. Ada Rogato Um Pássaro Solitário

INSTITUTO HISTÓRICO-CULTURAL DA AERONÁUTICA 2018 FICHA TÉCNICA

Ada Rogato Um Pássaro Solitário

Edição Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica

Editor Maj Brig Ar R/1 José Roberto Scheer

Autora Lucita Briza

Projeto Gráfico Seção de Tecnologia da Informação

Capa 2S Tiago de Oliveira e Souza

Impressão F&F Gráfica Editora

Rio de Janeiro 2018 Apresentação

“A vida é mais emocionante quando se é ator e não espectador; quando se é piloto e não passageiro; pássaro e não paisagem, cavaleiro e não montaria !” Dalai Lama Quando terminei de ler a história de Ada Rogato, pensei que estava sonhando e jurei que acabara de presenciar uma obra de ficção. Aquilo não era real. Mas, ao “acordar”, tudo era documentado... era verdade... aconteceu... inacreditável, concluí. Como alguém, nos anos 30 e 40, e ainda mulher, num período em que a cultura do “fazer acontecer” pertencia unicamente aos homens, poderia ter realizado tamanhas façanhas verdadeiramente heroicas, ou até mesmo, de certa forma, insanas. Mas fez. Essa incrível mulher, cujos melhores e mais incisivos adjetivos não seriam suficientes para decifrá-la, realizou proezas que hoje, com aviões mais modernos, com tecnologia avançada e utilizando maiores recursos, não seriam nada fáceis de serem concluídas. O seu ideal de ser pássaro, voando com o seu sonho, em busca do novo e do próximo, na pureza do céu, desnuda tudo aquilo que na sua época eram preconceitos, descrenças e impossibilidades. Para Ada tudo era, simplesmente, amor ao excelso voo, e as suas consequências não ensejavam preocupações e nem ansiedades, apenas se resumiam em suaves chegadas e saídas. Cada conquista singular era, apenas, mais um pouso, e cada saudade uma decolagem. O voo era a razão da sua existência. A obra literária que brindamos neste momento aborda os feitos de Ada Rogato, esta incrível personagem, que muito à frente do seu tempo abreviou o futuro, tornou palpável o idealismo e materializou sonhos quase impossíveis. Pela brilhante letra de Lucita Briza, capaz de romancear duras aventuras e em transformar acontecimentos tensos num ritmo compassado, próprio das sublimes sinfonias, apresentamos aos leitores esta vibrante narrativa que, com certeza, deixará o leitor extasiado ao seu final. E, após alguns momentos, com os olhos cerrados e o livro repousando no seu colo, medite e acredite...tudo aquilo, de fato, aconteceu. “Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis”. Sêneca – filósofo romano

Maj Brig Ar R/1 José Roberto Scheer Subdiretor de Cultura do INCAER . Ada Rogato Um Pássaro Solitário

Lucita Briza

Em 22 de dezembro de 1910, quan- - a primeira brasileira a tirar brevê de do Ada Rogato nasceu em São Paulo, paraquedista e a primeira do mundo a no bairro do Cambuci, a aviação, nas- dar um salto noturno de paraquedas, cida apenas quatro anos antes com o nas águas da Baía de Guanabara; 14-bis de Santos-Dumont, já alçara voo como símbolo de liberdade. - a primeira piloto agrícola do país a polvilhar, com inseticida, lavouras atin- Conquistar a liberdade dos céus com gidas pela broca do café; e base no progresso técnico, industrial e científico, que marcou a virada para - a estrela de dezenas de shows aé- o século 20, era um dos objetivos pe- reos que atraíram milhares de pessoas los quais o mundo todo parecia ansiar. por todo o país nos anos 1940, quando, Embora fosse uma ânsia compartilhada com seus voos acrobáticos e saltos de por homens e mulheres de diferentes paraquedas, ajudou a promover a fun- povos e nações, até 1910 o número de dação de dezenas de aeroclubes. pilotos de avião do sexo masculino já se contava em dezenas, se não centenas, enquanto entre as mulheres, só naquele ano a francesa conhecida como Baro- nesa Raymonde de Laroche tornava-se a primeira mulher a conquistar o alme- jado brevê. Em seu rastro viriam muitas outras pioneiras. No Brasil, Ada, que acabara de nascer num bairro operário paulistano, viria a ser uma delas. A pioneira Ada ganharia, mais tarde, reconhecimento como uma das mais importantes personagens da nossa avia- ção civil, graças a feitos inéditos, entre os quais haver sido:

- a primeira piloto de planador da Como estrela da nossa aviação, Ada América do Sul e, como piloto de avião, recebeu dezenas de condecorações oficiais a terceira do Brasil; no Brasil e no exterior 5 Não satisfeita, a aventureira iria ainda muito mais longe, numa série de reides: - o Sul-Americano em 1950, passando por Paraguai, , Chile e Uruguai, assim tornando-se a primeira brasileira a cruzar os , pilotando um Paulistinha CAP-4 de apenas 65 HP, totalizando 11.200 km em 116 horas de voo solitário;

6 Ada Rogato - o circuito pelas Três Américas em 1951, quando, sem possuir instrumentos para “voo cego” e a bordo de seu novo avião – o “Brasil”, um Cessna 140-A de 90 HP – , passou por todos os países (exceto a Bolívia) e territórios americanos, indo até o Círculo Polar Ártico, no Alasca (EUA). Com esse voo solitário, bateu o recorde mundial de maior distância (51.064 km) percorrida em avião de pequeno porte;

Um Passáro Solitário 7 - o Brasil-Bolívia, em 1952, quando, sozinha e com o mesmo Cessna, atingiu o aeroporto de El Alto (, Bolívia), o mais alto do mundo, a 4.071 metros de altitude. Até então, nenhum piloto – homem ou mulher – tentara aterrar ou decolar de El Alto com avião de tão pequena potência; - o circuito pelo Brasil, em 1956, no chamado Ano Santos-Dumont (50º ani- versário do 1º voo com o 14-bis), realizou um reide por todo o território nacional (25.057 km em 163 horas de voo), incluindo o Brasil Central, sobrevoando tre- chos ainda não devassados do então chamado “inferno verde”, como o Xingu- Cachimbo-Jacareacanga, assim tornando-se o primeiro piloto a voar sobre a selva amazônica num pequeno avião e sem rádio;

8 Ada Rogato - e, finalmente, em 1960, o reide à Ter- túdio no Rio de Janeiro, para onde há ra do Fogo, indo de Piracicaba (SP) até indicações de que também foram Ada Ushuaia, na Argentina – a cidade mais com sua mãe, Maria Rosa. No início austral do mundo, sendo a primeira a che- dos anos 1920, ele foi contratado pelo gar lá pilotando. Nesse reide, sempre so- governo de Alagoas para elaborar uma zinha a bordo do mesmo “Brasil”, voou coleção fotográfica, mostrando as mais 12.800 km em 82 horas e 43 minutos. belas paisagens e atrações daquele es- tado. Foi a oportunidade de levar a fa- ENTRE A MENINA E A MOÇA, mília para Maceió. Em meio a essas an- UMA ESCOLHA danças, a filha ia crescendo.

Em nada, porém, a filha de imigran- tes italianos deixava entrever seu po- tencial para tantas conquistas com tão frágeis monoplanos. Sua aparência não lembrava propriamente a de uma super- heroína; tímida e de compleição delica- da, era mais baixa do que alta, nem feia nem bonita, mas de olhar expressivo. “Seus olhos”, diria mais tarde o poeta Paulo Bomfim, “tinham uma magia, viviam impregnados de viagens... Esse olhar me fascinava, porque ela parecia estar sempre querendo ir mais além.” Seus dotes para o domínio do ar tam- bém foram-se revelando aos poucos. Maria Rosa e Guilherme Rogato, Ao contrário das duas pioneiras brasi- pais de Ada Rogato leiras que a antecederam – Thereza de Marzo que brevetou-se como piloto em Terminado o curso primário, afirma 8 de abril de 1922, aos 18 anos, e Ané- a escritora Adalzira Bittencourt em seu sia Pinheiro Machado no dia seguinte, livro A Mulher Paulista na História, Ada 9 de abril daquele mesmo ano, com 17 entrou para o secundário. Seguindo o anos –, Ada só conquistaria seu primei- padrão das moças bem-educadas da ro brevê aos 25 anos – o que se explica época, estudou piano, desenho e pintura por sua agitada trajetória até então. com professores particulares, enquanto Seu pai, Guglielmo, era fotógrafo e, a mãe a habilitava em prendas domés- quando a crise provocada pelos desdo- ticas. Nada mais lhe faltava, pensava o bramentos da Primeira Guerra mundial pai, para arranjar um bom casamento. (1914-1918) chegou a São Paulo, partiu Mas ela o desafiava, dizendo que seu rumo a outros mercados. Montou es- ideal era outro: pilotar avião. Um Passáro Solitário 9 O conflito ampliava-se na mesma me- Após o fim da guerra civil e a trans- dida em que cresciam em Ada o desejo ferência, por ordem do governo fede- de voar e, para Guglielmo, o sucesso em ral, de todos os aviões ali alojados para sua nova atividade fazendo filmes – ele o Rio de Janeiro, a recém-fundada Via- introduzira o cinema em Alagoas. ção Aérea São Paulo (VASP), que, ao No início dos anos 1930, o impasse contrário de outras que ainda usavam da filha rebelde chegou ao fim de um hidroplanos, já operava com aviões a jeito inesperado: enquanto filmava no partir de terra firme, aproveitou a opor- interior do estado, Guglielmo apaixo- tunidade para fazer do Campo de Mar- nara-se por outra moça. Rosa, ao saber te a base de seus voos comerciais para disso, voltou para São Paulo, trazendo o interior paulista. Em 1934, também com ela a filha. o Clube Paulista de Planadores (CPP) começou a operar ali. Na capital paulista, mãe e filha insta- laram-se numa pequena casa do bairro Ver uma dessas aeronaves cruzando de Santana, onde Ada, além de colabo- os céus – fossem elas aviões comuns ou rar nas tarefas domésticas, ajudava Rosa planadores (aviões sem motor, que co- a ganhar o sustento, bordando peças de meçavam a despertar interesse entre os enxoval. Ora, entre o casario do bairro brasileiros) –, enquanto bordava diante e o Rio Tietê, estava o Campo de Marte de sua janela, só fazia crescer em Ada – o primeiro aeroporto de São Paulo. sua vocação. Para colocá-la em prática, começou a economizar para pagar aulas Desde a inauguração de sua primeira de voo e a frequentar eventos relaciona- pista de pouso e do hangar para servir à dos com a aviação. Escola de Aviação Militar da Força Pú- blica de São Paulo, em 1920, esse campo Naquele mesmo ano de 1934, um vinha sendo palco de eventos históricos. desses eventos – as demonstrações feitas em São Paulo por uma comitiva alemã de Após a Revolução de 1930, que le- pilotos que representavam a nata do voo vou Getúlio Vargas ao poder, o local a vela, como é chamada a prática do voo passou ao controle do Exército. Em em planador – a marcaria para sempre. 1931, ali foi fundado o Aeroclube de São Paulo, a mais tradicional escola de Entre os volovelistas campeões que pilotos do país. Durante a Revolução de faziam parte dessa comitiva estava uma 1932, com a qual os paulistas exigiam mulher: Hanna Reitsch (1912-1979), o retorno a um governo constitucional, que aos 22 anos já era recordista em o campo voltou temporariamente ao distância e duração dos voos em plana- controle da força estadual, agasalhando dor e que, mais tarde, por sua perícia, os poucos aviões militares (Waco, Potez venceria outras etapas como piloto de e Neuport Delage) e algumas aeronaves avião e se tornaria piloto de provas da civis que serviam aos rebeldes, motivo Luftwaffe, a Força Aérea Alemã. Ada pelo qual foi duramente bombardeado. quis conhecê-la de perto, na sede social 10 Ada Rogato do aeroclube, onde uma foto testemu- em 1939, o Clube Paulista de Planado- nha sua presença em companhia de res teve de ceder sua sede em Cumbica, Hanna, e assistiu as exibições da equipe no município de Guarulhos (SP), para a estrangeira no Campo de Marte. instalação de uma base aérea.

Ada (última à esquerda, sentada) conhece a Ada foi a primeira mulher na América do Sul a volovelista Hannah Reitsch (sentada na extrema tirar o brevê "C" de piloto de planador, em 1935 direita) na sede social do Aeroclube de S. Paulo

No ano seguinte (1935) foi ela, a bor- Todos os equipamentos do CPP fo- do de um Grunau Baby, quem se tornou ram transferidos para o Aeroclube Grê- a primeira sul-americana a obter o brevê mio Politécnico, vinculado à Escola Po- “C” de piloto de planador, reconhecido litécnica da Universidade de São Paulo internacionalmente e que permite a prá- (USP); por outro lado, no Instituto de tica do voo a vela em todo o mundo. Pesquisas Tecnológicas (IPT), parceiro O mesmo entusiasmo a levou a reali- da Escola Politécnica em pesquisas, já zar, em março de 1936, ao fim de apenas funcionava desde 1938 uma seção de ae- 2 horas e 20 minutos de treino, seu pri- ronáutica destinada a desenvolver proje- meiro voo solo em avião. Cumprido até tos e construir aeronaves de madeira. maio o período de instrução, Ada, a bor- Dessas pesquisas sobre voo, em es- do de um Tiger-Moth de 90 HP, tornou- pecial sobre voo a vela, resultou a cons- se a primeira mulher brevetada em avião trução de planadores primários, como pelo Aeroclube de São Paulo. A partir o IPT-1 ou “Gafanhoto”, e o primeiro de então, passou a participar de novos avião, o “Bichinho”. Para testar os apa- tipos de competições e exibições aéreas, relhos, os membros do CPP se valiam sem deixar de lado o volovelismo. de uma pista de pouso gramada e de um Muito ao contrário, ela até colaborou hangar existentes na área da antiga Fa- nos testes para a construção dos primei- zenda Butantã, nas proximidades do Rio ros planadores brasileiros. É que, com a Pinheiros, onde seria construído o novo eclosão de um novo conflito mundial, campus da Cidade Universitária. Ada es- Um Passáro Solitário 11 tava entre os membros do Clube Paulista sa Maryse Bastié (1898-1952) – como de Planadores convocados para realizar Amelia, ardorosa defensora dos direitos vários dos testes em planador e do pri- femininos –, que em 1936 fez a traves- meiro avião lá projetado, o “Bichinho”. sia do Atlântico Sul entre Dacar, no Senegal, e Natal (RN), a bordo de um Caudron-Simoun. Um ano antes, a neoze- landesa Jean Batten (1909-1982) fora a primeira a cumprir sozinha, a bordo de seu monoplano Percival Gull Six, a rota Inglaterra-Brasil, depois de ter quebra- do outros recordes mundiais. Admiradora dessas aventureiras, e ci- tando nominalmente Amélia Earhart e Em 1936, já piloto de avião, ao lado do Capitão Jean Batten, Ada, ao ser entrevistada em Casimiro Montenegro, pioneiro do Correio Aéreo 1941 pela Rádio Tupi de São Paulo, tam- Nacional, de farda branca bém defendeu que as atividades femini- nas deviam abranger “todos os setores GUERREIRA, A SEU MODO da ação humana”, desde que não impli- cassem “na perda daquilo que é o maior O inicio da Segunda Guerra mundial atrativo da mulher: a feminilidade”. E (1939-1945) fez arrefecer temporaria- confessou que, tal como Batten e outras mente a febre dos reides aéreos que aviadoras, sua maior ambição era “poder marcou os anos 1930. Uma febre que fazer algo de grandioso em matéria de provocou entre as representantes do aviação”, embora para isso ainda não ti- então chamado sexo frágil o surgimen- vesse condições de “despender grandes to de estrelas da aviação, como Amelia somas de dinheiro”. Earhart (1897-1937), que se tornou a Mas a aviadora ia conquistando suas “Rainha do Ar” americana por ter sido metas além dos trabalhos informais: a primeira aviadora a empreender so- bordar, levar crianças e adultos em voos zinha a travessia do Atlântico Norte panorâmicos sobre a cidade, transportar (entre Canadá e Irlanda), em 1932, com fazendeiros do e para o interior do país. um avião Lockheed Vega de 425 Hp; e que, em 1937, comoveu o país ao desa- Conseguira em 1940 um emprego parecer quando voava sobre o Pacífico, modesto, mas regular: o de terceira na tentativa de dar a volta ao mundo. escriturária do Departamento de De- Amy Johnson (1903-1941), a “Rainha fesa Sanitária da Secretaria Estadual do Ar” inglesa, a primeira mulher a da Agricultura, que a partir de 1945 se realizar, entre outras aventuras, a bor- instalaria no novo prédio estilo art-déco do de seu Gipsy Moth, o primeiro voo do Instituto Biológico (IB), no bairro solo Grã-Bretanha-Austrália; a france- de Vila Mariana. 12 Ada Rogato Para aprimorar- se em administração vesse entrado no conflito. Mas, para isso pública, Ada matriculou-se no curso de era preciso fabricar aviões e formar pi- bibliotecária da Escola Livre de Socio- lotos. Esse foi o foco da campanha Dê logia e Política de São Paulo. Ao mesmo Asas à Juventude, ou Campanha Nacio- tempo, ia caprichando em suas acroba- nal de Aviação, lançada pelo jornalista cias aéreas a bordo de um Bücker. Tam- Francisco de Assis Chateaubriand Ban- bém, ao fim de cinco anos de insistentes deira de Mello, dono da mais poderosa pedidos ao exigente instrutor Charles cadeia de rádios, jornais e revistas (futu- Astor – apelidado de “Diabo do Ar” ramente, também de TVs) da época. por seu estrelismo – , fora aceita como Para fomentar a produção de peque- sua aluna no curso de paraquedismo. nos aviões, que começavam a ser fabrica- Indagada sobre “para que saltar de pa- dos aqui, e o interesse pela aeronáutica, raquedas?”, ela foi taxativa: para “mos- era preciso disseminar por todo o país trar que a mulher é capaz dos mais arro- aeroclubes que formassem os jovens jados feitos”. E logo após tornar-se, em pilotos. A imprensa encarregava-se de 1941, a primeira paraquedista brevetada divulgar a inauguração de cada um de- no Brasil, surgiriam novas oportunida- les, a que acorriam autoridades e grande des para Ada dar provas desse arrojo. parte da população local para assistir as festas aviatórias, que culminavam com acrobacias aéreas e saltos de paraquedas. Nessas festas, dezenas de vezes coube a Ada ser a protagonista dos shows. Citan- do apenas os eventos realizados no es- tado de São Paulo durante a campanha, foi ela a responsável pela coordenação de mais de cinquenta deles. Por sua vez, o instrutor Charles Astor queria inovar nos shows de paraquedis- Instruída pelo famoso Charles Astor (no centro), mo: em lugar de saltos comandados in- Ada obtém o brevê nº 1 de paraquedista no Aero- clube de S. Paulo dividuais, por que não saltos coletivos? Pondo a ideia em prática, ele promoveu o primeiro desse gênero, na América do O ano de 1941 havia começado com Sul, com seus alunos cadetes da Escola a criação do Ministério da Aeronáutica, tendo à frente Joaquim Pedro Salgado de Aeronáutica, do Campo dos Afon- Filho, depois de nosso governo ter-se sos, no Rio de Janeiro. convencido da necessidade de desen- Contratado, em seguida, pelo Aero- volver a aviação em vista do destacado clube de São Paulo, Astor quis ir ainda papel das aeronaves na grande guerra já mais longe: propôs a seis de seus novos em curso, embora o Brasil ainda não ti- alunos – entre eles Ada, única mulher –

Um Passáro Solitário 13 um desafio maior, até então nunca en- treinamento nas escolas de pilotagem do frentado em todo o mundo: um salto Exército e da Marinha americanos. coletivo à noite - e não para descer em Já para as mulheres pilotos, que não terra e, sim, na água. podiam ir para a linha de fogo, o volun- O local escolhido foi a Baía de Gua- tariado era exercido no setor civil. Antes nabara. O evento foi marcado para 19 mesmo de o Brasil entrar na guerra, as de abril de 1942, em comemoração ao Forças Armadas haviam convocado pi- aniversário de Getúlio Vargas. Naquela lotos para detectar em nosso litoral pos- noite, com cerca de 30 mil espectadores síveis incursões de barcos inimigos. Ada reunidos em torno da Baía, entre eles o respondera logo a essa convocação, e Chefe de Estado, Ada e seus cinco com- desde março daquele ano estava inscrita panheiros saltaram de dois Focke Wulf como voluntária na Base Aérea de São pertencentes à Aeronáutica, iluminados Paulo, onde recebera a ficha nº 183. por holofotes do Exército, que, ao tér- mino da operação, traçaram nos céus o Para sair em missão, seguia da capi- “V” da vitória. Para Ada, foi também tal paulista até a Base Aérea de Santos. uma vitória sobre o medo. Dias mais A orla marítima da cidade portuária era tarde, de volta ao Instituto Biológico, ela mantida em blecaute, explica o jorna- confessou a uma colega de trabalho que lista e historiador santista José Muniz o momento em que afundou na água, Jr., cabendo à Base Aérea proteger não em meio à escuridão, fora o de maior apenas os comboios que saíam ou en- temor que já enfrentara na vida. travam no porto, como patrulhar toda a faixa litorânea que vai de Paranaguá Quatro meses depois (agosto de 1942), (PR) a Ubatuba (SP). Os pilotos civis e após submarinos alemães terem afun- como Ada se encarregavam de patru- dado vários de nossos navios mercantes, lhar a zona costeira, enquanto os pi- que transportavam passageiros e carga, o lotos militares, com seus aviões mais Brasil declarou guerra aos países do Eixo potentes e armados, adentravam o mar (Alemanha, Itália e Japão), dispondo-se a territorial. Até o fim do conflito, em lutar ao lado dos Aliados. Para isso, e gra- maio de 1945, a aviadora cumpriu 213 ças a um acordo assinado com os EUA, missões de patrulha. Washington forneceu todos os equipa- mentos às tropas da Força Expedicioná- Além disso, em novembro de 1942, ria Brasileira (FEB), incluindo aviões para o Ministério da Aeronáutica a convo- o Esquadrão Senta a Pua, grupo de caça cou para fazer o curso de monitores de criado pela Força Aérea Brasileira (FAB). paraquedismo. Em função das aulas, foi Muitos jovens pilotos civis ofereceram-se autorizada pela diretoria do Instituto para cumprir missões de patrulhamento Biológico (IB) a prorrogar seu horário do território nacional, enquanto outros de entrada em serviço e completar o se dispuseram a seguir para a Itália junto curso. Em 1944 teve de pedir à chefia com os pilotos militares, após receberem nova autorização, desta vez, para ser co- 14 Ada Rogato missionada pela Secretaria de Agricul- Presidente, Senador Nereu Ramos, e o tura e poder “servir junto à Escola Téc- Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, nica de Aviação (ETAv), do Ministério Dom Jaime de Barros Câmara. da Aeronáutica”, atestam arquivos do Em São Paulo, os festejos aconte- IB, como instrutora de paraquedismo. ceram no Aeroporto de Congonhas e Naquela época, a ETAv ocupava em também no Campo de Marte, onde o São Paulo o prédio da antiga Hospeda- feito mais destacado pela imprensa foi ria dos Imigrantes, hoje Memorial do a atuação de Ada: durante uma prova Imigrante, na Mooca. Por algum tempo, de precisão com um pequeno avião, ela Ada fez parte do corpo docente dessa cortou o motor à altura de 500 metros escola que, em 1949, seria transferida e, com a hélice parada na vertical, pla- para Guaratinguetá (SP). nou o aparelho, vindo a aterrissar na O papel decisivo exercido pela avia- pista em 200 metros. ção durante os cinco anos de conflito fez O melhor para a aviadora foi que, crescer o prestígio dessa força e alentou com aquela proeza, saudada como “um no pós-guerra a cooperação entre os feito inédito na aviação civil paulista”, setores militar e civil. Em consequên- ela pôde comprovar o quanto era segu- cia, os eventos da Aeronáutica também ro o seu avião – o primeiro, que acabara cresceram de importância. “Possuímos de comprar –, que fora batizado pelo hoje uma Força Aérea de primeira or- governador Adhemar de Barros com o dem: urge dotarmo-la de reservas civis, nome de “Brasileirinho”: um Paulistinha que são, em última análise, o potencial CAP-4 de 65 HP, matrícula PP-DBL, bélico da Pátria”, ufanava-se o Major número de série 484. Berilo Neves num artigo para a revista Aviação de novembro de 1947, em que concluía: “Eis porque a Semana da Asa deve figurar entre as grandes festas da Nacionalidade. A Aviação Civil Brasilei- ra tem nela o seu momento supremo e o ensejo máximo de novas conquistas.” Fugindo ao roteiro habitual, em que a Semana da Asa é celebrada em outu- bro, por ser o mês do aniversário do primeiro voo do 14-bis, naquele ano de 1947 sua celebração foi em novem- Após ter comprado seu primeiro avião, um Paulistinha CAP-4, Ada posa ao lado do bro. Dos festejos na então capital fe- Brigadeiro Armando Ararigboia e do governador deral participaram, entre outras altas Adhemar de Barros, que o batizou com o autoridades, o Presidente da República, nome de “Brasileirinho” General Eurico Gaspar Dutra, o Vice- Um Passáro Solitário 15 Fabricado pela Companhia Aeronáu- rimental, os cafezais dos municípios de tica Paulista (CAP), esse tipo de Paulis- Gália, Garça, Marília e Cafelândia, na tinha, comentaria mais tarde o Coronel região da Alta Paulista. da reserva da Aeronáutica Paulo Re- Entre os dias 8 e 10 de fevereiro, o zende, na revista Aero-Magazine de fe- experimento de Ada, voando baixo e vereiro de 1967, por suas características pulverizando os cafeeiros com BHC, (cabine biplace, asa alta, baixa carga alar correu maravilhosamente bem; mas na e baixa potência), pode ser considerado Quarta-Feira de Cinzas, dia 11, ao pol- “o avião de treinamento primário civil vilhar uma plantação num terreno aci- mais voado do País”. dentado em Cafelândia, o pó provavel- Naquele tumultuado período pós- mente a impediu de enxergar os fios te- guerra, em que havia alto déficit mundial lefônicos que havia à frente, a tempo de de produtos agrícolas, a preocupação evitá-los. O avião caiu, provocando-lhe central da equipe científica do Institu- várias fraturas e a perda de vários den- to Biológico, onde Ada trabalhava, era tes da arcada superior, o que não a fez combater a praga que mais prejudicava desanimar: após meses de internação a nossa lavoura: a broca do café, então em hospital, recuperou-se a ponto de nosso principal produto de exportação. poder voltar às atividades normais, in- Os pesquisadores do IB haviam chega- cluindo a de piloto agrícola. Antes que do à conclusão de que o melhor jeito de aquele ano terminasse, ainda sagrou-se acabar com a praga era atacá-la do alto, campeã paulista de paraquedismo. polvilhando os cafezais com inseticida. Precisavam, portanto, de um piloto hábil em manobras, subidas e descidas, para dar conta de pulverizar cafezais inteiros em tempo recorde em relação aos métodos tradicionais, independen- temente da configuração do terreno. Ora, esse era o exato perfil da modesta escriturária do Departamento de Defe- sa Sanitária, que, consultada, aceitou o desafio de tentar ser a primeira mulher como piloto agrícola no país. Foi assim que, no sábado de Carnaval de 1948, Ada partiu num monomotor adaptado para essa função pela equipe do Doutor Carlos Alves Seixas, que a Após único acidente que sofreu na vida e acompanhava, para sua primeira mis- da cama do hospital, Ada defende o com- são: polvilhar, com um aplicador expe- bate aéreo à broca do café 16 Ada Rogato Do único acidente aéreo que sofreu dida. Como já era reconhecida no país na vida, restaram as cicatrizes no rosto como “esplêndida aviadora, com 2 mil – no nariz e sobre o maxilar esquerdo –, horas de manche” e já havia conquista- mas Ada não se intimidava com isso a do, além de prêmios e medalhas, apeli- ponto de fugir do convívio social, pois dos como “Águia Paulista”, “Milionária gostava de festas, cinema e teatro. Mas do Ar”, “Rainha dos Céus do Brasil”, confidenciava aos mais próximos que, sentia-se segura o bastante para ampliar antes do acidente, fora mais bonita, o seus horizontes, e o plano era rumar que não a impedia de despertar admira- para os países vizinhos do sul. ção por seus atributos: a pele, os olhos, Em dezembro de 1949, ela fizera um o fato de ser do tipo mignon, ágil e es- ensaio para esse reide exibindo-se no guia, discretamente elegante e, princi- Paraguai, onde foi a primeira mulher palmente, corajosa. a saltar de paraquedas, sendo por isso O tempo e um bom protético encar- carregada triunfalmente em Assunção. regaram-se de ajudá-la a superar parte Agora, seria um reide de boa vizi- das preocupações estéticas; porém, a nhança. No espírito do pan-americanis- marca mais profunda que ficou dessa mo que então despertava na região, ela época foi a da perda de um namorado levaria a bordo de seu “Brasileirinho”, com quem pretendia se casar. A poucas como destacou o jornal paulistano amigas e à colega e confidente Leonor, A Gazeta, em 2 de fevereiro de 1950, do IB, ela contou tratar-se de um jor- “inúmeras mensagens de amizade da nalista que havia contraído hanseníase aviação brasileira aos povos irmãos”. e morreu meio de repente. Ela, que es- Ao vir a público a notícia, ela já havia tava distante – havia levado um fazen- partido de São Paulo cinco dias antes, deiro de avião para o interior –, ficou sem fazer qualquer modificação em seu sabendo da morte dele pelo jornal. O aviãozinho de apenas 65 HP, apesar susto e a dor foram tão grandes que a das advertências de que o aparelho era fizeram contrariar seus hábitos, faltan- muito frágil para esse tipo de viagem. do ao expediente por vários dias. Mas Voando sobre Mato Grosso, atingiu o acabaria encontrando uma maneira de Paraguai e pousou em Assunção, onde lidar com a perda: fazendo planos para foi festivamente recebida e fez novas seguir adiante e romper fronteiras. exibições em paraquedas. PELAS AMÉRICAS Rumou em seguida para a Argentina, onde sobrevoou as planuras da provín- Como seu tempo de serviço no Insti- cia de Corrientes, pousando na capital tuto Biológico já lhe dava direito a tirar de mesmo nome e continuando rumo a uma licença remunerada de três meses, com paradas em Resisten- em janeiro de 1950 Ada entrou com um cia, Santa Fé e Rosario. Após a capital pedido para gozar da licença e foi aten- argentina, onde foi homenageada com Um Passáro Solitário 17 jantares e passeios, a aviadora tomou a seguida, ao aterrissar num pequeno cam- direção do sudoeste do país, com des- po de aviação dentro do Parque Nacio- tino ao Chile. nal de Puyehue, percebeu que acabara de se tornar a primeira brasileira a fazer Pouco a pouco, lá embaixo, a paisa- a travessia aérea dos Andes. gem verde ia sendo substituída por um cenário ermo e, no trecho entre Salique- Pelas duas semanas seguintes, a avia- ló e General Acha, o cenário tornou-se dora transitou pela estreita faixa de terra desértico, com crateras que lembravam entre a Cordilheira e o Oceano Pacífico as da Lua. Foi então que a pampera , como que separa Osorno – sua primeira parada o vento é chamado na região, começou em território chileno – e Santiago, onde a soprar cada vez mais forte por trás, foi recebida por uma comitiva oficial. sacudindo o “Brasileirinho” em meio a O El Mercurio, principal jornal da ca- nuvens de poeira. Com enorme esfor- pital, saudou a visita de “boa vizinhan- ço, Ada conseguiu fazer o aviãozinho ça” da “senhorita Rogato”, destacando baixar aos poucos, evitando a queda. Já que seu avião não tinha “nem rádio nem no solo, teve de segurá-lo durante horas equipamento para voo por instrumen- pelo montante da asa direita. O socorro tos”, e que seu reide era financiado por veio em forma de um gaucho solitário a ela mesma, sem ajuda governamental. cavalo que, cessada a ventania, ajudou a piloto a entrar no “Brasileirinho”. Sua agenda na capital foi dividida en- tre visitar o palácio de La Moneda, para Aliviada, ela retomou o voo e logo entregar ao presidente Gabriel G. Vide- pôde vislumbrar ao longe uma paisagem la mensagem do Chefe de Estado bra- mais verde e escarpada que aos poucos ganhava altura, transformando-se por fim no maciço gigantesco que teria de atravessar. Se o pedaço por que acabara de passar tinha sido o mais assustador da viagem, confessou ela mais tarde à imprensa, o mais emocionante foi aque- le por que passou em seguida, ao se de- parar com as montanhas “belas, majes- táticas” e, ao mesmo tempo, “perigosas e traiçoeiras”, tendo “o céu por cima e o inferno por baixo”. Entre essas majesta- des, era preciso encontrar uma passagem compatível com o teto de 3.500m do seu Paulistinha, que Ada encontrou na altura de San Carlos de Bariloche – a estação Em 1950, Ada cruzou os Andes em seu Pau- turística à beira do Lago Nahuel-Huapy. listinha e foi a primeira mulher a saltar de para- quedas nos 4 países visitados Ao ultrapassá-la, entrou no Chile. Em 18 Ada Rogato sileiro, fazer palestra sobre volovelismo de paraquedismo na Academia da Aero- no recém-fundado Clube de Planadores náutica, em Pando, e também em Melilla, de Santiago e exibir-se no Aeroclube de então sede do aeroclube e onde hoje está Los Cerrillos, como a primeira mulher a o aeroporto internacional Angel Adami. saltar de paraquedas no país. Mirta a hospedou em sua casa e pilo- Para retornar à Argentina, a maior tou o pequeno Piper de matrícula ACH preocupação da aviadora era com os de onde a paraquedista saltou. Ao dei- ventos de sudoeste, que sopram do Chi- xar o Uruguai, um grupo de pilotos le para o país vizinho. A prudência man- amigos escoltou o Paulistinha de Ada de dava cruzar a cordilheira logo ao ama- Montevidéu até Punta del Este. nhecer, evitando as horas de sol mais No início de junho, ao reentrar em quente, em que a turbulência aumenta. território brasileiro, Ada fez escalas no Além disso, a altitude das montanhas é Rio Grande do Sul e em Santa Catari- mais elevada no entorno de Santiago na. Ao aproximar-se da capital paulista, do que mais ao sul. Ada decidiu fazer a percebeu que, tal como acontecera na travessia pela passagem entre Curacau- despedida uruguaia, uma esquadrilha de tín, no Chile, e Las Lajas, na província dez aviões civis a recepcionava, acom- argentina de Neuquén, cruzando-a em panhando-a até ela pousar no Campo duas horas de voo a uma altitude de de Marte – mesmo ponto de onde par- 3.300m, ou seja, bem superior à da pri- tira em surdina no fim de janeiro. Ali, meira, na altura de Bariloche. uma pequena multidão a aguardava. Passou por Bahia Blanca, Tres Ar- Seu companheiro de viagem, o “Brasi- royos, Mar del Plata e La Plata e, ao leirinho”, coberto de inscrições e men- chegar a Buenos Aires, foi surpreendi- sagens pintadas pelo caminho, também da pelos membros do aeroclube local mereceu especial atenção, tendo sido com um jantar em que a agraciaram desmontado e transferido para a Ga- com uma medalha “por seu brilhante leria Prestes Maia, no centro da capital voo”, como assinalou a revista argenti- paulista, onde ficou exposto como tes- na AVIA de abril-maio 1950. Antes de temunha daquela inusitada aventura. seguir para o Uruguai, ainda apresen- tou-se saltando de paraquedas em Mar del Plata e em La Plata. Ao chegar a Montevidéu, a “embai- xatriz dos povos sul-americanos”, como passara a tratá-la a imprensa platina, foi recebida por sua amiga Mirta Vanni, a primeira piloto agrícola uruguaia, e ou- Ada é recebida pelo Presidente Getúlio tros representantes do aeroclube local, Vargas, com quem fala sobre seus reides que a convidaram a repetir as exibições pelas três Américas Um Passáro Solitário 19 Passadas as emoções da chegada, a aviadora voltou à rotina, enquanto planejava novas incursões. Esses planos ganhariam alento em agosto, durante a realização, em Águas de São Pedro (SP), de um grande encontro internacional organizado pela União Brasileira de Aviadores Civis (UBAC), que congregou entidades da aviação, pilotos e paraquedistas brasileiros, argentinos e uruguaios com o objetivo de incentivar voos esportivos e turísticos na região. Logo na sessão de abertura da Revoada Pan-Americana, Ada foi condecorada por sua proeza com a medalha da Ordem do Mérito Aeronáutico, no grau Cavalei- ro, tendo sido a primeira mulher a recebê-la, das mãos do Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Armando Trompowsky. Recebeu prêmio ainda maior: um novo avião, Cessna 140-A com motor de 90HP, matrícula PT-ADV. Logo no dia seguinte, o aparelho foi batizado com o nome de “Brasil”, e Ada retribuiu a seu modo as homenagens da véspera: após a exibição de várias estrelas masculinas do paraque- dismo sul-americano, saltou “com dois paraquedas”, acompanhada por seis outros paraquedistas civis, como registrou a Revista do DAC (Departamento de Aviação Civil, hoje ANAC).

Na sequência do salto, fotografada pela Revista da Semana em 1950

20 Ada Rogato Os novos planos de Ada eram im- presas, entidades e até da própria FAB, pulsionados pelos avanços ocorridos o que, com apoio da UBAC, obteve pelo no pós-guerra, tanto na aviação quan- menos em parte. Precisava, ainda, que to no estreitamento dos laços entre os companhias petrolíferas lhe forneces- países americanos. Se por um lado ela sem combustível ao longo do percurso; sabia que a capacidade do tanque do recebeu ajuda da Esso e da Shell. novo Cessna era de apenas 80 litros, o Garantido o mínimo indispensável, que não lhe permitiria cruzar oceanos, Ada partiu do Rio de Janeiro, no dia 5 mesmo levando um tanque reserva de de abril de 1951, para o mais longo reide combustível, por outro estava certa de de sua vida por um trecho já conhecido: que poderia vencer qualquer distância, escalou em São Paulo, Assunção, voltou voando por etapas, pousando em terra ao Brasil pousando em Curitiba e Porto firme para reabastecer o “Brasil”. Alegre, de onde partiu para o Uruguai Foi o que decidiu fazer: bater o re- (Montevidéu) e a Argentina, de onde, corde do voo mais longo no menor após breve parada em Buenos Aires, se- avião (motor de 90 HP, velocidade de guiu para Mendoza, à procura de uma 160km/h e autonomia de voo de pou- passagem para o Chile condizente com co mais de 7 horas), num reide de boa o teto máximo de 5.000m do seu Cessna. vizinhança pelas três Américas. A rota escolhida foi cruzar os Andes e, seguin- do a orla do Pacífico, rumar para as Américas Central e do Norte até chegar ao Alasca; na volta, atravessar os EUA até Miami, dali passar pelas Antilhas so- brevoando o Mar do Caribe e regressar ao Brasil via e Guianas. Sua intenção era descer em todas as capitais dos 27 países então independentes e No retorno a São Paulo de seu reide de 1951, em todas as, então, possessões do con- aviadora desfila em carro aberto do Campo de Marte até o Viaduto do Chá, no tinente americano. centro da cidade Para cumprir a missão, ela teria de pe- dir afastamento por seis meses de suas Teve de dar uma pausa maior do que funções no Instituto Biológico. O pedi- a prevista em Santiago (como ocorreria do foi aceito, “em caráter excepcional e em outras capitais onde receberia ho- sem prejuízo de vencimentos e demais menagens), para ser agraciada com a vantagens do cargo”, pelo governador Medalha da Ordem do Mérito Bernar- Lucas Nogueira Garcez. Além disso, ne- do O’ Higgins. Seguiu então para Lima, cessitava de apoio financeiro e logístico Quito e Bogotá, e dali rumou para a por parte de personalidades ilustres, em- América Central.

Um Passáro Solitário 21 A aviadora sobrevoou o Canal do desejava. Assim, ao retornar de lá, pôde Panamá e foi pousando em todas as trazer consigo um diploma do Clube do capitais do estreito istmo centro-ame- Círculo Polar Ártico e a alegria de ter ricano: Cidade do Panamá, San José visto o sol da meia-noite, espetáculo que da Costa Rica, Manágua, Tegucigalpa, a marcaria até o fim de seus dias. San Salvador e Cidade da Guatemala. No retorno do Alasca, a piloto passou Dali voou diretamente para Acapulco, por Los Angeles e seguiu para Washing- no México. Ao chegar sã e salva a San ton . Lá foi recebida, entre outros, pelo Diego, na Califórnia (EUA), após cum- embaixador brasileiro nos EUA, por prir sem escalas este último trajeto de um representante do Departamento de 1.130km, Ada só pôde brindar, aliviada, Estado e por vários jornalistas. Logo a bravura do modesto Cessna. mais, a “diminuta aviadora, tão corajosa Pousou em seguida em Los Angeles quanto animada” – como foi então des- e de lá, sempre acompanhando a cos- crita pelo jornal Washington Post – pros- ta do Pacífico, rumou para o Canadá, seguiria sua rota, passando por Chica- descendo em Vancouver. Esta para- go, Detroit, Nova York (de onde foi até da serviu de trampolim para atingir o o Quebec canadense) e, cruzando os trecho mais audacioso de sua viagem EUA pela costa leste, dirigiu-se a Miami pelo hemisfério norte: a imensidão do para de lá atingir as Antilhas. Alasca, antes dominado por aventurei- Deslumbrada com o cenário de águas ros em busca de peles, depois em busca verdes circundando ilhas tropicais, Ada de ouro e, já no século 20, de petróleo. não deixou de aterrissar em nenhuma Bem sabia que penetrar ali, mesmo du- delas, fossem países ou possessões. A rante o curto verão que acontecia na- exceção foi a Ilha de Martinica, onde, es- quele julho, era temerário. tando prestes a pousar, nuvens escuras e Ada pousou na cidade de Fairbanks, riscos de luz no céu a obrigaram a desis- de onde decolou rumo ao norte, ultra- tir antes que desabasse uma tempestade, passando a linha do Círculo Polar Ár- que lá facilmente poderia transformar- tico até encontrar o pequeno povoado se em furacão naquela época do ano. de Fort Yukon, onde a Força Aérea dos Encerrou em Trinidad e Tobago o ro- EUA estava estabelecendo uma base aé- teiro com que se tornou a primeira mulher rea com estação de radar. Além de lhe a completar, sozinha num monomotor, oferecer boas condições de aterrissa- um circuito por todo o Mar do Caribe. gem, o lugar lhe oferecia, naquela época do ano – próxima ao solstício de verão– Reentrando na América do Sul, a uma oportunidade única: a de ver o Sol aviadora pousou em Caracas, onde foi nas 24 horas do dia, com as cores do alvo de tantas manifestações que, como céu que vão mudando rapidamente, até conta a revista Aviação de dezembro de adquirirem tons alaranjados como os de 1951, levaram o embaixador brasileiro um pôr do sol infinito. Era o que mais na Venezuela a retribuir as homena- 22 Ada Rogato gens com uma recepção a que compa- Com o sorriso discreto de sempre, ela receram autoridades, como o Chefe do mal podia responder aos abraços, tal o Estado-Maior venezuelano e o Adido acúmulo de flores e corbeilles que a cer- Aeronáutico dos Estados Unidos. cavam, enquanto a banda de música da Ao partir em direção às três Guianas Aeronáutica tocava o Hino dos Aviadores. – na época ainda colônias inglesa, ho- O maior reconhecimento a quem landesa e francesa –, relatou a Aviação: percorrera sozinha 51.064 km em 364 “ela foi acompanhada até a fronteira horas de voo chegou mais tarde, naque- por vários aviões da Federação Aero- le mesmo dia, ao se tornar o primeiro náutica Venezuelana”, que dias antes a piloto civil, homem ou mulher, a rece- havia condecorado com a Medalha do ber das mãos do Ministro da Aeronáu- Mérito Aeronáutico, uma das dezenas tica as “Asas da Força Aérea Brasileira” de homenagens que recebeu durante os – a mais alta distinção da Força. sete meses de circuito. Por duas semanas, novas homena- Mas, nenhum desses gestos sensibiliza- gens a mantiveram na então capital do ram tanto Ada quanto a acolhida que teve país: na Câmara Federal, o Deputado ao voltar ao Brasil. Seu primeiro pouso Aníbal Espinheira fez aprovar um voto foi em Macapá (AP), e a emoção era tanta de congratulações à aviadora; no mes- que, antes de se perceber calorosamente mo dia, o Vereador Francisco Trotta cercada, abaixou-se e beijou o solo. pediu na tribuna da Câmara Municipal Não conseguiu retornar ao sudeste que lhe fosse entregue uma medalha antes de aceitar convites para passar por de ouro; idênticas condecorações lhe Manaus e, depois, ir “pingando” em Be- foram oferecidas por entidades e casas lém, São Luís, , Natal, , comerciais e, em meio às visitas e re- Maceió, , Salvador e Vitória, até cepções, a aviadora era constantemente atingir o Rio de Janeiro, em 13 de novem- assediada com pedidos de entrevistas bro, escoltada, desde Saquarema, por uma para jornais, revistas, rádios e até para a esquadrilha de dez aviões da FAB. recém-inaugurada TV Tupi. Depois de pousar na extremidade A chegada a São Paulo, em 27 de no- do Aeroporto Santos-Dumont, ela veio vembro, não foi diferente: ao aterrissar rolando pela pista até se deparar com no Campo de Marte, Ada viu-se cercada a grande multidão que a aguardava ao por autoridades civis e militares, além de lado de autoridades, como o Brigadeiro aviadores e o pessoal da imprensa, que a Henrique Fontenelle, diretor do Depar- acompanharam em seu desfile em carro tamento de Aviação Civil (DAC), atu- aberto até o centro da cidade, seguran- al Agência Nacional de Aviação Civil do uma braçada de flores e acenando (ANAC) e o Comandante da 4ª Zona para a multidão. Nos dias seguintes, as Aérea, Maj. Brig. Ar Armando de Souza celebrações sucederam-se por toda par- e Mello Ararigboia. te, desde o Palácio dos Campos Elíseos Um Passáro Solitário 23 – então sede do governo paulista – até organizadores do encontro: fomentar clubes, como o Piratininga, o Aeroclu- as incipientes indústrias aeronáuticas be de São Paulo, e associações, como a argentina e brasileira. Sociedade Amigos da Cidade. Quanto à aviadora, o sucesso da em- preitada fez crescer seu prestígio nos CONQUISTA NAS ALTURAS meios aviatórios e a encorajou a lançar- se, naquele mesmo ano, na aventura com Estava na hora de voltar ao traba- que completaria o reide pelas três Amé- lho, o que não impedia a aventureira de ricas: voar até a Bolívia – único país que traçar novos planos. Logo em abril do ficara de fora no ano anterior –, tendo ano seguinte, 1952, a sorte veio ao seu um alvo certeiro: o de atingir, com seu encontro com um desafio: o de ter sob Cessna, o aeroporto mais alto do mundo. seu comando quinze (15) dos duzentos e quarenta (240) aviões brasileiros que Próximo à capital – La Paz –, o ae- se dirigiriam a Buenos Aires para uma roporto de El Alto está encravado en- Revoada Internacional . tre picos elevados a 4.071m de altitude. Ora, o teto útil daquele Cessna, ou seja, Era uma empreitada respeitável essa o limite máximo de operações daquele de responsabilizar-se, ao longo dos 2.000 tipo de aeronave, determinado pela po- km do percurso até a capital argentina, tência de seu motor, era entre 4.000m e pelos problemas técnicos e logísticos de 5.000m, e um motor para esse tipo de quinze diferentes tipos de avião, com avião, advertiram-lhe vários especialis- diferentes velocidades de cruzeiro e re- tas, perde potência quando está acima gimes de abastecimento. de seu limite. Como explicou mais tar- A viagem serviria para medir, não de o jornal A Gazeta de 15 de julho de só o desempenho dos aviadores e das 1952, “nunca alguém antes tentara. E equipes de apoio terrestres, como a ca- não seria uma mulher a primeira a con- pacidade da própria Ada. Felizmente, seguir vencer essa barreira”. tudo correu bem, tanto nos trajetos de Mas Ada teimou. E, para conseguir ida e de volta quanto durante o encon- ganhar mais altitude a fim de poder ma- tro, que culminou com os brasileiros nobrar e pousar em El Alto, foi pedir sendo recepcionados pelo Presidente a orientação dos engenheiros da seção e pela primeira-dama argentinos, Juan de aeronáutica do IPT, onde já atuara Domingo e Eva Perón. como piloto de testes das primeiras ae- Cumpriram-se, assim, os objetivos ronaves ali produzidas. explícitos da revoada: facilitar a troca Feitas as modificações necessárias, de informações entre os pilotos civis em 15 de julho de 1952, Ada partiu para brasileiros e os de países vizinhos, a fim a Bolívia em seu Cessna, agora mais leve: de familiarizá-los com as rotas inter- teve de deixar para trás coisas como um nacionais. Outra expectativa era a dos radinho útil para comunicação a curta 24 Ada Rogato distância e a bateria, o que a obrigava a No dia seguinte, sem abalar-se com dar a partida manualmente, pela hélice; advertências ouvidas de oficiais da Força planejou guardar metade do óleo lubri- Aérea Boliviana e até do Brigadeiro Edu- ficante do motor no meio do caminho ardo Gomes, de que seria “uma temeri- – em Cochabamba, na Bolívia – e, como dade” tentar atingir La Paz, Ada partiu bagagem pessoal, levou apenas peque- para Cochabamba, onde novas homena- níssima maleta de mão. gens e um jantar de gala a aguardavam. Embora tivesse a vantagem por ir so- Uma boa noite de sono a encorajou zinha, já que a capacidade do avião era na manhã seguinte a decidir-se por ves- calculada para suportar o peso do piloto tir um macacão, deixando a valise de e de mais um passageiro, ainda havia o roupas no hotel, bem como a deixar no problema do combustível. Sabendo que aeroporto local parte do combustível, a cada 1.000m de altura o avião perderia antes de levantar voo do vale em dire- 10% da potência do motor – 40% em ção aos altos picos da cordilheira. 4.000 metros –, ela teve de arriscar-se a fazer o último trecho da ida e o primeiro Aquela região andina de altos picos é da volta de La Paz com apenas um dos açoitada por ventos muito fortes, com dois tanques cheios, ou seja, com 80 li- turbulências que perturbam a susten- tros, em vez dos 160 habituais. tação das aeronaves. E em sua época, para colocar-se na direção certa, com o Sua ousadia começou a compen- vento a seu favor, Ada só podia orien- sar já na primeira escala após cruzar a tar-se por sinais externos como o mo- fronteira boliviana. Em Santa Cruz de vimento das árvores, a poeira, a fumaça La Sierra, ela roubou a festa em que era e as nuvens; se entre essas houvesse as esperada uma comitiva para inaugurar lenticulares – em formato de lentes –, uma linha do Correio Aéreo Nacional constantes na região, seriam sinal da (CAN) entre Brasil e Bolívia, que tinha presença de ondas atmosféricas que à frente o Brigadeiro do Ar e ex-candi- exigem cuidado redobrado. dato à Presidência . As mais de 200 pessoas que se haviam reu- Ao fim de duas horas e meia sob ten- nido no aeroporto para o evento oficial são, Ada divisou, entre as paredes ro- ficaram pasmas ao verem a porta da ca- chosas do trajeto, as águas límpidas do bine de um pequeno avião se abrir, e de Lago Titicaca e, logo adiante, La Paz, in- lá descer um piloto... de saias! crustada num vale a 3.700m de altitude, O público feminino presente “vi- dando vistas para o Monte Illimani, que brou de entusiasmo”, contou A Gazeta, chega a 6.462m de altura. E El Alto, a e os estudantes carregaram pelas ruas a 4.071m, não era então o município de primeira mulher a chegar ali, sozinha e crescimento acelerado e desordenado pilotando. Seguiram-se um almoço fes- que é hoje, mas apenas um modesto tivo e, à noite, um banquete em home- bairro onde fica o aeroporto em que Ada nagem à hóspede oficial da cidade. pousou às 12h30 de uma sexta-feira de Um Passáro Solitário 25 junho de 1952. Autoridades bolivianas e soro a Medalha Condor dos Andes (a o embaixador brasileiro Hugo Bethlem mais alta condecoração do governo bo- a receberam e a conduziram a La Paz. liviano), Ada regressou vitoriosa a São Na capital mais alta do mundo, em- Paulo, em 13 de julho. bora a 400 metros abaixo do aeropor- to, com seus telhados multicoloridos – qualificada pela aviadora em A Gazeta de18 de julho de 1952 como “simples- mente soberba, como soberba é a [sua] hospitalidade” –, os visitantes costu- mam sofrer um mal-estar causado pela altitude. Como a pressão atmosférica é muito baixa e o ar tem menos oxigênio, o corpo passa por um período de adap- tação que exige andar devagar, evitar Condecorada na Bolívia subir escadas, comer pouco e até andar pouco. Mas, Ada não sentiu tais sinto- Mais uma vez, sua chegada virou no- mas, que os locais chamam de soroche. tícia pela imprensa escrita, rádio e tevê. Mas, mesmo solicitada para mil entre- No sábado explorou a cidade e suas vistas e convites para festas, a aviadora, imediações, e no domingo foi assistir qualificada em ampla reportagem da missa no santuário da Virgem de Copa- revista O Cruzeiro (a campeã da época) cabana, que na Bolívia é a padroeira da como “uma das maiores ases do mun- aviação, que fica às margens do Titica- do”, continuou sendo tímida e discreta. ca, a 3.800 metros de altitude. Sóbria no vestir, frugal na comida e na Mas não foi só com a condição física bebida, para a qual só abriu uma exce- da aviadora que os bolivianos se surpre- ção: o cálice com que brindou a cacha- enderam: seu pouso em El Alto, num ça Voadora, que uma destilaria de Per- monomotor de apenas 90 HP, e sozinha nambuco lançou em sua homenagem. – nenhum outro piloto havia antes ten- Para dias de gala, seu talhe esguio pas- tado esta façanha –, muito menos uma sou a ser coberto por vestidos e tailleurs mulher, o que causou tamanha admira- feitos sob medida, por um alfaiate; este ção, que seu pequeno Cessna foi exibido a convidou várias vezes para assistir ao em uma praça pública da capital. desfile de suas confecções no Chá das Depois de ser chamada de “condor Cinco da Casa Mappin, em São Paulo e, majestático” pela imprensa de La Paz, por duas ou três vezes, ela compareceu tornar-se a primeira mulher a obter o ao desfile. No entanto, exceto os com- brevê de piloto militar do país, e rece- promissos sociais dos quais não poderia ber do Presidente Victor Paz Estens- se furtar, a rotina absorvia a maior parte

26 Ada Rogato do tempo da piloto, entre sua aeronave tica (ITA), hoje chamado de Instituto e o trabalho na repartição. Tecnológico da Aeronáutica, que forma engenheiros para esse setor. O prestígio de Ada também contri- buiu para outras iniciativas aviatórias dessa fase. Ao decidir realizar em Ri- beirão Preto (SP) uma revoada com a participação de mais de trezentos avi- ões e mais de mil pilotos – números ex- pressivos em 1953 –, a União Brasileira de Aviadores Civis (UBAC) convocou a aviadora a participar da comissão que organizou o bem-sucedido evento, que pôde contar com a colaboração da Pre- feitura, da Câmara Municipal e até da Arquidiocese local. Ada também ajudou a organizar em São Paulo, em 1954 – ano comemorati- vo do IV Centenário da cidade –, dois Na gola, homenagem à aviação militar: os sabres eventos: uma Revoada Internacional, da alados, símbolos da Corporação qual participaram 437 aviões de turismo e centenas de destacados pilotos argen- tinos, uruguaios, paraguaios, norte-ame- À medida que parecia crescer em ricanos e brasileiros, e a I Exposição de Ada a autoestima, o mesmo parecia Aeronáutica e Automobilismo, na qual ocorrer com muitos brasileiros devi- puderam ser vistos, além de aviões, mo- do à abertura de novas perspectivas delos de automóveis que logo poderiam para o desenvolvimento de alguns se- começar a ser fabricados no Brasil. tores. Um deles foi graças à criação da Petrobras, em 1953, o que fomentou Naquele mesmo ano, em meio à cri- indústrias ligadas à produção de deri- se política culminada com o suicídio de vados de petróleo: borracha sintética, Getúlio Vargas e sua substituição na tintas, plásticos, fertilizantes etc; outro presidência por seu vice, Café Filho, a foi o incentivo ao desenvolvimento da piloto aventureira enfrentou problemas aviação nacional com a criação, em de saúde que a levaram a pedir licen- São José dos Campos (SP), do Centro ça médica a partir de janeiro de 1955. Técnico da Aeronáutica (CTA), atual Mesmo assim, não parou. Ao invés de Departamento de Ciência e Tecnologia trabalhar em período integral como Aeroespacial (DCTA). Do CTA fazia escriturária do Instituto Biológico, foi parte o Instituto Técnico da Aeronáu- autorizada a trabalhar apenas meio pe-

Um Passáro Solitário 27 ríodo na Secretaria Estadual de Viação Para terem efeitos permanentes, as ho- e Obras Públicas; no tempo livre, tor- menagens deveriam ser acompanhadas nou-se redatora da Revista Velocidade, de medidas práticas. Uma das iniciativas especializada em aviação e automobilis- da Aeronáutica foi a de encomendar à mo, e também da Revista dos Aviadores. Sociedade Construtora Aeronáutica Nei- Para isso, filiou-se ao Sindicato dos Jor- va, situada em Botucatu (SP), a produção nalistas e recebeu a carteirinha da Asso- de uma nova série de aviões Paulistinha ciação Paulista de Imprensa (API). para distribuí-los aos aeroclubes. O “Paulistinha 56” copiava o modelo NO HORIZONTE, O BRASIL do “Paulistinha CAP-4”, primeiro avião de Ada, só que numa versão melhorada, Em seu plano de metas com que já que a grande encomenda do Ministé- pretendia fazer o Brasil avançar “50 rio – de 50 unidades anuais até um to- anos em 5”, o Presidente Juscelino tal de 250 aeronaves – possibilitou esse Kubitschek, empossado em janeiro de avanço. A versão 56-C do modelo, relata 1956, talvez não previsse o destaque Roberto Pereira de Andrade em A Cons- que o Brasil teria em duas áreas, naque- trução Aeronáutica do Brasil , foi equipada le mesmo ano. Uma delas foi a da cul- com motor de 90 cavalos e um enge- tura: na literatura, sobressaíram vários nhoso dispositivo de ambos os lados do escritores mineiros, incluindo Guima- capô, o que permitia erguê-lo com faci- rães Rosa, com sua obra-prima Grande lidade ou retirá-lo totalmente. Os 56-C Sertão: Veredas; na música e poesia, as também comportavam dois tanques de composições de Tom Jobim e Vinicius quase 100 litros de combustível, o que de Moraes na peça Orfeu do Carnaval, e lhes dava autonomia de mais de 700 km. na arquitetura, as inovações concebi- das por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer Enquanto o CAP-4 só alcançava uma para a construção de Brasília. A outra altitude em torno de 3.500m, o 56-B po- área em destaque foi a da aviação, que dia alcançar até 6.000m sobre o nível do marcou 1956 como o “Ano Santos-Du- mar. Assim equipados, os 56 impulsio- mont”, comemorando o cinquentená- naram os aeroclubes que os receberam rio do primeiro voo com o 14-bis. e também foram usados nas Esquadri- lhas de Ligação e Observação da FAB, O governo federal instituiu a Meda- com a designação de L-6. lha de Honra ao Mérito Santos-Dumont para quem prestasse relevantes serviços Outra medida de incentivo lançada à Força Aérea Brasileira, e o de Minas pelo Ministério, em novembro do mesmo Gerais decretou a instalação de um ano, foi uma lei federal que estabeleceu a museu na casa onde o inventor nasceu, isenção de impostos sobre combustíveis situada em Cabangu, no município an- e lubrificantes para veículos do setor. tes chamado de Palmira, que a partir de Ada também pretendia comemorar 1930 passou a ser Santos-Dumont. o Ano Santos-Dumont, só que à sua

28 Ada Rogato moda: fazendo um voo solitário, com o colaboração” de uma vasta gama de mesmo Cessna de 90 HP, percorrendo organizações. A Folha da Tarde de 27 todas as capitais dos Estados e Territó- de junho observou que, mesmo assim, rios da União, assim divulgando por todo seria uma aventura e tanto cobrir sozi- o país os festejos em homenagem ao Pai nha um imenso território num aviãozi- da Aviação. O reide foi organizado pela nho de tão poucos recursos, sendo que comissão dos festejos, da qual Ada fazia a única novidade que iria a bordo do parte, e o então Governador Jânio Qua- “Brasil” nesta viagem é que “a aviadora dros o sacramentou, atribuindo ao reide pela primeira vez levará um rádio”, sem caráter de missão oficial. Por sua vez, o especificar de que tipo. Segundo espe- Cardeal de São Paulo, Dom Carlos Car- cialistas, só podia ser um aparelho de melo de Vasconcelos Mota, pediu-lhe telecomunicações de alcance limitado. para levar consigo uma imagem de Nos- Em 4 de julho, uma pequena multi- sa Senhora Aparecida, a fim de divulgar dão compareceu ao Aeroporto de Con- o culto da padroeira por todo o Brasil. gonhas, em São Paulo, para assistir à partida da aviadora que, apesar de já ter 46 anos, mais parecia, como disse a Folha da Noite, “uma jovem encantada com a antevisão de um piquenique”.

Cercada de autoridades e admiradores, Ada parte do Aeroporto de Congonhas (SP) para seu circui- to por todo o Brasil (1956) Jornal anuncia reide da aviadora em homenagem ao cinquentenário do primeiro voo do 14-bis De São Paulo ela seguiu para Curi- tiba e Florianópolis e, depois de Porto Os altos custos dessa aventura, que Alegre, foi até o último campo ao sul do cobriria mais de 20.000 km, salientou o país, em Vitória do Palmar. Em seguida, jornal A Gazeta, “não trará ônus para acompanhando a fronteira, dirigiu-se a o Estado, pois Ada Rogato receberá Campo Grande e Corumbá. Voou so-

Um Passáro Solitário 29 bre o Pantanal olhando o tapete verde cidades vizinhas; mais adiante, visitou a pontilhado de ipês amarelos, sabendo missão religiosa de Santa Terezinha, às que, caso fosse preciso descer, o pânta- margens do Rio da Mortes, onde inau- no engoliria o seu teco-teco. gurou um campo de pouso aberto pe- los índios xavantes e batizado com seu Não se intimidou e chegou a Cuiabá. nome; subiu em direção ao Rio Culuene Mas, ao deixar a capital mato-grossen- e visitou os kalapalos numa aldeia já se, pregou um susto na imprensa que , dentro do Parque do Xingu, onde hos- acompanhava a sua aventura: surpre- pedou-se no acampamento em que esta- endida por uma tempestade quando a vam os irmãos Cláudio e Orlando Villas noite se aproximava, ela, voando a bai- Boas, e lá conheceu outras tribos. xa altura e sem instrumentos para voo noturno, felizmente avistou uma fazen- da, onde desceu e pernoitou. No dia seguinte, quando o país in- teiro imaginava que ela havia desapare- cido, Ada chegou a Cáceres. De Cáce- res dirigiu-se ao extremo oeste do país, pousando nos campos mais extremos dos então territórios de Guaporé (hoje Rondônia) e Acre. Para chegar à Região Norte, cum- priu o mais longo trajeto de sua viagem feito em um único dia. Foram 580km, Com seu Cessna, Ada aterrissou em campos de entre Porto Velho e Manaus, onde foi pouso em plena selva, sendo recebida recebida com festa. pelos indígenas Quis ir mais longe, até Pacaraima, no Ao deixar o Parque, Ada havia con- extremo norte do Território do Rio Bran- quistado a admiração dos irmãos serta- co (hoje Roraima). Voltou a Manaus para nistas, que cresceu mais ainda quando ir até o Amapá, onde chegou até Oiapo- eles descobriram sua intenção: seguir que, na divisa com a Guiana Francesa. rumo a Cachimbo e Jacareacanga, so- A ideia inicial de Ada era a de visitar brevoando um longo trecho no “mar apenas as capitais, mas o plano já se am- sem fim” da floresta amazônica – o pliara e seu atrevimento a fez querer ex- chamado “inferno verde” – apenas com plorar também o Brasil Central: acom- um rádio de alcance limitado, para falar panhou o curso do Rio Tocantins até com a torre. Sabe-se que até hoje, mes- Marabá, depois rumou para o Rio Ara- mo com as instalações do Sistema de guaia e visitou os índios carajás na Ilha Vigilância da Amazônia (SIVAM), este do Bananal; em seguida foi a Goiânia e trecho atemoriza aviadores. 30 Ada Rogato Ao passar incólume por mais esse Fundação Santos-Dumont (FSD) de- desafio, ela tornou-se a pioneira, entre veria “cuidar do acervo de Santos-Du- homens e mulheres pilotos, a cumprir mont, o que implicava em criar e man- tal trecho sozinha, em avião de peque- ter um museu, e, entre outros objetivos, no porte. Voltou em seguida a Belém do organizar a aviação civil e incentivar a Pará e, de lá, foi “pingando” em todas as pesquisa e o estudo da aeronáutica, por capitais nordestinas, incluindo Maceió, meio da concessão de prêmios, bolsas e de onde saíra meio às escondidas ao lado a criação e manutenção de institutos.” da mãe, com a ajuda de amigos, e agora Como membro daquela comissão, Ada voltava triunfante; depois Salvador, Belo também passou a fazer parte da FSD. Horizonte, Vitória, Rio de Janeiro e, fi- nalmente, tomou a direção de São Paulo. Não passou muito tempo para a aventureira prosseguir em sua explora- O clímax planejado para a viagem era ção pelo Brasil. A oportunidade surgiu o retorno à capital paulista em 23 de ou- em 1957, quando , tubro, de preferência às 16h45, hora exa- tentando dar novo impulso ao seu Pla- ta em que o 14-bis iniciara, meio século no de Metas para arrancar o país do antes, seu primeiro voo. Mas o mau tem- subdesenvolvimento, preparava-se para po a impediu e teve de pousar em Gua- inaugurar a rodovia Rio de Janeiro-Belo ratinguetá (SP). De lá, aproveitou para Horizonte e dar início à construção de visitar Aparecida (SP), e só aterrissou Brasília – seu mais ambicioso projeto. em Congonhas, mais uma vez, cercada de admiradores, no dia 24 de outubro. Devido à dificuldade de acesso à re- gião escolhida como sede da nova capi- Até semanas depois, Ada e seu Cir- tal, JK encarregou o 1º Destacamento cuito pelo Brasil continuavam em des- da FAB de localizar e desmatar um ter- taque nos jornais. Ainda em novembro, reno para a construção de uma pista de a Assembleia Legislativa do Estado de 3.300m de comprimento – a maior do São Paulo homenageou a aviadora por Brasil até então –, estreada pelo Presi- esse feito. Mas, para ela, o maior prêmio dente em 2 de abril daquele mesmo ano. foi a oportunidade ímpar de conhecer o Brasil em toda sua dimensão – oportu- A inauguração oficial, em 3 de maio, nidade que ela continuaria a explorar. foi presidida pelo Cardeal de São Paulo Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Também em São Paulo, a comissão Motta e, no altar da celebração, estava encarregada dos preparativos para as a mesma imagem de Nossa Senhora comemorações do Ano Santos-Du- Aparecida que Ada levara no ano ante- mont instituiu, em 3 de outubro, uma rior em peregrinação por todo o país. fundação cuja finalidade seria “fomen- tar o desenvolvimento da aeronáutica A própria Ada não perdeu a oportu- nacional”. Para tanto, como explicou nidade de obter mais uma primazia ao mais tarde seu ex-dirigente, o Major Bri- tornar-se, em 19 de dezembro de 1957, gadeiro José Vicente Cabral Checchia, a a primeira mulher a descer no Aeropor- Um Passáro Solitário 31 to de Brasília pilotando um avião, como para encontrar a mulher, que viera para atesta uma foto divulgada pela Revista Goiás duas semanas antes de ele poder dos Aviadores (jan./abr. de 1958) e pelo sair de férias e saíra com parentes para Jornal da Aviação (fev. de 1958), que mos- uma pescaria em direção ao Rio do Pei- tra a aviadora sorridente exibindo nas xe, um afluente do Araguaia. Os rapazes mãos uma flâmula da futura capital. o apresentaram a Ada e ela se ofereceu para levá-lo à procura dos pescadores. No dia seguinte e após horas de voo, o grupo de Gilda foi localizado e a avia- dora pôde regressar a Aruanã, recusan- do-se a aceitar qualquer pagamento. Se em nosso país não faltavam novi- dades, no cenário internacional daquele ano elas eram de grande porte. Em ple- na Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética disputavam o pioneirismo em sua capacitação nuclear e tecnológica. Coube naquele momento aos sovi- éticos ganharem a frente quando, num período de apenas três meses, infligiram Com o chão do aeroporto em terra batida, Ada dois duros golpes nos americanos: em foi a primeira mulher a chegar pilotando à nova agosto, testaram com sucesso seu pri- capital ainda em construção (1957) meiro míssil balístico intercontinental, o que colocava em risco a invulnerabili- Mas o pouso em Brasília não foi o pri- dade territorial dos EUA, e em outubro, meiro retorno de Ada ao Brasil Central, utilizando-se de um foguete R-7, origi- região que ela tanto apreciara em seu cir- nalmente projetado para carregar ogivas cuito do ano anterior. Meses antes, ela já nucleares, Moscou lançou em órbita o havia voltado ao Araguaia quando uma primeiro satélite artificial, o Sputnik. A equipe de rapazes que estavam fazendo luz daquela esfera de alumínio, de 83.6 kg um documentário sobre a região a con- e 48 cm de diâmetro, podia ser vista da tratou para levá-los em seu aviãozinho até Terra, onde também chegavam os sinais Aruanã (GO), onde havia uma pensão. emitidos por seus radiotransmissores. Lá também estava o doutor Carlos Um mês depois, Moscou ampliou Fleury, médico e pesquisador do Insti- essa vantagem, lançando do mesmo tuto Butantã, de São Paulo. Um ano an- campo de Baikonur, no Cazaquistão, o tes, ele e sua mulher Gilda, em outra in- Sputnik II, levando pela primeira vez ao cursão exploratória, haviam conseguido espaço um ser vivo, a cadelinha Laika. entrar em contato com índios xavantes, Comparado a esses dois feitos, a opi- mas, no momento, Fleury estava aflito nião pública americana minimizou a 32 Ada Rogato importância do recorde de velocidade ço aéreo transatlântico a jato com um transcontinental batido meses antes Havilland Comet IV, que fazia o trajeto pelo major americano John Glenn Jr., entre Londres e Nova York (ida e volta) num voo de Los Angeles a Nova York na metade do tempo despendido pelas em 3 horas e 23 minutos. aeronaves a hélice. Respondendo a tal desafio, Washing- Não restava às empresas brasileiras do ton decidiu ganhar a dianteira na cor- ramo outra alternativa senão acompa- rida espacial. Já em janeiro de 1958, e nhar tais inovações: a adquiriu, em com a ajuda de Werner Von Braun, o 1959, um Caravelle e, em 1960, o primei- projetista responsável pelo aperfeiço- ro de seus . A Panair do Bra- amento da bomba V-2 utilizada pela sil recebeu, em 1961, dois jatos DC-8 11 Alemanha na Segunda Guerra Mundial, para voos intercontinentais e, em 1962, que fora para os EUA após o conflito, quatro Caravelle 6-R para voos de etapas os americanos colocaram no espaço o médias (nacionais e sul-americanas). satélite Explorer I. A fabricação de motores a jato para Meses depois, o Presidente Eisen- aviões de médio porte demoraria a che- hower criou a NASA (sigla em inglês gar. No caso de aviões particulares de da Agência Nacional de Aeronáutica pequeno porte, motores a jato até hoje e Espaço) para concentrar os esforços só existem em produções experimen- dos EUA em direção à sua meta, no- tais (Rutan). Nossos pilotos de jatos meando Von Braun como engenheiro- recebiam treinamento no exterior; Ada, chefe da nova Agência. porém, nem sequer sonhava em passar Para formar futuros astronautas, a por esse treinamento, embora continu- NASA selecionou um grupo de exí- asse disposta a novas aventuras, com mios pilotos militares, entre eles o pró- seu velho “Brasil”. prio John Glenn Jr. Apenas sete faziam parte desse grupo, mas, como era de O ÚLTIMO REIDE E A DESPE- se esperar, o sonho de ser astronauta DIDA DO AVIÃO contaminou pilotos de todo o mundo, incluindo Ada, como ela própria con- O mundo todo voltava os olhos para fessou na ocasião a uma amiga. as conquistas espaciais da URSS. Em 1959, a sonda soviética Lunik I foi a pri- O entusiasmo estendeu-se à indústria meira a deixar a Terra e orbitar a Lua, e a da aviação e algumas delas, como a fran- Lunik III foi a primeira a fotografar do cesa Dassault e as americanas Douglas espaço o satélite terrestre. e Boeing, começaram a fabricar apare- lhos a jato. Na sequência, as empresas Ada, por sua vez, sondava a possibi- de aviação comercial introduziram avi- lidade de alçar novos voos por aqui, em ões a jato em sua frota. Em outubro de nosso planeta. Dentro de suas limita- 1958, a British Overseas Corporation ções, ela concluíra que, se havia conse- (BOAC) inaugurou o primeiro servi- guido com seus equipamentos chegar às Um Passáro Solitário 33 proximidades do Polo Norte, da mesma mas, embora em 1960 o complexo usi- forma poderia se atrever a chegar pró- neiro não tivesse mais a importância de ximo ao Polo Sul, assim completando a anos anteriores, dois filhos do fundador cobertura total das três Américas. – Lino e Hélio – bancaram o projeto e A meta era conduzir seu avião até estiveram presentes no bota-fora de Ada, Ushuaia, localidade no extremo sul da no aeroporto local, Comendador Pedro Terra do Fogo, que é o ponto mais me- Morganti. Ao lado deles, o prefeito e o ridional do continente. Para isto teria de presidente da Câmara Municipal de Pi- atravessar, pelo ar e 440 anos depois de racicaba participaram da cerimônia antes Fernão de Magalhães, o perigoso estrei- da partida da aviadora, em 18 de março to que recebeu o nome do navegador de 1960, regada a coquetéis e discursos. português que foi o primeiro a cruzá-lo De Piracicaba, Ada rumou para São em sua tormentosa viagem de circum- Paulo, depois Florianópolis, Porto Ale- navegação do globo terrestre. A longa gre, Pelotas e Montevidéu. No dia 5 de travessia lhe exigiria múltiplos preparati- abril de 1951, entrando na Argentina, vos: preparo físico (que ela confiava ter, rumou para o sul, parando em Buenos mesmo prestes a completar 50 anos), Aires, Bahia Blanca, Trelew... a faixa de uma boa reserva de paciência e diplo- terra litorânea ia se estreitando ao atin- macia a fim de obter ajuda para executar gir Comodoro Rivadavia e mais ainda o plano, mais o preparo do avião. em Río Gallegos – cidade incrustada Quanto ao “Brasil”, ela podia contar sobre rochas na desembocadura dos com a boa assessoria da Cássio Muniz, Rios Gallegos e Chico –, hoje conside- empresa encarregada da manutenção rada o portal turístico da Patagônia. dos Cessna no Brasil, e dos técnicos que Ela pouco pôde desfrutar das mara- a atendiam no Aeroclube de São Paulo, vilhas da paisagem, flora e fauna locais, onde o motor do pequeno avião era des- preocupada com o trecho que viria a montado e remontado pelos mecânicos seguir: cerca de 30km sobrevoando o que, para se certificarem de que estava Estreito de Magalhães, amedrontador tudo ok, em seguida voavam nele. não só para as embarcações que aque- Quanto ao apoio financeiro, o porte las águas haviam engolido às centenas, da façanha atraiu patrocinadores: a Se- mas também para aeronaves, devido às ção de Aviação da Esso para o combus- condições climáticas do lugar. tível e um poderoso grupo da região de Na ida, porém, a travessia do estrei- Piracicaba (SP) – as Organizações Mor- to foi mais tranquila do que ela havia ganti –, para as demais despesas. imaginado. Já na Terra do Fogo, a avia- O imigrante italiano e fundador des- dora passou bem por Río Grande, mas te grupo, Pedro Morganti, que chegara continuou temerosa de que a partir dali a ser considerado “o maior produtor o vento não lhe desse condições para de açúcar do mundo”, já havia falecido, pousar em Ushuaia, onde os membros 34 Ada Rogato de um recém-fundado aeroclube aguar- avião em sua rota.” O “Brasil” era joga- davam ansiosos por sua chegada. do de um lado para o outro e, sacudida dentro dele, Ada duvidou se chegaria ao Enfim, conseguiu chegar, como re- fim da viagem ou ao seu próprio fim. lata nota então emitida pelo aeroclube local: “A cidade de Ushuaia... se engala- Sem poder entregar-se ao desespero, na hoje, 14 de abril, Dia das Américas, pois “tinha também que estar atenta com a visita da ‘Pomba Solitária do Bra- para que a temperatura reinante, que os- sil’ – Ada Rogato –, primeira aviadora a cilava entre 2 e 3 graus abaixo de zero, pousar neste aeroporto.” não congelasse o carburador”, explicou O Estado na mesma reportagem. É que, Era um sábado de Aleluia e o clima mesmo em aviões mais modernos, o era de festa naquele amontoado de casi- congelamento também pode travar a nhas coloridas que então constituíam o parte móvel da asa e os profundores e, núcleo da cidade mais austral do plane- com isso, o piloto não consegue virar ta, aninhada numa belíssima baía e cer- a aeronave para a esquerda ou para a cada de altas montanhas nevadas. Até o direita, nem para cima ou para baixo. governador da Terra do Fogo, Capitão Ernesto M. Campos, fez questão de dar Para orientar-se, Ada então contava uma volta com Ada em seu aviãozinho e apenas com uma bússola normal gi- de “acompanhá-la na volta até a cidade roscópica, enquanto “hoje a navegação de Río Grande, onde ela, a seu pedido, com GPS é muito mais fácil”, observa- fez uma palestra sobre seus reides ante- ria mais tarde a piloto Madeleine Du- riores, a fim de incrementar o aeroclube pont de Böck, nascida na Alemanha e local”, como relatou em 19 de junho de moradora no Chile. 1960 O Estado de S. Paulo. Em 2000, ou seja, 40 anos depois de Foi a partir de Río Grande, no mo- Ada, Madeleine, acompanhada de dois mento em que a atenção dos brasilei- amigos que não eram pilotos, fez o mes- ros estava toda voltada, naquele 21 de mo trajeto da brasileira a bordo de seu abril, para a inauguração de Brasília, “Julie”, um Bonanza de 285HP, equipa- que o retorno da aviadora se tornou do para voo por instrumentos e piloto assustador: desde lá até Trelew, na Pa- automático – enquanto que o “Brasil” tagônia – comentaria ela mais tarde em de Ada tinha apenas 90HP, com veloci- seu currículo –, teve de enfrentar “ven- dade de cruzeiro de 160km/h e autono- tos superiores a 100km/h, durante dez mia de voo de sete horas, além do teto horas do voo... e numa temperatura de máximo de 5.000. Quando o avião de 3 graus abaixo de zero”. Por causa dos Madeleine alcançou tal altitude, como ventos, disse a revista Aéro Magazine relatou, “a temperatura externa era de de julho de 1960, ela “teve de corrigir -25º centígrados e a calefação interna o rumo de sua bússola com 45 graus era limitada, mas, felizmente, tínhamos a menos para poder manter o pequeno roupa apropriada”.

Um Passáro Solitário 35 A calefação do Cessna, que Ada pilota- clube local, ainda sediado em Los Cer- va sozinha, limitava-se ao ar quente que é rillos, ajuda para resolver um problema jogado dentro do avião pelo motor – o que técnico: desde Ushuaia, estava sentindo é insuficiente no caso de um frio intenso. algo estranho em seu motor. Resolvido o problema, era hora de retornar ao Brasil. Decidiu-se pelo tra- jeto entre Santiago e Mendoza, do lado argentino da cordi- lheira, mas, para isso, teve de esperar doze dias, até que “as con- dições atmosféricas permitissem ultrapas- sar os Andes a 4.500 Ada viajou sempre sozinha metros de altitude”, como acrescentou O Estado em seu re- Já à beira da exaustão, Ada chegou lato sobre a aventura; naquele trecho, finalmente a Trelew, na Patagônia. Após ela enfrentou novamente uma tempera- revigorar-se, seguiu para Bariloche e, de tura de 3 graus abaixo de zero. lá, cruzou mais uma vez os Andes, em direção a Puerto Montt, no Chile. Para ir De Mendoza passou por Córdoba e de lá até Concepción, teve de circundar o chegou a Buenos Aires, onde seus ami- vulcão Osorno, sem sequer imaginar que, gos portenhos a homenagearam com dentro de poucos dias, aquela imponente um banquete na sede do Aeroclube montanha à beira do Lago Llanquihue Argentino, de que participaram o Se- entraria em erupção e todo seu entorno cretário da Aeronáutica, Brigadeiro Ra- seria destruído pelo maior e mais dano- món Amado Abraim, o presidente do so terremoto que, acompanhado de um aeroclube, Julio Lironi, e “outras altas tsunami na região costeira, matou pelo autoridades da Repúbica Argentina”, menos 5 mil pessoas, feriu mais de 3 mil destacou o jornal paulistano A Gazeta e deixou 2 milhões de desabrigados. em 6 de junho de 1960. Nesse jantar, recebeu “o título de sócia honorária do Nada prenunciava a tragédia durante aeroclube...e um belíssimo troféu de seu trajeto até Santiago, em que pôde ônix, prata e ouro, comemorativo deste desfrutar tranquila do magnífico cená- último reide”, disse o jornal. rio que se estendia á sua frente. Na ca- pital chilena, onde fora tão bem acolhi- Retornando ao Brasil, passou por da em viagens anteriores, ela sentiu-se à Concórdia (SC), onde a imprensa local vontade para pedir ao pessoal do aero- informou que a “Rainha das Américas”

36 Ada Rogato havia chegado à cidade; de lá atravessou única aviadora que voou desde o Círcu- por Resistencia e Assunção, no Para- lo Polar Ártico, no Alasca, até o extremo guai, descendo em seguida em Foz do Sul do continente...”, perfazendo “mais Iguaçu e, logo mais, em Curitiba (PR); de 110.000 km sobre as três Américas”, a penúltima etapa foi o campo de avia- tendo passado “11 vezes a Cordilheira ção da Praia Grande (SP) e, após passar dos Andes – e sempre voando sozinha.” pela capital paulista, o pouso final dessa Mas, fosse aonde fosse, a aviadora excursão de 12.800 km, completada em não perdia a oportunidade de reiterar 82 horas e 43 minutos de voo, foi em que considerava tudo o que já fizera Piracicaba, onde novamente a aguarda- ainda insuficiente. “Voo sem espírito de vam o Prefeito, o Presidente da Câmara, turismo”, disse ela ao ser homenageada o Comendador Hélio Morganti e um pela Liga do Professorado Católico de grande número de pessoas que deram São Paulo, e explicou: “o Brasil ainda é vivas quando o Cessna aterrissou suave- um país desconhecido no resto do mun- mente na pista do aeroporto, às 11 horas do e minhas viagens destinam-se a mo- da manhã do dia 9 de junho de 1960. dificar esta situação”, transcreveu em 1º Com sua volta ao Brasil, homena- de julho de 1960 O Estado de S. Paulo. gens e troféus se sucediam. Dias de- O jornal acrescentou que ela pretendia pois, a Esso Brasileira de Petróleo, continuar com suas viagens, “apesar das copatrocinadora do reide, ofereceu a dificuldades que tem enfrentado, tanto Ada um almoço de gala no Aeropor- no campo do voo como no financeiro”. to Santos-Dumont, no Rio de Janeiro, Mas, para isso – prosseguiria O Estado onde ela foi saudada pelo representante em agosto, após uma visita de Ada à sua do Diretor-Geral da Aeronáutica Civil, sucursal no Rio –, “seu velho Cessna de Brigadeiro do Ar João Mendes da Silva, 90HP já deu tudo o que podia dar.” de quem recebeu um “um belo bronze Para realizar as grandes viagens que comemorativo do feito, representado por uma ‘Águia Solitária”, contou A tem em vista, insistiu o mesmo jornal Gazeta de 9de agosto de 1960. em 5 de agosto de 1960, ela “pretende agora conseguir novo tipo de avião”, A Aéro-Magazine de janeiro de 1961 repetindo essa mensagem no título da ressaltou que outro “brilhante troféu” matéria. Mas, o apelo do jornal não en- foi-lhe ofertado pela firma Cássio Mu- controu eco, apesar do imenso prestí- niz, passado às mãos de Ada pelo então gio da aviadora na época, que podia ser presidente da Fundação Santos-Du- medido pela extensão das reportagens mont (FSD), José Ribeiro de Barros. em duas edições de O Cruzeiro – uma Meses antes, a mesma revista havia nacional, em dezembro, e uma interna- feito um balanço dos voos de Ada e cional, em janeiro de 1961. Ambas abri- concluído que, com mais esse reide – o ram espaço para a “cobertura total das quinto que realizara –, ela tornara-se “a Américas” feita pela intrépida aviadora.

Um Passáro Solitário 37 vida pessoal quanto em seus objetivos na aviação. Para começar, tratou de co- locar sua vida funcional, da qual depen- dia para viver, em dia. Ela já havia en- caminhado, em setembro de 1960, um ofício à Seção de Pessoal da Secretaria da Agricultura solicitando a contagem de seu tempo de serviço no Instituto Biológico e, completados os trâmites burocráticos, pediu sua transferência para um novo posto na mesma Secreta- ria. Quanto à sua trajetória como piloto, dependeria de um novo avião, que não chegava. Enquanto esperava, acompa- nhava tudo o que dizia respeito à avia- ção e à exploração do espaço, em que as novidades eram muitas. Em 12 de abril, o piloto militar russo Yúri Gagárin, de 27 anos, tornou-se o Para completar a cobertura total das três Amé- primeiro homem a viajar ao espaço ao ricas, a aventureira se tornou a primeira mulher a orbitar a Terra uma vez, em 1 hora e 48 chegar pilotando em Ushuaia (Patagônia minutos, a bordo da cápsula “Vostok I”; argentina), ponto mais meridional da América do Sul (1960) em 5 de maio (menos de um mês depois), foi a vez do comandante americano Alan Shepard Jr., treinado pela NASA, subir VETERANA, MAS A SERVIÇO DA ao espaço, alcançando uma altura de 187 AVIAÇÃO km a bordo da nave “Freedom 7”. O ano de 1961 começou animado A primazia fez de Gagárin um he- pelas promessas de dois jovens presi- rói internacional e embaixador de “boa dentes recém-empossados nas Amé- vontade” de Moscou; em contrapar- ricas: Jânio Quadros, no Brasil, e John tida, ainda naquele maio, o presiden- Fitzgerald Kennedy, nos EUA. te Kennedy lançou aos russos – e ao mundo – um novo desafio: o de que os Jânio pouco tempo teve para cumpri- EUA levariam o homem até a Lua antes las, pois renunciou oito meses depois; o do fim da década. Mas, antes que isso carismático Kennedy teve um pouco mais acontecesse, os soviéticos foram os pri- de tempo, até ser assassinado em 1963. meiros a enviar uma mulher ao espaço. Ada, por sua vez, também prometera Em junho de 1963, a russa Valentina a si mesma mudanças – tanto em sua Tereshkova foi lançada em órbita a bor-

38 Ada Rogato do da “Vostok VI” e, durante três dias, em São Paulo. Em palavras emocionadas deu 48 voltas em torno da Terra, assim diante dos dirigentes da FSD, responsá- tentando comprovar que mulheres e vel pelo museu, ela disse sentir-se no homens têm a mesma resistência física “dever de contribuir com algo material – a náuseas, tonturas e outras doenças para que a minha experiência se perpe- – e psicológica – frente aos riscos de tue (...) como contribuição aos jovens incêndio ou de perder-se no espaço – que amam esta terra em que nascemos, em viagens espaciais. que deu ao mundo toda uma gama de Enquanto Valentina preparava-se para aeronautas, desde Bartolomeu de Gus- voar e em seguida casar-se com o também mão até o genial Santos-Dumont...”. astronauta Andrian Nikolayev, no Brasil a Fundação Santos-Dumont preparava uma grande exposição. Esperava-se que o evento servisse para incentivar a indús- tria aeronáutica e as pesquisas espaciais e, ao mesmo tempo, trazer maior visibilida- de e reforçar o caixa da FSD. Ada, como membro da entidade – que acabara de lhe conceder a medalha Pioneiros da Aviação – arregaçou as mangas para Ada se separa de seu Cessna, o “Brasil”, doado trabalhar nos preparativos da I Exposi- em 1963 ao recém- inaugurado Museu da Aero- náutica de São Paulo, no Parque do Ibirapuera ção Internacional de Aeronáutica e Es- paço. Realizado em fevereiro/março de 1963, no Pavilhão da Bienal do Parque Já a possibilidade de ela ganhar um Ibirapuera, em São Paulo, o evento foi novo avião ia ficando cada vez mais dis- um sucesso, segundo o jornalista Paulo tante e, apesar da campanha da imprensa S. Mattos, um dos seus organizadores. neste sentido, como a Folha de S. Paulo que, em 31 de maio de 1964, publicou matéria Em agosto do mesmo ano, a aviadora intitulada “Voar sempre é a vida de Ada recebeu outra homenagem: no ato do Dia Rogato”, a mensagem não vingou. do Soldado em que homenageou o patro- no da Arma, o Duque de Caxias, o ge- Certamente a campanha ocorria em neral Pery Bevilacqua, comandante do II má hora. Dois meses antes, em 31 de Exército, condecorou Ada com a Ordem março, tivera fim o conturbado governo do Mérito e a Medalha do Pacificador. de João Goulart – o vice que assumira após a renúncia de Jânio. Mas, nem a Ela decidiu aproveitar a Semana da mudança de regime político impediu Asa, em outubro, para pôr em prática que a veterana aviadora, depois de ter uma iniciativa há muito tempo ensaiada sido homenageada pelo Exército em – separar-se do seu “Brasil” –, doando-o 1963, recebesse medalhas das outras ao recém-criado Museu da Aeronáutica, Armas: em outubro, durante a Semana

Um Passáro Solitário 39 da Asa, a Aeronáutica, que 14 anos an- obteve o brevê número 70 no Campo tes lhe entregara a do Mérito Aeronáu- de Marte, e gozava de livre trânsito em tico, no grau Cavaleiro, e, ainda, o Ces- toda a sociedade local, inclusive por ter sna-140, desta vez entregou-lhe outra feito do incentivo à aviação esportiva Medalha Mérito Aeronáutico, no grau um dos objetivos de sua vida. Oficial – mas sem completar a homena- As casernas não foram contempladas gem com outro tão almejado avião. Em com a mesma sorte da FSD, com de- dezembro de 1965 foi a vez de a Mari- sencontros em algumas delas, como em nha homenageá-la, no Rio de Janeiro, com a Ordem do Mérito Naval. São José dos Campos (SP) onde houve incidente de natureza política no ITA e no CTA, onde um grupo de engenheiros desenvolvia um avião metálico de trans- porte médio para a FAB, o “IPD-6504”. Houve troca na direção e o afasta- mento de professores e pesquisadores oriundos de universidades brasileiras e estrangeiras, além de o próprio Minis- tro da Aeronáutica, Brigadeiro Eduardo Gomes (1965-1967), haver-se convenci- do de que seria “desperdício” construir aviões no Brasil, acabando por adiar o projeto do CTA. Outra ocorrência no âmbito da Aeronáutica foi na aviação comercial, com a suspensão abrupta das linhas aéreas da , por decisão do Ministro Eduardo Gomes. Recebendo a Medalha do Mérito Aeronáutico no Grau Comendador, nos anos 1970 Ada, por sua vez, dentro de suas li- mitações, continuava enfatizando sua Em São Paulo, a Fundação Santos- política pessoal - a de comprovar, com Dumont continuava cumprindo sua ro- suas palavras e ações, que ‘a mulher é, tina e, em abril de 1965, houve eleições tanto quanto o homem, capaz dos mais para a nova diretoria e o novo conselho arrojados feitos.’ Ela continuava a levar administrativo, quando Ada foi eleita a vida pessoal adiante, entre os afazeres conselheira, com mandato até 1974. e alguma distração. Para a presidência da FSD, a escolha não Na URSS, seguia a corrida espacial: poderia ter sido mais hábil: recaiu sobre em 1965, o cosmonauta Aleksei Leo- um piloto civil, o comandante Amadeu nov foi o primeiro homem a deixar sua da Silveira Saraiva, veterano que conhe- aeronave e caminhar pelo espaço, du- cera Santos-Dumont em Paris em 1907, rante dez minutos; dois meses depois, 40 Ada Rogato o americano Edward White repetiu a ta em . A sugestão para enfrentar façanha, caminhando por 21 minutos ambos os problemas foi a de reforçar a no éter. Em fevereiro de 1966, a sonda política de boa vizinhança com os paí- soviética “Luna 9” pousou suavemente ses do centro e sul do continente. na superfície lunar, abrindo caminho Um pouco similar ao que pilotos para missões tripuladas à Lua; logo em famosos haviam realizado em décadas seguida, a nave americana “Surveyor 1” anteriores, a estratégia adotada foi a de fez uma alunissagem suave e transmitiu convidar dois heróis do momento, os para a TV de seu país onze mil imagens astronautas Armstrong e Gordon, para da superfície lunar. excursionar, ao lado de suas esposas e Empenhados em marcar maior pre- outros membros da NASA, por onze sença no espaço, os americanos busca- países do hemisfério. São Paulo estava ram uma nova opção – um aeronauta no roteiro da visita, o que acabou pro- civil. A escolha recaiu sobre Neil Arms- porcionando a Ada um de seus mais trong, um ex-piloto da Marinha duran- inesquecíveis encontros. te a Guerra da Coreia que, ao retornar, formou-se engenheiro aeronáutico e Como previsto, os visitantes chegaram trabalhou como piloto de testes até ser à capital paulista a tempo de participar das escolhido para comandar novas e deli- comemorações da Semana da Asa num cadas operações, como a de março de palanque especialmente montado dian- 1966, em que, ao lado de David Scott, te do Museu da Aeronáutica do Parque conseguiu o atracamento no espaço en- Ibirapuera. Precisamente às 16 horas do tre a cápsula “Gemini 8” e o foguete dia 23 de outubro, quando se comemo- não-tripulado “Agena”. rava o 60º aniversário do voo do 14-bis, eles chegaram ao museu, sendo recebidos A missão não pôde ser completada pela diretoria da FSD e pelo então prefei- devido a problemas de instabilidade no to de São Paulo, Brigadeiro Faria Lima. foguete; até setembro, no entanto, Arms- trong foi encarregado de acompanhar em Os dois astronautas descerraram terra o voo da “Gemini 11” que, levando uma placa de bronze e, em seguida, Ar- a bordo Richard Gordon e Pete Conrad, mstrong, surpreendendo os presentes, completou a tarefa da “Gemini 8”. leu em Português a inscrição gravada no bronze: “Ao gênio do grande brasileiro Naquele momento da Guerra Fria, Santos-Dumont, por suas contribui- Washington preocupava-se com a ima- ções para a ciência aeroespacial, com gem dos EUA no mundo e, à questão da a admiração de Neil Armstrong e Ri- corrida espacial, juntava-se, na visão de chard Gordon, astronautas dos EUA”. assessores do presidente Lyndon John- son, a vulnerabilidade da América Latina O presidente da FSD agradeceu a às investidas do comunismo soviético, doação e condecorou ambos com a após a estabilização do regime comunis- Medalha Pioneiros da Aviação. Após Um Passáro Solitário 41 receberem uma “supersônica” salva O ano de 1968 também foi difícil, não de palmas, como pediu o secretário da apenas nos EUA, onde os projetos para FSD, poeta Lima Barreto, os astronau- o lançamento das “Apolo 2” e “Apolo tas entraram no museu, onde Ada estava 3” já haviam sido cancelados após o de- a postos; admiraram a réplica do 14-bis sastre com a “Apolo 1”. O mundo todo e o “Demoiselle” de Santos-Dumont, chocou-se com os assassinatos de dois o Jahú” de João Ribeiro de Barros – o dos mais promissores líderes políticos primeiro das três Américas a realizar a americanos – Martin Luther King Jr. –, travessia da Europa para a América do um lutador pelos direitos civis dos ne- Sul, em 1927 – e, então, pararam diante gros, e Robert Kennedy, o combativo do “Brasil”. Foi quando ela se aproxi- irmão de JFK, depositário das maiores mou e, pessoalmente, deu informações esperanças para acabar com a Guerra sobre seu voo solitário pelas três Amé- do Vietnã, se chegasse à Presidência. ricas, sem poder imaginar que um deles, Grandes manifestações varreram menos de três anos mais tarde, seria o em 1968 a Europa (em especial França primeiro homem a pisar na Lua. e Checoslováquia) e a América Latina O ano seguinte, 1967, não foi dos (na capital do México, uma onda de melhores para o setor de aeronáutica protestos culminou com um massacre e espaço: em janeiro, um incêndio a de estudantes da maior universidade bordo da nave que seria batizada como do país). No Brasil, intensificaram-se “Apolo 1” causou a morte dos astro- as manifestações contra o regime e os atos de insurgência; em contrapartida, nautas Edward White e Virgil Grissom o governo intensificou suas ações e de- (o primeiro e o segundo dos EUA a ca- cretou o Ato Institucional Número 5 minhar no espaço), e três meses depois, (AI-5), que deu poderes mais amplos a bordo da “Soyuz 1”, um acidente ao executivo federal, inclusive para sus- matou o soviético Vladimir Komarov. pender direitos políticos, para intervir As tragédias serviram de alerta aos dois nos estados e municípios e nos meios lados da Guerra Fria de que estavam de comunicação”. apressando demais a corrida espacial. Enquanto isso, a ocupação regular de No Brasil, Ada e seus amigos do Ae- Ada continuava sendo o funcionalismo roclube de São Paulo abalaram-se com público estadual e, em novembro de um incêndio que destruiu 20 de suas 1968, ela foi transferida da Secretaria de 37 aeronaves, inviabilizando boa parte Agricultura para a de Esportes e Turis- das aulas da Escola de Pilotagem. A mo, onde permaneceria até aposentar-se, perda foi superada por uma campanha em 1980. Lá, segundo colegas que a des- promovida pelos sócios que permitiu a creveram mais tarde, foi sempre muito compra nos EUA de novos aviões Pi- discreta e elegantemente vestida; trazia o per tipo Cherokee-140. material de consulta muito organizado e

42 Ada Rogato estava sempre interessada em aprender Fechando a reportagem, a Folha re- mais e, ao mesmo tempo, orientar so- latou que, ao ser condecorada, a “soli- bre viagens, às vezes até lembrando das tária dos Andes” disse que, apesar de suas, em raras oportunidades. A maioria seu Cessna já se ter tornado objeto de dos colegas só acabou sabendo de suas exposição no Museu da Aeronáutica, aventuras aéreas por outras fontes – a ela – então com 58 anos – ainda queria imprensa, com mais frequência. “continuar voando num avião mais mo- derno - mas não muito maior do que Ainda antes de 1968 terminar, Ada seu velho monomotor.” seria o foco principal de uma grande reportagem da Folha de São Paulo de 12 Mesmo a falta de um novo avião não de dezembro, contando que o Touring impediria a aviadora de vibrar, ao lado Clube do Brasil decidira distribuir me- de centenas de milhões de telespecta- dalhas de Veteranos do Ar aos aviado- dores do mundo todo, ao acompanhar res brasileiros com mais de 30 anos de pela televisão a chegada da “Apolo 11” brevê, mais de 10 de atividade e um e os primeiros passos de Neil Arms- “comprovado amor às asas brasileiras”. trong na superfície da Lua, em julho Entre os nomes famosos estavam os de de 1969. A conquista era um bom pre- Edu Chaves, o primeiro brasileiro a voar núncio, pensava-se, para a humanidade em céus do Brasil (São Paulo-Santos, entrar nos anos 1970. em 1912), Amadeu Saraiva, Brigadeiro O tempo encarregou-se de pintar o Neto dos Reis, José Camargo e outros; período com cores menos otimistas, Ada era a única mulher da lista dos ali pois desde meados da década ficaria destacados como “ases” da aviação. mais lembrado por uma crise que afe- Tecnicamente, “ás” é um piloto mi- tou o mundo todo: a do petróleo, ini- litar que tenha, em combate, abatido ciada quando a Organização dos Países pelo menos cinco aviões adversários. Exportadores de Petróleo (OPEP), de Mas no caso, disse o jornal, “é o pilo- países árabes em sua maioria, revoltou- to que voa sozinho, ou pouco acom- se contra o resultado dos conflitos ára- panhado, num avião pequeno e com be-isralenses no Oriente Médio e com menos aparelhos do que o necessário, o achatamento do preço dos barris de cobrindo grandes distâncias ou lugares óleo, praticado pelas grandes empresas perigosos, como grandes mares ou cor- petrolíferas do Ocidente. dilheiras, para vencer uma luta...prova- Em apenas cinco meses, entre 1973 velmente de caráter patriótico”. Enfim e 1974, o preço do petróleo aumentou , “é um tipo de herói que praticamente 400%, desestabilizando as economias deixou de existir” com o surgimento de dos EUA e da Europa e, no Brasil, aviões cheios de aparelhos sofisticados, pondo fim ao “milagre econômico”. A foguetes e espaçonaves. crise atingiu a indústria aeronáutica, as

Um Passáro Solitário 43 empresas aéreas comerciais e também Ada em São Paulo, mas com quem ela os aeroclubes e suas escolas de pilota- resistia em manter contato; e o primo gem; o preço da gasolina para aviões, distante Luiz Rogato Sobrinho, pro- que aqui fora subsidiada até 1973, não prietário e administrador de seu hotel parava de subir. em Atibaia (SP), em cujo salão nobre ofereceu-lhe um jantar a que compare- Ada, por sua vez, sem chance de al- ceram 50 pessoas, entre elas várias figu- çar novos voos, ia apoiando sua vida no ras da imprensa. dia-a-dia. Mesmo após a morte de sua companheira de toda a vida – a mãe, Vez ou outra, a aviadora recebia ho- Rosa, em 1974 –, sua rotina prosseguiu: menagens, como a que lhe prestou o acordava às 5 da manhã para ler jornal consulado dos EUA em São Paulo em e ouvir o noticiário pelo rádio. Depois 1971, ao completarem-se os 20 anos de do café, arrumava-se para ir ao trabalho seu reide pelas três Américas – em que e, às vezes, no fim do expediente, ia a recebeu uma carta do então governa- uma leiteria ou casa de chá do centro da dor da Califórnia, Ronald Reagan: com cidade ou à sede do Instituto Genealó- “aquele voo histórico, o primeiro de tal gico Brasileiro (IGB). tipo realizado por uma mulher”, dizia a carta, “(...) a coragem e a determina- Seu interesse pela entidade, cujo ob- ção fizeram da senhora uma heroína da jetivo era orientar pessoas na busca de aviação brasileira.” seus antepassados e estudar a origem das famílias, fez com que, com o tempo, seu A imprensa também não se esquecia diretor, Dr. Augusto Galvão Bueno Tri- dela. Em seu 30º aniversário, a Gazeta gueirinho, a convidasse para ser tesourei- Esportiva instituiu o troféu “Cásper” ra do Instituto. Lá trabalhava, como (nome de seu fundador) destinado a voluntária, Neide Bibiano, jovem de Bi- “figuras do esporte paulista e brasileiro rigui (SP), recém-formada em História, que projetaram o nome do nosso país que se tornaria companheira assídua de entre 1947 e 1977”; e, nessa que cha- Ada para seus programas noturnos pre- mou de constelação de astros e estrelas, diletos: cinema, teatro ou palestras na estava a “Aviadora Solitária”, por suas sede da Fundação Santos-Dumont. arrojadas façanhas “ligando o conti- nente de extremo a extremo no coman- Com a própria família, os laços de do de um avião mais parecido com uma Ada afrouxaram-se após a morte de caixa de brinquedo, sem outros recur- Rosa. Com alguns, ela faria contato sos senão uma bússola e sua fé”. mais tarde: Ângela Rogato, prima irmã que era filha de Flávio, irmão de Gu- Poucos anos depois, seria a vez da glielmo, o pai com quem Ada nunca Petrobras, em anúncio de página inteira se reconciliou; a médica e meia-irmã em revistas e jornais, colocar Ada entre Flávia Rogato, filha de Guglielmo que os 10 brasileiros mais destacados na- morava em Maceió e que havia visitado quele momento. 44 Ada Rogato A partir de 1980, quando se aposentou do emprego público, a aviadora intensificou suas atividades na Fundação Santos-Dumont, que continuava a sofrer progressivos cortes da verba que recebia do governo federal. Da FSD, logo se tornou 1ª secretária. Também era assídua frequentadora do Instituto Histórico e Geográfico e entrou para a Sociedade Amigos da Cidade (SAC), fundada em 1934 pelo prefeito Prestes Maia para ser um canal de participação dos interessados nos problemas da capital paulista, participando das excursões de fim de semana dos associados. O Museu da Aeronáutica da FSD, sediado na Oca do Parque Ibirapuera e orgulho- so de ser o primeiro da América Latina, era palco de constantes eventos que ajuda- vam em sua manutenção. Também para cortar despesas, foi para lá que a FSD trans- feriu sua antiga sede no centro da cidade, assim facilitando para que os conselheiros pudessem melhor cuidar de seu rico acervo e articular novas iniciativas. Em 21 de agosto de 1981, porém, o presidente da entidade, Fernando Lee, abriu a reunião do Conselho dizendo que a FSD atravessava um “período de grandes dificuldades” e que ele havia adiantado do próprio bolso o dinheiro para pagar os funcionários. A questão era: como superar a crise? Uma das ideias foi a de contratar pessoal terceiri- zado para poder abrir o museu também aos sábados e domingos, e Ada ofereceu-se para estar lá também nestes dias. Daí a tornar-se a diretora do museu foi um pulo.

Veterana, Ada se dedicou e chegou a dirigir o Museu da Aeronáutica, instalado no prédio apelidado de “Oca”, que foi o primeiro da América Latina

Um Passáro Solitário 45 Era muita responsabilidade para quem que lá se desenvolviam, como aulas e ex- não era nem historiadora nem museólo- posições. Não havia lanchonete no pré- ga, mas, desde que passou a dirigi-lo, Ada dio, razão pela qual Ada levava de casa não saía mais do museu, secretariando as um sanduíche para não perder tempo na reuniões do Conselho e tomando conta hora do almoço. A maior atenção dela era de tudo. Além de aeronaves famosas, lá voltada aos visitantes de qualquer idade, estavam boa parte do acervo pessoal de sozinhos ou em grupos, desconhecidos Santos-Dumont, mapas e outros docu- ou ilustres – como os astronautas que, ao mentos de pilotos famosos, uma peque- virem ao Brasil, passaram a fazer daquele na urna de madeira com os despojos de espaço um ponto obrigatório. Bartolomeu de Gusmão – o “Padre Voa- A diretora atendia às frequentes so- dor”, nascido em Santos, que assombrou licitações para reportagens de TV, mas em 1709 a corte lisboeta de Dom João recusou-se a aparecer num filme sobre V, ao elevar em 4 metros sua “Passaro- sua história que uma estudante de ci- la” no ar –, além de outras preciosidades. nema pretendia fazer: “use uma mane- Ela tratou de organizar a biblioteca do quim”, disse. Regina Rheda então de- museu, para isso convocando voluntá- cidiu brincar de protagonista com um rios, sem descuidar das outras atividades aviãozinho rosa de papier maché no curta metragem Folguedos no Firmamento, que, como documentário-ficção, misturou reportagens e fotos de arquivo sobre a aviadora e foi premiado pela Secre- taria de Cultura de São Paulo e pelo Festival de Gramado, mantendo-se, nos cinco anos seguintes, na abertura das sessões de cinema por todo o Brasil. Muitos, depois de Armstrong, fo- ram os heróis do espaço que passaram pelo museu dirigido por Ada, que aca- bou juntando a essa função mais uma: a de presidente da FSD. Um deles foi Vance Brand, um dos três astronautas dos EUA que haviam participado em 1975 da missão conjunta Apollo-Soyuz – o pioneiro encontro no espaço entre americanos e soviéticos.

No museu, além de aviões e peças de Santos- Ao visitar o museu em 1983, Brand Dumont e de outros pioneiros, um painel expunha recebeu das mãos da diretora uma con- as aventuras da aviadora decoração da FSD e um modelo em 46 Ada Rogato madeira de ônibus espacial igual ao que Revista de fevereiro de 1984, o convite ele já comandara. Retribuindo as ama- fora feito por via diplomática através da bilidades, ele deteve-se diante da vitrine embaixada dos EUA em Brasília “e eu que exibia recortes da imprensa sobre só o recebi em tempo muito curto”. as façanhas de sua anfitriã pelos céus Podia ser verdade, ou também uma das Américas. justificativa para evitar seu verdadeiro No ano seguinte, ao ser escolhido problema na época, que confessara a para comandar o mais importante pro- Neide Bibiano: vinha sofrendo de dis- jeto dos ônibus até então – um voo do túrbios hormonais, com sangramentos “Challenger” com cinco homens a bor- pós-menopausa, e pediu que Neide a do –, Vance convidou Ada para assistir levasse até São Caetano, “porque lá tem à largada da nave em Cabo Canaveral – um homem que faz uns chás que a gen- região na costa da Flórida, EUA, onde te toma e fica bem”. Rebelava-se contra está o Centro Espacial John Kennedy –, métodos tradicionais de tratamento e de onde são lançados veículos espaciais. não quis procurar um médico. Ela sentiu-se “muito honrada” com o Sua aparência ia mudando: antes convite, mas, como alegou à Aviação em descrita pelos amigos como “magrinha, pequenininha, mas de uma vitalidade impressionante e bem humorada”, ela agora parecia estar definhando. Por ou- tro lado, já com 75 anos, Ada mantinha em seu apartamento em Higienópolis um enxoval escondido numa cômoda e, na cozinha, um fogão de aço inox, uma máquina de lavar e uma geladeira na embalagem original. Confidenciou à amiga que eram para quando se casasse com um brigadeiro, de quem gostava há tempos – sem revelar seu nome. No museu, ela recebeu a visita de outro astronauta que se tornou seu ad- mirador. Logo ao chegar, Francis Ri- chard (“Dick”) Scobee disse que queria conhecer Ada e, ao fim de uma longa e descontraída conversa, propôs levá- la até Cabo Canaveral, “para que você Visitantes do museu, até astronautas - como Vance Brand (na foto) - elogiavam a ousadia de possa ver de perto tudo que acontece Ada; ele a convidou para ir a Cabo Canaveral lá”. “Mas o que eu quero mesmo é ir até assistir de perto à largada da nave “Challenger” a Lua”, respondeu ela, rindo. que ele comandaria em 1984 Um Passáro Solitário 47 Outro homem do espaço com quem fizera em São Paulo: o de vir descansar trocou gentilezas foi F. Story Musgrave, uma semana com amigos – Ada entre eles que, antes de ser o astronauta que já ha- – numa ilha paradisíaca do litoral paulista via por duas vezes comandado o ônibus que o engenheiro Lee recebera em con- espacial “Challenger”, fora paraquedis- cessão para fins científicos. Esta ilha, além ta, piloto de jato e acumulara diplomas de sua ampla e confortável sede, de sua de matemática e estatística, adminis- flora e fauna enriquecidas com inúmeras tração de empresas especializado em espécies, era palco de experimentos sobre computação e de química, além de ter cuidados ambientais que só no século 21 mestrado em fisiologia e bioquímica. começariam a ser praticados. Ele também fez questão de conhecer Mas o comandante não pôde pagar o Cessna-140 e o mapa das viagens da sua promessa: apenas 73 segundos após aviadora, que o condecorou. Antes de seu lançamento e quando alcançava 14 receber a medalha, ele prometeu devol- km do chão, o “Challenger” explodiu vê-la a Ada depois de levá-la consigo no ar, matando todos os ocupantes para em seu próximo voo espacial. desespero de seus familiares, do pessoal Tão preparado quanto Musgrave era da NASA e de milhares que tudo acom- “Dick” Scobee: formado em engenha- panhavam nas imediações do centro ria com bacharelado em ciências, além espacial. Logo em seguida, outras de- de hobbies como pintura, marcenaria zenas de milhões de telespectadores do e motociclismo, aos 46 anos foi ele o mundo todo souberam do ocorrido. escolhido pela NASA para comandar Dentre esses milhões, estava Ada, que uma difícil missão na décima viagem a tudo acompanhava de uma cama do do “Challenger”. Marcado para janeiro Hospital do Servidor Público Estadual, de 1986, a finalidade deste lançamento em São Paulo, onde fora operada. era mostrar ao mundo que não era im- possível uma pessoa comum viajar num Dias depois, Ada voltou para casa e, ônibus espacial. Para tanto, a NASA assim que recuperou as forças, foi para escolheu a dedo seus seis companhei- o trabalho. Não aceitou acompanhante, ros de voo como representantes da preferindo continuar sozinha no apar- diversidade da população americana – tamento. Mas o câncer já se espalhara entre eles uma professora, que poderia e seu retorno ao museu durou pouco transmitir em órbita suas experiências tempo. Ciente da gravidade do caso, a numa espécie de aula que motivasse os amiga Neide – uma entre os poucos jovens; um engenheiro de origem asi- visitantes que Ada aceitava receber –, ática, um físico afro-americano, outra quis avisar os parentes mais próximos. mulher especialista em carga... Conseguiu falar com a prima Ânge- Após Scobee retornar à Terra, ele ha- la e com a doutora Flávia, que veio de via prometido a Fernando Lee aceitar o Maceió para vê-la no hospital. Só na se- convite que o ex-presidente da FSD lhe gunda visita da meia-irmã é que as duas 48 Ada Rogato Ada Rogato - uma personagem marcante da História da Aeronáutica Brasileira puderam conversar. Flávia então perguntou se Ada havia recebido as cartas que durante anos seguidos ela lhe havia mandado sem obter reposta; ela respondeu que sim “e, nesse dia, ela me pediu perdão pelo seu modo de agir”, lembra Flávia, que permaneceu em São Paulo até a morte de Ada. Seu último suspiro foi no mesmo hospital, nos braços da prima Ângela, em 15 de novembro de 1986. Por ser um feriado eleitoral, as providências para o velório da aviadora só puderam ser tomadas no dia seguinte pelo Dr. Trigueirinho, seu amigo no Instituto Genealógico Brasileiro. Foi no Museu da Aeronáutica, ao lado do seu tão querido “Brasil”, que Ada foi velada por amigos e autoridades sob as luzes de flashes e câmeras de televisão. A pedido do jornalista e deputado federal Israel Dias Novaes, o prefeito Jânio Quadros mandou cinco carros oficiais para acompanhar o enterro. O cortejo partiu do Museu da Aeronáutica na tarde do dia 17 em direção ao Cemitério do Morumbi, tendo à frente o carro de bombeiros, enviado pelo gover- nador Franco Montoro, que conduzia o féretro. A caminho do cemitério, a comitiva era acompanhada no ar pelos EMBRAER T-27 Tucano da Esquadrilha da Fumaça, que faziam passagens baixas sobre os carros, despertando a curiosidade dos que passavam próximo ao cortejo, que finalmente che- gou ao gramado sem fim do lugar que Ada escolhera para repousar ao lado da mãe. Um Passáro Solitário 49 Passava das três da tarde quando o corpo da pioneira baixou à sepultura e um pequeno avião aproximou-se voando baixo, lançando pétalas de rosa sobre o cai- xão. “Adeus, Pássaro Solitário”, escreveram então nos céus os aviões da esquadri- lha, enquanto o “teco-teco” ia se afastando aos poucos, até desaparecer.

“Professora de Psicologia e jornalista, Lucita Briza foi redatora/edito- ra no Grupo O Estado de SP (Jornal da Tarde e Agência Estado) e na Editora Abril. É pós-graduada lato sensu pelo Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.”

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