FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

A DANÇA DA MODA: COMO MEDIADOR CULTURAL (1946 - 1954)

APRESENTADA POR

RENILDO CARLOS FERREIRA

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO: MARCO AURÉLIO VANNUCCHI LEME DE MATTOS

Rio de Janeiro Março/2020

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO: MARCO AURÉLIO VANNUCCHI LEME DE MATTOS

RENILDO CARLOS FERREIRA

A DANÇA DA MODA: LUIZ GONZAGA COMO MEDIADOR CULTURAL (1946 - 1954)

Dissertação de Mestrado Profissional apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais.

Rio de Janeiro Março/2020

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV

Ferreira, Renildo Carlos A dança da moda: Luiz Gonzaga como mediador cultural (1946-1954) / Renildo Carlos Ferreira. – 2020. 146 f.

Dissertação (mestrado) - Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Orientador: Marco Aurélio Vannucchi. Inclui bibliografia.

1. Gonzaga, Luiz. 2. Baião (Música). 3. Cultura popular - Brasil, Nordeste 2. Cultura popular - 1946-1954. 4. Música popular. I. Mattos, Marco Aurélio Vannucchi, Leme de. II. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III. Título.

CDD – 782.42164

Elaborada por Maria do Socorro Almeida – CRB-7/4254

Dedico esse trabalho às pessoas que, apesar das dificuldades políticas, sociais e econômicas, acreditam no poder da educação para a construção de um Brasil menos paradoxo, mais justo e amplamente democrático. Também, aos migrantes nordestinos que fizeram do Rio, em algum momento de suas vidas, a sua casa, o seu refúgio e o seu recomeço nos momentos de saudades do “torrão” natal.

AGRADECIMENTOS

Em busca do engrandecimento acadêmico ou profissional parte de uma série de possibilidades e oportunidades de observar o mundo, está a minha gratidão às pessoas que contribuíram para minha formação como cidadão e historiador. Nenhuma página nesse trabalho existiria sem apoio, oração, esperança, honra, expectativa e pensamentos positivos de gente que fizeram - e fazem - o meu dia-a-dia. Como migrante, várias memórias afetivas compuseram de forma enriquecedora novos olhares. Sendo assim, agradeço: Ao programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais e ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) por maximizarem o que aprendi na graduação de historiador, após os quatro semestres de disciplinas, aulas, congressos e seminários, evidenciando uma nova dinâmica nas discussões intelectuais em sala e trazendo uma pluralidade a partir de uma base curricular essencial na construção dessa dissertação. É uma honra pessoal fazer parte, de alguma forma, dessa instituição importante para o desenvolvimento do Brasil. Ao Professor Doutor Marco Aurélio Vannucci Leme de Mattos, pela orientação no desenvolvimento do trabalho, confiança no projeto e ricas reflexões que foram além de uma orientação de mestrado. Apesar de desafiador, o caminho escolhido foi embebido por camaradagem, cafés e conversas que levarei para os próximos passos acadêmicos. Muito obrigado! Da banca de qualificação à mesa de defesa, exponho minha gratidão pelas colaborações das professoras doutoras Vivian Fonseca (FGV) e Juçara Mello (PUC-Rio) por serem vitais para as mudanças, acertos, realinhamentos e melhor fluidez da pesquisa. Suas críticas, sugestões e elogios ajudaram esse trabalho a ganhar novos rumos e interessantes desdobramentos. Demonstro aqui todo o agradecimento pelas conversas formais e informais. Levo meu afetivo abraço e carinho aos demais professores, funcionários e amados companheiros e companheiras de mestrado e de doutorado da FGV/CPDOC. Esse intercâmbio de sotaques, culturas, devires e debates me fizeram um historiador mais ativo, observador e opinativo. Vocês são incríveis. Verdadeiros superadores de dificuldades e exemplos de excelência. Ainda, agradeço aos Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Museu do Gonzagão e Memorial Luiz Gonzaga, que foram fundamentais para a escrita da dissertação e minhas expectativas. Obrigado aos queridos da rua José Maximino Pereira Viana, do bairro Alto da

Maternidade (meu refúgio de sempre) e à terra das Verdes Colinas pelo orgulho de ser morenense. Dos doces de Marlene, ao carinho de dona Lia, dos reforços escolares de Maria e Ritinha e às partidas de futebol com a patota da rua, parafraseando Gonzaguinha, “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse...”. Á Pollyana, minha companheira de vida, parceira e esposa, que sempre fez da sua paciência e amor verdadeiras colaborações, apesar das angústias da distância e da espera espacial e temporal. Seu carinho foi um incentivo para continuar trilhando o nosso caminho. Hoje e sempre, “Eu apenas queria que você soubesse / Que aquela alegria ainda está comigo / E que a minha ternura não ficou na estrada / Não ficou no tempo, presa na poeira”. Amo você, querida! Obrigado tios e tias, primos e primas, sobrinhos e sobrinhas (inclusive, de coração), cunhadas (os), concunhados (as) e sogros. Todo valor das palavras de afeto faz parte de cada página escrita. Nas instituições de ensino a qual passei, aprendi que a dialética, a discussão respeitosa e sadia sobre as diferenças e o debate de ideias em prol da solução dos problemas, quaisquer sejam eles, são essenciais para a construção de um ser humano. Pelos livros, campeonatos, brigas, expulsões, advertências, provas, trabalhos em grupo, elogios e preocupações pedagógicas a respeito do orelhudo que vos fala, obrigado Escola Disneylândia, Escola João de Deus (gratidão eterna), Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas - CODAI em São Lourenço da Mata, Pré-Vestibulares Conexão, Atual e Nicarágua, thanxs! Aos professores, demais alunos e funcionários, deixo meu carinho. Vocês são inesquecíveis. Aos amigos e amigas, virtuais ou reais, irmãos e irmãs que a vida me deu, pelas confidências, pelo playstation, pelas resenhas, pela camaradagem, pelos puxões de orelha (!), pelas confras e pela alegria de saber que a amizade é um bem inesgotável no coração da humanidade. Obrigado a todos os cantores de música popular brasileira, bandas de heavy metal, compositores, poetas, cordelistas, Chaves, Chapolin, a saga Star Wars, revistas em quadrinhos e discos. E, obviamente, ao Sport Club do Recife, pela alegria de ser rubro-negro. Ao Rio de Janeiro, um verso: “Se hoje guardo uma saudade / É enorme a gratidão / E por isso Rio amigo / Te ofereço este baião”. A todas e todos que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma para esta pesquisa. Por fim, louvado seja Deus, os santos, Atena, Amon-Rá, Vishnu, Orixás e demais protetores espirituais que colocaram pessoas tão especiais no meu cotidiano.

RESUMO

Este trabalho analisa o desenvolvimento das representações musicais e simbólicas do cantor e compositor pernambucano Luiz Gonzaga do Nascimento, durante a quarta e quinta década do século XX. Através da sua mediação cultural na fase áurea do baião (1946-1954), o sanfoneiro elevou a temática sertaneja a nível nacional e demonstrou trocas de experiências entre utilizações de tradições de origem e aspectos da sua memória afetiva na explosão de um fenômeno sonoro. A elaboração de discursos para a construção de um imaginário de Nordeste, apesar de construídos na metrópole, fez a música gonzaguiana conquistar espaço no mercado fonográfico brasileiro, ao alinhar sua forma inédita de hibridização cultural, divulgando matrizes regionais e renovando urbanamente o gênero musical baião cujas relações tornaram- se referências coletivas de representatividade nordestina em negociação identitária com o seu ouvinte. Assim, o início da sua trajetória artística nos permite avaliar alguns contextos no ambientes sociais e políticos que permeiam das primeiras excursões dos primeiros grupos musicais regionais nordestinos até o inovador interesse da indústria cultural na sua produção de viés regionalista, amplamente difundido pelo rádio e pela imprensa carioca, alcançando vários círculos sociais e econômicos. Nesse sentido, a integração pensada entre a comunicação pelo rádio e a cultura popular nordestina transformaram o gênero elaborado por Gonzaga e outros parceiros em afirmação sonora e visual nacional, eternizado como herança musical do artista no âmbito do patrimônio cultural brasileiro.

Palavras-chave: Luiz Gonzaga, Baião, Estado Novo, Mediação cultural, Rio de Janeiro, Identidade, Memória, Cultura popular, Nordeste brasileiro, Rádio Nacional.

ABSTRACT

This work analyzes the development of musical and symbolic representations of Pernambuco singer-songwriter Luiz Gonzaga do Nascimento during the fourth and fifth decades of the 20th century. Through his cultural mediation in the golden phase of baião (1946-1954), the accordion player elevated the northeast outback to a national level and demonstrated the exchange of experiences between the use of traditions of origin and aspects of his affective memory in the explosion of a true sound phenomenon and throughout his career. The elaboration of discourses for the construction of an imaginary of the brazilian northeast, despite being built in the metropolis, made the Gonzaguian music conquer space in the Brazilian phonographic market, by aligning its unprecedented form of cultural hybridization, disseminating regional matrices and urbanly renewing the baião musical genre whose relations became collective references of northeastern representativeness and identification in identity negotiation with its listener. The beginning of its artistic trajectory allows us to evaluate some contexts in the social and political environments that permeate from the first excursions of the first regional northeastern musical groups to the innovative interest of the cultural industry in its production of regionalist bias, widely spread by the radio and the press in Rio de Janeiro, reaching various social and economic circles. In this sense, the integration thought of between mass communication by radio and popular culture in the Northeast transformed the genre thought and elaborated by Gonzaga and other partners into a national sound and visual affirmation, eternalized as their musical legacy within the Brazilian cultural heritage.

Keywords: Luiz Gonzaga, Baião, Estado Novo, Cultural mediation, Rio de Janeiro, Identity, Memory, Popular culture, Brazilian Northeast, National Radio.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Rei e doutor do baião Figura 2 e 3 – Flagelados da seca (1877) Figura 4 – Padre Domingos Caldas Barbosa. Figura 5 – Lundu por Rugendas (1835) Figura 6 – Januário, pai de Luiz Gonzaga. Figura 7 – Santana, mãe de Luiz Gonzaga. Figura 8 - Luiz Gonzaga como Soldado do 23º Batalhão de Caçadores. Figura 8 - Luiz Gonzaga como Soldado do 23º Batalhão de Caçadores. Figura 9 – Luiz Gonzaga (1941). Figuras 10 e 11 – Humberto Teixeira, o “doutor” do baião/ Contracapa de “Meus sucessos” (1968). Figuras 12 e 13 - Pedro Raimundo e Luiz Gonzaga. Figuras 14 e 15 – Luiz Gonzaga com cartucheira e trio. Figura 16 – O médico compositor Zé Dantas. Figuras 16 e 17 - Patrulha do baião. Figura 18 - Xisto Bahia (1841-1894) Figura 19 - Bahiano (1870-1944) Figura 20 – Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) Figura 21 - Grupo do Caxangá (1914). Figura 22 - Grupo do Caxangá no carnaval carioca. Figuras 23 e 24 – Os Oitos Batutas Figuras 25 e 26- Anúncios nos jornais abordando a passagem dos Turunas no Rio. Figura 27 - Turunas Pernambucanos (1922). Figura 28 - Turunas com João Pernambuco (1925). Figura 29 - Lampião e seu grupo de cangaceiros (1930). Figuras 30 e 31 – Turunas da Mauricéia. Figura 32 - Manoel de Lima era o “Piriquito”; João Miranda o “Guajurema”; Romualdo, o “Bronzeado”; Frazão era “Riachão”; e Augusto Calheiros, a “Patativa” (apelido que o acompanhou até o final da vida). Figura 33 – Manchete do Jornal “A Noite” em 12 de setembro de 1936. Figura 34 – Emilinha Borba, a Rainha do Rádio (1953). Figura 35 – O populismo de Vargas.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

Capítulo 1 – Da umbigada africana a Luiz Gonzaga: A construção arcaica do baião .... 34

1.1. A hibridez e o desenvolvimento do imaginário nordestino...... 38

1.2. Entre batuques, modinhas e lundus: A conexão que originou a música popular...... 43

1.2.1. Modinha ...... 45

1.2.2. Lundu ...... 50

Capítulo 2 – Mediação social através da sanfona: A asa branca voa no Rio...... 56

2.1. Do Araripe à Rádio Nacional, uma (re)construção sonora ...... 58

2.2. Do sertão ao Sudeste (1929-1940) ...... 65

2.3. A decisão estratégica de um calouro desafiado (1941/1945) ...... 72

2.4. Com Humberto, a consolidação nacional (1946-1950) ...... 79

2.5. De Zé Dantas à Patrulha do baião (1950-1954) ...... 91

Capítulo 3 – Dos Turunas aos Folcloristas da Nacional: Entre mediações culturais, a construção musical de uma nordestinidade no mercado fonográfico...... 97

3.1. Da memória acústica para a capital federal: Um caminho da música regional nordestina...... 99

3.2. O poder social, cultural e político da Rádio Nacional...... 111

4. Considerações finais ...... 131

Anexo ...... 135

5. Referências Bibliográficas ...... 138

Corpus Documental ...... 140

“Quero ser lembrado como o sanfoneiro que amou e cantou muito seu povo, o sertão, que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, os covardes, o amor”. ( Luiz Gonzaga ) 13

INTRODUÇÃO

“No Rio tá tudo mudado Nas noites de São João Em vez de polca e rancheira O povo só pede e só dança o baião No meio da rua Inda é balão Inda é fogueira É fogo de vista Mas dentro da pista O povo só pede e só dança o baião Ai, ai, ai, ai, São João Ai, ai, ai, ai, São João É a dança da moda Pois em toda a roda Só pede baião...”

“A Dança da Moda” foi um grande sucesso. O baião de autoria de Luiz Gonzaga e Zé Dantas em 13 de abril de 1950, para as festas juninas, trazia como referência a explosão do novo ritmo, recolhido no sertão pernambucano e exposto aos holofotes do Rio, a capital brasileira naquele instante. Com o centenário do seu nascimento em 2012, Luiz Gonzaga foi reverenciado pelos quatro cantos do país. De Pai Para Filho, filme dirigido por Breno Silveira, atraiu mais de 200 mil espectadores aos cinemas no primeiro fim de semana em cartaz, arrecadando R$ 2,29 milhões. Mais do que um fenômeno musical, o sanfoneiro de Exu conseguiu ser rememorado por artistas, pela mídia e por pessoas que se identificam e o personificam como a prova viva da cultura do interior nordestino. Seja como biografia1 esgotada em questão de horas, um sucesso de crítica e bilheteria nas telonas ou como

1O livro Gonzaguinha e Gonzagão, Uma História Brasileira, escrito pela jornalista Regina Echeverria e lançado pela Ediouro em 2006, tratou de mostrar a relação entre Luiz Gonzaga e Luiz Gonzaga Jr., importantes artistas da cena musical brasileira do século XX. 14

vendagens interessantes de discos e músicas via streaming2, o legado do rei do baião sempre conseguiu ultrapassar as expectativas do raio de ação da sua influência. Seu gibão e um chapéu de couro trouxeram ao imaginário coletivo do Brasil a oportunidade de conhecer um ritmo único na música brasileira. O trabalho fonográfico do sanfoneiro se confunde com a própria representação social sertaneja ao trazer descobertas, nascimentos, esquecimentos e ostracismos acerca da cultura nordestina para a esfera nacional. Como um verdadeiro bem cultural, sua arte ajudou a evidenciar uma nova forma de identificação regional, somando elementos e discursos que enriquecem o folclore e o conhecimento sobre o cenário nordestino. Com o uso de metódicas análises de bibliografias, discos, músicas e relatos sobre o fenômeno Luiz Gonzaga como manifesto artístico, procurei desenvolver, sob o início da trajetória de vida do músico, uma perspectiva em torno da importância social do baião, abrangendo, sobretudo, as territorialidades e a popularização dessa expressão cultural pela explosão desse ritmo na comunicação e entretenimento de massa. Importante signo musical brasileiro do século XX, Luiz Gonzaga foi um divisor de águas no processo de apresentação, revitalização e divulgação desse gênero, ressignificando as percepções sobre os espaços históricos da sociedade, através de uma relação mais próxima e realista entre presente e passado, incluindo o sentimento de pertencimento do sujeito social e sua identificação coletiva. No século XXI, a música gonzaguiana evidencia elementos e conceitos que identificam uma reflexão sobre componentes simbólicos e identitários essenciais na discussão entre patrimônio imaterial e mediação sociais e culturais. Em Moreno, cidade da região metropolitana de Recife, nasci, passei a infância e adentrei a adolescência em contato com o teor sertanejo dos vinis dos cantores populares que tocavam no velho toca-discos. As anuais visitas a Juazeiro do Norte, cortando todo o agreste pernambucano e o sertão do Araripe dentro de um ônibus de romaria, traziam, apesar das longas horas de translado e das paradas em cidades-chave como Caruaru, Arcoverde, Serra Talhada e Sertânia, um repertório além dos benditos em louvor ao padre Cícero Romão ou Nossa Senhora das Dores. Nesses momentos, entrava em ação uma voz grossa e forte cantando situações que estavam do lado de fora da janela. Ao soarem as inevitáveis “Beata Mocinha”, “A triste partida” ou “Ave-Maria sertaneja”, as declamações existentes nas canções assemelhavam-se

2 Streaming é uma tecnologia que envia informações multimídias, através da transferência de dados e conexões mais rápidas, utilizando redes de computadores, especialmente. 15

com as riquezas naturais e sociais do caminho no asfalto em direção ao sertão do Cariri3. Numa fita k-7, os paradoxos entre a seca, o campo verdejante, a fé, a desesperança, o sacrifício pessoal e a sensação de benção após um ritual popular de rápida diáspora estavam presentes em um dos meus primeiros processos de comparação como indivíduo social.

Eu todos os anos / Setembro e Novembro Vou ao Juazeiro Alegre e contente / Cantando na frente Sou mais um romeiro4

Antes de adentrar no fascínio pelo legado dos oitos baixos de Januário, minha curiosidade pela concepção de Nordeste cultural se deu pelo som dos trombones e trompetes de seu Zé Irene, meu pai. Professor de música e instrumentista itinerante das ladeiras de Recife e Olinda nas folias de Momo, tinha os discos de Gonzagão como um bem familiar. Perguntado sobre o porquê daquele senhor de chapéu de couro e uma sanfona na mão ser tão respeitado dentro de casa, a resposta era a mesma: “Escute a letra e sinta o que ele quer dizer”. Assim, discografias, histórias, opiniões, descobertas de outros artistas, esclarecimentos e outras indagações foram somados ao meu cotidiano ao passar dos anos, acompanhado dos discos dos ingleses The Beatles, Deep Purple, Black Sabbath, Led Zeppelin ou Iron Maiden. A partir de seu Zé, essa espécie de divagação sobre um patrimônio musical e o legado do baião à cultura do país tornou-se uma possibilidade na vida acadêmica, alimentada pelo aprofundamento sobre a música nordestina em termos sociais, históricos e antropológicos. Do ensino fundamental até o término do Ensino Médio, o baião e suas ramificações funcionaram como uma espécie de som ambiente cotidiano, sem grandes desmembramentos. Isso mudou completamente em 2007, quando fui morar e trabalhar no estado do Rio de Janeiro, trazendo uma comparação imediata de culturas e sotaques nas malas. A carreira acadêmica de historiador foi escolhida por um motivo simples: A História, além de ser uma disciplina agradável no colégio, trouxe o prazer da curiosidade sobre as transformações da sociedade em todos os anos de escola primária e secundária. Algo que consegui levar para o ensino superior. Concluída a graduação, procurei outras formas de continuar em atividade intelectual. A construção da monografia foi de vital importância nessa busca de conteúdo, já que evidenciou um leque de informações com trajetos a serem trilhados e relacionados entre

3 A Região Metropolitana do Cariri está localizada no estado brasileiro do Ceará, surgindo a partir da conurbação entre os municípios de Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha e outros municípios menores. 4 Música de João Silva e Luiz Gonzaga, “Viva meu Padim” foi gravada no disco “Forró de Cabo a Rabo” (1986). 16

cultura, música e história, a partir do acúmulo de discussões na academia. Sem expectativas extremas ou demais pretensões, organizei um pré-projeto de mestrado como um primeiro contato com o mundo stricto sensu, visando o ano de 2020. Conheci o programa de Pós-Graduação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC), onde a proposta de trabalho foi aprovada após exaustiva seleção. Minha intenção de efetuar um estudo em torno do fenômeno musical Luiz Gonzaga, hoje, uma página da música popular, sobretudo, no contexto da sua atuação em uma medição social e os intercâmbios obtidos entre níveis urbanos de comunicação e publicidade artístico- musical e a temática nordestina. A falta de pluralidade de produções ou discussões em meio acadêmico sobre o assunto fomentaram essa perspectiva de elencar o baião como um elemento propício à atividade mediadora e possuidor de imaterialidades da nossa cultura e do nosso folclore. Com a tentativa de abordar o assunto de modo diferente do que já tinha lido, essa dissertação busca contribuir para o conhecimento e enriquecimento dos debates acerca da influência da música gonzaguiana no desenvolvimento da identidade nordestina e das representações sociais apresentadas nos processos das suas expressões artísticas. O baião, evidência da diversidade musical popular, foi trazido aos holofotes pelo seu máximo representante, acelerando a consolidação da música regional em pleno Rio de Janeiro, capital do país, no seu período de clímax de evidência. A maximização da memória coletiva e a capitalização da herança cultural emergida da inovação e interpretação de Luiz Gonzaga, nascido no município de Exu, localizado na região do Araripe, em 13 de dezembro de 1912, ajudaram o “sanfoneiro do riacho da Brígida” a interagir suas experiências vividas na fazenda Caiçara, seus contatos com a família Alencar e seu cotidiano urbano nos inúmeros caminhos do profissionalismo da indústria cultural, atingindo diferentes classes e, tempos depois, catalisando um gênero edificador e único da música brasileira. Ritmos como xamego, coco, xote, maracatu, calango e o próprio baião são verdadeiras releituras do Nordeste. Eis o ponto da dissertação: Luiz Gonzaga, além de compositor, cantor e sanfoneiro, foi um mediador de culturas. Ponderando sobre o fenômeno do baião urbano antes e depois de seu divulgador-mor, é possível percorrer um processo de mescla de ritmos portuguesa, africana e indígena, chegando em aspectos do século XVII até meados da década de 1940, onde diversos fatos da sua trajetória de vida alinharam-se a outros gêneros e períodos da própria história social e política do Brasil, apropriados pelo sanfoneiro e incorporados à sua proposta artística, transformando- se em interessantes referências culturais. Ao pesquisar elementos e caracteres do passado, é 17

evidente relacioná-los com o nosso presente. O pouco conhecimento sobre as diferenças identitárias das regiões Norte e Nordeste brasileiras e a falta de oportunidade de trabalho foram inspirações para o futuro rei do baião transportar características e conteúdos inovadores para os discos de vinil e programas de rádio, escrevendo uma página importante na divulgação da música regional e na ampliação da identidade nordestina, fazendo do baião uma integração popular no contexto da comunicação de massa. Na compreensão da época, sem a concepção da história construída em forma linear, a pluralidade social e de seus vieses culturais tornam-se mais uma contribuição do homem como elemento civilizador, excluindo estereótipos e expandindo o fluxo de reconhecimento pelo olhar cultural ao despertar o interesse por suas tradições. A partir do som do sertão, a música de Luiz Gonzaga levou o cotidiano, o folclore, ditados, provérbios, poesias e outros aspectos da cultural popular nordestina para outro patamar de consumo, assimilando o baião ao lúdico dos migrantes e inaugurando uma novidade autêntica, sem padrões internacionais, nas audiências das grandes cidades. Tudo, a partir de uma esquina, de uma gafieira ou do Mangue, na Cidade Nova. Seja no ponto de vista acadêmico, artístico ou literário, o termo “Nordeste” foi recolocado no mapa espacial da cultura com uma interessante relação entre o imaginário personalizado e o poder da comunicação. Musicalmente rico em lembranças, paisagens, saudades, representações cotidianas e descrições de indumentária ou hábitos alimentares, a elaboração das letras, a performance do inédito trio pé de serra ou da mistura de ritmos como o maracatu, coco ou lundu, o baião traz o teor regional para o contexto urbano, convidando o ouvinte, das terras civilizadas ou não, a conhecer um Nordeste diferente da visão estereotipada, tórrida, desértica e miserável. Obviamente, a utilização de certas raízes culturais populares acabou representando, também, uma nova forma de oxigenar a indústria musical. Decidi estudar o baião a partir da música de Gonzagão, pois, no legado musical construído por mais de 50 anos de carreira ativa no cenário regional e nacional, observei que o gênero artístico em questão não apenas atendia ao consumo crescente de signos nordestinos ou do “autêntico” som do sertão. Em ambientes de asfalto e modernidades, esse tipo de ritmo conseguiu criar um terreno rico de sociabilidades, representatividades e exposições de valores culturais. Além da interação plural entre a metrópole e a migração nordestina, através do fenômeno “Luiz Gonzaga”, o baião alavancou contratos, propagandas, novas utilização de programas radiofônicos, patrocínios, vendas de discos e outras formas de produção cultural e musical que se fixaram no contexto da identidade regional. 18

Pessoalmente, da escola João de Deus até o último ano de faculdade, a discografia de Luiz Gonzaga tornou-se uma grande árvore de questionamentos nesse processo de busca de conhecimento sobre o universo do baião antes e depois do seu maior representante. Como método de estudo e objeto de pesquisa, os frutos, a partir das suas canções, foram sendo coletados como oportunidade de conhecer outros artistas, poetas e músicos influenciados por seu pioneirismo, chegando às modernizações daquilo concebido como gênero musical urbano nos anos 1940, consolidador do “som do norte” no mercado fonográfico nacional, evocador de um elemento generalizador e representativo, totalmente diferente da identidade “baiana”, “caipira” ou “carioca”. Dentro dos campos das possibilidades da realização e das interações, a afirmação do baião como gênero de música brasileira é amplamente dinâmico por suas descontinuidades e características únicas, mesmo com seu trânsito em vários elementos econômicos e sociais, apesar do seu apelo poético popular, migrante e reutilizador de vários elementos folclóricos regionais e memórias individuais e coletivas de formas altamente criativas. Tais fontes foram sendo adicionadas ao cabedal acadêmico com a preocupação do surgimento de um diálogo sobre o papel de Gonzaga como um verdadeiro amplificador de novas percepções do presente e reconhecimento de pertença nacional, proporcionando expressões e representações abrangentes de maneira comercial, vendável e amplamente consumida por décadas. No século XXI, o baião gonzaguiano continua integrando uma página do nosso patrimônio imaterial e de nossa formação cultural. Em suas canções, inúmeros signos de ordem nacional estavam nos sucessos ouvidos pelos migrantes que buscavam alimentar esperança e amenizar saudades da terra natal nas metrópoles. Os desesperos pelo novo modo de vida carimbam a música como uma espécie de acolhimento por parte de milhões de pessoas. Entre inúmeros “mundos” no Rio de Janeiro dos anos 40, a capital do país conseguiu evidenciar um locus privilegiado para o desenvolvimento artístico e suas potencialidades. Entre sambas, choros e o crescimento popular do rádio, a imagem do sertão foi sendo aceita por vários processos de auto-estima, contestações sociais e humanas após o surgimento de Gonzaga como artista. Sem dúvidas, uma parte das vivências musicadas na obra do cancioneiro de Exu evidenciou a imagem popular e tradicionalista nordestina, seja pela humildade camponesa das letras ou pelo uso de uma linguagem própria e original, capaz de urbanizar formas de expressões culturais altamente lucrativas e vendáveis, desvendando um processo de ressignificação de tradições e generalização do conceito em torno da identidade a nível regional. Dentre vários parceiros, a dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, vindos de 19

raízes sociais e formações culturais diferentes, transformaram um ritmo essencialmente fora dos contextos urbanizados em um dos movimentos musicais brasileiros mais significativos. Essa reinvenção propagou as representações de propriedade nordestina, evidenciando heranças e revisões folclóricas, das culturas africana, indígena e europeia, contribuindo ricamente para o entendimento sobre o engendramento econômico, político e social da região, com narrativas que relembram desde o período colonial até a decadência do coronelismo nas primeiras décadas do século XX. O recorte histórico dos primeiros anos da carreira musical de Luiz Gonzaga foi proposto nesse trabalho buscando objetivar e analisar o processo de conceituação discursiva de Nordeste brasileiro e do indivíduo nordestino, compreendendo e contextualizando referenciais que abrangem da semiótica até a construção da identidade nordestina, em um período onde a difusão dos aspectos sertanejos-nordestinos tornou-se interessante ao sucesso, ao inovador merchandising, ao teor econômico do mercado musical, aos patrocínios. As relações sociais, além de toda a construção de afirmação de identidade regional pelo gênero, fomentaram uma rede ampla de afetividades, estéticas e sonoridades no processo de modernização musical dos anos 40 e 50. Praticamente implantado e explodido como elemento sonoro de massa, o baião trazido pela dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira acabou abraçado por vários segmentos. Dos migrantes nordestinos recém-chegados à capital ao salão do Copacabana Palace, a sanfona cadenciada também era um sinônimo de revitalização de novas raízes culturais populares, da dramaturgia, do cinema e de novos símbolos de afirmação identitária, por trazer em suas memórias lúdicas o hábito de milhares de pessoas. Na identificação de elementos imprescindíveis para a reconstituição dos sujeitos sociais, amplia-se a discussão sobre a mediação cultural, abordando temáticas raras e até inacessíveis em outros documentos. Gilberto Velho (1994) comentou sobre as multiplicidades e descontinuidades sociais5. Na capacidade de caminhar em vários tipos de culturas, alguns indivíduos conseguem dialogar e mediar inúmeras línguas, visões, habilidades e relações constituídas pela experiência adquirida: A voz e sanfona de Luiz Gonzaga conseguiram garimpar esse campo dos contextos e das diversidades como poucos. O baião gonzaguiano origina-se a partir de um campo de embate cultural com outras sonoridades no eixo Rio de Janeiro/São Paulo e demais capitais do Brasil. A partir de um ciclo de trajetórias, o apoio de uma cadeia radiofônica de comunicação em massa maximizou um viés de resistência pela transferência musical, poética e artística, desmistificando inúmeras

5 Ver VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 20

opiniões acreditadas como imutáveis a respeito da região Nordeste e seus descendentes. A retrospectiva temporal da pesquisa abrange uma circunscrição geográfica, buscando uma análise, em forma mais aprofundada possível, vinculando o tema à história, estrutura e conjuntura do problema proposto, possibilitando reflexões comparativas de interesse. Longe de ser uma simples proposta de entretenimento ou de entusiasmo, o baião pós-Gonzaga trouxe a homogeneidade tocada, pensada e cantada em oposição ao conhecimento público urbano sobre o Nordeste brasileiro, em específico, o ambiente sertanejo, fortalecendo o debate sobre a identidade geral de uma região sempre considerada à parte dos grandes interesses da integração econômica ou social do país. O contexto de sua origem, a miscigenação musical através de três séculos e a recognição dos elementos construtivos do ritmo — antes, durante e depois do legado de seu artista mais conhecido — devem ser abordados e igualmente traduzidos e debatidos, sobretudo, em teor de importância acadêmica. Novas apropriações e debates em torno das incorporações sob a negociação identitária e cultural entre artista e público, o modo que essa relação é consumida e vinculada ao regionalismo e ao território nordestino acabam sendo temas interessantes e aprofundados a cada pesquisa. Alguns periódicos, cordéis, artigos e livros de musicólogos, antropólogos e historiadores foram vitais para adentrar em partes importantes dessa discussão sobre o baião e outras faces da música brasileira. Assim, fui aprofundando a pesquisa mediante os questionamentos e as reflexões. Em “A sociologia de um gênio”, livro do cientista social Norbert Elias, a forma de como a música, através da vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart, e a aplicabilidade do poder de percepção do escritor no conflito trágico entre a criatividade pessoal do músico austríaco e a sociedade que queria controlá-la, evidenciou como a arte está indissoluvelmente ligada ao tipo de sociedade e à época em que ela é produzida, entendida e consumida. Sua influência6 desse trabalho para essa dissertação está na formulação de questionamentos em torno do relacionamento entre culturas e sociedades africanas e europeias durante os séculos XVIII e XX que acabaram evidenciando conexões culturais essenciais na ressignificação e desenvolvimento do baião nos meados da década de 1940, transformando o baião de Gonzaga em algo representativo e comercialmente interessante. Oportunamente, a leitura de “História social do Jazz”, escrito por Eric Hobsbawn, analisa o jazz como criação revolucionária dos negros, uma raça submetida a certas circunstâncias históricas como a escravidão moderna. Contudo, a música é vista neste

6 ELIAS, Nobert. A sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1994. 21

contexto7 como elemento de resistência, o que contribui na sua difusão e diáspora como cultura. No século XX, o baião gonzaguiano, apesar de suas reinvenções, se apropriou de hibridismos em suas representações e entendimentos folclóricos, musicais e identitárias. Com a industrialização da música e das transformações no padrão de consumo, o balanceio popularizou a temática nordestina em diversos meios sociais e desenvolveu um sentimento de pertencimento regional, principalmente, entre os migrantes. Dentre as dissertações sobre recentes visões sobre o universo do baião, sublinho o trabalho de Paulo César Menezes Teixeira, Um Passo a Frente e Você Já Não Está no Mesmo Lugar8, um debate sobre a dupla Gonzaga-Teixeira observada nos diferentes processos criativos, com formações sociais e econômicas diversas, dando ao baião uma nova forma de apresentação, transformando-o em um gênero musical mais urbano e conquistando espaço entre os movimentos culturais desconhecidos do Rio de Janeiro, baseando suas representações em características sociais resultantes de apropriações e reproduções do cotidiano sertanejo. No viés do conceito polissêmico de sertão e da migração, Vida de Viajante: uma análise da obra musical do compositor e intérprete Luiz Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro9, de Ruberval José da Silva, analisa o fator da incursão de Luiz Gonzaga no mercado cultural, na sociedade carioca da capital do país e na própria população migrante, sobretudo, na consolidação de certas representações acerca do ambiente sertanejo nordestino. Outro trabalho de relevante importância para a pesquisa sobre o rei do baião foi a primeira biografia de Luiz Gonzaga, “O sanfoneiro do riacho da Brígida”, do escritor e jornalista José Sinval de Sá. Em 1961, após uma espécie de entrevista, Sinval conversou com um Luiz no auge do ostracismo, na Ilha do Governador, onde o músico residia no Rio de Janeiro. As conversas sobre a infância, a saída de Exu, a vida no Exército e outros assuntos em 10 cadernos escritos à mão tornar-se-iam uma edição esgotada rapidamente em 1966. Apesar das novas prensagens, a leitura dessa biografia-reportagem10 foi uma boa oportunidade para conhecer um pouco mais da trajetória do baião e seu mais autêntico representante musical.

7 HOBSBAWN, Eric. História social do Jazz. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007. 8 TEIXEIRA, Paulo César Menezes. Um Passo a Frente e Você Já Não Está no Mesmo Lugar: a geração mangue e a (re)construção de uma identidade regional. Dissertação de Mestrado em Ciência Política-UFPE. Recife, 2002. 9 Ver Silva, Ruberval José da; Mello, Juçara da Silva Barbosa de. Vida de viajante: uma análise da obra musical de Luiz Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940-1970). Rio de Janeiro, 2017. 173 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 10 SÁ, Sinval. Luiz Gonzaga: o sanfoneiro do Riacho da Brígida. 7ª edição, Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2012. 22

Os escritos de Ricardo Cravo Albim11, que recolhe em seu instituto fantástico acervo das diversas expressões e visão de Mário Luiz Thompson, fotógrafo que dedicou toda a sua vida a registrar a imagem visual da nossa música, ajudaram nessa ampliação de horizonte sonoro. Sem desmerecer outra expressão cultural, é na música que podemos vivenciar a presença das diversas vertentes étnicas que formam o Brasil. É prudente lembrar que em cada um dos ritmos da nossa gente, do nosso povo, podemos fazer uma pesquisa de origem dos sons e das pessoas que se agregam em torno de determinados gêneros. No caso do baião, a recriação do passado com o intuito de reinventar seus significados e valores adotou uma função social, conseguindo representar uma memória individual em prol da coletividade, preservando as noções do sujeito no espaço ao qual está inserido e do valor em sua realidade. Como parte da memória coletiva nordestina, seu papel social enfrentou problemas com o entendimento deste sujeito em relação à sua própria memória, muitas vezes discriminada quanto à sua efetiva participação em diversos momentos do processo de preservação, sendo convidado ao campo do descaso e do esquecimento. Buscando explorar esse campo interessante, alguns teóricos tiveram uma suma importância durante o desenvolvimento dissertativo. Parafraseando Charles Wright Mills12, o conhecimento não deixa de ser “uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício; para realizar suas próprias potencialidades” (MILLS, 2009, p. 22). A evolução do baião como gênero ou o processo de construção identitária do Nordeste faz do seu aparato cultural uma série de exercícios de reflexões, seja pela manutenção de um diário de campo, com experiências pessoais, seja pelo estímulo de pensamentos e ideias simplórias. Com o contraste entre o urbano e o sertão, Luiz Gonzaga conseguiu colocar na sua trajetória musical hábitos de autorreflexão, de escrita e de expansão da sua experiência de vida, tão parecida com tantas outras. Dentro dos desafios contemporâneos no campo do patrimônio cultural, esse artesanato intelectual acaba levando em conta os desafios da

11 Ricardo Cravo Albin (Salvador, 20 de dezembro de 1940) é um musicólogo brasileiro, sendo considerado um dos maiores pesquisadores da Música Popular Brasileira. Fundador do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, Historiador de MPB, produtor musical e crítico de arte, Albin foi ainda diretor geral da Embrafilme e presidente do Instituto Nacional de Cinema (INC). É também autor, desde 1973, de aproximadamente 2500 programas radiofônicos para a Rádio MEC. 12 MILLS, C. W. Sobre o Artesanato Intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

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manutenção da memória social como constituintes de um rico debate entre momento histórico, subjetividades, apropriações e interações da dinâmica social, ao conseguirem atribuir valores e caracterizações para um bem, material ou intangível, significativo como produto e testemunho de tradição artística e histórica. Le Goff13 comenta que “o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de elaboração histórica” (LE GOFF, 1990, p. 51). Desta maneira, aproximando a memória individual ou coletiva dos fenômenos sociais, diversos objetos de pesquisa podem ser vistos além de suas movimentações culturais. As formas da memória reconstroem fatos históricos, significações pessoais e o entendimento das contradições da sociedade, principalmente, pelo olhar de determinados grupos e seu modo de preservar a história em si. A relação entre a preservação e o patrimônio cultural ajuda a dialogar o quanto a participação efetiva do sujeito social produz o resgate de sua memória coletiva. A partir desses elementos, o processo de construção de identidade individual ou coletiva se faz presente pelo reconhecimento do antepassado, pela relevância de informações em comum ou pela influência direta na organização e cultura de um determinado grupo social. Em seu livro “A memória coletiva”, o sociólogo Maurice Halbwachs14 fala sobre duas categorias da memória: a memória individual, onde “O primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso”15 e a memória coletiva “como se estivéssemos diante de muitos testemunhos”16. Ou seja, um indivíduo, por mais solitário que seja o acontecimento vivido, terá as suas lembranças ao rememorar ou simplesmente confirmá-la, não se fazendo necessários testemunhos no sentido literal da palavra ou sob uma forma material possibilitando a compreensão da complexidade e dinamicidade dos significados presentes em tal processo. Uma memória individual é construída a partir da memória coletiva. Esta dissertação não é uma biografia. É um trabalho que busca, através de uma série de questionamentos e esclarecimentos, contribuir para o enriquecimento de informações em

13Jacques Le Goff (Toulon, 1 de janeiro de 1924 — Paris, 1 de abril de 2014) foi um historiador francês. Autor de dezenas de livros e membro da Escola dos Annales, abordou aspectos sociológicos, psicológicos, religiosos, antropológicos, artísticos, comportamentais, econômicos e sociais de extrema importância no estudo da Idade Média. 14Maurice Halbwachs (Reims, 11 de março de 1877 — Buchenwald, 16 de maio de 1945) foi um sociólogo francês da escola Durkheimiana. Escreveu uma tese célebre sobre o nível de vida dos operários, trazendo o estudo do conceito de memória coletiva. Halbwachs foi detido pela Gestapo após a ocupação nazista de Paris e deportado para o campo de concentração em Buchenwald, onde morreu de desinteria em 1945. 15HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. p. 29. 16Idem, pág. 30. 24

torno do baião e seu legado para o patrimônio cultural brasileiro. Trazido ao grande público urbano, a sanfonização17 de signos regionais evidenciou as pluralidades de suas origens sertanejas, desmembrando as apropriações de um complexo gênero musical, apresentando e representando a região Nordeste em forma poética e construída em configuração cultural, enraizando um repertório temático e singular em território nacional, amplificado pelos meios de comunicação em massa, sobretudo, o rádio. Ao sintetizar melodias e ritmos populares característicos, Luiz Gonzaga, juntamente com uma lista de parceiros, deu início a uma espécie de divulgação da música nordestina sertaneja, fornecendo ao baião rústico uma nova roupagem artística, um público consumidor e status urbano e acessível, acelerando o processo de fabricação de um inédito contexto e mediação cultural. Inovador nos anos 40, marcante nos anos 50, adormecido nos anos 60, renascido nos anos 70, louvado nos anos 80, reinventado e deturpado nos anos 90/2000, o gênero musical em questão possui dados impressionantes. Segundo o Ecad18, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o rei do baião, apesar dos 30 anos de sua morte, continua sendo um dos nomes artísticos que mais recebem direitos autorais no país. Arrecadaria mais, se boa parte das cidades que se orgulham de fazer os festejos juninos recolhessem corretamente os direitos ao Ecad. Alguns locais sequer sabem da existência de tal recurso. É importante salientar que, apesar de construído em parte pelo poder da memória coletiva, do ethos da região semi-árida e dono de uma obra influente em várias plataformas culturais, o baião urbano faz parte de uma fermentação de possibilidades materializadas na explosão desse gênero nos anos 40 e 50, apreendido no pensamento empírico sobre o modernismo e do nacionalismo musicais, já debatidos por alguns mediadores e intelectuais culturais dos anos 10 e 20 do século XX, incluindo a atuação de folcloristas nas cadeias de rádio e as discussões modernistas pós-Semana de 22. Contudo, esses adjetivos e relações não teriam o mesmo alcance19 se Gonzaga não tivesse “a possibilidade de transitar analiticamente entre mundos sociais e culturais” (GONÇALVES, 2003), levando em consideração o momento político e a atuação do Estado no processo de definição de políticas culturais. Nesse

17 Esse termo “sanfonizar” foi criado pelo próprio Luiz Gonzaga para explicar a sua forma de relembrar ou compor melodias no fole do instrumento. A grande parte dos seus parceiros musicais e co-autores de letras não escondem que cederam parceria para o rei do baião pelo talento de Gonzagão em “sanfonizar” as composições, enriquecendo o trabalho final da canção. 18No mercado fonográfico, o baião tem sua presença mais marcante na década de 50, quando se concentrava em 1.057, do total de 1.822 gravações, quase metade delas entre 1952 e 1953. 19Ver GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj: Unirio, 2003. p. 21-29. 25

parâmetro, com o objetivo de investigar aspectos formadores do sentimento nacional, o importante projeto desenvolvido pelo Departamento de Cultura de São Paulo na gestão de Mário de Andrade percorreu, na década de 1930, o Norte e o Nordeste do Brasil para registrar manifestações culturais e folclóricas, em especial de dança e música. Na bagagem, instrumentos musicais, objetos de culto, peças utilitárias, fotos, reproduções de desenhos, gravações musicais e filmes na conhecida Missão Folclórica, ocorrida em uma época em que o debate sobre a identidade brasileira estava em evidência e o Brasil procurava tornar-se Nação. Ou seja, os 28 anos entre 1913 (ano de penetração de gêneros de cunho sertanejo- nordestino no Rio) e 1941 (ano do histórico encontro de Luiz Gonzaga com estudantes cearenses que o convidaram a relembrar alguns “sons do norte”) não foram inertes ou inexistentes para o desenvolvimento e inovações na música popular nos anos seguintes. Seja como letrista, instrumentista ou intérprete, sua música cumpre o papel de emitir uma nova linguagem, sem elitismos. É uma prova de existência e resistência social, apesar de ser um produto de recombinação de elementos culturais, essa dialética musical criou uma série de símbolos comunicativos não-hegemônicos, sem suprimir um núcleo cultural sobre outro. A construção do baião urbano fixou ao imaginário nacional temáticas, especificidades, discursos e aspectos sobre as diversidades e contrastes do Nordeste brasileiro. Contudo, é necessário atentar para um problema em relação ao baião. Cada vez menos, esse gênero está sendo gravado ou revisto por artistas novos por causa do alto custo da liberação dos fonogramas pelas editoras musicais, deixando transparecer que o patrimônio musical fica a revelia do legado construído em prol de uma monetização rápida e de amplo consumo. A análise do trabalho nascerá do aprofundamento e relacionamento de referências teóricas sobre a cultura regional, o surgimento da noção de identidade nacional, o poder comunicação de massa do Estado, o resgate do imaginário popular, a caracterização de ritmos musicais importantes no desenvolvimento do baião gonzaguiano e o debate em torno da sua importância no acervo do patrimônio cultural brasileiro, utilizando um gênero musical como um documento/monumento. O poder social da música pode configurar um transporte aos mais diversos cotidianos, envolvendo múltiplos discursos, visões e perspectivas de conhecimento e elaboração de um conhecimento. Nas confluências entre História e Música que a dissertação se concentra, utilizando as reflexões bibliográficas em torno da música popular de Marcos Napolitano, o interesse do desenvolvimento das tradições de Eric Hobsbawn, as pontuações sobre gênero e subjetividades de Durval Muniz de Albuquerque Júnior e os debates sobre diásporas culturais 26

de Maria Izilda Santos de Matos, entre outros. No meio acadêmico, o baião ainda é pouco abordado, se comparado a outros tipos de movimentos musicais. Em 1929, com a francesa “Annales d’histoire économique et sociale”20, o campo historiográfico maximizou a forma de entender, visualizar e discutir a função do documento, privilegiando os métodos pluridisciplinares. Nos anos 1970, a terceira geração dos Annales rejeita a composição da História unicamente como narrativa que privilegia a política, economia ou a “teoria do grande homem” de Carlyle21 e outros intelectuais. Essa renovação, já posicionada por Marc Bloch e Febvre, foi denominada por Jacques Le Goffe outros historiadores, sobretudo, através da obra La Nouvelle Histoire, para se referir aos inéditos caminhospara a escrita e o entendimento da História. A “Nova História”, alcunha da corrente, recorre à antropologia histórica ao utilizar a definição abrangente do objeto, contrastando com as determinações oficiais sobre os documentos como fonte básica, considerando as motivações e intenções individuais como elementos explicativos para os eventos históricos, contribuindo para um novo direcionamento historiográfico, abrangendo áreas múltiplas de conhecimento, inclusive, os aspectos da cultura popular. No que tange o estudo sobre o baião e suas características, a congruência entre uma obra musical com um novo pensar na História, já observado pelos trabalhos não- estruturalistas de Thompson, ajuda na amplificação das percepções sobre as camadas populares, evoluindo os estudos sobre as diversas identidades sociais e da cultura enquanto forma de expressão humana. Le Goff comenta que os documentos artísticos ou literários são fontes privilegiadas ao serem tratadas como histórias da representação dos fenômenos objetivos e “profundezas do cotidiano quase capta o estilo de uma época” (1976, p. 72). Ou seja, adotar elementos da cultura como formadores das ações coletivas são marcas expressivas de manifestação e resistência popular. Partindo da perspectiva que as dinâmicas migrantes nos trabalhos da dupla Gonzaga/Teixeira foram essenciais no pensamento do baião urbano como produto, ambos os compositores foram testemunhas e protagonistas de eventos e acontecimentos que mudaram suas vidas artísticas emanando mediações econômicas e

20A Escola dos Annales foi um movimento historiográfico do século XX que se constitui na incorporação de métodos das Ciências Sociais à História. Fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch em 1929, propunha-se a ir além da visão positivista da história como crônica de acontecimentos, substituindo o tempo breve da história dos acontecimentos pelos processos de longa duração, com o objetivo de tornar inteligíveis a civilização e as mentalidades. 21Thomas Carlyle (Ecclefechan, 4 de dezembro de 1795 — Londres, 5 de fevereiro de 1881) foi um escritor, historiador, ensaísta e professor escocês durante a era vitoriana. Segundo Carlyle, os grandes avanços e progressos da humanidade deveram-se a determinados homens com traços personalísticos muito específicos, sempre defendendo sua visão da história como “sucessiva biografia dos seus grandes homens”. 27

culturais a partir de uma construção sonora eleita como representação de uma região específica e seus grupos sociais, sendo possível observar que as individualidades dos compositores decantam partes de suas próprias realidades e memórias, diferente do conceito “coerente e totalizante” de Pierre Bordieu22. Assim, conhecer e pesquisar a obra musical peculiar existente em Luiz Gonzaga, considerando todo o seu aspecto de representação e interelações, traz a chance de aproximar, compreender e analisar épocas específicas, movimentos políticos, marcas sociogeográficas, o nascer de uma tradição e o desenvolvimento de um sentimento identitário pelo ciclo de trajetórias no contexto migratório. Inclusive, amplifica o debate em torno do próprio conceito do patrimônio: Por quê? Para quem? É possível inventar um patrimônio? Como isso é entendido, consumido, comercializado? No caso do baião, a visão comercial sobre o povo sertanejo em sua própria linguagem com uma nova roupagem a partir da metrópole configura processos que representam a dinâmica existentes além das grandes cidades. Mesmo pensado e (re)criado, nenhum outro tipo de música brasileira decantou o sertão nordestino e, ao mesmo tempo, chegou em programas de rádio tão rápido como o baião. Adentrar os caminhos, características e aspectos desses personagens potencializam o entendimento da Micro-história como um “telescópio”23, “permitindo que as experiências concretas, individuais ou locais, reingressem na história” (BURKE, 2005, p.61). A utilização da biografia de Gonzaga ajudou na organização da pesquisa, sobretudo, pela capacidade musical de um indivíduo que trouxe referências nordestinas para a grande mídia e inovando o mercado fonográfico do cast de artistas pós-explosão do rádio no Brasil. Longe de uma simples cronologia do ritmo, a invenção em torno do viés comercial e da divulgação do novo som por Luiz Gonzaga e parceiros emergiu de uma rememorização de signos ricos de uma história geral, utilizados e reorganizados através da memória individual migrante e das mediações culturais, reconstruindo campos variados e repletos de documentos e inserções sociais. Grande parte das fontes utilizadas neste trabalho foi consultada em forma de áudio em formato mp3, em vinis, plataformas digitais, jornais, revistas, entrevistas, visitas a museus e colecionadores de itens raros de Luiz Gonzaga. Com a finalidade de reforçar a pesquisa, procurei contextualizar o artista no recorte histórico entre os anos de 1946 a 1954, buscando o

22BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006, (p.183-190). 23 BURKE, Peter. “Ao microscópio”. In. O que é história cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, (pp. 60-64). 28

entendimento e o aprofundamento do ambiente cultural a qual o artista estava inserido, trazendo a perspectiva do baião urbano como representante musical e cultural nordestino pós- Estado Novo. Considerando a cultura24 como o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprio das classes subalternas, pensar o contexto popular como um conjunto de objetos, práticas e concepções tradicionais, cristalizados no tempo e no espaço, ou o folclore em seu sentido pejorativo, parece ser equivocado. Construídas pela ação das sociedades, a força de uma tradição não deve ser observada como algo imóvel, do modo que não possa haver mudanças em suas práticas culturais oriundas dos populares e suas movimentações. Mesmo nascendo de um processo de ressignificação e de implementação de consumo fonográfico, ou seja, uma atualização pró-oportunidade de mercado da cultura, o baião gonzaguiano complementa seu caráter de continuidade de um ensinamento, visão de mundo, costumes e valores de um determinado grupo social, o migrante, salientando dois lados importantes. Enquanto a sanfona de Luiz Gonzaga aparece, por um contexto, entre a tensão de uma região geográfica em que persistia uma economia frágil e caracterizada pela imagem da seca e da influência das relações tradicionais de poder, por outro lado, utiliza a audiência do rádio para fixar os elementos regionais no ambiente do consumo da indústria do disco, evidenciando a dança como um dos vários pontos de germinação na construção fonográfica e cultural em torno das ramificações do baião no seu aparelhamento representativo. A partir de Luiz Gonzaga, o baião tornou-se uma fusão simbólica entre passado e presente, nascido de elementos sociais, culturais, ideológicos e psicológicos de vários grupos, transformando esse evento musical em fator significativo para a formação da identidade e uma série de mediações entre sociedades. De alguma forma, chamá-lo de patrimônio fomenta o pertencimento regional, um dos principais aspectos de legitimação de sua preservação. Estudá-lo é uma ferramenta essencial de intervenção e de recomposição das perdas oriundas dos atos de violência e degradação sofridos por expressivos bens culturais coletivos. A salvaguarda do baião como gênero também é capaz de interagir questões amplas, não deixando apenas a cargo de uma audiência específica ou das opiniões mais superficiais. Rico em memórias, visão de mercado, valores e sentimentos nostálgicos, o som inovador de Luiz Gonzaga nasceu da relação migrante Nordeste/Sudeste, durante anos de caminhada pelo país, fazendo da capital nacional o seu berço. Através da expressão individual e de uma

24 Ver LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico, 21ª edição. Zahar: Rio de Janeiro, 2007. 29

visão pioneira de capitalização, o som gonzaguiano diminuiu o distanciamento existente no legado patrimonial imaterial construído ao longo de séculos, inaugurando uma forma de industrialização e comercialização da música pela reinvenção cultural em território brasileiro. Dos lundus às modinhas, da Rádio Nacional ao clássico “Asa Branca”, a revitalização e o aprofundamento no tema apresentam-se como uma perspectiva de ressignificar os usos, as percepções do mundo e da relação mais próxima e realista entre presente e passado. O processo dialético sobre tal assunto é essencial para contextualizar e dialogar sobre um dos itens do patrimônio histórico-cultural do país, abrangendo a necessidade de recuperar, por excelência, o digno passado da mesma, pensando no sujeito enquanto ator social atuante no processo de preservação do patrimônio e sua ação transformadora na sociedade. Ao reajustar o passado às novas percepções da realidade, no caso do baião, permite-se, pelos processos de revitalização e preservação patrimonial, a probabilidade de estabelecer novos elos temporais constituídos de inúmeras acepções nascidas do imaginário daqueles que convivem e possuem algum tipo de ligação para com o patrimônio em questão e reconhecem nele seu próprio passado, interagindo diferentes estamentos. Desta forma, a partir da representação e personificação, o baião urbanizado - em seu período áureo - traduz uma gama de relações de afeto, de práticas sociais articuladas entre o sujeito e as rememorizações do contato com faces da imaterialidade cultural a partir da experiência migrante e comparações com o cotidiano urbano e modernizado, apresentado e consumido como produto e emergindo da divulgação às massas populares até atingir as classes mais abastadas. O movimento musical nascido a partir da dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira continua sendo um documento de reflexão social e de atualização da memória regional, evidenciando as contribuições antepassadas e elencando o baião como uma das feições mais originais para a compreensão da importância da mediação social na amplificação, transformação e preservação de um item do do patrimônio cultural nacional. Assim sendo, explicitadas as principais referências-base, a dissertação “A dança da moda: Luiz Gonzaga como mediador cultural (1946 - 1954)” está dividida em três capítulos, utilizando uma historiografia clássica e contemporânea, buscando articulações acadêmicas, artísticas, políticas, sociais e econômicas para a explosão do baião urbano, buscando contribuições dos ritmos, talentos musicais e hibridações entre diferentes elementos viscerais 30

que tornariam Luiz Gonzaga ícone da cultura popular do Nordeste do Brasil e o baião proposto como reflexo sonoro de uma região quase-esquecida nos grandes centros urbanos. O deslocamento do gênero e sua utilização nas canções do sanfoneiro, principalmente, com as parcerias de Humberto Teixeira (1915-1979) e Zé Dantas (1921-1962), mostram o processo da reinvenção, ação e reação para a audiência de diversas âmbitos. Questionar as origens e o trajeto desse movimento é ter a compreensão de que o ritmo, apesar de urbanizado e pensado para o mercado fonográfico, passou por um desenvolvimento de ressignificações sonoras que aproveitou seu alcance popular e “suscitou e intensificou a individualidade, isto é, a disponibilidade para as experiências, o florescimento de sensações e emoções, a abertura até os outros (…), liberando as capacidades morais e intelectuais do indivíduo” (BARBERO, 1997, p. 58). A agregação de uma visão que interagiu a partir da legitimação do ritmo fez do baião gonzaguiano um exemplo de movimento cultural recebido e percebido como um elemento migrante em efetiva desterritorialização e reterritorialização afetiva, e do mercado, o seu aparato receptivo. Como produto de extremo apego popular, a nova experiência a partir das vivências migrantes de seus pensadores foi inovadora e criativa, assumindo para si caracteres de comunicação entre a memória, o sentimento identitário regional e a pureza cultural original, de “raiz”. Esses limites variados entre tais percepções entre a “cultura de massa” e o apelo popular mesclam-se aos inquietos preconceitos correntes e discursos cristalizados em relação aos produtos de cunho massivo. Foi no ambiente de discurso nacional que o baião emergiu como trilha sonora de apresentação do Nordeste cultural no eixo da mudança entre o espaço e o olhar trazido pela modernidade do novo som, algo que consolidaria o baião e o artista. Contudo, não devem ser desprezadas as estratégicas fórmulas compostas para que o êxito musical fosse alcançado como o desenvolvimento nos meios de comunicação radiofônica, as representações regionais e o estimulado discurso da integração nacional. Essa abordagem contextual ainda produz um resultado estrondoso, já que, Luiz Gonzaga chega ao século XXI com status e importância cultural ímpar, ainda que exposto às relações da indústria fonográfica modernizada e à manutenção de sua imagem como representante da cultura de raiz para o campo da cultura de massa. O objetivo é fazer um panorama sobre o desenvolvimento do baião urbano de Luiz Gonzaga e de seus parceiros no período entre 1946 (lançamento fonográfico da música “Baião”) e 1954 (ano que surgiram vários influenciados no novo gênero), debatendo sobre a importância desse movimento artístico no contexto do patrimônio cultural nacional, nascido de um conjunto de manifestações populares, tradições e bens materiais e imateriais 31

(intangíveis) que acabaram amplificados e conhecidos pela mediação da figura do rei do baião. Assim, de acordo com sua particular e significativa forma de expressão artística, a música pode e deve ser classificada como ator de relevância da dinâmica da sociedade, principalmente, quando observamos seu desenvolvimento arcaico. Quando reconhecermos nossa ancestralidade, a importância histórica e cultural de uma região (país, localidade ou comunidade) adquire um valor único e de durabilidade representativa simbólica. A difusão do baião gonzaguiano influenciaria o trabalho de muitos artistas contemporâneos, tendo renascido do interesse pelo legado da sanfona ainda na década de 1970 com o advento da Tropicália, influenciando de forma marcante os trabalhos de músicos nordestinos desde então. Através de sua representatividade popular, a importância do gênero musical está ligada à construção da identidade nordestina, onde a interação, a integração e o processo de dialogação com inúmeras musicalidades trouxeram um legado cultural que demonstra como o baião conseguiu transpassar a era radiofônica, chegar aos vinis e adentrar os downloads no século XXI, sempre ligada à imagem do sanfoneiro, seu mais dinâmico artista. As reflexões apresentadas sobre as alegrias, tristezas, desespero e saudade trouxeram um “outro Nordeste” à tona, emergido das ligações comuns entre uma região com inúmeros frutos da música brasileira e um consumo interessante desse subestimado nicho dentro do mercado fonográfico, avivando a relação entre um talento poético-musical com a possibilidade de uma confecção de um projeto artístico que tornou-se contagiante, experimental e representativo. O baião é um gênero de música e dança popular da região Nordeste do Brasil, derivado de um tipo de lundu africano. A maioria de sua temática aborda os sentimentos migrantes, os cotidianos sertanejos e das suas dificuldades da vida longe das facilidades metropolitanas. Esse desenvolvimento do baião no âmbito urbano ainda é pouco debatido em meios acadêmicos e possui uma bibliografia bastante escassa. Elevar o assunto ao nível de uma dissertação de mestrado é uma forma de salvaguardar a continuidade desse gênero musical, estender o conceito sobre a formação da identidade nordestina e garantir às gerações futuras alguns elementos documentais sobre as tradições, os costumes e problematizações em torno do Nordeste brasileiro. A dissertação procura apresentar uma exposição sobre o avanço teórico da pesquisa, a análise do corpo documental, uma síntese de entendimento sobre a problemática e a metodologia do trabalho. A reunião do conhecimento em campo e de todo o cabedal obtido procura interpretar os documentos em termos de se saber em que medida as informações fornecidas por estes respondem a questões inicialmente levantadas. 32

A letra da música que serve de epígrafe influencia o pensamento do próprio rei do baião em torno da sua música, determinando noções de espaço econômico, tempo e lembranças de suas experiências migrantes. Com a consciência entre o presente (“No Rio tá tudo mudado / nas noites de São João”), um passado recente (“Em vez de polca e rancheira”) e a constatação do sucesso (“É fogo de vista / mas dentro da pista / O povo só pede e só dança o baião”), em um momento que o baião, personificado como música regional nordestina, mesmo fabricado em ambiente urbano, tomava os cenários fonográficos do Sudeste em expressão íntima de um artista sobre a sua própria vida, suas migrações entre o espaço e o pensamento sobre novas implicações e antigas reminiscências, sem esquecer-se do sucesso nacional cantado e conquistado por sua interação única com um complexo processo de representação, consumo de massa e mediação de culturas. A importância da aparição de Luiz Gonzaga, apesar de sua construção em viés comercial e certa homogeneidade geográfica, não deixa de ser um foco de luta cultural contra o entendimento preconceituoso sobre o Nordeste em forma geral e um nascimento original de novas interpretações positivas sobre o nordestino em si. O primeiro capítulo, “Da Umbigada africana ao rei Gonzaga: História social do baião” terá a função de explanar historicamente a construção do ritmo em sua forma arcaica, caracterizando musical e socialmente algumas expressões culturais como os lundus, os batuques, as modinhas e o contexto musical brasileiro do século XVIII como parte do desenvolvimento da música proposta pelo sanfoneiro de Exu e o poeta de Iguatu, que influenciariam uma nova concepção em torno do Nordeste cultural, através da rememorização lúdico-musical e do balanceio da unidade canto-dança. O segundo capítulo será responsável por elencar os contextos que fizeram do baião urbano um produto de sucesso, correlacionando o desenvolvimento da carreira de Luiz Gonzaga às dinâmicas políticas e culturais, desde a saída da Serra do Araripe (1929) até a chegada ao Rio de Janeiro (1939), abordando seu percurso artístico até a Rádio Nacional, as ações de mediação, a divulgação do baião e as influências das parcerias essenciais no processo de amadurecimento e de protagonismo do gênero durante os anos de 1946 (ano do lançamento do ritmo) a 1954 (ano das primeiras aparições de grupos influenciados pela obra de Gonzaga até então), fato que trouxe discursos determinantes na institucionalização do próprio Nordeste como referência, através da hibridação sonora, estética e performances nas suas canções e apresentações. No terceiro capítulo, serão associadas a representação e as conexões da semiótica nordestina à função da experiência individual migrante que serviu para estruturar a linguagem discursiva da nordestinidade, tão aproveitada pelos recriadores do baião, pela indústria 33

fonográfica e altamente consumida como produto cultural. Finalmente, como essa recombinação de valores, símbolos e imagens contribuíram na auto-afirmação nordestina fora da região Nordeste, na autonomia do baião pelo capital simbólico e seu processo de invenção de uma tradição construído na relação entre a imagem do artista, o ouvinte e o nascer de um sentimento de bem cultural regionalista. Em suma, o baião - a partir de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira - é um fruto da resistência nordestina, reinventado pela força de sua tradição e mescla de inúmeros ritmos, sons e visões de mundo. Seus criadores, inseridos na lógica capitalista do mercado fonográfico que começara a abrir espaço para sons de contexto regional, aliaram-se à negociação de temas e referências específicas. Como mediador cultural, Luiz Gonzaga conseguiu retirar a sua sonoridade do contexto folclórico, levando o matolão para outras partes do país e do mundo, urbanizando uma crônica migrante. O resultado daquela diáspora sonora estilizaria a memória musical regional, propagando a região semiárida do Nordeste para além das suas desgraças naturais ou mazelas políticas. No entanto, a existência da figura e a parceria do visionário Humberto Teixeira e sua ideia de legitimar o baião perante os debates folclóricos de discursos nacionalistas ajudou a tornar aquele fenômeno musical em uma explosão cultural massiva, explorando novas formas artísticas de monetizar a utilização da alcunha de novidade musical e dinamizando a expressão individual no processo de seu desenvolvimento e difusão. Sendo assim, o baião é um assunto que traz indagações que sobrevivem ao crivo do tempo, não apenas sobre seus edificadores, compositores e parceiros, mas em torno da relevância, salvaguarda e divulgação de bens culturais à margem do interesse do capital. Passados 107 anos de nascimento do seu maior divulgador e 73 anos da gravação da música “Baião”, um marco musical em contexto urbano, o gênero trouxe ao cancioneiro popular uma transformação na forma em que o Brasil vê uma de suas múltiplas facetas. Na carreira de Luiz Gonzaga observamos discursos em torno do sentimento de pertencimento nacional, o interesse midiático no uso da pluralidade da cultura, o teor nordestino como uma forma de expressão, mesmo com doses de realidade, sob um grito de existência cultural ante o acervo patrimonial imaterial brasileiro.

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Capítulo 1 – Da umbigada africana a Luiz Gonzaga: A construção arcaica do baião.

O maracatu, dança negra E o fado tão português No Brasil se juntaram Não sei que ano ou mês Só sei que foi Pernambuco Quem fez essa braia dengosa Quem nos deu o baião Que é dança faceira e gostosa (...)

Gravada em 1956, o trecho inicial de “Braia Dengosa”25 é um exemplo de como um dos sons mais característicos da região Nordeste do Brasil, a estilização e reinvenção do baião deram status e um aspecto nacional para uma secular e rica influência de ritmos, danças, identidades sonoras e estéticas culturais, produzindo uma nova imersão do teor regional no imaginário popular. Dentro da construção musical brasileira, o baião gonzaguiano, o mais conhecido e reverenciado, traz em seu desenvolvimento mais de duzentos anos de sonoridades, repertórios e referências sociais. O conceito sobre a representatividade não é um assunto específico do século XX. Como criação moderna, as discussões sobre identidade nacional foram construídas no século XVIII, desenvolvendo-se amplamente no século XIX. O Brasil, como exemplo de construção de nação fora da Europa, precisou pavimentar sua consciência de unidade, identidade e possuir a sua diferença em relação aos outros países, sobretudo, a metrópole Portugal. Existiram complexos culturais e políticos percorridos entre a Independência do Brasil (1822), as afirmações e procuras do movimento Modernista na década de 1920 pelas raízes da sociedade e as compilações pelas andanças de Mário de Andrade. Durante o período regencial (1831- 1840), tivemos a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) como o primeiro passo na tentativa estatal de refletir sobre temas que estariam relacionados à nação brasileira. Anos depois, no âmbito literário, o surgimento do Romantismo buscou contribuir com a construção dessa brasilidade. As obras de José de Alencar foram um exemplo de aliar a imagem da nação às suas belezas naturais. Em O Guarani, o viés identitário percorre sem grandes influências estrangeiras, com a determinação poética das paisagens típicas, da língua

25 Música de autoria de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Gravada em 1956 e lançada no disco “Aboios e Vaquejadas”. 35

e da história do casal ancestral dos brasileiros, Peri e Cecília, trazendo características da cultura brasileira e exaltando o Brasil como uma nação26. Com a Revolução de 1930, a chegada de Getúlio Vargas ao poder trouxe um novo patamar de centralização política, onde englobaria a criação de instituições que uniformizaram tarefas administrativas, padronizariam currículos escolares em busca de uma via institucional, praticamente destruindo alguns traços culturais das minorias étnicas que não eram aceitos como componentes identitários do Brasil. No contexto político-social da década de 1930, a busca do debate em torno da construção da identidade brasileira foi um assunto de interesse do próprio Estado Novo27, sendo visível a sua influência na produção intelectual, cultural, nos meios de comunicação, como rádio, imprensa e propaganda. Como fator do reaparelhamento do Estado, Vargas elevou os novos meios de comunicação, principalmente o rádio, para um patamar nunca antes visto no que tange a distribuição de informações de forma uniforme às massas. O pensamento sobre a proteção do acervo do patrimônio histórico brasileiro, através da criação de uma instituição nacional de salvaguarda, o crescimento do futebol como esporte de cunho popular, a culinária e o samba como gênero musical conquistaram representatividade e crivos de adornos da cultura nacional. Assim, o Estado brasileiro buscava distanciar das influências coloniais americanas e europeias em torno do conceito de identidade. A elaboração de um Brasil singular teve contribuições que nivelaram essa busca pela memória nacional, emergindo os aspectos da cultura popular, do folclore, dos esportes, do trabalhismo e da música como ferramentas em prol do pensamento de unidade nacional e tornaram-se características da discussão sobre a nossa formação social e brasilidade28. Nesse percurso da construção da nação brasileira e do sentimento em torno da identidade nacional estavam a falta da participação das camadas populares e a hegemonia de uma elite política. Contudo, as grandes tensões produziram novas perspectivas em momentos de promoções do separatismo29, da tradição e identidade nacional30. Nesse contexto, como nos afirma o

26 Ver ALENCAR, José de. O guarani. 19ª ed. São Paulo: Ática, 1995. 27 Regime político brasileiro instaurado por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937, que vigorou até 31 de janeiro de 1946, caracterizado pela centralização do poder, nacionalismo, anticomunismo e por seu autoritarismo. É parte do período da história do Brasil conhecido como Era Vargas. 28 A Proclamação da República e a instauração do federalismo fortaleceram movimentos em vários locais do país. Alguns deles, vindos de parte da uma aristocracia das regiões não afortunadas pelo crescimento econômico de início do século XX. Por exemplo, o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre, publicado em 1926. 29Sobre a questão, o historiador José Murilo de Carvalho nos traz um aparato esclarecedor e didático, caracterizando os movimentos rebeldes separatistas que ocorreram no Brasil entre os anos de 1831 e 1848. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 250. 36

pensamento exposto por Eric Hobsbawm e Terence Ranger no livro “A Invenção das Tradições” (1984), a identidade no Brasil pós-independente também foi exposto a um

“conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam incultar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que significa, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWM & RANGER, p. 9).

Antes da divulgação e explosão da canção “Baião” (1946), música de autoria de Luiz Gonzaga (1912-1989) e Humberto Teixeira (1915-1979), interpretada ineditamente pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa31, é necessário percorrer uma historiografia da música popular, chegando às manifestações culturais dos primórdios do Brasil Colônia. Antes do contato urbano e sua reinvenção pela dupla nordestina, o baião, como gênero e música que sofreu os efeitos híbridos, fez fusões com outros gêneros culturais. Esse hibridismo rítmico e social ajudou a construir uma unidade musical regional. Nas suas músicas, as expressões de Luiz Gonzaga apresentam o Nordeste e o indivíduo nordestino na espacialidade do êxodo, da saudade em inúmeras formas de dicotomia. A sonoridade do Nordeste foi e continua sendo construída numa combinação constante de elementos musicais e expressões artísticas populares como, por exemplo, a toada, o aboio do vaqueiro, o xaxado, o xamego, o xote (do alemão Schottisch), o maracatu, o “calango”, os cocos, as marchas, os forrós, as ladainhas (oriundas do canto gregoriano e sua miscigenação no Brasil com os cantos indígenas e dos negros africanos) e outros gêneros relacionados ao repertório gonzaguiano. Toda essa miscigenação de culturas e sons se faz presente na arte de Gonzaga. Foi nos processos híbridos que o sanfoneiro imprimiu, através de sua experiência de vida e de sua musicalidade como instrumentista e artista, uma identidade fixa de nordestino32 em forma musical, instituindo a produção de uma territorialidade e a identidade regional do Nordeste do Brasil de forma mais ampla. A partir da tríade “sanfona, zabumba e triângulo”, novas formas de entendimentos, leituras e releituras em formas escritas e sonoras ajudaram a traçar o baião como um formador de imaginário popular e intelectual acerca do conhecimento sobre o

30 Sobre “tradição inventada” ver HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 31Grupo vocal e instrumental da cidade de Fortaleza: Evenor de Pontes Medeiros, nascido em 1915, violonista e compositor; José de Pontes Medeiros, nascido em 1921, violonista e cantor; Permínio de Pontes Medeiros, gaitista e cantor; André Batista Vieira, o Coringa, nascido em 1920, pandeirista, cantor e compositor e Esdras Falcão Guimarães, o Pijuca, nascido em 1921. 32 FREYRE, Gilberto. “Manifesto Regionalista”. Cultura Cri-ti-ca. Revista Cultural da APROPUC-SP. Número 8. São Paulo, 2º semestre de 2009. p.70-81. 37

sentimento de pertença nordestino. Em nível nacional, abrangeu, maximizou e aprofundou debates e discursos que fugiram da visão instituída na especificidade de temáticas estereotipadas na desgraça social vigente nos séculos XIX e nas três décadas iniciais do século XX, nascidas da escassez geográfica, biológica, econômica e política. Com o processo de retirada das tradições pela música e da cultura acústica da territorialidade nordestina como o aboio, ladainhas, benditos e incelências, tornou-se um pano de fundo para a criação do repertório e inspiração de Gonzaga, efetivamente construída na dialética entre o entendimento simplista do interior e a complexidade da metrópole. A vivência profissional do advogado, deputado federal e compositor Humberto Teixeira e as experiências33 afetivas e culturais do ex-cabo do Exército brasileiro Luiz Gonzaga convergiram para o revivamento de algumas tradições e expressões da cultura sertaneja, maximizando um campo de organização poética, musical e temático que tornar-se-iam um aspecto representativo social da região Nordeste. As variações culturais que nasciam de um saber popular e das abordagens inéditas de um saber local emergiam como uma nova comunicação de saberes manifestados nos fazeres tradicionais, guardados e reavivados pelas obras artísticas de vida dos seus reinventores, neste caso, a dupla Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira.

Figura 1 – Luiz e Humberto: “Rei e Doutor” do baião.34

Como grande documento imaterial que conseguiu se personificar e identificar uma sensibilidade regional pelo pulso artístico, o baião nasceu pelo dedilhado da viola e pela marcação rítmica feita em seu bojo pelos contadores de desafios entre um verso e outro.

33 O conceito sobre “experiência” está no sentido empregado pelo historiador inglês E. P. Thompson, principalmente, no capítulo “Educação e experiência” do livro “Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária”. Segundo Thompson, o significado de experiência seria a fórmula: “Educação = ideias = classe média; experiência (a própria vida) = sentimento = gente do povo.” (pág. 37). 34Foto da contra-capa do disco “Meus Grandes Sucessos com Humberto Teixeira”, RCA Camden, 1968. 38

Segundo Cascudo35, “entre os cantadores sertanejos, o baião não é canto nem dança. É uma breve introdução musical, executada antes do debate vocal entre os dois cantadores. Denomina-se também rojão ou rojão de viola” (CASCUDO, 2001, p. 41). Como um processo histórico secular de mesclas culturais, o baião não tem data de nascimento. No eixo urbano, emergiu como uma verdadeira novidade musical na década de 1940, ostentando o fruto do sucesso nos anos 1950, provando do ostracismo pós-movimento Bossa Nova, e ressurgindo culturalmente na audiência nacional na década de 1970, influenciando artistas que iam do Tropicalismo ao rock de , por exemplo. Torna-se indissociável analisar o baião, em todas as suas construções, sem questionar a contribuição e musicalidade de Luiz Gonzaga. Apesar das suas parcerias de composição, o sanfoneiro de Exu foi, sem dúvidas, o mais importante carro-chefe de um conjunto de ritmos e complexos sociais que o acompanharia durante toda a sua trajetória artística. As representações das vivências e características do sertão e do semi-árido ajudaram a mapear culturalmente novos entendimentos e desmembrar os descobrimentos sobre elementos do folclore brasileiro, principalmente, dentro do conceito de sentido nacional, tão preocupante a partir dos catálogos, pesquisas e da mobilização intelectual e das instituições governamentais em torno do acervo, salvaguarda e discussão da composição da identidade nacional nos idos do Estado Novo varguista.

1.1. A hibridez e o desenvolvimento do imaginário nordestino.

Através da invenção do trio musical e da utilização de indumentárias características do cangaço e, tempos depois, do vaqueiro sertanejo, a performance artística de Luiz Gonzaga ajudou na construção de uma imagem identitária do sujeito do Nordeste brasileiro, inaugurando a representação de um “Nordeste” homogeneizado. A tática dos discursos e canções articularam com outras áreas da cultura regional, causando um embate sonoro de vários ritmos no contexto Rio-São Paulo. Com sua indumentária de homem do campo, chapéu de cangaceiro e gibão, a imagem e o comportamento performático divergiram do ambiente do smoking e roupas impecáveis da era de ouro do rádio. Dentro do contexto acadêmico, o hibridismo tornou-se cada vez mais relevante no campo intelectual. A noção em torno da hibridação cultural e social acabaram trazendo novos horizontes para entender a construção da música popular brasileira, tão evidentes no

35Luís da Câmara Cascudo (Natal, 30 de dezembro de 1898 — Natal, 30 de julho de 1986) foi um historiador, antropólogo, advogado e jornalista brasileiro, reconhecido pelos seus estudos sobre o folclore brasileiro. 39

repertório do baião e seus artistas mais significativos. Em “O pensamento mestiço” (2001), o historiador francês Serge Gruzinski traduz que o hibridismo cultural está no sentido das “misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de um conjunto histórico e entre tradições que, muitas vezes, coexistem há séculos”36. O baião, como elemento musical híbrido e gestado a partir de inúmeras perspectivas, expressou-se por várias faces, não se apegando em origens ou linearmente dentro de um período de tempo, até explodir nacionalmente como gênero musical na década de 1940. Em outras palavras, sua hibridez37 está evidenciada na forma em que abrangeu “diversas mesclas interculturais e porque permite incluir as formas modernas de hibridação melhor do que ‘sincretismo’, fórmula que se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos tradicionais” (CANCLINI, 2003. p.19). Do encontro improvável da novidade fonográfica e o som arcaico, do rural com o agito urbano e de culturas diversas, nasce como produto do “entre-lugar”38, da mistura de devires e visões do cotidiano e de uma peculiar perspectiva. Segundo Homi Bhaba, referência na teoria sobre hibridismo cultural, os “entre-lugares fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 1998, p. 20). Híbrido e reinventado pela força da tradição, o baião de Luiz Gonzaga consegue inovar e manter a tradição dos antepassados, ao mesmo tempo em que procura um selo de originalidade e legitimidade cultural como representante autêntico do interior do Nordeste, através de suas interações e afinidades em prol do novo gênero. Antes da representatividade nordestina na construção da música popular brasileira, vários discursos estereotipados se desenharam perante a sociedade e o próprio pensamento oficial do governo nacional, trazendo uma linguagem de comparação geográfica e de potencial entre as regiões em uma série de processos históricos, a partir da segunda metade do século XIX. Enquanto o debate em torno da construção da nação e a estratégia centralizadora da política do Império avançava, os problemas causados pelas estiagens entre a partir de 1845 causaram um processo de estigma regional naquele território.

36 GRUZINSK. Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Pág. 62. 37 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ªed. São Paulo: Edusp, 2003. p.19. 38 Homi Bhabha, em seu trabalho “O Local da Cultura”, conceitua o hibridismo cultural, contribuindo para sedimentar o arcabouço teórico que permite a compreensão a partir desta perspectiva. 40

No ano de 1877, considerada a primeira grande seca nordestina e uma das mais devastadoras, deixou cerca de 500 mil mortos e um cenário de pobreza, fome e miséria entre os habitantes de Pernambuco, Ceará e redondezas. “A seca foi devastadora em todas as quatro províncias, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba; em todas elas ficou a população reduzida à miséria, à ruína e à pobreza, o quadro foi horrível”39. Na capital cearense, Fortaleza, quase 119 mil pessoas pereceram. O jornal O Besouro40 trazia com prioridade o quadro de calamidade social provocado pela “grande seca”, termo amplamente empregado por parte das autoridades nordestinas para conseguir alguma ajuda financeira ou demais verbas. Utilizando o trabalho de fotografia do ateliê de Joaquim Antonio Corrêa41, não creditado na edição da revista42, o chargista português Rafael Bordalo Pinheiro (1846 - 1905) publicou, em 20 de julho de 1878, duas fotos que fazem parte de 14 fotografias de vítimas da seca ocorrida entre 1877 e 1878, ajudando a denunciar o acontecimento.

Figuras 2 e 3 - Fotos publicadas na revista carioca “O Besouro”. Ceará, 1878.

Segundo os trabalhos de resgate de informações sobre o período nos arquivos da Biblioteca Nacional por parte dos pesquisadores Rosângela Logatto e Joaquim Marçal Ferreira de Andrade intitulado “Imagens da Seca de 1877-1878 – Uma contribuição para o

39 BRASIL. Ministério do Interior, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, Departamento de Recursos Naturais. As Secas no Nordeste (Uma abordagem histórica de causas e efeitos). Recife: Ministério do Interior, 1981. 40 Revista satírica lançada em abril de 1878 pelo caricaturista português Rafael Bordalo Pinheiro, no Rio de Janeiro, em substituição ao periódico “Psit!”, que retratava de forma humorística a vida por vezes dissoluta da Corte brasileira. 41 Ver em http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/browse?value=Corr%C3%AAa%2C+J.+A.&type=author. 42 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=749915&PagFis=175. 41

conhecimento do fotojornalismo na imprensa brasileira”43, a ação de publicar as imagens de algumas vítimas da maior seca nordestina do século XIX foi uma das primeiras manifestações da imprensa brasileira na utilização de fotografias como documentos comprobatórios de um fato. Também, serviu para alimentar uma série de estereótipos que rotularam uma região nordestina. O enfático “Nordeste” como termo geográfico e social localizado entre as regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste era praticamente inexistente. A noção espacial nordestina foi construída a partir da literatura, cinema, artes e música. Embora a seca tenha se transformado em mensagem imagética e discursiva sobre um território, a região cantada pelo baião gonzaguiano conseguiu adentrar uma pluralidade de ritmos e sons que atuaram na linguagem musical, emitindo em suas audiências uma representação inédita e simbólica, sem que isso afirmasse uma visão única da região, reconhecendo a existência de vários Nordestes. Segundo Albuquerque (2001),

As músicas agenciam, na verdade, diferentes experiências visuais e corporais, produzindo diferentes decodificações, diferentes nordestes [...]. O baião será a “música do nordeste”, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região. [...] a identificação do baião com o nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional.44

No viés cultural e sendo proposto como espaço de identidade regional, só com o movimento regionalista de 1926, com a contribuição de Gilberto Freyre e a safra de romancistas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Raquel de Queirós, a partir dos anos 1930 passou a se descrever as condições de vida e os problemas sociais do sertão e da herança da cana-de-açúcar no litoral. No contexto musical, o Nordeste cultural foi levado ao resto do país pela arte musical de Luiz Gonzaga pela cadeia de comunicação radiofônica, dando outro tipo de debate sobre o que era ser “nordestina”, ao contrário da generalização do termo “nortista”, a referência mais utilizada para se referir ao que conhecemos hoje por Nordeste do Brasil. Na ocasião, “O nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada área do país.”45 Na verdade, nem no período de apogeu holandês ou na prosperidade da produção da cana-de-açúcar, Nordeste não era classificado como tal. Franklin

43Anais da Biblioteca Nacional, vol. 114, de 1994, p.71-83. 44 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 2001. p. 155. 45 ALBURQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 2001. p. 49. 42

Távora, Visconde de Taunay e Bernardo Guimarães, escritores da primeira metade do século XIX, apresentaram uma gama de estereótipos sobre o Nordeste em geral e o indivíduo sertanejo. Em “Inocência”, de Visconde de Taunay, por exemplo, o sertanejo foi assim exposto:

O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja varado.46

Pelas palavras do professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2003), a partir de 1910, “O nordestino surge para nomear os habitantes de uma área inicialmente compreendida entre os estados de Alagoas e Ceará, sendo, às vezes, aplicado, com menos frequência, para nomear os habitantes do Piauí e do Maranhão. Podemos constatar, no entanto, que esta identidade regional vai se afirmando de forma muito lenta, convivendo pelo menos até os anos trinta com outras designações como: nortista, que se preserva ainda hoje no Sul do país; cearense, designando todos habitantes do Nordeste que migravam para Amazônia, em busca da borracha, também chamados de paroaras ou arigós; sertanejos; brejeiros; praieiros; tipos regionais que como veremos, serão paulatinamente incorporados à figura do nordestino” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p.149-150). Ao ser lançado como voz da expressão popular de uma região tão infamada, o baião urbano de Luiz Gonzaga teve uma força de confrontar as imagens historicamente construídas e aceitas num conjunto de preconceitos, coleção de opiniões errôneas e utilizado pelos discursos das elites interessadas pelas suas misérias e deficiências. Através do som da sanfona do filho mais famoso de seu Januário, nasceu uma nova forma de enxergar, estudar e entender a região Nordeste do Brasil. Apesar de não ter uma “certidão de nascimento” como o movimento Bossa Nova – derivando da classe média da zona sul do Rio de Janeiro no fim dos anos 1950 por João Gilberto, Tom Jobim, – ou a explosão midiática do inicialmente televisivo Jovem Guarda, foi no desenvolvimento das próprias músicas e danças populares que o baião urbano foi sendo gerado. O pesquisador musical José Ramos Tinhorão, analisando brevemente esse período da história da música popular, lembra que o processo de sua rememorização e recriação trouxeram algo inovador, pois:

46 TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ática, 1986. p. 5. 43

Nascido o ritmo do baião nordestino, transformado em gênero de música popular urbana a partir de meados da década de 40, graças ao trabalho de estilização do acordeonista pernambucano Luiz Gonzaga e do advogado cearense Humberto Teixeira (...), tem sua origem num tipo de batida à viola denominada exatamente de baião.47

O fator da memória musical foi decisivo para a homogeneização da ideia do Nordeste cultural, pois trouxe um autêntico intérprete do ethos48 da região nordestina como um todo à tona e à mídia. Seja por meio da procura de legitimação desse gênero perante as correntes folcloristas ou aproveitando-se do nacionalismo exacerbado que chegava a combater os ritmos externos durante a Segunda Guerra Mundial, Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga também se aproveitaram do espaço deixado pelo samba no mesmo período de ascensão da música regional nas grandes cadeias radiofônicas. Porém, antes de debater sobre a etimologia da palavra “Baião”, suas características e alguns importantes artistas que pavimentaram a chegada do gênero musical, de fato, nos holofotes da Era do Rádio e na popularização do ritmo pela sanfona de Gonzaga, é preciso historicizar a emersão de outros parâmetros, adentrando períodos e processos culturais que tiveram suma importância na explosão e edificação desse movimento do cancioneiro popular. É o caso do lundu e da modinha, uma das primeiras manifestações da música no Brasil.

1.2. Entre batuques, modinhas e lundus: A conexão que originou a música popular.

O erguimento do conceito de identidade brasileira é uma verdadeira miscelânea de etnias, expressões e contextos de uma multiplicidade histórico-cultural rica em heterogeneidade social. Nosso conceito cultural foi talhado por processos violentos do processo de colonização portuguesa, pela diáspora49 forçada africana, por invasões estrangeiras, pela influência indígena e outros fluxos artísticos e migratórios que acabaram contribuindo para o desenvolvimento do senso de representatividade nacional. A música, como uma das expressões mais criativas do homem em incalculáveis conexões de distintas procedências territoriais, estamentos e visões de mundo, foi responsável por momentos em

47TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Circulo do livro, 1978. p.211. 48 Conjunto de traços e modos de comportamento que conformam o caráter ou a identidade de uma coletividade. Em Sociologia, é uma espécie de síntese dos costumes de um povo ou determinada região. 49 Acontecimento sociocultural e histórico ocorrido em países além do continente africano devido à imigração de africanos por fins escravagistas mercantis que perduraram da Idade Moderna ao final do século XIX. 44

que importantes gradientes de situações de interação social passaram da possibilidade de embate às aproximações étnicas e culturais, perpetuando troca de saberes, hibridações, contextos e matrizes originais que – ainda – resistem às brutalidades do tempo e das inovações. O baião, em seu modo arcaico ou na versão urbanizada, é um dos exemplos desse cenário de edificação pelo compartilhamento de conhecimento. Ao abranger musicalidades além do teor geográfico do semiárido, sua significância conquistou proporções vastas e relatos de paisagens econômicas e humanas, a partir de um interior praticamente intocável e desconhecido, ajudando na formação de gêneros e estilos regionais de forte representação social, principalmente, pelo linguajar próprio, sua visão de mundo e na solidez dos sotaques. Como elemento único na diversidade cultural do Brasil, seus temas recorrentes e os processos históricos que o engendra são produtos de aspectos da própria evolução da música popular, transformando-os em um patrimônio do povo brasileiro. Em seu aspecto intangível ou material, o gênero ainda contribui e conduz a sociedade, de forma geral, à reflexão sobre a importância da salvaguarda e ao reconhecimento da nossa imaterialidade e múltiplas tradições. A música, com seu poder abrangente, evidencia o alcance da noção de patrimônio de um povo pelo fato de conter um conjunto de bens culturais, não se limitando apenas aos monumentos de “pedra e cal” como em décadas passadas. Nesse campo, o baião expressa o bem material, as formas de compreensão, as criações artísticas, o intangível, os modos de fazer e viver, as ciências, tecnologias, sotaques, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais estabelecidos na Constituição Federal de 1988, através do Decreto 3.551/2000 e referendada na Convenção da UNESCO para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003. A promulgação da Constituição brasileira de 1988 trata uma nova fase da proteção ao bem cultural, em especial em seus artigos 215 e 216. Enquanto o artigo 215 aborda amplamente o Patrimônio Cultural, no artigo 216 é aprofundado o tema em torno das proteções ao Patrimônio Cultural brasileiro, quer seja material ou imaterial. Debater, estudar e abordar a importância de um patrimônio cultural acaba transformando-se em uma poderosa forma de conservação das raízes do país e da pluralidade do povo brasileiro, pois evidencia “a integração da população com suas próprias condições de existência e continuidade” (PELEGRINI, 2006). Contudo, antes de chegar aos arrasta-pés, às quadrilhas juninas e ao autêntico forró pé- de-serra, é importante salientar que a emersão do baião como uma das expressões culturais 45

mais representativas do Nordeste foi um reflexo de migrações e imigrações de sonoridades, principalmente, através dos aspectos rítmicos dos batuques, do lundu e da modinha.

1.2.1. Modinha

Promovendo danças, teatro, poesia e até leitura de livros, os saraus festejados pelas elites entre os séculos XVIII e XIX serviam para movimentar as atividades de lazer da vida cotidiana. Músicos profissionais e amadores exibiam suas peças preferidas, enquanto abriam a oportunidade para as “moças das finas famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua encantadora voz acompanhada pela delicadeza do dedilhado na guitarra” (NERY, 1994). Desse modo, é inevitável não relacionar a própria cultura europeia com a sua expressão artística e apego pela música. Ante as discussões sobre as mudanças e condições sociais no Brasil no decorrer do século XVIII, apesar de influenciada pela metrópole,a colônia acabou traçando um caminho em paralelo ao crescimento das vilas mais desenvolvidas, aproximando as camadas populares dos atores de práticas artísticas de alta sociedade da época. Diferentemente dos europeus, os negros africanos, apesar de suas condições subumanas nos processos escravistas e forçados de diáspora, nunca deixaram de se expressar suas religiosidades e culturas em forma de celebrações, festas em terreiros ou reuniões em praças públicas. No Brasil, perseguidos por serem vistos como um atentado à religião e à moral, os batuques50 assinalaram o início da presença musical bantu na musicalidade brasileira. Nas fazendas, a grande quantidade de negros reunidos para as celebrações assustava a minoria branca. Tais festividades se transformaram em locais de expressões de resistência para os povos afrodescendentes, apesar das tentativas dos senhores de proibi-las em prol da “segurança pública”. Foi nessa atmosfera histórica do século XVIII entre o século das luzes e das diásporas forçadas às escravidões que emergiram o lundu e a modinha. A partir dessas reflexões, considero pertinente estudar o desenvolvimento da canção brasileira, independente de gênero, sobretudo, pela interessante gênese que se deu no período colonial, observando o seu crescimento e consolidação pela popularidade da modinha no final do século XVIII (SEVERIANO, 2009, p. 17). Nessas circunstâncias, a modinha emerge como um dos responsáveis pelo lirismo e suavidade em nossas músicas. Carregando um tipo peculiar de simples e rápida apresentação, foi amplamente executada no Brasil. Com apelo poético, romântica e adepta de composições

50 Termo utilizado genericamente para designar algumas das inúmeras danças afro-brasileiras acompanhadas por canto e percussão. Maracatu de baque virado, o coco e o samba de roda são exemplos de batuques. 46

para vozes a serem acompanhadas por piano e violões, foi assimilada pelas classes mais ricas, sendo popularizada posteriormente pelas classes menos abastadas. Sua antecessora, a moda portuguesa, em meados do século XVIII, praticada nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas (ARAÚJO, 1963). Com características melódicas51, a modinha se configurou de maneira muitorica, apesar de não assumir uma forma específica de gênero.No antológico “Modinhas Imperiais” (1930), Mário de Andrade (1893-1945), explica que o termo diminutivo “modinha” está relacionado com o sentido de apreço e meiguiçe presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe Modinhas por serem delicadas” (ANDRADE, 1980). De acordo com o escritor, a modinha tornou-se o substantivo específico que se refere à forma modinha52. Na segunda metade do século XVIII, a autonomia53 da modinha brasileira já era executada sem derivações folclóricas portuguesas. As estrofes próprias do cotidiano colonial e vários elementos rítmicos influenciados pelo lundu africano se misturavam às nostalgias dos saraus de Lisboa. (FREITAS, 1974, p. 3). Assim como o próprio baião, dependendo de um recorte temporal, a modinha acabou abrangendo diferentes estilos dentro do mesmo gênero. Os batuques africanos e as transformações no uso trouxeram novas formas de utilização dos sons e dos significados na tradição musical luso-brasileira, inserindo a modinha e o lundu no campo musical brasileiro. Em Portugal, a ligação da modinha com o lundu teve influências das ações de Sebastião José de Carvalho e Melo54 (1699-1782), o Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, uma das figuras mais responsáveis pelo papel “civilizador” desses gêneros em terras lusitanas. O florescer iluminista do século XVIII impulsionou a ideia de clarear os pensamentos, sensibilizar os corações e as convivências, maximizando uma cultura nos princípios iluministas e na defesa do liberalismo e do laicismo, sem afrontar as posições conservadoras (NERY, 1999, p. 118).

51 Melodia é uma sucessão coerente de sons e silêncios, seguindo uma sequência linear com identidade própria. Nesse contexto, a voz que dá sentido para a composição executada e encontra apoio musical na harmonia e no ritmo. Na notação musical ocidental, a melodia é representada no pentagrama de forma horizontal para a sucessão de notas musicais e de forma vertical para sons simultâneos. 52 Mário de Andrade utiliza esse termo genericamente como maneira particular para executar uma determinada obra, não no sentido de estrutura e construção musical. 53 Ver FREITAS, Frederico de. A modinha portuguesa e brasileira. Braga: Livraria Cruz, separata da revista Bracara Augusta, 1974. Pág.3. 54 Durante o reinado de José I, as atividades políticas do ministro reorganizaram a economia, as leis e a sociedade portuguesa. 47

Animando e caindo nas graças da corte de D. Maria I (1734-1816), a modinha empolgou os salões da nobreza. Nas ruas de Lisboa dominava “a Fofa, no teatro, a ópera italiana, e nos salões, a moda e a modinha” (ARAÚJO, 1963. Pág. 27). Com o translado atlântico português para o Brasil, as modinhas de salão da corte entraram em contato com as expressões do lundu. Mário de Andrade reforça: “Por tudo isso a gente percebe o quanto a nossa modinha de salão se ajeitava à melodia europeia e se nacionalizava nela e apesar dela” (ANDRADE, 1980. Pág. 7). Segundo o musicólogo alemão Gerhard Doderer (1896-1966), a modinha brasileira é uma conjunção55 dos elementos do canto erudito europeu e do folclore africano e brasileiro, advindo do intercâmbio entre continentes e colônia, sendo ela diferenciada da moda (portuguesa). Dentre tantas maneiras de entendimento, o termo mais conciso para a modinha constitui-se como:

Gênero de canção brasileira derivado da moda portuguesa. Com o romantismo a modinha, normalmente acompanhada de violão, passou do estilo espirituoso para um clima de sentimento à flor da pele, enquanto a rítmica binária deu lugar à ternária, por influência da valsa. Os compositores passaram a usar textos de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu – uma valorização do gênero que lembra o ocorrido com lied alemão, mudança posterior, assinalada por Luiz Heitor, foi a adoção dos quatro tempos do schottische, quando a modinha entrou em contato com o ambiente e a arte dos CHORÕES. Mas o fato é que a modinha, espalhada pelo país inteiro, nunca se sujeitou a regras muito rígidas (DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA, 1994, pág. 612).

A circulação da modinha entre diversas classes sociais, apesar das influências eruditas, mostrou possibilidades estéticas e a extensão das habilidades de seus intérpretes. Há de se pensar que uma modinha cantada pela filha de um aristocrata ou por uma mulata poderá ser muito mais simples na realização quando comparada, por exemplo, com a apresentação de um castrato para a corte. Contudo, o apego pelo gênero chegou aos compositores mais renomados como o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), Francisco Manuel da Silva (1795- 1865) e Antônio Carlos Gomes, conhecido por Carlos Gomes (1836- 1896). Entre os entretenimentos da aristocracia portuguesa, a tradição da modinha “fez uma longa carreira na vida musical brasileira e, por isso mesmo, era apresentada em sua faceta solene e conservadora” (NAPOLITANO, 2007, pág. 11). Sem dúvidas, em busca das marcas dos antecedentes da música brasileira, torna-se inevitável deixar de enfatizar o nome do padre Domingos Caldas Barbosa (1738-1800),

55 DODERER, Gerhard. Modinhas Luso-Brasileiras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 48

considerado a maior referência da modinha. Filho de um português com uma escrava angolana, Domingos foi enviado para Portugal em 1763, para estudar em Coimbra. Em Lisboa, tornou-se conhecido pelas trovas improvisadas ao som da sua viola de corda de arame. Suas composições estão reunidas no livro “Viola de Lereno”, pseudônimo árcade que ele adotava. Em sua poesia, tratou das peculiaridades afetivas do povo brasileiro, distinguindo-as das dos portugueses. Aproximou-se assim de temas românticos, ainda que de maneira não tão profunda. Nos idos de 1770, o satírico poeta que utilizava seu improviso em suas elaborações musicais foi para Portugal, onde se tornou compositor de lundus. Sua estada por terras lusitanas resultou em apresentações marcantes na corte de dona Maria I.56

Figura 4 – Padre Domingos Caldas Barbosa: o criador da Modinha.

A conexão entre a modinha trazida pelo padre Domingos Caldas e o cenário musical encontrado em Lisboa conseguiu incorporar as transformações obtidas pela influência erudita, caracterizando um novo processo de composição por músicos mais virtuosos. Com a fuga da corte de dom João VI para o Brasil, em 1808, uma modinha contextualizada com a temática romântica atravessava o Atlântico com as primeiras polarizações com a música popular em um verdadeiro intercâmbio cultural. Para ilustrar este fato, o melhor exemplo está na forma de como a própria modinha como gênero trafegava entre as “baixas” e “altas” culturas. Com a ida do padre Domingos para Portugal em 1775, suas composições conquistam certo renome

56 Ver ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1963. Pág. 27. 49

entre as classes mais abastadas. A partir disso, é visto o aumento de interesse de vários compositores de escola erudita, segundo os historiadores, na composição de modinhas. Segundo Tinhorão,

O que iria acontecer com a modinha, a partir dos últimos anos do século XVIII, até a segunda metade do século seguinte, seria o fato de que, passando a interessar aos músicos formados em escola, o novo gênero acabaria se transformando em canção camerística tipicamente de salão. Precisando aguardar depois o advento das serenatas à luz de lampiões de rua, nos últimos anos do século XIX, para então retomar a tradição de gênero popular, pelas mãos de mestiços e tocadores de viola (TINHORÃO, 1991, Pág. 18).

Tornando-se a forma mais acessível de canção, sua popularidade emergiu em coletâneas com ou sem música. A partir dos anos de 1830, oficinas no Rio de Janeiro já imprimiam partituras e letras de modinhas em água-forte57 e litografias. Sobre o retorno da modinha pós- contato lisboeta, Kiefer (1977) comenta que

Certamente, a vinda da corte portuguesa muito contribuiu para a difusão da modinha nos salões da nossa terra. E deu-se então um fato notável: a modinha, originalmente música de salão, irradiou-se rapidamente para as camadas populares. Se anteriormente o cravo e o piano tinham substituído a viola, entra em cena agora o violão que assumiria, junto com o instrumento de teclado, um papel importante nos acompanhamentos (KIEFER, 1977,p. 18).

Nessa atmosfera de reflexão, é necessário admitir o legado do processo de composição da modinha, “em duas partes, com o predomínio do modo menor, das linhas melódicas descendentes e dos compassos binário e quaternário” (SEVERIANO, 2009, p. 17). Ou seja, estruturas que passeiam em variados estilos musicais que demarcam o território brasileiro, apesar de conhecido como o “país do samba”. Com essas trocas musicais entre Colônia e Metrópole, cada artista e compositor deixou e apresentou o contexto pessoal, contribuindo para a evolução da modinha como um verdadeiro fenômeno musical brasileiro. Apesar das distinções encontradas nos embates e debates em torno do popular e do erudito, esses fluxos não diminuíram o enriquecimento musical entre as classes sociais brasileiras e portuguesas. Assim como na evolução do baião, as divisões hierárquicas não chegam nocivamente às questões musicais. Ao contrário, transformaram-se em riquezas imateriais da formação da identidade nacional como um todo. Mozart de Araújo (1963) evidencia que a contribuição do lunduna modinha brasileira já era visível no final do século XVIII. Batuques e lundus pareciam modinhas. Modas e modinhas

57 Gravura produzida sobre uma base metálica e confeccionada com ferro e zinco. 50

eram quase lundus. Assim, duas espécies de modinhas emergiram: Aquela vinda do ritmo dos lundus e as “leves produções dos nossos melhores músicos e solfistas” (ARAÚJO, 1963, p. 11-12).

1.2.2. Lundu

Inicialmente, o lundu era apenas uma dança africana no Brasil, evoluindo como uma forma de música urbana, acompanhada de versos, na maior parte das vezes de cunho humorístico e lascivo, tornando-se uma popular dança de salão. Em Portugal, o lundu recebeu polimentos da corte, como o uso dos instrumentos de corda, mas foi proibido por Dom Manuel por ser “contrário aos bons costumes”. Porém, ao vir diretamente de Angola para o Brasil, recuperou o acento jocoso, mordaz e sensual que incomodara a sociedade lisboeta, sendo cultivada por negros, mestiços e brancos nas terras brasileiras. O poeta árcade português Tomás Antônio Gonzaga, em suas “Cartas Chilenas” menciona o lundu e o acompanhamento do batuque em um mesmo poema, dando a ideia de suas características diferenciadas (GONZAGA, 2013, p. 500):

“Aqui lascivo amante sem rebuço À torpe concubina oferta o braço: Ali mancebo ousado assiste e faia À simples filha, que seus pais recatam. A ligeira mulata, em trajes de homens, Dança o quente lundu e o vil batuque”.

Em 1780, começou a ser mencionada em documentos e partituras, evidenciando sua expressividade musical cuja construção e aceitações determinaram o início da formação do repertório colonial. No século XIX, o lundu-canção foi amplamente apreciado em espetáculos circenses, casas de chope e salões do Império. Com essa popularidade, tornou-se o primeiro gênero musical a ser gravado no Brasil, com a canção “Isto é bom” (1902), na voz de Bahiano pela Casa Edison, a primeira gravadora de discos da América do Sul. O lundu saiu de evidência no início do século XX, mas deixou seu legado, principalmente no que tange ao ritmo sincopado, no maxixe (outra forma musical híbrida urbana que também deve suas origens à polca e à habanera58). Vale assinalar que tanto a dança como a música dos

58A “habanera” (ou havaneira) é um gênero artístico nascido em Havana (Cuba). Foi a primeira música genuinamente em ritmos africanos levada para salões europeus por volta do século XVII. Suas alterações pós- contatos europeus ajudaram na derivação de outros elementos musicais como o tango argentino e o vanerão gaúcho. 51

primórdios na colônia constituem precipuamente em sonoridades importantes para a criação do repertório estético musical brasileiro. Segundo Mukuna (2006), o uso generalizado da palavra “batuque” é “atribuído à ignorância linguística de alguns escritores antigos, que preferiam usar a palavra para designar o mesmo tipo de dança que será conhecida no Brasil como dança de umbigada, e considerada como precursora do atual samba” (MUKUNA, 2006, p. 80). Como afirma o professor Carlos Sandroni59, a umbigada se encontra presente em praticamente todas as danças de origem africana existentes no Brasil, incluindo o lundu:

“No lundu, todos os participantes, inclusive os músicos, formam uma roda e acompanham ativamente, com palmas e cantos, a dança propriamente dita, que é feita por um par de cada vez. (e completa) (...) A ‘umbigada’ é o gesto coreográfico que consiste no choque dos ventres, ou umbigos [...]. Em traços gerais, elas consistiam no seguinte: todos os participantes formam uma roda. Um deles se destaca e vai para o centro, onde dança individualmente até escolher um participante do sexo oposto para substituí-lo (os dois podem executar uma coreografia – de par separado – antes que o primeiro se reintegre ao círculo). (SANDRONI, 2001, p. 64- 84).

José Ramos Tinhorão (1972) chegou a dizer que a dança é uma “representação dramática de um jogo amoroso capaz de conduzir ao clímax sexual”. Apesar da sensualidade e lascividade, a umbigada foi incorporada até por algumas tribos indígenas. Também, por ser considerada vulgar e de mau gosto, a dança dos negros chegou a ser proibida no Brasil, mas foi justamente sua languidez que despertou enorme apreço em muitos colonos, a ponto de começarem a praticar o lundu em seus festejos. Desta forma, paulatinamente, o lundu se tornou a primeira manifestação originada entre os negros a ser aceita pela sociedade branca da colônia.

Figura 5 – “Lundu” por Johann Moritz Rugendas (1835).60

59Professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco nas áreas de Artes e Antropologia, com ênfase em Etnomusicologia. 60 Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, nº 8, fev/mar. 2006. 52

Os portugueses que se encontravam nas regiões do Congo ou de Angola observaram as mesmas formas do batuque executado em terras brasileiras. Segundo Alvarenga (1982), essa prática cultural,

No seu tipo mais generalizado consta de uma roda da qual fazem parte, além dos dançarinos, os músicos e os espectadores. No centro da roda fica um dançarino solista, ou um ou mais pares, aquém pertence realmente a coreografia. A dança consiste em meneios violentos das ancas, sapateados, palmas, estalar de dedos; apresenta como elemento específico a umbigada que o dançarino ou dançarinos solistas dão nos figurantes da roda que escolhem para substituí-los (ALVARENGA, 1982. p. 148-149).

Em números aproximados, os dados oferecidos pela UNESCO em “História Geral da África” (2010) demonstram que, entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco milhões de africanos61 foram trazidos para o Brasil na condição de escravos. Os sudaneses62 em inúmeros clãs da parte ocidental africana como iorubás, gegês e fanti-ashantis, vindos da Nigéria, Daomé (atual Benin) e Costa do Ouro (Guiné) representaram a mão-de-obra forçada de um destino característico, juntamente com demais bantus, pertencentes de muitos grupos da África centro-meridional, atualmente ocupadas por Congo, Angola e Moçambique. No contexto cultural, o legado da contribuição das etnias e da diáspora africana nas Américas está entrelaçado com a construção social e as significações na tradição musical luso-brasileira, que teve suas matrizes mais primitivas nas modinhas e lundus. Segundo Câmara Cascudo (2001), as denominações da palavra lundu são variadas:

Lundum, landu, londu, dança e canto de origem africana, trazidos pelos escravos bantos, especialmente de Angola, para o Brasil. É um exemplo típico do fenômeno de difusão de uma manifestação folclórica percorrendo caminhos que passaram do popular ao erudito, com plena aceitação de todas as camadas da sociedade brasileira, diferenciava-se do samba primitivo e do batuque danças de mesma origem. Ao chegar aos salões, sua sensualidade primitiva já havia dado lugar a uma dança voluptuosa, voltando às suas origens no maxixe no fim do século XIX, quando nada mais fazia lembrar o lundu primitivo. (CASCUDO, 2001, p. 341).

A dança se caracteriza em forma de cortejo, a mulher e o homem dançam de forma sensual com contato físico e movimentos arredondados marcantes no quadril e que se desencadeia pelo corpo. Mesmo observada como voluptuosa, ao final do século XIX e no

61Um número aproximado dessa diáspora forçada, já que vários morreram ainda em solo africano, alguns milhares foram sucumbidos pela violência da caça escravista e outros pereceram durante a travessia atlântica. Segundo Lilia Schwarcz e Helosia Starling em “Brasil: Uma biografia” (2015), não se sabe quantos foram trazidos desde que o tráfico se tornou ilegal pela assinatura da lei Eusébio de Queiroz (1850). 62Em 1852, a palavra ‘Banto’ surgiu como termo lingüístico pelo filólogo alemão Willelm Bleek e significa “povo”. Assim, “bantos” e “sudaneses” são definições genéricas e imprecisas, produzidas no contexto da apropriação europeia do continente e dos povos da África. 53

início do século XX as manifestações culturais caracteristicamente negras, sobreviveram e acabaram sendo absorvidas pela cultura elitizada. Bastante popular em meados do século XVIII e XIX (ANDRADE, 1989), o lundu englobava muitos aspectos da cultura europeia, especialmente, as características sonoras espanholas e portuguesas. Enquanto dança, tinha o acompanhamento do batuque africano e de instrumentos de corda como a viola, sendo adicionado à sensual umbigada o movimento dos quadris e as coreografias das mãos, muito utilizado nos fandangos63 portugueses e espanhóis. A miscigenação cultural e social entre negros escravos, ex-escravos, a corte e a classe média nascida nos centros emergentes diminuiu o abismo entre percepção erudita da modinha e a sensualidade do lundu, dando origem ao lundu-canção, o clímax dessa fusão entre as culturas popular afro-brasileira e europeia. Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção, doravante apenas lundu,

como sendo peça para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário simples, predominância da tonalidade maior, linha melódica sincopada e geralmente composta por fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com relação ao texto, há predominância do uso da quadra com versos em redondilha maior e uso de refrão (Kiefer, 1986).

No século XIX, os lundus já estavam no contexto da tradição romântica expressando, juntamente com a modinha, a união entre o popular e o erudito, algo que foi cultivado pelo maestro Carlos Gomes, Xisto Bahia e Chiquinha Gonzaga. No século XX, por Villa-Lobos, Tom Jobim e , por exemplo. Independente da época, o lundu tornou-se um exemplo essencial dentro da música popular, dando às temáticas brasileiras características musicológicas importantes, como empregos de novos acordes para composição. O lundu- dança deu origem ao maxixe, gênero-expoente dança urbana no fechar das cortinas do Brasil Imperial. A partir das gafieiras, o maxixe trouxe a corporalidade africana para os salões até a popularização do samba. Seus ritmos e estruturas melódicas de origem africana interessaram compositores acostumados ao consumo de viés europeu, abrindo caminho ao maxixe, ao samba, ao baião.Esse pluralismo cultural enriqueceu a música como um valor inestimável da unificação e mestiçagem de inúmeras origens étnicas.

63 Também conhecido como “Marujada”, o fandango é um estilo musical caracterizado pela sua dança de movimentos frenéticos e exibicionistas. Foi concebida na Espanha e Portugal durante o período barroco, onde integrava as comemorações do Entrudo, o ancestral do Carnaval. 54

Gravada por Luiz Gonzaga em 1956, a música Braia dengosa64 é uma incorporação do ritmo batucado africano com a melodia portuguesa aos moldes da modinha. O fado e o maracatu mesclam uma verdadeira o som herdado do processo afro-português:

“O maracatu, dança negra E o fado tão português No Brasil se juntaram Não sei que ano, ou mês Só sei é que foi Pernambuco Quem fez essa braia dengosa Quem nos deu o baião Que é dança faceira e gostosa Português cum fado e guitarra Cantava o amor E o negro ao som do batuque Chorava de dor / Com melê, com gonguê Com zabumba, e cantando nagô Foi a melodia do branco E o batucar de zulu Quem nos deu o baião Que nasceu do fado e do maracatu...”

Ao incorporar e rememorar a cultura regional, a sanfona de Luiz Gonzaga reinventou uma sonoridade que evidenciou outros gêneros do território nordestino. Através do baião revisitado, ritmos como coco, maracatu, xote, xaxado, toada, aboio, entre outros, deram grandes contribuições ao repertório musical de Gonzaga e ao entendimento musical e identitário nordestino, que emergiram do desenvolvimento sonoro das matrizes africanas e das fusões sociais e culturais além-mar. A marca da influência negra foi evidente em toda a carreira artística gonzagueana, seja em sua forma única de tocar a sanfona, seja de trazendo uma nova configuração do “(...) ethos musical nordestino manifesto na toada triste e nas danças de umbigada remanescentes do antigo lundu” (TATIT, 2002, p. 149). Entre diásporas rítmicas e reinvenções musicais, o baião de Luiz Gonzaga adentrou a música sertaneja nordestina no cotidiano das grandes metrópoles e na música popular, apresentando ao Brasil do asfalto o Brasil do interior, da cultura acústica da região pernambucana do Araripe, da preservação de formas e práticas nordestinas no contexto migratório, distinguindo-a genericamente do teor musical caipira paulista ou do centro-oeste. Graças ao seu caráter dançante e estético, somado à sua assimilação por diferentes classes econômicas, a sanfona de Luiz Gonzaga redimensionou o contexto nordestino dentro de padrões sociais pressupostos.

64 GONZAGA, Luiz; DANTAS, Zé. Braia dengosa. In: Aboios e vaquejadas. Rio de Janeiro: RCA Victor (33 rpm), 1956. 55

Em suas primeiras aparições na Rádio Nacional, estavam o maxixe, o choro, o samba, a rancheira, a polca, a mazurca, a valsa, as guarânias paraguaias. De modo que esses gêneros compuseram esteticamente seu repertório e são procedentes de outros lugares sonoros. Assim como as românticas modinhas e os agitados lundus, o baião faz parte de um complexo musical que configura a pluralidade cultural na formação do repertório popular brasileiro.

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Capítulo 2 – Mediação social através da sanfona: A asa branca voa no Rio.

Eu vou mostrar pra vocês Como se dança o baião E quem quiser aprender É favor prestar atenção Morena chegue pra cá Bem junto ao meu coração Agora é só me seguir Pois eu vou dançar o baião...

Este capítulo será responsável por elencar alguns contextos que ajudaram na afirmação do baião urbano como um produto de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Para isso, faz-se necessário percorrer momentos importantes nas trajetórias de ambos os compositores nesse processo de construção do novo ritmo, alertando suas táticas para se fixar - com pioneirismo da (re)criação - dentro do mercado artístico vigente, trazendo o sertão e temas como resistência cultural, a penúria da seca, sofrimento e saudade do migrante, por exemplo, como discursos inerentes à região nordestina e da própria performance do seu maior intérprete, absorvidos posteriormente pelo imaginário popular e pela recepção pública daquela nova musicalidade híbrida e rica em contribuições culturais. O alcance como gênero musical e da forma de composição da pedagógica Baião65, gravada primeiramente pelo grupo Quatro Ases e Um Coringa, em 1944, já evidenciava o lançamento de um produto passível à dança, ao contato, à intimidade e com poder competitivo no mercado fonográfico carioca. A investigação do acervo artístico de Luiz Gonzaga revela uma série de discussões e aspectos visionários socioculturais como diferentes modos de agir e pensar de grupos específicos. Segundo Sabina Loriga66, “Hoje, a aposta não é mais no grande homem (...) e sim no homem comum. Este último é o objetivo principal dos estudos sobre a cultura popular (...)”67. A biografia histórica de um homem debate com o teor historiográfico,

65 GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA, Humberto. Baião (Lado B). In. 80-0605. Rio de Janeiro: RCA Victor (78 rpm), 1949. Disponível em: . Acesso em 30 de janeiro de 2020. 66 Diretora de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris) e responsável pelo Atelier internacional de Recherches sur les usages publics du passe (Pesquisa sobre os usos pública do passado). Junto com Jacques Revel, articula um programa de investigação sobre a “virada linguística”. 67 LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques. (Org). Jogos de escalas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 244 57

principalmente, quando os desafios e os limites das tarefas da história nos aspectos teóricos e epistemológicos são postos à prova. A infância como filho de camponeses e a vivência sertaneja com alegrias e tristezas à flor da pele transformaram as visões de um homem comum do início do século XX em informações, através de suas canções e interpretações, sobre a realidade de grupos sociais determinados. Da influência dos oito baixos do seu pai, Januário, até as suas parcerias musicais nas ruas, morros e becos da capital carioca, pode-se chegar à conclusão de que todas essas interações, ressoadas pelo resfolegar de sua sanfona e pela sua voz, foram elementos vitais para que o caminho para adição dessa musicalidade sob a égide de produto nordestino à música popular brasileira fosse traçada. O aprofundamento nas músicas que falam sobre as manifestações culturais de uma região permite leituras e releituras que revelam importantes aspectos culturais, convidando à pesquisa. Nesse caso, o baião gonzaguiano é rico em referências, apesar de ter explodido popularmente num ambiente urbano. No que se refere às pesquisas historiográficas e as interpretações que nascem dos historiadores, Ginzburg (2007) comenta sobre os “fios e rastros” a serem observados:

A interpretação é infinita, embora seus conteúdos não sejam ilimitados: as interpretações podem ser lidas numa perspectiva diferente das intenções e da perspectiva de seu autor, utilizando-se os rastros por ele deixados mais ou menos involuntariamente (...). A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante. Essa trama imprevisível pode comprimir-se num nó ou num nome.68

A partir da obra consagrada de um artista, podemos iniciar um debate sobre as representações trazidas ao grande público por suas interpretações e a correlação com o período histórico. Na música, o entendimento dos discursos presentes em canções, poemas, instrumentações ou versões mostra um acervo de memórias, experiências pessoais e regionais, evidência de tradições, disposições geográficas, estruturas familiar, social e econômica, entre outros assuntos. As vertentes artísticas de Luiz Gonzaga trazem à tona importantes elementos culturais nordestinos que, de forma identitária, foram sendo aceitas, discutidas e redescobertas em forma didática por pessoas em comum, migrantes nordestinos, pelo marketing, pelos programas de rádio e pelo mercado fonográfico. Na criação musical de Humberto e Gonzaga, a questão de ser nordestino está enraizada nas representações presentes em todo o seu repertório. Trata-se de um discurso que, pela reiteração, leva os sujeitos, muitas vezes, a

68 GINZBURG, Carlo. Introdução. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso fictício. Tradução Rosa Freire D’aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2007, p. 11.

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entendê-lo como verdade, naturalizando as representações que por ali circulam. Essa experiência pode ser observada, principalmente, quando analisamos as imagens que se formaram sobre o Nordeste, assim como sobre uma identidade do que seria o ser nordestino, presentes em um repertório, muitas vezes, estereotipado. Ruberval Silva (2017), em sua dissertação de mestrado, comenta que a canção “Baião” é

considerada como um documento-manifesto porque além de ensinar a prática do dançar e do cantar o Baião, há também a preocupação de legitimá-lo pelas experiências musicais passadas. Sendo assim, podemos dividir o texto da composição em seis partes no que diz respeito às estratégias de sedução e convencimento do ouvinte/espectador/leitor.69

Comercial ou musicalmente, Luiz Gonzaga, seus parceiros e seguidores influenciados por sua arte tornaram-se uma fonte inesgotável de possibilidades em torno da visão nordestina sobre ela própria, no chão batido ou no asfalto.

2.1. Do Araripe à Rádio Nacional, uma (re)construção sonora

Quando eu voltei lá no sertão Eu quis mangar de Januário Com meu fole prateado Só de baixo, cento e vinte, botão preto bem juntinho Como nêgo empareado Mas antes de fazer bonito de passagem por Granito Foram logo me dizendo: De Taboca à Rancharia, de Salgueiro à Bodocó, Januário é o maior!70

Luiz Gonzaga do Nascimento nasceu no dia 13 de dezembro de 1912, na Fazenda Caiçara, município de Exu, em plena Chapada do Araripe, sertão de Pernambuco. A relação com seus pais, Januário José dos Santos (1888 – 1978), o mestre Januário, e Ana Batista de

69SILVA, Ruberval José da; MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. Vida de viajante: uma análise da obra musical de Luiz Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940-1970). Rio de Janeiro, 2017. 173 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 70A canção “Respeita Januário” foi escrita por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Gravada em 1950. 59

Jesus71 (1873-1960), a dona Santana, foi essencial por toda a sua trajetória. Humildes agricultores nas plantações de feijão de corda, mandioca, batata-doce, algodão e vagem, foram as secundárias ocupações de Januário que viriam a influenciar o jovem Luiz: O conserto de foles72 e a animação das festas ao som do instrumento de oito baixos. A fama de tocador nos sambas tirou Januário do trabalho na lavoura, deixando isso exclusivamente para Dona Santana. Gonzaga, segundo filho da união, explicou a incomum escolha do seu nome em entrevista a Sinval Sá, jornalista cearense que escreveria sua primeira biografia:

Batizei-me assim, com aquele nome que não tinha nada de meus pais. (...) E não foi mal, o nome. Levo esse ‘Gonzaga’, de que sou único portador em minha família, como uma benção de Deus, como uma sugestão de sorte, prevista naquela tarde na igreja de Exu.73

Por ter nascido no dia de Santa Luzia (13), o padre José Fernandes de Medeiros, pároco de Exu, decidiu Luiz como primeiro nome; O segundo nome viria da menção ao patrono da juventude, São Luiz Gonzaga; e Nascimento, porque dezembro é o mês do nascimento de Jesus Cristo. Demonstrando a força da religiosidade local e a autoridade eclesiástica nos lugares mais distantes, Luiz não foi uma exceção à regra nos batismos das crianças pobres nordestinas da época. Como um assopro refrescante no meio do chão sertanejo esturricado, Exu, que fica no pé da serra do Araripe, às vezes, conseguiu enfrentar as violentas secas que foram um flagelo aos municípios vizinhos por conta de seus mananciais e fontes de água. Naquele lugar, na fazenda Caiçara, com sua família, Luiz Gonzaga viveu sua infância juntamente com o nascimento de um irmão ao ano, sem escolaridade, sem comida para todos e muito trabalho no campo. Para a complementação da renda familiar, Januário consertava sanfonas na sua oficina, em um dos cômodos de uma humilde casa. O gosto de Luiz pelo instrumento nascera com as negativas frequentes do pai, que acabou cedendo ao potencial artístico do filho, ensinando-lhe alguns acordes. Em toda a carreira, a influência doméstica sempre foi uma evidência, seja em depoimentos ou nas referências dentro das canções. A musicalidade vinha sendo apresentada nas rezas, novenas, no trabalho na lavoura e nas festas em louvor aos santos que aconteciam

71Apesar de Santana pertencer ao círculo da poderosa família Alencar, o fato de ser negra tornou-se uma negativa, quanto ao laço de sangue. 72 Com o sucesso e a influência de Luiz Gonzaga no sul/sudeste do país nos anos 1940, o nome “sanfona” para o instrumento tornou-se popular no Nordeste, onde é conhecida também por “fole”, “concertina”, “harmônica” ou “pé-de-bode”. 73 SÁ, Sinval. Luiz Gonzaga: o sanfoneiro do Riacho da Brígida. 8ª edição, Fortaleza: Realce, 2002, p.31. 60

durante o ano: pastoris, bumba-meu-boi e reisados no mês de dezembro e janeiro. Em junho, as esperadas festas em louvor a Santo Antônio, São João e São Pedro. Embalado pelos coros das famosas rezadeiras nas procissões e batizados, Gonzaga era encontrado nas manifestações de fé ou musical. O contato repleto de sons, tocadores, repentistas, cordelistas, seresteiros nas feiras, quando acompanhava a mãe na venda de cordas, nos causos, histórias e estórias em torno da fogueira e nos aboios74 dos vaqueiros tocando o gado foram essenciais para o filho de Januário. Esse contato tornou-se um poderoso repertório para musicar o cotidiano no sertão, a natureza sertaneja com suas belezas e dificuldades, o tanger do gado, o som cadenciado dos chocalhos nas pastagens, o voo da asa branca e o canto dos pássaros75. No trabalho na roça, ainda criança, foi perceptível que o garoto não tinha tanto foco para o trabalho com a terra. O talento de Luiz estava no jogo de foles, influenciado pelo pai. Para Santana, a profissão de sanfoneiro não daria tanto futuro, quanto a de lavrador. Essa descoberta causou grande descontentamento para a sua mãe, pois achava que a profissão de sanfoneiro não dava “futuro” e queria que o filho fosse lavrador. Observando a capacidade musical de Gonzaga, Januário começou a levá-lo para consertos de sanfonas, edificando o dom pré-existente. O contato com os puxadores de fole aperfeiçoou sua técnica a chegar ao ponto de acompanhar o pai nos bailes, festas e sambas, apesar das opiniões contrárias da mãe. Luiz Gonzaga trouxe na memória as percepções e visões de mundo constantes nas modas de viola, nos ritmos sertanejos e nas cantorias religiosas, influenciando a produção musical que viria a ser conhecida futuramente em todo o país. No ano de 1924, a grande enchente do riacho da Brígida obrigou a família de Januário procurar outra moradia. O novo destino acabou sendo a fazenda Várzea Grande, no povoado de Araripe, onde era comum ver meninos na idade de Gonzaga, na época com 12 anos, trabalharem na roça, inclusive, doando dois dias de trabalho para o patrão, dono da terra. Contudo, Luiz Gonzaga tinha o desejo de comprar sua própria sanfona e ganhar dinheiro tocando pelas redondezas da fazenda. Graças ao contato com o polivalente Manuel Ayres de Alencar, coronel patenteado da Guarda Nacional76, advogado e prefeito de Exu por quatro vezes, o sonho começou a tomar forma.

74 Canto monótono entoado pelos vaqueiros nordestinos durante a condução do gado, tendo a finalidade de reuni- los ou guiá-los. LAROUSSE Cultural. 75 Aquarela Musical do Sertão. Documentário. IDERB, direção de Ângela Machado. Comentários do professor Miguel Calmom (UNEB/Serrinha), Realização TVE, Março 1996. Documentário que se discute a influência musical do sertão para os cancioneiros populares da região e suas principais manifestações. 76 Título assinado em 18 de outubro de 1916 pelo então presidente do Brasil, Venceslau Brás. 61

Na residência do “Sinhô Aires”, entre as atividades como ajudante nas viagens e cuidando do cavalo do patrão nas andanças pelo sertão, Luiz foi sendo alfabetizado pelas filhas do coronel Manuel, aprendendo a escrever as primeiras letras e sentar-se à mesa com a família. Conhecendo as fazendas, cidades e povoados vizinhos, Gonzaga acompanhou Ayres até o ano de 1926, quando finalmente conseguir juntar o dinheiro suficiente para a aquisição de um instrumento.

Figura 6 – Januário, pai de Luiz Gonzaga.

As experiências desbravadoras do menino Gonzaga como uma espécie de escudeiro apresentou às notícias além do Araripe. As histórias sobre o cangaço77 percorriam o Nordeste adentro. Nascido entre o final do século XIX e começo do XX, esse fenômeno social caracterizado por atitudes violentas, por parte dos cangaceiros, espalhavam o medo pelo sertão nordestino, promoviam saques a fazendas, atacavam comboios e sequestravam os mais abastados para obtenção de resgates. Em vários casos, aqueles que acatavam as ordens dos cangaceiros eram ajudados com doações de parte dos roubos. Tal atitude fez com que os cangaceiros fossem respeitados e até mesmo admirados por parte da população da época. Nômades, esses grupos apareceram em função, principalmente, das péssimas condições sociais da região nordestina e do latifúndio que concentrava terra e renda nas mãos de grandes

77 Além da definição dos dicionários, o cangaço, como um exemplo de banditismo social, também pode ser considerado uma forma de atividade predatória realizada por bandos armados, organizados ou não, contra propriedades e autoridades. Segundo o historiador Eric Hobsbawm, “o banditismo é uma forma bastante primitiva de protesto social organizado”. 62

fazendeiros. Usavam roupas e chapéus de couro para protegerem os corpos durante as fugas na vegetação cheia de espinhos da caatinga. Além desse recurso da vestimenta, todos os conhecimentos que possuíam sobre o território nordestino (fontes de água, ervas, tipos de solo e vegetação) para despistar ou obterem esconderijos eram utilizados. Como não seguiam as leis estabelecidas pelo governo, foram extremamente perseguidos pelas forças policiais. Apesar dos inúmeros grupos de cangaceiros, o mais conhecido e temido foi o comandado por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, também conhecido pelo apelido de “Rei do Cangaço”, que atuou pelo sertão nordestino durante as décadas de 1920 e 1930. Em uma emboscada armada por uma volante policial78, junto com a sua mulher Maria Bonita e outros cangaceiros, os integrantes do grupo foram abatidos pela polícia em 29 de julho de 1938, na Grota de Angicos, em Poço Redondo (SE). Suas cabeças foram decepadas e expostas em locais públicos por ordem do governo Vargas, com o propósito de desencorajar a prática na região. Com o fim do bando de Lampião, os outros grupos de cangaceiros, já enfraquecidos, foram se desarticulando até terminarem de vez, no final da década de 1930. Todas essas efervescências no sertão mexeram com a rotina pacata do menino Gonzaga. Lampião tornou- se uma espécie de ídolo ou super-herói, influenciando, anos mais tarde, na escolha de sua indumentária artística: O chapéu de couro popularizado pelo cangaceiro, o qual, para ele, era exemplo de força. Em 1926, entre as notícias sobre os momentos políticos-militares relacionadas ao movimento tenentista79 e as informações sobre o cangaço e a Coluna Prestes que lotavam as páginas dos jornais nordestinos, o menino Gonzaga radicou-se em Exu, entrando para os escoteiros, onde teve a oportunidade de continuar seus estudos. A distância de dois quilômetros no trajeto residência-escola foi o motivo para morar na república de “dona” Vitalina, convencido por Ayres. Mesmo com toda admiração do coronel, patrão da sua família, Luiz Gonzaga sabia da condição como filho de simples lavradores:

Eu sabia que havia certos preconceitos, certos apuros. Mas eu comia na mesa deles (os ricos da região), tocava pra eles, era quase um deles. E se houvesse uma Alencar que gostasse de mim, bem que podia ser que deixassem a gente casar. É que eu era tido como bom, melhor mesmo que certos ‘brancos’, que viviam jogando e bebendo, que pra casar não servia. Queria mais. Queria morar em Exu, no meio daquela gente,

78 Grupos de soldados ou contratados que percorriam as caatingas em busca de grupos cangaceiros. Alguns ficaram famosos por sua perversidade contra civis. 79 Nome dado ao movimento político-militar e à série de rebeliões de jovens oficiais de baixa e média patente do Exército Brasileiro que eclodiu durante a década de 1920 e começo de 1930. Caracterizavam-se por um descontentamento militar, a par de uma insatisfação quanto às condições econômicas, sociais, políticas e institucionais então vigentes no país. O ponto culminante desses movimentos foi a Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República. 63

ir à igreja, ver aquelas moças entrar e sair, contemplá-las durante as missas e novenas.80

O comentário transparece um momento de confronto pessoal, onde a identidade de Gonzaga se espelhava no contraste social a qual estava inserido. Em um lugar pobre, seco e sendo filho de agricultores, conseguia viver a experiência diferente de muitos deles, pois conseguiu estudar, tocar sua sanfona e participar do dia a dia das pessoas mais poderosas da região. Junto com essas inquietações, a vontade de ser artista era uma aspiração crescia cada vez mais. “Sentia o impulso quando retornava dos bailes em Granito, Baixio dos Doidos, Rancharia e Cajazeiras do Faria, para onde ia a pé, torando doze léguas de ida e outras doze de volta (...)”81, já com sua primeira sanfona comprada e tocando nos bailes nas cidadezinhas da região do Araripe, apesar da pouca idade comparada aos outros sanfoneiros mais experientes da região. A vida de músico tornara realidade.

Figura 7 – Santana, mãe de Luiz Gonzaga.

O período em Exu ajudou na independência, na maturidade e na descoberta sexual do jovem sanfoneiro. Tanto que uma noitada em um prostíbulo deixou uma doença venérea como recompensa pelas aventuras noturnas, trazendo Gonzaga de volta à fazenda Caiçara

80 SÁ, Sinval. Luiz Gonzaga: O sanfoneiro do Riacho da Brígida... Op cit., p.71. 81OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga: o matuto que conquistou o mundo. Brasília: Letraviva, 2000, p. 28.

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para ser tratado por sua mãe, Santana. Quase morreu, mas “homem é assim mesmo”, tinha que provar sua “masculinidade” e, na época, a iniciação sexual se dava nos prostíbulos. Tão complicada como a infecção, a relação de Gonzaga com as mulheres, não apenas no sertão, mas durante toda sua vida:

Meu primeiro amor... O campo do amor do homem da roça é muito restrito. Quando aparece uma pessoa que a gente simpatiza é o grande acontecimento da nossa vida. Mas eu acho que a gente se apaixona mais pela carne, e dificilmente consegue se chegar a um bom termo com calma. (...) As histórias de amor no sertão são muito complexas, muito complicadas (...).82

Os amores que Gonzaga conheceu nas andanças da vida influenciaram fortemente suas canções. Porém, seu primeiro (grande) amor foi Nazarena Saraiva Milfont, filha do coronel Raimundo Olindo, um homem de posses e pertencente a uma família importante da cidade de Exu. O preconceito não permitiria que uma filha branca, alfabetizada e prendada se relacionasse com um mulato, sanfoneiro “sem futuro” e filho de agricultores. Contudo, a aproximação do casal foi uma questão de tempo e os encontros foram inevitáveis. O namoro continuou por um tempo e Luiz, com quase 17 anos, pensava em ficar noivo de Nazarena. Tendo conhecimento das suas intenções, o pai da moça proibiu o namoro da filha. Este teria sido o estopim para sua saída do sertão para um novo lugar a ser explorado:

Me disseram que o pai dela tinha me chamado de tocadorzinho de merda. Então decidi desafiá-lo. (...) E enquanto eu me gabava com meus colegas, ele, Raimundo Saraiva de Olindo, foi procurar mãe Santana e disse que só não me matara porque eu era filho dela (...)83

Como um bom “cabra macho”, não pensou duas vezes antes de ir pedir satisfação ao coronel Raimundo. Nesse momento, deve-se levar em consideração a necessidade de se fazer respeitar nesse contexto rural – em que a honra valia mais que qualquer outra coisa e, na maioria das vezes, era o único bem que se possuía. Luiz vai defender sua honra junto ao coronel, tendo essa história sempre rememorada por ele em várias entrevistas:

No sábado, quando nós chegamos (na feira), eu comprei uma faquinha mixuruca, escondi no bolso, tomei umas lapadas de cana – porque no Sertão, quando um cabra

82Apud DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante ... Op cit., p. 53. 83Apud OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga ... Op cit., p.29. 65

quer fazer um malfeito, é muito comum ele tomar uns goles de cachaça para ficar brabão... Uns valentões de merda! – e aí saí à procura de seu Raimundo (...).84

Esse tipo de homem nordestino de valentia inabalável e resistência homérica, foi representado por Gonzaga nas músicas ou “causos” que contava em suas apresentações. Pela atitude de enfrentar o coronel, acabou tomando uma surra de sua mãe e, com a honra pessoal ferida, decidiu fugir de casa com “o lombo ardendo do relho, fugindo para o mato”. A vergonha do que poderia surgir pelas consequências da famosa pisa foi o passaporte para outras estradas Brasil afora.

2.2. Do sertão ao Sudeste (1929-1940)

Lá no meu pé-de-serra Deixei ficar meu coração A que saudades tenho Eu vou voltar pro meu sertão85

A saída do Araripe foi um marco na vida de Luiz Gonzaga. Desde a famosa surra em 1929, tal fato sempre esteve nas suas memórias e narrativas. Segundo o próprio, foi o estopim para saída de casa, pois Exu havia “ficado pequeno demais” para ele. Com os pés na estrada e a sanfona nas costas, foi andando até a cidade do Crato para seguir viagem para o centro urbano mais próximo, Fortaleza. Em 1972, em entrevista para o jornal O Globo, Luiz Gonzaga afirma que andou cerca de 80 km para chegar até a cidade do Crato (CE), onde vendeu seu arcodeon por 80 mil réis86, utilizando o dinheiro para manter a viagem para a capital do Ceará. Em Fortaleza, sentou praça no Exército Brasileiro como voluntário, apesar dos dezoito anos incompletos. Na caserna militar e em contato com o movimento de uma cidade com melhor estrutura, mudou sua rotina e conviveu com um movimento social diferente. O sanfoneiro acabou conhecendo a pluralidade urbana, novos sons, ritmos e novas culturas que

84DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante... Op cit., p.53. 85A canção “No meu Pé de Serra” foi escrita por Luiz Gonzaga em parceria com Humberto Teixeira e gravada em 1946. 86Jornal O GLOBO. Rio de Janeiro, 08/08/1972. 66

ajudariam completamente na sua formação de músico e compositor. Em um concurso interno no Exército, foi aprovado para corneteiro da tropa, possibilitando um estudo mais variado sobre noções de harmonia e melodia. Pelo talento na execução dos toques na corneta, recebeu o apelido de “Bico de aço” pelos amigos de quartel. Nas andanças pelo país como soldado por ocasião da Revolução Constitucionalista87 de 1932, teve algumas chances para retornar ao instrumento original. Em uma delas, quando passava pelo estado de Minas Gerais com batalhão, o capitão Armando Carvalho Lima organizou uma banda para o baile de oficiais e o chamou para compô-la, pois já o ouvira tocar. No entanto, o soldado Nascimento, seu nome de guerra, praticava o instrumento, mas tocava de “ouvido”, não conhecendo os acordes:

O mestre (responsável pela banda) formalizado, quando viu todo mundo junto, foi botar sua banca... A orquestra não tem piano. A nossa base vai ser o banjo e o acordeão: – Gonzaga, Gonzaga, dá um Mi Bemol aí! – Mi Bemol? Que diabo é isso?88

Após esse fato, Gonzaga tentou aprender a ler partituras e tocar alguns acordes, tudo sem sucesso. Achava as teorias relacionadas ao mundo musical algo complicado, já que não era um músico de formação e “tirava” o som do instrumento a partir daquilo que ouvia. Ainda em Minas Gerais, Gonzaga conheceu Domingos Ambrósio, um acordeonista famoso na cidade de Juiz de Fora que lhe ensinaria várias técnicas na sanfona. Tocando em festas da região, seria o seu primeiro passo como tocador para um público diferente do habitual e costumeiro sambas da região do Araripe. Apresentando um repertório com os grandes sucessos da época, composto de valsas, polcas, choros e boleros, ritmos presentes na audiência do novato rádio. Um verdadeiro celeiro e vitrine cultural, o Rio de Janeiro dos anos 1930 era um ponto de encontro entre a música, a arte, a pintura e o teatro brasileiro. Aos poucos, as primeiras estações radiofônicas, já estabelecidas durante a década de 1920, começavam a elevar suas tecnologias e alcançar distantes residências, tornando-se evidência no espaço urbano como as Rádios Sociedade do Rio de Janeiro89 e Mairynk Veiga, fundada em 1926. No final dos anos de 1930 já faziam

87A Revolução de 1932 foi um dos mais importantes e dramáticos acontecimentos da história republicana brasileira. Expressão da insatisfação dos paulistas com a Revolução de 1930, o movimento serviu, antes de qualquer coisa, para convencer o Governo Provisório de Getúlio Vargas da necessidade de por fim ao caráter discricionário do regime sob o qual vivia o país. Isto só aconteceria quando a constituição de 1890, tornada sem efeito, fosse substituída por outra. 88SÁ, Sinval. O sanfoneiro do riacho de Brígida... Op. cit. p.108. 89Atualmente chamada de Rádio MEC, foi uma das primeiras rádios do Rio de Janeiro. Inaugurada em abril de 1923 pelos empresários Roquette Pinto e Henri Mourize. Em novembro do mesmo ano, os empresários inauguram a Rádio Educadora Paulista, em São Paulo. 67

sucesso as rádios de longo alcance, como a Super Rádio Tupi, a Rádio Record e a Rádio Nacional do Rio de Janeiro90, logo o Rio se torna uma cidade das oportunidades. Foi nesse contexto de expansão das emissoras de radiodifusão que Gonzaga se estabeleceu no Rio de Janeiro. Diferentemente daqueles que chegavam à cidade em busca de novas oportunidades, não correu para as portas das fábricas ou para a construção civil em busca de um emprego. Em 27 de março de 1939, forçado pelo decreto de proibição de engajamento no serviço militar por mais de dez anos, o soldado n° 122, com 9 anos e 8 meses de Exército Brasileiro, embarcava de trem, partindo de Ouro Fino, Minas Gerais, rumo ao Rio de Janeiro, capital da República. Levando uma passagem de navio da estatal Lloyd para Recife e um passe da empresa inglesa de ferrovias Great Western que o deslocaria da capital de Pernambuco para o sertão do Araripe, a roupa do corpo e uma sanfona alemã Hohner de 80 baixos faziam companhia ao civil e deslocado Luiz Gonzaga.

Figura 8 - Luiz Gonzaga como Soldado do 23º Batalhão de Caçadores.91

Desembarcando no Rio à paisana, foi autorizado a esperar a atracação do navio no Batalhão de Guardas. Ao limpar a sua sanfona para passar o tempo, ouve a indagação de um soldado no dormitório:

- Tu toca sanfona? Tem um lugar, o Mangue, que dá pra você ganhar dinheiro...92

90Essas emissoras conseguiam um alcance de radiodifusão que extrapolava os limites do estado do Rio de Janeiro, chegando a ser ouvidas em outras capitais do Brasil. 91 DREYFUS, Dominique. Vida de Viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed. 34, 2012. p. 61. 68

O Mangue, hoje, a região do bairro da Cidade Nova, zona norte do Rio, na época, era um verdadeiro ponto cosmopolita. Cais de porto, frequentado por militares e marinheiros de muitas partes do mundo às vésperas da Segunda Guerra (1939-1945), tornou-se refúgio da boêmia, da prostituição, de músicos amadores, de migrantes e malandros93, todos atraídos pelas noitadas, botequins, dancings e pelas cédulas que enchiam as caixinhas dos bares com música ao vivo ou pelos pires passados pelos artistas após as suas apresentações, às vezes, no meio da rua ou nas calçadas, animando os olhos e ouvidos dos transeuntes:

“Tinha mulher, droga, tudo na mão. Era difícil se controlar. Muito nego se perdeu. Eu mesmo vi muita gente morrendo de cana e droga. Escapei por sorte. Lá eu não me perdi, eu me achei”.94

A monotonia do quartel foi trocada pela aventura de conseguir algum dinheiro. Enquanto não chegava o dia de embarque, as escolhas pessoais e o ambiente diferente das hierarquias e controle do militarismo a qual estava inserido foram de suma importância na construção musical do baião como produto. Sua primeira tocada como artista foi na Rua Mem de Sá, centro do Rio, foi repleta de valsas vianenses e diversos ritmos europeus. A partir da vida boêmia no reduto do Mangue, Luiz obteve convites para festas de casamentos, batizados e bailes, adicionando as execuções musicais mais comerciais e requintadas da época como as canções de Augusto Calheiros e tangos de Carlos Gardel, conseguindo a tocar no clube Elite, próximo à Praça da República, e no famoso Samba Dancing, ambos os espaços com melhores níveis sociais do que os costumeiros cabarés da Rua Júlio do Carmo, da Praça Onze ou dos bares no bairro da Lapa. Essas andanças proporcionaram encontros com figuras importantes que o levariam ao grande público, aproximando o sertanejo de novas visões sobre seguir uma carreira artística. Isso animou a sua perspectiva de viver da música, tornar-se um profissional. Acabou esquecendo-se de tudo, do quartel, inclusive, do navio.

92 Em 1987, a jornalista francesa Dominique Dreyfus passou dois meses em Exu, hospedada no parque Aza Branca, sua residência. Os diálogos com o rei do baião deram frutos ao livro “Vida de Viajante”, uma das mais completas biografias sobre Luiz Gonzaga. 93 Sobre a figura do malandro ligada ao sambista, a pesquisadora Santuza Naves lembra que “é interessante observar que se o personagem do malandro já era familiar na literatura brasileira desde o século XIX e no samba desenvolvido pelos compositores cariocas dos anos 1910, é a partir do final dos anos 1920 que ‘malandro’ se torna sinônimo de ‘sambista’. E o lugar de excelência da prática da malandragem, segundo a maioria dos pesquisadores, seria o morro do Estácio, que abrigava sambistas importantes como os irmãos Alcebíades (Bide) e Rubens Barcelos, , Nilton Bastos, Baiaco e Brancura.” In: NAVES, Santuza Cambraia. Canção Popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.70. 94 Depoimento de Luiz Gonzaga In: ÂNGELO, Assis. Dicionário Gonzagueano... Op.cit. p. 81.

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Essa rede de descobertas, resultados e possibilidades amplamente conhecidas em suas biografias lançadas, documentários e pesquisas acadêmicas em torno de sua carreira. À beira dos seus “causos” e inegável importância na música brasileira, existe o nascimento de um novo contexto trazido pelo sanfoneiro de Exu e seus parceiros à semiótica nordestina, o que alcançou uma abrangência inédita na cultura popular. O acervo do cancioneiro popular teve contribuições que evidenciaram inúmeras formas de narrativas sertanejas e da economia dos símbolos de vieses geográfico e representativo da região Nordeste do Brasil. Esses processos discursivos foram vitais para trazer à tona o debate sobre a explosão do baião por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira e a dicotomia interessante do pensamento social em torno de um gênero que se definiu no espaço da metrópole. Apesar de se vestir de rural, o novo ritmo fez da mediação cultural um verdadeiro evidenciador de sensibilidades, principalmente, na parceria com o médico Zé Dantas95, dando mais sentido de pertencimento regional ao som executado pelo jogo de foles de sanfona, carisma e voz de Luiz Gonzaga. Até a sua expansão midiática e a divulgação nacional representativa, o estilo musical protagonizado pelo rei do baião interagiu as sociabilidades e possibilidades de um elemento de aprendizagem no cotidiano. Das suas experiências pessoais e as relações sócio-culturais, a musicalidade de Gonzaga ganha o cotidiano da sociedade carioca, ajudando nos paradoxos que aprofundaram os referenciais teóricos sobre (re)invenção de identidades, das tradições e das produções de performance de um documento musical. Em seu primeiro ano como morador do morro de São Carlos, no bairro do Estácio, zona norte do Rio, Gonzaga foi conquistando espaços em diferentes níveis sociais. Reproduzindo os repertórios que escutava nas estações de rádio, virou figura carimbada nos bares da região portuária. Junto com baiano Xavier Pinheiro, com quem aprendeu a conhecer e viver a cidade com os truques de quem era veterano das noites cariocas. Paulatinamente, as portas da vida agitada da Lapa ficaram abertas à dupla, que tocavam fados portugueses, até observar que os repertórios de blues americano e dos boleros argentinos não estavam no seu mundo de arcordeonista, após ser dispensado por um dono de um botequim pela reclamação dos seus clientes pela péssima forma de execução de alguns tangos. Segundo Dreyfus (2012), ele acabou recorrendo às aulas de Antenógenes Silva, conhecido compositor de valsas e habilidoso instrumentista e artista pela gravadora Odeon. Luiz, fã do músico desde os tempos

95José de Sousa Dantas Filho, conhecido como Zé Dantas (Carnaíba, 27 de fevereiro de 1921 – Rio de Janeiro, 11 de março de 1962) foi médico, compositor, poeta brasileiro. As parcerias musicais com Luiz Gonzaga renderam canções que alcançaram as paradas de sucesso da época, retratando em suas letras os costumes do povo nordestino e algumas de suas tradições culturais. 70

de aquartelamento militar, aprendeu muito além de “La Comparsita”96, solfejos e harmonias. Começou a ter contato com um mundo musicalmente profissional. Já tinha a noção que a integração ao ritmo artístico na capital do país, imitando os fazeres e o modo de viver carioca. Na década de 1930, o crescimento da popularidade e audiência do rádio modificou a forma de produção de certos entretenimentos. No Rio, a construção de enormes estúdios com auditórios inclusos para eventos “ao vivo” fizeram dos programas de calouros uma verdadeira atração de lazer. Enquanto alguns buscavam uma carreira em fama, outras utilizavam a chance de conhecer e admirar seus ídolos.97 O start de Luiz Gonzaga na vida musical coincide com o fator receptivo da região Sudeste como o destino preferido do fluxo migratório nordestino no Brasil e os primeiros passos da indústria cultural em cidades e metrópoles que fortaleceram os alicerces sociais e sua recepção pública, principalmente, pós-lançamento da proposta de Gonzaga e Humberto. Apesar de sua experiência urbana, o desenvolvimento do baião gonzaguiano deu inéditas estruturas ao sertão o trazendo como um celeiro de bens de memória, com referências às representações regionais. Diferente da música caipira, do samba ou das modas de violas, a legitimação do novo som alinhou-se às especializações dos debates sobre a construção da identidade brasileira e ao processo de valorização do caráter nacional, regionalizando através do impulso do mercado e da reinvenção de um complexo estético, artístico e cultural que se generalizou um contexto representativo no imaginário sobre outros brasis existentes. No caso da institucionalização do Nordeste tão exposto na obra de Luiz Gonzaga, existe a caracterização plural em ritmos e sonoridades, ajudando o artista e seus parceiros a trazer linguagens musicais que configuram no ouvinte as sociabilidades, concretudes e aprendizagens do cotidiano na representação múltipla de simbólicas nostalgias ante o cosmopolitismo urbano de uma grande metrópole. Mesmo com o poder comunicativo do rádio durante as décadas de 1920 e 1930, a evolução da publicidade da música regional, no caso, “do norte, tem as excursões no Rio de Janeiro dos grupos Turunas98 Pernambucanos (1922) e Turunas da Mauricéia (1928) como marco importante na apresentação de canções comuns às praias e ao sertão do Brasil, desconhecidas pelo público carioca. Os cocos e as

96 Considerado o tema de tango mais conhecido do mundo, La cumparsita é uma canção do uruguaio Gerardo Matos Rodríguez (1897-1948). 97 RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: a Síntese Poética e Musical do Sertão. São Paulo: Terceira Margem, 2000. p. 24. 98 O processo de aparição artística dos Turunas será exposto no Capítulo 3. 71

emboladas (quando o coco era dançado) povoavam os repertórios desses grupos, abrindo oportunidades para a apresentação – nas cadeias radiofônicas, inclusive - de outros artistas nordestinos na capital da República99. Assim, no caminho da consagração da versão do homem do sertão adaptado à realidade urbana, o alvorecer do baião acabou produzindo híbridos enunciados que debateram os paradoxos da região nordestina, desde associações às situações de lamento, saudades ou penúria econômica aos contextos na memória dos migrantes residentes no eixo centro-sul do país. Tal reconhecimento foi amplificado, durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), com a estatização da Rádio Nacional e tornando-se uma das principais divulgadoras de ritmos regionais, seguindo as ordens de incentivo às políticas de unificação cultural de Getúlio Vargas, que utilizou as ondas sonoras do rádio para divulgar a propaganda do seu governo. Vale ressaltar a sua incorporação ao patrimônio da união, depois da tentativa do governo getulista de implantar na Rádio El Mundo, de Buenos Aires, o programa Hora do Brasil:

Uma das providências adotada meses depois da instalação do Estado Novo ia além das nossas fronteiras: a criação de um programa do Brasil na Rádio El Mundo, de Buenos Aires. (...) Não foi uma experiência bem sucedida. Os brasileiros que passavam por Buenos Aires voltavam horrorizados com a má qualidade da apresentação das músicas brasileiras. A Hora do Brasil em Buenos Aires foi um fracasso, mas o governo Vargas tinha uma arma bem mais eficiente para utilizar o rádio em seu benefício: em 8 de março de 1940, incorporou ao patrimônio da União nada menos do que a Rádio Nacional. E, com ela, dois jornais, A Manhã, e A Noite, a revista Carioca, a Rio Editora, (...). Era o que faltava ao Estado Novo: o jornal de maior circulação no Rio de Janeiro e a emissora de melhor penetração no Brasil.100

A popularização do rádio no Brasil se deu num espaço tênue entre a influência do mercado fonográfico, do controle estatal e do alcance através de um método privado de comunicação às massas, com utilização das ondas sonoras para divulgar a propaganda do governo. As metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro exportavam e executavam a radiofonia e apresentavam novas tendências a nível nacional. Na época de amadurecimento artístico de Luiz Gonzaga, as emissoras de rádio tinham perfis diferentes nessas cidades. Nas emissoras da capital paulista predominavam programas de ópera e música erudita direcionados para a elite, enquanto nas emissoras do Rio de Janeiro as atrações tinham caráter mais popular. O rádio desempenhou papel social, político e cultural no Brasil, particularmente

99 SEVCENKO, Nicolau. “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”. In: NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau (Orgs.). História da Vida Privada no Brasil. Vol.3 - República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 100 CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. p. 80-82.

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na trajetória musical de Gonzaga. Foi por meio desse aparelho que ele se consagrou na música popular brasileira. Acostumado à rotina da cidade do Rio de Janeiro, Gonzaga se deslumbra com os disputados shows ao vivo que animavam a audiência popular e revelavam vozes futuramente consagradas na música nacional. Fã do programa de calouros chamado Calouros em Desfile, capitaneado por Ary Barroso101 pela Rádio Tupi, começou a frequentá-lo em sua plateia. Na esperança de ser mais um exemplo entre as estrelas que conseguiram fama por esse caminho, inscreve-se como candidato. Recheadas de interpretações de valsas, tangos, choros e sambas, as primeiras apresentações do sanfoneiro nunca conseguiam alcançar a nota máxima.

2.3. A decisão estratégica de um calouro desafiado (1941/1945)

A grande virada na carreira e vida de Gonzaga aconteceria em um bar na Cidade Nova, em 1941, quando um grupo de estudantes cearenses que estudavam na Guanabara, ao notar o sotaque pernambucano, pediu ao sanfoneiro executar alguma coisa “lá do pé da serra”. Adaptado à dinâmica urbana, o pedido dos conterrâneos nordestinos soava estranho ao seu novo modo de vida à carioca. Mesmo artisticamente, o Nordeste vinha com um peso estereotipado de lugar distante, esquecido e sofrido. Culpando a falta de lembrança do repertório dos tempos de serra do Araripe, a negativa de Gonzaga ao pedido dos estudantes foi interpelada pela proposta tentadora dos cearenses: Só receberia algum dinheiro se tocasse algo do Norte. Armando Falcão102, um dos rapazes daquele grupo de universitários, contou sua versão para o pedido: O desafio mexeu com o repertório de Luiz e com uma série de rearranjos de práticas, técnicas e visão de mercado. Todo o processo de recuperação musical era uma espécie de garimpo da trilha sonora de sua infância e pré-adolescência. Para ele, as canções que aprendeu na infância não estariam à

101O músico e compositor mineiro (1903-1964) começou a se destacar no Rádio, à frente do programa “Hora H” na Rádio Kosmos, de São Paulo, em 1934. Na cidade do Rio de Janeiro em 1937, comanda o famoso programa "Calouros em Desfile", onde obrigava os candidatos a cantar música brasileira. Crítico ferrenho dos artistas que passavam pelo palco, tinha o hábito de “gongar” os calouros que não faziam boas apresentações. Pelo programa passaram talentos da MPB como Dolores Duran, Elza Soares, Luiz Gonzaga, Lúcio Alves e Elizeth Cardoso, dentre outros (Coleção Folha Raízes da MPB. In: http://raizesmpb.folha.com.br/vol-9.shtml). 102Armando Ribeiro Severo Falcão (1919- 2010) foi um político brasileiro, mais conhecido por destacou-se como importante articulador da candidatura de Juscelino Kubitschek, governador de Minas Gerais, à presidência da República. De 1974 a 1979, assumiu o Ministério da Justiça do Brasil durante o governo Ernesto Geisel. 73

altura dos tangos ou valsas ovacionados pelos bares e clubes. No entanto, já tinha noção que suas formas de cantar e tocar não combinavam com o seu repertório exclusivamente urbano.

Tocando desse jeito, mas tocando tango, não dá! A gente quer ouvir alguma coisa do Nordeste, que fala da terra, da saudade da serra e do sentimento daquele chão. Nós somos vizinhos: você é de Exu, nós somos do Crato. E a saudade é uma só. Então, porque não mudar de gênero?103

Voltar às origens tornara uma questão financeira, pois, junto com o desafio de tocar alguma música da região nordestina, estava a promessa de um pagamento pela execução do número. Então, dias após o último encontro, o sanfoneiro preparou duas músicas: “Vira e Mexe e Pé de serra”104. Sobre o fato, o próprio Gonzaga narra no show Luiz Gonzaga – volta pra curtir gravado ao vivo no Teatro Tereza Rachel (RJ) em março de 1972:

(...) Oxente, eu queria ser o rei do baião (...) até que uma certa noite, chegasse lá - no Mangue - assim um grupo de cearense, diziam que eram universitários, sei lá o que era isso, era estudante mesmo... Depois de me agradarem muito, fizeram uma exigência: olha caboclo, quando a gente voltar aqui outra vez, nesse lugar, nós só damo dinheiro a você se ôce tocar um negócio lá daqueles pé de serra, você não é sertanejo? Ôce num é da serra do Araripe? Eu digo: sô... Tá feita a exigência! Aí eu fiz uma recapitulação, organizei – esse numerozinho que entrei tocando aqui pra vocês, aqui agora (música de fundo em ritmo de xote, com zabumba, guitarra, triângulo e sanfona) eu virei mestre, é foi o primeiro. Quando os cearenses chegaram, eu disse pra eles: Olha, eu tenho um negocinho aqui pra impurrar em vocês. Então manda! Lasquei brasa.105

Além dos estudantes, a apresentação chamou a atenção dos fregueses do bairro boêmio. O sanfoneiro começou a ser convidado para tocar em outros bares das redondezas, agradando os transeuntes que tinham escutado algo parecido com aquele ritmo agitado. A partir desse momento, Luiz Gonzaga precisou criar um novo repertório para tocá-las nas noites que estariam por vir. Para isso, rememorar as músicas que faziam parte das tradições nordestinas, de sua memória afetiva e de sua vida pacata no sertão do Araripe era uma questão de sobrevivência. Amplamente divulgado pelo artista em entrevistas, discos e apresentações ao vivo, essa positiva recepção pelo público diversificado no Mangue deu ânimo para retornar ao programa de calouros de Ary Barroso. Comparecendo ao programa em outras ocasiões, suas notas eram médias: De zero a cinco, raramente conseguia uma nota três. Como a nota máxima

103Depoimento de Armando Falcão In: OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga... Op.cit. p.43. 104Temas instrumentais gravados por Luiz Gonzaga em 1941. 105Vale salientar que existiam muitos conjuntos que já apresentavam músicas com temática nordestina nas rádios como Quatro Ases e um Coringa e Os Turunas. Porém, sem o sucesso do futuro rei do baião. 74

rendia um bom prêmio em dinheiro, Gonzaga escolheu o tema Vira e Mexe e tentou a sorte novamente no Calouros em Desfile:

Eu ia sempre, tocava uma valsinha de Antenógenes Silva, e tal... mas eu só tirava nota dois, nota três, até três e meio. Quando eu acertei no caminho do Norte cheguei lá, cheguei lá dizendo que ia tocar um negocinho do norte, foi justamente que eu virei mestre (toca a música na sanfona e termina a história). Não teve Ary que aguentasse, foi nota cinco. Naquele dia comi dois pão.106

No estúdio da Rádio Tupi, o olhar de Ary Barroso e o auditório lotado não estremeceram a sanfona de Gonzaga. Entre os jurados, o ilustre cantor e radialista Almirante. Ironicamente, o compositor-animador mineiro apresentou o candidato com gracejos107:

- Você vai tocar hoje o quê, meu filho, com essa harmônica? Mais um tango? - Não, seu Ary. Vou tocar uma coisinha de lá do Norte para o senhor escutar.

Naquele domingo de manhã, uma das rádios mais importantes do país viraria um verdadeiro arraial. Ovacionado e aplaudido, Luiz Gonzaga obteve a nota máxima e levou os 150 mil réis como prêmio. O passaporte para o sucesso estava carimbado pelo abismado e surpreso Ary Barroso, fazendo de um calouro postulante à piada radiofônica numa presença requerida em vários programas. A música que aprendeu no sertão com Januário foi aclamada pelo público urbano carioca. Seu futuro reinado tinha início naquele confronto com os jurados da rádio, o gongo de Ary e seu próprio reencontro com uma musicalidade adormecida. Conhecido e estereotipado como do Norte, as primeiras composições do universo gonzaguiano foram tomando uma forma única, original e histórica. É importante salientar que Luiz Gonzaga não tinha a mínima noção de estar tocando algo de contexto regional. Posteriormente, esse espaço foi conquistado, edificando sua vaga entre o degrau social que o Rio de Janeiro protagonizava como vitrine cultural. Acabou utilizando suas experiências migrantes para referenciar que memórias, a nova forma de tocar o instrumento e a mesclagem com ritmos como maracatu, xote, xaxado e toadas sertanejas. Encarada como um recorte social do país, se referir ao Nordeste tinha o propósito de nomear os habitantes de uma área que até então era conhecida como Norte. Segundo Albuquerque (2003), podemos constatar que “esta identidade regional vai se afirmando de forma muito

106Entrevista ao jornalista Júlio Lerner no Programa Proposta (TV Cultura), com a participação de Gonzaga Jr. Depoimento gravado em 1972. In: https://www.youtube.com/watch?v=E6fsItmgm9k. Acesso em 13 de janeiro de 2020. 107ÂNGELO, Assis. Dicionário Gonzagueano... Op. cit. p.86. 75

lenta, convivendo pelo menos até os anos trinta com outras designações como: nortista, que se preserva ainda hoje no Sul do país; cearenses (...); sertanejos; brejeiros, praieiros (...), termos que mais tarde, serão incorporados à figura do nordestino”.108 Com a repercussão no programa de Ary, Luiz foi convidado a tocar sanfona no seu primeiro programa, A hora sertaneja, criado por Zé do Norte109, pela Rádio Tupi. A fase de manutenção de contratos nas casas noturnas do Mangue e de aparições em programas ajudou na projeção de Gonzaga no meio radiofônico. O grande divisor de águas na carreira do sanfoneiro foi o contato com o radialista Renato Murce, criador do programa diário Alma do Sertão110, onde eram irradiadas músicas, modas sertanejas, temas caipiras e cenários do interior, sempre com apresentação dos artistas do cast da emissora. Renato acabou convidando Luiz para ingressar como solista, com um salário regular na orquestra de seu programa, no quadro artístico da Rádio Clube do Brasil111, fundada em 1924, onde era inexistente o posto de sanfoneiro. Depois de alguns meses, Murce foi para outra emissora e Gonzaga migrou para Rádio Tamoio, pertencente ao conglomerado de imprensa Diários Associados do jornalista Assis Chateaubriand, por indicação de Almirante, “A mais alta patente do Rádio”, para integrar o grupo regional da emissora, substituindo a flauta, onde teve contato com as múltiplas formas de interpretação. Aos poucos, foi adentrando um nível mais profissional com relação às oportunidades no mercado, aproveitando a sua forma única de tocar sua sanfona. Como mencionado na autobiografia escrita por Sinval Sá, Luiz passou a “temer o futuro”. Essa dimensão de um possível imprevisto diante do universo artístico o fez procurar algo para sedimentar a sua arte. Acompanhando diversos artistas112, Gonzaga ganhou notoriedade como instrumentista, chegando a gravar seu primeiro disco de 78 rpm, com as músicas Numa serenata e Véspera de São João pela gravadora Victor em 14 de março de 1941. Em maio do mesmo ano, seria

108 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – Uma história de gênero masculino (Nordeste 1920/1940). 1ª ed. Maceió: Edições Catavento, 2003. p.150. 109 Alfredo Ricardo do Nascimento (Cajazeiras (PB), 18 de dezembro de 1908 — Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1992) foi um músico e animador brasileiro. Em 1941, lançou em programa de rádio o sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga, o futuro Rei do Baião. 110COLLECTOR‟S STUDIOS. Alma do Sertão. Teresópolis - RJ, s/d. Disponível em: . Acesso em: 04/02/2020. 111 SAROLDI, Luiz Carlos. Rádio e Música. Revista USP. São Paulo, edição 56, dez/jan. 2002-2003. 112 Realiza a primeira gravação como sanfoneiro, acompanhando Genésio Arruda. É contratado pela gravadora RCA Victor para gravar como solista e lança o primeiro disco da carreira, instrumental, de 78 rotações. Lança ainda mais dois discos e passa a ser considerado “O maior sanfoneiro do Nordeste”. É contratado pela Rádio Clube do Brasil, transferindo-se mais tarde para a Rádio Tamoio. 76

lançado o segundo compacto trazendo as canções Vira e Mexe e Saudades de São João Del- Rei, músicas aprendidas nos tempos de vida pacata no sertão nordestino, esboçando uma espécie de projeto que só começou a dar reais sinais de sucesso e de autonomia a partir do biênio 1945/1946.

Figura 9 – Luiz Gonzaga (1941).

Mesmo com o espaço das rádios, das inúmeras gravações de respaldo e de obter a alcunha de “Maior sanfoneiro do Nordeste, quiçá do Brasil”, o cantor não conseguia destruir o preconceito e a resistência de alguns empresários de emissoras nas quais se apresentava. O grande motivo era o sotaque nordestino, que parecia incomodar os ouvidos dos executivos. A partir de um convite vindo de Átila Nunes, importante diretor de programas de rádio na época, para se apresentar cantando, começou a chamar a atenção de alguns ouvintes. Nascia consigo a segurança para uma fase de busca de parcerias que chegaria ao clímax com o advogado Humberto Teixeira. Porém, antes do poeta de Iguatu, o responsável por esse amadurecimento foi o compositor fluminense Miguel Lima113.

113 Miguel Lima foi o primeiro parceiro de Luiz Gonzaga, com quem compôs a mazurca "Dança mariquinha", os xamegos "Penerô Xerém" e "Cortando pano" e a valsa "Perpétua", todas em 1945. Ainda no mesmo ano compôs com Antenógenes Silva a marcha "Palhaço" gravada por Gilberto Alves com acompanhamento do próprio Antenógenes Silva. Ao longo da carreira compôs marchas, valsas, baiões, sambas, calangos e maxixes, entre outros ritmos. Além de Gonzaga, teve composições gravadas por Severino Januário, Zé Gonzaga, Ademilde Fonseca, Antenógenes Silva, Trigêmeos Vocalistas, Carmem Costa, Vicente Celestino, Araci de Almeida, Augusto Calheiros. Em 1947, Luiz Gonzaga gravou a marcha-frevo "Quer ir mais eu?", parceria dos dois. Em 1958, a RCA Victor lançou o LP "Xamego", de Luiz Gonzaga, trazendo onze parcerias suas com 77

Das 26 canções114 assinadas por Gonzaga e Miguel, destacam-se Dezessete e setecentos e Xamego (A versão do instrumental Vira e Mexe com letra). Logo após o bom começo da produção musical da dupla, Gonzaga procurou o embolador pernambucano Manezinho Araújo (1913-1993) para firmar algum tipo de contribuição artística. Nascido na cidade do Cabo de Santo Agostinho, Manuel Pereira de Araújo foi o primeiro artista brasileiro a gravar jingles comerciais para empresas de maior porte115. Gravaria mais de 50 discos entre as décadas de 1930 e 1950 e, no Rio de Janeiro, trabalhou em casas noturnas, chegando às rádios Tupi, Guanabara e Mayrink Veiga. Seus filmes com temática folclórica despertou o interesse dos sulistas por certas músicas nordestinas como as emboladas, a sua especialidade. Obteve grande popularidade na gravação de Dezessete e setecentos, de autoria de Luiz Gonzaga e Miguel Lima. Enquanto isso, Xamego era regravada por Carmem Costa, cantora fluminense ex- empregada de Francisco Alves116, que não tinha o sotaque próprio para aquilo que Gonzaga pretendia apresentar. Era o momento em que a definição do baião em cunho comercial era formulada e o uso de outros ritmos nordestinos já povoavam sua carreira. Miguel Lima acabou se distanciando por não concordar com esse tipo de regionalização nas músicas sanfonadas por Gonzaga. Apesar disso, acabou tornando-se essencial no início do sucesso do baião por ter sido o letrista que apresentou a voz de Luiz aos microfones. Aprovado e conhecido nos ambientes internos das produções como instrumentista solo, os primeiros movimentos do baião cantado pelo seu principal intérprete tiveram obstáculos nas altas direções e nos produtores musicais das emissoras de rádios. Inclusive, com a restrição explícita de Luiz Gonzaga cantar e tocar esse ritmo em certas situações. Em 1943, uma dessas proibições ocorreu durante a tentativa de executar algumas músicas nordestinas na Rádio Tamoio. Sobre essa questão, Fernando Lobo, diretor, radialista e produtor de várias emissoras de rádio e TV, comentou:

Gonzaga, entre as quais o maxixe "Bamboleando" e a rancheira "Cortando o pano". Ver http://www.dicionariompb.com.br/miguel-lima/dados-artisticos. Acesso em 11/02/2020. 114 RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: A síntese poética e musical do sertão. São Paulo, Ed. Terceira Margem, 2000. 115 VAINSENCHER, Semira Adler. Manezinho Araújo. Pesquisa Escolar Online, Fundação , Recife. Disponível em: . Acesso em: 05/02/2020. 116 Francisco de Morais Alves (Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1898- Pindamonhangaba, 27 de setembro de 1952) foi um dos mais populares cantores do Brasil na primeira metade do século XX. Era considerado por muitos o maior do país até a sua morte. 78

No que diz respeito a Luiz Gonzaga, há um crime imperdoável cometido por mim. Eu soube pelo contra-regra que, quando faltava um artista, Gonzaga cantava no lugar. Eu então chamei Gonzaga e falei que ele não fora contratado para ser cantor. Ele era sanfoneiro, e sanfoneiro continuaria a ser. Nada mais. Eu nem procurava saber como ele cantava. Eu era um menino de trinta e poucos anos e já era diretor de rádio. Então eu achava que tudo tinha que encaixar com a disciplina. E lá vinha aquele nordestino querendo quebrar a disciplina. Depois eu fui para os Estados Unidos e só voltei quatro anos mais tarde, quando Gonzaga já se tornara aquela figura.117

Em 1944, o projeto pessoal de Gonzaga em virar um cantor foi amplamente rechaçado, tanto na gravadora RCA-Victor e na Rádio Nacional (1945). Animado por Miguel Lima, Luiz tinha o apoio do público noturno das boates, Enquanto existiam as reclamações da alta cúpula, a audiência da Rádio Tamoio implorava, por meio de cartas enviadas à emissora, que o sanfoneiro de Exu cantasse as canções “Dezessete Setecentos” e “Xamego”. O próprio Fernando Lobo, recém-chegado dos EUA, reagiu imediatamente: “Luiz Gonzaga está terminantemente proibido de cantar, por ter sido contratado como sanfoneiro.” O sanfoneiro do Araripe assinou contrato com a Rádio Nacional em setembro de 1945:

Victor Costa que dirigiu o barco da grande emissora, o contratara conquanto... se limitasse a tocar sanfona e não cantasse! Carmélia Alves, que fazia parte do casting da Nacional, recordava que Victor avisara: “Luiz Gonzaga está proibido de usar microfone de lapela”, pois ele era considerado como tendo uma voz feia. Verdade é que sua voz singela e alegre não correspondia em nada aos critérios estéticos da época. Não se podia comparar aos empostados tremolos de Chico Alves, Orlando Silva ou Nelson Gonçalves...118

O expressivo número de cartas de fãs que começou a receber era interessante, mas o que fez a voz de Luiz ser gravada foi a sua ameaça de sair da gravadora, caso não o registrassem cantando, o sanfoneiro iria “de mala e cuia” para a concorrente Odeon. Em depoimento a biógrafa Dominique, Gonzaga afirmou que a mentira era apenas para forçar a permissão de Vitório Lattari, o diretor artístico da RCA-Victor, da sua interpretação como cantor. Inserida no mercado brasileiro em 1929, a gravadora independente americana Victor recebeu a autorização para atuar no Brasil em 1928. A Radio Corporation of America (RCA), fabricante de aparelhos de rádio, tornou-se uma importante rede de emissoras de rádio americanas e comprou a matriz da gravadora Victor. Em 1931, a filial brasileira acompanhou a fusão das

117 Fernando Lobo. Apud: DREYFUS, Dominique. Vida de Viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34, 2012, p.97-98. 118 Fernando Lobo. Apud: Ibidem, p.102. 79

empresas e a RCA Victor Brasileira, Inc. já era uma realidade no combate pelo espaço no mercado fonográfico com a poderosa Odeon, que já tinha grandes fábricas de toca-discos e vinis na América Latina. Nos anos posteriores, a RCA-Victor conseguiu evoluir a ponto de manter no seu cast de artistas Nelson Gonçalves, Almirante, , Aracy de Almeida, Orlando Silva, entre outros. Luiz Gonzaga seria o próximo da lista. Porém, contou com a ajuda do diretor da Odeon à época, Felisberto Martins119 (1904-1980), que afirmou que o contrataria sem grandes problemas. Vitório acabou cedendo e a mazurca “Dança mariquinha”, fruto da parceria com Miguel Lima, se tornou a primeira música cantada por Luiz Gonzaga:

Incentivado, ele quis tentar o disco, e a direção da RCA permitiu que ele gravasse a mazurca “Dança Mariquinha” (parceria com Miguel Lima). Foi, no entanto, com “Mula Preta” que Luiz alcançou o sucesso como cantor.120

Com necessidade de trazer a cultura nordestina - mesmo com uma observação urbanizada - para uma audiência que começava a balançar com sua musicalidade, Luiz inicia a procura por compositores e letristas que bebessem do mesmo senso criativo.

2.4. Com Humberto, a consolidação nacional (1946-1950)

Apesar do bom alcance e reconhecimento atingido das suas canções em outras vozes, as músicas com Alcebíades Nogueira, Miguel Lima, Assis Valente ou Jeová não tiveram letras com inspiração sertaneja ou migrante. A busca por um parceiro que desse uma colaboração121 no viés que ressignificasse seu propósito artístico virou uma saga:

Eu vinha então tentando tudo, gravava carnaval, gravava outras coisas, porque os meus parceiros não sentiam o que eu queria, eu queria era outra coisa, e eles achavam que estava muito bem, a fábrica estava muito satisfeita comigo, mas eu queria era entrar era no Norte, era no sertão. Eu queria era cantar as coisas da minha

119Além de diretor artístico, Felisberto Martins foi um letrista de sucesso considerável e sócio fundador da SBACEM, sociedade arrecadadora de direitos autorais na qual também atuou como membro da diretoria, exercendo o cargo de vice-tesoureiro. Considerado um incansável batalhador na defesa dos direitos autorais. 120 OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga ... Op cit. p.48. 121 O primeiro parceiro de Luiz foi o baiano Xavier Pinheiro, com quem foi morar no bairro de São Carlos e que futuramente criaria o filho do Rei do Baião. Juntos, eles tocavam em casas noturnas e “cabarés” ritmos como fado, choros, sambas, valsas, tangos, entre outros. Sem tanto sucesso, Gonzaga passou a se apresentar sozinho nas ruas. Depois de ser indagado pelos estudantes cearenses, ele concluiu que precisava mostrar em suas canções aquilo que a região tinha e significava. 80

terra, eu queria alguém que me ajudasse a decantar a vida da minha gente, estava muito difícil de encontrar. Mas, nessa época, existia um conjunto aí chamado Quatro Ases e um Coringa, que era um grande sucesso e cantava essas coisinhas brejeiras do norte, de um autor chamado Lauro Maia. E eu queria cantar era aquele gênero, era aquele negócio, eu ouvia o (?) era o firifimfim, firififim, firifimfim... Como eles faziam. Imitava o sanfoneiro, imitava os pé de serra, aquelas coisas. E eu dizia: esse Lauro Maia tem que fazer música pra mim, eu vou procurar esse homem né? Eu estava bem filiz lá, com aquelas músicas que eu estava cantando ao finá do primeiro ano, Mula Preta, Quer ir mais eu vamos, e Penerô Xerém, e outras coisas, mas eu queria era entrar era no sertão, e Lauro Maia era o sujeito que na minha opinião ia resolver meu problema, aí procurei o Lauro Maia (...)122

Nessa altura, o desejo de cantar o sertão à sua moda o fez cruzar caminho com um importante arranjador: O cearense que criou o “balanceio”, Lauro Maia Teles (1913-1950). Compositor de músicas com temas nordestinos, algumas delas com o grupo Quatro Ases e Um Coringa, também era respeitado no campo dos estudos e das pesquisas musicais e folclóricas. Não haveria parceiro melhor para os desejos de Gonzaga:

Ele era pianista e fazia cópias de parte de pianos para os compositores analfabetos de música, assim como eu, lá nos irmãos Vitale (...) E eu o procurei lá. E eu contei a minha história. Eu tinha os motivos, as melodias, umas coisas, e queria alguém que botasse letra naquilo. Aí ele disse assim: “é Gonzaga eu gosto muito da sua voz, admiro a sua música, até lá no Ceará você é muito ouvido, eu tenho imenso prazer, mas, primeira coisa é que eu produzo pouco, o que eu produzo aqui dá pros meninos vadiar” - que era Quatro Ases e um Coringa, e os motivos que você tem eu num sou letrista pra isso não. Eu faço aqui meus números assim, eu penso pego um tema folclórico, desenvolvo, venho aqui e tal, boto a letrinha e tal, nasce letra e música juntas assim, mas para o que você quer.123

Lauro Maia não aceitou a parceria com Luiz Gonzaga, mas indicou o seu cunhado, Humberto Cavalcanti de Albuquerque Teixeira (1915-1979), para letrista. Essa recusa abriu as portas para Luiz Gonzaga pensar no novo ritmo como método de composição, com visão de mercado, representativo no contexto do “Norte”, sem influências americanas. Em 1945, o contato com o advogado Humberto Teixeira124, da cidade cearense de Iguatu, também com experiência migrante, efetivou a criação do baião como gênero musical de balanceio brasileiro. Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro125, Humberto já possuía músicas gravadas por Orlando Silva como Só uma Louca Não Vê (1945), Samba de

122 Entrevista concedida a Ricardo Cravo Albim e disponível no Arquivo de áudio do Museu da Imagem e do Som: 06 de setembro de 1968. Participação de Humberto Teixeira. CD 1, faixa 09. 123Entrevista concedida a Ricardo Cravo Albim. 124Lauro Maia casou-se com Djanira Teixeira, irmã do compositor Humberto Teixeira. 125 Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro-pós 1930. 2ª edição. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2001. 81

Roça (1945) e Mariposa (1946). O importante encontro aconteceu no escritório de advocacia de Humberto, no Rio:

Você (Gonzaga) entrou no meu escritório, e disse assim: vamos fazer música do Norte! E depois de estudarmos qual ritmo nós iríamos escolher para fazermos essa grande empreitada, depois de pensarmos em vários, saiu aquele primeiro baião, eu vou mostrar pra vocês, que é um marco na música popular brasileira. Isso é o que eu queria só lembrar, porque de fato isso tem uma importância histórica muito grande, porque foi de fato essa primeira música minha e do Luiz, quando ele me deu o motivo nortista que eu fiz a letra pra ela. Depois nós pensávamos muito que ritmo nós íamos escolher para poder fazer essa campanha que ele chamava de música do norte, e que tava na cabeça dele há muito tempo, nós saímos com o baião.126

Partindo da perspectiva de Luiz Gonzaga com relação às dinâmicas musicais, de aceitação popular e do potencial de mercado cultural no ambiente fonográfico, Humberto Teixeira tinha a noção que o som nordestino não era uma novidade, porém, tinha a capacidade de transformar em algo autenticamente representativo, aproveitando seu conhecimento sobre os debates que nasciam a partir dos intelectuais do rádio, folcloristas e entusiastas das correntes culturais nacionais, Baião127 firma-se como um ritmo de origem nordestina e possuidor de peculiaridades regionais. Apesar da sua emergente construção e apresentado ao grande público por outros artistas, posteriormente gravada na voz de Gonzaga (1949), a música é uma espécie de certidão de origem, dando ao ouvinte uma linguagem específica de festa e novidade128, chegando a competir com o samba. O primeiro grande êxito de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira estava totalmente imerso no contexto nordestino, embora concebido numa releitura de elementos sonoros do sertão com visão urbana do Rio, transportando a animação do interior. A canção foi apresentada com instrumentos que dão vida aos sons do Araripe – a sanfona no jogo de foles, os graves do zabumba e o agudo tengo-lengo do triângulo, com letra inspirada numa crônica popular e musical. Diferente das emboladas, mais acelerada do que os balanceios, o produto fabricado com Humberto elevava o Nordeste ao conjunto de processos estéticos, cênicos e culturais nunca antes visto. A experiência de ambos acerca dos sons, da tradição e da cultura trazida no bojo migrante construiu um pioneiro terreno para a organização de um gênero que

126Entrevista concedida a Ricardo Cravo Albim. Arquivo de áudio do Museu da Imagem e do Som: 06 de setembro de 1968. Com a participação de Humberto Teixeira. CD 1, faixa 09. 127TEIXEIRA, Humberto e GONZAGA, Luiz. Baião, 1949; série disco 78 rpm. 800605b. 128Discussão feita por Gildson Oliveira, baseada em algumas pesquisas de folcloristas e musicólogos. Ver: OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga ... Op cit. p. 121-122. 82

mesclasse como um apego popular, a classe média consumidora e o diálogo musical entre o ambiente urbano e o Nordeste rural. Em vários contextos, o baião de Gonzaga e Teixeira formulou e expressou o Nordeste como nunca antes havia ocorrido. Como uma metáfora social, a partir de Quatro Ases e um Coringa, a dupla tornara uma realidade, retrabalhando os ritmos nordestinos e a poesia sertaneja no asfalto da cidade grande.

Figuras 10 e 11 – Humberto Teixeira, o “doutor” do baião/ Contracapa de “Meus sucessos” (1968). 129

Só em 1946, o xote “No meu pé de serra” seria a primeira música escrita com Humberto gravada na voz de Gonzaga, iniciando de fato o projeto acolhido como experimento musical e dinamizado nos centros urbanos de uma “autenticidade” nordestina nas possibilidades de mercado e diversas condições de divulgações. Tanto que Baião não foi lançado inicialmente pelo seu autor, mas pelo grupo vocal cearense, que conquistou um sucesso considerável. Como artista contratado pela gravadora RCA-Victor, Gonzaga só gravaria a música em 1949:

(...) Foi o seguinte: naquela época a RCA Victor estava montando sua fábrica em São Paulo e todos os artistas da RCA gravavam na Odeon. Quando a Odeon, sabendo que a RCA Victor estava montando sua própria fábrica, que ia perder o seu grande freguês que era a RCA, então eles cortaram as relações, e a RCA Victor ficou sem ter onde gravar com seus artistas. Abriu mão dos artistas: “vocês vão gravar onde quiserem, porque nós vamos demorar mais ou menos um ano com essa fábrica.” Aí eu fui leal, eu digo: eu espero. Foi nessa época que eu tava esperando a

129Sua vida foi retratada no documentário “O homem que engarrafava nuvens”, produzido pela filha Denise Dumont, dirigido por Lírio Ferreira, e que conta com depoimentos, entre outros, de , Caetano, Bebel Gilberto, Daniel Filho e . 83

nova fábrica, que o baião foi crescendo com Quatro Ases e um Coringa, essa tropa toda, e eu fora. Eu não podia gravar, eu não tinha... eu tinha fábrica, tava assim de fábrica em cima de mim pra gravar. Mas eu queria esperar, lealmente, a RCA Victor.130

Por paciência ou lealdade, essa espera não foi um resultado de problema artístico. Quase uma prudência, Luiz utilizou seu lado de produtor musical ao entregar para um grupo musical com mais aparato e controle vocal do que ele próprio para explorar as oportunidades que nasceriam pós-audição pública de Baião, dentro de ambientes onde transitavam cantores virtuosos em técnicas de respirações ou flexibilidades vocais. Aproveitando o sucesso conquistado pelo conjunto, a música entraria em seu repertório como cantor nas apresentações ao vivo nas rádios e nos shows em clubes. Os pedidos pelas gravações do sanfoneiro aumentaram, deixando surpreso até a própria RCA-Victor:

Vitório lhe telefonava e dizia assim: “Mas não é possível, que diabo de ritmo é esse que lançaram, essa loucura, esse negócio que você fez aí com Humberto Teixeira. Todo mundo, tá o Brasil inteiro procurando, exigindo, e agora você foi deixar que outros gravassem?”131

De forma espantosa, a quantidade de pedidos pelos discos de Luiz Gonzaga foi tanta que, quando a RCA Victor inaugurou sua nova fábrica e começa a produzir os vinis, as primeiras prensas foram do Long Play de Luiz Gonzaga.132 A parceria com Humberto Teixeira foi rica, expondo várias canções que tinham como mote a região nordestina, com todo o seu folclore e cotidiano sertanejo. Foram quase cinco anos de produção proporcionada por uma sintonia grande entre o advogado e o músico, ambos com experiências de vida parecidas. Humberto sabia o que Luiz queria dizer na sua música e vice-versa. Em depoimento a Cravo Albim, lembra-se da grande quantidade de músicas que a dupla compôs:

Era inacreditável, nós fazíamos 2, 3 músicas por dia. A maior parte eu fazia as letras, Luiz me trazia os motivos, eu fazia as letras, e ele então dizia: vou sanfonizar. E o que ele chamava sanfonizar era dar essa musicalidade extraordinária que ele possui, nasceu com ela, tal. Outras eu fazia música e ele botava a letra, coisa que ele esconde, tem músicas nossas que as letras são dele.

130Entrevista concedida a Ricardo Cravo Albim. Arquivo de áudio do Museu da Imagem e do Som: 06 de setembro de 1968. Com a participação de Humberto Teixeira. CD 1, faixa 09. 131 Ibidem. CD 1, faixa 09. 132 Na mesma entrevista, o rei do baião relata que os primeiros discos prensados pela nova fábrica da RCA Victor foram os seus, em quantidades maiores que a dos outros artistas da gravadora. 84

No fim do ano de 1946, Luiz Gonzaga tirou férias e embarcou para Exu. Passou doze dias no seu Araripe natal, após dezesseis anos distante da família. O regresso ao sertão foi uma mudança de status, dos cachês e convites feitos pelos patrocinadores133. Com a oportunidade de conhecer Recife e algumas rádios locais, seu nome artístico ficou mais conhecido nos encontros com integrantes da área musical de Pernambuco como o instrumentista Sivuca e os compositores de frevos Nelson Ferreira e Capiba. Voltando ao Rio no começo de 1947, gravou A moda da Mula Preta, de Raul Torres, que seria um sucesso no lançamento do ano seguinte. Em março, o trabalho no estúdio para o próximo disco em 78 rpm teria uma canção que carimbaria Luiz Gonzaga como celebridade na música popular. A toada Asa Branca, no entanto, não tinha a total aprovação do sanfoneiro. Coube a Humberto Teixeira obter o incentivo para escrevê-la, segundo relato do próprio sanfoneiro a Dominique Dreyfus134:

Quando apresentei a música a Humberto, falei pra ele: “Agora estou com vontade de fazer Asa Branca. Mas não boto muita fé, porque é muito lenta, cantiga de eito, de apanha de algodão. Humberto pediu pra eu cantar a música, eu cantei e ele me convenceu a fazê-la. Quando eu a gravei, houve até uma brincadeira de mau gosto. Canhoto, violonista do conjunto de Benedito Lacerda que me acompanhava, me conhecia desde a época do Mangue. Então ele pegou um chapéu e foi passar entre os colegas, para eles botarem dinheiro. Me imitando. Humberto, que estava na gravação, falou pra ele:

– Por que é que você está fazendo isso? – É porque é música de cego! Humberto então falou: – Tome nota, isso aí vai ser um clássico. E Humberto acertou!”135

Considerado um hino da música popular, Asa Branca136 é uma interpretação que reflete a invenção do Nordeste no imaginário gonzaguiano. Ao reforçar a apropriação do coletivo a partir do indivíduo, o baião acabou levando o ouvinte à prática dançante entre as lembranças agradáveis e tristes do sertão nordestino. Nesse contexto, Stuart Hall (2001) debate a identidade como um processo dinâmico que consegue conceber o ambiente onde essa identidade é dialogada, distribuída, e reconstruída dentro das relações sociais e de suas

133As casas Pernambucanas aproveitaram a presença de Gonzaga para fazer comerciais. 134A jornalista e pesquisadora francesa Dominique Dreyfus é uma profunda conhecedora da música e da cultura brasileiras. Tendo passado sua infância aqui no Brasil, morando no Recife, levou de volta para a França a experiência da convivência com a cultura brasileira e transformou essa proximidade em seu trabalho, como conceituada jornalista cultural do país europeu. 135DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante... Op cit., p.119-120. 136 Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Asa Branca. Toada. RCA VICTOR 80.0510 b, 1947. 85

atividades. A arte de Luiz Gonzaga e a contribuição de seus parceiros evidenciaram a territorialidade nordestina como algo fixo e imóvel. Sobre isso, Hall afirma que

“As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais” (HALL, 2001, p.7).

De alguma forma, os discursos decantados pelo sertanejo nos fazem pensar na alma das coisas137: Longe de ser um simples empreendimento, tampouco uma invenção a partir do nada, o baião foi abraçado como um verdadeiro movimento representativo. Sua potência e fluxos em diversos ambientes sociais deram àquele som inédito um status importante dentro da reflexão sobre a construção, preservação e efeito dos bens materiais e imateriais, que ajudaram a forjar referências e imaginários sobre o ambiente do sertão nordestino. No complexo de entendimento onde “patrimônios” são requisitados, indagados e destruídos, o baião é um exemplo de objeto intangível que se aproximou da realização de efeitos nas pessoas, no mercado e na maneira de (re)observar o Nordeste cultural. Posteriormente, sua ambivalência trouxe a capacidade de mediação cultural. Seguindo o pensamento de E.P. Thompson (1963), podemos dizer que o baião urbano foi um processo de autofazer-se138 aproveitando tanto a “ação humana como os condicionamentos” (p. 9). Esse gênero musical foi trabalhado em diversas formas estéticas e disputas de visibilidades, procurando, apesar da origem urbana, manter certas características que aproximaram o discurso lírico e o universo das tradições sonoras do Araripe às significações sociais dos migrantes e não-migrantes nordestinos. Sem dúvidas, a cidade do Rio de Janeiro, capital da República, acelerou e exerceu importante influência nesse processo de migração e mediação cultural. A (re)invenção e inserção do baião no cotidiano carioca - mais tarde, nacional - não seria da mesma forma sem a ajuda de poetas, profissionais de imprensa, parceiros, músicos e produtores artísticos que observaram Luiz Gonzaga como um ponto de evidência de contexto

137GONÇALVES, José Reginaldo; BITAR, Nina Pinheiro& GUIMARÃES, Roberta Sampaio. 2013. A alma das coisas: patrimônios, materialidade e ressonância. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ. 138Complementando, E. P. Thompson afirma que “A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se”. THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987, p. 9. 86

regional nordestino. De todas as formas de comunicação e trocas de interculturalidade139, foi pelas ondas radiofônicas que o som ganhou público, dimensão e recepção identitária, seja pela representatividade de uma verossimilhança de tempo e espaço ou pela capacidade do artista fazer-se representante de uma vivência migrante no contexto de “reterritorialização” afetiva. É na forma de fixação e assimilação que o baião acaba “inserindo-a em sua conversação, em língua habitual e nas coerências que estruturam seu saber anterior”140:

A cultura se julga pelas operações e não pela possessão dos produtos. [...] Em si mesma, a cultura não é a informação, mas, sim seu tratamento através de uma série de operações em função de objetivos e de relações sociais. Um primeiro aspecto dessas operações é estético: uma prática cotidiana abre um espaço próprio numa ordem imposta, exatamente como faz o gesto poético que dobra ao seu desejo o uso da língua comum num reemprego transformante. Um segundo aspecto é polêmico: a prática cotidiana é relativa às relações de força que estruturam o campo social e o campo do saber. Apropriar-se das informações, colocá-las em série, montá-las de acordo com o gosto de cada um é apoderar-se de um saber e com isso mudar de direção a força de imposição do totalmente feito e totalmente organizado.

Mediante projeção e profusão dos traços (re)definidores das memórias acústicas e experiências de vida em suas canções, Luiz Gonzaga e seus parceiros introduziram na modernização cultural brasileira uma rede de diálogos que negociou o território do artista, a distribuição do seu produto artístico e o público ouvinte consumidor. Com forte carisma na oralidade e possuidor de um sotaque próprio, a busca por uma singularidade chegou, inclusive, no modo da combinação da sonoridade dos acompanhamentos e o efeito visual da sua indumentária, configurando a musicalidade que reforçam o imaginário em torno do Nordeste na sua performance. Nesse processo de trocas, o mercado fonográfico se deleitava com as demandas pela expressão de ruralidade, das paisagens nordestinas e dos paradoxos sociais do sertão presentes nas canções que conquistavam – cada vez mais – espaço nas camadas médias cariocas. Inovador, o ritmo dançante do baião tinha algo diferente do samba ou dos grupos nordestinos dos anos 1920: Grande parte das canções nesse período de amadurecimento do artista era acompanhada por instrumentos como o violão, pandeiros e cavaquinhos, com arranjos virtuosos das orquestras das rádios. Então, a combinação entre sanfona, triângulo e zabumba, inventados por Luiz, deixou sua música mais percussiva, centralizando o desempenho do

139CANCLINI, Néstor G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais e globalização. 8ª edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. 140CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 16ª edição. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p.338. 87

sanfoneiro nos quesitos harmônicos e rítmico, dando à incorporação de novos elementos musicais que vinham das bandas de pife que se apresentavam nas novenas uma conversão simbólica. A consagração do zabumba141, triângulo (adicionado após a visita de Gonzaga em feira de Recife) e próprio acordeon explica a aprovação imagética de uma música representativa do Nordeste, o que acabou garantindo um processo discursivo entre o público e sua própria performance em torno do trio pé-de-serra, até hoje ressignificado por outros artistas:

Foi quando me lembrei das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do Araripe e que tinha zabumba e às vezes também um triângulo. Quando não havia triângulo pra fazer agudo, o pessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro, eu botei zabumba me acompanhado. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho, e o pregão dele era tocando triângulo. Eu gostei, achei que daria um contraste bom com zabumba, que era grave. Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizá-lo porque a sanfona, com aquele sonzão dela, ia cobrir os pífanos todinhos. Depois eu verifiquei que esse conjunto era de origem portuguesa, porque a chula do velho Portugal tem essas coisas, o ferrinho (o triângulo), o bombo (o zabumba) e a rabeca (a sanfona) (...) folclore que chegou de lá no Brasil e deu certo. Agora, o que eu criei, foi a divisão do triângulo, como ele é colocado no baião. Isso aí não era conhecido (DREYFUS, 2012, p. 152)

Com José Bezerra dos Santos (Catamilho) na zabumba e João Gomes (Zequinha) no triângulo, a ação experimental do grupo e a escolha da indumentária foram essenciais na aproximação pública do universo artístico e temático de sua obra, sobretudo, pela organização daquele acompanhamento musical. Com as exibições do trio musical que utilizavam instrumentos que compõem o campo folclórico do Nordeste, a sistemática da sua expressão regional foi coroada na questão visual. Na influência do catarinense Pedro Raimundo142, contratado pela Rádio Nacional sob a alcunha de gaúcho alegre do rádio, as exibições regionalistas do solista nos programas totalmente “pilchado”, termo para a roupagem característica de gaúcho (chapéu dos pampas, chimarrão, botas e calças gauchescas, etc),

141“O zabumba é um tambor grave de bojo largo, tocado em frente ao corpo, na diagonal, de forma que a mão dominante toque a pele mais grossa, de som grave, e a outra mão toque a pele de baixo, mais fina e de som agudo. Em geral utiliza-se uma baqueta de ponta grossa e macia na mão dominante e um bacalhau ou vareta na outra mão. [...] A partir de Luiz Gonzaga, esse tambor passou a ser conhecido principalmente como o zabumba do forró.” Eder Rocha. Apud: CAMPOS, Lúcia Pompeu de Freitas. Tudo isso junto de uma vez só: o choro, o forró e as bandas de pífanos na música de . Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. p. 35. 142 Pedro Raymundo (Imaruí, 29 de junho de 1906 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1973) foi um acordeonista, compositor e cantor regionalista brasileiro. Tornou-se o primeiro artista do sul do país a obter sucesso nacionalmente pelas ondas do rádio. Apresentava-se vestido com trajes típicos gaúchos. 88

inspiraram Luiz Gonzaga a vestir algo com características que o ligassem à sua temática nordestina, deixando de lado o terno e a gravata.

Figuras 12 e 13 - Pedro Raimundo e Luiz Gonzaga143.

Resolvendo assumir a identificação de artista regional, o sanfoneiro passou a utilizar o chapéu de couro utilizado pelos “cangaceiros de Lampião”144 juntamente com o vestuário típico dos vaqueiros nordestinos como o gibão, a perneira, o chapéu e as sandálias confeccionadas com couro para a proteção dos espinhos dos arbustos na caatinga. Posteriormente, o mesmo gibão virou uma marca registrada em suas apresentações, servindo como instrumento de diálogo com seu público ouvinte por toda a sua carreira. Neste período crescente de sucessos, a atuação monopolista de Pedro Raimundo nos auditórios da Rádio Nacional ajudou Luiz Gonzaga a criar um estilo único com um olhar atento da utilização simbólico-musical existente entre uma possível integração nacional e as potencialidades do ambiente de modernização em torno do “popular”. Nesse pensamento, vem à tona a importância das cidades de São Paulo e Rio, metrópoles responsáveis por naturalizar o conteúdo regional – mesmo sob influência urbana dos seus criadores – durante os anos

143 Acervo: Dominique Dreyfus. 144 Na infância, Luiz Gonzaga admirava os grupos dos cangaceiros, tendo a figura de Virgulino Ferreira como o mais. Muitas vezes sonhava em fazer parte do bando e tocar sua sanfona para divertir o grupo nos momentos de lazer e descanso. 89

anteriores ao fenômeno Gonzaga, em um processo amplo de formação de identidade que maximizou a relação entre o moderno e o rural, o que o sociólogo Nobert Elias (1897-1990) chama de “nacionalização dos sentimentos”145, levando em consideração as relações que ajudaram a formatar o ethos nacionalista alemão, gerando recepção agregadora e unificadora nos séculos XIX e XX, apesar das fragmentações estatais: “A coletividade é vivenciada e os símbolos são representados como algo separado dos indívíduos em questão...” (ELIAS, 1997, p.143). Com a popularidade do baião, os sentimentos regionais sob um foco mais moderno e plural acabaram potencializando os limites culturais da própria imagem do sertão e do nordestino migrante, generalizando territorialmente especificidades locais que identificaram abordagens sonoras até a aceitação de uma indumentária da era dos “bandos” cangaceiros. Tais sentimentos de recognição passaram a ser recebidos por uma coletividade que adicionaram valores em um sistema de crenças e esteriótipos. No contexto midiático, recebido como popular, dependendo “não é o resultado de tradições, nem da “personalidade” coletiva, tampouco se define por seu caráter manual, artesanal, oral, em suma, pré-moderno” (CANCLINI, 1997, p. 259), Luiz elevou algo associado à violência à uma vestimenta criativa que alavancaria ainda mais a sua carreira musical, dando-lhe um apelo estético e representativo que inicialmente trouxe estranhamento, constrangimentos e proibições de cantar naqueles trajes, como relata Oliveira:

Compenetrado no papel de representante da nordestinidade, tratou de vestir-se a caráter, alpercatas de couro, roupas de boiadeiro, chapéu de cangaço. Afinal, se Pedro Raimundo entrava nos programas de bombachas para representar o Sul, se Ruy Rey travava-se de rumbeiro e se Bob Nelson era caubói estilizado – enfeitado de revolveres, cartucheiras e tudo o mais, para se transformar num Roy Rogers tupiniquim –, Por que não ele, Gonzaga, vestindo-se à maneira do sertão?146

Todas as ameaças de represália por parte da Rádio Nacional, na figura do diretor artístico Floriano Faissal, não tiveram resultado e outros adereços foram sendo utilizados147. Apesar da afronta em adotar os trajes usados por seu herói de infância, Lampião, Luiz tinha contigo a certeza que esse tipo de caracterização poderia ser interpretada como uma afirmação como homem nordestino, influenciado pelas vivências no duro cotidiano do Exército, usando- a quase como uma farda. Nunca mais abandonou o chapéu que lembrava o cangaceiro, o qual,

145 Sobre transformação de hábito social e nacionalização de sentimentos ver ELIAS, Nobert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1997. 146 OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga ...Op. cit. pág. 55. 147 Gildson Oliveira ressalta a reação de Floriano Faissal, diretor artístico da Rádio Nacional: “(...) protestou em nome do bom gosto: – Enquanto eu mandar nesta rádio, não permitirei que você apareça diante de nosso público vestido de bandido Lampião”. In: OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga.... Op. cit. Pág. 55. 90

para muitos, era bandido, para outros, um herói. As peças do cangaço como a cartucheira, os bornais ou as túnicas, mais tarde, passam a ser aceitas pelo seu público e a lembrança do chapéu não mais se remetia a Virgulino Ferreira, mas à música nordestina, ao seu próprio reinado em personificação do gênero, em letras, ritmos e atitudes que instituíram essa homogeneização identitária de Nordeste.

Figuras 14 e 15 – Luiz Gonzaga com cartucheira e trio. 148

Dos signos criados no decorrer da sua performance musical durante a década de 1940, o fato de vestir a indumentária aos moldes sertanejos foi a sua assinatura de presença artística de enfoque aos nordestinos e migrantes radicados no Sudeste do país. A subjetivação regional modificada por suas apresentações e vendas de discos amplificou a visão mercadológica de Luiz Gonzaga e transformou a forma como o ouvinte recebia esse universo de experiências coletivas e individuais, aderindo o resfolengo da sanfona à música popular e na prática da construção identitária nordestina. Se música caipira paulista trazia a roça e o samba cantava a periferia pobre e bem humorado, o baião apareceu como musicalidade regional que trazia o sertão além dos limites geográficos, faixas etárias, credos, cores, etnias e experimentos de culturas. Ajudado pelo poder de comunicação do rádio nesse processo de deslocamento de

148 Fotografias adquiridas no Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro, localizado na R. Visc. de Maranguape, 15 - Lapa, Rio de Janeiro – RJ. 91

metáforas lúdico-artísticas, uma nova parceria expandiria as linguagens e inspirações festivas e dançantes no repertório de Gonzaga, alcançando a memória e o sentimento rural, edificando em definitivo a relação simbólico-afetiva entre o baião e o sertão nordestino mais a fundo, dando-lhe outros tipos de mecanismos poéticos e possibilidades criativas, tomando um rumo de compor diferente das adaptações aos moldes da música comercial urbana do Rio de Janeiro. Entra a temática junina, as celebrações específicas, as toadas, os causos, as improvisações: Era a fase Zé Dantas.

2.5. De Zé Dantas à Patrulha do baião (1950-1954)

O primeiro contato de Luiz Gonzaga com o estudante de medicina José Souza Dantas Filho (1921-1962), nascido em Carnaúba, distrito de Pajeú das Flores, sertão de Pernambuco, foi no ano de 1947. Em Recife, a apresentação beneficente do sanfoneiro para angariar fundos para um hospital do Crato fez o rei do baião, agora “coroado”, participar como uma verdadeira estrela dos diversos eventos em clubes e programas de rádio da cidade. Em uma dessas festas, Zé Dantas149 foi à sua procura, mostrando-lhe “Vem Morena”150 e “A volta da asa branca”151, sucessos estrondosos em 1950, ano da sua residência médica na capital federal. Conhecedor e consumidor da arte da dupla Gonzaga/Teixeira, o entusiasmo pelo som da sanfona que saía do rádio e dos discos era dividido com os plantões no Hospital dos Servidores Estaduais do Rio. Com a proximidade do novo parceiro, as composições de Luiz ganharam pautas e competências mais ligadas às “raízes nordestinas”, principalmente, por introduzir temas de protesto social, afinidades sociais e exaltações às festas juninas. Já exercendo a Medicina, observa o auge de sua produção poética com Luiz Gonzaga, passando a ter independência financeira. Por outro lado, Humberto Teixeira, apesar de não abandonar a música, aproximasse do Partido Social Progressista, por onde seria eleito deputado federal pelo Estado do Ceará, anos depois, destacando-se na Câmara Federal na defesa dos direitos

149Apesar da pouca idade, Zé Dantas participava às escondidas de algumas atrações da Rádio Jornal do Commercio de Pernambuco, a mais expressiva em todo o Nordeste. Filho de um fazendeiro rígido que não concordava com sua postura comunicativa, tinha medo de que seu pai lhe cortasse a mesada o mantinha nos estudos. 150 Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Vem Morena. Baião. RCA VICTOR 80.0643a,1949. 151 Luiz Gonzaga e Zé Dantas. A Volta da Asa Branca. Toada. RCA Victor 80.0699b, 1950. 92

autorais pela Lei Humberto Teixeira152, com apoio do Estado para maior divulgação da música brasileira no exterior, pelas caravanas musicais financiadas pelo Governo Federal. Segundo Mundicarmo Ferreti (1988), professora emérita da Universidade Federal do Maranhão, a grande diferença entre Zé Dantas e Humberto no desenvolvimento do baião estava na “especificidade do projeto”153 pós-lançamento do gênero. Antes comercial, o baião com a contribuição poética de Dantas alcançava um patamar sonoro e visual amadurecido, traduzindo o imaginário regional do Nordeste com mais fidelidade, expressando socialmente canções recheadas de protestos, opiniões e valores154 do homem sertanejo, apesar de todo o avanço e modernidade das terras civilizadas155, estabelecendo conexões que vão da saudade dos migrantes nordestinos de suas terras até a manutenção dos vínculos sentimentais entre territórios e memórias afetivas multifacetadas que difundiram e expandiram os aspectos sociais do sertão em repaginação moderna, invertendo os olhares hegemônicos de algumas regiões brasileiras, principalmente, Sudeste e Sul do país. Verdadeiros clássicos, os sucessos como Sabiá156, A volta da Asa Branca157 e Xote das Meninas158 traziam temáticas amorosas, conquistas, danças, celebrações, paisagens geográficas, faunas e floras nordestinas que descortinando a complexa territorialidade do país e utilizando “a popularidade do rádio nos anos 1950, (...) baseada nessa capacidade do meio de transitar entre o real e o imaginário”159. O tipo de prosódia popular rural e o poder de comunicação linguística e estética transformaram Gonzaga no meio artístico nacional. Era visível o novo patamar do seu baião, de fato, como coqueluche musical em clubes, ruas, eventos e nas ondas radiofônicas era A dança da Moda160 inaugurando um momento ímpar na carreira, onde todo o país respirava o e aplaudia o período áureo de sua carreira. Lotado de apresentações, Luiz era o animador de

152 Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós-1930 (Humberto Teixeira). 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. 153 Ver FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Baião dos Dois: Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1988. 154 Idem. p.92 155 Luiz Gonzaga e Zé Dantas Riacho do Navio. Xote. RCA Victor 80.1518b, 78 RPM, gravação em 24/08/1955. 156 Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Sabiá. Baião. RCA Victor 800827 a, 1951. 157 Luiz Gonzaga e Zé Dantas. A Volta da Asa Branca. Toada. RCA Victor 80.0699b, 1950. 158 Luiz Gonzaga e Zé Dantas, Xote das Meninas. Xote RCA Victor. 801108, 1953. 159 AZEVEDO, Lia Calabre. de. No tempo do rádio: radiofusão e cotidiano no Brasil (1923-1960). Tese de Doutorado em História Social. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2002. 160 Luiz Gonzaga e Zé Dantas. A Dança da Moda. Baião. RCA VICTOR, 1950. 93

todas as classes sociais que desejavam cantar e dançar.

Figura 16 – O médico compositor Zé Dantas.161

Após a primeira turnê nacional, Luiz aproveitou a fama de um pop star162, seu poder empreendedor de garoto-propaganda dos colírios Moura Brasil e fumos para cigarros. Passando por todas as regiões do país, com o auxílio de Catamilho e Zequinha,

Gonzaga trouxe uma novidade à música nordestina. Trouxe o sentimento melódico das extensões sertanejas, das léguas tiranas, das asas brancas, do gemer dos aboios. As tristezas dos violeiros se passaram para sua sanfona. Pode-se dizer que Gonzaga renovou com as suas interpretações, com a sua forte personalidade de cantor, um meio que andava convencional, sem originalidade, por meio de dúzia de bocós que vive a roer as heranças do genial . O que nos prende ao cantar de Gonzaga, é o que nos arrebata em Noel, é a simplicidade da melodia, é a doce música que ele introduz nas palavras, a magia dos instrumentos, a candura da alma tranquila que se derrama nas canções.163

Entre 1951 e 1954, a popularidade do baião era tanta que outros ritmos do Nordeste conseguiram espaço no repertório do cantor. Como observa Dreyfus, Luiz Gonzaga, primeiro

161 Acervo do Museu/Parque Aza Branca (Exu-PE). 162 Patrocinado pelos Laboratórios Moura Brasil, o trio de Gonzaga viajou em várias localidades do país, iniciando um período fértil e áureo na carreira. Segundo a Empresa Brasil de Comunicação, de 1946 a 1955, foi o artista que mais vendeu discos no Brasil, com mais de 30 milhões de cópias vendidas. 163 DO RÊGO, José Lins. Homens, seres e coisas. Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1952. As palavras do imortal escritor José Lins do Rego à época já traduzia o sanfoneiro como especial, sobretudo, pelos resquícios do movimento poético regionalista de 1930 de que o Nordeste era uma região esquecida e sofrida socialmente. 94

produto da cultura nordestina, era “fenômeno de massa, comparável, num nível nacional, aos futuros Elvis Presley e Beatles” (DREYFUS, 2012, p. 158). As toadas, maracatus, xotes e xaxados, conhecidos como herança dançante do cangaço, estavam na boca e no pé das pessoas nas casas noturnas da Zona Sul carioca e nos aparelhos domésticos de rádio paulistas. A gravadora RCA Victor precisou aumentar a produção de discos de vinis, comprando novas prensas para atender a busca pelos discos de Luiz Gonzaga, especialmente, no período junino. Igualmente ao carnaval, onde o samba e a marchinha tornaram-se indissociáveis itens, principalmente, no Rio, até meados dos anos 40 a comemoração de contexto junino era praticamente relacionada ao cunho familiar e apego religioso do calendário católico vigente. Os baiões destinados e referenciados aos arrasta-pés e quadrilhas do interior nordestino, lançados sempre no mês de junho, aos poucos, dinamizaram a marca festiva na trajetória artística do sanfoneiro. O louvor aos sagrados Antônio, João e Pedro expressou a sanfona como trilha sonora nacional e internacional164, trazendo melodias simples e de fácil assimilação que construíram arquétipos sobre o ser nordestino e o cotidiano sertanejo, apresentando uma ligação íntima com os dogmas da igreja católica, afinando a relação com o divino em seu trabalho nas canções de apego religioso. Assim, foram inseridas nas performáticas gravações, em shows e capas de discos, alterações da própria imagem e produção sonora na busca de representatividade e mercado da música popular que estabeleceram uma relação mediadora entre intérpretes, músicos, compositores e público/ouvinte alvo, influenciando outros seguidores artísticos. O sucesso fonográfico do baião possibilitou que artistas fossem atraídos e tocassem o novo gênero. O legado nas canções assinadas por Luiz Gonzaga, Miguel Lima, Humberto Teixeira e Zé Dantas passa pelo debate entre o tradicional e o moderno (Cortando Pano), a saudade do espaço sem grandes mudanças (Noites Brasileiras) e do sertão com vida própria, sem precisar das grandes cidades, mas cientes do poder divino e das faltas de assistências governamentais (Vozes da Seca). Em quase dez anos de reinado nos holofotes da fama, Luiz já era um marco na produção cultural nacional, diferente dos aspectos de mercado do nacionalismo- populista165 vistas em expressões musicais brasileiras nos anos 1930 ou na década de 1940. A Rádio Nacional chegou a lançar o programa No Mundo do Baião, apresentado pelo próprio sanfoneiro com a ajuda de Humberto Teixeira e Zé Dantas, atraindo a atenção de alguns grupos fora do eixo Rio-São Paulo. E foi um deles que prolongaria esse espólio de

164 Em 1955, a cantora japonesa Keiko Ikuta grava as músicas Baião de Dois e Paraíba. 165 Sobre o assunto, ver CONTIER, Arnaldo. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História da Universidade de São Paulo, 1988. p. 39. 95

complexos: A Patrulha de Choque, trio de imitadores de Luiz Gonzaga formado por Marinês (futura rainha do xaxado), seu marido Abdias dos oitos baixos e zabumbeiro Cacau, executavam um repertório com sucessos do rei do baião e de Jackson do Pandeiro em circos, praças e cinemas, tocando nas cidades aonde Luiz Gonzaga se apresentava.

Figuras 16 e 17 - Patrulha do baião.

Na cidade paraibana de Propriá, o sanfoneiro conheceu o trio, prometendo-lhes ajuda financeira se fossem para o Rio. Gonzaga ensinou Marinês a dançar xaxado e o convite só foi aceito em março de 1956, quando a primeira apresentação na Rádio Mairynk Veiga coroou Inês Caetano de Oliveira no reinado do mundo do xaxado, formando o grupo “Luiz Gonzaga e seus Cabras da Peste”, com formado por Luiz Gonzaga, Marinês, Abdias, Zito Borborema e Miudinho, que depois faria parte do primeiro Trio Nordestino. Apesar do sucesso, a parceria foi desfeita pelos ciúmes de Helena, esposa de Gonzaga. Marinês reorganizou seu trio original – com Abdias e Cacau – sob o nome “Marinês e Sua Gente”166. A partir de 1956, apesar de crescente no interior, a carreira de Luiz começa a entrar em declínio em vários aspectos. Os novos ventos de modernidade do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira trazia o desejo de criar uma cara nova para país. O baião inicia uma verdadeira queda de popularidade na grande mídia, jornais e programas de nível nacional

166 Sobre a carreira de Marinês, ver MOYSES, José. Marinês e Sua Gente - 45 anos de carreira. Diário da Borborema. Campina Grande, 1997. Terceiro caderno, p. 6 96

sendo, paulatinamente, dando para o movimento jovial da Jovem Guarda e ao espírito tranquilo da Bossa Nova os rumos dos novos padrões de consumo e de comportamento social que entrariam na década de 1960. Era a vez dos cabeludos167, termo utilizado por Luiz para se referir à juventude, nos seus anos de ostracismo168, só resgatando a carreira de forma mais pulsante no início dos anos 1970, com os resgates do movimento tropicalista e as referências de outras articulações culturais e políticas.

167 BARBOSA, José Marcelo. Luiz Gonzaga: 100 anos do eterno rei do baião. Fortaleza. Design Editorial, 2012, p.34. 168 De 1954 até o final da década de 1960, o baião desapareceu das grandes paradas de sucesso, sendo ouvido apenas no Nordeste e nos subúrbios das cidades para onde foi a grande migração nordestina. Neste período, Gonzaga passou a gravar músicas produzidas com outros compositores sem deixar de regravar os sucessos de sua fase áurea feitas pelos seus ex-parceiros musicais Humberto Teixeira e Zé Dantas. 97

Capítulo 3 – Dos Turunas aos Folcloristas da Nacional: Entre mediações culturais, a construção musical de uma nordestinidade no mercado fonográfico.

“Trouxe um triângulo, no matolão Trouxe um gonguê, no matolão Trouxe um zabumba dentro do matolão Xote, maracatu e baião Tudo isso eu trouxe no meu matolão...”169

De 1941 até o seu falecimento no dia 02 de agosto de 1989, Luiz Gonzaga exerceu grande influência para novas fontes de leitura artística em torno da realidade do sertão nordestino. Suas trajetórias e parcerias representaram, além das experiências singulares, legados culturais e acervos para a música popular, novos olhares sobre inúmeros contextos e aspectos históricos tiveram relevância para o desenvolvimento de uma inédita estética musical caracterizada de regional, fazendo do baião gonzaguiano um produto com viés de resistência amplificado nos meios radiofônicos e pela comunicação de massa por quase dez anos, até que os ventos da Bossa Nova chegassem ao fim dos anos 50. Na interação entre a sociedade metropolitana/urbana e seu processo de criação e divulgação de um novo movimento musical, a perspectiva do baião elevou e maximizou a articulação da mediação cultural ao transportar um dos cenários mais distantes dos holofotes midiáticos para a consagração nacional. Apesar de ser construído na cidade, seu método didático-sonoro de entretenimento massivo assumiu um papel de representação de identidade e ressignificação de valores, resgatando memórias coletivas e individuais nos contrastes nascidos entre o simbolismo existente na saudade migrante e um novo modo de viver. No caso do baião urbano, a capital da República foi o terreno onde Luiz Gonzaga apresentou sua arte à audiência pública, manifestando ao mundo da indústria e do mercado cultural, através do rádio, inúmeras construções que estavam ligadas aos espaços nordestinos sertanejos, posteriormente, catalisados e aceitos como padrão regional. Como uma criação coletiva, o baião gonzaguiano tem interações em categorias, absorção de talentos e concretizações em ambientes que legitimaram tudo aquilo exposto como discursos de um

169 GONZAGA, Luiz; MORAES, Guio de. Pau de arara (Lado B). In. 80-0936. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1952. Disponível em: < http://www.recife.pe.gov.br/mlg/gui/Index.php>. Último acesso em 23 de fevereiro de 2020.

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segmento da sociedade brasileira, afirmadas e reafirmadas pela sua capacidade de habitar e transitar em inimagináveis subsídios criativos. Contudo, não significa que a música proposta por Teixeira e Gonzaga seja o marco zero da música com temática nordestina. Tratados e recebidos como algo exótico nas primeiras décadas do século XX, ritmos como as emboladas, xotes, cocos ou maracatus eram trazidos por músicos para temporadas no Rio de Janeiro em diversos eventos, obviamente, sem os mesmos efeitos do rei do baião. Iniciando a carreira numa época onde era forte o movimento migratório da região Nordeste para o Sudeste, o rádio, sem dúvidas, foi um potente veículo de comunicação de sua invenção estético-musical, intensificado pelas recepções das emissoras, do mercado fonográfico e de seus parceiros. Como evidência de hibridização sonora e visual, tais mediações trouxeram - ao panorama musical da região Sudeste, depois, outros centros urbanos - elementos influenciados pelo ritmo e a melodia “do norte”, alimentados pelo sucesso do novo gênero e influenciados pelos quadros político e cultural que cresceram nos pensamentos estabelecidos a partir do próprio Estado varguista, da intelectualidade em torno do estudo do folclore e da popularização do rádio. Atuando em sintonia com uma rede de idealizações e projeções, a música de Gonzaga edificou uma das versões do sertão nordestino através do seu baião, integrando uma série de aceitações sociais às valorizações da cultura apresentadas como regionais e genuínas. Essa evidência elevou o processo de utilização dos bens culturais nos meios de comunicação de massa, coroando como majestade o primeiro fenômeno artístico nacional. Através de muitos artífices, alguns deles esquecidos pela historiografia, as trocas entre as duas regiões deixaram marcas de um amplo regresso às origens de tradições específicas da região Nordeste, vividas por uma parcela da população brasileira que fez da diáspora a esperança por melhorias. Dentre tantos nomes, as atuações pioneiras de João Pernambuco, Catulo da Paixão Cearense e dos grupos “Turunas Pernambucanos” e “Turunas da Mauricéia” foram determinantes para novas perspectivas das apresentações de “músicas do Nordeste”. Após um relativo sucesso no início do século XX e, na década de 20, tais expressões perdem força na região Sudeste para o emergente samba170. Mesmo assim, as exibições desses artistas influenciaram as primeiras atividades da cultura musical nordestina que precederam Luiz Gonzaga na apresentação dos ritmos e performance artística do Nordeste no Sul e Sudeste do país, surpreendendo àqueles que nunca

170 “Salvo a embolada, que encontrara aceitação do público urbano do Sul, as outras expressões musicais do Nordeste rural – desafio, repente, banda de pífanos – dificilmente podiam ser difundidas.” (DREYFUS, 2012, p.81). 99

pensariam que a música nordestina despertaria interesse no público carioca, tornando-se um manancial de possibilidades.

3.1. Da memória acústica para a capital federal: Um caminho da música regional nordestina.

Figura 18 - Xisto Bahia (1841-1894)171 Figura 19 - Bahiano (1870-1944)172

O lundu “Isto é bom” (1902), de autoria de soteropolitano Xisto Bahia173 e cantado por Manuel Pedro dos Santos, o “Bahiano”, foi o primeiro registro fonográfico comercializado no Brasil. Também, carrega o legado de reunir simbolicamente a união entre as culturas do Nordeste e do Sudeste em documento sonoro, chegando ao auge da carreira com “Pelo telefone” (1917), considerado como o primeiro samba a ser gravado. Nunca se conheceram pessoalmente, mas era notável a proximidade do cantor com o teor artístico dos lundus e das modinhas, gêneros abundantes em sua discografia e que já possuíam acessibilidade social, chegando aos ouvidos das elites. No século XIX, como comentado no primeiro capítulo, já envolvidos pelo processo de produção de partituras musicais e certa popularidade, tanto o lundu como a modinha ajudaram no desenvolvimento e surgimento de outros sons de apego

171 Xisto Bahia, desenhado por Bento Barboza, publicado na Revista Theatral, n. 22, 1894. 172 Acervo : http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. 173 Apesar da suma importância do ator, compositor, violonista e dramaturgo Xisto de Paula Bahia (Salvador, 6 de agosto de 1841 — Caxambu (MG), 30 de outubro de 1894) é muito escassa a historiografia sobre esse personagem. Uma de suas poucas gravações de suas obras aconteceu em 2006, na regravação de A mulata e A preta mina pela Orquestra de Câmara Paulista no disco Sarau . 100

popular. Segundo Edilson Lima (2010), em sua tese de doutorado, a herança pós-colonialista foi o ambiente favorável para que certos ritmos adentrassem várias camadas do campo social, já que

Portugal, ao longo de vários séculos, buscou implantar em suas colônias em todo o mundo, uma cultura européia, monárquica, capitalista e calcada, evidentemente, em seus próprios anseios, ou seja, lusitana. E mais do que isto: trata-se de compreender como após a primeira metade do século XVIII, as tendências da administração pombalina juntamente com modelos sócio-culturais ilustrados foram articuladas pelas camadas sociais luso-brasileiras; e como se refletiram também na construção de formas de lazer, portanto na construção de um modus vivendi que irá influenciar diretamente, após a segunda metade dos setecentos, gêneros musicais tais como a modinha e o lundu.174

Mesmo com essa perspectiva universal, o lundu muitas vezes era gravado ou exibido como polca175 ou outro gênero sonoro em forma instrumental, demonstrando a preocupação das inéditas casas fonográficas com as letras sensuais, impondo certo limite entre as camadas consumidoras à época. Essa complexidade das trocas culturais foi um legado importante da interação entre as polcas e os alegres lundus, que daria início em um processo de misturas que levariam à criação do brasileiro maxixe e, anos depois, do samba carioca176. No caminho do Sudeste do país, a música nordestina percorreu uma relação imprescindível com grandes adaptações. Nesse aspecto, o maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), conseguiu se firmar como um dos mais influentes compositores do início do século XX. Conhecido como “O poeta do sertão”, foi o primeiro a trazer na sua linguagem a memória do que ouvia na sua juventude no Nordeste, apesar de chegar ao Rio de Janeiro com 17 anos. Em 1908, Catulo levou algumas canções populares para o Instituto Nacional de Música, antigo Imperial

174 LIMA, Edilson Vicente de. A modinha e o lundu: dois clássicos nos trópicos. Tese (Doutorado em Música) - Escola de Comunicação e Artes (ECA), Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2010, p.15.

175 No século XIX e início do século XX, a polca era bastante popular nos salões europeus. Nativa da região da Boêmia alemã, quando a região fazia parte do antigo Império Austro-Húngaro, a dança foi introduzida nos salões europeus da era pós-napoleônica com o atrativo da aproximação física dos dançarinos, ao prever duas possibilidades de evolução do par enlaçado: rodeando ou, mais animadamente, com rápidos pulinhos nas pontas dos pés. Como o baião, o gênero musical Polca é construído no compasso binário simples, o que permite a aproximação dos pares em outras formas. No baião, é o famoso “dançar agarradindo”. Sobre importantes conceitos psra s formação da música popular: Ver TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Círculo do Livro, 1978.

176 Sobre o desenvolvimento do samba ver NETO, Lira. Uma História do Samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

101

Conservatório de Música177, espaço de predominância da cultura erudita, a convite do regente Alberto Nepomuceno. A apresentação trouxe um prestígio ao artista, sobretudo, pela forma renovada de tocar suas modinhas ao violão e pela adaptação de obras instrumentais dos compositores mais famosos da época ao colocar versos novos, marcando uma nova era do instrumento na vida da elite e intelectualidade carioca, tomando certos ares poéticos remanescentes do parnasianismo.

Figura 20 – Catulo da Paixão Cearense (1863-1946).178

Escrita próximo ao ano de 1880, a serenata Amenidade (1904) foi a primeira gravação fonográfica de Catulo, sendo uma das suas poucas músicas sem alguma parceria. Foi no batuque/embolada Cabocla de Caxangá (1913), cantado por Bahiano e palhaço-cantor Eduardo das Neves (1874-1919), tornou-se um clássico e sucesso do carnaval carioca de 1914, que houve abertura para um dos músicos nordestinos mais influentes e originais do século passado, João Pernambuco (1883-1947). Sertanejo da cidade de Jatobá, hoje, município de Petrolândia, João Teixeira Guimarães179 era analfabeto, mas acabou aprendendo

177 Com a Proclamação da República, o decreto nº. 143, de janeiro de 1890 modifica o nome do Instituto Nacional de Música. Em 1913, na gestão de Alberto Nepomuceno, o conservatório transferiu-se para uma nova sede na rua do Passeio, onde está localizado. Atualmente, é a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

178 Fonte: Revista A Noite Ilustrada, edição especial 1946. Acesso em 08 de março de 2020. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/120588/per120588_1946_EdicaoEspecial.pdf. Acesso em 08 de março de 2020.

179Para as informações sobre João Pernambuco ver JOÃO Pernambuco. In: Músicos do Brasil. Uma enciclopédia instrumental. Disponível em: http://musicosdobrasil.com.br/verbetes.jsf. Acesso em 29 fev. de 2020 e LEAL, José de Souza e BARBOSA, Artur Luiz. João Pernambuco: arte de um povo. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. 72p. Coleção MPB, 6. 102

a tocar violão observando os cantadores locais. Em busca de melhoria de vida, após passar a adolescência em Recife, muda-se para o Rio em 1904, aos 20 anos de idade, trabalhando em uma fundição e se aproximando de rodas de violeiros e seresteiros, recebendo a alcunha de João Pernambuco. No início dos anos 1910, a habilidade e a beleza de seu repertório ao violão impressionaram seus colegas pobres, Donga180 e Pixinguinha181, moradores da mesma pensão na Rua do Riachuelo, e o poeta Catulo da Paixão Cearense, que frequentava o local. Entrou em contato com os maxixes de Ernesto Nazareth, as polcas, choros, as modinhas, lundus e os circuitos artísticos da cidade, apresentando nas rodas de violão alguns cocos, repentes, improvisos e emboladas. Oferecendo uma espécie de “assessoria sobre o interior” para Catulo, compõe cantigas baseadas no folclore nordestino, destacando-se o coco Engenho de Humaitá (1911), que daria origem à toada nordestina Luar do Sertão (1914), talvez, a sua canção mais conhecida e uma das mais representativas do universo rural brasileiro, carregando a referência-mor sobre a simplicidade do sertão e os contrapontos da cidade grande, ajudando a elevar certos valores que perpetuaram-se na memória afetivo-musical de várias gerações:

Ah, que saudade / Do luar da minha terra Lá na serra branquejando / Folhas secas pelo chão Este luar cá da cidade tão escuro / Não tem aquela saudade Do luar lá do sertão Não há, oh gente, oh não Luar como este do sertão

Segundo Henrique Foréis Domingues, mais conhecido pelo codinome “Almirante”, figura importante na produção cultural na Era de ouro do Rádio, no seu livro No tempo de Noel (1963), “até 1912, Catulo não havia produzido nada, absolutamente nada, em linguagem sertaneja”. Ainda, afirmou que “sua amizade com João Pernambuco resultou na primeira

180 Ernesto Joaquim Maria dos Santos (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1890 — Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1974) foi um músico, compositor e violonista brasileiro. Em 1916 consagrou a gravação de Pelo Telefone, considerado o primeiro samba gravado na história. Alguns trabalhos aprofundam a obra de como MORAIS JUNIOR, Luis Carlos de. O Sol nasceu para todos: a História Secreta do Samba. Rio de Janeiro: Litteris, 2011.

181 Alfredo da Rocha Vianna Filho (Rio de Janeiro, 23 de abril de 1897 — Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 1973) foi um maestro, flautista, saxofonista brasileiro. É considerado um dos maiores compositores da música popular brasileira, trazendo uma forma definitiva para o gênero “choro”. 103

canção sertaneja, de sentido folclórico” (ALMIRANTE, 1963, p. 12). Ou seja, o contato com as toadas e emboladas de João trouxe à poesia e música de Catulo certas expressões de domínio público que foram readaptadas, criando um lirismo em torno do mundo rural. Existem várias evidências de que Catulo não se preocupava em acrescentar os nomes de suas parcerias ou de utilizar seus versos em melodias já construídas, sendo elas registradas como produção única. Tanto Cabocla de Caxangá como Luar do sertão foram alvos de polêmica, anos mais tarde, quando Catulo não exibe a coautoria de Pernambuco em seu livro Mata Iluminada, de 1928. Depois de uma disputa judicial, João, com a defesa do maestro Heitor Villa-Lobos e o radialista Almirante, começa a ser creditado. Com a boa receptividade carioca pela animada e espirituosa Cabocla de Caxangá, João Pernambuco reúne alguns amigos músicos da noite do Rio de Janeiro e monta um repertório com sons tradicionais do Nordeste, com um figurino composto de sandálias de couro, lenço no pescoço e chapéu de palha de abas largas, em que cada integrante escrevia o próprio apelido. Era o grupo do Caxangá.

Figura 21 - Grupo do Caxangá (1914). João Pernambuco (1883-1947) está sentado com uma viola de 12 cordas e com o apelido “Guajurema” na aba do chapéu de palha.182

Músicos como o sambista Caninha e Pixinguinha viriam a fazer parte do grupo, aumentando exponencialmente a popularidade dos repertórios. O fato ajudou, inclusive, na formação dos Oito Batutas, grupo musical formado por Donga e o próprio Pixinguinha, em

182 Acervo da Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. 104

1918, a pedido de Isaac Frankel, dono do Cine Palais183, para a sala de espera do cinema. “Quando o gerente do cinema carioca Palais convidou Pixinguinha em 1919, a selecionar alguns integrantes do grupo Caxangá para tocarem na sala de espera talvez não previsse que estava estimulando o nascimento de um grupo que se tornaria famoso: Os Oito Batutas...” (VASCONCELOS, 1988, p.85.) Com maxixes, canções sertanejas batuques e choros, o grupo recebe a atenção de um público mais abastado e em convivência com a belle époque carioca, acostumado com orquestras de “música fina” como tangos argentinos e valsas vienenses.

Figura 22 - Grupo do Caxangá no carnaval carioca.184

Sempre anunciado como a única orquestra falava ao coração brasileiro, Oito Batutas185 se torna a atração do cinema, atraindo mais pessoas que os próprios filmes. O público lotava as apresentações, contendo a presença de ilustres como, Ernesto Nazareth, Arnaldo Guinle e Rui Barbosa, interessados pelos chorinhos executados por aqueles jovens instrumentistas. Em 1919, João Pernambuco ingressa nos Oito Batutas, que já tinha vários ex–Caxangá na formação e, com o patrocínio de Guinle, na época, diretor esportivo do Fluminense Football Club, os Batutas viajam por cidades de Minas Gerais e São Paulo, com grande sucesso,

183 O Cinema Palais, um dos mais elegantes da cidade nas primeiras décadas do século XX, estava situado na Avenida Rio Branco 145/149, na esquina com a Rua Sete de Setembro. 184 Da esquerda para a direita, com chapéu de palha: Jacob Palmieri e Vidraça; China, João Pernambuco, Raul Palmiéri, Caninha, Pixinguinha e Nola. Muitos deles foram integrantes dos Oito Batutas. 185 A primeira formação do conjunto, conforme noticiado jornal O País de 15 de outubro de 1919, era a seguinte: Pixinguinha (flauta), Donga (violão), China (violão e voz), José Pernambuco (canto e ganzá), Jacob Palmieri (pandeiro), Raul Palmieri (violão), Nelson Alves (cavaquinho) e Luiz Silva (reco-reco). 105

retornando ao Rio em 1920. Daí em diante, João Pernambuco (e claro, Catulo) transformaram-se em referência artística daquilo que passou a ser chamado de música sertaneja, contribuindo para o surgimento do primeiro produto em torno da música nordestina, na região Sudeste do Brasil.

Figuras 23 e 24 – Os Oitos Batutas.186

Em 1921, em excursão no Recife, os Oito Batutas contaram com a abertura de uma banda local em suas apresentações. O grupo musical pernambucano Os Boêmios, formados em 1920 e amplamente conhecidos no carnaval pernambucano por serem os músicos do Bloco dos Boêmios, onde desfilaram figuras como Felinto, Pedro Salgado e Guilherme Fenelon, mais tarde imortalizados no frevo de bloco “Evocação Nº01”, de Nelson Ferreira, agradaram a orquestra carioca com seus baiões violados, emboladas e cocos com trabalho vocal. Com todas as apresentações esgotadas, foram convidados para ir ao Rio de Janeiro participar e exibir seus ritmos nas comemorações pelo centenário da Independência. Com o sucesso obtido, acabaram aceitando o convite. Entretanto, antes da viagem ao Rio, Os Boêmios percorreram o interior nordestino por um mês. Definiram novos nomes artísticos para os componentes do grupo e para o conjunto. Seguiram para a capital federal como os Turunas Pernambucanos. Com Ratinho, (Severino

186 Oito Batutas com João Pernambuco. Extraída do livro “Uma História do Samba: As Origens”, de Lira Neto (Companhia das Letras, 2017). Outros trabalhos essenciais para entender o período: João Pernambuco: Arte de um Povo, de José de Souza Leal e Artur Luiz Barbosa, Funarte, 1982, Ensaio Sobre a Música Brasileira (3ª edição), Mário de Andrade, Livraria Martins Editora / Instituto Nacional do Livro, 1972 e A Música Popular no Romance Brasileiro, Vol. II: Século XX (1ª parte), José Ramos Tinhorão, Editora 34, 2000. 106

Rangel) no saxofone, Pirauá no violão, Bronzeado (Romualdo Miranda) no violão, João Frazão no violão; Sapequinha (Robson Thomaz Florencio) no cavaquinho, e Sabiá (Arthur Souza) no ganzá. Em 1922, os Turunas Pernambucanos chegaram à capital federal para participar da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, onde seria inaugurada a primeira transmissão de rádio no país. No mesmo ano, várias composições dos Turunas seriam registradas em disco pela Odeon como a valsa “Saudade imorredoura”, a mazurca “Carmencita”, e os choros “Faz que olha”, e “Vamos pra Caxangá”, todas de autoria de Ratinho. Aproveitando o êxito na divulgação da música nordestina no Rio, repetiram o sucesso obtido com as aberturas para os Batutas em Recife. Agora, com ampla divulgação nos jornais “A Noite”, de propriedade de Irineu Marinho, “Correio da Manhã” e “O Paiz”, os músicos pernambucanos foram aplaudidos por uma seleta platéia na mesma sala de espera do Cinema Palais (o mesmo estreou os Oito Batutas), ficando em cartaz por seis meses e sendo ouvidos pela alta sociedade.

Figuras 25 e 26- Anúncios nos jornais abordando a passagem dos Turunas no Rio.187

187 Imagens extraídas da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do “O Paiz” (RJ), 19 e 21 de abril de 1922. 107

João Pernambuco recebeu os Turunas Pernambucanos em sua residência, no centro da cidade. Em 1923, acabou ingressando no grupo. Assim como o Grupo do Caxangá, trajavam vestimentas típicas de cangaceiros e sertanejos, trazendo um ambiente carnavalesco, sendo até observados por Bahiano, o cantor mais famoso da época, que teve acompanhamento dos Turunas em algumas de suas gravações. Anunciados como “caboclos brasileiros”, excursionaram por países como Uruguai e Argentina, onde se dissolveu. Jararaca e Ratinho, anos depois, se tornariam um grande sucesso por seus trabalhos como dupla cômica no rádio brasileiro.

Figura 27 - Turunas Pernambucanos (1922).188 Figura 28 - Turunas com João Pernambuco (1925).189

Em 1927, outro grupo recifense desembarca no Rio, tentando a sorte numa indústria cultural que parecia acostumada com as possibilidades da estética musical nordestina. Os Turunas da Mauricéia, nome em alusão ao domínio holandês em Pernambuco e ao governo de Maurício de Nassau, quando a cidade do Recife era chamada de Cidade Maurícia, traziam para o público carioca algumas novidades no seu repertório como toadas sertanejas, martelos alagoanos, baiões e cocos, distanciando dos contatos com os choros e outros ritmos mais urbanizados. Os irmãos Miranda (os bandolinistas João e o violonista Romualdo, posteriormente, Luperce), o cantor Augusto Calheiros e o violonista cego Manoel de Lima e João Frazão (direção musical) levaram ao Teatro Lírico, no largo da Carioca, no festival produzido pelo jornal “Correio da manhã”, um único show com desconhecidos ritmos.

188 Foto extraída do livro “No Tempo de Noel Rosa”, de Almirante (Ed. Francisco Alves, 1977). 189 Acervo do Instituto Moreira Salles, com anotação indicando o grupo como Oito Batutas. 108

O sucesso do evento se transformou em mais apresentações, ovacionadas pelas plateias e novas excursões foram agendadas São Paulo, região Sul, Argentina e Uruguai. Inicialmente expostos com ternos e gravatas nas temporadas pelo Nordeste, foi na capital federal que o grupo utilizou e revitalizou a presença de gêneros típicos, deixando - fora do repertório - parte dos foxtrots, operetas, e marchinhas carnavalescas. Para a divulgação das apresentações no Rio de Janeiro, todas com amplo sucesso nos anos de 1927 e 1928, as fotografias em trajes sertanejos definiram a imagem e a proposta musical do conjunto, que tentaram manter as características visuais usadas pelo Grupo de Caxangá e os Turunas Pernambucanos, com apelido na aba dos seus chapéus e vestes sertanejas.

Figura 29 - Lampião e seu grupo de cangaceiros (1930).190

Algumas melodias e canções dos Turunas foram transformadas em partituras ou pesquisadas por intelectuais interessados pelo Folclore brasileiro. Quando a canção “Pinião”, de autoria de Augusto Calheiros e gravada em disco pelos Turunas da Mauricéia, tornou-se um grande sucesso do carnaval do Rio, o pesquisador e escritor Mário de Andrade, no seu “Ensaio Sobre a Música Brasileira” (1928), já debatia algumas de suas ideias sobre a música popular, reunindo e analisando canções e partituras garimpadas nas suas viagens191, com a ajuda de amigos poetas e intelectuais como Ascenso Ferreira, poeta pernambucano e o pesquisador folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo.

190 HEMEROTECA Digital. Acervo de periódicos da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em 13 de março de 2020.

191 ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1962. 109

Explorando a variação rítmica da música, Mário descreve que

Um dos pontos que provam a riqueza do nosso populário ser maior do que a gente imagina é o ritmo. Seja porque os compositores de maxixe e cantigas impressas não não saber grafar o que executam, seja porque dão só a síntese essencial deixando as sutilezas para a invenção do cantor, o certo é que uma obra executada difere ás vezes do que está escrito. Do afamado ‘Pinião’ pude verificar pelo menos quatro versões rítmicas diferentes: 1 - a embolada nordestina que serviu de base para o maxixe vulgarizado no carnaval carioca; 2 - a versão à versão impressa deste (de Wehrs e cia) que é quase, uma chatice; 3 - a maneira com que os Turunas de Mauricéia o contam; 4 - e a variante, próxima dessa última com que escutei muito cantado por pessoas do povo (ANDRADE, 1962, p. 22).

Provavelmente, Mário assistiu uma das apresentações dos Turunas em São Paulo ou apreciou os discos dos Turunas lançados pela Odeon. Ao utilizar “Pinião”, consegue debater as limitações dos transportes melódicos da canção para diferentes linguagens e o mundo das partituras. Modificada para o maxixe durante a folia de momo, segundo Mário, os cocos e emboladas mantinham a entonação cantada pelos Turunas da Mauricéia, penetrando os espaços urbanos do Rio como se fosse as feiras e praças do litoral do Nordeste. Na viagem cultural de Mário, entre o final de 1928 e o carnaval de 1929, o poeta chegou a registrar centenas de melodias e versos tradicionais, entre os quais cerca de 250 emboladas e cocos. Com várias reformulações, os Turunas acabaram se desfazendo em 1930. Vários de seus integrantes voltaram para o Recife.

Figuras 30 e 31 – Turunas da Mauricéia.192

192 Imagens extraídas da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: “Jornal do Recife” (20 de agosto de 1926) e “Correio da Manhã” (16 de janeiro de 1927), respectivamente. 110

Dentre eles, Augusto Calheiros e Luperce Miranda seguiram carreira artística, com bastante sucesso. A boa repercussão dos grupos nordestinos no Rio fez as emissoras radiofônicas e gravadoras de discos tornarem-se disposta ao contato com músicas e artistas vindos do Nordeste. As influências dos Turunas foram essenciais para a evolução da música brasileira durante as décadas de 1930 e 1940. Vários grupos, mesmo de origem carioca, tentaram imitar a forma de apresentação do grupo de Recife. Um deles, o Bando de Tangarás, surgiria em 1929, apresentando grandes nomes como o cantor e radialista Almirante e os compositores Noel Rosa - sua primeira composição foi uma embolada – e , o “João de Barro”. É importante salientar que boa parte do sucesso comercial do grupo nasceu das suas abordagens estilísticas, trazendo sonoridades tradicionais mais lapidadas, utilizando instrumentos harmônicos a um repertório anteriormente produzido por vozes e percussões, complementando com bandolins, violões e cavaquinhos, alinhando o caminho entre os contextos musicais e sociais da música das camadas marginalizadas do Nordeste, aliando-as à concepção harmônica e às sonoridades mais domesticadas das classes médias e da elite, tudo temperado pela excelência técnica e carisma dos seus integrantes. Na indústria fonográfica, os Turunas Pernambucanos e da Mauricéia elevaram a música regional às audiências como nunca antes havia apresentada. Utilizando o poder oral do litoral, da zona da mata e do som cotidiano de uma capital nordestina, representaram territorialmente uma visão ímpar para a música do agreste e do sertão, duas décadas antes do fenômeno Luiz Gonzaga, que chegou a imitar Calheiros no início da carreira como cantor.

Figura 32 - Manoel de Lima era o “Piriquito”; João Miranda o “Guajurema”; Romualdo, o “Bronzeado”; Frazão era “Riachão”; e Augusto Calheiros, a “Patativa” (apelido que o acompanhou até o final da vida). 111

Com características modais, fundiram a música exibida nos cinemas, nos rádios e teatros com a música cotidiana das ruas e suas violências, amores, referências à fauna, à flora do interior e aos chapéus desafiadores de couro. Por meio da divulgação em discos, apresentações e, principalmente, pela cadeia de rádio, um monopólio de significado (ELIAS, 1996) começava a ser edificado, distinguindo fortemente a representação social e artística do interior nordestino de outros tipos e estilos musicais.

3.2. O poder social, cultural e político da Rádio Nacional.

Luiz Gonzaga ganhou força e projeção com sua interação nas emissoras de rádio após a sua apresentação no programa de Ary Barroso. As transmissões radiofônicas conquistaram popularidade durante a década de 1930, principalmente, após a implantação do Estado Novo193, quando Getúlio Vargas aproveitou esse meio de divulgação como seu principal instrumento de propaganda, evidenciando a importância do rádio para a política do seu governo. Com a capacidade de chegar mais rápido aos ouvintes do que a emergente sétima arte, o impacto do rádio sobre a sociedade foi decisivo no que diz respeito à transformação da cultura brasileira: “As rádios haviam descoberto uma dupla vocação: primeiro criar mitos, depois penetrar e divulgar com estardalhaço”194. Após o seu lançamento em terras brasileiras, o rádio passou a fazer parte do cotidiano das pessoas, tornando-se um companheiro de todas as horas e importante meio de informação, lazer, denúncias e difusão de uma ideologia formadora de opiniões. Desde as emissões das primeiras ondas, a radiodifusão foi fundamental no contexto da comunicação à distância, já observada a função estratégica que poderia desenvolver. Tanto que, em alguns países, vários governos criaram suas próprias redes estatais. Inicialmente organizado em sistema de sociedade, com uma programação voltada para a elite, o rádio teve um desenvolvimento lento até quando foram permitidas propagandas comerciais que levaram à organização de empresas para disputar o mercado. Durante o início dos anos 1940 até a gloriosa década de 1950, o rádio brasileiro teve outro tipo de patamar, exibindo estruturas administrativas e artísticas para todo o país. Nesse período, a Rádio Nacional do Rio de

193 O Estado Novo é o nome que se deu ao período em que Getúlio Vargas governou o Brasil de 1937 a 1945. Este período ficou marcado, no campo político, por um governo ditatorial. 194 NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau (org). História da vida privada no Brasil. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. p. 591. 112

Janeiro é o maior representante auge na comunicação em massa, ocupando por cerca de vinte anos a liderança popular de audiência. Restaram poucos registros sobre a chamada “época de ouro” do rádio brasileiro. As emissoras de rádio não costumavam preservar a documentação, principalmente aquela ligada ao setor de programação em geral. O rádio era feito completamente ao vivo, construídos sob forma quase artesanal, envolvendo profissionais específicos nas programações repletas de música, informações jornalísticas, humor, dramatização e esportes. Poucos programas eram gravados em especiais, sendo comemorativos ou àqueles que não pudessem ser realizados ao vivo. Mesmo assim, depois de irradiados os programas, as emissoras não costumavam guardá-los. A Rádio Nacional constitui-se uma exceção, costumava gravar alguns de seus programas para análise posterior. As gravações serviriam para o estudo e o aprimoramento técnico e profissional da emissora. Entretanto essa prática não era comum entre as outras rádios. O desenvolvimento desta reflexão procura mostrar como o rádio exerceu forte influência na vida das pessoas, sendo capaz de criar modas, inovar estilos e inventar práticas cotidianas. Os diversos programas, como as radionovelas, programas de auditório, humorísticos, de variedades, de calouros e outros, fizeram tanto sucesso que marcaram profundamente a vida das pessoas, transformando-se em parte integrante do cotidiano. Além da divulgação de manifestações artísticas, mantinha as pessoas informadas e integradas, superando os limites físicos. O rádio trazia o mundo para dentro de casa. No Brasil, a primeira transmissão radiofônica ocorreu em 1922, com o discurso do presidente Epitácio Pessoa, através da estação Westinghouse, sendo irradiado em comemoração ao centenário da Independência. Do alto do Corcovado e distribuída por alto-falantes em Petrópolis, Niterói e São Paulo, tornou-se um marco nas comunicações brasileiras. Com as primeiras experimentações, a profissionalização do rádio brasileiro evoluiu com os investimentos do médico Edgard Roquette-Pinto e do engenheiro e astrônomo Henrique Morize. O aparato exclusivo de distribuição de ondas para o discurso do presidente foi montado apenas para o momento, sendo desmontados. Roquette-Pinto e Morize acabaram pleiteando novos transmissores, visando um equipamento definitivo. A primeira emissora brasileira foi instalada em 20 de abril de 1923, após a assinatura de uma ata de fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. A iniciativa particular se antecipava à regulação oficial para o uso radiofônico, até então, exclusivo dos governantes. No início do século XX, sob a intervenção do presidente Rodrigues Alves195 e as ordens do prefeito Pereira Passos196, o Rio de Janeiro passou por

195 Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919) venceu as eleições presidenciais com o apoio de Campos Sales e dos Partidos Republicanos Paulista e Mineiro. Grande proprietário de terras paulista e ex-ministro da 113

diversas transformações urbanas e sanitárias. Dentre as mais importantes, a sede do Jornal do Brasil, o Museu de Belas-Artes, a Biblioteca Nacional e a Avenida Central197 com seu boulevard ligando a Praça Mauá ao Passeio Público tornaram-se exemplos da sintonia carioca com o propósito da Belle Époque198. Em busca de uma capital civilizada nos moldes europeus, o novo porto do Distrito Federal, os bondes elétricos, as cafeterias e os alfaiates e chapeleiros da Rua do Ouvidor ditavam o cotidiano do Rio. O pioneirismo dos conceitos urbanísticos do prefeito de Paris no fim do século XIX, George-Eugène Haussmann, foram primordiais para as intervenções na capital brasileira nos anos 1920. A demolição do morro do Castelo, o aterro proporcionado na ponta do Calabouço e a construção do aeroporto Santos Dumont acabaram proporcionando benfeitorias para a cidade, sobretudo, no contexto cultural, social e econômico. Nesse cenário cosmopolita, durante os festejos pelo centenário na Independência, a capital foi apresentada ao veículo de comunicação que mudaria a rotina da população nas décadas seguintes: o rádio. Com a proposta de transmitir assuntos relevantes sobre cultura e educação, uma das primeiras estações foi a Rádio Sociedade. Atuando entre 1923 a 1932 como uma espécie de clube199, o modelo implantado por Roquette-Pinto para o seu programa Jornal da Manhã foi o pioneiro no sistema radiojornalístico do país. No fim da década de 1920, a emissora saíra da casa Guinle na Av. Rio Branco, fixando- se na Rua da Carioca, local onde teria sua concessão e seus bens entregues ao governo por seus fundadores pela falta de verbas. Em 1936, a Rádio Ministério da Educação e Saúde, atual Rádio MEC, estava no ar. A Rádio Club do Brasil, a segunda a ser inaugurada, seguia os mesmos parâmetros da maioria das estações na época. Localizava-se próximo ao Porto do Rio e da Av. Rio Branco, de fronte ao Café Nice, importante encontro cultural do Distrito Federal.

Fazenda do governo de Prudente de Moraes, Rodrigues Alves foi eleito com respaldo da aliança política entre as oligarquias agrárias de São Paulo e Minas Gerais, selada pelo acordo da Política dos Governadores. 196 Francisco Franco Pereira Passos (1836-1913) foi um engenheiro e político brasileiro. Foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906. Nomeado e incentivado pelo presidente Rodrigues Alves, a nova imagem da capital federal era planejada por Pereira Passos, que queria dar ao Brasil características mais modernas, fugindo da visão de atraso. 197 Inaugurada em 15 de novembro de 1905, foi rebatizada em 1912 em homenagem ao barão de Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos. 198 A Belle Époque é normalmente compreendida como um momento na trajetória histórica francesa que teve seu início no final do século XIX, mais ou menos por volta de 1880, e se estendeu até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. A Belle Époque brasileira é, no entanto, instaurada lentamente no país, por meio de uma breve introdução que começa em meados de 1880, e depois ainda sobrevive até 1925, sendo aos poucos minada por novos movimentos culturais. 199 Muitas emissoras se classificavam como Rádio Clube por serem mantidas por contribuições de ouvintes e sócios. 114

Na Rua Municipal nº 20, a casa de exportação Mayrink Veiga tinha uma emissora com o mesmo nome e que funcionaria até 1965, quando foi fechada pelo regime militar. A Rádio Philips, sediada na Rua Sacadura Cabral nº 43, elencava os interesses da fabricante holandesa de discos e aparelhos radiofônicos no mercado brasileiro. O órgão mais influente na mídia impressa à época era o jornal A Noite. Fundado em 1911 por Joaquim Marques e Irineu Marinho, a empresa se transformaria em sociedade anônima. Em 1925, Irineu se retirou como acionista, inaugurando o jornal O Globo. Com a entrada do jornalista Geraldo Rocha, deu-se início à expansão do A Noite, incluindo as revistas A Noite Ilustrada, Vamos Ler e Carioca e um terreno adquirido junto ao Liceu Literário Português. O arquiteto francês Joseph Gire e o engenheiro Emílio Baumgart seriam incumbidos da construção do primeiro arranha-céu em cimento armado da cidade do Rio. Inaugurado em 07 de setembro de 1929, os 22 andares do edifício A Noite tornaram-se tão imponente quanto o Cristo Redentor. Os problemas com a construção do prédio, vindos dos créditos cedidos de maneira complicada com algumas empresas estrangeiras, e o envolvimento de Geraldo Rocha na eleição de 1930 entre Vargas e Júlio Prestes, que culminaria com o movimento que destituiu o presidente Washington Luiz. Ao renunciar, Geraldo Rocha entregou os imóveis e as instalações da empresa aos credores. Enveredando por novos caminhos, A Noite constituiu em 18 de maio de 1933, a Sociedade Civil Brasileira Rádio Nacional200. Com a venda da Rádio Philips, que desistira de investir em ter uma emissora e o financiamento internacional da Estrada de ferro São Paulo - Rio Grande, a Sociedade daria passos mais largos. Nesse ínterim, chegava ao Brasil, a nova transmissora de 25 KW da Rádio Philips. Com o final da concessão e encerramento das atividades no setor radiofônico, a empresa holandesa cedeu o equipamento ao governo Vargas, que instalaria uma emissora que mudaria o curso e o alcance da comunicação do país: A PRE-8, depois, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A legislação de 1931 e 1932 consolidou e profissionalizou o rádio brasileiro. No ano de 1936, com a mesma razão de investimento pesado para romper as fronteiras sul-americanas, a norte-americana RCA Victor instalaria a Rádio Transmissora Brasileira, na Rua do Mercado nº 22, na região central do Rio de Janeiro, tendo o sambista Almirante, o locutor Saint-Clair Lopes e o maestro Radamés Gnatalli recrutados para programas201 de entretenimento. O número de prefixos jornalísticos

200 Celso Guimarães, Revista da Rádio Nacional, setembro de 1950, p. 19. 201 Em 1935, surgem os primeiros programas de calouros comandados por Héber de Bôscoli e Ary Barroso pela Rádio Cruzeiro do Sul, a primeira a não estar sediada no centro do Rio. Original do bairro da Tijuca e fundada em 1933, a emissora se deslocou posteriormente para o 10º andar do Cinema Império, na Cinelândia. 115

teve avassaladora expansão. A pluralidade das atrações abriu espaço para a curiosidade popular sobre os artistas e vozes, inaugurando colunas exclusivas nas revistas e jornais sobre os bastidores do mundo do Rádio. O empresariado do ramo midiático exibiu grande interesse nas concessões dos canais de ondas curtas, sobretudo, após os decretos sobre a radiodifusão no território nacional, baixados por Getúlio Vargas. O primeiro, de 1931, tratava o funcionamento técnico das emissoras concedidas, enquanto o expedido em 1932 autorizava a publicidade por ondas em Hertz (Hz), dando início ao rádio comercial. Nesse processo de evolução na radiofonia, o trabalho de Gilberto Goulart de Andrade202 foi notório. O editor de publicações do Teatro de Revista203 preocupou-se com o direcionamento da nova paixão na comunicação. Entre o trabalho jornalístico, os artigos nas publicações de Sintonia, da revista teatral Sempre Sorrindo e do especializado semanário A Voz do Rádio destacaram assuntos que iam das atrações artísticas nos teatros, eventos artísticos e poemas até opinião sobre a disparidade dos equipamentos técnicos das emissoras de rádio nacionais em relação às cidades de Buenos Aires e Montevidéu e diálogos sobre temas políticos, principalmente, após a decretação do Estado Novo204 por Getúlio em 10 de novembro de 1937. Goulart de Andrade seria nomeado procurador do Tribunal de Segurança Nacional do novo governo, pedindo demissão no número 40 de A Voz do Rádio. Sob novas rédeas, o semanário informativo deu continuidade aos registros dentro e fora do cotidiano radiofônico, ampliando a cobertura para os acontecimentos do cinema e discos em vinil. Em entrevista ao redator Jayme Távora, Lourival Fontes, diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, futuramente, Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Vargas, pela primeira vez, expressava sua opinião sobre a capacidade política e social do rádio:

Dos países de grande extensão territorial, o Brasil é o único que não tem uma rádio oficial. Todos os demais têm estações que cobrem todo o seu território. Essas estações atuam como elemento de unidade nacional. Uma estação de grande

202 Advogado, deputado e jornalista alagoano. 203 Gênero teatral de gosto popular que teve importância na história das artes cênicas, tanto no Brasil como em Portugal, até meados do século XX, quando alcançou o seu auge. Caracteriza-se pelo frequente apelo à sensualidade e pelas sátiras social e política. 204 A década de 1930 conheceu o fenômeno do Estado Forte e, no seu limite, os regimes totalitários de direita, dos quais a maior expressão foram o fascismo italiano e o nazismo alemão. Essa tendência estava inserida no quadro das lutas contra o comunismo que se expandia pela Europa, a essa época vivendo os efeitos da Grande Depressão que resultara da Crise de 1929. No caso brasileiro, a crise do Estado Oligárquico, derrubado com a Revolução de 1930, gerou um vazio de poder e criou as condições para que Getúlio Vargas se tornasse o homem forte e aumentasse cada vez mais o seu poder pessoal, justificado como uma necessidade para a “árdua tarefa de reconstrução nacional”. O confronto ideológico entre a Ação Integralista Brasileira, facção de orientação fascista liderada por Plínio Salgado, e a Aliança Nacional Libertadora, uma frente de composição variada, nucleada pelo Partido Comunista de Luís Carlos Prestes, forneceu a Vargas o clima de instabilidade propício ao golpe. 116

potência torna o receptor barato e, portanto, o generaliza. Não podemos desestimar a obra de propaganda e de cultura realizada pelo rádio e, principalmente, a sua ação extra-escolar; basta dizer que o rádio chega até onde não chega a escola e a imprensa, isto é, aos pontos mais longínquos do país e, até, à compreensão do analfabeto.205

Em 08 de março de 1940, o decreto-lei206 nº 2073, que tratava a criação das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, entrou em vigor. O texto considerou que todo o acervo da Companhia de Ferro São Paulo – Rio Grande e suas afiliadas tiveram origem em operações estrangeiras ou com contribuição dos cofres públicos brasileiros. No período de 1930 a 1937, 43 emissoras foram fundadas. Os Decretos nº 20.047 de 27/05/1931 e o nº 21.111, de 1º/03/932, consolidaram uma conjuntura favorável ao rádio, pondo fim ao seu período experimental e amadorístico. O Decreto nº 21.111 refere-se várias vezes ao caráter educativo que as programações deveriam ter. O artigo 2º deste Decreto concede ao Ministério da Educação e Saúde (MES) a orientação educacional da programação das emissoras de rádio. Porém, a atuação do MES limitou-se à recomendação de algumas programações e à premiação de emissoras que desenvolvessem programas educativos. Apesar de todas as limitações técnicas, cada emissora tinha como objetivo melhorar a qualidade do som e ampliar o alcance. A permissão de propaganda comercial foi uma grande novidade e as mensagens comerciais transformaram-se na principal fonte de recursos. A concessão de canais a particulares ajudava a reforçar a exploração comercial do rádio.

Figura 33 – Manchete do Jornal “A Noite” em 12 de setembro de 1936.207

205 Lourival Fontes em entrevista a Jayme Távora em 20 de fevereiro de 1936. 206 Ver Anexo I. 207 http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/noite/348970. 117

Na busca por novos ouvintes, as emissoras esforçaram-se em produzir programas de cunho popular, levando em consideração a opinião pública para a sua avaliação. Com a promoção de concursos, análise de correspondências recebidas ou distribuição de brindes avaliava-se o programa que poderia passar por uma reformulação ou até ser retirado do ar. A audiência tornou-se mais minuciosa com as opções de emissoras e atrações proporcionadas. Por volta de 1930, a contratação de cantores se torna algo comum, no intuito de estabelecer um elo com o ouvinte (CALABRE, 2002). As emissoras, a partir da década de 1930, veem crescer as recepções do público em suas instalações, pois não se contentavam mais em apenas ouvir seus artistas favoritos, queriam vê-los. Para atender a procura, além de ampliar e modernizar auditórios, algumas emissoras passaram a cobrar ingressos. Nas grandes cidades, os ingressos tinham como função principal limitar o público; no interior do país, a cobrança era uma forma de conseguir a verba necessária para pagar os cachês de artistas que ali faziam suas apresentações. A introdução do patrocínio de anunciantes ajudou na explosão de alguns programas de variedades, levando o rádio a transformar-se em fenômeno social e dando-lhe o poder de influenciar comportamentos, opiniões e ditar modas, devido à sua capacidade de conquista de milhares de fiéis ouvintes. Artistas célebres como Carmem Miranda, Mário Reis, Francisco Alves, Noel Rosa foram lançados por esse meio de comunicação. A música Cantoras do Rádio208, gravada pelas irmãs Carmem e Aurora Miranda, ainda hoje é identificada como um marco do rádio no Brasil, sendo uma composição de Lamartine Babo e João de Barros:

Nós somos as cantoras do rádio, levamos a vida a cantar. De noite embalamos teu sono, de manhã nós vamos te acordar. Nós somos as cantoras do rádio. Nossas canções, cruzando o espaço azul, vão reunindo num grande abraço, corações de Norte a Sul.209

Em geral, os programas de variedades transmitidos aos finais de semana traziam atrações artísticas, sorteio de prêmios, apresentação de calouros e quadros de humor. César de Alencar, Manoel Barcelos e faziam parte do formato onde temas como história da cidade, curiosidades e o folclore estavam em pauta, com a participação de cantores, atrizes, atores e o público, que lotavam o auditório das emissoras, chegando na véspera dos programas e passando a noite na fila, dormindo na calçada, para conseguir algum

208 Gravada com a orquestra Odeon em 18 de março de 1936. 209 NOSSO SÉCULO, 1985, p. 89. 118

convite ou ingresso. No final da década de 1930, o humorismo apareceu forte nas vozes de Manuel da Nóbrega, Castro Barbosa e Aluísio Silva Araújo. Os programas humorísticos faziam concorrência com as famosas radionovelas, disputando a popularidade com os programas musicais. Muitos deles, como o Balança mas não cai, tiveram assíduos fãs e ficaram no ar por vários anos. Nos programas de humor, a crítica e a caricatura cotidiana construíam os temas descritos como uma espécie de crônica. Vários profissionais faziam parte do setor de rádioteatro e eram responsáveis pelas novelas e quadros dos programas, exibindo textos teatrais que, adaptados ao rádio, levavam trilhas sonoras e efeitos sonoros ao ouvinte, ajudando a dar mais emoção e vida ao texto lido, trazendo ao imaginário qualquer tipo de ambiente. Surgiram vários programas reveladores de grandes intérpretes, como Olga Navarro210. As radionovelas211, lançadas em 1941, transmitidas em capítulos, tiveram grande sucesso e popularização rápida, fazendo com que outras emissoras do Rio de Janeiro e São Paulo abraçassem o estilo, mesmo com um período razoável de trama. “Em busca da felicidade”, exemplo de altos índices de audiência, esteve no ar por dois anos e meio. Para conquistar o ouvinte, a radionovela continha uma linguagem de fácil entendimento e desenvolvimento sentimental e popular. Como as telenovelas do século XX, exibiam ao ouvinte a possibilidade de assumir uma relação opinativa aos personagens, debatendo suas ações. Grande carro-chefe de apresentação de artistas, os programas de calouros no fim dos anos 1930 nos auditórios, espalhando-se por várias emissoras. Celso Guimarães (Rádio Cruzeiro do Sul, filial SP) e Edmundo Maia e Paulo Roberto (Cruzeiro do Sul, filial RJ) estão entre os primeiros radialistas de um estilo de programas que tiveram destaques e sucesso, como o caso da Rádio Tupi com o “Calouros em Desfile” (capitaneado por Ary Barroso), na própria Rádio Nacional (“A Hora do Pato”, de Herber Bôscoli), na Rádio Club do Rio (“Papel de Carbono”, com Renato Murce). Emilinha Borba, cantora de sucesso, apresentou-se no programa de Lamartine Babo, ganhando o prêmio máximo. Havia muitos interessados em participar desses programas, sonhando em ganhar o prêmio ou um contrato com uma emissora de rádio. Vários maestros também se destacaram como Spartaco Rossi, Radamés Gnatalli e

210 Maria Olga Narduzzo Navarro (Veneza, Itália, 05/06/1915 - São Paulo, 25/06/1993) foi uma atriz de grande importância na divulgação de companhias filodramáticas de origem italiana em São Paulo, integrando posteriormente a renovação moderna no teatro. 211 A primeira radionovela foi “Em busca da felicidade”, estreando na Rádio Nacional em 05 de junho de 1941. O texto original era de autoria do cubano Leandro Blanco e adaptado por Gilberto Martins, com patrocínio da pasta dental Colgate. 119

Francisco Mignoni, pois toda rádio procurava ter a sua própria orquestra contratada, que executava, além de músicas eruditas, adaptações populares que abrangia desde samba, música sertaneja e erudita de temática nacional, até música caipira e outras (NOSSO SÉCULO, 1985). O teor musical das emissoras possuía um lugar de importância. Com apresentações ao vivo, a contratação de orquestras próprias e pequenos conjuntos regionais eram uma espécie de marca registrada de cada freqüência, disputando e apresentando cantores populares destacados junto ao público ouvinte. Os programas de auditório conquistaram espaço, revelando vários talentos entre seus calouros. Era comum aproveitar esses programas para fazer o lançamento de músicas populares, pois se podia perceber a aceitação ou rejeição do público. Também era um privilégio apresentar-se numa emissora como a Tupy ou a Nacional, já que possibilitava ao artista a chance de ser conhecido no país e vender seus discos. Concursos para Rainhas do Rádio e Reis da Voz atraíram à atenção dos fãs de tal maneira que foram lançadas revistas especializadas, como a revista do Rádio, por meio da qual as pessoas poderiam conhecer um pouco sobre a vida do ídolo: modo de vida, preferências, etc. O concurso de 1953 consagrou a cantora Emilinha Borba212, a Rainha do Rádio.

Figura 34 – Emilinha Borba, a Rainha do Rádio (1953).213

Nas décadas de 1940 e 1950, as transmissões radiofônicas brasileiras ganharam alcance nacional, com enormes estruturas artísticas e administrativas que acabaram irradiando seus

212 Emília Savana da Silva Borba, conhecida como Emilinha Borba, (Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1923 — Rio de Janeiro, 03 de outubro de 2005) foi uma das mais populares cantoras brasileiras. Em 1942, foi contratada pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, desligando-se meses depois. Em setembro de 1943, retornou ao "cast" daquela emissora, firmando-se durante os 27 anos que lá permaneceu contratada como a "Estrela Maior" de PRE-8, a líder de audiência. 213 Foto extraída do acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ). 120

programas para todo o país. A maior representante desse período é a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, ocupante por duas décadas do posto de emissora líder de audiência e de maior impacto na vida das pessoas. O grande elemento para a virada tecnológica e maior abrangência do Rádio no Brasil foi a publicidade e a introdução do jornalismo radiofônico. A primeira edição do Repórter Esso foi ao ar em agosto de 1941, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Tal informativo permaneceu no ar por 27 anos influenciando os padrões dos jornais falados existentes até então. Com base nas notícias distribuídas pela agência norte-americana United Press (UPI) e elaboradas pelos redatores da agência de publicidade McCann-Erickson que detinha a conta da Esso Standard de Petróleo, companhia multinacional patrocinadora do programa jornalístico, o Repórter Esso iniciou com um noticiário voltado principalmente para a cobertura de acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Com uma espécie de manual, cumpria rigorosamente três regras: era um programa informativo, não comentava as notícias; e sempre fornecia as suas fontes. Tendo quatro emissões diárias com cinco minutos de duração, destacava-se pelos slogans: “O primeiro a dar as últimas” e “Testemunha ocular da história”. Esse noticiário ficou famoso devido a sua pontualidade a ponto das pessoas acertarem seus relógios por ele. O telejornalismo brasileiro anterior ao Repórter Esso não recebia um tratamento redacional específico. As notícias eram extraídas de jornais e as emissoras apenas comentavam os fatos que já haviam sido noticiados pela imprensa. As emissoras só passaram a produzir seus próprios noticiários na medida em que houve crescimento do setor radiofônico. Era comum cada rádio ser filiada a uma agência de notícias nacional e também a uma internacional, as quais forneciam a matéria-prima para a elaboração dos noticiários. Algumas rádios, na medida em que aperfeiçoaram seus equipamentos de transmissão externa, passaram a contar com equipes de reportagem que foram desenvolvendo estilos próprios de noticiários. Algumas destacavam mais as notícias internacionais, outras privilegiavam comentários políticos e notícias de caráter interno. O Repórter Esso foi o grande destaque dos noticiários radiofônicos e serviu de modelo para o jornalismo posterior pelo seu estilo objetivo, imparcial, informativo e moderno. Transmitido pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, sua primeira transmissão foi ao ar no final de agosto de 1941, permanecendo até 31 de dezembro de 1968. Funcionando em caráter experimental, na Rádio Farroupilha de Porto Alegre, o Repórter Esso foi lançado no Brasil devido ao sucesso alcançado em outros países onde já era transmitido regularmente. As regras estabelecidas pelo manual eram cumpridas à risca: cinco 121

minutos de duração para cada edição, sendo vinte segundos dedicados à abertura e ao encerramento; quatro minutos a notícias nacionais, internacionais e locais e quarenta segundos à mensagem comercial. Romeu Fernandes foi o primeiro locutor do Esso. Porém, Heron Domingues manteve-se na programação até a década de 1960 como locutor exclusivo. Com sua voz, considerada ideal a um locutor, transmitia segurança e otimismo no ambiente inseguro e apreensivo da II Guerra Mundial. Com os aparelhos receptores mais baratos, a audiência do rádio começou a crescer. Com a publicidade e propaganda de produtos, a organização em sociedades ou clubes das emissoras alterou a forma de patrocínio dos programas, fazendo com que as programações atendessem não apenas à elite. Entendido pelo governo federal como um serviço de interesse nacional, o rádio teve seu funcionamento regulamentado por um Estado que procurava proporcionar-lhe bases econômicas mais sólidas de contexto educativo e aproximador. A veiculação de propaganda pelo rádio foi autorizada em março de 1932. Isso fez com que tal meio de comunicação, tido como erudito, instrutivo e cultural, se transformasse em diversão popular e meio familiar de lazer. Muitos intelectuais preocupavam-se em manter o rádio com a finalidade educativa, transmitindo uma produção elitizada. Com amplas críticas, indo de encontro ao momento de popularização, sambas e marchas de carnaval tinham bastante preconceito de alguns ouvintes que também achavam que o rádio estava se desviando de sua função educativa e protestavam por esse desvirtuamento, escrevendo cartas por meio das quais pediam aulas de português para que o povo falasse melhor a própria língua; outros reclamavam pelo abandono da tradição erudita; havia os que sugeriam que, para ser tocado, o samba deveria ter um enredo e sua letra contar uma história que induzisse à virtude, a exemplo das óperas. Certamente, qualquer um acharia que a cultura brasileira estava empobrecendo. Carlos Alberto Ferreira Braga214 (Braguinha) fazia parte do Grupo Tangarás e era filho do diretor da uma das maiores indústrias têxteis do país: a Fábrica Confiança, de Vila Isabel, e preparava-se para iniciar o curso de arquitetura. Colocava sempre um substituto quando o grupo se apresentava recebendo remuneração, pois se preocupava com a repercussão negativa da sua atividade na música popular. Conforme Cabral215, o ato de “receber dinheiro por cantar em público,

214 Carlos Alberto Ferreira Braga, conhecido como Braguinha e também por João de Barro, (Rio de Janeiro, 29 de março de 1907 — Rio de Janeiro, 24 de dezembro de 2006) foi um compositor brasileiro, considerado um dos representantes da “era de ouro” do carnaval brasileiro, período entre os anos de 1930 e 1940. 215 CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. Pág. 24. 122

segundo os critérios em vigor, não ficava bem para um jovem educado”. Vários outros cantores usavam pseudônimos para manterem-se no anonimato. Enfim, a grande questão era: afinal, o rádio deveria educar ou transmitir propagandas e formas inferiores de música, como o samba e outros gêneros do folclore? As reclamações foram inúmeras e a população “esclarecida”, que tinha o rádio como símbolo de status e erudição, viu-se inconformada com a sua popularização. Apesar das discussões, o aparelho ocupou o ponto de destaque nas residências. A vida moderna, a alegrias, os momentos em família e o bem-estar, estavam ligados ao rádio, contribuindo para alterar hábitos e criar novas necessidades. Segundo Oliveira216, transmitindo músicas e informações diversas de utilidade pública, permitia também que as pessoas ficassem informadas sobre os acontecimentos do Brasil e do mundo. Isso foi notável na propagação narrada de partidas de futebol, atraindo a audiência masculina aos eventos ligados aos esportes. A importância do rádio foi capaz de influenciar o cotidiano das pessoas a ponto de formar hábitos de consumo e evidenciar comportamentos. Como o analfabetismo era elevado no país, a linguagem coloquial utilizada em vários programas permitiu uma popularização rápida e efetiva, o que ajudaria na explosão de alguns artistas de âmbito sertanejo e nordestino como Luiz Gonzaga. Vitorioso da Revolução de 1930, Getúlio Vargas aprovou a lei que imputaria ao governo qualquer controle sobre a transmissão de ondas radiofônicas. Em 1931, foi criada uma comissão Técnica de Rádio, na qual o presidente teria o direito de nomear seus integrantes. Estava aberto o caminho para a formação de uma rede nacional controlada pelo Ministério da Educação e Saúde que garantia ao governo a exclusividade para autorizar particulares a criarem novas emissoras. As concessões, a qualquer momento poderiam ser cassadas, pois eram feitas a título precário. Dessa forma, o rádio, mesmo sendo um veículo de comunicação privado, tornou-se um meio controlado pelo Estado. Em 1937, Vargas assinou a Lei nº 385, que fomentava as atividades artísticas e elegia a obrigatoriedade de sua inclusão nas obras de autores brasileiros natos e programações musicais. O rádio, durante a década de 1930, despertou sentimentos diversos, que variavam do fascínio à rejeição. Se por um lado ocupava um lugar de destaque nas residências, sendo um símbolo de alegria, bem-estar e comodidade oferecida pela vida moderna; por outro, representava o lugar da marginalidade e dos marginais, sendo assim proibido às pessoas

216 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Sinais da modernidade na Era Vargas: vida literária, cinema e rádio. In.: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano – O tempo do nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. V.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 123

consideradas de “boa família”. Ao lançar novos produtos, o rádio criava novas demandas que alteravam o hábito das pessoas. Àqueles que não possuíam o aparelho reuniam-se com os vizinhos para acompanhar o seu programa de preferência. Vários estabelecimentos comerciais mantiveram seus rádios para atrair a clientela, ato comum do cotidiano. No entanto, a precariedade das instalações domésticas menos abastadas e o racionamento de energia elétrica que atingiu o país em alguns períodos das décadas de 1930 a 1950 foram fatores que atrapalharam a expansão do rádio. Porém, ao lado de aparelhos sofisticados, surgiram várias fábricas que começaram a produzir pequenos rádios que, com o tempo, passaram a se tornar acessíveis para muitas pessoas, levando ao aumento da audiência do rádio. Além do acesso ao entretenimento, o rádio logo tornou visível à capacidade de mobilizar politicamente. Isso se tornou evidente na Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, quando as rádios Philips, do Rio de Janeiro e Record, de São Paulo, que inicialmente faziam transmissões conjuntas, tornaram-se inimigas e passaram a ser usadas como armas de luta, demonstrando que o rádio poderia ser utilizado como um veículo revolucionário, devido a sua rapidez na divulgação dos fatos e ao seu largo alcance. Durante a Segunda Guerra Mundial, era o aparelho que permitia a rápida divulgação das notícias, fazendo com que o ouvinte ficasse informado sobre os últimos acontecimentos. Várias emissoras estrangeiras produziam programas em português, facilitando a informação ao ouvinte.

Figura 35 – O populismo de Vargas.217

217 Imagens retiradas da hemeroteca da Biblioteca Nacional. Acesso em 13 de março de 2020. 124

Segundo CAPELATO (2005), os meios de comunicação de massa passaram a utilizar maneiras técnicas e científicas bastante sofisticadas que facilitaram a manipulação das massas, “fabricando necessidades e se encarregando de satisfazê-las”218. A propaganda, em qualquer regime, é essencial para o exercício do poder, porém, sua força torna-se maior onde o Estado exerce um controle sobre as informações, manipulando-as a seu favor, como no caso do Estado Novo no Brasil. A propaganda política adquiriu grande importância nas décadas de 1930 e 1940, período em que os meios de comunicação tiveram um considerável avanço em nível mundial. O nazismo, que teve como inspiração a publicidade comercial norte- americana, exerceu grande influência na Europa e na América, levando também o regime brasileiro a inspirar-se em tal modelo, embora apresentando características particulares e produzindo resultados diversos. Em 1934, em visita oficial à Alemanha, Simões Lopes219, assessor de Getúlio Vargas, escreveu sugerindo a criação de uma miniatura de tal modelo no Brasil:

“Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diariamente o contato do ‘nazismo’ ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através de toda a imprensa alemã [...]”. (Jornal da Tarde, 12 abr. 1997, Caderno de Sábado, p. 1, apud CAPELATO, 2003, p. 203).

Assis Chateaubriand220 também recomendou Getúlio a seguir o modelo de propaganda alemã buscando utilizar o jornalismo, o cinema e o rádio como procedimentos ideológicos. Enquanto a propaganda do governo no Estado Novo procurou a imagem da sociedade unida e

218 CAPELATO, Maria Helena R. Estado Novo: novas histórias. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6ª ed. São Paulo: Contexto, 2005. 219 Luís Simões Lopes (Pelotas, 02 de junho de 1903 — Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1994) foi um engenheiro agrônomo e político brasileiro. Em 1930, após a ascensão de Vargas ao poder, Luis Simões Lopes foi nomeado oficial de gabinete da Presidência da República. Em 1936, participou da Comissão de Reforma Econômica e Financeira, e em 1937 foi nomeado diretor do então Conselho Federal do Serviço Público Civil. O Conselho Federal do Serviço Público Civil precedeu o Departamento Administrativo de Serviço Público (DASP), que foi criado por portaria de 04 de agosto de 1938. Luís Simões Lopes foi nomeado por Getúlio Vargas presidente do DASP, permanecendo no cargo até 29 de outubro de 1945, pedindo a saída do cargo quando Getúlio Vargas foi retirado do poder. 220 Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, mais conhecido como Assis Chateaubriand ou Chatô, (Umbuzeiro, 04 de outubro de 1892 — São Paulo, 04 de abril de 1968) foi um jornalista, empresário, mecenas e político destacando-se como um dos homens públicos mais influentes do Brasil nas décadas de 1940 e 1960. Foi também advogado, professor de direito, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. Chateaubriand foi um magnata das comunicações no Brasil entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960, dono dos Diários Associados, que foi o maior conglomerado de mídia da América Latina, que em seu auge contou com mais de cem jornais, emissoras de rádio e TV, revistas e agência telegráfica. Também é conhecido como o co-criador e fundador, em 1947, do Museu de Arte de São Paulo (MASP), junto com , e ainda como o responsável pela chegada da televisão ao Brasil, inaugurando em 1950 a primeira emissora de TV do país, a TV Tupi. 125

livre das divisões sociais, organizada ao redor do grande líder Getúlio Vargas, em dezembro de 1939, o governo criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que tinha como objetivo difundir a ideologia do Estado Novo junto à população. Diretamente subordinado à presidência da República, as principais funções do DIP eram centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional, interna ou externa. Cabia ao DIP fazer a censura do cinema, do teatro, de funções esportivas e recreativas, da imprensa, literatura, da radiodifusão, promover organizações cívicas e levar ao conhecimento da população os feitos do governo. O DIP exercia um forte controle social através da censura, fazendo uso de diversos meios para construir uma ideologia: desde cartilhas para crianças, exaltando a figura de Vargas, até jornais e filmes a serviço do governo, além de outros materiais de propaganda. Também substituiu as caricaturas do presidente por imagens. O rádio, na década de 1930, teve uma importância fundamental na propagação nacional da música popular, por meio da qual se pretendia construir, mesmo que forçadamente, uma ideologia que fosse aceita pela população. As transmissões das mensagens de propaganda foram feitas por meio do jornal impresso e do rádio. A imprensa foi, portanto, o setor mais atingido pelo controle do DIP, todavia no rádio possuía espaço para atividades relativamente autônomas. As empresas jornalísticas só conseguiram se estabelecer mediante registro no DIP e dessa forma agiam sem nenhuma independência. Desde o ano de 1932, o governo Vargas determinava que a atuação da radiocomunicação constituísse um serviço público, portanto, dependendo da concessão do governo vigente. A legislação obrigava a transmissão de um programa a nível nacional, com o nome Hora Nacional, que levaria em sua pauta temas de acordo com a economia brasileira, questões sociais, assuntos políticos, âmbitos religiosos, movimentação artística e desenvolvimento científico. A Hora Nacional deveria ser retransmitida por todas as emissoras do país, sendo proibida a irradiação de qualquer outro programa no mesmo horário. Porém, além de problemas técnicos, como a baixa potência dos transmissores, muitas emissoras resistiram a essa imposição preferindo manter-se fora do ar a transmitir um programa oficial. Como programa oficial do DIP, agora denominado Hora do Brasil, passou a ser transmitido para todo o país, visando integrar todos os lugares, mesmo os mais distantes, à Capital Federal. Cabia ao DIP produzir material de propaganda governamental, fiscalizar e supervisionar a aplicação da legislação referente às atividades culturais e ainda censurar os programas transmitidos pelas diversas emissoras. Como os programas eram feitos ao vivo, os censores ouviam os programas e emitiam seus relatórios. Com duração de uma hora, a Hora tinha a finalidade de emissão de cultura e louvação do civismo. As ações e os discursos 126

oficiais dos integrantes do governo eram expostos, destacando feitos nacionais e debatendo a importância das artes tidas como populares. De acordo com o DIP, os diversos programas, além de divulgar as mensagens e os atos oficiais, deveriam divulgar a cultura, as conquistas do ser humano, as belezas naturais do país e ainda incentivar as relações comerciais. Havia também a preocupação de que o rádio deveria atingir o homem do interior para promover a sua integração na coletividade nacional. O DIP também buscava impedir que as injustiças sociais fossem denunciadas ou comentadas por meio das letras dos sambas. Só em 1940, o DIP vetou 373 letras de músicas e em 1941 proibiu a divulgação do samba “O Bonde de São Januário”, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, por considerar uma exaltação à malandragem. A palavra “disciplina” era uma constante naquele departamento varguista. Conforme SOIHET221, “mais uma vez tem-se o adjetivo para identificar essa forma de manifestação, o que contrastava com as inúmeras de referências utilizadas outrora para qualificar as formas de expressão popular, quando se atribuía aos cordões um caráter boçal e selvagem”. Por meio do Decreto-Lei nº 2073 de março de 1940, a criação das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União englobou o grupo A Noite, inclusive, jornais, revistas e a Rádio Nacional, a qual serviu como um modelo de ação política do governo Vargas. Em parceria com agências de publicidade, a Rádio Nacional passou a criar programas de sucesso permanecendo como a emissora de maior audiência em todo o país na era de ouro do rádio, com as radionovelas, Repórter Esso e programas de auditório, tornando-se um modelo seguido por outras emissoras. A história da Rádio Nacional do Rio de Janeiro evidencia a forma como o Estado e os aparelhamentos governamentais se apropriaram do raio de atuação do rádio para a propagação e manutenção de suas políticas. Apesar da forja na construção da realidade social e cultural brasileira a partir de suas irradiações, o poder do rádio tem a sua importância para a tecnologia nacional e na evolução da comunicação no país. Ao compreender e debater o funcionamento da Rádio Nacional como instrumento de dominação política, pensando a sua prática cultural e autônoma, ajuda a elencar valores dominantes daquele período, pois “A Rádio Nacional foi um projeto concebido e realizado por brasileiros que se impôs durante 20 anos à admiração do público, conjugando talentos artísticos e determinação política. E que, ainda hoje, permanece na memória dos ouvintes como sinônimo de qualidade de

221 SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: EDUFU, 2008. Pág. 194. 127

programação, em qualquer gênero”222. A partir do final dos anos 50 e início da década de 60, o rádio como um todo enfrenta o impacto do desenvolvimento da televisão e tem sua audiência ameaçada. A radiodifusão, mesmo com um público interessante em números, começa a perder espaço e estrutura, precisando procurar outros modos de criação de conteúdo para sobreviver ao advento da televisão. Ao conhecer a história dos primeiros tempos do rádio no Brasil e a sua importância para a divulgação de uma ideologia, torna-se possível entender por que o poder público procurou, desde o início, manter os meios de comunicação sob controle. No contexto do baião, serve para emitir certos cruzamentos nas formas como o gênero musical foi recebido, ajudando na sua consolidação. A liderança da audiência pela Rádio Nacional, segundo o pesquisador Conde Aguiar223, não era mera sorte de concorrência. Isso era atestado pela sua diferenciação em certos aspectos, sobretudo, na seção de música, onde, dos 671 profissionais da casa, 134 eram músicos (10 maestros e 124 instrumentistas e cantores), sem contar diretores setoriais, radioatores/atrizes, redatores e outros profissionais. Aproveitando o reinado do baião como coqueluche cultural e buscando aprimoramento para as ambições publicitárias, a Nacional, em 1951, cria o seu próprio Departamento de Música Brasileira (DMB), sob a batuta de Humberto Teixeira, eleito compositor do ano pela Revista do Rádio, importante periódico sobre as atividades artísticas nos anos 40 e 50. O primeiro produto desse Departamento foi o programa “Cancioneiro Royal”, patrocinado pelos produtos Royal, produzido por Humberto Teixeira e Zé Dantas. “No mundo do baião”, uma série de abertura do programa, era apresentado por Paulo Roberto, com a participação de Luiz Gonzaga e a interação de outros artistas do cast da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em execuções de ‘causos’ e ritmos nordestinos.224 O programa era transmitido pela Rádio Record em São Paulo e tinha a chefia do compositor Humberto Teixeira, baseando o programa no teor rural do Nordeste brasileiro225. Não por acaso que o baião tenha sido escolhido para ter um programa de rádio próprio. Esse era um dos propósitos do

222 SAROLDI, Luiz Carlos e MOREIRA, Sonia Virgínia. Rádio Nacional – O Brasil em Sintonia. 3ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. Pág. 11-12. Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira, no prefácio à terceira edição do seu livro “Rádio Nacional – o Brasil em sintonia”, afirmam que a emissora carioca “representou um dos maiores fenômenos de comunicação do Brasil” e assim resumem o projeto de uma emissora que foi igualmente a principal da América Latina e uma das cinco mais potentes do mundo. 223 AGUIAR, Ronaldo Conde. Almanaque da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. 224 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2001. p. 154.

225 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 37. 128

Departamento de Música da Rádio Nacional: Nortear o interesse público, mesclando o interesse publicitário e artístico às marcas de brasilidade que a emissora estatal julgava importante e digna de referência. Outro programa irradiado, aos sábados, Lira do Xopotó, com a locução do mesmo Paulo Roberto, tinha o intuito era descobrir bandas e músicos do interior, longe das capitais, para apresentarem-se no programa, tendo a possibilidade de gravar um disco. Jararaca, antigo integrante dos Turunas, fazia parte do programa como mestre Filó, um narrador de histórias do universo nordestino. “Música em surdina”, programa criado por Paulo Tapajós e apresentado em estúdio no final da noite por Chiquinho, no acordeon, Garoto, ao violão e Fafá Lemos ao violino, exibia um repertório eclético, nascendo o Trio Surdina. O violinista Garoto por sinal, foi um dos artistas que se destacou na Rádio Nacional nos anos 1950, quando passou por diferentes grupos nos seus dez anos de permanência na programação. Atuou na Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali e pelo Bossa Clube ao lado de Luis Bittencourt, Luis Bonfá, Valzinho, Bide, Sebastião Gomes e Hanestaldo. Ainda na década de 1950, destacaram-se os programas “Sua excelência a música” e “Quando os maestros se encontram”. O trio é tido como um dos antecessores dos movimentos instrumentais que findariam na Bossa Nova, anos depois. Paulo Tapajós, produtor da Nacional, evidenciou:

Anos atrás, a nossa música popular recebia um tratamento que não condizia com a sua riqueza, enquanto a música estrangeira merecia instrumentação luxuosa. A Rádio Nacional rompeu com essa tendência e tomou outro caminho. Não somente forçamos a melhor programação da música brasileira, isto sem qualquer tipo de xenofobia, como passamos a dar um melhor tratamento digno ao nosso patrimônio popular musical. Desde que eu era diretor artístico da emissora, que este instrumento se fez sentir seriamente. Foi, aliás, Radamés Gnattali quem primeiro instrumentou dignamente a nossa música popular. Chegamos a fundar o Departamento da Música para tratar especialmente essa questão (TAPAJÓS, apud MOREIRA e SAROLDI, 2005, p.135).

O desenvolvimento da música regional e a presença massiva do baião no rádio brasileiro, através de Luiz Gonzaga, entre as décadas de 40 e 50 do século passado possui uma forte ligação com o aspecto político e cultural da época e a própria emissora estatal de comunicação. Com a consolidação de ritmos nacionais em sua grade, o movimento profundo de brasilidades e demonstrações da industrialização do simbólico, elevaram o senso popular de pertencimento, em um processo que Nobert Elias (1997) chamou de nacionalização dos 129

sentimentos e afetos226. Apesar das tensas relações e da fragilidade entre o indivíduo e a sociedade, a adequação ao quadro social ajuda a obter novas sensibilidades e oportunidades sejam por meio da internalização dos sentimentos ou pela vergonha motriz das suas ações individuais perante um novo ambiente social. O perfil lúdico da série No Mundo do baião trouxe um perfil didático parecido com programas apresentados por entusiastas folcloristas como Almirante, Renato Murce ou Zé do Norte. Os poetas trazidos por Zé Dantas davam um ar de especialidade aos temas decantados, sistematizando formas de falar, dialetos, sotaques e assessorias em torno do sertão do Nordeste. O baião, maximizando processos modernizadores na construção da MPB, acabou legitimando uma das visões sobre a regionalidade nordestina, sendo a mais expressiva e estética referência advindas do lema Sanfona não faltava e tome xote a noite inteira227. Não só na carreira de Luiz Gonzaga, mas, na história do baião urbano, a sanfona tem uma marca indissociável da cultura nordestina. Esse instrumento tornou-se popular pela forma única como Luiz Gonzaga produzia seus arranjos, servindo de inspiração228. Fundamental na divulgação da música sertaneja, a sanfona, especificamente, a de oito baixos, famoso pé-de-bode foi “provavelmente, a sanfona de oito baixos foi trazida à região Sul do Brasil por intermédio de colonos alemães e italianos, durante o intenso processo migratório do séc. XIX”229. A sanfona de oito baixos adentrou a música brasileira com a migração italiana, por volta de 1875. Apesar das diferenciações, não existe entre o imponente arcodeon e a popular sanfona alguma diferenciação:

Acordeão é o nome chique do instrumento e sanfona é o nome brega. Quem toca com partitura ou quem toca em concertos gosta de ser chamado de acordeonista. Nós gostamos de ser chamados de sanfoneiros porque acho um nome que aproxima o instrumentista do povo. Onde tem sanfona o nordestino esquece a tristeza, principalmente aquele que é muito maltratado e massacrado pela nossa realidade, com a falta de água e de ajuda, falta de tudo. E o nordestino só consegue reverter

226 ELIAS, Nobert. Os Alemães. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.

227 Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. No meu pé de serra. Xote. 78 RPM. Victor 800495/A, 1946.

228 Sobre o assunto ver O Milagre de Santa Luzia. DVD (filme-documentário). Brasil, 2008. Direção: Sérgio Roizemblitz. Roteiro: Sergio Roizenblit. Elenco: Arlindo dos 8 Baixos, Bagre Fagundes, Camarão, Dino Rocha, , Elias Filho, Joquinha Gonzaga, Mário Zan, Oswaldinho do Acordeón, Patativa do Assaré, Pinto do Acordeon, Renato Borghetti, Sivuca, Thelmo de Freitas, Toninh Ferragutti. Produção: Marilia Alvarez. Fotografia: Rinaldo Martinucci, Sérgio Roizemblitz. Duração: 104 min. Disponível em: . Acesso em: 13 de março de 2020.

229 LESSA, Barbosa; CORTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p.59. 130

essa situação com a alegria da sanfona. Quem traz a alegria para o nordestino, em primeiro lugar, é a sanfona.230

Em 1939, a abertura escolhida para a abertura da Rádio Nacional era “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense. Nos anos 50, Asa Branca foi o prefixo inicial sonoro de várias emissoras de rádio nordestinas, ajudando a compor um repertório imaginário em torno do interior, devido ao seu prestígio e apego popular. O baião, maximizando processos modernizadores na construção da MPB, acabou legitimando uma das visões sobre a regionalidade nordestina, sendo a mais expressiva e estética referência.

230 DEL NERY, Angélica (Fotografias); TAUBKIN, Myrian (Projeto) et. al. Brasil da Sanfona. São Paulo: Myrian Taubkin Produções Artísticas, 2003. 131

4. Considerações finais

Luiz Gonzaga, como primeiro grande produto de massa da cultura nordestina, evidenciou um processo de sistematização de um aprendizado musical. Entre meados dos anos 40 até o fim dos anos 50, reinou absoluto como um dos nomes mais expressivos da cultura nordestina na era de ouro do rádio, ultrapassando em público e vendagens artistas nascidos e abraçados anteriormente pelo mercado fonográfico do Sudeste do país. Seu repertório, reconstruído a partir das suas memorizações e criatividade, fez de suas canções clássicos do folclore nordestino, surpreendendo a crítica musical especializada, diretores de emissoras e donos de gravadoras, despertando interesse pela música nordestina. O baião foi a expressão cultural que, diferente do cinema ou da literatura, colaborou para a sedimentação de uma estrutura de identificação regional, instaurando uma referência aos ambientes sertanejos, generalizando o imaginário em torno do cotidiano e do povo nordestino. Com a ação lúdica e representativa do baião, os artífices Teixeira, Dantas e o próprio Luiz reativaram procedimentos artísticos que ganharam contornos inéditos, diferentemente de momentos antepassados da temática nordestina na capital federal, obtendo um sucesso que perdurou além dos desafios do mercado e aceitação de outros públicos. No final da década de 1950, começou a entrar em decadência, evidenciado pela mudança de um quadro histórico onde a louvação do passado, da região Nordeste e das tradições já não serviam de base à produção de massa, sendo reanimado pelo movimento tropicalista nos anos 70, mesmo com as experimentações inovadoras no clássico Panis et Circenses. O modo de vida rural, apesar do inicial desinteresse da grande mídia pelos temas regionais, acabou fazendo da música nordestina um elemento de euforia da sociedade brasileira. Os circuitos culturais na capital da República tiveram olhares que reconstruíram o pensamento geral sobre a seca e trágica realidade do interior, tendo as plataformas comunicativas e os elementos de debates pelo louvor aos bens culturais nacionais, utilizados como recursos didáticos. No princípio da explosão, o próprio conceito de música regional foi modificado pelo baião urbano e ressignificado de Gonzaga, apresentado à sociedade carioca, encantada pelo rádio, ajudando na circulação, projeção e consagração do ritmo, contribuindo na sua aceitação e legitimidade do artista e do baião como gênero musical representativo, fazendo da migração massiva para o Sudeste brasileiro, da seca, das festas, das faunas e floras ou das penúrias sociais alguns objetos de celebração dançante do pertecimento identitário sertanejo e, de cunho geral, nordestino. 132

Essa dissertação busca, na relação entre o contexto histórico e a música, trazer uma contribuição acadêmica sobre algumas nuances da construção da música popular brasileira e o alvorecer do baião urbano. Através da arte de Luiz Gonzaga e análises de certas categorias culturais que auxiliaram na compreensão do dinamismo no discurso musical do baião e da forma como a mistura de certos elementos da paisagem rural nordestina com a modernidade urbana do Rio de Janeiro, a indústria cultural verificou e potencializou a possibilidade midiática e comercial da música regional. O percurso do trabalho exposto dialoga o seu processo de criação, produção e circulação radiofônicas com chancelas de referenciais de signo de resistência cultural nordestina como imaginários, identidades, sertão, performances. Na tentativa de elencar uma nova perspectiva ao processo de criação do baião gonzaguiano, diferente do aspecto puramente biográfico, a explosão do baião possui elementos que vão da linguagem mediante elementos simbólicos e até o discurso ligado às políticas, estéticas, e da representatividade social para se perdurar como construção da identidade sonora de Nordeste. A DANÇA DA MODA: LUIZ GONZAGA COMO MEDIADOR CULTURAL (1946 - 1954) pode induzir outros debates e produções na literatura acadêmica no aprofundamento dessa temática, buscando-se na trajetória artística de Luiz Gonzaga, de outro artista do gênero popular e no desenvolvimento do baião. Inúmeras fontes de pesquisa e diversas opções para a construção do conhecimento histórico, a partir de um marcador identitário, podem ser exploradas a partir de uma canção, um êxodo, uma memória afetiva instituidora de identidades e representatividades regionais. De forma inclusiva, a música gonzaguiana detém a importância possuir uma dinâmica cultural completamente diferente dos Turunas, de João Pernambuco ou do próprio Catulo. Todos eles sentiram o poder da exposição, do sucesso e da influência no mercado fonográfico, mas, Gonzaga, contratado com exclusividade pela Rádio Nacional, elevou a forma de utilizar o espaço privilegiado na mídia radiofônica, fixando, a partir de múltiplas tendências planejadas as temáticas regionalistas nordestinas. Seja no contexto folclórico, da saudade ou do cotidiano, os temas evocavam o Nordeste que, apesar sua aridez, construindo um imenso sertão, imaginado e apresentado à metrópole urbana como um lugar embebido de alegrias, encontrando no rádio o ambiente que possibilitou a edificação desse sertão, através do sentimento migrante em forma de poesia e da música que aparece livre das influências das capitais. Em todo caso, a produção do baião está ligada originalmente à tradição artesanal, sendo observado o campo de ação na sociedade do Rio nos anos 30/40 e o uso desse elemento musical, poético e estético na composição dos fatos históricos. 133

Ressalta-se que fenômeno Luiz Gonzaga também é fruto da ampla presença de migrantes de origem nordestina nos centros urbanos do Sudeste. A necessidade de relações de identificação com elementos culturais da vida na cidade grande e a ação comunicativa do rádio foram vitais e essenciais no início do discurso musical do baião, pois, essa forma de interação demonstrou artisticamente o viés da paisagem sonora rural nordestina adicionada aos elementos musicais e culturais do Rio de Janeiro, como a união do baião com alguns instrumentos choro carioca, como o cavaco, o violão ou o pandeiro. Mediante as trocas culturais e musicas, o impacto de todos esses processos de desterritorialização e reinvenções deu - ao que conhecemos como baião de Luiz Gonzaga – ares de gênero imutável no universo musical nacional. Como fala Nestor Garcia Canclini, esse tipo de produção “híbrida” não apenas comunga de elementos da cultura popular como se alimentou da cultura de massa, estabelecendo ligações entre o sertão do Araripe e o contexto nacional e internacional de modernidade. Nas oposições entre a tradição rural e o mundo urbano, o discurso sobre o Nordeste foi elevado como um signo identitário, antes prejudicado pelo preconceito em torno da indústria seca resultadas em saudades coletivas que evocavam as glórias do passado. Hobsbawm (1984) dialoga que as tradições se voltam ao passado e exercem poder simbólico na sociedade. Gonzaga chega ao século XXI para os artistas nordestinos das outras gerações que o seguiram como uma herança, por ter adentrado o sentido de preservação de uma tradição. Quando o contexto histórico é marcado por transformações amplas e rápidas, são inventadas novas tradições que, utilizadas em defesa da restauração do passado, acabam legitimando ações e repetições, buscando formalização e ritualização. Tais movimentos de defesa e restauração das tradições, normalmente são protagonizados por intelectuais e culminam com a instauração de “tradições inventadas” já que não é necessário nem recuperar, nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam. No caso do baião e da cultura popular nordestina, não encontrou no Rio de Janeiro e em São Paulo (cidades que canalizam os anseios de modernidade da Nação) sua expressão mais autêntica, porém, a mais dinâmica e aceitável pelo mercado fonográfico. Ao contrário do que ocorreu no Nordeste, onde várias emissoras abriram sua programação para transmissão da cantoria original, as rádios da região Sudeste adotaram programas com temas sobre o folclore nordestino, no mesmo contexto de louvor de bens culturais nacionais, o mercado de bens culturais agiu fortemente na produção local, direcionada à audiência de massa, exibindo o regional ao nacional e o nacional ao regional, o que não desmerece a arte única e genial como a de Luiz Gonzaga. 134

Deve se levar em consideração a vinculação da explosão do sanfoneiro com a popularização do baião e os centros urbanos. Por fim, cabe apontar que a discussão de Fernando Catroga lembra bastante as elucubrações de Manoel Luiz Salgado Guimarães, quando este dimensionava para a questão da “memória disciplinar” que muitas vezes a história da historiografia vinha a cimentar, a fim de legitimar suas práticas e conquistar seus postos de poder (GUIMARÃES, 2004). A historiografia, e mais ainda a história da historiografia, não está livre da memória, não está isenta dos mitos de origem e das invenções de tradições. Em tempos de institucionalização do campo, quando certa versão triunfa, no momento em que narrativas são criadas para serem aceitas e outras tantas para serem afastadas, é preciso suspeitar da história e dos historiadores. Sendo assim, em tom de alerta, e mais uma vez aproximando história e memória, ficam as perguntas do historiador português: “Quem recorda o quê? E por quê? Que versão do passado se registra e se preserva? O que é que ficou esquecido?” (CATROGA 2015, p. 76). A música nordestina foi apresentada por uma série de composições e outros ritmos antes do aparecimento do baião urbano. O imaginário do sertão, sua resistência cultural, o esquecimento político da região, o sofrimento e saudade foram temáticas que colocam imagens discursivas da região nordestina. Sendo assim, a restauração, preservação e manutenção do patrimônio cultural dessa grande carga de simbolismos, individual e coletivo, que permeiam o crescimento urbano das mesmas ao serem representadas socialmente pelos sujeitos que participam deste processo precisam sempre estar em debate. A mediação cultural existente na fusão simbólica entre passado e presente, mesmo num fole de sanfona, partir de elementos sociais, culturais, ideológicos e psicológicos do grupo nos quais são significativos para a formação de sua identidade são elementos do patrimônio cultural, pois fomentam a conceitos sobre a identidade regional. Isso é um aspecto que legitima preservação e aprofundamento que recompõe e traduz certas perdas oriundas dos atos de esquecimento e degradação sofridos por alguns bens coletivos. Nesse caso, bens oriundos do Nordeste. O Nordeste de Luiz Gonzaga.

135

Anexo

DECRETO-LEI Nº 2.073, DE 8 DE MARÇO DE 1940.

Incorpora ao patrimônio da União a Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande e as empresas a ela filiadas.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, e

CONSIDERANDO que todo o acervo da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e empresas a ela filiadas teve origem direta ou indireta em operações de crédito realizadas no estrangeiro e em contribuições dos cofres públicos do Brasil;

CONSIDERANDO que o patrimônio atual da empresa excluída a inversão do produto de "debentures" emitidos no estrangeiro, só se pode ter formado com receitas e lucros sonegados, de vez que as linhas férreas sempre foram deficitárias, tanto que teve o Governo de arcar com contribuições para garantia de juros do capital nelas invertido;

CONSIDERANDO que a Companhia Estrada de Ferro S. Paulo-Rio Grande deve ao Patrimônio Nacional importância superior a libras 3.000.000.00, que recebeu a título de adiantamento para ser deduzida do excesso da receita bruta;

CONSIDERANDO que foi com tais recursos, provindo do Tesouro, que a mesma empresa adquiriu ações de outras sociedades que fazem parte do seu acervo;

CONSIDERANDO que têm sido infrutíferos os esforços empregados pelo Govêrno para entender-se com os portadores de obrigações da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, uns desconhecidos e ausentes e outros, na sua grande maioria, já agora substituídos por especuladores e intermediários que adquiriram títulos a baixo grego, afim de obterem lucros com sacrifício da economia nacional;

CONSIDERANDO que em assembléia geral realizada em 31 de março de 1937, cuja ata foi publicada no Diário Oficial de 1º de abril do mesmo ano, resolveu a empresa fazer dação em pagamento de todo o seu ativo aos obrigacionistas, reservando, porém, percentagens para os acionistas, o que não se justifica de vez que os prejuízos acumulados não só diminuiram consideravelmente o valor dos "debentures" como também anularam o valor das ações;

CONSIDERANDO que essas ações não representam capital subscrito e sim bonificação distribuída aos incorporadores pelo valor das concessões obtidas; 136

CONSIDERANDO que o capital efetivamente aplicado no Brasil péla Companhia, exceção feita das contribuições da União, se reduz a Frs. 282.178.500, resultado da emissão de "debentures" de 500 francos cada um, dos quais 242.175 já foram resgatados com os recursos fornecidos pelo Tesouro Nacional no serviço do pagamento das garantias de juros;

CONSIDERANDO, portanto, que do capital realmente aplicado no Brasil ainda restam por pagar Frs. 161.091.000 relativos a.322.182 "debentures" ora em circulação;

CONSIDERANDO que é de relevante interesse para a economia do país e, portanto, de utilidade pública, a manutenção e desenvolvimento das atividades de tais empresas, sob a orientação e responsabilidade do Govêrno;

CONSIDERANDO que se impõe desde logo a direção dessas empresas por agentes do poder público, para que se resguarda seu patrimônio e se assegure o direito dos credores; Considerando que o valor de 150$0 (cento e cincoenta mil réis) atribuido a cada debenture é superior ao da sua cotação atual:

DECRETA:

Art. 1º Ficam incorporados ao Patrimônio da União: toda a rêde ferroviária de propriedade da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio a) Grande ou a ela arrendada: b) todo o acervo das Sociedades "A Noite", "Rio Editora" e "Rádio Nacional".

as terras situadas nos Estados de Paraná e Santa Catarina, pertencentes à referida c) Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande.

Parágrafo único. Ficam igualmente incorporadas ao Patrimônio Nacional todas as entidades ou empresas dependentes das enumeradas nas alíneas a e b ou a elas financeiramente subordinadas.

Art. 2º Ficam rescindidos os contratos existentes entre a União e a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, não tendo esta direito a nenhuma reclamação por atraso ou falta de pagamento de garantia dos juros.

Art. 3º Como indenização dos atos acima enumerados, o Ministério da Fazenda depositará no Banco do Brasil a importância de 48.300:000$0 (quarenta e oito mil e trezentos contos de réis), em apólices de juros de 5% ao ano, ao par, destinada ao resgate das debentures - á razão de 150$0 (cento e cincoenta mil réis), cada um. 137

Art. 4º A quantia a que se refere o artigo anterior só poderá, ser levantada pela Companhia Estrada de Ferro S. Paulo-Rio Grande, de acôrdo com o representante dos debenturistas e mediante plena e irrevogavel quitação à únião.

Art. 5º Para tomar posse dos bens incorporados ao Patrimônio Nacional como estabelece o art. 1º e seu parágrafo único, nomeará o Govêrno um Superintendente, cuja ação se regerá pelas instruções que lhe são dadas pelos Ministros da Fazenda e da Viação.

Art. 6º Revogam-se as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, em 8 de março de 1940; 119º da Independência e 52º da República.

GETÚLIO VARGAS João de Mendonça Lima Francisco Campos Arthur de Souza Costa

138

5. Referências Bibliográficas

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3. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. No meu pé de serra. Xote. RCA Victor, 1946.

4. Humberto Teixeira. Baião de São Sebastião. Baião. Odeon, 1973.

5. Luiz Gonzaga. Vira e Mexe. Xamego. RCA Victor (78 rpm), 1941.

6. Luiz Gonzaga. Pé de Serra. Xamego. RCA Victor (78 rpm), 1942.

7. Luiz Gonzaga e Francisco Reis. Véspera de São João. Mazurca. RCA Victor, 1941.

8. Luiz Gonzaga. Numa Serenata. Valsa. RCA Victor. Lado b, 1941.

9. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Baião. Baião. RCA Victor, 1949.

10. Raul Torres. A moda da Mula Preta. Moda. RCA Victor, 1948.

11. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Asa Branca. Toada. RCA Victor, 1947.

12. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Respeita Januário. Baião. RCA Victor, 1950.

13. Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Riacho do Navio. Xote. RCA Victor 80.1518b, 78 RPM, 1955.

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