A CAMINHO DO PLANETÁRIO: UMA HISTÓRIA DE PAISAGENS SONORAS, POÉTICAS E EXISTENCIAIS DAS PSICODELIAS NORDESTINAS (RECIFE 1972- 1976)

HENRIQUE MASERA LOPES

1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS

A CAMINHO DO PLANETÁRIO: UMA HISTÓRIA DE PAISAGENS SONORAS, POÉTICAS E EXISTENCIAIS DAS PSICODELIAS NORDESTINAS ( RECIFE 1972- 1976)

HENRIQUE MASERA LOPES

NATAL, MAIO DE 2017.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI CCatalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Lopes, Henrique Masera. A caminho do planetário: uma história de paisagens sonoras, poéticas e existenciais das psicodelias nordestinas (Recife 1972- 1976) / Henrique Masera Lopes. - 2017. 245f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós- Graduação em História. Orientador: Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior.

1. Contracultura - Recife (Pernambuco). 2. História (Brasil). 3. Movimentos musicais. 4. Espaço. I. Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 78.03(813.4)

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HENRIQUE MASERA LOPES

A CAMINHO DO PLANETÁRIO: UMA HISTÓRIA DE PAISAGENS SONORAS, POÉTICAS E EXISTENCIAIS DAS PSICODELIAS NORDESTINAS ( RECIFE 1972- 1976)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós- Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa: Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior.

NATAL, MAIO DE 2017

4 HENRIQUE MASERA LOPES

A CAMINHO DO PLANETÁRIO: UMA HISTÓRIA DE PAISAGENS SONORAS, POÉTICAS E EXISTENCIAIS DAS PSICODELIAS NORDESTINAS ( RECIFE 1972- 1976)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:

Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior ( UFRN)

Prof. Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco ( UFPI)

Prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais ( UFRN)

Prof. Dr. Renato Amado Peixoto ( UFRN)

Natal, Maio de 2017.

5 AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas que tenho a agradecer de coração durante a trajetória de realização desta pesquisa. Cada uma delas foi fundamental para que chegasse aqui agora com a alegria e o alívio de finalizar essa trajetória que começou ainda em 2014 - antes de iniciar o Mestrado- e que agora se desfecha. Justamente num momento político marcado pela consolidação precária de mais um Golpe inventado no Brasil, que dessa vez se disfarçou pateticamente de ''cruzada anti- corrupção" e que dia após dia deixa mais claro que se impôs com o auxílio da grande mídia e de parte do poder judiciário como meio possível para retrocessos de toda ordem. Sou grato a todos os colegas de turma no PPGH-UFRN que entraram nesse processo comigo em 2015, em especial ao Jandson Bernardo, Henrique Lucena, Patrícia Morais e Antônio Ferreira, com quem sempre mantive boas conversas durante o primeiro ano do curso. Sou grato a todas as pessoas envolvidas nos afazeres diários das instituições que frequentei durante a realização da pesquisa: aos funcionários e funcionarias da Fundação em Recife, da Editora Três em São Paulo e do CCHLA-UFRN em Natal. Agradeço também à Clara por me hospedar em São Paulo e ao Fravo e todo o pessoal da Casa Azul, por me receberem durantes as viagens de pesquisa à Recife. Meus sinceros agradecimentos a cineasta Kátia Mesel que entrevistei em Recife no ano de 2016. Obrigado por me receber em sua casa, abrir suas gavetas e conversar sobre suas vivências experimentadas na década de 70. Obrigado aos colegas da base de pesquisa '' Cartografias Contemporâneas", aos que já passaram por lá Diego José, Felipe Cavalcanti, Priscila Farias, Jéssica Dalcin e também aos que chegaram recentemente, Paulo Higor, Clara Minervino, Matheus Ramos, Pedro Almeida, Jussier Dantas. Sou grato pelos momentos de diálogo e troca de conhecimentos. Agradeço aos professores, começando por Raimundo Nonato, que fez da disciplina História Cultura dos Espaços um momento de reflexão importante. Ao Renato Amado, que na disciplina de Teoria e Metodologia da História trouxe a leitura do filósofo Jean Baudrillard, o que acabou abrindo um horizonte de possibilidades para o segundo capítulo desse trabalho. Também agradeço ao Renato pela leitura e arguição que realizou durante a banca de qualificação em 2016. Ao professor Raimundo Arrais, suas aulas na disciplina de Historiografia e Produção dos Espaços foram pra mim momentos de escuta e de diálogo, que me fizeram compreender melhor não só as muitas maneiras de escrever história, mas também o processo tortuoso que a pesquisa e a escrita suscitam nesse período de dois anos. Também agradeço ao professor pela leitura e arguição do meu trabalho na banca de qualificação. Ao professor Sebastião Vargas, pelas conversas que mantivemos fora das salas e pelas dicas de leitura. Ao

6 professor Edwar de Alencar Castelo Branco, meus sinceros agradecimentos por ter aceito o convite para fazer parte da banca de defesa desta dissertação.

Ao professor Durval Muniz não sei nem por onde começar a agradecer. Foram dois anos de muitos diálogos e cada um desses vários momentos foram fundamentais para a construção desta dissertação. Das disciplinas de Leituras Dirigidas aos Seminários, passando pela experiência em sala de aula e pelas inúmeras contribuições trazidas por sua leitura. Mais que um orientador com o qual sigo aprendendo nos últimos sete anos, Durval foi um grande incentivador ao longo dos altos e baixos que experimentei nesse processo. Sou grato pelos aprendizados que levo pra vida. Amizades, todas elas, muito obrigado por estarem por aqui criando e tecendo universos conjuntos. Em especial aos meus amigos Pedras e Walter Nazário, parceiros de correria cotidiana e criação musical com as bandas Igapó de Almas e Esquizophanque, pessoas que eu admiro e que são companheiros de tantos momentos da vida. Sou grato por aprender com vocês! Maria Di Lia, Netuno, Sol, Délia, Rudá, Maurizio, Esmeraldo, Rafael, Lucas, Geovane, Dora, Jan, Alvaro, Wagner, Leilane, Jota, Carlos Gurgel, obrigado pela presença única e pelas boas conversas. Cristina, Paulo, Jéssica, Pedro, Flávia, Thiago, Chará, Maia, Uli, Jamal, meus vizinhos de comunidade, obrigado por estarem por perto vivendo em harmonia, autonomia e respeito mútuo. Obrigado de coração aos meus familiares por todo o apoio, dedicação e amor. Estamos entrelaçados na vida e só quero o melhor pra cada um de vocês. Obrigado a minha mãe, minha irmã e meu pai por tudo que já fizeram e fazem por mim. Verônica, Rafa e Marcos. Amo vocês! Também dedico esse trabalho a minha avó, Alba, que se foi recentemente. Meu agradecimento final é pra Luísa, minha companheira linda, amorosa, a pessoa que esteve mais próxima de mim durante todo esse período. Sua presença me faz feliz. Obrigado por tudo! Todos os momentos que passamos juntos, das dores às delícias, me fazem sentir que você tem muito a me ensinar sobre a vida e contigo quero seguir aprendendo, vivendo, amando. Esta dissertação foi realizada com o incentivo fundamental de bolsa de pesquisa concedida pela CAPES, que me deu a tranquilidade necessária pra me dedicar aos estudos.

7 RESUMO

Este trabalho se ocupa em pesquisar a relação entre história, música e a invenção de espaços de experimentação coletivos. Seu objetivo principal é compreender as condições históricas de possibilidade das paisagens sonoras, poéticas e existenciais cartografadas pelas psicodelias nordestinas que foram expressas musicalmente entre 1972 e 1976 na cidade de Recife. O ponto de partida é a movimentação musical e existencial ligada à contracultura que emergiu na década de 70 na capital pernambucana. Através desse momento iremos compreender certos deslocamentos que se deram no período e que estão presentes na discografia de jovens compositores que lançavam seus primeiros discos à época, como Zé Ramalho, Lula Côrtes, Alceu Valença, Marconi Notaro, Flaviola e a banda Ave Sangria. A dissertação se divide em três capítulos: o primeiro deles propõe uma espécie de cartografia de experiências contraculturais na cidade de Recife. Aqui o objetivo será compreender - a partir destas movimentações musicais – os territórios existenciais e as estratégias de vida que ganharam corpo neste momento, no país, marcado pela repressão política com a ditadura civil e militar. O segundo capítulo consiste numa análise que parte da experiência coletiva que envolveu a produção do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol - lançado por Lula Côrtes e Zé Ramalho em 1975 – para entender certos tensionamentos espaço-temporais que ganharam consistência na década de 70 através dos eventos da Era Espacial e de que maneira essas transformações reverberam na desterritorialização do Nordeste. Por fim, o capítulo final, procura traçar um histórico sobre a construção de um arquivo sonoro nordestino ao longo do século XX e como a discografia destes jovens músicos da década de 70 remanejam, atualizam e transgridem os comandos vindos desse arquivo, inventando paisagens sonoras, poéticas e existenciais em suas obras que expressam uma ruptura, uma fissura, uma quebra no regime de audibilidade que definia certas fronteiras para a música do Nordeste até o período em questão.

Palavras-Chave: História; Brasil; Música e Espaço.

8 Lista de Imagens

Figura 1: Foto da obra coletiva '' No país da Saudade" de Raul Córdula, Recife,1980...... 15

Figura 2: Foto do Vondelpark em Amsterdam em 1972...... 48

Figura 3: Foto da obra '' É a arte reversível?" de Paulo Bruscky, Recife, 1976...... 78

Figura 4: Foto da Pedra do Ingá, Paraíba ...... 87

Figura 5: Capa do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, 1975...... 111

Figura 6: Foto do povo Yaghan, Patagônia, 1940 ...... 138

Figura 7: Capa do álbum Marconi Notaro no sub-reino dos metazoários, 1973...... 17

9 SUMÁRIO

Introdução ...... 12

Capítulo 1: A sobrevivência dos bichos-grilos: uma cartografia de experiências contraculturais em Recife ( 1972-1976) ...... 31

1.1 As urgências do presente...... 31

1.2 O Selo Solar ...... 57

1.3 Abrakadabra e Nuvem 33: heterotopias da amizade ...... 68

1.4 O riso das sobrevivências ...... 76

Capítulo 2: Nas paredes da pedra encantada: Era Espacial, Contracultura e Nordeste à deriva no Cosmos ...... 85

2.1 Cantando os mistérios do Planeta...... 85

2.2 ''E lá se foi o homem conquistar os mundos": e a Lunik 9...... 100

2.3 Conquista espacial, perda do referencial terrestre e devir-astronauta ...... 109

2.4 Os anos 70 e o retorno do referencial cósmico...... 117

Capítulo 3: Nordestes Psicodélicos: paisagens sonoras e poéticas do udigrudi pernambucano nos anos 70 ...... 142

1.1 A arte de escutar o Nordeste...... 142

1.2 Orientalismos nordestinos...... 156

1.3 Nos bastidores do filme '' A Noite do Espantalho" ...... 165

1.4 Alceu Valença, porta voz da incoerência ...... 170

1.5 Desmantelos no sub-reino dos metazoários...... 176

1.6 Abaixo o Folclorismo...... 184

1.7 O universo da cantoria em Zé Ramalho ...... 192

10 1.8 Esquizofonias nordestinas: nas frequências da Era do Rádio...... 201

1.9 Ave Sangria: desbunde nos meandros da indústria fonográfica ...... 211

Conclusão ...... 227

Bibliografia e Fontes ...... 232

10 INTRODUÇÃO

A conclusão do livro A invenção do nordeste e outras artes, do historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, nos trouxe os primeiros questionamentos para a elaboração desta pesquisa. A tese central do livro é a de que a região Nordeste não existiu desde sempre como um dado naturalizado, ao contrário, é um espaço de investimentos desejantes que possui uma historicidade conectada ao processo histórico de transformação das relações econômicas e de poder que se intensificaram a partir de meados do século XIX em todo o Ocidente com a expansão de processos sociais acionados por forças como a industrialização e a urbanização. As imagens e discursos que traçaram os primeiros delineamentos do que seria a cultura nordestina começaram a ser elaborados no início do século XX, justamente através da ação de sujeitos que pertenciam a dados grupos sociais que reagiam criticamente à essas transformações, que reagiam criativamente à essa sensação de que as antigas geografias subjetivas, existenciais, culturais e políticas controladas pelas elites agrárias estavam em ruínas.

Neste processo de construção de uma trama chamada ''identidade cultural regional", a cidade de Recife estabeleceu-se, por diversas questões, com certa centralidade e como um lugar estratégico de produção de sentido. Assim, temos na criação do Movimento Regionalista e Tradicionalista na década de 20 na capital pernambucana um acontecimento sintomático sobre a maneira com que pensava-se e sentia-se em nome de um Nordeste que estaria a desaparecer e que ganhava consistência através da produção de intelectuais e artistas como Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Mário Sette e outros que criaram obras que são entendidas hoje como imersas neste jogo de tensões em que resistia-se a uma desterritorialização, ou seja, a uma desestruturação de um universo macro e micropolítico que passava a ganhar expressão, e portanto a ser inventado, em diferentes linguagens. Outros movimentos culturais também instituíram um vasto arquivo de matérias de expressão como partícipes da elaboração de uma identidade regional no Nordeste, como por exemplo a vasta catalogação e produção de sentido das pesquisas folclóricas na primeira metade do século XX e, posteriormente, a diversificada produção estética do Movimento Armorial, liderado por , a partir da década de 70. Projetos culturais que, por questões políticas, acabaram se instituindo como representantes do que seria a '' cultura oficial" do Nordeste.

Contudo - no contrafluxo dessas '' culturas oficiais"- o que mais interessa para esta pesquisa é que no final do livro de Durval Muniz Albuquerque Jr. nos é dito que poucos foram os movimentos e os momentos em que escapou-se ao regime de verdade que ergueu, progressivamente, uma visualidade e uma dizibilidade para a região Nordeste. A Tropicália

12 teria sido dita e vista como um desses momentos em que seus agentes conseguiram fazer com que suas invenções fugissem da maneira já tradicional de agenciar uma enunciação artística atravessada por matérias de expressão ligadas ao imaginário da região e assim criaram espacialidades outras, através de suas invenções no campo da música, do cinema, do teatro, das artes plásticas, da poesia, em suma, através de um processo de ruptura com uma dada ordem das imagens e dos discursos instituídos através do dispositivo nacional-popular.

Em grande medida as rupturas tropicalistas tiveram na expressão musical um poder maior de expansão, ou seja, foi no campo da audibilidade que melhor pode se experimentar esta maneira de pensar e sentir os espaços. Do momento Tropicália teriam emergido, dentre outras coisas, cartografias da alegria que segundo o autor, foram espaços que se distinguem dos territórios saudosistas construídos sob conceitos fechados de '' tradição", ''região", ''raíz" Assim, as rupturas musicais desencadeadas com o momento Tropicália contribuíram para a formulação de uma outra forma de ver, dizer e ouvir a cultura brasileira, através de uma sonoridade muitas vezes instável e dissonante, fragmentária e antropofágica, que questionava as fronteiras delineadas pela produção nacional-popular, ora rompendo, ora se reconectando com a ordem deste discurso e insinuando um variedade de imagens de um Brasil imerso nos “loops de montanha russa”1 do mundo moderno, seja com , Tom Zé, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Capinam, mas também na literatura com Agrippino de Paula, nas artes plásticas com Lygia Clark, na poesia e crítica cultural de Torquato Neto, no arte ambiental de Hélio Oiticica, no teatro de José Celso Martinez, dentre outros.

Partindo destas conclusões, passei a me perguntar e agora também pergunto ao leitor: quais outras movimentações artísticas/culturais ou quais outros sujeitos esboçaram em suas experimentações artísticas e culturais cartografias estéticas e existenciais que também escapavam ao regime imagético e discursivo do Nordeste como um espaço cultural marcado pelo saudosismo e avesso as transformações e misturas com o mundo contemporâneo? E se existiram manifestações deste tipo - e existiram e existem muitas- que novas territorialidades foram delineadas mesmo que precariamente e a que estavam conectadas do ponto de vista de seu campo de referências e de suas condições de existência? A partir que de modos de subjetivação emergiram outras formas de pensar e sentir os elementos da paisagem dita nordestina? Que outros regimes de visibilidade e dizibilidade, mas principalmente de

1Ver: SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

13 audibilidade, romperam com a ideia de um ''Nordeste Saudosista" para além das tendências agrupadas no microcosmo tropicalista e que diferenças se enunciam a partir de então?

Com esses questionamentos iniciais em mente fiz uma viagem de pesquisa ao Rio de Janeiro para catalogar o conteúdo da exposição ''Pernambuco Experimental" que estava à mostra no Museu de Arte do Rio (MAR) e lá encontrei um extenso conjunto pictográfico, discursivo, sonoro e audiovisual de uma série de movimentos artísticos de Recife e de outras cidades nordestinas entre 1900 e 1980. Entre quadros de Vicente do Rego Monteiro2, Cícero Dias3, obras e perfomances de Paulo Bruscky4, desenhos de Montez Magno e Raul Córdula5, vídeos e manifestos de Jomard Muniz de Brito6, dentre muitos outros, pude atravessar a exposição e notar que muitas daquelas linguagens – a maioria delas- não se conectavam aos enunciados que traçavam a região Nordeste como um espaço anti-moderno ou como um espaço delineado a partir de maneiras de pensar e sentir saudosas dos tempos em que tudo era diferente. Algumas obras inclusive apontavam o saudosismo como algo problemático e que deveria ser questionado, como é o caso da obra coletiva acionada pelo artista visual Raul Córdula em 1980 intitulada ''O País da Saudade".

2 Pintor, poeta e escultor pernambucano radicado na França. (1899-1970)

3Pintor modernista pernambucano. (1907-2003)

4Poeta e artista multimídia ainda em atuação. Nos anos 70 foi um dos principais articulados no Brasil do Movimento Internacional de Arte Postal.

5 Pintor, artista gráfico, cenógrafo e crítico de arte. ( 1943)

6Filósofo da cultura e professor universitário pernambucano ( 1937 )

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Questionar o saudosismo como verdade sentimental do território nordestino e das produções culturais que de lá advém não significava cultivar um esquecimento em relação às experiências do passado ou nutrir algum tipo de fascínio pelo presente que desconsideraria os elementos culturais e as matérias de expressão concebidos outrora e sustentados por uma complexa tradição oral. O que passou a ser atacado era o pensamento de intelectuais que se

7Transcrição do texto presente no quadro de Córdula:

''Aos 800 anos do Mestre: Pour Gilberte, Pauvre Gilbertine! Coço as virilhas da poesia em pânico:

-Vem, ó menino da rua

Menino desejado

Menino senzalado!

-Fui eu quem inventou a morenidade de tuas coxas púberes...

Durmo e sonho com a eternidade de meu y."

Jomard Muniz de Britto e Reginaldo Marinho. Série: O País da Saudade de Raul Córdula. Aos 800 anos do Mestre. 1980. Fotocópia e colagem sobre papel

15 colocavam como sustentáculo discursivo e institucional de uma dada imagem do Nordeste saudosa das relações sociais, políticas e econômicas estabelecidas no passado colonial brasileiro. Nesse sentido, um pequeno '' coro dos contrários" foi se fazendo ouvir no final da década de sessenta entre parte da juventude, como neste trecho de um manifesto chamado ''Porque somos e não somos tropicalistas" publicado no Recife em 1968 e assinado pelo professor e ensaísta Jomard Muniz de Britto, o compositor Aristides Guimarães e o jornalista e crítico de cinema Celso Marconi. Dos nove tópicos que integravam este manifesto publicado em 20 de Abril no Jornal do Comércio, o primeiro tópico tanto questiona como afirma:

1. Constatamos ( sem novidade) o marasmo cultural da província. ( Porque insistimos em viver há dez anos da Guanabara e há um século de Londres? Por fidelidade 8 regionalista? Por defesa e amor às nossas tradições?)

Maneiras de pensar e sentir já ''canônicas" como as de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna eram alvos de críticas neste período entre jovens intelectuais e artistas no Recife. O próprio titulo do manifesto parece ser uma sátira ao ''Porque somos e não somos modernistas'' publicado por Freyre. A constatação de um marasmo cultural nos leva ao sentido etimológico da palavra: marasmo indica um progressivo enfraquecimento do corpo, que vai aos poucos esmorecendo pela baixa circulação de energias que lhe são vitais. Estaria Recife se tornando uma cidade-corpo animada pela saudade mas já enfraquecida por essa relação ''conservadora e purista em face da cultura e da realidade brasileira hoje"9? Uma fissura tornava-se evidente no debate cultural na cidade: enquanto o velho Gilberto Freyre publicava um artigo no mesmo jornal chamado ''Em defesa da saudade" no ano de 196510 – meses após a cristalização do golpe militar, que ele apoiou e celebrou - os jovens nascidos no pós-guerra

8 '' Porque somos e não somos tropicalistas" em: COHN, Sérgio(org.). Encontros/ Jomard Muniz de Britto.Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013, p.28

9 Idem p.33

10O texto escrito por Gilberto Freyre toca em muitas questões que atravessavam a defesa de uma perspectiva saudosista em relação ao mundo durante os anos 60, dentre outras coisas ele buscava defender um certo saudosismo que vinha sendo atacado '' Não. A saudade não é expressão de baixa pieguice 'reacionária'. Não é sentimentalismo rasteiro a que recorram apenas os adeptos do status quo. Não é recurso a que se agarrem os 'regressistas’ incapazes de acompanhar os 'progressistas’ que representam o que consideram determinismo histórico ou econômico. É afirmação, no indivíduo, quer com relação ao seu passado pessoal, quer com relação ao seu passado nacional, daquela autenticidade de caráter que encontra, na identificação do mesmo individuo com os valores do seu passado, a sua base mais sólida". In: VICENTE, Silvana Moreli. Cartas Provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Tese de Doutorado. USP. São Paulo, 2007, p.392

16 iam no sentido oposto, falando em nome portanto de um '' chega de saudade", como o que Aristides gritou repetidamente em uma apresentação do coletivo musical do qual fazia parte, o LSE - Laboratório de Sons Estranhos, em 1967. O momento Tropicália, entendido enquanto um acontecimento dotado de diferentes faces e nuances, teve em Recife uma expressão singular: foi incorporado como uma atitude de enfrentamento à imagem de um Nordeste pensado e sentido sob as amarras da saudade e a partir desta fenda no véu do saudosismo, outras imagens de Nordeste se faziam presentes.

O que desejo que se retenha destas colocações iniciais é que vinha se esboçando desde fins dos anos 60 uma abertura, uma fissura - ética, estética, existencial- entre artistas e intelectuais nordestinos que viviam em cidades como Recife, João Pessoa e Natal, assim como em outras regiões do país e do mundo. Sujeitos que pensavam e sentiam numa direção diferente dos saudosismos tradicionalistas que predominavam no campo cultural do Recife e que à época estavam amparados institucionalmente e transformados em ''cultura oficial" pelas políticas culturais do regime militar, momento em que Gilberto Freyre e Ariano Suassuna se faziam presentes no Conselho Federal de Cultura criado em 1967 como membros das Câmaras de Ciências Humanas e Artes respectivamente.

Nesse sentido, esta dissertação se propõe a problematizar algumas destas expressões que emergiam com as transformações das maneiras de pensar e sentir da juventude entre as décadas de sessenta e setenta do século passado, buscando compreender o que as tornaram possíveis na cidade de Recife e que espaços de enunciação se esboçam a partir daí. É evidente que devido ao momento político que o país vivia estas experiências passaram longe dos espaços institucionais, ao invés disso, são efeito de um fazer alternativo e minoritário que ganhava corpo entre a juventude urbana. Especificamente, nosso foco, nosso ponto de partida, será a produção musical de jovens músicos que viviam na capital pernambucana entre 1972 e 197611 e que deram vida à um cenário de experimentações ainda pouco estudado

11Para o historiador Frank Ankersmit é justamente a partir do pós Segunda Guerra que a composição da narrativa histórica - por influência das teorias psicanalíticas - passa a enunciar-se a partir do estabelecimento de marcos temporais que servem para definir um espaço narrativo no qual é composto a representação histórica do passado pela escrita da história. O marco transmite a ideia de que um pedaço do mundo poderá ser percorrido pelo leitor do texto, se trata de uma estratégia, de um recurso narrativo, posto que marca espaço-temporalmente uma análise. Contudo, no interior destes balizamentos trata-se de projetar padrões sobre os rastros que indicam dinâmicas experimentadas coletivamente e não buscar algo por detrás dos rastros, ou seja, é preciso desvencilhar-se de qualquer pretensão essencialista na historiografia em favor de um perspectivismo que assinale o lugar enunciativo do historiador e a projeção que deste lugar pode vir à tona em relação aos rastros e aos fragmentos do passado por ele trabalhados. Ver: ANKERSMIT, F. R. Historia y Tropologia. Ascenso y caída de la metáfora. México: Fondo de Cultura Económica, 2004 p.252/p.322

17 em âmbito acadêmico, do qual resultaram os seguintes discos que são nossas principais ''fontes de pesquisa": Satwa de Lailson e Lula Côrtes; No Sub Reino dos Metazoários de Marconi Notaro, Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol de Lula Côrtes e Zé Ramalho, Flaviola e o Bando do Sol de Flaviola – todos lançados pelo Selo Solar em Recife. E também os discos Ave Sangria da banda Ave Sangria, Alceu Valença e Geraldo Azevedo lançado em 1972 e Molhado de Suor de Alceu Valença. Evidentemente que outras produções aparecem correlacionadas ao longo do texto, mas é nesse material - sonoro e poético- que a pesquisa se apoia.

Portanto, o que irei desenvolver ao longo deste trabalho passa por uma problematização que partirá da produção musical de um momento de emergência do que ficou conhecido como psicodelias nordestinas. Tratarei da musicalidade destes álbuns e das vivências que se desenvolviam nos territórios existenciais destes jovens que estavam conectados às maneiras de pensar e sentir da contracultura de sua época. Sendo assim, se faz necessário compreender em que consistia as condições históricas de possibilidade destas produções e para isso será preciso cartografar certas trajetórias inerentes aos processos de subjetivação que atravessavam os sujeitos em suas existências e de que maneira suas invenções musicais expressam uma descontinuidade no topos saudosista que orientava grande parte das artes nordestinas em favor de outras intensidades que estavam em voga à partir do advento da contracultura, das viagens psicodélicas e da chamada Era Espacial.

Ao recordar esse momento vivido na década de 70, numa entrevista ao jornalista pernambucano José Teles, o compositor Zé Ramalho afirmou que vivia-se um ''intuito muito psicodélico'' em tudo que se fazia, vivia-se uma ''situação psicodélica" onde muitas destas expressões artísticas eram atravessadas pelo encontro destes jovens com suas primeiras experiências com LSD ou com cogumelos alucinógenos.12 Assim, ao que parece, a turma ligada à contracultura em Recife encarnava maneiras de viver e criar no mundo contemporâneo que ganharam expressão numa perspectiva que buscava se distanciar das fronteiras regidas por tradicionalismos, regionalismos e nacionalismos.

É que além de maneiras de ver e dizer – de imagens e discursos - também foram enunciadas maneiras de escutar a região Nordeste, ao longo do século XX. É a problematização da invenção destes modelos de escuta, destas paisagem sonoras de

12Ver: TELES, José. Do frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2001.

18 Nordestes expressos musicalmente, que nos interessa na realização deste trabalho. A década de setenta foi um momento singular na história da música brasileira em relação às diferentes sonoridades significadas como nordestinas que ali se esboçaram. São esses modelos de escuta construídos musicalmente que denominaremos paisagens sonoras e através de uma análise que se propõe a problematizar a invenção musical destas paisagens e sua relação com as transformações sociais, culturais e políticas da época poderemos refletir sobre a tênue relação entre os sons, seus sentidos e as forças históricas que os modulam, em conexão com o que José Miguel Wisnik nomeou como uma antropologia dos sons.13 É que inferir sobre as condições de possibilidade de determinadas sonoridades conduz a compreensão das formas de pensar e sentir adotadas por dados grupos sociais que traçaram na música uma via possível para a expressão e materialização de suas experiências durante uma época e em um determinado lugar. A música, seja uma canção ou um tema instrumental, também inventa seus espaços de enunciação .

Se fizermos uma busca no Google14 e digitarmos ''Psicodelia Nordestina" veremos que uma série de resenhas, entrevistas, vídeos, capas de disco, fotos e sobretudo, matérias em sites de música e blogs nos dirão que a produção musical que iremos analisar nesta dissertação, representa a face nordestina do momento psicodélico que as artes e a cultura brasileira experimentaram durante os anos 70, algo que ainda é pouco estudado por nós historiadores. Desbunde, udigrudi, underground, contracultura, arte marginal, são alguns dos conceitos que acabaram definindo um certo lugar de fala destes sujeitos que em suas experimentações sonoras e existenciais deram expressão à musicalidades nordestinas afetadas pelo o que seriam experiências existenciais psicodélicas vividas em Recife entre 1972 e 15 1976.

13 WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: uma outra história da música. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

14Neste sentido destaco o trabalho de pesquisa do jornalista gaúcho Cristiano Bastos, que publicou na Revista Rolling Stone matéria intitulada ''Agreste Psicodélico" na Edição 24, de Setembro de 2008. http://rollingstone.uol.com.br/edicao/24/agreste-psicodelico ( Acesso em 06/08/2015 as 10:57).

15Na primeira década dos anos 2000, dois selos de música estrangeiros- Mr. Bongo e Time Lag Records- que pesquisam e relançam discos de música psicodélica de diferentes lugres do mundo, deram novas edições em CD e Vinil para a discografia do Selo Solar, que foi orginalmente lançada entre 1972 e 1976 com tiragens que não passaram de 1.500 cópias na cidade de Recife. Sobre os selos ver: https://www.mrbongo.com/ e http://www.time-lagrecords.com/ ( Acesso em 02/04/2017 as 14:30)

19 Sendo grande parte dessas sonoridades resultado da experimentação de uma juventude artística ligada ao momento que ficou conhecido à época como ''desbunde", nos debruçaremos sobre os modos de pensar e sentir da contracultura brasileira que emergia de maneira desconexa no país entre fins dos anos 60 e meados da década seguinte16. A possibilidade de compreender os enunciados contraculturais, concebidos no campo da música nordestina, entre 1972 e 1976, conduz a pensar neste período - marcado pelo endurecimento da censura e da perseguição política - como um momento em que se produziram deslocamentos consideráveis no que diz respeito aos territórios existenciais e aos processos de subjetivação coletivos, neste caso, entre jovens que vinham entrando em contato e sendo influenciados por eventos como o movimento hippie, o Festival de Woodstock, o Maio de 68 na França, a Tropicália, a chegada do homem a Lua e o surgimento da chamada Era Espacial e as experimentações de estados alterados de consciência através do uso de substâncias psicoativas como o LSD, a Maconha e a Psilocibina que estavam em voga entre jovens 17 ligados ao desbunde no Brasil.

O historiador José Carlos O. Luna também fez uma dissertação de história a partir deste cenário de experimentações artísticas e existenciais em Recife. Na pesquisa Udigrudi da Pernambucália: História e música no Recife (1968-1976), é feita uma história do cotidiano e do fazer cultural dessa geração. A dissertação de José Carlos contribuiu para o desenvolvimento de minha pesquisa no sentido de fornecer muitas informações desde uma espécie de cartografia espacial que foi traçada pelo autor. Ao valer-se do termo ''pernambucália" o historiador procura designar ao longo do trabalho uma espécie de continuidade entre as experiências tropicalistas de fins dos anos 60 e a produção musical dos

16Sobre a relação entre o momento tropicalista e o advento de uma contracultura brasileira ver: DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim: a tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Unesp, 2009.

17A questão das drogas, inclusive em âmbito acadêmico, foi também uma marca dos anos sessenta e também gerou impactos na primeira metade da década de setenta, após romper com as fronteiras do âmbito institucional e se proliferar entre setores da juventude no Ocidente. Nesse sentido, convém recordar a criação do Departamento de Experimentos Visionários de Harvard, que era dirigido pelos pesquisadores Timothy Leary e Richard Alpert. Após a demissão de ambos da esfera acadêmica, Timothy Leary tornou-se um entusiasta das experiências psicodélicas. O lema disso que ficou conhecido como a cultura drop out movida por experiências visionárias era: turn on, turn in and drop out. Como pontua Edwar de Alencar Castelo Branco: ''Os experimentos com drogas psicodélicas, até então ''reservadas à uma elite psicodélica fechada, que advertia os novos integrantes quanto aos perigos de se revelar'' o conhecimento secreto" aos ''não iniciados", justificariam no período um curioso esforço para ''democratizar" o acesso a tais drogas." Em: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e uma contra-história da Tropicália. Tese de Doutorado em História. UFPE. Recife, 2004, p.65

20 jovens do udigrudi. No entanto, no meu trabalho procuro dar novos desdobramentos a essa análise histórica dessas produções musicais, uma vez que me interessa inserir minha análise diretamente sobre os próprios enunciados sonoros e poéticos, que aparecem no período, com o intuito de pensar a própria materialidade do som, problematizando-a como invenção de paisagens sonoras, ou seja, como um acontecimento histórico que modula ou cristaliza uma experimentação cultural. Nesse sentido, além de uma reflexão sobre o fazer cultural e as condições de produção e possibilidade deste cenário em seu fazer cotidiano, também levarei em conta a dimensão heurística do que chega até nós e que emergiu em meio a esta ''situação psicodélica" da qual falou Zé Ramalho, para que seus enunciados possam ser situados na dispersão de acontecimentos que compunham a trama das maneiras de pensar e sentir dessa contracultura nordestina que não me convence nomear sob a alcunha de '' pós-tropicalista".

Outra pesquisa acadêmica que se debruçou sobre a psicodelia nordestina é a monografia do historiador Guilherme Cobelo chamada ''Pelo Vale de Cristal: Udigrudi e contracultura em Recife ( 1972-1976)". Cobelo já inicia seu trabalho afirmando algo importante para pensar a produção musical destes sujeitos imersos nas experiência da contracultura: é preciso desvencilhar-se de uma certo pensamento historiográfico que afirma ser o início da década de 70 um momento ''pós-tropicalista", ou seja, esse termo não é suficiente para pensar as produções do período. Isso porque a partir dos anos setenta passam a emergir com mais frequência cenários alternativos ou undergrounds no que diz respeito à produção cultural e existencial. Também é o início de uma história da ''música independente brasileira" ainda pouco analisada, onde selos de música desvencilhados das grandes gravadoras começavam, aqui e ali, localmente, a lançar discos de artistas que não faziam parte do show business da indústria cultural. Discos que o historiador não encontrará se fizer da história da música brasileira uma história do mercado musical. Nesse sentido, o que a leitura de seu trabalho nos faz perceber é que a partir dos anos 70 deve-se considerar uma série de movimentações musicais que apareceram em paisagens menores, sobretudo através de selos independente de música18 - como é o caso do Selo Solar - e com isso pensar uma outra história da música que não seja apenas uma história iluminada pelos holofotes do 19 mercado musical.

18Ver um dos primeiros estudos que buscou pensar a emergência da música independente no Brasil : VAZ, Gil Nuno. História da música independente. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1988.

19Um exemplo de história da música como história das zonas mais iluminadas do mercado musical, sobretudo durante a década de 70, aparece na obra do historiador Marco Napolitano, que por essa razão deixa passar

21 Nesse sentido, o livro Do Modernismo à Bossa-Nova,20 publicado em 1966, pelo então ensaísta e professor universitário Jomard Muniz de Britto evidencia um aspecto importante a se pensar na análise de dadas situações-momento no campo das artes. Pensando a arte como uma espécie de interferência cultural, o autor levanta uma discussão a partir do Modernismo paulista procurando pontuar a importância de novos hábitos de percepção e do cultivo de uma dada sensibilidade que faz da arte um movimento não apenas estético, mas também existencial, em estreita conexão com uma experimentação espacial. Arte entendida como desenvolvimento de uma dada existencialidade, atravessada por dilemas, insatisfações, precariedades, dilaceramentos e conquistas. Se o modernismo pode ser reconhecido por um comportamento lírico formulador de um olhar sobre o mundo, no caso desta pesquisa teremos que pensar num comportamento psicodélico e contracultural orientando o cultivo de sensibilidades e de percepções marcadas pelos acontecimentos da transição entre as décadas de 60 e 70.

São várias as abordagens possíveis quando se trata de pensar a relação entre história e música. Em conexão ao que sugere o historiador José Geraldo Vinci de Moraes, é importante demarcar algumas fronteiras nas quais se situam historiografias distintas. Segundo o autor costumou-se desenvolver uma história da música a partir das seguintes perspectivas: privilegiar a biografia do grande artista, compreendido como uma figura extraordinária ou gênio criador; centrar-se exclusivamente na obra de arte, buscando uma verdade e um sentido que estaria contido em si mesmo, distante das “questões comuns”; e por fim, também costumou-se fazer uma história das tendências, escolas artísticas e movimentos, buscando estabelecer sucessões e transformações num ritmo ditado em grande medida pelo próprio historiador.21 No meu caso, parti da produção musical destes jovens artistas para perceber a construção coletiva de territórios existenciais onde arte e vida aparecem como elementos interligados, onde o impulso de criar uma experimentação artística na cidade de Recife, entre sons significados como tradicionalmente nordestinos, conectados aos influxos do mundo contemporâneo, será tomado como indicador das tensões de uma dada época. Como aponta o musicólogo Murray Schafer, resta pouca dúvida de que as músicas operam estes indicadores

desapercebido em sua análise a emergências de selos de música independente no país a partir de então : NAPOLITANO, Marcos. Música & história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

20BRITTO, Jomard Muniz de. Do modernismo à bossa-nova. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1966.

21VINCI DE MORAES, Geraldo. Metrópole em Sinfonia: história, cultura e música popular na São Paulo dos anos 50. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 32

22 de uma época, trata-se apenas de saber ler suas mensagens sintomáticas e nelas captar 22 diferentes modos de reordenar acontecimentos sociais, políticos, em suma, históricos.

Sendo assim, uma história de paisagens sonoras, poéticas e existenciais inventadas musicalmente deve considerar que desde que começaram a ser gravadas em discos de cera e posteriormente, em vinil, as músicas passaram a habitar esse território que é essencialmente composto de pequenos fragmentos de tempo. A grande música dos espaços, as canções anônimas de um povo, nação ou etnia, seus ritmos, timbres, suas escalas, aquilo que era uma música dos territórios e das comunidades imaginadas, que se reuniam e se comunicavam através da música, isso tudo começou a ganhar outra configuração de existência no tempo das músicas nascidas nos espaços urbanos e reproduzidas nestes novos formatos fragmentários que fizeram com que os espaços de enunciação compostos musicalmente transitassem e circulassem além de seus locais de origem. A invenção da prensa de discos em 1870 é tão impactante na linguagem dos sons como a invenção de Gutenberg no século XV foi para a escrita. Linha de fronteira para um novo mundo de discos, fitas, cd´s, mp3 e fones de ouvido. Assim como os sons que se fazem ouvir num passeio por uma cidade, a música, também é constituída por forças históricas de uma dada experiência antropológica. Tornar o ouvido um órgão pensante23 e consciente da existência das arquiteturas do tempo é quase como um delírio necessário ao historiador da música.

Sugiro então que pensemos esta pesquisa como um fragmento de uma contra-história do Nordeste. É que o fazer do historiador emerge sempre como algo estratégico, portanto, que seleciona, elege, define o que se deve pesquisar ou não num dado momento. Trata-se portanto de um fazer que é atravessado do início ao fim pela questão do esquecimento e do silenciamento que acompanha seus discursos. No meu caso, realizar esta pesquisa a partir das invenções da turma do udigrudi pernambucano vem se apresentando enquanto uma estratégia capaz de nos fazer entender que muitas vezes o esquecimento está umbilicalmente ligado à um comportamento desviante, à uma escolha existencial que opera um deslocamento em favor de certas experiências que costumam ser pouco recordadas pelo fato de não fazerem parte do universo dos que supostamente venciam em seu tempo.24 Como recorda o filósofo

22SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2001 p. 23

23SCHAFER, Murray. O ouvindo pensante. São Paulo; UNESP, 1991.

24 Nesse ponto, se faz necessário reafirmar parte da VII “Tese sobre o conceito de história” proposta pelo filósofo Walter Benjamin, escrita enquanto buscava escapar das perseguições nazistas que tomavam conta da Europa, entre os anos 30 e 40: ''Ora, os que num dado momento dominam são os herdeiros de todos que

23 francês Michel Onfray, a arte da historiografia é uma arte de guerra.25 Nesse sentido, contra- história não significa ir de encontro ao que seria a história, mas sim partir para uma análise do passado através de dadas matérias de expressão que - por vários motivos - são pouco estudadas ou não figuram nas historiografias tradicionais sobre um dado período. É propor deslocamentos na memória social da qual, nós historiadores, somos um dos responsáveis por 26 construir, como tão bem afirmou o historiador Michel de Certeau.

No que concerne às fontes utilizadas esta pesquisa engloba travessias por diferentes arquivos. O primeiro deles foi o acervo da exposição ''Pernambuco Experimental", material que foi integralmente fotografado por mim em viagem de pesquisa ao Rio de Janeiro em 2014. Posteriormente fui à Recife para pesquisar os arquivos do Jornal do Comércio entre os anos de 1972 e 1976, material que encontra-se disponível no Setor de Microfilmagem da Fundação Joaquim Nabuco. Neste mesma instituição, pesquisei o acervo da bilblioteca, discoteca e cinemateca, fotografando textos e encartes de vários discos que estão presentes ao longo dos capítulos e copiando para DVD filmes como Nordeste: Cordel, Repente e Canção, lançado em 1974 pela cineasta Tânia Quaresma, que nos interessa pois contou com a participação de Zé Ramalho como articulador dos encontros da equipe de filmagem com cantadores, emboladores, repentistas e cordelistas nordestinos e também o filme musical do cineasta Sérgio Ricardo chamado A Noite do Espantalho, gravado em Recife, em 1973, na

venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que hoje até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê tem uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como á corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo." Ver: Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.222-34

25Diz Onfray: ''A historiografia, uma polemologia. A historiografia é do âmbito da arte de guerra. Não é de espantar, então, que nos arredores reine o ambiente dos segredos-defesa. A disciplina participa portanto da polemologia: como encarar o combate, medir as relações de força, elaborar uma estratégia, uma tática para realizá-la, gerir as informações, calar, silenciar, enfatizar o óbvio, fingir, e tudo o que supõe enfrentamentos capazes de determinar vencedor e vencido? A história mostra que é complacente com os ganhadores e impiedosa com os perdedores." In: ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia 1 – As sabedorias antigas. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 9

26 Michel de Certeau nos diz que o historiador atua no sentido de propor em seu discurso uma dada ''habitabilidade do presente", ou seja, está implicado em nosso fazer um certo movimento de deslocamento da memória social. In: CERTEAU. Michel. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.

24 intersecção com as movimentações musicais do udigrudi em Pernambuco. Ainda na Fundação Joaquim Nabuco cataloguei as publicações da Revista de Cultura Vozes entre 1972 e 1974 , alguns exemplares do periódico O Pasquim entre 1972 e 1973, bem como o pequeno acervo do Jornal da Cidade em 1975, publicação menor do jornalismo pernambucano da época, mas de grande importância para a cartografia destas movimentações culturais.

Para a escrita do segundo capítulo, fiz uma viagem de pesquisa à São Paulo, para catalogar o acervo da Revista Planeta no arquivo da Editora 3. Trata-se de revista de origem francesa que foi um fenômeno editorial em diferentes países e que ganhou sua edição brasileira a partir de 1972, com publicação mensal, sob os cuidados do escritor Ignácio Loyola de Brandão. Com tiragens que chegavam a cem mil cópias por edição, creio que esta revista foi fundamental para a disseminação de uma série de conteúdos pouco convencionais que estavam em voga no país e no mundo durante os anos 70, tais como: a especulação em torno de civilizações desaparecidas, a leitura de antigos alquimistas e ocultistas, a teosofia, o estudo das cosmologias, as possibilidades modernas diante do espaço cósmico, a existência de vida extraterrestre, a ecologia, a astrologia, dentre outros temas que remetiam ao que seria um retorno do cósmico como condição existencial e humana. Um leque variado de assuntos que parece ter atingido em cheio os territórios existenciais da contracultura brasileira, como veremos.

No início de 2016, fiz uma entrevista com a cineasta Kátia Mesel, que na década de 70 era companheira de Lula Côrtes e que foi a principal articuladora da casa-produtora Abrakadabra e do Selo Solar, além de artista visual responsável pelo design gráfico dos álbuns lançados pelo Selo. Para mim, a conversa que mantivemos contribuiu para captar elementos da dimensão existencial que estava implicada no fazer cultural da Abrakadabra, algo que está presente no primeiro capítulo e que pude pôr em conexão com outras experiências de espaços de criação coletivos que existiriam nesta época.

Por fim, esta pesquisa deve muito aos arquivos virtuais e as possibilidades de pesquisa e consulta no ciberespaço27, pois foi através da rede que pude escutar toda a discografia em que apoio minha reflexão, além de buscar em sites e blogs imagens, entrevistas, documentários, filmes e outros vários elementos que foram também essenciais para a construção desta dissertação e para a compreensão da atmosfera subjetiva do período

27Ver: LEVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2011.

25 estudado, como por exemplo a hemeroteca digital da Rolling Stone Brasil - periódico que circulou entre 1971 e 1973 no país. A experimentação com o universo relacional que o pesquisador traça com a inteligência virtual das redes faz parte da pesquisa histórica nos tempos atuais. O que não se restringe à coleta de dados em arquivos virtuais já organizados e sistematizados. Por isso, considero importante considerar estratégias possíveis para que esta interface maquínica possa expandir os limites da pesquisa no interior mesmo da dispersão informacional que habita o ciberespaço.

Do ponto de vista metodológico, é importante considerar que participa do fazer historiográfico uma estratégia fundamental da qual todos nós pesquisadores fazemos uso para compor nossas narrativas, independentemente do tipo de abordagem que se faça. Trata-se do movimento de montagem que é constituinte do próprio discurso histórico. Essa necessidade de montar, fragmento por fragmento uma trama narrativa, nos leva à uma discussão metodológica importante para a leitura deste trabalho. A estratégia que encontrei para construir os capítulos que se seguem foi buscar apresentar na superfície do texto - através de fragmentos de músicas, imagens, matérias de jornal, textos críticos, teorias, revistas de cultura do período, entrevistas – uma constelação não de indivíduos isolados, de sujeitos encerrados num ''Eu", mas sim uma constelação de processos de individuação e virtualidades existenciais que se cruzaram e criaram uma dada descontinuidade na maneira de enunciar o 28 Nordeste.

Se esses discos que circularam de maneira muito restrita em sua época marcaram a aparição de algo essencialmente intermitente e descontínuo na organização do ambiente cultural nordestino, como venho supondo, isso significa que é a historicidade dessas intermitências que nos interessam. Algo que lembra mais as luzes de vagalumes se acendendo e apagando repentinamente numa paisagem escura às margens das luzes da cidade do que os clarões dos holofotes do grande mercado musical do período. Esta imagem de pensamento acionada no vislumbre de vaga-lumes à noite é pensada pelo historiador francês Georges Didi-Huberman como o indicativo sintomático de um outro olhar possível em relação ao fazer do historiador, onde o que importa é pensar justamente uma maneira de articular e

28Sobre as possibilidades metodológicas da categoria '' montagem" ver: DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta: o olho da história. Lisboa: KKYM + EAUM, 2013.

26 problematizar aparições fugidias e descontínuas de objetos dessemelhantes que nos fazem 29 lançar novas questões sobre as experiências de outrora.

O fato é que o título desta dissertação faz uma referência direta a um pequeno texto chamado ''A caminho do Planetário" escrito por Walter Benjamin, na década de 30 do século passado30. Ali o autor deixa muito clara sua perspectiva em relação ao mundo moderno. Para ele, nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto a sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conheceria. Na Modernidade, segundo o autor, a expansão técnica estava produzindo uma nova physis na qual a relação do sujeito com o Cosmos se formaria de modo completamente distinto do que nas antigas comunidades de povos e famílias. A experiência cósmica - aquela onde nos asseguramos do mais próximo e do mais distante - teria caído de cotação no mundo moderno e se expressaria de um modo novo. Nesse sentido, para o pensador alemão representava um movimento ameaçador esta tendência recente que considerava tal experiência como algo irrelevante ou descartável, deixando-a por conta do individuo como um mero devaneio místico. Ele percebe que os planetários - estes espaços inventados para funcionarem como um microcosmo artificial - encarnariam a passagem dessa experiência humana em direção a uma Modernidade que só notava o Cosmos como fenômeno ótico, numa espécie de naufrágio que – paradoxalmente - teria se iniciado com o florescimento dos telescópios e da astronomia moderna.

Para o historiador alemão, adentrar os planetários, na primeira metade do século XX, era como dar vazão a um desejo de experimentação e ligação cósmica de um proletariado imerso no mundo caótico da vida urbana. Neste lugar, era possível acercar-se de um cosmos em miniatura, uma recordação de algo que fora parcialmente solapado das fronteiras espaciais forjadas culturalmente na constituição do sujeito enquanto cidadão imerso em fronteiras regionais e nacionais. Esse cosmos comprimido no interior dos planetários é lido por Benjamim como um sintoma no espaço da cidade que lhe faz ver os rumos tomados pela Civilização Ocidental que lhe era contemporânea e que estava literalmente sacrificando a Terra e a humanidade através de suas guerras monstruosas e de seus imperialismos totalitários e desenfreados. Contudo, após esse tenso período entre guerras, no qual esteve

29DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Minas Gerais: Editora da UFMG, 2013.

30A Caminho do Planetário. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II: Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 68-9.

27 imerso, sofrendo as consequências em seu próprio corpo, as fronteiras do planetário parecem ter adquirido novas dimensões no âmbito de uma nova guerra31.

É que a experiência cósmica - como anunciada neste pequeno fragmento benjaminiano - chega sempre e sempre de novo. Mas o que retorna não é o Mesmo, não é o Idêntico, nem tampouco o Uno. Tal experiência chega sempre transformada, tensionada pelo agora que a ativa, em suma, ela nos chega sempre através de uma diferença fundante.32 Me parece que o avanço das tecnologias em direção ao espaço sideral nas décadas seguintes é um indicativo desta diferenciação na segunda metade do século XX, acontecimento que marca uma expansão e uma redefiniçao de dadas fronteiras, momento em que surgem reaparições fantasmáticas de enunciações cósmicas da realidade que pareciam há muito esquecidas. O artifício da técnica tornou possível ver o Planeta de fora dele pela primeira vez e essa expansão das fronteiras humanas parece ter atravessado diferentes partes do campo social, das ciências às artes, passando pela filosofia e por toda a emergência de um arquivo de imagens e discursos onde a categoria de Cosmos ganhou centralidade novamente como categoria espacial.

Por ora, cabe dizer que os enunciados sonoros desta geração underground de artistas carrega aspectos sintomáticos que as colocam como parte integrante deste cenário onde as fronteiras espaço-temporais foram tensionadas no sentido de abri-las a uma perspectiva planetária e cósmica, a partir de consciências e sensibilidades que acabaram produzindo, conscientemente ou não, uma descontinuidade na própria ordem do discurso regionalista e tradicionalista que ancorava uma imagem do Nordeste como espaço da saudade, tornando visível e audível um Nordeste menor33 movido num intuito psicodélico de experimentações e de diluição entre certas fronteiras espaço-temporais. Em tempos onde imperava, no campo da produção cultural dita nordestina, os grandes projetos de Ariano Suassuna e Gilberto Freyre e, no campo político, a ditadura e o desencantamento da esquerda que tentavam a todo custo fazer acreditar que o sonho de um outro mundo possível havia terminado, as psicodelias

31Nesse sentido ver: BORGES, Fabiane. Na busca da cultura espacial. Tese de Doutorado em Psicologia Clínica. PUC-SP, São Paulo, 2010.

32Ver: DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2006.

33Menor no sentido de que foi um lugar minoritário, tecido e experimentado por uma minoria imersa nas vivências de uma contracultura que ia no contrafluxo do imaginário dominante em relação ao Nordeste na cidade de Recife. Nesse sentido ver: GUATTARI, Felix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

28 nordestinas aparecem como linhas de fuga e territórios existenciais alternativos e possíveis. Se de fato as utopias sociais que estiveram em voga nos anos 60 viviam seu momento de fracasso e perdiam consistência à época, isso não significou que estava tudo acabado. Cabe agora buscar entender em que direção sonharam e criaram estes sujeitos atravessados por uma dada sensibilidade contracultural na cidade de Recife e como a música se constituiu na forma de expressão privilegiada, em que seus sonhos se materializavam momentaneamente em configurações de vida partilhadas coletivamente.

Essa Dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro deles se intitula: A sobrevivência dos bichos-grilos: uma cartografia de experiências contraculturais em Recife ( 1972-1976). Nele proponho uma análise que procura situar o que estava em jogo entre os sujeitos que partiram para estas vias de experimentações alternativas ligadas à contracultura, dando ênfase a situação-momento na cidade do Recife. A intensificação das forças reacionárias que estavam postas na superfície do cotidiano, sobretudo a partir da instituição do AI-5 pelo regime militar, contribuíram para a emergência de certo nomadismo existencial que parece ter sido incorporado neste momento onde as utopias políticas, que até os anos 60 vigoraram entre a juventude, perdiam consistência sob os microfascismos cotidianos, o que implicou num deslocamento no que concerne a invenção de espaços de sobrevivência. É a dinâmica destes espaços, entendidos enquanto heterotopias, que procurarei compreender aqui 34 em conexão com a noção de cartografia sugerida pela escritora Suely Rolnik.

O segundo capítulo, intitulado Nas paredes da pedra encantada: Era Espacial, Contracultura e Nordeste à deriva no Cosmos consiste numa análise que parte da experiência coletiva que envolveu a produção do álbum Paêbiru:Caminho da Montanha do Sol - lançado por Lula Côrtes e Zé Ramalho no 1975 – para entender certos tensionamentos espaço- temporais que ganharam consistência, na primeira metade da década de 70, que é marcada pela proliferação de especulações as mais diversas sobre o espaço sideral. Neste capítulo, meu objetivo foi traçar uma problematização das transformações que foram experimentadas no campo das sensibilidades em correlação com as imagens oriundas da Era Espacial e como estas imagens impactaram os jovens ligados à contracultura, gerando deslocamentos que participam da emergência de enunciações amparadas em fronteiras cósmicas, ao invés das recentes fronteiras regionais ou nacionais. Nesse universo de relações, me parece que o

34ROLNIK, Suely. Cartografias sentimentais: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2006.

29 álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol tem muito a nos dizer sobre essas psicodelias nordestinas expressas musicalmente entre 1972 e 1976.

No terceiro capítulo a discussão passa fundamentalmente pela relação entre música, história e espaço. Intitulado Nordestes Psicodélicos: paisagens sonoras e poéticas do udigrudi pernambucano nos anos, nele traço um histórico sobre a construção de um imaginário sonoro do Nordeste ao longo do século XX e em seguida me detenho na análise da discografia destes jovens músicos da década de 70 para demonstrar de que maneira as paisagens sonoras, poéticas e existenciais materializadas nesses discos expressam uma ruptura, uma fissura, uma quebra no regime de audibilidade que costumou definir a música do Nordeste como essencialmente rural e distante dos ruídos urbanos.

Por fim, esta dissertação possui um CD contendo 19 músicas. Neste CD procurei extrair algumas das várias composições que são citadas ao longo dos capítulos. Todas foram gravadas e lançadas entre 1972 e 1976 por esta turma de músicos. Por se tratar de uma pesquisa que parte da relação entre história, música e espaços, considero que esta espécie de compilação sonora oferece uma travessia capaz de ajudar a pensar as questões que atravessam o texto. Nesse sentido, sempre que uma das músicas citadas também estiver contidas no CD, a citação remeterá ao número da faixa.

30 A sobrevivência dos bichos-grilos: uma cartografia de experiências contraculturais em Recife ( 1972- 1976 )

O problema, hoje, não é de debates intelectuais brilhantes ou não: é de uma nova experiência efetiva do mundo, uma nova consciência. Luiz Carlos Maciel, 1972

As urgências do presente Buscar compreender a emergência de maneiras de pensar, sentir e criar denominadas como contraculturais ou undergrounds durante o período da ditadura militar no Brasil implica em conectar fragmentos dispersos destas experiências vividas à margem dos códigos e relações sociais dominantes para que seja possível captar problemas comuns que atravessavam os sujeitos em seus diferentes territórios existenciais, cartografando suas experimentações estéticas.35 O fato é que com o endurecimento da perseguição política e da censura no final de 1968 – efeito imediato do ato institucional número 536– a própria relação entre arte e vida ganhou novos direcionamentos entre parte da juventude brasileira, que estava notoriamente insatisfeita com a situação de cerceamento, repressão e silenciamento em que a macropolítica procurava colocá-los. Partir para uma via de experimentação micropolítica37 - alternativa e subterrânea - parecia apresentar-se como uma estratégia possível neste cenário de tensões que estava posto não só nas fronteiras e na vida cotidiana no país, mas num Ocidente que passava por um período de intensas transformações culturais.

35 Para Suely Rolnik, nisso consiste a tessitura do que chamamos de cartografia '' A prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às estratégias da formação do desejo no campo social. E pouco importa que setores da vida social ele toma como objeto. O que importa é que ele esteja atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar." Em: ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre. Sulina, 2006. Trecho também disponível no link: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensarvibratil.pdf ( Acesso em 16/03/2017 )

36Para ler o texto do Ato Institucional nº 5 de 13 de Dezembro de 1968 basta acessar o link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm ( Acesso em 31/05/2016)

37 Como aponta o filósofo Felix Guattari, a diferença entre macropolítica e micropolítica é da ordem do molar e do molecular. Enquanto a primeira diz respeito aos processos molares e visíveis de territorialização das subjetividades coletivas em identidades no interior das fronteiras de uma sociedade – neste caso no contexto da ditadura civil e militar que atravessava o Brasil. Noutro sentido, a micropolítica invoca os processos moleculares de subjetivação, de escapada e potencial reinvenção, onde agenciamentos coletivos de enunciação se constituem de maneira minoritária através das estratégias de criação do desejo no campo social. Ver: Micropolítica: molar & molecular. In: GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1996, p. 127-138

31 Nesse universo de relações sociais, fazer da criação artística não apenas um fenômeno estético em relação aos códigos de uma dada linguagem, mas sobretudo uma experiência de afirmação existencial, de um modo de vida, foi uma das alternativas construídas para que as possibilidades não se esgotassem num momento em que o sonho de uma revolução social, tal qual vislumbrada na década anterior, perdia consistência progressivamente. Basicamente, dois processos de subjetivação foram aprofundados a partir da consolidação da ditadura civil-militar, que estava podando a sempre precária rede de relações democráticas do país: aprofundar-se nas experiências militantes-partidárias que conduziram às guerrilhas armadas, mantendo vivo o sonho numa possível revolução social inspirada nos acontecimentos de Cuba e China ou, por outro lado, adotar novos hábitos individuais e coletivos, buscando criar espaços de experimentação para que uma outra realidade social aflorasse entre os que assim desejassem.38 Nas guerrilhas armadas, sobrevivia o ideal utópico de fazer no futuro um novo mundo e para isso adotou-se um estilo de vida militarizado em busca deste horizonte possível. As guerrilhas encarnaram e deram expressão, de maneira singular, a uma pulsão de morte coletiva que atravessava o corpo social e que era latente entre uma militância partidária cada vez mais fragilizada e assombrada pela morte devido aos dispositivos punitivos do Estado.

Enquanto isso, nos territórios existenciais do que costuma ser chamado de contracultura brasileira emergia uma percepção sobre a urgência de viver e criar espaços para a fruição das transitoriedades do presente. A transformação das condições de experimentação da vida cotidiana se faziam mais urgentes que a transformação das relações de poder do Estado. Fulano “desbundou!", primeiramente foi assim que uma esquerda educada pela moral do partido passou a significar o gesto daqueles que abandonavam as trincheiras da luta armada. Mas o termo acabou encontrando terreno fértil, na transição das décadas de sessenta e setenta do século passado, em diversas cidades do país. Desbundar foi um verbo muito conjugado durante este período, passando a designar, ainda que com certo receio, novos modos de existência que estavam florescendo através do contato com as transformações

38Essa dicotomia entre dois modelos distintos de racionalidade e experimentação foi tomada pelo historiador Edwar Castelo Branco como o índice de dois modos de subjetivação presentes nas experiências da juventude da década de sessenta, o que transparece nas próprias narrativas históricas pois, segundo o autor "A história dos anos sessenta no Brasil será descrita pelo confronto entre modelos distintos de racionalidade que podem ser metaforizados através da figura de um corpo militante partidário e um corpo transbunde libertário." Em: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e uma contra-história da Tropicália. Tese de Doutorado em História. Recife. UFPE, 2004, p. 268

32 culturais, psíquicas e políticas que a juventude nascida no pós-guerra expressava em diferentes lugares do mundo. A política estava escorrendo para o corpo, para o inconsciente, para a libido, para a experimentação e transformação da vida cotidiana. Nesta configuração, importava a criação de situações e espaços onde houvessem condições de experimentar uma certa liberdade existencial na urgência do presente. É nessa segunda via que teria aflorado zonas de criação e existência que circunscreveram as fronteiras da contracultura brasileira entre o final da década de sessenta e o início dos anos setenta.

Nas palavras de Heloisa Buarque de Hollanda, o que se viu a partir da intensificação da repressão política foi a expansão de medidas coercitivas que afetavam o corpo social, onde não apenas as atividades político-sindicais dos grupos e classes populares mas - sobretudo a partir do fim da década de sessenta - a própria classe média intelectualizada, das universidades aos movimentos artísticos, tiveram suas atividades bloqueadas e deslegitimadas pelas forças reacionárias que imprimiam sua força nas leis e nas ruas. Contudo, foi justamente neste momento de desânimo e vazio experimentado por aqueles que nutriam visões de mundo que estavam tentando ser silenciadas pelo regime, que o solo tornou-se fértil para uma outra perspectiva de transformação e ação libertária. Como afirma a autora sobre o início da década de setenta:

As sugestões da “revolução individual” que estiveram presentes no Tropicalismo, encontram um solo fértil. A descrença em relação às alternativas do sistema e à política das esquerdas dá lugar ao florescimento, em áreas da juventude, de uma postura “contracultural”. A droga como experiência de alargamento da sensibilidade e de mudança da cabeça, a valorização da transgressão comportamental, a marginalização, a crítica violenta à família - nesse momento mais que nunca “fechada” com o Estado, que lhe oferece as delícias do “milagre econômico” - a recusa do discurso teórico e intelectual, crescentemente tecnicista e vazio, o sentido da viagem, do “ir ao fundo na existência” - que tem seus aspectos mais dramáticos na vivência-limite da loucura e do desajustamento - dão o tom do

39 desbunde.

É nesse sentido que o poeta Waly Salomão pôde afirmar que a compreensão dos bloqueios criados pela ditadura potencializou um “jogar-se no mundo” e de certo modo, acabou instaurando um desejo coletivo voltado para a criação de “buracos e respiradouros”

39HOLLANDA, Heloisa B; GONÇALVES, Marcos. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, p. 95

33 em meio as paredes invisíveis que o regime impunha aos corpos e mentes. Para se ter uma ideia, “Na corda bamba” foi o nome escolhido para a coleção literária publicada a partir de 1972, na qual Waly havia lançado seu primeiro livro de poemas no Rio de Janeiro.40 Estava se constituindo no terreno da linguagem aquilo que ficou conhecido como literatura ou poesia marginal, onde as movimentações de poetas como Waly, Chacal, Paulo Leminsky, dentre muitos outros, começavam a aparecer em novas publicações, com uma escrita que fazia da própria existência cotidiana a trama de sua invenção. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, se deu o aparecimento de revistas como a Bondinho, Flor do Mal, O Verbo, expressando fragmentos desta sensibilidade contracultural que também foi ganhando consistência na linguagem musical e que com o advento de uma imprensa alternativa abriam espaços importantes para a circulação de informação sobre estas movimentações underground.

Entre 1971 e 1973 também passou a circular nas capitais brasileiras a edição nacional da revista Rolling Stone, um periódico que por aqui foi editado pelo jornalista e filósofo Luiz Carlos Maciel. Com tiragens que chegavam a 40.000 cópias, circulando pelo território nacional, a Rolling Stone foi uma das principais responsáveis pela divulgação de informações referente ao universo existencial da contracultura, principalmente no que concerne à música jovem das bandas de rock internacionais da época e também de artistas brasileiros que expressavam essa nova sensibilidade em seus discos, como , Jards Macalé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, , A Bolha, dentre outros. Com resenhas de discos e de apresentações, além de uma série de entrevistas e análises críticas, a revista tornou-se um veículo rico de informações para àqueles que viviam o desbunde nos anos setenta nas capitais 41 brasileiras.

O termo “na corda bamba” - utilizado por Waly para nomear a coleção literária que estava editando - também funciona como uma expressão que parece designar bem um certo estado de espírito que era partilhado coletivamente em diferentes regiões do país. Nesse sentido, é a partir dos sentidos e das direções dadas a esse “jogar-se no mundo” que

40Trata-se do livro Me segura qu´eu vou dar um troço, publicado em 1972 mas que começou a ser escrito em 1970 após Waly ter sido temporariamente preso no Carandiru por portar, segundo ele, '' bagana de fumo" consigo. Uma nova edição foi publicada em 2016: SALOMÃO, Wali. Meu segura qu´eu vou dar um troço. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

41Os 37 exemplares da Rolling Stone podem ser consultados na hemeroteca digital dedicada à sua publicação entre 1971 e 1973. O material está disponível no link: https://www.pedrarolante.com.br/# ( Acesso em 13/03/2017)

34 procuraremos entender a emergência de zonas de experimentação contraculturais na cidade de Recife, na primeira metade da década de setenta. A ideia para este capítulo é que possamos compreender estas pulsações políticas, estéticas e existenciais que passaram a ganhar expressão na capital pernambucana durante este período de bastante repressão política nas ruas e como tais movimentações atravessaram o espaço da cidade e constituíram espaços heterotópicos42 de experimentação coletiva.

Neste mesmo ano de 1972, na capital pernambucana, a I Feira Experimental de Música do Nordeste aparecia com a proposição de ser um evento fortemente influenciado pela experiência do Festival de Woodstock, que ocorrera em 1969 nos EUA. Isso porque as imagens de Woodstock reverberavam entre jovens de diferentes países, que iam as salas de cinema de suas cidades assistir o relato cinematográfico deste acontecimento, que reuniu cerca de 500.000 pessoas num agenciamento coletivo que era atravessado por um desejo de liberação de certas amarras culturais, políticas e sexuais que haviam modulado uma cultura de guerra e de destruição planetária que, à época, tinha na guerra do Vietnã seu ponto mais significativo.

Parte da sociedade americana – sobretudo as camadas mais jovens - se negavam a ir ao campo de batalha em nome do país e afirmavam esta negação deslocando-se de seus lugares de sujeito à procura de reinventar-se em um outro sonho comunitário. Alguns até chegaram a rasgar seus documentos de identidade, simbolizando este impulso de cair fora, de transformar a si próprio, de negar o passado cultural e os poderes que lhes era impostos. O fato é que com trechos das apresentações de Jimi Hendrix, Santana, Jefferson Airplane, Janis Joplin, Ravi Shankar e muitos outros, no Nordeste o filme circulava pelas capitais em salas de cinema como as do Cinema São Luiz em Recife e afetava sujeitos como Zé Ramalho e Ivinho, jovens músicos, com vinte e poucos anos que, à época, tocavam em bandas de baile nos clubes noturnos das capitais nordestinas, onde predominava a sonoridade do iê-iê-iê 43 típico das bandas da Jovem Guarda.

42 Em sua origem etimológica '' heterotopia" é a junção de duas palavras gregas: heteros ( outro) e topos ( lugar). A partir da obra do filósofo Michel Foucault heterotopia emerge como um conceito que ajuda a pensar a criação de '' outros espaços" à margem de dados códigos dominantes. Ver: FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.421

43 Como afirmou o historiador Igor Fernandes Pinheiro em sua pesquisa sobre rock, psicodelia e contracultura no Brasil: '' Nos anos setenta o '' circuito de bailes" começou a declinar. O influente programa Jovem Guarda havia realizado sua última transmissão em 1969, assim como o rock sofreu mudanças estéticas e

35 Como afirmou o próprio Zé Ramalho em uma entrevista onde recorda sobre sua juventude: “uma coisa que mudou minha vida foi a primeira vez que vi Woodstock. Quando saí do cinema, já era outra pessoa. Eu mudei minha personalidade, queria fazer tudo aquilo que vira aqueles caras fazendo”44. A passagem é sintomática e indica que para alguns sujeitos, após o impacto das cenas de Woodstock, a “brasa” de Roberto Carlos e companhia passou a arder sem graça diante do fogo dionisíaco dos solos da guitarra de Jimi Hendrix e Carlos Santana. As catarses coletivas vividas em festivais de música ao ar livre como o de Woodstock ou o Festival da Ilha de Whight45- onde a experimentação musical se unia à experimentação de substâncias psicoativas e outras liberdades existenciais - apontavam um desejo de criação de espaços temporários de experimentação e celebração no Brasil a partir dos anos setenta. Acontecimento que não significou apenas uma transformação na relação com os sons, mas sobretudo uma modificação da maneira de ser e estar no mundo que 46 ganhara expressão musicalmente à época.

A I Feira Experimental de Música do Nordeste aconteceu em novembro de 1972, no distrito de Fazendo Nova, no mesmo local onde era encenada, desde 1956, a “Paixão de Cristo”. Inclusive, o equipamento de som utilizado no evento era o mesmo do espetáculo cristão: 34 caixas de som, 10 amplificadores Delta e 16 microfones. A diferença é que enquanto os fiéis saiam de suas casas para assistir a encenação de uma via crucis dolorosa que reafirmava ritualmente a culpabilidade cristã diante da carne, os desbundados do udigrudi, por outro lado, chegavam ao evento desejosos por viverem novas experiências de

comportamentais na transição entre as décadas. As baladas deram lugar a guitarras mais estridentes e novas abordagens davam tom às canções. As temáticas antes relacionadas a namoros e carros deram lugar a assuntos associados à contracultura que finalmente transparecia no Brasil de forma mais evidente." In: PINHEIRO, Igor Fernandes, Não fale com paredes: contracultura e psicodelia no Brasil. Dissertação de Mestrado em História. UFF. Niterói, 2015, p. 69

44 Zé Ramalho em '' A peleja do diabo com o dono do céu". O Som do Vinil. Rio de Janeiro: Canal Brasil, 2007. Programa de tv. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1bGKhkkwZhY ( Acesso em 02/04/2017)

45O Festival da Ilha de Wight ocorreu na Inglaterra entre 1968 e 1970. Durante as três edições o público foi de cerca de 10.000 pessoas na primeira edição para cerca de 600.000 pessoas em 1970. Nele se apresentaram bandas como: The Who, The Doors, além de Jimi Hendrix, Leonard Cohen, Jefferson Airplante e outros artistas que representavam esta sensibilidade contracultural que vinha se constituindo no Ocidente.

46Além da I Feira Experimental de Música do Nordeste, de 1972, também aconteceram outros pequenos ''Woodstock´s Brasileiros" no período como: o '' Dia da Criação", no Rio de Janeiro, com a presença das bandas do cenário contracultural carioca O Terço, Som Imaginário, Os Brazões, Modulo 1000, Karma, Liverpool, Serguei. No mesmo ano também acontecia o “1º Concerto da Feira Livre de Som" em Uberlândia, o Festival do Sol, no gramado do estádio Juvenal Lamartine em Natal e, provavelmente houveram muitos outros espalhados pelo país.

36 prazer com o corpo tendo a música como trilha sonora para suas experimentações. Obviamente que a Feira nem de perto se aproximou das grandes proporções do que foi Woodstock, mas o tom anárquico deste encontro entre jovens, vindos de uma capital conservadora como Recife, foi um estopim para que novas ligações afetivas, artísticas e existenciais se estabelecessem à margem do controle social que o regime político impunha na cidade. O interessante é percebermos a descontinuidade que a partir daí se apresentou no cenário cultural pernambucano. Uns falam de 2000, outros de 600 ou 800 pessoas vindas de diferentes cidades da região e que estiveram presentes no evento que estava sendo organizado pelos Centros Acadêmicos dos cursos de medicina, arquitetura, engenharia e geologia. O mais importante de se reter, é que este encontro, que durou dois dias, acabou funcionando como um catalisador importante para o desenvolvimento de uma constelação de criações alternativas que, à meia luz, ganhou forma no campo musical na cidade de Recife entre 1972 e 1976. Segundo o jornalista José Teles, a Feira uniu músicos que trabalhavam até então de maneira dispersa e a partir daí a cidade começou a viver a cena udigrudi – pouco

47 documentada – surgida no Brasil durante os anos de chumbo da ditadura militar.

O texto de apresentação da Feira dizia que “caso a gente queira entender as coisas que hoje nos afligem não há como fugir a uma análise de 1939, até o dia em que a bomba explodiu. Tudo está desencadeado em cadeia, na mesma explosão: a música, a arte, a Feira Experimental de Música”.48 A ligação pode até soar despropositada, num primeiro momento, e o próprio José Teles satiriza este texto de apresentação afirmando que deviam estar todos “muito loucos” ao escrevê-lo, num típico desejo de simplificação tão comum ao fazer jornalístico. No nosso caso, cabe averiguar com mais profundidade esta passagem, mesmo que ela não passe de um delírio de alguns jovens vistos como loucos pelos outros, afinal o delírio também é dotado de historicidade e ajuda a pensar as linhas de desejo no seu movimento de tecer realidades sociais.49 Deve-se considerar que estes sujeitos nascidos no pós-Segunda Guerra Mundial sentiam que a explosão da bomba foi um acontecimento que

47 TELES, José. Do Frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000, p.152

48Idem, p. 151-2

49De acordo com Suely Rolnik os fluxos do desejo não estão escondidos, recalcados ou submersos da superfície do mundo. Ao invés disso, o desejo participa da criação das realidades sociais, forja linhas que se entrecruzam e dão vida a processos de subjetivação que estão presentes e em total relação com os acontecimentos da ordem do dia. Ver: ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2006.

37 não se restringiu ao desastre causado nas cidades de Hiroshima e Nagazaki50. Seus efeitos se prolongaram e atingiram a sociedade de maneira geral, impulsionando uma série de questionamentos sobre o destino do planeta e da vida humana, que foram encarnados por várias manifestações, tidas como contraculturais, da geração dos anos 60 e 7051, ao redor do mundo. O ethos da bomba abriu as fronteiras do mundo para os dilemas da nova era atômica, garantiu aos EUA um novo lugar na geopolítica global, ao mesmo tempo em que tornou-se um acontecimento simbólico para expressar os desvios dessa geração, que via na expansão da tecnocracia uma ameaça real à vida humana.

O esquema “palco aberto”, adotado na Feira, acabou abrindo espaço para que novos sons e encontros ecoassem e foi nela que começaram as primeiras conexões entre os jovens artistas plásticos e músicos Lula Côrtes e Lailson, além da primeira aparição da banda Tamarineira Village, que posteriormente se tornaria a Ave Sangria, a grande banda de rock pernambucana da época, liderada pelo poeta Marco Polo. Nele também participaram o coletivo Nuvem 33, encabeçado pelo compositor Tiago Araripe, que logo migraria para São Paulo, chegando a gravar um compacto com Tom Zé. O desenhista Lula Wanderley foi o criador da ilustração do cartaz do festival. A primeira banda que se apresentou foi o grupo de pífanos de Nova Jerusalém, que tocou no Palácio de Pilatos52 para um bando de hippies e estudantes que foram até o locar experimentar o evento, que estava sendo tratado como “o primeiro grande passo para a renovação da música regional”53. Das experimentações foram emergindo ideias e fusões de sons que logo ganhariam consistência através da produção underground da primeira metade da década de 70, na capital pernambucana. Sons que

50 Nas palavras do pensador francês Michel Serres: “Hiroshima é de fato o fim de um mundo e o início de uma nova aventura. A ciência acaba de conquistar um poder tal que pode virtualmente destruir o planeta.” In: SERRES, Michel. Luzes. Cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo; Unimarcos Editora, 1999. p. 117

51Como afirmou Thedore Roszak, em 1968: ''A contracultura toma posição tendo como pano de fundo esse mal absoluto, um mal que não é definido pelo simples fato da bomba, mas pelo ethos total da bomba, no qual nossa política, nossa moralidade pública, nossa vida econômica e nosso esforço intelectual acham-se atualmente inseridos com abundância de engenhosa racionalização. Somos uma civilização sepultada num inabalável compromisso para com o genocídio, jogando loucamente com o extermínio universal da espécie." In: ROSZAK, Theodore. A contracultura. Petrópolis: Editora Vozes, 1972, p. 58 - 9

52O Palácio de Pilatos é um dos espaços cenográficos onde se desdobra a narrativa da '' Paixão de Cristo". De acordo com a narrativa bíblica que o espetáculo procura remontar, é neste local que é encenado o julgamento de Jesus Cristo diante de Pôncio Pilatos.

53ARARIPE, Tiago. O palácio de Pilatos como palco. Blog Cabelos de Sansão. Fevereiro de 2008. Link disponível em: http://cabelosdesansao.blogspot.com.br/2008/02/o-palcio-de-pilatos-como-palco.html ( Acesso em 05/05/16)

38 pulsaram desde espaços de sociabilidade alternativos, menores e desviantes em relação à cultura dominante da cidade.

Lailson de Holanda, que mais tarde se tornaria um conhecido cartunista pernambucano, à época, era desenhista, músico e estudante de arquitetura e havia recém voltado de uma viagem aos EUA, que havia durado cerca de dois anos. Através de uma bolsa de estudos, o jovem recifense transitou entre o Estado do Arkansas e a cidade de Nova Iorque e para além da vida de estudante acabou sendo afetado pelas experiências das movimentações contraculturais norte-americanas, onde a literatura beat de escritores como Jack Kerouac e Allen Ginsberg reverberava entre os jovens como fontes de inspiração para uma transformação da vida cotidiana. Como afirmou Ginsberg, seu procedimento de criação era bastante intuitivo, tratava-se de “apenas escrever....soltar a imaginação, descerrar o segredo, anotar linhas mágicas saídas de minha mente real”54. Era a crença na intuição, na inspiração e nas forças irracionais do humano se contrapondo e buscando se deslocar do terreno da dura racionalidade que o Ocidente havia construído para si. O poder da errância da mente e do corpo se contrapondo à codificação racionalista da experiência. Pouco tempo após seu retorno para a capital pernambucana, Lailson já estava envolvido na organização da Feira Experimental de Música, ficando responsável por organizar a programação musical, que como o próprio nome do evento apontava, centrava-se muito mais na improvisação e na experimentação com os sons do que na apresentação de bandas com seus reportórios programados. Não é a toa que o pessoal até tentou – mas não conseguiu - trazer o músico para a Feira, ele que vinha desde os anos 60 desenvolvendo uma sonoridade que costumava valer-se da livre improvisação entre o jazz , a música livre e elementos ligados as sonoridades historicamente desenvolvidas no Brasil.

Mas não era só Lailson que havia retornado transformado pelas viagens que fizera. Aliás, se quisermos entender a formação dessas psicodelias nordestinas, que ganharam expressão nas vivências e no campo musical, temos de levar em consideração os encontros entre sujeitos que estavam em movimento, saindo e entrando das fronteiras da região, trazendo na bagagem novidades que os faziam lançar um olhar diferente para a cultura nordestina. Alceu Valença também fora para os EUA no início da década, seu destino era estudar Direito na Universidade de Harvard, mas foi por lá que ele acabou redescobrindo a potência dos sons de sua região cantando nas ruas as músicas de Jackson do Pandeiro e Luiz

54ROSZAK, Thedore. Op. Cit, p. 134

39 Gonzaga. Tiago Araripe , que escrevia para o jornal A Vanguarda, na cidade do Crato, na década de sessenta, partira em direção à Recife para estudar na universidade. Zé Ramalho, após abandonar os grupos de baile paraibanos, também foi outro que rumou para a capital pernambucana. Essa circulação fazia parte de um movimento coletivo de desterritorialização das subjetividades de parte da juventude imersa nas transformações da década de 60 e 70, o que impulsionava o movimento, o nomadismo, o contato com o outro, como alternativa para 55 uma reinvenção das possibilidades de vida e de criação coletivas.

Lula Côrtes e Kátia Mesel haviam saído do Recife para viajar pela Europa e pelo Norte da África, levando alguns dos trabalhos que vinham desenvolvendo conjuntamente para vender e fazer trocas, enquanto perambulavam por diversas cidades. Foi em Tânger - cidade marroquina que recebe o fluxo de pessoas vindas do Sul da Espanha- que Lula encontrou-se com a sonoridade do tricórdio - espécie de cítara popular árabe - ao assistir um músico de rua tocando o instrumento. Lula viria a incorporar o tricórdio ao rock psicodélico que faria em Recife a partir de 1972. Segundo Lula, era uma maneira de evocar a memória mourisca que a música nordestina possuía. As escalas em mixolídio do tricórdio representavam essa face oriental, constituinte da formação cultural da música que gestou-se 56 nas fronteiras do que viria a se tornar o Nordeste, através do uso da viola de 10 cordas:

Eu acho que a época que eu e Kátia saímos do Brasil, era a época propícia. Todo mundo estava na estrada. Então quando nós fomos pra Amsterdam, nós ficamos no Vondelpark. Era um lugar em que se encontrava a juventude do mundo inteiro que tava [sic] na estrada, tava andando, procurando coisas, trocando ideias. Os hell- angels, os surinames, os negros com as músicas jamaicanas...então, uma troca de culturas muito importante, essencial. A fusão tava sendo feita ali, espontaneamente. Todo mundo tava buscando a riqueza das outras etnias. Entendeu qual era o lance? Na verdade, parecia uma coisa inconsequente de morar

55 O conceito de desterritorialização ganha consistência a partir do trabalho conjunto de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Desterritorialização pode ser pensada como a possibilidade de saída, de deslocamento, de produção de uma exterioridade temporária em relação a um dado território subjetivo que vem a se descodificar. Neste sentido ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo. capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

56O modo mixolídio forma-se estabelecendo como tônica a quinta nota da escala diatônica. É um modo escalar comum na musicalidade que se desenvolveu historicamente nas fronteiras do Nordeste, como no baião e no frevo.

40 no parque, mas não era. Era uma necessidade mundial do pós-guerra de unir de 57 novo todas as raças que haviam sido praticamente extirpadas.

Jovens de passagem pelo Vondelpark em Amsterdam nos anos 70.

Outro viajante que desembarcou em Recife, bem na época da Feira de Música, foi o poeta Marco Polo Guimarães. Ele que já havia participado do antigo Teatro Popular do Nordeste58, publicava poemas em Recife e também atuou como jornalista. Depois de algum tempo vivendo pelos espaços da desbundada cidade do Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista e compositor, sendo também um frequentador das feiras hippies, que proliferavam na capital carioca, em que a juventude ligada à contracultura se reunia nas chamadas ''dunas do barato" para fumar um baseado, transar ideias e/ou viajar. Ao retornar à capital pernambucana, cabeludo e cheio de novas poesias escritas, Marco Polo formou com os cabeludos Paulo Rafael, Ivinho, Almir Oliveira, Agrício Noya e Israel Semente Proibida a banda Tamarineira Village, que foi o embrião da futura Ave Sangria. Trato dessas

57Um papo calmo: vida e arte de Lula Côrtes. Entrevistador: Marcelo Prata. Badoh Negro Records. Recife, 2007. Documentário disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7fL7ljHc2kw ( Acesso em 29/04/2016)

58 O Teatro Popular do Nordeste, conhecido com TPN, foi um espaço criado na década de 60 em Recife pelo teatrólogo pernambucano Hermílio Borba Filho. A pesquisa do grupo – que envolvia outros intelectuais nordestinos- voltava-se para a criação de '' espetáculos nordestinos'' de teatro baseados nas manifestações populares historicamente desenvolvidas na região.

41 experiências por considerar esses deslocamentos, essa travessia dos sujeitos, como fundamental para entendermos que a Feira Experimental de Música funcionou como uma situação propícia para o encontro de pessoas interessadas neste viver meio nômade, meio errante, que fora desencadeado pelas maneiras de pensar e sentir contraculturais do período.

Digamos que um certo nomadismo existencial estava se consolidando entre parte da juventude no Ocidente, não só nas suas expressões artísticas mas também nas suas formas de encarar a si mesmo, aos outros, ao viver no mundo. Lembremos do que diz o filósofo francês Gilles Deleuze, em texto intitulado “Pensamento Nômade”, escrito justamente neste ano de 1972, numa França que vivia uma forte reação política ao deslocamento que representou o Maio de 68 para a juventude: ''grupos inteiros que partem, que nomadizam: os arqueólogos nos habituaram a pensar esse nomadismo não como uma estado primeiro, mas como uma aventura que sobrevém a grupos sedentários, o apelo do fora, o movimento”.59 As experiências contraculturais da década de setenta encarnaram essa dinâmica nomádica de uma vida aventurosa que apelava ao fora, às margens, como estas zonas livres para o trânsito, o transe, o êxtase. Era uma forma de fazer sobrevir novas relações fora das estruturas e relações dominantes, da Família, do Estado, da Nação, da Cultura Oficial. O fazer contracultural era movido por linhas de fuga do desejo buscando se esquivar de certos códigos, investindo então numa descodificação do corpo, da subjetividade, das relações sociais em sua dimensão ética e também estética. Não é a toa que a literatura beatinik dos anos cinquenta tornou-se um marco para esta geração, era a leitura de corpos em movimento, viajando, pelas estradas do território dos países e pelo interior de si mesmos com o uso das drogas e suas experiências visionárias, com a liberação e reinvenção da sexualidade, tecendo relações flutuantes de camaradagem com o outro. Nesse contexto, formaram-se bandos, matilhas, tribos de viajantes, a criar espaços de transe, de transcendência, de desterritorialização em relação aos limites de fronteira da organização da vida cotidiana em sua totalidade.

Sob a força destes acontecimentos, a própria vida dos sujeitos foi ganhando um sentido de viagem existencial e nas fronteiras imaginárias do Nordeste esses fluxos também foram incorporados em contextos locais, como esta pesquisa procura demonstrar. O fenômeno da contracultura no Ocidente representou essa nova proliferação de enunciados e

59DELEUZE, Gilles. O pensamento nômade. Em: A ilha deserta e outros textos. Org: David Lapoujade. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 327

42 de práticas que se pretendiam como experiências desterritorializantes. O sentimento partilhado coletivamente inspirava a compreensão de que para se viver algo de intenso era preciso encarnar uma relação dinâmica consigo, com os outros e com o mundo. Por ora, também convém pontuar a importância da amizade como processo de subjetivação coletivo. É nesse sentido que busco refletir sobre a aparição destes concertos musicais marginais na cidade de Recife, pois o que podemos observar é um desejo coletivo maquinando espaços de liberdade para que os sujeitos troquem vivências entre si, visando uma exterioridade às forças sedentárias dos códigos que davam rítmica a organização social.

Nesse universo de relações também produziu-se uma novo momento no que se refere à experimentação dos sujeitos com substâncias que alteram o estado do corpo em vigília. O desejo de deriva atraía muitos sujeitos para o universo das trips do psicodelismo e seus estados alterados de consciência. A redescoberta do potencial extático da psilocibina, substância contida em certas espécies de cogumelos, e a recente invenção do ácido lisérgico, foram dois acontecimentos importantes que geraram deslocamentos tanto no campo das ciências quanto nos territórios existenciais da contracultura ao redor do mundo. A possibilidade de uma expansão momentânea da consciência e da sensibilidade, os deslocamentos no campo da percepção, a vontade de ir fundo dentro de si mesmo e sentir o mundo ao redor de outra forma, dentre outras coisas, estimularam a criação de novas relações culturais no que se refere ao que comumente denominamos por “drogas”. Também houveram as bad trips, as viagens sem volta, aqueles que literalmente piraram. De todo modo, a historicidade desse processo será traçada com mais profundidade no capítulo seguinte. Por ora, cabe pontuar que essa relação com tais substâncias também fazia parte deste nomadismo existencial que reverberava entre a juventude e dava vazão a novos territórios subjetivos.

O que significou algo importante, num momento da nossa história em que o lema da publicidade do regime político que dominava o país era o “ame-o ou deixo-o”, frase que circulava não só na política oficial mas também aparecia no dia-a-dia da sociedade, entre vozes conservadoras ou até mesmo em carros que portavam adesivos com essa estranha mensagem, símbolo de tempos intolerantes. Quem não podia ou não queria deixar as fronteiras nacionais o fez a partir de uma atitude de colocar a si próprio numa espécie de fora, em uma situação de abertura das fronteiras, sejam elas políticas, psíquicas ou culturais. É que devemos entender a contracultura como a encarnação - na vida social das décadas de sessenta e setenta - de uma pulsão errante constituinte da própria condição humana, uma constante antropológica que, sob modulações variadas e sempre diferenciadas, faz mover as fronteiras

43 de uma dada ordem social. As experiências contraculturais, que aparecem localmente na capital pernambucana, dão conta de expressar um desejo de evasão contrário a um estado de coisas que é político mas também existencial. Para Michel Maffesoli, o nomadismo é a expressão de um sonho imemorial que o embrutecimento do que está instituído, o cinismo econômico, a reificação social ou o conformismo intelectual jamais chegam a ocultar totalmente.60 A errância é uma espécie de “respiração” social, na medida em que dá ênfase a dimensão estrutural do intercâmbio, da troca, do contato com o outro. Num momento em que essa pulsação aflora é comum perceber a expressão de tal desejo coletivo, como diria Waly Sailormoon, à época, no poema “Câmara de ecos``: a linha de fronteira havia se rompido. Não é a toa que, em 1974, num Teatro Santa Isabel lotado e em outras várias apresentações pelo Nordeste, a banda Ave Sangria deu voz a uma canção intitulada “Dois Navegantes”:

Aqui estamos juntos

Ao pôr do sol

Dois navegantes

No mesmo barco

Aqui estamos sós

Ao pôr do sol

Andando lado a lado

No mesmo mar

Não deixes a vela apagar

Nem o mastro cair

Nem a corda prender

Só deixes o vento que solta

Teus cabelos

Espelhos dos meus

Te soprar em mim

Pra depois

Deslizar em ti

60MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo e outras vagabundagens pós-modernas. São Paulo: Record, 2001, p. 41

44 61 Deslizar em mim

A metáfora da navegação evoca esta condição do nomadismo tão cara às experiências da contracultura. A viagem não diz respeito apenas às saídas dos territórios geográficos. A navegação tem a ver com a própria dinâmica flutuante que estava ganhando expressão entre os sujeitos em sua forma de viver e expressar-se poeticamente, a partir de seus territórios existenciais. Navegantes remando juntos num mesmo barco, solitários, num perpétuo movimento, mas conscientes da importância do outro para continuar a se mover, mesmo que pelas brechas, criando espaços movediços. Para Deleuze, no mesmo texto citado anteriormente, remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de toda instituição. Uma deriva, um movimento de deriva ou de desterritorialização.62 Não é exagero afirmar que grande parte do que foi produzido por esta geração de artistas pode ser pensada a partir desta metáfora do barco em movimento ou qualquer outra metáfora que nos traga a dimensão de territórios que se movem, flutuantes ou 63 não.

São vários os acontecimentos históricos que dão conta de expressar que um certo nomadismo existencial ganhava consistência no Ocidente. A cultura pop desempenhou um papel importante neste sentido, mas não só ela. Como afirmou o historiador Greil Marcus, a disseminação radiofônica da canção “Like a Rolling Stone”, composta por Bob Dylan, e lançada nas rádios, em 1965, foi um acontecimento que ajudou a circunscrever uma nova paisagem social, um novo estilo de vida nos territórios existenciais da contracultura que estava se formando. Ao dar expressão a uma transformação no próprio lugar de sujeito da juventude norte-americana, a letra se diria ao ouvinte e o fazia pensar na mudança na configuração de vida de alguém que já não possui as mesmas certezas que lhe definiam fronteiras estáveis e um dado lugar no mundo. Essa ordem fora solapada e o que veio a tona com a canção de Dylan é o movimento, a invisibilidade, a deriva, os encontros, os tratos

61Ave Sangria. Dois Navegantes. Ave Sangria. Rio de Janeiro. Continental, 1974. Faixa 1 do CD que acompanha a Dissertação.

62DELEUZE, Gilles. O pensamento nômade. Op. Cit. p.322

63Quando falo em '' territórios que se movem" quero dizer que tais experimentações contraculturais em Recife indicam a construção de cartografias que visam uma desterritorialização como forma de escapar aos limites impostos pelas formas de pensamento dominantes. O que significa considera que em tais experimentações a dissolução de fronteiras não era tomada como um movimento ameaçador mas sim como uma possibilidade se deslocar, tanto no campo da linguagem poética e sonora, como do modo existencial de construir relações sociais.

45 feitos com estranhos, a sobrevivência cotidiana, as surpresas – boas e ruins- que atravessavam o caminho daqueles que eram chamados à viver como viajantes, com destinos 64 incertos, como sujeitos que viviam literalmente ''como uma pedra à rolar".

Esta canção é mais um fragmento de uma explosão cultural que estava se processando, a qual Dylan soube enunciar com maestria, relembrando a antiga cantiga dos escravos negros que já vinha sendo incorporada na música moderna desde o blues com Muddy Waters. Mas é fundamental perceber que essa alusão ao nomadismo, na canção de Dylan, trata de sua própria época e traz à tona uma performatização de forças históricas que, de tempos em tempos, reaparecem sintomaticamente em uma dada situação, dando luz à estas configurações de vida para as quais o trânsito e o transe é mais importante que as certezas fixas dos fechamentos territoriais, da ordem, dos códigos. Ir além das fronteiras se tornou necessário, não só pelo fechamento na política, mas pela própria expansão das dimensões espaciais da existência humana com a chamada Era Espacial, que representou a virada para os anos setenta, como iremos notar ao longo deste trabalho. Vivia-se a época das viagens, das visagens, das desterritorializações, desde com os novos adventos técnicos até com mudanças nos paradigmas culturais. Não é a toa que o livro On the Road, de Jack Kerouac, escrito na década de cinquenta, foi um acontecimento que afetou profundamente a formação das subjetividades de jovens ao redor do mundo.

Em grande medida, convém perceber que tanto a canção de Bob Dylan como a atitude existencial e literária dos beatniks - que tanto influenciaram os jovens brasileiros ligados à contracultura - representam expressões de maneiras de pensar e sentir que já vinham se configurando nas artes e nas filosofia norte-americanas, desde meados do século XIX, e que, antes de mais nada, afirmavam a vida como uma estrada a se percorrer. Nas obras de Walt Whitman, a força da “camaradagem” já aparecia em seus poemas. Camaradagem como produtora de uma variabilidade, que implica um encontro com o fora, uma caminhada de

64 Para Greil Marcus, ''O momento pop, naquela temporada, foi realmente esse delírio. Mas, quando a canção chegou ao rádio, quando as pessoas a escutaram, quando descobriram que ela não dizia respeito à banda, perceberam que a canção absolutamente não se explicava, e que elas não se importavam com isso. Na enxurrada de palavras e instrumentos, as pessoas compreendiam que a canção era uma reescritura do próprio mundo. Um velho mundo que enfrentava um risco para o qual não estava preparado; enquanto a canção traçava seu longo arco pelo rádio, um mundo que estava tomando forma parecia totalmente em fluxo[...]Como se um país pudesse se desfazer de seu passado como uma pele de cobra. Como se, caso pudéssemos ver nossa situação com clareza, perceberíamos que já estamos lá. Eu tenho de ouvir isso como um apelo à algum tipo de revolução espontânea." In: MARCUS, Greil. Like a Rolling Sotne: Bob Dylan na encruzilhada. São Paulo. Companhia das Letras, 2005 p. 22-3

46 almas ao ar livre, onde a vida se mostra uma grande estrada a ser partilhada. Também o poeta naturalista Henry Thoreau , com sua perspectiva de desobediência civil, trazia à tona a problemática da existência como algo a se construir cotidianamente, visando um reencontro com as forças da natureza, visando, inclusive, uma espécie de harmonização fusional com a natureza, visando uma vida poética. No entanto, considerando a revisão filosófica feita por Peter Pal-Pelbart, penso que a expressão mais radical dessa tendência ao nomadismo existencial na cultura norte-americana passe pela atitude filosófica de William James. A imagem que o autor estabelece de um universo pluralista, denso, caótico - onde as relações se enrolam, redobram, desdobram sob o fundo de uma exterioridade primordial – afirmam um mundo em processo no qual caberia confiar e agir. Acreditar neste mundo e nas possibilidades a ser inventadas aqui e não mais num além-mundo.65 Assim, foi se produzindo uma tradição filosófica e literária que deixou de lado a abstração conceitual latente entre os europeus - sobretudo os alemães- e passou a incidir na própria experiência concreta dos modos de existência.

Lawrence dizia ser este o novo messianismo ou o aporte democrático da literatura americana: contra a moral europeia da salvação e da caridade, uma moral da vida em que a alma só se realiza tomando a estrada, sem outro objetivo, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar salvar outras almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando com seus iguais acordos/acordes mesmo fugidios e não-resolvidos, sem outra realização

66 além da liberdade, sempre pronta a libertar-se para realizar-se.

Mas porque estamos falando destas situações das quais pouco entre nós se recordam? Uma história das movimentações marginais da cultura brasileira talvez seja o que mais nos falta em tempos atuais para a compreensão deste período. Acostumados a construir longas pesquisas sobre as práticas culturais que foram abarcadas pela luminosidade dos holofotes da indústria cultural ou das artes oficiais de um dado governo, muitos pesquisadores destinam pouca ou nenhuma atenção àquilo que se passou nas margens onde se afirmavam – precariamente - expressões culturais não-oficiais, alternativas, minoritárias, pois eles mesmos não sabem o que fazer com estas experimentações históricas ou supõe que se trata de conteúdos de pouca importância para a sociedade. Isso porque estas experiências - neste caso

65Acreditar no mundo. In: PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições, 2013, p. 305-326

66Idem p. 313

47 as efervescências contraculturais da cidade de Recife - contém o germe da disparidade em suas proposições, pois sua condição de possibilidade é justamente a produção de desvios e de micro-resistências em relação às relações cotidianas. Contudo, acredito que caiba ouvir com atenção os ruídos proferidos desde uma situação underground, para que possamos esboçar essa cartografia de uma cultura que foi tomada como alternativa por àqueles que continuaram não estando de acordo com a situação política de censura e repressão que conformou os chamados “anos de chumbo” e buscaram exprimir a importância da criação de espaços outros para viverem uma experimentação coletiva através da arte como antídoto em relação ao poder. Na entrevista que realizei em 2016, com Kátia Mesel, ao lhe perguntar sobre o contexto político do período e de como a contracultura foi uma alternativa de vida àquela situação de repressão e perseguição política, ela comentou que:

Era uma coisa muito espontânea, muito legal, muito bonita. E dolorosa também, porque tinha os amigos que iam sumindo, iam sendo assassinados, iam sendo torturados. Meu irmão foi preso, pegaram ele e sumiram com ele um mês[...] Então ao mesmo tempo era a ditadura comendo no centro. Meus amigos morrendo. Como a gente tava vendo tudo aquilo acontecer ali e não tomar parte? Porque se a gente fosse tomar parte ia pro Araguaia, pegar em armas, não ia ficar no meio termo. A gente viu isso acontecer muito próximo, os amigos, e a gente não quis

67 isso. A gente quis trabalhar, quis fazer, quis produzir.

Nesse sentido, é preciso lembrar da afirmação do artista plástico Hélio Oiticica que, sob a tormenta dos devires fascistas que no Brasil se mostravam cada vez mais consistentes, em 1969, soube dizer que havia chegado a hora de atravessar fronteiras e criar uma Subterrânia68 e a partir desta condição inventar novas possibilidades para a experimentação da liberdade. Se ainda ecoava em sua perspectiva o impulso das virtualidades tropicalistas, com suas rupturas éticas e estéticas, isso nada tinha a ver com uma inserção na dimensão espetacular da cultura de massas, como foi o caso do chamado grupo baiano. Segundo o pesquisador Carlos Basualdo:

67Entrevista concedida ao autor no dia 14/04/2016 em Recife-PE.

68Sobre a noção de Subterrânia na perspectiva de Hélio Oiticica ver o artigo: CERA, Flávia. Subterrânea: por um estado de emergência efetivo. Revista Critica Cultural. Vol. 5, nº: 1. UNISUL Santa Catarina. Julho de 2010. Link disponível em: http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica-cultural/0501/050112.pdf) ( Acesso em 04/04/2016)

48 Quando Oiticica escreve “Subterrânia”, em Londres – precisamente em 21 de Setembro de 1969, como consta no cabeçalho do texto; já devia ser evidente para ele que a dimensão coletiva e potencialmente revolucionária do tropicalismo havia sido em grande parte neutralizada pela ação combinada da repressão estatal com a banalização midiática. Por outro lado, tomava progressivamente consciência da incompatibilidade que a lógica de projeto artístico guardava com relação ao funcionamento da indústria cultural. A formulação de “Subterrânia” estaria destinada em parte a articular uma opção estratégica ante constatações dessa ordem.69 [ grifo meu ]

Portanto, essa noção de “Subterrânia” não consistia numa espécie de lugar, num ambiente estático e sem movimento a ser ocupado, mas sim num conceito operatório que emergiu a partir da criação artística como produtora de encontros, danças, toques, sempre a recomeçar, como um exercício experimental da liberdade. Existe aí uma proximidade com aquilo que foi o Situacionismo70 na Europa, sobretudo no que diz respeito ao pressuposto de que a vida cotidiana deveria ser compreendida para ser transformada e que essa mudança passava pela invenção de situações em que se experimentasse um novo contato consigo, com os outros e com o mundo. Se Guy Debord publica em 1967 uma teoria crítica ao mundo contemporâneo como Sociedade do Espetáculo, Raoul Vaneigem, por outro lado, propõe em A arte de viver para as novas gerações - livro que foi lançado neste mesmo ano - uma inversão de perspectiva em que o desejo fosse tomado como força motriz que devia ganhar expressão na experimentação do mundo e na criação de ambientes para a fruição individual e coletiva. Perspectiva que questiona algo que já havia se tornado dogmático: a negatividade do desejo. Entre o Situacionismo de Debord e Vaneigem e a anti-arte ambiental de Oiticica atravessava a questão do poder criador do desejo como força instauradora das realidades sociais.

Tanto para os situacionistas franceses como para Oiticica, tratava-se de fazer da arte um movimento voltado para a criação de possibilidades para a vida no aqui-agora, na

69Vanguarda, cultura popular e indústria cultural no Brasil. In: BASUALDO, Carlos. Tropicália: revolução na cultura brasileira ( 1967- 1972). São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 23

70 Situacionismo remete à Internacional Situacionista, movimento de cunho artístico, político e existencial que aglutinou publicações e diálogos de jovens intelectuais europeus entre fins da década de 50 e inicio dos anos 70. Essa tendência, situacionista como ficou conhecida, visava uma transformação radical da maneira de experimentar a vida cotidiana, o espaço urbano e a relação entre arte e política. Desses estudos e práticas emergem noções como a de '' psicogeografia", que sugere o potencial da deriva urbana como forma de deslocar a estratificação da subjetividade organizada pela espacialização das relações de poder nas grandes cidades.

49 superfície dos corpos em contato entre si, inventando situações e ambientes. O que é sintomático em relação aos próprios fluxos que circulavam pelos corpos sociais do período no Ocidente. Ao falarmos em udigrudi, underground ou subterrânia estamos sempre falando de novas superfícies em estado de emergência e não de uma dada profundidade escondida numa estrutura submersa. A visão do artista plástico foi a de um teórico do presente e desde suas práticas ele pôde notar que a política vinha das forças do corpo, criando situações de imanência, do seu jogar-se no mundo em danças descompassadas – desde a criação dos parangolés ao seu fascínio pela potência da dança, do samba, à obra seja herói, seja marginal- 71 o que está em total ressonância com as experimentações que estamos buscando cartografar na capital pernambucana, pois estas já nasciam num momento em que a opção mais viável era criar um fazer alternativo à ordem, não só da indústria cultural, mas também da cultura oficial, que em Recife estava alicerçada em matrizes de pensamento como a de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna, dois grandes representantes de um fazer cultural institucionalizado e propositor de conceitos transcendentes que abarcassem um Todo nomeado Nordeste.

Outro acontecimento que nos ajuda a circunscrever o cenário contracultural que vivia- se na cidade de Recife foi o I Parto de Música Livre do Nordeste, realizado em 1973 no Teatro Santa Isabel, organizado pelo TUCAP (Teatro da Universidade Católica de Pernambuco)72. Se com a Feira Experimental a juventude desbundada migrou para os cenários de Nova Jerusalém para fazer suas experiências num encontro movido pela improvisação musical, um ano depois suas zonas autônomas temporárias73 ganhavam o

71 Nesse sentido ver: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

72O teatro político e crítico do TUCAP deu o que falar entre os anos 60 e 70 em Recife. Quando, em 1972, o grupo foi para um festival de teatro no Sudeste apresentar uma “montagem tropicalista” da peça de Ariano Suassuna “Torturas de um Coração” a coisa ficou feia, pois a versão da peça incomodou o Mestre do Armorial que logo se manifestou nos jornais: “Não concordo com as ideias e atitudes do movimento tropicalista, aliás, já morto e enterrado [...]. Todos os que me conhecem no Recife sabem disso. Todo o meio teatral nordestino sabe disso também. Assim, não foi por omissão casual que os membros do Tucap, que foram a minha casa, deixaram de me comunicar a linha deturpadora que tinham resolvido imprimir à minha peça. Este é o motivo de estar me dirigindo neste momento à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais no sentido de proibir este espetáculo. Só não tomei a medida antes do Festival de Rio Preto porque não vi o espetáculo no Recife”. A montagem se esmerava no escárnio à macheza do homem nordestino, encarnado nos personagens Vicentão e Cabo Setenta. Informações encontradas em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo240830/universidade-catolica-de- pernambuco-(recife,-pe) ( Acesso em 04/04/2016)

73O conceito de zona autônoma temporária foi desenvolvido pelo historiador e poeta norte-americano Peter Lamborn Wilson, que lançou este e outros livros sob o pseudônimo de Hakim Bey. A noção é simples, experimental e não visa uma discussão teórica acadêmica mas sim uma prática existencial baseada na autonomia e na liberdade de criação de espaços nômades, temporários, contingentes e com a única finalidade de servirem à experimentação de um agora tecido em relações libertárias. Ver: BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma

50 interior do centro histórico da capital pernambucana entre apresentações de bandas locais e happenings. Por uma noite, o teatro que fora construído na metade do século XIX, em homenagem a então Princesa Isabel, tornou-se palco de um espetáculo anárquico e irreverente. Flaviola, nome artístico do jovem poeta Flávio Lira – uma das atrações da noite – apresentou, ao lado da banda Aurora Tropical, uma performance musical chamada “Quizaro”, em que narra e teatraliza um ato sexual entre dois homens, no qual ele interpretava a figura passiva da relação, sussurrando ao microfone coisas como “me lamba, me chupe”, para as 1.200 pessoas que estavam presentes no teatro. Os vinte minutos de duração da performance foram suficientes para criar um clima de provocação mútua entre artista e público. Sexo entre dois homens era um verdadeiro tabu na capital cultural do fálico povo nordestino. A conservadora capital do regionalismo tradicionalista não lidou bem com a situação, pois a performance de Flaviola tocava na questão da relação afetiva e sexual entre dois homens. Performatizar uma transa gay maculava as fronteiras da Família e afrontava o poder do Estado e, no dia seguinte, ele foi convidado a explicar o motivo daquilo tudo para a polícia, depois que o ato já havia acontecido. O que será que o jovem Flávio Lira disse para o delegado que o interrogou? Não tenho como responder a esta pergunta, mas o fato é que o Jornal do Comércio anunciava no seu caderno cultural, na manhã após o acontecimento:

74 “Pornofonia é vaiada no Teatro Santa Isabel no Parto de Música Livre”.

O Parto também contou com outra performance – a primeira da noite - realizada pelo multiartista Paulo Bruscky, que vinha, desde o início da década, expandindo as conexões da arte contemporânea no Nordeste sendo, por exemplo, o principal articulador, no país, do Movimento Arte-Postal ( em inglês Mail Art), rede global que punha em conexão pessoas de diferentes países, num processo de criação coletivo através das correspondências que trocavam entre si e que se transformavam numa obra de arte grupal, criada pelo movimento que lhe punha em circulação, além dos territórios nacionais. O lema cunhado para essa proposta de arte nômade era o seguinte: “arte postal, onde quer que você esteja”. Essa movimentação global da Mail-Art tem de ser percebida num universo de relações anterior ao e-mail. As milhares de pessoas que fizeram parte do movimento não necessariamente se conheciam, mas seguiam criando conjuntamente. Era uma estratégia para manter viva formas

Temporária. Trad: Patrícia Dessa e Renato Resende. Digitalização: Coletivo Sabotagem. Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf ( Acesso em 02/04/2017)

74 Pornofonia é vaiada no Teatro Santa Isabel. Jornal do Comércio. Recife. 23/06/1973, p.4

51 críticas de ação coletiva, tão vilipendiadas pelo regime político em voga. Segundo a pesquisadora Zanna Gilbert a arte postal:

Carrega as marcas do lugar nos selos colados nos envelopes e nos endereços do remetente e do destinatário. No entanto – o que é importante- situa-se também além do lugar: viaja ou transporta essas marcas de seus contextos a uma localização distinta. Assim, é enraizada e contextual, um movimento que responde a condições políticas e sociais específicas do lugar, ao tempo que transcende essas mesmas condições e categorias[...]Isso porque espectadores desterritorializados com acesso à mídia globalizada criam comunidade de sentimento ( grupos ) que começam a imaginar e sentir as coisas juntos. A rede de arte correio, em seu desenvolvimento de sociabilidade intersubjetiva, pode ser definida como uma

75 comunidade de sentimento: uma localidade em si.

Foi com um grande grito ecoando num Santa Isabel às escuras que Bruscky iniciou o I Parto de Música Livre. Ele estava vestido como uma múmia, todo enrolado em ataduras, criando a visualidade de um corpo moribundo a andar pelo palco e de repente se pondo a berrar. Nesta performance, o artista encarnava a perspectiva de um corpo que, já preparado para o seu ato fúnebre, vestido como morto, dá vida a um grito que lhe extrapola, grito de uma múmia que expõe a sua condição de sobrevivente ao outro que a enxerga em silêncio. A imagem do sobrevivente disparada na performance do autor anunciava um estado vivido e partilhado por grande parte das pessoas que estavam presentes no teatro. Estávamos em 1973, ano onde as maiores violências foram cometidas contra aqueles que resistiam ao regime, sobretudo com as pessoas que partiram para as guerrilhas e com os povos indigenas. Mas também a vida nas cidades, imprimia no cotidiano daqueles que comportavam-se de maneira desviante - os desbundados, como lhes chamavam - a imagem de figuras que ameaçavam um visão comum de ordem política e social a ser preservada.

É impossível não ver nesta imagem criada por Bruscky uma elaboração da situação política do momento. Sobreviver e gritar por detrás das ataduras, das amarras, das mordaças, dar vida ao berro dos moribundos. Parir música livre era dar vida à tentativas de gestos de liberdade num viés experimental, num contexto de brutal cerceamento. Três anos depois, em 1976, durante a abertura da Exposição Internacional de Arte-Postal, realizado no prédio dos

75 GILBERT, Zanna. Recife como centro do mundo: repensando o regionalismo através das performances de longa distância da rede de arte postal. In: DINIZ, Clarissa(org.). Pernambuco Experimental. Rio de Janeiro: Insituto Odeon, 2014, p. 174

52 Correios em Recife, Bruscky e Daniel Santiago - os organizadores – foram presos horas após a abertura da exposição. Os mais de três mil trabalhos de artistas de trinta países diferentes, foram confiscados temporariamente pela polícia. Perceberam a potencialidade do ato: a presença do movimento de arte postal criava uma rede de intercâmbios a mais diversa possível, uma rede virtual de ideais e informações compartilhadas e construídas coletivamente no trânsito das cartas e que agora estariam disponibilizadas ao público que passasse pelo prédio dos correios. Máquina de guerra nômade, vista com desconfiança e sujeita à repressão por parte das forças do sedentarismo, como aconteceu de fato, mas que aponta para a criação de espaços de enunciação coletivos, capazes de imprimir movimento às trocas de experiência entre pessoas de lugares distintos, na criação de uma extensa rede de 76 contrainformação.

Agora voltemos a falar do Teatro Santa Isabel durante o I Parto de Música Livre. A presença mais inusitada no evento foi a do Rei do Baião, , que também subiu ao palco para uma rápida apresentação, entre as bandas de rock Tamarineira Village e Phetus. A participação do sanfoneiro de Exú, que desde os anos cinquenta tornara-se o representante principal da música nordestina, nos mostra que essa geração tão afeita aos experimentalismos e à atitude rockeira, não deixava de fora de seus territórios de criação as sonoridades que configuraram a chamada música regional, ao contrário, esses sons também faziam parte da formação cultural de sujeitos que cresceram ao redor dos aparelhos de rádio, onde Gonzaga ecoava, com seu sotaque, nos programas transmitidos pelas emissoras do Sul, com composições que evocavam a vida cotidiana do interior do Nordeste. E ali estava ele, vivendo uma espécie de “revival”, ao lado de jovens que tocavam baião misturado com rock progressivo, cantoria com música oriental, dentre outras sonoridades, como veremos adiante.

76 Numa entrevista recente para o jornalista pernambucano Gabriel Albuquerque, Paulo Bruscky recordou suas experiências com detenções e interrogatórios na primeira metade dos nos 70. Após ser liberado de uma condução coercitiva em 1974 ele conta que “quando me soltaram, disseram que iam me ‘acidentar’. eles falaram: ‘temos gente especializada em acidente. te mata e faz parecer como um acidente’. passei dois meses com dois caras me seguindo no trabalho, na universidade. eu passava e eles tavam de frente o dia todo, me cumprimentavam com a cabeça”. A resposta veio seis meses depois com a exposição nadaísmo (também um manifesto, em parceria com Daniel Santiago) na galeria Nega Fulô, nas graças. “as paredes não tinham nada, eram todas brancas. só tinha um banquinho. eu subi e fiz um discurso denunciando que se eu fosse morto num acidente, não era um acidente, era o exército que tava me matando. e, inclusive, os dois canalhas tão aqui dentro e eu não vou mostrar quem são porque não sou dedo duro que nem vocês. e diga lá ao comandante do exército que eu vou continuar fazendo meu trabalho. um dia vou ter que morrer, então eu morro pelo meu trabalho”. artista nocivo à sociedade. In: 50 anos da contra-informação de Paulo Bruscky. Entrevistador: Gabriel Albuquerque. O Volume Morto. Recife, 09/03/2017. Link da entrevista na íntegra: http://www.ovolumemorto.com/single-post/2017/03/09/artista-nocivo-%25C3%25A0-sociedade-50-anos-da- contra-informa%25C3%25A7%25C3%25A3o-de-paulo-bruscky ( Acesso em 13/03/2017)

53 Consultando os jornais da época é possível perceber que o velho Gonzagão estava passando por um processo de revalorização entre os novos artistas, não apenas na região Nordeste. Compositores já consagrados como Gilberto Gil e Caetano Veloso também contribuíram para este novo olhar lançado em relação à música de Luiz Gonzaga, em seus artigos publicados no jornal O Pasquim. No caso do cenário underground pernambucano, veremos, adiante, que a mistura entre rock e baião veio a se tornar uma marca sonora nas canções da banda Ave Sangria, marca que também foi impressa na sonoridade das canções de Alceu Valença, em seus primeiros discos.

O fato é que os nomes dados aos eventos feitos pela turma do udigugrudi pernambucano nos ajudam a vislumbrar o próprio território existencial que conectava estes sujeitos durante a década de setenta no Recife, através de suas experimentações artísticas. Cada pequeno detalhe acaba esboçando as fronteiras deste fazer cultural coletivo que buscava definir um espaço de vivências, em movimento de desvio de um centro que era repressivo do ponto de vista político e tradicionalista do ponto de vista cultural. Nessa época para fazer um evento na cidade e conseguir divulgá-lo não bastava apenas a iniciativa dos interessados e a vontade de fazer acontecer. Era preciso driblar a censura, apresentar os cartazes previamente, conseguir os carimbos autorizando a divulgação e até mesmo, se necessário, apresentar parte do repertório do que seria mostrado ao público. Esta tentativa de controle em relação à produção cultural diz respeito à política adotada pelos órgãos institucionais, à desconfiança da dimensão subversiva de qualquer encontro que não habitasse as fronteiras da cultura oficial.

É nesse sentido, que as festas feitas pela banda Ave Sangria durante os anos de 1973 e 1974, acabam expressando bem essa situação no próprio nome dado aos eventos. Tanto o “Concerto Marginal” quanto o “Fora da Paisagem” foram dois acontecimentos importantes para afirmar a presença, neste momento, de experiências contraculturais, na capital pernambucana, que seguia criando situações e encontros de forma alternativa, sob o underground das circunstâncias . A banda ficou conhecida, na época, como os Rolling Stones do Nordeste e foi uma das que mais circularam na região, tendo se apresentado em outros estados como Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. A comparação com a banda inglesa tem a ver com as suas performances provocantes e com o imaginário de rebeldia que se instituía em torno da postura de seus integrantes, que formavam a imagem típica do “corpo desbundado”, daquela época: cabeludos, maltrapilhos, maconheiros e mal encarados. Sendo assim, bastava sair às ruas para serem achincalhados por algum transeunte indisposto em

54 dividir o espaço da cidade com pessoas assim. Para brincar com tudo isso, chegaram até a usar batom nos lábios durante os shows e trocar beijinhos entre si. Performatizar a questão da androginia esteve em voga durante os anos setenta, desde David Bowie, Mick Jagger, passando por e os Secos & Molhados. Em Recife, Marco Polo e Flaviola também faziam uso dessa estética e dessa ética nos palcos, apontado para uma abertura contracultural diante do machismo constituinte na própria formação do ideário em torno do '' masculinidade nordestina". Em 1974, o Jornal do Comércio, inclusive, chegou a publicar uma matéria sobre a estética andrógina que ganhou centralidade entre diferentes bandas de rock do mundo, dando destaque para o trabalho do músico norte-americano Alice Cooper.

Os eventos feitos pela turma do Ave Sangria passaram a reunir muitas pessoas na cidade do Recife. Em 1974, eles lotaram, por duas noites, o Teatro Santa Isabel com o show Perfumes & Baratchos. Através do empresário dos Novos Baianos, acabaram indo para o Rio de Janeiro gravar seu primeiro disco, pela gravadora Continental, a primeira grande gravadora da indústria cultural da época que decidia investir na produção de discos de bandas de rock. No terceiro capítulo, iremos nos debruçar mais detalhadamente sobre a produção sonora e poética do grupo, no momento a reflexão passa pelas condições de existência da banda na cidade e o nome dado aos eventos. No cartaz do “Concerto Marginal”, de 1973, ainda sob o nome de Tamarineira Village, o compositor Marco Polo dizia o seguinte:

marginal: boca de som, tamarineira é uma árvore de fruto-som. Ácido como sol nordestino, doce como o vento da praia, árido como a areia dos desertos nordestinos, alegres como as cores de ciranda, bumba-meu-boi e pastoril. Triste como a noite nordestina, agressivo como a lâmina da faca nordestina e a pedra da paisagem forte e dura, suave como o silêncio no campo aberto entre arbustos e colinas. E também gosto destes caras silenciosos que caminham na margem com uma cicatriz no sorriso e uma lâmina sonora na mão.

O nome dado a primeira formação da banda, Tamarineira Village, era também uma 77 maneira de afirmarem um lugar de enunciação que transitava entre a loucura e a boemia.

77Num texto conhecido do historiador brasileiro Nicolau Sevcenko sobre a década de 70 ele propõe uma aproximação entre a contracultura deste período com a boemia que se configurou na Europa durante o século XIX. Segundo o autor, os boêmios “fumavam tabaco, bebiam pesado e raramente se alimentavam. Acordavam quando todos já haviam se recolhido para jantar e dormir. Faziam arruaças, bebiam e festejavam pela noite afora, e só se recolhiam quando as pessoas já estavam despertando para um novo dia de trabalho. Seu estilo de vida era o antípoda da moral burguesa, do asseio e da sobriedade típicos do bom senso burguês[...]eles eram coletivamente denegridos pelo nome de “boemia”, numa referência explícita à comunidade cigana. Um estigma destinado a detratar sua suposta falta de disciplina para o trabalho e a seriedade intelectual, seu descaso com a

55 Tamarineira é um bairro de Recife onde foi construído o segundo hospital psiquiátrico brasileiro, em fins do século XIX, o Hospital da Tamarineira. Village, por outro lado, se refere ao bairro nova-iorquino Greenwich Village, que ficou conhecido, ao longo do século XX, por ser um espaço constituído de minorias que viviam na cidade norte-americana. Imigrantes, boêmios, descendentes de escravos, hippies, beatniks, dragqueens, o bairro era notório por ser um espaço de alteridades onde as personae non gratae da cidade viviam. Em 1969, havia recém acontecido no bairro a Rebelião de Stonewall, acontecimento importante para a emergência daquilo que ficou conhecido como a Libertação Gay. A banda acionava as representações em torno destes dois espaços para afirmar sua posição marginal e anômala no cenário cultural da cidade de Recife. Algo que também aparece com o evento “Fora da paisagem” que , antes de mais nada, parece indicar uma posição ambígua de invisibilidade. O fora, o marginal, são falas desta terceira margem que afirmava sua presença através de uma ausência, de uma passagem a um fora, da criação de uma margem.

Se pensarmos a partir do que propõe o historiador Michel de Certeau - que sempre esteve atento às práticas de espaço em seu potencial de deslocamento da norma – vemos que ele nos fala sobre uma curiosa característica deste tipo de prática espacial que estes eventos parecem enunciar. Segundo o autor, o entremeio é o espaço criado por uma prática de separação; ele corresponde a um trânsito, passagem de um lugar para um “alhures” ainda não identificável.78 Realizar um concerto marginal, propor uma noite fora da paisagem, isso funcionava como a afirmação de que ali era um espaço de passagem para algo que escapava às normas e aos códigos de uma dada dinâmica sociocultural majoritária na cidade de Recife. Um espaço para que a transgressão e as liberdades existenciais ganhassem consistência temporariamente nos corpos. Fora da paisagem também tem a ver com a condição underground, ou seja, subterrânea, daquelas ações, dando vida temporária a zonas de confluência que interferiam no espaço da cidade como contra-referência dela mesma.

saúde, a higiene e a decência, seu gosto pela intoxicação, pelas festas, pelas músicas e danças ritmadas e sensuais, seu estilo rebelde e irreverente, seu desrespeito à autoridade e à ordem instituída, mas, acima de tudo, sua renúncia aos princípios cristãos e aos mais altos ideais da civilização, incorporados e representados sobremaneira pela tradição cristã, racionalista e iluminista francesa". In: SEVCENKO, Nicolau. Configurando os anos 70: a imaginação no poder. Anos 70: Trajetórias. Itaú Cultural. São Paulo: Iluminuras, 2005. P. 14-15

78 CERTEAU, Michel. História e Psicanálise. Entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011, p. 184

56 O Selo Solar

Foi a criação de um selo de música, no início da década de setenta, que tornou possível que as produções musicais da geração psicodélica pernambucana sobrevivessem ao longo do tempo. Sem a invenção do Selo Solar, pela produtora Abrakadabra, em 1972, é muito provável que as músicas deste período, de compositores como Zé Ramalho, Lula Côrtes, Flaviola, Lailson e Marconi Notaro já não pudessem ser mais ouvidas e, neste caso hipotético, esta pesquisa nem existiria, pois o silêncio do esquecimento já teria se instituído quanto a este momento de criação coletiva. Essa era justamente a grande dificuldade da maioria dos novos músicos que criavam fora do eixo Rio-São Paulo: vencer o silêncio e a falta de espaço em suas cidades. Foi mais ou menos isso que aconteceu com a geração de jovens músicos da década de sessenta na capital pernambucana, que por não encontrarem nenhum espaço para gravar seus discos no Recife, acabaram desistindo de lançar seus álbuns ou então migraram para o disputado território de produção musical do eixo Rio-São Paulo, onde muitos tentavam, mas pouco conseguiam gravar um LP com suas composições. Artistas como Teca Calazans, Marcus Vinícius Andrade, , Aristides Guimarães, Geraldo Azevedo, dentre outros, foram artistas que desenvolveram uma linguagem musical característica do momento musical dos anos sessenta no país e que, no entanto, não tiveram oportunidade de gravar na principal cidade da região Nordeste, o Recife. Ir para o eixo Rio- São Paulo representava a única alternativa possível para muitos compositores de várias outras regiões do país, pois era lá que a emergente indústria cultural estava se constituindo. O caso do grupo baiano não foi diferente, a saída de Tom Zé, Caetano, Gil, Torquato, Capinan, Gal e Bethânia da Bahia foi fundamental para a consolidação de suas experiências musicais, pois sobreviver de música, no Nordeste, era uma das tarefas mais difíceis na época, ainda mais se as proposições musicais não soassem de acordo com a escuta hegemônica a que a música feita na região ou dita regional estava submetida, onde qualquer sinal de marcas sonoras do mundo urbano parecia desvirtuar a verdadeira paisagem sonora que se desejava ouvir quando tratava-se de sons concebidos desde as fronteiras do Nordeste ou para o fazer ouvir e dizer.

Diferentemente das outras capitais nordestinas, Recife era a única que possuía, desde os anos cinquenta, estúdios de gravação e uma fábrica de prensagens de vinis, a fábrica Rozemblit, que constantemente lançava seus álbuns e inclusive detinha cerca de 22% do mercado musical nacional, nos anos sessenta. No entanto, a Rozemblit sempre esteve muito focada na disseminação do frevo pernambucano, a grande paixão do seu dono, o empresário José Rozemblit. E foi produzindo grandes discos de frevo que a gravadora se consolidou no

57 mercado nacional e tornou-se uma das principais responsáveis pela permanência deste gênero musical na memória coletiva, sobretudo quando se aproximava o carnaval. O principal selo da Rozemblit era o Mocambo, onde o maestro pernambucano Nelson Pereira pôde desenvolver diversas orquestrações de frevo ao lado de compositores como Capiba, um dos que mais vendiam discos pelo país, neste gênero. Até os anos cinquenta, o destino do frevo parecia ser o esquecimento, esse gênero musical, que havia surgido no início do século XX, através do intercâmbio cultural experimentando na região portuária do Recife, já não encontrava tantos ouvintes e foi o forte impulso dado pela produção musical do Selo Mocambo que o colocou novamente no ouvido das pessoas. Além da vasta produção do Selo Mocambo – arquivo sonoro que merece uma pesquisa à parte – a Rozemblit também era a responsável por lançar em vinil as principais canções dos festivais de música televisionados, nas décadas de sessenta e setenta. Dois ou três dias após as finais dos festivais, os álbuns já estavam na praça, através da empresa pernambucana.

Contudo, a indústria nacional de discos – da qual a Rozemblit era a única representante fora do eixo Rio-São Paulo- viveu um momento de declínio insuperável, a partir da década de setenta, em grande medida, devido a expansão da indústria internacional, que já trazia suas produções musicais aptas a serem lançadas no mercado, cabendo às indústrias locais apenas prensar o material e distribuí-lo. É o momento em que a música pop estrangeira se multiplica nas prateleiras das lojas e passa a tocar com muito mais frequência nas rádios, resultado de um investimento pesado, por parte das gravadoras transnacionais que, no contexto do ''milagre econômico" brasileiro, puderam consolidar suas atividades em solo nacional. A chamada “modernização conservadora” dos anos de chumbo está diretamente relacionada ao declínio da indústria nacional de discos, pois seu fomento ao mercado estrangeiro era acompanhado pela falta de incentivo à empresas como a Rozemblit, o que determinou a emergência das grandes corporações da indústria musical, que só viriam a perder força diante da disseminação gratuita de música, na era digital dos anos 2000. Paradoxalmente, foi justamente a partir do compartilhamento de músicas via internet que os discos gravados pelo Selo Solar retornaram a superfície como álbuns completamente singulares na história da música brasileira, que passaram desapercebidos durante o momento de sua produção, devido ao seu caráter de produção independente e da menor distribuição.

A própria localização do moderno parque industrial da Rozemblit não favoreceu sua atividade de produção. Situado no bairro de Afogados, nas proximidades do Rio Capibaribe, a Rozemblit foi vítima de três grandes cheias, entre 1966 e 1975, o que causou enormes

58 danos ao maquinário da empresa. O estúdio era grandioso, o único do país a comportar uma orquestra completa se fosse necessário. Contudo, na década de setenta, a fábrica já estava bastante decadente e não lançava mais tantos discos como antigamente e foi nesse momento de baixa na produção do Selo Mocambo que José Rozemblit abriu as portas de seu estúdio e de seu parque industrial para que um novo selo começasse a gravar seus discos, dando espaço para estes jovens compositores ligados à contracultura na cidade.79 Como gravar nos estúdios durante o dia custaria muito caro, os álbuns do Selo Solar foram gravados ao longo das madrugadas. Enquanto a cidade esvaziava-se do ritmo frenético que lhe dava movimento sob a luz do sol, os músicos iam ao trabalho produzir suas sonoridades.

Imagem que evoca a presença dos grilos que se fazem ouvir enquanto a maioria dos habitantes da cidade adormecem, seres que traçam uma espacialidade que é percebida por nós através do som inconstante que emanam. Os grilos fazem território com a vibração sonora que produzem, agenciam um espaço que nos chega de modo incerto. Temos dificuldades em situar os grilos no espaço, sempre que um entra na nossa casa, no nosso espaço, nos demoramos a captar sua posição, as referências precisam ser refeitas por alguns instantes. É que geralmente seu sons nos confundem, pois nos apresentam uma paisagem sonora cheia de variáveis, com grilos ecoando diferentes sons ao mesmo tempo, num território de enunciação sonora essencialmente coletivo. A imagem de grilos agenciando seu espaço sob um liame sonoro me remete ao conceito de ritornello traçado por Deleuze e Guatarri no livro Mil Platôs, uma vez que este conceito visa compreender o agenciamento de territórios constituídos através do som. O fato é que que essa sonoridade dos '' bichos-grilos" constitui um espaço aberto e impreciso, pois a repetição sempre escapa ao regime de tempo padrão que nossa percepção procura definir. Nesse sentido, ao que parece, a paisagem sonora circunscrita 80 pelos grilos soa desterritorializada, composto por diversas linhas de fuga.

79Numa breve entrevista ao Jornal da Cidade em 1975, na ocasião do lançamento do álbum “Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol”, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, o empresário José Rozemblit comentou sobre a parceria com o a turma do udigrudi e a criação do Selo Solar. Ele disse que tratava-se de ''um ponto de partida para a grande abertura no sentido de registrar, promover e dar voz aos músicos jovens de hoje, de nosso tempo, aqui no Recife. " In: Lula Côrtes e Zé Ramalho. Jornal da Cidade. Recife. 3 a 9 de Agosto de 1975, p.13

80'' Chamamos de ritornello todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais[...]falamos de ritornello quando o agenciamento é sonoro ou '' dominado'' pelo som." In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 139

59 Por ora, cabe pontuar que essa paisagem sonora que os grilos criam, à margem das zonas iluminadas e barulhentas da cidade, deve ser levada em conta como uma metáfora sonora para a compreensão das produções musicais desta zona de enunciação contracultural, que foi ganhando vida na capital pernambucana através das experimentações musicais que se deram com iniciativas como as do Selo Solar. Isso porque a condição de possibilidade desse território de experimentação coletivo, como venho demonstrando neste capítulo, se refere a um deslocamento existencial que deu vida e expressão às maneiras de pensar e sentir ligadas às forças errantes e nomádicas que aconteciam na superfície das experiências contraculturais e que davam emergência a espaços marginais, undergrounds, udigrudis, em relação ao centros de produção da chamada ''cultura oficial" nordestina, que acontecia na cidade de Recife através de iniciativas como as de Ariano Suassuna e o Movimento Armorial, que visavam um fechamento sonoro do Nordeste.

Tornar-se um bicho-grilo, naquele período, do ponto de vista das forças micropolíticas, significava investir o desejo na criação de linhas de fuga e de espaços alternativos de sociabilidade e invenção artística, que fossem descodificados em relação às forças hegemônicas do Estado, da Religião, da Família. No país, bicho-grilo tornou-se uma até mesmo uma gíria que designava essas figuras coloridas, cabeludas e viajantes que se proliferavam enunciando-se marginalmente nas cidades do país. Os grilos cortam o silêncio da noite com o som que emitem, mas esse corte é necessário, é a maneira através da qual modulam seu território.

No capítulo três iremos fazer uma reflexão mais aprofundada a partir do conteúdo das invenções sonoras e poéticas que foram lançadas pelo Selo Solar e que ajudaram a compor uma paisagem sonora psicodélica da região Nordeste. Antes de fazer isso, gostaria de tratar da própria trama histórica que deu condição de possibilidade a existência destas músicas, tal qual as ouvimos até hoje. Em conexão ao que propõe o historiador Edwar Castelo Branco, ao analisar certas produções culturais da década de sessenta, concordo que de fato “o entendimento das condições de existência do período, portanto, exige um deslocamento do foco do olhar, deixando-se de mirar os objetos, para propriamente, mirar a trama de sua constituição”.81 Ora, considerar essa trama no caso desta pesquisa, passa por buscar compreender o próprio universo da música brasileira, nessa virada de década, e pensar de que maneira os discos do Selo Solar deram vazão à uma livre experimentação da linguagem

81CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Op. Cit. p. 268

60 musical, completamente alheia às imposições do mercado musical do período. As madrugadas que foram vivenciadas dentro dos estúdios da Rozemblit materializaram discos com uma forte tendência ao experimentalismo, à diluição de fronteiras entre gêneros e estilos, à livre criação e ao improviso musical, na busca por efeitos sonoros. De certa maneira, não haviam amarras quanto ao resultado que se esperava daquelas produções. O técnico e engenheiro de som do estúdio estavam lá apenas para por os equipamentos para funcionar, mas não havia nenhum produtor musical ou empresário dizendo como as coisas deveriam ser feitas ou então exigindo que algo entrasse ou saísse dos álbuns, como era tão comum no período na indústria fonográfica82. Se o formato comercial da maioria dos discos do período costumavam definir o tempo de uma música entre 3 e 4 minutos - convenção que também funcionava como forma de fazer parte dos programas de rádio83 -os discos do Selo Solar, por outro lado, comportam desde músicas que chegam a 8 minutos e outras que não passam de 50 segundos. Isso é apenas um exemplo do que está envolvido na produção musical quando ela é feita de maneira independente, ou seja, sem pertencer à trama mercadológica da grande indústria cultural. Os sons acabam ganhando uma liberdade, que os torna disforme em relação a dados códigos e convenções de uma época, assim como as experiências existenciais destes sujeitos eram disformes em relação aos códigos e convenções comportamentais de sua época. É sob este aspecto que os fluxos da contracultura atravessaram as fronteiras do ambiente sonoro do Nordeste, abrindo suas fronteiras para a emergência de uma paisagem sonora nordestina implicada num universo de experimentações estéticas e existenciais contra- hegemônicas.

Era a primeira vez da maioria destes músicos em um estúdio de gravação e o que eles desejavam era justamente experimentar conjuntamente o processo de criação do que vinham compondo, abrir espaço para mostrarem suas músicas. O Selo Solar operou como uma espécie de embarcação que criou as condições necessárias para que os artistas pudessem navegar da maneira que quisessem, quanto a concepção sonora e poética de suas músicas.

82Alceu Valença e Geraldo Azevedo, por exemplo, quando estavam no Rio de Janeiro gravando seu álbum produzido por Rogério Duprat tiveram vários arranjos suprimidos do disco pela imposição do empresário da gravadora. Isso aponta uma situação que estava se intensificando na produção musical do país: a interferência de empresários e diretores de marketing opinando sobre o que o público gostaria ou não de ouvir.

83Quando em 1965, o cantor Bob Dylan lançou a música-acontecimento “Like a Rolling Stone”, uma das coisas que causou impacto foi o tempo da música, que durava quase 7 minutos. A música chegou a ser lançada divida em duas metades nos primeiros compactos e em muitos programas de rádio os apresentadores só começaram a tocar a música inteira após muitas ligações dos ouvintes. Ver: MARCUS, Greil. Like a Rolling Stone: Bob Dylan na encruzilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

61 Como veremos adiante, a estética visual e sonora diferia consideravelmente de tudo que havia saído até então dos estúdios da Rozemblit. Evidentemente, todo o conteúdo teve de passar pela censura, mas as letras não faziam nenhuma crítica direta ao regime nos moldes de canções engajadas por exemplo e por isso não houveram impedimentos. Na verdade, a própria existência deste material representava uma ação crítica em relação ao período, o que não estava contido na canção estava encarnado na própria experiência que estava sendo liberada por estes sujeitos, que buscavam formas alternativas de produção onde houvesse liberdade e autonomia quanto ao que estava sendo feito. As dificuldades técnicas tinham de ser superadas com jogo de cintura, pois no estúdio as gravações eram feitas em apenas quatro canais e os músicos eram inexperientes nesse ambiente que é completamente diferente dos palcos. Do ponto de vista técnico, o som dos discos do Selo Solar deixam muito a desejar, em relação ao que já era possível desenvolver no período, mas essas dificuldades técnicas acabaram se tornando marcas sonoras de uma experiência de produção bastante artesanal que era encarada pelos músicos quase como um ritual, no terreno desconhecido da tecnologia dos estúdios. Essas dificuldades foram superadas através da criatividade dos experimentos.

Cada um dos quatro álbuns lançados, na época, tiveram uma tiragem pequena – cerca de 1.000 cópias cada um - e eram distribuídos em lojas pela cidade de Recife ou então eram vendidos pelos próprios músicos, em feiras como as que aconteciam semanalmente no Pátio de São Pedro, no centro da cidade. No campo musical, a ação do Selo Solar é representativa da criação de estratégias alternativas de produção, basicamente fazendo o que era possível ser feito, fazendo por si mesmo, numa espécie de esquema do it yourself ( faça você mesmo ) que mais tarde se tornaria o emblema da produção de conteúdos de diferentes coletivos artísticos mundo afora. E era uma transformação no que se refere ao modo de existência que tornava possível a aparição de espaços de criação desta natureza. Digamos que estes álbuns, lançados entre 1972 e 1976, são um correlato, no meio musical, destas produções alternativas que se proliferavam na imprensa underground, nos filmes em Super 8 ou na poesia e na literatura marginal do período, espaços de enunciação que foram abertos como verdadeiros respiradouros, para que as vozes dissonantes em relação à situação política vigente pudessem continuar expressando-se, escrevendo, cantando, tocando, desenhando, se comunicando. A marginalização destas vozes no corpo social deu vida a uma constelação de produções alternativas em diferentes cidades do país. No campo da imprensa tínhamos, por exemplo, a revista Pif-Paf, O Pasquim, Opinião, Navilouca, Movimento, Beijo, Grilo, Revista Versus, algumas chegando a circular nacionalmente. No caso da música, o Selo Solar, em Recife, é

62 um elemento sintomático dessa movimentação cultural que, pelas beiradas, criava suas possibilidades de existir, suas brechas, seus ritmos.

Não podemos esquecer que a expansão das forças reacionárias no campo social, sobretudo entre 1969 e 1974, criou um ambiente sombrio entre aqueles que sentiam esta situação de autoritarismo como um grande retrocesso na sociedade brasileira. Como se sabe, estas forças não se contentavam em ser exteriores aos sujeitos e não habitavam uma estrutura fixa, da qual bastaria evadir-se para se sentir livre, estas forças eram postas em movimento para atravessar os corpos, atingi-los no ato mesmo de suas existências, criando uma sensação de desaparecimento da luz, como se o que estava sendo imposto fosse um lugar de baixa luminosidade para se viver. Alguns artistas, que antes agiam como antropófagos-tropicalistas, como Torquato Neto, Renato Borghi e Caetano Veloso, deram visibilidade a este cenário sombrio de descontentamento em suas manifestações artísticas, como um sintoma encarnado num corpo que sofre a força negativa daquilo que lhe atravessa desde as tramas do social. À época, Torquato deu vida ao personagem Nosferatu, no filme de Ivan Cardoso, Caetano Veloso, por sua vez, gravou a música “Vampiro”, composta por Jorge Mautner, onde ele diz: Sinto aquela coisa no meu peito/Sinto aquela grande confusão/ Sei que sou um vampiro/Que nunca vai ter paz no coração”. Segundo a pesquisadora Flora Sussekind, uma espécie de vampirização começou a ganhar consistência na produção cultura brasileira e,

Tais vampirizações-em-série sublinhariam tanto uma perda da dimensão coletiva, ritual, da devoração, no novo contexto político, quanto uma redefinição de status do artista ( não mais antropófago, mas uma espécie ávida de morto-vivo) e de sua

84 atividade ( cujo caráter é agora secreto, noturno) no Brasil dos anos 70.

O que nos interessa nesta passagem, é que a autora aponta uma nova imagem do artista imerso no campo de forças do país, nos anos setenta. A imagem do antigo antropófago-tropicalista teria se transformado na imagem de um sobrevivente noturno, que fora lançado num território existencial sombrio, como se no céu de suas vidas agora pairassem grandes nuvens cinzentas, que impediam a passagem do Sol, tornando-o um morto vivo. Não era só a cidade que vivia nublada, mas a própria subjetividade de sujeitos que foram protagonistas da agitação cultural da década anterior e acabaram se tornando um

84 SUSSEKIND, Flora. Coro, contrários , massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60. In: BASUALDO, Carlos(org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira ( 1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 54.

63 símbolo de rebeldia no imaginário da incipiente contracultura brasileira.85 É inegável que essa vampirização tenha afetado diversos sujeitos, em sua forma de reagir aos acontecimentos da época, e Sussekind utiliza esta imagem para nos colocar diante da sensação de escuridão e da necessidade de sobrevivência que era experimentada, algo que também ganhou expressão na performance de Paulo Bruscky citada anteriormente.

Nesse sentido, outra expressão contundente desse processo histórico de obscurecimento dos sujeitos e das cidades passa pela apresentação da música “Gotham City”, de Jards Macalé e Capinam, durante o IV Festival Internacional da Canção, em 1969, num Maracanãzinho lotado. Com orquestração de Rogério Duprat, a música iniciava com uma interpretação do tema de abertura do seriado televisivo Batman, num ritmo acelerado, e, na sequência, batuques afro ganhavam centralidade, acompanhados pelo som distorcido de uma guitarra, ao passo que Macalé começava a cantar sua letra. Os quase 7 minutos de duração da música foram mais que suficientes para que Jards e sua banda saíssem debaixo de um turbilhão de vaias que ecoavam pelo ginásio lotado. O arranjo caótico que a música possuía e a temática da letra não foram bem recebidas pelos ouvintes. Na verdade, a plateia não soube captar de imediato que ali estava posta uma crítica contundente ao momento reacionário e fascistóide que o país atravessava, o relato desde um lugar de sujeito imerso numa cidade sombria, vivendo entre morcegos, abismos e caça às bruxas, pensando como fugir o mais breve possível daquele espaço.

Aos 15 anos eu nasci em gothan city

Era um céu alaranjado em gothan city

Caçavam bruxas nos telhados de gothan city

No dia da independência nacional

Cuidado! Há um morcego na porta principal

86 Cuidado! Há um abismo na porta principal Mas não devemos generalizar essa linha de subjetivação que a autora detecta e tomá- la como linha padrão entre os artistas que seguiam criando. Se por um lado, essa vampirização-em-série ganhara forma em uma parte daqueles que antes integraram a marcha

85Ver: DUNN. Christopher. Brutalidade Jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: UNESP, 2009.

86 Música apresentada no IV Festival Internacional da Canção no Rio de Janeiro em 1969. Link disponível: https://www.youtube.com/watch?v=epz1isKVpTQ ( Acesso em 06/04/2017 )

64 da tal “cruzada tropicalista” - parafraseando o título do famoso artigo de Nelson Motta em louvor à Tropicália87 – e que agora percebiam algo de sombrio se impondo na paisagem social, com mais força do que nunca, algo diferente se passou em Recife, entre àqueles que também sentiam que uma noite que se queria intransponível havia se instalado no campo social. Na cidade pernambucana, as forças do Sol eram convocadas no próprio nome dado ao selo de música de Kátia Mesel e Lula Côrtes. É possível imaginar que o Selo Solar talvez tenha ganho este nome, justamente, para contrapor-se à escuridão que as forças reacionárias da sociedade punham em movimento de circulação. Ao invés de se vampirizar, invocar as forças solares e seu poder cósmico de iluminação como alusão a uma tentativa de livrar-se dessa nuvem carregada de conservadorismo que atravessava o corpo social. No mesmo ano em que o Selo Solar foi criado em Recife, o multifacetado Jorge Mautner havia retornado ao país e lançava seu primeiro álbum, sob o título de “Para Iluminar a Cidade”, onde mais uma enunciação solar se fazia ouvir por entre as sombras da política. A irreverência crítica de Mautner é mais uma expressão de que criava-se para iluminar, assim como o Sol, para semear na terra novos possíveis, para viver as urgências do presente.

Um dos discos gravados durante as madrugadas, no estúdio da Rozemblit, nos traz mais elementos para pensar essa estranha trama entre o noturno e o solar, que estava se constituindo. Intitulado “Flaviola e o Bando do Sol”, o LP foi o último trabalho feito pelo Selo Solar. As composições são em sua maioria de Flávio Lira, mas o disco também traz dois poemas de Lula Côrtes, anteriormente contidos no “Livro das Transformações”, que havia sido publicado em 1972, e que em 1976 se tornaram canções na voz suave do jovem cantor recifense. O curioso é que uma passagem de Hamlet também foi musicada por Flávio Lira, um pequeno fragmento escrito por William Shakespeare, que tornou-se uma indagação melancólica na voz do cantor:

Noite, noite, noite eterna

Trevas, quando se dissiparão?

88 Quando tornarei a ver a luz do dia?

87O artigo '' A cruzada tropicalista" foi publicado originalmente no Jornal Última Hora em 05 de Fevereiro de 1968. Pode ser acessado na íntegra neste link: http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/report_cruzada.php ( Acesso em 03/04/2017)

88Flaviola. Noite. Flaviola & O Bando do Sol. Recife: Selo Solar, 1976. Faixa 3 do CD.

65 Reparem que ao utilizar esse poema, Flaviola alude em sua canção a essa sensação de que um momento de trevas estaria tomando conta do corpo social, uma noite que relutava em dissipar suas nuvens, perdurando no tempo. Seguindo o rastro dessa sensação de esvaziamento e solidão, convém recordar da primeira música do disco que se chama “Desespero”. Sua letra também é sintomática quanto à sensação claustrofóbica que foi experimentada, coletivamente, durante a década de setenta, e traduzida por este jovem artista que, na época, estava com 24 anos. A letra é breve. Brincando com as palavras o autor anuncia que:

Está tudo tão vazio e mudo

A solidão é meu maior tempero

Meu coração é pleno desespero

Tudo, vazio e mudo

Solidão, tempero

89 Coração desespero A música cria um clima também sufocante na sobreposição dos instrumentos de corda (viola 12 cordas, violão, tricórdio e contrabaixo). Entre as palavras de desespero do cantor o som da flauta aparece para dar um sentido de elevação, diante daquela atmosfera sombria. Sempre as flautas, com o seu poder de dar a sensação de que as coisas se vão pelos ares com seu som mágico. Essa sombria solidão, desesperadora, essa imersão numa atmosfera noturna, soturna, não seria efeito direto dessa expansão das forças reacionárias, durante aquele período, na capital pernambucana, e no país? O curioso é perceber como essa triste constatação era acompanhada por uma invocação quase que dialética ao solar, tanto no nome do Selo, como no nome dado ao grupo, Bando do Sol. Perceber a espessura histórica que atravessa este jogo das palavras nos ajuda a captar as tensões entre as forças históricas que se chocavam dando vida a estas maneiras de dizer que, por sua vez, são expressões, no campo da linguagem, de maneiras de pensar, sentir e viver. Lutar contra a solidão, as trevas do mundo, o desespero, tudo isso passava por revestir de simbolismo cósmico a força do Sol, como um contraponto a essa trama de tensão sombria e vampirizadora. Antes de Flaviola lançar seu álbum, em 1976, Marco Polo já havia estado com a Ave Sangria em várias cidades nordestinas e nas rádios que tocavam o recém lançado álbum da banda, se podia ouvir:

89 Flaviola. Desespero. Flaviola e o Bando do Sol. Selo Solar. Recife, 1976. Faixa 2 do CD.

66 Não se enterre na solidão Não se enterre na solidão Não se enterre na solidão Não se enterre na solidão Não se enterre na solidão Não se enterre na solidão

90 Não se entregue!

É uma espécie de chamado que atravessa a canção de Marco Polo, um convite e um apelo para que sua geração não se entregasse à solidão, ao isolamento, ao desespero, diante das sombras que ganhavam consistência no jogo político. Reparem que a letra conecta a questão da solidão como uma forma de se enterrar, ou seja, de criar uma profundidade que leva ao isolamento, ao fundo de uma região onde não há a partilha com o outro. Negar o aprofundamento da solidão que vai enterrando o sujeito no mundo era uma forma de resistir, de não se entregar, de manter vivo o valor do outro, do amigo, do viajante, que partilha o movimento nas superfícies do real social. É nesse sentido que a construção de uma contracultura marginal, underground, significou a produção de superfícies de experimentação coletivas, ou seja, significou a construção de territórios existenciais momentâneos, que ligavam as pessoas entre si para literalmente suportar a barra da ditadura e, ao mesmo tempo, continuar produzindo, criando, viajando, inventando formas de expressão. É assim que o surgimento e a breve dissolução do Selo Solar representou um destes vários espaços de navegação criados para a fruição artística e existencial coletiva de um dada situação movida pelos encontros e pelas trocas de experiência.

Há que se considerar a aparição do Selo Solar, por entre o extenso catálogo de discos lançados pela Rozemblit, como uma espécie de interferência, fruto das experiências contraculturais que se davam na cidade. Esse curto período de produções - entre 1972 e 1976 – exigem do historiador que considere a força dos encontros, das movimentações, das trocas de experiência, entre figuras que maquinavam as tramas de suas vidas sob a mesma força de um desejo de nomadização - das viagens psicodélicas às derivas no território e no cosmos - que tornou o encontro possível entre tantas figuras das quais já falamos. O que vem sendo exposto ao longo do capítulo é uma proposta de cartografia, ou seja, uma maneira de atravessarmos por entre acontecimentos vários – festivais, eventos, músicas, performances –

90Ave Sangria. Lá Fora. Ave Sangria. Rio de Janeiro. Continental. 1974. LP

67 que são os fragmentos que busquei dispor, para que nos ajudem a cartografar as condições de existência de paisagens sonoras, poéticas e existenciais de Nordestes Psicodélicos ou de psicodelias nordestinas que serão o foco de análise do terceiro capítulo.

Em se tratando de situações que, pelo momento político de repressão, operaram nas margens e nas sombras do pouco espaço disponível, convém pontuar que as suas memórias constituem arquivos muito mais frágeis do que aqueles de outras movimentações culturais que, com o tempo, tornaram-se oficiais e institucionalizadas pelas relações de poder no campo cultural ( Regionalismo, Tropicália, Armorialismo, Mangue-Beat), da cidade de Recife. Com certeza muitas situações estão de fora desse texto, é natural do fazer histórico a presença de silêncios. É nesse sentido que o Selo Solar é expressão de parte deste agenciamento coletivo de enunciação criado sob as pulsões da errância em sua modulação contracultural.

Abrakadabra e Nuvem 33: heterotopias da amizade

Kátia Mesel foi a principal articuladora da conexão entre o Selo Solar e Rozemblit. Kátia estudara Belas Artes e Arquitetura, na década anterior, e as movimentações na casa em que vivia foram fundamentais para a “fermentação” das experiências musicais dessa geração de músicos nordestinos. Ela era companheira de Lula Côrtes e, a partir de 1971, ambos criaram a Abrakadabra, uma espécie de produtora que lançou diversos conteúdos alternativos, localizada em uma casa onde muitas pessoas frequentavam cotidianamente. Esse entrelaçamento entre arte e cotidiano tem a ver com a nova dinâmica que estava implicada nas relações de amizade. Numa entrevista que realizei com Kátia Mesel, ela me falou da dimensão coletiva da experiência da Abrakadabra, desde os almoços entre várias pessoas, nos fundos da casa, até os momentos em que Lula pintava seus quadros, enquanto outras sete ou oito pessoas estavam próximas bebendo uma cachacinha ou fumando um baseado. Os ensaios musicais para gravações e apresentações também aconteciam dentro da produtora. Zé Ramalho viveu meses por lá, enquanto estava imerso no processo de criação do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol. Toda a preparação da performance de Alceu Valença no Festival Abertura em 1975 se deu no casarão, desde os ensaios com a banda até a criação do figurino. Além dessa dimensão artística, outras liberdades individuais também podiam vir à tona por lá. Ao falar disso, Kátia relembra de amigos gays que gostavam de frequentar a casa para simplesmente vestir uma túnica e pentear seus cabelos como bem quisesse. Isso em tempos onde ser gay e viver abertamente essa condição na rua era uma barra pesada numa

68 cidade como Recife. O fato é que o espaço tornou-se um território existencial de amizade e criação.

A Abrakadara era um lugar importante para o encontro de vozes dissonantes que viviam na cidade de Recife. A casa onde viviam os irmãos Mesel foi se transformando, a partir do início da década de setenta, num ambiente de experimentação coletivo, partilhado entre diversos sujeitos. O que aconteceu foi justamente essa imersão numa perspectiva de acolhimento em torno da vontade de criar e de experimentar certas liberdades cotidianas, que tornou aquele espaço uma zona atuante no desenvolvimento de criações artísticas experimentais, em diferentes formatos e linguagens - discos, filmes super 8, livros de poesia, fotografia, figurinos, cenografia, pintura, desenho, programação visual – , ao mesmo tempo, lá não era apenas um ateliê de artes, mas o próprio ambiente onde se vivia. Nesse sentido, a emergência deste “espaço alternativo”, que operava nessa dinâmica associativa entre arte e vida, foi fundamental, não só para a consolidação de dados produtos culturais, mas, sobretudo, para o desenvolvimento de novos territórios existenciais.

Territórios descodificados em relação à casa como espaço da família, restrito aos laços de compromisso da ordem familiar. A Abrakadabra foi um destes espaços em que as afinidades eletivas tornavam a convivência possível entre figuras bem diferentes entre si. É por isso que, quando falo das experiências contraculturais que surgiram em Recife, nesse momento, não estou tratando de um movimento, organizado em manifestos ou projetos, com linhas bem definidas de atuação, como fora por exemplo, o movimento do poesia concreta ou o até mesmo o tropicalismo, em certa medida. Ao invés disso, vemos uma confluência espontânea, feita de livres associações entre sujeitos que se encontraram num dado momento, se identificaram, fizeram algo juntos e depois, pelas próprias transformações da vida, seguiram rumos diferentes e que, enquanto estiveram conectados, não consideraram importante falar de si próprios como partícipes de algum movimento cultural ou algo parecido.

Para compreendermos essa dinâmica vivida na Abrakadabra, não basta convocar o ideal hippie da vida em comunidade e considerar que assim a explicação sobre a emergência deste espaço já estaria garantida. A aparição de zonas coletivas de experimentação dentro das cidades traz outro aspecto que não é apenas o caminho para uma utopia, mas sim a afirmação de um estilo de vida baseado nas heterotopias, que podem ser construídas para a experimentação de um desvio no presente. Espaços que se fazem campo operatório capaz de

69 dar vazão a experimentação de máquinas concretas de imaginação. Segundo Michel Foucault, num texto de 1984, intitulado “Outros Espaços”, as heterotopias são espaços onde se localizam os indivíduos cujo comportamento desvia em relação à média ou à norma exigida91. Digamos que nos espaços heterotópicos as práticas que são tidas como verdadeiros disparates, desde os lugares comuns, ganham possibilidade de existência no aqui-agora de sua experimentação. Onde os guardiões da ordem dizem estar situado um foco de desordem, exatamente aí estamos diante de uma experiência heterotópica, pois ao invés da desordem, o que ganha configuração é a multiplicação das ordens possíveis. Na visão de Georges Didi- Huberman, as utopias são consoladoras - pertencentes ao mundo clássico da representação - já as heterotopias, por sua vez, são inquietantes, pelo fato de manifestarem que a liberdade é uma prática que passa pela criação de espaços com maior reserva para a imaginação. A casa como espaço nômade, como jangada, como lugar para viagens e visagens, como embarcação provisória de navegadores de suas próprias liberdades éticas, estéticas, comportamentais. É evidente que a escolha do nome ''Abrakadabra" se relacionava à paisagem mental e as estratégias desejantes desses jovens ligados à contracultura, às suas máquinas concretas de imaginação, que em contraposição a um imaginário dominante racionalista e formalista, buscavam filiar suas experiências à perspectiva da magia, do esoterismo, das energias e das forças da natureza. É assim que Kátia Mesel comentou sobre o que motivou dar o nome de '' Abrakadadra" ao núcleo de criação e vivência que mantinham coletivamente:

Abrakadabra é a coisa mágica né? A gente era muito ligado às coisas da magia, do esoterismo, das energias, da natureza. Até por causa das ondas vibratórias que existiam na época - as trips e tudo mais- e a gente tinha essa consciência um pouco exacerbada nessa direção da energia...da...como vamos dizer...de compartilhar, de

92 anular aquele nuvem de merda e de repressão que a gente quebrava.

Assim, a casa e produtora Abrakadabra é mais um exemplo destes espaços de vivência e criação coletivas que começaram a aparecer, durante a década de setenta, no país, como locais estratégicos que corporificavam a busca desta geração por uma conexão mais ampla e consistente entre arte e vida. No Rio de Janeiro, os Novos Baianos também encontraram nesta configuração de sociabilidade uma forma de manter-se ativos e imersos em seus ideais comunitários, seja no apartamento em que viveram em Botafogo, seja, posteriormente, no

91FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. Em: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 416

92Entrevista concedida ao autor em 14/04/2016 na cidade de Recife-PE.

70 Sítio Novos Baianos, em Jacarepaguá, ou na sua partida para a praia de Arembepe, na Bahia.93 Em Curitiba, o casal de escritores Paulo Leminski e Alice Ruiz também fizeram de sua casa um espaço de experimentação coletiva, a chamada “Guruato da Marginália”.94 Era um espaço frequentado por vários artistas, entre as décadas de setenta e oitenta. Os encontros, as vivências e trocas feitas em grupo era um indicativo desta perspectiva coletiva que interligava criação e cotidiano. As rodas de violão e as jams sessions, a chegada de artistas de outras cidades, que os atualizavam sobre o que estava acontecendo noutros locais, faziam desses espaços locais em que era possível viver certas liberdades. Estar imerso nesta forma de viver, entre amigos e amigas, era um vetor fundamental para as invenções artísticas que ali se davam. Poderia citar outros vários exemplos, mas o mais importante de se reter é essa emergência de espaços alternativos, que encarnavam o desejo de liberação das amarras sociais de uma vida organizada nos padrões nucleares-burgueses da família e que iam perdendo consistência para àqueles que inventavam seus “respiradouros” durante a ditadura.

Como bem apontou Michel Maffesoli95, essas experimentações comunitárias funcionam como uma forma de implodir as cercas do individualismo que deu a tônica na construção das relações sociais da Modernidade. Já para Michel Onfray, isso seria um exemplo das experiências fraternais que integram os sujeitos em microssociedades eletivas e ativam microrresistências eficazes para derrotar momentaneamente os microfascimos dominantes.96 É que entre os jovens imersos na contracultura já não havia mais o desejo de qualquer tipo de macrorevolução insurrecional, explorava-se, ao invés disso, aquilo que Deleuze definiu como o devir-revolucionário dos sujeitos, agenciando relações éticas, 97 estéticas, políticas e artísticas entre si.

93Sobre as vivências coletivas dos Novos Baianos ver: GALVÃO, Luiz. Anos 70: Novos Baianos. São Paulo: Editora 34, 1997.

94BELLÉ, Junior. O guru polaco. Revista Trip. Edição 253. 27/04/2016. Link disponível: http://revistatrip.uol.com.br/trip/caetano-veloso-gilberto-gil-e-artistas-da-mpb-na-casa-de-paulo-leminski-em- curitiba ( Acesso em 03/04/2017)

95 MAFFESOLI, Michel. Op. Cit, p.46

96ONFRAY, Michel. A potência de existir. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.140

97Em entrevista ao filósofo italiano Toni Negri, Deleuze afirma que este devir-revolucionário passa pela capacidade de acreditar no mundo. Segundo o autor '' acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendras novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos." In: Controle e Devir. DELEUZE, Gilles. Conversações 1972-1990. São Paulo: Editora 34, 2007, p.218

71 Além disso, existe a questão da amizade. É impressionante como nós, historiadores, muitas vezes deixamos de lado o fato de que a trama de constituição de certas agitações culturais passa pela formação de redes de amizade entre as pessoas, antes de qualquer plano vanguardista, restrito apenas à uma dada linguagem. No caso das movimentações que se passaram durante os anos setenta, em Recife, isso se torna ainda mais notório pelo fato da criação em grupo ganhar um novo viés ético e político, como estratégia alternativa, como comunidade de pessoas unidas a partir de dados sentimentos.

Na verdade, a amizade é poderosa, pois destroça a soberania do eu e afirma a potência da presença do outro. A figura do artista romântico, isolado em seu quarto escuro, como um asceta à serviço da arte, dá lugar aos bandos de criadores, à estas matilhas e coletivos que sentiam que somente mediante o encontro com o outro a subjetividade pode surgir. Para o filósofo Francisco Ortega, a amizade representa uma procura e uma experimentação de novas formas de relacionamento e de prazer; uma forma de respeitar e intensificar o prazer próprio e do amigo98. É também, uma forma de se esquivar das convenções sociais e por conseguinte, um ponto de resistência potencial.99A amizade supera a tensão entre o indivíduo e a sociedade mediante a criação de um espaço intersticial (um processo de subjetivação coletivo) suscetível de considerar tanto necessidades individuais quanto objetivos coletivos e 100 de sublinhar sua interação.

Mais uma vez, as composições de Flaviola ganham importância neste capítulo. Em outra composição sua, lançada em 1976, uma canção intitulada “Do Amigo” parece esboçar essa potência da amizade como subjetivação coletiva, como forma de superar a sensação de solidão, no interior de um mundo cheio de tantas confusões, como foi o conturbado início dos anos setenta, no país:

Realmente meu amigo As coisas nunca, nunca, nunca são tão reais quanto parecem ser E no meio de toda essa confusão que é grande, que confunde tanto 101 Eu preciso demais de você

98ORTEGA, Francisco. Amizade e Estética da Existência em Michel Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999 p. 150

99Idem p. 157

100 Idem p. 171

101 Flaviola. Do Amigo. Flaviola e o Bando do Sol. Selo Solar. Recife. 1976. LP.

72 Outra proposição movida sob a força dos encontros e das amizades, em seu movimento de criação conjunta e de resistência cultural, nas margens dos rios e do mar do Recife, foi o coletivo Nuvem 33. Essa experiência grupal acabou não deixando tantos vestígios como a Abrakadara, no entanto, é de fundamental importância considerar essa movimentação que aglutinava artistas experimentais de diversas linguagens: música, teatro, performance, pintura, charge, cinema, etc. O Nuvem 33 passava pela articulação entre os jovens músicos Tiago Araripe, Lula Wanderley, Humberto Avellar e Otávio Bzzz. Tudo começou após Araripe assumir – de última hora – o lugar de compositor da trilha sonora da peça teatral “Armação” que estava sendo dirigida pelo pernambucano Tácito Borralho. A trilha iria ser criada pelo jovem músico de formação erudita Antônio Nóbrega que, após alguns ensaios, acabou abandonando o projeto. É provável que Nóbrega - que nessa mesma época passaria a integrar o Movimento Armorial, de Ariano Suassuna - não tenha se identificado com a linguagem descontínua e anárquica que fazia da “Armação” um espetáculo labiríntico, cheio de interferências fora do roteiro e das partituras. O fato é que Lula Wanderley indicou Araripe e, em pouco tempo, foram montadas 12 músicas para a peça de Tácito que se tornaram a trilha sonora do espetáculo. A partir das novas conexões que foram se dando, o Nuvem 33 passou a ganhar expressão em algumas performances grupais realizadas no Recife.

O Nuvem 33 buscava incorporar no espaço do palco toda essa experiência coletiva, multi-artística e vivencial que se passava entre a turma que frequentava a casa do coletivo em Recife. Um exemplo disso foi o evento Retreta Eletrônica, realizado em 1972, no Teatro do Parque. Grande parte da cena cultural marginal de Recife passou pelo palco interferindo e participando disso que foi uma espécie de processo de criação e curtição em ato, com mais de 40 convidados entrando em cena, ao bel-prazer de seus desejos. Não havia direção. Enquanto uns tocavam seus instrumentos, improvisando camadas sonoras, outros faziam charges e histórias em quadrinhos, baseadas no que estava acontecendo. A voz aguda de Araripe se transformava em motivo de curtição do cartunista que fazia o marinheiro Popeye falar que seu timbre era o mesmo da Olívia Palito, ao passo que a charge se fazia visível para a plateia, pois uma câmera projetava sua imagem num lençol que serviu como tela de cinema. Atores faziam performances e danças, pondo seus corpos em cena durante a execução das músicas. Até um trombonista, vestido de membro de banda marcial, circulou pelo palco. Essa carnavalização coletiva proposta pelo Nuvem 33 transformou o espaço do palco num lugar heterotópico, aberto ao imprevisível, o palco como vetor para uma viagem coletiva. Na

73 verdade, o que o coletivo fez foi levar sua experiência em grupo na casa Nuvem 33, onde vivia parte dessa turma, para o palco e abrir o espaço para qualquer outro tipo de intervenção, dando vez ao aspecto imprevisível da presença inesperada do outro. Uma das muitas situações inesperadas do Retreta Eletrônica foi a aparição do guitarrista Robertinho do Recife, ele que desde muito jovem já era conhecido como um dos melhores guitarristas de rock da cidade, pois tocando, desde meados dos anos sessenta, em bandas de iê-iê-iê, havia construído boa reputação na cena local. Robertinho havia recém voltado da viagem que fizera aos EUA, por onde excursionou com bandas de acid-rock norte-americanas. Assim que chegou, foi com sua guitarra ao Teatro do Parque e ajudou a compor a proposta anárquica do Nuvem 33.

As experimentações do Nuvem 33 encontram ressonância no que vinha se desenvolvendo no campo da nova música que emergia no período, sobretudo através da figura de John Cage. Num texto publicado em 1974, intitulado “O futuro da música”, Cage aponta a importância de fazer da música um processo – e não um objeto - vivido coletivamente, aberto as interferências e interrupções dos outros, ao aleatório, ao que se passa fora da ordem e dos códigos previstos. O compositor percebia na música contemporânea processos de criação que expressavam em sua sonoridade o prazer da sociabilidade, no sentido de que ser interrompido por outrem é tornar-se receptivo ao mundo lá fora. Assim como quando o telefone toca e nos tira do lugar. Ele dizia “estamos estudando como ser interrompidos”, seja nas jam sessions ou na musicircus. Exemplos musicais da praticabilidade da anarquia, onde vozes e sons ocorrem sem notação, sem direção, desgovernadas. Cage é contundente em seu texto e afirma que ao criarmos situações musicais que constituem analogias de circunstâncias sociais desejáveis, ainda não alcançadas, tornamos a música sugestiva e relevante para as questões sérias que afrontam a humanidade102 e continua:

Podemos dizer que esse apagamento das distinções entre os compositores, os intérpretes e os ouvintes constitui uma evidência de certa mudança que está acontecendo na sociedade, e não só quanto à estrutura geral desta, mas também quanto aos sentimentos que as pessoas têm umas em relação às outras. O medo, a culpa e a ganância, que são associados a sociedades hierarquizadas, estão dando lugar à confiança mútua, a uma sensação de bem-estar comum, e a um desejo de

102CAGE, John. O Futuro da Música. In: Escritos de Artistas anos 60/70. Organizadoras: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Rio de Janeiro Zahar, 2006 p.340

74 compartilhar com os outros qualquer coisa que uma pessoa por acaso tenha ou faça. Entretanto, esses sentimentos sociais transformados, que caracterizam muitas

103 apresentações da nova música, não caracterizam a sociedade como um todo.

Como não há registros disponíveis das produções musicais que foram desenvolvidas pelo Nuvem 33, optei por traçar uma reflexão justamente sobre o regime de sociabilidade que se instaurava nas performances do coletivo. O caráter efêmero e passageiro do que foi feito à época estão insinuados no próprio nome desta experiência. Uma nuvem nunca vem para ficar, sempre se insinua na paisagem de forma passageira e nômade, seu ritmo é o da passagem e da aleatoriedade, está sujeita aos ventos que as carregavam e as desmancham no ar. E foi assim mesmo, sob os ventos que agitavam a cabeça de seus idealizadores que a Nuvem se desfez, desagregando as gotículas moleculares que a compunha. Wanderley foi para o Rio de Janeiro trabalhar com , no Museu Imagens do Inconsciente, e também passou a colaborar com a pesquisas sobre arte e corpo feitas por Lygia Clark , ela que na mesma época 104 afirma contundentemente: divido a proposição e aceito a invenção do outro.

No entanto, essa curta duração do Nuvem 33 não deixa de possuir sua importância para a compreensão do ambiente cultural que estamos procurando analisar e que ganhou expressão, desde sua tendência ao nomadismo existencial. Ela também foi uma expressão de uma prática espacial heterotópica onde territórios foram forjados sob a potência das relações de amizades, como veículo capaz de conduzir a novos horizontes. Não é a toa que nesse mesmo período, no Rio de Janeiro, outra experimentação coletiva ganhou o nome de nuvem, sendo formada entre poetas, artistas gráficos, fotógrafos e músicos. Era a chamada Nuvem Cigana, que com suas aparições públicas carnavalizavam as ruas e a superfície de suas obras expressando a arte que havia se tornado suas próprias existências. Um dos lemas da turma 105 era: firme no leme que a reta é torta.

Mais uma vez a metáfora da navegação como forma de circunscrever, no campo da linguagem, uma experiência de vida. Firmes no leme para desviarem-se do caminho linear da organização codificada da sociedade e assumir a vida como algo de tortuoso, desviante,

103Idem p. 339

104CLARK, Lygia. Da supressão do objeto ( anotações ). Orginalmente publicado em 1973 na revista francesa Macula I e publicado no Brasil em 1975 na revista Navilouca. No nosso caso encontramos este texto no mesmo livro citado na nota anterior. Idem, p. 355

105 Para mais informações sobre a Nuvem Cigana ler o livro: COHN, Sérgio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2007.

75 cigano, pirata. Como afirmou Michel Foucault, no texto “Outros Espaços”, nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários106. Ora, era exatamente a dimensão da vida como aventura que esses coletivos de homens e mulheres procuravam dar substância em suas práticas. O clima entre os bicho- grilos, dos tempos do desbunde, era o de que viver era como estar viajando, trilhando caminhos, se esquivando da polícia e da espionagem, suportando a barra da ditadura e do moralismo ,com muita criatividade e parceria entre os navegantes que iam no mesmo barco ou na mesma nuvem. Criar espaços heterotópicos representava uma alternativa possível para as suas sobrevivências. O barco, por exemplo, é um pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar107. O mesmo vale para as nuvens, que pairam soltas no infinito do ar. Tanto o barco como as nuvens viajam, transitam, desterritorializam-se e os sujeitos que se enunciam através delas parecem trazer consigo uma espécie de sede pela deriva, como forma de construção de espaços que se movam e que sejam friccionados e ficcionados no contato com as diferenças.

O riso das sobrevivências

É nesse sentido, que tudo que vem sendo dito ao longo deste capítulo indica a criação conjunta de fricções e ficções histórico-existenciais, desde o Festival Experimental de Música em Nova Jerusalém, o I Parto de Música Livre no Teatro Santa Isabel, o Concerto Marginal e o Fora da Paisagem da banda Ave Sangria, passando pela criação do Selo Solar e seus discos, a casa/produtora Abrakadabra, as performances coletivas do Nuvem 33 e do Arame Farpado108, o Movimento Arte Postal do qual fazia parte jovens artistas de Recife, Paraíba e Natal, dentre outras coisas. Esses acontecimentos são expressões de fricções e ficções coletivas, em movimento de deriva e agenciamento de espaços, para o exercício experimental de uma liberdade existencial, que não dissociava arte e vida, ética e estética, amizade e criação. Do ponto de vista micropolítico estes territórios abriam possibilidades de sobrevivências contemporâneas diante da expansão das forças reacionárias, no momento político da ditadura civil e militar, que o país atravessava, com a intensificação de dispositivos como a censura, a tortura e o controle repressivo sobre a circulação de forças

106FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.421

107 Idem p.421

108Banda da qual fazia parte o cantor Flaviola no início da década de setenta.

76 políticas e culturais críticas ao regime. No que concerne a região Nordeste, considero que estas experiências fazem parte do que poderíamos chamar conceitualmente de um agenciamento coletivo de enunciação traçado por parte da juventude, entre os anos 60 e 70. Convém recordar do que nos sugere a filósofa Suely Rolnik, ao procurar definir a extensão do conceito de agenciamento coletivo de enunciação. De maneira simples, ela nos afirma que:

O que eu expresso, não é eu mesmo, mas um agenciamento coletivo de enunciação que é sentido através do meu corpo, que provoca fricção entre minhas sensações e potencialidades. Então o que eu expresso não vem de uma enunciação individual, ela sempre vem de um agenciamento coletivo de enunciação[...]e como tal ele possui um efetivo poder de contágio, de contaminação e de convocação de todos que compartilham do mesmo ambiente, empoderando eles a se expressarem a partir deste ponto de partida singular, a partir deste agenciamento coletivo de

109 enunciação.

Contagiar, contaminar, convocar a troca de experiências entre aqueles que compartilham do mesmo ambiente, ter suas sensações e potencialidades fricionadas. Um agenciamento coletivo de enunciação como um ''ponto de partida singular" o que implica uma leitura dos processos sociais que se aproxima da perspectiva molecular e monadológica da sociologia de Gabriel Tarde.110 A construção das subjetividades sociais como processo coletivo molecular de contaminações, onde o indivíduo inexiste fechado em si mesmo, mas sim como mônada repleta de aberturas, cheia de portas e janelas, sendo afetada pelas relações que atravessam o social. Crenças e desejos fabricando mundos, crença entendida enquanto disposição para agir neste - e não em outro - mundo e o desejo como a força que faz mover estes agenciamentos. Das cartas viajando por diferentes países às músicas gravadas nas madrugadas lisérgicas nos estúdios da Rozemblit, passando pelos espaços de sociabilidade coletivos e festivais. O que existe em comum entre esses acontecimentos é a possibilidade de um encontro entre arte e vida. Daí um pensador como Silvano Santiago, ao analisar as transformações culturais que o país viveu, entre as décadas de sessenta e setenta, considerar,

109Trecho de fala da filósofa Suely Rolnik no filme: Agenciamentos: Felix Guattari e o animismo maquínico. Direção: MELITOPOULOS, Angela; LAZZARATO, Maurizio. Paris, 2011. Link disponível: https://www.youtube.com/watch?v=4L_m5vPQoaY ( Acesso em 15/06/2016)

110Nesse sentido, Gabriel Tarde considera que todo fenômeno social não é senão uma nebulosa decomponível em ações emanadas de uma infinidade de agentes e que ''em uma sociedade , nenhum indivíduo pode agir socialmente, nem se revelar de uma maneira qualquer sem a colaboração de um grande número de outros indivíduos, na maioria das vezes ignorados pelo primeiro. In: TARDE, Gabriel. Monodalogia e sociologia. E outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 90

77 no fenômeno da contracultura brasileira, a encarnação de uma atitude de reação nietzscheana e dionisíaca contra a censura, a repressão e o terror político. Não é sem sentido a afirmação do autor, ainda mais se considerarmos a vasta leitura que vem se fazendo do pensamento de Nietzsche, desde o início da segunda metade do século XX, sobretudo na filosofia francesa. Me parece que este elo se sustenta, dentre outros aspectos, pelo fato das experiências contraculturais afirmarem uma arte que funcionava como um antídoto ao poder.

Como aparece neste trabalho de Paulo Bruscky do ano de 1976, a questão que interroga se a arte é ou não algo reversível, não é das perguntas mais importantes. Ao invés de responder a questão que levanta numa provocação, para Bruscky o que interessa é o tratamento preventivo da arte. Criar para não adoecer, para sobreviver diante do poder, para inventar experiências coletivas como condição possível de resistência cotidiana.

Outro compositor que nos ajuda a compreender as condições de existência da contracultura, no Nordeste da época, é o paraibano Zé Ramalho. Para quem não sabe, grande parte das canções que se tornariam clássicas na voz do cantor, após seu sucesso nacional, desde fins da década de setenta, foram escritas anos antes, justamente durante esse período

78 em que Zé transitava entre a casa Abrakadabra em Recife e a Vila do Sossego111 em João Pessoa. Após sua saída da banda de baile Os Quatro Loucos, já impactado pelas invenções tropicalistas, pelos escritos de Carlos Castañeda, por Woodstock, dentre outras coisas, ele escreveu muito nessa fase de sua vida, com aquele tom místico que se tornaria sua marca sonora e poética, no quadro da música brasileira. Canções futuramente famosas como “Avohai”, “Chão de Giz”, “Vila do Sossego”, “Admirável Gado Novo”, “Taxi Lunar” estavam sendo criadas e experimentadas em apresentações que ele fazia ao lado de outros músicos recifenses da cena udigrudi (como Paulo Rafael, Agrício Noya, Israel Semente Proibida, Lula Côrtes e outros).

Em 2008, o selo Discobertas, do pesquisador da música brasileira Marcelo Fróes lançou - em cd duplo – gravações raras de Zé Ramalho, registradas originalmente em fita, durante seus shows na Paraíba, onde estas canções aparecem em suas primeiras versões, tocadas ao vivo nos teatros locais, para um pequeno público. O cantor já era considerado um grande compositor entre os que conheciam seu trabalho. Alceu Valença, em entrevista ao Jornal da Cidade, em 1975, ao ser indagado sobre o momento musical que Recife vivia disse: “Esse grupo de músicos do Recife teria condições de realizar um grande trabalho. Veja bem, tem um paraibano aqui, o José Ramalho, que é um dos maiores compositores do Brasil, se não o maior. Agora, quem diabo conhece José Ramalho?”. Contudo, o que destacarei das gravações lançadas nesta coletânea não é propriamente uma canção, mas sim um texto que é recitado em tom trágico pelo então “Zé Ramalho da Paraíba”, onde aparecem marcas da própria condição existencial à que ele e muitos outros sujeitos estavam sujeitos em suas vidas. O título do texto é suficientemente contundente para captarmos a perspectiva de um personagem que parece estar imerso numa verdadeira encruzilhada. O texto se chama “O Sobrevivente”:

Peço desculpas de ser o sobrevivente. Não por longo tempo, é claro, tranquilizem- se. Mas devo confessar reconhecer, que sou sobrevivente. Se para vocês, é triste e cômico, ficarem sentados na plateia, quando o espetáculo acaba e fecha-se o teatro, mais triste e grotesco é permanecer no palco. Ator único e sem papel, quando o público já virou as costas e somente as baratas circulam no meio do farelo.

111Vila do Sossego foi como ficou conhecida uma casa no litoral paraibano frequentada pelo compositor Zé Ramalho no início dos anos 70, foi nesse espaço que compôs canções como '' Avohai", '' Chão de Giz'' e '' Táxi Lunar", lançadas em 1978 no seu primeiro álbum solo.

79 Reparem que não tenho culpa. Nada fiz para ser sobrevivente! Foi isso que aconteceu, me tornei, tornaram-me, sobrevivente. Se se admiram de eu estar vivo, esclareço que estou sobrevivo. Viver propriamente não vivi, senão em projetos, pensando no calendário do próximo ano. Jamais percebi estar vivendo e me pus a um canto, à espera contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver...Não chegou!

Digo que não porque tudo foram ensaios. Tudo foram testes e ilustrações, a verdadeira vida sorria longe, indecifrável. Recolhi-me cada vez mais ao meu útero. À minha ilha! À minha casa! À concha. E agora sou o sobrevivente.

Sobrevivente incomoda mais que fantasma. Sei disso porque incomodo a mim mesmo e o reflexo é uma prova feroz. Mas por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me e provoco-me. Não adianta ameaçar-me porque volto sempre, todas as manhãs eu volto com a exatidão de um carteiro que distribui más notícias.

O dia todo é dia de verificar o meu fenômeno. Estou aonde não estão minhas raízes. O caminho onde sobrei, se estende, reiterado, aflitivo sobrevivente de uma vida que juro por Deus e o Diabo ainda não vivi! Cumpre a vocês reconhecer-me essa qualidade. De ser o único sobrevivente, entendem? O único e o último de um grupo muito antigo, do qual não há memórias nas calçadas nem nos vídeos. Sou o único a permanecer, a dormir, a jantar, a urinar, a tropeçar. E até mesmo a sorrir, em rápidas ocasiões como esta, em que estou sorrindo. Entendem? Sorrindo... Eu estou sorrindo agora, entendem?

112 Hahahaha hahahaha haha hahaha

O texto expressa diversas situações a partir de uma condição de existência específica: a sobrevivência. Num primeiro momento, a cena traça a imagem de um artista que continua a existir após o espetáculo, por entre as migalhas do que foi deixado pela plateia e os seres pequenos (baratas) que, tão cedo a multidão se afasta, surgem como companheiras. Mas fora dali, a sobrevivência se prolonga na extensão de seu mundo, a vida posta em projetos, em planos futuros, num amanhã que já deveria ter chegado, mas ainda não chegou. Estar sobrevivo é estar recolhido sobre si próprio e aí Zé convoca a imagem do útero, da casa, da ilha e por fim, da concha. Pelas palavras notamos que não se trata de um voltar-se para o interior de si mesmo. Ao invés disso, fala-se de um dentro em relação a um fora. Mas esse

112Zé Ramalho. O Sobrevivente. Zé Ramalho da Paraíba. Selo Discobertas. Rio de Janeiro, 2007. Disponível para audição no link: https://www.youtube.com/watch?v=qofp5Qf9L0w ( Acesso em 31/05/2016)

80 movimento para dentro – e como mergulharam em suas ilhas os jovens afetados pela contracultura - não dá conta de fazer sumir a fulguração de sua experiência, esse retorno à concha projeta, faz cintilar, uma pequena luz para o exterior, uma iluminação precária, mal vista. Essas palavras, que são devaneios de um ser misto, meio morto, meio vivo, nos fazem lembrar daquilo que Gaston Bachelard - com bom humor filosófico - chamou de fenomenologia da concha habitada, ao considerar que a imagem da concha-casa pertence ao indestrutível bazar de velharias da imaginação humana113. Ele nos diz que

O ser que que se esconde, o ser que “entra em sua concha” prepara “uma saída”. Isto é verdadeiro em toda a escala das metáforas, desde a ressureição de um ser sepultado até a súbita manifestação do homem há muito tempo taciturno[..]Ao conservar-se na imobilidade de sua concha, o ser prepara explosões temporais do ser, turbilhões do ser. As mais dinâmicas evasões ocorrem a partir do ser comprimido, e não na preguiça frouxa do ser preguiçoso que só quer espreguiçar-

114 se em outro lugar.

O sobrevivente, iluminado pelo que aparece em sua recolhida, se movimenta num caminho aparentemente repetitivo, reiterado, ele está desenraizado. Na verdade, neste espaço em que sobrevive, ele não encontra o que considera ser as suas raízes. A sobrevivência lhe impõe a desterritorialização como forma de vida temporária. O curioso é que a imagem do sobrevivente é cheia de ambiguidades. Ele não possui mais terra e também não possui mais povo. As memórias que traz consigo não estão postas nas calçadas nem nos vídeos, uma outra vida teria se imposto sobre as memórias suas que seriam evocações de um grupo muito antigo, já esquecido por quase todos. Sua experiência se constitui como clandestina no mundo. Ato político fundado sobre a “comunidade que resta”. Como aponta Georges Didi- Huberman, em situações como esta, nos colocamos diante de uma imagem que torna visível uma espécie de retirar-se para fora do mundo, da luz, mas numa configuração espacial em que continua-se a trabalhar em algo que possa ser útil, mas que não passa de um lampejo na escuridão. Visão que me parece exprimir muito bem a força plástica do dinamismo que sobrevém nas experiências contraculturais de certos artistas que criaram suas matérias de expressão durante o período mais tenso da ditadura militar no país, onde as forças reacionárias do corpo social pulsaram intensas nas ruas.

113 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2 ed. São Paulo. Martins Fontes, 2008, p. 143

114Idem p. 123

81 Essa sobrevivência clandestina, nomádica, não era apenas escapista, ela também construía algo para se ver e ouvir. Mesmo com o tom trágico, sofrido, de grande parte do texto de Zé Ramalho, o final nos surpreende pela quebra abrupta do clima sombrio que vinha dando o tom de seu relato. O riso, a gargalhada do sobrevivente, é mais forte que todas as tensões a que está exposto cotidianamente. Independente das dificuldades, ele sorri, em raras ocasiões, mas sorri. Entendem? É como a múmia performatizada por Paulo Bruscky, no Parto de Música Livre que, mesmo moribunda, rompe o silêncio e faz nascer um berro, um grito. O riso de Zé Ramalho é a expressão de que, apesar de tudo, ainda havia alegria em permanecer sobrevivo, por entre as margens tecidas nas experiências da contracultura.

Voltemos para aquela imagem do Vondelpark em Amsterdam. Aquela aglutinação de pessoas à beira do lago, onde seus corpos aparecem deitados na grama, formando uma rede heterogênea de diferenças. Pensemos na força plástica desta imagem, levemos em consideração essa dimensão plástica, não apenas como um ornamento ou como algo que no fundo seria irrelevante, mas sim como a própria encarnação de uma dinâmica social. Essa plasticidade é o traçado imagético de uma territorialização existencial necessária para alguns sujeitos à época. Estes corpos, tão diferentes uns dos outros, espalhados ao redor da água do lago, em cima da grama, evocam a plasticidade da imagem de grilos, aqueles pequenos insetos que proliferavam e ainda se proliferam na natureza. Não é a toa que, no Brasil da década de setenta - para dar sentido a visão em torno do visual e do comportamento dos desbundados- tornou-se comum tratá-los como sendo os “bichos-grilos” da sociedade. Há que se supor algo mais que uma simples metáfora. Se em Didi-Huberman, a dinâmica que lhe interessa para pensar e escrever uma história das imagens é à da luz intermitente dos vaga- lumes - uma estratégia epistemológica amparada visualmente- penso que a dinâmica, ou seja, o agenciamento territorial sonoro dos grilos nos oferece uma boa alternativa conceitual para pensarmos e problematizarmos sonoramente as músicas proferidas desde às margens da situação contracultural e psicodélica experimentada na cidade de Recife durante os anos 70.

Este capítulo procurou cartografar, justamente, alguns elementos importantes para entendermos as condições de existência e sobrevivência de alguns destes homens e mulheres que viviam como bichos-grilos, no Nordeste brasileiro, em especial na capital pernambucana. Cabe agora, seguir a reflexão no sentido de analisar as paisagens sonoras que estas experiencias contraculturais tornaram audíveis, através dos discos que analisaremos e de que maneira estes discos nos possibilitam escutar psicodelias nordestinas, compostas musicalmente. Como se sabe ao escutar, o som dos grilos não vibra numa única direção,

82 todas as noites podemos observar isso. Seus sons comportam diferenças de timbres, de ritmo, vibram aparentemente desordenados e, no entanto, não deixam de possuir consistência em seu território. O som é quem define estas fronteiras. Sendo assim, para além desta breve e fragmentada cartografia que apresento com uma sobrevivência dos bichos-grilos, partiremos para a escuta de sua produção musical, onde seus territórios existenciais foram traçados sonoramente. Nesse sentido, a relação entre história, música e espaço será problematizada adiante através de um estudo das paisagens sonoras e poéticas inventadas por estes por estes sujeitos entre 1972 e 1976.

Mas antes disso, será preciso averiguar os efeitos de outro acontecimento importante que marcou a transição entre as décadas de sessenta e setenta. Como veremos, a aventura humana empreendida com a Corrida Espacial, no século XX, operou deslocamentos enunciativos sintomáticos no plano das consciências e sensibilidades. Foguetes, satélites artificias, sondas, astronautas, discos voadores, cometas, espaçonaves, estrelas, planetas e constelações, tornaram-se protagonistas de uma experiência coletiva de desterritorialização que se estendeu pelo campo social, de diferentes maneiras, e abriu as fronteiras do mundo aos diagramas de força da chamada Era Espacial. A possibilidade de sondar o espaço cósmico e transformar as relações na Terra, através dos avanços tecnológicos, foram alguns dos passos considerados ''saltos para a humanidade", como disse a voz do astronauta norte-americano, desembarcando em solo lunar, ao vivo, nos televisores, em 1968. Contudo, os humanos não funcionam como os foguetes V-2, capazes de lançar naves para fora da gravidade terrestre, para saltarem por si sós, precisam tomar impulso, e portanto, retroceder, voltar alguns passos, o que sintomaticamente significa se dirigir aos arquivos desordenados das experiências passadas e sob esta condição, embaralhar os tempos, na montagem de novos microcosmos enunciativos. Como verdadeiras catapultas, aqueles que se interessavam pela vida em sua relação com as forças cósmicas maquinavam encontros singulares entre o agora que viviam e os fragmentos de um outrora que sobrevivia na superfície caótica do mundo. De que maneira o avanço para o espaço cósmico reverberou nos territórios existenciais da contracultura brasileira, na década de setenta? De que modo este processo de rearranjo atingiu as fronteiras imaginárias da Região Nordeste? No próximo capítulo, a aparição do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, na Recife de 1975, será o nosso ponto de partida para analisarmos estes deslocamentos que nos levam a outras experiências existências que ganharam consistência nas sonoridades e nas poéticas das psicodelias nordestinas, que ganharam expressão musicalmente, entre 1972 e 1976.

83

84 Nas Paredes da Pedra Encantada: Era Espacial, Contracultura e Nordeste à deriva no Cosmos

Cantando os mistérios do Planeta

Parte da discografia brasileira lançada entre 1972 e 1976 - seja através da grande indústria cultural das gravadoras ou em selos de música independentes - parece anunciar aos ouvintes que algo de estranho e novo estava acontecendo com as maneiras de pensar e sentir da juventude brasileira, algo que não conseguiremos compreender se não considerarmos o impacto de certas transformações que se deram no país e no mundo com o advento da Era 115 Espacial, que vinha dando a tônica da segunda metade do turbulento século XX.

Como se sabe, o salto tecnológico experimentado de maneira vertiginosa no século passado proporcionou à experiência humana a sensação de atravessar fronteiras nunca antes superadas. Astronautas pousando na Lua. Sondas partindo em direção a planetas distantes. Satélites artificiais cercando a Terra e pondo-a em conexão planetária. Rumores sobre discos voadores, pesquisas sobre inteligências extraterrestes e vida fora da Terra, a possibilidade da existência de civilizações desconhecidas espalhadas pelo espaço cósmico, etc. Uma aura de mistério e fascínio pela existência de mundos desconhecidos e distantes no espaço e no tempo se irradiava no campo social do mundo globalizado, em simultaneidade ao processo de fechamento e repressão suscitado pela ditadura civil e militar que estava instaurada no Brasil.116 Sob esta tensão paradoxal, entre uma vasta expansão das fronteiras espaciais e um progressivo cerceamento das liberdades civis, algumas vozes amplificadas pelos fluxos da contracultura davam vida a narrativas aparentemente distantes do juízo habitual, pelo fato de transarem em seus espaços de enunciação imagens desejantes que sugeriam um encontro

115Sobre o panorama de lançamentos musicais no país durante este período ver: BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: mpb nos anos 70. Rio de Janeiro: Editora Senac, 2006 e BARCINSKI, André. Pavões misterioso 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2014.

116Como aponta Edwar de Alencar Castelo Branco, uma das principais marcas da década de sessenta diz respeito ao misto de deslumbramento e susto que atravessou o corpo social na relação com as transformações tecnológicas que foram experimentadas. Foi sob o fluxo destes acontecimentos que passaria a se modular consciências e sensibilidades ''planetárias", ou seja, modos de subjetivação que dão ênfase ao fato de nos constituirmos enquanto habitantes de um Planeta e não apenas de uma Nação ou uma Região. Nesse sentido ver: Deslumbramento e susto: maravilhas tecnológicas, captura social e fuga identirária. In: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e uma contra-história da Tropicália. Tese de Doutorado em História. UFPE. Recife, 2004, p. 30

85 entre experiências de tempos arcaicos de outrora imaginadas à luz de um agora atravessado 117 pela experiência da Era Espacial.

No Recife, Lula Côrtes e Zé Ramalho, ambos com 25 de idade, convidaram uma série de músicos da cidade para gravarem juntos um álbum conceitual que se chamaria Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, que foi ganhando forma ao longo de todo o ano de 1974. Lula já havia lançado Satwa, em parceria com Lailson, no ano anterior, e Zé, por sua vez, estava gravando seu primeiro disco. O álbum parece ter sido concebido no sentido de performatizar musicalmente toda uma experiência coletiva vivida pelos artistas em relação às inscrições rupestres da Pedra do Ingá, uma Itacotiara118 que está situada no interior do estado da Paraíba, numa antiga região habitada por índios Cariris, nos tempos da implantação da Colônia. A Pedra do Ingá havia sido tombada como patrimônio histórico e artístico nacional pelo SPHAN, em 1944, pois contém um vasto conjunto de desenhos, encavados em sua superfície, que remetem às práticas culturais de habitantes muito antigos que passaram pelo território, provavelmente povos nômades anteriores às populações indígenas encontradas pelos colonizadores e à própria ideia de uma região Nordeste, que por ali viveram há cerca de sete ou oito mil anos atrás, de acordo com as pesquisas arqueológicas, e que deixaram gravado um vasto conjunto de imagens encavadas na superfície desta e de outras pedras119.

117Uma imagem desejante, dialética ou desiderativa, como aparece na tradução dos livros de Walter Benjamin, designa a emergência de algo tensionado pelo choque entre um Agora e um Outrora, ou seja, a aparição sintomática de algo que emerge a partir de um encontro entre temporalidades distintas que se condensam plasticamente numa dada configuração histórica. No caso deste capítulo, sugiro conectar essa perspectiva benjaminiana ao meu fazer historiográfico na análise do disco de Lula Côrtes e Zé Ramalho, lançado em 1974, em correlação às transformações da Era Espacial, acreditando que assim seja possível captar certos processos de subjetivação coletivos que estavam sendo vivenciados à época. Sobre as possibilidades de leitura da obra de Walter Benjamin atualmente, ver: A imagem-aura: do agora, do outrora e da modernidade. Em: DIDI- HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p..267-298

118Itacoatiara é um vocábulo indígena que significa pedra pintada, pedra escrita. Procede do tupi ou nheengatu itá: pedra; e coatiara: pintado, gravado, escrito, esculpido.

119Pode-se dizer que nas inscrições da Pedra do Ingá sobrevivem experiências de outrora que passaram a engendrar lendas, mitos, fábulas místicas, relatos religiosos os mais diversos, ao longo do tempo, cada qual com seus regimes de historicidade próprios. Meu interesse consiste em averiguar o tratamento que estes jovens ligados às experimentações psicodélicas da contracultura no Recife deram a estas inscrições e de que maneira a partir da historicização desse processo – que está performatizado no álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol - é possível captar uma mudança mais ampla que se deu nas consciências e sensibilidades a partir dos acontecimentos da Era Espacial.

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Dentre as várias imagens encavadas nas pedras haviam algumas relacionadas ao espaço sideral, como o caso da Constelação de Órion, que podia ser vista na superfície da Pedra e que logo chamou a atenção dos músicos em suas expedições para o munícipio de Ingá do Bacamarte, onde está situada a Pedra do Ingá. A narrativa que acompanha o encarte do álbum nos traz as primeiras impressões destas viagens à Pedra do Ingá: era 1974, um bando de cabeludos de visual hippie chegavam com seus instrumentos, câmeras e com curiosidade em saber mais sobre as histórias que contavam os mais velhos sobre aquela pedra povoada de imagens. Em um fragmento do texto que acompanha os LP´s Lula Côrtes escreveu sobre o estranhamento entre eles – jovens vindos da ''cidade grande"- e os nativos que com seus ''mapas no rosto" marcados pelo Sol e ''quase sempre calados" lhes diziam que achavam ''muito estranho" a motivação deles em sair de Recife até Ingá do Bacamarte.

Essa narrativa que acompanha o encarte do álbum nos traz as primeiras impressões destas viagens à Pedra do Ingá como um encontro com o que seria uma espécie de espaço habitado pelo inatual, habitado também por uma dimensão misteriosa, marcada pela presença de sobrevivências materiais de experiências muito longínquas. Espaço que agora estava sendo atravessado por jovens que saíram da capital pernambucana para viverem uma deriva psicodélica nutrida pela ingestão dos chamados ''cogumelos mágicos" que '' faziam a cabeça" 120 de muitos sujeitos ligados ao desbunde no Brasil e em outras regiões do mundo:

120É importante destacar que a ingestão de cogumelos alucinógenos é tratada neste capítulo em conexão com o discurso de etnobotânicos como Terence Mackenna, Jonathan Ott e estudiosos do xamanismo como Mircea

87 Comemos alguns cogumelos secos que encontramos [...] a irrealidade se apossava cada vez mais dos nossos corpos e nossas mentes, e toda a lenda que nos havia enchido o ouvido até aquele dia parecia florar em tudo. Nas sombras raras onde descansávamos, nos maribondos e nas borboletas, e na nossa pele que se avermelhava ou se coloria com os primeiros símbolos que encontramos, claros e bem gastos dentro de uma loca [...]éramos como os índios? Ou estranhos seres primitivos e sem idade? E como loucos assim achamos estrelas de um relevo mais forte. Como pequenos sóis elas estavam e estão talhadas na rocha de ferro vulcânico[...]com um papel na mão subi a uma pedra que se punha ao lado da estranha constelação, e constatei que se assemelhava muito a Órion, constelação esta que nos escritos dos mapas

121 estrelares dos astrólogos, regem os signos ligados à Terra.

Lula Côrtes - o autor desta narrativa - como muitos outros sujeitos antenados numa sensibilidade contracultural, que estava em voga na época, se interessava pelo saberes astrológicos e pelo trato mítico e cosmológico dado ao céu por outras culturas, ou seja, se interessava por estas imagens de pensamento que teciam uma relação entre as coisas do céu e da terra. Além de ser músico, pintava paisagens surrealistas, desenhava, publicava livros de poemas e, em 1972, numa matéria chamada ''Os Signos de Lula Côrtes", os leitores do Jornal do Comércio foram apresentados às imagens de pôsteres dos signos zodiacais, desenhados à luz do psicodelismo de Lula. Para explicar ao leitor pernambucano como pensava e sentia este sujeito que era um dos chamados '' cabeludos" e ''marginais" de Recife, o jornalista Celso

Eliade, que consideram a ingestão de cogumelos como uma prática cultural bastante antiga na história da humanidade e que teve fundamental importância para a construção dos territórios existenciais e das cosmogonias de uma série de povos nativos, que faziam uso de cogumelos à base de Psilocibina em suas experiências ligados ao xamanismo. O fato é que as tradições xamânicas foram durante perseguida pelo ideário cristão dos colonizadores europeus, que as consideravam ''diabólicas" bem como outras relações que os povos ameríndios estabeleciam com a natureza. Mesmo com mais de 500 anos de colonialismo e europeização do continente que passou a se chamar Americano, as práticas xamânicas sobreviveram até os dias de hoje, junto às populações nativas que mantiveram dentre outras a tradição asteca do Teonanacatl. Essa tradição de uso ritual de cogumelos alucinógenos, havia ficado conhecida entre os brancos, após a publicação de um frade do século XVI, que viveu grande parte de sua vida nas terras colonizadas e escreveu a obra '' Historia General de las Cosas de Nueva Espana". Só partir dos anos 50 do século XX estas práticas passaram a ganhar um novo regime de inteligibidade para o pensamento ocidental, sobretudo através das pesquisas de Gordon e Valentina Wasson, que inauguram um amplo campo de debates e experiências em torno desta substância psicoativa. Neste sentido ver as obras: MCKENNA, Terence. O retorno à cultura arcaica. Rio de Janeiro: Editora Record, 1991. MCKENNA, Terence. O alimento dos deuses. Rio de Janeiro: Editora Record, 1995. ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

121Fragmento do texto de apresentação do álbum em questão, fotografado no acervo da exposição "Pernambuco Experimental" em Janeiro de 2014 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

88 Marconi começa sua matéria no jornal pernambucano dizendo que de certa forma ''foi através da música que veio a informação de que o barato agora vem do Oriente com suas religiões intuicionistas". Para exemplificar isso, ele se refere ao disco de George Harrison, guitarrista dos Beatles, que unia a pulsação do rock às escalas microtonais da música indiana, com a presença do sitarista Ravi Shankar, que havia feito uma apresentação histórica no Festival de Woodstock em 1969.

Mas já se sabia, à época, que as coisas iam além do campo da música e que essa mutação nas sensibilidades talvez fosse índice de uma transformação mais ampla que se efetuava na própria maneira de enunciar um mundo que se encaminhava para o terceiro milênio com os adventos da Era Espacial. Algo que encontrou ressonância no meio musical mas que, nas palavras do jornalista pernambucano:

Foi, porém, uma própria necessidade de romper com a quadratura da lógica racional, formalista, coisa que sempre dominou a nossa cultura ocidental desde Aristóteles e que fechou muitos caminhos por isso mesmo. Na luta contra os preconceitos do ''stablishment", a juventude “ sentiu" que hoje o

122 domínio teria que ser da intuição e não mais da razão.

Essa sensibilidade intuicionista e experimental que ia num caminho distinto ao do imaginário dominante é o que emerge no gesto de Lula Côrtes e Zé Ramalho, em 1974, quando decidem gravar este disco duplo, que teria como norte temático as lendas do caminho Paêbiru e o mito de Sumé, as tais lendas que enchiam os seus ouvidos e pareciam florar em tudo logo que entraram em contato com as inscrições da Pedra do Ingá. O artista plástico paraibano Raul Córdula123 foi quem havia lhes contado sobre a existência das lendas em torno da pedra, ele que já vinha, desde os anos sessenta, estudando o design das imagens encavadas e incorporando-as a sua linguagem visual, que na transição das décadas de sessenta para setenta foi se tornando mais abstrata, depois de problemas enfrentados com a censura na Paraíba. Córdula também participou destas expedições e foi um dos responsáveis

122Os Signos de Lula Côrtes. Jornal do Comércio. Recife. Caderno de cultura.13/05/1972 p. 4

123Como aponta o jornalista e pesquisador musical Cristiano Bastos, Raul Córdula já conhecia e pesquisava as inscrições da Pedra do Ingá desde o início da década de 60. Isso porque o jovem artistas plástico, que à época vivia em Campina Grande, desenvolveu amizade com o cientista Leon Clerot ( 1889-1967) que também vivia na cidade e havia sido o fundador do Instituto Paraibano de Arqueologia. Foi através da relação estabelecida com Clerot que Córdula tomou conhecimento da Pedra do Ingá. Ver: Agreste Psicodélico. Cristiano Bastos. Revista Rolling Stone. Rio de Janeiro. Edição 24, Setembro de 2008. Link: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/24/agreste-psicodelico#imagem0 ( Acesso em 04/04/2017)

89 pela concepção visual do álbum, que possuía um encarte encorpado com fotografias das imagens da Pedra e de outros detalhes da expedição. Ele era dono do bar Asa Branca, em João Pessoa, um ponto de encontro da juventude boêmia que vivia na cidade e provavelmente foi por lá que os músicos ouviram falar, pela primeira vez, dos mistérios em torno da Pedra do Ingá, o que logo os fascinou124.

Kátia Mesel, que estava à frente do Selo Solar e projetou o conceito visual e o material gráfico do álbum, me contou, numa entrevista, que a Pedra havia lhes impressionado pois tratava-se de

um tipo de encave que os índios não dominavam. Os índios não tinham nada a ver com aquilo. Os índios brasileiros não talhavam, eram cromáticos, eles pintavam. Toda a história retratada em cavernas, em pedras é pintado em branco, preto, vermelho, as cores que eles extraíam da natureza. A Pedra do Ingá é cavada e polida. Os símbolos eram universais, coisas que não se

125 encontram entre os índios. Aí a gente ficou fascinado, ficou louco.

Assim, no acaso das circunstâncias, os jovens músicos acabaram incorporando ao universo de referenciais da contracultura, da década de setenta, um antigo mito que vigorara entre as populações indígenas que por aqui viviam quando da chegada dos primeiros colonizadores. O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em sua tese Visão do Paraíso, dedicou um capítulo aos relatos sobre o caminho Paêbiru e ao mito de Sumé, na recém formada colônia portuguesa126. Ele afirma que em diferentes regiões das terras colonizadas, que viriam a se tornar o Brasil, os nativos mostravam marcas em pedras indicando o que

124Os poucos estudos encontrados sobre a Pedra do Ingá vão em diversas direções e não existe consenso quanto a origem e o significado das inscrições talhadas. A Pedra acaba funcionando como um vetor para diversas especulações arqueológicas, antropológicas, religiosas, artísticas, etc. Ver: Baraldi, Gabriele D’Anunzio, Os Hititas Americanos, Editora Imega Instituto de Cultura Megalítica, São Paulo, 1997 ; Brito, Gilvan de, Viagem ao Desconhecido – Os Segredos da Pedra do Ingá, Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília, 1993 ; Faria, Francisco C. Pessoa, Os Astrônomos Pré-históricos do Ingá, Ibrasa - Instituto Brasileiro de Difusão Cultural Ltda., São Paulo, 1987 e Galdino, Luiz, Itacoatiaras – Uma Pré-história da Arte no Brasil, Editora Rios, São Paulo, 1988.

125Entrevista concedida ao autor em 14/04/2016 na cidade de Recife-PE.

126Ver o capítulo ''Um mito luso-brasileiro" em: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso - os motivos edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 2000, p. 133-60

90 seriam as pegadas de Sumé, que teria passado por ali em tempos longínquos, uma narrativa 127 que funcionava como uma espécie de ''mito civilizador" antigo.

Segundo o historiador paulista, a passagem de Sumé pelas terras que viriam a formar o território brasileiro fora uma narrativa mítica que também ecoou na região que viria a se tornar o Paraguai e o Peru, de onde advém relatos de colonizadores espanhóis que ouviam histórias sobre um tal Zumé, que por ali teria passado. Sérgio Buarque afirma que impelidos em tecer relações que aproximassem o universo mítico dos nativos ao do catolicismo, tudo que remetia à Sumé foi sendo tratado pelos colonizadores como uma alusão à figura do apóstolo São Tomé. Sumé, para as populações indígenas imersas em seus espaços míticos, era uma espécie de deus civilizador, uma espécie de ente sobrenatural que teria vindo de fora e ensinado aos seus antepassados sobre o cultivo de alimentos e que, posteriormente, ao ser perseguido, teria desaparecido em sua rota de fuga, a estrada Paêbiru, um caminho que possivelmente ligava Brasil, Paraguai e Peru, uma rota que foi aludida em diferentes 128 cartografias imaginárias com o passar do tempo.

O fato é que Sumé tornou-se motivo de diversas lendas populares que sobreviveram em diferentes regiões do país, até os dias de hoje. Mas o que nos interessa é que, em 1974, os caminhos imaginários da estrada Paêbiru, o mito de Sumé e as imagens encavadas na Pedra do Ingá reapareceram subitamente entrelaçadas e como eixo temático central deste disco duplo gravado pela turma do udigrudi pernambucano, sendo incorporados ao psicodelismo sonoro e poético de um álbum que contou com a participação de mais de 30 músicos nordestinos, neste que foi um projeto bastante ousado do Selo Solar, pelo caráter experimental da produção e musicalmente distante dos moldes comercias da indústria

127Consideremos esta definição ampla dada à ideia de ''mito" por Mircea Eliade: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ''princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças à façanha dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma '' criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os entes sobrenaturais. Eles são reconhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos ''primórdios". Em: ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 11

128Numa matéria da Revista Planeta - publicação mensal de caráter especulativo que passou a ser distribuída no Brasil a partir de 1972 - há uma matéria chamada: ''Peabiru: Caminho da Montanha do Sol" que buscava apresentar aos leitores a possibilidade da existência real desta estrada como uma rota que ligava os Incas à outros povos. Revista Planeta. Editora Três. São Paulo. nº4, Dez. 1972, p. 100-111.

91 fonográfica da época, álbum que foi gravado nos estúdios da gravadora Rozemblit, após 129 várias expedições coletivas ao munícipio de Ingá do Bacamarte.

Das produções do cenário musical da contracultura pernambucana, Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol foi o disco que se tornou mais aclamado, ao longo do tempo, em grande medida pelo seu experimentalismo sonoro, que une os influxos do psicodelismo e do rock progressivo às sonoridades e às poéticas da música tradicionalmente chamada de nordestina, dando vida a uma mistura alucinada de sons em um álbum que passou longe das prateleiras da indústria fonográfica. Se devido as circunstâncias de sua época o álbum estava praticamente fadado ao esquecimento, pela baixa circulação que obteve, posteriormente acabou sendo '' redescoberto" por ouvintes e pela crítica musical, na virada para o século XXI, com o advento da distribuição gratuita de música através da internet130.

O disco teve baixíssima repercussão nos anos setenta porque após ser gravado, prensado e encaixotado para distribuição, grande parte das cópias confeccionadas no parque industrial da Rozemblit foram completamente destruídas pela enchente, que assolou Recife, no ano de 1975, e que ajudou a afundar de vez a fábrica de discos pernambucana. Restaram apenas cerca de 300 exemplares, que Kátia Mesel havia levado para casa, dias antes à cheia dos rios, que deixou mais de 100.000 desabrigados na cidade. Fracassado em sua época e praticamente condenado ao esquecimento, atualmente tornou-se o disco brasileiro mais caro e cobiçado entre colecionadores de vinil, onde uma cópia original da época chega a custar o estratosférico valor de onze mil reais.

Mas não era só em Recife que o interesse pelos mistérios do planeta afloravam através da criação musical. No Rio de Janeiro, lançava, em 1974, o apoteótico álbum

129Esse experimentalismo, distante dos moldes comercias da indústria fonográfica, da década de setenta, só foi possível existir pelo fato de tratar-se de um disco produzido de maneira independente. Um disco duplo, com algumas músicas com mais de sete minutos de duração, era algo completamente fora dos padrões comercias das grandes gravadoras. É nesse sentido que a chamada ''produção independente" passou a exercer um papel importante na música brasileira – de maneira incipiente nos anos setenta mas ganhando força a partir da década seguinte- pois ao gravarem seus discos, sem ter de passar pelo crivo de diretores de marketing, empresários e produtores, que muitas vezes buscavam ditar o conteúdo artístico de um álbum, os artistas independentes ganhavam autonomia em seus trabalhos e apresentavam materiais que, apesar de inferior em condições técnicas de gravação, possuíam uma liberdade criativa muito mais acentuada e visceral que em álbuns formatados pela indústria.

130A partir dos anos 2000 começaram a surgir matérias em sites de música e resenhas que davam conta de apresentar aos ouvintes um disco pouquíssimo conhecido, até então. Em pouco tempo, Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol foi relançado pelo selo estrangeiro Mr. Bongo, que se ocupa em pesquisar a música psicodélica, da década de 70 de diferentes países.

92 Tábua de Esmeraldas, um disco muito diferente de tudo que o compositor havia feito, até então, do ponto de vista temático. Ele é uma ode à transmutação alquímica e à sede pela deriva cósmica que atravessa a experiência humana. Com canções dedicadas ao oficio dos alquimistas, à Paracelso, Nicolas Flamel e Fulcanelli, à filosofia hermética de Hermes Trismegisto, à sondagem do espaço, à vida fora do planeta Terra, o álbum causou estranhamento assim que surgiu nas prateleiras das lojas de música. Em uma das canções, Jorge anunciava aos seus ouvintes, com seu timbre cheio de malandragem, aliado a efeitos de eco em sua voz: Errare Humanum Est! Termo em latim que, traduzido para o português, significa: Errar é humano.

Mas ele não estava tratando do erro como costumamos pensar à primeira vista. Apesar do provérbio romano sugerir que ''errar é humano, mas permanecer no erro é diabólico", esta segunda parte foi suprimida da canção e o sentido do termo ''errare" foi tensionado e ressignificado, pois Errare, em seu sentido etimológico, também remete à deriva, a um errar que remete ao impulso errante, ao desejo de vaguear sem destino, às viagens na imensidão cósmica. E é justamente tomando o espaço cósmico como cenário e um sujeito que indagava em seus versos um certo desejo de amplidão131 que a música se desenvolve, onde apareciam versos como: Tem uns dias que eu acordo pensando e querendo sabe/ De onde vem o nosso impulso

132 em sondar o espaço.

Tim Maia, por sua vez, tornara-se, num curto espaço de tempo, um fanático da cosmosvisão da chamada Cultura Racional, ao passar a integrar a seita “Universo em Desencanto”. Tratava-se de uma seita religiosa liderada por Manoel Jacinto Coelho, que já havia conquistado vários adeptos no país, inclusive o músico nordestino Jackson do Pandeiro. Distante do universo da contracultura, durante o período que esteve ligado à seita, Tim parou com o uso de drogas, abandonou as grandes gravadoras que, segundo ele, estavam lhe explorando, só se vestia de branco e defendia a "Imunização Racional" em suas canções, lançadas pelo selo independente SEROMA, criado por ele mesmo. Depois, quando se descobriu envolto em um episódio de charlatanismo, procurou retirar do mercado os discos Tim Maia Racional 1 e 2, que logo se tornaram relíquias de colecionador, com canções que

131GALVÃO, Walnice Nogueira. Anseios de amplidão. Cadernos de Literatura Brasileira. Euclides da Cunha. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2002, p. 162-200.

132Jorge Ben. Errare Humanum Est. Tábua de Esmeraldas. Rio de Janeiro: Philips, 1974.

93 buscavam contar a origem do universo à luz dos saberes dessa estranha seita que estava fazendo sua cabeça.

Enquanto isso, após ser convidado a se retirar do país pelo regime militar, pelo fato de vir falando na criação de ''sociedades alternativas", , que estava vivendo em Nova York, alcançou sucesso nacional, com mais de 600.000 cópias vendidas do álbum Gita, também lançado em 1974, onde os princípios da Lei de Thelema, traçada pelo ocultista inglês Aleister Crowley, foram incorporados à atitude anárquica de Raul, em um disco feito em parceria com o escritor brasileiro Paulo Coelho.

Gita fazia referência, em seu próprio nome, ao texto religioso oriental Baghavad Gita. Raul tornara-se um fenômeno popular, em plena ditadura, ao convidar seus ouvintes à inventarem suas sociedades alternativas, numa espécie de anarquismo espiritual que disseminou-se entre a juventude ligada à contracultura, no país, que, durante os anos de chumbo, cantava com o rockeiro baiano: “Faça o que tu queres pois é tudo da lei, da lei”133. Raul traçava sua perspectiva de que o mundo vivia a transição para uma Nova Era e que isso implicava uma mudança de paradigmas existenciais, que fossem na contramão da vida cotidiana imposta pelos valores burgueses. Alguns chamavam de Era de Aquário, outros de Era Espacial, mas sob a influência de Crowley, Raul Seixas chamava de Novo Aeon este período de transformações, como na canção em que dizia:

O sol da noite agora está nascendo

Alguma coisa está acontecendo

Não dá no rádio e nem está

Nas bancas de jornais

Em cada dia ou qualquer lugar

Um larga a fábrica e o outro sai do lar

E até as mulheres, ditas escravas

Já não querem servir mais

Ao som da flauta da mãe serpente

133A imagem de um '' anarquismo espiritual da contracultura" foi traçada neste trabalho: BOSCATO, Luiz Alberto de Lima. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas no Panorama da Contracultura Jovem. Tese de Doutorado em História Social. FFLCH/USP. São Paulo, 2006.

94 No para-inferno de Adão na gente

Dança o bebê

134 Uma dança bem diferente

Antes de Raul cantar o Novo Aeon, Gilberto Gil voltava de seu exílio, na Europa, em 1972, e retomava sua carreira no país lançando o disco Expresso 2222, cantando: "Se Oriente rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul, pela constatação de que a aranha vive do que tece, de que tudo merece consideração".135 Enquanto isso, a banda Os Mutantes mergulhava de cabeça no rock progressivo e nos sons espaciais dos sintetizadores, lançando o pesado e virtuoso disco intitulado Tudo Foi Feito Pelo Sol, também em 1974. Esses discos, e muitos outros acontecimentos da época, parecem deixar claro que os referenciais, em pouco tempo, haviam se alterado sintomaticamente.

Parte da juventude estava vendo e dizendo o mundo de uma outra maneira, sob outro ponto de vista, em favor de outras realidades possíveis, trazidas pelo contato com filosofias orientais, xamanismos, esoterismos, experiências com substâncias que alteravam os estados de consciência - como no caso das vivências na Pedra do Ingá - mas, principalmente, uma postura existencial que ia na contramão das linhas de desejo padrão, em favor de intensidades outras, alheias à ordem dominante moral, discursiva, ética e espiritual, que representava o universo conservador que estava posto na sociedade brasileira, de maneira geral, que em sua maioria era católica e estava de acordo com o regime político. Essa mudança de paradigmas, que estava sendo experimentada, dava consistência e expressão a estas linhas de desejo que proliferavam enunciações aparentemente aberrantes, ou seja, que se desviavam, que se esquivavam e, ao mesmo tempo, delineavam as fronteiras de novos territórios existenciais que estavam sendo compostos em correlação com os acontecimentos da Era Espacial.

Como se sabe, a implantação do Ato Institucional n. 5, pela ditadura, no ano de 1968, afetou em cheio a liberdade de criação no campo musical, que funcionara durante toda a década anterior como um importante canal de resistência e crítica ao conservadorismo encampado pelo regime militar, a partir de 1964, sobretudo entre os compositores ligados à sigla da MPB e também aos tropicalistas, que de maneiras distintas, eram as tendências que formulavam, com mais contundência, uma atitude crítica diante dos rumos políticos do país.

134Raul Seixas. Novo Aeon. Novo Aeon. Rio de Janeiro: Philips, 1975.

135Gilberto Gil. Oriente. Expresso 2222. Rio de Janeiro: Philips, 1972.

95 Mas com o AI-5, músicos como Geraldo Vandré, Caetano Veloso e Gilberto Gil, dentre muitos outros fazedores de arte, tiveram de deixar o Brasil devido ao ambiente político de censura e caça às bruxas que estava posto. Essa diáspora de gente ligada ao campo das artes, suscitada pelo acontecimento do exílio, funcionava como a demarcação de uma espécie de fronteira simbólica erigida por um autoritarismo conservador que afirmava em seus gestos: gente que pensa assim, aqui não. "Brasil, ame-o ou deixo-o", afirmava a propaganda golpista em nome da ordem que defendiam.

Setores da esquerda partidária até chegaram a acreditar que a imagem de sujeitos exilados funcionava bem para confirmar um certo martírio coletivo, que estava sendo experimentado em suas trincheiras. Para alguns, Caetano em Londres poderia muito bem funcionar como uma imagem simbólica da perseguição à expressão artística e cultural no país. Mas ele não topou incorporar e encarnar a figura do mártir e procurou se esquivar deste lugar de sujeito: sentia saudades da Bahia, da família, do meio-ambiente do Brasil, sentia-se depressivo, pra baixo e voltou assim que pôde, em 1972, junto com Gilberto Gil. Em pouco tempo, ele apareceu nas avenidas baianas, no Carnaval de Salvador, em cima da Caetanave, uma espécie de trio elétrico, que fora transformado em nave de astronauta, à deriva nas ruas da cidade. Voltou enunciando-se no interior de uma nova engrenagem, feita à semelhança das espaçonaves, que navegavam no espaço sideral. Aquela mesma nave, que antes ocupava as palavras de sua canção ''Alegria, Alegria", de 1967, ao lado de outras manchetes das bancas de jornais, era agora transposta para as ruas. A navegação cósmica dava-se em plena Terra com a deriva da Caetanave. Então eu pergunto: além de uma simples inversão carnavalesca, não estaríamos diante da aparição sintomática de uma ampla mudança de paradigmas que atravessava a época através do que seria a emergência de uma Era Espacial?

Muita coisa estava mudando enquanto a censura tornava-se mais intensa no país. Entre 1969 e 1971, temos o ápice de cortes em letras de músicas, peças de teatro, exposições, cenas de filmes. As manifestações artísticas estavam sendo programaticamente decupadas pelo crivo dos censores, na vã tentativa de inviabilizar a circulação de dadas imagens e discursos tidos como subversivos, ou seja, que potencialmente subvertiam uma ordem que buscava se impor à força e com o apoio de setores conservadores da sociedade. Ao mesmo tempo organizações políticas, sindicais e estudantis também perdiam espaço e tinham sua atuação deslegitimada e tratada como criminosa pelo regime.

96 Neste cenário de progressivo fechamento e silenciamento de vozes estranhas à ordem, certos deslocamentos existenciais foram se constituindo, mudanças que se deram nas maneiras de pensar e sentir de uma geração impactada com o avanço de uma série de pequenas tiranias postas na vida cotidiana. Era preciso se esquivar, escapar, fazer os fluxos desejantes passarem de uma outra maneira e para isso, romper certas linhas de fronteira na própria maneira de experimentar o mundo e de enunciá-lo através desta experimentação. Tais mudanças, que nos dizem da invenção de uma contracultura brasileira, antenada com os acontecimentos globais, podem ser observadas e ouvidas através de uma série de discos que aparecem no arquivo sonoro do período, sobretudo entre 1972 e 1976.

O fato é que a Era Espacial, contemporânea ao advento da contracultura, também seguia num intenso processo de ruptura de certas linhas de fronteira, desde a década de sessenta. Portanto, a ideia central deste capítulo é aprofundar uma hipótese com a qual venho trabalhando, no decorrer da realização desta pesquisa, a saber, a compreensão de que a exploração do espaço sideral, durante toda a década de sessenta, 136 foi um acontecimento que levou a um complexo rearranjo de fronteiras das enunciações coletivas e que considerar os efeitos destes eventos que circunscrevem o advento da chamada Era Espacial é fundamental para entendermos a transformação das maneiras de pensar e sentir, ou seja, os processos de subjetivação que compuseram os territórios existenciais da contracultura, na década de setenta, que no Brasil ganharam expressão singular no campo da produção musical.

Me interessa aqui a problematização de certas transformações que foram experimentadas no campo das sensibilidades, em correlação com as imagens oriundas da Era Espacial e como estas imagens impactaram e geraram deslocamentos, que participam da emergência de enunciações, amparadas em fronteiras cósmicas, ao invés de fronteiras regionais ou nacionais. Nesse universo de relações, me parece que a emergência do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol representou uma iniciativa coletiva de jovens artistas nordestinos, que nos permite problematizar a emergência de uma atitude psicodélica experimentada musicalmente, no cenário do udigrudi pernambucano, e que aglutinou, em suas paisagens sonoras, estes tensionamentos espaço-temporais, entre 1972 e 1976.

136Sobre a dimensão política da exploração espacial, como parte constituinte das relações de poder das sociedades de controle ver: SIQUEIRA, Leandro. Procedências espaço-siderais das sociedades de controle: deslocamentos para a órbita terrestre. Revista Ecopolítica vol. 3, PUC-SP, 2012, p.42-68 http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/11386/8299 (Acesso em 06/04/2016)

97 Assim, este período mostra-se um terreno fértil para captar a invenção do que venho chamando de enunciações cósmicas, que estavam sendo tramadas coletivamente, sobretudo nos terrenos da contracultura, que por uma série de razões, articulou esse novo interesse pelo espaço sideral trazido pela Era Espacial aos seus desejos de amplidão espacial, que se contrapunha ao fechamento de espaços e fronteiras que experimentavam num cotidiano vigiado por uma ditadura. Essa contraposição ao encurtamento dos espaços existenciais encontrava ressonância nas religiões orientais, nos xamanismos, na experiência psicodélica, no interesse pela vida extraterrestre, dentre outras coisas. Portanto, o exercício do fazer histórico deste capítulo consiste em destinar atenção a algo que, até então, parece não ter sido considerado com mais atenção pelos pesquisadores do período: o fato de que, sob a tensão e o fascínio, sob os deslumbramentos e sustos trazidos com os acontecimentos da Era Espacial, era a própria divagação sobre a dimensão cósmica da experiência que retornava à superfície do presente e disseminava-se socialmente, não só nas artes, mas também nas ciências e nas filosofias, nas imagens midiáticas, nas revistas e em jornais, na pulsação das imagens televisivas, em suma, através de uma série de fragmentos dispersos entre si, na própria vida cotidiana dos sujeitos.

Essas singularidades que aparecem no período parecem trazer consigo, justamente, o fluxo de uma mudança de percepção, de uma transformação nas maneiras de pensar e sentir, que atravessaram a sociedade e que não se explicam apenas considerando o impacto da repressão política do regime militar. Num livro que analisa a poesia e a canção brasileira, durante o século XX, publicado em 1977, Afonso Romano de Sant´anna afirmou que, a partir de 1972, a ''semântica do esoterismo invade tudo", como expressão de uma dada “alienação hippie e esotérica”, que na música teria tido maior repercussão137.

Ao que me parece, essa semântica esotérica, da qual nos fala o autor, ao invés de simples alienação invasora, talvez seja um indicio de uma vasta mutação de paradigmas que estava sendo experimentada em escala planetária e que a contracultura brasileira expressou ao seu modo, agarrando-se aos referenciais que estavam disponíveis em seu campo de ação.

137Ao tratar deste período no capítulo “Curtição e Esoterismo na Marginalidade" fica claro que, na percepção do autor, tal expansão de uma semântica esotérica é entendida apenas sob o ponto de vista da negatividade, ou seja, da alienação hippie que estaria contida em tais expressões. Não por acaso, ele viu na poesia marginal uma espécie de reduto que consegue ''sair" de tal alienação e comprometer-se novamente com a linguagem. Ao meu ver, isso que o autor tratou como '' alienação" talvez seja a expressão de um deslocamento enunciativo dotado de uma historicidade específica que não é averiguada em seu trabalho de pesquisa. Ver: SANT´ANNA, Afonso Romano. Música Popular e Moderna Poesia Brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. p. 243-252

98 Considerando esta perspectiva, algumas questões me ocorrem, tais como: de que maneira compreender a historicidade de álbuns que tematizavam, em suas paisagens sonoras e poéticas, a vida dos alquimistas, as lendas e mitos de tempos muito longínquos, como a de Sumé, filosofias cósmicas orientais, sociedades alternativas ocultistas, experiências místicas, esoterismos? Foi comum entre os pesquisadores tratarem da produção musical, desta época, como expressão de um certo escapismo diante do fechamento político que estava posto, o que não deixa de ser uma explicação bastante coerente e que encontra muita lógica em seus argumentos. Contudo, me parece que este impulso escapista estava atravessado pela imersão numa verdadeira deriva cósmica coletiva ou naquilo que o artista plástico Paul Klee nomeou como uma escapada cósmica138, que teria atravessado muitas expressões artísticas, ao longo do século XX. Escapada que, ao ser pensada no contexto brasileiro, na minha perspectiva, aconteceu, não apenas devido à repressão política e em consequência da censura, mas, ao invés disso, independente desta, na contramão e resistindo a esta, acompanhando os devires de uma época que, cada vez mais, voltava as consciências e sensibilidades dos terráqueos para a questão do Cosmos e da vida em sua escala planetária, no espaço e no tempo, ou melhor, da pertença da experiência humana a uma dimensão cósmica que lhe atravessa no mais íntimo e no mais distante.

Assim, pretendo seguir minha reflexão no sentido de juntar certos fragmentos que dão conta de apresentar o impacto dos acontecimentos da Era Espacial nas consciências e sensibilidades, mostrando como a música brasileira, do período, transformou-se num ambiente profícuo para a expressão desta mutação que é, antes de mais nada, uma mutação na percepção da extensão do próprio mundo e das próprias fronteiras enunciativas possíveis em uma dada época e em relação a dados acontecimentos históricos. Seguindo este caminho, chegaremos ao que mais nos interessa com a escrita deste capítulo: compreender a emergência desta experiência psicodélica, performatizada no álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho, como uma perspectiva que anuncia uma mudança da leitura e da enunciação do espaço nordestino, à luz das especulações espaço-siderais que estavam em voga à época, onde as marcas de tempos arcaicos, como as encontradas na Pedra do Ingá, ganharam protagonismo na criação deste disco, se chocando com as consciências e sensibilidades destes jovens ligados ao desbunde e à produção artística independente, durante o período da ditadura.

138KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

99 Os tópicos que se seguem, pretendem destacar que existiu uma clara diferença entre as década de sessenta e setenta na produção musical do país em relação à estas transformações, o que procurarei demonstrar analisando algumas canções e relatos literários. Na primeira década veremos que é a própria Corrida Espacial que ganhou protagonismo, em dadas imagens, discursos e sonoridades, expressando uma dada perda dos referencias terrestres, termo que sugere o filósofo Jean Baudrillard, ao se referir a ida do homem ao espaço, no livro Simulacros e Simulações. Na década seguinte, por outro lado, é uma espécie de deriva cósmica que parece ganhar configuração, nas matérias de expressão. Para a compreensão das psicodelias nordestinas, meu trabalho procura cartografar, de maneira geral, o álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, assinado por Lula Côrtes e Zé Ramalho, em 1975, como a expressão mais contundente destas reconfigurações vividas à época.

Não se trata aqui de cultivar uma interpretação que se resolva em causas e efeitos, mas sim uma interpretação que faça mover o pensamento a partir de uma escrita da história que, através de uma arte da montagem, construa superfícies e planos de pensamento, justapondo imagens e acontecimentos que nos mostrem a cintilação de correspondências e analogias de certas experiências entre si, no que elas possuem de sintomático139, mesmo que suas trajetórias soem como ''movimentos aberrantes"140, à primeira vista, que, no entanto, reverberam e ecoam entre si e juntos compreendem forças históricas movidas por impulsos semelhantes, frutos da própria historicidade que os atravessa, mas cintilando cada um à sua maneira. Isso porque, não me parece suficiente definir como alienação hippie e esotérica a produção artística da década de setenta, ao invés disso, prefiro sair à procura de indícios que, juntos, nos ajudem a pensar uma mudança nas sensibilidades, que se configurou na própria enunciação contracultural, mas que também está para além dela, na consonância com outros eventos históricos como, por exemplo, a emergência de novas imagens, enunciados e sonoridades para o Nordeste, numa perspectiva distante dos tradicionalismos regionalistas e do pensamento folclórico.

E lá se foi o homem conquistar os mundos: Gilberto Gil e a Lunik 9

139DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou Gaia Ciência Inquieta. Lisboa: KKYM II, 2013.

140Segundo David Lapoujade, a expressão '' movimentos aberrantes" na obra de Gilles Deleuze designa algo de irracional e candente que atravessa as imagens e discursos, apontando cartografias de populações afetivas, mentais e estéticas que combatem, ao seu modo, as formas hegemônicas das organizações sociopolíticas que pesam sobre elas. LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: N-1 Edições, 2015.

100 De maneira geral, pode-se dizer que predominou, na década de sessenta, uma narrativa vinculada a ideia de aventura nas canções que se referem à exploração do espaço cósmico, empreendida com a Corrida Espacial.141 Em 1967, Gilberto Gil lançava seu primeiro disco intitulado Louvação, neste álbum o compositor apresentava uma musicalidade diferente do que posteriormente ele viria a desenvolver sob os impulsos da Tropicália. Nesta época, ele estava mais próximo da tradição da canção popular e ainda em vias de tecer misturas com o universo da cultura pop internacional, que já lhe chamava a atenção. O Gil, de 1967, é aquele que fora a passeata contra a guitarra elétrica em São Paulo, ao lado de compositores brasileiros que saíram às ruas para mostrar sua insatisfação com a invasão dos timbres deste instrumento na música popular. Para eles a guitarra era um símbolo da alienação da juventude, que valorizava algo que vinha de fora das fronteiras nacionais, sinônimo da incorporação de valores exógenos ao que seria a cultura musical nacional. Se do ponto de vista da sonoridade Gil defendeu a distinção entre o nacional e o internacional, nesta época, do ponto de vista poético essas fronteiras já estavam bastante diluídas em suas composições. Mesmo nesse primeiro álbum, onde ele canta muitas músicas com uma voz empostada de cantor ''sério", à moda antiga da Era do Rádio, ele inseriu uma canção que retirava o título do nome de uma sonda russa que pousara na Lua no ano anterior, a Lunik 9, e nessa canção ele apresenta o que para ele seriam as consequências dessa recente aventura humana rumo à Lua:

Poetas, seresteiros, namorados, correi É chegada a hora de escrever e cantar Talvez as derradeiras noites de luar Momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da ciência viva Afirmação do homem normal, gradativa sobre o universo natural Sei lá que mais Ah, sim! Os místicos também profetizando em tudo o fim do mundo E em tudo o início dos tempos do além

141Há um artigo publicado pela historiadora mineira Suelen Dias que se propõe a investigar, a partir de uma série de canções, o impacto da Corrida Espacial na sociedade brasileira, entre 1957 e 1972. Seu artigo se mantém nos limites de buscar afirmar o valor do cancioneiro de uma época como uma fonte de grande valia para a pesquisa histórica. No site da UFMG consta que a historiadora escreveu sua dissertação nesta mesma perspectiva, no entanto, esta pesquisa não está disponível na internet e numa ligação que fiz ao programa de pós-graduação em história da UFMG, em 2016, nem mesmo os funcionários sabiam informar sobre o paradeiro desta dissertação, uma vez que estavam passando por uma reforma. Imagino que esta leitura teria sido de grande valia para estabelecer um diálogo com minha pesquisa. Sobre o artigo: DIAS, Suelen Maria Marques. A corrida espacial na canção brasileira. XIV encontro regional anpuh-rj. Rio de Janeiro. UNIRIO, 2010. link disponível: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276741663_ARQUIVO_ACorridaespacialnacancaobr asileraANPUHRJ.pdf ( Acesso em 15/03/2017)

101 Em cada consciência, em todos os confins Da nova guerra ouvem-se os clarins Guerra diferente das tradicionais, guerra de astronautas nos espaços siderais E tudo isso em meio às discussões, muitos palpites, mil opiniões Um fato só já existe que ninguém pode negar, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já! E lá se foi o homem conquistar os mundos lá se foi Lá se foi buscando a esperança que aqui já se foi Nos jornais, manchetes, sensação, reportagens, fotos, conclusão: A lua foi alcançada afinal, muito bem, confesso que estou contente também A mim me resta disso tudo uma tristeza só Talvez não tenha mais luar pra clarear minha canção O que será do verso sem luar? O que será do mar, da flor, do violão? Tenho pensado tanto, mas nem sei Poetas, seresteiros, namorados, correi 142 É chegada a hora de escrever e cantar

Nesta canção é possível perceber uma série de deslocamentos sutis que foram captados por Gil a partir da chegada da Lunik 9 à Lua. Primeiramente, há um questionamento que reflete sobre a finitude do topos romântico das noites de luar que o desenvolvimento da ciência dava margem, onde a figura romântica do seresteiro sob o luar viria a perder espaço para uma divagação de caráter místico, impactada pelos acontecimentos desta nova guerra, diferente das tradicionais, de astronautas nos espaços siderais. Guerra que chegava até os sujeitos através dos eventos midiáticos, de uma sociedade já bastante dependente das relações 143 do mundo do espetáculo.

Contudo, o mais importante de se considerar sobre a música de Gilberto Gil é a demarcação de que uma certa linha de fronteira fora rompida e que a partir de então um novo fato passou a existir e ninguém mais poderia negar: a Era Espacial, caracterizada pela contagem regressiva do 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 já! Ao convocar a contagem regressiva, tão característica dos eventos da Era Espacial, o autor acaba por considerar a decolagem humana em foguetes para fora da Terra como este dado novo, como esta diferença fundamental de uma aventura que estava sendo experimentada, não só por astronautas, mas por todos aqueles que ficaram em Terra e por aqui seguiram confabulando, isto é, fabulando em conjunto sobre a Terra, o Cosmos, suas histórias, seus mistérios. Na contagem regressiva preparava-se um

142Gilberto Gil. Lunik 9. Louvação. Rio de Janeiro: Philips, 1967.

143Sobre as características da chamada ''sociedade do espetáculo" ver: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

102 salto além Terra144, onde o homem supostamente iria ''conquistar mundos" até então desconhecidos no espaço e, ao mesmo tempo, observar o Planeta de onde partiu – a Terra - sob uma perspectiva de exterioridade, que estimulava uma espécie de recuo da memória coletiva, que agora vislumbrava e imaginava experiências humanas muito distantes no tempo sob o impacto da recente escapada cósmica empreendida com o auxílio de naves e 145 foguetes.

Para o campo científico, essa aventura fora da Terra representava a possibilidade de aprofundar-se na investigação sobre o que se passava nestas regiões muito distantes até então apenas vislumbradas desde a óptica avançada dos telescópios. Foi valendo-se de um telescópio, no século XVII, que Galileu pôde notar a existência das crateras na Lua, das manchas solares, das fases de Vênus e também das quatro luas de Júpiter. Sua compreensão astronômica de que o planeta vivia em movimento ao redor do Sol e não o contrário, contribuiu para a progressiva fratura da ordem cósmica defendida pelo ideário cristão e por conta disso, seus últimos anos de vida se passaram em prisão domiciliar146. Contudo, com

144Foi com o aprimoramento dos chamados foguetes V-2 que tornou-se possível realizar os primeiros voos espaciais. Nestas palavras do escritor britânico Arthur Clarke – autor da novela 2001: uma odisseia no espaço - é possível perceber o impacto deste acontecimento nas subjetividades. Ele nos diz que: ''Na história do voo espacial, a V-2 representou não só um colossal avanço tecnológico, mas, também, um avanço psicológico igualmente importante. Embora sua consecução tenha sido esboçada substancialmente pelos pioneiros em foguetes em seus livros e apontamentos, a V-2 provou, sem qualquer contestação ulterior, que suas teorias fundamentais eram corretas. O público não-científico raramente é convencido por equações e gráficos, posto que pode ser confundido por eles, porém ninguém deixaria de ser impressionado por um míssil de aproximadamente 15,5 metros de altura que ascendia até o limiar do espaço e que conduzia uma carga útil de uma tonelada a 5.765 km horários." Em: CLARKE, Arthur. O homem e o espaço. Biblioteca Científica da Life. Rio de janeiro: Jose Olympio, 1969, p. 34

145Nesse ponto considero que a teoria da memória proposta pelo filósofo francês Henri Bergson no livro Matéria e Memória pode ser útil para a compreensão do que venho buscando pontuar. Uma vez que a superfície do real passou a ser povoada por imagens captadas de fora da Terra, é toda uma memória sobre as origens do planeta que passa a ser modelada, montada, arranjada, naquilo que o autor designa como ''memória dinâmica". A memória dinâmica é pensada pelo autor a partir de uma imagem que sugere a figura de um cone tocando com seu vértice uma superfície. A ponta seria a percepção; a superfície seria o presente; no interior do cone circulariam lembranças e a base representaria o passado. A perspectiva de Bergson é que tal memória dinâmica, responsável pela fabulação, poderia ser compreendida a partir deste esquema. Aplicado aos acontecimentos da Era Espacial, esse aspecto da teoria bersgoniana da memória se mostra atual, pois considera isso que foi fundamental na construção destas imagens de pensamento, amparadas em fronteiras cósmicas: um encontro entre tempos subverte a aparente linearidade temporal que nos é imposta pelo hábito. Nesse sentido ver: BERSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

146SAGAN, Carl. Cosmos. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1980, p. 141

103 telescópios em mãos, como bem afirmou Walter Benjamin, a experiência cósmica fora sendo 147 reduzida a um fenômeno meramente óptico no mundo moderno.

É só a partir do século XX que emergem tecnologias capazes de fabricar máquinas e sujeitos aptos a explorar a vida fora do planeta e essa experimentação atual de exterioridades colocou as consciências e sensibilidades diante da questão da experiência cósmica novamente. Um acontecimento que atingiu diferentes zonas do corpo social e que tornou possível que todo um arquivo referente ao impulso cósmico da experimentação humana no mundo surgisse novamente na superfície do real, sendo remontada, uma vez que estar fora da órbita planetária também significava ver a Terra à distância, numa espécie de tensionamento espaço-temporal, que suscitou um pulular de divagações, que iam além das fronteiras regionais, nacionais ou continentais e que devem ser consideradas para entendermos, também, as mutações na forma de ver, dizer e fazer soar essas identidades espaciais, nesse momento histórico.

Se por um instante imaginarmos a variedade de especulações que floresceram com as grandes navegações intercontinentais, dos séculos XVI e XVII, veremos que os oceanos foram frequentemente investidos de representações espaciais, que dotavam os mares com seres e regiões fantásticas, imaginárias, onde todos aqueles lugares que não se conheciam empiricamente ganhavam, nos mapas, uma dimensão misteriosa, mítica, fantástica. É importante considerar que essa mistura entre experiência e fantasia é indiscernível para a análise das representações espaciais, em tais circunstâncias de experimentação, como bem afirmou o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, no livro Visão do Paraíso, ao aprofundar- se no estudo das geografias fantásticas que floresceram no período das grandes navegações, quando espanhóis e portugueses chegavam em regiões desconhecidas por eles e as investiam de imagens e discursos trazidos pela herança cultural europeia, como era o caso das lendas em torno de Sumé e do caminho Paêbiru, que vieram a ecoar na região próxima à Pedra do Ingá.

147Me refiro ao pequeno texto chamado ''A caminho do planetário" onde o historiador alemão afirmou que ''Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe, certamente, não eram movidos unicamente por impulsos científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo percussor daquilo que tinha que vir." Em: BENAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 68-9

104 Ao longo da história, aventuras em terras exóticas e encontros com sociedades estranhas foram acontecimentos desafiadores que geraram reconsiderações nos conceitos dominantes. É o próprio arquivo mítico da humanidade que costuma ser revirado e rearranjado com acontecimentos desta natureza, onde a dimensão ontológica do mundo é afetada. Gilberto Gil parece ter captado os devires que essa época de astronautas nos espaços siderais iria proliferar no campo social. Poetas, seresteiros, namorados, místicos, era chegada a hora de escrever e cantar sobre as últimas noites de luar. Ele mesmo, na década seguinte, já aparece num outro território existencial, aderindo à alimentação macrobiótica, incorporando em suas manifestações o universo das religiões afro-brasileiras e também as filosofias orientais, em suma, constituindo-se enquanto este sujeito místico que ele mesmo havia notado estar ganhando consistência nos processos de subjetivação do novo mundo de astronautas nos 148 espaços siderais.

É que os acontecimentos da Era Espacial punham a sociedade de maneira geral – mas sobretudo artistas, cientistas, filósofos - diante de problemáticas que os fizeram reinventar e atualizar certas fronteiras, que aparentemente estavam estáveis no campo de forças do mundo moderno, e que foram sacudidas pelo impacto das transformações tecnológicas, como as fronteiras nacionais e regionais. Foi como se o mundo ganhasse um novo oceano, desta vez sideral, para sobre ele se debruçar e fabular, lançando-se em diferentes direções.149 Na década de sessenta, ainda tateando nessa nova relação com o Cosmos, mas a partir da década seguinte, já convocando uma variedade de fragmentos das experiências passadas, que outras culturas teceram com as forças do universo, em suas cosmologias, convocando o misticismo oriental, a astrologia, as substâncias psicodélicas, tudo ia progressivamente confirmando a dimensão cósmica que atravessava as relações do mundo, desde o mais próximo - o local, o regional - até o mais distante no espaço e no tempo. Na minha perspectiva, quando em 1974 a turma do udigrudi pernambucano mergulhou em uma experiência coletiva em torno da

148Sobre as transformações experimentadas na produção das subjetividades na segunda metade do século XX ver: GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.

149Outras experiências musicais ajudam a circunscrever essas transformações subjetivas as quais me refiro. Não irei me aprofundar nas análises, apenas pontuar experiências como a do compositor vanguardista de jazz Herman Poole Blount, que a partir dos anos cinquenta, muda seu nome para Sun Ra ( alusão ao Deus Sol no antigo Egito) e passa a compor músicas permeadas por filosofias e imagens cósmicas, propondo em sua extensa discografia uma viagem musical e estética pelo espaço-sideral. No caso da Europa, temos a emergência do Space Rock (Rock Espacial), no final dos anos sessenta, onde muitas bandas passaram a unir sintetizadores, guitarras e temas ligados à livros de ficção científica para fazer uma música rock espacial, como, por exemplo, a banda inglesa Pink Floyd.

105 inscrições da Pedra do Ingá - impulsionados por lendas, especulações espaciais e outros delírios cósmicos- as próprias fronteiras imaginárias da região Nordeste foram tensionadas e abertas à essa escapada cósmica de jovens ligados à contracultura, que lançavam um novo olhar, tanto sobre as marcas de experiências passadas vividas em tempos arcaicos pela humanidade, onde a ideia de pertença a um espaço Nordeste nem sequer existia, quanto em relação ao arquivos de imagens, enunciados e sons que definiam o que seria o ser dessa região.

Como se sabe, tão cedo iniciou-se a década de sessenta e das muitas possibilidades vislumbradas com os voos espaciais, uma foi definida como a grande meta a ser alcançada: levar a espécie humana à Lua. Trezentos e trinta e quatro anos depois da publicação da primeira obra de ficção científica moderna, a chegada do homem na Lua tornara-se um acontecimento histórico, sendo inclusive televisionado ao vivo para grande parte do planeta Terra. Quando o físico Johannes Kepler publicou, em 1634, o livro Somnium - que traduzido para o português siginifica sonho - no qual o personagem principal encarna a figura de um viajante que embarcara numa viagem rumo à Lua, essa possibilidade só existia em livros de ficção, ou seja, era algo de virtual, que na década de sessenta transforma-se em algo extremamente atual.

A própria transmissão ao vivo deste acontecimento integrava as novas investidas do homem fora da Terra, expressão máxima da velocidade informacional e semiótica de um universo satelizado, que eliminava progressivamente as distâncias espaço-temporais, dando vida a uma complexa simultaneidade das relações150. Era do seu local, de sua região ou de seu país que cada um vivenciava ou tomava conhecimento dessa escapada cósmica, e isso afetava a própria forma de ver e viver esses espaços mais próximos. O fato de Kepler – autor que percebe a existência de três leis básicas que governam o movimento dos planetas - ter se aventurado no campo da especulação literária, sobre o avanço do homem diante do espaço cósmico, demonstra que as ciências modernas e a ficção sempre estiveram conectadas, sobretudo no que diz respeito ao anseio em avançar sobre o que até um dado momento é uma mera possibilidade, um possível, no sentido dado por Gabriel Tarde, em sua obra

150Essa simultaneidade das relações, que acabo de citar, é resultado direto de um aumento gradativo da velocidade experimentada pelo mundo moderno, desde o advento dos primeiros motores, no século XIX. Considerar os acontecimentos tecnológicos sob o viés da velocidade, que se impõe com eles, é uma estratégia que pode ser melhor apreendida se levarmos em consideração os estudos dromológicos, que vem sendo desenvolvidos pelo filósofo francês Paul Virilio, em obras como: A Arte do Motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996 e Guerra Pura: a militarização do cotidiano. São Paulo: Braziliense, 1984.

106 sociológica151. Os sentidos dados à Corrida Espacial abriram o horizonte do presente a uma Nova Era, onde antigos sonhos tornavam-se possíveis e reais. Não é a toa que figuras míticas da Antiguidade acabaram dando nome aos foguetes e missões espaciais empreendidas pela NASA: Apolo, Atlas, Mercúrio. Antigos deuses agora nomeavam maquinarias modernas em direção ao espaço cósmico.

Um mês após Gagarin voar ao redor da Terra, em 1961, o presidente norte-americano John Kennedy fez um discurso público no qual deixou entrever algo de fundamental, que ia além de questões burocráticas de ordem política ou econômica, no que concerne à corrida espacial:

Eu acredito que esta Nação deva se comprometer, a atingir o objetivo, antes desta década terminar, a por um homem na Lua, e retorná-lo seguramente à Terra. Nenhum outro projeto espacial neste período será mais impressionante à Humanidade ou mais importante para exploração espacial distante.152(grifo meu)

A citação é importante pois nos mostra que ir à Lua foi uma demanda escolhida dentre muitas outras possíveis na exploração do espaço sideral, não apenas por interesses científicos e políticos, mas sobretudo pelo caráter fantástico que revestia tal aventura e o impacto que teria para a Humanidade, nas consciências e sensibilidades dos terráqueos que assistiriam atônicos este acontecimento impressionante, trazendo prestígio para quem o promovesse primeiro. Na verdade, ao que parece, os cientistas das agências espaciais tiveram de ceder e deixar de tratar como prioridade outros campos de investigação - como a pesquisa sobre a vida das estrelas por exemplo - e passar a priorizar a viagem à Lua como o grande objetivo a ser cumprido153. Tarefa que custou cerca de 136 bilhões de dólares aos EUA e envolveu uma rede ampla de instituições e pesquisadores.

O fato é que estes acontecimentos, inerentes ao contexto da Guerra Fria, contribuíram para a emergência de novas imagens de pensamento no plano das ciências, das artes e também da filosofia. Estando a experiência humana atravessada por vetores cósmicos, atômicos e intergalácticos, me parece que o Cosmos foi configurando-se com certo

151Os possíveis. In: Tarde, Gabriel. Monadologia e sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

152Trecho do discurso do presidente norte-americano John F. Kennedy em 25/05/1961. Link disponível: https://www.youtube.com/watch?v=9WrU10Ay7C8 ( Acesso em 07/04/2106)

153Ver o capítulo: Humanos no Espaço e corrida pela Lua. In: BORGES, Fabiane. Na busca da cultura espacial. Tese de Doutorado em Psicologia Clínica. PUC-SP, 2010.

107 protagonismo no conjunto de enunciados constituídos por consciências e sensibilidades antenadas com os acontecimentos da Era Espacial, que circulavam no corpo social. Em sua tese de doutorado sobre o que denominou de Cultura Espacial, a pesquisadora Fabiane Borges afirmou que:

Se durante os séculos que precederam a metade do século XX, o Espaço era o lugar da utopia, do mistério, da imaginação e da ficção, durante a Guerra Fria, tornou-se o espaço vertiginoso das descobertas científicas, da luta expansiva entre dois sistemas ideológicos, da promessa do futuro, do lugar da invenção dos novos mundos, o lugar da possível alteridade radical, do encontro com extraterrestres; os vizinhos espaciais, da vida para além da que habita a Terra. O lugar do sonho

154 tornado realidade, o futuro quase na mão.

Deslocamentos significativos se efetuaram, inclusive, nas identidades espaciais que regiam a cotidiano das pessoas na Terra, a partir da exploração do espaço sideral. Ao que parece, este imaginário fantástico, que historicamente investiu simbolicamente o '' Espaço", como nos fala Fabiane Borges, ao ser transformado em espaço vertiginoso das descobertas científicas e de pesquisas efetivas e especulações diversas sobre a vida fora do planeta, fez com que todo esse arquivo de fantasias espaço-siderais retornassem à superfície do mundo, tensionadas pelos efeitos causadas pelo advento da Era Espacial. É que novamente os sujeitos depararam-se coletivamente com o fato de viverem no interior de fronteiras cósmicas, inapreensíveis em sua totalidade ontológica, rearranjo complexo que pode ser compreendido como um marco histórico fundamental para a interpretação de um vasto conjunto de conteúdos e expressões que se esboçaram a partir dos anos cinquenta, no mundo, onde a retomada de imagens e discursos sobre o espaço sideral e a vida no Cosmos passaram a ganhar novas configurações no cinema, na música, nas artes plásticas, nos quadrinhos, dentre outras linguagens. O desaparecimento progressivo da noção de Cosmos e a consequente separação entre o homem e a natureza, que ocorrera na cultura Ocidental, com o fim das culturas clássicas antigas e a prevalência do pensamento cristão, reafirmada pelo racionalismo moderno, sedia lugar a um retorno das visões cósmicas e da interrogação sobre

155 o lugar do homem em seu interior.

154BORGES, Fabiane. Op. Cit. p.102

155Nesse ponto convém inserir, nesta discussão, o mais recente livro lançado pelo filósofo francês Michel Onfray. Nele as relações cósmicas - o movimento dos astros, as fases da lua, os ciclos solares, as estações climáticas e etc- serão entendidas a partir de uma ontologia materialista que apresenta o esquecimento niilista

108 Conquista espacial, perda do referencial terrestre e devir-astronauta

Ainda em 1961, a escritora brasileira produziu um pequeno texto impactada por aquilo que ela chamou de “acontecimento cosmonauta”, logo após assistir cenas da deriva cósmica do viajante espacial russo Iuri Gagarin. As imagens do cosmonauta viajando no espaço trouxeram para a Terra um olhar impactado pela experiência do fora e partilhado coletivamente, através da televisão. Passou a ser possível os homens pensarem a saída para fora da Terra, não apenas de sua terra, experiência que era tão comum entre os nordestinos. Ao invés de migrante, de retirante, o nordestino poderia ser agora um cosmonauta, um astronauta. O que impressionava não era apenas o fato de alguém estar no exterior do Planeta, pois esse alguém - Gagarin – foi só um vetor por onde a própria visão humana pôde ser redimensionada. A transmissão televisiva dava visibilidade à experimentação visceral de um desejo muito antigo, que atravessou diversas culturas, acontecimento que nos interessa pela força disruptiva de sua emergência e que implicou rearranjos de ordem ontológica no corpo social.156 O texto de Clarice faz reverberar a afetação que lhe provocou a primeira deriva humana fora da Terra. Dessa maneira, a autora acabou captando algo de fundamental que estava sendo experimentado coletivamente:

De agora em diante, me referindo à Terra, não direi mais indiscriminadamente “o mundo”. “Mapa mundial”, considerarei expressão não apropriada; quando eu disser “o meu mundo”, me lembrarei com um susto de alegria que também meu mapa precisa ser refundido, e que ninguém me garante que, visto de fora, o meu mundo não seja azul[...]Para vermos o azul, olhamos para o céu. A terra é azul para quem a olha do céu.

destes movimentos cósmicos, na construção das relações humanas, como um sintoma do niilismo contemporâneo. Na minha perspectiva a emergência do fenômeno da contracultura, nos anos sessenta e setenta efetivou rupturas consideráveis nisso que Onfray denomina como um '' esquecimento niilista do cosmos" Ver: ONFRAY, Michel. Cosmos: una ontologia materialista. Buenos Aires: Paidós, 2016, p. 329-344

156Ao falar em '' acontecimento" convém recordar da análise feita pelo historiador François Dosse que, dentre outras coisas, aponta para o fato de que a partir de Nieztsche emerge a compreensão do acontecimento como uma força disruptiva, produtora de descontinuidades, de deslocamentos e fissuras. É neste sentido que a imagem da primeira deriva de um humano fora de seu planeta de origem pode ser compreendida como uma descontinuidade no que antes estava bem disposto num dada ordem Ver: DOSSE, François. O renascimento do acontecimento. São Paulo: Unesp, 2013.

109 Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de 157 grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.

Das várias interrogações possíveis, a primeira ida do homem ao espaço, fez Clarice nos deixar duas questões em torno do azul. A cor aparece tensionada por uma problemática de ordem espacial e também temporal, onde o azul é percebido como um elemento que designa uma sensação espacial ligada à experimentação de uma certa distância e também uma sensação temporal ligada à experimentação de uma certa nostalgia. O inalcançável é sempre azul, foi o que Clarice constatou a partir da frase que tornou-se célebre na voz do cosmonauta russo: “A Terra é azul”. Antes disso, apenas o céu, visto do planeta Terra, era azul: por ser distante e inalcançável. Mas, agora, a Terra vista do céu também era azul, por uma questão de distância, mas também de nostalgia, já que separar-se dela gerava esse sentimento tão comum em toda produção cultural e artística sobre o Nordeste, justamente por nascer de experiências de desterritorialização, que a corrida espacial agora potencializava e literalizava.

Da Terra sempre sentiu-se uma nostalgia do céu. Mas o acontecimento cosmonauta inverteu a perspectiva, fez com que se projetasse nos terráqueos uma certa nostalgia em relação ao seu próprio planeta, fazendo-os desejarem pensar e sentir mais a respeito dos tempos arcaicos da Terra. Sob este aspecto, o fascínio provocado pelas inscrições da Pedra do Ingá, nos jovens artistas do udigrudi pernambucano, parece participar deste rearranjo espaço- temporal coletivo acionado pela Era Espacial e captado por Clarice Lispector. Talvez daí decorra a forte presença do azul em todo material gráfico do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, que performatiza uma experiência espacial de encontro com imagens arcaicas traçadas em tempos remotos. Recua-se para o momento em que a Terra fazia parte do Cosmos, estava com ele conectado de diversas maneiras e o reverberava em sua própria superfície, que aparecia tatuada com seus signos. Momento em que Terra e céu se espelhavam, se encontravam, o que parecia voltar a acontecer, como procura sugerir os rostos de Zé Ramalho e Lula Côrtes encostados nas marcas da Pedra do Ingá.

157Cosmonauta na Terra. In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1989.

110

Contudo, nesta imagem do capa do álbum em questão, vemos que o azul também aparece encarnado nos rostos dos músicos, colados à Pedra do Ingá. Esse azul incorporado ao corpo, já nos remete para o que de psicodélico atravessa a experiência performatizada no disco, que como foi dito anteriormente, é fruto de uma série de expedições para a Pedra do Ingá, na companhia de cogumelos alucinógenos e suas viagens extáticas. Como afirmou o escritor Ernst Junger, em livro que trata sobre a embriaguez experimentada com diferentes substâncias psicoativas, o interesse que certos sujeitos demonstram pelas derivas alucinógenas os transformam, momentaneamente, em psiconautas, termo que o autor inventou para tratar das viagens interiores vividas nas fronteiras da mente e do corpo, onde o azul - entendido por ele como a cor das imensidades cósmicas e planetárias - ganha ênfase nas percepções alteradas, sob tais circunstâncias.158 Viajando sem sair do lugar, o azul do Cosmos vem habitar suas mentes, suas pupilas extasiadas. Embora ancorados na cidade do Ingá, no estado da Paraíba, na região Nordeste, no Brasil, viajam, interligam e mestiçam tempos e espaços, fazem o céu descer a terra, o passado habitar o presente, o local devir cósmico.

Cosmonautas proliferando-se em terra – é isso que percebeu Clarice Lispetor, no início dos anos sessenta – uma vez que a ida do homem ao espaço teria dado vazão a expansão territorial das próprias subjetividades, refundando e encurtando distâncias aparentemente intransponíveis, fazendo do humano não apenas um lugar de sujeito, que

158JUNGER, Ernst. Drogas, embriaguez e outros temas. Lisboa; Relógio d´Água, 2001. p.36

111 contempla a imensidão do universo como quem apenas enxerga com os olhos em telescópios, mas sim como a própria encarnação visceral do Cosmos na Terra. Ao que parece, com a Era Espacial a experiência cósmica fora retirada das lentes dos telescópios e reinserida no corpo social - naquilo que poderíamos chamar, por hora, de inconsciente maquínico159- através das imagens da era do espetáculo e como elas afetaram as subjetividades de maneira sintomática. No entanto, nas fronteiras das vivências contraculturais, como estas em Recife, a expansão do interesse pelas substâncias psicoativas dava margem a emergência destes psiconautas, que com seus corpos embriagados pelo êxtase de cogumelos, notavam a si próprios como parte integrante das imensidades cósmicas, corpos que viajavam e flutuavam para além do aprisionamento de fronteiras regionais ou nacionais, experiências que reverberariam em suas produções artísticas e musicais através do questionamento aos discursos e práticas 160 identitárias.

Levemos em consideração uma colocação feita pelo filósofo Jean Baudrillard no sentido de esboçar um elemento importante para a compreensão dos efeitos da ida do homem ao espaço. O autor aponta a conquista espacial, como um acontecimento central que marca a emergência do que ele nomeia por hiper-realidade e como veremos os delineamentos espaciais das culturas psicodélicas e contraculturais que daí advém possuem uma curiosa relação com esta noção. Para o autor

A conquista do espaço constitui neste sentido um limiar irreversível para a perda do referencial terrestre. Há hemorragia da realidade como coerência interna de um universo limitado quando os limites deste recuam para o infinito. A conquista do espaço, que veio depois da do planeta, equivale a desrealizar o espaço humano, ou revertê-lo para um hiper-real de simulação. Testemunha disto são esses dois quartos/cozinha/duche erguido sobre órbita, à potência espacial, poder-se-ia dizer,

159Sobre a noção de inconsciente maquínico, Felix Guattari diz que: '' Acho muito mais vantajoso partir para uma teoria do desejo que o considere como pertencendo propriamente a sistemas maquinicos altamente diferenciados e elaborados. E, quando digo "maquinico", não me refiro a mecânico, nem necessariamente a maquinas técnicas. As maquinas técnicas existem, é claro, mas há também máquinas sociais, máquinas estéticas, máquinas teóricas e assim por diante[...] É a ideia de que o desejo corresponde a um certo tipo de produção e que ele não é absolutamente algo de indiferenciado. O desejo não é nem uma pulsão orgânica, nem algo que estaria sendo trabalhado, por exemplo, pelo segundo princípio da termodinâmica, sendo arrastado de maneira inexorável por uma espécie de pulsão de morte. O desejo, ao contrário, teria infinitas possibilidades de montagem." In: GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Op. Cit. p.239-240

160Segundo o etnobotânico Terence Mckenna, esse novo interesse pela ingestão de cogumelos e outras substâncias enteógenas, a partir da década de cinquenta, designa o que o autor chamou de ''retorno à cultura arcaica", considerando todo o histórico milenar que liga esta prática à diversas culturas. MCKENNA, Terence. O retorno à cultura arcaica. São Paulo: Record, 1991.

112 como o último modelo lunar. A própria quotidianeidade do habitat terrestre elevada ao posto de valor cósmico, hipostasiado no espaço - a satelização do real na transcendência do espaço - é o fim da metafísica, é o fim da fantasia, é o fim da

161 ficção científica, é a era da hiper-realidade que começa.

Neste universo hiper-real mapeado por Baudrillard, a conquista do espaço pelo avanço das tecnologias que vinham sendo impulsionadas, desde fim dos anos quarenta, não diz respeito apenas às conquistas dos projetos espaciais das agências científicas dos USA e da URSS. Foram vários os meios que fizeram com que os sujeitos vislumbrassem possíveis fronteiras e espaços imaginários para o oceano cósmico. Como estou procurando demonstrar, esse processo atravessou o campo da ciências, mas também da filosofia e das artes, em suma, ele define uma paisagem histórica em que proliferam imagens e discursos atravessados por uma certa cosmicização das matérias de expressão, como as produções musicais do udigrudi pernambucano.

Um exemplo disso é o filme de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisséia no Espaço, lançado em 1968, filme que também foi capaz de transportar as consciências e sensibilidades dos espectadores para uma experimentação das virtualidades vividas fora da Terra pelos astronautas e para os esgarçamentos espaço-temporais que tal experiência anunciava. Em algumas cenas, feitas através dos meios mais avançados da técnica cinematográfica do período, as imagens procuram conduzir o olhar do espectador à experiência de um corpo que estaria em órbita. O que interessa aqui é que a figura do astronauta começava a disseminar-se como um novo personagem conceitual no mundo hiper-real, enunciando-se de diferentes maneiras e em diferentes cenários.

Na música pop, o artista britânico David Bowie passou a performatizar a figura de um viajante espacial chamado Ziggy Stardust, um alter-ego criado por Bowie, que se expressa, por exemplo, na música Space Oddity, de 1969. Nesta canção, o mundo passa a ser visto e dito, mais uma vez, pelos olhos de um astronauta que conversa com o controle de voo em terra e diz coisas como: “O planeta terra é azul e não há nada que eu possa fazer/ Apesar de ter viajado mais de cem mil milhas estou me sentindo bem parado/ eu acho que minha nave sabe para onde ir”. E o pessoal do controle de voo responde: “Tome suas pílulas de proteínas

161BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D´água, 1991, p. 154

113 e coloque o capacete/ Você realmente teve sucesso, agora os jornais querem saber que 162 camiseta você usa/ agora é hora de sair da cápsula se você ousar.”

A imagem do astronauta passa a ser convocada por diversos artistas no sentido de expressar uma subjetividade que parece sentir-se insatisfeita com os rumos que estão tomando a vida ao seu redor. Este devir-astronauta aparece em algumas canções como a possibilidade de evadir-se momentaneamente de um dado lugar, sair fora, mas ao invés de cair na estrada firme do território, sair à deriva numa experimentação cósmica, saltar para fora da Terra. No filme tropicalista ''Brasil Ano 2000", de Walter Lima Jr, lançado em 1969, aparece a música ''Homem de Neandertal", composta por Capinam e Gil. No filme a canção funciona como um recado que está sendo passado entre mãe e filho, um recado carregado de um desejo de autoafirmação do personagem. O jovem, pintado de índio, diz para a sua mãe:

Quem me dá a semelhança de astronauta? Quem me dá a liberdade de escolher De pensar, de sair? É você? Olha aqui: 163 Quem me dá sou eu!

Pensar, sair, possuir liberdade para decidir sobre seu próprio destino. Tudo isso - que era algo de fundamental para uma juventude criada no interior de um regime político repressor - encontrava na imagem do astronauta uma espécie de ressonância, fazendo uma conexão que ligava a figura do viajante espacial ao desejo angustiado de escapar de alguma maneira às fronteiras impostas, sejam nacionais, sejam regionais. Em 1970, Roberto Carlos também inseriu em seu disco uma canção chamada '' Astronauta". Uma música composta por arranjos de cordas apoteóticos e que começa com o som de um sintetizador sendo modulado, imprimindo na paisagem sonora frequências que davam um clima espaço-sideral à música. O mesmo impulso ao desterro emerge na letra, acompanhada da ideia de que talvez fosse melhor partir para bem longe em uma nave e nunca mais voltar. A canção havia sido composta por Edson Ribeiro e Helena dos Santos, ambos compositores que escreveram diversas músicas para o '' Rei", numa sonoridade melancólica e distante da alegria eufórica da Jovem Guarda, Roberto cantava:

162David Bowie. Space Oddity. David Bowie. Reino Unido: Philips, 1969.

163Bruno Ferreira e Gal Costa. Homem de Neandertal. Trilha Sonora do filme Brasil ano 2000. Rio de Janeiro: Forma ( 2 ), 1969.

114 Não tenho mais nenhuma razão Pra continuar vivendo assim Não posso mais olhar tanta tristeza Por isso não vou mais ficar aqui O mundo que eu queria não é esse O meu mundo é só de sonhos Bombas que caem, jato que passa Gente que olha um céu de fumaça Meu amor não sei por onde anda Será que os amores já morreram? Um astronauta eu queria ser Pra ficar sempre no espaço E desligar os controles da nave espacial E pra ficar para sempre no espaço sideral Não vou voltar pra terra, não 164 Não, não vou voltar pra terra, não Aqui é possível perceber um desencantamento com o mundo, que expressava muito bem um sentimento de decepção, de tristeza com a própria situação presente de conflitos, guerras e morte aos sonhos de liberdade. A letra, mesmo valendo-se de imagens referentes à Corrida Espacial, não deixa de trazer um tom de crítica social, diante do avanço da tecnocracia e seu poder de destruição, mas também traz uma sensação de impossibilidade diante desta mesma realidade, optando para uma linha de fuga que direciona-se ao espaço sideral, transformado em um lugar onde estaríamos livres de todas as mazelas do Planeta. Voltar para a terra? Não, voltar para a terra, não. Embarcar numa nave e sair à deriva, imagem em grande medida utópica, mas que demonstra uma tentativa de seguir falando de liberdade de movimento.

Esta canção também fazia parte do repertório do jovem Zé Ramalho da Paraíba, em suas apresentações em João Pessoa e Recife, antes da gravação de Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, o que demonstra a partilha de uma percepção em comum em torno da imagem do astronauta e do desejo em viver uma espécie de deriva cósmica. Uma versão desta música feita pelo jovem Zé Ramalho chegou a ser lançada na coletânea de gravações raras do compositor paraibano publicada, em 2007, pelo selo Discobertas. Ao tomar o astronauta como uma personagem que encarna uma deriva cósmica, esses compositores traçavam uma espécie de colagem, onde conectam eventos e personagens da corrida espacial como uma

164Roberto Carlos. O astronauta. Roberto Carlos. Rio de Janeiro: CBS Records, 1970.

115 forma de expressar sentimentos que eram partilhados coletivamente na experiência mundana, num país e numa região marcados por relações sociais e de poder bastante opressivas.

A chegada dos três astronautas norte-americanos na Lua, em julho de 1969, foi um evento televisionado ao vivo para 15% do planeta. A expansão técnica e científica colocava a mente e os corpos dos astronautas em outra dimensão espacial, sujeitos que foram para fora da Terra e viram o planeta noutra perspectiva. Se tomarmos a imagem do social como mundo hiper-real, tal qual nos fala Braudrillard, o astronauta neste universo parece ter afetado a construção de dados modos de subjetivação entre aqueles que ficaram em terra. Pois quem disse que eles foram sozinhos? A distância percorrida por estes viajantes espaciais introduzia no corpo social um dado fascínio por mundos distantes e desconhecidos, no espaço e no tempo. Assim, novos delineamentos passariam a ser traçados na construção imaginária dos espaços e no caso do espaço Nordeste não foi diferente. É nesse sentido que o disco Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol traz marcas importantes que nos permitem captar os impactos causados por essas transformações na construção discursiva e musical do espaço nordestino, já na década de setenta.

Entre planetas, estrelas, cometas, satélites - naturais ou artificiais-, foguetes, naves e também possíveis seres extraterrestres, iam se constituindo novas maneiras de pensar e sentir o planeta, em relação ao espaço cósmico que este habita, o que não significou apenas delirar um universo distante, mas também rearranjar a si próprio, aos outros, os espaços locais e regionais em que se habitava, à vida em comunidade, como habitante de um planeta em movimento e em constante relação com o que lhe escapa. Mudança de percepção que parece ter atingindo em cheio aqueles que eram atravessados pelas experiências da contracultura, uma vez que as para alguns sujeitos as experimentações psicodélicas com LSD e Psilocibina eram permeadas pela sensação de uma ligação cósmica que tais substâncias acionavam, onde as linhas de fronteira corporais e espaciais pareciam se diluir, em favor de uma ampla conexão com um todo cósmico165. A dimensão cósmica da experiência tornava-se, mais uma vez, objeto de interesse coletivo e tal movimento no plano das consciências e sensibilidades se traduziu na experiência histórica de diferentes maneiras. Aos poucos, a perda do referencial terrestre e o espanto diante dos avanços tecnológicos foi perdendo espaço para dar lugar a um outro tipo de referencial terrestre. Ao invés de seguir cantando uma espécie de

165LEARY, Timothy. Flashbacks – LSD: a experiência que abalou o sistema. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

116 fuga em naves siderais, passou-se a considerar a própria história da Terra em sua conexão à história do Cosmos.

Os anos 70 e o retorno do referencial cósmico

Para além dos cenários repletos de impossibilidades traçados pelo pensamento de Jean Baudrillard, a passagem que citei, anteriormente, traz outro elemento importante: a ida de humanos ao espaço sideral teria criado uma situação que o autor define como a ''perda do referencial terrestre". Ora, ao invés de nos debruçarmos sobre os efeitos negativos desta perda – o que nos levaria aos niilismos vigentes no pensamento contemporâneo, e o esquecimento niilista das relações cósmicas talvez seja o mais latente dentre todos eles166- considero que seria mais proveitoso averiguar o que se ganhou no campo da linguagem, das sensibilidades e dos processos de subjetivação coletivos a partir disso que o autor constata ter se perdido.

Nos deslocando para esta condição de análise iremos nos deparar com uma proliferação de zonas de enunciação, em que os espaços são concebidos a partir de uma cosmicização das matérias de expressão167. Os recortes espaciais terrestres, como as regiões e as nações, serão relidos e reimaginados a partir desse encontro com o Cosmos. Cosmicização que, muitas vezes, ao expressar-se a partir dos territórios existenciais da contracultura acabou sendo tomada como produto de uma dada alienação esotérica e hippie, como na perspectiva de Afonso Romano de Santa´Anna, que assim como Baudrillard, ampara-se em conceitos negativos, como falta ou perda, para pensar tais processos. Contudo, considerando a dimensão positiva, criadora, inventora de realidades sociais, o fato é que a exploração da Era Espacial parece ter dado condição de possibilidade para a emergência de novas experiências cósmicas no mundo, de novas experiências espaciais, o que implicou novas imagens de pensamento no campo das artes, das ciências e das filosofias e também mutações no campo das sensibilidades, uma vez que esse acontecimento produziu a proliferação de imagens e discursos sobre a vida fora da Terra. Portanto, nisso que

166Ver nota 141.

167"As qualidades expressivas ou matérias de expressão são forçosamente apropriativas, e constituem um ter mais que o ser[...]não no sentido em que essas qualidades expressivas pertenceriam a um sujeito, mas no sentido em que elas desenham um território que pertencerá ao sujeito que as traz consigo ou que as produz. Essas qualidades são assinaturas, mas a assinatura, o nome próprio, não é a marca constitutiva de um sujeito, é a marca constituinte de um domínio, de uma morada." Ver: Acerca do Ritornelo. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 129-30

117 Baudrillard define como a ''satelização do real" projeta-se um deslocamento enunciativo instaurador de diferenças, inclusive nos delineamentos espaciais cotidianos.

Esses deslocamentos nas sensibilidades trazem consigo rastros. As fontes que utilizo são alguns desses rastros que aparecem através da criação musical no país. Como pudemos observar, na década de sessenta era a própria Corrida Espacial que ganhava espaço nas canções, muitas vezes para dar expressão a um certo descontentamento com a realidade, encontrando nas imagens da Era Espacial um vetor para tratar de um desejo de fuga, de escapada em direção ao espaço cósmico. Mas, na década de setenta, o clima subjetivo parece estar já em outro plano, a divagação cósmica vai deixando de se dar em relação à novidade do mundo dos astronautas, das naves espaciais, da conquista da Lua e vai, progressivamente, expandindo-se em direção à construção de narrativas místicas e espirituais, de fabulações espaciais amparadas em fronteiras cósmicas de experiências passadas, sobretudo nas filosofias orientais e no mundo distante dos habitantes primitivos da Terra. Uma coisa é a Lunik 9, de Gilberto Gil, que exemplifica bem o clima da década de sessenta em relação à ida do homem ao espaço, outra coisa completamente diferente é a canção Errare Humanum Est de Jorge Ben, lançada sob os impulsos da esotérica e mística década de setenta, nela o compositor carioca cantava:

Tem uns dias Que eu acordo Pensando e querendo saber De onde vem O nosso impulso De sondar o espaço A começar pelas sombras sobre as estrelas-las-las-las-las E de pensar que eram os deuses astronautas E que se pode voar sozinho até as estrelas-las-las Ou antes dos tempos conhecidos Conhecidos Vieram os deuses de outras galáxias-xias-xias Ou de um planeta de possibilidades impossíveis E de pensar que não somos os primeiros seres terrestres Pois nós herdamos uma herança cósmica Errare humanum est

118 Errare humanum est Nem deuses Nem astronautas Ô ô ô ô Eram os deuses astronautas Lá lá lá lá lá lá Nem deuses Nem astronautas Ô ô ô ô Eram os deuses astronautas Lá lá lá lá lá lá lá Eram os deuses astronautas

10, 9, 8,7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0...

Nesta canção, o autor expressa um anseio por compreender um impulso que é tomado por ele, antes de mais nada, como algo que perpassa o coletivo, um espécie de vetor transhistórico, inerente à própria experimentação humana. Este impulso é o de ''sondar o espaço" em suas vicissitudes, pensá-lo, senti-lo. A paisagem sonora da música une o violão suingado de Jorge à arranjos de cordas e um coral de vozes femininas, criando um ambiente de louvor místico para uma letra que é cantada valendo-se de efeitos de mixagem na voz que fazem as palavras ecoarem. Entre ''estrelas-las-las-las" e ''galáxias-xias-xias" que, na repetição das sílabas finais ganham a força do eco em sua enunciação, reverbera na canção uma ode a este impulso de sondar, a este desejo de errar pelo Cosmos à procura de entender de onde vem essa conexão entre o humano e a vida fora do Planeta.

Há também a constatação de que nós - a espécie humana – somos herdeiros de uma herança cósmica que nos é indissociável e novamente - como também o fizera Gilberto Gil- aparece a contagem regressiva característica das viagens espaciais, conduzindo nossa atenção para as constelações do céu que se anuncia pela decolagem. Ora, como abordei no início deste capítulo, o álbum Tábua de Esmeraldas foi lançado em 1974 e da capa do disco às letras que o compõem é possível perceber que há uma influência da visão de mundo atribuída a figura de Hermes Trismegisto que, cerca de 1.000 anos A.C., teria formulado seu tratado de filosofia hermética onde dizia uma frase que tornou-se presente na voz de Jorge Ben, na década de setenta: “o que está embaixo é como o que está no alto e o que está no alto é como o que está embaixo”.

119 Além disso, a canção Errare Humanun Est faz alusão à temática de livros especulativos que estavam em voga no período, como Eram os Deuses Astronautas, do holandês Erich Von Danniken, e Planeta das Possibilidades Impossíveis, dos franceses Jacques Bergier e Louis Pawels, ambos publicados no país, na década de setenta. Sondar o espaço. Herança cósmica. Citações ao Hermetismo. O que estava se passando ia além da campo musical e apontava para uma transformação da própria maneira de perceber o mundo e é neste interesse por experiências distantes no espaço e no tempo que o álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol também foi ganhando condição de existência, na cidade do Recife, instaurando outra paisagem sonora para o que seria o Nordeste.

É o pesquisador norte-americano Joseph Campbell quem nos fornece um interessante panorama sobre as reconfigurações experimentadas à época devido aos eventos da Era Espacial. Em sua análise, o impacto das imagens fotográficas que mostravam o nascimento da Terra, na perspectiva da órbita lunar - algo que aconteceu em 1968 com as fotografias tiradas à bordo da Apollo 8 e no ano seguinte com o pouso em solo lunar da Apollo 11 - podem nos ajudar a entender uma mudança de percepção que tornava possível a emergência de certos deslocamentos no campo da espiritualidade168. Numa entrevista publicada em 1979, sob o título de '' Earthrise",169 ele nos diz que:

168Quando falo em '' espiritualidade" o faço em conexão ao que propôs o pesquisador Luiz Alberto de Lima Boscato em sua tese sobre a obra de Raul Seixas. No capítulo intitulado ''Anarquismo espiritual da contracultura", o historiador procura considerar os deslocamentos trazidos pelos fluxos da contracultura no que concerne à experiência religiosa. Ele nos diz que: há uma clara diferenciação entre o fundamentalismo religioso - demonstração de fanatismo por parte de quem se julga portador de uma verdade absoluta e inquestionável -, da experiência religiosa como aquela que foi vivenciada pela Contracultura – tida como o vivenciar do êxtase; como o trabalho, de diversas formas possíveis, com as alterações dos estados de consciência que nos induzem a uma visão alternativa das nossas relações com a mente, com nosso semelhante e com a natureza enquanto força que movimenta a vida no planeta Terra[...]A espiritualidade nasceu como uma manifestação do homem na busca de estabelecer uma relação com o meio natural onde ele vivia e com os seus ciclos, como a sucessão das estações do ano e das fases da Lua, assim como o que ele considera o território do desconhecido que fundamenta a sua própria existência[...]Essa espiritualidade primordial assumiria posteriormente dimensões institucionalizadas, constituindo-se em formas de poder dentro de uma sociedade mais complexa e hierarquizada. Na revolta contra a institucionalização do espírito, a Contracultura lutaria por um retorno às formas primordiais do sagrado. Em: BOSCATO, Luis Alberto de Lima. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas no panorama da Contracultura jovem. Tese de Doutorado em História Social . São Paulo. FFLCH/USP, 2006. p. 23-4

169O termo '' Earthrise", utilizado por Campbell foi traduzido para o português de diferentes maneiras. Nas duas traduções encontradas fala-se de ''Nascer da Terra" e '' Ressureição da Terra". Optei por me utilizar do termo ''Nascer da Terra" a partir da compreensão do texto de Campbell e também pelo fato de que ''Earthrise" é uma expressão que também foi utilizada para nomear a fotografia feita pelo astronauta William Anders, à bordo da Apollo 8, em 1968. A fotografia foi tirada num voo feito na órbita lunar e nela é possível ver o nascimento da Terra, do ponto de vista de quem está em órbita lunar. A visão da Terra nascendo é semelhante a que temos do

120 Os homens pisaram na Lua e olharam para trás e pela televisão fomos capazes de olhar para trás com eles – vislumbrar o nascimento da Terra[...] Com nossa visão do nascimento da Terra, pudemos ver que ela e o céu não eram divididos, mas sim que a Terra está no céu. Não há divisão e todas as noções teológicas baseadas na distinção entre os céus e a Terra ruíram após

170 essa descoberta.

Para Campbell, a imersão da sociedade no universo da Era Espacial trazia consigo a necessidade de abandonar certas noções teológicas, que definiam fronteiras entre o céu e a terra, afinal de contas os novos acontecimentos davam vista à pertença do planeta a um espaço cósmico inapreensível em qualquer regime de totalidade e no qual a experiência humana está imersa. Me parece que daí decorre a atualidade conquistada pela chamada lei hermética da correspondência, a qual Jorge Bem deu visibilidade, em seu álbum lançado em 1974: o que está no alto é como o que está embaixo e o que está dentro é como o que está fora. Isso porque, ao passo que um acontecimento tão novo e tão atual ocorria no planeta, através dos avanços da astronomia, da astrofísica e da engenharia espacial, fazendo as pessoas sentirem que fronteiras nunca antes acessadas eram conquistadas e vislumbradas, fazendo ruir noções espaciais como as da teologia cristã, ao mesmo tempo, talvez em resposta a estes fluxos que compunham o universo tecnológico da hiper-realidade dos astronautas, é todo um arquivo de enunciados antigos, que tomaram a dimensão cósmica como matéria de expressão, que passa a ser remontado sob certas modalidades de pensamento - como no caso da canção Errare Humanun Est- é todo um conjunto de investigações sobre as cosmologias de antigas culturas que retorna à superfície, como que para dar sustentação histórica para a compreensão da expansão destas fronteiras experimentada pelos sujeitos na Terra - como no caso do álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho - em suma, é toda uma experimentação cósmica do mundo que retorna sob modulações subjetivas variadas.

O que Campbell afirmou ser o '' Nascer da Terra" ou ''Earthrise" diz respeito à emergência de consciências e sensibilidades planetárias que tratavam a questão da espiritualidade como algo imanente, como quando Gilberto Gil dizia na canção '' Se Oriente": “pela constatação de que a aranha vive do que tece”. O que significa acreditar que é só na precariedade deste mundo que a vida se faz, mesmo em sua dimensão espiritual, através da

da Lua nascendo, do ponto de vista da Terra. Sobre as duas traduções para o texto ver: CAMPBELL, Joseph. Tu és isso. São Paulo: Editora Madras, 2003 ou CAMPBELL, Joseph. Isto és tu. São Paulo: Landy Editora, 2002.

170CAMPBELL, Joseph. Tu és isso. São Paulo: Editora Madras, 2003, p. 160-1

121 experiência e não através da crença em além mundos. Nesse sentido, foram surgindo imagens e discursos, através de territórios existenciais, que traziam consigo uma consciência de pertencimento em relação a um espaço cósmico onde o sujeito aparece, antes de mais nada, como habitante de um planeta – a Terra – em relação a um Cosmos em que já não existe mais como um horizonte definido a priori, mas sim como um planeta de possibilidades impossíveis. A tal ''alienação esotérica e hippie" diagnosticada por Afonso Romano de Sant´Anna talvez não passasse de uma transmutação diante da própria urgência que experimentar a vida ganhava no contexto da contracultura, onde viver e cantar os mistérios do planeta eram dimensões que andavam juntas na experiência, como na canção do grupo Novos Baianos, lançada em 1972, que sob o título de ''Mistério do Planeta" afirmava trajetórias partilhadas coletivamente nas cartografias existenciais da contracultura brasileira:

Vou mostrando como sou

E vou sendo como posso

Jogando meu corpo no mundo

Andando por todos os lados

E pela lei natural dos encontros

Eu deixo e recebo um tanto

E passo aos olhos nus

Ou vestidos de lunetas

Passado, presente

171 Participo sendo o mistério do planeta

Participar sendo o mistério o planeta, eis aí uma boa definição para captarmos as vivências contraculturais da década de setenta, no país, e os espaços de experimentação que se enunciam a partir daí. O caso do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, é exemplar, nesse sentido, pois expressa o encontro dessa geração de artistas nordestinos com o misterioso monumento arqueológico da Pedra do Ingá e com algo que estava completamente fora das fronteiras das imagens e discursos que teciam o espaço imaginário do Nordeste e do Brasil e que, no entanto, remete diretamente a cosmologia dos povos nativos que por aqui viviam antes da chegada dos colonizadores: o mito de Sumé e as lendas da trilha Paêbiru.

171Novos Baianos. O mistério do planeta. Acabou Chorare. Rio de Janeiro: Som Livre, 1972.

122 Ao que parece, estar diante dos mistérios que atravessam as inscrições da Pedra do Ingá tornou possível uma nova fabulação espacial para este mito, reanimado agora por uma juventude de artistas atentos às leituras especulativas que se proliferaram após os eventos da Era Espacial e que fizeram suas expedições para este local, como quem vai para um lugar mágico, um lugar distante dos ruídos do mundo urbano , onde traços de um passado em muito longínquo se faz presente nas paredes desenhadas em tempos arcaicos e em tudo que a rodeia. Lugar que sob os influxos das maneiras de pensar e sentir inerentes ao momento contracultural que vivia-se na capital pernambucana transformou-se num espaço ideal para se reunir em grupo, comer cogumelos, viver experiências psicodélicas e através delas perceber e ouvir os elementos que compõem a paisagem sonora da Pedra do Ingá, dotando-a de um sentido cósmico. Na construção literária destas experiências extáticas partilhadas coletivamente, Lula Côrtes afirmou no encarte do álbum:

Antes mesmo que falássemos das nossas assustadas conclusões, os olhos eram novamente surpreendidos. Zé foi andando como quem voa e encostou o rosto na pedra quente e me chamava dizendo: a pedra está VIVA. Corri até lá e descendo uma pequena elevação dei com o inesperado : uma imensa pedra medindo uns 15 a 20 metros de comprimento com a forma de um lagarto imenso e sua barriga era totalmente bordada pelos fungos antiquíssimos e pelas escritas estranhas, imagens humanas e espirais desenhadas em um relevo forte. Êxtase. A cabeça rodava sobre o pescoço e os olhos não sabiam ainda o que fitar. Estamos num templo, era a única coisa que sabíamos ao certo[...] Sentamos à beira d´água. Os sapos entoavam um canto como o som do OMM. Os troncos gemiam com o vento que era mais forte. Uma música estranha se formava com os carros-de-boi gemendo distante, como um misto de festa e incelença, como lamento e festejo do uno vital.

As inscrições de imagens de grandes lagartos, espirais, triângulos, constelações, corpos humanos e vários outros símbolos universais, já bordados por ''fungos antiquíssimos", tudo isso era a única marca da passagem de habitantes muito antigos nas terras que agora eram nomeadas de Região Nordeste ou do País Brasil, habitantes arcaicos de um tempo em que só existia um dada Terra em relação a um dado Cosmos. Sob o êxtase destas experimentações coletivas, que fizeram estes jovens irem mais de 10 vezes à Pedra do Ingá, em 1974, antes de gravar o álbum no Rozemblit, a sensação era de que ali era uma espécie templo. O interior desse espaço unificava, momentaneamente, a dispersão caótica do mundo em seu microcosmo, onde o canto dos sapos e o som dos carros-de-boi compunham uma música estranha que, num misto de lamento e festejo, anunciava o que Lula chamou de '' uno

123 vital". Aqui convém recordar que em seu sentido etimológico templo remete à templum, que na Roma Antiga era um espaço consagrado à ritos pagãos, destinado à avaliação do que se chamava de auspícios - ato de observar as aves voando no céu para captar sinais sobre eventos vindouros.172 Como recorda Michel Onfray, a própria arquitetura simbólica das igrejas cristãs remetem, justamente, a uma tentativa de espacialização do Cosmos, onde o que antes era uma experiência concreta de observação tornou-se uma experiência simbólica teologicamente organizada no espaço.173 O templo sempre operou como uma espécie de microcosmo, em diferentes culturas. Através daquela experiência coletiva, estes jovens também superavam o seu aprisionamento a qualquer fronteira e se tornavam, simplesmente, habitantes de um Cosmos à céu aberto, em meio à natureza, distante dos templos fechados, comendo cogumelos em estado de êxtase, fazendo do próprio corpo um vetor da imanência cósmica.

Provavelmente esta percepção de uma unidade vital diga respeito à uma transformação do sentimento religioso que expressou-se nos territórios da contracultura setentista, onde as experiências psicodélicas, vividas por estes sujeitos, foram captadas como viagens extáticas, que lhes davam, momentaneamente, um certo sentido de unidade cósmica e de ligação entre todas as coisas. Para muitos jovens da década setenta, tomar LSD ou ingerir cogumelos foram experiências fundamentais para a construção de seus territórios existenciais, de suas visões de mundo, que visavam uma consciência e uma sensibilidade momentaneamente descodificada em relação aos padrões de racionalidade comuns. O certo é

172De certo modo, esta percepção de que as inscrições compõe uma espécie de tempo está atrelada aos próprios relatos que remetem aos primeiros colonizadores que estabeleceram contato com a Itacoatiara desenhada em tempos longínquos. Como aponta Cristiano Bastos em artigo sobre o álbum Paêbiru: '' No dia 29 de dezembro de 1598, os soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam índios potiguares quando, em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba (Planalto de Borborema), um imponente registro de ancestralidade pré-histórica se impôs à tropa. Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na rocha cristalina. O painel rupestre se encontrava nas paredes internas de uma furna (formada pela sobreposição de três rochas), e exibia, em baixo-relevo, caracteres deixados por uma cultura há muito extinta. Os sinais agrupavam-se às representações de espirais, cruzes e círculos talhados, também, na plataforma inferior do abrigo rochoso. Inquietado com a descoberta, Feliciano ordenou minuciosa medição, mandando copiar todos os caracteres. A ocorrência está descrita em Diálogos das Grandezas do Brasil, obra editada em 1618. O autor, Ambrósio Fernandes Brandão (para quem Feliciano Coelho confiou seu relato), interpretou os símbolos como figurativos de coisas vindouras. " In: Agreste Psicodélico. Cristiano Bastos. Revista Rolling Stone. Rio de Janeiro. Edição 24, Setembro de 2008. Link: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/24/agreste-psicodelico#imagem0 ( Acesso em 04/04/2017)

173El cristianismo, um chamanismo solar. In: ONFRAY, Michel. Op. Cit. p.301-16

124 que um novo interesse pela experiência xamanânica estava em voga nas fronteiras do desbunde e, em Recife, não era diferente. Zé Ramalho e Lula Côrtes, assim como muitos outros, foram impactados pela leitura de autores como Carlos Castañeda, por exemplo, escritor peruano que difundia em seus livros os relatos de sua iniciação no que chamou de ''realidades incomuns" das chamadas ''plantas de poder", conhecidas pelas populações nativas da região do México e conservadas pelo conhecimento xamânico.

As marcas nas paredes da Pedra, que também foram fonte de inspiração para a invenção deste mito, tão popular entre os nativos que por aqui viviam à época da colonização portuguesa, são marcas de experiências traçadas muito antes de qualquer Nordeste possível existir, pois o Nordeste enquanto invenção espacial tem na colonização portuguesa a gênese de seu passado. Portanto, a Pedra do Ingá também pouco tem a ver com qualquer Brasil possível, pois o Brasil enquanto invenção espacial não insere em suas fronteiras a experiência daqueles que por aqui estiveram em tempos arcaicos. Ao invés disso, as inscrições grafadas na Pedra são marcas que falam da sobrevivência, no espaço, de uma cultura que, em grande medida, nos é estranha, que está fora dos limites traçados pelas fronteiras espaciais que organizavam as identidades modernas, de sujeitos recortados por fronteiras nacionais ou regionais. Mas, no horizonte das fronteiras cósmicas, anunciadas pela Era Espacial, estas experiências acabaram retornando à superfície caótica do mundo, sendo recompostas no interior deste álbum, que faz parte do agenciamento coletivo de experimentação musical de de Nordestes Psicodélicos, traçados musicalmente na década de 70, em Recife.

A Pedra do Ingá acabou sendo percebida e experimentada como um espaço habitado por marcas de uma alteridade radical do outro, do desconhecido, e portanto do mistério. Espaço com os quais sujeitos atravessados pelas intensidades do momento contracultural se chocaram e fizeram emergir uma outra fabulação para o mito de Sumé e as inscrições do Ingá, através de suas experiências, em grande medida, influenciados pelas especulações que ganhavam consistência com os eventos da Era Espacial e por suas experimentações psicodélicas com cogumelos: talvez isso seja obra de seres extraterrestres, talvez Sumé tenha sido um viajante vindo do espaço-sideral. E então, no álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho, Sumé transforma-se numa espécie de viajante espacial arcaico que teria vindo do espaço sideral em tempos remotos.

Com isso, forja-se uma imagem anacrônica, por excelência, e, por isso mesmo, repleta de historicidade nesse encontro que se tece entre tempos. As experiências sobreviventes de

125 um Outrora longínquo -as imagens da Pedras do Ingá- sendo acionadas pelo Agora que estava sendo experimentado por estes jovens ligados à contracultura no Nordeste do Brasil.174 É como se as fronteiras do Nordeste se dissolvessem momentaneamente para serem reinventadas sob outra maneira de pensar e sentir, sob a perspectiva de sujeitos que, ao invés de traçarem o fechamento imagético e discursivo da região, para protegê-la das influências externas, partiram para uma estratégia de composição que respondia positivamente ao novo horizonte hiper-real e que descobria que antes da existência de um espaço Nordeste, outra cultura foi possível naquele território e que esta cultura - a dos povos primitivos que inscreveram a Constelação de Órion na Pedra do Ingá -, ao invés da cultura emergente com a colonização portuguesa, era o passado que lhes interessava para dizerem a si próprios, a sua época, neste álbum que tornou-se uma espécie de marco coletivo da geração do udigrudi pernambucano.

Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol é um álbum duplo, dividido em quatro partes, fazendo referência aos quatro elementos primordiais da matéria. Em cada parte do disco as paisagens sonoras e poéticas das músicas, criadas de maneira bastante experimental, durante as sessões de gravação, expressam nos sons - no uso dos instrumentos e nos efeitos - sua relação com os quatro elemento básicos que envolvem a vida no planeta: a Terra, o Ar, o Fogo e a Água. O nome dos temas instrumentais e das canções são sugestivos da experiência cósmica que atravessa o álbum: para o elemento Terra as músicas Trilha de Sumé, Culto à Terra e Bailado das Muscarias. No Lado B do primeiro disco temos a parte Ar composta pelas músicas Harpa dos Ares, Não existe molhado igual ao pranto e OMM. Para a parte Fogo, Raga dos Raios, Nas paredes da pedra encantada, Maracás de Fogo e por fim as

174Segundo o historiador Georges Didi-Huberman: “A partir do momento em que recusamos as mortes peremptórias assim como os renascimentos nostálgicos, qual tempo devemos supor? Não seria surpresa encontra-lo, senão o modelo construído, ao menos a intuição fulgurante, no próprio Walter Benjamin. Essa intuição também foi deixada de lado pelos comentários contemporâneos sobre o declínio da aura e a perda da originalidade. Ela faz, contudo, sistema, uma vez mais, com a suposição benjaminiana da aura e dessa origem entendida como presente reminescente do qual o passado não deve ser nem rejeitado, nem ressuscitado, mas simplesmente do qual retorna como anacronismo. Benjamin a designa como a expressão pouco explícita de imagem dialética. Porque dialética? Porque o autor das Teses sobre o conceito de história procurava produzir um modelo temporal que pudesse dar conta das contradições, mas nunca apaziguá-las, contraí-las ou cristalizá- las na espessura de cada prática singular[...]Porque uma imagem? Porque a imagem designa, em Benjamim, não uma imaginária [ imagerie ], uma picture, uma ilustração figurativa. A imagem é, primeiramente, um cristal de tempo, a forma, construída e flamejante, ao mesmo tempo, de um choque fulgurante em que o “Outrora”, escreve Benjamin, “encontra, num relâmpago, o Agora, para formar uma constelação.” Ver: DIDI- HUBERMAN, Georges. Op. Cit. p.273-274

126 músicas Louvação à Iemanjá, Regato de Montanha, Beira-Mar e Pedra Templo Animal para a última parte do álbum que faz referência ao elemento Água.

A música que abre o disco, intitulada “Trilha de Sumé”, inicia-se com a marcação rítmica de percussões que passam a ser acompanhadas pelo som de uma flauta e por ruídos humanos que imitam o barulho de insetos em movimento. A flauta, como se sabe, configura- se como uma sonoridade que indica o sentido de uma elevação espacial, é um som que produz a sensação da flutuação aérea, enquanto isso o som de pequenos insetos voam ao redor do ambiente sonoro e os tambores continuam ritmando a música trazendo-a para o elemento Terra. Aos poucos o violão surge com seus acordes e em seguida o groove de uma linha de baixo se impõe e passa a delinear o suingue da música junto com os maracás indígenas que se sacodem como num ritual. A miscelânea entre sons modernos e arcaicos é uma marca deste cenário psicodélico de dissolução de fronteiras de qualquer natureza e um rock com influências indígenas se faz ouvir. Dois minutos se passam para que o território sonoro da música se aglutine com todos estes elementos e então Zé Ramalho canta o primeiro verso:

Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter Saturno, Urano, Netuno e Plutão Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter 175 Saturno, Urano, Netuno e Plutão Logo de cara, a canção convoca esta dimensão espacial interplanetária e nos apresenta ao universo temático do álbum, pois ao invocar os nove planetas, as fronteiras do território são abertas e o discurso transporta-se para uma espacialidade que é cósmica, mas isso se dá em relação a uma parte material concreta, situada no território do que se convencionou chamar Nordeste - as inscrições da Pedra do Ingá e o mito de Sumé. É como se os planetas fossem convocados para demarcar este referencial espacial para a '' Trilha de Sumé", que interpretada à luz da situação psicodélica que era experimentada pelos jovens músicos, transforma-se numa deriva cósmica, traçada por um ''viajante lunar que desceu num raio laser e num radar". Os últimos versos da composição de Zé Ramalho indagam:

Sumé dizei a flor A mim mesmo e a meu irmão Que mensagens Que caminhos

175Lula Côrtes e Zé Ramalho. Trilha de Sumé. Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol. Recife: Selo Solar, 1975.

127 Que traços estão nesse chão? Onde fica tua estrela? Quanto é daqui para Marte, quanto pra Plutão? Quanto é daqui para Marte, quanto pra Plutão? Uma vez mais o desejo de evasão do planeta Terra aparece, mas desta vez o antigo mito de Sumé é inserido no meio deste turbilhão e passa ser questionado pelos versos de Zé Ramalho, que deseja saber mais sobre os caminhos, as mensagens e os traços que estão no chão da Terra. Sumé emerge como habitante do espaço sideral, como uma espécie de entidade extraterrestre que performatiza o desejo de escapada cósmica destes jovens cabeludos dos anos setenta. Transformado num viajante espacial arcaico, os autores lançam perguntas, querendo saber onde fica a estrela que abriga Sumé. Desejando embarcar numa viagem interplanetária, para Marte ou para Plutão, a enunciação do mito retorna, na construção poética e musical do álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho, sob outros viés. Como tudo que retorna à superfície do mundo vem à luz sob as diferenças do presente, é uma grande mistura de correspondências e analogias que se condensam, unindo a experimentação da Era Espacial dos astronautas às imagens desta cosmologia de outros tempos, constituindo uma imagem anacrônica para Sumé e abrindo o Nordeste às intensidades da Era Espacial.

É que, nos anos setenta, através de produtos culturais como livros, revistas, filmes, músicas, etc – certos assuntos como o esoterismo, a astrologia, a crítica ao cientificismo, a ufologia, o interesse pelas civilizações perdidas, as cosmologias antigas, o ocultismo, a experimentação mística das religiões orientais, a discussão em torno do impacto ecológico da tecnocracia, dentre várias outros temas, iam se proliferando e se disseminando na sociedade. Esse boom fez com que tais assuntos se infiltrassem, com muita força, em dados grupos sociais- sobretudo nos terrenos da contracultura - deixando de ser apenas matéria de conhecimento de pequenos grupos de eruditos versados, como o fora até os anos cinquenta, para transformar-se num fenômeno transversal, que reverberou em campos diversos e permitiu uma série de misturas, correspondências e analogias com contextos locais.

É neste sentido que à época projetou-se em formações discursivas bastante especulativas, que foram progressivamente se popularizando, entre dados grupos sociais, encarnando uma atitude filosófica e existencial bastante interessada na compreensão da relação entre o planeta Terra e o Cosmos, logo, implicando os sujeitos numa narrativa que procura remontar essa experiência cósmica do mundo, fazendo da desterritorialização ou da perda do referencial terrestre um vetor para a proliferação da dimensão cósmica dos territórios. Nesse universo de relações cabia repensar e ressentir - no sentido de tornar a sentir

128 - a experiência humana como experiência cósmica, àquela mesma que Walter Benjamin afirmou ter declinado com o advento da Modernidade, até onde pôde observar na primeira metade do século176. É Gilles Deleuze e Félix Guattari quem nos deixam uma valiosa apreensão filosófica destes movimentos vividos no mundo, à época, quando dizem que:

Os poderes estabelecidos nos colocaram na situação de um combate ao mesmo tempo atômico e cósmico, galáctico. Muitos artistas tomaram consciência dessa situação a bastante tempo, e até antes que ela tenha se instalado ( por exemplo, Nietzsche). E eles podiam tomar consciência disso porque o mesmo vetor atravessava seu próprio domínio: uma molecularização, uma atomização do material associada a uma cosmicização das forças tomadas neste material[...]fazer da despopulação um povo cósmico e da desterritorialização uma terra cósmica, este é o voto do artista-artesão, aqui e ali, localmente. Se os nossos governos têm de se haver com o molecular e o cósmico, nossas artes também encontram aí seu interesse, com o mesmo desafio, o povo e a terra, com meios incomparáveis,

177 infelizmente, e, no entanto, competitivos.

Entre os escritores que se tornaram populares, analisando e especulando sobre a tensão espacial que o contexto histórico fazia vir à tona, os franceses Jacques Bergier e Louis Pawels atingiram grande público no Brasil com suas ideias. O estilo que desenvolveram ganhou muito espaço no cenário cultural brasileiro, do período, através de seus livros, mas, principalmente, através da versão brasileira da revista que eles criaram, na década de sessenta, na França, a Planete. Seus livros foram traduzidos para o Brasil a partir do final da década de sessenta. O Despertar dos Mágicos: uma introdução ao realismo fantástico foi um best-seller, em diferentes países, um livro completamente inaceitável para o pensamento acadêmico, mas que foi lido e influenciou muita gente ligada à contracultura, no período178. Em 1972, o livro Planeta Das Possibilidades Impossíveis foi lançado pela Editora Melhoramentos, ele fazia parte de uma nova coleção da editora chamada ''Enigmas do Universo'', que lançou diversos livros com temática semelhante, no país, atingindo grande

176Me refiro ao pequeno texto chamado '' A caminho do planetário". Em: BENAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 68-9

177DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Op. Cit. p. 172-173

178BERGIER, Jacques; PAUWELS, Louis. O despertar dos mágicos: uma introdução ao realismo fantástico. São Paulo: Difel, 1976.

129 público. No texto comercial que anunciava esta coleção de livros encontra-se uma questão fundamental, logo no início:

De onde provém o nosso impulso de sondar o espaço? O terráqueo - todos nós - sentimos um fascínio irresistível de viajar para outros planetas. Será isso um ''instinto" herdado dos nossos antepassados, que teriam colonizado a Terra vindos de outros mundos? Foi a Terra algum dia visitada por viajantes do espaço? Como explicar as civilizações antigas, mais organizadas, mais pacíficas e mais inteligentes que as atuais? Esses e outros mistérios estão sendo exaustivamente investigado por vários escritores, que dedicam a sua vida a recolher provas de visitas extraterrestres. As provas recolhidas foram reunidas e editadas pela Melhoramentos ( com mil fotos e ilustrações) na série ''Enigmas do Universo".179 ( grifo meu)

Apesar do texto dar mais ênfase, no final à questão das visitas extraterrestes, vários outros assuntos permeavam o pensamento destes autores e de outros que faziam parte desta coleção, que foi um sucesso de vendas no Brasil. A questão dos cérebros eletrônicos, o estudo da antimatéria, hipóteses sobre a astronomia moderna, pesquisas parapsicológicas na URSS, pesquisas genéticas, radioastronomia, controle psíquico através de remédios, o mundo dos computadores, magia, ciência, alquimia, reflexões sobre a célula, dentre outros assuntos. É disso que tratava o livro destes franceses, que tinha o subtítulo de ''perspectivas para o terceiro milênio''. Se relermos este livro, atualmente, veremos que, para além de algumas especulações mirabolantes, que não se concretizaram com o decorrer dos anos, havia uma preocupação em demarcar a abertura de um novo horizonte de possibilidades para a sociedade, imersa na segunda metade do século XX, marcada pela aventura fantástica encarnada nos acontecimentos da Corrida Espacial, mas também nos avanços da física, da biologia, da química. É apenas isto que interessa à esta pesquisa. Essa presença do fantástico entrelaçado à realidade mais concreta e cotidiana dos fatos históricos parece dar a tônica do livro e através dela uma tensão espacial se projeta num sentido próximo ao que emergiu no disco de Lula Côrtes e Zé Ramalho, no Recife. Em uma passagem, logo no início do livro, é possível captar a descontinuidade que a época trazia à tona, norteando a escrita, justamente onde os autores procuram definir um lugar de enunciação que estava sendo partilhado coletivamente:

179BERGIER, Jacques/PAWELS, Louis. O planeta das possibilidades impossíveis: perspectivas para o terceiro milênio. São Paulo: Edição Melhoramentos, 1972

130 Existem notáveis correlações entre a Renascença e a nossa época. Tal como os homens do século XVI se ocupavam sem preconceitos com o mundo da Antiguidade, nós nos dispomos a investigar o passado remoto da humanidade; lançamos as vistas para o futuro ainda muito distante, sim, mas ao mesmo tempo voltamos nossos olhos para o que já houve antes de nós, remontando épocas o mais longínquas possível. Os mais recentes e sensacionais progressos na arqueologia, na etnologia e na paleontologia, e o espírito que neles se manifesta, podem ser comparados ao movimento que reconduziu os homens da Renascença às fontes greco-romanas. Tentamos compreender as civilizações mais remotas, descobrir os primeiros vestígios da humanidade e, ao mesmo tempo, com o auxílio de foguetes, avançamos para as regiões fora de órbita terrestre. Enquanto rompemos através da amplidão infinita do universo, esforçamo-nos por investigar nossas origens. Assim como nossos antepassados sentiram desfazerem-se as estruturas fundamentais da vida espiritual medieval e os esteios culturais da Idade Média cristã, nós percebemos como os alicerces da cultura humanística são abalados e como se desmoronam gradativamente as estruturas do saber moderno,

180 do pensar cartesiano, que no século XIX atingira o auge do florescimento.

Para muitos historiadores acadêmicos da Renascença seria um disparate anacrônico tecer tal tipo de comparação. No entanto, a condição disparatada destas imagens de pensamento, as quais me refiro em relação ao próprio lugar de fala do historiador, acaba por apresentar um valor heurístico, que merece ser notado com mais atenção, uma vez que exprime as condições de existência desta outra maneira de narrar, que estava sendo partilhada, em outros campos científicos, como a astrofísica e a astronomia e difundidas por amadores como Pawels e Bergier. O historiador das sensibilidades e das formas de pensamento não discute propriamente sobre a questão da verdade, mas sim sobre a questão do possível e das condições de possibilidade de dadas imagens e discursos aparecerem num dado período. Nesse sentido, os efeitos desse esforço de remontar épocas longínquas, em correlação com os acontecimentos da Era Espacial, é o que interessa neste capítulo, uma vez que é sob esta mesma tensão espaço-temporal que o álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol e uma nova paisagem sonora para o Nordeste tornou-se possível, em Recife, no início da década de setenta.

180Idem p.26-7

131 Também foi no início dos anos setenta, que a Editora Três decidiu trazer para o Brasil as publicações da Revista Planete e em pouco tempo as teses destes autores franceses passaram a se disseminar no país. O editor-chefe da revista era o escritor Ignácio Loyola de Brandão e para a versão nacional da Planeta foi criado um perfil editorial bastante diverso, que incluía desde textos de Pawels e Bergier, assim como uma série de outros estudos ligados à temas como as ciências ocultas, misticismo, sociedades primitivas, ciências espaciais, ecologia, literatura fantástica, surrealismo, seitas religiosas que se difundiam pelo país, assim como os chamados casos malditos, dentre outras coisas, como uma espécie de jornal com várias informações sobre os avanços da ciências espaciais. Em suma, uma miscelânea de assuntos que exprime bem a extensão da diversidade de questionamentos e interesses que ganhavam consistência nos anos setenta.

Com uma circulação nacional e publicações mensais que chegavam a tiragens de 100.000 exemplares, esta publicação logo se disseminou, formando um rede ativa de leitores espalhados nas diferentes regiões do país. Entre 1972 e 1976, quem se interessasse por estes temas, no Brasil, encontraria na Revista Planeta um terreno fértil de discussões. Ao que parece, aqueles que estavam imersos nos territórios existenciais da contracultura e produziam artisticamente, seja no Nordeste, seja em outra região, encontraram na Planeta uma variedade de temas que foram progressivamente sendo incorporados às suas produções.

Outro escritor, que também fez muito sucesso, à época, foi o holandês Erich Von Daniken, que publicou, em 1968, um livro que se tornou best-seller no Ocidente e que tem por título a curiosa pergunta "Eram os deuses astronautas?". Isso indica, ao historiador atento, não apenas o disparate da pergunta – um tanto quanto mal formulada, do ponto de vista histórico e distante do juízo habitual- mas a confirmação de que a cultura espacial emergente a partir dos anos cinquenta promoveu uma profunda reconfiguração dos questionamentos e das especulações sobre o espaço sideral, sobre a vida fora do planeta e sobre a origem dos vestígios simbólicos de antigas culturas na Terra. É nesse universo de relações que o álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho surge como um acontecimento sintomático, na capital pernambucana, incorporando o mito de Sumé ao cenário especulativo e esotérico da década de setenta, inserindo o Nordeste no panorama das visagens especulativas de então.

A questão não é simplesmente julgar banal a pergunta levantada pelo escritor holandês, pois assim não caminharíamos na reflexão e incorreríamos no erro de deixar irrefletida as condições históricas que tornam certos delírios possíveis. Se trata, noutro

132 sentido, em problematizar o que torna a pergunta possível e porque ela se espalha pelo Ocidente de maneira tão contundente, sobretudo entre consciências e sensibilidades que se configuravam, por motivos vários, entre a contracultura e suas diversas facetas.

Até mesmo cientistas conectados ao programa espacial norte-americano, como Carl Sagan181 ou o alemão Hermann Oberth182, astrofísicos profundamente atuantes na sondagem espaço-sideral, chegaram a ponderar – num viés distinto do de Erich Von Daniken, o qual julgavam um amador – a possibilidade da existência de inteligências extraterrestres, supondo inclusive que antigas inscrições encontradas na Terra poderiam sim ser produto de culturas vindas de fora do Planeta que habitamos. Por ora, não pretendo prosseguir a respeito dessa reflexão, meu intuito é apenas mostrar que tais modalidades de especulação, sejam elas científicas, esotéricas ou artísticas, representaram um fato concreto da época, o que mostra o grau de incertezas e as possibilidades de conexão com as quais a ciência e a ficção do período estavam lidando, de maneira que, ao historiador, cabe questionar-se dos efeitos dessas dúvidas nas composições espaciais que, a partir delas, emergem em situações locais. Aqui, esse evento se toma, antes de tudo, como um sintoma das reconfigurações espaciais que estavam se dando no campo social, da qual a emergência de Nordestes Psicodélicos é apenas um de seus efeitos.

Num breve artigo, publicado na revista Rolling Stone Brasil, em Julho de 1972, chamado ''Oriente Ocidente", o historiador e, à época, professor da Universidade de São Paulo, Ricardo Mário Gonçalves escreveu uma matéria voltada à leitura dos jovens que estavam ligados em contracultura no pais. À convite do editor do periódico - o filósofo Luiz Carlos Maciel - Goncalves183 iniciou seu texto com uma curiosa citação, atribuída ao

181Doutor pela Universidade de Chicago, Carl Sagan ( 1934-1996) deu importantes contribuições para o estudo das condições climáticas de outros planetas, como Vênus, Júpiter e Marte. Desenvolveu uma série de sondas que foram enviadas ao espaço, a partir dos anos 60. Ficou mundialmente conhecido através da série televisiva “Cosmos”, lançada nos anos 80. Além disso, Sagan foi presidente das mais importantes sociedades astronômicas norte-americanas e em 1982 criou a SETI ( Search for Extraterrestrial Intelligence, em português: Busca por Inteligência Extraterreste).

182Herman Oberth (1894-1989) foi um dos percussores da astronáutica moderna. Trabalhou como consultor científico para o filme de Fritz Lang “A mulher na lua”, de 1929. Contribui para o desenvolvimento do foguete norte-americano Atlas e para a construção do Explorer I, primeiro satélite artificial da NASA, lançado ao espaço em 1958. Ele também era adepto das teorias extraterrestres.

183O historiador Ricardo Gonçalves fez carreira acadêmica no âmbito dos Estudos Orientais, sobretudo da cultura japonesa e numa entrevista concedida à Revista do Nures ( Núcleo de Estudos Religião e Sociedade) da PUC-SP ele comentou sobre a relação que estabeleceu com o momento contracultural da década de sessenta e setenta no país: ''Nunca me considerei um conformista ou acomodado, sempre encarei a realidade com olhos críticos, mas nunca consegui me identificar com movimentos marxistas. Minha sensibilidade para com a

133 matemático Alexander Grothendieck, onde uma conexão possível entre Era Espacial e Contracultura ganha consistência:

Depois da euforia que caracterizou a época dos primeiros voos espaciais, quando a crença nas possibilidades da ciência moderna atingiu o seu auge, surgiu uma atitude de crítica e descrença no tocante à capacidade da mesma para dar felicidade ao homem. Como uma parte dessa reação, surgiram grupos constituintes da chamada ''contracultura" interessados em formas acientificas de pensamento, como magia, misticismo, etc. Assim, o próprio cientificismo contemporâneo é indiretamente responsável pela exploração desses movimentos radicalmente contrários à sua natureza.( Palavras de A.

184 Gothendieck, um matemático contemporâneo francês)

A citação integra um artigo que procurava equilibrar, com a visão crítica de um estudioso no assunto, a busca que se processava nos territórios existências da contracultura brasileira por dados aspectos das práticas culturais e das cosmovisões das filosofias de vida orientais. Mas antes dele, em 1958, Carl Jung escreveu um breve ensaio intitulado Um mito moderno sobre coisas vistas no céu, que parece prenunciar os acontecimentos que se davam nessa década de setenta, onde se proliferavam grupos sociais ''interessados em formas acientificas de pensamento, como magia, misticismo, etc", como confirma o texto do historiador paulista. Neste ensaio dos anos 50, Jung procurou analisar, através de sua teoria dos arquétipos, o que estava implicado, do ponto de vista do inconsciente coletivo, na profusão de relatos sobre visões de discos voadores e seres extraterrestres, que vinham se espalhando, desde a década de quarenta, em diferentes lugares do mundo. Segundo o autor:

Na atual situação de ameaça no mundo, em que se começa a perceber que tudo pode estar em jogo, a fantasia produtora de projeções amplia seu

espiritualidade sempre me manteve distante de movimentos e ideologias dogmaticamente materialistas. A contracultura me fascinou justamente pela sua abertura para o espiritual, particularmente para a espiritualidade oriental, não obstante certos excessos (drogas, etc.). Cheguei mesmo, em certo momento (fim dos anos sessenta) a colaborar com um dos papas da contracultura no Brasil, o Luis Carlos Maciel, que escrevia no “Pasquim” e na versão Brasileira do “Rolling Stones”, para a qual cheguei a colaborar com alguns artigos. Vi na Contracultura um dos portais pelos quais a espiritualidade oriental poderia penetrar no Brasil e exercer alguma influência por aqui. Minha aproximação com a Contracultura foi algo que eu vivi praticamente sozinho, pois meus companheiros missionários budistas japoneses nem sequer sabiam o que é Contracultura... Eles achavam muito esquisito que “hippies” pudessem se interessar por Budismo, nunca chegaram a entender direito porque eu me aproximava desses movimentos. In: ALBUQUERQUE, Leila Marach Basto de. ENTREVISTA: Ricardo Mário Gonçalves, pesquisador brasileiro da cultura japonesa. Revista Nures. Vol. 9. Ano 4. Maio/Setembro 2008, p.3

184Oriente e Ocidente. Rolling Stone Brasil. Rio de Janeiro. nº 12. 4 de Julho de 1972, p. 10

134 espaço para além das organizações e potências terrestres, para o céu, isto é, para o espaço cósmico dos astros, onde outrora os senhores do destino, os deuses, tinham sua sede nos planetas[...] A atual situação mundial está mais do que propícia para despertar a expectativa de um acontecimento libertador extraterrestre. Se uma tal expectativa não tem força para despontar mais nitidamente, é porque ninguém mais está tão firmemente enraizado na cosmovisão dos séculos anteriores para poder considerar como natural uma

185 intervenção do céu.

Antes de mais nada, é importante ressaltar que neste ensaio Jung procurou desfazer certos enganos que haviam surgido quanto à sua abordagem do que seria o inconsciente coletivo. Ele afirma que não há nada de ''metafísico" em sua análise, trata-se, ao invés disso, de um empirismo que se mantinha no interior das fronteiras da teoria do conhecimento. E na passagem acima, desfazendo qualquer engano metafísico possível, podemos perceber que, antes mesmo da expansão de fronteiras produzida com a Corrida Espacial, a questão da vida extraterreste e dos objetos voadores não-identificados já representava uma espécie de mito que o mundo moderno estava construindo, a partir de uma observação mais atenta sobre o espaço aéreo, que rendia aos sujeitos a construção de projeções, em suma, de imagens desejantes.

Para o autor, a expectativa de um acontecimento extraterrestre libertador era uma espécie de tendência psíquica, que já podia ser observada mas que ainda não encontrava força suficiente para despontar no campo social, da década de cinquenta, justamente pelo fato de que havia pouca conexão com as cosmovisões de séculos anteriores, as quais Jung conhecia bem devido à seus estudos, e que davam ao céu todo um trato mítico muito distinto do que na Modernidade. Contudo, na década de setenta - como venho apresentando ao longo do capítulo - através das profundas transformações trazidas com a Era Espacial, o estudo destas antigas cosmovisões havia retornado subitamente a superfície do real, com muito mais intensidade do que na década de cinquenta. No caso do Brasil, a popularidade adquirida pela Revista Planeta já nos serve para considerar este novo impulso especulativo diante das cosmovisões passadas e de outros temas correlatos. 186Não é de estranhar que neste universo

185JUNG, Carl. Um mito moderno sobre as coisas vistas no céu. Petrópolis: Editora Vozes, 2013, p. 24-32

186Na edição comemorativa de três anos de publicações da edição brasileira da Revista Planeta , o editor Ignácio Loyola de Brandão escreveu sobre o que atravessava o editorial da revista e seu intuito à época: ''Fomos, certamente, a primeira revista do Brasil a falar, com tranquilidade e normalidade, de assuntos até então não abordados por diversas conveniências. Abordamos a existência dos seres extraterrestres, apoiados em dados

135 de relações, o livro de um escritor como Erich Von Daniken tenha feito tanto sucesso ao apontar – mesmo de maneira estapafúrdia muitas vezes- que civilizações anteriores à nossa consideravam um fato a existência de inteligências existentes fora da Terra.

Como se sabe, a consciência de estarmos imersos no interior de fronteiras espaciais, muito mais amplas que a de uma região, nação ou continente, é uma realidade que antecede todas estas construções imaginárias que são bastante recentes. Antes de possuir uma identidade nacional – algo que só emerge com os Estados Modernos, entre os séculos XVIII e XIX - numa sociedade dividida em classes, a experiência humana em sociedades tribais ou em civilizações pagãs, constituíam subjetividades coletivas que estavam postas no interior de fronteiras sociais que eram integradas às fronteiras de um Cosmos ordenado por dados imperativos culturais e simbólicos. Nestes territórios, as mais diversas manifestações da natureza correspondiam ao cosmos que se supunha habitar: o movimento das estrelas, a força da luz do Sol, as fases da Lua, as mudanças cíclicas do clima e sua relação com o cultivo de alimentos, etc. Os mitos e os ritos encarnavam as dinâmicas cíclicas da natureza no interior de uma dada compreensão de fenômenos cósmicos.

As cosmologias antigas, pelo menos os fragmentos que sobreviveram ao processo de destruição promovido pela expansão das relações de poder da civilização Ocidental, fortemente marcada pelo ideário cristão, inseriam a experiência humana dentro de um espaço atravessado pelas forças da natureza da Terra, mas também do que lhe escapava: astros, planetas, constelações, plêiades. Estes espaços míticos expressavam cosmovisões que eram incorporadas e partilhadas coletivamente na própria organização da vida cotidiana e funcionavam como representação possível dos movimentos da natureza, entre uma dada cultura, possuindo uma orientação espacial do mundo na qual o que se passava na vida mundana representava um movimento semelhante ao que se passava acima dela187. O

científicos. Falamos da Atlântida e da conquista de Vênus e Marte. Descemos à pré-história e subimos ao futuro, sem medo ou preconceitos. Somos abertos, receptivos, apaixonados, sinceros. Podemos errar, mas simplesmente porque procuramos acertar. O nosso interesse é de entender o homem, acima de tudo. Situá-lo neste universo que se amplia dia a dia. Determinar a sua origem e a explicação de tudo que, até então, era considerado inexplicável, proibido, fantástico, misterioso. Desvendar os mistérios, esclarecer enigmas, iluminar o oculto, informar, ajudar a compreender. Isto é Planeta. Nasceu assim. Vem se transformando lentamente, á medida que o próprio tempo se transforma." In: Três Anos de Revista Planeta. Revista Planeta. Editora Três. São Paulo. Nº 36. Setembro de 1975, p.2-3

187Em texto intitulado ''A Doutrina das Semelhanças" Walter Benjamin afirmou que: ''Devemos aceitar o princípio de que os processos celestes fossem imitáveis pelos antigos, tanto individual como coletivamente, e de que essa imitabilidade contivesse prescrições para o manejo de uma semelhança preexistente. Essa imitabilidade pelo homem, ou a faculdade mimética que este possui, constitui, por ora, a única instância capaz de assegurar à

136 território e a experiência não estavam apartados ou distantes de um dado cosmos, de uma dada ordem espacial apresentada pelo próprio movimento celeste, que era percebido e integrado em sua dinâmica para a organização da vida na Terra. Não foram poucos os grupos que cultivaram a crença de que seus mortos se transformavam em estrelas no céu.

Digamos que vivia-se as relações com o território como se esse fizesse parte de uma espécie de planetário, não por excentricidade ou algo parecido, mas sim por uma questão de sobrevivência de si, dos outros, do mundo. No interior de pequenos microcosmos simbólicos, atravessados pela dimensão mítica da experiência em relação às forças da natureza, destinava- se atenção ao céu de outra maneira. Estabelecia-se uma conexão com o espaço cósmico que nós pouco conhecemos. A luz incandescente das estrelas no céu se faziam presentes durantes as noites de uma maneira muito distinta das nossas noites que já não escurecem como outrora. Antes da energia elétrica tornar maquínico o fenômeno da luz, o céu possuía outra consistência para a constituição da experiência humana. Imaginar seus mortos transformando- se em estrelas talvez fosse uma demonstração da relação de pertencimento e filiação para com o mundo fora da terra, distante e ao mesmo tempo presente, mas acima de tudo, inalcançável senão através da morte. Portanto, o céu era uma espécie de limite mas paradoxalmente fazia parte do interior mesmo do universo simbólico destas sociedades antigas. Alguns chegavam inclusive a inscrever suas visões do cosmos no corpo, imprimindo uma perspectiva de território que está para além do espaço da terra, povos que foram progressivamente desaparecendo com a expansão de um colonialismo – este sim- selvagem.

astrologia o seu caráter experimental. Se o gênio mimético foi verdadeiramente uma força determinante na vida dos Antigos, eles não poderiam deixar de atribuir ao recém nascido a plenitude desse dom, concebido sobretudo como um ajustamento perfeito à ordem cósmica." In: A doutrina das semelhanças. BENJAMIN, Walter. Op. Cit. p.109-110

137

Fotografia da década de quarenta no extremo sul da América. Os Yaghan eram nômades que viviam transitando em pequenas embarcações na região da Patagônia.

Esta imagem apresenta pessoas que faziam parte de uma cultura em que ainda não havia sido formulada uma consciência de si, do individuo como mônada fechada, dotado de uma "Razão" a ser cultivada e com livre arbítrio para decidir sobre seu destino no mundo, tal qual vislumbrado a partir do Iluminismo, já num mundo que chamamos de ''moderno". Ao invés disso, o mundo destas pessoas era regido pela compreensão de um cosmos, no qual se estava imerso, habitado por deuses, figuras míticas, antepassados, de onde sinais eram emitidos e aos quais devia-se estar atento para captar uma orientação quanto aos propósitos da vida em comunidade, é provável que suas vidas estejam mais próximas daquele universo de relações que tornou possível as marcas da Pedra do Ingá. Com estrelas pintadas em seu corpo, esta imagem serve para nos confirmar que saber ler os sinais da natureza sem o auxílio de uma cultura livresca é o que mais distingue o humano de agora com o de outrora. Não se trata de idealizar estas culturas antigas, apenas é importante ressaltar que uma outra ordem - não é este o sentido etimológico da palavra ''cosmos"? - se impunha à coletividade, uma

138 ordem espacial onde os acontecimentos mais concretos da terra estavam em conexão e encarnavam acontecimentos celestes.188 Se a emergência de identidades espaciais como as nacionais e regionais implicam, sempre, gestos de separação, o traçado de fronteiras, o estabelecimento do pertencimento a um dentro em relação a um fora, nessas culturas cósmicas essas separações eram impossíveis, embora se pudesse disputar o cosmos próprio, defender sua cosmologia em relação a outros grupos estranhos que eram vistos a partir de uma alteridade radical.

Minha intenção introduzindo a questão da experiência cósmica é pontuar que é de fundamental importância considerarmos que, com a Corrida Espacial empreendida logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma certa expansão espacial foi sentida pelos sujeitos, o que resultou num movimento coletivo de reconfiguração de certas fronteiras, como as regionais e nacionais, em que anunciava-se um espaço a ser colonizado, descoberto em sua amplitude, sondado através da moderna tecnologia, mas também inventado e fabulado em conexão com espaços concretos do cotidiano e espaços míticos de outrora, dando margem a emergência de nostalgias ancestrais, em suma, imaginando as experiências de um passado muito distante à luz da dimensão fantástica que a aventura espaço-sideral da Era Espacial encarnava.

Em terra, muitos passaram a revirar os arquivos da curta jornada da experiência humana no planeta, para situar-se diante de tal acontecimento, remontando experiências de tempos arcaicos, à procura de entender a sua própria condição de terráqueo, diante dos dilemas postos na segunda metade do século XX, fazendo recuar a memória na direção de tempos longínquos e encontrando, nas sobrevivências de culturas arcaicas, uma forma de territorializar suas subjetividades diante da desterritorialização impulsionada pela Era Espacial. É neste sentido que a experiência coletiva que resultou na composição do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, pelo Selo Solar, em Recife, traz uma perspectiva dos

188“ Los paganos buscaban lecciones de sabiduría em el cielo verdadero y las encontraban: la alternancia del día y de la noche, el ciclo de las estaciones, el eterno retorno de las cosas, el orden del cosmos, al cual hay que consentir para obtener sabiduría, equilibrio, verdad existencial y todo lo que da sentido a la propria vida. Lo que sucede al Sol, que nace, crece, brilla con todo su fuego, luego decrece, desaparece, muere y renace al día seguiente, lo que le ocurre a la naturaleza em primavera parece um esquema que corresponde a lo que les pasa a los días. ¿Por qué lo que les pasa a los días, a las estaciones no sería la ley de lo que les sucede a los seres humanos?" ONFRAY, Michel. Op. Cit. p. 318

139 efeitos deste rearranjo de fronteiras - que procurei apresentar neste capítulo - performatizada musicalmente entre os jovens músicos da turma do udigrudi pernambucano.

Neste capítulo, optei por focar minha análise a partir de apenas um álbum, lançado em Recife, em 1975, por considerar que sua aparição, à época, dava margem para que fosse feita uma reflexão historiográfica sobre estas transformações sintomáticas que atravessavam o mundo a partir dos eventos da Era Espacial, que apresentei nas páginas anteriores. Álbum que teve sua fita máster, com as gravações originais, e mais de mil cópias arrastadas pelo turbilhão de águas, que invadiu a fábrica da Rozemblit, na grande cheia que inundou Recife, em 1975189, e que só agora, nos últimos dez anos, vem sendo inserido no panorama das pesquisas históricas sobre a música brasileira, deste período. Não fosse o advento do compartilhamento de músicas através da internet, o esquecimento deste disco completaria a pouca repercussão que obteve em sua época. Contudo, foi através dele que pudemos seguir nossa reflexão sobre estes Nordestes de experimentações, viagens e visagens, que eram construídos, desconstruídos e vivenciado por uma juventude que, diante do ambiente claustrofóbico da ditadura, seguiu dando vazão às suas experiências, criando entre as margens da produção independente seus álbuns, filmes, livros, poemas.

O udigrudi – como ficou conhecida a efervescência cultural e musical desta geração em Recife - atravessa este álbum, mas vai além dele, e conecta-se à outras experiências e situações que serão o tema do capítulo seguinte. Intitulado ''Nordestes Psicodélicos: paisagens sonoras e poéticas do udigrudi pernambucano nos anos 70" nele ampliarei minha análise sobre o que se convencionou chamar de música nordestina, ao longo do tempo, e procurarei problematizar de que maneira as sonoridades e poéticas que aparecem nas produções do Selo Solar com Flaviola, Lula Côrtes, Lailson, Marconi Notaro, Zé Ramalho mas também a banda Ave Sangria, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, dentre outros jovens artistas da década de 70, traçam uma descontinuidade diante das perspectivas folclóricas e tradicionalistas que costumaram dar a tônica das artes nordestinas e nos colocam diante Nordestes Psicodélicos, de fusões e misturas tecidas por sujeitos que incorporaram, em suas

189A cheia do Rio Capibaribe e a incapacidade da barragem de Tapacurá de conter as águas, em Julho de 1975, provocou um dos maiores desastres experimentados na capital pernambucana, no século XX. Mais de 80% da cidade ficou alagada, entre os dias 17 e 18 de Julho. Foi no turbilhão desse acontecimento que o parque industrial do Rozemblit ficou inundado e grande parte da produção do álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho se perdeu, sendo literalmente arrastada pelas águas. In: Uma ponderação sobre a cheia. Jornal da Cidade. Recife. 3 a 9 de Agosto de 1975, p. 3

140 vidas e em suas obras, essas experimentações planetárias da Era Espacial e da contracultura, das quais tratei neste capítulo, dentre outras coisas mais.

141 Nordestes Psicodélicos: paisagens sonoras e poéticas do udigrudi pernambucano nos anos 70

A arte de escutar o Nordeste Antes de nos determos na análise das paisagens sonoras inventadas pela turma de jovens músicos imersos no que se convencionou chamar de udigrudi pernambucano, da década de 70, é importante traçar uma breve problematização sobre o que se convencionou chamar/escutar, ao longo do tempo, como ''música nordestina". Antes de mais nada, deve-se considerar que a região Nordeste vem sendo elaborada discursivamente desde a primeira década do século XX – antes disso não se falava em Nordeste Brasileiro- através da ação de diversos sujeitos, que passaram a enunciá-la como uma forma de demarcar um território regional e conceber uma identidade espacial, diante da desterritorialização experimentada com os influxos da Modernidade.

Como se sabe, a história deste complexo processo de construção de um imaginário espacial encontrou nas artes sua mais potente zona de ressonâncias, através da qual ecoam literaturas, pinturas, filmes, poesias, esculturas e claro, músicas, que acabaram instituindo formas de ver, dizer e ouvir certos elementos culturais que, progressivamente, passaram a 190 compor as fronteiras imaginárias dessa trama afetiva chamada Nordeste.

Se um regime de dizibilidade e visibilidade191 se constituiu em discursos e imagens, é certo que um regime de audibilidade também passou a configurar-se a partir do tratamento que era dado às variadas práticas musicais, a partir do início do século XX, que foram se constituindo historicamente na miscelânea cultural que se deu a partir dos tempos da colonização. Nos detendo estritamente ao estudo disto que seria a formação do chamarei de um regime de audibilidade regional, é possível constatar que, ao longo do século XX,

190ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. 4 ed. São Paulo: Editora Cortez, 2009.

191'Sobre a formação deste arquivo de imagens e discursos que ajudaram a compor um regime visual e discursivo do Nordeste convém recordar que: ''Quando falamos na emergência de uma nova visibilidade e dizibilidade, falamos da emergência de novos conceitos, novos temas, novos objetos, figuras, imagens, que permitem ver e falar de forma diferenciada da forma como se via e se dizia o sublunar, anteriormente[...] tanto na visibilidade quanto na dizibilidade articulam-se o pensar o espaço e o produzir o espaço, as práticas discursivas e as não-discursivas que recortam e produzem as espacialidades e os diagramas de forças que as cartografam." In: ALBURQUERQUE Jr, Durval Muniz de. Op. Cit. p. 34-5

142 passamos, progressivamente, a escutar as paisagens sonoras que foram sendo definidas como expressão da música da região Nordeste.

Isso porque uma certa escuta regionalista passou a ganhar expressão através da música e, em pouco tempo, um arquivo sonoro foi sendo montado, a partir de diversas práticas musicais que estavam espalhadas pelo território dito regional, onde certos ritmos, timbres, melodias, formas de tocar instrumentos variados e formas de versar cantos passaram a significar o que seria a música da região. De maneira geral, foi através da perspectiva de sujeitos imersos nos debates intelectuais e artísticos que se davam nas zonas urbanas, que estas práticas passaram a compor a paisagem sonora desta comunidade imaginada chamada Nordeste192. Retomar de maneira sistemática esse processo de construção histórica não é a intenção desta pesquisa. No entanto, decidi pinçar alguns acontecimentos que nos ajudarão a pensar a relação entre história, música e a invenção do Nordeste em diferentes discursos que emergiram, ao longo do século passado.

Os primeiros discursos que se referem ao que seria uma música regional surgem entre as décadas de 20 e 30, através do que se convencionou chamar de pesquisas folclóricas. É o momento em que muitos intelectuais passaram a "catalogar" uma variedade de manifestações culturais que, segundo eles, estariam ameaçadas de desaparecer e passaram a nomear tais práticas como expressões da identidade cultural da região, como representantes do que seria a ''cultura popular" do Nordeste.

Entre estas manifestações estava a musicalidade, que fazia parte do universo lúdico e existencial de uma série de sujeitos pertencentes às camadas populares da sociedade. É que no caso do Nordeste, a diversidade musical e poética, constituída historicamente nos territórios que viriam a habitar suas fronteiras, dava à região a condição de espaço atravessado por tradições culturais que iam das matrizes africanas à musicalidade das populações indígenas, que por sua vez foram se mesclando às sonoridades e poéticas que circulavam pela região da península ibérica e que por aqui chegaram nos tempos da colonização. Desse amálgama resultou uma miscelânea de expressões culturais que, a partir da década de 20 do século passado, com a disseminação do discurso folclórico, foram percebidas como expressões culturais que estariam ameaçadas de sumir do mapa com a

192ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Editora 70, 2010.

143 expansão do estilo de vida urbano e, portanto, era preciso ''registrar" a existência de tais práticas o quanto antes para garantir sua sobrevivência.

O momento era muito propício para este tipo de empreitada pois vivia-se a inserção do país num ritmo de transformações bastante acelerado, em que as cidades cresciam e, com elas, crescia, em consonância, o desejo de seus intelectuais em definir o que seriam as raízes culturais deste novo Brasil, que buscava conhecer a si próprio. Com a formação discursiva nacional-popular e o dispositivo das nacionalidades193 em voga na produção cultural da época, a região Nordeste foi se instituindo através de iniciativas que lhe significavam como um espaço habitado pelas tradições de um passado, até mesmo musical, que estaria desaparecendo.

Nesse primeiro cenário, fruto dos recortes espaciais realizados pelos estudos folclóricos, uma iniciativa que destaco, neste sentido de folclorização e demarcação do que seria a musicalidade nordestina, ocorreu em 1938 e, paradoxalmente, partiu de um espaço institucional do Sul do país. À época, Mário de Andrade atuava como Diretor do Departamento de Cultura do Estado de São Paulo. O escritor modernista também era um musicólogo bastante interessado no estudo do que, naqueles tempos, se chamava de '' música popular", ou seja, músicas que eram cantadas e tocadas por populares, que mantinham viva uma série de tradições sonoras e poéticas através da oralidade; por sujeitos que transitava tocando e cantando música fora das salas de concerto e das emergentes estações de rádio do mundo moderno. Para intelectuais como Mário de Andrade - imerso nos debates e nas instituições que atuavam em torno da construção da ideia de identidade nacional e de patrimônio cultural nacional e regional - estas sonoridades e estes cantos, construídos no fervilhar de uma tradição oral, desde há muito tempo em movimento, representava a identidade musical e designava as matrizes culturais da região Nordeste.

É que estas pesquisas folclóricas tinham como objetivo inventariar especificidades sonoras e poéticas que deveriam ser documentadas, gravadas e catalogadas no sentido de dar

193Ao conectar os conceitos da arqueologia dos discursos e da genealogia do poder propostas pelo filósofo francês Michel Foucault, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr, afirmou que foi em torno das ideias de identidade cultural nacional e regional que emergiu no Brasil um conjunto de regras de enunciação ( formação discursiva nacional-popular) sustentado por um dispositivo de poder ( dispositivo das nacionalidades), em torno dos quais, se desenvolveu grande parte da história brasileira, entre as décadas de 20 e 60. In: ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. Op. Cit. p.37

144 vida à um arquivo documental da música popular brasileira, em suas variantes regionais.194 Imbuído em mapear manifestações musicais do Norte e do Nordeste, Mário arquitetou a Missão de Pesquisas Folclóricas, de 1938, uma expedição de pesquisa feita por um grupo de funcionários do Departamento de Cultura, que se estendeu de Fevereiro à Julho, entre Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e que acabou sendo interrompida devido ao afastamento do escritor modernista de suas funções institucionais no próprio Departamento 195 de Cultura, que havia ajudado a criar junto ao Estado de São Paulo.

A rota da expedição da Missão retomava caminhos que o próprio Mário havia percorrido em suas viagens de pesquisa na década anterior196. Mas agora o grupo de pesquisadores viajava com um gravador Presto Recorder, microfones e uma carga enorme de discos de acetato. As parafernálias tecnológicas possibilitariam gravar em fonogramas as expressões musicais que encontrassem pelo caminho de suas andanças, que estavam sendo intermediadas pela extensa rede de intelectuais à qual Mário esteve conectado e que viviam nestes lugares. Assim, a equipe pôde gravar mais de 70 grupos diferentes, chamados de folclóricos, deslocando a equipe, para o registro nas modernas gravações em disco, desde o canto de carregadores de piano nos portos de Recife, a cantigas de bumbas-meu-boi, cantadores de viola, xangôs, praiás, cocos, aboios, toadas, rodas sertanejas, caboclinhos, modos de tocar viola, chulas, cantos de pedintes, modinhas, emboladas, reis de congo, reisados, cabaçais, catimbós e etc.

As manifestações encontradas e gravadas com as vozes e toques de populares das cidades e vilarejos de Pernambuco e Paraíba - no interior do trabalho desta pesquisa folclórica - passaram a ganhar o estatuto de representantes da música do Nordeste, não só através dos resultados da própria Missão, mas através da iniciativa de uma série de outros

194No caso da Região Nordeste, além da Missão de Pesquisas Folclóricas, da equipe do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, também se destacam a viagem empreendida pelo próprio Mário de Andrade, no final dos anos 20, por Estados do Norte e do Nordeste e por fim, a Missão de Pesquisas Folclóricas, empreendida pelo musicólogo Luiz Heitor Côrrea de Azevedo, ao Ceará, em 1943.

195Em 2006 o Sesc-SP lançou uma compilação de 6 discos que procura abarcar a diversidade do acervo musical inventariado pela Missão de Pesquisas Folclóricas, de 1938. Á época do lançamento alguns textos foram publicados no sentido de esclarecer ao público sobre o contexto histórico que tornou possível esta iniciativa. O material pode ser acessado integralmente no link: http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/ (Acesso em 04/01/2017)

196Para conhecer mais sobre a experiência do autor neste período de sua vida ver: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Brasília. IPHAN, 2015. Edição de textos apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo e Leandro Raniero Fernandes.

145 intelectuais que, no âmbito regional, integravam o campo de estudos do folclore e da cultura popular, sujeitos que atuavam no mesmo sentido, nesta primeira metade do século XX.

Assim, pelo processo de folclorização da música, passava-se a inventar novos sentidos para estas expressões incorporadas pela comunidades que tocavam e cantavam seus cocos, cantorias, emboladas e outros sons, passava-se a escutar estas sonoridades como expressão de um Nordeste visto como lugar de tradições sonoras e poéticas que corriam risco de desaparecer e que, supostamente, só estariam vivas pela distância que ainda mantinham com a ameaçadora experiência urbana em expansão. Nesta abordagem, estas manifestações musicais foram tomadas como algo que deveria ser preservado, a partir de então, quase como um artefato museológico que nos ligaria ao passado, para que sobrevivessem ao longo do tempo, através da repetição no interior das fronteiras da '' música popular regional" e das práticas agora enunciadas como sendo da '' cultura popular" e do '' folclore nordestino". Foi a época em que as práticas do saber folclórico buscou territorializar as forças nomádicas e errantes que atravessavam historicamente tais práticas culturais, em favor de nomeá-las como expressões culturais das "raízes" do Nordeste197.

O interessante é perceber que, através desses acontecimentos, foram se instituindo certas relações de poder voltadas para a configuração de um lugar de sujeito e também um objeto de escuta: um lugar referente à figura do ''músico nordestino" foi ganhando forma, transformando seus agentes numa espécie de porta estandarte das tradições inventariadas pelo saber folclórico, como sendo a verdadeira essência da música regional ou da alma nordestina. Emergia então este transcendente ao qual a figura do músico deveria manter-se fiel, para não desvirtuar a música de sua região de origem e, ao mesmo tempo, participar da institucionalização de um certo imaginário sonoro, de uma certa escuta regional, a ser disseminada como paisagem sonora do Nordeste, pelo discurso folclórico. Eis um primeiro

197Considerando a pesquisa realizada por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, esse processo de folclorização ao qual me refiro em relação à música, também funcionava no sentido de territorializar como '' nordestinas" formas e matérias de expressão que até então caracterizavam-se pelo nomadismo e pela dispersão, pelo constante deslocamento em momentos históricos anteriores. Segundo o autor: ''A invenção do folclore e da cultura popular nasce a par com a emergência do que se chamou de princípio das nacionalidades", onde ganha relevância no âmbito cultural a busca pela instituição imaginária de identidades espaciais como as de Nação e Região. O fato é que este conjunto de toques, cantos, timbres, melodias, ritmos até então não se definiam como pertencentes ao espaço Nordeste, mas através da folclorização passou-se a dar uma '' conscrição territorial " em que estes sons ganharam o estatuto de representações da paisagem sonora do Nordeste. Sobre a territorialização empreendida pelas pesquisas folclóricas ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. O morto vestido para um ato inaugural: procedimentos e práticas dos estudos de folclore e cultura popular. São Paulo: Entremeios, 2013, p. 104-22

146 elemento que sugiro que seja considerado para compreendermos de que maneira as paisagens sonoras e poéticas do udigrudi pernambucano, na década de 70, expressam uma ruptura, uma fissura, uma quebra nessa ordem discursiva e sonora, em favor de uma experimentação psicodélica musical e existencial, que rompia com estes limites de fronteira, afirmando sua liberdade de criação, afirmando uma música independente, que com seus devires desterritorializava as fronteiras sonoras, construídas pelas formas de pensamento 198 tradicionalistas, tornando audível Nordestes Psicodélicos que se expressam musicalmente.

O certo é que, além das pesquisas folclóricas, outra experiência musical muito importante para a formação e demarcação do que seria a música nordestina, no século XX, aconteceu através do sucesso alcançado pelo músico Luiz Gonzaga, entre as décadas de 40 e 50, nos programas da Rádio Nacional, momento em que vivia-se o apogeu da experiência radiofônica, naquilo que ficou conhecido como a Era do Rádio. Nascido no município de Exu - sertão pernambucano – em 1912, muitas de suas canções performatizavam uma experiência que se tornou comum entre a população nordestina de sua época e que ele mesmo vivenciou bem: a saudade experimentada por aqueles sujeitos que deixavam seus lugares de origem e partiam em busca de emprego e de melhores condições de vida nas grandes capitais do Sul do país. Desterrados e imersos no universo semiótico de metrópoles distantes, estes migrantes passaram a reencontrar com as paisagens rurais que haviam deixado para trás, quando ouviam as músicas de Gonzaga. O músico tornou-se popular com uma poética que evocava um ambiente regional essencialmente rural - o sertão - que se fazia presente como reminiscência de toda uma geração que viveu com intensidade o ir e vir de parentes, amigos, amores, que agora trabalhavam para edificar a realidade concreta de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que por sua vez, destinava suas zonas periféricas como morada para a maioria dos nordestinos, que por lá chegavam.

A popularidade à nível nacional alcançada por Luiz Gonzaga, sobretudo na década de 50, o transformou numa espécie de representante oficial da música do Nordeste no campo cultural, de uma época marcada pelo nacionalismo desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek . Gonzaga construiu em torno de si um lugar de fala que o fazia porta

198A formação deste lugar de enunciação ainda carece ser melhor estudada, em pesquisas futuras. O que pretendo demonstrar e sugiro que se retenha, é o fato de que a partir das pesquisas folclóricas, das décadas de 20, 30 e 40, foi se criando um lugar para o ''músico nordestino", que o amarrava, necessariamente, às práticas musicais tidas como tradicionais e, sempre que foram feitas misturas com elementos culturais que estariam fora destas fronteiras, surgiram críticas visando denunciar uma espécie de traição às raízes culturais daregião.

147 voz de um Nordeste como espaço da saudade do mundo rural sertanejo, que era evocado musicalmente através do baião, a partir das paisagens sonoras e poéticas que foram disseminadas nas difusoras de rádio do país, mas que também podem ser ouvidas em álbuns como Olha pro Céu, de 1951, A História do Nordeste, de 1954 , Reino do Baião, de 1957 e 199 tantos outros de seus discos.

Apesar disso, o Nordeste performatizado musicalmente por Luiz Gonzaga não seguia a mesma perspectiva da música do Nordeste ''catalogada" pelas pesquisas folclóricas, das décadas de 30 e 40. Assim como o próprio Gonzaga era produto de um lugar de fala distinto do lugar de fala dos músicos que eram abordados pelos folcloristas, para terem suas canções e expressões musicais gravadas. Quando um pesquisador ligado ao pensamento folclórico catalogava uma dada manifestação musical, ele considerava que estava diante de um fragmento da '' alma" ou do '' povo" nordestino, imerso em seu território de origem. Mas agora as coisas eram diferentes. É que Luiz Gonzaga e sua música são indissociáveis das engrenagens da emergente indústria cultural de sua época e como afirmou o sociólogo Elder Alves, houve um processo de construção simbólica da imagem de Luiz Gonzaga como '' Rei do Baião" através dos mecanismos midiáticos da Era do Rádio. O próprio gênero musical do qual o compositor de Exu tornou-se o principal representante – o baião – não era um estilo musical que já se fizesse ouvir nos sertões do Nordeste. Ao invés disso, o baião, tal qual podia-se ouvir nas músicas de Gonzaga, deve ser entendido como um gênero musical que foi sendo elaborado e instituído sonoramente justamente no trânsito e na migração de sujeitos como Zé Dantas, Humberto Teixeira e o próprio Luiz Gongaza. Sujeitos nascidos nas 200 fronteiras do Nordeste mas em constante migração e conexão com outros espaços culturais.

É que a experiência musical de Gonzaga era atravessada por uma ambiguidade que aglutinava de maneira harmônica conteúdos poéticos e sonoros que evocavam um espaço

199Nas páginas do livro '' A Invenção do Nordeste" dedicadas à análise das músicas cantadas por Luiz Gonzaga, Durval Muniz de Albuquerque Júnior afirmou que estas músicas contribuíram para ''reforçar a percepção do Nordeste como uma unidade e um espaço à parte do país, uma homogeneidade pensada em oposição ao Sul. Ele reforça não só a identidade regional entre seu público, mas a identidade entre eles e sua '' região", entre eles e seu povo vivendo '' fora de sua terra". Esta identificação regional é facilitada pela generalidade espacial com que opera suas canções. Um espaço abstrato, sertão, Nordeste, Norte em oposição ao Sul, '' terra civilizada", '' cidade grande". Espaços aos quais os migrantes de diferentes Estados podem associar a sua própria vivência espacial singular. A topografia do Nordeste feita por Gonzaga é a do viajante, para quem as estradas compridas foram sempre uma realidade. Ele demarcou as fronteiras do território nordestino, instituindo a sua música, a sua linguagem, os seus ritmos, as suas danças em nível nacional, como uma região rural para quem as cidade são sempre ignoradas." In: ALBURQUERQUE JR, Durval Muniz. Op. Cit. p. 182

200ALVES, Elder P. Maia. A sociologia de um gênero: o baião. Maceió: EDUFAL, 2012.

148 antimoderno e tradicional à formas musicais e marcas sonoras201 modernas, que só se tornaram possíveis a partir da intensificação da experiência urbana, de fins do século XIX. É o caso, por exemplo, da música Apitando na Curva, tema instrumental gravado ainda em 1942, no qual o jovem músico, nascido em Exu, executa um solo de sanfona - daqueles que se tornaram típicos em sua forma de tocar o baião - no compasso de uma polca, um ritmo dançante e urbano oriundo da região da Boêmia, que se espalhou pela Europa a partir da década de 40, do século XIX, e logo em seguida chegou ao Brasil202.

Além disso, ao longo da música se repete constantemente um som semelhante ao dos apitos do trem à vapor, marca sonora de um mundo moderno, motorizado e veloz, no qual o trem designa este ir e vir que foi ditando seu ritmo por onde passava, inclusive nas fronteiras do Nordeste. Apitando na curva é uma música que explicita bem essa característica inerente à paisagem sonora do Nordeste, inventada e executada por Gonzaga: trata-se de uma sonoridade que mescla ritmos e timbres que foram tomadas pela perspectiva folclórica como tradicionalmente nordestinos à outros sons que fazem parte de uma cultura urbana que estava em expansão. À esse entrelaçamento sonoro somava-se letras de canções que enunciavam a região como um espaço sentimental, movido por imagens saudosas de um lugar de origem sertanejo, que nutria a memória dos migrantes e alimentava a imaginação de muitos outros que nunca chegaram a conhecer suas paisagens. A música de Gonzaga funcionava como este apito de trem que pode-se ouvir na sua gravação, de 1942, ela anunciava imagens saudosas de um Nordeste que fora deixado pra trás, mas que ecoava nas frequências radiofônicas e atravessava fronteiras, justamente, devido ao papel desempenhado pela cultura do rádio, durante este período.

Na década de 60, já existia um extenso arquivo sonoro que circulava pelo país como representação musical do que seria a música do Nordeste. Apesar de aspectos inovadores nas composições de Luiz Gonzaga, sua música foi se transformando em símbolo de uma certa tradição musical que fazia soar a paisagem sonora do Nordeste como espaço essencialmente

201A noção de marca sonora é desenvolvida pelo pesquisador da paisagem sonora Murray Schafer, trata-se daqueles sons que compõe a paisagem sonora de um dado ambiente cultural e histórico. Ver: SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo. Unesp, 1992.

202Basicamente, a mistura entre a polca e o lundu deu origem ao maxixe ou a polca amaxixada, uma das primeiras expressões da música urbana brasileira, que mesclava, de maneira singular, o compasso binário do ritmo das danças europeias às sincopas de matriz africana, oriunda da música dos escravos. Para saber mais a respeito das implicações socioculturais inerentes ao advento do maxixe ver: WISNIK, José Miguel. Machado maxixe: o caso Pestana. São Paulo: Publifolha, 2008.

149 antimoderno e saudosista. Contudo, as reviravoltas culturais dos agitados anos sessenta deram margem à brechas por onde se fizeram ouvir conexões até então improváveis entre o que seria o dentro e o fora das fronteiras imaginárias da região. Entre 1967 e 1969, esteve em voga na música brasileira a estética tropicalista de compositores como Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil e de certa forma seus sons e canções anunciavam um ''chega de saudade" no que concerne à maneira de pensar e sentir a cultura brasileira.

Pode-se dizer que a atitude tropicalista começou a ganhar expressão musical a partir de 1967, através de apresentações que transgrediram os padrões vigentes nos famosos festivais de música, que eram transmitidos pela televisão. Contudo, na teia discursiva que consolidou-se como trama narrativa que pretende contar a história da Tropicália, a experiência musical vivida por Gilberto Gil, no ano de 1967, costuma aparecer, em pesquisas e em entrevistas, como um acontecimento dotado de certa importância para a emergência e consolidação do momento Tropicália, entre estes jovens compositores.203 Isso porque o cantor baiano estava fazendo uma temporada de shows no TPN ( Teatro Popular do Nordeste) e aproveitou esse período em que esteve na cidade de Recife para conhecer a famosa Feira de Caruaru e a já tradicional Banda de Pífanos de Caruaru, que à época já tinha mais de quarenta anos de existência.

Gil estava apresentando as músicas do álbum Louvação no TPN e havia demonstrado interesse em ouvir de perto o som da banda de pífanos. Assim, Carlos Fernando, Jomard Muniz de Britto, Aristides Guimarães, Geraldo Azevedo, e outros jovens artistas e intelectuais pernambucanos, partiram rumo ao agreste para realizar esse encontro. A percepção de Gil foi certeira ao ouvir a banda do mestre Sebastião Biano, no Clube Intermunicipal: emocionado, ele notou que as dissonâncias dos pífanos e dos tambores se assemelhava muito ao que havia escutado no recém lançado Sgt. Pepper´s Lonely Hearts

203Na trama narrativa deste tópico de minha pesquisa optei por fazer uso do encontro de Gilberto Gil com a Banda de Pífanos para ajudar o leitor a pensar as transformações culturais que vinham se dando, ao longo do século XX, em relação à chamada '' música nordestina". Contudo, como já foi problematizado pelo historiador Edwar de Alencar Castelo Branco, tratar este acontecimento como um marco fundante do momento Tropicália seria aceitar acriticamente um certo regime de verdade que foi se instituindo de modo a centrar-se apenas nas experiências de Caetano Veloso e Gilberto Gil para tratar da emergência do tropicalismo. Nesse sentido, convém recordar outro acontecimento que não costuma fazer parte das narrativas em torno da Tropicália: a ida do jovem Tom Zé ao cinema Excelsior, ainda em 1956, para assistir o rock de Bill Halley, experiência que no texto do historiador piauiense emerge para fissurar a ordem de marcos cronológicos que costumam referenciar a trama narrativa da Tropicália. Ver: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e uma contra-história da tropicália. Tese de Doutorado. Recife. UFPE, 2004, p.138-141

150 Club Band, álbum conceitual da banda inglesa Beatles, que contou com a produção musical de George Martin. Um ano depois o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis era lançado, pela gravadora Philips, exacerbando e dando consistência sonora a esta percepção de que as fronteiras imaginárias da cultura nacional e regional deveriam ser abertas e seus conteúdos postos em correlação com outros elementos da cultura pop internacional.

Em 2017, esse encontro completará cinquenta anos e é bastante provável que ele reapareça em entrevistas como a que Gil concedeu em outra data comemorativa da Tropicália, na qual afirmou que o tropicalismo passava justamente por essa atitude de misturar Beatles com a Banda de Pífanos.204 Ou então bumba-meu-boi com iê-iê-iê, como o fizera Torquato Neto ou bossa com palhoça tal qual Caetano Veloso205. A partir do que apontou o historiador Edwar Alencar de Castelo Branco, tal perspectiva de criação pode ser compreendida como mais um dos múltiplos gestos renovadores de invenção estética que emergiram num momento em que insinuava-se nas consciências e sensibilidades destes jovens artistas a ideia de que o mundo transformava-se numa extensa aldeia global interconectada e que, a partir de então, não seria mais possível tratar de Nordeste ou de Brasil sem considerar em suas fronteiras imaginárias o que vinha de fora, não necessariamente como uma ameaça, mas sim como a própria condição de existência do mundo globalizado, 206 que se estendia da cultura pop musical à Era Espacial.

Assim, entre o rock psicodélico deste álbum conceitual dos Beatles e as dissonâncias dos tocadores de pífanos de Caruaru era traçada uma conexão que retirava a chamada música do Nordeste do lugar de escuta que lhe fora destinado pelas pesquisas folclóricas, regionalistas e tradicionalistas, que abominavam qualquer tipo de mistura desta natureza. Com essa e outras atitudes, que circunscrevem o momento Tropicália, expressões musicais imersas nas fronteiras do Nordeste, como o maracatu rural, as cirandas, e o toque dos pífanos passaram a ser deglutidas antropofagicamente sob inspiração das palavras de Oswald de Andrade e postas em conexão com a música urbana das guitarras de rock e dos experimentos

204Nesse sentido ver a entrevista dada por Gilberto Gil à Ana de Oliveira para o site '' Tropicália" : http://tropicalia.com.br/ilumencarnados-seres/entrevistas/gilberto-gil-2 ( Acesso em 14/03/2017)

205Trata-se aqui das canções '' Tropicália" e '' Geléia Geral", ambas lançadas no disco manifesto de 1968.

206Ver o capítulo ''Deslumbramento e susto: maravilhas tecnológicas, captura social e fuga identitária nos anos sessenta", em: CASTELO BRANCO. Op. Cit. p. 29-96

151 de vanguarda na música erudita contemporânea, com a presença dos maestros Rogério 207 Duprat e Júlio Medáglia construindo arranjos para uma série de canções.

A reação a esse tipo de tendência - que de certa maneira sugeria uma abertura das fronteiras culturais nordestinas, através de expressões musicais conectadas às manifestações urbanas da cultura pop - veio logo no início da década de 70, com a criação do Movimento Armorial, capitaneado pelo teatrólogo Ariano Suassuna, que à época estava à frente do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. É importante considerar que Ariano Suassuna esteve desde a primeira infância imerso – mesmo que sem querer - num embate de poder entre o que representava o espaço rural e o espaço urbano nas relações de poder que atravessavam o Nordeste, algo que deixou marcas profundas em sua visão de mundo e na superfície de sua obra. Ele nasceu em 1927, e sua vivência foi logo impactada pelo assassinato de seu pai João Suassuna, político e representante dos interesses das elites agrárias, que morreu, em 1930, devido a conflitos políticos vividos na Paraíba.208 De certo modo, a morte do pai acabou lhe servindo como lente subjetiva, ao longo do tempo, o que o fez ver as experiências do mundo urbano como algo ameaçador para a vitalidade cultural do mundo rural, o que pode ser observado na própria fala do escritor:

Meu pai foi assassinado - no Rio de Janeiro - quando eu tinha 3 anos de idade, por conta de questões políticas ligadas aos episódios da Revolução de 30, em Princesa, cidade do sertão da Paraíba. Eu cresci lendo jornais falando mal de meu pai...Era a luta do bem contra o mal. O bem era o urbano, que representava a modernidade, o progresso, o governo. O mal era o meu pai, que significava o atraso, o primitivo, por ser rural. Sabe o que eu fiz, para conseguir viver, pois aquilo me doía

207Ambos os maestros fizeram parte do grupo Música Nova, que havia surgido no início da década de sessenta, e comprometia-se com o vanguardismo internacional e criticava compositores nacionalistas como M. Camargo Guarnieri, o mais reconhecido herdeiro do legado de Heitor Villa-Lobos. De acordo com o historiador Christopher Dunn esses compositores não se mostravam totalmente desinteressados em relação às origens musicais brasileiras, mas buscavam reinterpretá-las à luz das práticas vanguardistas internacionais e caracterizavam-se por um compromisso total com o mundo contemporâneo. Ver: DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim: a tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: UNESP, 2009, p. 92

208'' Em 09 de Outubro de 1930, João Suassuna foi assassinado no Rio de Janeiro , num ato de represália à morte de João Pessoa, também seu inimigo político . O assassino de João Pessoa, João Dantas, cuja desavença contra o governador fora motivada por motivos pessoais, era primo da mãe de Ariano, o que fizera com que aumentassem ainda mais as suspeitas sobre o envolvimento de João Suassuna no crime praticado por Dantas." In: VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos Espaços: paisagem sonora do Nordeste no Movimento Armorial. Dissertação de Mestrado em História. Natal. UFRN, 2007, p. 35

152 muito?...Resolvi inverter: o bem era o rural, o mal era o urbano...Pautei toda minha 209 vida nisso...Isso sempre teve uma repercussão enorme em toda a minha obra.

Disso resultou uma busca por uma ideia de '' essência" da cultura regional e nacional, que sugeria um fechamento irrestrito do ponto de vista estético diante de qualquer manifestação urbana que viesse a descaracterizar a superioridade do passado e do ambiente cultural rural, que passou a ser mitificado e elaborado através da erudição de Ariano em sua extensa obra. Nada de aldeia global interconectada, como sugeria a Tropicália, em fins da década de 60, na esteira de autores contemporâneos como Marshall Mcluhan. Lhe interessava mais a noção de Ilha, tanto é que retoma esta categoria espacial, em 1976, em sua tese de livre docência como uma estratégia discursiva para sugerir uma imagem fechada de como 210 deveria ser pensada e encarada a cultura brasileira.

Nesse sentido, a música armorial, que fazia parte do vasto conjunto de expressões do Movimento Armorial, tinha como condição de possibilidade uma motivação clara de seu mentor intelectual: delimitar as fronteiras do que seria um "legítimo ambiente sonoro nordestino", encerrado em si mesmo, na junção entre o popular e o erudito, a partir da perspectiva intelectual de alguém que se amparava em conceitos transcendentes como ''Povo", '' Terra", ''Família", '' Tradição", '' Estética", dentre outros, para falar em nome da ideia de região que defendia como sendo um espaço que a experiência urbana, do século XX, estaria deteriorando culturalmente e que precisava portanto ser restaurada.

No que se refere a experiência musical do Movimento Armorial, fora necessário escutar os sons vindos do sertão, pois lá ainda seria possível captar sonoridades que já não faziam parte da paisagem sonora do mundo urbano, mundo sonoro que estaria já bastante

209SUASSUNA apud NOGUEIRA, Maria Lopes Aparecida. O cabreiro tresmalhado: Ariano Suassuna e a universalidade da cultura. São Paulo: Palas Athena, 2002, p.30

210Como afirmou o historiador Leonardo Carneiro Ventura: ''Ao passo que o assim chamado tropicalismo representa musicalmente a abertura a novas formas de concepção e linguagem, corolário da imersão do Brasil no cenário pós-moderno mundial, durante a década de 1960; o Armorial propõe, a partir de 1970, o movimento inverso, um refluxo dessa dispersão por outros timbres, outras formas de cantar e tocar. Ariano deseja o reestabelecimento desse mesmo ''cordão umbilical" que liga irremediavelmente, segundo ele, o homem à terra, o cantador ao Nordeste, e este ao Brasil e à própria ideia de brasilidade - cordão imenso que perpassando espaço e tempo, Brasil e Península Ibérica, contemporaneidade e medievo." Em: VENTURA, Leonardo Carneiro. Op. Cit. p.68.

Nesse sentido ver a tese de livre-docência apresentada na UFPE em 1976: SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil: Uma Reflexão sobre a Cultura Brasileira. Tese de livre-docência em História da Cultura Brasileira. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Recife. UFPE, 1976.

153 deteriorado pela profusão de ruídos elétricos, como o som dos automóveis e outras máquinas industriais, como as guitarras elétricas das bandas de rock. Contudo, não bastava que os músicos armoriais reproduzissem estes sons, a pesquisa histórica e musical em questão procurava atualizar esta música modal sertaneja dos tocadores sertanejos, numa leitura erudita destas expressões populares, captando a ligação com tradições poéticas oriundas da Europa Medieval. Para Ariano, o que estava em questão era a busca pelas raízes históricas do que seria a verdadeira musicalidade nordestina e isso passava pela expressão da influência dos sons da cultura musical da Península Ibérica, que aqui teriam se misturado à elementos indígenas e africanos a partir do século XVI.

Essa paisagem sonora que se pretendia ''legitimamente nordestina" foi construída a partir dos timbres da música desenvolvida historicamente no meio rural, pois esta seria a expressão mais profunda e conectada ao passado deste Nordeste anti-moderno e de timbres ásperos, que deveria ser imaginado musicalmente distante de tudo que representasse a experiência de um presente urbano, que ameaçaria essa tal ''autenticidade" vislumbrada por Ariano.211 É sob este impulso que a Orquestra Armorial, do maestro Cussy de Almeida, e o Quinteto Armorial surgiram no cenário musical pernambucano, para inventar a paisagem sonora de um Nordeste que, em grande medida, reagia a toda essa onda de misturas e hibridismos intensificadas no final da década passada pelo momento Tropicália.

A ideia de apresentar ao ouvintes uma musicalidade regionalista ganhava força, na primeira metade da década de 70, através de iniciativas como a da criação do selo de música independente Discos Marcus Pereira, fundado em 1973, que fora criado como uma alternativa frente a um momento em que a música internacional chegava com muito mais facilidade a casa dos brasileiros, devido à expansão da indústria cultural212. Foi através da criação deste selo de música que os álbuns armorias puderam ser lançados em vinil. Do Romance do Galope Nordestino, de 1974, Aralume, de 1976, Quinteto Armorial, de 1978,

211Segundo Leonardo Carneiro Ventura: ''para a análise do Armorial, é necessário reconhecer a existência de uma cultura musical urbana à qual ele se põe definitivamente avesso e contra a qual ele pretende instaurar uma sonoridade dita rural, idílica, mas nem por isso desprovida de tradições culturais pretensamente atribuídas a um passado medieval ibérico, recolhido ao passar dos séculos pelo que seria a sensibilidade artística do povo nordestino. Desse pretendo subsolo cultural nordestino, brotariam as ditas autênticas manifestações artísticas populares, florescendo e embelezando o solo do Brasil, solo esse, manchado pelo que seria a degeneração econômica, visual e sonora advinda com o século XX e a modernização urbana. O rural versus o urbano: embate de sonoridades; embate de espaços." VENTURA, Leonardo Carneiro. Op. Cit. p. 70

212BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos 1973-1984: a explosão da música pop no Brasil. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

154 Sete Flechas, de 1980, todos do Quinteto Armorial e Chamada, de 1975, da Orquestra Armorial, encontraram na iniciativa da Discos Marcus Pereira uma possibilidade de chegar, mesmo que minimamente, ao mercado fonográfico nacional e afirmar uma perspectiva musical voltada para a afirmação de uma música que se pretendia autenticamente brasileira e regional.

Os primeiros três anos de atuação do selo foram dedicados ao lançamento de uma série de coletâneas de ''música popular", de todas as regiões do país, cada uma com quatro volumes. A coletânea Música Popular do Nordeste continha em seus quatro volumes, cirandas, martelos, bois, maracatus, sambas de roda, cocos, emboladas, repentes, marchas e arrasta-pés. A capa destes discos apresentava a foto de um vaqueiro montado em seu cavalo atravessando a vegetação seca, uma imagem que confirmava o imaginário de um Nordeste essencialmente rural e distante da experiência urbana, do ponto de vista musical. Ao se ocuparem em mapear o cancioneiro e os ritmos construídos historicamente, em cada região do país, seus discos representavam um impulso coletivo voltado para a construção de uma memória musical destes espaços, durante a década de 70, partindo, em grande medida, do que já havia sido registrado pelas pesquisas folclóricas anteriores e a paisagem sonora do Nordeste armorial fazia parte deste grande conjunto de experiências ocupadas em delinear as fronteiras de uma tradição musical, que se pretendia tipicamente regional e alheia ao sons contemporâneos.

Estes acontecimentos servem para nos ajudar a pensar de que maneira a música participou da composição imaginária da região Nordeste, ao longo século XX. Penso que ao serem lidas em sua historicidade, estas paisagens sonoras, que a música enuncia em diferentes contextos históricos, nos aproximam das práticas de espaço e dos territórios existenciais compostos em uma dada época, pela ação dos sujeitos, nos pondo em contato com suas linhas de desejo, suas formas de pensar e sentir, que chegam até nós através destas zonas de enunciação que expressam uma concepção espacial através de suas produções musicais213. Nesse sentido, uma história das paisagens sonoras consiste em considerar a música como uma manifestação sintomática e indicativa de experiências que recortam sonoramente uma visagem espacial. Sendo assim, proponho nos tópicos seguintes que

213Segundo Murray Schafer: “resta pouca dúvida, portanto, de que a música é um indicador da época, revelando, para os que sabem como ler suas mensagens sintomáticas, um modo de reordenar acontecimentos sociais e mesmo políticos. SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Unesp, 1997 p. 23

155 consideremos a produção musical da turma do udigrudi pernambucano, entre 1972 e 1976, como expressão de Nordestes Psicodélicos ou de psicodelias nordestinas, que estavam sendo compostos e vivenciados coletivamente através das experimentações artísticas e existenciais de jovens ligados às mudanças comportamentais do desbunde e da contracultura, que se disseminaram na década de 70. Ao que parece, este cenário de experimentação encontrou na dissolução de fronteiras, na fusão de estilos e na colagem entre tradições musicais e novas experimentações uma forma de compor outras paisagens sonoras nordestinas, distantes das pretensões de fechamento identitário.

Orientalismos Nordestinos

Satwa, de Lula Côrtes e Lailson, foi o primeiro disco lançado pelo Selo Solar, em Recife. À época, os jovens artistas estavam com 24 e 21 anos, respectivamente, e haviam se conhecido durante a I Feira Experimental de Música do Nordeste, no final de 1972. Gravado nos estúdios da Rozemblit, em Janeiro de 1973, Satwa teve uma pequena tiragem de 1.000 cópias, que seriam vendidas pelos próprios músicos, de maneira independente, nas feiras hippies, que aconteciam periodicamente nas praças da cidade, ou em lojas de discos de vinil, como as do Mercado São José214.

Segundo Lailson, a ideia de fazer um disco totalmente instrumental, sem nenhuma mensagem falada ou cantada - além das ideias musicais partilhadas entre os dois jovens artistas - partiu do princípio de que seria mais fácil escapar de qualquer impedimento ou problema com os órgãos de censura prévia da Polícia Federal se não houvessem letras cantadas entre os sons215. A censura e a repressão continuavam fortes em Recife. Um dos

214Em 1988 o pesquisador Gil Nuno Vaz publicou um livro chamado '' História da música independente", pela Editora Brasiliense, onde afirma que o termo '' independente" expressa e diz respeito à discos produzidos sem a interferência das relações de poder da indústria fonográfica, ou seja, independente dos diretores de marketing das gravadoras, independente de um produtor musical contratado para formatar o som das bandas, dentre outras coisas que tornam estas criações mais autônomas e liberadas de certos ditames impostos pelo mercado musical que se expandia na década de 70. Apesar disso, o trabalho de Gil Nuno Vaz traz lacunas, uma vez que no corpo de seu texto não aparece as produções do Selo Solar, nem tampouco as do selo Discos Marcus Pereira, que ao lado da série Discos de Bolso, de Sérgio Ricardo, foram as primeiras iniciativas de produção independente na música brasileira. Ver: VAZ, Gil Nuno. História da Música Independente. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

215Em uma passagem do documentário feito pelo jornalista Cristiano Bastos, Lula Côrtes relata que em 1973 estava andando nas ruas de Recife quando foi abordado por um comboio da polícia que o encapuzou e o jogou dentro de uma viatura. Após ser agredido com o carro em movimento, Lula foi deixado no mesmo local, desacordado. In: Nas paredes da pedra encantada. Direção: BASTOS, Cristiano; BONFIM, Leonardo do. Porto Alegre: Monstro Filmes, 2011, 117 min. Na entrevista que realizei com Kátia Mesel, em 2015, ela me contou que seu irmão, Fred Mesel, que também morava na casa Abrakadabra havia passado um mês desaparecido e ao falar sobre as produções do Selo Solar nessa época ela comentou que “ era uma coisa muito espontânea, muito

156 irmãos de Kátia Mesel - que também vivia na casa Abrakadabra - estava desaparecido há cerca de um mês. Lula Côrtes, por sua vez, um certo dia estava andando na rua e foi interceptado por policiais ,que lhe deram uma surra dentro do camburão, e depois o deixaram no mesmo local, só que desacordado. Por esses motivos, antes de nos voltarmos para as paisagens sonoras, que podem ser ouvidas no álbum, é preciso considerar este canto inaudito que é intrínseco às músicas de Satwa, nos diz muito sobre o momento político em que vivia o país, pois é uma marca - mesmo que silenciosa - do ambiente claustrofóbico que um Brasil afetado pelos efeitos nocivos do AI-5 e dos microfascismos cotidianos nas ruas teve que enfrentar, onde muitos artistas tiveram de driblar, de diferentes maneiras, a censura para

216 continuar se expressando através da música.

Basta recordarmos que, neste mesmo ano, o compositor Sérgio Ricardo havia lançado um álbum - logo proibido pelo DOPS de ser executado nas rádios - com sua foto na capa, onde no lugar da sua boca está um vazio branco. Uma boca que estava como que recortada do encarte, retirada da imagem, escancarando essa tentativa, elevada a medida constitucional, de tornar silenciosas essas vozes, cabeças, corpos, mentes que não vibravam em uníssono com os rumos políticos do país. Boca que na canção ''Calabouço" dá voz a um canto indignado:

Do canto da boca escorre

Metade do meu cantar

Cala a boca moço, cala a boca moço

Eis o lixo do meu canto

217 Que é permitido escutar

É evidente que o lugar de fala de Sérgio Ricardo é completamente diferente do lugar de fala de Lula e Lailson, expressando duas maneiras distintas de enunciar-se diante da

legal, muito bonita. E dolorosa também. Porque tinha os amigos que iam sumindo. Iam sendo assassinados, iam sendo torturados. Meu irmão foi preso, torturado[..] pegaram ele e sumiram com ele um mês. " Entrevista ao autor em 14/04/2016 em Recife-PE.

216O historiador Marcos Napolitano comenta, em sua obra, que a música brasileira deste período- sobretudo a dos compositores ligados à sigla da MPB- havia se transformado numa espécie de '' rede de recados" na qual os compositores faziam contorcionismos os mais variados para transmitir suas impressões sobre a vida cotidiana do país ao público que ouvia seus discos e frequentava suas apresentações. De fato, entre os cancionistas prevaleceu esta atitude que, apesar de tudo, não abria mão das palavras e tramava assim uma labiríntica rede de recados em suas composições. Contudo, em Satwa – que inaugura a discografia do udigrudi pernambucano – o silêncio ganha outro contorno.

217Sérgio Ricardo. Calabouço. Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Continental, 1973.

157 situação política de cerceamento. O primeiro, no auge dos seus 41 anos de idade, compositor e cineasta renomado, cantava em protesto ao silenciamento da figura do cantor popular, que já não podia mais comunicar e conscientizar o ouvinte com a mesma liberdade de outrora, através de suas crônicas cotidianas. Cantava de indignação pela morte do estudante secundarista Edson Luís, que fora assassinado pela polícia no Rio de Janeiro, em frente ao restaurante Calabouço, em 1968. Enquanto isso, os jovens pernambucanos, à beira de seus vinte e poucos anos e imersos num universo de experimentações, que era o das vivências comunitárias do desbunde e suas viagens musicais, não eram adeptos do engajamento sério da MPB, não habitavam o mesmo território existencial que Sérgio e outros cantores. Ao invés disso, formavam uma espécie de tribo ou matilha que partilhava e construía experiências entre si, formando um gueto minoritário em sua própria maneira de ser. Vivendo numa cidade bastante conservadora como Recife, onde suas atitudes, compartamentos, hábitos e sua arte

218 os diferiam socialmente no espaço da cidade.

Nesse universo de relações, esse bando de jovens artistas eram os ''loucos, românticos, dançantes, exagerados, psicodélicos e astrais", como foram chamados, nos jornais pernambucanos da época. Mas o silêncio de suas vozes no álbum Satwa - a escolha por evitar a poesia - acabou funcionado como expressão de um silêncio contemplativo, uma espécie de introspecção mística musical, bastante influenciada pelo interesse pelas filosofias orientais, que estavam em voga nas experiências da contracultura. Essa busca da juventude em mergulhar em si, em intuir o mundo ao invés de racionalizá-lo, em expressar uma deriva como alternativa, dava às sabedorias orientais uma nova atualidade nos territórios existenciais do desbunde. Assim, o que se escuta no disco passa pelo delineamento sonoro de momentos de transe interior, de curtição musical entre amigos, sem nenhum comprometimento com mensagens engajadas ou com padrões estéticos definidos pela indústria musical brasileira, o que era raro neste período, em que poucos tinham condições de gravar. Por outro lado, essa liberdade de criação comprometida apenas com sua própria fruição - por ter sido gravada e transformada em disco - sobreviveu ao tempo e acabou marcando a sobrevivência de

218No documentário '' Nas Paredes da Pedra Encantada" sobre o udigrudi pernambucano, o artista plástico Raul Córdula aparece em uma das cenas relembrando suas vivências em meio ao que ele chamou de ''situação psicodélica" que era experimentada coletivamente. Ele nos diz que dada a situação de cerceamento, a deriva emergiu pois ninguém queria parar e a relação com as drogas acabou criando um ambiente que os fazia sentir como que numa ''sociedade secreta" que partilhava hábitos, atitudes e maneiras de ser incomuns entre a maioria dos habitantes da cidade. In: Nas paredes da pedra encantada. Direção: BASTOS, Cristiano; BONFIM, Leonardo do. Porto Alegre: Monstro Filmes, 2011, 117 min.

158 fragmentos deste cenário musical, que nos permitem ouvir as paisagens sonoras de Nordestes minoritários, de Nordestes menores compostos de alumbramentos psicodélicos, que estavam sendo tramados, nos anos setenta, por uma turma de cabeludos219, que intitulavam estes sons 220 com nomes como ''Valsa dos Cogumelos" ou ''Allegro Piradissímo".

O disco de Lula Côrtes e Lailson foi composto com 10 temas instrumentais, que não representam um trabalho erudito de composição ou alguma experiência autointitulada de vanguardista.221 Todas as músicas se fazem entre uma viola de 12 cordas, tocada por Lailson e o tricórdio marroquino que Lula trouxera de sua viagem àquele país. Com muitas improvisações livres e danças entre escalas e harmonias ocidentais e orientais, o disco apresenta sons que remetem às rodas de violão dos hippies da época, mas também ao toque e às polirritmias dos violeiros nordestinos, unidos à ragas indianos, evocados pelo som do tricórdio de Lula. Como consta no próprio encarte do disco, ele fora concebido como relato de uma ''curtição" entre dois artistas, que se reuniram no estúdio para registrar músicas que começaram ser criadas após eles terem se conhecido e se tornado amigos na I Feira Experimental de Música, realizada em 1972, no munícipio de Fazenda Nova, o chamado ''Woodstock cabra da peste".

219Numa matéria para a Revista Rolling Stone, Jorge Mautner afirmou que: ''No mundo todo o cabelo comprido é uma revolução cultural. O paganismo, o desbunde, as novas tribos. Eu andei por aí e vi muita coisa, que entrou em meu cérebro, carne, alma, nervos [...] A polícia é cheia de preconceito contra os cabeludos e assim grande parte da população[...] a hostilidade é também o ódio que as maiorias sempre tem das minorias, somente porque são minorias e diferentes da maioria. A intolerância é a coisa mais triste porque é sempre um mini-fascismo. In: Cabelo. Rolling Stone Brasil. Rio de Janeiro. Fevereiro de 1972 nº1, p.10-11

220''ser cabeludo, neste momento histórico, não é, portanto, apenas fazer opção por uma estética com a qual o sujeito escolhe ornamentar seu corpo. É acima de tudo uma posição de sujeito que oferece tanto prazer quanto riscos. Usar cabelos compridos, no período, significa desinvestir na linha padrão de desejo e investir numa linha de fuga. O cabeludo é alguém que quer empreender uma fuga identitária." Em: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Op. Cit. p.92

221Em artigo intitulado '' O Tao da Contracultura", o escritor Luiz Carlos Maciel, que trabalhando como jornalista nos anos 60 e 70 foi o principal entusiasta da contracultura brasileira, afirmou que: ''A arte da contracultura quis partir também então de uma liberdade total. Não agredir, não enfrentar os cânones da crítica acadêmica ou da estética oficial, dos grandes filósofos, não tem nada disso. Não, não precisa. É à parte. É fazer sua música da maneira como ela brota espontaneamente. É fazer a sua pintura da maneira como ele brota espontaneamente. É fazer sua literatura, seu cinema, seu teatro, etc. Do mesmo jeito. Com liberdade. '' Ah, mas é uma porcaria..." Que importa que seja uma porcaria agora? Deixa fazer! Imagina se essa sociedade prossegue, se desenvolve, floresce. Essa arte também se desenvolve. Sem ter o tacão das normas estéticas nem dos padrões estéticos e nem da autonomia da arte. Não importa considerar teoricamente se a arte é misturada com vida ou não; ela é misturada com a vida. Tudo é misturado com a vida, o que pode ser fora da vida? O que está fora da vida está morto. " In: Maria Isabel Mendes de Almeida e Santuza Cambraia Naves (orgs.) '' Porque Não?" Rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2007, p. 64-75.

159 O estilo underground de produzir arte e tratá-la como uma '' curtição existencial" estava em voga entre a juventude brasileira nas mais variadas linguagens, no início dos anos setenta. Nas fronteiras imaginárias do Nordeste, cidades como Recife e Olinda transformaram-se em espaços onde muitos encontros criativos se processaram, dando vida ao chamado udigrudi pernambucano. Seja com livros de poesia confeccionados artesanalmente, filmes em Super 8, captando frames da vivência cotidiana, teatros de rua experimentais, performances, obras de artes plásticas, música, uma cartografia de novas experiências vinha se desenhando, desde o anos sessenta sob um viés experimentalista, riscando mapas não mais de um Nordeste saudoso, por ter sido o berço da "Civilização do Açúcar", como na perspectiva freyreana, mas sim mapas de uma Recinfernália contracultural e multifacetada, que pulsava em várias direções na cidade, que se desviava dos comportamentos padrões de um sociedade conservadora e estava antenada com as novidades que, no que diz respeito à música, chegavam pelas frequências do rádio, pelas lojas de discos e por alguns festivais que levavam, com frequência, até a cidade cantores com Gilberto Gil, Caetano Veloso, , Secos & Molhados, Novos Baianos, dentre outros.

Recinfernália é o nome de um filme experimental de Jomard Muniz de Britto, lançado em 1975, onde ele apresenta fragmentos da vida urbana de uma Recife cheia de anúncios publicitários, ônibus, carros, multidões cotidianas. Mas também trata-se de uma cidade povoada por sons, ritmos, timbres e misturas musicais que foram cartografadas de maneira poética por Jomard, em um artigo para o Jornal da Cidade, que tratava sobre o momento musical que atravessava Recife, em 1975. Andando por lá podia-se ouvir ''o frevo´n´roll do inquietador Flaviola", bandas e cantores como o Concerto Viola, Tejucupapo Bando, Marcelo Montenegro, Eriberto & Nuca, Aratanha Azul, , Sub-Solo, Som da Terra, Marconi Notaro, Ave Sangria,, Alceu Valença e até mesmo um ''blues seixoso mas pessoensemente lindo de 222 Zé Ramalho".

Jomard, que à época engajava-se como um agitador cultural e entusiasta das expressões artísticas da juventude recifense, também nos fala dos galpões ''do belo e atormentado clã Mesel", que em 1973 havia lançado Satwa, botando para rodar nas vitrolas pernambucanas sons que estavam sendo concebidos por uma turma de cabeludos, que sob o influxo do psicodelismo, do rock progressivo e também da atitude tropicalista, da década

222Confissões im/próprias ou ou ou ou que calor. BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal da Cidade. Recife. 03/08/1975, p. 11

160 passada, gostavam mesmo é de dissolver fronteiras, ao invés de construí-las, e compor misturas entre sons tidos na perspectiva regionalista como ''autenticamente nordestinos" a outros que viriam de '' fora" e que, portanto, estariam além destas fronteiras imaginárias firmadas para a região. No caso de Satwa, essa mistura se dava na ligação entre sons ditos e ouvidos como pertencentes às fronteiras imaginárias do Nordeste à sons ditos como sendo do Oriente, numa clara enunciação sonora da paisagem mental de jovens ligados à contracultura mística da década de 70, que anunciava musicalmente um voltar-se para si mesmo.

Tais experimentações artísticas desta Recinfernália, cartografada por Jomard, da qual Satwa faz parte, colocam o historiador diante de experiências que, intencionalmente ou não, traçavam um rasgo, uma fenda, uma brecha entre as tramas imagéticas, discursivas e sonoras de uma região Nordeste concebida historicamente como um espaço anti-moderno, saudosista, reativo e, no caso da expressão musical, distante das paisagens sonoras urbanas. Nesta mesma época, o Movimento Armorial, capitaneado por Ariano Suassuna, ganhava o estatuto de ''cultura oficial" produzida na cidade, com o suporte institucional do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco, coordenado por ele. A motivação do Movimento, seu projeto de interferência cultural nas artes nordestinas, era justamente buscar definir as raízes culturais da região, o que significava delimitar as fronteiras do que seria a cultura regional, representada em seu entrelaçamento indígena, africano e principalmente ibérico.

Noutro sentido, Lula Côrtes e Lailson faziam parte de um universo de experiências que vinham dando vazão a imagens, discursos, gestos e sonoridades que traçavam paisagens de outros Nordestes possíveis, que estavam sendo compostos não para delimitar fronteiras e inventar tradições saudosas ou doutrinas estéticas que se coadunavam com o contexto político autoritário, mas sim para experimentar curtições, conexões e livre associações entre sonoridades, sem nenhum tipo de purismo face aos elementos culturais que desenvolveram-se historicamente nas fronteiras da região e sem pretenderem alcançar uma certa autoridade através do que enunciam.

O experimentalismo que acompanha o disco que haviam lançado pelo Selo Solar acaba por registrar uma paisagem sonora que evoca o som nordestino dos violeiros, mas sem tratar esse estilo como um dado folclórico a ser preservado ou enclausurado como som essencial da região, como estereotipia sonora, ao contrário disso, a própria condição existencial dos sujeitos que deram vida ao disco prezava pela mistura entre elementos

161 oriundos de regiões distintas e essa miscelânea é o que faz de Satwa um dos primeiros discos de rock feito no Brasil, com influências étnicas de outras regiões do planeta. O dispositivo nacional-popular havia sido rompido definitivamente na produção musical da juventude, em diferentes regiões do país, expressando esse rearranjo de fronteiras nas maneiras de pensar e sentir de sujeitos conectados a dimensão planetária e cósmica da própria existência mundana.

Se tratava mais de celebrar o encontro das diferenças, os timbres do Ocidente com os timbres do Oriente, numa viagem musical de pouco mais de 40 minutos, que fazia do Nordeste não um ponto de chegada ou o resultado final de um trabalho de composição, de invenção. Ao invés disso, o orientalismo nordestino das músicas de Satwa marca uma espécie de ponto de partida, de linha de fuga em direção ao misticismo oriental, que encontra na música sua mais importante zona de ressonâncias, e aí se escuta um Nordeste de experimentações sonoras vividas sob as intensidades do desbunde. Produto de subjetividades errantes e abertas à dimensão planetária de sua presença no mundo, Satwa vai além do regionalismo e sua tentativa de fechamento territorial, pois é fruto de sensibilidades cosmicizadas pela experiência psicodélica dos ácidos lisérgicos e dos cogumelos, onde as composições soam intuitivas, e delas se diz, no encarte, que foram feitas como '' mágica dos dedos e mentes" de seus autores, num tom claro de curtição existencial, de alegria em fazer acontecer um disco que, como muitas outros projetos da época, tinha tudo para não ter 223 sobrevivido ao tempo.

Haviam outros orientalismos nordestinos surgindo neste período. O guitarrista Robertinho do Recife – que tocou guitarra em uma das músicas do álbum224- também havia embarcado nessa viagem musical e mística ao Oriente, criando uma banda que se apresentou duas vezes, uma no evento '' Sete Cantos do Norte", em Olinda, e outra, no auditório da Faculdade de Filosofia do Recife (Fafire), que se chamava Ala D´eli, na qual ele tocava cítara indiana225. Lailson, por sua vez, fazia parte da banda Phetus, ao lado de Paulo Rafael e Zé da Flauta, uma banda de músicas soturnas, que só se apresentava nas madrugadas, bastante influenciada pelo rock progressivo de bandas como Emerson Lake & Palmer, Jethro Tull e Mahavishnu Orchestra, que também traziam em seu sons diversos elementos étnicos.

223Ver: Curtição e esoterismo na marginalidade. SANT´ANNA, Affonso Romano. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 243-252

224Robertinho faz um longo solo de guitarra na música ''Blue do cachorro muito louco".

225Ala D´eli: música mística na Fafire. Jornal do Comércio. Recife. Caderno de Cultura. 30/03/1974, p. 1

162 O fato é que esse encontro entre a música ocidental e as escalas microtonais da música oriental possui um marco importante, que influenciou toda esta geração de jovens, da década de setenta: trata-se do álbum West Meets East, do sitarista Ravi Shankar, em parceria com o violinista americano Menuhim, que foi lançado em 1967, e que abriu os caminhos para a parceria entre Shankar e os Beatles, fazendo com que despontasse e se popularizasse esse encontro sonoro entre os hemisférios, através da popularidade atingida pela banda de rock inglês. Entre uma viola de 12 cordas, uma cítara marroquina e a guitarra de Robertinho, num estilo delirante como o de Hendrix, Satwa desenha uma espécie de viagem psicodélica entre escalas e timbres do Ocidente e do Oriente. Mas essa viagem carrega consigo as marcas sonoras da musicalidade nordestina dos violeiros, pondo-a em conexão com o universo da contracultura.

O que os leva ao Oriente não é a busca pelas raízes históricas da música nordestina - como no caso do Movimento Armorial e suas referências à cultura ibérica dos mouros - mas sim o novo interesse pelas sabedorias orientais e pelo misticismo, que a crítica ao estilo de vida do homem ocidental despertou, entre os anos 60 e 70, em diferentes lugares do mundo, sob os influxos da contracultura. No caso Nordeste não foi diferente e Satwa se configura como uma espécie de aparição sintomática dessa descontinuidade na enunciação da região, pois não se pretendia fechar ou definir as fronteiras de um dado lugar cultural que deveria se opor aos influxos do mundo moderno, ao contrário, o efeito imediato das experiências contraculturais davam origem a paisagens sonoras e poéticas que fazem verdadeiras odes às experiências de desterritorialização, às viagens psicodélicas, às visagens cósmicas, ou seja, às experiências em que momentaneamente os territórios se desfazem em miscelâneas planetárias.

É que Satwa já aponta para um novo momento, que a música brasileira experimentou durante a primeira metade da década de 70, marcado pela emergência de uma enunciação sonora e poética atravessada por uma estética fruto de uma sensibilidade esotérica, psicodélica e mística, que estava se modulando nos corpos e mentes de jovens como Lula Côrtes e Lailson. O próprio nome escolhido para significar a experiência musical, que pode ser escutada no disco, já aponta neste sentido: Satwa, vem do Sânscrito e é uma palavra que pode ser traduzida como sendo a interface, o equilíbrio, a harmonia, entre o corpo material e o corpo espiritual. Para o pensamento oriental, uma existência satívica traz consigo uma maneira de viver e agir semelhante aos próprios anseios da contracultura setentista: não proliferar maus pensamentos, viver de maneira modesta, ocupar-se consigo mesmo, buscar

163 novos conhecimentos para experimentar a vida. Numa entrevista, já nos anos 2000, Lailson disse ter sido este o conceito fundamental que os moveu à fazer este disco: a busca por um equilíbrio harmônico entre o Ocidente e o Oriente, que resultou no que ele chamou de ''terceiro som".226 Busca expressa musicalmente, que acabou dando vida à este terceiro som, onde o que se ouve não é propriamente uma música ocidental unida à uma música oriental, mas sim uma deriva musical psicodélica experimentada, vivenciada por estes jovens artistas, imersos nas transas existenciais da contracultura em Recife.

Levando esta consideração ao campo musical, é possível imaginar de que maneira essa viagem hemisférica ganhou consistência na sonoridade do disco: as escalas tonais e modais pertencentes às paisagens sonoras do mundo ocidental, sejam as escalas do blues e do rock, criadas pelos negros norte-americanos, ou o toque dos violeiros sertanejos, têm em si elementos comuns às escalas pertencentes às paisagens sonoras e sociais do mundo oriental,227 e na psicodelia nordestina de Satwa estas fronteiras imaginárias, que os acentos étnicos nos sugerem, à primeira vista se diluem, momentaneamente, numa experiência musical de livre experimentação, de busca por uma certa liberdade interior, tão cara aos jovens da contracultura, expressando suas vontades mais íntimas, jovens que seguiam criando em meio a um contexto político bastante repressivo. Assim, musicalmente a questão da criação em Satwa não dizia respeito a erigir fronteiras, barreiras, cercas que fechassem a região Nordeste e definissem o que é ou o que não é o regional. Já haviam barreiras em demasia sendo criadas no país, paredes invisíveis que cercavam corpos e mentes dissonantes à ordem do regime político, como afirmou o poeta Waly Sailormoon, à época.

A contracapa do álbum traz uma ilustração de Lailson e Lula como dois seres mágicos, alados, que tocam seus instrumentos, sentados no solo e, ao lado deles, brotam alguns cogumelos. É o solo destes nordestes psicodélicos, em movimento de deriva, de curtições, que foram sendo desenhados e vivenciados entre os anos 60 e 70, a partir das

226Can i be satwa?. Entrevista com Lailson de Holanda. Setembro de 2008. In: http://zuboski.blogspot.com.br/2008/09/can-i-be-satwa.html( Acesso em 19/02/2016)

227Como afirmou José Miguel Wisnik : ''As escalas variam muito de um contexto cultural para outro e mesmo no interior de cada sistema ( os árabes e os indianos, por exemplo, têm um sistema escalar intricado, composto de dezenas de escalas e centenas de derivados escalares). As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam fortemente, ganhando acentos étnicos típicos. Ouvindo certos trechos melódicos, dos quais identificamos não conscientemente o modo escalar, reconhecemos frequentemente um território, uma paisagem sonora, seja ela nordestina, eslava, japonesa, napolitana ou outra." Em: WISNIK, José Miguel. O Som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 71-2

164 experiências de sujeitos afetados por acontecimentos como o festival de Woodstock, as canções de Bob Dylan e os rituais performáticos de figuras como Jimi Hendrix e Carlos Santana, mas também pela literatura visionária dos beatniks e de todo o anarquismo 228 espiritual, que se desenvolveu ao longo dos anos sessenta.

Trata-se também de uma expressão de resistência ao ambiente claustrofóbico da ditadura. Encurralados por um regime político que tornava-se cada vez menos tolerante com a produção musical brasileira – e a música havia sido um intenso campo de batalha política na década passada- estes sujeitos acabaram descobrindo, com as substâncias psicodélicas, caminhos para uma nova forma de experimentar o mundo, onde resistir a ditadura, significava esquivar-se dela, construindo algo que fizesse a própria existência valer a pena, em sua fruição no presente. Satwa faz soar, em suas músicas, um desejo de viver a dimensão cósmica da música, seu poder de criar o transe e a viagem em estados alterados de consciência, busca que aparece no disco como a ligação e harmonização do Oriente com o Ocidente, através da viola de 12 cordas de Lailson, que encarnaria a face ocidental dos sons, enquanto o tricórdio marroquino evocava os acentos étnicos da música árabe e dos ragas 229 indianos.

Nos bastidores do filme ''A Noite do Espantalho"

Em 1973, o músico e cineasta paulista Sérgio Ricardo desembarcou em Recife para por em prática um projeto que já vinha desenvolvendo, desde a década passada: fazer a filmagem do seu longa metragem A Noite do Espantalho, uma espécie de musical trágico, inspirado no imaginário fantástico da literatura de cordel, com um enredo que versava sobre a exploração de um coronel e seus jagunços sob a população de uma pequena cidade do interior do Nordeste.

228Luiz Carlos Maciel chamou de ''anarquia religiosa dos anos 60" esse conjunto de movimentos e transformações nas maneiras de pensar e sentir da juventude, que acabaram dando vida a construção coletiva de um sagrado alternativo, não dogmático, baseado na experiência. Nesse sentido ver: MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60. Porto Alegre. L & PM, 1987.

229De acordo com José Miguel Wisnik: ''como o fundamento da música indiana é a improvisação, que se dá a partir de um demorada sistema de afinações, não só de instrumentos, mas da música com o universo, buscando sua entrada no movimento cíclico, não há temas fixos e prontos, nem partitura. Em vez disso, tem-se um elemento mediador entre a escala e a música improvisada, que se chama '' raga". Raga é um composto melódico, derivado de uma escala e dotado, através de uma codificação exaustiva, de uma cor afetiva ligada à toda uma série de correspondências analógicas." Em: WISNIK, José Miguel. Op. Cit. p.91

165 À época, Sergio já havia construído uma trajetória sólida de agitador cultural e transitava constantemente entre a criação musical e o cinema. Figurinha literalmente '' carimbada" nos relatórios da censura e do DOPS, o resultado final de A Noite do Espantalho estava em vias de ser censurado e sua exibição proibida no Brasil. O filme só escapou do corte porque foi selecionado para o Festival de Cannes, em 1974, como representante do cinema brasileiro na quinzena de realizadores do evento e, pelo visto, o Governo Médici não queria passar a imagem de ''autoritário" para um evento internacionalmente reconhecido 230 como Cannes.

Apesar de possuir uma extensa discografia e alguns filmes, Sérgio costuma ser mais lembrado por uma atitude intempestiva, tomada durante o III Festival Internacional da Canção, da TV Record, de 1967: sentindo-se desrespeitado pela plateia - que o vaiava e criticava, enquanto ele tocava a canção Beto Bom de Bola - Sérgio perdeu a paciência, estraçalhou seu violão e o arremessou numa multidão que ficou atônita.231 Essa figura inquieta também costumava perambular pelo interior do Nordeste para ouvir e registrar em fita cassete um pouco da musicalidade e da poética que era praticada nas ruas e feiras, como as de Caruaru e Campina Grande, por cantadores, violeiros e repentistas. Ele se interessava pela paisagem sonora evocada pela música popular nordestina e, por essas experiências, havia sido o responsável pelas trilhas sonoras de dois filmes fundamentais do Cinema Novo, ambos realizados pelo cineasta baiano : Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, e Terra em Transe, de 1967.

Mas agora Sérgio estava na capital pernambucana, pois havia escolhido a cidade cenográfica de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova, como locação para as filmagens. Para gravar este filme, que encenava uma espécie de tragédia sertaneja, ele levou consigo dois compositores que haviam saído de Recife, anos atrás, e à época estavam tentando a vida como músicos no interior das engrenagens da disputada indústria cultural do eixo Rio - São Paulo: eram os jovens Geraldo Azevedo e Alceu Valença, que iriam atuar pela primeira vez para as câmeras de cinema.

230Recentemente a equipe do filme "Aquarius", do diretor Kleber Mendonça Filho, que concorria à Palma de Ouro em Cannes, fez um protesto coletivo, levantando cartazes, afirmando que estava havendo um golpe antidemocrático no Brasil. Uma série de boicotes se sucederam por parte do poder institucional, que não soube deglutir o embaraço causado pela situação.

231A ''performance tragicômica" de Sérgio no Festival de 1967 pode ser vista no link: https://www.youtube.com/watch?v=VN7hQgfxt2A&t=299s ( Acesso em 23/12/2016)

166 Em 1972, eles haviam lançado um primeiro álbum em parceria, gravado nos estúdios da gravadora Copacabana. O disco contou com uma série de arranjos orquestrados pelo maestro tropicalista Rogério Duprat e, apesar da pouca divulgação que obteve, foi bem recebido pela crítica, que acompanhava a produção de novos artistas, que surgiam nesse período que ficou conhecido como '' pós-tropicalista"232. As músicas de Alceu e Geraldo uniam ritmos que ecoavam nas fronteiras do Nordeste como cocos, xotes, maracatus e xaxados à arranjos dissonantes de orquestra e à uma poética que enunciava o lugar de fala de dois jovens nordestinos, justapondo suas vivências e memórias do interior nordestino e da música que ecoava por lá às suas percepções do ritmo pulsante e acelerado de um mundo urbano, que também fazia parte do cotidiano de quem vivia nas grandes cidades nordestinas. Através da repercussão desse disco, os músicos acabaram conhecendo Sérgio e retornaram à Recife para gravar o filme, que lhes faria mergulhar no universo sonoro que estava sendo construído através da turma psicodélica do udigrudi, que eles ainda não conheciam muito bem.

O personagem de Alceu era o próprio espantalho, que dava título ao filme, com seus cabelos longos e voz imponente o jovem cantor deu vida a um espantalho de personalidade rebelde e performática, representação de uma figura singular que habitava a cidade, um personagem as vezes enlouquecido, que começava o filme cantando à seus conterrâneos um causo sobre os desmandos de um tal Coronel Fragoso, personagem que na trama encarna as atitudes conservadoras das elites agrárias:

Quem quiser que venha ver meus causo Que eu conto com satisfação pra clarear as cabeças De bom pensar Sobre o acontecido em Cajazeira Lá onde um coronel diz que é bom que só Deus Porque dá metade pra quem planta E cuida do seu gado Quem quiser que venha ver Se está tudo certo ou errado No meu causo acontecido Se gostar que faça uso e bom proveito

232O cartunista , por exemplo, em suas tirinhas publicadas no Pasquim, publicou em 1972 as ''Discas do Henfil", onde divulgava alguns lançamentos de música brasileira. Sobre o álbum de Alceu e Geraldo ele escreveu com humor que '' na base do violão, viola e às vezes tosse, com arranjos de Duprat, entraram na linha de invenções rítmicas que Gil e Caetano tão fazendo! Tem alterações de voz, sim!” e por fim afirmava: “disco ideal pra escutar em tempo instável com fritas e arroz. Tem xote, frevo , baião-rock, xaxado. Tem violão meio hindu que levanta cobra...". In: Discas do Henfil. O Pasquim. Rio de Janeiro. nº 173-VIII. 24 a 30/01/1972.

167 Se não gostar 233 Continue deixando tudo esquecido

É possível perceber, nesta passagem cantada pelo espantalho, interpretado por Alceu Valença, que o filme de Sérgio Ricardo partilhava um lugar de fala comum aos intelectuais de esquerda de sua época que, como bem formulou o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em sua tese, tendiam a propor em suas artes uma espécie de ''inversão do Nordeste", não mais representado como o espaço da saudade das glórias canavieiras e agrárias das famílias tradicionais, como o fora desde a ótica regionalista e tradicionalista, mas sim como um espaço de revoltas e potencialmente revolucionário. Espaço que no filme de Sérgio é encarnado pela figura mitológica de um espantalho que, ao cantar, procurava elucidar a gente de sua terra, para clarear as cabeças de bom pensar, para lhes mostrar uma outra imagem sobre o causo acontecido ''lá nas banda de Cajazeira, onde um Coronel diz que 234 é dono de tudo".

Seguindo a tendência alegórica e simbólica, aberta por Glauber Rocha, o filme de Sérgio Ricardo tratava de um tema real – a exploração da população sertaneja por grupos familiares – contudo, a montagem não tinha uma pretensão realista. Ao invés disso, o autor optou por transportar elementos do imaginário popular, que era desenvolvido no universo do cordel, para os cenários e figurinos do filme e, assim, acabou criando uma atmosfera surrealista, um sertão mitológico cheio de cores cintilantes e elementos inexistentes no mundo concreto – como motocicletas com asas - instituindo imagens de um sertão

233Alceu Valença e Sérgio Ricardo. Canção do espantalho. A noite do espantalho. Rio de Janeiro: Continental, 1974.

234Eu diria que o filme “A Noite do Espantalho” participa desta mesma constelação de expressões artísticas mapeadas e analisadas por Durval Muniz de Albuquerque Jr, no capítulo ''Territórios da Revolta", do seu livro A invenção do Nordeste e outras artes, onde ele afirma que: ''Os romances de Graciliano Ramos e , da década de trinta, a poesia de João Cabral de Melo Neto, a pintura de caráter social, da década de quarenta, e o Cinema Novo, do final dos anos cinquenta e inicio dos anos sessenta, tomarão o Nordeste como o exemplo privilegiado, da fome, do atraso, do subdesenvolvimento, da alienação do país. Tomando acriticamente o recorte espacial Nordeste, esta produção artística ''de esquerda" termina por reforçar uma série de imagens e enunciados ligados à região que emergiram com o discurso da seca, já no final do século passado. Vindo ao encontro, em grande parte, da imagem de espaço-vítima, espoliado; espaço da carência, construído pelo discurso de suas oligarquias. Eles lançam mão de uma verdadeira mitologia do Nordeste, já fabricada pelos discursos anteriores, e a submete a uma leitura '' marxista" que a inverte de sentido, mantendo-a, no entanto, presa à mesma lógica e questões. Do Nordeste pelo direito, passamos a vê-lo pelo avesso, em que as mesmas imagens compõem o tecido, só que, no avesso, aparecem seus nós, seus cortes, suas emendas, seu rosto menos arrumado, embora constituinte da própria invenção imagético-discursiva chamada Nordeste". ALBUQUERQUE JR, Duval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez Editora, 2009. 4ª ed, p. 216-7

168 atravessado por uma dimensão fantástica e onírica, o que também foi uma estratégia estética que, de maneira simbólica, fazia referência ao contexto político da década de 70.

Para dar vida a estes figurinos e cenários alegóricos, a produção do filme acabou entrando em contato com a casa Abrakadabra de Kária Mesel e Lula Côrtes e ambos ficaram responsáveis pela criação destes elementos cênicos. Kátia desenhando toda a parte de figurinos e Lula projetando os cenários de A Noite do Espantalho. Nessa época, Zé Ramalho já estava vivendo mais em Recife do que em João Pessoa e costumava passar boa parte de seu tempo na Abrakadabra. Assim, a cidade cenográfica de Fazenda Nova tornava-se, mais uma vez, uma zona temporária para encontros musicais, como havia sido em 1972, com a I Feira Experimental de Música do Nordeste.

Isso porque os três meses voltados para a produção do filme acabaram pondo em contato Lula, Alceu, Geraldo e Zé, todos jovens músicos nordestinos, que seguiam linhas semelhantes de experimentação sonora e poética, amalgamando elementos tidos como tradicionalmente regionais às sonoridades e temáticas oriundas da experiência urbana, que lhes era inerente, através da cultura pop e da própria vivência que lhes constituiu enquanto 235 sujeitos, que viviam entre as pulsações do ambiente rural e a velocidade da vida urbana.

O encontro foi fundamental para trazer novos influxos ao momento musical que vinha acontecendo pela cidade de Recife - o udigrudi da Pernambucália - como foi nomeado pelo pesquisador José Carlos Luna, em sua dissertação de mestrado236. Geraldo e Alceu acabaram participando das sessões de gravação do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, no ano seguinte, cantando aboios, tocando violão e fazendo experimentações sonoras em algumas músicas. Através desse encontro inesperado no set de filmagem, Alceu entrava em contato com a musicalidade que vinha sendo gestada, entre toda uma variedade de sujeitos ligados à contracultura e ao desbunde em Recife, como Lula, Lailson, Cátia de França, Zé Ramalho, além da banda Ave Sangria, que era o grupo mais popular entre os rockeiros do Nordeste à época, fazendo um som que unia com maestria riffs de guitarra, apresentações performáticas e letras que transgrediam os comportamentos padrões ao baião que havia se

235Todos haviam nascidos em cidades do interior e transitavam constantemente pelo ambiente rural, apesar de viverem nos centros urbanos. Zé viveu sua infância entre as cidade paraibanas de Brejo do Cruz e Campina Grande. Alceu viveu vários anos no pequeno município de São Bento do Una, próximo à Recife. Geraldo, por sua vez, se criou à beira do Rio São Francisco, em Petrolina.

236LUNA, José Carlos de O. O udigrudi da pernambucália: história e música no Recife ( 1968-1976). Dissertação de Mestrado em História. Recife. UFPE, 2010.

169 instituído simbolicamente com um dos mais conhecidos gêneros referentes à música do Nordeste, a partir dos anos cinquenta, com Luiz Gonzaga. Não é a toa que em 1975, ao apresentar-se no Festival Abertura, da Rede Globo, a banda de Alceu era toda composta pelos jovens músicos do udigrudi, que foram ao Rio de Janeiro para apresentar a canção ''Vou Danado pra Catende", premiada no Festival na categoria '' pesquisa musical".

Alceu Valença, porta voz da incoerência

Alceu Valença, nasceu em 1946, na pequena cidade de São Bento do Una, no interior pernambucano. Seu avô tocava viola e sua infância foi marcada pela presença dos cantadores no alpendre da casa dos avós. Além disso, a radiodifusão levava até o município de São Bento o rock dançante de Elvis Presley e Little Richard, dois ícones da música norte- americana, da década de cinquenta. Nos anos setenta, Alceu era mais um desses músicos que estavam compondo coletivamente um novo regime de audibilidade da região Nordeste, através de suas composições. Nessas experimentações musicais os sotaques, ritmos e timbres tradicionalmente relacionados às fronteiras da região estavam se amalgamando aos sons vindos de fora pelas frequências do rádio. Em Recife, entre 1972 e 1976, essas misturas se davam principalmente na sonoridade dos jovens músicos que faziam parte da geração psicodélica, desbundada e rockeira do udigrudi, com os quais Alceu viria a trabalhar conjuntamente.

Mesmo não sendo propriamente alguém imerso no universo das experiências existenciais da contracultura, a linguagem musical dos álbuns de Alceu e sua atitude performática no palco acabou sendo afetada pelas fusões entre os ritmos e sonoridades tidas como nordestinas com a atitude rockeira que se processava entre os jovens músicos de Recife. Havia algo que unia a vivência musical destes sujeitos, e isso pode ser escutado, sobretudo, nos três discos que lançou entre 1974 e 1977, ao lado de muitos desses músicos, dentre eles Paulo Rafael, Ivinho, Zé da Flauta, Zé Ramalho, Lula Côrtes, Agricio Noya, Israel Semente Proibida, dentre outros, que juntos ajudaram a compor uma sonoridade que ficou conhecida no trabalho de Alceu Valença como Forrock.

Mas, no livro Do Frevo ao Mangueat, escrito pelo jornalista pernambucano José Teles há uma passagem interessante sobre a ambiguidade que existia, à época, em torno da figura de Alceu, que no livro em questão foi entrevistado e falou sobre suas idas à Recife e como ele era percebido no campo cultural da cidade, num exercício de rememoração que evidentemente comporta sua perspectiva para os fatos. Ele diz que quando chegava de volta à

170 Recife, nos anos setenta, sentia até vergonha por não estar tão conectado com o que vinha acontecendo e por conta disso sua fala acaba enunciando uma imagem ambígua em relação a si próprio no cenário cultural pernambucano. Diz Alceu:

Ia para uns shows; o de Licá, achei do cacete; Flaviola, também, só que ninguém me convidava pra participar. Nunca fui de movimentos, nem de grupinhos. As pessoas do Recife sempre me olharam com o maior preconceito. Os tradicionalistas sempre me viram como um doido, o maluco, toxicômano. No outro

237 lado, os doidões sempre me consideraram careta.

Seja careta ou maluco, dependendo do ponto de vista, é claro, o que importa é que Alceu prestou atenção às colagens e fusões que eram feitas pela turma do udigrudi, nas apresentações que aconteciam em Recife e Olinda. Em 1973, por exemplo, Alceu assistiu Lailson apresentar a música "Alagoas", uma composição feita com Paulo Raphael, onde Lailson unia um repente composto por ele a um riff de guitarra com a melodia da música ''Joazeiro" de Luiz Ganzaga. Contudo, no livro de José Teles, Alceu, em sua narrativa, se enuncia como uma espécie de ''inventor oficial" dessa mistura que ficou conhecida popularmente como forrock:

Quando eu quis fazer fusão de rock com baião eu fiz. Modéstia à parte fui o primeiro. ''Alagoas" era uma música de Lailson, do cacete, mas eles faziam na gozação. Gozavam o baião, gozavam o samba. 238 Uma atitude meio tropicalista com relação à cultura da gente.

Neste relato, provavelmente do final dos anos noventa, Alceu mostra a sua face '' careta", duas vezes. Em sua fala, acaba transbordando uma imagem sua que já havia sido projetada na canção ''Agalopado", em seu LP de 1977, quando cantava – ao som de um forrock – ''pois eu sou um porta-voz da incoerência" . Primeiramente, ele se considera como o primeiro a fundir baião com rock pelo simples fato de que o que havia sido feito antes dele o fora em tom de curtição, de gozação em relação à ''cultura da gente" e que, portanto, esta experiência de outrem não contava muito na sua versão do passado para a escrita deste livro, que foi o primeiro a documentar e publicar este momento musical vivido em Recife, nos anos 70.

237TELES, José. Do Frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 189

238TELES, José. Op. Cit. p. 189

171 Em segundo lugar, ele pretende se enunciar como compositor sério, comprometido com a ''cultura da gente" , do Nordeste, e distante desta atitude '' meio tropicalista" de gozar o baião, gozar o samba. Sua maneira de se expressar, ao rememorar esta época,a parece desejar traçar uma linha de fronteira, deixando de lado o que seria ''curtição", ou seja, o que seria uma espontaneidade despretensiosa, um gesto livre, nômade, uma viagem sonora, com influências tropicalistas, que passou a ser percebida como a expressão até mesmo de algo inadequado a se fazer, com o que ele chama de ''cultura da gente", nesse caso o baião.

Problematizando relatos desta natureza, fica fácil entender essa ambiguidade que sua presença e sua relação com a música provocava, ele até parecia maluco para tradicionalistas, como Ariano Suassuna, Gilberto Freyre e outros. Seu estilo de cantar, suas performances, seus cabelos compridos, sua poética de delírios estilhaçados davam a impressão de que ele era um tresloucado. Mas entre os cabeludos do udigrudi ele ainda era visto como uma ''Madre Superiora" do ponto de vista existencial, como o chamou Zé Ramalho, durante a temporada que tocou como músico da banda de Alceu no Rio de Janeiro.

É que as palavras possuem espessura histórica; '' gozar" é sentir prazer, desfrutar, alegrar-se no ato mesmo da fruição de uma atitude. Misturar o baião com rock só por gozação, para se divertir mesmo, foi o que Lailson fez, em 1973, no palco do Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães e era o que a banda Ave Sangria também fazia ao fazer suas festas chamadas “Fora da Paisagem", ''Perfumes & Baratchos", ''Concerto Marginal", seja na elegância do Teatro Santa Isabel ou no underground do Beco do Barato.

Ao que parece, Alceu passou a tratar como secundária esse tipo de experiência e essa crença no valor superior de uma arte que seria mais ''séria" que outra me soa como uma baita caretice, considerando essa perspectiva, essa maneira de fazer música, que atravessava a turma do udigrudi pernambucano, que literalmente fazia das paisagens sonoras e poéticas que eram criadas a manifestação de curtições sonoras psicodélicas traçadas à base de fusões livres, de miscelâneas distantes da necessidade de erigir fronteiras e mais próximos à experiência de dissolver, de transbordar, de desterrritorializar a ideia de um dentro e um fora a ser preservado, de “coisas da gente”. Como aparece escrito no encarte de Satwa, o LP foi ''curtido" e não '' “gravado", nos estúdios da Rozemblit, no início de 1973.

Apesar disso, Alceu Valença soube se conectar ao pessoal que vinha agitando o cenário musical da cidade, nos anos setenta, e criou parcerias com alguns deles. Portanto, suas músicas participam da composição da paisagem sonora de Nordestes de tons

172 psicodélicos, de miscelâneas entre sons e timbres reconhecidos como pertencentes às fronteiras da região com outros que vinham de fora, do que costumava representar a música nordestina.

Se prestarmos atenção ao movimento que se desenrola a partir da sua maneira de cantar, iremos perceber que se faz uma referência às canções de trabalho, entoadas outrora na vida cotidiana das pessoas que trabalhavam lidando com a terra, nas paisagens rurais nordestinas. As chamadas cantigas de adjunto, ou toadas, são cantorias que não respeitam o tempo dos compassos musicais, sua melodia está sujeita ao ritmo do próprio fazer do corpo que a entoa, ou seja, é um canto que nunca está definitivamente dentro do tempo, mas sempre entrando e saindo de sua estrutura, fazendo o tempo passar, assim como o faz o sertanejo enquanto trabalha. Alceu passa a dar voz, em suas músicas, a esse elemento constituinte da historicidade do ambiente sonoro do Nordeste rural – as toadas, as cantigas de ajunto, os aboios - e ao fazer isso reconfigura essas melodias, que passam a ser entoadas desde um ambiente sonoro e existencial completamente diferente, criando paisagens sonoras onde o rural já soa atravessado pelos influxos de uma experiência urbana, muitas vezes caótica.

Em 1974, Alceu seguia tentando afirmar seu trabalho no eixo da indústria cultural da região Sul, nessa época ele lançou seu segundo disco chamado '' Molhado de Suor", trabalho que foi realizado em conexão com diversos artistas do udigrudi pernambucano. Segundo o compositor de São Bento do Una, sua busca era pelos timbres mouriscos que atravessavam historicamente a paisagem sonora constituída nas fronteiras do Nordeste, principalmente nas regiões sertanejas. Para evocar esse universo musical, ele valeu-se do timbre de bandolins, violas e também do tricórdio de Lula Côrtes, que foram justapostos à uma sonoridade que possuía uma atitude rockeira, atravessada pelo canto de longos aboios e cantigas de adjunto, nisso que ele nomeou à época de uma ''transa moura-cigana".

Em 1975, a Rede Globo promoveu o Festival Abertura, evento organizado à moda dos festivais da década passada e que tinha por objetivo popularizar o trabalho de novos compositores brasileiros, que concorriam com suas canções diante do público e de um júri especializado. Além de certa projeção midiática que uma ida a TV possibilitava e uma premiação em dinheiro para os três primeiros colocados, o festival funcionava como uma ferramenta que, ao prestigiar um determinado artista, poderia contribuir para a consolidação de sua carreira, isso durante uma década de 70 cada vez mais fechada para novos artistas, no

173 estreito rol das grandes gravadoras, que atuavam no eixo Rio-São Paulo, distribuindo pelas frequências radiofônicas e pelas lojas de discos o que seria ouvido no restante do país.

Ao todo foram 8.643 compositores inscritos e destes, 40 foram selecionados para a programação do Abertura, dentre eles 31 completamente desconhecidos a nível nacional.239 O evento foi incrementado com a presença de nomes já consagrados como Caetano Veloso, , Tim Maia, Quarteto em Cy, que não estavam concorrendo mas se apresentariam ao fim das etapas eliminatórias de cada semana. Em Recife, o Jornal da Cidade noticiava, em 12 de Janeiro, que três músicas selecionadas eram de pernambucanos ou de sujeitos que por lá viveram e iniciaram suas produções artísticas: Luiz Diniz, Ademir Tenório e Walter Silva com a canção ''Bananeira", Tiago Araripe com "Drácula" e Alceu Valença com a canção ''Vou Danado pra Catende".

Alceu chegou na finalíssima do Festival Abertura. Jorge Mautner, e Walter Franco eram os outros finalistas. Ele estava acompanhado por um verdadeiro bando de nove músicos, vindos de Pernambuco, que chegaram ao Rio para participar da última noite do festival. Alceu já havia lançado dois discos, mas ainda era pouco conhecido. O primeiro foi em 1972, ao lado de Geraldo Azevedo, com arranjos orquestrados pelo maestro Rogério Duprat. Depois, em 1974, Alceu lançou ''Molhado de Suor'', disco que também não obteve grande repercussão, deixando-o em situação difícil e em dúvida sobre se deveria parar ou continuar com suas investidas na música.240 O fato é que em 1975 Alceu continuava na busca de mostrar seu trabalho a nível nacional e dessa vez, estando em Recife já há algum tempo, optou por conectar-se aos músicos imersos no udigrudi pernambucano, que estava acontecendo desde 1972. Estavam ao seu lado Lula Côrtes, Zé Ramalho, Ivinho, Israel Semente Proibida, Paulo Raphael, Dicinho, Agricio Noya e Zé da Flauta.

Quando - nestes festivais feitos pela Rede Globo - algo soa estranho demais aos ouvidos do júri, mas a coisa aparenta ser bem feita e possuir uma coerência interna, inventa- se logo uma categoria chamada ''pesquisa musical", para premiar um trabalho de tal tipo. Parece esquisito, mas foi exatamente isso que o júri fez ao fim do festival de 1975, após a

239Uma Abertura Musical?. Jornal da Cidade. Recife.12/01/1975, p.15

240Em entrevista dada ao jornalista José Teles ele comentou que à época a situação estava tão difícil que chegou a pensar em largar tudo e voltar para São Bento do Uma para criar galinhas. In: TELES, José. Do Frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000.

174 apresentação de Alceu e banda com a canção ''Vou danado pra Catende". A parafernália sonora ia de elementos tidos como tradicionais da música nordestina, como a flauta, a viola sertaneja, o ganzá, as percussões, misturados ao peso rockeiro das guitarras elétricas e do contrabaixo, o violão de 12 cordas, além do timbre oriental do tricórdio de Lula Côrtes.

Uma ida rápida ao youtube nos permite assistir essa inusitada apresentação, talvez a primeira e única aparição em rede nacional de algo relacionado à sonoridade destes Nordestes Psicodélicos, de fusões que era experimentadas na década de 70. A música chega aos ouvidos como um galope veloz de cavalo desembestado no meio do sertão, a pancada do ganzá e o som da viola remetem aos timbres escutados no interior nordestino, nas regiões sertanejas, mas ao ser executado o riff de guitarra, tocado por Ivinho, já somos transportados para o universo rockeiro do mundo urbano. É sob essa tensão dialética entre o mundo rural e o urbano que a paisagem sonora e poética da canção se constrói. O texto, por sua vez, é uma montagem da composição de Alceu unida à fragmentos do poema ''Trem das Alagoas", escrito pelo poeta Ascenso Ferreira e nela se ouve:

Tudo corre tão depressa

Se você tropeça não vai levantar As

motocicletas se movimentando Os

dedos da moça datilografando

Numa engrenagem de pernas pro ar

Eu quero um trem

Eu preciso de um trem

Eu vou danado pra Catende

Eu vou danado pra Catende

241 Com vontade de chegar

Tanto a atitude sonora quanto poética nos remete àquilo que Walter Benjamin nomeou como uma imagem dialética, ou seja, uma imagem que é tensionada por um movimento anacrônico fundante entre um outrora e um agora. Voltar para a mata verdinha de Catende, mas de trem, maquinando esse desejo de retorno no interior de uma engrenagem moderna. A velocidade do mundo urbano é acionada em diferentes cenas mas o que se deseja de fato é

241Alceu Valença. Vou danado pra catende. Molhado de Suor. Rio de Janeiro: Som Livre, 1974.

175 um trem que leve de volta à cidade de interior, ao rural. É sob este paradoxo que a poesia se desdobra e também a sonoridade da música. Essa interpenetração pode ser compreendida como índice da dissolução de fronteiras inerentes à experimentação estética destes Nordestes Psicodélicos, que toda essa turma de músicos vinham experimentando musicalmente, a partir das transformações culturais, vividas na década de 70. Lula Côrtes e Zé Ramalho da Paraíba faziam a linha de frente com Alceu e no vídeo estão vestidos com roupas coloridas, cheios de penduricalhos, botas de couro, cabelos e barbas longas, que os fizeram logo ser chamados de

242 ''jagunços hippies", nos jornais do Sul do país.

Desmantelos no sub-reino dos metazoários Marconi Notaro nasceu na cidade de Garanhuns e estava com 24 anos de idade, em 1973. Ele e outras 18 pessoas viviam numa comunidade hippie próxima à Recife chamada “Aldeia". Antes de viver lá, já havia morado em outra comunidade, uma granja chamada “Sítio Ação", que ficava no município de Camaragibe. Estando imerso nestas experiências comunitárias típicas do momento contracultural243, Notaro já havia escrito seus primeiros três livros e estava escrevendo um próximo, que se chamaria ''Fungus". Provavelmente ele não era nenhum cientista especialista em Micologia, então é mais provável que o título da obra se devesse ao fato do rapaz ter sido mais um simpatizante do consumo de cogumelos alucinógenos, que podiam ser encontrados nos pastos da Zona da Mata pernambucana. Destas experimentações em estados alterados de consciência, iam brotando invenções poéticas, musicais e literárias na cabeça deste sujeito, que ajudou a dar vida a estas psicodelias nordestinas, que estavam sendo vivenciadas em plena ditadura, como territórios existenciais agenciado coletivamente. Estes Nordestes Psicodélicos, expressos musicalmente, eram mais um destes territórios existenciais coletivos que funcionaram como espécies de ''respiradouros" - expressão utilizada à época pelo poeta carioca Wally Salomão - da contracultura brasileira, diante do ambiente repressivo e conservador do período.

Apesar de Marconi possuir uma forte relação com a escrita, não consegui encontrar nenhuma de suas publicações dos anos 70 e também não foi possível saber se o livro

242Link para assistir esta apresentação de 1975 no Festival Abertura da TV Globo : https://www.youtube.com/watch?v=rnc84s-i3ew( Acesso em 20/03/2017)

243Sobre a relação entre poesia, delírio e vida comunitária na perspectiva da contracultura brasileira, da década de 70, ver o livro organizado por Sérgio Cohn sobre o coletivo artístico: Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. COHN, Sérgio (org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.

176 “Fungus" chegou a ser devidamente lançado ou distribuído, pelo menos, localmente. Apenas seu título aparece na única entrevista dada por Marconi que encontrei durante a pesquisa. O Jornal da Cidade - ao dedicar uma de suas edições ao mapeamento do cenário musical recifense - inseriu em suas páginas as palavras desse poeta e pesquisador da música pernambucana, que havia lançado, há pouco tempo, seu primeiro e único disco, através do Selo Solar e da produtora Abrakadabra. Era o multifacetado e experimental No sub reino dos metazoários, álbum que sucedeu Satwa, na breve discografia do Selo Solar, e também ganhou as ruas recifenses no mesmo ano de 1973.

A imagem de Marconi, no centro do encarte, é acompanhada por um desenho feito por seu amigo Lula Côrtes, que também participou das gravações do álbum, nos estúdios da Rozemblit e da TV Universitária. Ao lado de seis peixes, um caramujo, uma concha do mar e um enorme caranguejo, abaixo de sua cabeça, a capa anuncia a imagem de um sujeito compenetrado e literalmente imerso em um universo subaquático, numa paisagem distante da superfície, no underground, próximo à seres que lançam linhas ao redor do rosto deste jovem cantor que havia passado, praticamente, todo o ano de 1971 impedido de se apresentar na cidade pela censura.

Isso porque, Marconi era uma figura cativa nas apresentações musicais que aconteciam, desde os anos 60, no Teatro Popular do Nordeste – polo de agitação político- cultural que reunia artistas e intelectuais de esquerda, desde a década de cinquenta, no centro

177 de Recife- e suas performances eram conhecidas pelo teor crítico das canções de protesto e inconformismo que costumava apresentar. O que em nada se harmonizava com o silêncio e a ordem que se desejava impor durante os ''anos de chumbo", na capital pernambucana, e isso acabou lhe acarretando este impedimento que, de certo modo, o fazia cada vez mais mergulhar nas vivências comunitárias afastadas das turbulências urbanas e da repressão 244 cotidiana.

É bem possível que Marconi estivesse entre a turma de cabeludos que se reuniu na I Feira Experimental de Música do Nordeste, no município de Fazenda Nova, no ano de 1972. O samba ''Desmantelado" - música que abre seu disco - já era uma canção bem conhecida entre a turma do udigrudi, com seu refrão em tom de gozação, que anunciava a importância de ''Aproveitar a vida" e "Nunca ficar parado". E viver e movimentar-se era de fato uma urgência existencial, já que até se apresentar nos palcos havia se tornado algo complicado na vida de Marconi e muitos outros artistas, por conta da '' ditacuja"245. Se o autor fazia jus à sua letra, não haveria motivos para não ter migrado temporariamente para o munícipio de Fazenda Nova, para aproveitar este que foi o primeiro grande encontro musical desta geração.

Apesar de ser um dos artistas mais obscuros do período, do qual temos poucas informações à respeito, Marconi possuía uma ousadia que ia além de suas composições e do estilo de vida hippie, que adotara para si. Vez por outra saía do seu imaginário ''sub reino dos metazoários", no sítio em que vivia, para agenciar formas de expandir estas vivências na cidade, forjando heterotópicos espaços de curtição. Mesmo enunciando-se na música ''Antropológica nº 1" como ''um primata só pirata, sem pretensão nesse mundo", em 1974, ele conseguiu apoio da Secretaria de Turismo de Olinda para realizar um grande evento que se chamaria ''Concerto Chaminé". No palco estariam presentes várias bandas e artistas locais, como: Ave Sangria, Cães Mortos, Sombra e Águas Frescas, Liká´s, Andrômeda, Don Troncho, Grupo Mão de Obra, Lailson, Paco, Crucifixo, Don Regueira, Grupo Eva, Porta 246 Larga, Creme Mágico, Grupo Capuz, Zé Ramalho, Meninos de Deus, dentre outros.

244LUNA, João Carlos de Oliveira. Op. Cit. p. 133

245Referência a uma obra coletiva acionada por Raul Córdula que se chamava ''No país da Saudade", nela Jomard Muniz de Britto, com claro cunho político, dizia em fragmento da obra ''Abaixo à ditacuja". Material catalogado no acervo da Exposição Pernambuco Experimental, no Museu de Arte do Rio em Janeiro, em 2014.

246Concerto Chaminé. Jornal do Comércio. Recife. 18 de Agosto de 1974, Caderno IV, p.7.

178 Segundo o cantor e poeta Marco Polo, da banda Ave Sangria, a expressão '' chaminé" fazia uma referência direta à ''nuvem de fumaça" que acabaria se formando quando todo o público estivesse presente no local – cerca de 5 mil pessoas eram esperadas - pois grande parte dessa turma acabaria tirando do seus bolsos e mochilas cigarros de maconha para confraternizar nas chamadas ''rodas de fumo", hábito comum entre àqueles que viviam o desbunde, ainda mais em Pernambuco, onde no sertão haviam várias plantações de fumo, no 247 recorte espacial que ficou conhecido como '' Polígono da Maconha".

Marconi sabia que Olinda era uma cidade com presença bem menos ostensiva do Exército e da Polícia Militar do que Recife, mas no Código Penal vigente, desde 1971,248 não havia distinção clara entre usuários e traficantes de maconha, além do que qualquer denúncia de “consumo de drogas" poderia ser acatada sem a necessidade de laudos toxicológicos, o que poderia levar à reclusão àquele que fosse visto fumando ou portando maconha nas ruas. Ainda assim, um clima de certa liberdade existencial e artística havia se consolidado neste período em Olinda, onde seria realizado o ''Concerto Chaminé". A entrevista que Zé Ramalho concedeu ao jornalista José Teles para o livro Do Frevo ao Manguebeat confirma este imaginário sobre a antiga capital pernambucana, que no período virou um espaço de grande curtição: ir para Olinda, que vivia uma época muito mágica, cheia de pintores pelas ruas, 249 gente que depois ficou famosa, umas até fumando um baseado, mas sem repressão.

É bem provável que ''estes pintores", citados genericamente por Zé Ramalho, fossem figuras como Raul Córdula, Montez Magno, Ypiranga Filho, Janete Costa, Tiago Amorim, dentre outros que estavam ocupando espaços na cidade com suas galerias de arte. Tiago também realizou outro grande evento musical, no mesmo ano de 1974, em Olinda, um festival que se chamou ''Sete Cantos do Norte" e aconteceu dentro da Igreja do Carmo. O encontro musical reuniria sete jovens artistas, todos compositores nordestinos, para apresentar suas músicas: os pernambucanos Marco Polo, Flaviola, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Robertinho do Recife e os cearenses Fagner e Ricardo Bezerra. Além deles, Zé

247Nesse sentido ver: MACRAE, Edward/SIMÕES, Júlio Assis. Rodas de fumo: o uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2000.

248A Lei nº 5.726 de 29 de Outubro de 1971 pode ser acessada no link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L5726.htm ( Acesso em 10/02/2017 )

249Teles, José. Op. Cit. p. 192

179 Ramalho e Lula Côrtes também estavam presentes, se apresentando ao lado de Alceu, que em breve lançaria o álbum '' Molhado de Suor", pela Som Livre.

O curioso é que o local escolhido para o ''Concerto Chaminé" ficava num amplo pátio, situado, exatamente, em frente ao Mosteiro de São Bento. O contraste ficaria evidente na noite de 18 de Agosto de 1974: de um lado a sensualidade dionisíaca do rock, dos batuques africanos, das danças regadas à goles de cachaça, tragos de maconha e quase 20 atrações musicais, tudo misturado numa típica efervescência da contracultura setentista. Do outro lado, a quietude estática deste espaço sacralizado pela Igreja Católica, que fora criado para a clausura monástica da Ordem Beneditina, ainda no século XVII, e que tinha como lema a expressão ''Reza e Trabalha", que fora encarnada com obediência e devoção por monges adeptos da castidade celibatária.

O '' Concerto Chaminé", promovido por Marconi Notaro, aglutinava a efemeridade festiva e experimentalista da psicodelia nordestina, de hippies desbundados, e o punha de frente às tradições católicas, deste Pernambuco devoto e saudoso, que ainda se mantinha forte como nunca sob os preceitos do trabalho e da reza em tempos de ditadura. O fato é que apesar de uma certa liberdade existencial parecer ser maior em Olinda do que em Recife, ainda vivia-se um momento bastante repressivo para que passasse desapercebido um evento de música, com um nome tão escrachado assim. Diferente da imagem pacata tecida por Zé Ramalho, a noite contou com a presença ostensiva da Polícia, ocorreram muitas prisões e a forte chuva que caiu do céu ajudou a dispersar as expectativas do evento criado por Marconi, para celebrar a música feita na cidade, pela turma do udigrudi.

Mas já que Zé Ramalho estava presente na programação oficial do evento e demonstrava gostar de perambular pelas ruas de Olinda, resta pouca dúvida de que ele subiu ao palco ao lado de Marconi para apresentar um de seus rocks chamado ''Made in PB". Tendo isto acontecido ou não, ainda assim é possível ouvir esta canção e considerar sua condição de existência no campo cultural nordestino, dos anos 60 e 70. É que ela foi interpretada por Marconi no disco No sub reino dos metazoários e contou com arranjos de guitarra feitos por Robertinho do Recife, numa sonoridade que evoca a banda ícone da contracultura norte- americana, o Grateful Dead, banda que Robertinho escutou com frequência enquanto viveu nos EUA, no final da década de 60, mergulhado no universo hippie. A letra, criada por Zé Ramalho, enquanto ainda vivia na capital paraibana, afirma uma atitude rockeira mas com

180 características próprias, um rock '' Made in PB" e, portanto, atravessado pelas experiências e vivências conectadas à elementos do imaginário sonoro do Nordeste:

Todo mundo ouviu um rock pesado, chorado, danado Made in PB Parece um forró Mas eu lhe afirmo, ciente, descrente do meu amor Que ele é curtição, de couro de bode Quem pode, sacode tudo no chão Quem ainda não curtiu, o rock sem bode Quem pode, se explode Made in PB Saltando de lado, catando tostão Eu tiro da viola tanta distorção Gastando o sapato no chão do terreiro 250 A vila curtiu o meu rock brejeiro Nestes Nordestes Psicodélicos que foram performatizados musicalmente, na discografia lançada entre 1972 e 1976, em Recife, pelo Selo Solar, uma música como esta nos remete e designa toda a energia pulsante dos bailes de rock, que proliferaram nas cidades nordestinas, a partir da década de 60, e que passaram a acontecer nos mesmos clubes onde também ocorriam as festas de forró, que eram tidas como tradicionais, pela maioria da população. Se para dançar o forró era preciso estar atento aos passos certos, para não se perder na dança à dois, o rock por sua vez dava margem à uma liberação dos movimentos corporais nunca antes experimentada nas danças do mundo moderno. O rock era o próprio descompasso caótico onde cada um dançava como bem entendesse, uma dança por muito tempo tida como subversiva e que remetia às sincopes das danças africanas.251 Não é a toa que tentaram até proibir esse tipo de dança, numa capital nordestina conservadora como Natal, ainda no final dos anos 50.252 Para um bom cristão da época, o rock era entendido como literalmente coisa do Diabo, ainda mais depois que os Rolling Stones tornaram-se populares com a música ''Sympathy for the Devil", lançada em 1968, e que chegou ao

250Marconi Notaro. Made in PB. No sub-reino dos metazorários. Recife: Selo Solar, 1973.

251MAUTNER, Jorge. Deus da Chuva e da Morte. São Paulo: Editora Martins, 1962.

252No livro lançado, em 2016, ''100 discos do rock potiguar pra escutar sem precisar morrer" é citada uma matéria do jornal Diário de Natal, do ano de 1957, com o seguinte título: ''Não permitirá a polícia qualquer demonstração do Rock and Roll". O texto fala sobre um grupo de rapazes que exibiria a dança num espaço da cidade, sem nenhum tipo de autorização prévia, o que foi tomado com uma escândalo à época. Ver: ALVES, Alexandre; PEIXOTO, Alexis; MORAIS, Hugo; OLIVEIRA, Jesuíno; MOO, Mr. 100 discos de rock potiguar ( para escutar sem precisar morrer). Natal: Editora 8, 2016.

181 Nordeste pelas rádios e lojas de discos de vinil. Daí decorre toda uma performatização que foi se constituindo em relação a imagem de Satã no universo semiótico rockeiro e, talvez por isso, Marconi tenha cantado em outra música do seu álbum: “permaneço fiel às minhas origens, filho de Deus, sobrinho de Satã”.

Enquanto no forró o som era ditado pelo triângulo, sanfona e zabumba, no rock '' Made in PB" cantado por Notaro a guitarra soava como uma viola, que de tanta distorção deu origem a um rock pesado, chorado, danado, feito na Paraíba, ou seja, feito nas fronteiras imaginária de um Nordeste, que nas perspectivas conservadoras de intelectuais como Ariano Suassuna ou Gilberto Freyre, não deveria ser enunciado em conexão à expressões culturais oriundas da experiência urbana recente. O rock – filho do Blues dos negros no Sul dos EUA- era coisa do estrangeiro e não deveria ser incorporado à qualquer expressão artística que pretendesse soar ''nordestina". Assim, esta canção evoca uma experiência que foi fundamental para a formação de um ambiente cultural marcado pela afirmação de que havia sim um rock nordestino, um rock '' Made in PB". O próprio Zé Ramalho, autor da letra, antes de partir para Recife e juntar-se à turma do udigrudi pernambucano fora guitarrista da banda Os Quatro Loucos, uma das bandas de baile mais conhecidas, na região, no final dos anos 60. A presença desta música no álbum acaba fazendo referência à chegada dos bailes de rock ao Nordeste .

Contudo, a virada para os anos setenta trouxe para as capitais nordestinas as viagens e visagens psicodélicas, o interesse pelas filosofias orientais e esotéricas, os discos de bandas de rock progressivo, com temática espacial como Pink Floyd e Yes, o filme sobre o Festival de Woodstock, a literatura beatnik. E tudo isso numa sociedade que processava, há alguns anos, o impacto dos acontecimentos da Era Espacial, da Guerra do Vietnam, do Maio de 68. A turma que antes dançava a ingênua Jovem Guarda, nos bailes, com gel e alisantes nos cabelos, também experimentou a desconstrução tropicalista em relação à força estética e cultural da chamada ''cultura popular" e chegou multifacetada aos anos 70. A turma do udigrudi, composta por sujeitos que estavam imersos na criação musical, passaram a lançar um outro olhar para as expressões populares, que costumaram ser formatadas pelo olhar dos estudos folclóricos e de intelectuais tradicionalistas, face à enunciação do Nordeste. Tanto é que no álbum No sub reino dos metazoários, a música que antecede o rock ''Made in PB" não é outro rock, mas sim um gênero de origem africana, nascido entre os negros que por aqui foram escravizados: o maracatu.

182 A gravação deste maracatu tem uma duração curta, apenas 50 segundos. Trata-se de uma espécie de vinheta que aparece no disco e demarca a presença deste ritmo afro-brasileiro composto pelo timbre grave e pesado das alfaias, com a rufada de uma caixa ou tarol, o toque metálico do agogô e o chiado da repetição de um ganzá. A turma que estava gravando o álbum, junto com Marconi ,não tinha como vislumbrar que vinte anos depois, o maracatu seria um ritmo fundamental para a construção das paisagens sonoras do movimento cultural recifense que ficou conhecido internacionalmente como Mangue Beat, sobretudo através do discurso e da notoriedade alcançada pela figura de Chico Science e da banda Nação Zumbi. Apesar disso, o autor do livro Do Frevo ao Manguebeat afirmou que a inserção desta patota de maracatu, com duração de 50 segundos, no álbum de Marconi Notaro, foi uma atitude “ousada" porém ''ingênua".

Não cabe entrar em discussões anacrônicas como esta, mas é importante ressaltar que não se tratou meramente de ''ingenuidade", como afirmou o jornalista em questão. Os contextos históricos eram muito diferentes do ponto de vista da própria indústria cultural. O álbum de Marconi Notaro é uma produção independente, com tiragem de 1.000 cópias, feitas para serem distribuídas localmente, num momento que foi o do desbunde e da contracultura durante a ditadura militar. Não havia a pretensão de afirmar-se como '' Movimento" ou “Cena" através de manifestos e discursos articulados coletivamente, mas sim fazer algo movido não por uma '' ingenuidade", mas sim por uma espontaneidade despretensiosa, com liberdade de criação e experimentação, sem necessariamente ''levantar uma bandeira'', que buscasse organizar discursivamente o que estava se passando no campo cultural tecido por estes jovens. Noutro sentido, o Mangue Beat surge numa década de 90 marcada pela redemocratização do país, num contexto em que as grandes corporações de música estavam interessadas em investir no que elas nomearam de '' World Music" e num momento em que Recife experimentava uma verdadeira ebulição cultural, que tinha condições de expressar claramente toda sua visão crítica sobre as desigualdades sociais, naquela capital, que à época era uma das capitais nordestinas mais violentas da América Latina. É nesse sentido que Chico Science & Nação Zumbi lançam, em 1994, o álbum Da Lama ao Caos, onde a mistura do maracatu com o rock ganharia o estatuto de marca sonora fundamental desta geração da

253 década de 90.

253Sobre a produção musical e o campo cultural do qual advém o Mague Beat ver a seguinte pesquisa: RAMALHO, Renan Vinícius Alves. As fronteiras do jardim da razão: o manguebeat e o espaço da regionalidade no Recife da década de 90. Dissertação de Mestrado em História. UFRN. Natal, 2015.

183 Sendo assim, o que podemos dizer sobre aquele breve maracatu que aparece no álbum de Marconi? Sua presença nos ajuda a pensar que essa estética psicodélica que atravessava as consciências e sensibilidades da turma do udigrudi se dava, justamente, por uma atitude de fusão e dissolução de fronteiras, sem nenhum comprometimento em autodenominar-se como uma ''Cena" ou um '' Movimento" que estaria fazendo aquilo por questões teóricas, históricas, culturais ou estéticas. Apesar disso, suas produções musicais acentuam um distanciamento em relação às perspectivas folclorizantes e tradicionalistas, que buscavam encerrar a enunciação sonora do Nordeste como a de um espaço distante das experimentações sonoras e culturais do mundo contemporâneo. Por fim, se o que caracteriza a experiência psicodélica é uma dissolução momentânea entre as fronteiras de um dentro e um fora, movida por uma forte sensação de ligação entre todas as coisas, nada mais coerente com esta experimentação do que literalmente desmantelar estas fronteiras, que pretendiam separar o que pertencia ao regime de audibilidade do Nordeste do que não pertencia, como pretendia por exemplo o Movimento Armorial, amparado pela '' Estética" com ''E" maiúsculo, de Ariano Suassuna, que era considerado uma ''autoridade" quando o assunto era a região Nordeste e os limites de suas fronteiras culturais.

Abaixo o Folclorismo

Em 1968, um grupo musical chamado LSE - Laboratório de Sons Estranhos – se apresentou no Sport do Club Recife, numa festa patrocinada pelo grupo Manchete de comunicação. O grupo musical havia sido criado pelo compositor Aristides Guimarães que, na época, estava com 21 anos, e se interessava pelas efervescências tropicalistas que estavam surgindo, ao mesmo tempo, nos grandes Festivais de música televisionados. O LSE, assim como o Nuvem 33, de Tiago Araripe, fazia de suas apresentações uma espécie de happening coletivo, um acontecimento performático que agenciava uma variedade de experimentações musicais ao longo de suas apresentações. Nesse show do grupo podia-se ouvir bossa nova, música eletrônica, música clássica e, por fim, era executada a música '' Saudosismo" de autoria de Caetano Veloso. No palco, dividido entre mais de 10 pessoas, todos passaram a gritar “Chega de Saudade! Chega de Saudade” e, durante esses gritos, ecoou um estridente “Chega de Folclore!". Isso foi o suficiente para que o representante da Manchete em Recife, Fernando da Câmara Cascudo – filho do folclorista natalense Luis da Câmara Cascudo- se

184 negasse a pagar o cachê da banda, alegando que aquilo fora algo como uma ''provocação" e 254 um '' desacato" explícito à figura de seu pai.

Em 1973, um novo conjunto musical surgia em Recife. Era a Banda de Pau e Corda, que lançou seu primeiro LP, chamado '' Vivência", sob a batuta do então '' Mestre de Apipucos", o escritor Gilberto Freyre. Como se sabe, Freyre desempenhou um papel fundamental para a construção do imaginário espacial da região Nordeste, através de sua extensa obra. Desde sua pesquisa, apresentada na Universidade de Columbia em 1922, passando por seus escritos jornalísticos, pela ação do Movimento Regionalista e Tradicionalista do Nordeste, por sua trilogia dedicada a fazer uma história da família patriarcal na década de 30 até os seminários de Tropicologia, dos anos 70. Sua motivação sempre foi definir as fronteiras culturais da região Nordeste como um espaço que deveria ser ritmado por saudades das experiências do passado.

A Banda de Pau e Corda era composta por uma turma ainda mais jovem do que a maioria do pessoal ligado ao desbunde e ao udigrudi na capital pernambucana. Seus integrantes eram estudantes universitários, que tinham em média 19 anos, e sua sonoridade, que se pretendia tipicamente regional, era atravessada pela concepção estética dos estudos do folclore e da cultura popular. Talvez, por isso, Freyre moveu forças para escrever um breve texto de apresentação na contracapa do LP. O design de sua assinatura também foi impresso logo abaixo do pequeno texto que, dentre outras coisas, dizia que ''os jovens da Banda de Pau e Corda cantam pelo Nordeste de sempre. É novo e é de sempre." Com esta espécie de aval estético de um intelectual influente como Freyre logo criou-se um clima de muito respeito em torno do som que a banda fazia, que por sinal é de excelente qualidade. Contudo, se por um instante nos situarmos diante dos acontecimentos da época iremos notar que há algo de reativo posto no texto de Freyre, em relação à defesa disso que seria o '' Nordeste de sempre", há algo no sentido de delimitar limites e fronteira entre o que seria e o que não seria expressão musical da região Nordeste.

Não cabe aqui nesta pesquisa desbravar a complexa relação que o intelectual pernambucano teceu, ao longo de sua vida, com conceitos como '' Tradição" e '' Modernidade", por exemplo. No entanto, se ao ouvir as músicas da Banda de Pau e Corda Freyre pontuou que tratava-se de paisagens sonoras e poéticas que evocavam esse '' Nordeste

254Teles, José. Op. Cit. p.123-4

185 de sempre" é porque uma dada imagem da região estava sendo defendida, uma região que deveria expressar-se distante dos ruídos urbanos que à ameaçariam de continuar existindo. Uma região que deveria expressar-se a partir de referenciais ligados às paisagens rurais e à dadas relações sociais tipicamente desenvolvidas neste ambiente. É possível imaginar a satisfação de Freyre ao ouvir a primeira canção do álbum, que se chamava ''Vivência", e tinha versos como: Quem nasceu lá e viveu/ Crescendo percebeu/ O canto do ferreiro/ Da casa do doutor".255 Versos que evocam, em tom de saudade, um universo distante das relações caóticas e urbanas da Recife, da década de 70, e que nos fazem recordar a ''casa do doutor", apinhada de gente trabalhando para ele, como na vida cotidiana da '' Casa Grande" dos tempos dos engenhos.

Como se sabe, Recife vivia um colapso devido a expansão urbana e já se tornava uma das capitais mais desiguais do país, com favelas proliferando-se por entre os velhos mocambos. Cidade tensionada pelos ruídos e propagandas da paisagem urbana, misturando- se a uma zona da mata tão marcada pela experiência canavieira de outrora. Na perspectiva freyreana, tratar das imagens desta cidade, tensionada pela expansão urbana, era tratar de algo que já não era mais o '' Nordeste de sempre", daí o fato de garantir a nordestinidade da música feita pela Banda de Pau e Corda, em 1973, que era uma música baseada no que as pesquisas folclóricas definiram como sendo a música nordestina. No entanto, nem todos que produziam música em Recife estavam de acordo com uma espécie de ''folclorização" da musicalidade nordestina, que muitas vezes acabava por definir um lugar de enunciação para os artistas da região, como se só lhes coubesse cantar e tocar da mesma maneira e utilizando- se dos mesmos elementos sonoros e poéticos daqueles que, tempos atrás, foram ''catalogados" como representantes da música regional pelas pesquisas folclóricas.

De certa maneira a atitude tropicalista, de fins dos anos 60, contribuiu para gerar uma espécie de fissura na relação entre a perspectiva do pensamento folclórico e a música feita por artistas nordestinos. Basta recordar o que disse o baiano Caetano Veloso, em uma entrevista emblemática e estratégica, no ano de 1967, após apresentar a música ''Alegria, Alegria", no Festival Record de Música Popular Brasileira: ''Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também

255Banda de Pau e Corda. Vivência. Vivência. São Paulo: Philips, 1973.

186 lanchonetes e hot dogs."256 O que podemos compreender desse tipo de postura é que havia um já consolidado campo de forças que tendia à folclorização do Nordeste, como se enunciando-se como nordestina ou a partir de artistas de origem nordestina, a música tivesse que estar restrita ao que foi definido outrora a partir de sua gênese como sendo o ''Nordeste de sempre", o que significa rural, anti-moderno, agrário, saudosista. E o que fazer com os fluxos semióticos das vertigens urbanas, cosmopolitas, cósmicas que atravessavam o campo social da década de 70? Tratar como uma ameaça ao Nordeste? Ou nordestinizar essas experiências, pondo-as em conexão com ritmos, timbres, melodias, poéticas e instrumentos que já significavam a região, do ponto de vista musical? Tanto Gilberto Freyre quanto Ariano Suassuna estavam imersos na defesa e na construção de fronteiras para a música regional e claramente havia um receio muito grande com o deslocamento enunciativo trazido pelo turbilhão de transformações que se deram entre os anos 60 e 70 no mundo.

Lembremos que, ainda na década de 20, o garoto Gilberto Freyre escreveu um artigo chamado ''Um Café para Recife", onde especializa, com muita imaginação, os elementos que comporiam um típico café nordestino, feito para que qualquer pessoa do mundo adentrasse e conhecesse o que seria a cultura gastronômica, estética, social do Nordeste. Nesse microcosmo imaginado pelo autor, teria muita água de coco, uma negra gorda fazendo quitutes, muito licor de jenipapo, bananeiras e, por fim, um papagaio numa gaiola, provavelmente repetindo com perfeição as frases feitas que ouvia seu dono falar o tempo todo. Imaginem se o dono desse papagaio fosse Gilberto Freyre, é bem possível que a ave cantarolasse uma série de evocações saudosistas do passado.

Noutro momento, em 1970, Alceu Valença escreveu uma canção na qual também convocava a imagem de um papagaio em seus versos. A música se chamava ''Papagaio do Futuro", foi apresentada, pela primeira vez, no Festival Internacional da Canção, de 1972, em companhia de Geraldo Azevedo e Jackson do Pandeiro, sendo lançada, em 1974, no álbum '“Molhado de Suor", numa estética sonora que o autor denonimou de ''transa moura- cigana"257:

Terno de vidro costurado a parafuso

Papagaio do futuro

256Ver: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978.

257Alceu todo molhado de suor. Jornal do Comércio. Recife. 04/02/1975, p. 4

187 Num para-raio ao luar

Eu fumo e tusso

Fumaça de gasolina

Olha que eu fumo e tusso

Quem sabe, sabe, quem não sabe, sobra

Cobra caminha sem ter direção.

Quem sabe a cabra das barbas do bode

A águia avoa sem ser avião

Vamos visitar a Lua (é num foguete americano) 4x

Tem gente lá de São Paulo (quer dizer que é paulistano)

Tem gente da Paraíba (quer dizer paraibano)

Tem gente das Alagoas (quer dizer alagoano)

Tem gente de Pernambuco (quer dizer pernambucano)

258 Vamos visitar a Lua (é num foguete americano) 4x Em 1975, essa música também apareceu como trilha sonora dos experimentos cinematográficos de Jomard Muniz de Britto, no filme Recinfernália. Os trechos do filme nos permitem ver uma Recife de outdoors, de produtos industrializados, de homens ao redor da televisão, assistindo a Copa do Mundo de futebol, de fuscas e ônibus esfumaçados atravessando a avenida Conde da Boa Vista, de pessoas indo e vindo em direções distintas, numa cartografia que mostra o trânsito de informações no qual estavam imersos os sujeitos, na vida cotidiana da capital pernambucana. Noutro momento, a câmera observa, à distância, os passos do já idoso Gilberto Freyre se aproximando da entrada de um prédio, à passos lento,s e depois retorna para a velocidade das multidões perambulado no centro de Recife.

Enquanto o papagaio do passado de Freyre estava trancafiado numa gaiola, dentro da sala de um café imaginário, concebido para representar plasticamente o Nordeste, movido por saudades da vida social do século XIX, o papagaio do futuro, inventado por Alceu, emergia dependurado num para-raio, sob o luar, enquanto o sujeito da canção vagueia pela cidade intoxicado de tanto fumar e tossir fumaça de gasolina. Dentro de sua antiga gaiola a ave tropical integrava a visualidade de um espaço a ser visto e experimentado por quem passasse pela cidade, como um café que encarnava a face cultural '' autêntica" da região: e lá estariam

258Alceu Valença. Papagaio do futuro. Vivo!. Rio de Janeiro: Som Livre, 1976.

188 os negros, na cozinha, no lugar que lhes era destinado para bem alimentar senhores gulosos e saudosistas pelo Nordeste ''de sempre", como o próprio Freyre.

Imagem tão diferente da que Alceu formulou, quase 50 anos depois. Já fora da gaiola a figura do papagaio sobrevive transformada noutra paisagem, aparece como sintoma de uma transformação na própria enunciação da região. De um lado, uma Recife saudosa do tempo em que a cozinha das casas-grandes harmonizava as contradições das relações escravocratas. Do outro lado, uma Recife esfumaçada, poluída pelas máquinas modernas e sendo percebida sob o emergente viés ecológico que começava a ganhar consistência, na década de 70. Uma cidade em que seus habitantes também rumavam imaginariamente em direção à lua num foguete americano, através de uma Era Espacial que estava a desterritorializar as linhas de subjetivação de paulistas, paraibanos, alagoanos e pernambucanos, ou seja, rompendo algumas fronteiras, no que concerne às enunciações regionais e dando margem à outras experiências narrativas, à outros Nordestes possíveis, á outras zonas de enunciação coletivas

Numa entrevista, de 1975, Alceu Valença lançou um olhar crítico para as formas de pensamento que visavam amarrar a paisagem sonora do Nordeste aos limites do pensamento folclórico e tradicionalista e que se diziam representantes oficiais da '' música nordestina":

Eu misturo tudo. Quando ouço música fica tudo na minha cabeça. Então a minha música é uma mistura de tudo que eu já ouvi, que fez parte da minha vida. Jackson do Pandeiro, Oliveira e Beija Flor, Luiz Gonzaga, embolada e gemedeira, eu estou muito ligado a tudo isso[...]Aliás esse negócio de música nordestina é meio furado. O que existe é um som nordestino que não é assim tão diferente dos outros. O que

259 existe é um som feito no Nordeste.

Aqui, o compositor de São Bento do Una afirmou uma perspectiva que atravessava a vida e a produção artística de boa parte destes jovens músicos que estavam lançando seus discos, entre 1972 e 1976,260 no panorama da música brasileira, e que são os responsáveis

259Alceu Valença: da embolada à gemedeira. Jornal da Cidade. Recife. nº 41. 3 a 9 de Agosto de 1975, p. 10

260Numa matéria escrita pelo jornalista Geneton Moraes, que à época escrevia para o caderno de cultura do Diário de Pernambuco, há outra passagem importante para captarmos essa fissura na ordem do discurso do pensamento folclórico, tradicionalista e regionalista. Ele disse que '' O lançamento de Alceu, de resto, é um alento de que as gravadoras talvez já vejam que o trabalho de um grupo ou artista do Nordeste não é necessariamente folclórico. Há por aqui compositores que, por viverem em ambiente urbano, recebem, assimilam e não negam todas as informações que chegam aos olhos e ouvidos. E, da maneira que ouvem e guardam o toque do cantador de embolada da Praça Joaquim Nabuco, escutam também o rock & samba & frevo & baião. Tudo influi sobre o que eles fazem, tocam e cantam. Alceu é um exemplo. E o Ave-Sangria ou Flaviola também. Deita numa cama de prego e cria fama de faquir. " '' O lançamento de Alceu, de resto, é um alento de

189 pela aparição de Nordestes Psicodélicos expressos musicalmente: o que existe é um som feito no Nordeste, ou seja, um som desenvolvido historicamente no interior das fronteiras imaginárias do que veio a se chamar Nordeste, a partir do século XX. E esse som não é assim tão diferente dos outros. A questão é que o processo de folclorização das expressões musicais encontradas na Região deu margem a invenção de um lugar de enunciação e produção para àqueles que trabalhavam como músicos, que estava sendo rompido durante este período. Tanto é que, um ano antes, Alceu já havia se manifestado sobre isso, numa entrevista para Celso Marconi, no Jornal do Comércio, onde disse: ''Meu LP não terá nada a ver com a cultura '' oficial", com as '' raízes", com o oba oba ou paternalismo. Mesmo quando canto uma música de violeiros é com outra visão e não com a visão deles, pois isso não poderia ser 261 de outra maneira".

Como podemos perceber, não era a expressão musical dos violeiros, dos aboiadores, dos cantadores, dos rabequeiros e emboladores, em suma, não era a diversidade das práticas musicais das camadas populares da sociedade, dita nordestina, que estava sendo negada em favor das novidades advindas da cultura de massas. Ao invés disso, estas sonoridades estiveram o tempo todo presentes na musicalidade da turma do udigrudi pernambucano. O que estava sendo negado eram as perspectivas folclóricas e tradicionalistas, que passaram a atribuir à estas manifestações musicais o estatuto de uma expressão essencialista e purista da ''alma" ou do ''povo nordestino''. A percepção de que a turma do udigrudi estava dando margem a uma fissura nessa ordem do discurso regionalista muito interessou ao jornalista Celso Marconi que, como vimos na introdução desta dissertação, esteve imerso nas efervescências do tropicalismo em Pernambuco, no final dos anos 60. O mais provável é que o jornalista estivesse de acordo com àquilo que disse Caetano Veloso, em 1967, sobre se negar a folclorizar o seu próprio sub desenvolvimento, tanto é que, em 1974, ele foi ainda mais enfático ao afirmar que havia agora um '' Pop Nordestino", sendo feito por uma banda

que as gravadoras talvez já vejam que o trabalho de um grupo ou artista do Nordeste não é necessariamente folclórico. Há por aqui compositores que, por viverem em ambiente urbano, recebem, assimilam e não negam todas as informações que chegam aos olhos e ouvidos. E, da maneira que ouvem e guardam o toque do cantador de embolada da Praça Joaquim Nabuco, escutam também o rock & samba & frevo & baião. Tudo influi sobre o que eles fazem, tocam e cantam. Alceu é um exemplo. E o Ave-Sangria ou Flaviola também. Deita numa cama de prego e cria fama de faquir. " In: '' Eles estão assanhados. Brincou é bola na rede". Jornal da Cidade. Recife. nº 41. 3 a 9 de Agosto de 1975, p. 09

261A minha loucura é uma bandeira. Jornal do Comércio. Recife. 14/05/1974, p. 7

190 como a Ave Sangria, o que parecia soar mal aos ouvidos daqueles que negavam a cultura musical que se disseminava nos meios de comunicação:

Somente os imbecis pretendem que se rejeite o acervo cultural que nos chega, hoje, por todos os meios de comunicação. E o grupo Ave Sangria, com sua musicalidade, expressa sua realidade autêntica, uma linha pop, atual, em consonância com as correntes mais jovens da cultura internacional ocidental; e nordestina, porque o específico da nossa cultura está no sangue não só de Marco Polo mas de todos os que fazem o Ave Sangria. Querer rejeitar uma das duas correntes, negando-se a fazer a síntese delas, é simplesmente querer viver de

262 nostalgia ( o que, tenho certeza, o Ave Sangria não quer).

Então dois fluxos de paisagens sonoras e poéticas se encontravam, se chocavam em encontros musicais da década 70, em uma capital nordestina como Recife, mas não só nela. No texto de Celso Marconi, o Nordeste aparece como uma região tensionada por duas correntes sonoras, nesse ano de 1974: de um lado, uma diversidade enorme de matérias de expressão como os cocos, maracatus, baião, congadas, frevo, reisados, cantorias, com seus instrumentos típicos como: os tambores, as violas, ganzás, maracás, dentre outros, que já costumavam referenciar a paisagem sonora de Nordeste, desde o início do século XX. E de outro lado, a música pop, o rock dos anos 50, 60 e 70, a guitarra, os sintetizadores, os tropicalistas, o jazz, o blues, o samba carioca, dentre outros sons trazidos com a modernização tecnológica. Ocorre que no horizonte da atitude psicodélica de bandas como a Ave Sangria tudo isso se fundia, era amalgamado, tudo isso era sintetizado, uma vez que não era partilhado entre estes jovens uma consciência e sensibilidade nostálgica ou saudosista em relação à ''cultura nordestina". Ao invés desta tendência nostálgica, de linha tradicionalista, que predominou em expressões como as do Movimento Armorial, da Banda de Pau e Corda ou do próprio Quinteto Violado, o que se vivia entre aqueles que moviam o Selo Solar e também em bandas como Ave Sangria, Tejucupapo Band, Don Troncho, era uma situação psicodélica na maneira de criar música e sentir o mundo. Tratava-se de um momento bastante aberto à experimentação, à fusão, como bem afirmou Zé Ramalho, ao evocar esse período de vivências na capital pernambucana. Não se trata aqui de tomar partido da fala do jornalista e creditar o título de ''imbecis" àqueles que estavam imersos nos territórios existenciais de um Nordeste saudosista, estabelecido nas fronteiras de consciências e sensibilidades ligadas ao

262Ave Sangria/ Autêntico Pop Nordestino. Jornal do Comércio. Recife. 18/08/1974, p. 7.

191 tradicionalismo. O que interessa é pontuar que essas diferenças existiam e isso nos permite perceber a existência de diferentes formas de enunciar o espaço cultural/musical da região ou a diferentes agenciamentos territoriais, sonoros/musicais, considerando aquilo que Gilles 263 Deleuze e Félix Gutarri chamaram de ritornello.

O universo da cantoria em Zé Ramalho

Zé Ramalho nasceu em Brejo do Cruz-PB, no ano de 1949, e se tornou um compositor nacionalmente conhecido, a partir do lançamento de seu primeiro álbum solo, em 1978. Após gravar Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, com Lula Côrtes, tornou-se mais um migrante do campo artístico da região Nordeste, que nos 70 juntou o que tinha e partiu em busca de apresentar suas composições, conseguir um contrato com uma gravadora, prensar seu álbum e se possível sobreviver profissionalmente como músico, através das engrenagens da indústria cultural, que vinha se consolidando no país.264 Seu LP foi lançado pelo selo Epic, que pertencia a transnacional CBS e vinha lançando o trabalho de artistas que dialogavam com o rock progressivo. Devido à dimensão visionária e psicodélica de suas canções, o cantor paraibano acabou conseguindo um espaço neste selo. O disco estava repleto de composições suas que trazia na bagagem, desde suas vivências em João Pessoa e Recife, anos antes. Vivências que foram agenciadas nos territórios existenciais das experimentações do desbunde, como relembrou o próprio autor em uma entrevista:

Comunguei também no início dos anos 70 com o psicodelismo, o LSD, aqueles chás de cogumelos, essas coisas foram importantes pra mim. Misturei tudo isso e saiu a primeira leva de músicas: Avohai, Vila do Sossego e Chão de Giz. Era 73. Essas experiências me deram intuição, vontade de projetar essa luzes para me apresentar como autor. Minha

263A perspectiva dos autores lança no conceito de ritornello a compreensão de que as sonoridades efetuam -com seus ritmos, timbres, melodias, repetições e diferenças - agenciamentos territoriais. Sobre tal conceito eles afirmam que '' Chamamos de ritornello todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que desenvolve em motivos territorias, em paisagens territorias[...]Falamos em ritornello quando o agenciamento é sonoro ou ''dominado" pelo som." DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 139

264"A década de 1970 marcou o ápice do período de reestruturação da indústria fonográfica brasileira. Transformação nas tecnologias, nas políticas de produção, de exposição e de controle sobre a propriedade intelectual permitiram uma nova organização do mercado, na qual as gravadoras transnacionais passaram a aumentar sua participação no funcionamento da economia da música brasileira, enquanto as empresas brasileiras entraram em franco declínio". In: '' Indústria Fonográfica brasileira na década de 70". DE MARCHI, Leonardo. A nova produção independente: indústria fonográfica brasileira e novas tecnologias da informação e comunicação. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social. UFF. Niterói, 2006, p.64

192 proposta desde o início era fazer uma coisa diferente, no sentido de ideias, criar situações, criar imagens com as letras e com o máximo de alucinação

265 possível.

Estas músicas já vinha sendo tocadas em suas apresentações na Paraíba, em Recife e também no eixo Rio-São Paulo, quando trabalhou como músico da banda de Alceu Valença. O que nos interessa neste tópico é que a maneira como Zé Ramalho uniu suas experimentações em estados alterados de consciência aos seus estudos sobre as modalidades de cantoria e o repente tornaram possível um fragmento singular destes Nordestes Psicodélicos que procuro mapear. No que concerne ao campo musical desta época, o compositor paraibano foi um dos últimos cantores nordestinos que compuseram àquilo que se nomeou como a “invasão nordestina” na música popular brasileira, dos anos setenta. Antes dele, ganharam projeção no universo musical nacional os cearenses Ednardo, Fagner e Belchior, além dos compositores Geraldo Azevedo e do próprio Alceu Valença, que havia lançado, no ano anterior, o LP “Espelho Cristalino", com sua banda, que passou a ser composta por ex-integrantes da Ave Sangria. Cada um com características próprias em seus trabalhos estavam adentrando as fronteiras do disputado território musical que se convencionou chamar de MPB e, desde então, seus sotaques e suas sonoridades passaram a representar a face nordestina da cultura musical brasileira, no arquivo sonoro contemporâneo do país, em grande medida pela disseminação de suas músicas através da indústria fonográfica.

Enquanto vivia em Recife, na década de setenta, o jovem compositor paraibano entrava cada vez mais em contato com o universo dos cantadores, violeiros e repentistas nordestinos. Enquanto estava envolvido na criação do álbum Paêbiru, ao lado Lula Côrtes, Zé seguia pesquisando as modalidades de cantoria historicamente desenvolvidas no cancioneiro da região266 e, em muitas ocasiões, utilizou-se das métricas e dos modos de rimar que haviam se formado entre os desafios de viola, para compor suas canções. Aos poucos, sua experiência urbana como guitarrista de baile de bandas de rock foi se amalgamando à estes referenciais regionais, no que concerne ao estilo de tocar viola e aos modos de cantoria.

265TELES, José. A música em Pernambuco. Recife. Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. 2003, p. 82

266Existem várias maneiras de improvisar na cantoria nordestina: sextilha, sete-linhas, mourão-em-sete, você cai, mourão voltado, quadrão em oito, quadrão em dez, quadrão à beira-mar, martelo alagoano, gabinete, toada alagoana, oitava rebatida, nove palavras por seis, gemedeira, galope à beira-mar, parcela, martelo alagoano, quadrão mineiro, meia-quadra, glosa e por aí vai.

193 Movimento que expressa uma trajetória musical e poética entre campo e cidade que ocorreu em diferentes regiões do país, nos anos 70, e que contribuiu para gerar novas paisagens sonoras, como, por exemplo, a do chamado Rock Rural, criado pelos compositores Sá, Rodrix & Guarabyra.267 No caso de Zé Ramalho, esta mistura se deu no interior das fronteiras do Nordeste e pode ser captada neste martelo agalopado, composto por ele, em 1974, durante as várias expedições que a turma do udigrudi fez à Pedra do Ingá, no sertão paraibano:

Cavalgando trovões enfurecidos Doma o raio lutando com Plutão Nas estrelas-cometas de um sertão Que foi um palco de mouros enlouquecidos Um altar para deuses esquecidos Construiu sem temer a Lúcifer No oceano banhou-se na maré E nas montanhas deflorou a madrugada Nas paredes da pedra encantada

268 Os segredos talhados por Sumé

Como se sabe, o martelo agalopado é um estilo de compor que está presente tanto na literatura de cordel quanto na cantoria. Trata-se de estrofes compostas em dez versos – o chamado verso decassilábico - com as tônicas nas terceiras, sextas e décimas sílabas de cada verso, o que institui um ritmo, uma métrica e uma sonoridade própria ao estilo. Apesar de estar relacionado ao ambiente cultural do sertão, no que concerne à cultura brasileira, o decassílabo não foi criado por cordelistas e cantadores. É provável que sua origem remonte à literatura da Península Ibérica, do século XVI, já aparecendo em autores como Luís de Camões e em outras obras que, provavelmente, circularam desde o início da colonização pelos territórios do que viria a se chamar de Região Nordeste.

Contudo, em Zé Ramalho o martelo serviu de estrutura poética e sonora para a performatização de uma narrativa sobre a figura mítica de Sumé, que emergiu no álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol como um viajante espaço-sideral, que teria atravessado o sertão em tempos longínquos e grafado suas inscrições, ''seus segredos", nas

267Ver: RESENDE, Victor Henrique de. O Rock Rural de Sá, Rodrix & Guarabyra: romantismo contracultural no Brasil dos anos 70. Dissertação de Mestrado em História. UFSJ. São João Del Rey, 2013.

268Lula Côrtes e Zé Ramalho. Nas paredes da pedra encantada. Paêbiru: caminho da montanha do sol. Recife: Selo Solar, 1975.

194 paredes '' encantadas" da Pedra do Ingá. Como apresentei no capítulo anterior, o que tornou possível a emergência desta fabulação passa justamente pelas transformações que foram experimentadas com a Era Espacial, num Brasil impactado pela repressão, somado às viagens psicodélicas, as quais sujeitos imersos nos territórios existenciais da contracultura se propunham viver. Mas além disso, a participação do jovem Zé Ramalho na realização de um documentário sobre a música do Nordeste é fundamental para compreendermos sua contribuição no agenciamento sonoro desta situação psicodélica experimentada musical e existencialmente, nos anos 70, em Recife.

Em 1974, a cineasta Tania Quaresma veio à região Nordeste filmar o documentário Nordeste: Cordel, Repente e Canção. Foi feita uma viagem de cerca de um mês por pequenas cidades do interior da Paraíba, de Pernambuco e do Ceará à procura de antigos cantadores, repentistas, rabequeiros, emboladores e cordelistas, que em suas criações expressavam aquilo que seria a cultura popular nordestina. O filme colocou diante das câmeras figuras bastante conhecidas que perambulavam nas fronteiras do Nordeste, como músicos nômades ou situados em pequenas cidades. Ao longo do documentário aparecem entrevistas e apresentações musicais do Cego Oliveira, cantando ao som de sua rabeca; as crianças Caju e Castanha apresentando suas emboladas tocadas ao pandeiro; o repentista Pinto do Monteiro dedilhando a viola, enquanto versa sobre si mesmo; Agapito Correa, um velho construtor de todo tipo de instrumento musical, utilizados no interior do Nordeste (viola, rabeca, rabecão, acordeom e etc). Agapito, inclusive, apresenta às câmeras a “pancadaria”, instrumento percussivo que ele havia criado unindo tarol, caixa, pratos, pedais e tambor. Estes e outros sujeitos compuseram a trama de uma narrativa que visava documentar a chamada '' poesia matuta".

Segundo a autora Tânia Quaresma, a ideia do documentário era “trazer para o nosso mundo urbano, o vasto mundo do povo sertanejo”, apresentando os músicos tocando nas praças das cidades em que viviam, nas ruas, em meio às feiras ou em suas casas. O filme enquadra, em suas cenas, diferentes paisagens que comporiam o que se convencionou visualizar como sendo o universo sertanejo nordestino, distantes da pulsação dos espaços urbanos, e imprime uma dimensão musical nestes espaços, através da presença dos sons que se fazem por ali entre seus habitantes. Timbres, formas melódicas, harmonias, que compõe

195 uma audibilidade específica do Nordeste. Em 24 frames por segundo, fragmentos da região 269 foram capturados e transportados para as salas de cinema de outras cidades do país.

O fato é que Tânia Quaresma deu ao jovem Zé Ramalho a tarefa de entrar em contato com estes músicos, articulando os primeiros encontros com eles, antes das filmagens. Convém recordar que a maioria destes cantadores havia nascido no início do século XX e vinham improvisando e viajando pelas cidades do Nordeste, há muito tempo. Como afirma Zé, ele foi uma espécie de "rastreador" para Tânia, indo na casa de violeiros e cantadores, convidando-os e convivendo com eles para a realização do documentário.

Esse filme me pôs em contato, frente a frente, com os maiores cantores e gênios desse universo do repente. Isso aí definiu minha vida. Foi quase um mês estando com eles. Recebi uma energia tão forte, estando com eles, percebendo, vendo como era aquilo, que aí passei a mergulhar feito um louco, numa obsessão de ler todas as formas e modalidades de cantoria. E quando isso aconteceu eu comecei a

270 escrever minhas músicas.

Zé Ramalho também participou da trilha sonora do documentário, tocando viola e cantando um martelo, de autoria do cantador paraibano Zé Limeira(1886-1954), acompanhado pelo som do tricórdio de Lula Côrtes:

Sou um nego um bocado esbagaçado,

Sou o vatis das glória desta terra,

Sou a febre que chama berra-berra,

Mastigando eu sou cobra de veado.

Sou jumento pru fora do cercado,

Sou tabefe que dero em seu Lameu

Se tivé bom guardado bote neu,

Seu caminho de bonde ruim, estreito

Você hoje me paga o que tem feito

269Fiz uma cópia deste documentário ao encontrá-lo na cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Ver: Nordeste: cordel, repente e canção. Direção: QUARESMA, Tânia. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1975. 58 min. O vídeo na íntegra pode ser assistido no link: https://www.youtube.com/watch?v=xFOZxwBcUmo ( Acesso em 23/02/2017)

270A trajetória de Zé Ramalho. O som do vinil. Entrevistador: Charles Gavan. Canal brasil, 2007. Progama de TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=slgaT--TRp4&nohtml5=False ( Acesso 13/04/2016)

196 271 Com os poetas mais fracos do que eu

O ritmo e a melodia desta música é o mesmo da canção ''Nas Paredes da Pedra Encantada", que foi citada anteriormente, o que expressa uma ligação entre a turma do udigrudi e o universo da cantoria. No entanto, a presença de sintetizadores, guitarra com efeitos de distorção, contrabaixo e bateria deram uma característica sonora rockeira ao tradicional martelo e, ao invés dos versos delirados do cantador Zé Limeira, foi Zé Ramalho quem compôs - desde seu lugar de fala – outros versos, também delirados, que fazem parte deste momento de experimentação musical, agenciando elementos trazidos pela cultura de massa à outros que já circulavam pela região, desde antes da modernização tecnológica. Nesse sentido, convém compreender o que representava a figura de Zé Limeira no universo da cantoria nordestina, pois havia todo um imaginário formando-se em torno de sua presença e de seus versos e, justamente, na década de setenta, a mitificação deste cantador ganhava novos influxos. Durante este período, um livro estava em voga entre qualquer sujeito que se interessasse pelo universo cheio de imaginação das improvisações dos cantadores nordestinos. Zé Limeira, Poeta do Absurdo escrito pelo folclorista e jornalista campinense Orlando Tejo, publicado pela primeira vez, em 1973, foi um fenômeno de vendas na região e, em 1980, já estava em sua quinta edição, extrapolando as fronteiras do Nordeste.

O livro apresentava para os seus leitores o universo poético que se construiu a partir da figura de Zé Limeira (1886-1954), cantador e violeiro que atravessou o Nordeste, fazendo seus versos, ate meados da década de cinquenta. Em grande medida, o livro opera no sentido de ampliar a mitificação já existente em torno da singular presença de Zé Limeira nos desafios de viola em que participava. O fato é que suas rimas extrapolavam o senso comum de referência da maioria dos cantadores e seus versos eram considerados imagens caóticas e sem sentido para muitos, porém para outros, suas improvisações eram geniais, pois tudo nelas cabia, desde que a rima não se perdesse. Tejo foi um dos que viam nos relatos sobre o cantador a força de uma singularidade poética, entre os versadores do Nordeste. Escreveu seu livro misturando a história da viola e da cantoria, com cenas e versos que se atribuiu à Zé Limeira e que teriam sido capturados pela memória dos ouvintes de suas pelejas, em gravações em fita e também através do cantador Otacílio Batista, amigo de Limeira .

271Disponível para escuta no link: https://www.youtube.com/watch?v=D2fE1p0KKAY ( Acesso em 13/04/2016 )

197 O livro de Tejo está longe de ser um relato histórico aos moldes acadêmicos, é antes um ensaio que mesclou história, ficção, crítica literária e causos populares de maneira inventiva, para tornar visível a excentricidade e a poeticidade deste cantador paraibano que, dentro das páginas de seu livro, transformou-se num personagem mítico do cancioneiro nordestino. Segundo Tejo,

Se considerarmos que Zé Limeira não teve acesso à Carta do ABC, crescendo e vivendo no ambiente rural onde é sedimentada a poesia popular que ainda hoje mantém a linha tradicionalista, não é difícil concluir que estamos diante de um fenômeno. Pois esse tropicalista rude que trouxe a vocação do fantástico, foi de encontro ao pensamento de todos os cantadores que se conhecem, rejeitando o lugar comum, arrebentando a estrutura da cantoria nordestina com a força de sua estranhíssima mensagem. Neólogo ingênito, rompendo a cortina secular de uma cultura enferrujada, impõe-se no panorama poético nacional como o único

272 surrealista bárbaro perdido nos sertões do Nordeste.

Aqui o autor vai construindo um olhar sobre Zé Limeira que até então não existia, mas que em grande medida, consolidou-se como a imagem mais contundente que se tem do cantador. Os tempos chegam a se confundir na visão de Tejo, imagens anacrônicas são produzidas. Limeira aparece como um tropicalista rude ou então como um surrealista bárbaro perdido nos sertões do Nordeste. E não há que culpar o escritor por seus anacronismos, afinal contrariar a cronologia só se tornou pecado mortal entre nós historiadores. Para os demais escritores, embaralhar os tempos é também uma forma de fazer funcionar uma dada maneira de pensar, apresentando conexões que não se enquadram num conceito de tempo linear e homogêneo. Neste caso, fazendo o exercício de buscar compreender o que está sendo dito e levando em conta a dimensão heurística do texto do escritor paraibano, podemos perceber nos anacronismos de Tejo uma referência aos procedimentos criativos de Limeira.

O cantador seria alguém que tal qual os tropicalistas, foi de encontro a uma dada ordem do discurso e fez explodir esta ordem com suas invenções estranhas e irreverentes. Eles buscando romper a ordem das imagens e discursos do nacional-popular, dando novas visões para as imagens de Brasil e Limeira, por sua vez, rompendo, com sua inventividade e

272TEJO, Orlando. Zé Limeira, Poeta do Absurdo. Brasília. Brasília: Coleção Machado de Assis nº 38, 1980. 5ª Ed, p. 52

198 seus absurdos poéticos, a linha tradicionalista da cantoria, que sempre fizeram de seus versos uma ferramenta elogiosa para com os coronéis e donos das festas que faziam os desafios em suas fazendas. Surrealista, pois não havia um comprometimento com a racionalização de uma dada realidade, antes, suas improvisações rumavam para o fantástico e para os fluxos do inconsciente, dando vistas a imagens oníricas que escorriam em seus versos cantados nas modalidades da cantoria popular. Através do livro que lhe nomeou ''poeta do absurdo", Limeira vai deixando de ser um sujeito para se transformar num turbilhão de possibilidades para aqueles que encarnaram e se deixaram atravessar pela dimensão fantástica da experiência, como é o caso do compositor Zé Ramalho. Seu nome passa a carregar um afeto de liberdade criativa, onde inventar palavras, por cachorro para falar, jumento para cantar, não acarreta nenhum empecilho.

A questão é que houve um encontro, um choque entre Zé Ramalho e o universo da cantoria, durante a década de 70. E ao que parece foram os versos delirantes de Zé Limeira os que lhe causaram maior impacto, em grande medida, pela seu interesse em transpor as alucinações e imagens psicodélicas de suas experiências para as canções que compunha. Mas esse encontro não se resume a uma história pessoal, que só interessaria pelo seu caráter biográfico, ao invés disso, é na confluência das transformações culturais que se davam na região que a cantoria nordestina foi filtrada pela experimentação do cantor paraibano. Seu território existencial era delineado pelas experiências da contracultura, portanto havia esta conexão com uma visão esotérica e mística do mundo, tudo isso fez com que as sonoridades e a poética deste Nordeste dos cantadores ganhasse uma dimensão nova através dos versos de Zé Ramalho, durante a década de 70.

Imaginem que para aqueles que ouviam as canções folk de Bob Dylan, com suas longas histórias ou liam os livros dos beatniks, com suas derivas pelo território e suas experiências visionárias, as imagens de Zé Limeira se conectavam muito bem á este universo existencial e atualizavam-se nesse processo. Na contracultura vivida durante a ditadura militar emergia este fascínio pelo nomadismo e pelas derivas, entre parte da juventude, perder-se no mundo para se encontrar consigo mesmo, tudo isso dava ao cantador nômade de Teixeira, ''andarilho de sete fôlegos" das terras do Nordeste, a possibilidade de fazer um outro sentido naquela configuração histórica a qual o jovem Zé Ramalho pertencia.

O próprio Orlando Tejo delineia a imagem de alguém que na década de setenta facilmente seria tomado como um hippie visto de longe: Quinze anéis grotescos reluziam nos

199 dedos possantes e ágeis, enquanto dezenas de fitas multicolores esvoaçavam nas clavículas da viola festiva273, meio carnavalesco, usava um lenço encarnado no pescoço274, homem livre, disse o que quis dizer e ouviu só o que quis ouvir275. Por fim, o posicionamento anacrônico do prefaciador do livro de Tejo confirma este entrelaçamento: os cantadores são os líricos boêmios errantes do nosso tempo. A certo modo, precursores dos “hippies”, em sua forma de 276 vida despojada de riquezas.

Nestes Nordestes Psicodélicos, que ganharam vida na década de setenta através da música, a presença de um canto delirante, encarnado nas estruturas típicas da métrica dos cantadores, é um fragmento fundamental da composição coletiva destas paisagens sonoras. A poesia de Zé Ramalho, no álbum Paêbiru, é cantada em martelos e décimas e estas formas de cantar performatizadas na poética de Zé Ramalho possuem uma historicidade, que atravessou este ambiente psicodélico de fusões e chegou ao universo errante dos cantadores e repentistas. Mas esse martelo que cantou o jovem compositor paraibano se faz ouvir num território estranho ao pensamento folclórico que territorializava os desafios e as cantorias como expressões de um passado a ser preservado. Se a estrutura poética sobrevive intacta, com seu complexo jogo de rimas, o conteúdo da poesia e a composição da sonoridade é completamente diferente, pois possuem as marcas do ambiente sonoro e existencial da experiência urbana dos anos 70, com a presença de riffs de guitarra, frases melódicas tocadas em um sintetizador, solos de saxofone e outras experimentações de sons em estúdio bastante influenciadas pelo rock progressivo e pela livre improvisação. Um rock agalopado criado por uma geração de artistas nordestinos que vivenciava as práticas culturais ditas ''populares" e ''tradicionais" não como folcloristas, que desejam seu engessamento museológico, lamentando a iminente morte da cultura popular, mas sim como experimentadores que botavam essas matérias de expressão para funcionar num outro universo pois aquilo fazia um novo sentido para eles. O uso que Zé Ramalho faz das modalidades de cantoria singulariza e define uma forma de "intervenção cultural" no arquivo sonoro-poético da região Nordeste.

273TEJO, Orlando. Op. Cit. p. 51

274Idem p. 35

275Idem p. 63

276Idem p. 31

200 Experimentos que se iniciaram neste período contracultural mas que continuaram presentes 277 em sua extensa obra musical.

Esquizofonias Nordestinas: nas frequências da Era do Rádio

Há que se considerar que estes jovens artistas que passaram a gravar seus discos em Recife, entre 1972 e 1976, haviam se constituído enquanto sujeitos interessados por música, sendo em grande medida atravessados pela experiência radiofônica que viveram na sua formação, em anos anteriores. É que as ondas sonoras deste meio de comunicação, que fora hegemônico entre as década de 30, 40 e 50, no país, contribuiu para uma transformação radical, que tanto ampliou o universo de referências musicais dos sujeitos, quanto alterou a paisagem sonora das cidades, por onde ecoavam os programas de rádio em praças públicas ou residências.

Neste sentido, antes do psicodelismo que estava pulsando nos territórios existenciais do udigrudi pernambucano, na década de 70, sob os influxos da contracultura, há que se considerar que estes compositores foram crianças e adolescentes criados escutando a programação musical da Era do Rádio, principalmente, das emissoras mais conhecidas como a carioca Rádio Nacional, e as pernambucanas Rádio Clube de Pernambuco, Rádio Jornal do Comércio e Rádio Tamandaré. A disseminação das frequências radiofônicas, com seus programas diários sendo escutados em grandes ou pequenos amplificadores, literalmente perfurou uma série de espaços sonoros já estabelecidos culturalmente, introduzindo vozes, notícias e músicas que passaram progressivamente a se entrelaçar às experiências locais de maneira singular. Evidentemente que esta experiência radiofônica vivida no Brasil, com intensidade, durante a década de 40 e 50, sofrendo a concorrência da emergência da televisão nos anos 60, vai muito além de seu potencial de ampliar referenciais musicais e alterar paisagens sonoras sociais. É que a Era do Rádio também significou a disseminação invisível/sonora dos diagramas de força e das relações de poder de sua época. Entre interesses do Estado, do Exército, da Indústria e das elites financeiras, o rádio no mundo moderno participou e foi o veículo ''oficial" de projetos de produção de subjetividades organizadas numa certa ordem

277Basta recordar que durante a década de 80 Zé Ramalho – que ainda possuía contrato com a gravadora CBS- produziu e lançou dois álbuns dos cantadores e violeiros nordestinos Oliveira de Panelas e Otacílio Batista.

201 discursiva e social que no caso do Brasil era a da construção das identidades regionais e da identidade nacional. Um exemplo disso é a estatização da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que fora criada em 1936 e já em 1940 passava a operar para os interesses do governo de Getúlio Vargas, transformando-se na porta voz oficial do Estado Brasileiro em suas premissas cívicas, políticas e também culturais. Nas fronteiras nordestinas poderíamos citar as condições de criação da Rádio Jornal do Comércio, em 1948, na cidade Recife, pois como afirmou a pesquisadora em mídias sonoras, Maria Luiza Nóbrega de Morais:

A concessão deveu-se aos interesses de autoridades civis e militares em dotar a região Nordeste de uma emissora que se propusesse a investir na cultura e servir a defesa nacional. Com o intuito de atender a esta última finalidade e de agradecer o empenho do exército, a emissora cria um programa diário - Hora do Exército -

278 dedicado às Forças Armadas para a divulgação de informações do seu interesse.

Mas de maneira muito especifica, o que me interessa nesta discussão em torno da experiência radiofônica diz respeito apenas a emergência de uma transformação na paisagem sonora que o rádio tornou possível, uma paisagem que passou a ser povoada por sons que chegaram com a modernização tecnológica e logo se misturaram aos sons que faziam parte de contextos locais. No caso da região Nordeste não foi diferente. Se antes a maioria da população só tinha acesso à escuta da musicalidade desenvolvida localmente, em pouco tempo sonoridades e vozes de diferentes lugares do país e do mundo passaram a ecoar nas fronteiras da região, o que deu condição de possibilidade para a expressão de certos deslocamentos existenciais que ganharam consistência na década de 70, dentre eles o surgimento de uma psicodelia nordestina que condensava em sua musicalidade a influência da cultura radiofônica, que deu a tônica nas décadas anteriores, antes da consolidação da televisão como meio de comunicação e de propagação cultural hegemônico.

O título dos programas da Rádio Jornal do Comércio, nos anos 50, dão indícios da dimensão cultural de sua programação musical: Protofolia, Senzala, Canaviais, Nordeste, Sambologia, Farrapos, Inconfidência, Ritmo, eram alguns dos quadros que possuíam 30 minutos na programação para transmitir músicas ligadas ao imaginário espacial das identidades regionais do país. Noutro sentido, a Rádio Tamandaré, que pertencia à Assis Chateaubriand, desde o início da década de 50, tendo se consolidado no Nordeste com a

278MORAIS, Maria Luiza Nóbrega de. Anotações para a história do rádio em Pernambuco. In: II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis, 2004, p.5

202 transmissão de novelas radiofônicas, passou a partir da década seguinte a ser uma das principais responsáveis pela disseminação da música produzida nos EUA. Enquanto isso se o ouvinte nordestino sintonizasse nas frequências da Rádio Capibaribe poderia escutar todas as bandas do movimento da Jovem Guarda que despontava no Sul do país. Outro caso que nos diz das relações de poder que atravessavam as frequências do rádio, é o da Rádio Universitária de Recife que, a partir do Golpe de 1964, deixou de transmitir programas de caráter educativo, como a Campanha de Alfabetização criada por e passou a

279 ocupar sua programação com MPB, música clássica e música chamada de folclórica.

Assim, em que consiste o acontecimento da chamada Era do Rádio, no que concerne à modificação da paisagem sonora do Nordeste? De acordo com Murray Schafer, a partir do momento que tecnologias como as do rádio se estabelecem nas pequenas e grandes cidades ocorre um processo de dissociação e fragmentação do ambiente sonoro que vinha sendo experimentado, desde muito tempo. Se antes os sons que podiam ser ouvidos por alguém estavam estritamente vinculados às experiências locais - sejam elas naturais ou culturais - com a introdução das transmissões radiofônicas acontece algo que introduz outros sons, que agora não partem mais de um referencial ou emissor territorializado no espaço (uma pessoa, um animal, um objeto), mas sim de um referencial desterritorializado, dissociado das fronteiras espaciais e culturais da localidade. Para Schafer, esse fenômeno cria uma mudança na paisagem sonora dos locais a qual ele nomeou de ''esquizofonia", uma característica sonora que passou a ganhar consistência com a modernização, no século XX.280 Com o rádio o ambiente sonoro foi tornando-se cada vez mais esquizofônico, ou seja, dissociado, fragmentado, fraturado por sons e músicas trazidos de fora dos contextos locais, pelas frequências radiofônicas as quais os sujeitos estavam expostos diariamente. No caso da região Nordeste, podemos dizer que com o rádio pequenas e grandes cidades deram vida a um ambiente sonoro repleto de linhas de fuga que acabaram abrindo – e é isso que nos

279Idem p. 5-16

280De acordo com Murray Schafer: ''desde a invenção dos equipamentos eletrônicos de transmissão e estocagem de sons, qualquer som natural, não importa quão pequeno seja, pode ser expedido e propagado ao redor do mundo, ou empacotado em fita ou disco, para as gerações do futuro. Separamos o som da fonte que o produz. A essa dissociação é que chamo esquizofonia, e se uso, para o som, uma palavra próxima de esquizofrenia é porque quero sugerir a vocês o mesmo sentido de aberração e drama que esta palavra evoca, pois os desenvolvimentos de que estamos falando tem provocado profundos efeitos em nossas vidas." In: SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1992, p. 172

203 interessa aqui - novas possibilidades de escuta musical e, posteriormente, de criação sonora de uma musicalidade nordestina, porém afetada por tal acontecimento.

Brejo do Cruz, Campina Grande, Recife, Petrolina, São Bento do Una, Caruaru, dentre outras, são algumas das cidades em que viveram estes jovens do udigrudi pernambucano, quando crianças e adolescentes. Nestas cidades, a radiodifusão foi responsável pela disseminação de uma série de músicas produzidas em outros contextos, músicas que não costumavam serem escutadas nestes espaços e que estavam distantes da representação sonora que estava estabelecida como sendo ''nordestina", na época. Imaginem por um instante que com amplificadores nas praças das cidades, com os chamados autofalantes ou difusoras, presentes nas festas ou importantes acontecimentos cívicos ou políticos, as músicas que tocavam no rádio passaram a se misturar com a música produzida localmente, afetando de maneira sutil a escuta das pessoas. Nisso consiste a emergência de uma certa esquizofonia nas fronteiras imaginárias do Nordeste. Andando por Campina Grande, por exemplo, podia se ouvir cantadores, repentistas, violeiros, aboiadores, emboladores e, ao mesmo tempo, se reunir no fim de tarde para ouvir os cantores da Rádio Nacional como Orlando Silva, Cauby Peixoto, os sambas de Ataulfo Alves, o próprio Luiz Gonzaga, além de músicas tradicionais de outras regiões do país, músicas norte americanas como as de Elvis Presley, Ray Charles, rock inglês, iê-iê-iê, dentre outros sons. Era o que atravessava a programação de emissoras em seus quadros diário, o que promovia uma verdadeira viagem musical por diferentes espaços. Portanto, convém considerar que esta musicalidade vinda de fora do Nordeste, aos poucos foi se mesclando ao universo de referências dos mais jovens, que foram criados desde cedo no interior deste entrelaçamento sonoro esquizofônico,

De certa maneira, o que procuro demonstrar neste tópico é que estas experiências musicais agenciadas através das transmissões de rádio criaram um ambiente propício para que, nos anos 70, estas misturas ganhassem consistência, através da produção musical de artistas como Ave Sangria, Lula Côrtes, Zé Ramalho, Alceu Valença, Flaviola, Lailson, Marconi Notaro, dentre muitos outros, que não chegaram a gravar seus discos e dos quais não temos registro sonoro nenhum. Isso apenas para nos ater ao udigrudi pernambucano. Numa entrevista, concedida em 1975, para a jornalista musical Ana Maria Bahiana, que foi veiculada pelo Jornal de Música do Rio de Janeiro, nos anos 70, Alceu Valença falou sobre a influência do rádio em suas formação musical, quando adolescente:

204 Nessa época eu comecei a ouvir rock, Elvis Presley, Ray Charles. Não fui atrás. A coisa foi chegando e entrando no meu ouvido. E eu senti muito, porque achei muito parecido com aquilo que eu já conhecia e gostava, o rojão. Como aquela choradeira do Elvis, aquele oh-oh-oh- oh, puxa, eu disse, isso é arretado igual violeiro, choradeira de violeiro, sabe como é? E depois o Ray Charles, aqueles blues em que as mulheres respondem lá atrás, bem alto, é igual cantoria, também. Então você vê como aconteceu? As coisas foram chegando e se 281 completando.

''A coisa foi chegando e entrando no meu ouvido", disse Alceu nesta entrevista, em que se buscava, justamente ,compreender de que maneira se formou a sonoridade que o compositor pernambucano estava desenvolvendo, ao lado de uma série de outros músicos que também estiveram imersos na experiência do udigrudi em Recife e que gravaram com ele, nos discos Molhado de Suor, de 1974, Vivo, de 1976 e Espelho Cristalino, de 1977. Nesse sentido, sua fala se estende à uma ampla experiência que atravessou as décadas de 50 e 60 com a Era do Rádio, uma experiência que, de certa maneira, tornou possível a criação de novas associações entre as sonoridades tidas como nordestinas e as sonoridades trazidas pelas frequências da difusão radiofônica. Os sons chegando, com outros timbres e outros idiomas, foram progressivamente sendo assimilados aos contexto local da Região Nordeste e certas relações sonoras e poéticas foram sendo captadas. Dessa esquizofonia, introduzida com o universo sonoro do rádio – sintoma da modernização tecnológica -, tornou-se possível a elaboração estética de um outro tipo de sonoridade, que desterritorializa o Nordeste tradicionalista, a partir dos anos 70 e da qual Alceu foi um dos inventores: a de Nordestes Psicodélicos que davam audibilidade à uma musicalidade que não era saudosista face ao imaginário regional, nem tampouco fechada em si mesma, mas que respondia positivamente - e não reativamente - a esta dissociação de fronteiras, que desde anos antes, já vinha transformando o próprio ambiente cultural das cidades da região. O desafio e a cantoria, estilos musicais desde muito incorporados na musicalidade da população nordestina, sendo comparados às sonoridades de Elvis Presley e Ray Charles. Da dissociação esquizofônica à uma nova associação sonora e

281Entrevista publicada orginalmente no Jornal de Música do Rio de Janeiro sob o título de ''O Taumaturgo Crazy do Nordeste" e, posteriormente, publicada no livro: BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB nos anos 70. 30 anos depois. Rio de Janeiro. Editora Senac Rio, 2006, p.280-1.

205 poética. Da desterritorialização da paisagem sonora à uma reterritorialização expandida à experiência do rádio que marcou a juventude destes compositores.

É evidente que outras tendências musicais já faziam das misturas e hibridismos, entre dadas sonoridades introduzidas pela esquizofonia radiofônica, uma maneira de criar novas paisagens sonoras. É o caso, por exemplo, dos compositores ligados à Bossa Nova, que ao introduzir acordes e dissonâncias em voga no jazz norte-americano, acabaram criando um novo estilo, em pouco tempo tomado como símbolo da nova música brasileira, no final dos anos 50. No caso do Nordeste, temos também a figura de Jackson do Pandeiro, que misturava rojão e coco de embolada ao samba e ao jazz tocado no rádio. Contudo, no âmbito das tendências musicais e comportamentais da cultura de massas da década de 60, foram os compositores ligados ao tropicalismo que deram margem à novas possibilidades de misturas e hibridismos na música brasileira. Figuras como Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinam, foram fundamentais para a enunciação deste tipo de transformação cultural que o país viveu, a partir dos anos 50, com modernizações tecnológicas como as introduzidas com a Era do Rádio. Basta recordar do álbum conceitual Tropicália ou Panis et Circenses, de 1968, onde numa canção como ''Geleia Geral", composta por Torquato, anunciava-se esta nova associação imagética e sonora da cultura brasileira, num refrão que unia a dança do bumba-meu-boi – folclorizada por pensadores tradicionalistas- ao iê-iê-iê - gênero musical que havia se tornado popular entre a juventude brasileira, influenciada pelos conjuntos de rock do rádio e da TV:

Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê

282 É a mesma dança, meu boi

Segundo Chistopher Dunn, ao sugerir as possibilidades de novos híbridos culturais, baseados nas danças tradicionais e no rock, a música contestava noções vigentes de autenticidade cultural no Brasil.283 É que esse tipo de mistura feria concepções espaciais já bastante arraigadas na maneira de pensar e sentir de autores ligados ao pensamento folclórico

282Gilberto Gil e Torquato Neto. Geléia geral. Tropicália ou panis et circensis. Rio de Janeiro: Philips, 1968.

283DUNN, Chistopher. Brutalidade Jardim: A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p.118

206 e tradicionalista, que falavam em nome do Nordeste. Não é a toa que Torquato Neto escreveu no encarte do álbum em questão: ''Será que Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que o bumba-meu-boi e iê-iê-iê são a mesma dança?".284 Ora, se com o tropicalismo esse tipo de mistura antropofágica se anunciava de maneira contundente na expressão artística destes sujeitos, imersos na indústria cultural de sua época, isso não significa que estas experiências esgotaram as possibilidades de associação e fusão de dados elementos culturais, que até então não vinham sendo tomados numa mesma matéria de expressão, nem tampouco significa que este tipo de experimentação pertença apenas ao ''legado tropicalista". Com o tropicalismo este tipo de abordagem sonora e poética apareceu como índice de uma mudança mais ampla que atravessava a sociedade, era o surgimento de uma contracultura brasileira, que os discos da época anunciavam. A experiência radiofônica de anos anteriores foi fundamental neste processo de hibridização, pois foi a base musical em

285 que estes sujeitos se criaram.

Mas isso vale também para a turma do udigrudi pernambucano, que passou a gravar seus discos nos anos seguintes, o que não significa que devemos considerar suas experimentações sob a alcunha do termo ''pós-tropicalista". A experiência radiofônica, do ponto de vista musical, foi mais um dos acontecimentos da Modernidade que contribuiu para uma certa dissociação das fronteiras regionais, na medida que seus habitantes foram cada vez mais entrando em contato com a música produzida fora da região, nisso que estou chamando de uma esquizofonia nordestina. Se o tropicalismo foi uma ruptura em sua época - no que concerne à música - isso se deve, dentre outras coisas, ao fato dos seus compositores terem captado e inserido em suas sonoridades essa influência radiofônica, como quando Caetano Veloso citava com sua voz o estilo de cantar de uma figura como Orlando Silva, um dos ícones dos programas de auditório da Rádio Nacional. É quase como uma reminiscência dos

284Idem p. 118

285Numa matéria para a Revista Rolling Stone, Julio Hungria comentou sobre a influência do rádio na formação de musical de Gilberto Gil: ''Ele, o mortal que aos domingos de noite, na sua cidadezinha no interior da Bahia, concentrava-se diante do altofalante para ouvir Calouros em Desfile de Ari Barroso. E pairou aí sobre as influências do rádio na sua formação, confessando tão abertamente quanto Caetano fizera em 1968, a importância que terá tido na sua formação musical a audiência diária da música dos discos, diversificada no veículo de massa num grau que seria impossível se obter de uma discoteca doméstica, por mais equipada que ele pudesse estar[...]Descubra você mesmo. Gire o botão por toda a régua do dial. Mesmo quando se volta depois ao altofalante, o rádio limpo e amigo certo, a gente ficou sabendo mais um pouco - um som diferente, a informação nova". In: Rádio: vamos girar o botão. Rolling Stone, n. 2, 15 de Fevereiro de 1972, p.18

207 tempos de infância no Nordeste, dos tempos do auge da chamada Era do Rádio, que estava rompendo com a paisagem sonora da região e atravessando o inconsciente musical desta geração criada antes da popularização da TV.

O que distingue a turma do udigrudi, no contexto musical da década de 70, na região Nordeste, é justamente o fato de terem seguido tecendo associações entre ritmos locais e sons incorporados pelas frequências do rádio. Enquanto a música Armorial procurava fechar o som do Nordeste em si mesmo, numa clara reação à esta esquizofonia da qual venho falando, dando vida a uma música regional de matriz erudita, que negava e deixava de fora de suas fronteiras toda essa experiência moderna, introduzida com o rádio e, posteriormente, com a disseminação de discos, a turma do udigrudi, por outro lado, ampliava as possibilidade de conexão ao enunciar que o Nordeste não era apenas a musica do sertão e do litoral, mas também a música do sertão e do litoral atravessada por novas frequências como rock, pop, samba, bossa nova, jazz, blues. Se havia uma matriz sonora e poética associada a uma ideia de tradição nordestina, com o frevo, o maracatu, a ciranda, o baião, a cantoria, etc, cabia experimentar essas sonoridades e sintonizá-las em frequências que condensavam a experiência urbana das cidades. No psicodelismo do udigrudi, em Recife, não havia o que deixar de fora, tudo poderia se fazer presente, se misturar, ser experimentado numa livre associação sonora de caráter anárquico, que feria os ouvidos mais tradicionalistas e puristas face a ideia de ''cultura nordestina'', justamente pelo fato de introduzir a dissociação e a fragmentação que foi se tornando presente nas fronteiras do Nordeste, a partir da esquizofonia introduzida pela experiência radiofônica.

O último álbum lançado pelo Selo Solar foi o do jovem cantor Flaviola. Ao que parece, ele havia surgido no cenário musical pernambucano, em 1971, com suas apresentações no Teatro Popular do Nordeste e com o coletivo musical Arame Farpado, que costumava se apresentar nas performances ligadas ao tropicalismo pernambucano, junto ao LSE ou ao Coletivo Nuvem 33. Em 1972, o jovem compositor também foi o responsável pela trilha sonora de um espetáculo teatral infantil de Eduardo Maia chamado ''Nos Anéis de Saturno", que contava uma história tematizada em cenários ligados ao espaço sideral, onde os atores da Trupe Júpiter, entre estrelas e planetas, levavam as crianças que iam ao teatro da Fafire para uma viagem cósmica.286 O fato é que, o disco chamado Flaviola e o Bando do Sol

286Nos anéis de Saturno. Jornal do Comércio. Caderno de Cultura. 06 de Maio de 1972, p. 8

208 foi lançado, pelo Selo Solar, em 1976, e apresentava em sua última faixa uma música que começava com um riff de guitarra típico do iê-iê-iê mas depois transformava-se num frevo carnavalesco ritmado por chocalhos e uma guitarra com bastante distorção, como era típico do rock psicodélico dos anos 70. Essa canção, que se chamava ''Asas pra que te quero" provavelmente foi apresentada, em setembro de 1976, no evento Vamos Abraçar o Sol, festividade que estava sendo organizada pela Rede Globo, na Avenida Boa Viagem, para abrir a programação cultural do verão em Recife. A letra da música dizia:

Por que você não brinca de trocar de alma comigo nesse vendaval Por que você não brinca de trocar de asas comigo nesse carnaval Porque a gente pode fazer tudo ficar mais legal nessa decadência geral Porque a gente pode fazer tudo ficar mais legal 287 nessa caducancia total

A performance de Flaviola não agradou a plateia pernambucana, as cópias de seu recém lançado álbum foram arremessadas para a multidão como uma estratégia de disseminar o disco, que havia sido gravado na Rozemblit, em parceria com Lula Côrtes, Kátia Mesel, Paulo Rafael e Zé da Flauta, mas as pessoas o devolviam jogando de volta para o palco como quem desaprovava e repudiava aquele tipo de experiência musical e também existencial dos jovens ligados à contracultura. Seu estilo desinibido, desbundado e, muitas vezes, com caracterização andrógina durante os shows, já havia lhe custado uma ida ao Departamento de Polícia local, após sua performance ''Quizaro", em 1973, no I Parto de Música Livre, e agora, em 1976, ele fazia a festa no palco com seu hibrido de frevo e rock afirmando que mesmo ''nessa decadência geral", ''nessa caducancia total", tudo ainda poderia ficar mais legal. Essa curtição rockeira soava mal aos ouvidos da maioria da população pernambucana, mas, ao mesmo tempo, seus versos anunciavam uma liberdade de criação que passou incompreendida no evento. É que Flaviola e sua banda estavam associando numa mesma canção gêneros que não deveriam se misturar na perspectiva tradicionalista, que imperava à época como paradigma de escuta do que seria a ''verdadeira" música nordestina, uma música que o

287Flaviola. Asas pra que te quero. Flaviola & o bando do sol. Recife: Selo Solar, 1976.

209 público parece não ter gostado de ouvir sendo tocada por artistas nascidos nas fronteiras do Nordeste. Mas essa associação sonora nada mais era que a hibridização à que estes sujeitos estiveram expostos, ao longo de suas vidas, escutando a programação radiofônica e que agora davam expressão em suas composições. A esquizofonia que construiu uma dada escuta, desde a infância, se materializava na produção musical desses artistas. Apesar disso, a vaia correu solta e ninguém entendeu nada, pois a mistura que tinha seu espaço e era elogiada em eventos de caráter mais underground, soava ofensiva à uma ideia de ''cultura oficial" nordestina, que estaria sendo desrespeitada em alto e bom som nas ruas do Recife.

Toda essa indignação do público presente no evento fica mais fácil de entender se considerarmos que a apresentação que antecedeu a de “Flaviola e o Bando do Sol” foi a da Orquestra Armorial, pertencente às iniciativas do Movimento Armorial, capitaneado pelo escritor Ariano Suassuna. A Orquestra subiu ao palco vestindo elegantes smokings e, provavelmente, apresentou ao público o repertório do álbum Chamada, que havia sido lançado em 1975, pelo selo de música regionalista Discos Marcus Pereira. Sendo a música Armorial a expressão da ''cultura oficial" da época, em Pernambuco, tendo em vista as ligações institucionais que envolviam o movimento cultural de Ariano Suassuna, que estava ligado ao Conselho Federal de Cultura e ao Conselho Estadual de Cultura pernambucano, criado por ele mesmo, que recusava agressivamente esse tipo de experiência musical, a apresentação foi bem recebida, aplaudida, aceita pelos ouvidos de uma multidão que entendia que ali sim estava se fazendo música nordestina '' de verdade".

O evento organizado pela Rede Globo é emblemático deste momento cultural que se vivia na capital pernambucana, pois uniu experiências musicais antagônicas, como bem afirmou o historiador Guilherme Cobelo, em sua pesquisa sobre o udigrudi pernambucano.288 E esse antagonismo passa pela compreensão de que o evento aglutinou duas paisagens sonoras do Nordeste, que expressavam dois territórios existenciais também antagônicos: o de um movimento intelectual e artístico que tendia a ideia de elaboração de um '' fechamento sonoro e estético" da região, amparado numa sensibilidade saudosista e idealizadora do passado, e do outro lado uma efervescência que ficou marcada pela abertura sonora, estética,

288COBELO, Guilherme. Pelo Vale de Cristal: udigrudi e contracultura em Recife ( 1972-1976). Monografia em História. Brasília. UNB. 2011, p. 81

210 mas também existencial, diante dos limites e dos tradicionalismos arraigados quando o assunto era fazer música no Nordeste, durante a década de 70.

Ave Sangria: desbunde nos meandros da indústria fonográfica

Até o início da década de 70, as grandes gravadoras que atuavam na indústria cultural, no Brasil, investiam muito pouco em lançar bandas de rock. Em grande medida, fazer rock no país era algo que ainda pertencia à uma cultura underground, restrita à pequenos nichos da juventude ligada ao desbunde e a maioria dos grupos costumavam se apresentar em pequenos espaços e com condições técnicas muitas vezes precárias. Havia pouco interesse comercial em grupos deste gênero, sobretudo quando eles não buscavam reproduzir a sonoridade de bandas estrangeiras. Os Mutantes, e algumas outras bandas, já possuíam uma extensa discografia, neste período, mas seus discos nunca obtiveram uma grande circulação e vendagem, o que obviamente não está relacionado à qualidade da sonoridade mas sim ao próprio momento que a indústria fonográfica atravessava. O fato é que o interesse das gravadoras no rock ''Made in " ainda estava se formando. A coisa começou a mudar de vez entre 1973 e 1974, quando bandas que construíam uma sonoridade própria, com características rockeira, passaram a fazer grande sucesso comercial, tornando-se um verdadeiro fenômeno da cultura pop em expansão e acompanhando o fluxo de crescimento de

289 um mercado consumidor de discos muito maior do que nas décadas anteriores.

A situação começou a mudar de vez com o fenômeno de vendas dos lançamentos de bandas como Secos & Molhados, Novos Baianos e do álbum Gita, do compositor baiano Raul Seixas. Nessa época, o Selo Continental, que pertencia à empresa Gravações Elétricas S.A., decidiu gravar o primeiro álbum desta banda recém formada que era o Secos & Molhados. O trio, composto pelos músicos João Ricardo, Gerson Conrad e pelo até então ator de teatro e vendedor de artesanato Ney Matogrosso, simplesmente ultrapassou totalmente as expectativas da gravadora em matéria de sucesso alcançado por uma banda, que nunca havia

289A expansão da indústria cultural no Brasil pode ser percebida se considerarmos o crescimento vertiginoso de discos vendidos entre as décadas de 60 e 70. Se em 1966, cerca de 5 milhões de discos foram vendidos, em 1979 este número subiu para cerca de 53 milhões de unidades. O crescimento econômico que o país atravessara com as medidas do chamado ''milagre econômico" tornou o terreno fértil para a indústria de discos. Além disso, o público consumidor também passou a ser composto pelas camadas jovens das grandes cidades, que até então não representavam um público consumidor expressivo. Para mais informações sobre a indústria fonográfica deste período ver o capítulo: A consolidação da indústria fonográfica no Brasil. In: VICENTE, Eduardo. Música e Disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90. Tese de Doutorado em Comunicação. São Paulo. ECA/USP, 2002, p.49-85

211 lançado nada anteriormente, o que os surpreendeu. Segundo o jornalista musical André Barcinski:

O Selo Continental não acreditava no disco e havia prensado apenas 1.500 cópias. Acabou vendendo 300 mil cópias em três meses. A demanda foi tão grande que, no final de 1973 , a gravadora ficou sem vinil para fabricar discos - situação que se complicou ainda mais por causa do embargo do petróleo pelos países árabes no mesmo ano, causa de uma das grandes crises econômicas da década. A solução foi derreter discos encalhados para fabricar mais LP´s do grupo.

Nesse sentido, entre 1973 e 1974, de maneira meteórica e impensada, o álbum que na sua capa trazia a cabeça destes jovens desbundados, servidas em bandejas – alegoria que também funcionava como um recado simbólico, diante do cenário de repressão e perseguição que estava posto na sociedade brasileira - tornou-se um fenômeno de vendas. Para se ter uma ideia, foi a primeira vez que o já '' Rei" Roberto Carlos teve um álbum seu superado nas paradas de sucesso. Essa popularidade, conquistada rapidamente, fez a banda circular por todas as regiões do país, apresentando um show singular, com músicas que misturavam rock, psicodelia e música caipira à letras que tocavam em questões como a sexualidade, as guerras atômicas, os sonhos de transformação social arrasados pela ditadura, dentre outros temas, que eram expressos partindo dos territórios existenciais de jovens ligados à contracultura no país. No palco, os Secos & Molhados se destacavam, sobretudo, pela performance de Ney, que maquiado e com pouquíssima roupa, dançava e se remexia dando visibilidade à sua androginia nos palcos por onde a banda passava. Ao chegarem à Recife lotaram o maior ginásio da cidade e causaram alvoroço nos jornais, pois todos queriam ver e ouvir este show que destoava do que costumava referenciar o interesse do grande público e que estava

290 fazendo sucesso até entre as crianças, que também queria se maquiar como os músicos.

Outra banda que passou à integrar o casting do Selo Continental, em 1973, foram os Novos Baianos. Como se sabe, não se tratava apenas de uma banda, mas também de uma típica comunidade hippie dos anos 70, que vivia coletivamente já fazia alguns anos, na cidade do Rio de Janeiro. Neste ano, o grupo estava morando num sítio em Jacarepaguá e seu dia a dia costumava ser divido entre compor, ensaiar e jogar futebol, algo que literalmente fazia a

290Secos & Molhados levaram 20 mil ao Geraldão. Jornal do Comércio. Recife. Caderno de cultura. 10 de Setembro de 1974, p. 2

212 cabeça do pessoal da banda, que possuía até seus próprios uniformes.291 Não é a toa que o nome dado ao disco foi ''Novos Baianos F. C." Neste mesmo ano, o empresário dos Novos Baianos, um sujeito chamado Paulo Lima, acabou entrando em contato com o momento musical criado pelos jovens músicos do udigrudi pernambucano. Ele estava de passagem por Recife e foi assistir uma apresentação da banda Ave Sangria, que já vinha circulando por diversas cidades do Nordeste, levando para os palcos um som pesado, que misturava suas duas guitarras de rock ao baião, com letras ácidas e irreverentes compostas por Marco Polo e pelo contrabaixista Almir Oliveira.

Paulo Lima, além de empresário dos Novos Baianos, também trabalhava como uma espécie de ''olheiro" do Selo Continental, que estava à procura de lançar mais discos de bandas de rock, visando esse mercado de jovens consumidores de música, que vinha ganhando espaço no país com a expansão da indústria fonográfica e de revistas voltadas para a divulgação de novos lançamentos, como era o caso do periódico Rolling Stone. Durante o ano de 1974, os Secos & Molhados já haviam se dissolvido com a saída de Ney Matogrosso, mas o Selo Continental continuava na ativa e agora seguia à procura de outras bandas que pudessem render lucro à gravadora – sim, quando o assunto é a indústria fonográfica, o que está em questão é sempre a possibilidade de obter algum lucro e para o caso dos músicos, poder sobreviver da música que fazem, o que era algo raro neste período, ainda mais se você fizesse rock e viesse das fronteiras do Nordeste, o que era algo tido como ''improvável" entre àqueles que acreditavam que só havia folclore e regionalismo na região. De todo modo, após assistir o show da Ave Sangria, em Recife, Paulo conversou com os integrantes e disse que entraria em contato para uma possível gravação de um LP e foi o que acabou acontecendo de fato. Meses depois, o grupo composto por Ivinho, Almir, Paulo Raphael, Agricio Noya, Israel Semente Proibida e Marco Polo desembarcava no Rio de Janeiro para entrar em estúdio e gravar seu primeiro álbum.

Numa entrevista, no final do ano de 1974, o cantor Marco Polo comentou que outra gravadora da indústria fonográfica já havia sondado a banda para gravar um disco. O contrato só não foi firmado pois, de acordo com o jovem compositor, a ideia dos executivos da

291A vivência dos Novos Baianos no sítio de Jacarepaguá foi tematizada em um documentário sobre o grupo, que foi lançado em 1975 num canal de TV da Alemanha. Ver: Novos Baianos FC. Direção: RIBEIRO, Solano. Rio de Janeiro, 1975, 44min. Link disponível: https://www.youtube.com/watch?v=eW5rjGmfbAs ( Acesso em 18/03/2017)

213 empresa era justamente modificar o som que faziam, desfigurando e deixando de fora sua atitude rockeira e desbundada, na tentativa de fazer sua sonoridade soar mais '' regionalista" e assim parecer com a do Quinteto Violado, banda que estava fazendo relativo sucesso no eixo Rio-São Paulo, desde 1972, e que, como o próprio nome já diz, fazia um som distante das guitarras elétricas e mais próximo do terreno da MPB e das pesquisas folclóricas que ligavam a música feita no Nordeste às paisagens e sonoridades rurais e não aos ruídos urbanos da contracultura jovem, como era o caso da Ave Sangria. Na entrevista em questão o cantor Marco Polo comentou que:

Toquinho, Caetano, Gil, já conheciam nosso trabalho. Os representantes das gravadoras iam ver nossos shows. E começou a circular o boato que iriamos gravar. Até que um dia, antes de seguir para a Bahia recebemos um convite de uma gravadora do Sul para fazer um LP. Acontece que eles queriam que nós fizéssemos um trabalho paralelo ao do Quinteto Violado, pois eles estavam procurando um concorrente para o Quinteto. Aí nós dissemos que não interessava e continuamos

292 trabalhando.

Essa passagem nos ajuda a compreender certas dinâmicas que atravessavam a relação entre artistas e gravadoras, que muitas vezes estavam à procura de fazer contratos com bandas interessadas em transformar radicalmente o seu som, de acordo com as demandas da empresa no mercado musical, baseando-se em outros grupos que estavam fazendo relativo sucesso. O Ave Sangria foi uma das muitas bandas que não toparam esse tipo de transformação radical em relação ao som que faziam, ainda mais se o caso fosse fazê-los soar como o Quinteto Violado, que literalmente não tinha nada a ver com o rock pesado – influenciado por bandas como Rolling Stones - cheio de solos de guitarra da banda pernambucana. O ápice desse tipo de situação mercadológica, na década de 70, foi o fenômeno comercial dos de cantores que ficaram conhecidos posteriormente como os '' falsos gringos". Ao perceberem que o público estava consumindo muita música estrangeira, os executivos das gravadoras passaram a lançar cantores brasileiros que deviam lançar seus discos cantando em inglês, usando inclusive nome de ''gringo". A busca por destaque no mercado da música fez, por exemplo, um tal de José Carlos Gonsales virar Dave Maclean,

292Ave Sangria vai mostrar '' Perfumes & Baratchos". Jornal do Comércio. Recife. Caderno de Cultura. 27 de Dezembro de 1974, p. 9

214 Fábio Jr, virar Mark Davis. Fábio Jr., inclusive, era aconselhado, pelos executivos, a nem falar com os fãs, para que não descobrissem que de inglês o cantor paulista só tinha o nome 293 estampado no seu LP.

A banda Ave Sangria - que antes se chamava Tamarineira Village - foi um dos conjuntos mais atuantes de jovens ligados à contracultura na região Nordeste. Em Recife, o grupo já havia organizado alguns eventos pela cidade como o ''Fora da Paisagem" , o ''Concerto Marginal", costumavam tocar com frequência no Beco do Barato294 e participaram do ''Concerto Chaminé". Seu cantor - Marco Polo - apresentou-se no Festival ''Sete Cantos do Norte". Eles também foram impulsionados a existirem enquanto banda após os encontros da ''I Feira Experimental de Música do Nordeste", em 1972, época em que Marco Polo havia retornado à Recife, após alguns anos vivendo na cidade do Rio de Janeiro e acabou entrando em contato com a turma, que no bairro da Tamarineira, já vinha ensaiando e tocando. Mesmo com as dificuldades de manter uma banda de rock em atuação, nessa época, nas fronteiras do Nordeste, a banda passou a transitar com frequência para se apresentar em cidades da Paraíba, Ceará, Bahia e Rio Grande do Norte, onde tocaram, em 1973, no Festival do Sol, que aconteceu no gramado do estádio de futebol Juvenal Lamartine.

Tamarineira Village até que soava bem para um nome de banda, mas bastava sair de Recife e ninguém entendia mais a origem deste nome, os integrantes tinham que ficar explicando o tempo todo e, ao que parece, logo perceberam que não funcionaria manter esse nome para uma banda que estava procurando ganhar espaço, no cenário musical, e cada vez mais sair das fronteiras de Pernambuco e até mesmo do Nordeste. Como explicitei no

293Sobre o fenômeno dos ''falsos gringos" da música brasileira ver: ''Feelings" versus '' Rock do Diabo"- falsos gringos e demônios de verdade. In: BARCINSKI, André. Pavões misteriosos 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 47-67

294O ano de 1972 também marcou a transformação do espaço onde antes funcionava o Teatro Popular do Nordeste, na cidade Recife, em Beco do Barato, onde várias bandas do udigrudi pernambucano passaram a se apresentar com frequência. O espaço que antes era ocupado por figuras como Ariano Suassuna transformou-se num lugar de experimentações e curtições da turma do udigrudi. Numa matéria de jornal anunciava-se: '' O velho e notável sobradão da Conde da Boa Vista onde funcionava o Teatro Popular do Nordeste foi inteiramente transformado pelo jovem estudante de arquitetura Henrique Ernesto Severino Neto para nele se instalar o Beco do Barato. Acontece que o Beco começa muito bem, com uma sala ampla, no melhor estilo colonial, onde se pode drincar, pedir dois ou três pratos típicos e ouvir música com shows improvisados. Mas o Beco continua e vai terminar em uma espécie de ''drug store" com livraria, discos, jornais, um barzinho e bossas outras. No primeiro andar, uma galeria de arte permanente. Vi de perto essa semana e gostei. Será mais uma atração para Recife depois de inaugurado." In: Beco do Barato. Jornal do Comércio. Recife. Caderno de Cultura. 24 de Maio de 1972, p. 3

215 primeiro capítulo, Tamarineira Villlage fazia uma dupla referência espacial: o primeiro é um bairro do Recife, onde foi construído o segundo hospital psiquiátrico brasileiro, em fins do século XIX, o Hospital da Tamarineira. Village, por outro lado, se refere ao bairro nova yorkino Greenwich Village, que ficou conhecido, ao longo do século XX, por ser um espaço constituído de minorias que viviam na cidade norte-americana. Imigrantes, boêmios, descendentes de escravos, hippies, beatniks, freaks, dragqueens, o bairro era notório por ser um espaço de alteridades onde as personae non gratae da cidade viviam.

Ao que parece, a banda buscava acionar o imaginário e as representações em torno destes dois espaços, para afirmar sua posição marginal no cenário cultural da cidade de Recife, que à época tinha no Movimento Armorial a expressão de sua ''cultura oficial". Contudo, a mudança para Ave Sangria parece sugerir que a turma de cabeludos também estava ligada na questão comercial que envolvia seu trabalho como banda, atravessada pela cultura pop de sua época, e que estava à procura de alçar novos voos, tanto é que esta transição foi explicada nos jornais da época pelo guitarrista Paulo Raphael de maneira bem humorada, como fruto de um inusitado encontro:

Aconteceu de estarmos em fevereiro passado pesquisando violeiros no interior da Paraíba. Numa estrada perto da cidade de Cajazeiras, batemos numa casinha para pedir água e descansar um pouco. Morava lá uma personagem sui generis: uma velhinha cigana que escrevia poemas louquíssimos e que após termos cantado umas canções para ela soltou uma frase delirante que nos deu o nome. Ela disse: '' Vocês são uma ave sangria riscando o céu como um grito de fogo!" Nesse

295 momento encontramos o nome que tanto procurávamos.

Num documentário sobre a trajetória da banda Ave Sangria, gravado no início dos anos 2000, o cantor Marco Polo comentou que essa história de ter encontrado uma cigana na cidade de Cajazeiras foi uma invenção nos anos 70, uma espécie de narrativa mítica que a banda introduziu para justificar poeticamente a troca de nome.296 Ao que parece a elaboração ficcional desse encontro também funcionou como uma espécie de artificio pop diante do próprio momento que a Ave Sangria vivia no cenário musical pernambucano. Noutra matéria

295Ave Sangria foi gravar LP. Jornal do Comércio. Recife. 24/05/1974, p. 7

296Ave Sangria: Sons de gaitas, violões e pés. Direção: VENICE, Rebeca; Uchoa, Raynaia e BARROS, Thiago. Recife, 2008, 20 min. Link disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hNYF5gHlFRs ( Acesso em 19/03/2017)

216 para o Jornal do Comércio, que anunciava a ida da banda ao Rio de Janeiro, para gravar seu primeiro álbum, dizia-se para os leitores da cidade: ''O Ave Sangria não é simplesmente um conjunto de rock. É um conjunto que, do baião ao rock, é o mais barra-pesada do Nordeste."297 Mas a história é curiosa e mostra que eles buscavam afirmar, na mídia local, uma nordestinadade em sua própria condição de existir, afinal teria sido uma cigana de Cajazeiras que, ao ouvir os rocks da banda, lhes batizou com o nome de Ave Sangria, o que segundo Marco Polo poderia ser sintetizado da seguinte maneira: o sangria, pelo lado forte, sanguíneo, violento do Nordeste. O ave, pelo lado poético, símbolo da liberdade do nosso 298 trabalho.

Nessa época, os próprios músicos tentavam, assim, explicar o entusiasmo que lhes atravessava com a possibilidade de produzir seu LP, de talvez estourar nas paradas de sucesso e consolidar-se como essa ' ave sangria riscando o céu como um grito de fogo", da qual falou Paulo Raphael. É o que sugere também uma pequena nota que nos jornais anunciava a ida da banda ao Rio de Janeiro:

O grupo liderado por Marco Polo, Ave Sangria, ex-Tamarineira Village, viajará hoje para o Rio de Janeiro a fim de gravar um LP pela Continental. Estamos certos de que o grupo pop pernambucano tem bastantes condições para fazer sucesso

299 nacional pois criatividade não falta ao jovens.

Mas a realidade das condições de produção de um disco de rock, na indústria fonográfica da época, não estava submetida apenas à criatividade dos artistas envolvidos. O contexto de produção de um álbum - algo que os jovens cabeludos de Recife conheciam muito pouco - logo trouxe as expectativas da banda para uma realidade que não lhes agradou e que acabou interferindo no resultado final do álbum: o estúdio só estaria disponível para a banda por cinco dias, pois a gravadora não queria dispender dinheiro por mais tempo que isso e o produtor musical responsável pela gravação entendia muito pouco sobre o universo sonoro que a banda estava elaborando nos palcos nordestinos. Essa marca sonora que emergiu com a turma do udigrudi de misturar rock psicodélico com ritmos regionais era algo

297Ave Sangria vai mostrar '' Perfumes & Baratchos". Jornal do Comércio. Recife. Caderno de Cultura. 27 de Dezembro de 1974, p. 9

298Passagem encontrada no site do selo Ripohlandya Records: http://www.ripohlandya.com.br/o-selo ( Acesso em 20/03/2017)

299Ave Sangria foi gravar LP. Jornal do Comércio. Recife. 24/05/1974, p. 7

217 completamente estranho aos ouvidos da maioria dos sujeitos envolvidos na indústria fonográfica.300 O produtor foi Márcio Antonucci, um dos cantores de uma dupla vocal da Jovem Guarda chamada Os Vips. A mistura que a Ave Sangria fazia entre baião, forró e rock provavelmente não fazia muito sentido para o universo de referências do produtor e sua estratégia de gravação acabou sendo apaziguar o peso da percussões e as guitarras do som do grupo e dar mais ênfase ao som acústico dos violões. Ainda havia muito da sonoridade rockeira da banda, é evidente, nem todas músicas perderam seu peso original. Houve até a participação do músico Zé Rodrix ,gravando sintetizadores na primeira faixa, mas o disco acabou não soando como a maioria do público das cidades nordestinas e os próprios músicos estavam acostumados a ouvir. Ainda assim, o LP é um marco importante da pequena discografia produzida pela turma do udigrudi pernambucana, que nos permite ouvir as paisagens sonoras destes Nordestes Psicodélicos.

Mas o que estou procurando demonstrar é que o caso da banda Ave Sangria é singular na história deste momento de experimentação movido pelos jovens músicos do udigrudi pernambucano nos anos 70. Eles não fizeram como Lula Côrtes, Zé Ramalho, Lailson, Marconi Notaro e Flaviola, que gravaram seus discos de maneira quase que artesanal, nos estúdios que estavam ociosos da gravadora Rozemblit, em Recife, que perdia espaço no mercado musical, justamente devido à expansão das grandes gravadoras transnacionais.301Ao invés disso, as possibilidades que se abriram para a banda acabou os levando para o centro da indústria fonográfica do eixo Rio-São Paulo, com um esquema de tempo muito mais corrido, com estratégias mercadológicas que freavam certas experimentações e dessa relação emergiram estas tensões que apontam para o campo de forças que estava em voga no período, no universo das gravadoras. Apesar da autonomia, do espaço de tempo mais alargado e da livre experimentação no processo de gravação dos álbuns que a turma do Selo Solar conseguiu desenvolver, chegando até a acampar no pátio da Rozemblit, durante as

300Pode-se dizer que esta tendência só veio a se consolidar no mercado musical nacional a partir de 1977, com o lançamento do álbum ''Espelho Cristalino" de Alceu Valença. Não é a toa que Alceu contratou os músicos que antes tocavam no Ave Sangria para fazer parte da composição sonoridade deste álbum, é que eles já vinham desde antes desenvolvendo essa mistura musical.

301Sobre as condições técnicas de produção do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, por exemplo, Zé Ramalho comentou que: '' Era assim: duas caixas de som nas paredes do estúdio. Não havia headphone. Fizemos milagres com as montagens e ideias arrojadas. Um lado do disco não tem quase intervalo, as faixas são ligadas. Não existia isso de fade in, fade out, cara. Era uma coisa muito artesanal, fitas coladas com durex. In: TELES, José. Op. Cit. p. 193

218 gravações302, as possibilidades de fazer o som circular efetivamente na própria cidade de Recife e em outras regiões eram baixíssimas e a tiragem de cópias para cada disco não ultrapassou 1.500 unidades, fazendo de suas produções elementos que permaneceram restritos à cultura underground de sua época. Por outro lado, ao ligar-se à uma gravadora do eixo Rio-São Paulo, abria-se uma brecha para a Ave Sangria que poderia fazer o som da banda chegar de forma mais eficaz e ampla aos ouvintes do país. Apesar disso, a autonomia e livre experimentação cedia espaço ao crivo de um produtor que, mesmo bem intencionado, não sabia direito o que fazer com o som do grupo.

Nem a capa do álbum saiu conforme a banda desejava. O desenho feito pelo músico e cartunista Lailson - que havia gravado Satwa com Lula Côrtes em 1973 - era o de uma ave vermelha voando com as asas bem abertas e uma face '' mal-encarada", tudo muito próximo da imagem de rockeiros mal-encarados que o grupo encarnava em suas performances na cidade. Mas aí veio o Selo Continental e fez outra ave, tomando apenas como referência à imagem de Lailson e nem sequer lhe pagando os direitos autorais pelo desenho. Apesar de tudo, o álbum finalmente foi lançado no segundo semestre de 1974, com a capa escolhida pela empresa e tudo estava indo bem. A canção mais tocada nas rádios pernambucanas era o irreverente samba de breque ''Seu Waldir". A Ave Sangria finalmente chegava nas frequências do rádio e o que todos que já conheciam o som deles esperavam é que a banda ganhasse cada vez mais espaço no cenário musical do país. No entanto, ainda estávamos na ditadura e bastou o som da banda ser notado com mais atenção por certos ouvidos conservadores da capital pernambucana para que a censura fosse acionada. Tudo por causa desta letra que narrava um causo de amor entre dois homens:

Seu Waldir, o senhor

Magoou meu coração

302No processo de gravação dos discos do Selo Solar não havia a figura do '' produtor musical" como era o caso de Marco Antonucci, no Selo Continental, onde a Ave Sangria gravou seu álbum. Essa ausência de uma certa estrutura profissional, que atravessava as grandes gravadoras da época, é o que torna a musicalidade dos discos do Solar anômala em relação ao que se costumava fazer dentro dos estúdios de gravação no país. Nesse sentido, Lula Côrtes fala do tempo que dispunham para gravar e de como isso contribuiu para o resultado final da sonoridade : ''às vezes começavam pela manhã e entravam pela noite. A gente teve sorte de pegar a Rozemblit com os estúdios ociosos, então não tivemos problemas de tempo. Gravamos em quatro canais, quase sem recurso algum, não dando muita chance à playbacks e coisas do gênero. A sonoplastia, os efeitos e detalhes eram introduzidos na hora, dentro do estúdio e valendo. Cada tema era executado duas vezes, sendo depois ouvido por todos e escolhíamos um deles como sendo o definitivo." Passagem encontrada em: COBELO, Guilherme. Pelo Vale de Cristal: udigrudi e contracultura em Recife. Monografia em História. Brasília. UNB, 2011, p.57

219 Fazer isso comigo, Seu Waldir

Isso não se faz, não

Eu trago dentro do peito

Um coração apaixonado

Batendo pelo senhor

O senhor tem que dar um jeito

Se não eu vou cometer um suicídio

Nos dentes de um ofídio vou morrer

Estou falando isso

Pois sei que o senhor

Está gamadão em mim

Eu quero ser o seu brinquedo favorito

Seu apito, sua camisa de cetim

Mas o senhor precisa ser mais decidido

E demonstrar que corresponde ao meu amor

Pode crer

Se não eu vou chorar muito, Seu Waldir

Pensando que vou lhe perder

303 Seu Waldir, meu amor...

Aí a situação complicou de vez para a banda Ave Sangria. O disco, que tinha passado sem nenhum impedimento pelo crivo dos censores, devido às denúncias que julgaram esta letra uma ofensa à moral e aos bons costumes, de uma sociedade machista e homofóbica, como a do Recife de então, fizeram com que a censura fosse acionada novamente e dessa vez não teve jeito: a ordem foi para retirar o disco das prateleiras do país, excluir esta música do LP e aí assim, lançar o álbum novamente. Isso foi o suficiente para desestabilizar o ritmo que atravessava a indústria fonográfica ao lançar um novo álbum e fazer com as intenções da Ave Sangria declinassem subitamente. A banda já havia até gravado um videoclipe para o Fantástico - programa dominical da Rede Globo que, dentre outras coisas, exibia vídeos de bandas que estavam em voga no período - mas ele nunca foi lançado, assim como o LP que, após ter ficado alguns meses fora de circulação, não voltou às prateleiras com o mesmo

303Ave Sangria. Seu Waldir. Ave Sangria. Rio de Janeiro: Continental, 1974.

220 impacto que poderia ter alcançado. A possibilidade de seguir trabalhando com música foi se esgotando para a banda. Tudo era muito desgastante, alguns já tinham filhos, outros trabalhavam em empregos paralelos e ninguém havia ganho quase nada durante o tempo que estiveram tocando, ensaiando e viajando pelo Nordeste. Sobreviver de música era um '' barra pesada".

Assim, a partir de 1974 – com exceção do baixista Almir e do cantor Marco Polo - todos os outros integrantes da Ave Sangria passaram a tocar na banda de Alceu Valença. Com o cantor de São Bento do Uma participaram da gravação do álbum Molhado de Suor, deste mesmo ano, apresentaram-se no Festival Abertura da Rede Globo, em 1975, com a música ''Vou Danado pra Catende", fizeram a turnê do show '' Vivo", em 1976, e também gravaram o LP Espelho Cristalino. A sonoridade que desenvolviam, desde 1972, com a Tamarineira Village e depois Ave Sangria foi se mesclando ao universo musical que movia as pesquisas de Alceu e dessa amálgama resultaram discos que foram ganhando espaço no mercado musical dos anos 70 e consolidaram o compositor pernambucano no cenário musical do país.

As últimas apresentações da Ave Sangria, durante esta época,304 aconteceram em Dezembro de 1974. Foram duas noites com o Teatro Santa Isabel lotado de pessoas para assistir o show que se chamava '' Perfumes & Baratchos". As apresentações tiveram seu áudio gravado e, em 2014, foram remasterizadas e lançadas em vinil pelo selo pernambucano ''Ripohlandya Records". Nelas podemos ouvir o som da banda tal qual lhe agradava fazer nos palcos, com muitas improvisações, riffs e solos guitarra bem arranjados por Ivinho e Paulo Raphael e um peso percussivo da bateria e dos tambores que, intercalados, faziam da sonoridade do grupo essa mistura '' pesada" entre o rock setentista e as variações rítmicas de matriz regional. Enquanto lá dentro do Santa Isabel a banda fazia sua apresentação, lá fora a ditadura seguia implantada e sob esta ambivalência de um teatro lotado com jovens ligados à contracultura mas vigiado pela polícia, a banda fez ecoar pelo espaço canções como esta, chamada '' Lá Fora", que evidenciava de maneira poética a situação conturbada dos anos 70:

Lá fora é esse mormaço

Lá fora é esse cansaço

304Nos últimos anos a banda retomou suas atividades e vem se apresentando esporadicamente ao redor do país em festivais de música. Sua última apresentação, antes da conclusão da escrita desta dissertação, foi no carnaval de Olinda, em 2017.

221 E essa busca histérica

Por uma bola vermelha

E esta busca histérica

Por uma bola vermelha

Lá fora é esse sol aberto

Lá fora é essa árvore

E o silêncio costurado

Na boca de um guarda

E o silêncio costurado

Na boca de um guarda

Lá fora é esse pássaro

Lá fora é essa menina

E a tempestade de sabres

Amarela e linda

E a tempestade de sabres

Amarela ainda

Não se enterre na solidão

Não se enterre na solidão

Não se enterre na solidão

Não se enterre na solidão

305 Não se entregue! O silêncio costurado na boca do guarda, o cansaço diante da situação política do país, o mormaço do Sol quente que atravessava e ainda atravessa Recife, todos os dias, as árvores, as buscas histéricas, as tempestades imaginárias de sabres, mas também um pássaro e uma menina voando e andando livres no mundo morto lá fora. Desse universo de relações que entrança consigo diferentes aspectos do cotidiano numa mesma canção, o que se destaca é este chamado que desfecha a música. A busca da juventude ligada à contracultura se dava pelo encontro, pela troca, pela intersecção entre um eu e um nós, pela tessitura de comunidades emergentes que pudessem lhes fazer sobreviver e experimentar a vida com alegria, mesmo que em meio aos conflitos diários, que assolavam a vida cotidiana dos

305Ave Sangria. Lá fora. Ave Sangria. Rio de Janeiro: Continental, 1974.

222 indivíduos destoantes das expectativas de '' normalidade", de uma sociedade que parecia estar doente aos olhos destes jovens, que sabiam que aquilo de costurar silêncios iria passar e que, por isso mesmo, o chamamento fundamental era o de não se enterrar, de não se afundar numa solidão submersa em impossibilidades. A vida, se esperava que não fosse apartada em isolamentos compartilhados, mas sim vivida à céu aberto, na rua, mesmo que na presença de guardas com silêncios costurados em suas bocas.

A mim, o que a canção da banda sugere, passa por uma performatização que nos informa de que, nas fronteiras das experiências do udigrudi pernambucano, resistir era existir, era deixar de assistir calado, afundado num sofá, as ficções tramadas pela mídia à serviço de generais, era sair para respirar o ar lá fora, se juntar nas praças e cantar e tocar e curtir juntos o mundo da maneira que fosse possível, já que a catástrofe deste mesmo mundo era constituinte do ambiente claustrofóbico de um regime político asfixiante, que até o disco da banda acabou engolindo, por conta de uma letra que – pelo fato de apresentar o que ao olhar conservador era um desvio anormal - foi proibida de circular, pela força das relações de poder de uma cultura homofóbica, patriarcal e tradicionalista, que estava do lado da ''Família Tradicional Brasileira", da '' Propriedade", do '' Nordeste de sempre", mesmo que para isso precisasse se impor aos corpos de outrem e não só aos seus próprios, pelo exercício de uma autoridade delirante que é parte constituinte do colonialismo violento que atravessa e é constituinte da história do Brasil. "Lá Fora" também pode ser esse colocar-se em movimento sem saber para onde se vai e ainda sim, seguir, e quem sabe depois até voltar - transformado e sobrevivente - ao lugar de onde se partiu um dia. E quando se estiver lá novamente dizer - dentre outras coisas - como o compositor Marco Polo disse na canção ''Cidade Grande", evocando uma situação que foi muito comum nas experimentações, temporárias e contingentes das vivências da contracultura nos anos 70306:

Oi mamãe, aqui estou eu

O seu filho ainda não morreu

306Apesar de situar sua perspectiva no contexto da década de sessenta, acredito que isso que é dito pelo historiador Edwar de Alencar Castelo Branco valha também para pensar essas dinâmicas que suscitaram criações como a da canção '' Lá Fora" da banda Ave Sangria. Na introdução de sua tese o autor afirma que '' De maneira geral, os sujeitos que viveram os anos sessenta tiveram uma clara percepção de que o mundo estava cindido entre o '' lado de dentro " e o '' lado de fora", exatamente no sentido de se estar ou não articulado aos nomes e significados construídos culturalmente. Dentro e fora no período, portanto, eram entidades que demarcavam as fronteiras de um mundo ordenado, nomeado, significado e regulado. Estar por fora era não habitar o universo de nomes estabelecidos pelas formas dominantes de pensamento" Ver: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Op Cit. p. 18

223 307 Dizem até que ele nasceu outra vez

Nesta outra canção, chamada '' Momento na Praça", o compositor Marco Polo narrou uma destas experiências com LSD, vivida em conjunto nas madrugadas da cidade, provavelmente em alguma praça na ruas de uma Recife percebida desde um corpo que parece estar se desmanchando temporariamente em estados de percepção alterado: Primeiro as pernas voaram De borracha, de nada Ou músculo leve Salto livre O suficiente pra planar E o corpo todo foi atrás Em cima, embaixo dos lados, no meio Centro do mundo E os violões brilharam sobre a noite Enquanto as lâmpadas de mercúrio Iluminaram a praça Caracóis, pedras e lesmas Pernas roçam de leve o chão E os olhos abertos E o sorriso E os olhos abertos E o sorriso

308 De quem se liga no mar O corpo solto saltava livre, em cima, em baixo, no meio, emergindo em deriva como centro de um mundo descentrado e através desse descentramento, que lhe tomava por completo, notava o brilho, das lâmpadas, dos violões, que juntos iluminavam este momento na praça, ao longo da madrugada. As pernas que mais pareciam de borracha, elásticas em seu desmanche quase que surrealista, sugeriam ao corpo um planar distante do solo. Mas, enquanto isso, os caracóis e as lesmas se arrastando pelas pedras pareciam evocar a vida de seres pequenos, que vistos com atenção, nos dizem sobre a eterna persistência da gravidade da Terra. Então as pernas roçaram de leve o chão novamente e com os olhos abertos, olhando

307Ave Sangria. Cidade Grande. Ave Sangria. Rio de Janeiro: Continental, 1974.

308Ave Sangria. Momento na praça. Ave Sangria. Rio de Janeiro: Continental, 1974.

224 uns para os outros, os corpos sorriram o sorriso de quem se liga no movimento cósmico do mar, enquanto se arrasta pela Terra, sem muita escapatória diante da gravidade, juntos na praça pregados ao solo tocando seus violões. Estes Nordestes Psicodélicos expressos musicalmente – como procurei apresentar ao longo deste capítulo – foram vivenciados, experimentados e são constituídos de uma série de momentos e, grande parte destes momentos, não habitam este texto. O que disponho são apenas cortes curtos, pequenos takes e flashs de situações que se deram entre 1972 e 1976, na cidade de Recife. Fragmentos sonoros, poéticos e existenciais que, juntos, formam uma pequena constelação na noite da história, produto de uma juventude que buscava fôlego na música e no espaço, para existir e resistir juntos, além das fronteiras que se impunham, seja no contexto político e social, seja no ordenamento da própria ideia do que representava fazer ‘’música nordestina”, em sua época. Nesse ponto, as experiências psicodélicas parecem ter funcionado como ferramentas para esta busca por um “lado de fora”, mesmo que fosse momentaneamente fora: uma escapada cósmica, diante das tensões que atravessavam este planetário que havia se tornado o mundo, pensado e sentido desde as fronteiras imaginárias de um Nordeste, em grande medida fora da paisagem, precário, mal visto, distante da cercas fechadas das “culturas oficiais”.

225

226 Conclusão

As vivências musicais experimentadas nos anos 70 na cidade de Recife sob os influxos dos modos de subjetivação da contracultura, tornaram possível a experimentação sonora e poética de psicodelias nordestinas compostas musicalmente em plena ditadura civil e militar que estava posta no país. Vivia-se uma situação psicodélica de experimentação entre os sujeitos que ecoou musicalmente numa atitude estética de dissolução de fronteiras quanto aos limites impostos à música feita no Nordeste e foram esses gestos desterritorializantes que meu trabalhou procurou cartografar. Nesse sentido, a operação historiográfica que perpassa esta dissertação buscou traçar um espaço narrativo para compreender movimentos de dispersão, de abertura do espaço regional Nordeste para o universal, o cósmico, o estrangeiro. Partindo das movimentações musicais do udigrudi pernambucano entre 1972 e 1976, meu intuito foi traçar três movimentos de análise distintos em cada capítulo, onde as relação entre história e espaço aparecem de maneiras diferentes mas correlacionadas em suas problemáticas.

No primeiro capítulo, propus uma cartografia de experiências contraculturais onde pudemos captar certos deslocamentos que se deram na primeira metade da década de 70 entre parte da juventude brasileira diante do momento político que vivia o país. Como procurei demonstrar, esse período marcado pela expansão de mecanismos como a censura e a repressão política às minorias suscitou uma certa urgência de experimentação das linguagens artísticas em sua potência de reinventar as condições de existência de um presente muito restrito do ponto de vista político e de funcionar como uma alternativa de sobrevivência coletiva entre parte da juventude que não estava de acordo com as formas de pensamento e os modos de vida dominantes. Os eventos, performances, festivais, músicas e poesias que integram o primeiro capítulo estão ali para nos fazer perceber que a emergência de uma cultura underground no país está atrelada ao nomadismo existencial que ganhou corpo com as movimentações contraculturais da década de 60, que seguiram influenciando futuras gerações como à da turma de artistas que viviam em Recife entre 1972 e 1976. A metáfora dos '' bichos-grilos" está ali apenas para evocar uma imagem sonora deste fenômeno musical: à margem das '' culturas oficiais" nordestinas, distantes dos holofotes da indústria cultural do período, buscando aproximar-se das forças da natureza e abrindo-se à experimentação de outros modos de vida na cidade, a música feita por estes jovens foi entendida aqui como expressão dessa sobrevivência contracultural proferida desde uma situação underground mas não submersa.

227 No segundo capítulo meu objetivo foi partir da condição de existência do álbum Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol para demonstrar que naquele intuito de fazer expedições coletivas e experimentações psicodélicas na região da Pedra do Ingá e depois criar um álbum conceitual em torno do mito de Sumé e do caminho Paêbiru, havia uma série de elementos que nos dizem sobre as transformações dos modos de pensar e sentir experimentadas com os eventos da Era da Espacial, sobretudo nos territórios existenciais da contracultura durante a década de 70. Aqui me interessou compreender que a emergência de um novo interesse por saberes como o esoterismo, a ufologia, o misticismo, a astrologia, as filosofias orientais e as culturas arcaicas, se deu em grande medida como resposta ao impacto da expansão de fronteiras que se consolidou a partir da Corrida Espacial, onde a categoria de ''Cosmos" parece ter retornado à superfície do mundo tensionada sob esta diferença nas experiências cotidianas. Nesse sentido, o álbum em questão nos ajuda a compreender que nesse momento de intenso rearranjo das fronteiras enunciativas, os limites imaginários da Região Nordeste também foram afetados por especulações desta natureza, uma vez que as sobrevivências arcaicas de um passado longínquo do território foram entrelaçadas ao ambiente especulativo que estava em voga neste período. Este encontro com as inscrições da Pedra do Ingá parece estar entrelaçado à busca por uma ligação com a experiência de habitantes arcaicos da Terra. Neste capítulo, sugeri que era a própria divagação sobre a dimensão cósmica da experiência que aflorava entre os anos 60 e 70 e o processo de criação deste álbum parece trazer à tona um fragmento destes Nordestes Psicodélicos que em seus disparates e rupturas de fronteira integram esse momento de redefinição de fronteiras, em que a região se torna cósmica e desterritorializada sob os influxos do que vinha se dando no Planeta.

No terceiro capítulo, a partir do conceito de paisagem sonora, procurei demonstrar – brevemente - que existe um longo processo de formação de um regime de audibilidade da Região Nordeste que vem se dando desde o início do século XX. Considerando esta participação da musicalidade no que concerne à invenção da identidade espacial nordestina, meu intuito foi explicitar que a movimentação musical desencadeada pelos jovens artistas que faziam parte do ''udigrudi pernambucano" da década de 70 nos permitem escutar uma fissura, uma descontinuidade, uma quebra na maneira de evocar o Nordeste através da música. É que as paisagens sonoras e poéticas destas psicodelias nordestinas compostas e inventadas musicalmente foram, intencionalmente ou não, na contramão das tendências folclóricas, tradicionalistas e armoriais de sua época, que em grande medida buscavam consolidar uma

228 música definidora de identidades, que para ser “verdadeiramente nordestina" deveria manter- se distante dos ruídos urbanos do mundo contemporâneo. Contudo, como aponta a análise de sonoridades e letras compostas à época, entre a turma ligada ao udigrudi a miscelânea não encontrava limites e passava pelo rock, maracatu, embolada, blues, modos de cantoria e viagens psicodélicas, orientalismo, viola sertaneja, rock progressivo com baião, dentro outros ritmos e sons. Não haviam pretensões vanguardistas, nem tampouco consolidou-se como um '' movimento" ou como uma '' cena", ao invés disso, me parece que estes Nordestes Psicodélicos estão mais próximos de uma efervescência, de uma rápida ebulição que logo se esvaneceu mas que deixou suas marcas como um momento musical de intensa experimentação e rupturas, que catalisou as transformações culturais de sua época sem pretender se fechar em fronteiras, abrindo literalmente ao muitos universos que integravam a vida cotidiana de uma Recife cosmopolita.

Em todos os capítulos o que podemos observar é que, no encalço destas experimentações sonoras, poéticas e existenciais, o início da década de 70 aparece como este momento em que tomava-se cada vez mais consciência da condição planetária da jornada humana na Terra, seja nas ciências, nas artes, nas filosofias ou na profusão das imagens midiáticas. Nesse sentido, o advento da contracultura foi uma tomada de atitude diante desta perspectiva onde o sujeito se percebe como habitante de um Planeta, no interior de uma galáxia da qual desconhece seus limites e de um Cosmos que extravasa a noção comum de '' universo" pois de unívoco o ''universo" tem muito pouco ou quase nada.

Mas não se trata de romantizar, nem tampouco idealizar estas vivências tecidas coletivamente à época, pois a condição de existência delas também aponta para uma estratégia de vida diante dos fracassos vividos no mundo cosmopolita da cidade. É que em sua origem etimológica a palavra fracasso remete a uma percepção sonora de que algo acaba de se espatifar. Fracasso remete ao ruído, ao estrondo, ao barulho provocado pela queda e quebra de um objeto. Na sociedade brasileira experimentava-se o fracasso de uma possível transformação social democrática, o ambiente político estava tomado por generais ligados à setores conversadores das elites e a mídia ganhava cada vez mais o estatuto de formadora de opinião hegemônica através da qual ouviam-se muito pouco dos ruídos e contestações que afloravam cotidianamente. As heterotopias inventadas entre os jovens ligados na contracultura se davam como forma de seguir vivendo e criando diante dessa sensação de que momentaneamente a situação estava perdida para um regime conservador que vinha

229 mostrando sua face mais violenta nos anos 70. Assim como a escapada cósmica que tematizei no segundo capítulo, ela também aconteceu diante do fracasso de um mundo que persistia em se destruir em guerras por territórios e por hegemonia política e econômica. A ameaça atômica se fez presente o tempo todo como parte dos eventos da Era Espacial, como fantasmagoria da Guerra Fria, sempre cercando os sonhos dos habitantes do planeta e nesse cenário era o fracasso da própria Terra que poderia se consolidar. Nada mais plausível que vislumbrar outras possibilidades à distância no tempo e no espaço. Por fim, estas psicodelias nordestinas construídas musicalmente por estes jovens também fazia soar o fracasso de um Nordeste Saudosista e Tradicionalista que buscava se impor como ''cultura oficial" regional mas que já não dava conta de manter distante dos processos culturais tecidos no interior das fronteiras imaginárias da região uma série de experiências inerentes ao mundo contemporâneo. É sob os ruídos destes e outros fracassos que a própria construção, mesmo que temporária, de um outro modo de vida fazia-se uma urgência presente na existência cotidiana de parte da juventude.

Esta dissertação poderia ter traçado muitos outros caminhos de pesquisa. Alguns me vieram em mente durante o processo mas foram abortados, outros passaram desapercebidos e só agora anunciam algumas das várias lacunas que por aqui circulam. Uma série de elementos e situações acabaram não aparecendo ao longo dos capítulos, entrevistas que seriam realizadas acabaram não acontecendo, certas canções e matérias ganharam destaque ao invés outras. Enquanto escrevo esta '' conclusão" por exemplo, me dou conta que ao me focar na produção musical do período, acabei destinando pouca atenção ao '' Livros das Transformações", obra que foi escrita por Lula Côrtes e diagramada por Kátia Mesel no ano de 1975.

Trata-se de um livro-objeto que ganhou uma tiragem de 500 cópias em sua época. Sua capa e seu design representam a forma de uma cabeça virada de lado e a cada página que se vira há fragmentos escritos, imagens, desenhos, marcas contidas no interior dessa cabeça- livro escrita por Lula Côrtes no início da década de 70, em suas derivas pelas matas, mangues, avenidas, praias, ruas e viadutos de uma Recife densa em seus contrastes cotidianos. Cidade recortada por ônibus enfileirados em grandes avenidas à pessoas que na lama viviam espremidas em mocambos e barracos. Entre vários versos encontro um que me chama atenção e é com este fragmento que me permito dar um ponto final nesta dissertação: Todos os dias são hoje

230 Todo o passado é o que vem Todo futuro é o que há

E todo o presente é o resultado de uma junção mágica Que une os tempos de uma forma ilógica

A verdade é que a noite é certa E divide em 2 um só período... ( CENA )

Ânforas escuras com fundos sem fim Espaços e planetas pássaros atravessando o céu Entre as frestas de palha do barraco

Tempo enfim.

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FAIXAS DO CD DA DISSERTAÇÃO: 1– Ave Sangria – Dois Navegantes 2– Flaviola & O Bando do Sol – Desespero 3– Flaviola & O Bando do Sol – Noite 4– Ave Sangria - Lá Fora 5- Zé Ramalho - O Sobrevivente 6- Lula Côrtes e Zé Ramalho - Nas paredes da pedra encantadas 7- Lula Côrtes e Zé Ramalho - Trilha de Sumé 8- Lula Côrtes e Lailson - Valsa dos Cogumelos 9 – Lula Côrtes e Lailson - Allegro Piradissimo 10– Alceu Valença e Sérgio Ricardo – Canção do Espantalho 11- Alceu Valença – Vou Danado pra Catende 12 – Marconi Notaro – Desmantelado 13– Marconi Notaro – Made in PB 14– Marconi Notaro – Maracatu 15– Alceu Valença – Papagaio do Futuro 16– Zé Ramalho e Lula Côrtes – Martelo Alagoano ( Zé Limeira ) 17 – Flaviola & O Bando do Sol – Asas Pra que te quero

244 18– Ave Sangria – Seu Waldir 19– Ave Sangria – Momento na Praça

245