisfazer diferentes tipos de necessidades, porém, se aproximando mais das radicais.

2.3 Movimentos sociais urbanos e as ocupações com projetos políticos

Os conflitos sociais, entendidos como a oposição de uma classe ou grupo à ordem social vigente – ou a elementos dela –, são reflexo da própria sociedade, sua história e padrões sócioespaciais. Neste sentido, os ativismos e movimentos sociais são parte das respostas dadas às tensões e contradições da sociedade e à ordem estabelecida. Carlos Walter Porto-Gonçalves (2002) afirma que os movimentos sociais resultam daqueles que se negam a permanecer na posição a qual foram submetidos pela ordem e, por isso, se põem em movimento, no sentido de uma busca por mudança de lugar. Assim, os movimentos sociais trazem à luz as contradições da nossa realidade – constituída tanto pelo que é agora como pelo que pode ser, mas está impedido de ser por algum fator – e, por isso, são portadores de uma possível nova ordem social. Os ativismos sociais, para Souza (2006), são “atividade[s] pública[s] organizada[s] dos atores sociais” (SOUZA, 2006, p.274), ou seja, são um conjunto 37

amplo de ações sociais minimamente organizadas, do qual os movimentos sociais formam um subconjunto, caracterizado por uma crítica maior, possuindo, então, maior radicalidade e/ou ambição em seus objetivos, projetos políticos e ações. O mesmo autor alerta que o perfil dos ativismos (e consequentemente dos movimentos) sociais possui diferenças – desde geográfico-culturais a ideológicas – de acordo com a situação socioeconômica em que se desenvolvem; por exemplo, os movimentos sociais em países europeus tendem a ter como protagonistas a classe média e seus jovens, enquanto na América Latina essa é a tendência dos estratos de mais baixa renda. Os movimentos sociais, porém, podem possuir caráter progressista ou reacionário, segundo as mudanças (ou permanências) que buscam. Assim, é de extrema importância acrescentar o adjetivo emancipatório quando nos referimos aos movimentos sociais que buscam a diminuição das desigualdades sociais e se opõem a ordem heterônoma vigente (SOUZA, 2010)24. Os movimentos sociais de caráter reacionário ou heterônomo buscam transformações sociais e políticas, porém, em um sentido oposto aos movimentos sociais progressistas ou emancipatórios. Neste sentido, eles se fundamentam em aspectos fascistas e/ou fundamentalistas religiosos e pregam transformações no sentido do sectarismo, segregacionismo e autoritarismo; entre eles podemos destacar o nazi-fascismo, o talibã afegão, o grupo nigeriano Boko Haram, o brasileiro Tradição, Família e Propriedade (TFP), o estadunidense Ku-Klux-Klan e outros movimentos apoiados no WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant). Ainda sobre os ativismos sociais, Souza (2006) os diferencia em dois grupos: stricto sensu e lato sensu. Os primeiros estão ligados à temática do acesso a equipamentos de consumo coletivo e à reprodução da força de trabalho, enquanto o segundo grupo enfoca questões mais “setoriais” – como condições de trabalho, desigualdade de gênero e de raça. Neste sentido,

Ativismos urbanos em sentido estrito e forte giram muito nítida e explicitamente em torno de problemas diretamente vinculados ao espaço social. [...] Ativismos urbanos em sentido amplo e fraco, de sua parte, são

24 Martínez (2002) considera como movimentos sociais (MS) apenas as ações que possuem projetos de resistência às dominações globais e que criam novos espaços de autogestão nos âmbitos de produção e reprodução públicos ou privados; de forma que “los MS pueden ser un excelente ejemplo de transversalidad de la participación con altas dosis de resistencia a la dominación” (MARTÍNEZ, 2002, p. 30). Assim, para o autor, todos os movimentos sociais possuem um caráter emancipatório, enquanto as ações com caráter reacionário seriam contramovimentos. 38

aqueles que, embora tenham as cidades como seu palco preferencial [...], se referenciam apenas indiretamente pela espacialidade urbana (SOUZA, 2006, p.280-281)25.

Assim, enquanto os ativismos estritos estão diretamente disputando o espaço – sendo ele também o objetivo – e por vezes em busca ao direito à cidade, o segundo grupo o espaço serve como meio para a manifestação. Porém, a questão espacial pode ganhar importância em alguns ativismos amplos, como o negro. Concordamos com Souza (2006) e Ramos (2012) que não é apenas a existência da exploração e desigualdade sociais que geram os ativismos, é necessário que as pessoas se conscientizem e os contextualizem segundo suas noções de direitos, sentidos, valores e significados que lhes atribuem. Desta forma,

Os ativismos sociais não se explicam, em última análise, sem a ajuda de uma contextualização estrutural, mas o que define sua emergência e, sobretudo, a sua agressividade, a sua permanência e a sua eficácia maiores ou menores são as condições conjunturais, que são lidas pelos sujeitos históricos no processo de constituição de sua experiência (SOUZA, 2006, p.287, grifo do autor).

Assim, é necessário o reconhecimento por parte dos homens e mulheres de sua situação social e econômica na ordem vigente para que eles possam atuar – ou, usando as palavras de Porto-Gonçalves (2002), movimentar-se. Não podemos esquecer, porém, que os ativismos (em especial os movimentos) sociais não são apenas resultado, como também podem condicionar a conjuntura presente. Podemos, então, estabelecer uma relação direta das diferentes formas de ativismos com os tipos de necessidades: os movimentos sociais atenderiam às necessidades radicais da sociedade, enquanto os ativismos estariam ligados somente às necessidades não-radicais. Salientamos ainda que, na medida em que os movimentos sociais em sentido forte inscrevem em suas agendas de luta as questões que vão além das conquistas materiais, almejando transformações profundas na sociedade e ensejando mudanças para melhor em termos de qualidade de vida, há um verdadeiro desenvolvimento sócio-espacial. Desta forma, para alguns autores os movimentos como os de sem-teto no Brasil e os de ocupações possuem grande potencial, pois se aproximam de uma

25 Souza (2006) continua sua distinção e afirma que a partir dos grupos de ativismos podemos diferenciar os movimentos, assim, teríamos quatro subgrupos: 1) “Mero” ativismo urbano em sentido fraco, como um sindicato operário sem uma crítica social ampla; “Mero” ativismo urbano em sentido forte, como associações de moradores com caráter clientelista; 3) Movimento social urbano em sentido fraco, como os anti-globalização; e 4) Movimento social urbano em sentido forte, como os movimentos de ocupações. 39

efetiva Reforma Urbana e possibilitam mudanças na sociedade, já que são contra os fundamentos da ordem urbana capitalista26; desta maneira, as ocupações serviriam como meio e não como fim. Diante do exposto acima, podemos afirmar que as ocupações de imóveis ociosos se constituem como um movimento social urbano emancipatório e stricto sensu, pois colocam a dinâmica do espaço urbano e da ordem social vigente em questão.

A existência de uma massa de pessoas com salários muito baixos ou vivendo de atividades ocasionais, ao lado de uma minoria com rendas muito elevadas, cria na sociedade urbana uma divisão entre aqueles que podem ter acesso de maneira permanente aos bens e serviços oferecidos e aqueles que, tendo as mesmas necessidades, não têm condições de satisfazê-las. (SANTOS, 2004, p.37)

Da mesma maneira, as ocupações de terras e imóveis – em todas as suas diferentes formas – têm sido essenciais para a perpetuação do modelo urbano capitalista, mesmo que elas sejam uma afronta à propriedade privada. Isto é, “sem a válvula de escape representada por essas saídas ilegais, os pobres urbanos não teriam como sobreviver – e o sistema não seria viável, entrando em colapso” (SOUZA, 2006, p.305). Assim, o mesmo capitalismo que gera essas desigualdades depende das soluções encontradas pela população para continuar a existir. Acreditamos que a mudança concreta na sociedade só será possível através de mudanças tanto nas relações sociais quanto no espaço27 social, ou seja, mudanças socioespaciais. Assim, o entendimento das práticas espaciais se faz necessário, segundo Corrêa (1995, p. 35), porque

São as práticas espaciais, isto é, um conjuto de ações espacialmente localizadas que impactam diretamente sobre o espaço, alterando-o no todo ou em parte ou preservando-o em suas formas e interações espaciais. [...] resultam, de um lado, da consciência que o Homem tem da diferenciação espacial [...], de outro lado, dos diversos projetos [...] que são engendrados para viabilizar a experiência e a reprodução de uma atividade ou de uma

26 Souza (2006) cita observadores holandeses que afirmam que “o movimento squatter se tornou um movimento social com seu específico papel na luta pela reconstrução da sociedade, especialmente nas grandes cidades” (DRAAISMA e HOOGSTRATEN, 1983, apud SOUZA, 2006, p.306, tradução nossa) [No original: “the squatter movement has become a social movement with its own specific role in the struggle for the reconstruction of society, especially in big cities” (DRAAISMA e HOOGSTRATEN, 1983, apud SOUZA, 2006, p.306)]. 27 Entendemos que o espaço se refere a um produto e é condicionante das relações sociais, sendo, portanto, reflexo das classes dominantes e das classes dominadas. Ademais, o espaço é produto da dominação e apropriação resultantes das práticas espaciais (SOUZA, 2010). 40

empresa, de uma cultura específica, étnica ou religiosa, por exemplo, ou a própria sociedade como um todo. [...] São ingredientes através dos quais a diferenciação espacial é valorizada, parcial ou totalmente desfeita e refeita ou permanece em sua essência (CORRÊA, 1995, p.35).

As práticas espaciais podem se caracterizar como heterônomas ou emancipatórias (ou autônomas28) (SOUZA, 2010). As primeiras se caracterizam pela produção de espaços de cima para baixo, de fora para dentro, por meio do uso de poder explícito e da alienação; são práticas dirigidas pelas classes dominantes que possuem maior destaque na construção da ordem sócio-espacial vigente29. As práticas espaciais emancipatórias, por sua vez, buscam a transformação da realidade sócio-espacial, de um ponto de vista “estadocrítico”, caracterizando-se por ações diretas ou por lutas institucionais30 contra o Estado heterônomo, assim denominado porque sua função e essência visam manter a estrutura dominante da ordem heterônoma, não descartando, porém, que é também o mediador das forças/relações entre as classes socioeconômicas e suas frações. Os movimentos sociais aproveitam-se de pontos vulneráveis existentes na estrutura do Estado para agir em prol de mudanças socio espaciais. Neste sentido, a prática espacial insurgente se caracteriza basicamente, mas não unicamente, pela ação direta. Souza (2010), buscando sistematizar e aprimorar o entendimento das práticas espaciais insurgentes, categoriza-as em seis tipos gerais: 1. Territorialização no sentido estrito – trata-se da apropriação e controle de um espaço através da presença física duradoura; 2. Territorialização no sentido amplo – ao contrário do tipo acima exposto, ocorre sem a presença física duradoura, como por exemplo o caso de grafitagem de muros; 3. Refuncionalização/reestruturação do espaço material – trata-se da adaptação de um espaço material a novas funções ou necessidades;

28 Aqui se aproximando do sentido de autonomia dado por Castoriadis (apud SOUZA, 2010) como uma democracia autêntica/radical, na qual a liberdade, a igualdade e a justiça para todos são fundamentais, alcançadas como produto social coletivo. 29 Souza (2010) e Corrêa (1995) dão alguns exemplos dessas práticas, como: dispersão, (auto)segregação, confinamento, interdição de acesso, monopólioo de recursos espaciais, organização espacial da exploração do trabalho, seletividade e marginalização espaciais. 30 A ação direta se caracteriza por práticas que buscam contruir alternativas independentemente do Estado, enquanto a luta institucional se utiliza de meios ou canais instituídos pelo Estado, sendo que esta não substitui a primeira, mas se subordina a ela (SOUZA, 2010).

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4. Ressignificação de “lugares” – as novas funções atribuídas ao espaço material irão possuir uma carga grande de simbolismo e cultura; 5. Construção de circuitos econômicos alternativos – criação e desenvolvimento de alternativas ao mercado e ao modo de produção capitalistas; 6. Construção de redes espaciais – troca e visibilidade de/para as experiências de resistências, através de estratégias multiescalares, entendendo que sair do local é estratégico para a eficiência e ampliação da prática. Os movimentos de ocupação podem ser caracterizados essencialmente pela prática da territorialização no sentido estrito, da refuncionalização/reestruturação do espaço material e da ressignificação de “lugares”. Algumas experiências, conforme se abordará adiante, também podem criar circuitos econômicos alternativos e redes espaciais. Salientamos que no Brasil as redes espaciais não possuem grande destaque no âmbito das ocupações, porém as principais organizações – como o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) – buscam dar maior visibilidade às suas ações, principalmente, através da internet. Na Europa, as redes de troca de experiências, de resistência e de solidariedade estão mais bem estabelecidas31, o que facilita a existência de diversas páginas de internet que divulgam as ocupações e seus projetos/eventos, além de manuais sobre “como okupar”32. Ressaltamos que as redes espaciais não se resumem a redes técnicas – como redes de comunicação física ou virtual –, são mais amplas, incluindo também as redes de solidariedade, de vizinhança e de organização social33. A política de escalas – ou articulação escalar – é de extrema importância, pois tendem a potencializar os efeitos das ações; ela pode ocorrer

31 Lembramos a importância da rede Squatting Europe Kollective (SqEK), conforme destacado na Introdução. 32 Como o caso do coletivo inglês Advisory Service for Squatters que, além de manter um site atualizado, publica periodicamente, desde 1976, um manual para okupar: o Squatters Handbook; e a Assemblea d’okupes de Barcelona, que mantem um site informativo e também realiza oficinas e encontros para discutir e divulgar as ideias de okupar. 33 Scherer-Warren (1995) propõe um uso propositivo do conceito de redes pelos movimentos sociais, conceito que conteria significados ideológicos e simbólicos, baseados em novas formas de organização (autogestão, em especial) e de relacionamento inter-organizacional, que ajudariam na construção de uma nova democracia. Essas redes também proporcionariam a conexão do local com o global – ou seja, de interesses específicos com interesses gerais. 42

diretamente na luta ou por meio do apoio entre diferentes organizações com escalas distintas. Assim, cada movimento tem mais poder de intervir politicamente no seu entorno próximo; além disto, as alianças são valiosas para dar mais sentido e visibilidade pública, de maneira que os movimentos possam deixar de ser vistos como minoritários ou dispersos. Em seu livro Okupaciones de viviendas y de centros sociales, Miguel Martínez López (2002) tenta responder a diversas perguntas sobre o movimento okupa espanhol – “o que é?”, “por que surgiu?”, “que relações mantem com outros movimentos?”, “como se organiza?”, “quem o compõe?”. Apesar de sua análise ter como foco as ocupações que desenvolveram Centros Sociais Okupados Autogestionados (CSOAs), sua leitura foi essencial para diversas de nossas conclusões sobre os movimentos de ocupação. Em primeiro lugar, houve uma “evolução” dos movimentos de ocupação: da exclusividade para fim residencial – afinal, “la okupación es la forma más vieja de tenencia en el mundo, y todos somos descendientes de okupas” (WARD, 1980, apud MARTÍNEZ, 2002, p.97) – à constituição de uma ampla rede de ocupações com projetos políticos, como as estudadas neste trabalho. Assim,

El movimiento okupa, por su parte, es el que más continuidad tiene con las demandas urbanas de los movimientos ciudadanos anteriores, elaboradas ahora por una generación más joven que también recoge ideologías comunalistas del movimiento contracultural e ideologías políticas de la izquierda extraparlamentaria (MARTÍNEZ, 2002, p. 127).

As ocupações surgem quando pessoas decidem se apropriar de um espaço abandonado como solução para suas mais distintas necessidades: moradia, trabalho, lazer, criatividade e lutas política e social. A reapropriação é a forma de se conseguir um bem que deveria ser socializado e gratuito: a casa34; por isso, a ocupação é, no mínimo, uma boa resposta. Martínez (2002), baseando-se em Engels e Proudhon, salienta o debate no marxismo e no anarquismo acerca da necessidade de expropriação dos que possuem recursos necessitados por todos, em especial os que menos têm. Para ambos os pensadores deve ocorrer uma reapropriação coletiva dos bens, do trabalho e do tempo como forma de equilibrar socialmente as desigualdades

34 “Casa” em um sentido mais amplo que habitação, servindo para diversas funções, como as expostas anteriormente. 43

acumuladas; porém, seus pensamentos se opõem em relação à existência da propriedade privada e à forma de reapropriação. Engels acredita somente na propriedade coletiva e considera que a população não seria capaz de decidir sozinha como reapropriar-se e redistribuir os bens, necessitando da figura do Estado. Proudhon, por sua vez, acredita que a propriedade privada é tanto um roubo quanto uma liberdade – neste sentido, poderia haver propriedade privada quando ela estiver disponível a todos por igual – e a reapropriação ocorreria da forma que as massas achassem melhor. Assim, para Martínez (2002), os movimentos de ocupação se aproximam da ideia anarquista de reapropriação, pois esta respeitaria mais as liberdades individuais e de coletivos, sem a necessidade de uma gestão burocrática e pré-revolucionária por parte do Estado; mais adiante o autor propõe a inclusão desses movimentos no grupo de “neoanarquistas”, que agregaria melhor a amplitude de sentidos do caráter libertário das ocupações. O caráter libertário e anti-capitalista dos movimentos de ocupação estaria em seu antiautoritarismo, na crença na democracia direta e na auto-organização social, no predomínio da ação direta e na crítica constante aos órgãos repressivos do Estado. Assim, eles mostram os males e os posicionamentos “anti” a respeito dos problemas de diferentes esferas. A reapropriação por meio das ocupações políticas vem acompanhada pela transformação dos modos de vida, uma busca por uma forma de viver diferente da institucionalizada e à maior importância ao valor de uso do que ao valor de troca. Ademais, as práticas das ocupações possuem um caráter transversal, pois se constituem tanto como oposição direta à desigualdade social resultante da distribuição da propriedade privada, quanto oposição indireta em distintos níveis sociais, através da autogestão, da solidariedade, da crítica à repressão etc. Ainda,

Las okupaciones son parte de una lucha política al margen del sistema institucional, entendiendo que es política porque se ejerce algún tipo de relaciones de poder [...]. Su sentido político es emancipatorio en la medida en que plantea una resistencia genérica a la dominación [...]. Que podamos valorar este sentido ideológico general como emancipatorio o progresista no significa que exista siempre una unánime comprensión de las dimensiones de la dominación social existente (MARTÍNEZ, 2002, p. 203).

As ocupações de imóveis urbanos ociosos referem-se a um fenômeno urbano heterogêneo mundial, porém específico ao contexto local no qual surge e se 44

desenvolve. Neste sentido, existe uma variedade de tipos ou formas de ocupação, mas todas com intuito de responder às demandas decorrentes de problemas urbanos. Após uma longa pesquisa na Europa, Hans Pruijt (2013) propôs uma divisão das ocupações, de acordo com os projetos desenvolvidos por elas. Assim, teríamos as seguintes configurações: 1. Ocupação por privação (Deprivation-based squatting) – esta configuração surge em decorrência da pobreza, sendo a ocupação a única forma de acesso à moradia para a pessoa. Não busca mudanças estruturais, apenas alternativas de acesso à habitação, sendo, portanto, a ocupação o próprio fim. 2. Ocupação como estratégia de habitação alternativa (Squatting as an alternative housing strategy) – ao contrário da configuração anterior, os ocupantes desta não possuem necessidade urgente de moradia e podem pertencer a classes sociais mais altas, como artistas e estudantes. A ocupação se apresenta como estratégia de habitação alternativa por possibilitar à pessoa viver da melhor forma que lhe interessar, seguindo suas próprias vontades e não as impostas pela sociedade. 3. Ocupação empresarial (Entrepreneurial squatting) – a ocupação aparece como uma oportunidade de criar estabelecimentos culturais e/ou econômicos sem a necessidade de obter grandes recursos e de adentrar na burocracia. Pode assumir uma identidade contracultural ou não. 4. Ocupação conservasionista (Conservational squatting) – a ocupação trata- se de uma tática para a preservação/conservação de determinada área ou paisagem urbana. O objetivo é impedir o desenvolvimento de uma nova função à área, que possa causar a gentrificação. Assim, a ocupação trata-se do meio para um fim. 5. Ocupação política (Political squatting) – possui lógica diferente das demais configurações, tratando-se de uma forma de confrontar o Estado, estando os ocupantes ligados a lutas anti-sistêmicas. A ocupação também se trata de um meio para um fim, não sendo o objetivo em si. Conforme salienta o autor, a nomeação de um configuração como política não significa que as demais sejam apolíticas. Pruijt (2013) explica que a separação desta configuração das outras resulta da lógica própria que esta possui: a motivação política e anti-sistêmica. Frisamos, porém, que toda ocupação é social e política. É importante ressaltar que as configurações designam projetos de ocupação, oriundos das demandas coletivas, mas um mesmo edifício pode abrigar diferentes 45

projetos. Da mesma forma, a tipologia é maleável, no sentido de que uma ocupação pode se iniciar com determinado projeto – adequando-se, portanto a determinada configuração classificatória – mas se modificar ao longo do tempo, agregando novas ideias e aspectos, podendo, então, se inserir em outra configuração. As configurações apontam para diferentes possibilidades de combinação entre autoajuda e/ou ação coletiva, alternativa e protesto contra a mercantilização da cidade. Conforme a definição apresentada da Introdução, as ocupações se caracterizam por serem de longo prazo, pois a intenção é que ela dure o máximo de tempo possível, mesmo que com diferentes pessoas e projetos. Desta forma, diferenciamos as ocupações a serem estudadas neste trabalho das ocupações demonstrativas (demonstrative occupations), com intuito de alertar a sociedade e governo, através da mídia, para algum problema ou questão – seja ela econômica, social, política ou cultural. Estas ocupações são comuns no Brasil, sendo muitas vezes organizadas por movimentos sociais de moradia, com objetivo de chamar atenção para o déficit habitacional e a ociosidade de imóveis. 46

3 OKUPAS, SQUATS, BESETZEN HÄUSE E FRISTADEN

They can evict [us from] our houses but not our ideas (MARTÍNEZ, 2013, p. 124)

Neste capítulo exploraremos as características das ocupações que as levam a adquirir cada vez mais importância no contexto dos movimentos sociais urbanos na Europa. Em comparação com outros destes movimentos, as ocupações não mobilizam grande número de pessoas; sua relevância decorre de sua relação com outros movimentos e com os problemas-chave do contexto social capitalista, motivo pelo qual é importante seu estudo. Neste sentido, não se pode definir os movimentos de ocupação como ações de jovens ou como ações ilegais isoladas em busca de moradia, como é comum ocorrer no imaginário conservador europeu. Trata-se de um movimento urbano, durável e com conflitos com a ordem política e econômica dominante; são movimentos locais que se referem também a uma parcela dos conflitos urbanos existentes. Assim, concordamos com a abordagem adotada pelo SqEK e buscamos nos afastar de análises simplistas que se concentram na natureza criminal de violação a propriedade privada, na existência de um estilo de vida (ou tribo) próprio(a) dos ativistas e na natureza “juvenil” dos movimentos – comum aos movimentos europeus (MARTÍNEZ, 2013). O argumento principal dos movimentos de ocupação é a falta de legitimidade da ação de deixar propriedades privadas abandonadas, já que elas poderiam estar sendo utilizadas de alguma forma, possuindo, então, uma função. Argumentam, então, que o direito de uso deve ser prioritário à defesa da propriedade privada como valor de troca. Porém, as ocupações vão além desse problema e criticam, também, a especulação do sistema capitalista, entendendo a especulação urbana apenas como uma de suas expressões. Em geral, os movimentos de ocupação possuem uma abordagem de “esquerda radical” – muitos de seus ativistas declaram-se comunistas ou anarquistas – e possibilitam inovações nas áreas política e social da contracultura35. Neste

35 Não negamos, porém, a existência de ocupações com caráter reacionário e/ou nazi-facista, como o caso do franquista Hogar Social Ramiro Ledesma, em Madrid, que alega defender as famílias vítimas de desepejos, porém, somente se forem espanholas. Os confrontos e ataques entre essas ocupações e as de caráter esquerdistas são frequentes. 47

sentido, observa-se que as ocupações podem ter seu poder ampliado quando articuladas a outras práticas anticapitalistas, como os movimentos de alterglobalização36 (CATTANEO; MARTÍNEZ, 2014). Este aspecto pode significar uma forma de melhor atender às necessidades radicais, conforme entendidas por Heller (1996). As ocupações seriam, então, anticapitalistas? Características comuns a diversas ocupações nos dizem que sim: ausência de relações sociais baseadas na exploração do trabalho; organização interna horizontal; crítica à relação dominante entre as necessidades de sobrevivência e a maneira como devem ser satisfeitas; além, é claro, da utilização do estoque de imóveis vazios – o motivo da existência das ocupações –, que é considerada uma grande afronta à propriedade privada. Neste sentido, “ocupar é uma negação à dominação existente” (MARTÍNEZ; CATTANEO, 2014, p.239, tradução nossa37), ou seja, as ocupações caracterizam-se por ser a negação das formas de dominação existentes: política, econômica, social, cultural. Alguns efeitos das ocupações são: o retorno às origens pré-capitalistas – no sentido de morar e trabalhar no mesmo lugar e ter relações econômicas baseadas no escambo; a luta contra a especulação; a elaboração de alternativas à utilização de dinheiro – não pagamento de aluguel, prática da economia de escala (coletivo ao invés do individual) e do “faça você mesmo” (do-it-yourself). Cattaneo (2013) levanta a hipótese de que a visão política adotada pelos okupas demonstra que buscam se contrapor e combater as formas de controle capitalista, atingindo, assim, sua autonomia. Podemos associá-la ao conceito de oikonomy, entendido como um meio para um fim: a necessidade e satisfação de uma boa vida, na qual o dinheiro pode ser útil, mas não é necessário para alcançá- la. Desta forma, a autonomia seria alcançada a partir de quatro níveis, segundo os meios de oikonomy praticados: política (autonomia de pensamento), econômica (autonomia financeira), levemente ecológica e, por fim, altamente ecológica38. As

36 Não confundir “alterglobalização” com “antiglobalização”, esta última indica somente a oposição aos aspectos liberais da globalização. A alterglobalização, por sua vez, além de significar o protesto contra as consequências negativas da globalização neoliberal – nas áreas de economia, política, cultura, social e ecológica – não se opõe à globalização em si, busca alternativas ao paradigma neoliberal e sua atual globalização, sendo sua maior expressão o lema “um outro mundo é possível”. 37 “squatting is a negation of already existing domination” (MARTÍNEZ; CATTANEO, 2014, p.239). 38 É necessário relembrar a existência de ocupações rurais – não estudadas neste trabalho –, que se identificam com a ideologia tradicional das ocupações urbanas, porém possuem uma perspectiva 48

autonomias, respectivamente, se referem ao uso relacional de algumas ocupações, ao funcionamento de ocupações urbanas, a ocupações de edifícios e partes de terra e, por fim, de imóveis rurais e grandes quantidades de terra. É importante lembrar que as ocupações estão diretamente relacionadas à manutenção do sistema de desperdício capitalista. Neste sentido, as ocupações urbanas praticam o sistema oikonomy, pois aproveitam os “restos” da sociedade capitalista (os imóveis vazios e abandonados), aumentando o ciclo de vida de produtos artificiais. As ocupações rurais, por sua vez, são ecológicas também por produzirem seus próprios alimentos e consumirem menos, de tal forma que, os movimentos de ocupação buscam criar um sistema parcialmente independente do sistema financeiro capitalista. Assim, a sustentabilidade da experiência de ocupar está conectada à existência de um sistema de desperdício. A relação entre as ocupações e o Estado não pode ser desconsiderada, já que ele está envolvido na produção de espaços suscetíveis à ocupação, além de atuar fortemente na defesa da propriedade privada e na repressão a alternativas de estilos de vida contrários ao capitalismo. Neste sentido, uma ocupação pode ser considerada ilegal pelo Estado, mas não pela sociedade; afinal, as ocupações são uma reação criativa ao capitalismo, um experimento e inovação, e sua legitimidade ou ilegitimidade depende da natureza de quem julga. Assim, as atividades desenvolvidas na e pela ocupação devem ser coerentes com o tipo de antagonismo que ela pretende alcançar. As práticas desenvolvidas, as redes de conexão social e o equilíbrio com as relações de poder local (MARTÍNEZ; CATTANEO, 2014) são fundamentais para que as ocupações obtenham legitimidade frente à sociedade. Como dito anteriormente, as ocupações compõem mundialmente um fenômeno heterogêneo, mas com características específicas ao contexto urbano local no qual se formaram e desenvolveram. Assim, uma comparação entre ocupações de diferentes locais é difícil. Optamos, neste caso, por mostrar experiências de ocupações em diversos locais, apontando seus diferentes aspectos, mas não compará-las.

neorural de retorno a uma vida mais simples e comunitária e com menos impacto sobre o meio ambiente. 49

3.1 Ocupação por privação, a forma mais comum de se okupar

Segundo Pruijt (2013), ocupação por privação (deprivation-based squatting) é a configuração de ocupação mais antiga e envolve pessoas pobres e que possuem sérios problemas em relação à moradia – indo além da necessidade apenas de um teto e quatro paredes. Seria composta por pessoas que não possuem outra opção de moradia que não os abrigos para sem-teto39. Assim, a demanda central é a busca por alternativas de habitação, no sentido de que “esta configuração não envolve uma mudança estrutural, em vez disso, se concentra em ajudar os ocupantes a obterem (temporariamente) aluguéis ou alojamentos alternativos” (PRUIJT, 2013, p.23, tradução nossa)40. A quantidade de ocupações pode ser relacionada aos momentos mais críticos da economia de um local, quando há aumento de desemprego e do preço da moradia, além de processos de gentrificação, renovação urbana e reestruturação industrial. Esta configuração de ocupações existe em diferentes países, sendo importante parte da configuração sócio-espacial de diversas cidades. Por vezes, porém, são menos conhecidas e noticiadas, até mesmo pelo próprio interesse dos ocupantes, como casos franceses discutidos por Bouilon (2010), nos quais os ocupantes preferem manter-se “invisíveis” para aumentar a chance de permanecer no local ocupado. Segundo Thomas Aguilera (2013), existem cerca de 1800 ocupações “invisíveis” na região de Paris, sendo 1200 em edifícios privados. A França possui pontos em sua legislação que favorecem as ocupações, diferente de outros países, em especial do Brasil. O primeiro ponto é que a ocupação não se constitui como uma ofensa, o que a torna mais “defensável”. Neste sentido, o problema se constitui pela tensão entre dois direitos fundamentais: à propriedade privada e à moradia. Durante as últimas décadas, diversas leis em favor do direito à moradia foram adotadas no país garantindo: a proibição de despejos nos períodos de inverno e de festas; proibição da ação policial sem autorização judicial após 48 horas de ocupação; apoio financeiro e acompanhamento social aos necessitados; além da realocação em caso de expulsão.

39 Entendemos os sem-teto como uma parcela do hiperprecariado urbano, conforme definido no item 2.1. 40 “in this configuration does not involve structural change, but instead focuses on helping the squatters to obtain (temporary) leases or alternative accommodation” (PRUIJT, 2013, p.23). 50

Apesar do panorama favorável, Bouillon (2013) aponta que a maioria das ocupações são despejadas, sendo que muitas ocorrem à margem da lei, através do uso de força policial. Para que a ocupação continue é necessário provar que os ocupantes não são usurpadores e, sim, “pobres de verdade” que já tentaram outras formas de moradia, demostrando a “boa fé” dos ocupantes. É importante ressaltar que após o despejo, normalmente, os antigos ocupantes são encaminhados a abrigos temporários, não havendo uma alternativa permanente. Diante desta situação, é provável que as pessoas voltem a ocupar novos espaços, assim, o despejo contribui para manter a situação que deveria acabar (BOUILLON, 2013). Ocupações por privação são habitações características de imigrantes – em especial os ilegais – na Europa, pois esta é a única forma de sobrevivência encontrada por eles. Assim, diante da atual conjuntura europeia de crise e crescente número de imigrações – em especial de sírios – podemos supor que a quantidade de ocupações irá aumentar em diversos países. Por exemplo, em Calais, na França, existem grupos de ajuda a imigrantes que ocupam galpões e edifícios vazios que possam vir a servir (aos imigrantes) como moradia41. A crescente importância da relação entre imigrantes e ocupação pode também ser demostrada pela criação de uma sessão especial no workshop do SqEK sobre o tema, realizada na tarde de 22 de maio de 2015. Como dito, o número de ocupações está relacionado com os momentos mais críticos da economia, como o caso de pós-guerras, e diversas cidades foram construídas a partir de squats. É neste contexto que se insere o caso de Varsóvia, capital da Polônia: segundo ativistas da ocupação Syrena (informação verbal42), a primeira onda de ocupações em Varsóvia ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, em 1945. Salientamos, porém, que a privação naquele momento é diferente da disutida na dissertação, mas optamos por retratá-la na presente dissertação pela importância que os ocupantes atuais dão àquele momento. A cidade estava completamente em ruínas: calcula-se que a cidade perdeu cerca de 85% de sua arquitetura, sendo 90% dos monumentos históricos e da infraestrutura industrial e 72% dos edifícios residenciais destruídos; e a população,

41 Informação obtida na sessão Immigrants & squatting (imigrantes e ocupação, em português), realizada durante o workshop do SqEK, em 22 de maio de 2015. 42 Obtida em fala durante o workshop do SqEK, em 21 de maio de 2015. 51

que antes da Guerra passava de 1 milhão, era de apenas alguns milhares. O governo soviético chegou até mesmo em cogitar montar uma nova capital para o país, porém, houve um fluxo intenso de pessoas (antigos residentes e pessoas que haviam sido deslocadas) de volta para a cidade, que foi responsável por reconstruir o centro urbano, através da ocupação das ruínas. Assim, os atuais okupas de Varsóvia vêem este momento como crucial para entender o movimento de ocupações em seu país. Alguns aspectos desta configuração devem ser ressaltados: em primeiro lugar, a escolha dos edifícios é essencial para o sucesso da ocupação. Assim, buscam-se imóveis cujos donos possuam “obrigação moral” perante a população – como o Estado e a Igreja. Conforme salienta Pruijt (2013), as necessidades dos sem-teto são opostas à burocracia e insensibilidade públicas estatais, assim, o respeito exigido por eles deveria ser de fácil aceitação por parte da sociedade. Porém, por vezes, não há aceitação por parte da classe média e nem mesmo pelas classes populares – por exemplo, no Brasil é comum designar ocupantes como aproveitadores e/ou vagabundos. Em segundo, um dos principais pontos desta configuração é a diferenciação entre ocupantes e ativistas que, por vezes, não são os que ocupam os imóveis – como, por exemplo, o caso das organizações Jeudi Noir e Droit au Logement (DAL), na França, citadas por Aguilera (2013).

O ato de ocupar não pode fornecer moradia para todos e não é capaz de desafiar todo o sistema capitalista, mas pode ajudar à alguns excluídos pelo capitalismo e àqueles que desejam mudar o sistema através do envolvimento em uma forma alternativa de vida, campanhas políticas, outro movimento social e assim por diante. (MARTÍNEZ; CATTANEO, 2014, p.51, tradução nossa)43.

É neste sentido que podemos entender as ocupações sob três aspectos: crítica às políticas urbanas, ferramenta para pedir um teto e estratégia de sobrevivência sem apoio público (AGUILERA, 2013). Por fim, um dos maiores problemas é a fácil cooptação dos ocupantes pelo Estado e outras organizações que facilitem a não-permanência no edifício ocupado.

43 “Squatting cannot provide housing for all and it is not able to challenge the whole capitalist system, but it can serve to help some of those excluded by capitalism and those who wish to change the system by their involvement in an alternative way of living, political campaigns, other social movement and so on” (MARTÍNEZ; CATTANEO, 2014, p.51).

52

Neste sentido, um intenso trabalho de formação e educação política dos ocupantes se faz necessário para a manutenção e desenvolvimento da ocupação.

3.1.1 O caso espanhol da PAH

Conforme abordado, em momentos de crise econômica, quando ocorre um aumento da desigualdade social – e, consequentemente, da pobreza, segregação e exclusão sociais –, são as ocupações com foco na moradia as que mais crescem, já que o acesso a bens de consumo, entre eles a habitação, se torna mais difícil. Neste contexto, podemos citar o exemplo vivido pela Espanha e a Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH) nos últimos anos. A PAH surgiu em 2009, em Barcelona, como uma associação (e movimento social) pelo direito à moradia digna, como resultado direto da crise imobiliária iniciada em 2008, que levou a inúmeros despejos em decorrência do não-pagamento de hipotecas. A PAH, atualmente presente por todo o estado espanhol, atua a partir de sete campanhas (Dácion en Pago, Stop Desahucios, Obra Social La PAH, International, Mociones Ayuntamientos, ILP e Escrache, sendo as três primeiras o seu maior foco de atuação), tendo como objetivos principais o cancelamento da dívida em troca da entrega da habitação e parar os despejos. Assim, a associação dialoga com a administração pública e as entidades financeiras para tentar um acordo sobre a dívida das famílias hipotecadas, além de realizar ações de desobediência civil e resistência passiva nas datas dos despejos – estas conhecidas como stop desahucios. Segundo seu site, a PAH conseguiu parar 1663 despejos até a data de 25 de agosto de 2015.

Una campaña que persigue la reapropiación ciudadana de aquellas viviendas vacías en manos de entidades financieras fruto de ejecuciones hipotecarias. De manera que en aquellos casos en que las concentraciones ciudadanas no consigan paralizar los desalojos la PAH apoyará y dará cobertura a las familias para que no se queden en la calle. El objetivo es triple: Primero, recuperar la función social de una vivienda vacía para garantizar que la familia no quede en la calle. Segundo, agudizar la presión sobre las entidades financieras para que acepten la dación en pago. Y tercero, forzar a las administraciones públicas a que adopten de una vez por todas las medidas necesarias para garantizar el derecho a una vivienda (PLATAFORMA DE AFECTADOS POR LA HIPOTECA, Obra Social La PAH, 2011, negrito no original).

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Conforme explicitado acima, quando os diálogos e as ações de stop desahucios falham, a Plataforma inicia o apoio às famílias para a ocupação de seus imóveis. É através da Obra Social La PAH que famílias recebem orientações de como ocupar suas antigas moradias, das quais foram despejadas por falta de pagamento da hipoteca – segundo o site, 2500 pessoas foram realojadas pela PAH até 25 de agosto de 2015. Desta maneira, buscam pressionar mais fortemente as entidades financeiras e a administração pública pelo fim das dívidas e a garantia do direito à habitação, além de garantir o cumprimento da função social da propriedade. Assim, nos últimos anos observou-se na Espanha o crescimento de ocupações para a moradia.

Imagens 1 e 2 – Logos das campanhas Obra Social La PAH e Stop Desahucios, da PAH.

Fonte: site da PAH. Disponível em: . Acesso 25 ago. 2015.

É interessante observar também a importância que a PAH adquiriu nesses anos na política espanhola, culminando com a eleição de Ada Colau, em maio de 2015, como prefeita de Barcelona. Ada Colau, conhecida ativista social e ex-okupa, foi uma das fundadoras e principais representantes, além de porta-voz, da PAH.

3.2 As ocupações empresariais

A ocupação de imóveis vazios possibilita a criação de estabelecimentos (comerciais ou não) sem a necessidade de recorrer à burocracia governamental e a 54

grandes quantidades de dinheiro. Apesar de o fator habitacional estar presente, este não se constitui como o objetivo principal dessas ocupações, o que as aproxima da configuração de entrepreneurial squatting, conforme classificada por Pruijt (2013). Existem ocupações que se transformaram em bar, discoteca, galeria de arte e livraria44; mas os estabelecimentos mais comuns neste tipo de ocupações são os centros sociais.

3.2.1 Os Centros Sociais Okupados

Conforme aponta Mudu (2013), os centros sociais existem desde finais do século XIX e ao longo dos anos adquiriram diversas configurações – como cooperativas, organizações mutuarias, Case del Popolo (“casa do povo”) e centros comunitários financiados pelo poder público. Com o declínio da importância social dos sindicatos e partidos políticos, esses centros ajudam a diminuir a solidão e a formar identidades. Assim, muitos Centros Sociais Okupados Autogestionados (CSOAs) são decorrentes da pequena quantidade (ou inexistência) de espaços públicos de sociabilidade45. Atualmente, a ocupação é parte estratégica de diversos centros sociais, com intuito de mostrar a dificuldade de acesso a bens por parte da população, além do desperdício e a especulação decorrentes do sistema capitalista.

É fato irrefutável de que, desde o início, o objetivo dos Centros Sociais não foi o de tomar o poder, mas sim ajudar a quebrar as estruturas existentes e de terem suas práticas interpretadas como uma “saída” ou um “grito” contra os métodos dominantes (MUDU, 2013, p.84, tradução nossa)46.

Diante disso, concordamos com a definição italiana para CSOAs, dada por Piazza (2013), como espaços autônomos criados por pessoas com afinidades esquerdistas, que ocupam edifícios ociosos, onde se desenvolvem atividades contraculturais, sociais e políticas. Seu princípio é a contestação da burocratização

44 A autora pode ver esses exemplos em Amsterdã e Paris. 45 Este aspecto foi levantado por diversas pessoas, inclusive idosos, entrevistados pela mídia que cobriu o despejo e manifestações decorrentes do Centro Social Autogestionado (CSA) Can Vies, em Barcelona, em junho de 2014 (Ver Mapa 1, com a localização do CSA Can Vies, no final do item 3.1). 46 “It is an irrefutable fact that, from the outset, the declared aim of Social Centers has not been to seize power, but to help break up existing power structures and that all these practices can be interpreted as an ‘‘exodus’’ from, or ‘‘scream’’ against, dominant practices” (MUDU, 2013, p.84).

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dos modelos de associações e partidos vigentes, propondo, então, formas de participação e ação mais horizontais. A variedade de CSOAs é grande, sendo alguns concentrados apenas em atividades festivas, outros no desenvolvimento de atividades para e com a vizinhança, outros interessados em ampliar práticas/ações ainda marginais e ainda outros mais ligados a novas formas de sustentabilidade ecológica e econômica. Apesar dessa diversidade, Mudu (2013) apresenta algumas características comuns aos centros sociais47: o Adoção da nomenclatura CSOA ou CSA (Centro Social Autogestionado); o Autogestão e produção de eventos sociais, políticos e culturais, por meio de encontros abertos; o Financiamento por meio de produtos vendidos (a baixo preço) nos eventos organizados, resultantes de produção voluntária; o Formação de uma rede baseada nas similaridades políticas.

Segundo Martínez (2013), a ocupação de imóveis vazios como forma de moradia sempre foi uma das formas de atuação dos okupas, porém sua força e notoriedade cresceram a partir do estabelecimento de CSOAs, quando a função residencial tornou-se integrada a novas atividades, ligadas aos aspectos político, produtivo e de contracultura. A partir de então, os movimentos de ocupação começaram a estabelecer alianças com outros movimentos sociais existentes, e se iniciou um maior envolvimento dos okupas com as dimensões local e global. Neste sentido, as ocupações relacionadas a ações de contracultura possuiriam maior

47 Mudu (2013) se detem apenas no caso de centros sociais na Itália, porém as características que estabelece não são exclusivas deste país. A autora pôde observar essas características no CSA Can Vies, que foi capaz de mobilizar, em escala nacional, protestos em repúdio ao seu despejo – conhecido na internet como #EfecteCanVies (Efeito Can Vies). Em virtude do grande apoio recebido pelo CSA dentro e fora de Barcelona – na cidade, os protestos ocorreram todos os dias durante uma semana, muitos com confrontos entre manifestantes e polícia –, os ocupantes conseguiram interromper a demolição do edifício que albergava o centro e, através da ajuda de inúmeros voluntários, iniciaram a sua reconstrução. Esta foi possível através da doação de materiais de construção, além da venda de bebidas e refeições a baixo custo e da organização de um crowdfunding (financiamento coletivo) pela internet – em menos de um mês o coletivo arrecadou 89.760 Euros em doações para a reconstrução do edifício e despesas judiciais com os detidos durante a semana de manifestações (Fotografias 1, 2, 3 e 4, na próxima página). Durante todo o processo foram organizadas assembléias semanais abertas a todos que quisessem participar. 56

vocação para escala global do que as ocupações para a moradia48. Os CSOAs também ajudam a aumentar a rede de conexões de ativistas, pois possuem uma capacidade maior de incluir uma variedade de atores e de diminuir o preconceito sobre as ocupações.

Fotografias 1 e 2 – CSA Can Vies após o despejo: à esquerda, um dia após e, à direita, quatro dias depois.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Fotografias 3 e 4 – CSA Can Vies em reconstrução: à esquerda, domingo seguinte após o despejo – segundo dia de reconstrução – e, à direita, após uma semana de reconstrução.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

3.2.1.1 Novos modelos de centros sociais: os bancos expropriados

48 Martínez (2013) apresenta uma série de eventos e manifestações organizadas por CSOAs espanhóis nas últimas décadas em apoio a movimentos alterglobalistas não só na Espanha como em todo o mundo, demonstrando a dimensão global dos centros. 57

El Banc Expropiat de Gràcia49 (Fotografias 5 e 6) inaugurou, em outubro de 2011, um novo tipo de ocupação: a de centros sociais okupados em antigas agências bancárias. Hoje são pelo menos sete apenas na cidade de Barcelona: El Banc Expropiat, Ateneu La Porka (Fotografias 7, 8 e 9, nas próximas páginas), Casal Tres Lliris (Fotografia 10), Ateneu Entrebanc, CSO La Vaina, CSOA La Industria e Ateneu Popular El Rec50 (Ver Mapa 1 com a localização dos CSOs em bancos visitados, no final deste item). Assim como as demais ocupações – e CSOs –, a ocupação de bancos contesta a propriedade privada e o sistema capitalista através da autogestão e da construção de espaços autônomos.

Fotografias 5 e 6 – À esquerda, entrada do Banc Expropiat, no bairro de Gràcia; à direita, pôster de apoio ao Banc, com a frase “Nós também somos o banco expropriado!”, na ocupação Kasa de la Muntanya.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

O diferencial neste novo modelo de ocupações está no tipo de imóvel ocupado – antigas agências bancárias – e a sua importância simbólica. Neste sentido, os ocupantes entendem essas ocupações como uma forma de expropriação bancária, com intuito de devolver ao povo o que lhe pertence, já que, conforme ressaltam em seus sites e manifestos, os bancos espanhóis foram resgatados com dinheiro público51, porém, ao se salvarem, deixaram inúmeras propriedades vazias e inutilizadas, tudo às custas de inúmeras privações para o contribuinte. Segundo o manifesto do Entrebanc,

49 O imóvel onde se localiza El Banc era uma agência da Caixa Tarragona (atual CatalunyaCaixa, após a fusão com a Caixa Catalunya e a Caixa Manresa) e hoje é propriedade de um grande incorporador imobiliário da cidade. 50 Segundo informações obtidas pela autora durante o workshop do SqEK. 51 A autora fez uma busca na internet com intuito de descobrir o valor da ajuda governamental espanhola aos bancos, porém, as informações variam e os dados são incertos: os valores encontrados variam de 1,4 bilhões a 62 bilhões de euros. 58

Um espaço abandonado por um banco que recebeu dinheiro público só pode ser concebido como um espaço público ao alcance de toda gente. Um espaço recuperado, para libertar-nos da escravidão do capitalismo e auto- organizar-mos. Um espaço social, um ponto de encontro neste bairro tão distante e solitário. É por este motivo que este espaço deve ser gerido e aproveitado por todos e todas (ATENEU L’ENTREBANC, Manifesto).

Fotografias 7 e 8 – À esquerda, entrada do Ateneu La Porka, no bairro Eixample, à direita com membros do SqEK à frente da mesma porta.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Como os demais tipos de ocupações, não é possível afirmar que todos os bancos ocupados possuem as mesmas características, mas algumas em comum puderam ser observadas pela autora em suas visitas: o caráter libertário dos CSOs, o convívio amigável com vizinhos e outros movimentos sociais (desta forma, os bancos expropriados tornaram-se pontos de encontro para diversas redes de assembleias, cooperativas e grupos sociais – Ver Fotografia 9, na página seguinte), além de diversas atividades desenvolvidas em comum (entre elas destacamos: oficinas de idiomas, de dança e teatro; loja de roupas e livros gratuitos52; biblioteca social; ajuda a pessoas que queiram okupar). Diante do exposto acima, vemos que os bancos expropriados compõem ocupações que buscam atender as necessidades radicais da sociedade, através de

52 Não são pontos de troca de roupa e livros, mas pontos onde se pode pegar o que quiser e, quando puder, deixar o que tiver. 59

uma organização horizontal autogestionada, as lutas contra a mercantilização da cidade e da submissão do valor de uso ao valor de troca.

Fotografia 9 – Cartaz feminista no Ateneu La Porka53.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Fotografia 10 – Casal Tres Lliris, outra agência bancária okupada em Gràcia.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

53 A Vaga de Totes (Greve de todas, em português) é uma iniciativa de diversos coletivos feministas que busca dar visibilidade às condições de desigualdade de gênero. 60

Mapa 1 – Localização das ocupações visitadas em Barcelona.

Fonte: GeoFabrik OpenStreetMap. Elaboração: Karinna Paz. 61

3.2.2 As ocupações de artistas em Paris

Na França, a ocupação de imóveis abandonados não se caracteriza como um delito penal, sendo somente uma falta de caráter civil ou desobediência civil. Assim, as autoridades políticas e judiciais tentam tomar decisões equilibrando os direitos de moradia e de propriedade privada, ambos garantidos pela Constituição54. Em Paris, o interessante das ocupações é a grande diversidade e a forma de intervenção adotada pelas autoridades estatais em cada caso. A maioria das ocupações é considerada “invisível” – que seriam as definidas por Pruijt (2013) como deprivation-based squatting (ocupação por privação) – e possui como ocupantes pessoas que realmente necessitam de uma alternativa de acesso à moradia. Grande parte destas ocupações localiza-se nos bairros mais distantes e nas periferias de Paris. Dentre as ocupações “visíveis”, a maioria (80%) está relacionada a atividades culturais, sendo ocupações artísticas ou centros culturais55. Os squats56 de artistas e de centros culturais possuem como objetivo principal a construção de uma espaço coletivo para diferentes tipos de encontros e atividades ligadas ao dia-a-dia (festivais, oficinas, creches, exposições etc.). Sua existência está intimamente ligada ao problema de espaços culturais em Paris: segundo pesquisas de Aguilera (2013), um artista pode demorar até 30 anos para obter a licença para uma oficina ou ateliê, sendo, por isso, ocupar a solução encontrada. Segundo o mesmo autor, desde a eleição do prefeito socialista Bertrand Delanoë, em 2001, os atores públicos estão mais tolerantes para com essa tipologia de ocupação que, além de fornecer cultura em lugares onde o Estado não consegue, ajuda a construir a ideia de uma capital cultural europeia – estratégia adotada pelo governo no âmbito do city marketing.

É um bom negócio para todos nós. O município não tem que pagar pelos reparos e segurança. Para os ocupantes, é uma oportunidade de obter uma moradia legal por algum tempo. Quando temos um edifício sem qualquer projeto previsto os chamamos e eles o ocupam (Housing Department

54 Ressaltamos, porém, que esse equilíbrio não é obtido em diversos casos, em especial quando as ocupações envolvem imigrantes (na França são, em sua maior parte, negros e árabes) e/ou são ocupações por privação. Por outro lado, o equilíbrio é facilmente encontrado por juristas e governantes quando as ocupações são artísticas e culturais, promovidas por europeus (e brancos). 55 Segundo Aguilera (2013), o restante seria de ocupações políticas (10%) e emergenciais (10%). 56 Apesar de ser uma palavra inglesa, squat é correntemente utilizada na França para designar ocupações.

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director of the Municipality of Paris apud AGUILERA, 2013, p. 223, tradução nossa)57.

Para melhor regular as ocupações, o Conselho Municipal de Paris resolveu criar dois instrumentos políticos: propostas de projetos e contratos jurídicos. O primeiro instrumento refere-se a uma chamada pública para propostas de projetos a serem desenvolvidos em determinado local e em parceria com os departamentos de habitação ou cultura. Assim, os ocupantes são sujeitos a normas jurídicas estabelecidas pelos planejadores urbanos e pelo governo. O segundo instrumento constitui-se como um contrato jurídico de locação entre os ocupantes e o dono do edifício, no qual se estabelece um período para uso e um preço a ser pago pelo aluguel – sendo este mais baixo, em comparação aos preços do mercado imobiliário. Nesta conjuntura se encontra o aftersquat 59 Rivoli - Chez Robert Electron Libre58 (Fotografia 11), localizado no 1º arrondissement, o mais antigo da cidade, estando, assim, em pleno centro histórico, político, cultural e comercial de Paris.

Fotografias 11 e 12 – Aftersquat 59 Rivoli: escadaria no interior, à esquerda, e fachada, à direita.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

57 “It’s a good deal for all of us. The municipality doesn’t have to pay repairs and surveillance. For the squatters, it is an opportunity to get a building legally for some time. When we have a building where we don’t have any project we call them and they squat” (Housing Department director of the Municipality of Paris apud AGUILERA, 2013, p. 223). 58 O nome 59 Rivoli é uma referência ao endereço do edifício (59, Rue de Rivoli).

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O aftersquat está a apenas alguns quarteirões do Museu do Louvre, do Hôtel de Ville (sede das instituições do governo municipal) e da Catedral de Notre Dame, por exemplo; e, ainda, parte do térreo do edifício é ocupado por uma loja da rede de cosméticos mundialmente famosa: M·A·C – MAC Cosmetics (Fotografia 12, na página anterior). É interessante observar que, sob a ótica das ocupações europeias, as ocupações em Paris são menos radicais, pois tendem a aceitar mais facilmente as formas de legalização propostas pelo governo e sendo, às vezes, por ele cooptadas através de regulamentos. Neste sentido, podemos entender esses squats (ou aftersquats) parisienses como práticas espaciais sob dois aspectos: territorialização no sentido estrito e refuncionalização do espaço material. Apesar disto, não podemos definir essas ocupações como emancipatórias, afinal, elas não possuem características de críticas ao Estado e também não buscam a transformação da realidade da sociedade. Assim, esses modelos estariam interessados em suprir as carências/necessidades “não radicais” dos artistas: um local para produzir, expor e vender suas artes. Porém, a permanência de um coletivo independente, oriundo de uma ocupação, em pleno centro de Paris é algo no mínimo curioso: um contraponto às formas dominantes de apropriação e uso da área.

3.3 As ocupações como estratégia de habitação alternativa: o exemplo do Vall de Can Masdeu, Barcelona

Uma das configurações propostas por Pruijt (2013) é a de ocupação como estratégia de habitação alternativa (squatting as an alternative housing strategy), que se diferencia da ocupação por privação (deprivation-based squatting) por ser menos restritiva em termos da origem dos ocupantes. Assim, essa configuração não é exclusiva de pessoas pobres e com necessidades habitacionais, abrigando pessoas sem necessidade urgente de moradia, como estudantes, artistas e classe média. A principal diferença, porém, está no fato da ocupação como estratégia de habitação alternativa possibilitar à pessoa viver da melhor forma que lhe interessa. Diante disso, os ocupantes não se apresentam como pessoas que necessitam de ajuda, mas sim como orgulhosos de arrumar uma solução própria para a habitação.

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Essa configuração pode apresentar problemas de legitimidade justamente pela ausência de urgência da moradia, podendo haver conflitos com os “verdadeiros” necessitados59. Neste sentido, os ocupantes buscam imóveis que não apresentam possibilidades de serem projetos habitacionais, como grandes edifícios sem divisões em apartamentos – caso de antigas fábricas e hospitais – mas que ainda possibilitem a vida coletiva e, por isso, são ocupados. Este é o caso de Vall de Can Masdeu, a ser abordado a seguir, que esperamos ser demonstrativo do tipo capaz de suprir as necessidades radicais, ou seja, as que não podem ser satisfeitas somente pelo dinheiro e pelo trabalho.

Fotografia 13 – Vall de Can Masdeu: o edifício okupado e parte de suas hortas.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

O vale de Can Masdeu é uma área de 35 hectares, parte do Parque Natural de Collserola e propriedade do Hospital de Sant Pau, localiza-se em uma área periurbana, na divisa entre a região metropolitana de Barcelona e a região dos vales – ou Vallès (Ver Mapa 1, com a localização da ocupação, no final do item 3.1). O edifício serviu como uma colônia de leprosos até as primeiras décadas do século XX; depois seu edifício funcionou como reformatório para crianças até meados dos anos 1960. Desde então o edifício permaneceu vazio, apesar de terem sido

59 Lembrando Heller (1996), que nenhuma carência pode ser considerada falsa ou irreal, a não ser as que dependam do uso de um homem como meio para outro, por isso utilizamos as aspas.

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pensados diversos projetos para o local, como zoológico, prisão, área residencial privada para aposentados, centro de acesso ao Parque de Collserola e albergue juvenil. Em dezembro de 2001, algumas pessoas ocuparam a área e criaram um coletivo que recuperou o espaço, criando uma rede de projetos. A ocupação ocorreu em um edifício e nas terras circundantes a ele (Fotografia 13, na página anterior), mas a propriedade ainda conta com mais um edifício, hoje utilizado parcialmente como depósito e arquivo do Sant Pau, com um vigia vivendo ali60. Durante a ocupação, os okupas enfrentaram um sítio policial de três dias, enquanto sofriam pela degradação de sua saúde e ameaça de vida, já que não recebiam água e comida. O sítio terminou somente quando o juiz responsável pelo caso declarou que o direito à vida está acima do direito à propriedade e suspendeu o despejo61. Segundo o site do coletivo, trata-se de “um ato de desobediência criativa ao mundo do dinheiro, da fumaça e das ordenanças do ruído e da velocidade. Uma proposta de cooperação coletiva e da convivência entre gerações aos pés de Collserola e com raízes em Nou Barris” (VALL DE CAN MASDEU, Qui Som, tradução nossa)62. Can Masdeu conta com cinco projetos: vida comunitária, assembleia de Hortos Comunitários, Punt d’Interacció de Collserola (PIC) – ou Ponto de Interação de Collserola –, visitas de educação agroecológica e projetos de permacultura. Atualmente, devido à falta de espaço para maior número de moradores, apenas 30 pessoas vivem no local, dentre as quais cinco são crianças63. Os projetos ali desenvolvidos, contudo, atraem centenas de pessoas durante a semana, além de visitantes para as atividades e visitas guiadas aos domingos64.

60 O coletivo alega não ter força e/ou poder para ocupar o prédio vizinho, mas afirma que apoiaria outro grupo que quisesse levar adiante a ocupação. 61 Durante esses dias, inúmeros simpatizantes e ativistas se reuniram no terreno e acamparam em apoio à ocupação. 62 “Un acte de desobediència creativa al món dels diners, del fum i les ordenances, del soroll i la velocitat. Una proposta de cooperació col·lectiva i convivència entre generacions als peus de Collserola i amb les arrels a Nou Barris” (VALL DE CAN MASDEU, Qui Som). 63 Nem todas as pessoas moram no edifício principal, algumas construíram anexos ao edifício ou suas próprias casas no terreno, através de materiais reciclados e naturais. 64 Em 8 de junho de 2014, na primeira vez que a autora pode visitar a ocupação, havia mais de uma centena de visitantes que participaram das oficinas de escalada e de costura, além da apresentação teatral, da visita guiada e do almoço. Após o almoço – vendido a preço simbólico – cada visitante é responsável por lavar os utensílios emprestados, por meio de um sistema de economia de água: se utilizam bacias com água, na primeira a louça é mergulhada para tirar o excesso de resíduos, depois se ensaboa e se faz o primeiro enxágue para retirar o sabão na segunda bacia e, por fim, retira-se todo o excesso de sabão na última bacia. Em 24 de maio de 2015, as atividades do workshop do SqEK foram realizadas em um domingo aberto na ocupação. Além das atividades internas do SqEK – que contaram com cerca de 30 pessoas

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O Can Masdeu busca a autonomia e a autogestão, que possibilitariam a tomada de decisões próprias sem o envolvimento com as dinâmicas socioeconômicas vigentes. Através de um intercâmbio cada vez maior dentro das redes de economia solidária, buscam autonomia, mas não autossuficiência, com intuito de transformar o sistema a partir de uma forma de lutar coerente com sua maneira de viver. O grupo ainda afirma que acredita na propriedade de uso mais do que na propriedade privada; assim, possuem diversos recursos em comum, desde ferramentas, livros e computadores a móveis, cozinhas, dispensas, lavanderias e carros.

Fotografia 14 – Área de cultivo do Vall, com a cidade de Barcelona ao fundo à esquerda.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Atualmente, o Vall de Can Masdeu é responsável pelo cultivo e colheita de 80% da verdura que consome (Fotografia 14, acima), além da elaboração de pão, mel, óleo, preparados medicinais, azeitonas, cerveja e outros alimentos produzidos artesanalmente. O restante da comida – inclusive a vendida nos domingos e festas – é adquirido em cooperativas de alimentos orgânicos. A calefação e a água quente

–, houveram oficinas de matemática, sedução para homens, além da exibição do documentário Temps de Can Vi(e)s e de coletivos de arte, ligados ao SqEK – Sublevarte e Úter –, que contaram com a presença de dezenas de pessoas. Também é interessante ressaltar que cerca de quinze pessoas que participavam do workshop se hospedaram em Can Masdeu, podendo conviver com seus moradores durante cinco dias. A autora, porém, só pode dormir no Vall por uma noite.

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são proporcionadas pelos fogões a lenha e painéis solares, construídos por eles próprios. Muitos utensílios, equipamentos e aparelhos utilizados são feitos de materiais reciclados. Desde o início, o coletivo buscou se aproximar da vizinhança, culminando com a atual situação de que parte da terra disponível na propriedade é horta para os vizinhos, sendo cultivada por estes. O grande problema enfrentado para manutenção e desenvolvimento de Can Masdeu é o acesso à água. Pela sua localização e situação de ilegalidade, a propriedade não é abastecida pela Prefeitura de Barcelona, sendo a água utilizada a encontrada em poços ou captada pela água da chuva. Assim, a economia e o reaproveitamento da água são essenciais para a comunidade são utilizados produtos ecológicos para a lavagem, o que permite a reutilização da água nos cultivos; os chuveiros e duchas são de uso coletivo e estão localizados fora do edifício – com uma bela vista para o parque e Barcelona – e os banheiros secos – o que, além de não necessitar de água, transforma os dejetos em adubo após um tempo em composteira.

Fotografia 15 – Símbolo okupa no topo do edifício de Can Masdeu.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Neste sentido, salientamos que o Vall de Can Masdeu busca a gestão agroflorestal e não um lugar intocável, é um projeto que busca conter o avanço da cidade em direção ao campo. Para isto, vale-se do uso comunitário e dos usos

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tradicionais agroflorestais, do reflorestamento e da reabilitação da infraestrutura agrícola. Diante dos aspectos apresentados por Pruijt (2013) e explorados anteriormente, o projeto desenvolvido no Vall se caracteriza como uma ocupação como estratégia de habitação alternativa (Fotografia 15, acima), pois é composto por pessoas que não possuem necessidade urgente de moradia, mas que buscam viver de forma diferente da tradicional. O projeto não se encaixa nos moldes de um CSOA pois a moradia alternativa é um de seus principais objetivos. Diferentemente de CSOAs, Can Masdeu não está aberto a “forasteiros”65 todos os dias, mas apenas em dias específicos da semana (quinta, sábado e domingo), intitulados dias oberts (dias abertos), e em festas, sendo uma delas a do aniversário da ocupação. Porém, um dos projetos presentes, o PIC, é um centro social que desenvolve atividades e oficinas voltadas para agroecologia, permacultura, artesanato, dança, teatro e pensamento crítico. Pruijt (2013) afirma que: Existe a configuração ‘ocupação como uma estratégia de habitação alternativa’, onde o objetivo é abrigar-se, e há também o que relaciona a ocupação à contracultura: as oportunidades para a expressão contracultura são um bônus que aumenta a atração de uma ocupação, e quando alguém já está estabelecido na ocupação, ele pode encontrar um ambiente que é propício ao desenvolvimento da contracultura (PRUIJT, 2013, p.49, tradução nossa)66.

Assim, a contracultura não é ponto central para o entendimento desta configuração, mas apenas um atrativo a mais, já que a necessidade de espaço e moradia continuam sendo os objetivos, porém a ocupação possibilita a expressão e o desenvolvimento da contracultura. Neste sentido, Can Masdeu oferece a oportunidade da situação habitacional se adaptar a um estilo de vida escolhido, possibilitando o empoderamento através da independência do Estado e do mercado para alcançar uma casa. Diante do exposto, podemos entender o projeto do Vall como um exemplo de

65 Com exceção dos vizinhos que cultivam em suas hortas. 66 “there is the configuration ‘squatting as an alternative housing strategy’ where the goal is to house oneself, and in which there is a two-way relation between squatting and countercultural expression: the opportunities for countercultural expression are a bonus that adds to the attractiveness of squatting, and once someone is settled in a squat, she or he will find an environment that is, to some extent, conducive to countercultural development” (PRUIJT, 2013, p.49).

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prática espacial insurgente, na medida em que se trata de uma territorialização estrita, com refuncionalização/reestruturação do espaço material, ressignificação de um lugar, além da criação de circuitos econômicos alternativos e de redes espaciais. Ou seja, trata-se da apropriação de uma espaço pela presença física duradora, através da adaptação de um antigo hospital a uma nova função – a moradia –, esta carregada de simbolismo por apresentar uma alternativa ao modelo vigente, e da criação de alternativas ao mercado e o modo de produção capitalista. Podemos citar a existência da loja grátis, a implantação do modelo de baixo custo, além da produção, consumo e propriedades coletivos. Todos esses aspectos são acompanhados por uma rede de apoio e de trocas com outras ocupações e movimentos sociais urbanos, além da participação da rede do SqEK. De forma resumida, podemos entender que o Vall de Can Masdeu busca suprir as necessidades radicais, sendo elas: o valor de uso superior ao valor de troca, o caráter libertário, a autogestão e a busca por um modo de vida alternativo ao capitalista. Sendo assim, a reprodução social de uma boa qualidade de vida é o objetivo principal desses ocupantes.

3.4 As ocupações conservacionistas: o exemplo da Regenbogenfabrik, em Berlim

As ocupações conservacionistas (conservational squatting) utilizam-se da tática de ocupação para a preservação de uma paisagem urbana, sendo o objetivo impedir a transformação de determinada área. Esta configuração também pode ajudar a interromper ou prevenir o processo de gentrificação67, já que busca preservar a função da área. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, Berlim viveu uma crise de política urbana, na qual 80 mil pessoas estavam cadastradas para receber casas do governo, enquanto 27 mil apartamentos estavam vazios. Segundo Holm; Kuhn (2013), os proprietários e imobiliárias abandonavam os imóveis na esperança de que fossem incluídos em projetos de renovação – ou seja, que fossem demolidos,

67 A gentrificação se caracteriza pela expulsão da população de baixa renda e a atração da classe média para determinadas localidades, que adquirem novas formas e funções, em decorrência de projetos de requalificação ou revitalização (BIDOU-ZACHARIASEN, 2006).

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reformados ou modernizados com fundos estatais – para, posteriormente, aumentar o valor dos aluguéis. A dinâmica das ocupações está ligada às mudanças de estratégias de renovação urbana; assim, as ocupações deste período em Berlim buscavam tanto aumentar a aceitação do “novo” método de desobediência civil, quanto a reabilitação de edifícios, servindo tanto como crítica ao modelo de renovação urbana adotado pelo governo e agentes imobiliários, quanto como um novo instrumento de renovação. Durante o verão de 1981 em Berlim houve um boom de ocupações68, decorrentes de um despejo ilegal e violento feito pela polícia. Esse grande número de ocupações significava também diferentes interesses e estratégias, fato que não gerou conflitos entre elas até o início da legalização das antigas e de tolerância zero a novas ocupações pelo governo. A partir de então, iniciou-se um confronto entre os “negociadores” – aqueles que concordaram com a legalização das ocupações pelo governo – e os “não-negociadores”, que resultou, em 1984, no saldo de 105 ocupações com contratos de legalização e 60 despejadas. Neste sentido, a legalização significou a “pacificação” dos movimentos, decretando o fim da dimensão política para além da moradia das ocupações. O conflito entre “negociadores” e os “não-negociadores” existe em diversos países, sendo mais intenso em alguns, como na Espanha69. Conforme apontam Martínez; Azozomox; Gil (2014), na Alemanha, em especial em Berlim, as negociações com o Estado e as legalizações sempre foram vistas como forma de postergar ou evitar o despejo; essa aceitação à negociar surge como consequência da lei aprovada em 1981, conhecida como Berliner Linie, que permitiu o despejo das ocupações em seus primeiros dias sem a necessidade de ordem judicial. “As negociações com as autoridades do Estado e a legalização das ocupações são algumas das formas que os ocupantes podem usar para manter suas lutas políticas

68 Até dezembro de 1980, contabilizavam-se 21 imóveis ocupados em Berlim, ao final do verão de 1981, esse número subiu para 165 (Holm; Kuhn, 2013). 69 Em 2015, o conflito se acirrou em Madrid, onde está em pauta um projeto para cessão de uso de espaços municipais para a criação de novos ou a legalização de antigos centros sociais autogestionados. Desta forma, alguns centros sociais ocupados poderiam acessar financiamentos e a propriedade do imóvel, o que gera intensos debates internos e externos no movimento okupa.

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e o seu modo alternativo de viver” (MARTÍNEZ; AZOZOMOX; GIL, 2014, p. 230, tradução nossa)70. Neste sentido, os autores apontam que a legalização não é necessariamente negativa, podendo ter aspectos positivos, afinal, a existência de um ambiente estável – sem preocupações com o despejo e futuras ocupações – possibilita que o foco do processo político se desloque para outros aspectos. As ocupações legalizadas podem permanecer como símbolos contra a dinâmica capitalista e, também, como pontos de apoio contra a expansão da renovação urbana e da gentrificação. Se a organização horizontal e a autogestão forem fortes anteriormente à legalização, continuarão sem problemas. Os autores ressaltam, também, consequências negativas como a sujeição à burocracia judicial e estatal; a perda de autonomia, em decorrência da necessidade de se adequar às normas das autoridades; e a possibilidade de perda do sistema horizontal, pois muitas ocupações são obrigadas a adquirir status de associações ou fundações71. Em março de 1981, antigas instalações fabris e um bloco adjacente de 18 casas foram ocupadas por cerca de 50 pessoas, no bairro de Kreuzberg, com o nome de Regenbogenfabrik – ou Fábrica Arco-Íris (Ver Mapa 2 com a sua localização ao final deste item). O objetivo era barrar a expansão imobiliária para aquela área, que levaria à demolição do conjunto para a construção de um edifício moderno, segundo informação disponível no site da ocupação. Esta proposta aproximava-se, assim, da configuração de ocupação conservacionista, descrita por Hans Pruijt, apesar de hoje o squat ir para além deste aspecto. À ocupação do conjunto seguiu-se a recuperação dos edifícios e a implantação de uma creche, um centro cultural e moradias (Fotografias 16 e 17).

70 “Negotiations with state authorities and legalization of squats are just some of the tools that squatters can use in order to continue their political struggles and alternative ways of living” (MARTÍNEZ; AZOZOMOX; GIL, 2014, p. 230). 71 Este processo, porém, é fácil de ser combatido se a autogestão implantada anteriormente for forte e eficaz. No caso de Christiania, a ser abordado no próximo item, a criação de uma fundação em nada afetou o funcionamento das decisões e organização, apenas serviu como uma ferramenta para a compra do terreno.

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Fotografias 16 e 17 – Regenbogenfabrik: à esquerda, em 1981, durante a ocupação e, à direita, em 1982, durante a recuperação do espaço.

Fonte: site da ocupação, disponível em: . Acesso 30 ago. 2014.

Com a política adotada pelo governo, em 1984, a Regenbongenfabrik firmou o acordo de contrato temporário de aluguel, porém, nunca pagou nenhuma das mensalidades acordadas. No mesmo ano, o parlamento decidiu comprar as instalações, o que só aconteceu em 1990. A partir de dezembro de 2011 a ocupação assinou um novo contrato, com prazo de 30 anos, legalizando-a e prevendo o pagamento de um aluguel para o distrito. Em 2013, os ocupantes tiveram que pagar um depósito para garantir que iriam cuidar dos edifícios, porém, para tal depósito foi necessário um empréstimo, que ainda pagam devido à alta taxa mensal de juros72. Atualmente o complexo, além do que já foi dito anteriormente, conta com um café-restaurante, oficinas de bicicleta e de madeira, cinema e um albergue – com preços mais acessíveis que os do restante da cidade (Fotografias 18 e 19, na página seguinte). É interessante observar que a ocupação conseguiu continuar – apesar de legalizada – em um bairro que é alvo constante dos agentes imobiliários, que promovem sua reestruturação, levando a um processo de gentrificação73. O bairro conta com diversas ocupações, porém muitas têm duração efêmera. Por exemplo, em 2014, uma ocupação de refugiados74 em uma escola fechada ganhou destaque nas redes sociais e na mídia.

72 Informações obtidas pela autora com Christine Ziegler, moradora de Regenbongenfabrik desde o seu início. 73 Segundo Christine Ziegler, a convivência com os vizinhos sempre foi pacífica, porém, as novas e intensas modificações vividas pelo bairro nos últimos anos deixam os ocupantes apreensivos. Afinal, novas pessoas, de outros lugares, com novos hábitos e pensamentos estão chegando e não se sabe qual será sua reação frente ao projeto. 74 Segundo informações obtidas durante a visita à Regenbongenfabrik e o workshop do SqEK, a ocupação seria mais uma efêmera se não fossem alguns refugiados que ameaçaram se jogar do teto,

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Fotografia 18 – Regenbogenfabrik, em 2009, com área recuperada.

Fonte: site da ocupação, disponível em: . Acesso 30 ago. 2014.

Fotografia 19 – Uma festa na Regenbogenfabrik, em 2013.

Fonte: site da ocupação, disponível em: . Acesso 30 ago. 2014.

A Regenbogenfabrik se iniciou como uma maneira de se conservar um espaço que estava prestes a ser “engolido” pelo capital imobiliário. A ocupação atende diretamente às necessidades habitacionais, já que os preços dos imóveis

caso fossem despejados. A partir de então o governo de Berlim permitiu que esses continuassem no local, porém, são proibidos de receber visitantes – uma patrulha policial controla a entrada e a saída de todos no edifício. Salientamos, ainda, o apoio e atuação da Regenbongenfabrik desde o início da ocupação dos refugiados.

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em Berlim têm aumentado muito nos últimos anos75. Porém, hoje podemos entendê- la como uma forma alternativa de habitação, no sentido de que dezenas de pessoas vivem de forma coletiva e autogestionada, o que demonstra uma tentativa em suprir as necessidade mais radicais dos seres humanos.

75 Em trabalho apresentado no workshop do SqEK, em 21 de maio de 2015, Andrej Holm apresentou dados que demonstram que sites de aluguel por temporada – como o Airbnb –, em conjunto com outros fatores, são responsáveis pela gentrificação e o aumento dos preços de aluguéis, já que é mais interessante alugar para turistas do que para habitantes da própria cidade. A mesma situação ocorre em Barcelona, segundo ativistas okupas.

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Mapa 2 – Localização da Regenbogenfabrik, em Berlim.

Fonte: GeoFabrik OpenStreetMap. Elaboração: Karinna Paz.

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3.5 De ocupação a fristaden: Christiania, Copenhagen

Em 26 de setembro de 1971, após diversas tentativas de, literalmente, “derrubar a cerca” que protegia um campo militar abandonado (Bådsmandsstræde Barracks), com cerca de 130 edifícios, localizado no centro de Copenhagen (Ver Mapa 3, no final deste item), um grupo de jovens hippies conseguiu ocupar a área (FALLESEN; HIND, 2014). Em pouco tempo a notícia se espalhou e se iniciou uma migração de pessoas de toda a Europa para o antigo campo militar, proclamando a área como uma cidade livre (Fristaden Christiania, em dinamarquês, ou Freetown Christiania, em inglês). Menos de um ano depois, em maio de 1972, o Ministério da Defesa dinamarquês autorizou a utilização, pelos ocupantes, dos edifícios e terrenos da área pertencente ao Estado desde que se responsabilizassem pelo pagamento da eletricidade e da água. Em 1973, após as eleições nacionais, Christiania ganhou do governo o status temporário de “experimento social”. Em 1989, o Christiania Act foi aprovado pela maioria do parlamento, o que possibilitou o uso coletivo da área. A “cidade livre” ocupa uma área de mais de 85 hectares e recebe mais de 1 milhão de visitantes por ano, sendo o segundo lugar mais visitado da Dinamarca. Aproximadamente 900 pessoas vivem ali, sendo que apenas um terço possui emprego fixo, enquanto o restante recebe ajuda da assistência social ou não possui renda oficial. Christiania é dividida em duas partes, uma central (“urbana”), onde se encontra a maioria das antigas instalações militares e outra parte com grandes áreas verdes, com caráter mais de campo (Ver Anexo A), onde os ocupantes construíram suas casas das mais diferentes formas e materiais. A maioria dos serviços e atividades coletivas se alojam nos antigos edifícios militares (Fotografia 20, na próxima página), assim como parte dos moradores, enquanto outros construíram suas próprias casas (Fotografia 21, na próxima página). As formas de viver dos christianites (como são chamados os ocupantes) também são distintas: alguns vivem em casas somente com suas famílias, enquanto outros vivem em casas coletivas, com mais de uma família ou com grupo de amigos. Uma das casas coletivas mais conhecidas, que, tradicionalmente, abriga imigrantes groenlandeses, se chama stjernenskibet (nave, em português) e se localiza na Pusherstreet – uma das principais ruas de Christiania. A casa possui salas comuns e alguns apartamentos, onde vivem cerca de 20 pessoas, porém,

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muitas outras utilizam o local apenas por uma ou duas noites, como um abrigo ou hostel.

Fotografias 20 e 21 – Exemplos de edificações existentes em Christiania: à esquerda, antigos edifícios militares da parte central; à direita, casa construída pelos ocupantes à margem do canal.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Desde o início, Christiania se baseia em princípios da democracia participativa, na forma de uma democracia descentralizada. Christiania está dividida em 15 áreas geográficas76 e os residentes de cada uma delas organizam encontros/reuniões – områdemøde (encontros da área) –, normalmente mensais, para discutir e decidir os problemas comuns de sua área; as decisões que afetam toda Christiania são levadas para o fællesmøde (encontro comunitário), a autoridade mais alta. Em ambos os modelos de reunião, as decisões são tomadas de forma consensual, ou seja, as discussões devem levar a um acordo comum. De uma forma geral, a convivência na área é guiada por nove proibições: armas, drogas pesadas, violência, carros particulares, símbolos/emblemas de gangues de motociclistas, colete à prova de balas, venda de fogos de artifícios, uso de sinalizadores e roubos (Fotografia 22, na próxima página). Os christianites não gostam de falar no assunto, apenas ficam felizes – e orgulhosos – pelo banimento de drogas pesadas do local77 (Fotografia 23, na próxima página). Entretanto, até hoje o comércio de “drogas leves” continua na Pusherstreet e no Green Light District, área que possui suas próprias regras: divirta-

76 As áreas são bem distintas entre si, tanto em tamanho quanto em número de pessoas, sendo que algumas contam com mais de 80 habitantes e outras com menos de dez. 77 As informações sobre esse assunto foram obtidas pela observação da autora e também por conversas com christianites e Michael, um amigo dinamarquês que a acolheu, que frequenta Christiania há anos e que possui diversos amigos que ali vivem e trabalham.

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se, não corra e não tire fotos (Fotografia 24, na próxima página); sendo esta a área mais visitada de Christiania78.

Fotografia 22 – Cartaz com as regras Fotografia 23 – Um dos inúmeros cartazes de Christiania. espalhados por Christiania79.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Março de 2004 foi uma data decisiva para a história recente de Pusherstreet. Foi quando as forças policiais assumiriam um rigoroso e constante controle da área. A consequência para Copenhagen e o restante da Dinamarca foi a mudança do tráfico de cannabis para outras partes de Copenhagen (FALLESEN; HIND, 2014, p. 50, tradução nossa)80.

Por vezes, a polícia de Copenhagen atua na área ou em seu entorno, com intenção de inibir o tráfico, sendo o episódio narrado na citação acima como um dos principais atos repressivos dos últimos anos, quando houve um grande número de apreensões e prisões. A polícia permaneceu por algumas semanas no local, em 2004, o que levou à mudança do ponto de local de tráfico para outros lugares em

78 Apesar de saber da venda de drogas no local, em minha primeira ida a Christiania me assustei. Cerca de um minuto após sair dos limites de Copenhagen, chega-se a uma esquina em que estão dois homens atentos a todos os movimentos. Ultrapassando-os, há uma rua com diversas barraquinhas protegidas por redes de camuflagem e com homens mascarados vendendo haxixe e maconha. Durante todo o dia, em especial pela tarde, o movimento de compradores é intenso e diversas barracas chegam a ter filas; muitos fumam ali mesmo e outros voltam para a cidade. 79 Os cartazes, em inglês ou dinamarquês, avisam que drogas pesadas, inclusive cocaína, foram banidas da cidade e que qualquer pessoa pode ser testada e, caso o resultado seja positivo, a pessoa será proibida de entrar nos limites da cidade. 80 “March 2004 is a decisive date in the recent history of Pusher Street. It was the time when police forces took to very strict and constant controls of the area. The consequence for Copenhagen and the rest of Denmark is that cannabis dealing has now simply moving to other parts of Copenhagen” (FALLESEN; HIND, 2014, p. 50).

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Copenhagen. Pouco tempo depois o governo optou por tirar a polícia de Christiania. A atuação da polícia levou a mudanças na forma de agir dos traficantes, culminando na situação descrita na nota 78, na página anterior. É interessante observar que parte das nove proibições de Christiania tem ligação direta com o tráfico de drogas, buscando preservar a calma na área81.

Fotografia 24 – Placa informando as regras e os limites do Green Light District.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Fotografia 25 – Bicicletas produzidas em Christiania.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Christiania não conta somente com imóveis residenciais. Possui diversos imóveis comerciais, como restaurantes, bares, mercearias, lojas, gravadora e

81 Segundo Michael, o tráfico de drogas em Christiania está ligado ao Hells Angels, o que justificaria, por exemplo, a proibição do uso de emblemas de motoclubes, além da dificuldade em acabar com o tráfico no local e o medo dos habitantes em falar sobre o assunto.

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galerias de arte. As bicicletas produzidas em Christiania são famosas em toda Copenhagen (Fotografia 25, na página anterior). Para os moradores ainda são oferecidos: uma loja de construção que conta também com materiais reciclados; uma casa de banho82; um posto de correio; além de berçário, creche, clubes de recreação e casa de jovens para as crianças. É importante ressaltar que os christianites, ao contrário do que muitos pensam, pagam impostos ao governo dinamarquês, assim como pagam pela eletricidade, calefação83 e água. Ademais, os moradores também são os responsáveis por tarefas e serviços como creches, clubes de jovens, correios, coleta de lixo, reciclagem84 e manutenção da infraestrutura da área. Os conflitos com o governo dinamarquês existem desde o início da ocupação e planos de legalização e normalização da área são elaborados frequentemente.

Somente em 2012 os christianites decidiram aceitar a proposta do governo dinamarquês e compraram os edifícios e a área ocupada por 125 milhões de coroas dinamarquesas (aproximadamente 16,8 milhões de euros), sendo 40 milhões de coroas dinamarquesas deduzidas pelo compromisso de Christiania em renovar e manter as instalações de água, esgotos, eletricidade, direitos de passagem e espaços rurais. Uma Fundação – forma encontrada para possibilitar a compra do terreno, já que a legislação dinamarquesa não prevê a propriedade coletiva – foi criada para comprar Christiania, a partir de “ações sociais" e empréstimos. Atualmente, a parte central de Christiania já pertence aos moradores, que continuam a campanha de arrecadação para a compra do restante da área (Ver Anexo A)85. A escolha de Christiania para esta pesquisa decorre de seu histórico de contestação do sistema político vigente. Influenciados pela contracultura e o ideário de uma sociedade alternativa, os primeiros ocupantes começaram a transformar o então abandonado campo militar em uma verdadeira comunidade. Christiania hoje é considerada uma cidade livre – e por alguns a única cidade anarquista do mundo –,

82 A casa de banho (badehuset), que também inclui uma sauna, foi construída para suprir a ausência de banheiros em diversas casas de Christiania; hoje, porém, é utilizada mais como forma de sociabilidade. 83 Na Dinamarca, ao contrário de diversos países europeus, como a Espanha, a calefação também é um serviço público, sendo fornecida por concessionárias do governo. 84 Na folkekokken, toda quinta-feira, ativistas cozinham a partir de restos de alimentos jogados fora por restaurantes e lojas na noite anterior, sendo as refeições vendidas a baixo preço (FALLESEN; HIND, 2014). 85 Muitos dinamarqueses se recusam a ajudar na arrecadação por acreditar que a comunidade teria dinheiro suficiente para a compra devido ao intenso comércio de drogas, porém, este dinheiro se direciona aos traficantes e não aos ocupantes.

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possuindo suas próprias regras, impostos e modos de decisão, por meio da autogestão. Ao longo dos anos sofreu inúmeras pressões para a desocupação do espaço, mas sempre as venceu, em grande parte pela relevância que a cidade livre alcançou dentro da própria sociedade e estado dinamarqueses, tornando-se parte integrante dessa cultura. Assim como o caso do Vall de Can Masdeu, Christiania busca suprir as necessidades radicais das pessoas que a habitam, estando sempre em busca do valor de uso e não do valor de troca. E também se trata de uma prática espacial insurgente, atendendo a todos os tipos86 propostos por Souza (2010).

Procuramos demonstrar, neste capítulo, a diversidade de sentidos das experiências de ocupação. Neste sentido, focamos nos exemplos de ocupações que não estão centradas na necessidade habitacional, não deixando de frisar que as ocupações por privação ainda são numerosas e importante em todo o mundo.

86 Com excessão da territorialização no sentido amplo, mas entendendo que ela é oposta a territorialização estrita, uma mesma prática não poderia conter as duas.

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Mapa 3 – Localização de Christiania em Copenhagen.

Fonte: GeoFabrik OpenStreetMap. Elaboração: Karinna Paz.

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4 OCUPAÇÕES BRASILEIRAS: DA PRIVAÇÃO ÀS NECESSIDADES RADICAIS?

Conforme abordado na Metodologia (item 1.2), um grande empecilho ao desenvolvimento da pesquisa foi adequar as ocupações brasileiras às configurações propostas por Pruijt (2013), como explicaremos adiante. No Brasil há uma grande diversidade de ocupações, assim como na Europa e no restante do mundo, porém, no caso brasileiro, grande parte está relacionada à privação habitacional. Desta forma conseguimos diferenciar dois “modelos” de ocupações ligadas à privação: as “desorganizadas” – conforme explicitado na Introdução, nota de rodapé 6 – e as organizadas. As primeiras não possuem projetos políticos e também não almejam alcançar nada além da própria moradia, o que as diferencia das ocupações organizadas. Estas, por sua vez, partem da privação das pessoas para, então, procurar realizar a politização e a organização em prol de uma política de direito à cidade. A partir desta diferenciação, entendemos que as ocupações “desorganizadas” brasileiras possuem diversas características em comum com as ocupações por privação (Deprivation-based squatting) de Pruijt (2013), enquanto as ocupações organizadas se diferenciam por possuirem projetos políticos claros e duradouros, que almejam transformações sociais mais profundas, para além do problema imediato da moradia. Com este novo enquadre, surge a questão: como enquadrar a Manoel Congo (e demais ocupações organizadas) nas configurações de Pruijt (2013)? Como ocupação por privação? Porém, como define Pruijt, nessa configuração não se deseja nada além da própria moradia, não existem projetos políticos elaborados e por vezes os ocupantes não se identificam como ativistas ou pessoas com consciência política. Outra possibilidade: ocupação como estratégia de habitação alternativa? Seguindo o autor, os ocupantes dessa configuração visam a habitação coletiva, são pessoas que querem viver juntas e criar um novo modo de ser e viver. Os ocupantes da Manoel Congo, porém, não buscam viver de forma “coletiva” como tal. Desejam, sim, aparatos coletivos que possam ser utilizados por todos e como forma contínua

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de sociabilidade e politização, mas para eles é essencial que cada família possua sua própria casa, seu próprio local87. Como ocupação empresarial? Dentre os projetos desenvolvidos pelas ocupações do MNLM-RJ estão os centros sociais, a cooperativa Liga Urbana, restaurante. Eles surgem, porém, como forma de geração de renda e de emprego para os próprios ocupantes, a partir da percepção de que a moradia não é suficiente para garantir todos os direitos e acessos da pessoa. Desta forma, diferenciam-se das ocupações empresariais, nas quais desenvolver apenas projetos sociais ou ganhar dinheiro é o foco. Como ocupação conservacionista? Por mais que o edifício da Manoel Congo seja antigo, ele não está localizado em uma área que, à época, estava em risco de sofrer reabilitação ou sucumbir a grandes projetos88. Como ocupação política? Apesar dos ocupantes estarem ligados a lutas anti- sistêmicas, a ocupação não é somente um meio; afinal, a moradia é o viés indutor de toda a movimentação. Diante do exposto acima, vemos que o diálogo com Pruijt (2013) não esgota o mapeamento das ocupações no Brasil. Desta forma, a autora entende que a Manoel Congo, assim como as demais ocupações organizadas por movimentos sociais no Brasil, possuem caracteríscas em comum, mas não se inserem em nenhuma das cinco configurações propostas por Pruijt.

4.1 A questão habitacional no Brasil

No Brasil, a mais comum configuração de ocupação é a ocupação por privação, resultado de uma intensa desigualdade no país, que é conhecido pelas suas inúmeras (e grandes) favelas. Aqui não pretendemos fazer um estudo sobre a problemática habitacional no Brasil, mas apenas uma breve contextualização para introduzir o caso a ser apresentado. A urbanização brasileira ocorreu de forma rápida e concentrada, com grande migração de moradores rurais para as metrópoles, em especial Rio de Janeiro e São

87 Lembrando que no caso apresentado de Can Masdeu, os ocupantes compartilham desde banheiros e cozinhas até mesmo às compras do mês. 88 O mesmo ocorre com os casos das ocupações Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras: apesar de ambas terem seido despejadas em consequência do projeto Porto Maravilha, sua instalação não se deu por ele ou com ideias de conservar a área.

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Paulo. A legislação e as políticas públicas não foram capazes de acompanhar essa evolução urbana que ainda se baseou nas necessidades e perspectivas das classes mais ricas, sendo a atuação do Estado uma expressão clara do processo de estratificação sócio-espacial. Em decorrência, as cidades se desenvolveram em meio a inúmeros problemas – como segregação espacial, crise habitacional, transporte urbano precário, violência urbana e degradação ambiental. Historicamente, as cidades brasileiras foram construídas e desenvolvidads em função dos mais abastados, assim, os mais pobres sempre tiveram que buscar seu lugar na cidade. O fim da escravidão pode ser entendido como ponto chave no desenvolvimento sócio-espacial de nossas cidades, pois a partir deste momento milhares de negros libertos chegaram aos centros urbanos em busca de melhores e novas oportunidades de trabalho e vida, porém, não receberam qualquer apoio financeiro e/ou governamental. Então, muitos começaram a povoar os inúmeros cortiços existentes e as novas favelas que surgiam89. Por outro lado, o modelo de produção habitacional de interesse social adotado pelos governos brasileiros busca a minimização de custos, por meio da produção em larga escala e em terras fora dos centros urbanos, nas periferias. Assim, os mais pobres foram “empurrados” para as lugares distantes e favelas, enquanto as classes mais abastadas se estabeleceram nos bairros próximos à área central, onde a oferta de serviços, trabalhos e infraestrutura é maior e melhor. Conclui-se, então, que a habitação de interesse social e popular se manteve submetida aos interesses do grande capital e à margem das intenções do Estado. De tal forma, os mais pobres tiveram que buscar suas próprias alternativas à moradia. Segundo Azevedo (2007), a maioria das habitações populares construídas no país ocorreu pela autoconstrução e não por créditos e/ou projetos governamentais. Nos últimos anos diversos projetos e obras de infraestrutura tomaram as ruas das grandes cidades brasileiras, em especial as escolhidas como sedes para a Copa do Mundo de 201490. Porém, seguindo a tradição, esses feitos buscaram atender às

89 Ressaltamos que a origem das favelas, no caso do Rio de Janeiro, é um tema ainda controverso, sem haver unanimidade em relação a sua aparição. Porém, a versão mais aceita é de que os ex- combatentes da Guerra de Canudos ocuparam – com permissão do governo – as encostas do atual Morro da Providência. Para mais, ver Campos (2005). 90 No Rio de Janeiro as obras (e seus efeitos) foram ainda maiores devido à quantidade de grandes eventos com a cidade como sede durante a década de 2010, entre eles: Rio +20 (2012), Jornada

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necessidades e demandas não só das classes mais ricas como do próprio mercado – fundiário, da construção civil e imobiliário. É neste contexto que se insere o “Programa Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), criado em 2009 pelo governo federal com intenção de promover um efeito anticíclico na economia, a partir da ativação da indústria da construção civil. Neste sentido, o PMCMV, apesar de buscar diminuir o déficit habitacional brasileiro, por vezes tem contribuído para uma maior segregação sócio-espacial nas cidades brasileiras. O programa e seus efeitos serão melhor explorados no item 4.4.

4.2 O contexto do “desmanche” e as ocupações no Brasil

Harvey (1982) nos alerta que, durante o processo de estabelecimento do sistema capitalista, houve a transferência do palco de luta das fábricas para o espaço urbano. Ocorreu a separação entre os locais de trabalhar e de viver, assim, a “luta do trabalhador para controlar as condições de sua própria existência divide-se em duas lutas independentes” (HARVEY, 1982, p.8). Ou seja, a força de trabalho deve, então, lutar, no âmbito da fábrica, por melhores condições de trabalho e de salário e, no âmbito da cidade, por melhores condições de moradia, transporte, saúde, educação, cultura etc. Com o passar dos anos e o desenvolvimento do capitalismo essa situação se agravou, chegando, talvez, ao seu ápice nas últimas décadas91. No contexto latino-americano, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela redemocratização dos países após suas ditaduras militares, seguindo-se pela reestruturação mundial do capitalismo e do “desmanche” econômico-financeiro (MIAGUSKO, 2012). Este ocorreu através da ordem neoliberal, marcada pela financeirização do capitalismo, desregulamentação e internacionalização do mercado e perda da centralidade do trabalho. Esse quadro, associado a alterações nas políticas sociais – marcadas pela abstenção de participação por parte dos governos, constantes privatizações e diminuição (ou fim) das ajudas governamentais à população –, acarretou a (hiper)precarização das relações de trabalho. Observou-

Mundial da Juventude (2013), Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Jogos (Para) olímpicos (2016). 91 Entre os anos 1950 e 1970, houve melhoras nas condições de vida e trabalho das classes trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos, através das lutas sindicais. Porém, com a reestruturação econômica, as condições voltaram a piorar.

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se, então, um aprofundamento da pobreza durante essas décadas em diversos países, resultando no aparecimento (ou aumento da quantidade) de mendigos, moradores de rua e sem-teto. Diversos autores, como Miagusko (2012) e Buonfiglio (2007), salientam que esta nova conjuntura necessitou uma atualização dos, até então recentes ou novos, movimentos sociais urbanos. Segundo Buonfiglio (2007),

Se o protagonismo do movimento popular da década de 1980 fora caracterizado pelo fortalecimento da ação institucional, necessário no contexto na nova Constituição, na década de 1990 e no início do novo século não deixaram de atuar com intensidade no território da luta como estratégia de pressão, a exemplo das ocupações organizadas em terrenos baldios (BUONFIGLIO, 2007, p.37).

Poder-se-ia dizer, então, que parte dos movimentos sociais urbanos começou a buscar a ação direta para construir suas alternativas, porém, sem deixar a luta institucional, conforme abordado no item 2.3. As ocupações organizadas emergiram nesse contexto de “desmanche” e reconfiguração dos movimentos sociais urbanos. Conforme explorado na introdução, o foco deste trabalho são as ocupações organizadas, que se contrapõem às ocupações “desorganizadas” e/ou familiares (ou “invisíveis”, como diria Aguilera (2013)), parte importante da evolução urbana das cidades brasileiras. Acreditamos que toda forma de ocupação é social e política, já que se trata de uma forma de romper com as regras da ordem vigente, porém, diante da diversidade de ocupações e seus ocupantes – com suas culturas, costumes e ideologias –, optamos por trabalhar com as ocupações que se constituem como organizações políticas “tradicionais”. Neste sentido, as ocupações oriundas das necessidades econômicas e sociais do trabalhador, porém desconectadas de ações políticas, não estão sendo exploradas – já que nelas ocupa-se somente para ter acesso a um teto, a um local para morar, ou seja, para suprir as necessidades mais básicas e “não radicais” do homem –, enquanto nas ocupações consequentes de necessidades econômicas, sociais e políticas há uma conscientização por parte do trabalhador de sua situação e ele começa a agir contra a ordem para mudá-la, assumindo, então, um protagonismo crítico e político. Assim, neste caso, ocupa-se não só para ter uma moradia, mas para denunciar a especulação imobiliária e o não cumprimento da função social da propriedade.

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Fotografia 26 – Protesto em imóveis vazios, em Salvador92.

Fonte: Site Teatro NU, disponível em http://www.teatronu.com/aqui-podia-morar-gente/. Acesso 25 de agosto de 2015.

É difícil precisar com exatidão quando surgiram as ocupações organizadas no Brasil, mas diversos autores apontam para o final da década de 1990 e a cidade de São Paulo como ponto de partida. Neste sentido, Neuhold (2009) cita a ocupação, em 1997, de um casarão em Santa Cecília (São Paulo) como a primeira ocupação organizada. Nos anos seguintes o número de ocupações aumentou, segundo os levantamentos da autora, que ainda mostra a diferença entre as ocupações organizadas que emergiam e as já existentes:

A novidade das ocupações na área central a partir de 1997 estava no fato de constituírem ações coordenadas, organizadas e contínuas, com uma pauta de reivindicações pré-definidas, e com uma rede de apoiadores que produziram ou consolidaram “discursos” sobre o direito da população de baixa renda habitar uma área consolidada da cidade. (NEUHOLD, 2009, p.51)

Segundo Buonfiglio (2007), as experiências de ocupações bem-sucedidas em São Paulo foram responsáveis pelo surgimento de outros casos em diferentes cidades do país. As primeiras ocupações foram organizadas por movimentos de

92 Em março de 2014, dezenas de casas abandonas no Centro Histórico de Salvador amanheceram pintadas com a frase “Aqui Podia Morar Gente”, como forma de protesto dos moradores aos projetos de renovação urbana previstos pelo Estado.

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moradores de cortiços93 – que viviam precariamente em habitações deste tipo nas áreas centrais94 – que começaram a ser pressionados pelos projetos de “revitalização” ou “requalificação”95 do centro (MELLO, 2014). A partir de então diferentes movimentos (de cortiço, de moradia e de sem-teto) começaram a organizar ocupações de imóveis ociosos nos centros reinvindicando o direito à cidade (e ao centro), através da denúncia da especulação imobiliária e do não cumprimento da função social da propriedade e da cidade.

Fotografia 27 – Símbolos okupa e anarquista em imóvel no Morro da Conceição, no Rio de Janeiro.

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Atualmente, no Brasil, diferentes organizações sociais se contrapõem às políticas adotadas nas últimas décadas, tanto em caráter nacional quanto regional ou local. Entre as que atuam no âmbito habitacional e pelo direito à cidade podemos

93 A metrópole paulista conta com diversos movimentos moradia e de moradores de cortiços, entre eles podemos citar: Fórum dos Cortiços, Movimento de Moradia do Centro (MMC), Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Região Central (MTSTRC) e Unificação das Lutas dos Cortiços (ULC). Neuhold (2009) aponta a ULC como pioneira dos movimentos populares em torno da questão dos cortiços e de direito ao centro; também desta união houve ramificações que deram origem a outros movimentos, como o Fórum dos Cortiços e o MMC. 94 “A história do cortiço da rua Madre de Deus resume bem as condições de vida dos moradores das habitações coletivas de aluguel. Tratava-se de um casarão com 54 quartos, cada um com no máximo doze metros quadrados. Duzentos moradores dividiam dois banheiros, um cano de água fria para tomar banho e quatro tanques para lavar roupa, escovar os dentes, etc. (ASSOCIAÇÂO DOS TRABALHADORES…,1993:41). Somavam-se a essas precárias condições de habitabilidade, os atos violentos cometidos pelo administrador do cortiço, acusado de autoria de mortes, estupros e despejos violentos” (NEUHOLD, 2009, p.43). 95 Utilizamos os termos entre aspas para mostrar nossa crítica à denominação de tais projetos. O termo “revitalização” supõe que é necessário dar vida a uma área que estava morta, o que não é verdadeiro, já que a área central possui vida intensa, indo da residencial à comercial-financeira. “Requalificação”, por sua vez, supõe a mudança da função exercida da área.

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destacar: Brigadas Populares, Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM), Central de Movimentos Populares (CMP), Frente de Luta pela Moradia (FLM), Frente de Luta Popular (FLP)96, Frente Internacionalista dos Sem- Teto (FIST), Movimento das Famílias Sem Teto (MFST), Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)97, Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e União Nacional por Moradia Popular (UNMP). As principais diferenças entre essas organizações estão nos seus fundamentos políticos-ideológicos, que acarretam diferentes modos de agir, de direcionar a luta e de organização interna.

Fotografias 28 e 29 – Ocupações Edith Stein, à esquerda, e Inês Etienne, à direita, ambas filiadas à FIST e localizadas na Lapa, Rio de Janeiro.

Fonte: Rodrigo Brayner.

Por outro lado, as semelhanças entre estes movimentos estão nos dircursos de luta pela moradia digna98, na busca pelo cumprimento da função social da propriedade e dos instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade. Em geral, as organizações vão além da luta pela moradia em si e buscam o direto à moradia

96 A FLP, hoje extinta, foi de grande importância para o estabelecimento de diversas ocupações no Rio de Janeiro, entre elas Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras, conforme destacado por Grandi (2010) e Mamari (2008). 97 O MTST surge como o “braço urbano” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), no final dos anos 1990. 98 Conforme aponta Buonfiglio (2007), a expressão passou a ser internalizada pelos diversos movimentos e militantes da Reforma Urbana e, para a autora, reintroduziria a qualidade no âmbito do ‘déficit de urbanidade’ e da ‘miséria do habitat’.

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adequada e à cidade, através do acesso não só a uma habitação de qualidade, como também a saúde, educação, renda, alimentação, transporte, cultura e lazer. Assim, pode-se afirmar que “as organizações ampliam ainda mais o leque de reflexões, exigindo, tensionando e agindo em prol da conquista do direito e das condições para se definir inclusive a qual cidade se quer ter acesso” (GRANDI, 2010, p.149). No contexto atual, a ocupação de imóveis vazios ganha importância pois, mais uma vez, os mais pobres estão sendo empurrados para as periferias distantes e sem infraestrutura. Na cidade do Rio de Janeiro, o levantamento feito por Lucas Faulhaber (2012) é de extrema relevância para o entendimento desta dinâmica de remoções, despejos e realocação dos mais pobres – segundo seu levantamento, em quatro anos de gestão do prefeito Eduardo Paes (2008-2012) cerca de 37 mil pessoas foram removidas ou tiveram suas casas desapropriadas99. Assim, a luta pela permanência no centro urbanizado é grande. Nas palavras de Buonfiglio (2007, p.66, grifo no original) “os sem-teto contrariam a regra geral da população conformada na periferia geográfica da metrópole, empurrada cada vez mais para novos limites. Sua luta é para pertencer e não somente permanecer fisicamente na cidade (SINGER, 1982).” É neste sentido que surge a dimensão da apropriação social do espaço urbano pelos movimentos de ocupação.

4.3 A relação com o Estado brasileiro: da repressão à aceitação?

Conforme abordado no item 4.1, historicamente não houve preocupação por parte dos governos (e de grande parte da própria sociedade) com a população mais pobre e suas condições de moradia. Assim, por diversas vezes ocorreram processos de transformação urbana em determinadas áreas das cidades que removeram essa camada da população, que foi realojada em lugares distantes e inapropriados na maioria das vezes100. O mesmo quadro se repete no contexto das ocupações.

99 Esse número é maior do que os números das gestões de Pereira Passos (1902-1906) e Carlos Lacerda (1961-1965) – respectivamente, 20 mil e 31 mil pessoas –, ambos governantes conhecidos por empregarem políticas de remoção. 100 Podemos citar o exemplo emblemático de Seu Altair, presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo – uma das comunidades do Rio de Janeiro a ser removida pelas obras olímpicas – que teve sua vida marcada por remoções forçadas. A primeira vez, ainda criança, foi removido da Ilha dos Caiçaras (localizada na Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro) pelo governo de Carlos Lacerda e reassentado no Conjunto Habitacional da Cidade de Deus, criado justamente para realojar removidos das favelas localizadas nas áreas mais nobres da cidade. Nos anos 1990, uma nova remoção: desta

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Apesar da Constituição Federal e o Estatuto da Cidade preverem a função social da propriedade101 e a utilização de instrumentos urbanísticos como desapropriação, usucapião urbano e concessão especial para fins de moradia, o panorama observado é o de não cumprimento destas leis. As ocupações de imóveis vazios têm sido fortemente combatidas pelo Estado, sendo inúmeros os casos de despejos e remoções forçadas (Ver Fotografia 30, abaixo) – entre eles podemos citar os casos recentes no Rio de Janeiro da ‘Favela da Telerj’, em 2014, e do Edifício Hilton Santos, em abril de 2015. Porém, podemos pensar em algumas mudanças no entendimento por parte do Governo Federal a respeito das ocupações, como discutiremos em seguida.

Fotografia 30 – Antiga ocupação Carlos Marighella102, a entrada contretada deu lugar ao “Muro dos Sonhos”.

Fonte: Rodrigo Brayner.

O Programa Minha Casa, Minha Vida, uma política habitacional de escala nacional, anunciado em abril de 2009, foi uma das principais reações do Governo Federal contra a crise financeira internacional. Trata-se de um pacote habitacional que previa a construção de 1 milhão de unidades habitacionais, para a população

vez em consequência da construção da Linha Amarela, já que sua casa (cedida pelo próprio governo!) estava no caminho da via expressa. A partir de então Seu Altair começou a viver na Vila Autódromo, na Barra da Tijuca – uma das áreas mais valorizadas atualmente –, e vizinha ao Parque Olímpico, motivo pelo qual as autoridades pedem o despejo. 101 A função social aparece pela primeira vez na Constituição de 1934, porém, somente na Constituição de 1988 o conceito é expresso de forma clara, ampla e passível de aplicação prática através dos instrumentos de desapropriação e usucapião. 102 A ocupação foi despejada em 2010, após três anos, e abrigava cerca de 60 famílias em um edifício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), na Rua Riachuelo, na Lapa – Rio de Janeiro.

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com rendimento familiar entre 0 e 10 salários mínimos, por meio de um subsídio de 34 bilhões de reais.

O objetivo declarado do governo federal é dirigir o setor imobiliário para atender à demanda habitacional de baixa renda, que o mercado por si só não alcança. Ou seja, é fazer o mercado habitacional finalmente incorporar setores que até então não tiveram como adquirir a mercadoria moradia de modo regular e formal (ARANTES; FIX, 2009, p.1).

Conforme apontam Arantes; Fix (2009), é inédita essa quantidade de recursos destinada para a construção de moradia para a população de baixa renda em um só programa, fato explorado pelo governo para afirmar o perfil distributivista, para além do foco no efeito anti-cíclico103. Neste sentido, o programa busca resolver o problema do déficit habitacional pela iniciativa privada.

Fotografia 31 – Pixação em ônibus no Rio de Janeiro.

Fonte: desconhecida.

A partir de Arantes; Fix (2009) e Cardoso; Aragão (2013), podemos resumir a proposta de produção do PMCMV de acordo com as faixas de rendas das famílias atendidas:  Renda de 0 a 3 salários mínimos: meta de construção de 400 mil unidades habitacionais (sendo 50 mil para habitação rural) com subsídio integral, através do Fundo de Arrendamento Residencial

103 Ressaltamos que o Banco Nacional da Habitação (BNH), criado durante o período militar, até então era considerado o maior programa de financiamento e produção de habitação no país. Porém, não possuía a mesma capacidade distributiva que o PMCMV e foi pensado também para a legitimação do regime em vigor.

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(FAR), do PMCMV Entidades e do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). Nesta faixa de renda há duas opções para produção: “por oferta” ou via entidades. Na primeira, a construtora define todos os aspectos da produção e vende os produtos integralmente para a Caixa Econômica Federal (CEF), que, por sua vez, define o acesso às casas a partir de listas de demanda elaboradas pelas prefeituras. Nesta modalidade a construtora não possui nenhum gasto com incorporação, imobiliária e comercialização, não havendo risco de inadiplêmcia, ou seja, de ônus (Ver exemplo de construção na Fotografia 32, abaixo). Na segunda modalidade, conhecida como PMCMV-Entidades (PMCMV-E) segue-se o modelo do Programa Crédito Solidário (PCS), no qual entidades sem fins lucrativos, como cooperativas e associações de moradia, apresentam diretamente seus projetos à CEF e são as responsáveis pela gestão e produção das unidades habitacionais.

Fotografia 32 – Edifícios construídos pelo PMCMV na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.

Fonte: Joana Simoni.

 Renda de 3 a 10 salários mínimos: meta de construção de 600 mil unidades (sendo 400 mil até 6 salários mínimos e 200 mil até 10), com financiamento pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e subsídio de até 20 mil reais por unidade. Nesta faixa as construtoras apresentam seus projetos à CEF e, se aprovados, a comercialização

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será feita pelas próprias empresas em seus estandes de vendas ou em “feirões da casa própria” da Caixa.

Após seis anos de programa, diversas críticas foram feitas, acarretando em algumas modificações para o PMCMV-2, que entrou em vigor no ano de 2011. Como não cabe a este trabalho explorar todas as críticas ao programa, optamos por apresentá-las através da síntese em oito tópicos oferecida por Cardoso; Aragão (2013):

(i) a falta de articulação do programa com a política urbana; (ii) a ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (iii) os problemas de localização dos novos empreendimentos; (iv) excessivo privilégio concedido aos setor privado; (v) a grande escala dos empreendimentos (vi) a baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (vii) a descontinuidade do programa em relação ao SNHIS e a perda do controle social sobre a sua implementação [...] (viii) as desigualdades na distribuição dos recursos como fruto do modelo institucional adotado (Cardoso; Aragão, 2013, p.44).

É importante salientar que o programa foi desenvolvido pelo governo federal em parceria com o empresariado da construção civil, o que explicaria parte de seu caráter imobiliário capitalista. Neste sentido, concordamos com as críticas de Arantes; Fix (2009), de que o problema habitacional no Brasil não só é real, como grave, porém, foi formulado de forma equivocada pelo PMCMV, assim, consideraram necessidades, estratégias e ideologias econômicas dominantes, ao invés das características intrísecas do problema. Como salientam os autores, segundo dados da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional urbano de famílias entre 0 e 3 salários mínimos corresponde a 82,5% do total, enquanto as famílias de 3 a 10 correspondem a 15,2%, porém, para o PMCMV previa-se para a primeira faixa de renda apenas 35% das unidades a serem produzidas e para a segunda mais de 60% das unidades. Mesmo diante das críticas não podemos negar os avanços do PMCMV, em especial pela existência da modalidade Entidades, a ser explorada a seguir. Atendendo (a parte) das reivindicações dos movimentos de moradia, o Governo estabeleceu um programa habitacional por meio de autogestão: o

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Programa Crédito Solidário (PCS), em 2004, substituído, em 2009, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades (PMCMV-E)104. Segundo o site da CEF:

O Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades, foi criado em 2009, com o objetivo de tornar a moradia acessível às famílias organizadas por meio de cooperativas habitacionais, associações e demais entidades privadas sem fins lucrativos. O programa, ligado à Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, é dirigido a famílias de renda familiar mensal bruta de até R$ 1.600,00 e estimula o cooperativismo e a participação da população como protagonista na solução dos seus problemas habitacionais (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, Minha Casa Minha Vida – Entidades).

Apesar de ter recursos limitados – equivalente somente a 3% dos subsídios concedidos –, o PMCMV-E é importante para os movimentos de moradia pois possibilita que os próprios sejam responsáveis por todos os aspectos de produção e/ou requalificação das moradias. Neste sentido, esta modalidade possibilita um desenvolvimento dos projetos e empreendimentos que cumpram melhor as necessidades dos beneficiários, já que eles participam da construção do projeto e da produção das moradia (Ver Fotografia 33, com casas construídas por mutirão no condomínio Esperança, na Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro).

Fotografia 33 – Casas do condomínio Esperança, na Colônia Juliano Moreira.

Fonte: Joana Simoni.

104 O PMCMV-E foi aprovado pela Resolução nº 200, do Conselho Curador do Fundo de Desenvolvimento Social, de 05 de agosto de 2014.

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O quesito acima é de extrema importância quando entendemos que uma das maiores críticas às unidades habitacionais produzidas pelo PMCMV decorre da qualidade e tamanho dos produtos entregues. Nas palavras de Arantes e Fix (2009):

A casinha térrea apresentada como exemplo pela Caixa no manual de orientação do pacote tem 32 m2 de área útil, paredes em bloco baiano rebocado, janelas de ferro, quartos de 7m2, cozinha mínima, sem área de serviço, com tanque e varais ao relento. Pode-se argumentar que a família vai fazer a casa crescer por autoconstrução e poupança própria, de modo a melhorar sua qualidade, mas esse é um pressuposto perverso da política. Já o apartamento tem 37 m2 de área útil e adota o tradicional modelo de prédio em H, que possui baixa qualidade urbanística. No caso dos apartamentos, a área construída não pode ser ampliada pelo morador. Para famílias com mais de 4 pessoas (nos cadastros de um movimento de sem- teto de São Paulo, elas chegam a 40% da demanda), a área por habitante é claramente insuficiente, cerca de 7m2 por pessoa, o que produz sobrelotação, problemas de salubridade, falta de espaço para as crianças estudarem e brincarem, além de favorecer a violência doméstica e sexual (ARANTES; FIX, 2009, p.9).

Diante disso, concluímos que o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso e o que interessa às construtoras é a maximização do lucro, sendo assim, são utilizados projetos prontos – em geral utilizam-se as tipologias propostas pela CEF como padrão no país, sem considerar as diferenças locais, culturais e sociais –, além de materiais de baixa qualidade, resultando em moradias com baixos padrões qualitativos e habitacionais. Concordamos com os autores que o PMCMV estimulou uma lógica produtivista de novas unidades, beneficiando as construtoras, e não estimulou a ocupação de imóveis vagos pelo cumprimento da função social. Salientamos, porém, que a resolução do PMCMV-E prevê a possibilidade de requalificação dos imóveis urbanos, indo além da compra de terras – que ocorre sempre na periferia105 – e a construção. Segundo sua resolução, a contratação para requalificação de imóveis urbanos está assim prevista:

5.1.4 Requalificação de imóveis urbanos. a) A requalificação de imóveis urbanos compreende a aquisição de imóveis, conjugada com a execução de obras e serviços voltados à recuperação e ocupação para fins habitacionais, admitidas ainda obras e serviços necessários à modificação de uso.

105 É importante ressaltar que o PMCMV-E disponibiliza o subsídio por unidade habitacional, assim, em casos de compra de terreno, o valor deste já está incorporado ao valor da unidade. Este fator, somado ao aumento do preço da terra urbana – em parte causado pelo próprio PMCMV – faz com que os movimentos só tenham acesso às terras que sobram no mercado, ou seja, as piores e mais mal localizadas (em periferias distantes e sem infraestrutura).

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a.1) Serão adquiridos no âmbito desta modalidade, exclusivamente, imóveis que se encontrem vazios, abandonados ou subutilizados. a.2) Os imóveis deverão estar situados em áreas inseridas na malha urbana, dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços públicos. (BRASIL, 2014, grifo nosso)

Tal item pode, então, ser interpretado como um aval dos poderes executivo e legislativo às ocupações de imóveis ociosos, sendo, portanto, de extrema importância para os movimentos de ocupação: o MNLM-RJ utilizou esse artifício para a aprovação de projetos em ocupações pelo PMCMV-E. Apesar do Programa ser um arremedo da política habitacional defendida pelos movimentos – que queriam a implantação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e seu conselho regulador106 –, podemos interpretar o PMCMV-E como um avanço para a materialização da ordem jurídico-urbanística iniciada com os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e ampliada pelo Estatuto da Cidade. No Brasil, o desejo da casa própria é comum a todas as classes socioeconômicas, pois se acredita que por meio dela as pessoas terão segurança e estabilidade, que não são asseguradas pela previdência social. É neste sentido que “a casa própria cumpre um papel amortecedor diante da incompletude dos sistemas de proteção social e da ausência de uma industrialização com pleno emprego e é, por isso, o ‘sonho número um dos brasileiros’.” (ARANTES; FIX, 2009, p.7). Pode-se entender que no pós-guerra europeu, com o estabelecimento do Estado de Bem-Estar Social e do sistema socialista soviético, havia políticas de desenvolvimento de habitação e aluguel sociais. Assim, a habitação não foi mercantilizada da mesma forma que em países como o Brasil e os Estados Unidos, por exemplo, onde houve a difusão da “ideologia da casa própria”. Essa ideologia, iniciada Brasil no Governo Vargas, foi ampliada durante o período da Ditadura Militar (1964-1985), quando o financiamento da habitação entrou na agenda governamental – com a criação do BNH –, tanto para legitimar o regime quanto para alavancar a economia, ou seja, “como compensação em relação à perda de direitos políticos e ao arrocho salarial” (ARANTES; FIX, 2009, p.6): um afago à classe média que havia apoiado o regime.

106 Com o FNHIS como financiador da habitação popular, os movimentos possuiriam assentos em seu conselho, sendo, então, responsáveis pela alocação dos recursos do Fundo. Porém, com a aprovação do pacote do PMCMV, o conselho foi esvaziado.

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Desta forma, a casa própria é entendida como o ponto-chave para a integração social, sendo “inserida num contexto de apaziguamento das lutas sociais e de conformismo em relação às estruturas do sistema” (ARANTES; FIX, 2009, p.6). Assim, surge como o próprio bem-estar, no lugar de um Estado prestador de serviços, e ainda como meio de ascensão social e como um fim, para satisfação das necessidades de reprodução social. A promessa da casa própria impediria, então, a transformação do trabalhador em um sujeito político que controla a mudança social. É importante ressaltar que essa ideologia tem influência nas políticas habitacionais e sociais a serem desenvolvidas. Neste sentido, numa sociedade de proprietários as relações sociais de dominação e poder são distintas das de uma sociedade de inquilinos. Diante deste contexto, ressaltamos mais uma vez a importância do PMCMV-E como potencializador para garantir essa transformação emancipadora, já que ele prevê a autogestão (ou a cogestão) dos beneficiários. Reconhecemos, porém, que nem sempre a participação é a desejada, já que muitas vezes os próprios beneficiários estão interessados somente na casa em si e não em seu desenvolvimento e projeto, sendo comum que, após aprovação do projeto e das famílias a serem beneficiadas, as reuniões das ‘entidades’ se esvaziem107, principalmente pela demora nos processos de aprovação dos projetos e liberação de recursos. Neste sentido, o trabalho social de formação política e/ou pedagógica para a autogestão é de extrema importância. Apesar dessa possibilidade emancipadora, ressaltamos que o Programa busca satisfazer somente às necessidades “não radicais”, estando a cargo do próprio indivíduo ou movimento a aproximação da luta pelas necessidades radicais. Nos últimos anos, o número de imóveis ocupados que ganhou algum tipo de aval do governo aumentou. Podemos citar alguns exemplos, entre os diversos existentes:  Ocupação Saraí, em Porto Alegre, o edifício abrigava 20 famílias em julho de 2014 e já havia sido ocupado diversas vezes na última década pelo MNLM. No último ano, o imóvel foi declarado como bem de interesse social, para, em seguida, ocorrer a desapropriação e destinação à habitação popular (Fonte: Sul 21).

107 Este é o quadro da ocupação Mariana Crioula, conforme observado pela autora e informado pelos moradores.

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 Em setembro de 2014, o PMCMV aprovou a primeira reforma de imóvel vazio na capital paulista em moradia popular – irá abrigar 120 famílias associadas à ULC. O edifício, vazio há mais de quatro anos, foi doado (via Concessão de Direito Real de Uso), em 2009, pela União ao movimento e não era ocupado previamente por nenhum movimento ou pessoas, porém é um avanço em nossa política habitacional (FERRAZ, 2014).  Em 2015, um prédio ocupado desde meados dos anos 1980, em Bom Retiro, São Paulo, foi o primeiro caso a ganhar usucapião coletivo no país (Fonte: Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos).

É interessante ressaltar a existência de debates acerca da legalização e da aceitação de financimentos governamentais para reformas e compras dos imóveis ocupados – conforme dito no terceiro capítulo. Esse tema foi recorrente no workshop do SqEK e diversos ativistas mostraram-se apreensivos em aceitar auxílios governamentais, pois isto significaria submeter-se às regras estatais – o que acarretaria em perda de autonomia por parte dos coletivos. Diante disso, as ocupações que se envolvem com o governo são vistas, por vezes, como ‘traidoras’. Outro debate acerca da ajuda do governo decorre em consequência de quão necessária seria essa ajuda, já que muitos coletivos buscam formas de viver alternativa e o mais afastadas possível do modo de consumo neoliberal capitalista. Podemos ressaltar o caso do CSA Can Vies – abordado também no terceiro capítulo –, no qual os ocupantes recusaram ajuda do governo, pois, acreditam que esse dinheiro poderia ser investido em áreas ou projetos que necessitem mais do que eles108. No Brasil, por sua vez, as ocupações que conseguem algum reconhecimento governamental, seja para compra, doação ou reforma do imóvel, são vistas como ‘vencedoras’ e exemplos a serem seguidos. Afinal, sendo o Estado o gestor dos recursos públicos, cabe a ele garantir os direitos e usos da população em relação ao uso do que é público.

108 Lembramos que a reconstrução do CSA ainda está em curso e que boa parte do dinheiro foi arrecadado através de uma campanha de crowdfunding.

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4.4 O MNLM: surgimento, objetivos e atuação

Segundo Drago (2011), os principais movimentos sociais brasileiros109 surgiram no contexto do “desmanche” econômico, da redemocratização e do debate da reforma urbana110 no Brasil: a Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM), em 1982, a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), em 1989, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em 1990, e a Central de Movimentos Populares (CMP) em 1993111. A organização do MNLM ocorreu após diversas ocupações de terras e conjuntos habitacionais nos centros urbanos nos anos anteriores, sendo oficialmente criado durante o I Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, inicialmente em 14 estados112 e no Distrito Federal do país. O Movimento surgiu do rompimento do núcleo de habitação criado pela UNMP e CMP (na época, ainda ANAMPOS), consequente de divergências na forma de autogestão de cada entidade; neste sentido, o MNLM criticava a “cooperação com o Estado” da UNMP. Segundo o site do MNLM, sua missão é

estimular a organização e articulação da classe trabalhadora na busca da unidade de suas lutas, pela conquista de uma política habitacional de interesse social com reforma urbana, sob o controle dos trabalhadores, que garanta a universallização dos direitos sociais, contribuindo para a construção de uma sociedade socialista, igualitária e democrática (MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA, Apresentação).

Podemos resumir, então, que o Movimento luta pelo direito à cidade, por meio da formação política e organização dos trabalhadores. Neste sentido, busca a moradia digna pela organização e articulação nacional de diferentes lutas, visando uma sociedade mais igualitária, distinta da capitalista.

109 Esses movimentos podem ser considerados os principais por participarem do âmbito público de negociações da política urbana, por meio do Conselho das Cidades e do FNHIS. 110 Entendendo Reforma Urbana como o direito à cidade, indo além da questão da moradia (como uma simples casa), incluindo todo o contexto social urbano: educação, saúde, economia, trabalho, comunicação, meio ambiente, mobilidade urbana, relações humanas, etc. Propõe-se então, uma democracia urbana. 111 Segundo Drago (2011), o CMP surgiu da dissolução da Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais (ANAMPOS), esta criada no início dos anos 1980. 112 Acre, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

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Conforme salienta Mello (2014), apesar de ser um movimento nacional com princípios gerais, o MNLM não é homogêneo e possui particularidades estaduais (e também municipais). Como exemplo, a autora cita que, enquanto em São Paulo e no Mato Grosso o movimento atua em prol de financiamentos públicos para a construção de habitações, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul a luta é principalmente pela desmercantilização da moradia, por meio da ocupação de imóveis. Ademais, Mello (2014) mostra algumas diferenças de organização e identificação partidária nos dois últimos estados. Diante disso, observa-se que o MNLM do Rio de Janeiro possui como projeto político a desmercantilização da cidade, a moradia digna e a autosustentação econômica. Os dois primeiros objetivos podem ser alcançados pelas ocupações de imóveis vazios em áreas centrais urbanizadas. Desta forma, os ativistas denunciam o não cumprimento da função social da propriedade, além de questionarem a exclusão sócioterritorial dos mais pobres113, que ocorre pelo conjunto de ausências sofridas (de políticas fundiárias e habitacionais que os privilegiem) e da prioridade do valor de uso da moradia e da cidade. O terceiro objetivo se realiza pela criação de cooperativas de trabalho e produção. No caso do Rio de Janeiro, a cooperativa de trabalho foi criada após o entendimento, por parte do MNLM, de que o acesso apenas a uma moradia digna não seria suficiente para tirar as famílias de sua pobreza e segregação social, além de não garantir o direito à cidade. Assim, a cooperativa busca associar o acesso à moradia ao processo de geração de renda, ampliando, então, o projeto do campo de reprodução social para o de produção – o trabalho. A Cooperativa de Trabalho e Moradia Liga Urbana foi criada em outubro de 2012, com sede na ocupação Manoel Congo, e possui como objetivos

organizar o trabalho e a produção das trabalhadoras e trabalhadores do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) nos segmentos da construção civil, gastronomia, Artesanato e costura, Estética e Beleza, e outros que venham a ser criados, buscando a sistentabilidade desses militantes, bem como do seu local de moradia (MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA, 2012).

Assim, busca, a partir da autogestão, a sustentabilidade dos projetos de habitação do MNLM, por meio da contratação dos serviços, de assistência e

113 Como abordado anteriormente, em sua maioria, a população de mais baixo poder socioeconômico possui como alternativa de moradia as áreas periféricas ou centrais com risco e sem infraestrutura.

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capacitação dos cooperantes, além de relações de trabalho e produção que sejam centradas no ser humano, na solidariedade e na apropriação coletiva da mais-valia, sendo seu intuito maior construir um modelo econômico alternativo ao capitalista. Diante disso, podemos aproximar o MNLM dos movimentos “radicais” apresentados por Heller (1996), já que tentam não só resolver as carências “não radicais”, mas também as radicais, por meio da autogestão e da busca pelo fim do sistema capitalista.

Imagem 3 – Logo da Cooperativa Liga Urbana, do MNLM-RJ.

Fonte: site do MNLM-RJ. Disponível em: . Acesso 25 set. 2015.

Imagens 4 e 5 – Convites para comemorações nas ocupações Manoel Congo e Mariana Crioula.

Fonte: site do MNLM-RJ. Disponível em: . Acesso 25 set. 2015.

4.4.1 A ocupação Manoel Congo, no Rio de Janeiro

A história da ocupação Manoel Congo teve início em outubro de 2007, quando algumas famílias ocuparam por uma semana o edifício do antigo Cine Vitória até serem despejadas e em seguida ocuparem um prédio da Secretaria Estadual da Fazenda, de onde também foram rapidamente expulsas (Ver Mapa 4, no final do

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capítulo, com a localização dos edifícios). Essas tentativas podem ser entendidas mais como ações simbólicas, ou seja, com o intuito de chamar a atenção para o caso das famílias em precariedade habitacional. No dia 28 do mesmo mês as famílias decidiram ocupar um prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que estava abandonado e vazio há 11 anos114. A partir de então o grupo de 42 famílias (112 pessoas) – organizado pelo MNLM-RJ – começou a luta institucional pela permanência no edifício115, sendo diversas as tentativas de despejo dos ocupantes116.

Fotografia 34 – Fachada da Manoel Congo, no Rio de Janeiro.

Fonte: Rodrigo Brayner.

4.4.1.1 Organização da ocupação

Conforme aponta Mello (2014), o trabalho para ocupar um imóvel se inicia muito antes da ocupação em si e também não termina com ela. Podemos resumir o processo em três amplas fases que, em alguns momentos, ocorrem

114 O edifício possui 10 pavimentos, totalizando 3485m² e já havia sido ocupado em 2005 por famílias da futura (e agora extinta) Ocupação Quilombo das Guerreiras. 115 A ação direta ocorre quando as famílias ocupam e permanecem no edifício vazio sem autorização do proprietário. A luta institucional deve aparecer para complementar a ação direta, conforme apresentado no capítulo I. 116 Não cabe aqui entrar em detalhes de todas as disputas cravadas durante esses quase oito anos, assim, salientaremos os aspectos que acredito ser mais importantes. Para maiores detalhes da história ver Mello (2014).

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simultaneamente. A fase inicial se dá pela mobilização e organização de pessoas que enfrentam problemas habitacionais. No caso da Manoel Congo, os militantes do MNLM-RJ atuaram nas favelas Caju (na região central), Anchieta, Costa Barros (ambas na Zona Norte da cidade), Cantagalo, Babilônia e Chapéu Mangueira (estas na Zona Sul), esses locais foram focos da atuação por pertencerem às redes pessoais dos militantes e também por sofrerem – assim como inúmeras outras áreas da cidade – de carências infraestruturais (como ausência de saneamento básico e de muros de contenção), riscos de desabamento e/ou deslizamentos, além da presença de tráfico de drogas e/ou de mílicias. Por meio de reuniões semanais, o MNLM-RJ buscou conscientizar as pessoas interessadas, com intuito de “consolidar o grupo, preparar as pessoas para ocupar um prédio vazio e conviver com outras famílias de forma solidária” (MELLO, 2014, p. 72). Em paralelo, o MNLM buscou um imóvel para a ocupação, através da internet e das parcerias com órgãos governamentais – à época da ocupação da Manoel Congo, as parcerias se deram com o Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e com o Instituto de Terras e Cartografia do Estado Rio de Janeiro (ITERJ)117. Essa pesquisa busca identificar os imóveis vazios no Centro e apurar suas situação jurídicas – e, também, físicas – com o intuito de escolher o imóvel mais adequado à ocupação. Assim, observa-se a preocupação do Movimento em escolher um imóvel que facilite tanto a permanência dos ocupantes, quanto um maior apoio a eles – tanto da sociedade quanto do governo. A fase final, por sua vez, se dá pela construção de uma “Brigada de Apoio”, que cuida de todos os aspectos práticos para se ocupar. Neste sentido, a Brigada é responsável por “conhecer o local; fazer a vistoria deste e verificar se havia condições e estrutura; monitorar o horário do vigilante do edifício a ser ocupado; pesquisar a melhor forma de entrar no prédio, quebrar o cadeado e abrir a porta para que todas as famílias entrem; pensar na logística do encontro das famílias no dia da ocupação do prédio” (MELLO, 2014, p. 73). É importante ressaltar que muitos espaços de ilegalidade configuram-se como espaços de precariedade, assim, ao contrário do senso comum de que os ocupantes

117 Mello (2014) ressalta que essas parcerias existiam em função do comprometimento político com a luta pelo direito à moradia da defensora pública e da presidente do ITERJ no momento e, após a saída das duas, o processo de pesquisa e de adquirir certidões se tornou mais difícil para o MNLM- RJ.

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querem apenas se aproveitar de um imóvel pronto, são diversos os problemas estruturais encontrados nos edifícios ocupados, por exemplo, no prédio do INSS, havia a obstrução das redes de esgoto e de água, além de problemas elétricos. Soluções para os problemas foram dadas pela Brigada de Apoio constituída pelos próprios ocupantes.

4.4.1.2 Localização da ocupação: aspecto importante

Conforme abordado, tradicionalmente os projetos de habitação popular do Estado lozalizam-se em áreas periféricas e/ou sem infraestrutura, prejudicando a reprodução social dos moradores, além da diminuição da sua renda real. Neste sentido, a escolha de edifícios em pleno centro da cidade pode ser vista como forma de contestação às políticas empregadas pelo Estado. A escolha pelo imóvel a ser ocupado passa pelo levantamento de diferentes locais para garantir a viabilidade da ocupação, levando-se em consideração algumas variáveis como a localização, o uso social, as condições de transformação daquela ocupação em moradia e o acesso a serviços essenciais. Sendo a localização central de extrema importância por favorecer muitos destes critérios, pois possibilita o acesso a uma diversidade de equipamentos, sejam eles comerciais, culturais, educacionais, de saúde e de locomoção. A região onde se localiza a Manoel Congo é conhecida como Cinelândia e se estruturou como ponto de lazer do Rio de Janeiro, a partir dos anos 1930, contando com diversos cinemas, teatros, bares e restaurantes. Em meados do século XX, a Zona Sul começou a ganhar espaço como o novo ponto de lazer, residência e comércio, porém, a Cinelândia (assim como o restante do Centro) continuou reunindo um enorme aparato de serviços (Ver Mapa 4, no final do capítulo), mantendo, então, certa atratividade. Durante quase duas décadas vigorou o Decreto 322/76 que proibia o uso residencial na área do Centro. Este decreto foi suspenso em 1994, com a adoção, no Rio de Janeiro, de um novo modelo de planejamento urbano: o planejamento estratégico. Torna-se, então, necessário vender a cidade, maximizando a mercantilização; as cidades passam a competir entre si por investimentos de capital e tecnologia, ou seja, buscam atrair novos negócios e indústrias e, também, mão de obra altamente qualificada. É neste contexto que os projetos de renovação e

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“revitalização” ganham importância, pois, além da transformação de áreas consideradas obsoletas e/ou degradadas (como as áreas centrais e portuárias), são uma maneira eficiente de reinvestimento de capital118. Com intuito de promover a “revitalização” do Centro do Rio de Janeiro, a Prefeitura afirma a necessidade de “habitar o centro” e, assim, iniciaram-se projetos habitacionais – como o Programa Novas Alternativas (PNA). Salientamos, porém, que tal decreto não impediu que durante essas duas décadas inúmeros imóveis fossem ocupados por famílias carentes119, dando vida ao Centro. Apesar de se inserirem na categoria de ocupação por privação, a maioria dessas ocupações se diferencia das estudadas neste trabalho por não possuírem um caráter político de contestação, estando limitadas em atender às necessidades “não radicais” das pessoas.

4.4.1.3 Legalização e financiamento

Nos meses seguintes à ocupação, o MNLM-RJ entrou com o pedido de aquisição e requalificação do imóvel, postulado pelo ITERJ em nome também de outras duas ocupações (Chiquinha Gonzaga e Matadouro). As propostas foram aprovadas pelo Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social (FEHIS RJ) e pelo FNHIS. Apesar da aprovação, inúmeros problemas se sucederam e somente em novembro de 2010 ocorreu a compra do edifício pelo Governo do Estado – com recursos do FNHIS –, como a lei não permite que o propriedades públicas sejam doadas, os moradores ganharam a Concessão de Direito Real de Uso. Ao mesmo tempo que ocorria a negociação do FNHIS, a Manoel Congo conseguiu financiamento do Programa Petrobrás Cidadania para um projeto de geração de renda e trabalho, pelo qual se criou a cooperativa Liga Urbana e o restaurante Mariana Crioula. Conforme apontado no item 4.3, o PMCMV-E surge como um arremedo da política habitacional que os movimentos sociais desejavam, por isso, o MNLM-RJ

118 Entre as cidades que modificaram o seu waterfront (ou frente litorânea) com intuito de melhorar sua imagem, podemos citar os exemplos dos portos de Boston, Baltimore (Inner Harbor), Buenos Aires (Puerto Madero), Barcelona (Port Vell), Nova York (South Streat Seaport) e Londres. Atualmente, no Rio de Janeiro, está em curso o projeto de renovação de seu porto, conhecido como “Porto Maravilha”. 119 Segundo levantamento de Ramos (2012), em 2009, existiam cerca de 30 imóveis ocupados na área central do Rio de Janeiro.

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lutou, desde 2012, contra as pressões do governo e da CEF para a migração do FNHIS para o PMCMV-E, mas acabou por ceder. Atualmente estão em andamento as obras de requalificação do edfício com financiamento do PMCMV-E. Neste capítulo buscamos explorar as características das ocupações brasileiras. Considereamos que, em grande parte, elas ocorrem pela necessidade básica de um lugar para morar, ou seja, em consequência direta das privações sofridas por algumas parcelas da população. Porém, observa-se que as ocupações organizadas por movimentos sociais no Brasil possuem um viés político bem definido, de forma que a luta não é só por moradia, é uma luta anti-sistêmica.

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Mapa 4 – Centro do Rio de Janeiro, com alguns serviços e ocupações.

Fonte: IBGE/Data Rio. Elaboração: Karinna Paz.

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5 CONCLUSÃO

Salientamos aqui alguns aspectos importantes acerca dos movimentos de ocupação na Europa e no Brasil. Primeiramente, as ocupações não são problemas urbanos e sim, antes de tudo, tentativas de solucioná-los. Sendo o capitalismo a dominação de um sistema econômico específico sobre toda a sociedade, onde o valor de troca supera o valor de uso, as desigualdades sociais e a existência de uma classe de hiperprecariados são necessárias para a continuidade do sistema. Neste sentido, o ato de okupar é uma interferência direta nas operações capitalistas de acumulação e nas regras do mercado habitacional e urbano. Sendo assim, podemos entender as ocupações como um grande símbolo de oposição aos problemas causados pela distribuição desigual das riquezas e da especulação urbana desenfreada. Cada local possui uma racionalidade específica, resultante de suas condições sociais, políticas, econômicas e culturais. Desta forma, podemos observar no Brasil uma tolerância ao informal condizente com o estado de bem-estar inacabado, típico de suas características socioeconômicas mais precárias. E conforme afirma Maricato (2011), a ilegalidade e o informal no Brasil são a regra e não a exceção, lembrando que o informal não se resume às camadas mais pobres da população: são vários os casos de famílias abastadas que constroem e adquirem suas casas e terrenos de maneira informal. A questão das ocupações para moradia ainda sofre grande preconceito em diversas partes do mundo. Por vezes, os próprios ocupantes têm vergonha e medo de dizerem que vivem em um imóvel ocupado – muitos até mesmo se consideram invasores. No Brasil, as exceções são as ocupações relacionadas a movimentos sociais, politicamente organizadas, quando o ativismo e luta urbana são motivos de orgulho e solidariedade. Como dito anteriormente, a ocupação por simples necessidade de moradia (ocupação por privação) é a mais comum e antiga configuração, estando presente em todo o mundo, porém, saber delas e, ainda mais, estudá-las é difícil.

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Quanto mais as pessoas compreendem a lógica deste sistema, mais elas irão ver a especulação habitacional precarizando o seu acesso à moradia adequada. Sob a alegação de moradia como um direito, há um grande potencial para ganhar o apoio das massas. Uma vez que o argumento entrou no imaginário coletivo, a (re)apropriação de edifícios vagos tornou-se um próximo passo lógico e defensável (MAYER, 2013, p.6, tradução nossa)120.

Afirmamos, então, que uma das maiores necessidades atuais para os okupas de todo o mundo é expandir o conhecimento acerca das ocupações, com intuito de diminuir o preconceito existente e, por fim, aumentar o apoio e adesão aos seus movimentos. Desta forma, podem surgir redes espaciais, de solidariedade e de articulação. Enquanto na Europa vemos uma diversidade de tipologias ou configurações de ocupações, no Brasil o movimento de ocupações é praticamente restrito às ocupações para moradia, sendo a maioria “invisível”, talvez pela história de desigualdade e segregação sócio-espacial no país. Ressaltamos que nos países europeus o movimento squatter se iniciou pela ocupação de imóveis para moradia, ainda na primeira metade do século XIX. Essa amplitude de sentidos também pode estar ligada a questões históricas e ideológicas: na Europa o anarquismo possui mais força do que no Brasil. Neste sentido, as ocupações brasileiras possuem um caráter socialista, enquanto muitas europeias afirmam serem anarquistas. Nos últimos anos, porém, tem-se observado no Brasil um crescente número de ocupações organizadas politicamente que buscam, em primeiro lugar, a moradia, mas desenvolvem também outras atividades, como o caso da ocupação Manoel Congo. Apesar das atividades desenvolvidas ainda serem incipientes, frágeis e não garantirem a segurança da posse e a sobrevivência dos ocupantes, elas podem indicar de uma mudança, ou melhor, de ampliação de sentidos das ocupações brasileiras. Esperamos, então, que a partir do exposto esteja claro que as ocupações podem significar práticas espaciais emancipatórias. Ademais, acreditamos que as ocupações podem ajudar a conscientização e

120 “The more people comprehend the logic of this system the more they see housing being speculated upon while their own access to adequate shelter becomes precarious. Claiming housing as a right has a great potential to win mass support. Once that argument has entered the collective imagination (re)appropriating vacant buildings becomes a logical and defensible next step” (MAYER, 2013, p.6).

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emancipação das pessoas, levando-as a exigir mais do que a satisfação das carências “não radicais”, entendendo, então, que as necessidades radicais são parte fundamental da vida do ser humano, a partir das características de transgressão, contra hegemonia, contracultura e imaginação que podem ser observadas nas práticas internas dos movimentos de ocupação. Lembramos, ainda, que, ao contrário do que muitos supõem, as ocupações não são essencialmente ilegais, poisb possuem amparo legal em diversos países. Porém, os ocupantes devem estar cientes de que sua luta também incluirá uma disputa jurídica e institucional, em especial em torno da determinação da função social da propriedade urbana. Por fim, acreditamos que a ocupação de um imóvel ocioso é uma resposta direta ao fracasso do capitalismo e do estado de bem-estar, que não foram capazes de suprir as carências – sejam elas radicais ou não – da nossa sociedade.

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121

ANEXOS

ANEXO A – Folder de Christiania com um mapa simplificado da área121

121 Em destaque, do lado esquerdo, a área “urbana”, previamente construída; e, em verde, a área “rural”.