O Ato Mais Entreguista Da História Foi O Leilão
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Outubro 2011 Revista Adusp ENTREVISTA ILDO SAUER “O ATO MAIS ENTREG U ISTA DA HISTÓRIA FOI O LEILÃO DE P ETRÓLEO P ARA IKE E ” Daniel Garcia 6 Revista Adusp Outubro 2011 O professor Ildo Luís Sauer, diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE- USP), se diz um “fruto do programa nuclear brasileiro”, pois, quando estudante, o regime militar — interessado em formar quadros para tocar as dezenas de usinas que pretendia construir no país após o acordo com a Alemanha — lhe concedeu bolsa de iniciação científica, “bolsa para fazer o mestrado e o doutorado em engenharia nuclear e outras coisas mais”. Ao longo de sua trajetória acadêmica, porém, Sauer convenceu-se de que a energia nuclear não convém ao Brasil, e passou a dedicar-se mais à energia elétrica e ao petróleo. Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras entre 2003 e 2007, período que cobriu o primeiro mandato do presidente Lula e o início do segundo, e no qual tinha a expectativa de amplas mudanças na área de energia e petróleo. Orgulha-se de haver participado das decisões que levaram à descoberta das jazidas do Pré-Sal. Mas frustrou-se ao constatar que, ao invés da reforma que ele e o físico Pinguelli Rosa propuseram a pedido do próprio Lula, o governo tomou medidas que fortaleciam os agentes privados, em detrimento das empresas públicas e da sociedade em geral. Nas páginas a seguir Sauer desfecha contundentes ataques às políticas de energia do governo, com destaque para a continuidade do modelo do setor elétrico herdado de Fernando Henrique Cardoso e — em especial — para a realização do leilão de “áreas de risco” da franja do Pré-Sal que acabaram por ser arrematadas por Eike Batista e sua OGX, fazendo desse empresário um dos homens mais ricos do mundo. O diretor do IEE não mede palavras ao opinar sobre o que ocorreu: “O ato mais entreguista da história brasileira, em termos econômicos. Pior, foi dos processos de acumulação primitiva mais extraordinários da história do capitalismo mundial. Alguém sai do nada e em três anos tem uma fortuna de bilhões de dólares”. Quanto à contestada Belo Monte, Sauer, diferentemente de uma parte dos críticos, considera que a usina preenche todos os requisitos técnicos de operação. O problema, afirma incisivamente, “não é técnico, não é econômico, o problema lá é simplesmente político”, porque, em função dos erros do governo e da falta de planejamento, “ressuscitou-se um projeto longamente gestado pelo governo militar”, e assim “de certa forma um governo democrático e popular se serve da espada criada pelos militares para cravá-la no peito dos índios e camponeses, com métodos que não deixam nada a dever à ditadura de então, em relação à forma como a usina foi feita, de repente”. Procuradas pela reportagem, as assessorias de comunicação da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula informaram que eles não comentariam as declarações do professor. A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar e Thaís Carrança e ao repórter-fotográfico Daniel Garcia 7 Outubro 2011 Revista Adusp Revista Adusp. Recentemente proclamadas pelo governo Collor e de sua assessora jurídica, Ere- assistimos a algo impensável em do neoliberalismo, então não deixa nice Guerra — dizia-se claramen- outras épocas: o Procon-SP, per- de ser uma fina ironia que agora te que o novo modelo não é fruto tencente ao governo estadual do eles próprios se revoltem, os cria- de uma decisão do governo e, sim, PSDB, solicitou à Agência Nacio- dores contra suas criaturas. Mas uma agenda negociada com os agen- nal de Energia Elétrica (ANEEL) não podemos deixar de perceber tes; que o governo só se manteve intervenção na AES-Eletropaulo, também que essa criatura foi trata- no papel de árbitro, quando havia uma empresa privatizada pelos pró- da a pão-de-ló e com muito carinho divergências. Negociada entre os prios tucanos na década de 1990. O pelos oito anos de governo Lula e mesmos operadores de negócios pedido decorria da constatação de o primeiro ano do governo Dilma que levaram ao racionamento de que a AES mostrou-se totalmente Rousseff. A ocasião para reformu- 2001 e aos apagões. incapaz de restaurar a energia em lar todo esse modelo era 2003. Então não surpreende que dez diversos bairros de São Paulo, dias O governo Lula, em parte, nas- anos depois, depois que se esgotou o depois de uma tempestade que der- ceu da derrocada do neoliberalismo potencial de sobra de energia, devido rubou o abastecimento. Mas a res- consolidada pelo racionamento de à queda do consumo de mais de 20% posta do diretor da ANEEL tam- energia elétrica de 2001. Os múl- ocorrida em 2001-2002, não se colo- bém foi surpreendente: ele ironizou tiplos apagões, “apaguinhos” e o cou no lugar a mudança do espírito a solicitação, dizendo que se tivesse racionamento de uma certa forma da regulação, para que novamente de intervir em uma concessionária foram a pá de cal. Então, dentro do se passasse a ter comando e controle, teria de intervir em todas, tais as Instituto de Cidadania, dentro do que as empresas fossem obrigadas a deficiências existentes. Como você Partido dos Trabalhadores, gestou- fazer um planejamento de médio e avalia essa situação de apagões, de se uma proposta muito abrangente, longo prazo, contratar toda a deman- desrespeito à lei e de incertezas no que daria conta da reconstrução do da, fazer a manutenção. tocante às questões que envolvem a setor elétrico brasileiro. Aliás, esse O contrato de concessão no distribuição e o consumo de energia é o título de um livro cujos prin- Brasil tem os dois pontos que mais elétrica no país? Lembrando que o cipais autores somos nós e o pro- favorecem ao empreendedor, ao próprio campus do Butantã da USP fessor Pinguelli Rosa, uma equipe concessionário. Se na Inglaterra, tem sofrido apagões. aqui da USP, uma equipe da UFRJ, no auge do neoliberalismo, criou-se ILDO SAUER. A própria per- feito a pedido do então candidato, a tarifa-preço, incentivada, que só gunta já é uma resposta e serve pa- depois eleito presidente, e da sua periodicamente seria revista, com ra reafirmar a perplexidade diante ministra de Minas e Energia, Dilma regulação mão-leve, no Brasil man- do relatado e o grau de irresponsa- Rousseff. Ficou pronto no final de teve-se o preço-teto junto com o bilidade de todos os últimos gover- 2002 [A reconstrução do setor elétri- equilíbrio econômico financeiro. nos. Nos anos 1990, em que vende- co brasileiro, Campo Grande: Paz Toda vez que há uma ameaça de ram a pílula mágica da privatização e Terra, 2003]. O que causa perple- perda, devido à má gestão, os con- como saída e cura para todos os xidade é que, ainda que em grande sumidores são chamados a pagar. males, a promessa então era au- parte a proposta lá consolidada te- Então se o concessionário no Brasil mento da qualidade e redução do ria reconstruído o setor elétrico, o tem a seu favor os contratos feitos, preço. Hoje, a qualidade está com- fato é que a lenta, gradual, porém já de 1995 até 2001-2, tudo a seu pletamente deteriorada e o Brasil, contínua metamorfose no seio do favor, 2003 era a hora de fazer uma para os consumidores cativos, tem governo, a partir de 2003, meta- profunda intervenção regulatória, a tarifa mais cara do mundo. Isso é morfoseou aquela proposta numa alterar aquilo que deu errado. A uma tragédia e causa perplexidade. outra: aquela onde, declaradamen- proposta estava feita, havia ambien- Mais ainda, o regime tucano foi que te — em apresentações públicas da te político para fazê-lo e, no entan- deu início e continuou as propostas então ministra de Minas e Energia to, em troca de manter o ambiente 8 Revista Adusp Outubro 2011 com os empresários e investidores Daniel Garcia privados, preferiu-se não ressusci- “As empresas públicas foram tar os instrumentos públicos, usar descapitalizadas com a mão da Eletrobras. As empresas públicas foram criação do mercado livre. descapitalizadas com a criação do Os grandes consumidores, mercado livre, no qual 600 em- presários e cento e poucas empre- que em 2005 já consumiam sas comercializadoras compravam 8 mil MW médios, 25% do energia a 20% do custo e a reven- diam a preço cheio para os con- consumo de eletricidade sumidores finais e a meio preço do Brasil, chegaram a 12 para os grandes consumidores, di- lapidando-se o potencial de capital mil MW logo em 2008, das empresas públicas, que eram comprados por R$ 18 a R$ as principais geradoras. As prin- cipais pontas da geração eram as 20 o MW/hora, quando a empresas públicas, principalmente energia custava às estatais, as ligadas à Eletrobras e às estatais do Rio Grande do Sul, mas prin- em média, R$ 100 ” cipalmente aqui do Paraná, Minas Gerais e São Paulo. nunca, jamais poderia ser trans- em torno de R$ 20 bilhões, nos oito Revista Adusp. Pode citar algu- formado em preço. O governo Lu- anos do governo Lula, favorecendo mas? la, através da ministra de Minas agentes, comercializadores e gran- ILDO. Cesp, Copel, Cemig, mas e Energia, converteu isto, Custo des consumidores, que não a re- principalmente Eletronorte e Ele- Marginal de Operação (CMO), em passaram à redução do preço dos trobras, Furnas, Chesf e Eletrosul, Preço de Liquidação de Diferenças seus produtos, só aumentaram seus e a CGTEE do Rio Grande do Sul, (PLD), que servia como que um lucros. Isso obviamente gerou um que são federais. O governo Lu- preço spot, que — como houvera ambiente de muita popularidade da la manteve a descontratação, de um racionamento e a demanda era ministra junto a esses centros em- maneira que a energia ficou sem muito menor que a oferta — caiu presariais, tanto que depois ela foi contratos de venda.