Michèle Bompard-Porte, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão da tradução: Carlos Teoria Antônio Andradepsicanalítica Mello As figuras paternas, um assunto coletivo

Michèle Bompard-Porte Tradução: Bernardo Maranhão Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

Resumo Segundo Freud, a existência de figuras paternas em um grupo humano é contingente e depende das dinâmicas coletivas prevalentes. Uma recapitulação sucinta das três dinâmicas paradigmáticas segundo Freud – horda, matriarcado, grupo fraternal – permite concluir que a invenção dos pais no seio dessas dinâmicas advém mais propriamente da lógica fálica que do reconhecimento da alteridade dos sexos. Assim, a autoridade dos pais depende de uma regressão infantil, e tornar-se adulto psíquico implica separar-se disso.

Palavras-chave Pais, Psicologia coletiva, Horda, Matriarcado, Grupo fraterno, Clivagem, Onipotência.

Em setembro de 1897, Freud não acredita surpresa de que na totalidade dos casos o mais em sua neurótica (Freud, [1887-1904] pai deva ser acusado como perverso, in- 1986). O delírio a dois (Freud e Fliess), do clusive o meu” – tal havia sido a desastrosa qual Emma Eckstein foi a vítima, guarda, entrada dos pais na psicanálise. Terceira, sem dúvida, relação com essa mudança a ideia fundadora da psicanálise: “[...] teórica.1 No entanto, a psicanálise foi a percepção certeira de que não há no fundada dessa maneira. A primeira teoria inconsciente signo da realidade, de modo da sedução era, com efeito, uma teoria que não se pode distinguir a verdade da local, extrínseca e unicausal dos sintomas. ficção investida de afeto (Por conseguinte, A afirmação segundo a qual “não há no a solução continua sendo que a fantasia inconsciente signo de realidade, de modo sexual se aproveita regularmente do tema que não se pode distinguir a verdade da dos pais)”. Quarta razão: “[...] a reflexão ficção investida de afeto”, assim como a quanto ao fato de que, nas psicoses mais ideia correlata da eficiência das fantasias, profundas, a lembrança inconsciente criou a psicanálise e seu domínio, a reali- não irrompe, de modo que o segredo dos dade psíquica. eventos vividos da infância não se trai, Eis aqui as razões que Freud enumera mesmo no delírio mais confuso” (Freud, em sua carta de 21 de setembro de 1897 [1887-1904] 1986, p. 283-284). a Fliess, para recusar a teoria da sedução. Duas cartas a Fliess, um encontro com Primeira: “[...] as decepções contínuas das ele e, três semanas mais tarde, Freud escre- tentativas de conduzir uma análise a sua ve de novo a seu amigo, em 15 de outubro verdadeira conclusão”. Segunda: “[...] a de 1897, para lhe comunicar uma ideia.

1. Emma Eckstein é a paciente que Freud confia a Fliess na primavera de 1895, para uma operação no nariz, a pretexto de suprimir sua masturbação persistente. Pode-se falar em um delírio a dois. Fliess opera Emma Eckstein em Viena, apesar de não habilitado na cidade e esquece quase um metro de gaze na ferida. Após quase haver sucumbido, a paciente permanece desfigurada depois das operações que se seguem a essa primeira. Ao continuar a trabalhar com Emma, após esse episódio, é que Freud vem a recusar a tese do trauma sexual/pré-sexual, em favor da eficiência da realidade psíquica e das fantasias (outono de 1897). Emma é uma personagem de destaque no sonho da injeção de Irma e uma das autênticas vítimas da pesquisa freudiana (cf. Freud, [1887-1904] 1986).

Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 15 As figuras paternas, um assunto coletivo

Ser completamente sincero consigo durante toda a semana de primavera que mesmo é um bom exercício. Um único a festa durava; a cidade de Tebas enfim, pensamento de valor geral me veio. sua história e seus mitos de fundação. Encontrei a paixão amorosa pela mãe e A configuração é análoga no caso de o ciúme contra o pai em mim também, e Hamlet, cujo tema Shakespeare tomou eu os considero agora como um evento emprestado da Historia Danica, redigida geral da primeira infância [...]. Se é no final do século XII por Saxo Gramma- assim, compreende-se a potência arre- ticus, ainda que as representações teatrais batadora de Édipo Rei, apesar de todas londrinas no Globo, nos anos 1600, não as objeções que a razão levanta contra adviessem da religião, e que o sistema a pressuposição do destino [...] a lenda político britânico fosse então uma realeza. grega capta uma propensão que cada um Certamente, a cena de teatro é pro- reconhece, porque a sentiu em si mesmo pícia à evocação da “outra cena”. Não durante sua existência. Cada um dos obstante, Édipo, seu pai Laio e sua esposa espectadores foi em germe e em fantasia e mãe Jocasta devem sua existência aos um tal Édipo e, em vista da realização de diversos grupos humanos que os inventa- sonho aqui transposta para a realidade, ram e depois os encenaram e perpetuaram. cada um recua de espanto com o conjunto Mais tarde, Freud insiste. É necessá- da parcela de recalcamento que separa rio nada menos que todo o Totem e tabu seu estado infantil de seu estado atual. (1912-1913) com o “mito científico”2 que Atravessou-me o espírito, furtivamente, nele se desenvolve, para tentar conferir a ideia de que a mesma coisa poderia alguma inteligibilidade à configuração estar no fundamento de Hamlet (Freud, edipiana. Novamente, a existência do [1887-1904] 1986, p. 293). pai – ou, mais propriamente, a de diversas figuras paternas – depende de vários. Con- O trauma da sedução pelo pai foi subs- vém, portanto, reconhecer que, segundo tituído em três semanas pela ideia da a psicanálise freudiana, a existência de configuração edipiana, que é herdeira figuras paternas é contingente. Elas de- da dimensão traumática, anteriormente pendem dos grupos que inventam ou não trazida à luz. sua existência e depois garantem ou não Por outro lado, já se observou suficien- sua persistência – o que Freud denomina temente a que ponto a primeira introdução matriarcado é uma configuração coletiva do “complexo de Édipo” entrelaça a psico- sem figura paterna evidente. logia individual com a coletiva? Édipo Rei é o título da peça de teatro (a tradução ale- As três dinâmicas mã usual, como a francesa, suaviza: palavra coletivas paradigmáticas3 por palavra, o grego diria “Édipo tirano”). Retornemos à dinâmica libidinal funda- Freud cursou suas humanidades, ele sabe mental das massas, segundo Freud: por que que Sófocles (496-406) concorria para as e como pessoas podem se reunir e depois Dionísias atenienses. Ele evoca também a lenda grega, expressis verbis. Assim, ao me- 2. É assim que Freud qualifica seu trabalho, nove anos nos quatro coletividades são convocadas mais tarde, em Massenpsychologie und Ich-Analyse (1921) [Psicologia das massas e análise do eu], G.W. XIII, p. 151. quando Édipo aparece para a psicanálise. 3. Encontram-se estudos alongados sobre esse tema em O antigo povo grego em torno da lenda; diversos trabalhos de Bompard-Porte, publicados a partir de 1997, que comentam a obra freudiana. Dois artigos a “democracia” ateniense, criadora das resumem alguns resultados elementares: 1998, Les lan- Dionísias; a assembleia dos cidadãos con- gues des masses, selon Freud. Cliniques méditerranéennes, 57/58, Paris, Erès, p. 77-93; 1999; Les preuves selon la vocados às ditas Dionísias e que assistiam psychanalyse. Conviction, croyance, confiance… et in- notadamente às representações teatrais, vention. Topique, 70, Paris, Esprit du Temps, p. 129-147.

16 Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 Michèle Bompard-Porte, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello permanecer juntas ou se dispersar. A ques- em carne e osso do lugar do [objeto exterior tão é elucidada, entre outros escritos, em -objeto do eu-ideal do eu]. Um processo do Psicologia das massas e análise do eu (1921) ideal do eu, ainda que rudimentar, tem lugar: texto em que Freud propõe notadamente trata-se de compartilhar esse que desapareceu um sistema esclarecedor do processo fun- – na formulação inicial, a do “mito científi- damental. Os membros de um coletivo co”, os irmãos compartilham a nostalgia do investem um mesmo ocupante do lugar de pai onipotente, uma vez que elaboraram sua {objeto exterior-objeto do eu-ideal do eu}, inexistência. Eles compartilham uns com os e esse investimento idêntico cria o traço outros, então, a autoridade, selando entre eles comum que provoca as identificações do eu um pacto em nome do pai. entre eles e que depois as sustenta. O custo As noções de horda, matriarcado e econômico do pertencimento a um coletivo grupo totêmico (ou fraternal ou democrá- é bastante alto, uma vez que ele necessita tico) significam estilizações metapsicológi- de dois investimentos libidinais de natureza cas das quais Freud detalha pouco a pouco diversa e em duas direções. Os custos tó- as modalidades de funcionamento ao longo picos e dinâmicos não são menores, já que de toda a sua obra.4 Todo grupo real com- reduzir os processos dos objetos exteriores, porta as três dinâmicas, que envolvem em os dos objetos do eu e os das formações do geral relações conflituais, mesmo se uma ideal do eu a um só investimento apaga dessas dinâmicas prevalece. Por exemplo, dinâmicas psíquicas diferentes, variadas e a ditadura hitlerista comporta um Führer ricas, sob esse único investimento simplista. evidente, chefe de horda por excelência. Para Freud, há mais três dinâmicas Mas o estado nazista se organiza também paradigmáticas dos grupos, segundo o graças ao poder de alguns: a burocracia nível de redução psíquica que o ocupante nazista mais os chefes das grandes empre- do lugar do {objeto exterior-objeto do eu sas que permitiram a chegada de Hitler ao -ideal do eu} implica. Elas correspondem poder e depois colaboraram com o regime. às três possibilidades quanto à atribuição Enfim, mesmo no estado nazista, existem do prestígio da autoridade em um grupo grupos nos quais a autoridade é comparti- humano. Um chefe de carne e osso ocu- lhada, a exemplo dos grupos da resistência. pando o lugar do {objeto exterior-objeto do eu-ideal do eu} corresponde à orga- “A diferença dos sexos nização da horda (monarquia). Algumas não desempenha nenhum papel” pessoas em função de autoridade e ocu- nas massas pando o lugar do {objeto exterior-objeto Tentaremos, em um momento, verificar do eu-ideal do eu} correspondem a um se as três dinâmicas paradigmáticas são grupo matriarcal (oligarquia). Se, enfim, suscetíveis de inventar figuras parentais – o prestígio da autoridade é compartilhado e quais seriam elas – e, em seguida, se tais entre a maioria dos membros do grupo (po- dinâmicas são suscetíveis de perpetuar a liarquia), tal grupo é totêmico, fraternal, existência das figuras em questão. Antes, democrático – Freud emprega todos esses contudo, conviria meditar sobre essa nota: qualificativos, que significam nuances na dinâmica correspondente. Ele evita em ge- Mesmo onde se formam grupos que são ral o nome de patriarcado, ao passo que o uma mistura de homens e mulheres, a de matriarcado lhe parece adequado para designar a dinâmica coletiva que se segue 4. Será preciso recordar que cerca de metade da obra ao assassinato do pai primevo. Fica claro de Freud é consagrada aos processos psíquicos coletivos? No caso, a elaboração se inicia em Totem e tabu (1912- que, nos grupos de tipo fraternal, totêmico 1913) e prossegue quase continuamente até a última ou democrático, não existe mais ocupante obra, Moisés e o monoteísmo (1934-1938).

Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 17 As figuras paternas, um assunto coletivo

diferença dos sexos não desempenha ne- Freud, permite concluir que a diferença nhum papel. Mas há sentido em perguntar dos sexos desempenha também um certo se a que mantém os grupos reunidos papel nos grupos. é de natureza homossexual ou heteros- sexual, porque ela não é diferenciada Pouco a pouco, os aliados da massa frater- segundo os sexos e passa completamente nal se aproximam de uma instauração do ao largo, particularmente, das finali- antigo estado em um novo nível, o homem dades da organização genital da libido.5 (Mann, o homem no sentido sexuado) volta a ser chefe de uma família e quebra Do ponto de vista metapsicológico, esse (brach) os privilégios da ginecocracia enunciado é simples de compreender6. Ele (Frauenherrschaft) que se mantivera du- resulta da redução, a um só investimen- rante o tempo sem pai. A título de indeni- to, dos processos que criam, investem e zação (Schädigung), ele [o homem] pode mantêm objetos exteriores, objetos do eu bem ter então reconhecido as divindades e formações do ideal do eu. A regressão maternas cujos sacerdotes foram castra- tópica – e também formal e temporal – é dos (kastriert) para a segurança da mãe, considerável. A convicção, a crença ou a segundo o exemplo que fora dado pelo pai confiança na existência do ocupante do lu- da horda primitiva (Freud, 1921, p. 152). gar do {objeto exterior-objeto do eu-ideal do eu} investido dispensam quase todo A “ginecocracia”, Frauenherrschaft, que trabalho de separação e asseguram uma Freud considera, por hipótese, ser a di- completude narcísica que é supersatura- nâmica prevalente após o assassinato do da pelas identificações do eu recíprocas.7 Urvater, implica que a diferença dos sexos Não há lugar, nem libido, para o trabalho desempenha um certo papel; o mesmo (psíquico) de elaboração (difícil) da alte- vale para a retomada do poder pelo “ho- ridade dos sexos. Tal trabalho implica, ao mem”, der Mann; o mesmo vale ainda contrário, desbastes narcísicos diversos e para a hipótese de que os sacerdotes das a elaboração de perdas e de separações. divindades maternas sejam “castrados”, Além disso, salvo situação muito excep- kastriert. De resto, a passagem de uma cional do gênero orgia, a participação em situação coletiva a outra parece implicar, um coletivo e a atividade sexual genital se segundo Freud, conflito – guerra dos excluem mutuamente. sexos? –, quebra (“o homem quebra a gi- necocracia”) e indenizações (Schädigung). Lógica fálica nos grupos Em Moisés e o monoteísmo, Freud re- No entanto, o exame mais elementar, toma assim o tema: assim como certas observações do próprio Um outro processo de um tempo ulterior vem a nós muito mais palpável. Sob a 5. Massenpsychologie und Ich-Analyse [Psicologia das influência de fatores exteriores que não massas e análise do eu], G.W., XIII, p. 158 (nos Nachträge necessitamos seguir aqui, e que também, [no pós-escrito]). 6. Não cabe aqui comentar a autorreferência por meio em parte, não são muito conhecidos, a da qual “a libido [...] passa ao largo das finalidades da ordem social matriarcal vem a ser sub- organização genital da libido”. 7. Assim, o trabalho psíquico necessário à criação de stituída (abgelöst) pela patriarcal, fato ao um grupo fraternal – trabalho que comporta, contudo, qual naturalmente se associou uma revi- a elaboração das perdas do pai da horda e da convicção quanto a sua onipotência – não é suficiente, segundo ravolta (Umsturz) das relações jurídicas Freud, para que a alteridade dos sexos se torne pensável. [existentes] até então. Acredita-se iden- Isso implica que os elementos do narcisismo concernidos no trabalho em questão são apenas aqueles do narcisismo tificar a marca de um eco dessa revolução dito primário. (Revolution) ainda na Oréstia de Ésquilo.

18 Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 Michèle Bompard-Porte, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

Mas esse retorno (Wendung) da mãe ao mento da alteridade dos sexos. Tampouco pai caracteriza, ademais, uma vitória da na organização patriarcal existe algo que espiritualidade (Geistigkeit, sem conota- permita pensar que uma elaboração da ção religiosa, quase “intelectualidade”) alteridade dos sexos tenha tido lugar. A sobre a sensorialidade e, portanto, um oposição fálico versus castrado parece ape- progresso cultural, pois a maternidade é nas mais próxima da anatomia, e como que demonstrada pelo testemunho dos sen- redobrada pela invenção dos sacerdotes tidos, ao passo que a paternidade é uma castrados. A maioria dos homens recobrou hipótese admitida (Annahme) construída certo poder, mas em detrimento das mu- sobre uma conclusão e uma pressuposição lheres que são desapossadas desse poder e (Freud, 1939 [1934-1938], p. 221). devem ser indenizadas: “ter ou não ter”, ainda e sempre, a lógica fálica prevalece. Novamente a mudança é descrita como Abre-se uma pista que poderia ter brutal, “reviravolta”, Umsturz, e “revolu- sido sugerida pela análise dos processos ção”, Revolution. Ele recorre, além disso, psíquicos coletivos efetivos. Quando ho- ao mais arcaico em matéria de defesa: mens e mulheres são distinguidos como “retorno”, Wendung.8 Esse é o termo que tais, nos grupos, trata-se em geral de uma Freud promove em 1915, em As pulsões e distinção fálico versus castrado, trata-se, seus destinos, (1915) explorando as primei- antes, de clivagem, e não de elaboração da ras defesas conhecidas, retorno (Wendung) alteridade dos sexos propriamente dita – a de uma pulsão da atividade à passividade, expressão “guerra dos sexos” pode então acompanhada, em geral, de um retorno ser empregada. Isso se aplica com certeza correspondente contra a própria pessoa, e no caso dos monoteísmos. reversão no contrário (Umkehrung ins Ge- Será preciso recordar que os homens genteil). Essas defesas são completamente judeus agradecem a deus todas as manhãs independentes da alteridade dos sexos. em suas preces por ele não tê-los feito mu- Além disso, a leitura minuciosa das lheres? A religião de um Deus onipotente à duas citações permite constatar que imagem do qual os homens são feitos não Freud não pressupõe uma elaboração pode incitar a compartilhar entre adultos dos psíquica refinada da alteridade dos sexos. dois sexos aquilo que eles (como adultos no Ele se atém a uma clivagem manifesta sentido psíquico) deveriam ter reconhecido e conflitual – lógica fálica – que atribui com inexistente, a saber, a onipotência (fálica sucessivamente o prestígio da autoridade narcísica). A prece cotidiana, ao contrário, e o valor fálico, primeiro às mulheres e mantém a convicção de que a onipotência mães, depois ao homem e pai. A ênfase existe, com o cortejo de seus correlatos, é posta, ademais, nas únicas figuras de clivagem, desprezo pelo outro sexo etc., etc. autoridade parentais – com o aspecto A parte explicitamente matriarcal da infantil que o investimento nessas figuras dinâmica da igreja católica mostra fenô- implica, ou, alternativamente, com as re- menos análogos. Maria é mãe e virgem; gressões temporal, tópica e formal de que intocada, ela é o modelo do “manto sem tal investimento necessita. Relações entre costura” da igreja; os dogmas da imaculada semelhantes estão fora de questão, sejam concepção (1950) e da assunção (1853) eles do mesmo sexo ou dos dois sexos. A vêm como incremento. Em matéria de oni- fortiori, está fora de questão o reconheci- potência (fálica narcísica), isso vai longe assim – os padres, embora não corporal- 8. Comentários estendidos sobre Wendung em: BOM- mente castrados, fazem voto de celibato. PARD-PORTE, M. Le sujet. instance grammaticale selon Freud. Paris: L’Esprit du Temps, 2006, notadamente p. Quanto às mulheres da comunidade, elas 64-66. suportam a clivagem e a dominação mas-

Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 19 As figuras paternas, um assunto coletivo

culina, autorizadas pelas referências ao designa, no domínio mineral, clivagem mito de Eva e aos escritos de Paulo, entre e desintegração; no domínio vegetal, a outras. A criação das beguinarias e a caça esfoliação; em física atômica, a fissão; no às bruxas organizada durante séculos na domínio religioso, o cisma. Trata-se, certa- Europa são episódios dessa clivagem... em mente, de cisão, de dissociação, mesmo de nome do pai, segundo se diz. Qual pai? A desdobramento (inclusive da consciência), isso iremos em um momento. mas a divisão da Spaltung vai até a decom- Na comunidade muçulmana, a pre- posição e a fragmentação. Com esse termo, sença da clivagem seria igualmente fácil de Freud aprofunda uma pesquisa assinalada demonstrar. É inútil dedicar muito tempo nestes termos em 1924: ‘[...] o eu poderá aos debates modernos sobre o véu. evitar a ruptura em direção a um lado A convicção incessantemente mantida qualquer [isso, supereu, mundo exterior] de que existe(m) (alg)uma(s) figura(s) da ao se deformar a si mesmo, ao consentir onipotência implica, com efeito, clivagem (e em perder sua unidade, e mesmo, even- negação da realidade) tanto em psicologia tualmente, ao se fissurar (zerklüftet) ou individual quanto em psicologia coletiva. ao se dividir em vários pedaços (zertleilt)’ Eis aqui um resultado provisório. Se (G.W. XIII, p. 391, Neurose und Psychose). certos grupos inventam e reconhecem um pai ou alguns pais, parece que isso não “Eu me encontro por um momento na implica que a elaboração da alteridade dos interessante situação de não saber se o sexos seja efetuada nesses grupos. Parece que quero comunicar deve ser avaliado mesmo, aliás, que as dinâmicas coletivas como conhecido desde há muito tempo paradigmáticas dão acesso, segundo Freud, e autoevidente ou como completamente à lógica fálica e à clivagem que a acompa- novo e estranho. Creio, contudo, que é nha. Dito de outro modo, reconhecimento mais o segundo caso.” Assim começa A de figuras paternas e elaboração da alte- divisão do eu no processo de defesa, que ridade dos sexos são processos psíquicos Freud redige em 1938, uma vez termina- relativamente disjuntos. O primeiro não do Moisés e o monoteísmo. Confia-se em precisa de mais do que a lógica fálica; o Freud e na coorte de psicanalistas que se segundo implica ultrapassá-la. debruçaram sobre esse processo de defesa: não há nada de evidente e parece haver Clivagem em psicologia individual evidência. A figura do bom pai de família e em psicologia coletiva (recordatório) e torturador é uma configuração psíquica Que me seja perdoado citar aqui o item que a história do século XX demonstra “clivagem” do glossário de um trabalho ser genérica sob certos regimes políticos meu já antigo, Le mythe monothéiste. Une (privilegiando horda e matriarcado). Da lecture de L’Homme Moïse et la religion mo- tese do ‘fetichismo da mercadoria’, certos nothéiste, Paris, ENS Editions, 1999. sucessores de Marx deduzem também uma clivagem genérica, em nossas sociedades Clivagem. Spaltung. Clivar é fender um capitalistas: de um lado, a vida social, mineral – diamante, mica – no sentido na qual cada um, reificado, reduz-se ao de suas camadas lamelares. Mas o alemão egoísmo; do outro, a vida privada, na qual klieben, do qual provém nosso “clivagem” diversos intercâmbios podem existir. Essa por via dos diamantistas de Amsterdam clivagem depende da denegação do traba- (klieven), é pouco utilizado. Spalten signi- lho humano, reduzido à coisa: mercadoria. fica também fender segundo a estrutura, a exemplo do que ocorre com o feldspa- Não há contradição mais complementar to, mas o termo é mais amplo: Spaltung ao trabalho de Freud, elucidando como

20 Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 Michèle Bompard-Porte, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

os grupos exploram processos psíquicos adulto, entre os humanos – o que Freud individuais, dos quais a ontogênese e a denomina o inconsciente. Sua existência eventual estabilização são inteligíveis. No e suas configurações dependem, por um caso, a clivagem do eu resulta da vontade lado, da prematuridade dos recém-nasci- de manter a existência da onipotência, dos na espécie humana e, por outro lado, em primeiro lugar a da mãe (‘falo da do período de latência, segunda infância, mãe’) – e, por participação, a sua própria entre cinco anos e a puberdade, durante –, uma vez que se constatou sua primeira a qual certamente podemos desenvolver camada: vista do sexo da mãe; ela não todo tipo de aprendizagem, mesmo se não pode fazer os filhos sozinha; alteridade somos suscetíveis de atividade genital re- dos sexos. Em lugar de elaborar (no sofri- produtora, mas também recalcamos nossa mento) essa minoração da mãe, de si e dos primeira infância, o que lhe confere sua outros humanos, e de enfrentar os temores eficiência excepcional. da castração, o eu se separa em dois, uma parte parecendo aceitar a realidade e sub- Os pais, figuras infantis meter-se a ela, a outra parte não. Segue- se a isso uma posição psíquica estranha, Simultaneamente com a superação em que todo enunciado e seu contrário (Überwindung) e a rejeição (Verwerfung) valem segundo os momentos – a dimen- desses fantasmas puramente incestuo- são simbólica da linguagem está ausente; sos, é alcançado um dos feitos mais sustentar sua palavra não significa nada. significativos e também mais dolorosos Além disso, cria-se um compromisso fi- do tempo da puberdade, a separação gurando a clivagem: o fetiche. Ele nega a (Ablösung) em relação à autoridade dos existência da onipotência materna (como pais, graças à qual, unicamente, cria-se ‘objeto’ separado dela), precisamente ao a oposição da nova geração em face da afirmá-la (como esse que provém dela); anterior, oposição tão importante para depois, nega-a novamente (por exemplo, o progresso cultural (Freud, 1905 G.W., por meio dos maus-tratos ou atos destru- v. V, p. 128). tivos que lhe são infligidos): movimentos da denegação. O fetiche é a coisa insepa- Eis uma passagem que ajudará a com- rada do fetichista, o signo necessário a sua preender melhor o que está aqui em ques- potência, mesmo a sua existência, e cuja tão. As figuras parentais e sua autoridade, eficiência permanece mágica. quaisquer que sejam, são infantis. É coe- rente encontrá-las eficientes nos grupos, Talvez se tenha compreendido melhor na exata medida em que a dinâmica destes como as noções de clivagem, de denegação impõe a seus membros a regressão tópica da realidade e de fetiche são interligadas principal que se evocou, mais as regressões na perspectiva freudiana, e como essas temporais e formais correlatas. noções dependem da convicção mantida Certo é, em todo caso, que toda de que há uma ou algumas figuras oni- figura psíquica paterna (ou materna), potentes – das quais certamente o sexo investida e eficiente, provém, segundo biológico não importa. Essas posições psí- Freud, do infantil ou da regressão. Co- quicas são “normais” na primeira infância meça-se a compreender que tal figura – elas decorrem da absoluta dependência é disjunta da elaboração da alteridade dos pequenos em relação aos adultos. Sua dos sexos. persistência ou sua reaparição na idade Falta ainda tentar conceber mais pre- adulta dão testemunho da eficiência ex- cisamente como se instituem e funcionam cepcional do psiquismo infantil sobre o do as diversas figuras paternas possíveis.

Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 21 As figuras paternas, um assunto coletivo

“Pai” da horda morte com nascimento – é um traço quase Na horda, não há lugar para nenhuma patognomônico, que permite estabelecer individuação. É o reino da pura relação facilmente diversos aspectos da dinâmica de forças. O chefe da horda dispõe do matriarcal. Assim, é preciso enterrar as poder deôntico – sobre o ser e a existência sementes para que os brotos despontem dos membros (Freud utiliza o exemplo da – as sociedades agrárias têm um forte com- ordália dos recém-nascidos – literalmente, ponente matriarcal; o mesmo se verifica os pais matam os filhos –, no Complemento em todas as instituições nas quais a partida que ele redige para o caso do Presidente e a chegada da maioria dos membros se Schreber). Na horda, o tempo é a eterni- identificam uma com a outra: hospitais, dade do narcisismo primário – do qual o universidades justamente denominadas chefe da horda é o representante por exce- Alma mater, “um perdido, dez encontra- lência, segundo Freud. “Vive-se, mata-se, dos”. A onipotência atribuída a alguns morre-se sem sabê-lo”, cheguei a escrever. dirigentes implica a prevalência da lógica Ocorre que o chefe de uma horda fálica: tudo ou nada, com a clivagem e real se intitula “pai do povo”, ao modo a denegação da realidade correlatas. A de Stálin, mas isso não é uma necessida- identidade morte-nascimento implica que de – Hitler não se utilizou muito dessa o tempo seja visto e vivido como reversível designação; um general pode se instituir e, frequentemente, como cíclico. “pai” do regimento, sublinhando, assim, o Manter sua palavra não tem, então, lado horda da dinâmica do grupo. Freud, sentido algum. Nossas sociedades moder- em sua obra, faz um uso sistemático de nas e pós-modernas, com suas oligarquias “pai” e “arquipai”. Ele denomina Vater ou plutocráticas, funcionam, de maneira Urvater o chefe da horda do “mito cientí- prevalente, segundo uma dinâmica ma- fico”, e guarda por vezes essa designação triarcal, tal como Freud a concebe. Se para denominar aquele que ele intitula a elaboração da alteridade dos sexos é também “guia”, Führer, da horda. Conviria excluída, nada impede que uma rica se- atentar para essa designação e para o que xualidade pré-genital se desenvolva (o ela implica, conforme já sugerido. “Pai” “consumo” é, quanto a isso, típico, com a designa aqui uma figura da onipotência. publicidade que o organiza). As dinâmicas Ela é realista do ponto de vista da criança matriarcais não são muito observantes pequena, cuja sobrevivência depende, de quanto ao incesto. Na ausência de alteri- fato, do bem-querer e da competência dos dade dos sexos elaborada, a genitalidade adultos próximos, notadamente do “pai”, funciona como uma pulsão parcial a mais. se alguém é designado como tal. “Pai” de- Assassinatos e destruições são em geral signa também o chefe de um grupo mono- considerados como fecundos (em nossas centrado cujos membros foram reduzidos sociedades atuais, toda destruição material por regressão à submissão (ao terror nunca é contada como crescimento do PIB).9 faltam, como fatores instituintes, a referida Ainda que, segundo a construção mítica, regressão e a dinâmica horda prevalente). o matriarcado não atribua o poder às mães,

Matriarcado 9. A proliferação programada das doenças e mortes pro- Existe um grupo paradigmático sem pai, fissionais (amianto, etc.) assim como a das intoxicações segundo Freud, o matriarcado. No mito de massa (pesticidas, dioxina, radioatividade, obesidade, etc.) estão em perfeita conformidade com a dinâmica científico, trata-se do reino das mães. matriarcal de nossa sociedade. Do mesmo modo, as guer- Esse reino se segue ao assassinato do pai ras totais e a destruição do planeta. Além do fetichismo da mercadoria, sempre ativo, conviria estudar a criação pelos filhos reunidos. Nascido de um as- das crianças fetiches, correlato provável das técnicas do sassinato, esse grupo continua a identificar “consumo de massas”.

22 Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 Michèle Bompard-Porte, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello a dinâmica correspondente funciona, os outros membros da coletividade, entre com efeito, independentemente do sexo eles, as mulheres e mães, o poder que dos membros. Nosso sistema midiático, adquiriu. Dito mais claramente, Freud se por exemplo, em sua dimensão matriar- inspira em democracias e em outras repú- cal, trata identicamente suas “vedetes”, blicas históricas: Atenas, Roma, Estados sejam elas mulheres, sejam homens. Não Unidos da América, mesmo a França da há “pai”, de fato. Há matriarcas fálicas e Terceira República. Em todos os casos, filhos – isto é, adultos que acreditam na os cidadãos são apenas os machos adul- potência das matriarcas. tos e autóctones – grosso modo, dez por Horda e matriarcado são próximos. cento da população, na Atenas do século Etienne de la Boétie havia sublinhado quinto. É preciso então reconhecer que isso ao narrar a história da submissão dos a clivagem cidadãos-irmãos-pais versus lídios por Ciro, em seu Discurso da servidão outros membros do grupo não advém da voluntária (redigido em 1548, segundo dinâmica fraternal. Em outras palavras, Montaigne). Em vez de submeter ao seu o grupo dos irmãos aliados democratica- exército a cidade de Sardes, com o risco de mente, entre eles, é redobrado pelo mesmo destruir sua esplêndida arquitetura, Ciro grupo, dessa vez exercendo sobre os ou- trata de impor aos habitantes a frequên- tros membros da coletividade, dentre os cia cotidiana a bordéis e outras tavernas quais as mães e mulheres, sua autoridade e casas de jogos, sob a vigilância de seus segundo uma dinâmica matriarcal... don- funcionários. E a vila é rapidamente sub- de sua designação de “pais”. E é preciso, jugada (La Boétie, 1548, p. 68-69). ademais, levar em consideração o pai no seio da família, cuja forma de autoridade Grupo fraternal, advém daquela do chefe da horda, “em “havia uma pletora de pais” um outro nível”. Terceiro e último grupo paradigmático, Nada poderia ser mais ambíguo. Essa segundo Freud, o grupo totêmico, fraternal posição paterna implica, ao mesmo tempo: ou democrático, no qual os homens, em uma dinâmica fraterna, instaurada pelos sua maioria, retomaram o poder limitado machos aliados entre si e se reconhecendo que sua aliança impõe, ao se tornarem (em princípio) como semelhantes; uma pais: “havia uma pletora de pais, e cada dinâmica matriarcal que eles exercem, um limitado pelos direitos dos outros” como minoria, sobre o conjunto do cole- (Freud, 1921, p. 152). Ao contrário dos tivo considerado; uma dinâmica de horda, precedentes, esse grupo reconhece a irre- enfim, que se instaura na família na qual versibilidade do tempo – o pai está morto o pai é a única autoridade. e pranteado por todos, vale dizer, reco- Disso resulta que, no ponto em que nhecido como inexistente. Manter sua se é suscetível de renunciar à existência palavra tem sentido: é o fundamento dessa da onipotência e, por conseguinte, reco- dinâmica e da aliança estabelecida entre nhecer semelhantes, não há “pais”, mas os irmãos. “Progresso da espiritualidade”, apenas “irmãos” ou mesmo “cidadãos”. como vimos: além da palavra mantida, um Onde os pais existem, a dinâmica da hor- pensamento hipotético-dedutivo (proces- da e a do matriarcado são prevalentes. A so secundário) pode ter curso – a prova vi- noção de pai – na medida em que dá lugar sível (matriarcado) não é mais necessária. a um investimento –, decididamente, só No entanto, o grupo dos irmãos tem sentido do ponto de vista de um psi- tornados pais comporta outra dinâmica quismo infantil, ou do ponto de vista de fundamental de subsistência a dinâmica um psiquismo de adulto que permaneceu por meio da qual esse grupo conserva sobre infantil ou que voltou a sê-lo.

Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 23 As figuras paternas, um assunto coletivo

Para dizer adeus tais privilégios, é sinal de que o infantilis- E é assim que Édipo Rei ou A tragédia de mo reina... em toda a nossa cultura, e não Hamlet, príncipe da Dinamarca nos tocam, apenas sobre as figuras dos pais. ϕ pela via do inconsciente. Ocorre que certas culturas, dessas que chamamos de “primitivas”, parecem ter acedido a orga- THE FATHER FIGURES, nizações sociais mais elaboradas do que as A COLLECTIVE MATTER nossas, nas quais a partilha da autoridade entre todos os adultos era alcançada – Abstract penso nos relatos de etnólogos sobre According to Freud, existence of the father certos grupos aborígenes australianos, ou figures in a human group is contingent and certos grupos indígenas da América. Se se depends on the prevailing collective dynamics. acredita, ademais, nos arqueólogos e pré A brief recall of the three paradigmatic -historiadores atuais, a invenção de uma dynamics according to Freud – herd, figura da onipotência entre os humanos é matriarchy, fraternal group – allows us to tardia. Ela dataria do Natufiano, cerca de conclude that the invention of the fathers dez mil anos atrás, logo antes da invenção amidst these dynamics derives rather from da agricultura, entre a costa leste do Me- the phallic logic than from the recognition of diterrâneo e a porção alta do Tigre e do the alterity of sexes. Thus, the authority of Eufrates. Nesse tempo, os humanos se re- the parents depends on an infantile regression, presentaram, pela primeira vez, curvados, and becoming psychically adult implies devotos e minúsculos sob a imensa figura separating oneself from that. da grande deusa. Anteriormente, a arte rupestre os desenhava ou esculpia de pé, Keywords correndo, caçando, dançando, em meio ao Fathers, Collective psychology, Herd, mundo animal circundante10 …e dos dois Matriarchy, Fraternal group, Division, sexos (“perdemos tudo no neolítico”, tive Omnipotence. ocasião de escrever). O trabalho de uma análise poderia ser descrito como o que permite a alguém reconduzir (quase) os dois pais à humana condição. Eles são apenas dois pobres humanos, como o próprio sujeito, como todos os outros, e como o analista – análise da transferência. Assim, a questão não é “matar” pai e/ou mãe, o que significaria apenas a confirmação da onipotência deles e a da sua própria, mas terminar por se render à evidência: o pai e a mãe a quem se amou, odiou e temeu na primeira infância, esse pai e essa mãe que foram tão admirados, são as figuras que nossa impotência infantil fomentou. Continuar a se reivindicar pai ou mãe de um filho púbere, com tais ou

10. Cf., p. ex., Cauvin (1994).

24 Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 Michèle Bompard-Porte, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

Endereço para correspondência Referências E-mail:

CAUVIN, R. Naissance des divinités. Naissance de Sobre a autora l’agriculture. La Révolution des symboles au Néolithi- que. Paris: CNRS, 1994. Michèle Bompard-Porte Psicanalista. Professora em universidades. FREUD, S. Briefe an (1887-1904) Autora de vários livros, dos quais o mais recente [Cartas a Wilhelm Fliess]. Ungekürzte Ausgabe. é Douleurs psychiques et angoisses: Herausgegeben von Jeffrey Moussaieff Masson. entre psychanalyse et mathématique, Deutsche Fassung von Michael Schröter, Frankfurt em colaboração com Daniel Bennequin, am Main, S. Fischer Verlag, 1986. Carta a Fliess, 21 set. 1897. Paris, L’Harmattan, 2015. Coordenou a edição das obras completas FREUD, S. Carta 69 (21 set. 1897). In: ______. de René Tom pelo Institut Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos des Hautes Etudes Scientifiques, (1886-1889). Direção-geral da tradução de Jayme Bures-sur-Yvette, 2003. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 309-311. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de , 1).

FREUD, S. Carta 71 (15 out. 1897). In: ______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 314-317. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1).

FREUD, S. L’Homme Moïse et la religion monothéiste (1939 [1934-1938]) [Moisés e o monoteísmo], G.W., XVI, 1986.

FREUD, S. Massenpsychologie und Ich-Analyse [Psicologia das massas e análise do eu], 1921, G.W. XIII, 1986.

FREUD, S. Trois essais sur la théorie sexuelle (1905) [Três ensaios sobre a teoria da sexualidade]. G.W., V, 1986.

LA BOETIE, E. Discours de la servitude volontaire (1548). Paris: Pfluger (sem data de edição visível).

Recebido em: 18/12/2015 Aprovado em: 11/03/2016

Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016 25 As figuras paternas, um assunto coletivo

26 Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 71 • p. 15 – 26 • jun. 2016