Doi: 10.5212/Emancipacao.v.12i2.0010 Vitórias e derrotas de um futebol mestiço: algumas refl exões sobre a questão racial no Brasil

Victories and defeats of a mestizo soccer: some refl ections on the racial issue in Brazil

Miguel Archanjo Freitas Junior* Luiz Carlos Ribeiro**

Resumo: O objetivo do presente estudo foi mostrar o papel atribuído e exercido pelo futebol nacional, no contraditório processo de inserção da sociedade brasileira na modernidade dos anos de 1950. Constatou-se que os agentes esportivos participaram do movimento intelectual e ideológico da construção de imaginários sobre o Brasil moderno. Estas construções dialogavam com as imagens presentes no debate do caráter nacional que circulou na inteligência brasileira. Destaca- -se o esforço reiterado e muitas vezes contraditório de um grupo de cronistas esportivos, que buscava criar as condições necessárias para que o negro/mestiço fosse aceito como símbolo da identidade nacional. Palavras-Chave: Futebol. Racismo. Modernidade. Abstract: The aim of this study was to demonstrate the role assigned to and performed by soccer in Brazil in the context of the contradictory process of inclusion of the Brazilian society in the modernity of the 1950s. It was found that sports agents participated in the movement of intellectual and ideological construction of the imaginary about modern Brazil. These constructions were in dialog with the images found on the debate regarding the national character that took place among the Brazilian intelligentsia. Noteworthy is the repeated and often contradictory effort of a group of sports columnists, who sought to create the necessary conditions so that black/mestizo individuals were accepted as symbols of national identity. Keywords: Soccer. Racism. Modernity.

Recebido em: 19/01/2011. Aceito em: 20/03/2012.

∗ Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Departamento de Educação Física e do Mestrado de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: mfreitasjr72@ ibest.com.br ∗∗ Pós-Doutor em História pela École de Hautes Études em Sciences Sociales Paris, França (EHESS). Professor Adjunto na Universi- dade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]

Emancipação, Ponta Grossa, 12(2): 297-309, 2012. Disponível em 297 Miguel Archanjo FREITAS JUNIOR; Luiz Carlos RIBEIRO

O desenvolvimento humano tem como funda- Esta foi uma difi culdade sentida durante mento a remoção dos obstáculos que restrin- o desenvolvimento da nossa tese de doutora- gem as escolhas dos indivíduos – obstáculos mento, que entre outros assuntos, abordava a socioeconômicos, como pobreza e analfabe- relação entre o futebol e alguns acontecimentos tismo, ou institucionais, como censura e re- políticos que interferiram na tentativa de mo- pressão política. O Brasil convive, há séculos, dernização da sociedade brasileira na década com uma barreira que trava o desenvolvimen- to humano de parte signifi cativa de sua po- de 1950. Percebeu-se que um tema recorrente, pulação: o racismo, que se apresenta como principalmente nos momentos de crise esportiva, um obstáculo de caráter tanto institucional foi a desconfi ança apresentada por uma parcela (por meio de políticas que ignoram a popula- da elite brasileira que se sentia insegura em ser ção negra e indígena) quanto socioeconômico representada por jogadores negros e mestiços. (por meio da desigualdade social que segrega Se por um lado os documentos consulta- parte da população nas áreas mais pobres do dos (jornais, livros, revistas, boletins de ocorrên- país). ONU – Relatório de desenvolvimento cia da policia carioca) não nos possibilitou afi rmar humano (BRASIL, 2005). a presença de preconceitos raciais explícitos no Abordar questões raciais no Brasil é uma futebol e na sociedade brasileira, por outro lado, atitude que necessita de bastante sutileza, pois as crônicas publicadas no Jornal dos Sports 2 quem procura analisar este tema normalmente revelavam o drama vivido pelos literatos, que depara-se com o mito da democracia racial, por acreditavam na possibilidade do negro se tornar meio do qual o brasileiro não aceita ser chama- o símbolo identitário brasileiro. Contudo, ao se do de racista, preferindo acreditar que escapou depararem com o cotidiano estes cronistas en- deste ideal discriminatório e que vive em um contravam indivíduos que não eram socialmente pais liberal, onde as pessoas são valorizadas rejeitados, mas que também não estavam incor- pelo seu esforço e dedicação, independente da porados na sociedade. cor da sua pele. Importante destacar que trabalhar com as Se este tipo de vergonha é decorrente de crônicas esportivas daquele momento, é utili- um recalque do nosso passado escravocrata, se zar uma das principais fontes documentais da fez parte de uma estratégia de manutenção do incipiente indústria cultural brasileira, que tinha poder por parte das elites locais, ou ainda, se é neste veículo um objeto de grande aceitação um discurso que busca ser socialmente correto é e abrangência, capaz inclusive de infl uenciar algo que precisa ser discutido com maior profun- na criação do imaginário coletivo.3 Além disso, didade. No entanto, o que se destaca é que uma esta é uma fonte privilegiada para quem deseja simples observação histórica da realidade social compreender os meandros de uma determinada brasileira revelará a situação em que viveram/ conjuntura histórica, mas é fundamental perce- vivem grande parte da população afro-descente ber que este tipo de documentação deve servir no Brasil. 1 Mas enquanto isto não acontece, este como um fi ltro para que se consiga perceber tema continua sendo alvo de polemicas que são como o discurso de uma parte da intelectualidade sustentadas por mitos, meias-palavras e precon- infl uenciou o imaginário coletivo em uma dada ceitos que acabam distorcendo e muitas vezes conjuntura histórica. superfi cializando o debate, o qual sente falta de parâmetros legais que permitam defi nir o que é ser negro no Brasil. 2 É um dos primeiros jornais do Brasil a tratar especifi camente de assuntos esportivos. Foi criado no Rio de Janeiro com o nome de Rio Sportivo. Por volta de 1930, ocorre uma fusão ente o primeiro proprietário e o dono das ofi cinas onde eram impressos os jor- nais. Neste momento surge o Jornal dos Sports. Em 1936 Mário Filho e Roberto Marinho, tornaram-se proprietários deste Jornal, 1 Dados do Censo de 2000 revelam que o Brasil possui 169,8 mudando a sua estrtura administrativa, sua estética e forma de milhões de habitantes, dentre os quais 76,4 milhões são pessoas abordar os assuntos esportivos. Cf. Jornal dos Sports (15 jun. negras (pardos e pretos), o que corresponde a 45% da população 2006). do país. No mesmo sentido, dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Economia Aplicada) demonstraram que em 1999 os negros re- 3 Dentro do âmbito esportivo pode-se exemplifi car a força da re- presentavam 64% da população pobre e 69% dos indigentes no presentação da crônica por meio de Mario Filho e o mito criado Brasil. Sobre esta questão vale a pena cf. Toledo (2005). em torno da derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1950.

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Por isso, optou-se neste estudo em perce- O pensamento de Gilberto Freyre: ber a forma, as estratégias utilizadas e os pro- apontamentos para a valorização do negro cessos tensivos presentes nestes documentos, brasileiro que serviram como um meio para os literatos Tamanha foi a relevância do pensamento expressarem o seu desejo de representar o deste intelectual, que ele acabou sendo fator Brasil enquanto uma sociedade moderna e de- preponderante para que o Brasil fosse escolhido mocrática. A leitura dos documentos partiu de pela UNESCO (Organização das Nações Unidas dois cuidados básicos; 1) sair das prisões inter- para a Educação, Ciência e Cultura) como uma pretativas dos contextos econômicos ou políticos espécie de laboratório para o desenvolvimento que tudo explicam/simplifi cam; 2) afi nar a sen- de um projeto que objetivava analisar questões sibilidade para uma lógica específi ca presente inter-raciais, principalmente como uma forma de nas representações sobre o futebol, tema que é tentar encontrar respostas à crise social gerada marcado pela contradição e pela ambiguidade, a partir do holocausto (CHOR, 1997). Este fato e que desta maneira torna-se irredutível à lógica é bastante signifi cativo, pois ele acontece num racional. A partir destes pressupostos buscou-se contexto em que a sociedade brasileira era vista sustentação na teoria dos Campos de Pierre no exterior como um exemplo de “Democracia Bourdieu (2001), que nos permitiu compreender Racial”. Mesmo não tendo utilizado explicitamen- as estratégias utilizadas pelos cronistas para ten- te esta terminologia em seus escritos, Gilberto tar legitimar-se no seu campo, ao mesmo tempo Freyre foi um dos autores que mais infl uenciou em que buscavam seduzir os seus leitores, seja na criação desta imagem positiva sobre o Brasil. 4 através da utilização de uma linguagem simples Os escritos de Gilberto Freyre, não infl uen- e romântica, da repetição do seu pensamento, do ciaram somente o pensamento de entidades po- silenciamento e da criação de mitos. Estes fatos líticas internacionais. Muitas das interpretações foram percebidos a medida que se realizou uma realizadas sobre a sociedade brasileira reprodu- leitura sistemática dos jornais do período esco- zem consciente ou inconscientemente parte dos lhido, atitude que é identifi ca por Bardin (1977, argumentos sistematizados e apresentados por p.31) como leitura fl utuante e que serve para o esse autor, servindo como fomento para o ines- pesquisador identifi car os posicionamentos dos gotável debate sobre as teorias raciais no Brasil. 5 agentes sobre um determinado assunto, neste Freyre (1938) defendeu a tese de que o momento também foram desconsideradas todas problema do país estava relacionado às dispa- as crônicas que não tratavam da questão racial. ridades sociais e culturais, mas não com a cor Inicialmente optou-se em recuperar o pen- da pele da sua população. Na sua concepção, samento de Gilberto Freyre, tendo em vista o a singularidade brasileira se apresentava na pensamento deste intelectual infl uenciou direta- mente os posicionamentos de diversas gerações, que passaram a perceber as relações raciais no 4 Cf. Freyre (1933). Vale a pena ressaltar a importância que Brasil sob uma nova perspectiva. Fato que fi ca Rüdiger Bilden teve no desenvolvimento intelectual de Gilberto explícito na maior parte das crônicas presentes Freyre, inclusive foi Bilden que estudou o Brasil e o chamou de no Jornal dos Sports, principalmente aquelas Laboratório da Civilização, em um artigo que ele publicou para a Revista de Nation em 1929. Sobre este autor e a biografi a que foram escritas pelos irmãos Nelson e Mario intelectual de Freyre, vale a pena conferir Burke (2005). Filho, para os quais o jogador negro brasileiro 5 Além das fontes selecionadas para este estudo, as quais apon- apresentava todas as virtudes necessárias para tam infl uências diretas do pensamento de Gilberto Freyre sobre se tornar símbolo da identidade nacional. os literatos, pode-se destacar algumas análises contemporâneas Entretanto, mesmo dentro deste periódico que corroboram com este posicionamento. CAPRARO, André Mendes. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em tal posicionamento não era unânime, pois litera- História da Universidade Federal do Paraná. 2007. ANTUNES, tos oriundos de uma classe social privilegiada, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. Com o brasileiro não há como era o caso de João Lyra Filho, apresen- quem possa! Futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mario Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: UNESP, 2004. tavam um discurso que ia à contramão do que Antunes SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de desejavam os irmãos Rodrigues, o que em certa futebol: o Brasil moderno de Mario Filho. Belo Horizonte: UFMG, 2006.HOLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Modernismo, medida demonstra que este era um tema polê- regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego. Rio mico mesmo na literatura esportiva da época. de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2004.

Emancipação, Ponta Grossa, 12(2): 297-309, 2012. Disponível em 299 Miguel Archanjo FREITAS JUNIOR; Luiz Carlos RIBEIRO convivência harmoniosa entre as diferentes pes- sileira se amparava na música, um elemento já soas. Algo expresso por meio da miscigenação consolidado como critério de brasilidade. que, para ele, era um dos principais símbolos da É importante destacar que esse autor não identidade brasileira. coloca tais elementos, aparentemente contradi- Diferentemente de grande parte da inte- tórios, como categorias excludentes, uma vez lectualidade local, que tinha vergonha da cor que, para ele, a diferença da sociedade brasi- e da raça que compunham o povo brasileiro, leira está na maleabilidade, na adequação das Gilberto Freyre, transformou as características diferentes situações, de maneira que se tornou negativas atribuídas para os negros/mestiços possível uma convivência harmoniosa. Tal re- em elementos positivos, que simbolizavam a fl exão colaborou para a criação de um mito, em identidade do homem brasileiro. Utilizando-se que as tensões foram substituídas por relações de um discurso romântico, destacou as virtudes pacífi cas, levando a uma visão idílica da reali- resultantes das relações estabelecidas entre dade, através da qual foi possível acreditar que raças diferentes, as quais se tornavam mais não havia racismo no Brasil, mesmo que Freyre efusivas na prática do futebol: jamais tenha afi rmado isso. O escritor de “Casa Grande & Senzala” Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos foi um intelectual perspicaz, capaz de atribuir despistamentos, os nossos fl oreios com a bo- la, tem alguma coisa de dança ou capoeiragem grande carga simbólica aos acontecimentos que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, praticamente insignifi cantes para a sociedade que arredonda e adoça o jogo inventado pe- da época (início do século XX). O futebol pode los ingleses e por outros europeus jogado tão ser visto como um exemplo dessa situação, pois, angulosamente, tudo isso parece exprimir de ao tratar desse objeto, ele destacava a atuação modo interessantíssimo para psicólogos e dos jogadores, colocando em segundo plano o os sociólogos o mulatismo fl amboyant e ao resultado das partidas. A estratégia lhe possi- mesmo tempo malandro que está hoje em bilitou criar um imaginário em torno de um jogo tudo que é afi rmação verdadeira do Brasil. bonito e artístico, que se tornou a identidade do (FREYRE, 1938, s/p.) futebol brasileiro, visto como uma adaptação do De acordo com Freyre qualquer objeto que jogo europeu que era apresentado como sendo fosse importado (pode-se incluir o futebol) seria feio e mecânico: adaptado no Brasil, pela nossa cultura híbrida, De maneira inconfundível formou-se um estilo o que deveria ser considerado a essência da brasileiro de futebol; e esse estilo é uma nova nossa identidade. O valor da cultura brasileira, expressão da nossa mulatice, perito em assi- para esse autor, está na relação estabelecida milação, domínio e abrandamento coreógrafo com os antagonismos sociais – como razão e sinuoso e musical das técnicas européias e irracionalidade, primitivo e civilizado, escravo e norte-americanas, que são muito angulosas senhor, brancos e negros –, pois é a partir dessa para o nosso gosto – trata-se de técnicas de convivência tensa, porém harmoniosa, que se jogo ou de arquitetura. Pois nosso tipo de mu- criou a riqueza da nossa cultura, a qual foi sin- latice [...] é inimigo do formalismo apolíneo, é o dionisíaco na sua mobilidade. [...] No fu- tetizada e expressa por este intelectual através tebol, como na política , a mulatice brasileira da fi gura do mulato. caracteriza-se pelo prazer da elasticidade, da As suas crônicas mostram que, ante a surpresa, da retórica, que lembra passos de rigidez corporal do europeu, o negro brasileiro dança e fi ntas de capoeira. (FREYRE, 1945. havia introduzido o meneio dos corpos. Este, p.421-222) por sua vez, não seria uma criação do futebol. A agilidade física descendia diretamente das mani- A sua estratégia de valorizar as qualidades festações da música popular e do folclore; sejam do jogador e/ou do país, independente do resul- os requebros de quadril originários do carnaval, tado da partida, foi reutilizada na década de 1950 os passos sinuosos advindos do samba e a gin- por cronistas como Nelson Rodrigues e Mario ga de esquiva proveniente da capoeira. Nesse Filho. Uma leitura mais cuidadosa das crônicas sentido, a legitimidade do futebol na cultura bra- do Jornal dos Sports, durante a década de 50, revela a infl uência do pensamento de Gilberto

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Freyre, principalmente na forma reiterada, pela no mínimo estranho um assunto polêmico como qual os autores representavam a identidade este não merecer uma única coluna. brasileira, a partir da miscigenação; da valori- De acordo com as representações estabe- zação de qualidades vistas como naturais nos lecidas pelos cronistas do periódico carioca, o jogadores, tais como o improviso, a ginga e a atleta negro brasileiro precisava vencer a Copa malícia; e da diferenciação do futebol brasileiro do Mundo para se afi rmar defi nitivamente na enquanto arte e o futebol europeu baseado na sociedade. No mesmo sentido, eles acredita- força. É o que demonstra Nelson Rodrigues ao vam que o Brasil precisava conquistar o título tratar do assunto: mundial para ser reconhecido pelas nações mais desenvolvidas. Como nas duas primeiras Copas E há também um recurso, que trazemos no realizadas na década de 50, isso não foi possí- bolso, e que parece de primeiríssima ordem. Refi ro-me a inimitável molecagem carioca vel, o sonho foi adiado, embora não esquecido, [...] a molecagem é uma das nossas ma- sendo constantemente atualizado por meio da nifestações vitais mais esplêndidas e fi de- criação de mitos que, normalmente, envolviam a dignas. Insisto: boas maneiras num patrício questão racial em torno do selecionado brasilei- meu, soam-me como falsifi cação de cari- ro. Principalmente, em seus momentos de crise, catura. (RODRIGUES, 17 jun.1958) que normalmente eram decorrentes de derrotas acontecidas em jogos decisivos. Se para os cronistas esportivos, que Tamanha foi a receptividade junto à so- embebidos em Freyre mostravam o futebol ciedade brasileira do discurso produzido pelos fl amboyant como resultado da síntese cultural cronistas, que este acabou entrando para o ima- entre as diferentes raças, não podemos ignorar ginário coletivo como uma das principais formas o fato de que havia por parte da elite dirigente do de representar o país. A título de exemplifi cação, país uma preocupação em torno da forma com pode-se destacar a derrota do selecionado brasi- que o Brasil seria representado, principalmente leiro para o uruguaio, na fi nal da Copa do Mundo porque grande parte dos jogadores locais apre- de 1950, realizada no Brasil. Com base nisso, sentavam vários problemas de saúde, baixo nível criou-se um mito de inferioridade, assumido pelo cultural e uma estética que não correspondia com brasileiro ao enfrentar equipes estrangeiras. Para o padrão elitista idealizado, que tinha no europeu autores como Nelson Rodrigues (1993, p.51), o seu tipo ideal. isso poderia ser expandido para todos os outros setores da vida social brasileira. Mario Filho e Nelson Rodrigues X Joao Lyra A força dessa representação pode ser Filho: tensões raciais em campo visualizada por meio das crônicas futuras, es- critas por diferentes autores, que, de forma Ao observarmos o Jornal dos Sports du- sistemática, retornavam ao fato para justifi car rante todo o segundo semestre de 1950, não e prevenir quanto às atitudes a serem tomadas localizamos nenhuma crônica que fornecesse pelos brasileiros. Serviam como uma espécie qualquer indício de acusações raciais para os de alerta sobre os problemas sociais, culturais 6 jogadores do selecionado nacional . Diferente e psicológicos que acompanhavam o povo do que relatou Mario Filho na segunda edição brasileiro e que, supostamente, impediam o do seu livro “O Negro no Futebol Brasileiro” ao país de superar os obstáculos que o levariam a mostrar que após a fi nal da Copa do Mundo de modernidade. 1950 os atletas negros foram considerados cul- Mario Filho era um escritor astuto, que pados. Sendo o jornal um dos principais veículos tinha grande capacidade de perceber e sintetizar de comunicação de massa daquele contexto, é o que acontecia a sua volta. A partir disso, ele buscava convencer/seduzir o leitor com base na sua produção imagética, que já havia sido 6 Este recorte temporal deve-se ao fato de que foi o momento demonstrada ao longo de sua vida jornalística posterior em que o Brasil perdeu a Copa do Mundo, o qual fi cou e, também, na produção dos seus livros. Nesse marcado por acusações aos jogadores negros do selecionado e que posteriormente daria sustentabilidade ao mito racial em torno sentido, é possível encontrar indícios que apon- de jogadores do selecionado brasileiro. tam para a forma passional com que o autor

Emancipação, Ponta Grossa, 12(2): 297-309, 2012. Disponível em 301 Miguel Archanjo FREITAS JUNIOR; Luiz Carlos RIBEIRO retratou os acontecimentos esportivos, criando gros, não os acusa. (MORAES NETO, 2000, mitos e influenciando o imaginário coletivo. p.49-50) (SOARES, 1998) Barbosa também estava convencido de Como podemos observar nas seguintes que Mario Filho, apenas apresentou o que ou- passagens: tras pessoas haviam dito e somente procurou ... Uns acusavam Flávio Costa. Mas quase defender os jogadores negros. Mario Filho criou todos se viravam era contra os pretos do es- um enredo romântico em torno da presença do crete. negro no futebol, denunciando a presença do - O culpado foi Bigode! racismo na sociedade brasileira. No limite é pos- - O culpado foi Barbosa! (RODRIGUES sível afi rmar que Mario Filho acusou os negros FILHO, 1964, p.269) para depois salvá-los, pois dentro do seu estilo Em outro momento o autor acrescenta de escrita romântico, quanto maiores fossem as que os brasileiros acusavam os próprios brasi- provações vividas pelo indivíduo mais valor teria leiros, dizendo: a sua conquista. Entretanto, uma parcela signifi cativa da - A verdade é que somos uma sub-raça. elite brasileira não comungava deste ideal de Uma raça de mestiços. Uma raça inferior. Na heroísmo do brasileiro negro. Fato este que fi ca hora de agüentar o pior a gente se borrava explícito em 1954, após o Brasil perder para a todo. Como Barbosa quando estreara no es- seleção húngara, no jogo que fi cou conhecido crete brasileiro. como “A Batalha de Berna”. - Enquanto dependermos do negro vai ser Mesmo sendo um dos cronistas do Jornal assim... dos Sports, João Lyra Filho era um membro da Era o que dava, segundo os racistas que elite local, militante do esporte (presidente do apareciam aos montes, botar mais mulatos e Conselho Nacional dos Desportos - CND), a pretos do que brancos num escrete brasilei- ro. Mas ao mesmo tempo que se observava ponto de viajar para a Copa do Mundo de 1954 esse recrudescimento de racismo, o brasilei- na função de chefe da delegação. Após esse ro escolhia um ídolo às avessas. Obdúlio mundial, Lyra Filho escreveu para a CBD um Varela, mulato uruguaio, de cabelo ruim. relatório sobre os principais motivos que teriam (RODRIGUES FILHO,1964, p.290) levado o selecionado nacional a apresentar um novo resultado negativo. Alguns meses depois, Além de não indicar quem teria feito tais esse relatório foi transformado em livro, sob o acusações, as frases deste autor são compostas título C opa do Mundo de 1954 . A observação das de grande carga simbólica, em especial pelo justifi cativas atribuídas por esse literato indica cenário antecipadamente construído, para, em que o problema do futebol brasileiro não estava seguida, apresentar frases genericamente atri- na questão técnica e nem tática, mas na cultura buídas a torcedores e cidadãos brasileiros. do povo deste país: A força das palavras de Mario Filho pode ser percebida na fala do próprio goleiro da se- O sistema nervoso que trabalhou aqueles mo- leção de 1950, um dos protagonistas do mito mentos inaugurais do jogo, denunciado no es- construído pelo cronista, em torno da infl uência tado de ânimo dos nossos rapazes, não é pri- dos negros na fatídica derrota sofrida na partida vativo dos jogadores brasileiros de futebol, é fi nal da Copa do Mundo. Ao comentar sobre comum à maior parte do povo brasileiro... não se culpe a preparação psicológica dos brasi- o acontecimento, o ex-goleiro do selecionado leiros, mesmo à sombra do Hino ou da Ban- nacional relata que: deira, por um mal que tem raízes na formação Disseram que o Obdúlio Varela tinha dado e perdura no estado orgânico e funcional do um tapa em Bigode. É conversa, é mentira, nosso povo. Só o poder de evasão do espíri- é invenção. Uma vez me disseram que quem to, quando densamente cultivado, é capaz de inventou foi o Mário Filho. Aliás, contestei, o atenuar os efeitos dos males crônicos. (LYRA que Mário Filho escreveu: que trememos por- FILHO, 1954, p. 55) que éramos pretos. Mário Filho apenas cons- tata que a culpa foi jogada nos jogadores ne-

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Esta passagem faz referência ao jogo tação de jogadores que não soubessem ler nem Brasil X Hungria, no qual o selecionado nacional escrever. (LYRA FILHO, 1954, p.66-68). levou dois gols nos primeiros quinze minutos De acordo com esse dirigente, o grau de de jogo, o que serviu de estímulo para o literato autocontrole dos jogadores estava relacionado apresentar um sentimento de inferioridade que à atmosfera em que estes foram criados, ao fazia parte do repertório discursivo dos cronistas processo educacional que os envolveu, aos brasileiros. Haja visto que Mario Filho já havia problemas de saúde pelos quais passaram e expressado este sentimento através do Com- às dificuldades econômicas que afetavam o plexo de ser brasileiro , conceito que ganhou desenvolvimento da vida de grande parte da maior notoriedade quando Nelson Rodrigues população do país. João Lyra Filho apresentou atribuiu uma nova imagem, identifi cando esse a visão de um membro da elite intelectual brasilei- comportamento como Complexo de Vira-latas. ra que, mesmo envolvido com o gerenciamen- O ponto em comum entre esses intelectuais é to do futebol, não expressou uma visão român- o sentimento derrotista relativo ao caráter do tica dos acontecimentos. Não que isto torne o homem brasileiro, principalmente quando estava seu discurso mais verdadeiro, ou menos sujeito diante do estrangeiro. a distorções, as suas palavras demonstram os Para Lyra Filho (1954, p.67-68), tal situa- valores presentes junto a elite intelectual e social ção não era decorrente de problemas psicológi- brasileira. cos como em algumas ocasiões sugeriram os A questão central parece ter sido a difi cul- irmãos Rodrigues. Subliminarmente, o autor dade de integrar à sociedade pessoas negras e, demonstra que a dificuldade era decorrente também, as de origem humilde, o que era visto da formação mestiça do Brasil e só seriam re- pela elite dirigente como ameaça de retrocesso, solvidos “quando o Brasil amadurecer, adensar revelando uma grande distância entre a produ- o conteúdo social dos seus redutos econômicos ção literária esportiva e a produção intelectual mais fecundos e, em consequência, ainda mais da elite brasileira. Cabe salientar que no sele- valorizar a cultura do seu povo”. cionado brasileiro de 1950 e 1954, nenhum dos O próprio autor apresenta o seu entendi- jogadores apresentava o estereótipo idealizado mento de cultura como sendo “a aquisição indi- para o homem brasileiro, ou seja, não possuímos vidual de conhecimento armazenado para uso jogadores caucasianos como desejávamos e próprio, a cultura é sociologicamente a incorpora- isto nos incomodava, pois não éramos bonitos ção à comunidade com acréscimos contínuos, de e nem vencedores. bens econômicos e morais que valorizam a vida de todos os seus componentes”. (LYRA FILHO, Plano Paulo Machado de Carvalho: se não 1954, p. 103). Ele destaca a necessidade de podemos ser brancos bonitos, vamos pelo uma melhor formação intelectual aos jogadores menos civilizar nossos mestiços de futebol, pois, na sua concepção, a grande maioria dos atletas era praticamente analfabeta. Após observar os vários fatores que in- Situação justifi cada a partir da apresen- fl uenciaram negativamente os jogadores e a tação de uma série de bilhetes supostamente imagem do Brasil nas Copas do Mundo de 1950 e escritos pelos jogadores do selecionado, que 1954, um grupo de jornalistas e dirigentes espor- participaram da Copa do Mundo de 1954, os tivos, escolhidos pela Confederação Brasileira quais Lyra Filho apresenta no seu livro como de Desportos (CBD), recebeu a incumbência exemplos da falta de formação educacional e de criar um Projeto Modernizador para o sele- cultura dos representantes brasileiros: 1) Quero cionado nacional, que representaria o país na deijar neste livro o meu agradesimento em ser Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Em última chefi ado sobe vosso comando; 2) Deijo aqui meu instância, pode-se dizer que as elites locais es- abrasso ; 3) Agradecendo as oras, menutos e os tavam envergonhadas por serem representadas cegundos. Na visão desse intelectual, a prática pelos negros/mulatos, incultos, desdentados e esportiva exigia um mínimo de educação formal, com grandes difi culdades de autocontrole em o que fi ca evidenciado em suas ações enquanto situações de adversidade. presidente do CND, quando propôs a não contra-

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Não se trata de um projeto voltado para a no branco para jogar no frio, embora a épo- conscientização dos jogadores, mas uma tenta- ca do campeonato do mundo caísse no verão tiva de educá-los, por meio de um planejamento sueco. A prova do não-racismo está na con- de cunho pedagógico, que buscou modifi car a vocação dos mulatos e pretos que acabaram aparência física, os hábitos culturais e o compor- jogando e contribuindo, decisivamente, para a vitória brasileira.[...] A preocupação em em- tamento dos jogadores brasileiros, de maneira branquecer o escrete chegou a tal ponto que que eles conseguissem representar a imagem de na estréia contra a Áustria o único preto foi um país moderno, que havia superado o atraso Didi. Era uma posição, a de Didi, em que não sociocultural – normalmente atribuído a mitos havia escolha. O reserva era outro preto: Mo- como a mistura de raças e a falta de autocontrole acir.Onde se podia escolher entre um branco do homem brasileiro. e um preto fi cava-se inicialmente com o bran- Neste momento o esporte brasileiro acom- co. (RODRIGUES FILHO, 1964, p.322-323) panha uma cultura política baseada no desenvol- Essas palavras de Mario Filho foram es- vimentismo proposto por JK, que infl uenciava e critas após a vitória do selecionado brasileiro na contagiava positivamente os diferentes segmen- Copa do Mundo da Suécia. Logo, trata-se de um tos da sociedade brasileira. A ideia de desenvol- olhar retrospectivo, no qual o autor aponta uma vimento econômico, embora mais ampla, estava questão de preferência e maior confi ança nos associada à ideia de riqueza nacional construída jogadores brancos. Se observada a seleção que pela industrialização: nação desenvolvida era, iniciou a Copa, é difícil não ser infl uenciado pelo necessariamente, nação industrializada. Para discurso romântico do cronista. Algo retratado que isso ocorresse, se fazia necessário criar inclusive na biografi a de um dos jogadores que um homem maior que a natureza, livre de suas participou daquela Copa do Mundo. Segundo determinações. Se a natureza tem lógica própria, Nilton Santos (2000, p. 74): vencê-la implica impor a lógica do homem, aque- la que lhe permite, pelo trabalho, pela técnica e Nunca a ciência pesquisara tão fundo para pela previsão, acumular transpondo a condição descobrir o porquê do time brasileiro ter bons de pobreza que a natureza supõe. (GOMES, jogadores, mas não conseguir se superar em 2002, p.17-22). campo, não conquistar nenhum título mundial. O planejamento da CBD caminha nessa Será que os nossos atletas eram covardes? mesma linha, buscando fazer com que os jo- Relatórios médicos foram feitos, sigilosamen- te, para a CBD. Chegaram a conclusão de que gadores suplantassem aquilo que os dirigentes o problema do brasileiro estava na alma dos consideravam um comportamento natural. Por jogadores, que eram muito nostálgicos, sen- isso, “O relatório de Havelange não deixava dú- tiam muita falta de casa, da comida, principal- vidas – Quem não se ajustasse ao programa que mente os negros, que eram emocionalmente fi zemos com a ajuda de médicos e psicólogos mais instáveis. Portanto, o time na estréia da seria cortado da seleção. Só iria para a Copa da Copa deveria ser o mais branco possível. Suécia quem estivesse mentalmente preparado”. (RODRIGUES, 2007, p.63) Não é possível confi rmar a existência do Mario Filho descreveu estes acontecimen- relatório citado por Nilton Santos, da mesma tos da seguinte forma: forma que não é possível afi rmar que a equipe brasileira, que estreou na Copa do Mundo, foi [...] A CBD queria levar o menor número de determinada a partir de questões raciais. De pretos para a Suécia. Não esquecera 56, o acordo com diversas crônicas divulgadas no relatório de Flávio Costa aconselhando, por Jornal dos Sports, bem como a autobiografi a de causa do preto Sabará, a convocação só de Pelé, constata-se que este se machucou no últi- jogador que, pelo menos, soubesse vestir-se mo amistoso realizado no Brasil. Caso houvesse e sentar-se a uma mesa. Daí a preocupação realmente a intenção de evitar a presença de de um escrete, senão branco, o menos pre- to possível. Ainda se discutia a deterioração atletas negros na equipe brasileira que iria para a do mulato, mais do mulato do que do preto, Europa, o que teria levado esse atleta negro (que em clima nórdico. Portanto a preocupação ainda não era o rei do futebol) a ser mantido na da CBD não era racista: ela acreditava mais equipe mesmo após uma gravíssima contusão?

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Os próprios cronistas do Jornal dos Sports , brasileira, que, de acordo com o cronista, se em alguns momentos, questionaram os posicio- amparou em parâmetros concretos para esco- namentos raciais especulados em torno do sele- lher os jogadores que representariam o Brasil cionado nacional. É o que demonstra a crônica na Suécia. Cabe, no entanto, ressaltar que o de Vargas Netto: posicionamento de apoio à CBD é uma atitude destoante da grande maioria dos cronistas do O Lobo estaria queimado porque dispensaram Jornal do Sports, que a partir da rivalidade re- Jadir. Jadir seria bom ou muito bom. Mas, acontece que havia outros que eram ótimos. gional declararam uma verdadeira guerra contra E acontece também que quem escolhia eram o planejamento efetuado pelo paulista Paulo outros, uma comissão de pessoas conhe- Machado de Carvalho e, consequentemente, cedoras do assunto, que a C.B. D. encarregou contra a CBD. do trabalho. Você não vai querer, Lobo, que É interessante perceber que em 1958 não o excelente Jadir seja melhor que o Orlando, houve por parte da CBD, aparentemente, qual- o companheiro de clube do Belini?! Pois quer boicote ou preferência entre jogadores ne- Jadir também não é melhor que o pretíssimo gros e brancos. A comissão técnica que dirigia a Zózimo, apesar de ser apenas mulato claro. O equipe optou por colocar em campo os jogadores seu extrema Joel deslocou . O seu que se apresentavam em melhor condição física, meia Moacir foi afastado do caminho pelo dr. Didi – o descendente direto do rei Salomão e técnica e tática, naquele momento. Isso pode ser da Rainha Sabá... A sua ala esquerda, com melhor compreendido a partir do veto a Garrin- Zagalo e Dida, substituíram com muito brilho cha durante as primeiras partidas. Na biografi a os machucados Pelé e Pepe. Oreco não teve desse jogador, o próprio Ruy Castro justifi ca a jogo para barrar Nilton Santos. E Djalma sua ausência mostrando que o observador do Santos que perdeu a sua velocidade antiga e o selecionado nacional, o professor de futebol do domínio da zaga direita, por não ter mais lugar curso de Educação Física da Universidade de certo na Portuguesa e pelo peso dos janeiros, São Paulo, Ernesto Santos foi para a Europa um foi substiuído pelo enérgico e duro De Sordi. ano antes do início da Copa do Mundo, a fi m de Que dianteiro preto poderá barrar Mazzola ou observar os adversários do Brasil. E, durante a Vavá? Que guardião preto substituiria Gilmar e Castilho? Que zagueiro central de cor levará Copa do Mundo, ele utilizava as suas anotações vantagens sobre Belini atualmente? Qual o para fornecer subsídios à comissão técnica sobre médio volante que poderá superar Dino nes- a melhor maneira de escalar a equipe. (CASTRO, te momento? Os atletas foram muito bem es- 1995, p. 153) colhidos. Na ocasião de escolher e preparar, Como o selecionado saiu do país de forma os que partiram para a Suécia eram os que se desacreditada, havia, por parte da comissão encontravam em melhores condições físicas técnica, uma grande preocupação com o jogo e técnicas. (VARGAS NETTO, 12 jun. 1958) de estreia:

O atleta ao qual a crônica se refere é o en- Por causa disso, Feola pensava em armar o tão zagueiro e companheiro de clube de Zagalo, time com três homens no meio-campo: Dino Jadir Egídio de Souza. Ambos eram atletas do Sani, Didi e Zagalo. O usual, naquela época Flamengo na época em que foram convocados de futebol franco e ofensivo, eram dois. Mas para a Copa do Mundo. É interessante que, nes- as informações de Ernesto Santos sobre a sa crônica há uma inversão de papéis, em que o Áustria o alarmaram e fi zeram, sem querer, cronista se pauta em um raciocínio que para ele com que Garrincha fosse barrado. Porque, nos treinos da semana, ele se tornara titular. era lógico e o atleta realiza uma reivindicação a A Áustria fechava o meio-campo com quatro partir dos seus sentimentos particulares. Cabe jogadores, dissera Ernesto Santos. Seria sui- salientar que a biografi a de Zagalo não faz men- cídio ter apenas três homens contra eles. ção a esse acontecimento, o que permite acre- Feola então propôs instruir Garrincha a re- ditar que este não apresentou muita relevância cuar e combater pelo lado direito, como individual ou social no contexto em que ocorreu. Zagalo faria pelo lado esquerdo [...] Não vai Vargas Netto aproveita a situação para dar certo, disse Paulo Amaral. Garrincha não demonstrar o seu apoio à comissão técnica seguirá a sua instrução. No Botafogo, durante

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a preleção tática, nós o mandamos ir jogar é que não teria sido um único motivo, mas pingue-pongue ou fazer qualquer outra coisa. a somatória de fatores como: contusão dos É imprevisível em campo. (CASTRO, 2002, jogadores brasileiros; o baixo desempenho p.155) da equipe nos jogos anteriores; e o perfi l do Zagallo nega que as mudanças tenham próximo adversário. Nelson Rodrigues (1958) sido provocadas a partir de uma espécie de mo- se manifesta a respeito da necessidade de tim dos jogadores. Versões que circularam com mudanças na equipe brasileira, principalmente insistência depois da Copa davam conta de que após o empate com a Inglaterra. Em uma crôni- Didi e Nilton Santos teriam liderado a maioria do ca bastante sugestiva, intitulada “Como vencer elenco, impondo alterações ao técnico Feola. a Rússia”, o autor manda o seguinte recado ao Esse é o mesmo posicionamento apresentado treinador brasileiro: pelo capitão da equipe de 1958 (Belini), e outros Naturalmente, o quadro está a merecer uns campeões mundiais também rechaçam tais rela- retoques. Eu que sou um dos sessenta mi- tos. (ERTHAL; BORGES, 1996, p.46) lhões de técnicos do Brasil, trataria de incluir Nesse mesmo sentido, vale a pena ressal- Garrincha. O ponta alvinegro já fez falta con- tar que na partida fi nal do mundial, quem aparece tra a Inglaterra. Com suas pernas tortas e fu- como titular na foto dos jogadores brasileiros, gas pânicas, havia de desmontar a metódica que se tornaram campeões do mundo, é o atleta defesa russa. [...] Ah, se Pelé pudesse jogar! (negro) Nilton Santos, que substituiu o zagueiro Imaginem a seguinte linha: - Garrincha, Didi, Mazzola, Pelé e Pepe. Como resistir a um ata- (branco) De Sordi. A substituição também foi alvo que desses? (RODRIGUES, 14 jun. 1958). de especulação, como demonstra o repórter que entrevistou De Sordi, ao perguntar se ele fi cou De modo profético, ou talvez apenas bem magoado por não jogar a partida decisiva. Em informado sobre o que estava acontecendo na resposta, De Sordi afi rma: “Paguei o preço de Suécia, a crônica de Nelson Rodrigues escrita, ter sido correto. Eu estava com um problema na véspera da partida, apresenta antecipa- muscular e, se tivesse entrado em campo, pode- damente algumas das mudanças que seriam ria prejudicar a Seleção. O time fi caria com 10, realizadas pela comissão técnica brasileira. porque naquela época não havia substituição”. Como demonstram Assif e Napoleão, Garrincha (BRASIL, 2007). entrou na ponta-direita no lugar de Joel. Dino Segundo o entrevistador, De Sordi se Sani, que sofrera um estiramento, deu lugar a emocionou ao falar de um acontecimento tratado . Mazola, que tecnicamente não atuou bem por alguns cronistas da época como sinônimo de contra a Inglaterra, perdeu a posição para Vavá covardia. Buscamos confi rmar as informações e Dida que estava com um problema no pé foi nos documentos da época, mas no Jornal dos substituído por Pelé que havia se recuperado Sports e na revista Manchete Esportiva, não da lesão. (ASSAF; NAPOLEÃO, 2004, p.54-55) conseguimos localizar nenhum comentário nesse Para os cronistas do periódico carioca, sentido. No entanto, as declarações da própria era fundamental que o brasileiro conseguisse memória desse jogador mostram que os mitos expurgar o passado, marcado pela servidão, pois não foram estabelecidos somente para os joga- só assim poderia acreditar na sua capacidade. dores negros, pois nesse episódio, o acusado O problema para eles não estava apenas na cor foi um jogador branco. Pelo que vimos até aqui, da pele, mas na humildade do brasileiro, no seu a repercussão só não foi maior porque o Brasil comportamento frente ao estrangeiro, nos seus venceu a Copa do Mundo. sentimentos, na falta de autoconfi ança: No desenrolar dos jogos da Copa do Mundo, um conjunto de fatores levou Vicente Mas o que importa, no caso, é o seguinte: - somos um povo tão deprimido que custamos Feola a fazer uma série de alterações no ataque a admitir, mesmo por hipótese, o nosso triunfo da equipe brasileira. Os documentos analisa- no Mundial. Ora, ninguém vence por acaso. dos não permitem afi rmações sobre os motivos Ou por outra: Só vence aquele que se imagina que teriam feito o técnico brasileiro adotar uma capaz de vencer. E só um escrete cria para nova formação para a equipe. O que fi ca claro si mesmo a impossibilidade da vitória, acaba

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apanhando de banho. Eu diria ainda, que o preparado. Fato este que vem a se repetir em triunfo, mais que um estado físico, mais que 1954, quando se chegou a acreditar que devido um estado técnico, mas que um estado atlé- ao seu povo miscigenado o Brasil era um país tico, é um estado de alma. (RODRIGUES, 23 naturalmente derrotado. ago.1958). Após essas derrotas, a Confederação Enquanto isso não acontecia, o precon- Brasileira de Desportos (CBD), ao acompanhar ceito contra indivíduos de cor permanecia na o esforço modernizador presente no país, propôs sociedade brasileira. Pode-se dizer que o futebol um plano de atualização para o futebol nacional: era um dos poucos espaços sociais em que o levar para a Copa do Mundo de 1958, realizada negro não sofria restrições severas em função da na Suécia, uma equipe escolhida a partir de sua cor de pele. Como vimos, aparecem alguns um perfi l idealizado para o homem brasileiro, indícios, mas não localizamos nenhuma crônica que tinha como referência o ethos de uma elite ou qualquer outro documento que apresentasse, letrada7, responsável por criar e aplicar tal pla- de maneira explícita, algum fato presente no fu- nejamento. Acompanhando a cultura política tebol brasileiro da década de 50, que revelasse a daquele momento, quando a transformação de presença de valores racistas. Nesse microcosmo vários segmentos sociais ocorria de forma ace- também prevalece a ideologia de que o proble- lerada, buscou-se modifi car a aparência física e ma não esta no fato de você ser racista, mas psicológica dos atletas que iriam representar o em manifestar abertamente este sentimento, o povo brasileiro. De modo que estes refl etissem que acaba fazendo com que isto aconteça de a imagem idealizada em torno de um povo culto, maneira velada. educado e saudável, que serviria como exemplo Por outro lado, nas crônicas esportivas bem sucedido de um país que havia superado o eram recorrentes as mensagens emitidas pelos atraso sociocultural – normalmente atribuído à literatos, como uma forma de externar o seu mistura de raças e à personalidade do homem desejo de que o futebol fosse o meio de eman- brasileiro. cipação dos indivíduos de cor. Os cronistas bus- Em 1958, momento pleno de euforia do cavam vincular o sucesso do futebol a uma das desenvolvimentismo, da construção de Brasília formas de o negro ser aceito e, consequentemen- e das manifestações artísticas de vanguardas, te, “embranquecer”. Essa situação era expressa o selecionado nacional deixou o país sob por representações criadas para os jogadores vaias e descrédito por parte dos torcedores. negros, que apresentavam um bom rendimento (JORNAL..., 24 mai 1958, p.1-5). Surpreenden- atlético. Foi o que aconteceu com Fausto, que temente, a seleção conquistou na Europa a sua se tornou a Maravilha Negra ; Leônidas Silva primeira Copa do Mundo, contribuindo para a passou a ser chamado de Diamante Negro; Didi construção de um novo imaginário coletivo 8, que foi transformado, por Nelson Rodrigues, em um tem no governo de Juscelino Kubitscheck o ápice Príncipe Etíope; e Pelé se tornou o Rei. de um modelo vitorioso de modernidade. Contudo, diante do projeto estabelecido pela CBD, a geração literária do Jornal dos Considerações Finais Sports optou em rejeitá-lo, por entender que este A análise do futebol auxilia na compreen- não correspondia aos princípios de autenticidade são do contraditório processo – aberto pela ex- idealizada para o povo brasileiro. Estes agentes pansão capitalista – de inscrição da sociedade brasileira na modernidade. Alguns cronistas, por vezes, edifi caram uma imagem dramatizada 7 Ethos é um termo de origem grega, que apresenta um entendi- mento genérico, normalmente servindo para designar o caráter da angústia nacional em superar o atraso; em cultural e social de um grupo ou sociedade. Neste estudo ele é vencer o racismo como prova de civilização e entendido à partir da proposição de W. G. Summer, que o com- progresso. Assim, esse esporte se apresenta preende como sendo a totalidade dos traços característicos pelos quais um grupo se individualiza e se diferencia dos outros. como possibilidade de leitura do “caráter nacio- nal brasileiro”, em que o fracasso de 1950 foi 8 Dürkheim (1989, p. 32) defi ne o imaginário coletivo como sendo “... conjunto das crenças e dos sentidos comuns a média de mem- descrito como a evidência de um povo des- bros de uma mesma sociedade, que forma um sistema determi- nado com vida própria”.

Emancipação, Ponta Grossa, 12(2): 297-309, 2012. Disponível em 307 Miguel Archanjo FREITAS JUNIOR; Luiz Carlos RIBEIRO preferiram continuar utilizando um discurso sus- De Sordi : o titular da seleção campeão do mundo em tentado pela valorização dos dons naturais dos 1958. Disponível em: Acesso jogadores, em oposição aos ideais moderniza- em: 24 fev.2007. dores que, de acordo com os primeiros, eram BURKE, Maria Lúcia Pallares. Sobre Gilberto Freyre : eivados de valores europeus e desprovidos de um vitoriano nos trópicos. São Paulo: UNESP, 2005. paixão – elemento fundamental para o sucesso do futebol. CAPRARO, André Mendes. Identidades Imagina- O retrato do Brasil, por meio das crônicas das: Futebol e Nação na Crônica Esportiva Brasilei- futebolísticas, revela, a seu modo, alguns dos ra do Século XX. Curitiba, 2007. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História da grandes temas tratados pela intelectualidade Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. brasileira, entre os quais um dos principais di- lemas estava a questão racial, que infl uenciada CASTRO, Ruy. Estrela solitária: um brasileiro cha- pelos ideais da era escravista, a sociedade mado Garrincha. São Paulo: Companhia das Artes, brasileira assumiu uma forma de racismo ve- 1995. lada, mostrando que no Brasil o racismo não é DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. uma questão doutrinaria e sim cultural. Mesmo Lisboa: Editorial Presença, 1989. de forma subliminar esta questão acompanhou a trajetória esportiva brasileira durante toda a ERTHAL, Luiz Augusto & BORGES, Vanderlei. década de 50, indicando que este era um tema Zagalo, um vencedor: a fantástica história do único que incomodava a intelligentsia local, seja atra- tetracampeão mundial de futebol. Rio de Janeiro: 1996. vés do desejo dos cronistas ou dos preconceitos das elites. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Tais apontamentos servem de referência Paulo: Maia e Schimdt, 1933. para que se possa perceber a presença do ra- ______. Foot-Ball mulato. Diário de Pernambuco. cismo na sociedade brasileira, o que coloca Pernambuco, 17 junho de 1938, s/p. em xeque o mito da democracia racial, já que o racismo é uma presença ausente, que não deve ______. Sociologia. Rio de Janeiro, 1945. ser tratado como uma simples oposição dual GOMES, Angela de Castro (org.). O Brasil de JK. entre verdade e mentira. Mesmo de maneira sutil, Rio de Janeiro. Editora FGV, 2002. o racismo aparece em diferentes momentos da história brasileira, em que os direitos individuais HOLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Moder- legalmente outorgados não são garantidos na nismo, regionalismo e paixão esportiva em José prática social. Lins do Rego. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2004.

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