PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

WAGNER WILSON DEIRÓ GUNDIM

A NECESSÁRIA LIMITAÇÃO DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO BRASIL: Hermenêutica filosófica gadameriana e atuação do Supremo Tribunal Federal

Doutorado em Direito

SÃO PAULO

2020

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

WAGNER WILSON DEIRÓ GUNDIM

A NECESSÁRIA LIMITAÇÃO DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO BRASIL: Hermenêutica filosófica gadameriana e atuação do Supremo Tribunal Federal

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia do Direito, sob orientação do Prof. Dr. Márcio Pugliesi.

SÃO PAULO 2020

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Gundim, Wagner Wilson Deiró A NECESSÁRIA LIMITAÇÃO DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO BRASIL: Hermenêutica filosófica gadameriana e atuação do Supremo Tribunal Federal / Wagner Wilson Deiró Gundim. -- São Paulo: [s.n.], 2020. 253p. ; cm.

Orientador: Márcio Pugliesi. Tese (Doutorado em Direito)-- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, 2020.

1. Diálogo Hermenêutico. 2. Fusão de Horizontes. 3. Gadamer. 4. Justiça Constitucional. I. Pugliesi, Márcio. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito. III. Título.

CDD

Banca Examinadora:

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 (Processo n.º 88887.161461/2017-00) This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior– Brasil (CAPES)– Finance Code 001 (Process n.º 88887.161461/2017-00)

AGRADECIMENTOS

Costuma-se dizer que a elaboração de uma tese de doutorado é uma tarefa eminentemente individual, em que o autor, a partir de seu intelecto e de forma introspectiva, busca responder os problemas que embasam o seu trabalho. Entretanto, não parece ser essa a definição mais adequada, uma vez que o processo de elaboração, pesquisa e redação da tese envolve uma árdua caminhada, em que variadas pessoas acabam por contribuir direta ou indiretamente para a realização dos trabalhos. Dessa forma, ainda que os erros do presente trabalho sejam de minha exclusiva responsabilidade, a pesquisa aqui apresentada não se tornaria possível sem a participação de pessoas muito especiais, às quais passo a agradecer. Em primeiro lugar, agradeço a Deus, por sua benevolência, e, principalmente, por sua fidelidade não apenas por me agraciar com o dom da vida, mas por me mostrar a cada dia o tamanho da sua misericórdia e cuidado, comigo e com minha família. A Laura, o amor e luz da minha vida, por me fazer acreditar todos os dias que era possível finalizar este trabalho, e por sempre me lembrar o quão felizardo sou por tê-la por todos os dias da minha vida. Aos meus pais, José Wilson e Ana Rita, e sogros, Soares Silva e Lindinalva Soares, por serem a base da minha existência e nutrirem por mim um amor inexplicável que só há de pai para filho. A todos os professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com os quais tive o privilégio de conviver e aprender durante esses pouco mais de três anos de pesquisa, em especial ao meu orientador, professor Márcio Pugliesi, para quem não existem palavras suficientes para agradecer pela acolhida como orientando, e também pelas valorosas lições que permitiram o aprimoramento do presente trabalho. Ainda, às professoras Maria Garcia e Clarice von Oertzen de Araújo, e aos professores José Carlos Francisco e Gustavo Ferraz de Campos Monaco, meu agradecimento pelas valiosas contribuições trazidas durante a avaliação do trabalho. Agradeço ainda ao amigo Felice Cardinale, responsável por meu ingresso no programa de Doutorado a partir de suas aulas de italiano. Ainda, não poderia esquecer de agradecer aos sempre presentes amigos e colegas de trajetória acadêmica: Ali Smaili, Gianfranco Faggin, Arthur Bezerra Júnior, Thiago Pellegrini Valverde, Carla Liguori, Denise Vital, Maria José, Tania e Dan Levy.

Nós nos aproximamos mais da linguagem quando pensamos no diálogo. Para que um diálogo aconteça, tudo precisa de afinar. Quando o companheiro de diálogo não nos acompanha e não vai além de sua resposta, mas só tem em vista, por exemplo, com que meios de contra argumentação ele pode limitar o que foi dito ou mesmo com que argumentações lógicas ele pode estabelecer uma refutação, não há diálogo algum — um diálogo frutífero é um diálogo no qual oferecer e escolher, acolher e oferecer conduzem, por fim, a algo que se mostra como um sítio comum com o qual estamos familiarizados e no qual nos movimentar uns com os outros. (Gadamer, 2007)

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo propor a adoção da hermenêutica filosófica de Gadamer como fórmula de aprimoramento da atuação do Supremo Tribunal Federal enquanto principal órgão de salvaguarda da prevalência das normas constitucionais, robustecendo o espírito trazido pela Constituição Federal, eis que sua atuação, em situações particulares, tem levantado dúvidas a respeito de um adequado exercício interpretativo condizente com o espírito constitucional. Adota como metodologia científica os métodos dedutivo e indutivo, uma vez que as análises recaem tanto na estrutura teórico-normativa dos institutos analisados, como sua aplicação no campo prático, além do método hipotético-dialético, já que a partir da tese e antítese dos temas discutidos propõe uma nova síntese (visão) sobre a necessidade de aprimoramento da Justiça Constitucional no Brasil. Para melhor compreensão do tema, analisa inicialmente os contornos teóricos da Justiça Constitucional, abordando sua definição, suas funções, os modelos existentes e sua legitimidade a partir da fórmula democrática para, na sequência, tratar especificamente sobre a evolução e atuação do Supremo Tribunal Federal enquanto órgão máximo do exercício da justiça constitucional. Por conseguinte, visando a dar uma perspectiva prática da problemática levantada, caminha para uma análise de recentes julgados do Supremo Tribunal Federal que, aparentemente, demonstram a tensão entre o exercício hermenêutico constitucionalmente adequado e possíveis decisões subjetivistas no momento da tomada da decisão, tais como a decisão que possibilitou a antecipação dos efeitos do trânsito em julgado e a prisão após decisão condenatória confirmatória proferida por órgão colegiado, a concessão de eficácia erga omnes às decisões proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade, nulificando a tarefa resolutiva do Senado Federal, bem como as decisões que, respectivamente, restringiram a imunidade constitucional garantida a deputados e senadores e criaram uma nova tese a respeito da limitação ao exercício de cargos na linha sucessória da Presidência da República por pessoas que estejam sendo investigadas perante o Supremo. Ainda, analisa as principais correntes a respeito da fundamentação da intepretação judicial, tais como as visões objetivistas e subjetivistas do ato de interpretar, recaindo sobre as teorias de Hans Kelsen, Herbert Hart e Carl Schmitt, bem como as teorias argumentativas, como a de Robert Alexy. Investiga, no tópico final, a hermenêutica filosófica gadameriana e aponta suas principais teorias para o fim de, em linhas conclusivas, sugerir a adoção da hermenêutica filosófica dialógica, a qual mescla a filosofia de Gadamer e o instituto do diálogo entre juízes como importante instrumento no aprimoramento da atuação do Supremo Tribunal Federal e robustecimento de sua atuação como órgão essencial no contexto democrático do mundo contemporâneo.

Palavras-chave: Diálogo Hermenêutico. Fusão de Horizontes. Gadamer. Hermenêutica Filosófica. Hermenêutica Filosófica Dialógica. Justiça Constitucional. Supremo Tribunal Federal.

ABSTRACT

This study aims to propose the adoption of Gadamer's philosophical hermeneutics as a formula to improve the performance of the Federal Supreme Court as the main body to safeguard the prevalence of constitutional norms, strengthening the spirit brought by the Federal Constitution. It adopts deductive and inductive methods as its scientific methodology, since the analyses fall as much on the theoretical-normative structure of the analyzed institutes as their application in the practical field, in addition to the hypothetical-dialectic method, since based on the thesis and antithesis of the themes discussed it proposes a new synthesis (vision) on the need to improve Constitutional Justice in . To better understand the theme, it initially analyzes the theoretical contours of Constitutional Justice, approaching its definition, its functions, the existing models and its legitimacy from the democratic formula to, in the sequence, deal specifically with the evolution and performance of the Supreme Court as the highest body in the exercise of constitutional justice. Therefore, in order to give a practical perspective of the problem raised, it moves towards an analysis of recent trials of the Supreme Court, which apparently demonstrate the tension between the hermeneutical exercise constitutionally appropriate and possible subjectivist decisions at the time of making the decision, such as the decision that made possible the anticipation of the effects of the res judicata and imprisonment after a confirmatory decision issued by a collegiate body, the granting of erga omnes effectiveness to the decisions rendered in the diffuse control of constitutionality, nullifying the resolutive task of the Federal Senate, as well as the decisions that, respectively, restricted the constitutional immunity guaranteed to deputies and senators and created a new thesis regarding the limitation to the exercise of positions in the line of succession of the Presidency of the Republic by persons being investigated before the Supreme Court. It also analyzes the main currents regarding the basis of judicial interpretation, such as the objective and subjective views of the act of interpreting, focusing on the theories of Hans Kelsen, Herbert Hart and Carl Schmitt, as well as argumentative theories, such as that of Robert Alexy. He investigates, in the final topic, the Gadamerian philosophical hermeneutics and points out its main theories in order to suggest, in conclusive lines, the adoption of the dialogical philosophical hermeneutics, which mixes Gadamer's philosophy and the institute of dialogue between judges as an important instrument in the improvement of the performance of the Supreme Court and the strengthening of its performance as an essential organ in the democratic context of the contemporary world.

Keywords: Hermeneutic Dialogue. Fusion of Horizons. Gadamer. Philosophical Hermeneutics. Philosophical Hermeneutics Dialogic. Constitutional Justice. Federal Supreme Court.

RIASSUNTO

Questo studio ripropone di proporre l'adozione dell'ermeneutica filosofica di Gadamer come formula per migliorare le prestazioni del Tribunale Supremo Federale come organo principale per salvaguardare il prevalere delle norme costituzionali, rafforzando lo spirito portato dalla Costituzione Federale. Adotta come metodologia scientifica metodi deduttivi e induttivi, poiché le analisi ricadono tanto sulla struttura teorico-normativa degli istituti analizzati quanto sulla loro applicazione in campo pratico, oltre al metodo ipotetico-dialettico, poiché sulla base della tesi e dell'antitesi dei temi trattati propone una nuova sintesi (visione) sulla necessità di migliorare la giustizia costituzionale in Brasile. Per meglio comprendere il tema, analizza inizialmente i contorni teorici della Giustizia Costituzionale, avvicinandosi alla sua definizione, alle sue funzioni, ai modelli esistenti e alla sua legittimità a partire dalla formula democratica per affrontare, nella sequenza, in modo specifico l'evoluzione e il funzionamento della Corte Suprema come organo supremo nell'esercizio della giustizia costituzionale. Pertanto, per dare una prospettiva concreta del problema sollevato, si muove verso un'analisi dei recenti processi della Corte di Cassazione, che apparentemente dimostrano la tensione tra l'esercizio ermeneutico costituzionalmente appropriato e le possibili decisioni soggettiviste al momento della decisione, come quella che ha reso possibile l'anticipazione degli effetti del transito sul processo e sulla detenzione dopo una decisione di conferma emessa da un organo collegiale, la concessione di efficacia erga omnes alle decisioni rese nel controllo diffuso della costituzionalità, annullando il risoluto compito del Senato federale, nonché le decisioni che, rispettivamente, limitavano l'immunità costituzionale garantita a deputati e senatori e creavano una nuova tesi sulla limitazione all'esercizio di incarichi nella linea di successione della Presidenza della Repubblica da parte di persone indagate davanti alla Corte suprema. Analizza inoltre le principali correnti che riguardano le basi dell'interpretazione giudiziaria, come le opinioni oggettive e soggettive dell'atto interpretativo, concentrandosi sulle teorie di Hans Kelsen, Herbert Hart e Carl Schmitt, nonché sulle teorie argomentative, come quella di Robert Alexy. Egli indaga, nel tema finale, l'ermeneutica filosofica gadameriana e ne indica le principali teorie per suggerire, in linea conclusiva, l'adozione dell'ermeneutica filosofica dialogica, che mescola la filosofia di Gadamer e l'istituto del dialogo tra giudici come importante strumento per il miglioramento dell'operato della Corte Suprema e il rafforzamento del suo operato come organo essenziale nel contesto democratico del mondo contemporaneo.

Parole chiave: Dialogo ermeneutico. Fusione di Orizzonti. Gadamer. Ermeneutica filosofica. Ermeneutica filosofica dialogica. Giustizia costituzionale. Tribunale Supremo Federale.

LISTA DE ABREVIATURAS / SIGLAS

ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADO Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental AP Ação Penal ART. Artigo CBF Confederação Brasileira de Futebol CD Câmara dos Deputados CF Constituição Federal CNTS Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde EC Emenda Constitucional FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo HC Habeas Corpus ICMS Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços MPE Ministério Público Estadual MPU Ministério Público da União MS Mandado de Segurança OAB Ordem dos Advogados do Brasil PEC Proposta de Emenda Constitucional SF Senado Federal STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TJ Tribunal de Justiça TRFs Tribunais Regionais Federais

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12

CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL ..... 19

1.1 Formação e Modelos da Teoria da Justiça Constitucional ...... 22

1.2 Funções da Justiça Constitucional ...... 30

1.3 O Problema da Legitimidade da Justiça Constitucional: Caráter Político das Cortes Constitucionais? ...... 35

1.4 Função Interpretativa da Justiça Constitucional: Superação do Legislador Negativo x Limites Interpretativos ...... 47

1.5 Justiça Constitucional no Brasil: Supremo Tribunal Federal e sua Atuação Enquanto Corte Constitucional ...... 56

CAPÍTULO 2 APLICAÇÃO PRÁTICA DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO BRASIL: HERMENÊUTICA JURÍDICA X DISCRICIONARIEDADE INTERPRETATIVA (SOLIPSISMO) ...... 61

2.1 Eficácia Erga Omnes das Decisões Prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal em Sede de Controle Difuso de Constitucionalidade: Esvaziamento da Atuação do Senado Federal...... 70

2.2 Flexibilização dos Efeitos do Trânsito em Julgado: Possibilidade de Prisão Após Decisão Condenatória por Órgão Colegiado de Segunda Instância ...... 81

2.3 A Restrição da Garantia Constitucional do Foro por Prerrogativa da Função de Senadores e Deputados ...... 96

2.4 Restrição de Acesso aos Cargos de Linha Sucessória da Presidência da República a Réus em Ação Penal: A Nova Compreensão Trazida nos Autos da ADPF 402 ...... 105

2.5 Condenação Criminal e Perda do Mandato Parlamentar: Quem Detém Competência para Cassar o Mandato de Parlamentares? ...... 113

CAPÍTULO 3 A PROBLEMÁTICA DA INTERPRETAÇÃO: ENTRE O OBJETIVISMO, O SUBJETIVISMO E A TÓPICA ARGUMENTATIVA DA CIÊNCIA JURÍDICA ...... 131

3.1 O Objetivismo Formalista Kelseniano e a Constituição: O Problema da Interpretação como Ato de Conhecimento e Ato de Vontade ...... 132

3.2 Positivismo Jurídico Metodológico: Os Impactos da Teoria de Herbert Hart para a Interpretação ...... 143

3.3 Decisionismo e Afirmação do Poder no Exercício Interpretativo: Carl Schmitt e o Subjetivismo ...... 148

3.4 Pós-Positivismo Jurídico: Robert Alexy e sua Teoria da Argumentação como Critério de Interpretação e Aplicação do Direito ...... 153

CAPÍTULO 4 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA GADAMERIANA: UM APORTE TEÓRICO ...... 165

4.1 O Giro Ontológico Linguístico: Guinada Interpretativa da Relação Sujeito x Objeto para Sujeito x Objeto x Sujeito ...... 169

4.2 A Importância do Processo de Pré-Compreensão, da Tradição e do Círculo Hermenêutico em Gadamer ...... 181

CAPÍTULO 5 A APLICAÇÃO DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA GADAMERIANA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ...... 190

5.1 O Princípio da História Efeitual, a Fusão de Horizontes e o Problema Hermenêutico da Aplicação ...... 190

5.2 A Linguisticidade como Fio Condutor da Hermenêutica Filosófica: A Nova Postura Assumida pelo Sujeito Interpretante ...... 201

5.3 Gadamer e Supremo: Proposta de Aprimoramento da Justiça Constitucional a Partir de uma Ideia de “Hermenêutica Filosófica Dialógica” ...... 206

CONCLUSÃO ...... 223

REFERÊNCIAS...... 233

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INTRODUÇÃO

Os importantes movimentos de ruptura promovidos no mundo no final do século XVII e durante os séculos XVIII e XIX (dentre eles as três grandes Revoluções – Inglesa, Americana e Francesa) modificaram o panorama mundial em variados aspectos, notadamente no que tange à organização do Estado e a necessária limitação do poder político sob sua responsabilidade. Nessa trilha, o regime democrático surge com o objetivo central de delimitar o poder estatal, mas também, cumulativamente, como mecanismo de consecução dos direitos humanos fundamentais. Os movimentos históricos, culturais, demográficos, políticos, jurídicos e até mesmo geográficos que impulsionaram o amadurecimento das democracias modernas e fizeram emergir as Constituições nacionais1, demonstram a necessidade de que os textos constitucionais estejam sempre alinhados à realidade social de seu povo, em determinado momento da história, de modo que realidade jurídica e realidade social confluam para fazer florescer a “força normativa da Constituição”, i.e, garantindo que o texto constitucional se apresente como um “fator real de poder” e não como uma simples folha de papel desprovida de eficácia e normatividade2. Essa visão sobre a necessidade de o texto constitucional estar em conformidade com os “fatores reais de poder” (a realidade histórica, social, política e até mesmo demográfica) sob a ótica democrática – afinal, sendo o poder de titularidade do povo o texto constitucional precisa refletir os valores do povo em determinado momento histórico – possibilitou um avanço considerável na tarefa interpretativa levada a cabo sobre o texto constitucional. Nesse quesito, a justiça constitucional assumiu função preponderante na salvaguarda do espírito que movimenta as Constituições nacionais, cabendo a esta a responsabilidade pela integridade e adequação dos valores insculpidos pela Constituição às novas conformações decorrentes do avanço da sociedade e dos fatores que condicionam e permitem a alteração do sentido normativo.

1 Eis aqui o denominado Constitucionalismo Moderno. Como lembra José Joaquim Gomes Canotilho, “[...] fala- se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 45-46). 2 Essa leitura, destaque-se, representa a união das teses de Ferdinand Lassalle, o qual defende a relação imbricada entre a Constituição escrita e os fatores reais de poder sob pena de ineficácia constitucional (LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 4. ed. : Líber Juris, 1998) e de Konrad Hesse, defensor da força ativa da constituição e da existência de uma “vontade constitucional” (HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991).

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Significa dizer que não se admite mais a visão do “juiz boca da lei”, mero reprodutor das normas jurídicas que já constam de forma expressa e positiva, como apregoado pela corrente do positivismo exegético. A interpretação que se exige nas democracias modernas tenciona a identificação não apenas do sentido, mas também do alcance do texto normativo, de modo que o resultado interpretativo corresponda à melhor conformação do quanto previsto pela Constituição. Até mesmo porque, destaque-se, as constituições modernas, não raras as vezes, estatuem princípios, direitos e garantias fundamentais de conteúdo aberto que exigem, quando da sua análise e efetivação pela Justiça Constitucional, uma investigação interpretativa mais elástica3. Essa expansão da atuação do Poder Judiciário acarretou no protagonismo judicial para a dominação de políticas públicas e de normas cuja competência caberia originariamente a outras esferas do Poder, ante a ineficiência ou mora para efetivação de direitos fundamentais, sociais e questões conexas de caráter essencial ao Estado Democrático de Direito; o que se denominou de judicialização da política4/ativismo judicial. Essa atuação de caráter mais concretista, visando a promover uma adequada conformação do texto constitucional à realidade social, bem como efetivar a salvaguarda dos direitos humanos fundamentais tidos por necessários, apresenta duas faces de uma mesma moeda. Explica-se: percebe-se que em algumas decisões a Justiça Constitucional no Brasil, notadamente o Supremo Tribunal, tem: a) de um lado, promovido, segundo algumas correntes, importantes adequações do texto constitucional para a efetivação de direitos humanos, como, por exemplo: 1) o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, como forma de efetivação do direito humano fundamental da dignidade humana, mas também da igualdade material (ADI 4.277 e ADPF 178); 2) a possibilidade de aborto nos casos de fetos anencefálicos, como forma de garantia da dignidade humana da gestante e de sua liberdade individual (ADPF 54); e 3) mais recentemente, decidiu pela criminalização da homofobia e transfobia, enquadrando atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais

3 Nem mesmo a clássica teoria da separação de Poderes prevista por Montesquieu permanece imune ao texto constitucional contemporâneo, haja vista que nos modelos atuais (no caso da Constituição brasileira de 1988) as atribuições entre cada um dos três poderes têm se mostrado consideravelmente tênue, como destacado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho desde 1995. (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Judiciário na Constituição de 1988: judicialização da política e politização da justiça. Revista da Procuradoria-Geral do Município de São Paulo, São Paulo, n. 1, p. 21-42, 1995). 4 Este processo de transferência do poder de decisão acerca de questões políticas de alta conotação do Poder Legislativo e do Poder Executivo para as Cortes e Juízes fora analisado inicialmente por Neal C. Tate, cujas lições possibilitaram o afunilamento do estudo da expansão do Poder Judiciário, notadamente em questões de cunho político relacionadas à atuação para fiscalização do processo democrático (TATE, C. Neal; TORBJÖRN, Vallinder. The global expansion of judicial power. Nova York: New York University Press, 1995).

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dentro da figura típica do crime de racismo (ADO 26 e MI 4.733); b) de outro, a Suprema Corte tem proferido algumas decisões que parecem demonstrar uma ausência de unidade institucional5-6 e de parâmetros objetivos no exercício interpretativo a respeito da Constituição, especialmente pela incompatibilidade do exercício interpretativo levado a cabo sobre os mesmos casos, como, por exemplo: 1) a decisão que envolve a possibilidade de utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no procedimento (ADI 3.510)7; 2) a decisão que possibilitou a antecipação dos efeitos do trânsito em julgado e permitiu a prisão de condenados após decisão confirmatória de segunda instância; 3) a restrição da garantia constitucional do foro por prerrogativa de função de senadores e deputados; e 4) a decisão que impôs o afastamento do então Presidente da Câmara dos Deputados (CD), . A dualidade referenciada alhures é mais que suficiente para demonstrar que, embora o Supremo Tribunal Federal (STF), na qualidade de órgão máximo da justiça constitucional no Brasil, seja órgão essencial no papel de defesa da Constituição (e outras funções que serão abordadas pontualmente a seguir), algumas de suas manifestações, no exercício hermenêutico, parecem destoar do espírito constitucional.

5 Nesse quesito, inclusive, Virgílio Afonso da Silva elucida a importância do diálogo constitucional e reconhece que o STF tem falhado em sua atuação como Corte ao indicar que: “O modelo brasileiro pode ser considerado como um modelo extremo de deliberação externa, o que o afasta definitivamente dos modelos continentais europeus. Especialmente devido à: > quase total ausência de trocas de argumentos entre os ministros: nos casos importantes, os ministros levam seus votos prontos para a sessão de julgamento e não estão ali para ouvir os argumentos de seus colegas de tribunal; > inexistência de unidade institucional e decisória: o Supremo Tribunal Federal não decide como instituição, mas como a soma dos votos individuais de seus ministros; > coerência de decisões claras, objetivas e que veiculem a opinião do tribunal: como reflexo da inexistência de unidade decisória, as decisões do Supremo Tribunal Federal são publicadas como uma soma, uma “colagem”, de decisões individuais; muitas vezes é extremamente difícil, a partir dessa colagem, desvendar qual foi a razão de decidir do tribunal em determinados casos, já que, mesmo os ministros que votaram em um mesmo sentido podem tê-lo feito por razões distintas (SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 250, ago. 2012, p. 217). 6 Wagner Gundim e Thiago Pellegrini Valverde, sob esse aspecto, parafraseando Conrado Hubner, analisam a atuação do STF como “onze ilhas”, dotadas de autossuficiência decisória e que, em algumas situações, mostram como a Corte adota, entre si, entendimentos isolados e até inconciliáveis (GUNDIM, Wagner Wilson Deiró; VALVERDE, Thiago Pellegrini. Justiça aristotélica e as onze ilhas do Supremo Tribunal Federal: a possibilidade de justiça no caso concreto. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 4, p. 389-412, out./dez. 2017). 7 A dificuldade de se vislumbrar qual foi o entendimento final da Corte nesse caso é também apontada por Oscar Vilhena Vieira ao assinalar que: “Hoje, o que temos é a somatória de 11 votos (que, em um grande número de casos, já se encontram redigidos antes da discussão em plenário) e não uma decisão da Corte, decorrente de uma robusta discussão entre os Ministros. Isto seria muito importante para que a integridade do Supremo, enquanto instituição colegiada, fosse mantida. Quando nos perguntamos qual a decisão do Supremo no caso das células- tronco, fica evidente que há uma multiplicidade de opiniões. Mesmo se pegarmos o voto do relator, que foi muito além da questio iuris submetida ao Tribunal, o que dali foi aceito pela maioria e o que não foi aceito? Quais são os efeitos precisos da decisão? Assim, as decisões precisam deixar de ser vistas como uma somatória aritmética de votos díspares [...]” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Rev. Direito GV [online], v. 4, n. 2, 2008, p. 459).

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Não significa dizer, contudo, que a solução para o indicado problema tenha de implicar na redução das tarefas da Corte Constitucional, ou mesmo em estabelecer amarras ao processo interpretativo. É preciso encontrar um caminho de aprimoramento da efetivação da justiça constitucional, de modo que a interpretação levada a cabo sobre o texto constitucional fuja de uma objetividade formalista, mas também não incida num subjetivismo (solipsismo judicial). Esta tese propõe, portanto: investigar a aplicabilidade do método hermenêutico gadameriano como mecanismo de aprimoramento do exercício da Justiça Constitucional pelo Tribunal Constitucional no Brasil que, hoje, aparentemente, tem atuado de forma ilimitada no exercício interpretativo do texto constitucional/legal. Ainda, a originalidade se deve à análise que se fará sobre a tensão entre o texto constitucional e as decisões do STF em temas de especial relevância, cujo recorte metodológico levou em consideração julgados em que se evidencia a tensão entre o decisionismo judicial e o adequado exercício hermenêutico interpretativo. Os problemas de pesquisa que fundamentam a tese se refletem nos seguintes questionamentos: a) A atuação do STF enquanto órgão máximo da justiça constitucional no Brasil tem respeitado os limites do texto constitucional interpretado? b) a hermenêutica filosófica gadameriana pode se apresentar como um mecanismo viável de limitação e direcionamento da atuação da Justiça Constitucional, conduzindo o intérprete à ideia hermenêutica mais adequada? As hipóteses que apoiam o presente estudo revelam que: com relação ao item a), há uma dualidade: 1) o exercício interpretativo levado a cabo pelo STF tem se dado nos exatos termos definidos pela Constituição Federal (CF), uma vez que, em decorrência da função inerente ao desenvolvimento da justiça constitucional, torna-se imperioso que, em algumas situações, o alcance interpretativo seja mais elástico, de modo a contemplar as novas realidades sociais decorrentes da evolução da sociedade. Em outras palavras, impor mecanismos de limitação da justiça constitucional inviabilizaria ou sufragaria o próprio objetivo central do Pretório Excelso, qual seja: a guarda da CF; 2) muito embora seja assegurada ao STF uma competência primordial na guarda da Constituição, o exercício interpretativo não pode ocorrer ao mero alvedrio e subjetivismo exacerbado do julgador, tornando-se necessária uma limitação, com critérios objetivos, da função interpretativa, guiando-a, de modo a alcançar e atingir, de forma eficaz, os preceitos garantidos pelo texto constitucional; quanto ao item b), as possíveis respostas são que: 1) em primeiro lugar, a adoção de uma matriz filosófica com diretrizes bem definidas e com uma visão da

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hermenêutica interpretativa sobre o “texto”, excluindo subjetividades decorrentes desta tarefa, seria extremamente salutar, opção em que se enquadraria os preceitos da teoria hermenêutica filosófica de Gadamer; 2) em sentido contrário, impor uma espécie de caminho para a interpretação poderia trazer aporias relacionadas à atuação da própria Justiça Constitucional, que seria limitada demasiadamente, por um critério supostamente objetivo, que não leva em consideração a apropriação de sentido decorrente do exercício interpretativo, i.e, que ao interpretar a norma o intérprete se apropria do seu sentido, mas, cumulativamente, utiliza-se dos jogos de linguagem que já possui (decorrentes da sua visão própria de mundo), o que não deixa de ser essencial à concretização do processo de aplicação do direito. Os objetivos perquiridos, por sua vez, desdobram-se em gerais e específicos. O geral busca investigar se o STF tem atuado de forma exacerbada/ilimitada e se a hermenêutica de Gadamer pode ser uma solução para o aprimoramento da justiça constitucional no País. Já os específicos se dividem em: a) os contornos teóricos da Justiça Constitucional, tais como definição, legitimidade, funções e modelos; b) abordar a atuação da Justiça Constitucional no Brasil, especialmente no âmbito do STF; c) verificar, de forma prática, alguns casos emblemáticos em que o Supremo aparentemente destoou das diretrizes constitucionais; d) a hermenêutica gadameriana e seus contornos principais, evidenciado o acerto (ou desacerto) de sua teoria como mecanismo viável de aprimoramento do exercício interpretativo pelo STF. A análise da evolução histórica e funções da Justiça Constitucional, e principalmente do desenvolvimento da hermenêutica, constituem-se como grandes bases para a estruturação deste trabalho, não excluindo, todavia, as necessárias e imprescindíveis lições da doutrina filosófica, constitucional e de teoria do estado pertinentes sobre a temática. A tese adota como marco teórico as lições defendidas por André Ramos Tavares, Hans-George Gadamer, Lenio Luiz Streck, Márcio Pugliesi, e como referencial teórico renomados autores tais como Celso Ribeiro Bastos, Ferreira, Peter Häberle e Ernildo Stein, cujas obras tratam sobre temas afetos à Justiça Constitucional, bem como hermenêutica jurídica, notadamente a de matriz gadameriana. O trabalho adota as metodologias dedutiva e indutiva, a partir das quais analisa o conteúdo geral normativo para uma análise particular, mas também se fundamenta na análise da práxis jurídica a partir de casos julgados pelo STF. Ainda, considerando o caráter dialógico da tese, também se adota o método dialético. A tese está estruturada em cinco capítulos. No primeiro, trata inicialmente os contornos gerais acerca da ideia da Justiça Constitucional e da atuação do Poder Jurisdicional no que tange à sua efetivação,

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especialmente no âmbito do STF. Na sequência, o estudo analisará a função ou funções – a depender da teoria que se adote – desempenhadas pelo “Tribunal Constitucional” brasileiro, de modo a constatar se há, como problematizado, um exercício ilimitado de referido órgão no cenário jurídico/político brasileiro. Para que o estudo não se restrinja ao campo teórico, no segundo capítulo são apresentados casos emblemáticos cuja atuação do STF transpareceu desacertada com o texto constitucional, representando ausência de unidade decisória ou subjetivismos indesejados no exercício interpretativo, quais sejam: a) a eficácia erga omnes das decisões proferidas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade: esvaziamento da atuação do Senado Federal (SF); b) flexibilização dos efeitos do trânsito em julgado: possibilidade de prisão após decisão condenatória por órgão colegiado de segunda instância; c) a restrição da garantia constitucional do foro por prerrogativa de função de senadores e deputados federais; d) restrição de acesso aos cargos de linha sucessória da Presidência da República a réus em ação penal: a nova compreensão trazida nos autos da ADPF 402; e e) condenação criminal e perda de mandato parlamentar: Quem detém a competência para cassar o mandato de parlamentares? No terceiro capítulo apresentam-se as principais fundamentações teóricas utilizadas pelo STF brasileiro quando do momento de interpretação e aplicação do Direito. Inicia a discussão a partir da obra Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e sua visão objetivista formalista do ato de interpretar, para, sequencialmente, verificar a significação do ato de interpretação e aplicação a partir da base teórica estabelecida no positivismo de Herbert Hart; ainda, busca apresentar as características do decisionismo de matriz schmittiana, para, finalmente, identificar a releitura da interpretação e aplicação do direito pelo olhar da tópica argumentativa oriunda do pós-positivismo, o que faz direcionando a análise especificamente para a teoria esboçada por Robert Alexy. O quarto capítulo, a seu turno, apresenta um aporte teórico necessário sobre a hermenêutica filosófica de Gadamer, até mesmo para que seja possível contrapô-la às visões dos autores abordados no tópico anterior, para, no último e quinto capítulo discutir especificamente a trajetória da hermenêutica e a superação da filosofia da consciência, apresentando as lições do círculo hermenêutico dotado de significado ontológico positivo, e a hermenêutica filosófica de Gadamer com sua ideia de consciência hermeneuticamente adequada. Defende, em vias conclusivas, pela necessária adoção da hermenêutica filosófica gadameriana como parâmetro a ser seguido no exercício da tarefa interpretativa pelo STF do

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Brasil como forma de evitar o formalismo objetivista e o subjetivismo/decisionista, propondo- se para tanto a adoção do “diálogo entre juízes”, mecanismo institucional que efetivará o pretenso diálogo hermenêutico preconizado por Gadamer, dando luz a uma espécie de hermenêutica filosófico-dialógica, nomenclatura que se propõe no presente trabalho.

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CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

O presente capítulo tem por objetivo central abordar a relação estabelecida entre o texto constitucional e o Tribunal Constitucional cuja tarefa primordial é a salvaguarda da integridade e da Constituição. Deve-se fazer a ressalva inicial, contudo, que, embora o capítulo mencione modelos de Justiça Constitucional desenvolvida por outros órgãos, a sua abordagem focará na formatação assumida pelo Tribunal Constitucional. Desse modo, o tópico enfrentará de forma apriorística o que se entende como Justiça Constitucional, e como se deu a sua formação no âmbito do processo de manutenção da integridade constitucional. Posteriormente, investiga quais são as funções desempenhadas pela Justiça Constitucional, notadamente pelo Tribunal Constitucional, para identificar alguns pontos de suma importância, como, à guisa de exemplo, elucidar se as manifestações de um Tribunal Constitucional estão incutidas em um teor político ou jurídico, ou se em ambos, o que é extremamente relevante, haja vista temáticas como a da separação de funções e da judicialização da política, e quais as consequências decorrentes desse tipo de manifestação. Ainda, por considerar que o Tribunal Constitucional é instituição indispensável que deve ser mantida, preservada e robustecida, enfrenta eventuais discussões a respeito de sua legitimidade sob a perspectiva democrática, abordando temas como a forma de indicação dos membros da Corte, a vitaliciedade no exercício de seus cargos e a independência de seus membros. Em arremate final, o capítulo se debruça sobre a constituição e formatação do STF, indagando, inclusive, se referido órgão pode ser considerado, de fato, uma Corte Constitucional. Antes de enfrentar os indigitados pontos, contudo, torna-se imperioso definir o que será considerado como Justiça Constitucional por este trabalho, o que se passa a seguir. Deve-se fazer um alerta inicial de que há uma multiplicidade conceitual afeta ao tema da Justiça Constitucional, resultado da visão teórica incorporada por cada autor. Há, inclusive, um uso indiscriminado dos termos jurisdição e Justiça Constitucional, havendo dúvidas sobre a similaridade ou não dos termos8. No entanto, a despeito de tal similitude, como anota Frederico Wildson da Silva Dantas, é possível distinguir tais termos a partir dos seguintes pressupostos: enquanto a Justiça Constitucional representa a ideia de um órgão próprio que

8 MAZOTTI, Marcelo. Jurisdição constitucional e ativismo judiciário: análise comparativa entre a atuação do Supremo Tribunal Federal brasileiro e da Suprema Corte estadunidense. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. DOI:10.11606/D.2.2012.tde- 05122012-162249. Acesso em: 2 jul. 2019.

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tem por responsabilidade a tutela da integridade constitucional que se identifica com a figura de um Tribunal Constitucional, a jurisdição constitucional significa a atuação por meio do processo constitucional para a solução de questões afetas à matéria de índole constitucional9. Do mesmo modo, André Ramos Tavares esclarece que, enquanto o termo Justiça Constitucional designa aquela desenvolvida no âmbito do Tribunal Constitucional, ou mesmo a uma forma genérica de organização dos tribunais constitucionais, a expressão “jurisdição constitucional”10 representa a atividade tencionada a proteger a integridade do texto constitucional em todas as suas dimensões, mediante a utilização de um método jurídico- processual11. Ao tratar sobre o conceito de jurisdição constitucional Luís Roberto Barroso a define sinteticamente como “a aplicação da Constituição por juízes e tribunais”12. Já Dimitri Dimoulis considera a justiça constitucional como um instrumento de procedimentalização que visa, cumulativamente, à concretização (realização) e a defesa da Constituição13. Muito embora não traga um conceito de justiça constitucional, Alexandre de Moraes reconhece a sua função de proteção tanto do Estado de Direito como dos direitos fundamentais, apontando ainda o âmbito de sua atuação14. José Joaquim Gomes Canotilho, a partir de um exame analítico desempenhado pela Justiça Constitucional, a define como “o complexo de atividades jurídicas desenvolvidas por um ou vários órgãos jurisdicionais, destinadas à fiscalização da observância e cumprimento das normas e princípios constitucionais vigentes”15.

9 DANTAS, Frederico Wildson da Silva. Justiça constitucional e direitos humanos: a função constituinte do Tribunal Constitucional na proteção dos direitos humanos. 2010. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de , 2010. 10 Ao tratar sobre a jurisdição constitucional Walber de Moura Agra assinala que: “a jurisdição constitucional é uma função estatal que tem a missão de concretizar os mandamentos contidos na Constituição, fazendo com que as estruturas normativas abstratas possam normatizar a realidade fática” (AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 19). 11 TAVARES, André Ramos (Coord.). Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 145. 12 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 3. 13 DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Dicionário brasileiro de direito constitucional. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. 14 Nas palavras do autor, os ramos em que a justiça constitucional exerce a sua competência são os seguintes: a) o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público; b) a proteção dos direitos fundamentais; c) controle das regras da Democracia representativa (eleições) e participativa (referendo e plebiscito); d) controle do bom funcionamento dos poderes públicos e da regularidade no exercício de suas competências constitucionais; e e) o equilíbrio da federação (MORAES, Alexandre de. Legitimidade da Justiça Constitucional. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). As vertentes do direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 560-561). 15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit., p. 892.

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Ao tratar sobre a importância da Justiça Constitucional na concretização das Constituições, a despeito de não trazer qualquer definição teórica sobre ela, Miguel Azpitarte reconhece que sem garantia jurisdicional não existe Constituição normativa ou mesmo direito constitucional. Ainda segundo o mencionado autor, existe uma relação imbricada entre a jurisdição constitucional e a Constituição, pois em seus dizeres “[...] la normatividad de la Constitución es pressupuesto de la jurisdicción constitucional; ésta há de entenderse correctamente como produto de la primeira y no como condición previa”16. Referidos conceitos, destaque-se, embora provenientes de doutrinadores distintos, estão atrelados ao sentido de Justiça Constitucional, que reforça a ideia de defesa da Constituição, açambarcando não apenas a atuação dos órgãos jurisdicionais na resolução de lides de natureza subjetiva (conflitos decorrentes da interpretação jurídica), mas também a atuação no âmbito de conflitos de natureza objetiva, como aquele que é exercido de modo genérico, em abstrato, pelo STF nas ações relativas ao controle concentrado de constitucionalidade. A despeito de referidos conceitos expressarem, em regra, o campo de atuação da Justiça Constitucional no Brasil, em função do recorte metodológico aqui realizado no sentido de analisá-la apenas sob o âmbito da atividade de justiça promovida no Tribunal Constitucional, o conceito mais adequado é aquele apontado por André Ramos Tavares, ao direcionar a definição para:

[...] a Justiça desenvolvida no âmbito do Tribunal Constitucional, incluindo o estudo de sua origem histórica, seu posicionamento entre os poderes, suas principais categorias funcionais, morfologia e natureza da atividade do Tribunal Constitucional, processo decisório e suas regras, legitimidade democrática e perspectivas.17

A respeito do âmbito de atuação da Justiça Constitucional, o indigitado autor reconhece as funções de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos oriundos do Poder Público, a tutela e efetivação dos direitos fundamentais18, a resolução de conflitos

16 “[...] a normatividade da Constituição é pressuposto da jurisdição constitucional; esta há de se entender corretamente como produto da primeira e não como condição prévia” (AZPITARTE, Miguel. Tribunal constitucional y derecho constitucional desde la perspectiva española. In: TAVARES, André Ramos (Coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, cap. 10, p. 320. Tradução livre). 17 TAVARES, André Ramos, 2005, p. 151. 18 Nas palavras de André Ramos Tavares, inclusive, há uma relação direta e essencial entre os direitos fundamentais e a atuação da Justiça Constitucional ao reconhecer-lhe “o papel didático de orientação geral do Estado no cumprimento e implementação de direitos fundamentais” (Cf. TAVARES, André Ramos. O discurso dos direitos fundamentais na legitimidade e deslegitimação de uma Justiça Constitucional substantiva. In:

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entre as esferas do poder a respeito de suas competências e atribuições trazidas pelo texto constitucional e a resolução de lides envolvendo temas de natureza internacional pública19. Dessa forma, definido o que se adotará aqui como Justiça Constitucional, abordar-se-á nos subtópicos seguintes a matriz histórica, o posicionamento da Corte Constitucional entre os poderes, suas funções e natureza de suas decisões, bem como a sua perspectiva sob a ótica democrática.

1.1 Formação e Modelos da Teoria da Justiça Constitucional

Consoante já abordado anteriormente, em função dos movimentos históricos, culturais, políticos e sociais que culminaram no surgimento das Constituições modernas, bem como na limitação do poder político do Estado, a topografia das normas nos ordenamentos jurídicos sofreu uma importante modificação: reconheceu-se à Constituição o status de lex superior, ou seja, ela passou a ser considerada não apenas como fonte de produção normativa, como também passou a ser reconhecida com um valor normativo hierarquicamente superior, outorgando-lhe a condição de parâmetro obrigatório dos demais atos, conforme anota José

Joaquim Gomes Canotilho20-21. No entanto, no início embrionário do Estado Constitucional, ainda que se reconhecesse a superioridade normativa da Constituição como parâmetro para a tarefa de produção normativa – a “superlegalidade” material da Constituição apontada por Canotilho –, a ideia do valor normativo não havia alcançado o desenvolvimento esperado22. Disso resultou a identificação da lei escrita com o direito, inaugurando um Estado cujo padrão estava centralizado na legitimidade formal como mecanismo de garantir segurança jurídica, o que acabou por reduzir consideravelmente a atividade interpretativa do Poder Judiciário, já que suas decisões não teriam a possibilidade de alcançar o status da lei. Tal

TAVARES, André Ramos (Coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, cap. 5, p. 163. 19 TAVARES, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), 1998, p. 7. 20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit. 21 Importante anotar ainda a observação feita pelo autor português a respeito da conjunção das dimensões de superlegalidade formal e material das Constituições no sentido de que: “Da conjugação destas duas dimensões – superlegalidade material e superleglaidade formal da constituição – deriva o princípio fundamental da constitucionalidade dos actos normativos: os actos normativos só estarão conformes com a constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados nas regras ou princípios constitucionais” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit., p. 890). 22 BRANCO, Carolina Nobre Castello. A justiça constitucional na concretização dos direitos fundamentais: um estudo sobre o alcance dos novos ideais do constitucionalismo contemporâneo. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.

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situação impossibilitava o estabelecimento de um Tribunal Constitucional dotado de competência decisória de conformação constitucional e liberdade interpretativa23. Mediante o desenvolvimento da ideia de superlegalidade formal foi possível perceber que a manutenção da higidez constitucional exigiria a existência de instrumentos que permitissem a consagração do valor normativo das Constituições24. No entanto, o estabelecimento do princípio fundamental de constitucionalidade das leis somente assumiu posição preponderante com a falência do modelo do Estado legalista, o que decorreu, dentre outros fatores, por conta de uma atuação cada vez mais exacerbada do Poder Legislativo na criação normativa25. Referida crise permitiu a ampliação das fontes do direito que passaram a ser plurais, e admitiu um novo modelo que propõe um constitucionalismo democrático26, caracterizando a transposição do positivismo jurídico para o modelo pós-positivista e, também, o surgimento do neoconstitucionalismo27. Nesse tocante, vale a observação trazida por José Carlos Francisco ao assinalar que o neoconstitucionalismo representa uma construção feita a partir de necessidades factuais e históricas (e não calcada em meros artifícios teóricos), notadamente para fins de preservação e concreção de direitos humanos e humanitários, bem como o resguardo contra arbitrariedades decorrentes das leis28. A derrocada do positivismo jurídico, nas palavras de Luís Roberto Barroso, ocorreu justamente durante o segundo pós-guerra e está atrelada à derrota do fascismo da Itália e do nazismo na Alemanha. Ainda, segundo o autor:

[...] Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda

23 TAVARES, André Ramos, 2005. 24 BRANCO, Carolina Nobre Castello, op. cit. 25 Idem. 26 TAVARES, André Ramos, 2005. 27 Lenio Luiz Streck faz uma severa crítica à denominação do “neoconstitucionalismo”, pois, segundo indica, pode-se ter a impressão de que esse movimento supera o constitucionalismo moderno (quando na verdade deve ser entendido como uma continuidade com novas conquistas advindas do segundo pós-guerra) e propõe a sua denominação como “constitucionalismo contemporâneo”, o qual “representa um redimensionamento da práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático de Direito, e no plano da teoria do direito, no interior da qual se dá a reformulação da teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição); na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) e na teoria da interpretação (que, nos termos que proponho, representa uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos) (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 47). 28 FRANCISCO, José Carlos. (Neo) constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso concreto. In: FRANCISCO, José Carlos (Organizador e autor). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

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Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido. A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e teoria dos direitos fundamentais.29

Isso se deu, especialmente, porque o constitucionalismo moderno se voltou aos valores éticos e morais compartilhados por toda a sociedade, que se materializaram na forma de princípios, e foram abrigados expressa ou implicitamente nas Constituições. Disso resultou um novo vetor de análise, interpretação e de aplicação do direito30, bem como um deslocamento do centro de decisões que antes eram do Legislativo e do Executivo para o plano da Justiça Constitucional31. Nessa nova visão, consoante aponta Jorge Reis Novais:

O Estado de Direito é agora renovadamente perspectivado enquanto Estado que colhe necessariamente a sua legitimidade, não apenas na observância formal da legalidade vigente, mas também, e sobretudo, na observância de uma pauta universal de valores de onde decorrem direitos de que os poderes políticos instituídos não dispõem.32

Esse conjunto de normas (regras e princípios) impôs a existência constitucional de uma rígida fiscalização a respeito da efetiva e concreta observância aos termos da Constituição, reconhecendo a supremacia de suas disposições no âmbito do ordenamento jurídico33. Além disso, passa-se a reconhecer a Constituição como uma “entidade viva”, que exige interação com a realidade e situação histórica, acompanhando o desenvolvimento da sociedade, pois apenas assim é que atinge o seu papel regulador34.

29 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, n. 225, p. 5-37, jul./set. 2001, p. 23. 30 Idem. 31 Nesse sentido Lenio Luiz Streck afirma que o foco de tensão que antes pertencia aos Poderes Legislativo e Executivo foram transferidos ao Poder Judiciário, que agora, ante a inércia do Poder Executivo e a ausência de atuação do Legislativo, se torna protagonista em algumas situações a partir dos mecanismos jurídicos previstos nas Constituições (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11. ed. rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014). 32 NOVAIS, Jorge Reis. Introdução – modelos de justiça constitucional. In: MIRANDA, Jorge; MENEZES, Fernando Antônio Dias; SILVEIRA, João José Custódio da (Coords.). Justiça constitucional. São Paulo: Almedina, 2018, p. 60-61. 33 Idem. 34 TAVARES, André Ramos, 1998, p. 7.

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E foi justamente essa noção de se ter a Constituição como último fundamento de validade da ordem jurídica, ao qual todas as normas deverão se conformar, que o controle de constitucionalidade das normas – função primordialmente reconhecidamente atribuída à Justiça Constitucional – apresenta a sua importância. Isso porque, conforme adverte André Ramos Tavares, a preservação da Constituição “é a maneira encontrada de se preservarem os mais básicos e fundamentais valores acolhidos pela sociedade, alcançados por esta e lançados num escopo jurídico, como resultado de um longo evoluir histórico”35. No entanto, como advertido por Maria da Assunção Esteves, embora a ideia de supremacia constitucional redunde principalmente no controle de constitucionalidade das normas, bem como na necessidade de autopreservação constitucional, é a noção de limitação da atuação Estatal que solidifica a legitimidade da Justiça Constitucional36. A demonstração sobre a importância da proteção do texto constitucional e sua prevalência dentro do sistema de hierarquia normativa é condição necessária para compreender o surgimento dos modelos clássicos37 de Justiça Constitucional no mundo, quais sejam: o modelo americano38-39 do judicial review e o modelo austríaco. Referidos modelos influenciaram diretamente os sistemas de Justiça Constitucional de diversos países e alguns, inclusive, adotaram sistemas mistos de controle de constitucionalidade, ao que Fernando

35 TAVARES, André Ramos, 1998, p. 9-10. 36 ESTEVES, Maria da Assunção. Legitimação da justiça constitucional e princípio majoritário. In: BRITO, J. S. et al. Tribunal constitucional: legitimidade e legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995. 37 Segundo Renato Gugliano Herani: “O surgimento dos modelos clássicos é uma consequência do fluxo evolutivo do constitucionalismo moderno, ponto de partida da sucessão de acontecimentos desde então determinantes na alteração das estruturas originais da Justiça Constitucional contada em um processo sucessivo de expansão. Se observada estruturalmente, desde a sua gênese, passou por mudanças, até aceleradas, operadas por inúmeros fatores externos de todas as ordens: jurídica (como a interferência dos métodos, positivistas e antipositivistas, de concepção e interpretação do direito), política (a ascensão e decência (sic) do Estado Liberal, a emergência do Estado social e agora a tendência da democracia constitucional), social (ascensão do Estado social intervencionista), econômica (do liberalismo econômico à participação ativa do Estado na ordem econômica), para não trazer outros, sempre atuantes momentaneamente nos sistemas jurídicos dos países, especialmente ocidentais, a partir do século passado” (HERANI, Renato Gugliano. A prova da inconstitucionalidade das leis na Justiça Constitucional brasileira. 2012. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 103). 38 Para Eduardo García de Enterria, inclusive, a criação do Tribunal Constitucional tem sua origem no constitucionalismo americano, pois foi a primeira emenda à Constituição estado-unidense de 1787 que tornou explícita a ideia de supremacia constitucional e a existência de limites à tarefa legiferante do Poder Legislativo (ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La constitución como norma y el tribunal constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1985). 39 No mesmo sentido, Michel Rosenfeld consigna que o julgamento constitucional é mais antigo nos Estados Unidos que na Europa, especialmente porque “o controle judicial de questões constitucionais tem sido continuamente implementado nos Estados Unidos, desde a decisão inaugural da Suprema Corte no caso Marbury x Madson, 5 U.S 137 (1803). O controle de constitucionalidade na Europa, todavia, é um fenômeno precipuamente pós-guerra” (ROSENFELD, Michel. O julgamento constitucional na Europa e nos Estados Unidos: paradoxos e contrates. In: TAVARES, André Ramos (Coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, cap. 7, p. 223).

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Alves Correia denominou de “evolução convergente dos dois modelos ou mesmo da progressiva fusão do controle difuso e concentrado”40. Costuma-se atribuir o início do sistema de controle de constitucionalidade americano – também denominado de controle difuso de constitucionalidade – em 1803, no julgamento do caso William Marbury x James Madison41-42, pelo então mentor da judicial review, John

Marshall43, o qual inaugurou, pela via recursal, o controle da constitucionalidade das leis44. Mediante referido sistema, o controle de constitucionalidade é atribuição de todo e qualquer juiz integrante do Poder Judiciário, permitindo que, diante de casos concretos e sempre de forma indireta (a inconstitucionalidade não pode ser o objeto direto da ação, mas utilizada apenas como fundamentação jurídica – causa de pedir), possam reconhecer a não

40 CORREIA, Fernando Alves. Direito constitucional (a justiça constitucional). Coimbra: Almedina, 2001, p. 49). 41 Em escorreita síntese do caso em questão Carolina Nobre Castello Branco consigna que: “Em poucas palavras, pode-se dizer que o caso girava em torno da nomeação de William Marbury para o cargo de juiz de paz, feita em 1801, pelo ainda presidente federalista John Adams, que estava terminando o seu mandato e não teve tempo hábil para empossar Marbury no cargo. O sucesso de Adams, Thomas Jefferson, ao assumir a presidência ordenou que o seu Secretário de Estado James Madison negasse posse a Marbury. Inconformado, Marbury recorreu à Suprema Corte com o fim de que Madison fosse obrigado a dar-lhe a posse. Para decidir a questão, Marshall serviu-se da competência constitucional da Suprema Corte e concluiu que a Lei Judiciária de 1789 (que serviu de base para o pedido de Marbury e permitia que o Tribunal expedisse mandados para sanar atos ilegais do Executivo) “seria” inconstitucional, pois o art. III, Seção 2, disciplinava de forma taxativa a competência originária da Suprema Corte. Assim, o Congresso não poderia ampliar as competências da Suprema Corte por meio da Lei Judiciária de 1789. A decisão do juiz Marshall é até hoje lembrada por ter estabelecido as bases do controle difuso de normas, mas expressou uma problemática muito mais política que jurídica. O fato é que o ambiente político da época revelara que o partido federalista havia perdido a eleição da presidência para um representante do partido republicado. Mas, ainda que os federalistas não detivessem mais o controle do Poder Executivo e do Legislativo (o Congresso também era formado em sua maioria por republicanos), ainda detinham o controle do Poder Judiciário, cuja maioria era composta por federalistas, como Marshall. Os republicanos jamais admitiram a interferência do Judiciário nas deliberações do Executivo e a decisão de Marshall revelou-se surpreendente, porque, ao invés de apoiar a vertente federalista, apoiou os seus adversários, ou seja, ao admitir que a Lei Judiciária de 1789 era inconstitucional, limitou a competência da Suprema Corte e não admitiu a sua interferência em atos do Poder Executivo” (BRANCO, Carolina Nobre Castello, op. cit., p. 85). 42 Deve-se alertar aqui, no entanto, que embora o caso Marbury x Madison tenha sido e continue sendo a decisão marco da Suprema Corte confirmando o controle de constitucionalidade de atos normativos pelo Poder Judiciário, a sua criação não seu deu do nada. Isso porque, conforme relatado por Toni M. Fine, existe evidência de que na Assembleia Constituinte, na experiência dos Estados americanos antes mesmo da ratificação da Constituição, e também nas decisões da Suprema Corte, já se reconhecia a autoridade para declaração de nulidade e invalidade de atos de outras entidades do governo que fossem incompatíveis com a Constituição (Cf. FINE, Toni M. O controle judicial de constitucionalidade nos Estados Unidos. In: TAVARES, André Ramos (Coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, cap. 11). 43 Conforme aponta Cibele Fernandes Dias Knoerr, a tese do Justice Marshall: [...] “é estruturada em três proposições: (i) a Constituição é lei suprema, (ii) a lei ordinária não pode contrariar a Constituição, sob pena de não estar (sic) não ser mais norma suprema, (iii) diante da contradição entre lei e Constituição, os juízes devem deixar de aplicar a lei para aplicar a Constituição. A construção estadunidense faz parecer que o ‘judicial review of legislation’ decorre do natural desenvolvimento de todo ordenamento jurídico baseado numa Constituição rígida (ou ‘norma suprema’), pois uma Constituição entendida como norma superior às leis, sem controle de constitucionalidade, é uma contradição em si mesma. Por essa razão, o silêncio da Constituição em atribuir esta função a um órgão não significa a ausência de controle, mas o seu exercício pelo Poder Judiciário” (KNOERR, Cibele Fernandes Dias. Decisões intermediárias da justiça constitucional como mutação da constituição. 2011. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 173). 44 TAVARES, André Ramos, 1998.

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conformidade de determina lei em oposição ao texto constitucional. Em tal sistema, a função do Tribunal Constitucional é assegurar a proeminência do texto constitucional como último patamar de defesa da constitucionalidade45. Ao tratar sobre o papel desempenhado pelo controle judicial de constitucionalidade nos Estados Unidos, Toni M. Fine ressalta a sua importância nos seguintes termos:

Todos os tribunais nos Estados Unidos, federais e estaduais, podem exercer o controle de constitucionalidade. A Suprema Corte dos Estados Unidos tem a decisão final sobre a constitucionalidade de atos específicos de entidades públicas de âmbito governamental federal ou estadual (e, por derivação, local). Decisões da Suprema Corte sobre questão constitucional somente podem ser modificadas pela própria Suprema Corte dos EUA, em uma reavaliação do problema em um caso subsequente, ou por emenda Constitucional. O processo para emendar a constituição dos EUA é extremamente dificultoso, tendo sido alcançado em raras ocasiões nos mais de 200 anos desde a adoção da Constituição. Por essa razão, o processo do controle judicial de constitucionalidade desempenha um papel extremamente importante no Direito Constitucional dos EUA. O controle judicial de constitucionalidade desempenha um papel fundamental por mais uma razão: Muitas das cláusulas importantes da Constituição dos EUA são baseadas em termos amplos e imponentes, destituídos de significado em abstrato. Tais incluem frases como “devido processo legal”, “liberdade”, “igual proteção”, “estabelecimento de religião”, “liberdade de religião”, “liberdade de expressão”, “causa provável” e “penas cruéis e incomuns”, entre outras. É crítico o papel do Judiciário, de delinear e elaborar o que estes termos significam em contextos específicos e ao longo do tempo.46

Dessa forma, percebe-se que o controle de constitucionalidade de matriz norte- americana prevê a difusão dos órgãos que podem realizar a verificação da compatibilidade entre os atos normativos e a Constituição como forma de salvaguarda da integridade constitucional, já que, como visto acima, muitas das cláusulas de garantia de direitos e liberdades públicas foram escritas de forma mais ampla, exigindo uma complementação mediante o ato de interpretação para que o sentido da Carta Maior seja defendido. Esse controle, em sentido amplo, recai basicamente sobre três áreas: a) relação entre os Estados e o governo central (questões sobre o federalismo); b) relações entre os entes do governo em nível nacional (embates sobre a separação de poderes); e c) a proteção de direitos individuais e contra abusos de autoridades praticados pelo governo47. Já o modelo europeu de controle de constitucionalidade adotou outros contornos, considerando que a evolução do Estado de Direito liberal europeu se constituiu por uma

45 TAVARES, André Ramos, 1998. 46 FINE, Toni M., op. cit, p. 348. 47 Idem.

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relação expressamente rejeitada sobre a possibilidade de que o Poder Judicial pudesse afastar a aplicação de leis fundando-se em eventual inconstitucionalidade, especialmente porque confiava-se, implicitamente, aos parlamentos democráticos, a competência de garantia e efetivação política da Constituição48. Tal modelo se iniciou pela criação, por Hans Kelsen, do controle concentrado de constitucionalidade, cuja atribuição exclusiva para a verificação da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos era de competência exclusiva do Tribunal Constitucional da Áustria, criado por força da Constituição de 1920, e posteriormente aperfeiçoado pela reforma constitucional de 192949. No entanto, diferentemente do modelo do judicial review de matriz americana, “o controlo constitucional não é propriamente uma fiscalização judicial, mas uma função constitucional autônoma, que, tendencialmente, se pode caracterizar como função de legislação negativa”50. Ainda, “no juízo acerca da compatibilidade ou incompatibilidade (Vereinbarkeit) de uma lei ou norma com a Constituição não se discutiria qualquer caso concreto (reservado à apreciação a quo) nem se desenvolveria uma atividade judicial”51. Após o fim da Segunda Guerra Mundial o modelo de Justiça Constitucional foi difundido nos sistemas constitucionais europeus e possibilitou um segundo movimento de criação das Cortes Constitucionais, tendo reestabelecido a Corte da Áustria, em 1945, a instituição da Corte Constitucional da Itália em 1947 e do Tribunal Constitucional Federal alemão no ano de 194952. A adoção de tais Cortes no âmbito dos indicados Estados representou o estabelecimento da competência prioritária deste órgão para a “verificação da compatibilidade das leis e dos atos políticos com a Constituição, cabendo à Corte a última palavra na interpretação, concretização e garantia da Lei Maior”53. Ainda, conforme Alvacir Alfredo Nicz, as matérias de competência da Corte Constitucional foram alargadas e são extremamente relevantes no âmbito político, vez que tratam apenas, abstratamente, de matérias constitucionais, tais como: separação de poderes, eficácia dos direitos fundamentais,

48 NOVAIS, Jorge Reis, op. cit. 49 A reformulação trazida pela Emenda Constitucional de 7 de dezembro de 1929 teve por missão suplantar a insuficiência do sistema inicialmente formulado, pois além da limitação exagerada do rol de legitimados a provocar a atuação da Corte algumas leis que se apresentavam como lesivas a direitos de liberdade não se encaixavam nas hipóteses sujeitas ao controle de constitucionalidade (Cf. DANTAS, Frederico Wildson da Silva, op. cit). 50 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit., p. 898-899. 51 Idem. 52 DANTAS, Frederico Wildson da Silva, op. cit. 53 NICZ, Alvacir Alfredo. A jurisdição Constitucional e seu alcance: cortes constitucionais e Supremo Tribunal Federal. In: MIRANDA, Jorge; MENEZES, Fernando Antônio Dias; SILVEIRA, João José Custódio da (coords.). Justiça constitucional. São Paulo: Almedina, 2018, p. 81-99.

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constitucionalidade das normas e lides de interesses das entidades políticas, temas de cunho sociopolítico voltados ao interesse geral54. O modelo kelseniano implicava na visão do Tribunal Constitucional como legislador negativo, i.e, o único órgão ao qual se reconhece a competência para legislar e criar normas é o Poder Legislativo (legislador positivo), e ao Tribunal Constitucional, uma vez provocado e sempre adstrito aos limites do quanto questionado, caberia a possibilidade de excluir as normas que se mostrassem incompatíveis com a Constituição – o que lhe caracterizaria como legislador negativo55-56. Referido modelo que foi adotado por quase toda a Europa, à exceção da França, e que se fundou na constituição de um Tribunal Constitucional especializado (com um corpo técnico de profissionais do direito) cujo objetivo central era analisar o controle em abstrato das normas e sua adequação ao texto constitucional, resultou no surgimento da Justiça

Constitucional dotada de especialidade na aplicação/efetivação do direito constitucional57-58. A importância do estabelecimento de tais Cortes na Europa é reconhecida por José Afonso da Silva, uma vez que, em sua concepção, o surgimento de tais órgãos possibilitou a existência de um verdadeiro equilíbrio entre os demais poderes que integram o Estado, notadamente pela sua atuação como certo tipo de poder moderador, atual e independente59. Por derradeiro, deve-se ressaltar que José Joaquim Gomes Canotilho classifica os modelos de Justiça Constitucional a partir de uma perspectiva organizatória da seguinte forma: a) modelo unitário: todos os tribunais possuem a prerrogativa de levar a cabo o controle de constitucionalidade discutido a partir de um caso concreto sujeito à decisão

54 Ibidem, p. 88. 55 KNOERR, Cibele Fernandes Dias, op. cit. 56 Inclusive, conforme aponta Léa Émile Maciel Jorge de Souza “o Tribunal Constitucional seria chamado a pronunciar-se exclusivamente sobre questões jurídico-constitucionais, com total abstração dos motivos e interesses políticos subjacentes à lei atacada e dos conflitos de interesses relacionados aos casos concretos de aplicação dessas leis. Ou seja, o controle de constitucionalidade se esgota no Tribunal Constitucional, que é o órgão responsável para confrontar a norma legal e a constitucional, ambas abstratas, verificando eventual contradição lógica (SOUZA, Léa Émile Maciel Jorge de. Os limites da atuação da justiça constitucional no constitucionalismo contemporâneo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 102). 57 FIGUEIREDO, Marcelo. O controle de constitucionalidade no Brasil. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius. Aspectos atuais do controle de constitucionalidade do Brasil: recurso extraordinário e arguição de preceito fundamental. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 175-187. 58 Como aponta Paulo Ferreira de Cunha, para Kelsen, o controle de constitucionalidade não se apresentava como uma função judicial, “mas função propriamente constitucional, uma espécie de prova real ou contraprova da função legislativa. Donde a apreciação deva ser conferida a um órgão jurisdicional próprio, um tribunal constitucional, e não releve de caso concreto em juízo, como na judicial review americana” (CUNHA, Paulo Ferreira da. (In)constitucionalidade e justiça constitucional: dos conceitos e sistemas gerais à sua evolução em Portugal. In: TAVARES, André Ramos. Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, cap. 14, p. 427). 59 SILVA, José Afonso da. Tribunais constitucionais e jurisdição constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 60/61, jan./jul. 1985.

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judicial, vale dizer, a Justiça Constitucional não apresenta autonomia organizativo- institucional; e b) modelo de separação: a Justiça Constitucional é de competência exclusiva de um único Tribunal com atribuição de resolução em temas constitucionais. Esgotado o esforço inicial de indicar os aspectos que originaram e permitiram o desenvolvimento da Justiça Constitucional, bem como os modelos surgidos nas realidades americana e europeia que foram difundidos e adotados por todo o mundo, passa-se na sequência a abordar quais são as funções por essa desempenhadas no âmbito da concretização da defesa da integridade do texto constitucional.

1.2 Funções da Justiça Constitucional

Conforme demonstrado, o aparecimento da Justiça Constitucional está intrinsicamente relacionado às teses de supremacia normativa do texto constitucional, bem como de sua higidez, afinal, o reconhecimento da força normativa da Constituição depende de um sistema de revisão constitucional qualificado60, mais complexo que o processo ordinário de tramitação e modificação da legislação ordinária. E justamente para que consiga efetivar a sua função primordial, qual seja: a defesa da integridade constitucional, os órgãos que compõem a Justiça Constitucional precisam desempenhar determinadas funções estruturais ou próprias, as quais, segundo estruturação proposta de André Ramos Tavares, se desdobram em cinco: a) função interpretativa; b) função arbitral; c) função estruturante; d) função governativa; e e) função legislativa61. A função interpretativa é aquela que assume o papel preponderante na atuação da Justiça Constitucional, eis que diante da necessidade de manutenção da integridade do texto constitucional, bem como da adaptação do seu sentido às novas realidades sociais62, torna-se necessário atribuir valor aos signos linguísticos, atividade pela qual o intérprete “não extrai ou

60 ABELLÁN, Marina Gascón. Los limites de la Justicia Constitucional: el Tribunal Constitucional entre juridicción y legislación. In: LAPORTA, Francisco J. Constitución: problemas filosóficos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003. 61 Ver nesse sentido: TAVARES, André Ramos. Justiça Constitucional: superando as teses do “legislador negativo” e do ativismo de caráter jurisdicional. In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; LARREA, Arturo Zaldívar de (Orgs.). Estudos de direito processual constitucional. Homenagem brasileira a Héctor Fix- Zamudio em seus cinquenta anos como pesquisador do direito. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 197-217; e também TAVARES, André Ramos. Justiça constitucional e suas fundamentais funções. Revista de Informação Legislativa, n. 171, p. 19-47, 2006. 62 Afinal, conforme reconhece André Ramos Tavares, “A Constituição não é um documento de disposições rígidas. Trata-se de uma entidade viva, que interage com a situação histórica, com o desenvolvimento da sociedade, e só assim é que cumpre o seu papel regulador” (Cf. TAVARES, André Ramos, 1998, p. 7).

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descobre o sentido que se achava oculto no texto. Ele o ‘constrói’ em função de sua ideologia e, principalmente, dentro dos limites do seu universo de linguagem”63-64. Compreender a tarefa interpretativa exercida pela Justiça Constitucional, no entanto, não é tarefa fácil. É por isso que André Ramos Tavares65 tece algumas considerações preliminares a saber: a) em primeiro lugar, é preciso compreender que há uma diferença entre enunciado (texto escrito) e a norma. Significa dizer que a jurisprudência não pode criar novos enunciados, tarefa exclusiva do Poder Legislativo, de modo que estes (enunciados) se apresentam como verdadeiro mecanismo de frenagem na atividade interpretativa levada a cabo pelo operador do direito, mas de modo mais específico, naquela exercida pelo Tribunal Constitucional; b) o segundo esclarecimento está vinculado à posição da parcela de decisão do Tribunal Constitucional ao promover uma interpretação da Constituição. A decisão que interpreta o texto constitucional está, em regra, hierarquicamente acima das

leis66, podendo ter status constitucional, ou um “valor especial”67. Ou seja, as interpretações efetivadas pelo Tribunal Constitucional ocupam o mesmo escalão das normas do Poder Constituinte originário; e c) uma terceira consideração está vinculada à natureza da função interpretativa, sendo de rigor reconhecer que as decisões prolatadas pelo Tribunal Constitucional possuem força normativa, o que é intensificado quando se trata da interpretação de

normas constitucionais68. Isso implica reconhecer que, mais que aplicar os termos da Constituição, o Tribunal acaba por completar o texto constitucional, o que representa um considerável perigo, pois pode permitir o assenhoramento da Constituição e da sua significação.

63 MORAES, Guilherme Braga Pēna de. Autonomia processual da justiça constitucional: limites e possibilidades da atividade legislativa dos tribunais constitucionais. 2011. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 98. 64 Como anotaram Francesco Viola e Guiseppe Zaccaria, a interpretação representa “o discurso que se insere entre o sujeito que interpreta e a coisa a ser interpretada” (VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Guiseppe. Diritto e Interpretazione: lineamenti di teoria ermeneutica del Diritto. 2. ed. Roma-Bari: Laterza, 2000, p. 111). 65 TAVARES, André Ramos, 2006. 66 PEREZ ROYO, Javyer. Las fuentes del derecho. 4. ed. Madrid: Tecnos, 1998. 67 MONCADA, Luís S. Cabral de. Estudos de direito público. Coimbra: Coimbra, 2001. 68 Esse espaço interpretativo mais amplo, inclusive, fez com que Carl Schmitt denominasse a Corte Constitucional como um “Poder Constituinte permanente” (SCHIMITT, Carl. Teoria de la constitución. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1928, p. 105).

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A segunda função desempenhada pela Justiça Constitucional é a arbitral. Por ela, compete aos Tribunais Constitucionais a responsabilidade pela “mediação” e resolução dos conflitos surgidos entre entidades e órgãos nos variados sistemas políticos e formas de Estado. Guilherme Braga Peña de Moraes exemplifica situações de exercício da referida função:

Por exemplo, aos órgãos de justiça constitucional é afeta a dissolução das contendas entre os Estados Federados, na federação, e das controvérsias entre as Regiões Autônomas, no Estado Regional, e as Comunidades Autônomas, no Estado autonômico. Sob outro foco, os organismos de justiça constitucional podem envolver-se em dissenções, tais como os dissídios com o Poder Executivo, na medida em que as consequências dos pronunciamentos dos tribunais constitucionais, que não são somente jurídicas, podem afetar a governabilidade, o Poder Legislativo, uma vez que os tribunais constitucionais devem proteger as minorias parlamentares, incumbindo-lhes proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da tutela jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição política e os demais Tribunais, quando os Tribunais Constitucionais estiverem situados fora da estrutura do Poder Judiciário, por força da sobreposição da jurisdição constitucional à jurisdição comum ou ordinária da qual estão investidos os órgãos judiciais em geral, origem da ‘guerra entre cortes’.69

Ou seja, no exercício dessa função “mediadora” o Tribunal Constitucional deve harmonizar os conflitos, especialmente quando há naturalmente uma tendência de embate entre poderes70 que é inerente à Constituição. Com efeito, até mesmo em um cenário de aparente equilíbrio institucional, em face da ausência de crise, o Tribunal Constitucional poderá se valer a sua função arbitral para garantir a separação de Poderes prevista pelo texto constitucional, quando verificar, por exemplo, que um órgão está usurpando as funções de outro, ainda que com a sua complacência71. A função estruturante da Justiça Constitucional, por sua vez, é aquela “por meio da qual se promove a adequação e a harmonização formais do ordenamento jurídico, consoante sua lógica interna e seus próprios comandos relacionados à estrutura normativa adotada”72. Em outras palavras, referida função tem a importância de garantir a regularem do sistema normativo interno, garantindo-se tanto o respeito à hierarquia normativa, como também a distribuição de competências73. Aqui se apresenta com proeminência o mecanismo de

69 MORAES, Guilherme Braga Pēna de, op. cit., p. 99. 70 MURPHY, Walter F. Congress and the court: a case study in the american political process. 5. ed. New Orleans: Quid Pro Books, 2014. 71 TAVARES, André Ramos, 2006, p. 35. 72 Ibidem, p. 32. 73 Idem.

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verificação da compatibilidade das leis e atos normativos perante o texto constitucional, qual seja: o controle de constitucionalidade das leis74. Por função governativa, num conceito mais estrito, entende-se aquela vislumbrada na direção do Estado e na busca do interesse da coletividade75. Mas, para além disso, a função governativa é também reconhecida quando do exercício da função arbitral, pois ao resolver os conflitos de competência entre as esferas de governo, o Tribunal acaba por possibilitar uma participação popular mais efetiva e um governo mais participativo. Do mesmo modo, também se verifica tal função quando o Tribunal, visando a garantir o pluralismo político e o respeito à diversidade, atua para preservar as minorias contra as maiorias76-77. Por fim e não menos importante, também se reconhece aos Tribunais Constitucionais a existência de uma função legislativa, a qual, em termos gerais, representa uma competência que chancela a possibilidade de elaboração de comandos dotados de generalidade e vinculatividade78. Referida competência é materializada em três espécies79, a saber: a) competência legislativa em sentido estrito: ela ocorre quando a Constituição distribui ao Tribunal Constitucional, assim como faz a outros órgãos e entes

federativos, determinado tipo de competência legislativa80-81; b) controle preventivo de constitucionalidade: embora o processo de verificação da compatibilidade das leis e atos normativos seja um processo constitucional, a sua

74 TAVARES, André Ramos. Justiça constitucional: superando as teses do “legislador negativo” e do ativismo de caráter jurisdicional. Direitos Fundamentais & Justiça, n. 7, abr./jun. 2009. 75 TAVARES, André Ramos, 2006. 76 Idem. 77 Guilherme Peña de Moraes ressalta ainda que: “Tendo em vista a consistência ou coerência interna do sistema jurídico, a função estruturante da justiça constitucional, ao possibilitar a invalidação jurídica dos elementos normativos incompatíveis ou incoerentes dentro do sistema, que, inclusive, possam eliminar ou reduzir o grau de efetividade das normas de direitos fundamentais, não somente é responsável pela manutenção da estrutura básica do edifício jurídico-normativo mas também pelo seu funcionamento prático” (MORAES, Guilherme Peña, op. cit., p. 100). 78 TAVARES, André Ramos, 2006. 79 Referida classificação é promovida por TAVARES, André Ramos, 2006. 80 Conforme anotado por Mauro Cappelletti uma das matérias em que a regulamentação pode ser outorgada à Justiça Constitucional é a de regulação processual, senão veja-se: “Os tribunais, especialmente os superiores bem podem ter, por exemplo, poderes de regulação processual, como de fato ocorre frequentemente nos países do ‘Common Law’. Não vejo por que razão se deveria excluir, a priori, que os próprios tribunais sejam, ou tenham a potencialidade de ser, os melhores legisladores possíveis na determinação e constante adaptação das regras técnicas do processo, regras com as quais, dia após dia, devem trabalhar. Resta, todavia, o fato de que os juízes, quando exercem tais poderes de regulação, agem como legisladores, e não como juízes” (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 80-81). 81 A exemplificação desse tipo de competência no direito constitucional brasileiro é a contemplação, pela Constituição de 1967, com a alteração promovida pela Emenda Constitucional 01/1969, de competência normativa ao STF assegurando-lhe a possibilidade de, mediante previsão em seu Regimento Interno, estabelecer o rito processual dos processos de sua competência originária ou recursal, consoante previsão do art. 119, § 3º, do texto constitucional (MELLO FILHO, José Celso de. Constituição federal anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986).

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natureza anterior à positivação o caracteriza como um “estágio” do processo legislativo, eis que o Tribunal está aqui a desempenhar, de forma direta, um papel central no processo de criação das leis; c) controle das omissões (lacunas normativas): traduz-se na superação de uma omissão normativa inconstitucional quando verificada a negativa do Poder Legislativo em cumprir a sua tarefa de produção legiferante; d) prolação de decisões aditivas, redutoras e substitutivas da legislação: nesse papel o Tribunal Constitucional busca reparar eventuais equívocos cometidos pelo Parlamento quando da criação das normas; e e) a elaboração do próprio regimento: embora se trate de função normativa de menor impacto, também deve ser considerada como propriamente legislativa.

Em sentido oposto à classificação e enquadramento feito por André Tavares, José Joaquim Gomes Canotilho estrutura as funções da Justiça Constitucional, e não propriamente do Tribunal Constitucional. As funções, segundo o autor, que são heterogêneas e levam em consideração as particularidades de cada ordenamento jurídico constitucional-nacional se desdobram em:

[...] (1) litígios constitucionais (Verfassungstreitigkeiten), isto é, litígios entre os órgãos supremos do Estado (ou outros entes com direitos e deveres constitucionais); (2) litígios emergentes da separação vertical (territorial) de órgãos constitucionais (ex.: federação e estados federados, estados e regiões); (3) controlo da constitucionalidade das leis e, eventualmente, de outros actos normativos (Normenkontrolle); (4) proteção autónoma de direitos fundamentais (Verfassungsbeschwerde, “recurso de amparo”); (5) controlo da regularidade de formação dos órgãos constitucionais (contencioso eleitoral) e de outras formas importantes de expressão política (referendos, consultas populares, formação de partidos); (6) intervenção nos processos de averiguação e apuramento da responsabilidade constitucional, e, de um modo geral, a “defesa da constituição” contra crimes de responsabilidade (Verfassungsschutzverfabren).82

Com efeito, independentemente do tipo de estruturação que se faça sobre as funções é possível perceber que, embora a função interpretativa seja a mais presente e para não dizer, a mais típica – considerando a ideia da separação de poderes idealizada por Montesquieu83 –, a

82 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit., p. 895, grifos originais. 83 Vale aqui a observação perfilhada por José Carlos Francisco de que “Ainda que a idéia da separação de poderes tenha sido ventilada muito antes de Montesquieu publicar a sua obra, a grande virtude do seu trabalho foi produzir a consolidação dessa idéia, que se propagou exemplarmente (FRANCISCO, José Carlos. Função Regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 75).

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Justiça Constitucional assume papel de sobrelevada importância nas democracias contemporâneas, realizando atividades que variam desde questões de natureza processual à atividade legislativa em sentido estrito. De todo modo, considerando que o recorte objetivado por essa pesquisa está direcionado à análise da atuação da Justiça Constitucional, notadamente do STF brasileiro, na resolução de questões/matérias de cunho constitucional, vale dizer da interpretação que foi levada a cabo em importantes casos que serão trabalhados no próximo capítulo, a função interpretativa é a que será discutida com mais vigor adiante.

1.3 O Problema da Legitimidade da Justiça Constitucional: Caráter Político das Cortes Constitucionais?

Ao se tratar sobre a atuação das Cortes Constitucionais no importante papel de defesa da integridade da Constituição há sempre um ponto de interrogação a respeito da sua legitimidade, afinal, diante da responsabilidade de ter que, dentre as suas funções, decidir questões políticas, poderia dar ao órgão uma conotação mais política que jurídica. Ainda, costuma-se apontar para a ilegitimidade das Cortes Constitucionais a partir da perspectiva democrática, já que, além de não ter sido constituído a partir de uma escolha popular, o órgão pode acabar suplantando a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, esses eleitos pela via representativa democrática. Aqui, objetiva-se rechaçar tais argumentos e questionamentos para demonstrar a legitimidade da Justiça Constitucional, e, por via de consequência, das Cortes Constitucionais. O primeiro esclarecimento que se deve fazer desde logo é que os Tribunais Constitucionais inevitavelmente atuam no processo político de forma ativa, o que faz com que as funções desempenhadas pelo órgão incorporem obrigatoriamente um viés político84, especialmente quando se constata que os grandes temas de atuação das Cortes são a organização do poder político do Estado, bem como a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do povo perante o Estado. Ao tratar sobre a jurisdição constitucional como força política e a atuação do Tribunal Constitucional Federal alemão Peter Häberle faz a importante observação de que:

84 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Trad. ao espanhol Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1982.

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[...] Independentemente do conteúdo de suas decisões, o Tribunal julga em nome da Lei Fundamental e participa do processo político, o dirige, é influenciado por esse processo e no âmbito desse processo. Isso ocorre porque seu objeto é a Constituição de uma comunidade política. Essa res pública é assunto de todos. Não pode continuar a confrontação entre direito e política, entre função jurídica (jurisprudencial) e função política, nem deve ser aceito o termo “direito apolítico”. Devemos buscar outros critérios para apresentar e avaliar os sucessos e os fracassos do TCF.85

No mesmo sentido, Konrad Hesse preleciona que “questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas”86. Até mesmo porque, destaque-se, os problemas constitucionais não representam tecnicamente problemas jurídicos, mas problemas de poder, de modo que a Constituição de um país somente possui valor efetivo e consegue se manter estável quando corresponder aos fatores reais de poder da sociedade, pois caso contrário representará um simples “pedaço de papel”87. Essa assunção sobre o espaço político – tradicionalmente ocupado pelo Legislativo e Executivo – levada a cabo pela Justiça Constitucional – verificou-se desde o fim da Segunda

Guerra Mundial e teve como vetor de motivação a ampliação da participação popular88. Tal fenômeno ocasionou o que se passou a denominar de “judicialização da política”, a qual “significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso

Nacional e o Poder Executivo [...]”89. Deve-se registrar, nesse ponto, que embora sejam termos próximos, “judicialização da política” e “ativismo judicial” não são sinônimos, especialmente porque proveem de origens distintas. Em apertada síntese, a judicialização, ao menos no Brasil, é uma decorrência do modelo constitucional adotado que permite um maior exercício interpretativo, de modo que o

85 HÄBERLE, Peter. Jurisdição constitucional como força política. In: TAVARES, André Ramos (Coord.). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, cap. 3, p. 58). 86 HESSE, Konrad, op. cit., p. 9. 87 LASSALLE, Ferdinand, op. cit. 88 Luís Roberto Barroso, parafraseando Ran Hirschl (Ver: HIRSCHL, Ran. The judicialization of politics. In: WHITTINGTON, Kelemen; CALDEIRA (Eds.). The Oxford handbook of law and politics. 2008) exemplifica essa dominação do campo político pela Justiça Constitucional a partir de alguns exemplos: “No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coreia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment” (BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [Syn] Thesis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2012, p. 23). 89 BARROSO, Luís Roberto, 2012, p. 24.

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Judiciário é obrigado a tomar determinada atitude; o ativismo, de outro turno, representa uma pro atividade materializada num ato de escolha sobre determinada interpretação constitucional que expande o seu sentido e alcance. Via de regra, o ativismo judicial se manifesta quando o

Legislativo se apresenta omisso na concretização de demandas de cunho social90-91-92. Ernani Rodrigues de Carvalho aponta que a inclusão dos Tribunais no cenário político trouxe significativas modificações aos Estados modernos e na forma como as questões no plano político passaram a ser direcionadas, aduzindo que:

O governo, além de negociar seu plano político com o Parlamento, teve que se preocupar em não infringir a Constituição. Essa seria, de maneira bastante simplificada, a equação política que acomodou o sistema político (democracia) e seus novos guardiões (a Constituição e seus juízes). Essa nova arquitetura institucional propiciou o desenvolvimento de um ambiente político que viabilizou a participação do Judiciário nos processos decisórios. Apesar da assimetria existente entre os poderes, o Judiciário vem ocupando um lugar estratégico no controle dos demais, principalmente do Executivo.93

Disso se percebe que o espaço de atuação da Justiça Constitucional, por vezes, ou quase sempre, se desdobra em aspectos de cunho político, especialmente porque as questões políticas estão imbuídas na própria Constituição94-95, o que se comprova pela existência de

90 BARROSO, Luís Roberto, 2012. 91 Lenio Streck, no entanto, apresenta um outro conceito sobre ativismo judicial. Segundo o autor, uma postura ativista é aquela que “[...] vai além do próprio texto da Constituição, acarretando o que Hesse chama de rompimento constitucional, quando o texto permanece igual, mas a prática é alterada pelas práticas das maiorias” (STRECK, Luiz Lenio. 2014, p. 63, grifo original). Ainda, sobre a distinção entre judicializacão da política e ativismo judicial, o indicado autor aponta que: [...] a judicialização da política é um fenômeno, ao mesmo tempo, inexorável e contingencial, porque decorre de condições sociopolíticas, bem como consiste na intervenção do Judiciário na deficiência dos demais poderes. Por outro lado, o ativismo é gestado no interior da própria sistemática jurídica, consistindo num ato de vontade daquele que julga, isto é, caracterizando uma ‘corrupção’ na relação entre os Poderes, na medida em que há uma extrapolação dos limites da atuação do Judiciário pela via de uma decisão que é tomada a partir de critérios não jurídicos” (STRECK, Luiz Lenio, 2014, p. 65). Ainda, para maior aprofundamento sobre a distinção entre judicializacão da política e ativismo judicial, ver: TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. De outro lado, José Carlos Francisco considera o neoconstitucionalismo e, por consequência, o ativismo judicial, como uma necessidade derivada de fatos, ressaltando que: Em outras palavras, abandonando a atuação mecanicista de subsunção dos fatos à norma em favor de visões mais abertas e que permitam o ajuste ou adequação das decisões ao caso concreto, estaremos trocando sistemas (ambos com qualidades e defeitos), mas acreditamos que o judicial pode ser um “mal menor” em comparação ao modelo de justiça formal desajustado à realidade contemporânea. [...] Ativismo judicial não pode representar usurpação de competências confiadas a outros poderes democráticos e desrespeito às fontes do Direito, e também não pode gerar insegurança e desigualdade, sob pena de cada juiz ter um ordenamento para si e segundo sua própria vontade” (FRANCISCO, José Carlos, 2012, p. 79). 92 Sobre a conceituação do ativismo judicial, seu desenvolvimento na teoria norte-americana e abordagem sobre a doutrina contrária (self-restraint), ver: DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Gasparetto. Ativismo judicial no controle de constitucionalidade. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Grotti de; NOVELINO, Marcelo. As novas faces do ativismo judicial. São Paulo: Jus Podivm, 2011. 93 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, n. 23, nov. 2014, p. 115. 94 Cf. ENTERRIA, Eduardo García, op. cit.

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variadas normas com cláusulas abertas ou mesmo pelos princípios consagrados nos textos constitucionais que, em função de sua abstração, permitem maior alargamento interpretativo a ser levado a cabo quando da tomada da decisão96. No entanto, conforme adverte André Ramos Tavares, ainda que a matéria seja política97, a decisão é sempre jurídica, ou seja, toda decisão constitucional ostenta natureza jurídica em todos os sentidos, especialmente porque ao proferir suas decisões o Tribunal Constitucional se vale de um método, i.e, de um conjunto especializado e com elementos concatenados que racionalizam o processo de decisão98. Ainda, prossegue o mencionado autor, ainda que sejam detectados elementos extrajurídicos (dentre eles políticos) na ratio decidendi – fato inevitável – mesmo assim está a se tratar de uma decisão jurídica racionalizada e ancorada numa metodologia jurisdicional de caráter técnico99. Não bastasse isso, apenas os fundamentos jurídicos na motivação da decisão judicial é que devem ser considerados, sob pena de o resultado alcançado ser considerado ilegítimo. Por via de consequência, todas as decisões proferidas pela Justiça Constitucional devem estar ancoradas, obrigatoriamente, em fundamentos constitucionais e legais, ou seja, a atividade jurisdicional deve obediência irrestrita ao ordenamento jurídico já existente. Diante dessas colocações, percebe-se que a atuação da Justiça Constitucional demanda uma simbiose entre o aspecto político e o viés jurídico, ambos atuando de forma integrada100 para que o desempenho das funções por essa efetivadas atinja a sua finalidade: a preservação

95 Para Paulo Bonavides, “toda a legitimidade em matéria constitucional é mais política que jurídica. No entanto – até parece um paradoxo – justamente por assentar sobre bases políticas faz ela a estabilidade do poder e, por consequência, sua solidez, seu reconhecimento social” (BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade: algumas observações sobre o Brasil. Estudos Avançados, v. 18, n. 51, 2004, p. 131). 96 Lenio Streck corrobora a dimensão política da Constituição ao afirmar o que segue: “[...] é possível afirmar que a dimensão política da Constituição não é uma dimensão separada, mas, sim, o ponto de estofo em que convergem as dimensões democrática (formação da unidade política), a liberal (coordenação e limitação do poder estatal) e a social (configuração social das condições de vida) daquilo que se pode denominar de “essência” do constitucionalismo do segundo pós-guerra” (Cf. STRECK, Lenio Luiz, 2014c, p. 89). 97 Sobre o caráter jurídico-político das decisões do Supremo Tribunal Federal como órgão da Justiça Constitucional no Brasil remete-se à leitura de: MELO, Marconi Antas Falcone de. Justiça constitucional: o caráter jurídico-político das decisões do STF como órgão da justiça constitucional. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. 98 TAVARES, André Ramos, 1998. 99 Idem. 100 Defendendo a integração entre o político e o jurídico na atuação do Tribunal Constitucional, André Ramos Tavares conclui: “Depreende-se de tudo quanto foi dito que a questão política pode realmente ingressar no domínio do Tribunal Constitucional, mas só o fará legitimamente sob as vestes da interpretação constitucional. De fato, onde a Constituição deixa um campo aberto, para a prudente delimitação do magistrado, este há de necessariamente socorrer-se dos mais diversos elementos, inclusive extrajurídicos, para preencher conceitos abstratos, dar conteúdo ou sentido a termos ou normas aparentemente ambíguas, etc. Os efeitos políticos da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional lhe são externos, como observado acima, pelo que não são capazes de determinar a natureza da decisão proferida por esse órgão, nem tampouco a natureza do próprio órgão (TAVARES, André Ramos, 1998, p. 67).

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da integridade do texto constitucional, o qual, repita-se, é um documento político101, mas cumulativamente jurídico-normativo. Dito isso, passa-se a analisar alguns argumentos que colocariam em xeque a legitimidade da Justiça Constitucional, seja porque a sua tarefa seria proeminentemente política, portanto, ilegítima, seja porque a formação do Tribunal Constitucional (órgão central da Justiça Constitucional) não corresponderia à exigência das democracias modernas, sob o argumento de que os membros da Corte são escolhidos, por decisão discricionária, em regra pela Chefia do Poder Executivo Federal – caso do Brasil. A forma de designação dos membros do Tribunal Constitucional costuma ser apontado como um dos fatores mais elucidativos não apenas do caráter político da Corte, mas também da suposta deficiência democrática, uma vez que não há no processo de escolha de seus integrantes a participação pelo povo. No Brasil, assegura-se ao Presidente da República mediante competência exclusiva a nomeação dos membros integrantes do STF, e também de outras Cortes102, encontra respaldo no texto constitucional, mormente no art. 84, inciso XIV. Na composição do STF, há discricionariedade plena para que o Presidente da República indique as pessoas que deverão assumir o cargo pretendido, desde que cumpridos os requisitos constitucionais de idade (no mínimo 35 anos de idade) e possua notório saber jurídico, bem como reputação ilibada (dicção do art. 101 da CF). É importante tecer a observação de que, conquanto o Presidente da República tenha a livre discricionariedade de escolha dos membros do Tribunal Constitucional, exige-se a sua chancela pela maioria absoluta do Senado Federal (art. 101 da CF). Muito embora a necessidade de chancela pelo Senado Federal atenue a suposta influência política existente na indicação, ainda assim costuma-se apontar para os riscos decorrentes desse sistema, que, segundo alguns autores, traria uma dúvida a respeito da ilegitimidade na atuação do Tribunal Constitucional a partir desse processo de designação. Com peculiar atenção Fernando Fabiani Capano e Glauco Costa Leite tecem reflexões sobre o sistema de indicação adotado pelo Brasil – também pelos Estados Unidos e pela Argentina –, e afirmam que:

101 Márcio Pugliesi ressalta o caráter político da Constituição e afirma sobre a Carta brasileira: “Assim, esse documento político (construído após violenta luta para chegar ao poder por parte daqueles que haviam sido postos à margem do exercício político por mais de outros vinte anos, após o esfacelamento de lideranças por formas ainda opressivas de poder) reuniu, tendo por cenário a compreensão possível um novo processo de libertação e fixação de ideais republicanos, textos de diversa lavra e a serviço de diferenças tendências e interesses” (PUGLIESI, Márcio. Hermenêutica constitucional. Senatus (Senado Federal), v. III, 2008, p. 103). 102 Do mesmo modo compete ao Presidente da República nomear os membros do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho, do Tribunal Superior Eleitoral e do Superior Tribunal Militar.

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Malgrado a existência do sistema de nomeações tenha por escopo o próprio prestígio da separação dos poderes – especialmente porque há a participação efetiva dos Poderes Executivo, que indica, e do Legislativo, que conforma a indicação –, na prática existem vicissitudes que demanda análise. Ao executar uma composição ideológica de diversos cargos de natureza eminentemente técnica, questiona-se em que medida o Poder Executivo estaria pautando suas escolhas pelo interesse político vigente. Discute-se se há justificativa plausível para a centralização da escolha dos membros das Cortes Superiores, especialmente do Supremo Tribunal Federal, na pessoa do presidente da República, como suposto instrumento à concretização democrática. O sistema atual, em que os cargos de ministros do Supremo Tribunal Federal e parte dos cargos das demais Cortes Superiores são ocupados por meio de livre indicação, demanda atuação política por parte daqueles que aspiram a ascensão aos cargos. A escolha pressupõe a aproximação dos candidatos, muitas vezes fazendo campanha junto àqueles que podem auxiliar nas nomeações, especialmente de pessoas próximas à Presidência da República.103

Dessa forma, existe o receio de que os membros designados à Corte Constitucional, em função do processo discricionário de escolha pelo Chefe do Poder Executivo Federal, de algum modo, direcionem a atividade jurisdicional para favorecer os responsáveis por sua designação. Vale lembrar, nesse quesito, que o Presidente da República – no caso da prática de crime comum –, bem como os deputados e senadores – que possuem imunidade formal – são julgados perante o Tribunal Constitucional, o qual funciona como primeira e última instância, o que suscita dúvidas a respeito dos reais fundamentos que levaram à escolha dos membros do indicado órgão. Além do indigitado possível motivo para a escolha dos integrantes da Corte, também se faz necessário destacar a possibilidade da atuação de grupos de pressão, especialmente do lobby, que podem influenciar diretamente na decisão do Senado, responsável pela confirmação das indicações. Nesse sentido, em estudo realizado por Gregory Caldeira e John Wright com relação a três nomeações à Suprema Corte americana, constatou-se a influência direta de alguns grupos de interesse, os quais apresentaram ao Senado algumas pesquisas atinentes à aceitação ou não do nome dos candidatos, e também a ideologia política dos pleiteantes ao cargo104. Soma-se a isso o fato de que, decorrendo a nomeação dos integrantes da Corte de critério discricionário por parte do Presidente da República, o qual leva em consideração,

103 CAPANO, Fernando Fabiani; LEITE, Glauco Costa. Reflexões sobre o sistema brasileiro de composição das cortes superiores. In: CAGGIANO, Monica Herman Salem (Org.). Reforma política: um mito inacabado. Barueri/SP: Manole, 2017, capítulo 8, p. 166-167. 104 CALDEIRA, Gregory A.; WRIGHT, John R. Lobbying for justice: organized interests Supreme Court nominations, and United States senate. American Journal of Political Science, v. 42, n. 2, abr. 1998.

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dentre outros fatores, a ideologia adotada pelo ministro a ser indicado, corre-se o risco de que o Tribunal Constitucional tenha subdivisões indesejadas, marcadas pela defesa de interesses distintos que não a proteção do texto constitucional. Pautando-se nesses receios é que existem variadas propostas que visam a modificar a forma de designação dos membros do STF, especialmente como meio de robustecer a legitimidade do indicado órgão. Um exemplo disso são as seguintes Propostas de Emenda Constitucional: a) PEC 3/2014, de autoria da senadora , a qual tencionava a alteração do modo de escolha dos ministros do Supremo para possibilitar maior distribuição de poder nas indicações. Pela proposta o Presidente da República indicaria, livremente, três candidatos, e as demais vagas seriam objeto de indicação por variados órgãos (Superior Tribunal de Justiça – STJ, Tribunais Regionais Federais – TRFs, Tribunais Regionais do Trabalho – TRTs, Tribunais de Justiça – TJs, Ministério Público da União – MPU, Ministério Público Estadual – MPE, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Congresso Nacional), a partir de lista tríplice, com escolha posterior do Presidente da República. O método de confirmação das indicações pelo Senado Federal ficaria mantido. Referida PEC, no

entanto, fora arquivada pelo fim da legislatura pela senadora proponente105; e b) PEC 17/2011, apresentada pelo deputado federal Rubens Bueno, a qual também tenciona modificar a forma de designação dos membros do STF e propõe que ao Presidente da República sejam asseguradas apenas duas indicações, de forma livre, de modo que as indicações remanescentes também serão distribuídas entre variados órgãos (STJ, OAB, MPF, CD e SF). A partir desses argumentos, questiona-se: O processo de escolha encimado, de caráter aparentemente jurídico e discricionário, tem o condão de deslegitimar a atuação do Tribunal

Constitucional como principal defensor106 da Constituição? A resposta, parece-nos, deve ser negativa, embora, de fato, fosse interessante que o processo de escolha dos ministros pelo Presidente da República tivesse algum tipo de participação de outros poderes/entidades civis, com a elaboração, por exemplo, de uma lista tríplice, a partir da qual o Chefe do Poder Executivo Federal devesse efetivar a sua escolha.

105 O Regimento Interno do Senado Federal prevê expressamente em seu art. 332 que ao fim da legislatura impõe-se a extinção dos projetos em tramitação, com algumas exceções. 106 Para André Ramos Tavares, o termo “defensor da Constituição” deve ser atribuído a todo aquele que pretenda proteger a Constituição de violações diretas, o que engloba desde o cidadão, o Presidente da República, o Legislador, mas principalmente o Tribunal Constitucional (TAVARES, André Ramos, 1998).

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Existem variados exemplos107 que, à vista do atual adotado pelo Brasil – o qual, repita-se, é também replicado nos Estados Unidos e na Argentina, seriam mais adequados sob a perspectiva democrática. Em primeiro lugar, percebe-se que a designação “política” dos membros do Tribunal Constitucional não tem o condão de deslegitimar a função jurídica por este exercida. E um elemento essencial, ao menos na realidade brasileira, está atrelado à vitaliciedade garantida pelo texto constitucional108 aos ministros do STF. Dessa forma, “esse aspecto temporal é capaz de gerar, por si mesmo, um elemento legitimador do órgão, que permanece íntegro enquanto passam vários governos e várias maiorias no parlamento”109. Isso porque, uma vez aprovados para o cargo, permanecerão, em regra, até sua aposentadoria (com exceção no caso de crime de responsabilidade de possível impeachment), independentemente de qualquer manifestação de vontade dos órgãos responsáveis por sua escolha. Inexistindo qualquer necessidade de serem reconduzidos ao cargo, não estarão suscetíveis a manifestar suas opiniões visando à sua reeleição110. Em interessante trabalho de cunho empírico realizado por Maria Fernanda Jaloretto e Bernardo Pinheiro Machado Mueller, é possível constatar, mediante dados coletados a partir de variadas decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional no Brasil, que o método de escolha dos ministros do STF não compromete a independência do Poder Judiciário. Isso porque, a despeito de, no período analisado (junho de 2002 a outubro de 2009) ter ocorrido um aumento gradativo de ministros da Corte indicados pelo então Presidente da República

107 Como apontado por Glauco Costa Leite, a experiência do direito comparado denota a existência de pelo menos sete tipos de sistemas de designação das Cortes Superiores: a) o modelo adotado aqui no Brasil, isto é, a indicação dos membros é realizada exclusivamente pelo Presidente da República; b) a indicação é efetivada pelo Presidente, mas após a delimitação dos possíveis candidatos indicados em lista tríplice por outros órgãos; c) nomeação levada a cabo pelo Senado Federal, após a elaboração de listas por outros órgãos; d) nomeação de magistrados, de forma exclusiva, após indicação de seus órgãos de carreira; e) ministros eleitos diretamente pela população; f) a indicação pode ser feita pelo Senado Federal e pela CD; e g) ingresso mediante certame público (LEITE, Glauco Costa. Corrupção política: mecanismos de controle e fatores estruturantes no sistema jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2016). 108 Deve-se registrar, no entanto, a existência da PEC n. 16/2019, de autoria do senador Plínio Valério, a qual propõe a alteração do art. 101 da Constituição sob o argumento de atingir maior legitimidade democrática para: a) determinar que o mandato dos próximos Ministros escolhidos para compor a Suprema Corte seja de oito anos, sem possibilidade de recondução (o que não se aplicará aos Ministros em exercício); e b) estabelecer o prazo máximo de um mês para que, detectando a vacância de um cargo no STF o Presidente faça a indicação ao Senado Federal no indicado prazo, sob pena de não o fazendo a escolha restar sob a responsabilidade do Senado Federal. Referida PEC encontra-se atualmente na Comissão de Constituição e Justiça para emissão de relatório pelo relator designado, o senador Antonio Anastasia. 109 TAVARES, André Ramos, 1998, p. 35. 110 Idem.

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Luís Inácio Lula da Silva, confirmou-se um elevado grau de decisões consensuais na Corte

(segundo a estimativa realizada foi de mais de 90%)111. Mas não é só. Embora essa forma de escolha adotada no sistema jurídico brasileiro possa, de fato, gerar um certo tipo de dependência ou relação de proximidade entre o designado e o responsável por sua escolha, na prática tem se percebido um grau considerável de independência e responsabilidade pela maior parte dos ministros no Brasil. Um exemplo muito claro dessa ausência de vinculação automática e obrigatória foi demonstrada quando do julgamento da Ação Penal (AP) 470 (conhecida como o processo do Mensalão), em que o relator, ministro Joaquim Barbosa, então escolhido pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, condenou diversos integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), aplicando-lhe duras penas fundamentadas no rigor da lei. Soma-se a isso o fato de existir vedação expressa constante na Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), proibindo expressamente que os juízes integrantes do Poder Judiciário brasileiro – dentre eles os ministros empossados do STF –, exerçam atividade político-partidária, o que funciona, inclusive, como fórmula de preservação da separação de funções. Nessa senda, ainda que um ministro designado pelo Chefe do Poder Executivo Federal tenha tido, ao longo de sua vida, filiação anterior a partido político ou exercido atividade político-partidária, deverá pedir a desfiliação antes de sua nomeação112. Por tais considerações, parece-nos que o argumento de que a designação dos membros do Tribunal Constitucional no Brasil, por si só, caracterize a atuação do órgão como exclusivamente política, e, portanto, ilegítima113.

111 JALORETTO, Maria Fernanda; MUELLER, Bernardo Pinheiro Machado. O procedimento de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal – uma análise empírica. Economic Analysis of Law Review (EALR), Brasília, v. 2, n. 1, jan./jun, 2011. 112 Vale ressaltar aqui que conforme dados extraídos pelos cientistas políticos André Marenco e Luciana da Ros, no período que varia de 1985 até 2006, apenas aproximadamente 33% dos designados possuíam filiação partidária, e apenas um a cada três ministros que chegam, de fato, à Corte Constitucional, o fizeram baseados apenas em uma carreira exclusivamente jurídica, o que, segundo os autores, indica os limites existentes para uma distinção com o campo político (SANTOS, André Marenco dos; DA ROS, Luciano. Caminhos que levam à Corte: carreiras e padrões de recrutamento dos ministros dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário brasileiro (1829-2006). Rev. Socio. Polit. [on-line], v. 16, n. 30, p. 131-149, 2008). 113 Em sentido contrário, no entanto, Gérson Marques pontua a ilegitimidade de ingresso dos membros do Supremo Tribunal Federal sob o argumento de que em uma democracia as ideias básicas que a movimenta repousam no governo da maioria, periodicidade dos governantes e mais, efetiva participação popular. Ainda, segundo o autor, outro ponto que chama a atenção é o fato de representantes transitórios (Presidente e senadores) terem o poder de nomear os membros permanentes e vitalícios da Corte Constitucional, de modo que a nomeação pelo Chefe do Poder Executivo atuaria como fator enfraquecedor da autoridade do STF, que, segundo afirma, atuaria com receio quanto a censurar atos do Poder Executivo (LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira. São Paulo: Malheiros, 2009).

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Do mesmo modo, não procedem as alegações de que a ausência de escolha direta pelo povo com relação aos ministros do Tribunal Constitucional denotaria uma ausência de legitimidade sob a perspectiva democrática. A princípio, deve-se rememorar aqui o real significa do que é a democracia. E para alcançar tal tarefa, a fórmula mais simples, mas igualmente famosa, é retratada nas palavras de Abraham Lincoln em seu discurso proferido em 19 de novembro de 1863, definindo a democracia como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Nas palavras de Monica Herman Salem Caggiano, essa fórmula representa uma política especial que impõe “[...] a indisponibilidade do pluralismo político e a livre manifestação das opções políticas, de sorte que o polo da tomada de decisões venha a espelhar as perspectivas da comunidade”114. Jorge Miranda, por sua vez, acentua que o regime democrático exige não apenas o exercício do poder político pelo povo, pelos cidadãos, mas especificamente que a vontade popular, quando contrastada com as formas constitucionais, deve ser o critério determinante de ação do Estado e governantes115. Disso resulta que o valor central que move as democracias é a ideia de soberania popular, princípio edificante da estrutura do Estado Democrático de Direito. E isso geralmente leva a crer que as democracias se resumiriam à ideia do princípio majoritário ou ao “governo da maioria”. No entanto, embora o princípio majoritário seja uma linha de condução das decisões políticas do Estado, a democracia e as Constituições exigem como regra mandatória a preservação das minorias, de sua liberdade de formalização de preferências políticas e do direito de oposição116. É por isso que José de Souza e Brito aponta a importância da Justiça Constitucional para a resolução de questões que envolvem maior exercício interpretativo, dentre eles, a preservação dos direitos das minorias dentro das democracias117. E nessa perspectiva, uma das funções da Justiça Constitucional, como órgão máximo de proteção da integridade do texto constitucional, é de assumir um papel contramajoritário em defesa dos elementos essenciais da Constituição. Disso resulta a possibilidade de que os membros da Corte Constitucional, que nunca foram escolhidos pelo povo mediante sufrágio,

114 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Democracia x Constitucionalismo: um navio à deriva? = La démocratie x le constitutionnalisme: um bateau à la derive? São Paulo: Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, 2011. 115 MIRANDA, Jorge. Constituição e Democracia. In: MIRANDA, Jorge; MENEZES, Fernando Antônio Dias; SILVEIRA, João José Custódio da (Coords.). Justiça constitucional. São Paulo: Almedina, 2018. 116 PAIXÃO, Leonardo André. A função política do Supremo Tribunal Federal. 2007. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. 117 BRITO, José de Souza e. Jurisdição constitucional e princípio democrático. In: BRITO, José de Souza e. et al. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995.

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podem sobrepor a sua interpretação sobre o texto constitucional àquela levada a cabo pelo próprio Poder Legislativo118. Dessa forma, acaso se considerasse, de fato, a existência de embate entre o princípio da soberania popular e a legitimidade do Tribunal Constitucional por conta de sua forma de composição, a vontade da maioria cederia à Justiça Constitucional, haja vista a ideia de primazia da Constituição e necessária defesa do texto constitucional119. O que se percebe, entretanto, é que há um equívoco no argumento daqueles que entendem pela falta de legitimidade da Justiça Constitucional por suposta ausência de respeito à soberania popular. Isso porque, ainda que indiretamente, o processo de escolha dos membros que compõem as Cortes Constitucionais é corroborado pelo exercício do sufrágio universal no processo eleitoral democrático. Explica-se: nos países em que a designação dos membros da Corte Constitucional seja efetivada pelo Presidente da República ou mesmo pelos membros do Congresso Nacional, a fundamentação democrática encontra respaldo na soberania popular, pois aqueles que detêm a responsabilidade pela escolha foram, diretamente (no caso do Brasil, pelo menos), escolhidos pelo povo. Questionar a legitimidade dos membros do Tribunal Constitucional apenas pela forma de sua composição – aparente ausência de participação popular –, importaria na necessidade de também se reconhecer que os ministros de Estado, por exemplo, que são escolhidos discricionariamente pelo Presidente da República, também não possuem legitimidade constitucional, o que não possui razão de ser. Jorge Miranda, com peculiar acerto, assinala a legitimidade da Justiça Constitucional e a importância de suas funções, ressaltando a regularidade do seu processo de escolha de forma democrática:

[...] É, justamente, por os juízes constitucionais serem escolhidos por órgãos democraticamente legitimados – em coerência, por todos quantos a Constituição preveja, correspondentes ao sistema de governo consagrado – que eles podem declarar a invalidade de atos com força de lei. E por eles, embora por via indireta, provirem da mesma origem dos titulares de órgãos políticos que por estes conseguem fazer-se acatar.120

Ademais, é forçoso lembrar que a Justiça Constitucional, suas estruturas e funções são objeto de expressa previsão constitucional, vale dizer, são fruto do Poder Constituinte que

118 BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: Os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, 2018. 119 Cf. TAVARES, André Ramos, 1998. 120 MIRANDA, Jorge, op. cit., p. 37.

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permite o próprio exercício da soberania popular. Dessa forma, o fato de os membros da Corte Constitucional não serem designados mediante eleição popular não torna a sua atuação menos legítima. Nesse particular Thaminne Nathalia Cabral Moraes e Silva e Francisco Ivo Dantas Cavalcanti reforçam a legitimidade conferida à Justiça Constitucional pela própria constituição ao afirmarem que:

Não há nenhum comprometimento ao conceito de Democracia, o fato de haver controle sobre a produção legislativa levada a efeito por órgão composto por “representantes do povo”, até porque, no fundo, o controle de constitucionalidade visa salvaguardar a vontade expressa no documento fundante de uma sociedade, em determinado momento histórico. Dizendo melhor: a Constituição Político-Jurídica é um documento que resulta de um consenso oriundo das diversas forças políticas presentes na Assembleia Constituinte no ato de elaboração do texto maior. Ora, em sendo assim, esse texto foi feito para balizar o exercício do poder, mesmo quando existam forças eventualmente majoritárias que queiram substituir a orientação ideológica da Lei Maior. A verificação desta compatibilização há de ser feita de forma técnica, o que justifica seja o Controle exercido por Magistrados sem vinculação político-partidária. Sua legitimidade é decorrente da própria Constituição, ou seja, é funcional.121

Alessandro Otavio Yokohoma acrescenta ainda o fundamento de que os ministros que constituem as Cortes Constitucionais, além de representarem ideologias sociais distintas, também provêm de carreiras profissionais diversas, o que traz a necessária cosmovisão multidisciplinar de mundo que se espera de uma Corte Constitucional que julgará os mais variados conflitos da vida em sociedade122. Há ainda aqueles que reforçam a legitimidade da Justiça Constitucional sob o argumento de que as decisões jurídico-políticas prolatadas pelo órgão são efetivadas a partir de um procedimento jurisdicional que o legitima123. A verdade é que, diante do papel exigido pela Constituição quanto à garantia de direitos mínimos de modo a proteger a sociedade e especialmente as minorias contra maiorias opressoras, a Justiça Constitucional tem a importante função de atuar como balança entre os

121 SILVA, Thaminne Nathalia Cabral Moraes e; CAVALCANTI, Francisco Ivo Dantas. Legitimidade da justiça constitucional: democracia, tribunal constitucional e corrente contramajoritária. Revista Brasileira de Filosofia do Direito, Curitiba, v. 2, n. 2, jul/.dez, 2016, p. 88. 122 YOKOHOMA, Alessandro Otavio. Dimensão positiva da proporcionalidade no controle concentrado de constitucionalidade perante o STF na Constituição de 1988: superação do dogma do legislador negativo. 2006. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. 123 Nesse sentido ver: MELO, Marconi Antas Falcone de, op. cit.

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poderes no Estado, e, por via de consequência, garantir o exercício legítimo da fórmula democrática124. Por derradeiro, conforme anota Alexandre de Moraes a legitimidade do Tribunal Constitucional está também ancorada na necessária atenção, por parte do Poder Público, no que toca à efetivação dos princípios objetivos e direitos e garantias fundamentais asseguradas pela Constituição, sob pena de aí sim, por flagrante inconstitucionalidade de sua conduta, ter- se exercício ilegítimo de suas funções125. Ante o exposto, demonstrada a legitimidade da Justiça Constitucional, mormente do Tribunal Constitucional, passa-se a analisar as teorias que envolvem o exercício da função primordial desenvolvida no âmbito da proteção da integridade do texto constitucional, qual seja: a interpretação das normas constitucionais e os limites (se existentes) à tarefa de aplicação do direito.

1.4 Função Interpretativa da Justiça Constitucional: Superação do Legislador Negativo x Limites Interpretativos

Como se anotou em linhas anteriores, dentro do seu espectro de atuação, é na função interpretativa que os Tribunais Constitucionais exercem atividade prima facie, vale dizer, é na análise sobre a determinação e o alcance do texto normativo que referidos órgãos conseguem, de maneira mais efetiva, cumprir com sua missão institucional: resguardar a integridade da Constituição, mantendo o espírito que lhe deu origem. Essa tarefa interpretativa, contudo, passou por um novo redimensionamento desde a formação da Justiça Constitucional. Num primeiro momento, pela defesa de Kelsen, o Tribunal Constitucional deveria funcionar apenas como um legislador negativo, isto é, somente lhe seria reconhecido o poder de invalidar as leis contrárias ao texto constitucional, de modo que a tarefa de criação do direito se admitiria apenas em pequena medida. Assim, apenas ao Legislativo era reconhecido o poder de inovar e elaborar livremente as leis, desde que obedecidos os contornos constitucionais – razão pela qual seria o legislador positivo126.

124 RANGEL, Gabriel Dolabela Raemy. A legitimidade do poder judiciário no regime democrático: uma reflexão no pós-positivismo. São Paulo: Laços, 2014. 125 MORAES, Alexandre de. Legitimidade da justiça constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 40, n. 159, jul./set. 2013. 126 Essa visão sobre o papel do Tribunal Constitucional fica evidenciada pelo seguinte trecho da obra do autor: “A anulação de uma lei se produz essencialmente como aplicação das normas da Constituição. A livre criação que caracteriza a legislação está aqui quase totalmente ausente. Enquanto o legislador só está preso pela

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A construção teórica do legislador negativo teve por base dois fundamentos centrais: a) como o Tribunal Constitucional fora criado em sua concepção com a tarefa de anulação das leis, a criatividade judicial seria consideravelmente restrita diante da limitação trazida pela Constituição; e b) refutar as alegações de que o Tribunal Constitucional, no exercício de sua função de controle da constitucionalidade das leis, estaria causando desequilíbrio na fórmula da separação de poderes, eis que estaria atuando indevidamente sobre a função legiferante do Poder Legislativo. Essa concepção, no entanto, tem sido cada vez mais questionada no estado atual da hermenêutica constitucional, pois as novas concepções advindas do Constitucionalismo contemporâneo em que os direitos fundamentais atuam como peça crucial na atividade interpretativa, reforçam a abertura interpretativa trazida pelo texto constitucional. Em razão da elasticidade e da alta carga valorativa imbuída no texto constitucional na contemporaneidade, o qual inclusive reconhece a força normativa dos princípios, deve-se reconhecer que o papel de criação do direito pela Corte Constitucional não apenas é real, como também legítimo. Mauro Cappelletti há muito já reconhecia a esterilidade e até mesmo a banalidade dessa controvérsia a respeito do papel de criação do direito pelos juízes, pois em suas palavras:

Mas a verdadeira discussão se inicia apenas nesse ponto. Ela verte não sobre a alternativa criatividade não criatividade, mas (como já disse) sobre o grau de criatividade e os modos, limites e legitimidade da criatividade judicial. Ora, é evidente que a decisão baseada na “equidade”, por exemplo, tem espaço mais amplo de escolha do que a baseada e vinculada a precisos precedentes judiciários ou detalhadas prescrições legislativas. Conquanto verdade que nem precedentes nem normas legislativas podem vincular totalmente o intérprete – que não podem, assim, anular de todo a que denominarei imprescindível necessidade de ser livre, e, portanto a sua criatividade e responsabilidade –, também é verdade, contudo, que o juiz, vinculado a precedentes ou à lei (ou a ambos), tem como dever mínimo apoiar sua própria argumentação em tal direito judiciário ou legislativo, e não (apenas, na “equidade”) ou em análogos e vagos critérios de valoração.127 (grifos originais)

A preocupação, dessa forma, não deve estar centralizada na possibilidade ou não da criação do direito pelo Tribunal Constitucional, “mas sim o grau de criatividade que pode ser

Constituição no que concerne a seu procedimento – e, de forma totalmente excepcional, no que concerne ao conteúdo das leis que deve evitar, e mesmo assim por princípios ou diretivas gerais –, a atividade do legislador negativo, da jurisdição constitucional é absolutamente determinada pela Constituição” (KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 153). 127 CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 24-25.

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admitido pelo sistema jurídico, sem comprometer a legitimidade democrática do processo jurisdicional”128. Fato é que a abertura semântica das constituições e a ampliação do escopo de atuação da Justiça Constitucional para além de um mero legislador negativo foi viabilizada principalmente em função da contemplação das bases principiológicas dos direitos humanos no mundo, pela ideia de supremacia constitucional e também pela obrigatória vinculação do

Poder Legislativo quanto à disciplina dos direitos fundamentais129. A isso deve-se somar o reconhecimento da força normativa dos princípios, numa tendência denominada de pós-positivismo130-131 surgida a partir da década de 1950, cujas bases teóricas e metodológicas foram abordadas por diversos autores, destacando-se Ronald

Dworkin, Genaro Carrió e Robert Alexy132. É por isso que Ruy Samuel Espíndola indica que os postulados da tendência do pós-positivismo têm contribuído significativamente para reconhecer os princípios jurídicos como normas vinculantes, ao lado das regras, ambas espécies do gênero norma133-134. E na busca pela concretização dessa nova percepção constitucional, por assim dizer, os princípios assumem uma importante função diante de sua carga valorativa, a qual, nas

128 DANTAS, Frederico Wildson da Silva, op. cit., p. 70. 129 TAVARES, André Ramos, 2007. 130 Para Lenio Luiz Streck, a denominação do pós-positivismo jurídico no Brasil não corresponde à realidade, pois, segundo o autor, o positivismo jurídico ainda se encontra enraizado no sistema jurídico, notadamente quando se verifica a cisão entre easy e hard cases para definição se haverá a utilização da “ponderação” como método solucionador de princípios em colisão, quando então, o intérprete, valendo-se de critérios discricionários (marca do positivismo jurídico), elege o princípio que entende mais adequado para o caso concreto. Segundo o autor, a discricionariedade identificada no ordenamento jurídico brasileiro evidencia que o Brasil ainda é positivista (STRECK, Luiz Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014). 131 Nas palavras de Luís Roberto Barroso “O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição da relação entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de aproximação entre Direito e Ética” (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, n. 232, abr./jun 2003, p. 147). 132 GUNDIM, Wagner Wilson Deiró. Hidras e Hércules: a relação circular entre princípios e regras. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 21, n. 2, 2015. 133 O autor reconhece os “[...] princípios como normas jurídicas vinculantes, dotados de efetiva juridicidade, como qualquer outro preceito detectável na ordem jurídica, considerando ainda as normas de direito como gênero, do qual os princípios e as regras são espécies jurídicas” (ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 28). 134 Para maior aprofundamento sobre a distinção entre princípios e regras, remete o leitor à leitura de: a) ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012; b) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; c) NEVES, Marcelo. Entre Hidras e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013; e d) DANTAS, David Diniz. Interpretação Constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos. São Paulo: Madras, 2004.

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palavras de Celso Ribeiro de Bastos, “demonstram sua transcendência ao encampar valores, impedindo que a Constituição se torne um corpo sem alma, uma vez que fornecem a ótica pela qual a Constituição será manuseada de forma segura”135. As constituições modernas, imbuídas de normas de caráter aberto e imprecisas, dificultam a compreensão do seu conteúdo e, consequentemente, criam embaraços à tarefa interpretativa. É por isso que Luís Roberto Barroso explica que o conteúdo aberto, principiológico e dependente da realidade subjacente das normas constitucionais não deve ser direcionado por um sentido unívoco que se costumava atribuir pela interpretação da exegese136. Ainda nas palavras do autor:

[...] O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido.137

Essa preocupação de que as normas constitucionais estejam compatibilizadas com os fatores reais de poder – os valores que fundamentam e determinam o sentir do texto constitucional – demonstrada pela abertura das disposições constitucionais retrata a preocupação de que a Constituição e suas normas não se tornem “letra morta”138, ou, parafraseando Ferdinand Lassalle, um mero pedaço de papel. A atuação cada vez mais crescente da Justiça Constitucional numa tarefa que excede a tese do legislador negativo é demonstrada pela existência de diversas espécies de decisões normativas que ressaltam a nítida postura criativa em busca da otimização e adequação ao texto constitucional. Inclusive, são inúmeras as decisões hoje proferidas pelas Cortes Constitucionais no mundo que, ao invés de simplesmente anular uma disposição legal que contraria a Constituição, acaba preservando-a, com adequação de sentido, ou promovendo uma alteração no seu sentido, sem alterar o texto constitucional. Aqui, destaca-se o exemplo do fenômeno da mutação constitucional, mecanismo por meio do qual há uma transformação

135 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Celso Bastos/IBDC, 1999, p. 97. 136 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit. 137 Ibidem, p. 144. 138 TAVARES, André Ramos. A Constituição aberta. Revista latino-americana de estudos constitucionais, Fortaleza, n. 8, p. 326-343, jan./jun, 2008.

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na realidade da configuração do poder político, de sua formação social, mas a literalidade (o texto) constitucional permanece intacto, conforme bem anota Karl Loewenstein139. A exemplificação dessa atuação mais alargada pela Justiça Constitucional é indicada por Frederico Wildson da Silva Dantas, a partir de estudo efetivado por Riccardo Guastini, elucidando como tem se dado a prática da Corte Constitucional da Itália na interpretação conforme ou de adequação das leis à Constituição. Segundo o autor140, as diversas espécies de interpretação conforme ou de adequação se subdividem em: a) decisões interpretativas em sentido estrito: esse tipo de decisão recai não sobre a literalidade do texto normativo em si, mas sobre as possíveis interpretações a ele aplicadas. Elas se subdividem em: 1) sentenças interpretativas de rejeição ou improcedência (rechazo): ocorrem quando diante do embate entre uma interpretação pela constitucionalidade e outra pela inconstitucionalidade, a Corte rejeita a dúvida sobre a constitucionalidade, desde que tenha sido interpretada conforme a Constituição; 2) sentenças interpretativas de acolhimento ou procedência (aceptación): aplicável nos casos em que havendo aceitação pelos operados do direito sobre a inconstitucionalidade de determinado tipo de interpretação, a Corte se limita a declarar fundada a dúvida de inconstitucionalidade, mas ao invés de anulá-la, apenas declara a inconstitucionalidade de uma das possíveis interpretações, ou de parte que represente uma norma inconstitucional; b) decisões “manipuladoras” ou normativas: a Corte aqui não apenas declara a inconstitucionalidade das normas, mas comporta-se como verdadeiro legislador positivo e modifica diretamente o ordenamento, adaptando-o à Constituição. Elas podem sustentar dois tipos de fundamento: 1) sentenças aditivas: verificada quando a Corte, aplicando o princípio da igualdade, amplia o sentido da norma para que possa abranger sujeitos que antes não eram por ela alcançados; 2) sentenças “substitutivas”: decisões em que a Corte declara a inconstitucionalidade de uma norma e cria uma nova disposição legal e substituindo-a.

139 LOEWENSTEIN, Karl, op. cit. 140 DANTAS, Frederico Wildson da Silva, op. cit.

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O Tribunal Constitucional espanhol, no mesmo sentido, também tem reconhecido as variadas espécies de interpretação que condizem a essa mudança de paradigma do direito, de modo que, no âmbito da determinação do significado do enunciado legal, como afirma Miguel Azpitarte:

Em primer lugar se debe hacer referencia a las sentencias interpretativas. El TC se enfrenta a um grave dilema cuando sólo dispone de potestade para expulsar las disposiciones legales inconstitucionales: si una disposición se decanta en varias normas, uma de las cuales es inconstitucional, el TC ha de optar entre desestimar la inconstitucionalidade a riesgo de que tome cuerpo la interpretación contraria a la Constitución, o declarar inconstitucional la disposición eliminando las posibles normas constitucionales. El modo de salvar este dilema de forma airosa y em consonância com las corrientes continentales consite em determinar, dentro de las varias possibilidades que oferece la disposición, qué norma es constitucional o qué norma es inconstitucional. La primeira possibilidade responde a las llamadas sentencias interpretativas desestimatorias (105/2000), em ellas el TC rechaza la inconstitucionalidade siempre que el enunciado de la ley se interprete del modo por él estabelecido. La segunda possibilidade la forman las llamadas sentencias interpretativas estimatorias, em las cuales el TC declara inconstitucional uma concreta interpretación, lo que aún deja un amplio margen interpretativo al resto de los operadores jurídicos (SSTC 22/1981, 199/197, 212/1996). Fuera ya del ámbito estricto de las sentencias interpretativas, el TC, em ocasiones, ha integrado el significado de un enunciado legal, sin transformar su redacción, pera incluyendo um elemento no previsto. Este tipo de sentencias, que reciben diversa nomenclatura según el autor (aditivas o manipulativas, por ejemplo SSTC 116/1987 y 222/1992), están em relación com las discriminaciones inconstitucionales. La respuesta del TC consiste en incluir diretamente el elemento arbitrariamente excluído.141

Em trabalho específico sobre a temática, Edilson Nobre Júnior reconhece a adesão dos tribunais por decisões criativas e, embora critique as decisões substitutivas, defende a admissibilidade das decisões aditivas, especialmente porque a partir da experiência dos Tribunais Constitucionais na Itália e na Espanha, a técnica tem permitido a concretização do princípio da igualdade, tendo ainda o cuidado de não invadir a esfera de competência do

Poder Legislativo na tarefa de criação do direito142. Segundo o autor, existe um indiscutível ponto de distanciamento entre a atividade legislativa e a sentença aditiva, pois, ao contrário do que ocorre com a tarefa legiferante que produz uma nova norma jurídica, a adição implica apenas um complemento/aperfeiçoamento em uma norma já existente143.

141 AZPITARTE, Miguel, op. cit, p. 331-332 142 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Sentenças aditivas e o mito do legislador negativo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 43, n. 170, abr./jun. 2006. 143 Nas palavras do autor: “Com efeito, entre a atividade legislativa e a adição, oriunda do manuseio da exegese em harmonia com a Constituição, há um límpido e inegável ponto de distanciamento: é que, ao contrário do que

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No mesmo sentido, tem caminhado o STF brasileiro, o qual vem defendendo a aplicação não apenas as denominadas sentenças aditivas144 e modificativas145, mas adotando outros mecanismos como a interpretação conforme146 e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. Um exemplo de prolação de decisão aditiva pelo STF pode ser verificado no julgamento da ADPF 54, ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) objetivando que fosse permitida a interrupção da gravidez no caso de gestação de fetos anencefálicos, conferindo interpretação conforme a Constituição e por via de consequência a inimputabilidade da gestantes e dos profissionais de saúde pelos crimes previstos no Código Penal147. Ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) indigitada o STF decidiu que se afigura inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencefálico ser conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código

Penal148. Inclusive, em seu voto, o ministro Gilmar Mendes reconheceu o uso da técnica da sentença aditiva e os seus efeitos, ressaltando a importância de tal técnica como importante ferramenta no combate à omissão constitucional, superando-se a tese do legislador negativo:

[...] Assim, observe-se que, nesta ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, em que se discute a constitucionalidade da criminalização dos abortos de fetos anencéfalos, caso o Tribunal decida pela procedência da ação, dando interpretação conforme aos arts. 124 a 128 do Código Penal, invariavelmente proferirá uma típica decisão manipulativa com eficácia aditiva. Ao rejeitar a questão de ordem levantada pelo Procurador-Geral da República, o Tribunal acontece com o legislador, não se tem a elaboração de uma norma jurídica, com a discrição àquele peculiar, mas tão-só o complemento da existente, a partir de uma solução constante do sistema jurídico, cuja descoberta se deve ao labor do intérprete. Há, sem margem de dúvida, atividade de criação jurídica, sem embargo de inexistir típica ação legislativa” (NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira, op. cit., p. 130). 144 Nas palavras de André Luiz Maluf Chaves e Matheus Meott Silvestre, as sentenças aditivas possuem forte ligação com a ocorrência do fenômeno da omissão inconstitucional, e, como espécie do gênero manipulativas, “são aquelas que reconhecem a falta de elemento normativo necessário para que a norma em julgamento esteja de acordo com a Constituição e que acrescentem a essa norma o elemento ausente, que pode ser outra norma ou princípio constitucional do ordenamento jurídico (CHAVES, André Luiz Maluf; SILVESTRE, Matheus Meott. A utilização de sentenças aditivas pelo STF através da interpretação conforme à Constituição: um estudo a partir da ADPF 54. Revista Publicum, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 2017, p. 58). 145 O ministro Gilmar Mendes explicitamente defendeu a aplicação das decisões aditivas e modificações sob o argumento de se tratar “de uma necessidade prática comum a qualquer jurisdição constitucional e pelos sentidos dos textos serem imprecisos” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.351/DF, Relator: Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 07.12.2006. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 30.03.2006, p. 155). 146 A interpretação permite que o Tribunal Constitucional exclua “determinadas possibilidades de interpretação da norma, pois elas, embora compatíveis com o seu texto, contrariam a Constituição. Assim, o Tribunal declara a lei constitucional desde que interpretada em conformidade à Constituição, de modo que tal interpretação é incorporada, resumidamente, ao dispositivo da decisão” (BRANDÃO, Rodrigo. O STF e o dogma do legislador negativo. Direito, Estado e Sociedade, n. 44, jan./jun 2014, p. 197 – grifos originais). 147 Para maior aprofundamento sobre a interpretação conforme e o caso da mencionada ADPF, ver: CHAVES, André Luiz Maluf; SILVESTRE, Matheus Meott, op. cit. 148 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54. Relator: Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 12.04.2012. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 20.04.2012.

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admitiu a possibilidade de, ao julgar o mérito da ADPF 54, atuar como verdadeiro legislador positivo, acrescentando mais uma excludente de ilicitude – no caso de o feto padecer de anencefalia – ao crime de aborto. Isso quer dizer que, pelo menos segundo o meu voto, está rechaçado o argumento da autora, de atipicidade do fato. Acolho a hipótese de que a Corte criará, ao lado das já existentes (art. 128, I e II), uma nova hipótese de excludente de ilicitude ao aborto. Portanto, não se pode negar que o Supremo Tribunal Federal está a se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e, nesse passo, alia-se à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional.149

Mas não é só. Para reforçar a superação do dogma kelseniano estabelecido sobre a figura do legislador negativo, vale chamar atenção para aspectos teóricos concernentes aos efeitos das decisões prolatadas em sede de controle abstrato de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional e que são discutidos com profundidade na doutrina alemã: a) controle de prognoses legislativas; b) apelo ao legislador; e c) o efeito vinculante. A primeira das teorias está atrelada à experiência alemã de permitir que a Corte Constitucional possa decidir pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei a partir de eventos futuros, regulando os prognósticos feitos pelo legislador. No Brasil, essa doutrina é utilizada pelo ministro Gilmar Mendes nos seus julgados, tomando-se como exemplo a decisão proferida nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.548/PR, ajuizada pelo governador do Estado de São Paulo contra duas leis do Estado do Paraná que concederam favores fiscais de imposto sobre relações referentes ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), em que, contrariando a própria jurisprudência do Tribunal, o ministro deferiu o ingresso da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) na condição de amicus curiae. Em síntese, a fundamentação foi de que se fazia necessário garantir amplo acesso e participação de sujeitos interessados, quando o Tribunal faça análise sobre a legitimidade das leis, tendo por base fatos e prognoses legislativos150. A segunda teoria está atrelada à atuação do Tribunal no sentido de convocar o Poder Legislativo para, antecipando-se a uma posterior inconstitucionalidade, corrija ou adéque determinada situação jurídica, fixando-se um prazo para o seu cumprimento151. No caso do

149 Ibidem, p. 32. 150 CF. DANTAS, Frederico Wildson da Silva, op. cit. 151 Gilmar Mendes relembra a aplicabilidade dessa teoria no importante caso alemão a respeito da legislação previdenciária que apenas permitia que o cônjuge masculino auferisse a pensão previdenciária se os rendimentos da segurada fossem caracterizados como fundamentais para a provisão da família. Num primeiro momento, num

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Brasil, a tese do apelo ao legislador já foi adotada quando do julgamento da ADI 3.682/MT, ação em que se discutia a omissão do Poder Legislativo em dar regulamentação ao quanto disposto no art. 18, § 4º, da Constituição Federal, pois, apesar do mandamento constitucional no sentido de que Lei Complementar federal definisse o prazo a partir do qual poderiam tramitar os pedidos de criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, o Legislativo permaneceu inerte por mais de dez anos sem nada fazer. Ao reconhecer a omissão inconstitucional, o STF determinou que o Poder Legislativo sanasse o estado de mora constitucional dentro do prazo razoável de 18 meses152. A terceira e última teoria (efeito vinculante das decisões) apregoa que o efeito vinculante das decisões prolatadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade contempla tanto o dispositivo da decisão, como os fundamentos determinantes a respeito da interpretação aplicável, os quais, inclusive, devem ser obrigatoriamente observados em casos futuros153. De tudo quanto exposto, percebe-se claramente que o Tribunal Constitucional não mais pode ser visto como legislador negativo, pois a efetividade das Constituições contemporâneas exige uma atuação mais concreta no sentido de que as normas – regras e princípios –, bem como os direitos fundamentais trazidos pelo texto constitucional – para as maiorias e também para as minorias. Deve-se ressaltar aqui que essa assunção de novas tipologias de decisão, por si só, não afetam a legitimidade da Justiça Constitucional, pois, como já salientado outrora, a integridade/supremacia da Constituição representa o topo da escala normativa, estando acima de toda e qualquer ordem. Ao agir protegendo a integridade constitucional, o que as Cortes fazem é garantir que os valores que fundaram a Constituição mantenham-se vivos, evitando que o texto constitucional se desfaleça. Até mesmo porque, como ressaltado por David Diniz Dantas ao tratar sobre o caráter evolutivo e aberto da Constituição, o processo de interpretação normativo levado a cabo sobre o texto constitucional deve ser apto a atender o caráter múltiplo dos interesses da sociedade. Ou seja, para “captar essa dinâmica do Direito, a interpretação evolutiva comporta a

julgado de 1963, a Corte Constitucional reconheceu que tal disposição era constitucional, mas ao julgá-lo novamente em 1974, o Tribunal decidiu que embora as normas ainda não fossem inconstitucionais, as disposições estariam submetidas a um “notório processo de inconstitucionalização”, considerando que o Poder Legislativo estava obrigado a promulgar nova lei (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005). 152 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3.682/MT. Min. Relator: Gilmar Mendes. Data de julgamento: 9.5.2007. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 6.9.2007. 153 CF. DANTAS, Frederico Wildson da Silva, op. cit.

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incorporação de elementos extranormativos recepcionados dos diversos subsistemas sociais, de maneira a lograr eficácia na realidade”154. Há de se perscrutar, no entanto, quais devem ser os limites da Corte Constitucional no exercício dessa tarefa interpretativa. Isso porque, o fato de o texto constitucional, mormente na era “pós-positivista”, permitir maior elasticidade no exercício hermenêutico, a interpretação não pode ser efetivada por critérios de cunho pessoal, pautadas num subjetivismo exacerbado, individual e desfundamentado. Ou seja, não se pode admitir a figura do juiz solipsista, i.e, aquele que decide porque quer ou conforme exclusivamente a sua consciência, conforme adverte Lenio Streck155. É preciso recordar, conforme já advertira Celso Ribeiro de Bastos, que “[...] a letra da lei é o ponto de partida de sua interpretação e, mais adiante, consistirá no limite da mesma”156. E mais, segundo ressalta Márcio Pugliesi, “toda interpretação correta deve fugir da arbitrariedade e das limitações decorrentes de hábitos mentais inconscientes, aproximando-se das coisas e submetendo-se a elas, como sua tarefa permanente”157. Dessa forma, por considerar que a atuação da Justiça Constitucional no mundo, mas principalmente no Brasil, é de extrema relevância para concretização do espírito constitucional, mas, por cumulativamente, ter-se o receio de que o exercício interpretativo seja realizado sem qualquer tipo de limitação, que a presente tese encontra seu fundamento. A proposta é justamente apresentar a hermenêutica filosófica gadameriana como possível caminho para, harmonizando a atuação concretista da Justiça Constitucional no Brasil, a direcionar para um caminho distante das condutas solipsistas e discricionárias.

1.5 Justiça Constitucional no Brasil: Supremo Tribunal Federal e sua Atuação Enquanto Corte Constitucional

Antes de lançar a análise prática proposta por esta tese no sentido de verificar, dentre decisões da Suprema Corte brasileira, se há uma possível exacerbação no exercício de sua atividade interpretativa, torna-se necessário analisar a formação desse órgão no país, bem como suas funções, para que, posteriormente, seja possível verificar a sua caracterização ou não como Tribunal Constitucional.

154 DANTAS, David Diniz, op. cit. 155 STRECK, Luiz Lenio, 2014. 156 BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 110. 157 PUGLIESI, Márcio, 2008, p. 14.

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Em 1808, após a mudança da Coroa portuguesa para o Brasil, o então príncipe regente D. João VI estabeleceu, por meio de Alvará Régio, a criação da Casa da Suplicação – órgão similar ao existente em Lisboa/Portugal –, que tinha por competência o julgamento de pleitos em última instância, sem a possibilidade de recursos158. Posteriormente, a Casa da Suplicação foi substituída pelo Supremo Tribunal de Justiça em 1829159 (predecessor do STF), órgão cuja estruturação e competência eram estatuídas pelos arts. 163 e 164, respectivamente, da

Constituição de 1824160. Apenas em 1890, por meio do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, de lavra do Governo Provisório da República, é que o STF fora efetivamente criado como substituto do STJ. Posteriormente, com a promulgação da Constituição de 1891, o seu status constitucional fora assegurado pelos arts. 55 e 56, tendo o órgão sido instalado em 28 de fevereiro de 1891, integrado por 15 juízes, dos quais a maioria adveio do Supremo Tribunal de Justiça161. Como aponta Carlos Velloso, o Poder Judiciário durante a República assume posição de verdadeiro poder político. Inclusive, citando conferência proferida por Seabra Fagundes que em 1952 consigna:

Esclarece Seabra Fagundes, em conferência pronunciada em 1952, que “vínhamos, em 1891, do Império, onde a Justiça não tinha nenhuma expressão política. Era um poder que se limitava a dirimir as controvérsias do direito privado, de modo que os atos da Administração Pública escapavam, por inteiro, ao seu controle. E, de chofre, pela instituição da República, o Poder Judiciário foi elevado a plano de excepcional importância na vida política do País. Atribuiu-se-lhe, ao lado da função que já era sua, de mero dirimidor das questões de ordem privada, uma outra, de

158 DIREITO, Gustavo. O Supremo Tribunal Federal: uma breve análise da sua criação. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 260, p. 255-282, maio/ago. 2012. 159 Conforme anota Carlos Mário Velloso: “O Supremo Tribunal de Justiça da Constituição Imperial de 1824 não se afirmou, entretanto, como poder político. Ele não era, na verdade, um tribunal às inteiras. É bem possível que os ilimitados poderes de moderação do Imperador tenham impedido aquele Tribunal de exercer com largueza a função jurisdicional. Talvez por isso, ou também por isso, o Supremo Tribunal de Justiça não foi um poder. É certo que concorreu para que tal ocorresse, a inexistência, na Constituição de 1824, do controle judicial da constitucionalidade das leis. Sabemos que, por influência do constitucionalismo francês, o controle de constitucionalidade, na Carta Imperial, era do próprio Legislativo” (VELLOSO, Carlos Mário. O supremo tribunal federal, corte constitucional: uma proposta que visa tornar efetiva a sua missão precípua de guarda da Constituição. R. Dir. Admin., Rio de Janeiro, n. 192, p. 1-28, abr./jun. 1993, p. 2). 160 Art. 163. Na Capital do Império, além da Redação, que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um Tribunal com a denominação de – Supremo Tribunal de Justiça – compostos de Juízes Letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o Título do Conselho. Na primeira organisação poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daquelles, que se houverem de abolir. Art. 164. A este Tribunal Compete: I. Conceder, ou denegar Revistas nas Causas, e pela maneira, que a Lei determinar; II. Conhecer dos delictos, e erros do Officio, que commetterem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomatico, e os Presidentes das Provincias. III. Conhecer, e decidir sobre os conflictos de jurisdição, e competencia das Relações Provincias (Cf. BRASIL. Constituição Politica do Imperio do Brazil (1824). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 5 jun. 2019). 161 VELLOSO, Carlos Mário, op. cit.

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maior importância: a de guardar os direitos individuais contra as infrações decorrentes de atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, inclusive e notadamente quando esses atos afetassem textos constitucionais. Isto equivalia, de certo modo, a fazê-lo fiador da seriedade mesma do regime como construção política, pois, ao declarar a prevalência da Lei Supremo em face de atos legislativos ou administrativos que a afetavam, o que fazia o Judiciário era preservar as próprias instituições republicanas, pela contenção dos demais poderes nas suas órbitas estritas de ação e pela garantia ao indivíduo da sobrevivência dos seus direitos, fossem quais fossem as prevenções contra eles armadas”.162

O STF brasileiro – criado a partir de nítida inspiração da Suprema Corte americana– assumiu, portanto, nessa nova configuração, um importante papel para a concretização dos direitos fundamentais do povo brasileiro, bem como de fiscalização da atuação estatal na condução dos assuntos públicos. Após a instalação da Corte, variados casos foram apresentados ao Tribunal pugnando- se pela correção de truculências e turbulência de atos do Poder Executivo, especialmente nos governos de Deodoro da Fonseca e de Floriano Peixoto, em que se constatou a lesão não apenas às liberdades individuais, mas também à própria Constituição Republicana. No meio desses confrontos o STF foi obrigado a agir, mormente no julgamento dos mais variados pedidos de habeas corpus163, e, embora tenha avançado em alguns momentos e retrocedido em outros, o órgão reforçou a sua legitimidade ao enfrentar a esmagadora força do Poder

Executivo164. Cumulativamente ao reconhecimento da força política do STF, e, igualmente, sob forte inspiração da doutrina norte-americana, o Brasil também incorporou as regras relativas ao sistema de controle de constitucionalidade, tendo feito primeira por meio do Decreto 510, de 22 de junho de 1890, e posteriormente no próprio texto constitucional de 1891, em seu art. 59, o qual reconhecia como de competência do órgão julgar, em grau recursal, as questões decidas pelos juízes e tribunais federais, bem como pela justiça estadual nas seguintes situações: a) questionamento de validade ou aplicação de tratados e leis federais em face do texto constitucional; e b) contestação sobre a validade da lei ou atos locais em confronto com a Constituição, desde que a decisão do tribunal estadual tivesse considerados tais atos e leis discutidos como válidos165. Referido sistema, que representa o controle difuso de

162 Ibidem, p. 2-3. 163 Aqui vale ressaltar um dado importante e que reafirma a importância do Supremo no contexto evolutivo do constitucionalismo brasileiro. Em razão da ausência de outras garantias constitucionais, o Supremo passou a interpretar o habeas corpus como mecanismo de controle dos abusos cometidos pelos demais poderes no Estado republicano (Cf. DIREITO, Gustavo, op. cit.) 164 DIREITO, Gustavo, op. cit. 165 Cf. TAVARES, André Ramos, 1998.

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constitucionalidade, perdura até a Constituição atual, embora, as Constituições que sucederam a de 1891 tenham se distanciado, em certa medida, de sua adoção pura, instituindo no País também o método da jurisdição abstrata/concentrada166. A partir da Constituição de 1934, o sistema constitucional do País passou a priorizar a abstração do controle de constitucionalidade167, e, embora o controle difuso não tenha sido abandonado, passou a coexistir com um número cada vez maior de instrumentos que possibilitam o controle pela via concreta168. Com a Constituição de 1946 se institui no País uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) genérica, de legitimidade ativa exclusiva do Procurador-Geral da República, por meio da qual o STF julgaria representação por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, de caráter federal ou estadual. Posteriormente, a Emenda Constitucional (EC) 16/65 inaugurou o controle abstrato da constitucionalidade das leis no País, também reservando a sua legitimidade ativa exclusivamente ao Procurador-Geral da República169. O texto constitucional de 1988 preservou a combinação dos sistemas de controle de constitucionalidade americano e europeu (difuso x concentrado), mantendo o STF como órgão de cúpula do Poder Judiciário no País, e também ampliou o espectro da jurisdição constitucional e das ações relativas ao controle concentrado, tendo criado a ADI por omissão, em seu art. 103, § 2º, e a arguição de descumprimento de preceito fundamental, em seu art.

102, parágrafo único170.

As competências171 exercidas pelo STF, segundo a Carta Magna de 1988, estão disciplinadas no art. 102 do texto constitucional e podem ser agrupadas da seguinte forma, segundo propõe André Ramos Tavares: a) guarda precípua do texto constitucional; b) competências ligadas diretamente à preservação da integridade da Constituição, como as ações diretas (de inconstitucionalidade e constitucionalidade); c) ações de competências originária da Corte que levam em consideração a autoridade ou cargo de uma das partes do processo, como, por exemplo, o julgamento do Presidente da República na prática de crimes

166 Idem. 167 Na Constituição de 1934, conforme anota André Ramos Tavares, o mecanismo de controle de constitucionalidade concentrado criado pelo texto constitucional foi a representação interventiva, criada para a proteção de princípios constitucionais e provocada pelo Procurador-Geral da República (Cf. TAVARES, André Ramos, 1998). 168 ZAGO, Mariana Augusta dos Santos; ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Breves considerações sobre o papel das Cortes Constitucionais em um Estado Federal. In: MIRANDA, Jorge; MENEZES, Fernando Antônio Dias; SILVEIRA, João José Custódio da. Justiça constitucional. São Paulo: Almedina, 2018. 169 Cf. TAVARES, André Ramos, 1998. 170 VELOSO, Carlos Mário, op. cit. 171 Para um estudo sobre a evolução das competências do STF no Brasil ver: LIMA, Alcides de Mendonça. A evolução da competência do Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa, v. 16, n. 63, p. 69- 88, jul./set. 1979.

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comuns relacionados ao cargo; d) a competência recursal para analisar recursos ordinários e extraordinários; e e) temas afetos à Soberania Nacional como pedidos de extradição formalizados por Estado estrangeiro, dentre outros172.

Em função da considerável quantidade173 de competências que foram atribuídas ao

STF pela Constituição de 1988174, costuma-se questionar se o referido órgão é ou não um Tribunal Constitucional típico no sentido de corpo técnico e especializado. A resposta deve ser negativa. Isso porque, conforme aponta André Ramos Tavares, as competências típicas de um Tribunal Constitucional são aquelas previstas no inciso I, alíneas “a”, “o” e “p” do art. 102 da CF brasileira, bem como aquelas previstas em nível recursal, específicas de uma Corte Suprema, que seriam as do inciso III, alíneas “a”, “b” e “c”, também do art. 102 da Constituição; de modo que as demais deveriam ser transferidas a outro órgão do Poder

Judiciário175. No mesmo sentido é a resposta de Dalmo de Abreu Dallari ao consignar a impossibilidade de se caracterizar o STF como Tribunal Constitucional típico diante da existência de variadas funções atribuídas pelo texto constitucional176. Fato é que, no Brasil, todos os órgãos integrantes do Poder Judiciário fazem parte da denominada Justiça Constitucional, diante da cumulação do sistema de controle difuso de constitucionalidade com o sistema concentrado. Apresentados os pontos fulcrais a respeito do STF brasileiro, com destaque para o âmbito de suas competências, passa-se a seguir a adentrar no propósito central desse trabalho: verificar se, durante a concretização de seu maior mandamento constitucional – o de proteger a Constituição –, a Corte brasileira tem promovido exercícios interpretativos conforme a Carta Maior ou se algumas de suas decisões têm fugido do parâmetro esperado.

172 TAVARES, André Ramos, 1998. 173 Além da expansão dos instrumentos de controle abstrato de constitucionalidade o Supremo também passou a lidar com um número cada vez maior de processos, tanto em sede de controle abstrato como em sede de controle difuso, conforme anotam Mariana Augusta dos Santos Zago e Fernanda Dias Menezes de Almeida. As autoras, inclusive, a partir de levantamento estatístico realizado no próprio sítio eletrônico do STF e representado em forma de gráfico, demonstram que o grande volume de trabalho do STF está concentrado no controle difuso de constitucionalidade, conforme se percebe pelo vultoso número de recursos extraordinários e agravos em recursos extraordinários apresentados nos últimos anos – apenas em 2014 e 2015, foram mais de 20.000 recursos nesse sentido (Cf. ZAGO, Mariana Augusta dos Santos; ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de, op. cit). 174 Segundo Dalmo de Abreu Dallari, durante o processo constituinte foi sugerida a criação de um Tribunal Constitucional com competência exclusiva para o controle de constitucionalidade das leis e dos atos emanados por autoridades públicas, no entanto, o próprio STF, com receio de que sua importância e prestígio fossem perdidos, realizou forte pressão nos constituintes para afastar tal pretensão (DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007). 175 TAVARES, André Ramos, 1998. 176 DALLARI, Dalmo de Abreu, op. cit.

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CAPÍTULO 2 APLICAÇÃO PRÁTICA DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO BRASIL: HERMENÊUTICA JURÍDICA X DISCRICIONARIEDADE INTERPRETATIVA (SOLIPSISMO)

Como assinalado, o Tribunal Constitucional assume hoje posição de importância indiscutível para a concretização da integridade do texto constitucional, de modo que a garantia não apenas de sua independência, mas da continuidade do exercício de suas funções, deve ser prioridade em todo e qualquer Estado Democrático. E mais, também deve ser reconhecido que o exercício interpretativo levado a cabo por referido órgão, no exercício legítimo de proteção da Carta maior não se exaure no mero enunciado normativo, não sendo possível aceitar aqui a ultrapassada tese do “legislador negativo” ou mesmo a visão do “juiz boca da lei”. Isso porque, interpretar é buscar o sentido e o alcance da norma – que não se confunde com o texto –, é perscrutar a teleologia trazida pelo contexto histórico e reconhecer a alteridade do texto. Nesse sentido, é extremamente oportuna a lição de Márcio Pugliesi e Nuria López ao destacar as características de possibilidade e infinitude do exercício interpretativo, bem como da alteridade do texto, cujas palavras são a seguir transcritas:

Logo, a interpretação se constitui numa tarefa possível e infinita. Possível porque – segundo a época histórica em que vive o intérprete ou de acordo com o que ele, intérprete individual sabe – não se pode excluir o surgimento de interpretações melhores ou mais adequadas que as demais existentes, relativamente à época e o que nela se sabe. Infinita porque uma interpretação aparentemente adequada pode mostrar-se incorreta e porque, sempre, se pode encontrar interpretações novas e melhores. Além disso, uma consciência hermeneuticamente adequada deve mostrar-se, preliminarmente, sensível à alteridade do texto. Deve ser consciente de suas próprias prevenções, para que o texto apareça em sua alteridade e para que possa, de fato, fazer valer seu conteúdo de verdade diante dos pressupostos do intérprete.177

Disso resulta que a atividade interpretativa não é e não pode ser estática. Ao mesmo tempo que ultrapassa a mera literalidade do texto, está presa pela totalidade do texto178 em um movimento dialético entre a intenção do texto e a intenção do leitor179. É por isso que

177 PUGLIESI, Márcio; LÓPEZ, Nuria. Teoria da decisão: um paradigma hermenêutico pós-reviravolta linguístico-pragmática. Revista Jurídica da Faculdade de Contagem, v. 2, n. 1, 2015, p. 98. 178 Parafraseando Santo Agostinho, Umberto Eco afirma que: “qualquer interpretação feita de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se confirmada por outra parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se o contradisser. Neste sentido, a coerência interna do texto domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis” (ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 75-76). 179 Idem.

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conforme aponta Umberto Eco, “mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo o seu resultado”180. Destarte, ao mesmo tempo em que se deve reconhecer maior elasticidade na atividade interpretativa efetivada pelo Tribunal Constitucional – o que decorre, repita-se, do acolhimento da normatividade dos princípios e da ultrapassagem da tese do legislador negativo – como forma de concretização da Constituição, torna-se imperioso também reconhecer a existência de limites trazidos pelo próprio texto constitucional. Isso para se evitar que o exercício interpretativo não se transforme num mero ato de vontade do julgador, que suas escolhas não sejam pautadas em uma análise exclusivamente subjetiva ou o discurso do “decido conforme minha consciência”181. Em outras palavras, a legitimação da Justiça Constitucional estará resguardada sempre que o intérprete respeite a integridade do texto constitucional. E como assinala João Maurício Adeodato, o texto atua como limitador da concretização constitucional, isto é, ele não permite que a decisão seja guinada para qualquer direção, como pretendem os mais variados

“decisionismos”182-183.

180 ECO, Umberto, op. cit., p. 74-76. 181 Nesse aspecto Lenio Streck narra uma série de decisões proferidas por alguns órgãos integrantes do Poder Judiciário brasileiro em que a base central para a adoção de determinada decisão está centrada na consciência daquele que julga. Um primeiro exemplo apontado pelo autor é a saudação ocorrida num discurso de posse de novos juízes estaduais no Estado do Rio de Janeiro proferido pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, nos seguintes termos: justiça que emana exclusivamente de nossa consciência, sem nenhum apego obsessivo à letra fria da lei. No mesmo sentido há outro exemplo citado pelo autor que demonstraria essa discricionariedade judicial e que foi constatada em julgamento ocorrido também no Superior Tribunal de Justiça: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. [...] Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém” (Cf. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4. ed rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 24-25). 182 ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira – situações e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004. 183 Ainda, o próprio autor, mas em outro texto, defende o texto como um dos limites à concretização da Constituição salientando que: “Assim, é preciso defender o texto como um dos limites à concretização, um impedimento ao decidir em qualquer direção, contra as diversas formas de decisionismo. Essa proeminência do aspecto formal e, consequentemente, da validade, diante de outros conteúdos presentes no cenário político e jurídico, constitui-se em um “elemento estabilizador de primeiro nível e um pressuposto insubstituível de sociedades complexas do tipo da sociedade industrial. E, acrescente-se, guarda tranquilamente sua dívida retórica para com o positivismo kelseniano: se é certo que a “moldura” não se reduz ao texto, também é fundamental que seja parte dela” (ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional e os problemas dos limites interpretativos e éticos do ativismo jurisdicional no Brasil. Revista da Faculdade Mineira de Direito, v. 20, n. 40, 2017, p. 139).

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Mas não é só, além dos limites interpretativos é importante ainda que se tenha o cuidado de que a Corte Constitucional como órgão essencial na concretização dos ideais democráticos e da essência da Constituição não se apresente como um superpoder na estrutura do Estado de Direito. No caso do Brasil, e, propriamente falando, do STF, algumas situações peculiares têm levantado questionamentos acerca da sua legítima atuação (e não a sua legitimidade democrática). Um primeiro ponto que pode ser abordado está atrelado à atuação jurisdicional do órgão. Inicialmente, pode-se abordar a questão relativa à ausência de unidade decisória na atuação do STF, já que, em alguns julgados, como à guisa de exemplo a discussão sobre a utilização ou não de células-tronco obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no procedimento (ADI 3.510), não se vislumbrou a sua configuração como Corte Constitucional, já que a decisão ao final prolatada não representou um entendimento do STF sobre o tema, mas sim de cada um de seus 11 ministros, reforçando a denominada tese das “Onze Ilhas” anteriormente mencionada. No mesmo sentido, o julgamento que envolve a antecipação dos efeitos do trânsito em julgado e a possibilidade de prisão no caso de decisão condenatória confirmada por órgão colegiado, reforça a ausência de unidade decisória no âmbito do Pretório Excelso. Aqui, vale o alerta de que não se está a defender que todos os integrantes do STF decidam da mesma forma ou que o ideal é a inexistência de conflitos interpretativos – em verdade essa “tensão” interpretativa é mais do que desejada para produzir uma decisão mais qualificada –, mas que o protagonismo individual ceda passagem a um resultado final e uniforme, coeso e decorrente de uma atuação do STF enquanto Corte, e não da mera soma individual dos votos de seus integrantes184. Inclusive, ao analisar os critérios de interpretação utilizados pelo STF na concretização constitucional, David Diniz Dantas tece algumas considerações pertinentes para nossa análise:

a) De plano, observamos que não há uniformidade metodológica nas interpretações realizadas por nossa Suprema Corte. Entretanto, via de regra, podemos observar que o Tribunal se utiliza bastante da interpretação

184 Nas palavras de Wagner Gundim e Thiago Valverde: [...] é lícito aos ministros externar suas opiniões e conclusões individuais no momento da prestação jurisdicional reclama, uma vez que tal ato decorre da própria atividade interpretativa do exegeta. O que se espera é que, no momento de interpretação, o protagonismo judicial individual existente em um órgão colegiado, notadamente na Corte que decide questões do mais alto patamar jurídico, dê passagem a um resultado uniforme e final, que deverá transcender a individualidade do Ministro julgador, e que seja capaz de afastar a tão famigerada autossuficiência decisória” (GUNDIM, Wagner Wilson Deiró; VALVERDE, Thiago Pellegrini, op. cit., p. 404-405).

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sistemática como complementação gramatical; [...] c) A interpretação constitucional realizada pela Suprema Corte – no controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado – tem se situado em um plano bastante formal, cuja insuficiência debilita as justificações e motivações, quando não conduz à aceitação pura e simples da vontade do legislador. Com efeito, as questões factuais terminam por não receber cognição adequada. A explicação parece ser o inacreditável número de feitos que são submetidos à Suprema Corte (123.349, de out. 2000 a out. 2001) [...].185

Existe outro fato importante a ser ponderado sobre a atuação do STF no país. Nos últimos dois anos o Senado Federal recebeu dez pedidos de impeachment em desfavor de membros integrantes do órgão, os quais são representados no quadro a seguir:

Quadro 1 – Pedidos de Impeachment Número do Ementa do Pedido Processo Pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal , PET 2/2017 com fundamento no art. 52, inciso II, e 86 da Constituição Federal, combinados com o disposto nos arts. 39 e 41 da Lei 1.079, de 1950. Pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes, PET 3/2017 com fundamento no art. 52, inciso II, combinado com o disposto nos arts. 39, inciso II, e 41 da Lei 1.079, de 1950; e no art. 252, do Código de Processo Penal. Pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes, PET 4/2018 com fundamento no art. 41 da Lei 1.079, de 1950, combinado com o disposto no art. 52, inciso II, da Constituição Federal. Pedido de impeachment em face do ministro do Supremo Tribunal Federal José Antônio PET 6/2018 , com fundamento no art. 41 da Lei 1.079, de 1950. Denúncia com pedido de impeachment em face do ministro do Supremo Tribunal Federal PET 7/2018 José Antônio Dias Toffoli, com fundamento no art. 52, inciso II da Constituição Federal, combinado com os arts. 2º; 9º, número 7; 39, número 2; e 41, da Lei 1.079/1950. Denúncia com pedido de impeachment em face do ministro do Supremo Tribunal Federal PET 8/2018 , com fundamento no art. 39 da Lei 1.079, de 1950. Denúncia com pedido de impeachment em face dos ministros do Supremo Tribunal Federal José Celso de Mello Filho; Luís Roberto Barroso; Luiz ; e Alexandre Moraes, PET 6/2019 com fundamento no art. 52, inciso II, da Constituição Federal c/c o disposto no art. 41 da Lei 1.079/1950. Pedido de impeachment em desfavor do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar PET 7/2019 Ferreira Mendes, com fundamento no inciso II do art. 52 da Constituição Federal, combinado com o art. 41 da Lei 1.079/1950. Pedido de impeachment em face dos ministros do Supremo Tribunal Federal José Antônio PET 10/2019 Dias Toffoli e Alexandre Moraes, com fundamento no art. 52, inciso II, da Constituição Federal c/c o disposto no art. 41 da Lei 1.079/1950. Denúncia com pedido de impeachment em desfavor do ministro do Supremo Tribunal PET 12/2019 Federal Gilmar Ferreira Mendes, com fundamento no art. 52, inciso II da Constituição Federal, c/c o art. 41, da Lei 1.079/1950. Fonte: Elaboração própria186.

185 DANTAS, David Diniz, op. cit., p. 279-280. 186 Os dados que compõem o presente quadro foram fornecidos pela Secretaria de Gestão de Informação e Documentação do Senado Federal, após pedido formal perante o Portal da Transparência do Senado Federal solicitando informação sobre todos os processos de impeachment protocolados em desfavor de membros do STF após a CF/1988.

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O pedido de impeachment de 2/2017, fora formalizado por Hélio Barreto dos Santos Filho em desfavor do ministro Ricardo Lewandowski, indicando desalinho com a conduta profissional em razão de supostamente não ter adotado providências a respeito de irregularidades atribuídas à União no processo de incorporação do Banco do Estado de (BESC) quando instado a se manifestar nos autos da Ação Cautelar 1.509, bem como no Recurso em Mandado de Segurança 34.515. Após apresentação de parecer pela Procuradoria-Geral da República, em 15 de março de 2017, opinando pelo não recebimento da representação por ausência de justa causa, o Presidente do Senado Federal, senador

Eunício Oliveira, determinou o arquivamento do feito acolhendo as razões ministeriais187. A PET 03/2017, por sua vez, se consubstancia em pedido de impedimento manejado por Alexandre Frota de Andrade contra o ministro Gilmar Ferreira Mendes sob a alegação de que esse teria desrespeitado o quanto disposto no art. 39, item 2, da Lei 1.0179, de 1950 (o qual caracteriza crime de responsabilidade proferir julgamento, quando, por lei, exista impedimento para atuar na causa), quando do julgamento do Habeas Corpus 143.247. Isso porque, segundo o reclamante, o referido ministro determinou em caráter liminar a expedição de alvará de soltura em favor de Eike Batista, quando não o poderia, uma vez que a sua esposa, Guiomar Feitosa Lima Mendes, integra, na qualidade de sócia, o escritório que patrocinava o paciente. Após a apresentação de parecer pela Procuradoria-Geral da República opinando pelo arquivamento da representação por falta de justa causa, o Presidente do Senado, senador Eunício Oliveira, determinou o arquivamento da denúncia em 19 de dezembro de 2018188. Em 10 de abril de 2018, Laercio Laurelli, Modesto Souza Barros Carvalhosa e Luís Carlos Crema protocolaram pedido denúncia com pedido de impeachment (PET 4/2018) em desfavor do ministro Gilmar Ferreira Mendes, alegando em síntese a prática dos seguintes fatos criminosos: a) ligação telefônica do ministro para o ex-governador do Estado de , Silval Barbosa, o qual estaria sendo investigado pelo STF; b) prolação de decisão contra a prisão preventiva de Éder de Moraes Dias, então secretário de Silval Barbosa, o que culminou em desempate no julgamento de agravo regimental, favorecendo o réu; e c) os encontros do ministro com o então Presidente da República, , o que caracterizaria quebra da imparcialidade. Após tramitação ordinária, no entanto, e mediante

187 O andamento, peças e documentos estão disponíveis em: BRASIL. Senado Federal. PET 2/2017. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128207. Acesso em: 9 jul. 2019. 188 Ver: BRASIL. Senado Federal. PET 3/2017. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/129193. Acesso em: 9 jul. 2019.

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manifestação da Procuradoria da República pela rejeição da denúncia por ausência de justa causa, o Presidente do Senado rejeitou-a e determinou o seu arquivamento189. Por meio da PET 6/2018 Gerson João Zancanaro, Marcelo Eduardo Rodrigues de Toni, Caroline Rodrigues de Toni e Marco Vinicius Pereira de Carvalho promoveram denúncia com pedido de impeachment em face do ministro José Antônio Dias Toffoli, sob o argumento de que esse teria cometido crime de responsabilidade por não ter se declarado suspeito e votado no HC 152.752 – impetrado em favor do Presidente Luís Inácio Lula da Silva –, afinal, referido ministro foi advogado do Partido dos Trabalhadores em diversos processos e nomeado ministro pelo paciente. O pedido, no entanto, foi arquivado sumariamente pelo Presidente do Senado Federal, que concluiu pela ausência de justa causa para a promoção do impeachment, com base no parecer de lavra da Procuradoria-Geral da

República190. A PET 7/2018 foi apresentada por Marcus Vinicius Pereira de Carvalho, Caroline Rodrigues de Toni e Beatriz Kicis Torrents de Sordi, também contra o ministro José Antônio Dias Toffoli, pugnando pelo seu impedimento uma vez que teria incorrido em crime de responsabilidade por, em síntese, ter votado a favor da liberdade de José Dirceu de Oliveira e Silva, nos autos do HC 137.728/PR, pessoa com quem matinha relação pessoal, o que lhe traria nítido impedimento para prosseguir no julgamento. Por decisão datada de 31 de janeiro de 2019, o presidente do Senado, no entanto, determinou o arquivamento da denúncia por ausência de justa causa191. Mediante denúncia protocolada em 7 de março de 2019 (PET 6/2019), Beatriz Kicis Torrents de Sordi, Cláudia de Faria Castro, Alexandre Frota Andrade, Carolina Rodrigues de Toni, Christine Nogueira dos Reis Tonietto, dentre outros deputados federais e cidadãos comuns, propuseram denúncia com pedido de impeachment dos ministros José Celso de Mello Filho, Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin e Alexandre Moraes. Em síntese, a denúncia registra a prática de crime de responsabilidade pelos ministros sob o argumento de que teriam usurpado as atribuições do Poder Legislativo, e, por consequência, afrontado os ditames dos arts. 2º e 5º, inciso XXXIX, da CF, ao conhecerem parcialmente da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 (que discute a criminalização da homofobia

189 Ver: BRASIL. Senado Federal. PET 4/2018. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/132900. Acesso em: 9 jul. 2019. 190 Ver: BRASIL. Senado Federal. PET 6/2018. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/133906. Acesso em: 9 jul. 2019. 191 BRASIL. Senado Federal. PET 7/2018. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/133950. Acesso em: 9 jul. 2019.

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e transfobia) para, nessa extensão, julgá-la procedente. Referida denúncia aguarda despacho pela Assessoria Técnica desde o dia 13 de março de 2019192. A PET 7/2019, por sua vez, foi ajuizada por Modesto Souza Barros Carvalhosa, Laercio Laurelli e Luís Carlos Crema em face do ministro Gilmar Ferreira Mendes, a qual aponta a prática de variados crimes de responsabilidade sinteticamente em função dos seguintes fatos: a) exercício de atividade político-partidária com o intuito de eleger o seu irmão, Francisco Ferreira Mendes, como prefeito do município de Diamantino/MT; b) ter beneficiado a Rede TV em julgado do qual deveria ter se indicado suspeito, pois teria interesse imediato no feito diante da relação da empresa com a União de Ensino Superior de Diamantino Ltda. (UNED), empresa fundada pelo ministro e administrada por sua irmã; c) ter exercido influência perante a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para obter doação de campanha eleitoral em favor de seu irmão, no ano de 2014; dentre outros. Referida denúncia encontra-se perante a Assessoria Técnica do Senado Federal desde 9 de maio de 2019 aguardando despacho193. A formalização de denúncia com pedido de impeachment (PET 10/2019) foi proposta pelo senador Alessandro Vieira em face dos ministros José Antônio Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, imputando-lhes a prática de crime de responsabilidade em razão da abusiva instauração de inquérito criminal (4.781) para apuração de supostas notícias fraudulentas, denunciações caluniosas que atingiriam a honorabilidade de membros do STF e também de seus familiares. Segundo o denunciante, os referidos ministros teriam incorrido em crime de responsabilidade, também, pelas decisões que não apenas expediram mandados de busca e apreensão ao arrepio de seus direitos constitucionais, mas também determinaram a retirada de notícia de site jornalístico, incorrendo em indevida censura. A denúncia em questão também se encontra aguardando despacho da Assessoria Técnica do Senado Federal desde o dia 9 de maio de 2019194. A mais recente denúncia apresentada pugnando por impeachment foi a PET 12/2019, protocolada em 9 de abril de 2019, foi proposta por Sabrina Avozani em desfavor do ministro Gilmar Ferreira Mendes, sob o argumento de configuração de crime de responsabilidade em razão de fala do denunciado no julgamento do Agravo no Inquérito 4.435 (Pedro Paulo Carvalho Teixeira e Eduardo da Costa Paes X Ministério Público Federal), ocasião em que

192 Ver: BRASIL. Senado Federal. PET 6/2019. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/135548. Acesso em: 9 jul. 2019. 193 BRASIL. Senado Federal. PET 7/2019. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/135897. Acesso em: 9 jul. 2019. 194 BRASIL. Senado Federal. PET 10/2019. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/136473. Acesso em: 9 jul. 2019.

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teria proferido palavras ofensivas a respeito do Procurador da República , além de sua suposta leniência com investigados em inquéritos e processos judiciais do qual participa como julgador. A denúncia se encontra aguardando despacho pela Assessoria

Técnica do Senado Federal desde o dia 9 de maio de 2019195. Ainda que a discussão de mérito dos indigitados pedidos de impedimento não sejam constituam o núcleo de análise do presente trabalho, os dados e informações encimados permitem a inferência de algumas importantes conclusões: a) embora a Constituição brasileira assegure a indicação dos ministros do STF por decisão discricionária do Presidente da República, o que geralmente suscita dúvidas a respeito de sua própria legitimidade, o próprio texto constitucional cumulado com a Lei 1.079/1950, garante que qualquer cidadão promova o pedido de impeachment de integrantes da Corte que pratiquem as condutas descritas no texto normativo. Ou seja, há um controle, ainda que a posteriori, da atuação dos integrantes do STF na sua atuação jurisdicional, que, embora exerçam o cargo de modo vitalício, poderão ser removidos do cargo por crimes de responsabilidade; b) a despeito de existir uma possível limitação dos integrantes do STF por meio do possível processo de impeachment, todas as denúncias já formalizadas até o momento, embora veiculem graves acusações contra os integrantes da Corte, foram indeferidas sumariamente pelo Presidente do Senado Federal, sem que a matéria fosse levada à deliberação pela Casa respectiva. Aqui, deve-se chamar a atenção para um fato curioso: os últimos presidentes do Senado Federal, quais sejam: , Eunício Oliveira e , são ou foram investigados no STF pela suposta prática de crimes; e c) alguns dos processos de impeachment tiveram por motivação a aparente extrapolação da atuação dos ministros quando da prolação de decisões sobre casos de matéria constitucional. O caso noticiado na PET 10/2019, inclusive, parece ser o mais gravoso, pois as decisões proferidas no sentido de expedir mandados de busca e apreensão e censurar a liberdade de imprensa, pode ser enquadrado no típico caso de decisionismo, vale dizer, a tarefa interpretativa exercida excedeu a moldura do texto constitucional.

195 BRASIL. Senado Federal. PET 12/2019. Disponível em: www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/136480. Acesso em: 9 jul. 2019.

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A verdade é que esses fatos estão colocando em xeque a credibilidade do STF. Um exemplo disso é visualizado pelas diversas propostas de ECs que hoje tramitam na CD que objetivam tolher a intervenção da Corte no processo político sob a alegação de ativismo judicial e invasão de competência dos demais poderes196. Essa preocupação de que o STF se apresente como uma instância voluntarista é apontada por Marcelo Casseb Continentino ao consignar que:

[...] se o Supremo apresentar-se como instância voluntarista, infensa à crítica e pretensamente investida da autoridade de dizer o que bem entender da Constituição a despeito das interpretações firmadas e consolidadas por ele próprio e também por outras cortes e partícipes da interpretação constitucional, então, nessa hipótese, ele estará a semear uma possível crise institucional e de legitimidade cujo resultado seria difícil de prever.197

O resultado dessas ações tem causado arranhadura à imagem do STF e de modo mais geral do próprio Poder Judiciário perante os cidadãos. Isso porque, conforme relatório emitido pelo Índice de Confiança na Justiça do Brasil – ICJBrasil no ano de 2016, organizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), apenas 29% dos entrevistados confiam no Poder Judiciário brasileiro, índice que fica abaixo das Emissoras de TV, imprensa escrita, Ministério Público e até mesmo de grandes empresas198. Colocadas essas questões, inquire-se: Ao efetivar a sua função primordial de guarda da Constituição tem o STF respeitado os limites inerentes ao próprio texto constitucional ou é possível constatar uma atuação interpretativa temerária que beira o solipsismo judicial? Eis aqui o objetivo do presente tópico e que compõe um dos aspectos de novidade científica apresentada por este trabalho. Deve-se ressaltar, de antemão, que o objetivo aqui não é atacar o STF em suas funções ou rediscutir a sua legitimidade democrática a partir de eventual decisionismo detectado,

196 Nesse sentido Marcelo Casseb Continentino assinala: “Posta em xeque a credibilidade do Supremo, o que sucederia? As instituições reagem. A sociedade reage. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, diversas Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) estão em tramitação: PEC n. 290/2008; PEC n. 3/2011; PEC n. 33/2011; PEC n. 45/2011; PEC n. 143/2012; PEC n. 161/2012; PEC n. 227/2012; PEC n. 275/2013; PEC n. 378/2014. De uma maneira ou de outra, essas propostas pretendem tolher a intervenção do Supremo Tribunal Federal no processo político diante do suposto ativismo judicial ou da alegada intervenção judicial na esfera de competência dos poderes Executivo e Legislativo, seja pelo condicionamento da eficácia de decisões judiciais, seja pela sustação de atos normativos do Judiciário, seja pela modificação da composição da corte e/ou da forma de nomeação dos ministros, seja pela extinção da vitaliciedade dos cargos de ministro” (Cf. CONTINENTINO, Marcelo Casseb. O Supremo, o bêbado e o equilibrista. In: VALE, André Rufino do; QUINTAS, Fábio Lima. Estudos sobre a jurisdição constitucional. v. II. São Paulo: Almedina, 2018, p. 24). 197 CONTINENTINO, Marcelo Casseb, op. cit., p. 25. 198 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Relatório ICJ Brasil. Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/17204/RelatorioICJBrasil_1_sem_2016.pdf?sequence=1 &isAllowed=y. Acesso em: 10 jun. 2019.

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tampouco desqualificar o trabalho por este realizado e por todos os seus integrantes. Não se trata aqui de uma análise subjetiva ou partidária dessa ou daquela tese, mas uma importante discussão prático-filosófica para verificar se o exercício hermenêutico realizado pelo Supremo tem se adstrito à integridade constitucional ou não e, em caso positivo, apresentar a ideia de hermenêutica filosófica gadameriana como parâmetro de aprimoramento da Justiça Constitucional no Brasil. Dessa forma, para alcançar o que se pretende, os tópicos seguintes abordarão algumas decisões que, do ponto de vista adotado pelo trabalho, podem demonstrar exatamente a linha tênue que pode se estabelecer entre um autêntico exercício interpretativo e o decisionismo/solipsismo judicial.

2.1 Eficácia Erga Omnes das Decisões Prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal em Sede de Controle Difuso de Constitucionalidade: Esvaziamento da Atuação do Senado Federal

Em 1º de fevereiro de 2007, o STF deu início ao julgamento da Reclamação Constitucional 4.335, ajuizada pela Defensoria Pública da União contra decisões proferidas pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC indeferindo a progressão de regime para condenados a penas de reclusão sob o regime integralmente fechado pela prática de crimes hediondos199. Alegou-se, em apertada síntese, que as reiteradas decisões prolatadas pelo magistrado estariam violando a autoridade do STF por não seguirem a orientação efetivada nos autos do HC 82.959, decisão em que a Corte afastou a proibição da progressão de regime nos crimes hediondos por considerá-la inconstitucional sob o ponto de vista de afronta ao princípio da individualização da pena. Conforme informações apresentadas nos autos da indicada Reclamação, as razões sustentadas pelo magistrado a quo para não acatar a orientação do STF podem ser sintetizadas a seguir: a) a decisão do Supremo foi adotada por maioria apertada de votos (6 favoráveis e 5 contrários); b) o fato de o STF ter decidido, durante 16 anos, pela constitucionalidade da norma; c) os efeitos exclusivamente inter partes da decisão, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade se deu em caráter incidenter tantum; d) para que fosse dotada de efeito

199 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RCL n. 4335/AC. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data de julgamento: 20.03.2014. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 22.10.2014.

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erga omnes, a decisão do Supremo deveria ter sido confirmada pelo Senado Federal, mediante a suspensão de sua execução200. Embora o julgamento tenha se iniciado no ano de 2007 (o único a votar foi o ministro Gilmar Mendes, então relator), a sua conclusão pela Corte somente se efetivou no ano de 2014, tendo o órgão decidido, por maioria, conhecer e julgar procedente a reclamação, acompanhando o voto do relator, vencidos os ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que votaram pelo não conhecimento da reclamação, mas admitiram a possibilidade de concessão de HC de ofício. Ao resumir a decisão adotada por cada um dos ministros do STF nesse caso em específico Fábio Martins de Andrade consigna que:

Em realidade, considerando os votos prolatados de modo individual, o resultado alcançado foi o seguinte: os ministros Gilmar Mendes e Eros Grau votaram pela procedência, sob o fundamento da mutação constitucional (que será adiante explicada); o ministro Sepúlveda Pertence prolatou voto pela improcedência da Reclamação, mas concedeu habeas corpus de ofício; os ministros Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio não conheciam da Reclamação, mas todos concederam habeas corpus de ofício (os quatro últimos não admitiram a tese da mutação constitucional); os ministros , Roberto Barroso, e Celso de Melo julgaram procedente a Reclamação à luz da superveniência da edição da Súmula Vinculante n. 26; e, por fim, estava ausente justificadamente a Ministra Carmen Lúcia, que não prolatou voto nesse caso.201

Como resultado prático a decisão final impôs a anulação de todas as decisões proferidas pelo juiz a quo que contrariam o entendimento da Corte, posteriormente reafirmado no teor da Súmula Vinculante 26, e, por consequência, impossibilitaram a progressão de regime dos representados pela reclamação, determinando ainda a prolação de nova decisão, para, avaliando cada caso concreto, verificar se os interessados atendiam ou não aos requisitos penais para progressão penal adequada202. O caso, apesar de tender inicialmente para uma questão específica do ponto de vista processual penal, apresenta contornos de maior relevância do ponto de vista filosófico- constitucional, pois em referido julgado o STF, a partir da visão encampada pelo ministro relator Gilmar Mendes, passou a rediscutir o papel do Senado Federal no controle difuso de

200 ANDRADE, Fábio Martins de. O papel do Senado Federal no controle difuso pela ótica do STF (Rcl. 4.335). RIL Brasília, a. 52, n. 207, jul./set. 2015, p. 105-121. 201 Ibidem, op. p. 106. 202 Idem.

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constitucionalidade de leis e atos normativos, propondo uma releitura da dicção do art. 52, inciso X, do texto constitucional. Em outras palavras: O ministro Gilmar Mendes defendeu que o art. 52, inciso X, da Constituição Federal sofreu verdadeira mutação constitucional, e, ao retomar antigas lições de Lúcio Bittencourt, defendeu que o objetivo do texto constitucional parece ter sido dar ao Senado Federal a competência apenas para tornar pública a decisão do STF que declare a inconstitucionalidade de lei. Num primeiro momento, o relator argumentou que essa função conferida ao Senado Federal de suspender a execução de leis declaradas inconstitucionais, adveio do constitucionalismo americano, mas não foi incorporada apropriadamente quando de sua positivação pela Constituição de 1934. Isso porque, no direito norte-americano, a não aplicação da lei é uma decorrência da doutrina do stare decisis, que reconhece o efeito vinculante das decisões proferidas pelas Cortes Superiores, fórmula não apropriada para a realidade do ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, segundo afirma, quando o instituto fora concebido pelo texto constitucional brasileiro ainda dominava a concepção da teoria da separação de poderes, que já estaria superada. Na sequência, pautando-se na manifestação de variados juristas e de entendimento esboçado pela própria Corte, defende que o único efeito prático da decisão do Senado que suspende a execução de lei inconstitucional é tornar pública a decisão, permitindo o seu amplo conhecimento por todos os cidadãos. Inclusive, segundo consignou, em voto prolatado pelo ministro Victor Nunes Leal nos autos do MS 16.512, já se reconhecia que o ato do Senado Federal em suspender a execução das leis deveria respeitar a decisão do STF, não lhe sendo reconhecida qualquer competência para ampliar ou restringir aquilo que foi objeto de deliberação pela Corte. O relator ainda apontou, dentre outros, os seguintes argumentos sintetizados a seguir: a) o Supremo adotou orientação jurisprudencial em 1977 (representada em Parecer do ministro Moreira Alves no Processo Administrativo 4.477-72) em que concluía pela dispensabilidade da participação do Senado Federal nos casos de declaração de inconstitucionalidade reconhecida na representação de constitucionalidade (controle abstrato); b) a amplitude reconhecida pela Constituição de 1988 no que tange ao controle concentrado de constitucionalidade, permitindo que o STF, inclusive, possa suspender, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos com efeitos gerais, demonstraria a sua competência, também, para conceber efeitos erga omnes no

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controle difuso. Ou seja, se por meio do controle concentrado a Corte possui o poder de suspender a eficácia de uma lei e até mesmo de uma EC, não haveria justificativa razoável para que no âmbito do controle difuso a eficácia de sua decisão se restrinja tão somente às partes. Disso, concluiu, que o instituto da suspensão pelo Senado seria reminiscência histórica; c) a inadequação do instituto da suspensão da execução da lei pelo Senado para assegurar a eficácia geral ou o efeito vinculante às decisões da Corte que não declarem a inconstitucionalidade de uma lei, mas fixem uma orientação constitucionalmente correta ou adequada; d) a inaplicabilidade do instituto, de igual modo, nos casos em que o STF adote uma interpretação conforme o texto constitucional, pois não se está a afirmar propriamente a ilegitimidade de uma lei ou ato normativo, mas apenas a ressaltar uma dada interpretação compatível com a Constituição, ou então que para ser constitucional, determinada norma precisa ser complementada ou restringida. Em todos esses casos, afirmou, o Senado Federal não possui o condão de ampliar a eficácia da decisão do STF mediante o instituto da suspensão da lei; e e) do mesmo modo, a suspensão da lei pelo Senado se mostra problemática nos casos em que o Supremo declara a inconstitucionalidade parcial de uma lei, mas sem redução de texto, pois o que se decide é que o significado normativo é inconstitucional, mas o texto é mantido sem alterações. Por todos esses argumentos, o ministro relator esboçou em seu voto as seguintes colocações:

[...] Vê-se, assim, que a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. O Supremo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão especial, na forma do art. 97 da Constituição. Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Embora na fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orientação do Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemelhado a um efeito vinculante, independentemente da intervenção do Senado. Esse entendimento está hoje

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consagrado na própria legislação processual civil (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei n. 9756, de 17.12.1998). [...] Como se vê, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, acabam por ter eficácia que transcende o âmbito da decisão, o que indica que a própria Corte vem fazendo uma releitura do texto constante do art. 52, X, da Constituição de 1988, que, como já observado, reproduz disposição estabelecida, inicialmente, na Constituição de 1934 (art. 91, IV) e repetida nos textos de 1946 (art. 64) e de 1967/69 (art. 42, VIII). Portanto, é outro o contexto normativo que se coloca para a suspensão da execução pelo Senado Federal no âmbito da Constituição de 1988. É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.203

A sua conclusão204, portanto, defendeu a legitimidade da fórmula por ele proposta no sentido de se reconhecer que a função outrora reconhecida ao Senado de suspender a execução da lei deveria agora se limitar apenas ao efeito de dar publicidade à decisão do STF. Assim, caso a Corte, em controle difuso de constitucionalidade, chegue à conclusão de que uma lei é inconstitucional, a decisão, automaticamente, será dotada de efeitos gerais, de modo que após ser notificado pelo STF, o Senado Federal teria o dever de publicá-la para fins de promover publicidade aos cidadãos. O ministro Eros Grau, em seguida, proferiu voto-vista acolhendo a tese proposta pelo relator, e inclusive elogiando a sua postura interpretativa adotada, pois, em sua visão, o ministro não se restringiu a interpretar o texto e, a partir dele, produzir determinada norma a ele correspondente, mas verdadeiramente propôs a substituição do texto normativo por outro de modo a adequar a Constituição ao devir social, o que caracterizou, em sua opinião, verdadeira mutação constitucional. Isso porque, diante da nova interpretação apresentada, o ministro extraiu do texto normativo um outro sentido, de modo que haveria substituição do próprio enunciado normativo nos seguintes termos: onde consta “Compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, passaria a se ler: “Compete privativamente ao Senado Federal, dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo

203 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2014, p. 50-55. 204 Deve-se registrar, nesse ponto, que a tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento dessas Reclamação já era por ele doutrinariamente defendida em artigo publicado sobre a temática. Nesse sentido, ver: MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, v. 41, n. 162, p. 149-168, abr./jun. 2004.

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STF, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do

Supremo”205. Ao efetivar a sua análise, no entanto, o próprio ministro Eros Grau se pergunta se ao apresentar a nova roupagem à dicção textual do art. 52, inciso X, o relator não teria “excedido a moldura do texto, de sorte a exercer a criatividade própria à interpretação para além do que ao intérprete incumbe”206. A resposta apresentada é negativa, pois, para o ministro, o que o relator fez representou um verdadeiro exercício de mutação constitucional, especialmente porque, em sua visão, o texto normativo interpretado e previsto tal qual como consta na Constituição é obsoleto, exigindo nova roupagem interpretativo-constitucional. Em sentido diametralmente oposto, o ministro Sepúlveda Pertence não apenas votou pela impossibilidade de mutação constitucional no caso, como a repudiou, indicando que postura adotada poderia ser considerada como golpe de Estado207. Isso porque, a despeito de reconhecer a ocorrências de importantes alterações na sistemática do controle de constitucionalidade implementadas pela legislação, mas também por posicionamento do Pretório Excelso, entendeu que nulificar o papel desempenhado pelo Senado Federal corresponderia a ultrapassar o limite implicado pelo texto normativo208. Acompanhando o ministro Sepúlveda, o ministro Joaquim Barbosa divergiu do relator por duas razões principais: a) em primeiro lugar, não entendeu que a suspensão da execução de lei pelo Senado Federal represente qualquer obstáculo à ampla efetividade das decisões do STF em situações semelhantes a dos autos; e b) não vislumbrou o dispositivo impugnado como obsoleto ou em desuso, citando, inclusive, que desde a promulgação da Constituição até o ano de 2007, o Senado já teria suspendido mais de cem normas declaradas inconstitucionais. Assim, discordou do relator sinteticamente nos seguintes termos:

Concluo, Sra. Presidente, que para a eficácia das decisões da Corte vejo o dispositivo como um complemento, não como obstáculo. Imagino situações, mesmo que residuais, em que um caso, por suas circunstâncias muito próprias, suscite a declaração de inconstitucionalidade in concreto. E que a Corte, em casos contemporâneos àquele outro não encontre a repetição daquelas circunstâncias que levaram à declaração de inconstitucionalidade –

205 ANDRADE, Fábio Martins de, op. cit. 206 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014, p. 67. 207 Nas palavras do ministro: Sem saber nadar, é claro que não me aventurarei nas águas procelosas das duas magníficas dissertações: na primeira, a do eminente Relator, agora reiterada; e, hoje, do eminente Ministro Eros Grau. Mas não me animo à mutação constitucional. E mutação constitucional por decreto do poder que com ela se ampliaria; o que, a visões mais radicais, poderia ter cheiro de golpe de Estado. Às tentações do golpe de Estado não está imune o Poder Judiciário; é essencial que a elas resista” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2014, p. 91). 208 ANDRADE, Fábio Martins de, op. cit.

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encerrando assim a atuação da Corte. Admita-se, nesse cenário, que o Senado julgue conveniente suspender a execução da norma para que um caso isolado como o analisado pelo STF se repita. Essa hipótese, mesmo que venha a ocorrer uma vez só no futuro justifica, a meu ver, a manutenção da interpretação atual.209

O ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto-vista, acompanhou a divergência para concluir pela impossibilidade de acolhimento da tese de mutação constitucional. Dentre os argumentos apresentados, justificou que a supressão das competências de um Poder do Estado, por via de interpretação constitucional, poderia pôr em risco a sistemática decorrente do sistema de freios e contrapesos, além de vislumbrar um nítido choque entre a pretensa mutação e os limites formais e materiais do texto constitucional, considerando que a

Constituição erige como uma de suas cláusulas pétreas a separação de poderes210. Em 20 de março de 2014 o ministro Teori Zavascki proferiu seu voto-vista consignando que desde 1934 foi estabelecido um consenso (ainda ativo) no sentido de que a Resolução do Senado que suspende a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF possui natureza normativa, uma vez que universaliza o reconhecimento estatal da inconstitucionalidade de um preceito normativo. Sobre a reclamação em si, apesar de consignar a ausência legitimidade jurídica para a sua utilização quando de seu ajuizamento, a edição posterior da Súmula Vinculante 26 imporia o seu conhecimento e, por consequência, o deferimento do pedido. Já o ministro Luís Roberto Barroso entendeu ser incabível que eventual mudança fosse efetivada no corpo do art. 52, inciso X, mas apenas se o fosse no âmbito legislativo, não sendo possível promovê-la pela via interpretativa da mutação constitucional. Nas palavras do ministro: “De modo que eu gosto da tese, mas vejo este obstáculo: a mutação do art. 52, X. Eu

209 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014, p. 100. 210 Embora reconheça a evolução constante da importância direcionada ao STF e suas decisões no âmbito do controle difuso, o ministro alerta para os contornos do próprio dispositivo constitucional: “Reconheço que, na prática cotidiana dos tribunais, as questões decididas pelo STF, no controle difuso de constitucionalidade, têm considerável impacto tanto nas decisões da própria Corte como naquelas proferidas nas demais instâncias jurisdicionais. Não extraio, porém, desse fato, a força necessária para atribuir novos contornos ao art. 52, X, da Constituição Federal. Isso porque se está diante de dois fenômenos jurídicos que, embora acarretem resultados semelhantes, não podem ser confundidos entre si. O primeiro corresponde às decisões que produzem o denominado efeito erga omnes, que as tornam oponíveis a todos; o outro se refere às decisões que, pela autoridade do órgão jurisdicional, constituem fonte de Direito, como, de resto, ocorre com a jurisprudência em geral. Esclareço melhor. Se, por um lado, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal confere a seus Ministros a competência para julgar monocraticamente determinado recurso extraordinário quando a decisão está em consonância com a jurisprudência dominante, não estão eles, de outro modo, obrigados a se curvar ao entendimento predominante na Casa, salvo em se tratando de posição estabelecida em controle concentrado de constitucionalidade ou por meio de súmula vinculante. No primeiro caso, tem-se a manifestação da força dos precedentes da Casa, como fonte de direito; no segundo, um exemplo da força cogente do efeito erga omnes. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014, p. 126-127).

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acho até que a realidade tem impulsionado no sentido da mutação, mas nós não podemos prescindir da mudança do texto”211. A ministra Rosa Weber acompanhou os ministros Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso, no entendimento de que a interpretação proposta esbarraria nos limites do texto constitucional e, especificamente sobre a reclamação, deveria ser considerada a superveniência da edição da Súmula Vinculante 26212. O ministro Marco Aurélio consignou que a atribuição indiscriminada de eficácia erga omnes, sem vinculação aos precedentes da Corte, corresponderia a legislar positivamente, o que não deve ser admitido, e, por fim, o ministro Celso de Mello acompanhou o voto do ministro Teori Zavascki no que tange à necessidade de permitir um avanço no processo de construção jurisprudencial da Corte no tema relativo à reclamação, para que seja possível emprestar respeito ao imperium que qualifica as decisões do STF em sede de controle de constitucionalidade. A despeito de toda a discussão relativa ao papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade, a reclamação foi conhecida e provida em função da edição posterior da Súmula Vinculante 26 – que consolidou o entendimento do STF a respeito da possibilidade de progressão de regime nos casos de crimes hediondos. Nesse tocante, consoante apontado por José Levi Mello do Amaral Júnior “a prática mais recente da suspensão senatorial mostra que está ela em pleno – e vigoroso – uso, não havendo espaço para cogitar, no caso, desuso que pudesse justificar mutação constitucional a dispensar a manifestação do Senado Federal”213. O caso encimado é um nítido exemplo da tensão existente entre a autêntica e efetiva interpretação constitucional pelo STF e a prática de decisão que ultrapassa o sentido do texto, podendo configurar o denominado decisionismo/solipsismo judicial214. Veja-se que os próprios ministros do STF levantaram a questão de se estar ultrapassando os limites do texto normativo quando de seus votos, como a fala do ministro Sepúlveda Pertence (indicando inclusive que tal conduta poderia ser vista como golpe de Estado), e dos ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski ao concluir pela impossibilidade de se acolher a tese de mutação constitucional proposta.

211 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014, p. 186. 212 ANDRADE, Fábio Martins de, op. cit. 213 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Dados sobre a prática mais recente do art. 52, X, da Constituição. In: VALE, André Rufino; QUINTAS, Fábio Lima (Orgs.). Estudos sobre a Jurisdição Constitucional. v. II. São Paulo: Almedina, 2018, p. 243. 214 Como aponta Luiz Fernando Vieira, a grande característica do juiz solipsista está configurada no ato de relegar a decisão à consciência ou à sua convicção pessoal (VIEIRA, Luiz Fernando. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à Constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013).

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Nesse tocante, Lenio Streck afirma que esse caso em específico demonstra no Brasil a prática de conduta “ativista” que evidencia a ausência de limites no processo interpretativo, pois “sequer os limites semânticos do texto constitucional funcionam como bloqueio ao protagonismo judicial que vem sendo praticado em todas as esferas do Poder Judiciário de terrae brasilis”215. Deve-se salientar ainda que, embora a proposta do ministro Gilmar Mendes tenha um farto arcabouço teórico, parece existir uma incongruência na utilização da mutação constitucional como instrumento adequado para a modificação proposta. Isso porque, conforme bem ressaltado pelo ministro Eros Grau – que acompanhou o relator –, “a mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual”216. No mesmo sentido, Konrad Hesse destaca que “uma mutação constitucional modifica, de que maneira for, o conteúdo das normas constitucionais de modo que a norma, conservando o mesmo texto, recebe um significado diferente”217. As características da mutação constitucional, a partir de tais conceitos, desdobram-se essencialmente nos seguintes pontos: a) é um processo informal; b) ocorre de forma gradual e não intencional; c) acarreta numa mudança de interpretação que altera ou modifica o sentido dado a uma norma constitucional; e d) altera o sentido, mas não altera o texto e nem contraria a Constituição218. Conforme se percebeu pelos argumentos indicados tanto pelo ministro Gilmar Mendes como pelo ministro Eros Grau, o que se propôs não foi apenas mudar a interpretação dada ao texto constitucional, mas efetivamente modificar o próprio texto contido no art. 52, inciso X, da Constituição. O próprio ministro Eros Grau propôs a nova enunciação do texto normativo para substituir a palavra “suspender” para publicar. Ao analisar a temática Lenio Streck acentua com duras críticas que:

Assim, o que acontece no âmbito da proposta de mutação constitucional do art. 52, X? Não há uma alteração de significado da norma; pretende(ra)m mudar não o sentido da interpretação do texto, mas mudar a própria dicção do art. 52, X. Se vingar a tese defendida por parte dos ministros do STF, estar-se-á a alterar radicalmente o texto (ao invés de “suspender”, querem

215 STRECK, Lenio Luiz, 2014c, p. 65. 216 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014, p. 72. 217 HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 151. 218 TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski; NASCIMENTO, João Luiz Rocha do. Mutação constitucional como evolução normativa ou patologia constitucional? Tempo e direito à luz da hermenêutica-filosófica. Revista Estudos Institucionais, v. 3, n. 1, 2017.

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escrever “publicar”). Desse modo, tem-se um verdadeiro rompimento constitucional, pois, sem alterar o texto formal (por meio do devido processo legislativo constitucional), é como se o tivessem feito, mas pelo próprio Poder Judiciário. Nesse caso, não há mutação, mas rompimento. Por isso, o problema é democrático. Se admitirmos fissuras na ordem constitucional, passaremos a admiti-las no próprio Estado Democrático de Direito.219 (grifos originais).

Dessa forma, ainda que se entendesse que os fundamentos apresentados pelo ministro Gilmar Mendes (como desuso do instituto pelo decurso do tempo ou a existência de novos instrumentos de controle concentrado que reforçam ser inconcebível a previsão do art. 52 com a função desempenhada pelo STF), não seria possível acolher a sua tese, pois não haveria a configuração de mutação constitucional, mas verdadeira modificação/invenção do texto constitucional220. Ademais, como bem advertido por Antônio Armando Freitas Gonçalves ao tratar sobre os caracteres da mutação constitucional “o texto é o primeiro, senão o mais importante limite à mutação constitucional. A mudança, portanto, não se dá no texto normativo, que permanece inalterado, mas sim da norma construída a partir do texto (atribuição de novo sentido)”221. É importante destacar que, conforme apontado por José Levi Mello do Amaral Júnior, a decisão do STF prolatada em sede de controle de constitucionalidade difuso não tem a sua autoridade afetada pela eventual decisão do Senado Federal de não suspender a lei tida por inconstitucional. Isso porque, no mínimo, subsistirá o efeito que é próprio da decisão: o seu caráter inter partes222. Do mesmo modo, é inaplicável a alegação de que o instituto se encontra em desuso, pois conforme indica o indigitado autor, a partir de 2007 se verificou a promulgação de nada menos do que 29 resoluções senatoriais com fundamento de validade no art. 59, inciso X, da Constituição Federal223-224.

219 STRECK, Lenio Luiz, 2014c, p. 63. 220 “A atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC n. 01, quando este dizia que a função do STF é a de um oráculo (sic) que ‘diz o que é a Constituição). De uma perspectiva interna do direito, e que visa reforçar a normatividade da constituição, o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando” (STRECK, Lenio Luiz; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Argumenta Jornal Law, Jacarezinho/PR, n. 7, fev. 2013, p. 61). 221 GONÇALVES, Antônio Armando Freitas. Possibilidades e limites das mutações constitucionais informais da constituição: o caso da perda do mandato parlamentar na ação penal 470. 2016. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016, p. 94. 222 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do, op. cit. 223 Idem.

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Ademais, é preciso relembrar que o Senado Federal, enquanto representante direto dos cidadãos, acaba por legitimar e possibilitar a participação democrática, ainda que indireta, no âmbito do controle difuso de constitucionalidade. Assim, conferir-lhe apenas um caráter de “órgão de imprensa” e de mero divulgador das decisões do STF, além de ser incompatível com a dignidade institucional própria da Casa legislativa225, significaria excluir do processo do controle difuso a possibilidade de participação dos representantes do povo, o que parece desconectado do quanto definido pela Constituição Federal de 1988226-227. Por fim e não menos importante, há na interpretação pretendida uma possível lesão a direitos fundamentais, pois a atribuição de eficácia erga omnes e efeito vinculante a todas as decisões do STF prolatadas no exercício do controle difuso de constitucionalidade pode acabar por ferir os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e também do contraditório, à medida que as consequências jurídicas decorrentes da decisão acabará afetando pessoas que não puderam participar e se manifestar nos processos cuja decisão os afetará228.

224 Em outra pesquisa de cunho empírico, Carlos Victor Nascimento dos Santos analisou se o Senado Federal tem ou não se utilizado da prerrogativa constante no art. 52, inciso X, da Constituição Federal, em comparação com as comunicações pelo STF de suas decisões em sede de controle difuso de constitucionalidade. Nesse tocante, o autor assinala que: “Dessa forma, tem-se que não é prática reiterada do Senado Federal deixar de expedir resoluções suspendendo eficácia de lei ou ato normativo declarado inconstitucional, consoante o dado analisado anteriormente. Assim, das 136 comunicações feitas ao Senado pelo STF, conforme demonstrado anteriormente, em 95 delas o Senado expediu resolução suspendendo a eficácia da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Plenário do STF, o que equivale a aproximadamente 70% das comunicações feitas. Isto é, das decisões comunicadas pelo STF ao Senado Federal, o Senado se manifesta expedindo resoluções em aproximadamente 70% das vezes, o que demonstra não ser prática efetiva do Senado Federal a ausência da manifestação quando provocado pelo STF. O que surpreende é o baixo número de comunicações feitas pelo STF ao Senado com base nos números analisados (97.130 recursos extraordinários providos total ou parcialmente), podendo ter ocorrido por diversos motivos, entre os quais o não envio pelo gabinete dos Ministros, falha na Secretaria de Apoio aos Julgamentos, Coordenadoria dos Acórdãos, isto é, por questões estruturais ou outros motivos até então desconhecidos. Enfim, este conceito aduzido denota, sobretudo, não estarem plenamente atendidos os requisitos necessários para se defender uma autêntica mutação constitucional in casu” (SANTOS, Carlos Victor Nascimento dos. “Mutação à brasileira”: uma análise empírica do art. 52, X, da Constituição. Revista Direito GV [on-line], São Paulo, v. 10, n. 2, 2014, p. 605). 225 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do, op. cit. 226 STRECK, Lenio Luiz; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni, op. cit. 227 Conforme aponta Anderson Clei Santos, a proposta de mutação constitucional do art. 52, inciso X, nos termos propostos pelo ministro Relator Gilmar Mendes, se acolhida, pode trazer consequências gravíssimas para o jogo democrático uma vez que: “Em primeiro lugar, porque projeta uma imagem de relevância de apenas um ator da jurisdição constitucional dentre outros agentes da concretização constitucional. Por sua vez, cria-se, também, a figura de juiz constitucional dotado de uma sabedoria onipotente. Com efeito, se não se deve criar uma visão idealizadora do Legislativo com a voz do povo, certamente, é um erro pensar que os juízes constitucionais são sempre homens virtuosos e sábios, insuscetíveis ao erro, e preocupados essencialmente com valores constitucionais fundamentais e com a democracia” (SANTOS, Anderson Clei. Mutação constitucional e a crise da democracia representativa. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de (UFS), Sergipe/ES, 2015, p. 91). 228 STRECK, Lenio Luiz; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni, op. cit.

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2.2 Flexibilização dos Efeitos do Trânsito em Julgado: Possibilidade de Prisão Após Decisão Condenatória por Órgão Colegiado de Segunda Instância

Por meio de julgamento plenário nos autos do HC 126.292, ocorrido em 17 de fevereiro de 2016, o STF, por maioria de votos, passou a admitir a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença por órgão colegiado em segundo grau229. O HC indigitado foi impetrado contra decisão do STJ que indeferiu pedido liminar que objetivava o afastamento de mandado de prisão expedido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) após a prolação de acórdão confirmando a sentença de origem que resultou na aplicação de pena de cinco anos e quatro meses de prisão, no regime inicial fechado, pela prática do crime de roubo qualificado230. Inconformada com o teor da decisão, vez que a expedição de mandado de prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória violava claramente o texto constitucional pela garantia da presunção de inocência (art. 5°, inciso LVII, da CF), e também a jurisprudência sedimentada pela Corte até aquele momento, a defesa impetrou o remédio constitucional indicado231. No entanto, em drástica mudança do entendimento que havia sido fixado desde 2009, o Pleno do STF, por maioria de votos, decidiu pela possibilidade de execução antecipada da pena após decisão condenatória de segundo grau, o que, segundo análise dos votos vencedores, não implicaria em qualquer violação ao princípio da presunção de inocência, tampouco em desrespeito à disciplina do art. 5°, LVII, da CF. O voto condutor para a guinada jurisprudencial indicada foi de lavra do ministro Teori Zavascki, relator do processo, o qual adotou inicialmente como argumentos centrais de sua decisão os seguintes232: a) o tema afeto à execução provisória de sentenças penais condenatórias implica numa reflexão cumulativa entre o alcance do princípio constitucional da presunção

229 Deve-se consignar que esse julgamento implicou na alteração de entendimento consolidado na Corte desde 2009, quando do julgamento do Habeas Corpus n. 84.078, oportunidade em que se reconheceu a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, respeitando-se o quanto preceituado pelo princípio constitucional da presunção de inocência. 230 GUNDIM, Wagner Wilson Deiró. A “flexibilização” dos efeitos do trânsito em julgado pelo Supremo Tribunal Federal para a execução da pena após condenação em segunda instância e a sua aplicabilidade por analogia à perda do mandato parlamentar de Vereadores. In: LEMBO, Cláudio Salvador (Coord.); PINTO SOUZA, Felipe Chiarello. Direito constitucional político-eleitoral: estudos em homenagem à profa. Dra. Monica Herman Salem Caggiano. Belo Horizonte: Arraes, 2017. 231 Idem. 232 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 126.292/SP. Relator: Min. Teoria Zavascki. Data de julgamento: 17.02.2016. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 17.5.2016.

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de inocência e da efetividade da função jurisdicional no âmbito penal, que deve atender valores importantes para os acusados, mas também a sociedade, em função da complexidade do sistema de justiça criminal brasileiro; b) a possibilidade de execução provisória da pena privativa de liberdade era tema já admitido pela jurisprudência do STF, mesmo na vigência da CF de 1988, de modo que a presunção de inocência não tem o condão de impedir a prisão decorrente de acórdão que confirma sentença condenatória, como o quanto já decidido igualmente no HC 68.726; c) o enunciado das Súmulas 716 e 717, aprovadas em sessão plenária em 24 de setembro de 2003, demonstram a possibilidade de execução provisória de sentenças penais condenatórias, já que abarcam situações de cumprimento da pena; d) antes da prolação da sentença penal, há de se manter reservas de dúvida sobre a culpabilidade ou não do agente, em prestígio ao princípio da presunção de inocência. Quando há condenação em primeira instância, isso acaba por representar um juízo de culpabilidade em torno do agente, embora não definitivo, diante da possibilidade de revisão pelo Tribunal de hierarquia superior. Com o juízo de apelação, no entanto, diante do exaurimento da análise sobre os fatos e provas, é ali que se fixa a própria responsabilização do agente, uma vez que os recursos extraordinários não são dotados de devolutividade, portanto, imprestáveis para discussões relativas a fatos e provas; e) a execução da pena durante a pendência de recursos de cunho extraordinário não compromete o núcleo essencial do pressuposto da presunção de inocência (ou não- culpabilidade), pois o acusado fora tratado como inocente por todo o iter processual; f) no cenário internacional não há qualquer outro país que admita a suspensão da execução da pena após o exaurimento do duplo grau de jurisdição, como teria sido observado pela ministra Ellen Gracie no julgamento do HC 85.886; g) as chances de êxito de recursos extraordinários submetidos à Corte são infrequentes, especialmente após a exigência da demonstração de repercussão geral no âmbito dos recursos mediante a edição da EC 45/2004, detectando-se, inclusive, a indevida e sucessiva interposição de recursos com finalidade protelatória, buscando, não raro, a configuração da prescrição da pretensão punitiva ou executória;

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h) diante desse quadro, é de competência do Poder Judiciário, especialmente do STF, garantir que o único instrumento de efetivação do jus puniendi estatal resgate a sua função institucional, o que se fará com a possibilidade de se permitir ao julgador determinar o imediato cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após o exaurimento da análise pelas instâncias ordinárias; e i) mesmo reconhecendo que existe a possibilidade de ocorrência de equívocos pelas instâncias ordinárias, o que é inegável, aduz que existem mecanismos de correção para eventuais consequências danosas ao condenado, como a suspensão, se necessário, da execução provisória da pena, ou, no caso de plausibilidade jurídica de recurso extraordinário, poderá o Tribunal deferir efeito suspensivo ao recurso, e, por consequência, obstar o cumprimento antecipado da pena.

O ministro Edson Fachin acompanhou o relator e consignou a necessidade de que a regra insculpida no art. 5°, inciso LVII, da Constituição, deve ser interpretada sem o “apego à literalidade com a qual se afeiçoam os que defendem ser impossível iniciar-se a execução penal antes que os Tribunais Superiores deem a última palavra sobre a culpabilidade do réu”233. Ainda, segundo o ministro, a regra constitucional indicada não pode ser revestida de caráter absoluto, mas ao revés, deverá ser sempre compatibilizada com outros princípios e regras constitucionais, como aquelas insculpidas nos arts. 102 e 105, da CF, os quais reservam o acesso às instâncias extraordinárias apenas em situações excepcionais e exigem ainda requisitos processuais mais qualificados, como a demonstração de transcendência e relevância da tese jurídica, impedindo rediscussão de fatos e provas. Na sequência o ministro Luís Roberto Barroso profere voto também acompanhando o relator e, para demonstrar suas fundamentações, estruturou o seu voto em três partes. Na primeira, apresentou o delineamento da controvérsia, na segunda os fundamentos jurídicos para a possibilidade de execução da condenação após a decisão de segunda grau, e na terceira expôs os fundamentos pragmáticos para o novo entendimento adotado. Segundo o ministro, a mudança de entendimento que justifica a nova interpretação adotada pelo STF está centralizada na ocorrência de mutação constitucional, efetivada anteriormente em 2009 – quando se afastou a possibilidade de execução antecipada –, e aplicada novamente nesse julgamento, uma vez que se estava a adotar novo entendimento, sobreposto a outra interpretação dada ao dispositivo constitucional discutido. Ainda,

233 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016, p. 21.

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argumentou que a sistemática anteriormente adotada, que passou a impossibilitar a execução antecipada da pena após julgamento pelas instâncias ordinárias, acarretou três consequências gravosas para o sistema de justiça penal brasileiro: a) potencializou a interposição de recursos com nítido caráter protelatório, o que se comprovaria pelo número irrisório de recursos providos em favor do réu, que não alcançariam sequer o percentual de 1% do total de decisões; b) potencializou a seletividade do sistema penal, pois a ampla e quase irrestrita possibilidade de se recorrer em liberdade foi aproveitada pelos réus mais abastados, com condições de contratar os melhores advogados para prover suas defesas e postergar o resultado final; e c) aumentou significativamente o descrédito da sociedade para com o sistema de justiça penal, já que a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado para o início de cumprimento da pena possibilitou que diversos réus fossem contemplados pela prescrição da pretensão punitiva, além de não atender adequadamente o caráter preventivo da pena, diante do distanciamento temporal entre a prática do delito e punição em definitivo. A título de fundamentação jurídica para corroborar a aplicação do novo entendimento, o ministro apresentou os seguintes argumentos adiante sintetizados: a) há um equívoco na leitura que costumam fazer do art. 5°, inciso LVII, da Constituição, pois a literalidade poderia sugerir a impossibilidade de que se efetive a prisão anteriormente ao trânsito em julgado da sentença condenatória, no entanto, segundo aduz, o pressuposto para a decretação da prisão no sistema jurídico brasileiro não é o esgotamento das instâncias e recursos, mas a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, nos termos do art. 5°, inciso LXI, do texto constitucional. Ou seja, diante de uma interpretação sistemática e combinada entre os incisos indicados, seria evidente que a privação da liberdade exige determinação escrita e fundamentada expedida por autoridade judiciária competente, o que seria cumprido com a determinação após exaurimento da questão em segunda instância; e b) a presunção de inocência é um princípio constitucional e como tal está sujeita a ponderação com outros bens constitucionais. Nesse caso, as normas constitucionais em tensão seriam, de um lado, a presunção de inocência (ou não culpabilidade), e, de outro, o interesse constitucional na efetividade da lei penal em prol dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal (vida, liberdade, dignidade humana, integridade física e moral, dentre outros). Dessa ponderação, efetivada a partir do princípio da proporcionalidade, o ministro indica que a possibilidade de execução provisória da pena aplicada a réu já condenado em segundo grau de

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jurisdição e que esteja na pendência de julgamento apenas de recursos às instâncias superiores, não viola a presunção de inocência.

Pautando-se nos argumentos indicados, o ministro Barroso votou no sentido de denegar a ordem de HC impetrada, com revogação da liminar outrora concedida, bem como para fixar a seguinte tese: “A execução de decisão penal condenatória proferida em segundo grau de jurisdição, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade”234. Também votaram acompanhando o relator os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes. Em sentido contrário, a ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, então presidente da Corte, foram vencidos, mas decidiram pela concessão da ordem, e pela manutenção do entendimento sedimentado e adotado desde 2009 nos autos do HC 84.078. Em suas razões, o ministro Marco Aurélio mostra preocupação quanto à mudança de posicionamento da Corte sobre o tema, ressaltando que, se mantido o rumo quanto à leitura da Constituição pelo STF, será difícil continuar a conceituá-la como Carta cidadã. Isso porque, embora reconheça a crise no sistema carcerário, o aumento da delinquência no País, e que o tempo é precioso para o Estado-acusador, mas também para o próprio acusado, defende que nos momentos de crise maior é que os princípios, valores e parâmetros constitucionais devem ser guardados, de modo a não gerar instabilidade ou insegurança jurídica. Ainda, dentre os argumentos apresentados, o ministro ressalta que:

Presidente, o acesso aos Tribunais de Brasília ainda está pendente. Por que, em passado recente, o Tribunal assentou a impossibilidade, levando inclusive o Superior Tribunal de Justiça a rever jurisprudência pacificada, de ter-se execução provisória da pena? Porque, no rol principal das garantias constitucionais da Constituição de 1988, tem-se, em bom vernáculo, que ‘ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória’. O preceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se rescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção. Já disse, nesta bancada, que, quando avançamos, extravasamos os limites que são próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode retornar e vir à nossa testa. Considerando o campo patrimonial, a execução provisória pode inclusive ser afastada, quando o recurso é recebido não só no efeito devolutivo, como

234 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016, p. 54.

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também no suspensivo. Pressupostos da execução provisória é a possibilidade de retorno ao estágio anterior, uma vez reformado o título. Indaga-se: perdida a liberdade, vindo o título condenatório e provisório – porque ainda sujeito a modificação por meio de recurso – a ser alterado, transmudando-se a condenação em absolvição, a liberdade será devolvida ao cidadão? Àquele que surge como inocente? A resposta, Presidente, é negativa. Caminha-se – e houve sugestão de alguém, grande Juiz que ocupou essa cadeira – para verdadeira promulgação de emenda constitucional. Tenho dúvidas se seria possível até mesmo uma emenda, ante a limitação do artigo 60 da Carta de 1988 quanto aos direitos e garantias individuais.235

A conclusão perfilhada pelo ministro Marco Aurélio, nesse sentido, acompanhou a divergência revelada pela ministra Rosa Weber para conceder a ordem indicada, por entender que o significado emprestado pela Constituição Federal de 1988 ao princípio da não culpabilidade foi o de evitar a execução de uma pena que ainda não é definitiva. O ministro Celso de Mello, que também acompanhou a divergência, fez o registro inicial em sua decisão sobre a condição da presunção de inocência como notável conquista histórica dos cidadãos numa permanente luta contra a opressão estatal e o abuso de poder, cuja importância foi inclusive reconhecida por variados diplomas internacionais, como a Declaração Universal de Direitos da Pessoa Humana de 1948, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também de 1948, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), dentre outros. Ainda, segundo o ministro, a CF estabelece, de maneira indubitável, os limites que não podem ser ultrapassados pelo Estado e seus agentes no cumprimento da persecução penal, de modo que é o próprio texto constitucional que, expressamente, impõe para fins de descaracterização da presunção de inocência, o trânsito em julgado da sentença condenatória. Nesse sentido, é inadequado argumentar que a prática e experiência registradas em outros países demonstrariam a pertinência da proposta, pois tais Estados, diferentemente do Brasil, não impõem como requisito obrigatório para a execução da pena o trânsito em julgado da decisão condenatória. O ministro Ricardo Lewandowski, acompanhando a divergência, manteve posição que vinha adotando há longa data para prestigiar o princípio da presunção de inocência, estampado com todas as letras pelo texto constitucional, cujo preceito, afirmara, não poderia ter a sua taxatividade ultrapassada. Nas palavras do ministro: “Isso é absolutamente taxativo, categórico; não vejo como se possa interpretar esse dispositivo. Voltando a, talvez, um

235 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016, p. 78-79.

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ultrapassadíssimo preceito da antiga escola da exegese, eu diria que in claris cessat interpretativo”236. A nova tese estabelecida, portanto, por maioria de votos, foi a de que seria possível, pela leitura do texto constitucional, a execução provisória da sentença que tenha sido confirmada por órgão colegiado de segunda instância, com exaurimento das instâncias/recursos ordinários. No entanto, apesar de referida decisão ter sido prolatada pelo Plenário em fevereiro de 2016, o ministro Ricardo Lewandowski, em plantão judiciário, deferiu medida liminar pleiteada nos autos do HC 135.752, beneficiando o ex-prefeito de Marizópolis/PB de modo a suspender, integral e cautelarmente, a execução provisória da sentença condenatória confirmada pelo Tribunal de origem, até o julgamento final do recurso. Em síntese, segundo o ministro, o recentemente posicionamento da Corte sedimentado nos autos do HC 126.292 reconhecendo a possibilidade de execução provisória da pena antes do trânsito em julgado foi adotado em julgamento de processo objetivo, não se revestindo de eficácia vinculante. Ademais, reforçou a sua compreensão de que a presunção de inocência, nos termos previstos pelo texto constitucional, não admite interpretação em função de sua clareza. Alguns dias após a decisão do ministro Lewandowski, o ministro Luiz Edson Fachin, relator do processo em questão, decidiu revogar de ofício a decisão encimada, destacando a existência de posicionamento da Corte em plenário sobre o tema e consignando que a despeito da ausência de vinculatividade da decisão, a Corte deveria conferir estabilidade à sua própria jurisprudência237. Posteriormente, o STF reconheceu repercussão geral do tema quando do julgamento do Recurso Extraordinário 964.246, momento em que a constitucionalidade da relativização do princípio da presunção de inocência foi afastada, a partir da técnica da ponderação238. Diante do novo entendimento esboçado pelo STF possibilitando a execução provisória da sentença confirmada após o esgotamento das instâncias ordinárias, o Partido Nacional Ecológico (PEN) e o Conselho Federal da OAB ajuizaram, respectivamente, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, ambas objetivando a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código Penal, que condiciona a prisão ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

236 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016, p. 97. 237 GUNDIM, Wagner Wilson Deiró, 2017a. 238 SILVA FILHO, Edson Vieira da; XAVIER, Gustavo Silva. Jurisdição constitucional e hermenêutica: discutindo as condições de possibilidade de aplicação do direito a partir da relativização da presunção de inocência. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 38, p. 62-85, ago. 2018.

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Ao analisar o pedido de medida cautelar formulado no bojo das ações o ministro Marco Aurélio, relator de ambas, manteve o posicionamento apresentado nos autos do HC 126.292, entendendo pela constitucionalidade da norma diante da expressa previsão constitucional sobre a presunção de inocência até o trânsito em julgado da decisão condenatória, tendo sido acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Celso de Melo. Entretanto, a maioria dos ministros seguiu o voto condutor do ministro Edson Fachin, o qual entendeu que a Constituição não objetiva conceder uma terceira ou quarta chance para revisão de decisões judiciais, de modo que o acesso às instâncias extraordinárias tem o papel de propiciar ao STJ e STF o exercício de suas funções de interpretação sobre as normas infraconstitucionais e constitucionais. O mérito das indicadas ações, assim como o da ADC 54, ajuizada no ano de 2018 pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – que também discute a constitucionalidade do art. 283 do Código Penal – fora analisado numa primeira sessão de julgamento realizada no dia 24 de outubro de 2019. Na oportunidade, dos sete ministros votantes, quatro exararam votos no sentido de considerar como constitucional a possibilidade de início do cumprimento da pena antes do exaurimento de todos os recursos (ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux) e três entenderam que a medida ofende o princípio constitucional da presunção de inocência (ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e ministra Rosa Weber); tendo o julgamento sido suspenso para prosseguir em sessão no início de novembro. Apenas para demonstrar a evidente tensão interpretativa do caso, torna-se indispensável analisar alguns trechos dos votos de alguns dos ministros. A ministra Rosa Weber, por exemplo, que votou pela defesa do texto constitucional em sua literalidade – ou seja, não admitir a execução antecipada da pena –, consignou que:

É cediço que as sociedades democráticas contemporâneas são marcadas por divisões culturais e pela pluralidade de percepções sobre os elementos do bem comum, de modo a importarem a ausência de consenso e a imprevisibilidade cotidiana presentes na arena política, em que resolvidas como regra as divergências por apertadas maiorias, em uma sensação de baixa legitimidade do sistema democrático representativo, com frequência bem maior do que a desejável. Nesse cenário, ao Poder Judiciário, como elemento estruturante da democracia constitucional, compete a função de interpretar a legislação e assegurar a supremacia da própria Constituição, fundamento de validade de todo o sistema jurídico, a lei fundamental do país. Tal competência jurisdicional explica- se por que, embora a Constituição seja o fundamento de validade de todo o sistema e obrigatória aos seus destinatários, o seu significado, consideradas as situações concretas ou mesmo em contextos abstratos, comporta, volto a

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registrar, divergências, em especial pela indeterminação inerente à linguagem jurídica e ao próprio Direito. Daí a necessidade da atuação de uma instituição não eleita e imparcial para resolver os problemas de interpretação e aplicação da Constituição, o dizer o Direito (jus dicere). Esse caráter indeterminado do Direito evidencia-se diuturnamente com a resolução das disputas interpretativas sobre o seu significado e alcance por este Supremo Tribunal Federal. A definição do sentido de uma norma jurídica tem, por sua vez, consequências práticas, frequentemente decisivas, para a vida de todos nós, pois não envolve apenas o emissor ou o intérprete, mas também o destinatário, o jurisdicionado, coletivamente. E isso independe dele compartilhar, individualmente, da proposta exegética alcançada pelo juiz a quem incumbe dizer o Direito, com plena eficácia vinculativa, na solução das lides materiais e processuais, no conceito do meu saudoso mestre de sempre Galeno Lacerda. Daí porque há uma razão de ordem ética pela qual à interpretação jurídica há de corresponder uma teoria que ampare uma racionalidade objetiva, ou pelo menos intersubjetiva, sendo reduzido o espaço disponível aos impulsos subjetivos do intérprete, por melhores que sejam, ou lhe pareçam, suas motivações.239 (grifos originais).

Ao analisar especificamente a literalidade do texto constitucional, mormente a disposição contida no art. 5º, inciso LVII, da CF, ao dispor que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a ministra Rosa Weber destacou alguns importantes aspectos histórico-normativos tendo ressaltado, dentre outros argumentos que: a) a garantia trazida pelo legislador Constituinte nunca havia sido prevista na história do constitucionalismo brasileiro, de modo que o Constituinte de 1988 não só consagrou expressamente a presunção de inocência, como também estipulou, com todas as letras, que tal presunção somente poderia ser afastada com o trânsito em julgado da sentença penal, vale dizer, com o exaurimento de todos os recursos e instâncias judiciais (ordinárias e extraordinárias); b) a função da Corte no julgado deveria se restringir exclusivamente a definir se a opção do legislador ao definir a regra insculpida no art. 283 do Código de Processo Penal guarda ou não conformidade com o texto constitucional, e não se ela ostenta um desenho ou formato mais desejável ou alinhado a esta ou aquela concepção ideológica atinente à persecução penal; c) em respeito à própria concepção de democracia, a melhor interpretação da Constituição é aquela que a reconhece como unidade textual, como sistema completo, embora aberto, cujo sentido jurídico e coerência são encontrados em si

239 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 43/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 07.11.2019. Tribunal Pleno. No Prelo.

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mesmo, sendo obrigatório buscar o sentido da norma constitucional nela mesma, considerada como sistema; d) o caráter criativo levado a cabo pela interpretação judicial possui limites intransponíveis pela necessária estruturação da fórmula da separação de poderes e princípio do rule of law, razão pela qual a integração normativa deve sempre ser pautada e legitimidade por um comando constitucional expresso; e) diante da regra constitucional expressa assegurando o princípio presunção de inocência, fixando como termo final de sua aplicação o trânsito em julgado da sentença condenatória, não lhe é deferida, na condição de intérprete, a possibilidade de ler o preceito constitucional pela metade, ignorando a regra expressa por ele veiculada; e f) a decisão judicial deve ser sempre primada na melhor interpretação possível do direito objetivo, no caso, do direito constitucional, e não nas melhores interpretações pessoais do magistrado. O ministro Ricardo Lewandowski, que também acompanhou o ministro relator, insistiu pela impossibilidade de se ultrapassar a taxatividade do texto constitucional por se revestir de caráter imperativo e categórico, não sendo admitida tergiversação. Nessa consonância, defendeu, o inciso LVII do art. 5º da CF, não apenas é claríssimo no sentido de não admitir a execução antecipada da pena, como jamais poderia ser objeto de inflexão jurisprudencial com aplicação de interpretação in malam partem, em prejuízo dos acusados em geral. Já o ministro Alexandre de Moraes, que abriu divergência de julgamento quanto ao voto prolatado pelo relator, entendeu pela constitucionalidade da execução antecipada da pena após decisão confirmatória de segunda instância, por entender que tal medida não desrespeita o princípio da presunção de inocência já que o juízo de culpa do acusado é definido pelos juízes naturais, aí compreendidos apenas os magistrados de primeiro e segundo grau. Ainda, segundo o indicado julgador, a constitucionalidade da medida restaria confirmada pelo fato de que numa análise do posicionamento jurisprudencial do STF desde a promulgação da CF de 1988 o entendimento amplamente majoritário defendido durante vinte e quatro anos na Corte foi favorável à possibilidade de execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de recurso de apelação, sendo que apenas nos últimos sete anos, no período compreendido entre 5 de fevereiro de 2009 e 17 de fevereiro de 2019, é que prevaleceu a tese contrária que exigia o trânsito em julgado para execução da medida.

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O mais interessante para essa pesquisa, no entanto, é o trecho do voto em que o ministro discorre a respeito da necessidade de se perquirir a respeito da existência, finalidade e extensão da condicionante constitucional do trânsito em julgado e assinala que:

A condicionante constitucional ao “trânsito em julgado”, portanto, exige a análise de sua razão de existência, finalidade e extensão, para que seja possível, no exercício de interpretação constitucional, realizar a delimitação do âmbito normativo do inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal em face dos demais princípios constitucionais penais e processuais penais, em especial os da efetividade da tutela judicial, do juízo natural, do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, estabelecidos nos incisos LIII, LIV, LV, LVI e LXI do referido artigo 5º. A interligação e complementariedade entre todos esses princípios no exercício da persecução penal são ínsitas ao Estado democrático de Direito, uma vez que somente por meio de uma sequência de atos processuais, realizados perante a autoridade judicial competente, poder-se-á obter provas lícitas produzidas com a integral participação e controle da defesa pessoal e técnica do acusado, a fim de obter-se uma decisão condenatória, escrita e fundamentada, afastando-se, portanto, a presunção constitucional de inocência. A interpretação constitucional deverá superar aparentes contradições entre os citados princípios por meio da adequação proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, de maneira harmônica e que prestigie o esquema organizatório- funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário, garantindo-lhes a maior eficácia e aplicabilidade possível, pois, como salienta CANOTILHO, o intérprete deve: “considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. Ed. Coimbra: Almedina, 1998). O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL deverá, portanto, compatibilizar o texto da Constituição Federal a partir da interdependência e complementaridade dos citados princípios e regras, que não deverão, como nos lembra GARCIA DE ENTERRÍA, ser interpretados isoladamente, sob pena de desrespeito à vontade do legislador constituinte (Reflexiones sobre la ley e los princípios generales del derecho. Madri: Civitas, 1996, p. 30), sendo impositivo e primordial guardar a coerência lógica dos dispositivos constitucionais, analisando-os com prudência, razoabilidade e coerência, de maneira a impedir que a eficácia de uns simplesmente anule a eficácia dos demais, negando-lhes efetividade.240 (grifos não originais)

Em síntese, pela encimada análise do ministro Alexandre de Moraes, o princípio da presunção da inocência insculpido pelo texto constitucional não pode ser interpretado isoladamente, mas, em verdade, deve ser obrigatoriamente sopesado com os princípios constitucionais do juiz natural, tutela judicial efetiva e devido processo legal. Assim, interpretar isoladamente o inciso LVII do art. 5º da CF, ignorando a possibilidade de execução antecipada de decisão condenatória de segundo grau, devidamente fundamentada e

240 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 43/DF.

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assentada na observância do princípio do devido processo legal e seus consectários (contraditório e ampla defesa), corresponderia a atribuir eficácia zero ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Já o ministro Luís Roberto Barroso, ao tratar especificamente sobre a atribuição de significado ao texto normativo insculpido no inciso LXII do art. 5º, defendeu que a discussão não redunda na mera interpretação gramatical ou literal do texto, sendo necessária uma interpretação que considere a realidade como parte normativa do direito. Nas palavras do indicado ministro:

A realidade é parte da normatividade do Direito. Essa é uma constatação que se tornou dominante em todo o mundo. Os textos oferecem um ponto de partida para a interpretação e demarca as possibilidades de sentido da norma. Na terminologia tradicional, fornecem a moldura dentro da qual o intérprete poderá fazer escolhas legítimas. Não escolhas livres: dentro das possibilidades de sentido de uma norma, o intérprete deverá escolher a melhor. Não as de sua preferência pessoal, mas a que mais adequadamente realize os valores constitucionais e o interesse da sociedade. Observe-se que respeitar os direitos fundamentais com proporcionalidade faz parte do interesse da sociedade. Não são coisas antagônicas.241

Mediante essa interpretação que visa a identificar os fins sociais objetivados pela lei e as exigências do bem comum, defende o ministro, é que se deve determinar no julgamento qual dos interesses em conflito deve prevalecer: a) de um lado, o do indivíduo condenado em segundo grau em prolongar o processo, ainda que o índice de absolvição seja inferior a 1%; ou b) de outro, o interesse social de que o direito penal exerça a sua primordial tarefa de prevenção geral desmotivando outras pessoas a não agir ilicitamente, eis que terão o fundado temor de serem efetivamente punidas pelos crimes cometidos. Vale dizer, diante da pluralidade de sentidos e opções viáveis aos sentidos oferecidos pelo próprio texto – que não revela sentidos unívocos –, estaria afastada a crença de que a discussão das ações estaria tão somente direcionada a atribuir sentidos normativos vistos isoladamente, sem se analisar a realidade e o impacto que sobre ela se efetivará. O julgamento final da questão ocorreu em 7 de novembro de 2019, tendo o Plenário do STF julgado procedentes das ADCs ajuizadas, por seis votos favoráveis contra cinco votos contrários (maioria apertadíssima), e concluído pela constitucionalidade do art. 283 do Código Penal, o qual exige o trânsito em julgado da decisão condenatória para o cumprimento da

241 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 43/DF.

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prisão pena (definitiva). Vale dizer, afastou-se o entendimento anterior sobre a possibilidade de antecipação da prisão após decisão condenatória proferida em segunda instância. A discussão indigitada, assim como a anterior, mostra mais uma vez a linha limítrofe que se estabelece entre o efetivo e legítimo exercício da jurisdição constitucional e da atividade interpretativa e o decisionismo/discricionariedade judicial. Os argumentos trazidos no bojo dos processos acima descritos pelos próprios ministros (teses favoráveis e contrárias) corroboram essa tensão e as dúvidas que existem sobre a própria legitimidade da interpretação levada a cabo no processo. Alguns dos ministros, inclusive, sugerem a impossibilidade de se interpretar o artigo constitucional ante a sua clareza inequívoca, ao passo que outros, numa visão tida por sistemática, propõem a reformulação do sentido do texto constitucional, a partir de sua conjugação com outros diplomas normativos da Constituição ou sugerem que, a partir de ponderação, é possível concluir pela relativização dos efeitos do trânsito em julgado. É de se anotar, nesse ponto, que a tese da ponderação vem há muito sendo apontada como um fator que aumenta as chances de ativismo/decisionismo judicial242, especialmente quando há uma aplicação equivocada da teoria alexyana para a relativização de garantias e direitos fundamentais. Nesse sentido, Edson Vieira da Silva Filho e Gustavo Silva Xavier, em recente trabalho sobre a temática, apontam que a relativização da presunção de inocência promovida pelo STF não segue a metodologia indicada pela teoria de Alexy, o que pode causar nítida insegurança jurídica no ordenamento jurídico do país243. Mais do que isso. Lenio Streck assinala que a decisão do STF transformou a discussão jurídico-constitucional em um assunto de cunho moral e político sobre o tema da impunidade,

242 Nesse sentido ver STRECK, Lenio Luiz, 2014c. 243 Nas palavras dos autores: “Fato é que a recepção acrítica de teorias alienígenas, especialmente a dos princípios alexyana, tem servido como álibi para relativização de garantias e consequente perda da autonomia do direito. Um dos casos marcantes ocorridos no Brasil diz respeito à relativização da garantia da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CR/88) realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas Corpus n. 126.296, das Ações Diretas de Constitucionalidade n. 43 e 44 e no Recurso Extraordinário 964.246, em que o próprio Ministro Barroso aduziu que a presunção de inocência é princípio – e não regra – podendo, pois, ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais de mesma estatura243. [...] Nessa perspectiva, nas ADC’s 43 e 44, o Ministro Gilmar Mendes também afirmou que há diferenças entre investigado, denunciado, condenado e condenado em segundo grau, pois, a presunção de inocência iria enfraquecendo com o passar do processo. Implicitamente, também se verifica a ponderação no voto do Ministro Teori Zavascki, ao afirmar que ‘A dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país’. Vê-se que ambos os Ministros não utilizaram em seus votos a metodologia alexyana para aplicar a regra da ponderação, mas justamente escolheu, de antemão, outro princípio que entende mais relevante que a presunção de inocência para colocá-los em uma balança e ‘ponderar”. Seus votos expressam a ideia da ‘ponderação de valores, que parte da máxima da proporcionalidade, sendo que esta, para Alexy, é uma regra e não um princípio. Da ponderação haverá sempre uma regra que será aplicada por subsunção ao caso concreto” (SILVA FILHO, Edson Vieira da; XAVIER, Gustavo Silva, op. cit., p. 75-76).

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uma vez que boa parte da fundamentação jurídica de ministros que votaram favoravelmente à relativização do trânsito em julgado se utilizaram de argumentos fáticos (dados sobre a baixa quantidade de recursos extraordinários providos ou de recursos protelatórios, até mesmo estatísticas sobre o aumento da criminalidade), recuperando o velho dualismo “normatividade versus realidade”244. Ainda, o mesmo autor aponta que na verdade o exercício levado a cabo pelo STF no julgamento do HC 126.292 implicou em verdadeira modificação irregular do texto constitucional:

No contexto desta discussão, tem-se falado em mutação constitucional. Estranho modo de tratar desse instituto exsurgido no século XX. É preciso deixar claro, contudo, que não se trata de uma mutação constitucional. Não estamos diante de uma nova norma para um texto já existente. Como se sabe, para que se configure a mutação constitucional, é imprescindível que a nova norma não seja, ela mesma, um novo texto! [...] Com efeito, ao criar um novo, e jamais pensado, sentido para a expressão “trânsito em julgado”, a Suprema Corte reescreveu a Constituição e aniquilou uma garantia fundamental, revelando todo seu viés realista. Isso porque, na comunidade jurídica, ninguém tem dúvida acerca de seu sentido. Todos sabem o que é sentença condenatória transitada em julgado. Em suma, ao redefinir a expressão “trânsito em julgado”, essa Suprema Corte não apenas ultrapassou os limites semânticos do texto constitucional, como esvaziou seu sentido originário, ou mais primitivo, na medida em que segundo a interpretação proposta pelo ministro Teori Zavascki – e vencedora no plenário do Tribunal – “trânsito em julgado” se converteu, precisamente, em “não trânsito em julgado”.245

E concluindo suas anotações, Lenio Streck reforça a necessidade de se registrar a importância da relação entre texto e norma, especialmente no âmbito de uma democracia, ressaltando que o texto não apenas importa, como vincula a própria norma, que, embora distinta do texto, dele não se desatrela246. No mesmo sentido e concluindo pelo desacerto da decisão do STF no caso em apreço, José Afonso da Silva, em parecer exarado a pedido do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atacou todos os fundamentos e teses apontados no julgado, destacando, dentre outros aspectos247:

244 STRECK, Lenio Luiz. 30 anos da CF em 30 julgamentos – Uma radiografia do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2018. 245 STRECK, Lenio Luiz, 2018, p. 303. 246 Idem. 247 SILVA, José Afonso da. Parecer. 2018. Disponível em: www.conjur.com.br/dl/afonsa-silva-defende-transito- julgado.pdf. Acesso em: 15 jul. 2019.

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a) a inaplicabilidade do direito estrangeiro utilizado como base decisória por alguns ministros do STF, notadamente porque as Constituições dos países indicados não possuem regra constitucional assegurando a presunção de inocência como aquela trazida na Constituição brasileira; b) é preciso reconhecer que a Constituição estabeleceu um limite muito claro para o princípio da presunção de inocência, o qual se encontra no trânsito em julgado da sentença condenatória, o que afasta qualquer argumento pautado no efeito não suspensivo dos recursos cabíveis; c) a impossibilidade de se acolher o argumento de afastamento do “apego à literalidade”, pois nesse caso a regra da presunção de inocência é de caráter absoluto; d) impugnou os argumentos relativos à estrutura recursal (como sistema de recursos, duração do processo) para sustentar a conveniência da execução provisória, criticando o fato de nenhum dos ministros ter apresentado sugestões, por exemplo, de modificação do sistema de recursos com vistas a solucionar a morosidade de sanar os problemas apresentados; e) é possível fazer críticas ao texto e também condená-lo, mas um texto de uma Constituição rígida deve ser respeitado, principalmente por aquele que tem o dever constitucional de garanti-lo e assegurar a sua eficácia de forma completa; e f) afastou a tese de mutação constitucional trazida pelo acórdão, pois a interpretação, como tal, não tem o condão de mudar a constituição, como afirmara o próprio Konrad Hesse – usado como base para a decisão –, sob pena de se ter rompimento constitucional.

Por fim, apenas para corroborar o cenário de insegurança jurídica e tensão decorrentes da decisão prolatada pelo STF248, alguns dos ministros, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli têm manifestado publicamente a possibilidade de mudança de seus votos para direcionar a possibilidade de execução provisória da pena apenas após a decisão do Superior Tribunal de Justiça. Inclusive, o próprio ministro Gilmar Mendes já aplicou tal tese nos autos do HC

248 A decisão do STF pode ter implicado ainda, conforme apontam Agnes Carolina Hüning e Rafael Fonseca Ferreira, um abandono do papel contramajoritário pelo Poder Judiciário, diante da invasão cada vez mais frequente das competências do legislativo e executivo pelas decisões do STF. Nesse sentido, ver: HÜNING, Agnes Carolina; FERREIRA, Rafael Fonseca. A presunção de inocência e o abandono do papel contramajoritário pelo Poder Judiciário. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 12, n. 2, 2017.

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160.296, aduzindo que a execução da pena a partir de uma decisão do STJ é mais adequada ao ordenamento jurídico e ao País.

2.3 A Restrição da Garantia Constitucional do Foro por Prerrogativa da Função de Senadores e Deputados

Em 3 de maio de 2018, o Plenário do STF, por maioria de votos, decidiu questão de ordem nos autos da Ação Penal (AP) 937, que o foro por prerrogativa de função assegurado a deputados e senadores e estatuído no art. 53, § 2º, da CF, somente se aplicaria a crimes cometidos no exercício do cargo e conexos às funções a ele relacionadas. Aplicou-se, na oportunidade, segundo o ministro relator, necessária interpretação restritiva do sentido e alcance do foro por prerrogativa de função. O caso em questão se originou de ação penal ajuizada pelo Ministério Público Eleitoral do Rio de Janeiro em desfavor de Marcos da Rocha Mendes, pela prática do crime de captação ilícita de sufrágio (corrupção eleitoral) previsto no art. 299 do Código Eleitoral, pois, de acordo com a denúncia, o réu teria obtido votos para se eleger prefeito da cidade de Cabo Frio mediante a doação de notas de R$ 50,00 (cinquenta reais) e distribuição de carne aos eleitores249. O caso, inicialmente, tramitou perante o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, uma vez que o réu foi diplomado Prefeito, no entanto, como a peça acusatória somente fora recebida em 30 de janeiro de 2013 – aproximadamente cinco anos após a consumação dos fatos descritos na inicial –, o mandato se encerrou, razão pela qual o Tribunal declinou de sua competência e remeteu os autos para o Juízo da 256ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro. Ocorre que, posteriormente, o próprio Tribunal acabou por anular sua própria decisão que havia recebido a denúncia, haja vista que na época dos fatos, o acusado não mais possuía o foro por prerrogativa de função250. Em 14 de abril de 2014 o acusado é denunciado novamente, agora perante o juízo de primeira instância, o qual recebe a denúncia e promoveu o regular andamento do processo, realizando inclusive os atos instrutórios, mediante oitiva de testemunhas e interrogatório do acusado. No entanto, em 10 de fevereiro de 2015, o acusado, que era primeiro suplente, foi

249 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 937. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Data de julgamento: 3.5.2018. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 11.12.2018. 250 CASTRO, Matheus Felipe de; MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas. Dois pesos, duas medidas: o Supremo ativista e a restrição do foro por prerrogativa de função do legislativo: um estudo a partir da qo na AP 937 do STF. Revista Culturas Jurídicas, v. 5, n. 12, set./dez. 2018.

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diplomado no cargo de deputado federal diante do afastamento de deputados de seu partido, o que acarretou na remessa dos autos para análise pelo STF251. Em 14 de abril de 2016, os parlamentares afastados retornaram a seus cargos, o que fez com que o réu retornasse à condição de suplente, contudo, em 19 de abril de 2016, mais uma vez, assumiu o mandato de deputado federal por novos afastamentos. Em 13 de setembro de 2016, de modo definitivo, foi efetivado no cargo, diante da perda do mandato do titular, o deputado Eduardo Cunha252. Ocorre que, após o encerramento do trâmite processual da AP e a inclusão do feito em pauta de julgamento perante o STF, Marcos da Rocha foi novamente eleito para a prefeitura de Cabo Frio, tendo renunciado ao mandato de deputado federal para assumir a prefeitura em

1º de janeiro de 2017253. Na oportunidade, diante do que denominou de disfuncionalidades prática do regime de foro por prerrogativa de função, o ministro relator, Luís Roberto Barroso, afetou o caso para julgamento pelo Plenário e suscitou questão de ordem no caso apresentado buscando a manifestação da Corte sobre duas questões: a) a primeira, atinente à possibilidade de se conferir interpretação restritiva às normas da Constituição Federal relacionadas à prerrogativa de foro por prerrogativa de função, para limitar a sua incidência às acusações por crimes que tenham sido cometidos: 1) no cargo, após a diplomação do parlamentar, ou, em se tratando de outras autoridades, após a investidura na posição que lhe garanta o foro especial; e 2) em razão do cargo, vale dizer, que guardem estrita conexão ao desempenho do mandato ou do cargo ao qual o texto constitucional assegure o foro privilegiado; e b) a segunda, à necessidade de se estabelecer um lapso temporal a partir do qual a competência do STF para processar e julgar ações penais não seria mais afetada pela investidura ou desinvestidura do cargo por parte do acusado254. A decisão da Corte, por maioria de votos, quanto às duas questões suscitadas foram que: a) o foro por prerrogativa de função somente se aplica aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e conexos às funções desempenhadas; e b) firmou a tese de que após o final da instrução processual, marcada pela publicação de intimação das partes para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar as ações penais não será mais afetada pela investidura ou desinvestidura do acusado em outros cargos, por qualquer motivo.

251 CASTRO, Matheus Felipe de; MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas, op. cit. 252 Idem. 253 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, AP 937. 254 Idem.

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Ainda, além de alterar o entendimento amplamente majoritário da Corte sobre o tema, o STF aplicou o entendimento firmado na questão de ordem do Inquérito 687, de Relatoria do então ministro Sydney Sanches, julgada em 25.8.1999, oportunidade em que também “atribuiu efeitos erga omnes à decisão e determinou a aplicação imediata aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior”255. O voto condutor prolatado pelo ministro relator, Luís Roberto Barroso foi estruturado nas seguintes premissas/fundamentações256: a) o número de autoridade contemplados com o foro por prerrogativa de função perante a CF de 1988 é demasiadamente extenso, o que não encontra correspondência no direito comparado e menos ainda na própria história constitucional brasileira, já que em todas as Constituições anteriores o número de autoridades beneficiadas era muito reduzido. Referida extensão, destaque-se, engloba não apenas a quantidade de autoridades beneficiadas, mas igualmente os ilícitos por elas abrangidos, englobando, inclusive, crimes que não possuam qualquer relação com as funções desempenhadas. No direito comparado, a regra instituída pelos países que adotam a prerrogativa de foro exige que os atos ilícitos praticados tenham sido concretizados no exercício de suas funções institucionais; b) o modelo atual de foro por prerrogativa de função no Brasil apresenta disfuncionalidades e consequências graves para a justiça e o próprio STF, uma vez que: 1) afasta do Tribunal o seu real papel de guarda da Constituição, fazendo com que atue como Tribunal criminal de primeira instância, o que é exemplificado pelo julgamento da ação penal (AP) 470 (Caso do Mensalão), que exigiu do STF a realização de 69 sessões para sua conclusão; 2) há uma ineficiência do sistema de justiça criminal, uma vez que o STF não tem conseguido julgar de maneira adequada e imprimir com a devida celeridade os casos que envolvem a prerrogativa, haja vista a grande quantidade de processos que hoje tramitam perante o STF; 3) verifica-se uma lentidão no julgamento dos processos, de modo que em alguns casos, no limite, existem processos que tramitam por até dez anos, e o resultado final, em algumas situações, é frustrado pela incidência, em alguns casos, da prescrição da pretensão punitiva; d) a ausência de duplo grau de jurisdição nos casos envolvendo autoridades por prerrogativa de foro perante o

255 CASTRO, Matheus Felipe de; MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas, op. cit, p. 70. 256 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 937.

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STF, que atua como primeira e única instância, apresenta objeções fundadas em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário; c) os problemas relacionados ao foro por prerrogativa de função podem e devem produzir significativas modificações na interpretação constitucional, e, para compatibilizá-lo com outros princípios há uma necessidade de conferir interpretação restritiva do seu sentido e alcance. Dessa forma, restringir a aplicabilidade do foro por prerrogativa de função exclusivamente aos crimes praticados durante o exercício das funções, e, cumulativamente, relacionados diretamente às funções desempenhadas, teria o condão de assegurar a credibilidade e efetividade da justiça penal no país, além de ter o efeito prático de reduzir consideravelmente a quantidade de processos na Corte sobre a temática; d) a restrição do sentido e alcance do foro por prerrogativa de função proporcionaria interpretação constitucionalmente adequada, pois a sua atual configuração implica em violação aos princípios da igualdade e da república, à medida que proporcionaria um “privilégio” a determinado número de autoridades sem qualquer fundamentação razoável. Deve-se registrar que essa violação apontada pelo ministro não decorreria da concessão do foro em si, mas do seu atual alcance para englobar fatos pretéritos ou futuros, estranhos ao exercício das funções; e) a técnica de interpretação restritiva das normas constitucionais mediante a inserção de cláusulas de exceção reduzindo o seu alcance não seria novidade para o STF, que já a teria aplicado a diversas situações, tais como: 1) a reinterpretação dada ao art. 102, I, “a”, da CF, ao entender ser incabível o ajuizamento de ADI contra lei anterior à Constituição (ADI 521, rel. min. Paulo Brossard); e 2) a restrição da competência do STF a respeito do julgamento de conflitos entre a União e os Estados-membros, consignando que somente atuará nos casos capazes de afetar o pacto federativo; e f) defendeu a necessidade de fixação definitiva da competência do STF após o final da instrução processual de modo que não seja essa afetada pela investidura ou desinvestidura do mandato dos parlamentares, evitando assim frequentes e embaraçosos “sobe-e-desce” processuais. Os ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Celso de Mello e as ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia acompanharam, na integralidade, o voto do ministro relator. Os ministros Alexandre de Moraes, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski divergiram do voto vencedor, e

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o ministro Gilmar Mendes, acompanhou em parte o voto do relator, conforme se delineará a seguir. Em suas razões, o ministro Alexandre de Moraes levantou, dentre outros, alguns fundamentos para discordar do voto do relator. Em primeiro lugar, consignou que a despeito de reconhecer a importância da experiência no direito, como conclamado pelo relator, não há qualquer pesquisa empírica capaz de demonstrar o grau de efetividade das ações penais contra as autoridades contempladas pelo foro por prerrogativa de função, muito menos que comprove que a primeira instância seria mais efetiva no combate à corrupção que o STF. Aduziu ainda que não é possível estabelecer qualquer nexo (jurídico, sociológico ou histórico) entre a impunidade no país e a ampliação do foro privilegiado pela Constituição de 1988 e que qualquer tentativa de afirmar tal relação constitui em desonrosa ofensa ao histórico de atuação do STF. O indicado ministro ainda prosseguiu em seu voto ressaltando a escolha feita pela Assembleia Nacional Constituinte não apenas pela manutenção da prerrogativa de foro, mas por sua ampliação, o que representaria uma “opção consciente” do constituinte originário, que, mesmo durante a revisão constitucional de 1993/1994, optou por manter o texto original. Mas não é só. Segundo o ministro Alexandre de Moraes a análise sobre a adoção do novo entendimento proposto pelo relator deveria ser analisado a partir das graves e importantes consequências que introduzirá no sistema de garantias e prerrogativas institucionais, levantando algumas questões relevantes, tais como: a) Qual deverá ser o procedimento adotado para os crimes praticados após a diplomação, mas que não estejam relacionados com o cargo, em decorrência da imunidade processual prevista no art. 53, § 3º, da CF, que prevê a necessidade de que, recebida a denúncia, o STF cientifique a Casa parlamentar respectiva para que, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, até decisão final, decida pela sustação do andamento da ação? Nesse caso, não tendo o ilícito relação com o mandato a competência para cientificar a Casa respectiva será do juiz de primeira instância ou do STF?; b) ao adotar a interpretação restritiva sobre as expressas previsões constitucionais a respeito do foro privilegiado, a Corte manterá a possibilidade de ampliação ilimitada de foros privilegiado em nível estadual e distrital, com fundamento na previsão constitucional implícita trazida pelo art. 125, § 1º, da CF? e c) com a aplicação imediata do lapso temporal para fixação da competência da Corte para todos os casos que envolvem prerrogativa de foro, seria eficaz transferir todas as delações e diligências de centenas de processos para que a justiça de primeira instância recomece tudo, novamente?

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Na sequência, o ministro consignou a necessidade de se proceder a uma importante reflexão sobre os limites da atuação da Corte na condição de guardião da Constituição, afirmando que: A análise conjunta de todas essas questões também possibilitará outra importante reflexão sobre os limites da atuação do Supremo Tribunal Federal como “GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO”, possibilitando a diferenciação entre eventuais hipóteses de interpretação restritiva em relação a outras nas quais se possa pretender a substituição de legítimas opções do legislador – inclusive legislador constituinte, pela vontade do STF, por mutação constitucional.257 (grifos não originais)

Com base nesses argumentos, o ministro Alexandre de Moraes divergiu do relator nos seguintes pontos:

i. Impossibilidade de restrição da relação de causalidade (seguido pelo ministro Dias Toffoli): a interpretação da constituição alcança todas as infrações penais comuns, ligadas ou não ao exercício do mandato. ii. Marco processual temporal (seguido pelo ministro Dias Toffoli): o foro por prerrogativa por função é fixado no momento da diplomação. iii. Inaplicabilidade das hipóteses de conexão ou continência a investigados não detentores do foro por prerrogativa de função, a exceção de fato típico único e indivisível. Propôs o cancelamento do enunciado da Súmula 704 do STF.258 (destaque original)

A divergência apresentada pelo ministro Marco Aurélio, por sua vez, se restringiu unicamente quanto à definição do lapso temporal processual para fixação da prerrogativa de julgamento pelo STF, de modo que, deixando a autoridade o cargo, tanto o processo como a prerrogativa seriam julgados em definitivo pela primeira instância, para evitar o efeito “elevador” dos processos. O voto do ministro Ricardo Lewandowski atacou a decisão do ministro relator com maior profundidade e, ressaltando a necessidade de autocontenção da própria Corte, defendeu que a proposta de interpretação restritiva ali discutida deveria ser objeto de discussão perante o Congresso Nacional. No que tange à definição do marco temporal para fins de encerramento ou fixação da competência do STF, defendeu que esse seja efetivado com o término do mandato259. Ainda, segundo o ministro, levar a cabo uma mutação constitucional em momento tão delicado do país, e mediante questão de ordem, um mecanismo de alcance

257 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, AP 937, p. 853. 258 CASTRO, Matheus Felipe de; MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas, op. cit, p. 78. 259 Idem.

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simples e que não se destina a discussões jurídicas de elevada complexidade, não seria razoável260. É também interessante ressaltar a preocupação externada pelo ministro quanto à ausência de pressuposto de mudança substancial no plano fático hábil a ensejar o reconhecimento de mutação constitucional, bem como a possibilidade de afronta ao princípio da separação de poderes, aduzindo que:

[...] Convém repelir, portanto, com veemência, as acusações assacadas contra o Supremo Tribunal Federal na linha de que este é moroso ou até mesmo desidioso na administração dos feitos criminais sob sua jurisdição. Se há um limitador para o ritmo da tramitação das ações penais nesta Suprema Corte, não há dúvida de que ele é inequivocamente ditado por razões de natureza processual e não de ordem material ou pessoal atribuível a qualquer de seus membros e, muito menos, ao foro especial por prerrogativa de função. Nesse passo, a indagação que não quer calar é a seguinte: “Por que o Supremo não faz nada a respeito?” A resposta que emerge é de uma extrema singeleza: “É porque a Corte não tem iniciativa legislativa em matéria processual, da qual deveria ser indubitavelmente dotada.” E, como não temos iniciativa legislativa para alterar a lei processual que nos rege e muito menos para propor emendas à Constituição, não me parece ser lícito à Corte – numa tentativa de desbordar essa limitação institucional – conferir interpretação limitadora à prerrogativa de foro, para diminuir o acervo de processos originários em estoque, a partir de uma mera questão de ordem, ainda mais sob o pretexto de que teria havido uma mutação constitucional. Isso, ademais, sem que tenha ocorrido qualquer mudança substancial no plano fático que justifique uma ablação extrema dessa tradicional garantia, quiçá, até mesmo, em afronta ao princípio da separação dos poderes, erigido em cláusula pétrea pelos elaboradores de nossa Lei Maior.261

Com base em tais fundamentos centrais, a conclusão do ministro Ricardo Lewandowski se deu nos seguintes termos: a) impossibilidade de restrição do foro por prerrogativa de função, admitindo, entretanto, que não cabe o processamento da ação perante a Corte para crimes praticados antes do exercício do cargo; e b) o marco temporal processual para o fim da competência do STF é o término do mandato eletivo. Noutro turno, o ministro Dias Toffoli resolveu a questão de ordem votando nos seguintes termos: a) delimitar o foro por prerrogativa de função dos membros do Congresso Nacional exclusivamente aos crimes praticados após a diplomação, independentemente de sua relação com o cargo; b) quanto a outros agentes públicos que detêm prerrogativa de foro assegurada pela CF, a competência do STF se dará exclusivamente aos crimes praticados após

260 GOMES, Camila Paula de Barros. A releitura do foro especial dos parlamentares e seu impacto sobre a imunidade formal. Revista Juris UniToledo, Araçatuba/SP, v. 4, n. 3, p. 137-150, jul./set. 2019. 261 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 937, p. 1107.

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a diplomação ou nomeação, não se exigindo relação/nexo causal com a função pública; c) considerou inaplicáveis as regras de prerrogativa de foro para crimes praticados antes da diplomação ou da nomeação, devendo os autos serem remetidos à primeira instância, independentemente da fase em que se encontrem; d) reconheceu a inconstitucionalidade de normas previstas nas Constituições estaduais e Lei Orgânica do Distrito Federal que contemplem prerrogativa de foro a autoridades e hipóteses não trazidas expressamente pela CF; e d) estabeleceu que, nos casos em que se aplique a prerrogativa de foro, a renúncia ou cassação, da função pública que atraia a causa de foro especial, após o início da fase para apresentação de alegações finais não altera a competência para julgamento da ação penal262. O ministro Gilmar Mendes, embora tenha reconhecido em seu voto as dificuldades enfrentadas pela Corte para julgar os processos penais de sua competência originária, ressaltou que a percepção da Corte quanto à inconveniência da prerrogativa de foro não autorizaria a reinterpretação da norma constitucional, notadamente porque o papel de revisar eventuais más escolhas do Poder Constituinte originário, reequilibrando as forças sociais, é de competência do Poder Legislativo. Ainda, conforme analisado por Camila Paula de Barros Gomes sobre o voto em questão:

O ministro alega, ainda, que no seu modo de ver, o Supremo Tribunal Federal não estaria interpretando a Constituição e sim, reescrevendo-a. Isso porque a Carta Maior assegura a prerrogativa de foro a partir da diplomação, e não da posse, de modo que fica nítida a inexistência de ligação entre a prerrogativa de foro o efetivo exercício da função.263

Em suas conclusões, o indicado ministro seguiu parcialmente o voto do ministro Luís Roberto Barroso no que tange à definição do prazo de apresentação das alegações finais como marco temporal processual para o foro, mas, em contrapartida, rechaçou a tentativa de sua limitação pela exigência de nexo causal, ou seja, seria irrelevante a existência de ligação com o ofício para se reconhecer a prerrogativa em questão. Por fim, propôs a pronúncia de inconstitucionalidade de algumas prerrogativas e inviolabilidades em relação a algumas autoridades, como, por exemplo, dos membros do Ministério Público264. O caso em questão é mais um exemplo da linha tênue entre o exercício hermenêutico constitucionalmente adequado e o decisionismo judicial.

262 Ibidem, p. 1134-1135. 263 GOMES, Camila Paula de Barros, op. cit., p. 144. 264 CASTRO, Matheus Felipe de; MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas, op. cit.

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Veja-se que o voto vencedor, proferido pelo ministro relator e acompanhado pela maioria do Plenário, entende claramente que a restrição do foro por prerrogativa de função não apenas é possível, mediante a utilização da técnica de interpretação restritiva, como constitucional adequada a partir da leitura de outros princípios constitucionais, que, analisados conjuntamente, demonstram a necessidade de alteração sobre a aplicabilidade da prerrogativa, para que não sejam constatados abusos em sua utilização. De outro lado, os votos de divergência dão conta da preocupação de parte da Corte sobre os excessos da atividade interpretativa. Isso porque, a aplicação da restrição objetivada ao foro por prerrogativa de função não corresponderia, para tais julgadores, em exercício hermenêutico, mas numa alteração da própria Constituição, o que se apresenta indevido, vez que é competência do Poder Legislativo adequar o texto à nova roupagem social, se o caso. Nesse tocante, vale ressaltar que a exegese do art. 53, § 2º, da CF, ao assegurar o foro por prerrogativa de função, apenas assegura, desde a expedição do diploma, que deputados e senadores serão submetidos a julgamento perante o STF. Não há, no texto constitucional, qualquer condicionante ou mesmo restrição para que a prerrogativa somente seja reconhecida na forma proposta pelo voto vencedor, vale dizer, para delimitar o foro privilegiado para crimes praticados durante o exercício do cargo e, cumulativamente, que possuam conexão com a função desempenhada. Ao analisar a decisão do STF, Loiane Prado Verbicaro e Thayná Monteiro Rêbelo ressaltam que:

Não obstante a adequação do entendimento do STF, entende-se que não cabe a esta Corte promover uma alteração da Constituição por intermédio de uma interpretação em meio a um caso concreto. Isso porque as regras referentes ao foro por prerrogativa de função são normas expressas na Constituição, as quais requerem mudança pelo Poder Constituinte reformador, via emenda constitucional, não cabendo ao Supremo a livre disposição desses ritos em nome de uma melhora necessária. Esse ato mais se assemelha ao fenômeno que consta na passagem que o próprio ministro relator esclareceu “ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance” (BARROSO, 2008, p. 6). Nesse sentido, em nome de assegurar princípios básicos do nosso ordenamento, bem como, atender as aclamações sociais de indignação diante da corrupção, o STF almeja alargar mais ainda seu poder, sendo desta vez de forma maléfica e contrária a sua real função de guardião constitucional.265

265 VERBICARO, Loiane Prado; RÊBELO, Thayná Monteiro. Uma análise do foro por prerrogativa de função no Brasil a partir da ação penal 937 (2015) e da PEC n-10 (2013). Prisma Jurídico, v. 17, n. 2, jul./.dez 2018, p. 347.

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A preocupação de que a nova interpretação conferida pelo Plenário do STF quanto ao foro por prerrogativa de função represente em desvirtuamento das funções originárias da Corte, bem como usurpação de tarefa exclusivamente do Poder Legislativo, foi externada nos votos dos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, conforme anteriormente indicado. O ministro Dias Toffoli, também se mostrou preocupado quanto à questão ao afirmar que: “O Supremo Tribunal Federal, pela via de interpretação discricionária, estaria a subtrair de sua própria competência um julgamento que a Constituição

Federal lhe atribuiu”266. Outro fator que traz preocupação sobre a interpretação levada a cabo pelo voto do relator e que conduziu à tese vencedora é a utilização de fatos e dados, como a sobrecarga do STF para julgamento e análise dos processos. Isso porque, embora, de fato, se tenha ciência da tarefa hercúlea de se efetivar a tarefa jurisdicional, em um órgão com número reduzido de julgadores, e responsável por milhares de ações de maior expressão constitucional, o exercício hermenêutico deve se pautar pela integridade do texto constitucional. Em outras palavras: o necessário desafogamento do STF não pode servir como argumento de base para se impor nova dicção à previsão normativa consubstanciada pelo Poder Constituinte originário, sob pena de se configurar verdadeira manobra interpretativa. Vale anotar, ademais, que a decisão do STF não pode ser considerada tecnicamente como mutação constitucional informal. Isso porque, conforme delineado linhas atrás, a mutação constitucional representa a alteração de um entendimento por outro, sem que haja a modificação do texto normativo. In casu, ao restringir o foro por prerrogativa de função nos termos propostos, o que o STF parece ter feito foi reescrever o enunciado normativo, dando- lhe nova conotação, diversa não apenas do texto, mas do espírito consagrado pelo Poder Constituinte originário outrora confirmado, em reiteradas oportunidades, na história do constitucionalismo brasileiro.

2.4 Restrição de Acesso aos Cargos de Linha Sucessória da Presidência da República a Réus em Ação Penal: A Nova Compreensão Trazida nos Autos da ADPF 402

Em 3 de maio de 2016 o partido político Rede Sustentabilidade ajuizou a ADPF 402 com pedido de liminar perante o STF em face de ato do Poder Público tido como lesivo a preceitos fundamentais do texto constitucional consubstanciado na prática institucional, por

266 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, AP 937, p. 1055.

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parte da CD, de admitir a permanência do Presidente da Casa no exercício de suas funções mesmo diante da sua condição de réu em ação penal. O objetivo da indicada ação, conforme ressaltado no próprio petitório inicial, visou não apenas a sanar a lesão a preceitos fundamentais da Constituição, como também impor interpretação vinculante a respeito da impossibilidade de se admitir que réus em ações penais admitidas pelo STF assumam ou exerçam cargos que estão na linha sucessória de substituição da Presidência da República. Isso porque, segundo o partido Rede Sustentabilidade, se o Presidente da República não pode, no exercício de suas funções, responder a ações penais por crimes comuns, de modo que o recebimento de denúncia pelo STF importa em sua suspensão do exercício das funções, a exigência de honorabilidade inerente ao cargo deve ser estendida àqueles que, por força de determinação da própria Constituição, possam ser chamados a ocupá-lo.

Pautando-se no argumento267 central de que a condição de réu é incompatível com o exercício das funções de Presidente das Casas do Congresso Nacional, não apenas pela linha sucessória presidencial, mas também pela responsabilidade de suas funções trazidas pelo texto constitucional, foram formulados os seguintes pedidos: a) em caráter liminar 1) o afastamento provisório do deputado federal Eduardo Cosentino da Cunha do cargo de presidente da CD até que fosse prolatada decisão definitiva; 2) o reconhecimento, a título provisório, da impossibilidade de que pessoas que respondam ou venham a responder ação penal instaurada pelo STF assumam ou ocupem cargos que impliquem, por suas atribuições constitucionais, na substituição do Presidente da República; ou 3) subsidiariamente, que até o julgamento final da ADPF fosse reconhecida, em caráter provisório, a impossibilidade de que pessoas que figurem como réus em ação penal perante o STF assumam ou venham a ocupar a função de substituto imediato do Presidente da República; e b) no mérito 1) a fixação de interpretação e

267 Ao contextualizar o ajuizamento da indicada ADPF Graça Maria Borges de Freitas e Thomas da Rosa de Bustamante salientam que: “O problema foi colocado em relação ao Presidente do Congresso e da CD, deputado Eduardo Cunha, primeiro a figurar na linha de sucessão da Presidência da República, em um contexto de iminente afastamento da Presidente eleita, diante da aprovação, em 17 de abril de 2016, da abertura de seu processo de impeachment por dois terços dos deputados federais. Saliente-se que a competência para processar ou não o pedido de abertura do processo de impeachment em face da Presidente da República era exclusiva do Presidente da Câmara, o qual, no momento do ajuizamento da ação, já figurava como réu em ações penais no Supremo Tribunal Federal, oriundas dos Inquéritos 3.983 e 4.146. Tais inquéritos, por sua vez, tinham pendente de julgamento incidental, desde dezembro de 2015, a Ação Cautelar 4070, proposta pelo Procurador Geral da República, que pedia o afastamento do deputado federal Eduardo Cunha do cargo de parlamentar e da função de Presidente da CD. O fundamento da ação cautelar era de que o mencionado deputado se utilizava do cargo para obter vantagens ilícitas e obstruir a ação dos seus pares com a finalidade de impedir a regular tramitação de representação instaurada contra ele no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Foi apresentada farta documentação para comprovar essas obstruções” (FREITAS, Graça Maria Borges de; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Separação e equilíbrio de poderes: reflexões sobre a democracia e desenho institucional do STF pós- 1988 – apontamentos a partir de um estudo de caso: ADPF 402-DF. Cadernos Adenauer XVIII, n. 1, 2017).

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aplicação dos preceitos fundamentais discutidos no bojo da ação para o fim de declarar que, a pendência de ação penal já recebida pelo STF é incompatível com o exercício dos cargos cujas atribuições constitucionais estejam na linha sucessória de substituição temporária do Presidente da República; 2) em face da nova orientação, afaste definitivamente o deputado Eduardo Cosentino da Cunha do cargo de presidente da CD; ou 3) subsidiariamente, que seja fixada interpretação no sentido de que a pendência de ação penal já recebida pelo Supremo é incompatível com a assunção ou ocupação de cargo que envolva, em circunstâncias concretas, a função de imediato substituto do Presidente da República. A ação foi distribuída no dia 3 de maio de 2016 ao ministro Marco Aurélio, designado relator, o qual, em decorrência da delicadeza da matéria, conferiu preferência de modo que houvesse manifestação da matéria pelo Plenário. Inclusive, no dia seguinte (4 de maio de 2016) o relator informou ao então presidente da Corte, ministro Ricardo Lewandowski, que estaria habilitado a votar na sessão do dia 5 de maio de 2016. Entretanto, nos autos da Ação Cautelar 4.070/DF, o ministro Teori Zavaski, por decisão interlocutória, acolheu pedido do Procurador-Geral da República não apenas para afastar o deputado Eduardo Cunha de sua função de presidente da Câmara, como também do exercício do seu mandato, por entender que o Plenário da Corte somente deveria se pronunciar sobre o referendo ou não da medida adotada. A ADPF 402 fora colocada em pauta de julgamento pelo Plenário em 3 de novembro de 2016, tendo o ministro relator votado pelo acolhimento do pleito, prejudicado o referente ao afastamento do deputado Eduardo Cunha, e sido acompanhado por outros cinco ministros, alcançando a maioria absoluta de seis votos para fixar a impossibilidade de réu em ação penal por crime comum acolhida pelo STF ocupar cargo integrando à linha sucessória do Presidente da República. O julgamento não fora concluído, entretanto, diante da formulação de pedido de vista por um dos ministros da Corte268. Em 5 de dezembro de 2016, antes mesmo da conclusão do julgamento pelo Plenário para prolação dos votos dos ministros faltantes, o ministro Marco Aurélio, diante de fato novo, qual seja: o senador Renan Calheiros havia se tornado réu perante a Corte, deferiu

268 MELLO, Patrícia Perone Campos. Trinta anos, uma Constituição, três Supremos: autorrestrição, expansão e ambivalência no exercício da jurisdição. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas (Org.). Constituição, democracia e jurisdição: um panorama dos últimos 30 anos. Belo Horizonte: IDDE, 2018, p. 259-294. Disponível em: https://doi.org/10.32445/978856713408611.

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medida liminar para afastar o senador exclusivamente da função de presidente do Senado

Federal (e não do seu mandato)269. O julgamento do caso pelo Plenário ocorreu em 7 de dezembro de 2016, oportunidade em que restou consagrada a seguinte ementa:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – PRETENDIDO AFASTAMENTO CAUTELAR DO PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL NO QUE SE REFERE AO EXERCÍCIO DESSA ESPECÍFICA FUNÇÃO INSTITUCIONAL EM RAZÃO DE OSTENTAR A CONDIÇÃO DE RÉU NO ÂMBITO DE PROCESSO DE ÍNDOLE PENAL CONTRA ELE EXISTENTE (Inq 2.593/DF) – INADMISSIBILIDADE, NESSE PONTO, DA POSTULAÇÃO CAUTELAR – CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO IMPEDE O PARLAMENTAR DE PRESIDIR A CASA LEGISLATIVA QUE DIRIGE – A QUESTÃO DA APLICABILIDADE E DO ALCANCE DA NORMA INSCRITA NO ART. 86, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NO QUE CONCERNE AOS SUBSTITUTOS EVENTUAIS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA (CF, art. 80) – CLÁUSULA CONSTITUCIONAL QUE DETERMINA O AFASTAMENTO PREVENTIVO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA EM HIPÓTESE DE INSTAURAÇÃO, CONTRA ELE, DE PROCESSO DE ÍNDOLE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA (“IMPEACHMENT”) OU DE NATUREZA PENAL (CF, art. 86, § 1º) – SITUAÇÃO DE IMPEDIMENTO QUE TAMBÉM ATINGE OS SUBSTITUTOS EVENTUAIS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO (PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL E PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL), SE E QUANDO CONVOCADOS A EXERCER, EM CARÁTER INTERINO, A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – INTERDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO INTERINO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA QUE, NO ENTANTO, NÃO OBSTA NEM IMPEDE QUE O SUBSTITUTO EVENTUAL CONTINUE A DESEMPENHAR A FUNÇÃO DE CHEFIA QUE TITULARIZA NO ÓRGÃO DE ORIGEM – REFERENDO PARCIAL DA DECISÃO DO RELATOR (MINISTRO MARCO AURÉLIO), DEIXANDO DE PREVALECER NO PONTO EM QUE ORDENAVA O AFASTAMENTO IMEDIATO DO SENADOR RENAN CALHEIROS DO CARGO DE PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL.270 (grifos originais)

No julgamento indigitado a Suprema Corte referendou, parcialmente, a liminar concedida, e, por unanimidade, assentou a tese de que os substitutos eventuais do Presidente

269 Vale registrar, nesse ponto, que a decisão em questão gerou um acirramento da crise política entre as instituições (Legislativo e Judiciário), especialmente diante da recusa da Mesa diretiva do Senado Federal em dar cumprimento à decisão de afastamento imposta, defendendo a sua competência exclusiva para suspender processo criminal contra senador e até mesmo declarar a perda de mandato de seus parlamentares, e ignorando por completo a decisão monocrática prolatada ao decidir que aguardaria a deliberação final da Suprema Corte (FREITAS, Graça Maria Borges de; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de, op. cit). 270 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 402/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 7.12.2016. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 29.08.2018.

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da República referidos no art. 80 da CF, caso ostentem a condição de réus criminais perante a Corte, ficarão unicamente impossibilitados de exercer a função de Presidente da República. Ainda, por maioria (ministros Teori Zavascki, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e ministra Carmen Lúcia), acompanhando o voto do ministro Celso de Mello, indeferiu referendo à liminar no que tange à determinação de afastamento imediato desses mesmos substitutos eventuais do Presidente da República em relação aos cargos de chefia e direção por ele titularizados em suas respectivas Casas (restaram vencidos os ministros Marco Aurélio, Edson Fachin e ministra Rosa Weber, os quais referendavam a medida em sua integralidade). Por fim, também por maioria, o Tribunal não confirmou a medida liminar que impôs o afastamento imediato do senador Renan Calheiros do cargo de presidente do Senado

Federal271. Os fundamentos do voto exarado pelo ministro Marco Aurélio, relator do processo, podem ser sinteticamente resumidos nos seguintes pontos: a) em razão do quanto disposto pelo art. 86 do texto constitucional, uma vez admitida a acusação contra o Presidente da República, após deliberação e aprovação por dois terços da CD, e recebida a denúncia pelo Supremo, se efetivará, automaticamente, a suspensão das funções exercidas. Por essa previsão, decorreria do sistema constitucional se mostrar incabível que réu em processo criminal possa ocupar o relevante cargo de Presidente da República diante da honorabilidade que se espera daquele que exercerá o cargo indicado; b) os cargos de presidente da CD e do Senado Federal estão na linha de sucessão/substituição do Presidente e Vice-Presidente da República no caso de impedimento, de modo que, tais cargos, não podem estar ocupados por pessoas que ostentem a condição de réu em processo crime; c) é de se lamentar que o texto constitucional não tenha universalizado expressamente a regra de suspensão funcional imediata para os casos de instauração de processo crime contra os ocupantes de cargos de liderança máxima em outros poderes, de modo que, embora o recebimento de denúncia pela mais alta Corte do país não implique, por si só, juízo de culpabilidade do agente, demonstra

271 Como observado por Graça Maria Borges de Freitas e Thomas da Rosa de Bustamante: “Diante do agravamento da tensão institucional e da ameaça de uma espécie de ‘choque de trens’ entre os poderes, o Tribunal, em 7.12.2016, contrariando os precedentes já citados, reviu sua posição e reformou parcialmente a decisão liminar para não referendá-la na parte que ordenava o afastamento imediato do senador Renan Calheiros do cargo de Presidente do Senado Federal, vencidos os ministros Marco Aurélio, Edson Fachin e Rosa Weber. Com isso, ajustou-se o conteúdo da liminar anteriormente concedida para impedir apenas a possibilidade de o senador realizar substituições eventuais do Presidente da República” (FREITAS, Graça Maria Borges de; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de, op. cit).

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um grau de incerteza sobre o seu compromisso com o interesse público. O afastamento, nesse contexto, serviria como alternativa para proteção do elemento público da função; d) a mesma conclusão que se chegou quanto ao afastamento do deputado Eduardo Cunha deveria ser adotada para o afastamento do senador Renan Calheiros, sob pena de se beneficiar certo réu, “reescrevendo casuisticamente” a Constituição Federal. Ou seja, a aplicação de interpretação de simplesmente afastar o presidente do Senado Federal ou da CD apenas da linha de substituição, mas permitindo a sua permanência na condição de Presidente da respectiva Casa legislativa e/ou do Congresso Nacional, revelaria o famoso “jeitinho brasileiro”, devendo, portanto, ser rechaçada.

O ministro Celso de Mello, por sua vez, responsável pelo voto divergente quanto ao referendo parcial da liminar, no sentido de reconhecer que os substitutos eventuais do Presidente da República somente ficarão impossibilitados de exercer o ofício de Presidente da República, caso ostentem a condição de réus criminais perante a Suprema Corte, embora permaneçam conversando a titularidade funcional dos cargos de direção de suas respectivas Casas, salientou em seu voto: a) a importância da efetivação do princípio da separação de poderes, fórmula política que consagra não apenas a independência e autonomia dos Poderes do Estado, mas também o seu convívio harmonioso, de modo que, mediante o respeito recíproco, as práticas governamentais atendam os grandes princípios assegurados pela CF; b) o mandamento constitucional insculpido no art. 86, § 1º, da CF, torna claro o “sentido de intencionalidade” do constituinte de impor o afastamento cautelar e temporário do Presidente da República do desempenho do mandato de modo a resguardar a respeitabilidade das instituições republicanas. Nessa trilha, os substitutos eventuais do Presidente da República que ostentem a condição de réus em ações criminais perante a Corte não poderão ser convocados para assumir o desempenho transitório do cargo de Presidente da República, pois seria incompatível com o espírito constitucional que, mesmo apresentando a condição formal de acusados em juízo criminal “viessem a dispor, de maior poder público,

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ou de maior aptidão, que o próprio Chefe do Poder Executivo da União, titular do

mandato presidencial”272. Ainda, nas palavras do ministro em questão:

Em uma palavra: se o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal tornarem-se réus criminais perante esta Corte Suprema, em razão do recebimento de denúncia ou de queixa-crime, ficarão eles impedidos de exercer, mediante substituição, o ofício de Presidente da República, pois nada poderá justificar que meros substitutos eventuais desempenhem essa função quando a Constituição simplesmente nega ao próprio titular do mandato presidencial essa possibilidade. Disso resulta que os agentes públicos que detêm as titularidades funcionais que os habilitam, constitucionalmente, a substituir o Chefe do Poder Executivo da União em caráter eventual, caso tornados réus criminais perante esta Corte, não ficarão afastados, “ipso facto”, dos cargos de direção que exercem na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no Supremo Tribunal Federal. Na realidade, apenas sofrerão interdição para o exercício do ofício de Presidente da República. Em consequência, e como revelam os próprios fundamentos de meu voto proferido em 03/11/2016, a substituição a que se refere o art. 80 da Constituição Federal processar-se-á “per saltum”, de modo a excluir aquele que, por ser réu criminal perante o Supremo Tribunal Federal, está impedido de desempenhar o ofício de Presidente da República. Isso, contudo, vale enfatizar, não impede nem obsta que esse substituto eventual, embora inabilitado para o exercício temporário da função de Presidente da República, continue a desempenhar a função de Chefia que titulariza na Casa a que pertence: a Câmara dos Deputados, o Senado Federal ou o Supremo Tribunal Federal.273

Como se percebe, tanto no voto do ministro relator, como no voto do ministro Celso de Mello, responsável por parcial divergência, há um alargamento do texto constitucional para contemplar situação não prevista pelo constituinte originário, ou seja, houve uma superinterpretação (sobreinterpretação)274 do texto. Isso porque, o art. 86 da CF somente prevê a possibilidade de afastamento do Presidente da República (e mais nenhum outro agente público) caso vire réu em ação penal comum perante a Suprema Corte e durante o exercício do cargo. Em outras palavras: ao decidir por analogia pela vedação de que os substitutos eventuais do Presidente da República, se réus em ações penais perante o STF, não podem assumir temporariamente o encargo (exercer as funções presidenciais), a Corte parece ter excedido a moldura interpretativa e construído um novo texto, como se EC fosse275.

272 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 402/DF, p. 82. 273 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 40 /DF, p. 82-83. 274 Expressão utilizada por Lenio Streck (Cf. STRECK, Lenio Luiz. Não há previsão constitucional para afastamento de Renan Calheiros. Consultor Jurídico, 2016). 275 STRECK, Lenio Luiz, 2016.

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Mas não é só. O perigo advindo do exercício interpretativo levado a cabo pelo Supremo também se encontra, em parte, num dos argumentos utilizados pelo ministro relator ao determinar, na época, o afastamento do senador Renan Calheiros do cargo de presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, qual seja: “O senador continua na cadeira de presidente do Senado, ensejando manifestações de toda ordem, a comprometerem a segurança jurídica”276. Esse tipo de argumentação tem levado a críticas sobre a atuação da Corte desvelando o seu suposto caráter ativista/decisionista. Nesse sentido, Anderson Wilson Sampaio Santos faz a consideração de que o Poder Judiciário estaria excedendo a sua competência confiante de que terá o respaldo popular sobre as suas decisões, se efetivando como um suprapoder que detém a última palavra, mesmo estando em conflito com os demais poderes cujos representantes foram escolhidos diretamente pelo povo277. Diogo Bacha e Silva e Alexandre Gustavo Melo Franco Moraes Bahia fazem uma crítica semelhante ao citar a ADPF em questão e outros casos, ressaltando que:

Os ministros parecem encarnar a crença de que estão em uma missão para realizar a dominação carismática. Em nosso caso, a missão seria uma jornada judicial contra a corrupção, uma batalha travada entre uma pessoa especial, seja pelo saber técnico ou mesmo pelo cargo ocupado, contra todo um sistema corrupto com o intuito de salvar o povo do sistema político corrupto. Pouco importa, nessa cruzada, que sejam mantidas as razões legal e constitucional que devem nortear a nossa sociedade. A principal questão é que o juiz deve encontrar ressonância de suas decisões na opinião popular e não nos limites normativo-constitucionais. Não só, portanto, um ministro representaria a missão de salvar a sociedade dos efeitos nefastos da corrupção causada pelos demais poderes, mas também o próprio Supremo Tribunal Federal enxerga-se como instituição salvadora de nossa comunidade política, passando a ser bem vista aos olhos do “povo” e, ao mesmo tempo, satisfazendo a “opinião pública”.278

O julgamento da ADPF mencionada é, inclusive, retratado num artigo internacional como um exemplo do caráter “político e autoritário” do Poder Judiciário brasileiro, órgão que,

276 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 402/DF, p. 9. 277 SANTOS, Anderson Wilson Sampaio. Politização da justiça e judicialização da política. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017, p. 84-85. 278 SILVA, Diogo Bacha e; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco Moraes. Pensar a legitimidade da jurisdição constitucional em tempos de crise de política. R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 19, n. 1, jan./abr. 2018, p. 179.

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segundo a visão ali defendida, estaria abrindo espaço para a atual instabilidade do constitucionalismo279. Há, aqui, mais uma vez, a exemplificação da tensão entre a efetivação da hermenêutica constitucional adequada e o excesso da atividade interpretativa.

2.5 Condenação Criminal e Perda do Mandato Parlamentar: Quem Detém Competência para Cassar o Mandato de Parlamentares?

O julgamento da AP 470/MG (Caso do “Mensalão”) representou não apenas um importante julgado no âmbito do combate à corrupção detectada no âmbito da Administração Pública, mas também pelos contornos relativos aos efeitos decorrentes da condenação criminal transitada em julgado de mandatários de cargo eletivo. Isso porque, por maioria de votos, a Corte decidiu que nos casos em que houver condenação criminal transitada em julgado de parlamentar, a cassação do mandato será tida como consequência automática da pena, independentemente de qualquer juízo emitido pela respectiva Casa legislativa280. No voto do ministro Joaquim Barbosa, relator da indicada AP, foi registrado que a previsão constitucional trazida pelo art. 55 do texto constitucional a respeito da deliberação pela Casa respectiva sobre a perda de mandato de parlamentar condenado criminalmente somente se justificaria nas hipóteses em que ou a sentença condenatória não tenha imposto a perda do mandato, ou então pelo fato de ter sido proferida antes da expedição de seu diploma. Isso porque, segundo sua interpretação, diante da condenação de deputado ou senador pela mais alta Corte judiciária do país, não haveria qualquer espaço permissivo para que o Poder Legislativo, por meio de juízo político ou de conveniência, decidisse de modo diverso, uma vez que a perda do mandato eletivo e a suspensão dos direitos políticos, mediante sentença condenatória, seriam efeitos irreversíveis281. Na ocasião, apresentando voto de divergência quanto à indicada conclusão pelo relator, o ministro Ricardo Lewandowski, que atuara como revisor, argumentou que a condenação criminal, embora seja condição necessária, não é por si só suficiente para a

279 MEYER, Emilio Peluso Neder. The rule of law, constitucionalism and the judiciary. Judges and Courts Destabilizing Constitutionalism: The Brazilian Judiciary Branch’s Political and Authoritarian Character. German Law Journal, v. 19, n. 4, 2018. 280 STRECK, Lenio Luiz, 2018. 281 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Perda de mandato parlamentar por força de condenação criminal. In: VALE, André Rufino; QUINTAS, Fábio Lima (Orgs.). Estudos sobre a jurisdição constitucional. v. II. São Paulo: Almedina, 2018.

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decretação da perda do mandato, conduta essa que exige a instauração de processo na respectiva Casa parlamentar, a qual, uma vez provocada, deve deliberar sobre a temática282. Sob essa perspectiva, o revisor ressaltou inexistir dúvidas de que a decretação de perda de mandato fora das hipóteses constitucionais implicaria em violação grave do princípio da soberania popular, bem como ao sistema de freios de contrapesos, o qual assegura a existência independente, mas também harmônica entre os Poderes no país283. Assim sendo, a conclusão do voto do citado ministro fora no sentido de reconhecer a competência do STF exclusivamente para comunicar a Casa legislativa a que pertence o mandatário condenado criminal com decisão transitada em julgado, para que a respectiva Casa (e não o STF) proceda de acordo quanto ao estabelecido pelo texto constitucional. A ministra Rosa Weber acompanhou a divergência e, ao tratar especificamente sobre a questão afeta à perda automática ou não do mandato parlamentar em função de condenação criminal transitada em julgado pelo STF, teceu as seguintes considerações: a) inicialmente, ressaltou que a resposta precisa estar ancorada preponderantemente a partir da supremacia e prevalência do texto constitucional, o qual instituíra um Estado Democrático de Direito que consagra a harmonia e independência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Segundo a ministra, para que se possa compreender adequadamente a compreensão do sentido jurídico/político constitucional do mandato parlamentar é preciso analisá-lo conjuntamente com a própria ideia de democracia representativa, destacando que os representantes eleitos são escolhidos pelo povo para efetivar seus interesses; b) embora sejam boas as razões para se questionar os aspectos dos regimes de inviolabilidade parlamentar buscando a sua limitação ou abolição, diante da sua expressa previsão constitucional na CF, não compete ao STF interpretá-la como se inexistente fosse; c) numa democracia representativa, a investidura em mandato eletivo representa a máxima efetivação da soberania popular, razão pela qual preenchidos os requisitos estabelecidos pela legislação eleitoral para reconhecer a legitimidade do mandato, este se torna intangível e somente pode ser desconstituído segundo as hipóteses e procedimentos estabelecidos expressamente pelo texto constitucional, mais especificamente no art. 55 da CF;

282 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470/MG. Min. Relator: Joaquim Barbosa. Data de julgamento: 17.12.2012. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 22.4.2013. 283 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio. Imunidade e garantias parlamentares: perda do mandato parlamentar diante da condenação criminal. RIL, Brasília, a. 54, n. 216, out./dez. 2017.

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d) diferenciou as hipóteses previstas pelo texto constitucional de suspensão dos direitos políticos, que é consequência automática da condenação criminal, e de perda do mandato, o qual, por expressa imposição do art. 55, § 2º, da CF, restará condicionada à manifestação da maioria absoluta da respectiva Casa parlamentar; e e) distinguiu as hipóteses de perda do mandato parlamentar por decisão constitutiva (deliberação da Casa parlamentar) ou por mera declaração, ressaltando que, no caso de condenação criminal transitada em julgado, o art. 55, inciso VI e § 2º da CF expressamente atribui aos parlamentares a jurisdição exclusiva para decidir

sobre a questão284. O ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator destacando inicialmente como fundamentação a intenção do Constituinte ao prever o quanto estatuído pelo § 2º, do art. 55 da CF, a qual, em sua visão, tinha por desiderato a proteção do cargo eletivo nas situações em que o crime não violasse a ética ou a moralidade que se espera de um mandatário, como, à guisa de exemplo, pela prática de crimes culposos285. Assim, buscando harmonizar as diferentes disposições constitucionais que regram hipóteses de suspensão e perda de direitos políticos – como a prática de crimes contra a Administração Pública que geralmente também implicam em atos de improbidade administrativa –, e que permitem ao juiz decretar a perda do mandato eletivo, o ministro concluiu que competiria à Casa parlamentar a tarefa de mera declaração da perda do mandato parlamentar286. Também seguindo o voto do relator, o ministro Marco Aurélio defendeu que são automáticos os efeitos decorrentes da condenação criminal transitada em julgado, nos termos definidos pelo art. 15, inciso III, da CF, asseverando ainda que o procedimento estatuído no § 2º, do art. 55, do texto constitucional, “é reservado a situações concretas em que não se tem, como consequência da condenação, a perda do mandato”287. Ainda, prosseguiu o ministro argumentando que:

Pronuncio-me, Presidente, no sentido de que o título "condenatório" do Supremo seja completo, observando-se, porque harmônico com a Constituição Federal, o artigo 92, inciso I, do Código Penal, e, portanto, formalizando-se a perda do mandato dos deputados que não passa – repito, isso é impensável – pela submissão a uma deliberação política da Câmara dos Deputados, em escrutínio secreto, por provocação de qualquer membro

284 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470/MG. 285 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit. 286 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. 2018b. 287 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470/MG, p. 8.228.

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ou Partido, deliberação – repito – de caráter eminentemente político. Se assim decidir o Tribunal, estará emprestando concretude à Constituição Federal, inteligência interpretativa à Constituição Federal, e homenageando, até mesmo, a máxima popular, segundo a qual o Direito é bom senso.288

Por sua vez, o ministro Luiz Fux, que também acompanhou o entendimento esboçado pelo relator, defendeu a perda automática do mandato no caso de condenação criminal transitada em julgado sob as seguintes premissas: a) o poder de sustação do andamento da ação penal conferido pela Constituição ao Poder Legislativo representa um eficaz instrumento para evitar que os parlamentares sejam alvos de perseguições pelo aparato judiciário; e b) se a Casa legislativa não decidiu sobre a sustação da ação penal no tempo devido, restaria clara a lisura do julgamento promovido contra o parlamentar, sendo injustificável qualquer oposição ao cumprimento de sentença condenatória exarada pelo Poder Judiciário289. O ministro Celso de Mello foi o voto definidor da nova tese ao desempatar a votação, o qual, em concordância com a tese do ministro Gilmar Mendes, consignou que a decisão na esfera legislativa pela manutenção do mandato do parlamentar será cabível nos casos em que ausente a elementar típica do tipo penal, do ato de improbidade administrativa. Nos casos em que a elementar típica for constituída por ato de improbidade administrativa, entretanto, deve prevalecer a decisão transitada em julgado emitida pelo STF, órgão que, por expressa disposição constitucional, dispõe do monopólio da última palavra em termos das normas constitucionais290. Dessa forma, por maioria apertada – cinco votos contra quatro –, o STF adotou a tese de que nos casos de condenação criminal transitada em julgado, haverá a perda automática do mandato eletivo, cabendo à Casa legislativa uma tarefa meramente declaratória e de execução da decisão judicial291. Em 8 de agosto de 2013, no entanto, o entendimento firmado pelo STF nos autos da AP 470 há pouco menos de um ano, fora modificado quando do julgamento da AP 565/RO, em que o então senador foi condenado pela prática do crime de fraude a licitações por fatos cometidos enquanto prefeito do município de Rolim de Moura/RO. Na oportunidade, ao se discutir a perda do mandato parlamentar pela condenação criminal ali imposta, a Corte firmou um novo entendimento e determinou a aplicação do procedimento

288 Ibidem, p. 8.229. 289 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit. 290 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do, 2018b. 291 COUTINHO, Débora Barbosa. Condenação criminal e perda do mandato eletivo de parlamentares federais: decisão constitutiva ou declaratória do poder legislativo? Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, jan./ jun. 2015.

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previsto no § 2º, do art. 55 da CF, com a consequente remessa dos autos a Casa legislativa

(Senado Federal) para que decidisse a respeito da perda do mandato do congressista292. A mencionada AP 565/RO ficou sob a relatoria da ministra Carmen Lúcia, que manteve o posicionamento outrora manifestado quando do julgamento da AP 470/MG, defendendo a integral aplicação do art. 55, § 2º, do texto constitucional. Inicialmente, consignou que o epicentro da discussão estava em se discutir a necessária interpretação conjunta das disposições do art. 15, inciso III, do texto constitucional, em sintonia com o princípio da separação de poderes, de modo a evitar a aparente antinomia que eventualmente surgisse da análise do caso293. Segundo a relatora, o Supremo cumpre a sua função jurisdicional de forma plena quando diz o direito a ser aplicado no caso concreto e encaminha-o à Casa legislativa responsável pelo cumprimento da disposição contida no art. 55, § 2º, uma vez que cabe ao Legislativo a competência para declarar a perda do mandato. Ademais, ressaltou que, embora compreenda o receio manifestado pelo ministro Joaquim Barbosa quando do julgamento da AP 470/MG sobre a possível incongruência decorrente do fato de alguém condenado à pena de prisão continuar exercendo mandato parlamentar, há de se esperar que o Poder Legislativo atue com responsabilidade quando exercita a prerrogativa conferida pelo texto constitucional. Por tudo isso, afirmou, é competência da Casa legislativa a declaração da perda do mandato parlamentar294. O ministro Dias Toffoli, que atuou como revisor, acompanhou a relatora e destacou que se na época sentenciada ainda estivesse exercendo o cargo parlamentar por ocasião do trânsito em julgado, dever-se-ia oficiar a Mesa diretiva do Senado Federal para que deliberasse sobre a eventual perda do mandato, nos termos preconizados pelo art. 55, inciso

VI e § 2º, da Constituição Federal295. Acompanhando o entendimento sobre a necessidade de observância do rito estatuído pelo texto constitucional, vale dizer, da necessária decisão da Casa legislativa sobre a perda do mandato, o ministro Teori Zavascki consignou em apertada síntese que: a) a suspensão de direitos políticos que decorre de sentença criminal transitada em julgado não gera, obrigatoriamente, a perda do cargo público; b) embora se exija para admissão em cargo público o pleno exercício dos direitos políticos, a sua manutenção durante o exercício de um

292 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit. 293 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 565/RO. Min. Relator: Cármen Lúcia. Data de julgamento: 8.8.2013. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 23.5.2014. 294 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit. 295 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. AP 565/RO.

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cargo não é uma condição, notadamente aos cargos estáveis; e c) no caso específico dos parlamentares a CF estabelece em seu art. 55, inciso VI, § 2º, um rito a ser seguido para resolução da controvérsia, o qual deve ser acatado296. No mesmo sentido foi o voto do ministro Luís Roberto Barroso que, embora tenha manifestado o seu desejo de que a perda do mandato fosse decorrência lógica da condenação criminal, defendeu a necessidade de se respeitar a integridade e literalidade do texto constitucional, salientando que:

[...] Presidente, eu não votei, perdão, nessa questão da perda do mandato. Então, gostaria de fazê-lo, para dizer que o meu posicionamento doutrinário é o de que deveria decorrer logicamente do sistema que a condenação implicasse a perda do mandato. Portanto, acho que essa seria a solução natural. Nada obstante isso, encontro obstáculo intransponível na literalidade do art. 55, VI e seu parágrafo 2º. De modo que, embora, ache que seja incongruente, a incongruência foi cometida pelo Constituinte. E, portanto, como posso interpretar a Constituição, mas, às vezes, infelizmente, não possa emendá-la.297 (grifos não originais)

Mais à frente, numa discussão estabelecida especialmente com o ministro Joaquim Barbosa, o ministro Luís Roberto Barroso arrematou que:

Senhor Presidente, um comentário a mais, comungando da perplexidade com essa incongruência. A Constituição diz que, no caso de condenação criminal, a Câmara ou o Senado, por voto secreto e maioria absoluta, decidirá a matéria. Eu posso interpretar a Constituição produzindo o melhor resultado possível e moralmente desejável, mas não posso vulnerar o Texto. O Constituinte não estabeleceria uma votação secreta e por maioria absoluta para produzir uma decisão declaratória de cumprimento. Portanto, infelizmente, não consigo superar o problema do Texto. Eu, como Vossa Excelência, e todos nós tentamos fazer da Constituição o melhor que seja possível, mas, nos limites do seu Texto, senão nós nos tornamos usurpadores de Poder Constituinte. De modo que eu não posso produzir a solução que eu desejaria, porque a Constituição não me deixa. Com o respeito devido e merecido à posição de Vossa Excelência.298 (grifos não originais)

Pela decisão indigitada, o ministro concluiu que o limite interpretativo teria sido previamente definido pelo texto constitucional e que, portanto, toda a interpretação deveria se ater aos limites trazidos pelo Constituinte, não cabendo ao STF a tarefa de reescrever o texto constitucional a partir de suas visões pessoais/particulares sobre a temática.

296 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit. 297 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. AP 565/RO, p. 287. 298 Ibidem, p. 292-293.

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O ministro Gilmar Mendes, noutro turno, divergiu da questão apontando sinteticamente que: a) o texto constitucional prevê a possibilidade de perda do mandato e dos direitos políticos no caso de improbidade administrativa, assim como em todos os casos decretados pela Justiça Eleitoral, dentre eles a captação ilícita de sufrágio; b) a interpretação que se propôs na AP 470 era a de que nos casos de improbidade administrativa contida no tipo penal e condenação em pena privativa de liberdade superior a quatro anos, a suspensão dos direitos políticos e perda do mandato eletivo poderiam ser decretadas pelo Judiciário; e d) a norma contida no art. 55, inciso VI, e § 2º da CF, permaneceria em vigor, de modo que o poder de decidir sobre a perda do mandato em outras hipóteses de condenação criminal não contempladas pela proposta de interpretação acima remanesceria à Casa legislativa. Com isso o ministro apresentou o que denominou de “interpretação harmonizadora” do quanto disposto pelo art. 15, inciso III, e da norma contida no art. 55, inciso VI e § 2º, ambos da Constituição, para entender que nos casos em que competir à Casa legislativa decidir sobre a perda do mandato, a suspensão dos direitos políticos será um ato complexo que dependerá da união das vontades do Poder Judiciário, da sentença criminal já transitada em julgado e da Casa parlamentar: Ao final, o ministro Gilmar Mendes arrematou que a missão institucional do STF é justamente compatibilizar esse imbróglio interpretativo de aparente incompatibilidade normativa. Nas palavras do julgador:

A mim me parece que esse é o desafio hermenêutico que se coloca e esta Casa tem o dever de desatar! E não se trata de investir-se em poder constituinte, até porque, a toda hora, nós fazemos isso! Fazemos compreensões do texto constitucional e limamos sentido. O que foi, por exemplo, a discussão sobre o artigo 52, X, da Constituição em relação ao controle abstrato de normas? Ora, se fôssemos levar pela literalidade do texto constitucional, teríamos que dizer, claro, que o Supremo tem que comunicar sempre ao Senado, porque é isso que resulta do texto constitucional. Mas não foi isso que o Tribunal entendeu, e o fez compreensivamente a partir da releitura da Emenda 16/65, entendendo que o sistema que se desenvolvera em relação ao Senado dizia respeito ao controle incidente, normas, controle concreto, e que não se aplicava ao controle abstrato. Haveria "n" exemplos de compatibilização que esta Corte faz em relação aos diversos temas, por quê? Porque o texto constitucional de fato é vazado, de maneira aberta. Por isso que o notável Konrad Hesse diz que o caminho da interpretação é a concordância prática. Neste caso, se reclama até porque as incongruências são múltiplas aqui, levando, inclusive, a essas contradições internas que levariam a contradições axiológicas extremamente graves. De modo que, nesse sentido, eu reafirmo o voto já proferido na Ação

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Penal nº 470, entendendo que, no caso específico, há de resultar, sim, também, na perda do mandato.299 (grifos não originais)

Em seu voto o ministro Marco Aurélio acompanhou a divergência apresentada destacando não haveria qualquer conflito de normas da Constituição, uma vez que a partir de uma interpretação sistemática do art. 55 é perceptível que existem desvios de conduta de duas gradações, sendo que os que forem de maior gradação não exigem deliberação e decisão da Casa, razão pela qual assentou não só a necessidade de suspensão dos direitos políticos do senador, mas também a perda do seu mandato. O ministro Ricardo Lewandowski seguiu os votos da relatora e do revisor salientando a destacada importância da previsão contida no art. 55, inciso VI, § 2º, da CF, que possui direta imbricação com o princípio da separação de poderes (cláusula pétrea), razão pela qual seria de competência do Senado Federal (e não do STF) deliberar de acordo com seu próprio entendimento sobre a perda do mandato parlamentar300. Por fim, o ministro Celso de Mello apenas pediu licença e reiterou os argumentos que já foram por ele colocados no julgamento da AP 470/MG, acompanhando o voto dos ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio no sentido de reconhecer a perda do mandato como consequência automática da condenação criminal transitada em julgado. A análise dos dois casos acima retrata, por mais uma vez, a tensão decorrente do exercício hermenêutico pela Justiça Constitucional e um possível solapamento dos limites trazidos pelo texto. Observe-se que no primeiro caso (AP 470/MG) o STF deu nova significação ao texto constitucional para considerar a perda do mandato como efeito automático da condenação criminal transitada em julgado, independentemente de um juízo de deliberação pela Casa respectiva e, menos de um ano depois, com nova composição da Corte, mudou o entendimento para aplicar a regra que consta expressamente no texto constitucional, incluída originariamente pelo Constituinte de 1988. Em 2 de setembro de 2013, ou seja, menos de um mês depois do julgamento da AP 565/RO, a temática ganhou novos contornos após a definição de uma terceira visão interpretativa a respeito do alcance e aplicação do art. 55, inciso VI, § 2º, da CF nos autos do Mandato de Segurança (MS) 32326, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Em 26 de agosto de 2013 transitou em julgado a decisão exarada nos autos da AP 365/RO, julgada em 28 de outubro de 2010, em que o deputado federal Natan Donadon figurava como réu. Após o parlamentar ter sido recolhido à prisão após o trânsito em julgado,

299 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. AP 565/RO, p. 303-304. 300 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit.

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a Casa legislativa deliberou em 28 de agosto de 2013 sobre a perda ou não do mandato parlamentar e, como não fora alcançado o quórum de maioria absoluta exigida pela Constituição para a perda do mandato eletivo, mesmo preso e cumprindo pena, Natan

Donadon permaneceu titular de mandato parlamentar301. Diante da insatisfação da opinião pública, da imprensa e também de parte do Congresso, o deputado federal Carlos Sampaio (PSDB/SP) impetrou o writ indigitado com pedido liminar visando à suspensão dos efeitos da deliberação da Casa legislativa pela não cassação do mandato302. Por meio de decisão monocrática exarada em 2 de setembro de 2013, o ministro Luís Roberto Barroso acolheu os argumentos trazidos no bojo do petitório inicial e, contrariando o próprio posicionamento por ele adotado nos autos da AP 565/RO, concedeu o pedido liminar inaudita altera pars e suspendeu os efeitos da deliberação da CD:

MANDADO DE SEGURANÇA. CONDENAÇÃO CRIMINAL DEFINITIVA DE PARLAMENTAR. RECLUSÃO EM REGIME INICIAL FECHADO POR TEMPO SUPERIOR AO QUE RESTA DE MANDATO. HIPÓTESE DE DECLARAÇÃO DE PERDA DO MANDATO PELA MESA (CF, ART. 55, § 3º). 1. A Constituição prevê, como regra geral, que cabe a cada uma das Casas do Congresso Nacional, respectivamente, a decisão sobre a perda do mandato de Deputado ou Senador que sofrer condenação criminal transitada em julgado. 2. Esta regra geral, no entanto, não se aplica em caso de condenação em regime inicial fechado, que deva perdurar por tempo superior ao prazo remanescente do mandato parlamentar. Em tal situação, a perda do mandato se dá automaticamente, por força da impossibilidade jurídica e fática de seu exercício. 3. Como consequência, quando se tratar de Deputado cujo prazo de prisão em regime fechado exceda o período que falta para a conclusão de seu mandato, a perda se dá como resultado direto e inexorável da condenação, sendo a decisão da Câmara dos Deputados vinculada e declaratória. 4. Liminar concedida para suspender a deliberação do Plenário da Câmara dos Deputados na Representação nº 20, de 21.08.2013.303

Ao definir a nova tese de que, nos casos em que o prazo de prisão estabelecido na condenação seja em regime fechado e em período superior ao que resta para conclusão do mandato haverá a perda automática do mandato, o ministro Luís Roberto Barroso se ancorou nos seguintes argumentos:

301 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do, 2018b. 302 STRECK, Lenio Luiz; TASSINARI, Clarissa; LEPPER, Adriano Obach. O problema do ativismo judicial: uma análise do caso MS3326. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, n. Especial, 2015, p. 51- 61. 303 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 32.326. Min. Relator: Luís Roberto Barroso. Data de Julgamento: 2.9.2013. Decisão interlocutória. Data de Publicação: 6.9.2013.

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a) a teoria moderna interpretativa tem dividido as questões judiciais levando em consideração o grau de dificuldade dos temas ali abrigados, havendo a cisão entre os denominados casos fáceis e casos difíceis. Em sua concepção, considera que a discussão sobre a perda ou não do mandato eletivo não deva ser considerado como um hard case, do ponto de vista técnico, considerando a existência de norma explícita sobre o tema (art. 55, inciso VI e § 2º, da CF); o que permite a resolução do problema pelos instrumentos/métodos tradicionais da hermenêutica jurídica: técnicas gramatical, histórica, sistemática e teleológica; b) pelo caminho da interpretação literal/semântica/gramatical/filológica o texto constitucional não comporta a interpretação pretendida diante da sua taxatividade, se fazendo necessário recorrer a outros métodos interpretativos; c) analisando sob a ótica da interpretação histórica destacou que o processo de inserção da previsão de que a perda do mandato no caso de condenação criminal deveria depender de manifestação da Casa legislativa adveio de emenda modificativa apresentada pelo deputado Antero de Barros, a qual, segundo parecer elaborado em favor de sua aprovação, teria sido inspirada pela constatação do autor de que, em certas (e não todas as) condutas, mesmo gerando condenação criminal, não haveria impedimento para o exercício do mandato. Entretanto, embora visível a motivação subjetiva do autor da proposta, não se constata na redação do texto qualquer limitação de incidência da norma, mas, ao contrário, há uma concessão de caráter geral à deliberação que se fará pela Casa parlamentar, notadamente pela amplitude conferida à proposta pelo debate Constituinte. Dessa forma, posta em vigor, a norma se desprende da vontade subjetiva do seu criador e assume um sentido próprio, aferido pela objetividade do seu texto; d) mediante uma interpretação sistemática, não é possível vislumbrar qualquer antinomia entre as disposições do art. 55, inciso VI e § 2º, e de outros dispositivos a saber: a) art. 15, inciso III; b) art. 55, inciso IV; c) art. 15, inciso V; d) art. 55, inciso III; e e) art. 56, inciso II; à medida que cada uma dessas normas constitucionais trata de hipóteses de perda/suspensão de direitos políticos distintas de eventual supressão no caso de condenação criminal; e) adotando-se a interpretação teleológica, identifica-se que o valor subjacente à regra constitucional é o de assegurar a separação de poderes, preservando a competência do Poder Legislativo a competência para definir a continuidade do exercício parlamentar por seus membros, especialmente porque tal decisão pode afetar

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diretamente a composição da Casa legislativa. Ainda que essa possa não ser a única ou melhor solução possível, argumentou, foi aquela escolha pelo Constituinte, não cabendo ao Poder Judiciário esvaziar as prerrogativas institucionais expressamente conferidas ao Poder Legislativo, apenas por não concordar com sua inspiração. Partindo das premissas indigitadas, o ministro Luís Roberto Barroso propôs uma exceção objetiva à regra geral: o parlamentar condenado em regime inicial fechado, cujo período remanescente de mandato seja inferior a um sexto da pena a que foi condenado – tempo mínimo que precisará permanecer necessariamente na penitenciária para progredir de regime –, não poderá conservar o seu mandato. Isso porque haverá nessa situação uma impossibilidade jurídica para o exercício do mandato, diante da exigência constitucional de comparecimento à Casa legislativa para as sessões (há, inclusive, a possibilidade de declaração da perda de mandato pela ausência de parlamentar em mais de um terço das sessões), bem como física, pois não poderá estar presente no local em que se realizam os trabalhos legislativos. O referido Mandado de Segurança (MS) não fora submetido a julgamento perante o Plenário em função de ter perdido o objeto, já que a CD editou a Resolução 53, de 12 de fevereiro de 2014 declarando a perda do mandato de Natan Donadon e esvaziando a discussão jurídica ali estabelecida. Por isso, em 19 de março de 2014 o ministro relator julgou prejudicado o mandamus e determinou a retirada do feito de pauta. Como se vê, em três oportunidades distintas (ainda que a última não tenha sido submetida à decisão plenária) o STF aplicou diferentes entendimentos a um mesmo preceito constitucional, com os mais variados fundamentos, alguns dos quais, além de extrajurídicos, podem parecer perigosos a partir de uma análise de hermenêutica interpretativa propriamente adequada. Analisando a discussão que se estabeleceu em torno da possibilidade de perda automática do mandato de parlamentares em função da sentença condenatória transitada em julgado, vale destacar o que se segue. Em primeiro plano, é importante registrar que a nossa Constituição não permite a cassação de direitos políticos, mas admite a sua perda ou suspensão desde que enquadrados nas hipóteses expressamente trazidas pelo próprio texto constitucional304.

304 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do, 2018b.

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Resumidamente, a diferença entre perda e suspensão dos direitos políticos é que, no primeiro caso, uma vez perdidos, eles não serão readquiridos; ao passo que no caso de suspensão, finda a cláusula que impôs a sua limitação, os direitos políticos voltarão a ser usufruídos por seus titulares. As hipóteses de perda e suspensão de direitos políticos está indicada prioritariamente nos termos do art. 15 da CF que assim dispõe:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I – cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II – incapacidade civil absoluta; III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV – recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

É importante ressaltar que, embora a disposição contida no art. 15 supracitado não distinga quais são as hipóteses de perda e quais as de suspensão, a doutrina oferece suporte para esclarecer. Assim, perder-se-ão os direitos políticos na hipótese do inciso I, vale dizer, no caso de cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado (eis que o brasileiro naturalizado que sofre a perda da nacionalidade retornará ao status de estrangeiro, os quais não usufruem de direitos políticos no Brasil em regra); ao passo que nos demais casos os direitos políticos serão provisoriamente suprimidos305-306. Noutro turno, ao tratar sobre a possibilidade de perda do mandato, coube ao art. 55 e seus parágrafos da CF dispor que:

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior; II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

305 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Da perda e suspensão dos direitos políticos. Brasília, a. 35, n. 139, jul./set. 1998. 306 No mesmo sentido é a lição de GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.

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§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas. § 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. § 3º Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

Embora a distinção entre os comandos normativos do art. 15, inciso III e do art. 55, inciso VI e § 2º, ambos da CF, possa parecer num primeiro momento supérflua para os fins aqui objetivados, o esclarecimento indigitado é importante, especialmente porque no âmbito das ações acima retratadas os ministros do STF divergiram sobre a aparente antinomia entre as indicadas normas constitucionais. O ministro Gilmar Mendes, inclusive, num dos trechos do voto proferido na AP 470/MG expressamente ressaltou que:

Ao transpor o inciso VI (perda de mandato por condenação criminal) do § 3º (declaração da Mesa da Casa Legislativa) para o § 2º (decisão deliberativa da Casa Legislativa), o legislador constituinte acabou produzindo (ao que tudo indica de forma irrefletida e não intencional) uma real antinomia (em relação ao art. 15, III) e uma clara incongruência na sistemática de perda de mandato (ante as hipóteses de perda de mandato por improbidade administrativa e por suspensão dos direitos políticos). Como se sabe, o art. 15, inciso III, da Constituição, estabelece a suspensão dos direitos políticos em decorrência de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. Essa é a regra geral, que prescreve a suspensão dos direitos políticos como efeito automático da condenação criminal transitada em julgado. Assim, não é necessário que a decisão judicial disponha especificamente sobre a pena de suspensão dos direitos políticos, bastando que o juízo penal comunique a decisão condenatória à Justiça Eleitoral para as providências cabíveis. Configura-se, assim, uma antinomia entre o art. 15, inciso III, e o art. 55, inciso VI e § 2º, da Constituição: o art. 15, inciso III, prescreve a suspensão dos direitos políticos como um efeito automático de toda condenação penal transitada em julgado, e o art. 55, inciso VI e § 2º, estabelece que a perda do mandato parlamentar, na hipótese de condenação criminal transitada em julgado, fica condicionada ao controle político das Casas Legislativas [...].307

Em razão dessa aparente antinomia, ressalte-se, é que o exercício interpretativo levado a cabo pelos ministros no sentido de propor uma “hermenêutica harmonizadora” dos preceitos constitucionais (como expressamente consignado pelo ministro Luís Roberto Barroso nos

307 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470/MG, p. 8181-8182.

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autos do MS 32.326 mencionado alhures) chegou a distintas decisões sobre o real alcance das normas constitucionais em análise. Entretanto, diferente do que se apontou, não há (para a presente pesquisa) qualquer antinomia entre a norma contida no art. 15, inciso III, e aquela trazida pelo art. 55, inciso VI e § 2º, da CF. Embora ambas as normas constitucionais versem sobre o grande tema direitos políticos, o âmbito de aplicabilidade de suas disposições é diverso. Ao tratar sobre as hipóteses de suspensão e perda dos direitos políticos, o que o art. 15 faz é excepcionar o gozo regular exercício dos direitos políticos pelos cidadãos comuns, em razão de situações/hipóteses expressamente previstas pelo texto constitucional. A sua aplicabilidade se dá tanto para o exercício da capacidade eleitoral ativa (representada na efetiva participação da decisão política no Estado, notadamente mediante o sufrágio), como na capacidade eleitoral passiva (situações em que um cidadão não poderá receber o voto de seus concidadãos e se lançar como candidato no pleito eleitoral). Em outras palavras: o comando constitucional insculpido no art. 15 e seus incisos está direcionado àqueles que ainda não exercem nenhum mandato eletivo e que não poderão, em razão de determinadas situações, participar do processo eleitoral democrático. Por outro lado, a regra constitucional lançada no rol do art. 55 da CF se direciona àqueles que já sendo detentores de mandato eletivo do Parlamento federal brasileiro poderão ter decretada a perda do mandato. O comando jurisdicional aqui possui um caráter ainda mais restritivo diante do reconhecimento da imunidade parlamentar, prerrogativa que “assegura aos membros do Congresso a mais ampla liberdade da palavra, no exercício de suas funções, e os protege contra os abusos e violência por parte dos outros poderes constitucionais”308, o que dificulta ainda mais uma interpretação com efeitos ampliativos para além dos limites do texto constitucional. Não se pode olvidar, ainda, como bem ressaltou o ministro Teori Zavascki nos autos da AP 565/RO, que embora se exija para admissão em cargo público o pleno exercício dos direitos políticos, a sua manutenção durante o exercício de um cargo não é uma condição, o que reforça o fato de que as hipóteses tratadas no art. 55 são distintas das situações consignadas no art. 15, ambos da CF. Não bastassem tais considerações, é preciso anotar que o próprio art. 55, em seus parágrafos 2º e 3º, clara e textualmente, diferencia as situações em que haverá a “cassação” e a “extinção” do mandato parlamentar. Em síntese, a distinção entre os termos leva em

308 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição brasileira de 1964. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1948, v. II, p. 44-45.

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consideração a necessidade ou não de deliberação (tomada de decisão constitutiva) na Casa legislativa para decretação da perda do mandato e, consequentemente, “na existência

(cassação) ou inexistência (extinção) de juízo político do parlamento”309. Os casos em que o mandato será cassado, vale dizer, mediante a necessária deliberação pela Casa legislativa exigindo-se maioria absoluta dos membros, após provocação da respectiva Mesa ou de partido político com representação no Congresso Nacional, estão descritos nos incisos I, II e VI do art. 55. As hipóteses de extinção, por sua vez, em que haverá apenas uma mera declaração da Mesa, são aquelas trazidas pelos incisos III, IV e V, também do art. 55. No caso em análise, como já se salientou, a perda do mandato parlamentar por condenação criminal transitada em julgado (inciso VI do art. 55) exige, expressamente, que haja uma deliberação pela respectiva Casa legislativa para decisão sobre a manutenção do mandato eletivo (§ 2º, do art. 55, CF). Ao tratar sobre essa temática em específico, Auro Augusto Caliman ressalta que:

Da análise das normas, conclui-se como especial a hipótese prevista no inciso VI do artigo 55, daí sua superior imperatividade em relação à norma geral de perda dos direitos políticos prevista no inciso IV deste mesmo artigo, combinado com o artigo 15, inciso III. Consequentemente, a decisão da perda do mandato parlamentar será constitutiva quando ocorrer condenação por infração criminal; e declaratória para as demais hipóteses de perda de direitos políticos. A perda do mandato, não só dos parlamentares federais, como também dos estaduais e distritais, em decorrência de condenação por infração criminal, não será automática, mediante ato declaratório da Mesa da respectiva Casa Legislativa. Poderá ocorrer, sim, mas somente após soberana decisão do plenário, na votação do projeto de resolução que preveja a perda em razão da condenação criminal. Trata-se de decisão política, não vinculada a nada. Se, em escrutínio secreto, maioria absoluta dos parlamentares da Casa Legislativa decidir aprovar o projeto de resolução que concluiu pela perda do mandato, o mandato estará cassado. Posto a votos e não atingido o quórum de maioria absoluta para aprovação do projeto, o parlamentar continuará investido no mandato e a propositura será considerada rejeitada, pois a simples maioria importa absolvição.310 (grifos não originais)

Como se vê, pela dicção do texto constitucional, a opção feita pelo Poder Constituinte foi justamente diferenciar cada uma das situações que implicará a perda automática do mandato (os casos em que a Casa legislativa apenas declarará a perda) ou daquelas em que

309 BIM, Eduardo Fortunato. A cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro parlamentar: sindicabilidade jurisdicional e tipicidade. RIL, Brasília, a. 43, n. 169, jan./mar. 2006, p. 66. 310 CALIMAN, Auro Augusto. Mandato Parlamentar: aquisição e perda antecipada. São Paulo: Atlas, 2006, p. 153.

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exigirá o efetivo juízo de conveniência política pela Casa parlamentar, assegurando-se ao mandatário o direito de defesa, nos termos previstos pela Constituição. Ainda que defensável a fundamentação/construção racional de algumas posições, como a lançada pelo ministro Gilmar no sentido de que, nos casos de improbidade administrativa é admitida a suspensão de direitos políticos, inclusive por um juiz de primeiro grau, e, por consequência, a perda do mandato eletivo por mera declaração da respectiva Casa legislativa, o que permitiria concluir que no caso de condenações criminais em que o tipo penal traga o elemento improbidade (o que resultaria na suspensão dos direitos políticos), parece existir uma criação que foge dos limites do próprio texto. Mesmo que a opção feita pelo Constituinte de 1988 não seja compreendida como a mais acertada em diferenciar os diferentes tipos de manifestação jurisdicional, ou, ainda, que aparentemente ilógico permitir a perda do mandato no caso de suspensão de direitos políticos em ação de improbidade administrativa, mas não o permitir de forma automática por condenação criminal transitada em julgado – ainda que incidente o tipo elementar da improbidade – esse foi o limite estabelecido pelo próprio texto. Incluir novas definições pode representar reescrever o texto constitucional, assumindo a função do Poder constituinte, e ainda implicar em quebra do pretendido equilíbrio da separação de funções/poderes. Além dos argumentos acima expendidos, também se faz necessário chamar a atenção para alguns pontos importantes: a) a incongruência e falta de segurança jurídica na interpretação de uma mesma norma constitucional; e b) o uso de argumentos metajurídicos como ratio decidendi. Quanto ao primeiro ponto, como já consignado anteriormente, nos autos da AP 565/RO, o ministro Luís Roberto Barroso, embora tenha manifestado a sua visão pessoal de que, para ele, a condenação criminal em determinado grau de gravidade do delito deveria ter como consequência automática a perda do mandato, defendeu a necessidade de se seguir o previsto pela Constituição, consignando que:

[...] O Constituinte não estabeleceria uma votação secreta e por maioria absoluta para produzir uma decisão declaratória de cumprimento. Portanto, infelizmente, não consigo superar o problema do Texto. Eu, como Vossa Excelência, e todos nós tentamos fazer da Constituição o melhor que seja possível, mas, nos limites do seu Texto, senão nós nos tornamos usurpadores de Poder Constituinte. De modo que eu não posso produzir a solução que eu desejaria, porque a Constituição não me deixa. Com o respeito devido e merecido à posição de Vossa Excelência.311 (grifos não originais)

311 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 565/RO, p. 292-293.

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Pouco tempo depois, o mesmo ministro que havia advogado pela necessidade de se respeitar a norma constitucional sob pena de usurpação do Poder Constituinte, atentando-se aos limites inerentes ao próprio texto, deu nova interpretação à dicção do art. 55, inciso VI e § 2º, para o fim de, acolhendo pedido de cautelar inaudita altera pars, suspender os efeitos da deliberação da CD que havia optado por não cassar o mandato do deputado federal Natan Donadon (MS 32.326). A nova interpretação, como já apontado, foi no sentido de que a regra constitucional que exige a deliberação pela Casa parlamentar permanecerá válida, mas não será aplicável apenas nos casos em que a condenação gere prisão em regime fechado em tempo superior ao que resta para o cumprimento do mandato312. Todavia, o que mais chama a atenção no voto do ministro Barroso é a utilização de argumentos metajurídicos/morais, como aponta José Levi Mello do Amaral Júnior:

[...] O Relator, ao final do despacho, explicita que tomou em consideração “a gravidade moral e institucional [...] de uma decisão política que [...] chancela a existência de um Deputado presidiário”. Também faz expressão à referência à “indignação cívica”, à “perplexidade jurídica”, ao “abalo às instituições” e ao “constrangimento” que a situação gera aos Poderes constitucionais, fatores esses que, segundo o Relator, “legitimam a atuação imediata do Judiciário”.313

Os argumentos são perigosos à medida que a norma constitucional, assim como o STF, deve atuar de modo contramajoritário e com base em argumentos jurídicos. Expressões como “clamor popular” (ou indignação cívica), “perplexidade jurídica”, não podem ser utilizadas como argumentos para se interpretar o texto constitucional para além dos limites estabelecidos pela própria semântica. Lenio Streck, Clarissa Tassinari e Adriano Obach consignam que o STF, nesse caso, pelo voto do ministro Luís Roberto Barroso, legislou a partir de argumentos morais. Arvorando-se no direito não apenas de corrigir a conduta do Congresso, aduzem, reescreveu a própria Constituição “dizendo, em outras palavras, que toda a perda do mandato de um parlamentar condenado à prisão não é automática, a não ser nas hipóteses em que ele descreve”314. No mesmo sentido é a conclusão de Daniela Böck Bandeira e Plínio Melgaré ao tratarem sobre a interpretação discutida no âmbito do STF, ressaltando que:

312 STRECK, Lenio Luiz, 2018. 313 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do, 2018b, p. 86. 314 STRECK, Lenio Luiz; TASSINARI, Clarissa; OBACH, Adriano, op. cit., p. 60.

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A correta interpretação da CRFB leva a crer que, diante de uma condenação criminal transitada em julgado, a decisão sobre a perda do mandato deve ser da Casa legislativa à qual pertence o parlamentar. Ou seja: o juízo sobre a perda do mandato, não obstante a condenação, deve ser feito pelos parlamentares, que, com devida sensibilidade e prudência, decidirão se o crime cometido é incompatível com a representação popular. Desse modo, se os parlamentares não souberem – ou não tiverem a decência exigida pelo caso –, é uma questão a ser decidida pela esfera política, e não imposta pelos Tribunais por meio de uma manipulação interpretativa da normatividade constitucional. Entender que a condenação criminal de um deputado federal ou um senador gera a imediata perda do mandato é desvirtuar o sentido da Constituição, indicando uma usurpação de competência pelo Poder Judiciário, já que a decisão deve ser tomada pelo Legislativo.315 (grifos não originais)

Mais uma vez, a dualidade entre o exercício hermenêutico adequado e a interpretação que extrapola os limites do texto constitucional se mostra existente no âmbito de atuação do STF, o que reforça a necessidade de se perquirir um método de aprimoramento ou uma pretensa teoria hermenêutica harmonizadora, proposta que se apresentará no capítulo final.

315 BANDEIRA, Daniela Böck; MELGARÉ, Plínio, op. cit., p. 83.

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CAPÍTULO 3 A PROBLEMÁTICA DA INTERPRETAÇÃO: ENTRE O OBJETIVISMO, O SUBJETIVISMO E A TÓPICA ARGUMENTATIVA DA CIÊNCIA JURÍDICA

O percurso desenvolvido até aqui fora necessário para se demonstrar a existência de uma tensão existente entre o exercício regular da hermenêutica constitucionalmente adequada pela Justiça Constitucional no Brasil, notadamente por meio do STF, e a possibilidade de que a decisão judicial esteja eivada de critérios extrajurídicos, subjetivistas e que acabam por se dissociar do texto constitucional, criando uma abertura interpretativa que, por vezes, pode ser considerada como uma usurpação do Poder Constituinte, implicando em alteração não apenas do sentido do texto constitucional, mas, em alguns casos, até mesmo num processo de reescrita do texto pela Corte. Essa constante dualidade decorre, dentre outros fatores, pela pluralidade de fundamentação teórica calcada em teorias a respeito da justificação sobre o ato de interpretar, e, consequentemente, acompanham as escolas da filosofia da consciência, do positivismo jurídico, do decisionismo de matriz schimittiana, bem como do pós-positivismo e as teorias de tópica argumentativa. Vale dizer, entender como se formula e edifica a própria interpretação, mas também o papel da ciência jurídica dentro do direito é uma tarefa crucial para compreender as razões que justificam a dualidade outrora retratada. Do mesmo modo, como se pretende neste trabalho apresentar uma teoria hermenêutica filosófica crítica de matriz gadameriana como instrumento de aprimoramento de atuação da Justiça Constitucional no Brasil, torna-se curial enfrentar as teorias interpretativas que geralmente são utilizadas quando da prestação jurisdicional no Brasil. Como se viu no capítulo anterior, ao julgar casos distintos o STF por meio de seus ministros julgadores adota distintas correntes filosóficas para fundamentação de sua decisão, que ora acolhem a tese kelseniana de “moldura” e abertura interpretativa da norma a ser preenchida pelo intérprete, ou uma figura decisionista de matriz schmittiana quando fundamenta a decisão em aspectos subjetivistas, ou, ainda, quando aplica a teoria da ponderação alexyana para a resolução da colisão de direitos fundamentais ou princípios (os denominados casos difíceis). Em outras palavras: para se mostrar no capítulo final a importância da hermenêutica filosófica gadameriana como instrumento de aprimoramento da atuação da Justiça Constitucional no Brasil, mediante uma teoria de interpretação harmonizadora, exige-se apontar quais são as razões que fundamentam a necessidade de abandono dos demais “métodos interpretativos”.

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Assim, para alcançar o objetivo aqui proposto, o capítulo tratará inicialmente sobre a importância de Hans Kelsen para a ciência jurídica, direcionando a análise especificamente para a sua visão sobre a tarefa interpretativa e sua dogmatização de um “método científico” caracterizado por um objetivismo de matriz formalista316. Tem-se por objetivo demonstrar que a compreensão kelseniana sobre o direito está fundada numa concepção normativa universalmente válida e que o discurso cientificista expressado em seu modelo de ciência objetivo acaba por abandonar a importância da moral e do mundo real, o que implica em afastar uma possível mudança valorativa como instrumento de reconstrução da

Constituição317. Posteriormente, como contraponto ao positivismo de matriz normativista kelseniano, analisar-se-á a teoria subjetivista/decisionista de Carl Schmitt, que funda a estrutura do ato de interpretar numa relação de poder e voluntarismo, vale dizer, o direito está assentado na decisão política do soberano, a qual é inclusive o fundamento de existência e validade de todo o ordenamento jurídico318. Ao fim, o trabalho também investigará os caracteres da tópica argumentativa que se originou no pós-positivismo, com o surgimento de teorias da decisão calcadas em métodos argumentativos, como a proposta de Robert Alexy e sua fórmula para a resolução dos denominados hard cases em que a subsunção deixa de ser aplicável, exigindo uma nova forma de resolução da colisão entre direitos fundamentais e princípios fundantes do sistema constitucional, o que deve ocorrer por meio da “ponderação”.

3.1 O Objetivismo Formalista Kelseniano e a Constituição: O Problema da Interpretação como Ato de Conhecimento e Ato de Vontade

A solidificação do positivismo ocorrida no século XIX permitiu a implementação de uma postura científica que conferiu uma interpretação da realidade que passou a contemplar apenas aquilo que se pode contar, delimitar, medir ou definir mediante experimentação. As bases desse paradigma filosófico positivista foram estabelecidas por Augusto Comte, para quem a realidade, natural ou social, exige a sua análise e explicação por meio de suas leis, as

316 Cf. PINTO, Emerson de Lima. Gadamer e a constituição: o diálogo hermenêutico entre o objetivismo e o subjetivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. 317 Idem. 318 FONTES, Andre R. C. O decisionismo jurídico de Carl Schmitt. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v. 22, n. 44, nov.2018 / fev. 2019. DOI: https://doi.org/10.30749/2177-8337.v2n44p11-17.

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quais seriam representadas pelas relações abstratas e constantes entre os fenômenos observáveis319. Não demorou muito para que essa mensurabilidade de cunho positivista fosse transferida para o direito320, a qual, num momento inicial, foi encontrada de modo mais específico no âmbito dos Códigos, especificidades das leis produzidas pelo parlamento. Assim, toda a argumentação jurídica passa a consagrar os Códigos como “textos sagrados”, i.e, eles (Códigos) serão o fato positivo a partir do qual a ciência do direito deverá se pautar321-322. O problema é que mesmo com a consagração dos Códigos o ato de aplicação do direito percebeu que o que estava positivado não contemplava toda a realidade, exsurgindo o problema relativo ao controle da tarefa interpretativa, pois se fazia necessário manter a integridade da obra (texto) e, simultaneamente, excluir do processo interpretativo quaisquer elementos metafísicos que fugissem da visão positivista323-324.

319 STRECK, Lenio Luiz, 2014, p. 32. 320 Norberto Bobbio distingue claramente o positivismo jurídico do positivismo em sentido filosófico, embora reconheça que em período anterior exista uma certa aproximação entre os termos. Nas palavras do autor: “L’espressione ‘positivismo giuridico’ non deriva da quella di ‘positivismo’ in senso filosofico, anche se nel secolo scorso c’è stato um certo collegamento tra i due termini in quanto alcuni positivisti giuridici erano al tempo stesso anche dei positivisti in senso filosofico: ma alle sue origini (che si trovano all’inizio del XIX secolo) il positivismo giuridico non ha niente a che vedere com il positivismo filosofico, tanto è vero che, mentre il primo sorge in Germania, secondo sorge in Francia. L’espressione ‘positivismo giuridico’ deriva invece dalla locuzione diritto positivo contraposta a quella di diritto naturale” (A expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva da expressão ‘positivismo’ no sentido filosófico, embora no século passado houvesse uma certa conexão entre os dois termos, em que alguns positivistas jurídicos eram ao mesmo tempo também positivistas no sentido filosófico: mas, em suas origens (que se encontram no início do século XIX) o positivismo jurídico não tem nada a ver com o positivismo filosófico, tanto que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’, ao invés disso, da expressão direito positivo oposta àquela do direito natural) – (BOBBIO, Norberto. Il positivismo giuridico. Torino: Giapichelli Editore, 1996, p. 3. Tradução livre). 321 STRECK, Lenio Luiz, 2014. 322 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior o “direito positivo é não só aquele que é posto por decisão, mas, além disso, aquele cujas premissas da decisão que o põem também são postas por decisão. A tese de que só existe um direito, o positivo nos termos expostos, é o fundamento do chamado positivismo jurídico, corrente dominante, em vários matizes, no século XIX” (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 49). 323 STRECK, Lenio Luiz, 2014. 324 Conforme bem observam Juraci Mourão Lopes Filho, Júlio César Matias Lobo e Taís Vasconcelos Cidrão o positivismo jurídico funcionou como uma ferramenta teórica politicamente conveniente ao aparelho estatal por excluir do direito elementos valorativos como a moral ou a ideia de justiça, uma vez que: [...] o direito posto (direito positivo) foi equiparado ao direito legislado estatal, centrando toda a juridicidade no novo modelo de Estado que, então, se instalava. As fontes sociais do Direito foram entendidas apenas como fontes estatais, as quais, quando muito, admitiam subsidiariamente outros fatos sociais como produtores do Direito, como o costume. Afastar a concorrência da moral e da Justiça, elementos metafísicos que servissem de uma régua para medir o Direito estatal, foi bastante conveniente. Centrou-se o jurídico naquilo que a “vontade popular” estatuía por meio de textos aprovados pelo Legislativo segundo rito predeterminado. Se uma lei fosse injusta, isso não era um problema jurídico, mas um problema político, a ser solucionado no parlamento, mediante articulação política para substituir aquela lei por outra melhor. O modo de relação entre o Direito e a moral política seria, portanto, operada pelo legislador, que plasmaria no texto legislativo as escolhas e conformações, sem o Direito servir de critério para julgar essa decisão do legislador, que seria, diga-se mais uma vez, política, fora do

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A primeira corrente de matriz positivista que buscou responder o problema da interpretação foi a do positivismo primevo ou exegético – surgido na França325 –, teoria por meio da qual a resposta estaria concentrada na própria codificação, vale dizer, a “simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a ‘obra sagrada’ (Código) seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito”326. Referida teoria consagrou a visão crítica do “juiz boca da lei”327 e uma indevida cisão entre questão de fato e questão de direito (facticidade e validade)328. Assim, em função das características inerentes à visão da Escola da Exegese “o papel do intérprete havia de ficar bastante preso à interpretação meramente gramatical, lógica e sistemática do direito, supondo-se que estivesse inteiramente contido no Code de Napoleão, de 1804329”. Já num segundo momento surgiram propostas visando ao aperfeiçoamento do rigor científico inerente ao positivismo primevo, o que se deu a partir da proposta de Hans Kelsen e sua visão sobre um positivismo normativista, que teve como principal objetivo reforçar a existência de um método analítico em contraposição ao crescente esmorecimento do rigor jurídico propagado pela Escola do Direito Livre330 e Jurisprudência dos Interesses e,

controle jurídico (LOPES FILHO, Juraci Mourão; LOBO, Júlio César Matias; CIDRÃO, Taís Vasconcelos. O positivismo jurídico foi superado no neoconstitucionalismo? Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 10, n. 3, p. 350-351, set./dez. 2018. DOI: 10.4013/rechtd.2018.103.11). 325 Na Alemanha a teoria que buscou inicialmente responder o problema da interpretação foi a Jurisprudência dos Conceitos, a qual, nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz Júnior se desenvolve com “Puchta e ‘sua pirâmide de conceitos’, que enfatiza, conhecidamente, o caráter lógico-dedutivo do sistema jurídico, enquanto desdobramento de conceitos e normas abstratas, da generalidade para a singularidade, em termos de uma totalidade fechada e acabada” (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1980, p. 31). A jurisprudência dos conceitos, sob essa perspectiva, acaba apresentando um caráter reducionista do direito à norma, excluindo de sua análise questões de cunho político, sociológicas e éticas, fundado única e exclusivamente no ordenamento jurídico enquanto norma a ser subsumida pela “vontade racional” do legislador (CORRÊA, Bianca Kremer Nogueira. Jurisdição em tempos de decisionismo: o desafio da concretização de direitos em uma perspectiva democrática. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2016). 326 STRECK, Lenio Luiz, 2014, p. 34. 327 Isso significa dizer que era defeso ao magistrado promover qualquer tipo de atividade hermenêutica, o que parece ter uma justificativa na desconfiança da classe que assumiu o poder na França e não confiava nos juízes, que por motivos políticos sempre estiveram aliados ao poder soberano da época (RAMIRO, Caio Henrique Lopes; HERRERA, Luiz Henrique Martim. Hans Kelsen: filosofia jurídica e democracia. Revista de Informação Legislativa, ano 52, n. 205, jan./mar. 2015). 328 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição e ausência de uma teoria da decisão. Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso/Chile, n. XLI, 2º semestre, p. 2013. 329 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica jurídica e constituição no estado de direito democrático. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 34). 330 A Escola do Direito Livre é bem esclarecida por Sergio Alves Gomes ao consignar que: “Em busca de maior liberdade ao intérprete, ao ponto de possibilitar-lhe inclusive a decisão contra a lei (contra legem), destacou-se a Escola do Direito Livre (Freisrecht). Trata-se de um movimento que surgiu na Alemanha, cujo início é identificado com o lançamento da obra A luta pela Ciência do Direito, em 1906, escrita por Herman Kantorowicz, sob o pseudônimo Gnaeus Flavius” (GOMES, Sergio Alves. op cit., p. 38).

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cumulativamente, demonstrar que o problema da interpretação no direito possui um caráter muito mais semântico (de sentido) que sintático (de forma e estrutura)331. A proposta kelseniana defendeu a instauração de uma metodologia específica para a ciência do direito, de modo que a partir de tal dimensão normativa, o direito positivado

(norma) se tornaria o objeto da análise científica332. Sua doutrina, nesse sentido, promoveu uma verdadeira cisão entre direito e ciência do direito, o que consequentemente impactou diretamente na sua visão sobre a tarefa interpretativa, como se vê na sua clássica distinção entre “interpretação como ato de vontade” e “interpretação como ato de conhecimento”333. Compreender o legado científico do positivismo normativista de Kelsen é essencial quando se considera que o modelo de Constituição dogmática e sua atuação na sociedade contemporânea são pautados nessa tradição jurídica, cuja lógica positivista foi assentada num discurso científico, formalista e racionalista que exclui a relevância da moral e da realidade no direito334. Nesta senda, para que se possa identificar adequadamente o que significa o ato de interpretação em Kelsen e como resolver o problema de indeterminação normativo torna-se exigível entender a proposta de pureza da ciência do direito com a consequente depuração de qualquer elemento estranho ao seu objeto335 (normas jurídicas), notadamente os de ordem política, o papel assumido pelo sujeito quando da análise do direito e a linguagem aplicada no âmbito do positivismo normativista. Em sua proposta de teoria pura Kelsen parte inicialmente de uma análise estrutural do objeto da ciência jurídica e, nesse tocante, indica a existência de um ordenamento com formato piramidal que indica uma hierarquia/escalonamento entre os diferentes tipos de normas, que variam desde o âmbito externo (ordenamento internacional) ao interno (Estatal). Há nessa estrutura um fundamento último de validade dentro da escala normativa: a denominada “norma fundamental”, instrumento essencial para afastar de sua teoria pressupostos metafísicos fundantes da ordem jurídica336. Nesse sentido Kelsen recorre às

331 STRECK, Lenio Luiz, 2014. 332 RAMIRO, Caio Henrique Lopes; HERRERA, Luiz Henrique Martim, op. cit. 333 STRECK, Lenio Luiz, 2014. 334 PINTO, Emerson de Lima, op. cit. 335 Como ressaltado por Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha “Em suma, a pureza de sua teoria se refere à Ciência do Direito e consiste basicamente em excluir do seu campo de estudos tudo aquilo que não se refira ao seu objeto, tudo aquilo que não seja possível de determinar-se como Direito e, em última análise, tudo aquilo que não se possa identificar com a norma jurídica” (CUNHA, Ricarlos Almagro Vitoriano. Hermenêutica jurídica em Kelsen: apontamentos críticos. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 45, n. 180, out./dez. 2008, p. 281). 336 RAMIRO, Caio Henrique Lopes; HERRERA, Luiz Henrique Martim, op. cit.

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bases kantianas de sua formação para esclarecer qual é a resposta epistemológica trazida pela teoria pura do direito a respeito da norma fundamental:

Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicar per analogia um conceito da teoria do conhecimento de Kant –, ser designada como condição lógico- transcendental desta interpretação. Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teorético-gnosiológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição.337

A partir dessa visão estrutural Kelsen concebe o sistema jurídico como um sistema de normas estabelecido no plano do “dever-ser” completamente desvinculado das relações de podem que se manifestam no plano do Sein (ser)338. Por via de consequência, se a norma não está fundamentada no fato, do mesmo modo que o “dever-ser” não decorre do “ser”, a validade de uma norma somente pode estar fundada sob a validade de outra norma339-340. Sinteticamente, Kelsen tratou o direito como um sistema de normas especial cuja validade não estava assentada em outros sistemas de normas, como de base moral ou religiosa, tampouco nos fatos, de modo que a sua obrigatoriedade não está ligada à correlação entre justa ou injusta, moral ou útil, mas possui vinculatividade em decorrência da existência de uma norma superior que lhe dá validade; daí a sua estruturação piramidal com a

Constituição no seu topo341, mas como fundamento último de todo o ordenamento a “norma fundamental”342.

337 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 225. 338 CHAHRUR, Alan Ibn. A importância teórica e prática da norma fundamental. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 53, n. 211, jul./set. 2016. 339 Idem. 340 Nas palavras do próprio Kelsen: “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior” (KELSEN, Hans, 2009, p. 215). 341 Nesse mesmo sentido Ricardo Vieira de Carvalho Fernandes e Guilherme Pereira Dolabella Bichalo assinalam que, para Kelsen, “O estudo do Direito deveria ser desprovido de valores; a moral seria extrínseca ao

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Sob essa perspectiva kelseniana de caráter normativista o objeto desprende-se do sujeito, e este (sujeito) assume uma atividade neutra e objetiva diante do direito a partir de uma perspectiva formal, uma vez que na teoria pura do direito “não se discute a legitimidade e nem a justiça dessa norma mais alta e, tampouco, considera-se como objeto de discussão se a autoridade que a elaborou teria legitimidade”343. Kelsen, no entanto, vai além. Buscando se afastar completamente da teoria do exegetismo – que propagava a existência de uma única resposta correta a ser dada pela exclusiva literalidade do texto –, Kelsen reconhece a existência de uma indeterminação parcial do direito344 que resulta da “pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequência de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o

órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis”345. A interpretação assumirá nesse sentido uma operação mental no momento de aplicação do direito que obrigatoriamente deverá seguir o escalonamento normativo numa progressão que começa pela norma superior e se aplica às normas inferiores. Esse processo interpretativo que visa a apurar o conteúdo que será atribuído a uma norma individual de uma sentença ou de uma resolução de cunho administrativo possui variados níveis, pois Kelsen reconhece a existência de variados exercícios interpretativos levados a cabo sobre: a) a Constituição: quando se efetiva sua aplicação para uma norma de escalão inferior; b) os tratados internacionais ou do direito internacional: que criam o direito consuetudinário; c) sentenças, normas individuais, negócios jurídicos; e d) os indivíduos que, obrigatoriamente, devem submissão ao caráter cogente das normas jurídicas, e, em função disso, para interpretar também precisam compreender o sentido normativo (os indivíduos, contudo, jamais aplicam a norma, pois não criam direito)346. Foi a partir dessa diferenciação entre os variados tipos interpretativos que Kelsen distinguiu a interpretação em autêntica e não autêntica. Resumidamente, a primeira é aquela

ordenamento jurídico. Ele não ignorou a carga valorativa que informa o fato jurídico, mas simplesmente ressaltou a necessidade de o fenômeno jurídico ser analisado como tal; independentemente de outras áreas do conhecimento” (FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. Do positivismo ao pós-positivismo: o atual paradigma jusfilosófico constitucional. Revista de Informação Legislativa, a. 48, n. 189, jan./mar. 2011). 342 RAMIRO, Caio Henrique Lopes; HERRERA, Luiz Henrique Martim, op. cit. 343 PINTO, Emerson de Lima, op. cit, p. 16-17. 344 Conforme apontam Cássio Corrêa Benjamin e Eron Geraldo Souza: “Essa situação de indeterminação parcial do direito é, portanto, constitutiva, não podendo ser contornada. Não há como determinar uma única possibilidade para cada ato jurídico” (BENJAMIN, Cássio Corrêa; SOUZA, Eron Geraldo. O problema da interpretação em Kelsen. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 34, n. 1, 1 jul. 2010. DOI: 10.5216/rfd.v34i01.9969). 345 KELSEN, Hans, 2009, p. 389. 346 BENJAMIN, Cássio Corrêa; SOUZA, Eron Geraldo, op. cit.

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efetivada por um órgão dotado de competência normativa para aplicação do direito com caráter definitivo e vinculante, enquanto a segunda é aquela levada a cabo pelos cidadãos em geral, pelos advogados ou pela ciência jurídica, os quais “tentam extrair da lei o melhor sentido possível sem que tenham o poder de fazer com que sua opinião (interpretação) seja vinculante para o órgão que aplica o Direito (tribunais e juízes)”347-348. Kelsen prossegue em sua análise sobre a interpretação e conclui que, embora a relação entre uma norma de escalão superior e inferior seja determinada e vinculativa, como aquela existente entre a Constituição e lei, ou a lei e a sentença judicial, há um espaço de indeterminação parcial, já que a norma superior não consegue vincular o aplicar em todas as direções. Nas palavras do autor:

[...] A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever.349 (grifos não originais).

Para Kelsen, qualquer tentativa de atribuir um método que proporcione um sentido unívoco para a norma a ser aplicada é fracassada, o que justifica que no momento da interpretação jurídica o intérprete detenha um espaço de liberdade para, dentro da “moldura350

347 AGOSTINI, Leonardo Cesar de; AGOSTINI, Kátia Rovaris de. A interpretação judicial brasileira: ato de conhecimento ou ato de vontade? Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 2, n. 3, 3º quadrimestre de 2017. 348 Tércio Sampaio Ferraz Júnior também esclarece a distinção entre interpretação autêntica e não autêntica a partir da obra de Kelsen e preleciona que: “Para Kelsen, quando um órgão se pronuncia sobre o conteúdo de uma norma, por exemplo, o juiz quando determina o sentido de uma lei no processo de aplicação, produz um enunciado normativo. Como qualquer norma, esse enunciado é vinculante. Isso está na base de sua discussão da hermenêutica. Assim, a contrario sensu, todo ente que não é órgão, ao interpretar, ainda que diga qual deva ser o sentido de uma norma, não produz um enunciado vinculante. Aquele dever-ser não tem, pois, caráter de norma. É o caso, por exemplo, de um parecer jurídico ou de uma opinião doutrinária exarada num livro (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, 2013, p. 228, grifos originais). 349 KELSEN, Hans, 2009, p. 388. 350 A palavra moldura, tradicionalmente vertida na Teoria Pura do Direito como tradução da palavra Bild, originária do alemão, também pode significar “ideia” ou imagem, as quais também podem se mostrar coerentes com o contexto normativista kelseniano que tem como preocupação afeta à ciência do direito que o intérprete tem uma ideia da lei – uma imagem do texto legal (Cf. STRECK, Lenio, 2014).

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normativa”, aplicar o direito no caso concreto preenchendo a lacuna decorrente da indeterminação351 parcial existente352. Na sequência Kelsen aborda a existência de uma dupla estrutura no processo de aplicação do direito353, o qual se mostra como resultado de um ato de conhecimento, e, cumulativamente, um ato de vontade354, elucidando que:

Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicada. Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação levada a cabo pela ciência jurídica.355 (grifos não originais)

Sob essa premissa Kelsen defende que a decisão judicial é composta obrigatoriamente pela conjugação de um ato de conhecimento, representado pelo exercício intelectivo do aplicador do direito ao analisar o problema posto e identificar as variadas soluções possíveis,

351 Para Kelsen é irrelevante que a indeterminação tenha ocorrido de forma desejada ou não, pois o que importa é a sua existência e o seu preenchimento dentro da moldura normativa, como bem observa Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha “É irrelevante que tal indeterminação tenha sido deseja ou não (tal como ocorre, v.g., em decorrência da plurisignificatividade semântica dos termos empregados na norma), ou ainda que ela se circunscreva ao fato condicionante ou à conseqüência condicionada, o que importa é que ela existe e que todo ato que se deixe enquadrar naqueles limites será válido” (CUNHA, Ricarlos Almagro Vitoriano, op. cit., p. 287). 352 Emerson de Lima Pinto, inclusive, reforça que na visão de Kelsen não há uma única resposta correta no ato de interpretação / aplicação do direito quando indica que: “Em Kelsen, não se vislumbra apenas uma única resposta correta, ajustando-se à moldura do quadro delineada pelas normas superiores, defendendo que tal entendimento é uma ficção da doutrina tradicional, que persegue incondicionalmente o ideal de segurança jurídica. Essa preocupação decorre de modo natural e remete o grau de limitação que é imposto aos magistrados e aos legisladores, colocando em evidência a hierarquia a ser seguida na estrutura da Ciência do Direito, a fim de evitar percursos desviantes que abandonem a racionalidade científica imperante e evite compreensões ilógicas, avaliando-se o ato jurídico não apenas em atribuição executiva, mas igualmente em sua atribuição criadora, em que a interpretação científica é pura deliberação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas” (PINTO, Emerson de Lima, op. cit., p. 17). 353 Vale registrar que para Kelsen não há qualquer diferenciação entre a aplicação e a criação do direito, embora em sua teoria de validade jurídica exista uma distinção quanto à teoria da interpretação, que englobaria a aplicação e a criação (Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini. Decisionismo e hermenêutica negativa: Carls Schmitt, Hans Kelsen e a afirmação do poder no ato interpretativo do direito. Seqüência (Florianópolis), n. 67, p. 111-137, dez. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2177- 7055.2013v34n67p111). 354 KELSEN, Hans, 2009. 355 Ibidem, p. 394.

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e de um ato de vontade, representado pela liberdade conferida ao intérprete para, nos limites da moldura, elencar a hipótese que lhe parece mais adequada356. Aqui vale fazer uma observação importante: a teoria da interpretação de Kelsen, notadamente a sua divisão em interpretação como ato de conhecimento e vontade, pode ser sistematicamente cindida em duas fases: a primeira, em 1934, quando lançou a primeira edição da Teoria Pura do Direito e, a segunda, quando da publicação da edição final da mesma obra datada de 1960357. Na primeira edição de sua obra, Kelsen trabalha o elemento cognitivo de forma vinculada ao normativismo, i.e, a norma a ser aplicada atuará como verdadeira moldura que delineará a decisão do juiz, fazendo com que o ato seja discricionário, mas não arbitrário. Nesse momento inicial, portanto, torna-se essencial que o juiz conheça (por isso ato cognoscitivo) todas as possibilidades de interpretação que são permitidas e decorrem da própria norma). O momento posterior, por sua vez, denominado pelo próprio autor como elemento volitivo, está ligado diretamente à ideia de discricionariedade, ou seja, após

“conhecer o direito”, deverá o aplicar do direito, segundo sua vontade358, escolher uma dentre as variadas hipóteses de interpretação possíveis359. Vale ressaltar aqui que, embora reconheça a abertura concebida ao intérprete para decidir de acordo com sua vontade e valores particulares, Kelsen condiciona o exercício do ato cognoscitivo ao ato de conhecimento, o que significa dizer que não se trata de um decisionismo absoluto, pois o intérprete estaria sempre vinculado à moldura interpretativa, não podendo decidir fora dela. Já na edição de 1960, Kelsen altera sensivelmente a sua teoria da interpretação e, especificamente ao tratar sobre a decisão como ato de vontade, passou também a admitir que o juiz também poderia decidir além do que foi estabelecido pela moldura, ou seja, o papel criador do magistrado não estaria mais adstrito a uma tarefa meramente complementar da norma fixada pelo legislador, mas também assumiria uma capacidade criadora inaugural360. Com isso, Kelsen passa a admitir uma “concepção meramente voluntarista da interpretação,

356 AGOSTINI, Leonardo Cesar de, op. cit. 357 MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit. 358 O intérprete, nesse sentido, não estará orientado por nenhuma norma interpretativa ou padrão de justiça externo, como defendido por Dworkin e seus princípios vinculativos, ou mesmo por Schmitt e sua figura de “juiz-tipo”, mas se encontrará amplificado, já que a escolha da melhor hipótese dependerá dos valores particulares do aplicador do direito (Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit). 359 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit. 360 Idem.

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admitindo a escolha, por parte do aplicador do direito, de uma opção que se encontre ‘fora da moldura’. Além disso, recai em uma teoria cética da interpretação”361. Significa dizer que, embora ainda defenda a existência da moldura, Kelsen permite a sua ampliação por atos de vontade daqueles que são competentes, permitindo que até mesmo decisões contrárias ao ordenamento jurídico possam ser tidas como válidas quando, por exemplo, uma decisão claramente afrontosa ao ordenamento transite em julgado sem que os competentes recursos ou instrumentos processuais sejam utilizados362. Tais considerações a respeito da doutrina esboçada por Kelsen em seu modelo de positivismo normativista demonstram que o pensamento do autor assume um viés objetivista formalista caracterizado pelo esforço de transformar o estudo do Direito numa adequada e verdadeira teoria científica dotada de neutralidade, pureza e coerência363-364. Significa dizer que a teoria kelseniana “não possui qualquer conteúdo empírico extraído da experiência jurídica concreta, e como teoria não tem por objeto a análise da dogmática jurídica ou da jurisprudência de algum Estado em particular”365. A consequência da metodologia objetivista kelseniana implicou uma abordagem que privilegiou as dimensões semânticas e sintáticas dos enunciados normativos, mas relegou a pragmática a um segundo plano, deixando-a à discricionariedade do intérprete. Ainda que tenha superado o positivismo exegético, Kelsen parecer não ter enfrentado o principal problema do direito, que consiste na interpretação concreta no nível da interpretação366. Ou seja, Kelsen não cuidou de tratar sobre a resolução dos denominados hard cases (embora deles não fale especificamente), deixando sob a responsabilidade dos órgãos

361 SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. A Teoria da interpretação em Kelsen. In: MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos (Coord.). Contra o absoluto: perspectivas críticas, políticas e filosóficas da obra de Hans Kelsen. Curitiba: Juruá, 2002, p. 397. 362 MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit. 363 PINTO, Emerson de Lima, op. cit. 364 Claudio de Cicco ressalta o caráter formalista da teoria kelseniana sustentando que: “Não foi por mero acaso que os regimes de opressão totalitária do século findo vieram a se estabelecer depois que o jurista vienense Hans Kelsen escreveu sua famosa obra Teoria Pura do Direito, na qual postula – numa linha inaugurada por Imamnuel Kant, como já se viu – o divórcio completo entre o mundo do ser (sein) e o mundo do dever ser (sollen) ao declarar a total autonomia do Estado no processo da nomogênese e da coação. Evidentemente que autoriza o advento de qualquer ordenamento jurídico, desde que obedecidas as regras por ele estabelecidas de completude, coerência e unidade. Basta seguir o procedimento técnico previsto na Constituição do Estado, segundo a famosa Norma Fundamental: obedeça o que foi resolvido pelo legislador constituinte ordinário. Não há qualquer baliza no conceito de ‘natureza humana’ ou de ‘justiça’, pois Kelsen, como adepto famoso do Círculo de Viena, não admitia cientificidade para a Metafísica ou para a Ética, nem sequer consideradas ciências, pois não eram passíveis de comprovação experimental” (DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 327-328, grifos originais). 365 Ibidem, p. 19. 366 Cf. STRECK, Lenio Luiz, 2014.

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aplicadores do direito a sua solução, mediante um ato de vontade, razão pela qual se fala sob um “decisionismo kelseniano”367. E como bem ressalta Tércio Sampaio Ferraz Júnior, esse ato de vontade representa uma decisão pautada num “eu quero” e não de um “eu sei’”, de modo que, existindo um desequilíbrio entre o ato de conhecimento e o ato de vontade, a definição do sentido será pautada no ato de vontade368. A vontade do intérprete na resolução dos problemas relativos à indeterminação do direito é o ponto central da teoria normativista kelseniana, o que, entretanto, acaba gerando a discricionariedade judicial no momento de aplicação do direito369. Mas não é só, além da discricionariedade que pode resultar da aplicação da teoria kelseniana a partir da visão de moldura a ser preenchida, é perceptível que o modelo da Teoria Pura do Direito acaba fracionando em etapas o processo compreensão e aplicação, vale dizer, para Kelsen primeiro se conhece a realidade para só depois aplicá-la, o que contraria a visão unificada de compreensão como aplicação defendida por Gadamer370 e que se apresentará a seguir como proposta de hermenêutica filosófica adequada. Soma-se ainda que, para Kelsen, a tarefa interpretativa é baseada no esquema sujeito- objeto. Isso implica uma relação de atribuição da verdade ao objeto e faz com que a linguagem seja enxergada como um mero instrumento de compreensão da estrutura do real, apresentando-se como uma coisa qualquer dentre as demais371. Os reflexos da adoção da teoria kelseniana no momento de interpretação/aplicação do direito assumem uma perigosa formatação dentro de um Estado Democrático, pois não se pode admitir que, diante de um possível quadro de indeterminação do direito, a decisão final recaia sobre um ato de discricionariedade. A proposta hermenêutica filosófica trazida por Gadamer, nesse sentido, conforme se demonstrará no capítulo final, aponta para os limites que devem conformar a decisão judicial e blindam o direito contra discricionariedades, além de superar a relação do esquema sujeito- objeto que acaba por relegar a linguagem a um instrumento meramente acessório no processo interpretativo, o que não se pode admitir.

367 Idem. 368 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, 2013, p. 228. 369 STRECK, Lenio Luiz, 2009. 370 CUNHA, Ricarlos Almagro Vitoriano, op. cit. 371 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca. Entre o esquema sujeito-objeto e o esquema sujeito-sujeito: considerações sobre um novo paradigma. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 9, n. 2, 2017.

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3.2 Positivismo Jurídico Metodológico: Os Impactos da Teoria de Herbert Hart para a Interpretação

Herbert Hart é, assim como Kelsen, um dos maiores nomes do positivismo jurídico, e a influência de sua obra “O Conceito de Direito”372 trouxe uma nova perspectiva à análise do fenômeno jurídico em função de propor uma teoria analítica com enfoque na linguística373. Isso porque, sob seu ponto de vista, o direito é essencialmente linguístico, embora não o seja exclusivamente374. Embora mantenha a perspectiva de neutralidade do direito como ciência do ser (e não do dever ser), Hart não direciona sua análise diretamente sobre fatos brutos, mas sobre os fatos mediante e a partir da linguagem, o que ele denomina de sociologia descritiva375. Nessa consonância, para que seja possível compreender um enunciado normativo se faz necessário analisá-lo a partir de um contexto, de modo que os termos regra, obrigação, ou sanção não podem ser vistos ou analisados isoladamente376. O ponto de partida da obra de Hart está assentado na fixação do conceito de Direito, resposta que somente pode ser enfrentada quando contraposta a três análises a saber: a) qual a diferença entre o Direito e ordens que são respaldadas pelo uso de ameaças; b) qual a distinção entre uma obrigação de cunho jurídico e uma obrigação moral; e c) o que representam as normas jurídicas e, em que medida, o direito é um sistema normativo377.

372 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 373 Além de sua contribuição filosófica, Hart foi um dos colaboradores mais importantes e influentes do período pós-guerra para a forma liberal/social democrata de pensamento e ação, especialmente por ter desenvolvido sólidas contribuições às argumentações filosóficas em favor das liberações do direito penal, e em favor de uma determinada concepção de humanidade da punição (Cf. MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. 2. ed. Tradução: Cláudia Santana Martins. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010). 374 Como bem observado por Neil MacCormick: “Não apenas a Teoria Geral do Direito é uma atividade conduzida linguisticamente por meio de pensamentos privados, assim como da palavra escrita e falada; o que ela estuda também é uma atividade conceitual e linguística em sua própria essência. Por isso a tentativa de Hart, assim como a de outros, de esclarecer a natureza da ordem jurídica é forçosamente, pelo menos em parte, linguística em seu foco e preocupação. Não obstante, um aspecto distintivo da obra de Hart é ser linguística em um sentido mais forte, pois ele foi um dos principais defensores do que costuma ser chamado de ‘Análise Linguística’ ou ‘Filosofia da Linguagem Ordinária’” (MACCORMICK, Neil, op. cit, p. 26). 375 Conforme Thomas Bustamante, “Sua teoria jurídica é descrita como uma “sociologia descritiva” que busca explicar a norma jurídica como uma “norma social” cuja normatividade decorre da aceitação, por parte da comunidade jurídica e, em particular, dos agentes dotados de autoridade para aplicar o direito, de uma convenção básica (a regra de reconhecimento) acerca dos critérios fundamentais de validade para uma norma jurídica” (BUSTAMANTE, Thomas. A breve história do positivismo descritivo. O que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, v. 20, n. 1, jan./abr. 2015). 376 LOPES FILHO, Juraci Mourão; LOBO, Júlio César Matias; CIDRÃO, Taís Vasconcelos, op. cit. 377 HART, Herbert L. A, op. cit.

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Resumidamente: “alguns dos problemas fundamentais da teoria jurídica encontram-se no

âmbito das relações entre: o Direito e a coerção, o direito e a moral e o direito e as normas”378. Hart, assim como Kelsen e diferentemente de Austin, defendeu a noção de regra para demonstrar a estrutura e funcionamento do Direito como verdadeiro sistema/ordenamento jurídico composto de regras sociais em duplo sentido, vale dizer, elas tanto regem a conduta dos seres humanos em sociedade quanto devem sua origem e existência exclusivamente às práticas sociais humanas379. Nesse sentido, Hart aponta para a existência de dois tipos de regras sociais, quais sejam380: a) regras primárias – são aquelas que estabelecem obrigações e deveres e proíbem as formas de transgressões; b) regras secundárias – são aquelas que, por si mesmas, não constituem standards vinculantes de conduta obrigatória, mas se relacionam às primárias de diversos

modos, e neste tipo especial de relação está a qualidade sistemática do Direito381. As regras secundárias podem ser subdivididas em: 1) regras de julgamento – são as regras que dispõem sobre o poder de proferimento de decisões jurídicas e aplicação da lei; 2) regras de alteração – são aquelas que conferem a pessoas ou grupos identificados individual ou genericamente o poder para proceder com alterações deliberadas tanto das regras primárias de obrigação como das regras secundárias de julgamento. As regras de alteração exigem status jurídico e capacidade jurídica; 3) regras de reconhecimento – estabelecem os critérios que determinam a validade de todas as outras regras de um sistema jurídico particular. Enquanto as regras de julgamento e alteração conferem poder, a regra de reconhecimento impõe deveres sobre aqueles que exercem o poder público e oficial, especialmente o poder de julgar.

378 STOLZ, Sheila. Um modelo de positivismo jurídico: o pensamento de Herbert Hart. Revista Direito GV, v. 3, n. 1, jan./jun, 2007, p. 103. 379 HART, Herbert L. A, op. cit. 380 Idem. 381 É importante notar que para Hart “todas as normas secundárias se situam num nível diferente daqueles das normas primárias, pois versam sobre as normas, isto é, enquanto as normas primárias dizem respeito a atos que os indivíduos devem ou não devem praticas, todas as normas secundárias se referem às próprias normas primárias. Especificam como as normas primárias podem ser determinadas, introduzidas, eliminadas e alteradas de forma conclusiva, e como estabelecer conclusivamente o fato de terem sido transgredidas” (HART, Herbert L. A, op. cit, p. 122).

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Ainda, de modo a complementar a sua teoria do direito Hart traz a noção de rule of recognition, a qual atua como uma espécie de remédio para solapar a incerteza do regime das regras primárias e também como norma última que atua como critério de validez supremo do ordenamento jurídico382. A regra de reconhecimento, nesse sentido, não apenas determina a forma que deve ser assumida por todas as normas jurídicas para que sejam consideradas como válidas, como também atribui autoridade e competência aos órgãos jurídicos para a aplicação das normas e delimitação dos poderes do Estado383. É a existência da norma de reconhecimento que, segundo Hart, possibilita a noção de sistema jurídico, diferenciando as normas jurídicas de outros sistemas normativos como a moral, as regras de jogo ou de trato social – uma vez que em tais sistemas não existe uma norma última fixando sua validez e pertinência384. Hart esboça ainda em sua teoria uma importante distinção de análise do direito e da regra de reconhecimento a partir de duas perspectivas denominadas de ponto de vista interno e externo que são essenciais para se compreender o método descritivo empírico de sua teoria. O ponto de vista interno é representado pela afirmação das pessoas de que como membros de determinado grupo social aceitam e se submetem a determinados padrões de conduta, ao passo que o ponto de vista externo é caracterizado pelas asserções de algum observador externo que não integra o grupo regido pelas regras385. O positivismo hartiano, assim, visualiza o direito como uma simples questão factual que exige um argumento empírico e não meramente teórico, de modo que a aceitação social da comunidade de sua regra mestra fundamental representa o verdadeiro fundamento do direito, cuja normatividade é social386. Especificamente sobre o ato de aplicação do Direito e, por partir de uma análise analítica do Direito, Hart trata o direito como “um fenômeno cultural constituído pela

382 STOLZ, Sheila, op. cit. 383 Alex Silva Gonçalves e Regio Hermilton Ribeiro Quirino afirmam que a regra de reconhecimento em Hart representa uma noção geral, um entendimento implícito de que algo que obedece ao quadro normativo possui validade, e, consequentemente, deve ser obedecido (GONÇALVES, Alex Silva; QUIRINO, Regio Hermilton Ribeiro. A norma hipotética fundamental de Hans Kelsen e a regra de reconhecimento de Herbert Hart: semelhanças e diferenças entre os critérios de validade do sistema jurídico. Seqüência, Florianópolis, n. 78, abr. 2018, p. 103). 384 Idem. 385 COELHO, Vinicius Azevedo. O positivismo jurídico contemporâneo: direito e autoridade. Revista Direito Mackenzie, v. 8, n. 1, 2014. 386 Cf. STRECK, Lenio Luiz; MOTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 14, n. 1, abr. 2018. DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i1.2451.

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linguagem; por isso é que ele, desde a linguística, pretende privilegiar o uso da linguagem normativa como o segredo para compreender-se a normatividade do direito”387. O autor, entretanto, reconhece a falibilidade da linguagem e das regras jurídicas para expressar uma orientação precisa sobre todos os padrões de comportamento e a possibilidade de que existam dúvidas sobre o processo de aplicação, o que desvelaria o que se tem denominado como “textura aberta” do direito388. Essa abertura, segundo Hart,

[...] significa que existem, de fato, áreas do comportamento nas quais muita coisa deve ser decidida por autoridades administrativas ou judiciais que busquem obter, em função das circunstâncias, um equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia para cada caso.389

Neil MacCormick analisa o ideal de textura aberta proposta Hart e reafirma a impossibilidade de que as regras jurídicas consigam resolver tudo, notadamente pelo fato de que, sendo moldadas pela linguagem, elas possuem uma abertura que muitas vezes desvelam vaguezas390, i.e, em alguns casos o conteúdo normativo (ordenação, proibição ou autorização) pode ser absolutamente confuso em casos mais problemáticos391. Ainda, segundo Hart, toda expressão linguística é composta por um núcleo e uma zona de penumbra, dualidade que permite a identificação dos casos fáceis e difíceis. Nesse tocante, os casos fáceis se localizam no núcleo da expressão linguística, pois as expressões gerais ali encontradas são claramente aplicáveis e basta fazer o uso do silogismo para conectar a norma ao caso concreto. Os casos de dificultosa interpretação, por sua vez, estariam localizados na zona de penumbra, uma vez que há uma indeterminação sobre a aplicação ou não da expressão linguística geral392. A imprecisão da linguagem, segundo o positivismo hartiano, abrirá espaço para que o intérprete atue com discricionariedade no momento de aplicação normativa concreto, solucionando o caso mediante uma escolha393.

387 STRECK, Lenio Luiz, 2018b, p. 61. 388 HART, Herbert L. A, op. cit. 389 Ibidem, p. 175. 390 É preciso destacar nesse ponto que para Roberto Bueno é possível afirmar que para Hart não é o direito que é incompleto, mas a base vocabular sobre a qual ele se efetiva e projeta os seus efeitos (BUENO, Roberto. Hart e o positivismo jurídico: em torno à hermenêutica e a textura aberta da linguagem do direito. Revista de Informação Legislativa, a. 47, n. 186, abr./jun. 2010). 391 MACCORMICK, Neil, op. cit. 392 Cf. CADEMARTORI, Luiza Valente. Os casos difíceis e a discricionariedade judicial: uma abordagem a partir das teorias de Herbert Hart e Ronald Dworkin. Novos Estudos Jurídicos, v. 10, n. 1, jan./jun, 2005. 393 STRECK, Lenio Luiz, 2018b.

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Ao analisar a discricionariedade prevista na teoria de Herbert Hart, Neil MacCormick ressalta que:

Assim Hart conclui que, dentro da estrutura das regras cujo significado está suficientemente claro para alguns propósitos, há e deve haver um espectro de discricionariedade para os juízes e outras autoridades. E, ao exercer essa discricionariedade, eles devem considerar, necessária e devidamente, fatores não jurídicos tais como opiniões morais e políticas, conveniência e raison d’état, assim como o contexto geral das regras e princípios jurídicos, em busca da orientação que estes podem fornecer.394 (grifos originais)

O positivismo analítico de Hart, assim como o positivismo normativista kelseniano, reconhece a indeterminação do direito e aponta como critério de solução dos casos cuja solução não seja facilmente extraída a ideia de discricionariedade judicial. Vale dizer, ao se deparar com casos em que a zona de penumbra possibilite maior exercício interpretativo, a decisão judicial discricionária terá o condão de, em certo sentido, criar nova legislação395. Ressalta-se que mesmo com a inclusão de princípios convencionais pela regra social de reconhecimento – o que faz no seu pós-escrito em resposta aos críticos –, Hart defende a utilização da discricionariedade judicial nos casos difíceis e não vislumbra qualquer “dever legal do juiz em buscar uma análise holística da lei que forneça critérios mais objetivos, e que, consequentemente, diminua a possibilidade de erros judiciais”396. O decisionismo, nesse sentido, não é vislumbrado como problema, mas solução, ou, pelo menos, uma constatação científica aparentemente neutra do modo pelo qual a indeterminação do direito e seus problemas devem ser resolvidos397; postura que, como já ressaltado, representa um déficit democrático preocupante, além de colocar em xeque a própria atuação da Justiça Constitucional como órgão legitimador do Estado de Direito. Dessa forma, ainda que Hart dê um salto comparativo em relação ao tratamento que Kelsen confere à linguagem, passando a defini-la não como mero instrumento, mas como elemento crucial para compreensão do direito – que é essencialmente linguístico –, o problema da discricionariedade do intérprete no momento de tomada da decisão não é afastado, mas, ao contrário, reforçado como mecanismo para resolver a zona de penumbra que exsurge nos denominados casos difíceis.

394 MACCORMICK, Neil, op. cit, p. 43. 395 STRECK, Lenio Luiz, 2018b. 396 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e discricionariedade. Lua Nova [on-line], n. 61, 2004, p. 113. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452004000100006. 397 STRECK, Lenio Luiz, 2014.

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3.3 Decisionismo e Afirmação do Poder no Exercício Interpretativo: Carl Schmitt e o Subjetivismo

A priori, é preciso ressaltar que, embora a teoria de Carl Schmitt não seja – ao menos expressamente – utilizada como fundamento teórico de decisão pelo STF, é inegável a contribuição de sua teoria a respeito do papel da Constituição diante da interpretação e aplicação de suas normas, a qual, inclusive, foi fruto de intensos debates com a teoria normativista de Hans Kelsen, na década de 1930398-399. Para se compreender a teoria proposta por Schmitt torna-se indispensável compreender que, no contexto da República de Weimar, a Constituição de 1919 apresentou um caráter eminentemente principiológico o que resultou no estabelecimento de normas programáticas dotadas de direcionamento econômico e sociopolítico, visando à consolidação de um Estado

Social de Direito400. Entretanto, apesar da promulgação da Constituição, o quadro político constituído por extremistas de direito e esquerda que apoiavam a ditadura não fora resolvido, de modo que a discussão sobre de quem seria e em qual medida seria exercida a competência de guarda e proteção da Constituição se tornou uma questão de inflexão política e prática essencial401. Nesse quadro fático de alta instabilidade do poder político – decorrente principalmente da existência de um Soberano que mesmo não legitimado passa a atuar como como espécie de mediador – houve um nítido comprometimento ao ambiente democrático que se fazia necessário para estabelecer o Estado de Direito. É a partir daí que Schmitt passa a discutir e relacionar temáticas como Estado de Exceção, Soberania, decisionismo e legitimidade402-403.

398 CADERMATORI, Luiz Henrique Urquhart; DUARTE, Francisco Carlos. Hermenêutica e argumentação neoconstitucional. São Paulo: Atlas, 2009. 399 Nas palavras de Roberto Bueno Pinto: “O que esteve em causa neste debate foi a precedência, ou não, da política (poder) sobre o direito (técnica) e, não menos, a determinação da preeminência de um deles sobre o outro. No caso de Schmitt, teve lugar a afirmação nem sempre expressa da política sobre o direito (governo dos homens) e, no caso de Kelsen, do direito sobre a política (governo das leis)” (PINTO, Roberto Bueno. Carl Schmitt x Hans Kelsen: defensor ou senhor da Constituição? Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, v. 60, n. 3, set./dez. 2015, p. 105. DOI: 10.5380/rfdufpr.v60i3.42346). Entretanto, apesar da discordância, tanto Kelsen como Schmitt se empenham num esforço teórico que se afasta de uma pretensão de conferir ao ordenamento jurídico um pressuposto de validade à vontade do mais forte, se colocando contrariamente ao positivismo imperativista que fora dominante no século XIX (Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit). 400 CADERMATORI, Luiz Henrique Urquhart; DUARTE, Francisco Carlos, op. cit. 401 PINTO, Roberto Bueno, op. cit. 402 PINTO, Emerson de Lima, op. cit. 403 Como aponta Paula Véspoli Godoy “Schmitt pretende combater o processo de fragmentação política do Estado alemão ocorrido em razão do pluralismo, da policracia e do federalismo, e de sua incapacidade de decidir” (GODOY, Paula Véspoli. Hans Kelsen e Carl Schmitt: o debate entre normativismo e decisionismo. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 62).

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Como observado por Ronaldo Porto Macedo Júnior, a rubrica do “decisionismo jurídico” está inquestionavelmente ligada ao pensamento de Carl Schmitt404, sendo possível identificar dois grandes momentos de sua reflexão sobre o problema da decisão: a) o primeiro é encontrado numa obra de sua juventude, publicada em 1912, “Direito e Julgamento”. Uma investigação sobre o problema da práxis jurídica (Gesetz und Urteil. Eine Untersuchung Zum Problem der Rechtspraxis); b) o segundo é representado em suas pesquisas Teologia Política, de 1922 (Politische Theologie) e Teoria da Constituição de 1922 (Verfassungslehre), obras em que o autor direciona suas pesquisas para as teorias da soberania e ditadura, definindo a primeira (soberania) como a decisão que é prolatada durante o estado de exceção e que funciona como parâmetro de validade de todo o ordenamento jurídico405. Em seu livro “Gesetz und Urteil. Eine Untersuchung Zum Problem der Rechtspraxis” Carl Schmitt esclarece que o seu objetivo é delimitar quando uma decisão resultante de uma prática jurídica é correta, pois no seu entendimento a conformidade da lei não é um critério para a escorreita decisão judicial406 – o que contrapõe o modelo normativista kelseniano e sua ideia de autonomia científica máxima do direito em que as normas estão dissociadas do plano fático. Nesse sentido, para o jurista alemão, uma decisão judicial será tida como correta quando se assumir que outro juiz teria decidido da mesma maneira, vale dizer, Schmitt cria com isso uma espécie de um juiz parâmetro/referência, uma espécie de topoi para o momento da aplicação do direito407. É importante registrar, entretanto, que o autor exclui dos juízes a tarefa de criação do direito – papel concebido de forma exclusiva ao legislador, – os quais devem apenas atuar de forma vinculada e referida ao direito já estabelecido408. A posição decisionista de Carl Schmitt somente é, de fato, consolidada, com a publicação do livro “Teologia Política” (1922), quando o autor passa a fazer uma correlação entre soberania, Estado de Exceção e justificativa do poder político.

404 A teoria schmittiana foi denominada como decisionista “na medida em que, de um modo geral, a origem da normatividade jurídica era procurada numa realidade definida negativamente como não normativa; ou seja, numa realidade que, sendo circunscrita pela positiva, não poderia deixar de ser identificada com uma força fática assente exclusivamente em si mesma, ou com um poder capaz de impor, a partir da sua pura facticidade e sem vínculos normativos que o determinem, uma decisão que esteja na origem de normas” (SÁ, Alexandre Franco de. Decisionismo e ficção no pensamento de Carl Schmitt. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 105, jul./dez. 2012, p. 25. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2012v105p21). 405 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. O decisionismo de Carl Schmitt. Lua Nova, São Paulo, n. 32, p. 210- 215, abr. 1994; e MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2. ed. Trad. Peter Noumaen. São Paulo: Saraiva, 2011. 406 Cf. SÁ, Alexandre Franco de. O poder pelo poder: ficção e ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder. 2007. Tese (Doutorado em Filosofia Moderna e Contemporânea) – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2007. 407 MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit. 408 Cf. SÁ, Alexandre Franco de, 2007.

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Para o autor, “Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção”409. O conceito de Estado de Exceção, por sua vez, é representado pela possibilidade de que o Estado de Direito seja suspenso por meio do próprio direito quando a sua existência esteja em risco, i.e, em tempos de crise em que o indivíduo não pode se socorrer da própria legislação para abrigar-se, torna-se indispensável suspender a aplicabilidade da Constituição com o fim de preservá-la410. Segundo Schmitt, em Estado de Exceção:

[...] o Estado suspende o direito por fazer jus à autoconservação como se diz. Os dois elementos do conceito “ordem jurídica” defrontam-se e comprovam sua autonomia conceitual. Assim como no caso normal, o momento autônomo da decisão pode ser repelido a um mínimo; no caso excepcional, a norma é aniquilada. Apesar disso, o caso excepcional também permanece acessível ao conhecimento jurídico, pois ambos os elementos, a norma e a decisão, permanecem no âmbito jurídico.411

Percebe-se com isso que para o jurista alemão o conceito de Soberania está atrelado ao monopólio da decisão final ou extrema e que ela (soberania) é enunciada a partir da exceção412. Com isso, a normalidade social cotidiana é regida pelo direito, ao passo que nas situações excepcionais, de grave risco ou emergência, ele (direito) é suspenso para dar lugar à uma soberania ilimitada413.

É preciso registrar que, para Schmitt, o Estado de exceção414 não poderia ser comparado a uma anarquia ou a uma situação caótica415, mas como um instrumento de luta pela conservação do próprio Estado. Isso porque, para o autor, numa situação de exceção a

409 SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7. 410 PINTO, Emerson de Lima, op. cit. 411 SCHMITT, Carl, 2006, p. 13. 412 Para Flávia D’urso “a decisão soberana perfaz um movimento de conformação à vida real e, embora nasça de uma exceção concreta, não deixa diluir na natureza informe e imediata dessa condição” (D’URSO, Flávio. Perspectivas sobre a soberania em Carl Schmitt, Michel Foucault e Giorgio Agamben. 2014. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 27). 413 SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016. 414 Conforme Giorgio Agamben “A exceção é aquilo que não se pode reportar; ela subtrai-se à hipótese geral, mas ao mesmo tempo torna evidente com absoluta pureza um elemento formal especificamente jurídico: a decisão. Na sua forma absoluta, o caso de exceção se verifica somente quando se deve criar a situação na qual possam ter eficácia normas jurídicas. Toda norma geral requer uma estruturação normal das relações de vida, sobre as quais ela deve encontrar de fato aplicação e que ela submete à própria regulamentação normativa (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 22-23). 415 Pedro Lucas Dulci reforça a necessidade e importância da distinção entre o Estado de Exceção do caos jurídico ou de qualquer anarquia, mas também da guerra civil, consignando que existe uma instância política que ultrapassa o âmbito jurídico, de modo que nesse sentido “o estado de exceção mostra-se um conceito-limite que revela não apenas as fronteiras do direito, como também o seu caráter não racional. Tal observação, que extrapola a esfera jurídica, será o caminho escolhido por Schmitt que o seu conceito de político é profundamente existencial” (DULCI, Pedro Lucas. A exceção como regra: A teologia política de Carl Schmitt em diálogo com Giorgio Agamben. Revista Contemplação, n. 13, 2016, p. 207).

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ordem jurídica não conseguiria fornecer as respostas necessárias para o cenário de instabilidade, daí a necessidade de se recorrer a um poder ilimitado416. Esse poder ilimitado, na visão do autor, deveria ser destinado à figura do Soberano. E é a atuação desse poder que, durante o Estado de exceção “revela a essência da autoridade estatal por meio do decisionismo417-418”. Ao comentar sobre a atuação do Soberano e até mesmo quem se qualifica como tal Giorgio Agamben assinala que: É preciso criar uma situação normal e soberano é aquele que decide de modo definitivo se este estado de normalidade reina de fato. Todo direito “é aplicável a uma situação”. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua integridade. Ele tem o monopólio da decisão última.419

Significa dizer que, para Schmitt, a linha entre exceção e normalidade é definida a partir da Soberania, fazendo-a mediante direito próprio. Nisso, direito e poder se mesclam para dar forma a uma visão de soberania de caráter evidentemente hobbesiano: o soberano decide sobre tudo e todos a partir daquilo que entende que precisa ser feito420. Disso se extrai que para o autor a decisão durante o estado de exceção representa “a origem, o fundamento de todos os Direitos, ou seja, o Direito só se realiza por emanar de um ato decisório soberano”421. A consequência dessa conclusão em Schmitt é que o direito não vale por ser dotado por um conteúdo racional, mas apenas porque foi objeto de sanção pelo poder soberano para garantir segurança, tranquilidade e ordem422. A partir dessa visão peculiar sobre o Estado – que na visão schmittiana seria, inclusive, anterior à Constituição e não simultâneo a ela como defendido por Kelsen – e figura

416 PINTO, Emerson de Lima, op. cit. 417 Ibidem, p. 37. 418 Cássio Corrêa Benjamin buscar elucidar qual a questão que o decisionismo de Schmitt pretende solucionar e o porquê dele surgir em sua obra: “Muitas discussões ocorrem em torno do decisionismo. São muitos os aspectos que ele suscita e sugere. Entretanto, gostaríamos de ressaltar uma característica específica, uma questão própria. Embora seja evidente, gostaríamos de salientar que o decisionismo se refere a um juízo, a uma justificação, a uma razão. A repetida afirmação de Schmitt sobre o caráter existencial de uma decisão e sua contraposição ao normativismo não devem levar à desatenção sobre o problema eminente da busca de um fundamento. É isso o que estamos chamando aqui de assimetria. O decisionismo é uma forma muito específica de traçar essa assimetria, de justificar uma distinção. O que justifica que uma regra ou norma seja caracterizada como assimetricamente preferível em relação a outras? Por que escolher uma norma ou regra em detrimento de outras? Em suma, como traçar essa assimetria? A resposta para essa pergunta exige que se aponte uma distinção e que essa distinção seja justificada de algum modo. O decisionismo é uma resposta para essa pergunta na forma de um sujeito que decide e que, exatamente por ser excecional, justifica a distinção” (BENJAMIN, Cássio Corrêa. O que é uma constituição? Decisionismo como estrutura em Carl Schmitt. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 111, 9 jun. 2017, p. 223). 419 AGAMBEN, Giorgio, op. cit, p. 22-23. 420 PRIETO, Evaristo. Poder, soberania e exceção: uma leitura de Carl Schmitt. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 105, jul./dez. 2012. 421 PINTO, Emerson de Lima, op. cit, p. 38. 422 Idem.

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do Soberano, Schmitt não aceitava a ideia de se atribuir a guarda da Constituição ao Poder

Judiciário, já que tal órgão deveria ser independente e parcialmente neutro423. Luiz Henrique Urquhart Cademartori e Francisco Carlos Duarte esclarecem o porquê da rejeição de Schmitt em aceitar a ideia de um tribunal composto por juízes como defensores da Constituição:

Schmitt vislumbrava na função de determinar o conteúdo de um princípio constitucional de maior carga axiológica, face às normas comuns do direito infraconstitucional, um caráter estritamente volitivo e, consequentemente, político. Por ser assim, não aceitava a ideia de um tribunal composto por juízes como guardiões da Constituição. Para melhor compreender essa opinião, considera-se que a ideia de representatividade política de Schmitt era eminentemente centrada na figura do soberano e alheia a uma concepção de sociedade pluralista, em que os conflitos institucionalizados de interesse social constituem o elemento dinamizador da democracia, tal como se apresentam os atuais modelos de Estado Democrático de Direito. Portanto, somente o presidente do Reich poderia decidir sobre o conteúdo da Constituição, já que este se legitimava pela sua escolha monocrática, o que também lhe garantia uma relativa independência ante as contingentes e inconstantes maiorias parlamentares.424 O que se percebe, portanto, é que para Schmitt não haveria espaço para o exercício da Justiça Constitucional enquanto defensora da ordem constitucional, até mesmo porque, segundo o autor se a Justiça fosse obrigada a rever todas as tarefas e decisões políticas para as quais a neutralidade e independência político-partidária fossem requeridas, o seu encargo seria demasiadamente pesado, além de se tratar de uma situação vedada pelo princípio democrático425. A teoria de Carl Schmitt, nesse sentido, acaba por excluir dos juízes a possibilidade de um exercício hermenêutico, livrando-lhes do peso ético relativo à tomada de decisão, pois o poder de definir a fundamentação normativa que designará o caminho a ser trilhado é exclusivo do Soberano (inicialmente o Presidente do Reich e, por fim, o Führer, juiz supremo da Alemanha)426. Eis a chave de compreensão para o decisionismo de matriz schmittiana: toda a decisão, interpretação e direção constitucional devem partir exclusivamente da figura do soberano, o qual, destaque-se, atuará com base num ato discricionário e de vontade. Poder-se-ia questionar, nesse sentido, qual seria a pertinência de se discutir a tese de Carl Schmitt no âmbito do presente trabalho, eis que conforme fora demonstrado, a Justiça

423 SCHMITT, Carl. 2006. 424 CADERMATORI, Luiz Henrique Urquhart; DUARTE, Francisco Carlos, op. cit, p. 12. 425 SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 426 MATOS, Andityas Soares de Moura; MILÃO, Diego Antonio Perini, op. cit.

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Constitucional para o indicado autor não deveria possuir o dever de guarda da Constituição, competência essa que, repita-se, estaria adstrita à figura do Soberano que decidiria pautado em discricionariedade. No entanto, a correlação que se faz é, inicialmente, pautada no próprio conceito de decisionismo, i.e, da decisão pautada num ato de vontade, discricionário, imbuído inclusive de fundamentações político-partidárias. Isso porque, como se viu, existem alguns autores que argumentam que em alguns casos em que fora provocado a se manifestar o STF estaria agindo não a partir de um exercício hermenêutico constitucionalmente adequado, mas por práticas discricionárias, subjetivistas, fundamentadas por vezes em critérios extrajurídicos. Ademais de tal fato, também é possível analisar a perspectiva de Schmitt quando se verifica que, na atualidade, o STF atua como tribunal constitucional que se posiciona no “cume da soberania”, vez que dispõe de competência para decidir em última instância e com caráter vinculante. Ou seja, o tribunal constitucional acaba se transformando em verdadeiro substituto do Poder Constituinte soberano427. E sob essa roupagem de que são os “intérpretes maiores”, os responsáveis pela guarda da Constituição e definição de seu sentido, os membros do STF aparentemente se utilizariam desse “escudo” argumentativo para legitimar suas decisões e decidir como querem. E nesse sentido, a Constituição acaba por se tornar jurisprudencial à medida que, independentemente de o STF ter proferido uma decisão incorreta, a sua orientação deverá ser obrigatoriamente seguida em outros casos concretos428. Como ressaltado por Isis Garcia Jesus, “dito de outra forma, para o STF, certo ou errado, o que importa é que ele já decidiu. Assim sua legitimidade passa pelo fato de que suas decisões serão aceitas, independentemente do conteúdo”429.

3.4 Pós-Positivismo Jurídico: Robert Alexy e sua Teoria da Argumentação como Critério de Interpretação e Aplicação do Direito

A estrutura decorrente do positivismo jurídico que reconhecia força normativa apenas às regras jurídicas expressamente disciplinadas, bem como apregoava a tese de separação/distinção entre direito e moral, mostrou-se insatisfatória no que tange ao problema

427 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n. 61, p. 5-24, 2004. 428 GARCIA, Isis Jesus. O STF é o intérprete maior: reflexões acerca do decisionismo. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 34, p. 122-135, 2010. 429 Ibidem, p. 128.

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central da ciência jurídica: o afastamento da discricionariedade judicial e a concepção de uma teoria da interpretação hábil à resolução do problema da indeterminação do direito. Com a pretensão de demonstrar a necessidade de superação da discricionariedade judicial e também que a relação entre o direito e a moral não é excludente, mas circular/complementar, surge no século XX a tendência denominada de pós-positivista, a qual promoveu variados estudos e reflexões no âmbito da teoria do direito para o fim de reconhecer normatividade não apenas às regras, mas também aos princípios jurídicos. Vale dizer, as normas seriam gênero do qual princípios e regras são espécie430.

Dentre os autores que defendem a visão pós-positivista431, destaca-se a teoria argumentativa esboçada por Robert Alexy, o qual traça um caminho/método a ser seguido para a interpretação e aplicação do direito, especialmente por meio do seu critério de resolução quando existente um conflito entre regras, ou uma colisão entre princípios que deve ser resolvida por meio do que denomina de “relação de precedência condicionada”432. Ao tratar sobre a estrutura normativa Alexy parte da estrutura dual entre regras e princípios, caracterizando-os como espécies do gênero norma. Contudo, embora reconheça normatividade e vinculatividade às duas categorias normativas, o autor traça uma importante diferenciação estrutural entre elas, cujo critério de definição será encontrado tanto na sua definição como na forma pela qual são resolvidos os conflitos (no caso das regras) ou as colisões (em se tratando de princípios). Para o jurista, as regras se constituem como mandamentos definitivos constituídos por normas que “ordenam, proíbem ou permitem algo definitivamente”433 e que possuem como técnica peculiar de aplicação a utilização da subsunção. Os princípios, por sua vez, são considerados como “mandamentos de otimização” que se revestem de caráter prima facie, vale dizer, preceituam possibilidades jurídicas que poderão ou não ser cumpridas em determinados casos. Compreender a visão de Alexy das regras como mandatos definitivos e dos princípios como mandamentos de otimização que podem ser aplicados ou não a depender das circunstâncias do caso concreto é essencial para se identificar qual o critério utilizado pelo autor para diferenciar os tipos de norma existentes. Isso porque, diferentemente de outros

430 GUNDIM, Wagner Wilson Deiró, 2015. 431 Ronald Dworkin é, ao lado de Alexy, um dos nomes de maior envergadura no âmbito do pós-positivismo, entretanto, por questões de recorte metodológico e em função das críticas que se pretende fazer à tópica argumentativa, o presente trabalho não enfrentará as teorias de Dworkin. 432 ALEXY, Robert, 2012. 433 ALEXY, Robert, 2012, p. 85.

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autores que se utilizam por exemplo exclusivamente do critério da generalidade434 para cindir regras e princípios, Alexy se utiliza de um critério que adota uma diferença gradual, mas também qualitativa: o método de solução de conflito ou colisão entre regras e princípios é que evidenciará como tais normas devem ser aplicadas. No caso da existência de um conflito entre duas ou mais regras, igualmente aplicáveis a um caso concreto, a resolução somente pode ser efetivada quando se introduz, numa das regras, uma cláusula de exceção que consiga pôr fim ao conflito, ou, alternativamente, quando uma dessas regras seja declarada como inválida435. O critério de distinção proposto pelo jurista alemão é exemplificado da seguinte forma: Um exemplo para um conflito entre regras que pode ser resolvido por meio da introdução de uma cláusula de exceção é aquele entre a proibição de sair da sala de aula antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio. Se o sinal ainda não tiver sido tocado, mas o alarme de incêndio tiver sido soado, essas regras conduzem a juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si. Esse conflito deve ser solucionado por meio da inclusão, na primeira regra, de uma cláusula de exceção para o caso do alarme de incêndio. Se esse tipo de solução não for possível, pelo menos uma das regras tem que ser declarada inválida e, com isso, extirpada do ordenamento jurídico.436

A aplicação do direito no caso das regras jurídicas, nesse sentido, deverá ser pautada sobre o campo da validade, ou seja, se for reconhecida a validade e aplicabilidade de uma determinada regra diante de um caso concreto, consequentemente, toda e qualquer outra regra que conflitar com o preceito tido como válido, será, obrigatoriamente, extirpado do ordenamento jurídico, já que o autor entende não ser possível que duas normas dotadas de preceitos contraditórios permaneçam válidas437. No caso dos princípios, considerados como mandamentos de otimização e que podem ser efetivados em variados graus de aplicação, quando se constatar a colisão – dois princípios igualmente aplicáveis ao mesmo caso concreto –, a aplicação do direito e resolução da

434 “Referido critério preceitua que os princípios são normas dotadas de grau de generalidade relativamente altos, e, em contrapartida, as regras são dotadas de grau de generalidade relativamente baixo” (Cf. GUNDIM, Wagner Wilson Deiró, 2015, p. 22). 435 Hugo Garcez Duarte perfilha do mesmo entendimento quando analisa que, para Alexy, as regras são aplicadas no critério do tudo ou nada, senão veja-se: “Alexy concebe princípios e regras como espécies de normas jurídicas, por mais que sejam distintos. Para ele, as regras são aplicáveis na maneira do ‘tudo ou nada’. Vale dizer, se uma regra é válida, deverá ser aplicada na sua totalidade. Em se tratando de um conflito entre regras, para que uma delas seja considerada válida, deveremos tomar alguns cuidados, pois se considerarmos determinada regra como válida a fim de aplica-la ao caso, como consequência, além da desconsideração da outra regra pela decisão, sua invalidade será declarada, a não ser que essa regra encontre-se em uma situação que excepcione a outra” (DUARTE, Hugo Garcez. Pós-positivismo e argumentação jurídica: reflexão à luz do conceito de direito. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, v. 41-1, 2013, p. 83). 436 ALEXY, Robert, 2012, p. 92. 437 GUNDIM, Wagner Wilson Deiró, 2015.

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questão deve seguir outro parâmetro. Isso porque a opção por um dos princípios deverá ser efetivada a partir de uma “relação de precedência condicionada”, i.e, a partir das circunstâncias factuais do caso concreto deverão ser fixadas as condições sob as quais um princípio prevalecerá sobre o outro438. Como a colisão entre princípios não ocorre no campo da validade, mas apenas da aplicação ao caso concreto em função de uma relação de precedência às circunstâncias factuais, a escolha de um dos princípios em detrimento do outro não caracterizará o necessário expurgo do princípio preterido do sistema, como esclarece o próprio Alexy:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm precedência.439

Para elucidar a estrutura das soluções de colisões e conduzir a uma concepção sobre o resultado do sopesamento de princípios como técnica de aplicação do direito, Alexy discorre sobre duas decisões prolatadas pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. O primeiro caso citado pelo autor (BVerfGE 51,324) discute sobre a incapacidade de um acusado em participar de uma audiência processual na seara criminal em função do risco de ele sofrer um derrame cerebral ou um infarto, haja vista a tensão inerente a esse tipo de procedimento. Na oportunidade, o Tribunal Constitucional alemão identificou a existência de uma tensão entre, de um lado, a obrigação de o Estado garantir a adequada persecução penal e, do outro, proteger os direitos constitucionalmente assegurados ao acusado, cujo resguardo também é de incumbência estatal440. Segundo Alexy, o caso indigitado representa claramente uma colisão de princípios – embora a terminologia utilizada tenha sido outra na decisão – em que competia ao Tribunal Constitucional, sopesando os interesses em conflito e a partir das circunstâncias do caso

438 Idem. 439 ALEXY, Robert, 2012, p. 93-94. 440 Idem.

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concreto, definir qual dos princípios colidentes deveria prevalecer441. A solução para a colisão, portanto, será efetivada a partir da fixação da “relação de precedência condicionada” entre os princípios. Para elucidar a fórmula que propõe e demonstrar a sua aplicação no caso acima relatado o autor assinala que:

[...] os princípios colidentes no caso da incapacidade para participar de audiência processual serão chamados de P1 (direito à vida e à integridade física) e P2 (operacionalidade do direito penal). Isoladamente considerados, P1 e P2 levariam a juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si: P1 levaria a “é proibido realizar a audiência”, e P2 é “obrigatória a realização da audiência”. Essa colisão pode ser resolvida por meio do estabelecimento de uma relação de precedência condicionada. Como símbolo para a realização de precedência deve ser usado o sinal P. Para as condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro será utilizado o sinal C.442

A partir dessa fórmula Alexy indica quatro possibilidades de decisão do caso para solucionar a colisão de princípios: (1) P1 P P2; (2) P2 P P1; (3) (P1 P P2) C; (4) (P2 P P1) C. Registre-se que as possibilidades contidas nos itens 1 e 2 representam relações de precedência abstratas ou absolutas, pois levam em consideração que um dos interesses estaria preestabelecido sobre o outro independentemente das circunstâncias do caso concreto, o que foi rechaçado pelo Tribunal Constitucional alemão. Restaram, dessa forma, apenas as possibilidades de uma relação de precedência condicionada ou concreta, como aquelas previstas pelos itens 3 e 4. E, para decidir em quais condições um princípio deveria prevalecer sobre o outro o Tribunal Constitucional alemão se utilizou da metáfora do peso para decidir que se a realização da audiência representa um risco à vida do acusado ou um possível dano à sua saúde, a continuação da audiência lesaria um direito fundamental expressamente previsto pela Constituição, o que, portanto, estaria vedado443. Para deixar ainda mais clara a sua “lei de colisão” Robert Alexy exemplifica outro caso julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão em que se verificou a colisão de princípios: o caso Lebach. Em síntese, a emissora de televisão ZDF tinha a intenção de exibir um documentário intitulado “O assassinato de soldados em Lebach” para narrar a história de um crime cometido

441 É importante registrar aqui que para Alexy “[...] antecipadamente nenhum princípio tem primazia sobre os demais, e que, o uso da ponderação torna possível vislumbrar-se o maior peso de um princípio com relação a outro em dado caso, sem que haja a invalidação do princípio tido como de peso menor” (DUARTE, Hugo Garcez, op. cit., p. 84). 442 ALEXY, Robert, 2012, p. 96-97. 443 ALEXY, Robert, 2012.

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perto da cidade de Lebach que ocasionou o assassinato de quatro soldados da guarda sentinela de um depósito de munições do Exército alemão, mortos enquanto dormiam, e também envolveu o roubo de armas para a prática de outros crimes444. Em data próxima para a exibição do documentário, um dos condenados como cúmplice pela prática do crime estava em vias de ser libertado e, por entender que a exibição do programa no qual o seu nome e imagem seriam veiculados violaria o seu direito constitucional à ressocialização, ajuizou uma ação objetivando a proibição cautelar de exibição do programa, sem, contudo, obter êxito, vez que tanto o Tribunal Estadual como o Tribunal Superior Estadual rejeitaram seu pedido. Inconformado com tais decisões o autor ajuizou uma reclamação constitucional perante o Tribunal Constitucional Federal alemão445. Como narra Wagner Gundim, ao analisar o indicado caso a Corte Constitucional desenvolveu sua decisão a partir de três etapas a saber:

[...] (i) na primeira, constatou-se uma situação de tensão entre a proteção da personalidade do condenado e a liberdade de informar por radiodifusão conferida à emissora, em que verificou-se qual interesse deveria ceder, sem que isso implicasse na declaração da invalidade de uma das normas; (ii) num segundo momento, após a constatação de que os princípios em colisão possuíam valores abstratos em mesmo nível, o referido Tribunal sustentou uma precedência geral da liberdade de informar no caso de uma “informação atual sobre atos criminosos”, como forma de precedência geral ou básica, que permitiria o estabelecimento de exceções; e (iii) por fim, o Tribunal decidiu pela proibição da veiculação da notícia, pois, após sopesamento dos princípios em colisão, constatou-se que no caso da “repetição do noticiário televisivo sobre um grave crime, não mais revestido de um interesse atual pela informação”, que “colocaria em risco a ressocialização do autor” (C2), a proteção da personalidade (P1) tem precedência sobre a liberdade de informar (P2) [...].446

Significa dizer que, nesse caso, para o Tribunal, uma notícia que não esteja revestida de um atual interesse pela informação e que ponha em risco a ressocialização do acusado, ainda que se trate de um crime grave, é proibida sob a ótica dos direitos fundamentais. É imperioso assinalar que embora Alexy defenda a necessidade de valoração da norma quando do momento da aplicação do direito, isso não implica na existência de um campo

444 Idem. 445 Idem. 446 GUNDIM, Wagner Wilson Deiró, 2015, p. 14.

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aberto para práticas ou manifestações de cunho subjetivista, vale dizer, exige-se que a prestação jurisdicional decorra da fundamentação racional dos juízos práticos em geral447.

É com isso que Alexy desenvolve uma teoria da argumentação jurídica448 de cunho procedimental constituída por um sistema de regras que tem por desiderato a correção dos enunciados normativos e a resolução da tensão existente entre facticidade e validade, ou, de modo mais específico, entre o princípio da segurança jurídica e a necessária correção das decisões449. Para fundamentar a sua teoria de argumentação jurídica Alexy parte da teoria do discurso geral defendendo que as regras de fundamentação, razão e transição são responsáveis pela racionalidade do discurso450-451. Entendem-se como de fundamentação as regras que funcionam como condição necessária de validade para qualquer comunicação linguística, e que estão sintetizadas nos princípios da sinceridade, coerência do emissor e comunidade que se utilizam da linguagem, bem como na proibição da contradição, que está relacionada às normas da lógica452. As regras da razão, por sua vez, são direcionadas à justificação dos enunciados normativos e derivam da regra geral de fundamentação sintetizada por Alexy da seguinte maneira: “todo falante deve, se lhe é pedido, fundamentar o que afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem negar uma fundamentação”453. Já as regras de transição de discurso são aquelas que permitem que qualquer falante, em qualquer momento, possa “passar para o discurso empírico (teórico), de análise da linguagem ou de teoria do discurso”454.

447 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da; PEREIRA, Daniel Queiroz. Argumentação jurídica, ponderação e representatividade argumentativa na obra de Robert Alexy. Revista Quaestio Iuris, v. 5, n. 1, p. 21-50, 2012. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/rqi.2012.9860. 448 Como destacam Luciana Gaspar Melquíades Duarte e Ecaroline Pessoa de Carvalho: “A Teoria da Argumentação Jurídica é, antes de tudo, um método que institui regras de interpretação para a interpretação de regras (as regras como componentes do ordenamento jurídico)” (Cf. DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades; CARVALHO, Ecaroline Pessoa de. Aplicabilidade da teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy nas decisões judiciais. Direitos Fundamentais & Justiça, a. 6, n. 21, out./dez, 2012, p. 130). 449 Idem. 450 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 451 Para maior aprofundamento sobre as regras que sustentam a racionalidade do discurso segundo Alexy, ver: CONSTANTINOV, Givanildo Nogueira. A teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy: análise das bases teórico-filosóficas e estudo de suas regras formadoras. FAS@JUS – e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1, 2016. 452 DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades; CARVALHO, Ecaroline Pessoa de. Aplicabilidade da teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy nas decisões judiciais. Direitos Fundamentais & Justiça, a. 6, n. 21, out./dez, 2012. 453 ALEXY, Robert, 2005, p. 194. 454 DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades; CARVALHO, Ecaroline Pessoa de, op. cit, p. 133.

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Deve-se ressaltar, contudo, que embora reconheça que as regras indigitadas possibilitem que o discurso seja dotado de racionalidade, elas não podem assegurar que existirá um acordo para cada questão analisada, ou mesmo que eventual consenso efetivado será definitivo e irrevogável. Justamente em função desses limites identificados no discurso prático é que se faz necessário inseri-lo em normas jurídicas, permitindo a sua transição para o discurso jurídico455. A partir disso Alexy defende que a incorporação do discurso prático geral pelo discurso jurídico exige a aplicabilidade dos elementos valorativos (reconhecendo a ligação entre o direito e a moral) e o exercício de juízos de valor, o que ressalta a preocupação de sua teoria argumentativa em apresentar correções das afirmações normativas456. Nesse tocante, a distinção entre os aspectos de justificação interna e justificação externa trazidos pelo autor como “atos componentes de um procedimento que busca o acerto, a correção, a racionalidade e, por tudo isso, a justiça e a segurança jurídica”457 é essencial para a sua teoria da argumentação no sentido de limitar arbitrariedades na criação da decisão judicial. Em apertada síntese, Alexy define a justificação interna como o momento inicial em que o aplicador do direito identifica as premissas normativas que serão utilizadas como fundamento da decisão judicial, e, embora seja uma atividade próxima ao silogismo, não se limita ao mero exercício da subsunção do fato à norma, vez que visa a fornecer o maior número de premissas universais possíveis458. As regras de justificação externa, por sua vez, têm como objetivo fundamentar as premissas que foram escolhidas e utilizadas na justificação interna, sendo composta por regras e formas de argumento agrupadas em seis grupos: a) interpretação; b) argumentação dogmática; c) uso de precedentes; d) argumentação geral prática; e) argumentação empírica; e f) formas especiais de argumentação jurídica459. Por fim, Alexy defende que o exercício interpretativo a partir dos ditames propostos pelas regras de justificação interna e externa também abrange a técnica da ponderação, a qual se apresenta como uma fórmula para solução de colisão de princípios, especialmente porque

455 Idem. 456 LEAL, Rogério Gesta. Aspectos constitutivos da teoria da argumentação jurídica: a contribuição de Robert Alexy. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 131-166, maio/ago. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rinc.v1i2.40513. 457 CONSTANTINOV, Givanildo Nogueira, op. cit., p. 133. 458 DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades; CARVALHO, Ecaroline Pessoa de, op. cit. 459 ALEXY, Robert, 2005.

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nessa tarefa “haverá considerável dispêndio de esforço interpretativo, sobretudo com o uso da teoria semântica”460. A proposta de uma teoria de argumentação jurídica defendida por Alexy, especialmente representada por sua lei de colisão fora incorporada pelo Brasil como verdadeira técnica de decisão jurídica aplicável aos denominados hard cases, i.e, aos casos em que a subsunção se mostrou insuficiente, se fazendo necessário recorrer à técnica da ponderação461. Essa técnica, segundo aduz Luís Roberto Barroso, é representada num processo constituído por pelo menos três etapas462: a) inicialmente, deve o intérprete buscar no sistema as possíveis normas aplicáveis ao caso concreto e agrupá-las a partir dos critérios de resolução que estejam sugerindo para o fim de identificar desde logo eventuais conflitos entre elas; b) posteriormente, o aplicador deve se debruçar sobre os aspectos factuais do caso concreto e se atentar aos reflexos que as normas poderão apontar quando aplicadas às situações reais; e

460 CONSTANTINOV, Givanildo Nogueira, op. cit., p. 135. 461 Ao discorrer sobre a técnica da ponderação de princípios constitucionais como critério resolutivo para os casos difíceis Luís Roberto Barroso destaca a ineficiência da subsunção para lidar com a colisão de princípios ou direitos fundamentais: “[...] durante muito tempo a subsunção foi a única fórmula para compreender a aplicação do direito, a saber: premissa maior – a norma – incidindo sobre a premissa menor – os fatos – e produzindo como conseqüência a aplicação do conteúdo da norma ao caso concreto. Como já se viu, essa espécie de raciocínio continua a ser fundamental para a dinâmica do direito. Mais recentemente, porém, a dogmática jurídica deu-se conta de que a subsunção tem limites, não sendo por si só suficiente para lidar com situações que, em decorrência da expansão dos princípios, são cada vez mais freqüentes. Não é difícil demonstrar e ilustrar o argumento. Imagine-se uma hipótese em que mais de uma norma possa incidir sobre o mesmo conjunto de fatos – várias premissas maiores, portanto, para apenas uma premissa menor –, como no caso aqui em exame da oposição entre liberdade de imprensa e de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à imagem, à intimidade e à vida privada, de outro. Como se constata singelamente. as normas envolvidas tutelam valores distintos e apontam soluções diversas e contraditórias para a questão. Na sua lógica unidirecional (premissa maior – premissa menor), a solução subsuntiva para esse problema somente poderia trabalhar com uma das normas, o que importaria na escolha de uma única premissa maior, descartando-se as demais. Tal fórmula, todavia, não seria constitucionalmente adequada: como já se sublinhou, o princípio da unidade da Constituição não admite que o intérprete simplesmente opte por uma norma e despreze outra também aplicável em tese, como se houvesse hierarquia entre elas. Como conseqüência, a interpretação constitucional viu-se na contingência de desenvolver técnicas capazes de lidar com o fato de que a Constituição é um documento dialético – que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes – e que princípios nela consagrados entram, freqüentemente, em rota de colisão. A dificuldade descrita já foi amplamente percebida pela doutrina; é pacífico que casos como esses não são resolvidos por uma subsunção simples. Será preciso um raciocínio de estrutura diversa, mais complexo, capaz de trabalhar multidirecionalmente, produzindo a regra concreta que vai reger a hipótese a partir de uma síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos. De alguma forma, cada um desses elementos deverá ser considerado na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto, de modo que, na solução final. Tal qual em um quadro bem pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, embora alguma(s) dela(s) venha(m) a se destacar sobre as demais. Esse é, de maneira geral, o objetivo daquilo que se convencionou denominar técnica da ponderação” (BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, n. 235, jan./mar. 2004, p. 8-9) 462 BARROSO, Luís Roberto, 2004.

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c) a terceira e última fase é o momento em que o processo interpretativo se torna singularizado permitindo a realização da ponderação. Aqui, deve ser procedida a uma análise conjunta das normas dissonantes e a repercussão do caso concreto para que então seja possível, a partir de uma consideração sobre o peso dos elementos em celeuma, indicar qual grupo normativo deve prevalecer. Vale ressaltar que todo esse processo intelectual deve ser guiado pelo princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. A ponderação se mostrou como técnica de decisão adotada pela Justiça Constitucional no Brasil em seus variados níveis, mas é no âmbito do STF que se constata a sua recorrente utilização para a resolução de casos envolvendo a colisão entre princípios ou direitos fundamentais. Inclusive, os acórdãos apresentados e discutidos durante o presente trabalho no capítulo 3 trazem, em alguns dos seus votos condutores, a utilização da máxima da ponderação e aplicação da ideia de proporcionalidade de matriz alexyana; o que justifica a necessidade de se analisar a técnica de argumentação jurídica proposta pelo autor. O esforço de Alexy em oferecer uma resposta adequada ao problema da indeterminação do direito, e, complementarmente, afastar os juízos discricionários verificados pela utilização das teses positivistas – como de matriz kelseniana e hartiana – é evidente na sua proposta de teoria da argumentação jurídica. O problema, entretanto, é que ao citar a necessidade de utilização da ponderação para a resolução dos casos difíceis, o autor acaba por entrar em contradição ao defender a necessidade de uma técnica que inevitavelmente apresenta uma carga subjetiva muito forte. Isso porque, mesmo aplicando uma argumentação racional caberá ao julgador, de acordo com sua discricionariedade, decidir qual princípio deve prevalecer sobre o outro diante das circunstâncias do caso concreto, mesmo que pautado em critérios solipsistas, o que não se pode aceitar. Lenio Streck tem ressaltado, inclusive, que a ponderação vem sendo utilizada como uma camuflagem para o ativismo/decisionismo judicial inerente ao positivismo jurídico463. Ao analisar essa colisão entre a proposta argumentativa de Alexy e a técnica da ponderação como instrumento de sua efetivação, Henrique Garbellini Carnio, Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira salientam que:

Não deixa de ser curioso que é justamente o contexto de descoberta que torna problemática toda estrutura da ponderação na forma como desenvolve

463 STRECK, Lenio Luiz, 2014b.

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Alexy. Além do problema de ‘quem’ elege os princípios em conflito – o que por si só já aponta para um elemento discricional não tematizado pelo autor – podemos elencar também como uma questão problemática a seguinte pergunta: por que a saúde pública, que consta textualmente na Constituição, é um princípio e não uma regra? Por que a liberdade profissional, que consta textualmente na Constituição, é um princípio e não uma regra? Ou seja, o que faz um princípio ser um princípio? Fora do contexto justificador da ponderação – ressalta-se abstrato e artificial – não há como assegurar, com uma precisão mínima, o conceito de princípio proposto pela teoria da argumentação jurídica alexyana. Afinal, o simples fato de compor o texto constitucional faz com que um enunciado jurídico goze de caráter de princípio. Ou será a determinação da otimização que deve ser encarada como fator determinante para que um princípio se manifeste como um princípio. Evidentemente que esta última alternativa parece ser mais coerente com a teoria de Alexy. Todavia, ainda nestes termos, temos um problema na definição de otimização como característica específica dos princípios: a discricionariedade que emana da avaliação de até que ponto um princípio deve ser efetivado.464

No mesmo sentido é a crítica de Lenio Streck ao assinalar que para Alexy, os casos difíceis não podem ser resolvidos apenas pelo direito, mas também exigem necessariamente ser pautados por considerações de justiça, que, por sua vez, pertencem ao conjunto de razões morais. Significa dizer que, nos hard cases a moral deve prevalecer para a tomada de decisão, e estaria permitido àquele que aplica o direito buscar respostas a partir de argumentos de conveniência, costumes ou mesmo de justiça465. E essa escolha, destaque-se, não estaria orientada por nenhum cânone interpretativo objetivo, mas pela escolha do intérprete. Ademais, há uma diferença central entre a hermenêutica filosófica de matriz gadameriana (que será trabalhada no próximo capítulo) e a teoria da argumentação jurídica de Alexy, pois enquanto a primeira é pautada na superação do esquema sujeito-objeto e considera que os princípios “fecham” a interpretação e diminuem o espaço de discricionariedade do intérprete, a segunda adota um método pautado no esquema sujeito- objeto e considera que os princípios maximizam o campo interpretativo e, por consequência, convocam a subjetividade do intérprete para resolver o problema da indeterminação normativa. Por derradeiro e não menos importante, vale ressaltar que conforme constatado por Fausto Santos de Morais em tese de doutoramento a partir da qual analisa a aplicação do princípio da proporcionalidade como resultado da aplicação da ponderação pelo STF nos últimos dez anos, a conclusão a que se chegou é que, embora a jurisprudência da Corte faça

464 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 41. 465 STRECK, Lenio Luiz. Porque a discricionariedade é um grave problema para Dworkin e não o é para Alexy. Revista Direito e Práxis, v. 4, n. 7, p. 343-367, 2013. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2013.8350.

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constantes referências à sua utilização, não é fácil constatar quando um acórdão, de fato, enfrentou todas as fases da ponderação proposta por Alexy466. Ainda, segundo o autor, a lei de colisão traçada pelo jurista alemão e as premissas estabelecidas em sua teoria de argumentação jurídica raramente foram observadas quando do julgamento dos casos analisados, o que demonstraria o problema da fundamentação das decisões judiciais e reforçaria as “críticas quanto ao decisionismo do sopesamento quando desvinculado da responsabilidade argumentativa da apresentação de sua legitimidade (racional)”467.

466 MORAIS, Fausto Santos de. Hermenêutica e pretensão de correção: uma revisão crítica da aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. 2013. Tese (Doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2013. 467 Ibidem, p. 218.

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CAPÍTULO 4 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA GADAMERIANA: UM APORTE TEÓRICO

O caminho percorrido até aqui teve por objetivo traçar algumas premissas fundamentais para a tese que se propõe neste trabalho, as quais podem ser sintetizadas nos seguintes tópicos: a) o papel da Justiça Constitucional no âmbito das democracias contemporâneas é crucial, especialmente para fins de resguardo da ordem constitucional, fruto do Poder Constituinte originário. Nesse tocante, compreender a importância do múnus exercido no papel de interpretação e conformação da ordem constitucional e jurídica pelo Poder Judiciário, especialmente na figura do STF, é o ponto de partida para se pensar em mecanismos de aprimoramento da prestação jurisdicional no Brasil; b) o STF brasileiro não possui unidade institucional/decisória, o que acaba por contribuir para um cenário de proliferação de decisões judiciais questionáveis do ponto de vista jurídico-constitucional, i.e, existem fundadas dúvidas se o pronunciamento jurisdicional tem sido fruto de um exercício constitucional hermeneuticamente adequado, ou oriundo de um decisionismo judicial, cujos critérios são fruto de um “decido porque quero” ou “decido porque posso”; c) a maior parte dessas decisões estão fundamentadas em escolas clássicas do pensamento jurídico-filosófico que, em certa medida, acabam por permitir o aspecto da discricionariedade do aplicador do direito em função da indevida cisão entre os atos de compreensão, interpretação e aplicação do direito, bem como por apostar no esquema sujeito-objeto, desconsiderando o giro ontológico-linguístico que promoveu a mudança no parâmetro interpretativo. Soma-se a isso o fato de que algumas decisões prolatadas pelo STF, embora calcadas a partir de determinado marco teórico, não são acompanhadas das premissas epistemológicas que fundam a teoria, como por exemplo a utilização da técnica da ponderação e lei da colisão defendidas por Robert Alexy, sem que os requisitos estabelecidos para sua aplicação sejam seguidos.

A partir desse cenário é que o objetivo deste trabalho se desvela: apresentar um modo a partir do qual a interpretação judicial possa ser traduzida dentro de um parâmetro conforme ao modelo constitucional e democrático e esvaziada de subjetivismos, especialmente para que

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o STF possa assumir uma identidade como Tribunal Constitucional de fato, e não como “onze ilhas” dotadas de pretensa autossuficiência decisória.

Vale aqui o alerta de que não há o objetivo de se criar uma nova teoria da decisão468 calcada num método científico composto por fases – tarefa que se mostraria demasiadamente pretensiosa –, mas apresentar uma proposta de aprimoramento da atuação da Justiça Constitucional no Brasil a partir de uma mudança de mentalidade sobre o ato interpretativo, o que se fará por meio da Hermenêutica Filosófica de Hans-George Gadamer. Tenciona-se demonstrar que, diferentemente do que se costuma apregoar, o pensamento filosófico está atrelado ao pensamento jurídico, ambos com idêntico acesso à realidade, e que essa união permitirá um novo olhar sobre o processo interpretativo no Brasil469. Dito isso, é importante registrar que a obra “Verdade e Método”, de Hans-George Gadamer, publicada originariamente em 1960, foi responsável pela mudança dos horizontes da compreensão que se tinha sobre a hermenêutica no século XX, especialmente porque, ao atribuir uma conotação diferente daquela proposta por Heidegger470, adjetivou a hermenêutica

468 No caso do Brasil, alguns autores já apresentaram estudos com propostos de teorias da decisão: a) Márcio Pugliesi, que propõe um modelo de decisão a partir do construcionismo sistêmico, o qual acaba lidando com uma perspectiva pragmática e estratégia para a resolução dos conflitos por meio da teoria dos jogos. Nessa esfera, as decisões são tomadas a partir de uma situação de conflito, em que os competidores (sujeitos em contenda) poderão fazer escolhas racionais a partir de um cálculo de ganho e perda, o que pode ser aferido pela teoria do minimax (Cf. PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009); e b) Lenio Luiz Streck que, a partir da hermenêutica filosófica combinada com o princípio da integridade de Ronald Dworkin, propõe uma teoria da decisão judicial pautada num conjunto de princípios conformadores do agir concretizador da Constituição a saber: 1) preservação da autonomia do direito; 2) controle hermenêutico da interpretação constitucional; 3) efetivo respeito à integridade e coerência do direito; 4) dever fundamental de justificar as decisões ou de como motivação não é igual à justificação; e 5) o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada (Cf. STRECK, Lenio Luiz, 2014c). 469 Victor Gameiro Drummond critica essa cisão geralmente feita entre as óticas jurídica e filosófica, ressaltando que o Direito deve estar, obrigatoriamente, permeado por valores filosóficos e pela própria hermenêutica, o que acabará impactando diretamente na própria aplicação do direito. Nesse sentido, veja-se: “[...] Um julgador, porém, não pode decidir tendo em mente que sua decisão é isoladamente uma decisão pensada tecnicamente no hermético universo do Direito, pois o Direito está, nesses casos, permeado por valores filosóficos, e, principalmente, pela presença da hermenêutica e, é importante que se diga, uma nova hermenêutica. Nesse sentido, e considerando que a filosofia não somente deve fazer parte do mesmo quadro do Direito que é ‘pensado’, mas também do Direito que é ‘feito’, deve ser compreendido que uma interseção de muitos valores e a compreensão de elementos filosóficos serve para melhor definir e conduzir às decisões, visto que certos filósofos se prestam a essa trans-existência, ainda que não tenham tratado diretamente do universo das ciências jurídicas” (DRUMMOND, Victor Gameiro. Elementos para uma teoria da decisão: combatendo a hermenêutica romântica aplicada no Brasil como se fosse uma evolução interpretativa. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito [RECHTD], v. 6, n. 3, out./dez. 2014, p. 311). 470 A diferença é apontada por Ernildo Stein, dentre outros aspectos, em razão de: “Para Heidegger, a hermenêutica será, basicamente, um adjetivo cuja função é qualificar a fenomenologia e, em sentido mais amplo, a filosofia. Em Gadamer, ao contrário, o que importará é afirmar o substantivo hermenêutica na linha de sua tradição histórica, acrescentando-lhe o adjetivo filosófica. Desse modo, a hermenêutica filosófica se coloca mais numa linha husserliana, se lembrarmos o conceito de mundo vivido que se aproxima, inegavelmente, do conceito de historicidade da cultura, de Gadamer” (STEIN, Ernildo. Gadamer e a consumação da hermenêutica. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de verdade e método. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 14).

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como filosófica471 permitindo: a) a introdução de uma forma de compreensão diferente daquela própria das ciências do espírito; e b) a modificação do próprio conceito do que é a compreensão472. A hermenêutica filosófica gadameriana trabalha com a atribuição de sentidos por estar relacionada à totalidade do acesso humano ao mundo, vale dizer, a sua realização ocorre por meio da linguagem, e, mais especificamente, mediante o diálogo. A linguagem assumirá para Gadamer uma função de totalidade de mundo, i.e, ela será constituidora do saber e de como agimos no mundo473. O papel da linguagem na filosofia gadameriana é ressaltado por Lenio Streck quando afirma que:

Em Gadamer, o primado da linguagem é o sustentáculo de seu projeto hermenêutico. Esse lugar cimeiro assumido pela linguagem é o sinal para o desencadeamento do giro linguístico. Em sua principal obra, fala-nos de um acontecer da verdade no qual já sempre estamos embarcados pela tradição. Esse acontecer da verdade ocorre fenomenologicamente. Sua hermenêutica é filosófica, e não metódica. Hermenêutica será, assim, o ex-surgir da compreensão, a qual dependerá da facticidade e da historicidade do intérprete.474

Gadamer defende ainda que nenhum método científico pode se sobrepor à historicidade do intérprete (uma leitura mais adequada seria, portanto, que Gadamer contrapõe a verdade ao método475), e com isso segue a posição ontológica de Heidegger que transforma

471 Rodolfo Viana Pereira sublinha acertadamente que o termo hermenêutica filosófica aprimorado por Gadamer se desenvolve a partir da crítica que faz às denominadas tradicionais consciências estéticas e histórica, pois, segundo o autor deve ser considerada “equivocada qualquer pretensão de considerar a obra de arte uma realidade dissociada do observador, atingível em sua verdade estética pelo procedimento metódico, bem como de afirmar que o único conhecimento possível nessa relação é a da pura satisfação perceptiva das formas” (PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 22). Ainda, prossegue Rodolfo Viana, para Gadamer a obra de arte também não pode ser vista de forma isolada “eis que há uma rede de compreensão compartilhada entre seu horizonte de sentido (da obra) e o do observador. Desse modo, nós, observador e objeto observado, fazemos parte do mesmo mundo: comungamos a possibilidade de uma compreensão que se dá exatamente no encontro possível dos horizontes em comum” (Idem). Ao final, ressalta que para Gadamer a obra de arte nos proporciona a abertura de um mundo em que é possível enxergar a nós mesmos, razão pela qual o encontro com uma grande obra de arte representa o encontro com algo do qual pertencemos (Ibidem, p. 22-23). 472 STEIN, Ernildo, 2015. 473 STRECK, Lenio Luiz, 2014a. 474 Ibidem, p. 304. 475 Para Ernildo Stein, a intenção de Gadamer com o título é fazer uma provocação, pois a estrutura advinda das experiências da arte, história e linguagem produz um tipo de verdade que não se compatibilizada com o método, de modo que o correto seria interpretar a obra como Verdade contra o método (Cf. STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996). No mesmo sentido, Viviane Magalhães Pereira ressalta que para o autor o método não é o caminho adequado para a verdade de muitas experiências ao afirmar que: “[...] o filósofo Hans-George Gadamer quis dizer que o caminho para a verdade de muitas experiências, como aquela da arte ou da elaboração das próprias perguntas, não é aquele do método e do objeto.

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a filosofia em interpretação. Com isso, toda a significação de mundo é produzida pelo homem mediante a linguagem “que deve buscar exprimir a decisão do indivíduo por uma existência autêntica no dia a dia, o que significa que interpretar teria, sim, um significado existencial”476. Os estudos de Gadamer dialogam diretamente com as leituras de Husserl, de quem acompanhou o dever da consciência da descrição fenomenológica, Dilthey, de quem tomou a abrangência do horizonte histórico e Heidegger, para acompanhar a compenetração da fenomenologia com a historicidade477-478. Entender esse aporte histórico-filosófico adotado pelo autor é crucial para se compreender como se desenvolve a sua proposta de hermenêutica filosófica e, por consequência, o porquê de ela não se constituir como um método, mas como filosofia. E com isso é que a condição de “ser-no-mundo” (dasein) do intérprete vai determinar o sentido do texto, uma vez que ele (sentido) é dado por meio dele (intérprete) inserto na tradição, o que permite a compreensão desse sentido479. Por derradeiro, deve-se ter em mente que a hermenêutica filosófica proposta por Gadamer se constitui como uma proposta de crítica e superação do método efetivado pela sociedade técnico-científica que permitiu um cientificismo de caráter objetivista consolidado a partir do método de cisão entre teoria e prática em distintos campos do saber480. A proposta gadameriana é apresentar um paradigma universal que rompa com tais paradigmas, já que para o autor a hermenêutica não configura um método dogmático de interpretação, “mas um modo que organiza o ser humano na atribuição de sentidos para o mundo esclarecer a maneira como os homens conferem sentido à sua própria atividade”481. O caminho percorrido a seguir tem como objetivo dissecar o pensamento de matriz gadameriana a partir de seus elementos principais para demonstrar como a hermenêutica filosófica – que deve representar uma mudança de compreensão de mundo e atitude, e não

Foi em busca de outros caminhos que Gadamer trouxe para a Filosofia a sua obra Verdade e método (PEREIRA, Viviane Magalhães. Sobre a tese “ser que pode ser compreendido é linguagem”: hermenêutica como teoria filosófica. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 2015, p. 157 – grifos originais). 476 SOLON, Ari Marcelo. Hermenêutica jurídica radical. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 54. 477 MELLO, Cleyson de Moraes. A hermenêutica de Hans-George Gadamer. Revista Interdisciplinar de Direito, [S.I], v. 9, n. 1, dez. 2012. 478 Conforme anotam José Lucas de Omena Gusmão, Lana Lisiêr de Lima Palmeira e Walter Matias Lima o pensamento de Gadamer acaba por complementar a teoria ontológico-existencial de Heidegger ao apresentar a linguagem como um caminho fundamental na busca da compreensão (GUSMÃO, José Lucas de Omena; PEREIRA, Lana Lisiêr de Lima; LIMA, Walter Matias. A hermenêutica filosófica de Gadamer e sua contribuição para o cenário educacional. Filosofia e Educação, Campinas/SP, v. 10, n. 2, p. 379-405, maio/ago. 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/rfe.v10i2.8652454). 479 STRECK, Lenio Luiz, 2014a. 480 GADAMER, Hans-George. Reason in the Age of Science. Londres: Cambridge, 1981. 481 PINTO, Emerson de Lima, op. cit., p. 77.

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como método – pode funcionar como importante mecanismo de aprimoramento da atuação do STF.

4.1 O Giro Ontológico Linguístico: Guinada Interpretativa da Relação Sujeito x Objeto para Sujeito x Objeto x Sujeito

Para que seja possível compreender a importância da ruptura promovida por Gadamer com sua proposta de hermenêutica filosófica é imperioso compreender a significação do desvelamento de sentido concernente ao exercício da interpretação e aplicação do direito. Isso porque a forma como se compreende e se manifesta a “verdade” implica diretamente no exercício interpretativo, de modo que não reconhecer o avanço epistemológico atinente ao denominado “giro linguístico-pragmático” acaba por ensejar inadequadas interpretações ainda calcadas no já superado esquema sujeito-objeto482. A ausência de consciência de que houve a superação do esquema sujeito-objeto no século XX, notadamente a partir das contribuições da filosofia da linguagem, é que, segundo

Lenio Streck, tem sido uma das causas de crise da hermenêutica jurídica483. Ao se analisar a relação entre a linguagem e o direito, é possível se falar em três paradigmas que perpassaram a história do pensamento: a) a primeira, de caráter objetivista, foca na análise do ser pela compreensão da verdade enquanto definida pela estrutura das coisas; b) a segunda, analisa a verdade a partir do denominado sujeito-assujeitador, vale dizer, a partir do paradigma da subjetividade ou consciência daquele que interpreta; e c) uma terceira, que, mediante uma reviravolta pragmática, transforma o caráter meramente instrumental da linguagem para concebê-la como condição de possibilidade do próprio conhecimento484-485.

482 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit. 483 Nas palavras do autor: “A crise que atravessa a hermenêutica jurídica possui uma relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, própria do início do século XX. Veja-se que as várias tentativas de estabelecer regras ou cânones para o processo interpretativo a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete com a objetividade do texto, não resistiram às teses da viragem lingüístico-ontológica (Heidegger-Gadamer), superadoras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da desobjetificação provocada pelo circulo hermenêutico e pela diferença ontológica” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 52, jan./jun. 2008, p. 128-129). 484 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit. 485 David Barbosa Oliveira faz o mesmo recorte sobre os paradigmas mencionados ao consignar que: “Antes da virada linguística, as investigações filosóficas se davam sobre o sentido das próprias coisas ou na representação intelectual efetuada pela mente. Desde os primórdios da história da Filosofia, até então, nunca se havia dado crédito à linguagem que quedava acomodada a um papel secundário ou instrumental em detrimento da metafísica de teores clássico e moderno. Assim, a viragem linguística se posiciona contra a hegemonia de mais de dois

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No paradigma do ser, momento primevo da relação entre o direito e a linguagem, a ideia que predominava entre os filósofos gregos de maior influência era de que a estrutura do mundo real, das coisas, apresentava-se como condição de possibilidade do pensamento. Com exceção das especificidades advindas da linha teórica de cada pensador, havia a prevalência da tese que conectava o conceito da verdade à busca pela essência inalterável das coisas, vale dizer, do alcance permanente daquilo que é486. Costuma-se apontar que a primeira obra a abordar a relação entre a linguagem e o conhecimento, e que aborda o paradigma do ser encontra-se no escrito Crátilo, redigido por Platão em 388 a.C., o qual representa um tratado sobre a linguagem com uma conotação crítica. No escrito, além de Sócrates, existem dois outros personagens: Hermógenes, na condição de representante dos sofistas, e Crátilo, representante de Heráclito (pré-socrático que inicia o debate sobre a dualidade do ser e do pensar). A obra apresenta a contraposição dialética de duas teses sobre a semântica: a) o naturalismo, posição defendida por Crátilo de que as coisas são denominadas por natureza (o logos está contido na physis); e b) convencionalismo, posição adotada por Hermógenes no sentido de que ligar o nome às coisas é uma ação arbitrária e convencional, razão pela qual não há qualquer ligação das palavras com as coisas487. A obra assume uma especial relevância por evidenciar o enfrentamento de Platão à sofística. Isso porque, para os sofistas, a busca pela verdade não é uma prioridade, de modo que o discurso depende apenas da persuasão (retórica e argumentação), não sendo necessária qualquer ligação entre as palavras e as coisas (convencionalismo). A palavra era, para os sofistas, uma pura convenção que não prestava obediência às leis da natureza ou mesmo divinas, e, sendo uma invenção humana, poderia ser reinventada, o que permitiria por consequência o questionamento sobre as verdades preestabelecidas488. Para Platão, entretanto, a argumentação sofista seria inadmissível, à medida que a busca pela verdade489 é regrada pela essência das coisas, razão pela qual acreditava que “o

séculos que a Filosofia da consciência exerceu. Com ela a linguagem torna-se o centro das especulações filosóficas e esse paradigma repercute nos mais variados campos científicos, inclusive no Direito” (OLIVEIRA, David Barbosa. A reviravolta linguística na teoria do Direito: a filosofia da linguagem na determinação teórica de Kelsen, Ross e Hart. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 9, n. 2, jan./abr. 2017, p. 35). 486 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit. 487 STRECK, Lenio Luiz, 2014a. 488 Idem. 489 Como bem destacado por Rogério Santos dos Prazeres, José Moacir de Aquino e Heitor Romero Marques “O modelo dialético em que Platão expõe o debate acerca da realidade e a correspondência entre os enunciados no Crátilo inquieta pela busca da verdade. Por isso, ao se considerar a relação pensamento e linguagem, pode-se concluir uma epistemologia vinculada a esta relação, cujo intuito primário é trazer à tona a verdade. Trata-se de

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olho do espírito era capaz de captar a ordem objetiva, a verdadeira ordem das coisas, e essa ordem percebida era, por sua vez, a medida, a norma de retidão da linguagem”490. Embora se perceba aqui que Platão se situa numa posição intermediária entre o convencionalismo e o naturalismo, ele acredita que existe certa conexão natural entre o som e a palavra, razão pela qual considerará como justa a palavra que traz à coisa a apresentação491. Com isso, segundo ressaltam Fernando de Brito Alves e Guilherme Fonseca de Oliveira, Platão não reconhecerá que a linguagem possa atingir a verdadeira realidade, defendendo que o real só é alcançado em si mesmo, vale dizer, sem mediação linguística. A conclusão disso é que a linguagem será tratada como um mero instrumento:

Platão, na busca pelas essências e pela boca de Sócrates, diz: “convirá nomear as coisas pelo modo natural de nomeá-las e serem nomeadas, e pelo meio adequado, não como imaginamos que devemos fazê-lo” (387, d.C.). Assim, mesmo que não recaia no naturalismo, Platão reconhece a existência de nomes que hão de convir para fazer aparecer as coisas, isto é, nomes aptos a permitir conhecer. Em suma, a tese fundamental de Platão é mostrar que a linguagem não atinge a verdadeira realidade (alétheia ton onton) e que o real só é conhecido verdadeiramente em si (aneu ton onomaton), ou seja, sem mediação linguística. Nessa perspectiva, a linguagem é mero instrumento.492

A tese defendida por Platão, portanto, é de que é possível conhecer as coisas ainda que desprovidas de seus nomes, pois a linguagem ostenta papel secundário em razão de não alcançar a verdadeira realidade. A função da linguagem para o autor assume um caráter meramente designativo: definir mediante sons o que fora intelectualmente percebido sem ela493. A função meramente complementar assumida pela linguagem é igualmente adotada por Aristóteles, discípulo de Platão, para quem o significado das coisas está em sua essência e não nas palavras. Lenio Streck analisa a leitura feita por Platão sobre o papel secundário e da linguagem e com acerto assinala que:

uma elucidação da análise do que é percebido e o seu significado, ‘o exprimido, cujo sentido só é acessível por um contato direto e que irradia a sua significação sem abandonar o temporal e o espacial’, contextualizados na conexão existente entre linguagem e conhecimento” (PRAZERES, Rogério Santos dos; AQUINO, José Moacir de; MARQUES, Heitor Romero. A busca pela verdade no Crátilo: naturalismo e convencionalismo na concepção platônica. Revista Eletrônica Espaço Teológico, v. 7, n. 11, jan./jun, 2013, p. 101). 490 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 19. 491 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit. 492 Ibidem, p. 139. 493 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, op. cit.

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[...] Há uma unidade objetiva que fundamenta a unidade de significação das palavras que recebe de Aristóteles o nome de essência ou aquilo que é. É a essência das coisas que confere às palavras a possibilidade de sentido. Desse modo, exemplificadamente, o que garante à palavra cão uma significação una é o que faz o cão ser cão. Numa palavra, a permanência da essência é pressuposta como fundamento da unidade do sentido: é porque as coisas têm uma essência que as palavras têm sentido.494 (grifos originais)

O que se percebe, com isso, é que tanto Platão como Aristóteles estão enviesados na relação do esquema sujeito-objeto, ou seja, a verdade está localizada no ser. A linguagem, por sua vez, possui um papel secundário, meramente complementar, e atua como instrumento de acesso à estrutura do real, i.e, “a linguagem não é o que é porque tem um sentido”495. Essa metodologia do pensamento filosófico, entretanto, passou a encontrar limitações pela forma de enfrentamento da linguagem e de sua insuficiência para lidar com as complexidades da filosofia, o que forçou uma necessária superação do esquema sujeito- objeto. Essa ruptura com a forma de atrelar o conceito da verdade às coisas em si ocorre na modernidade, numa concepção de homem que não se sujeita mais às estruturas das coisas. Nasce, aqui, a ideia de subjetividade, e na relação do esquema sujeito-objeto, o sujeito muda de posição para começar a “assujeitar” as coisas, ou seja, o sentido de mundo não será dado mais pela essência do objeto, mas pelo sujeito que conceberá o sentido de mundo de forma solipsista496. Como destaca Paulo Rudi Schneider o sujeito passou a ser considerado como o fundamento de qualquer discurso e, à medida que ele (sujeito) seja capaz de produzir conhecimento sobre o objetcum, terá condições de “transformá-lo, manipulá-lo, movimentá-lo segundo os seus interesses, desde que respeite as regularidades, as leis que sobre ele descobriu”497. O século XVII representa um marco importante à medida que o pensamento deixa de se mover a partir da ideia de semelhança, vale dizer, ela não se constitui mais como uma forma de saber, mas ao contrário, passa a ser considerada como a ocasião do erro. Com isso

494 STRECK, Lenio Luiz, 2014a, p. 184. 495 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit, p. 140. 496 STRECK, Lenio Luiz, 2013b. 497 SCHNEIDER, Paulo Rudi. Experiência e Linguagem. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de verdade e método. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 26.

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dá-se início a um período caracterizado por sentidos enganadores, em que figuras constringentes e severas de similitude são desconsideradas498. A crítica cartesiana, nesse tocante, torna-se imprescindível. Isso porque Descartes atribui à intuição o papel de fundamentação do conhecimento, o que permite a universalização da comparação como forma de pensamento racional. Assim, o autor exclui a semelhança como primeira e fundamental experiência do saber, e defende que inexiste conhecimento verdadeiro que não seja obtido pela intuição. A concepção da intuição como mecanismo legítimo de busca do conhecimento foi justificada por Descartes por meio do cogito499 ao aduzir que:

[...] vendo que os nossos sentidos às vezes nos enganam, estava disposto a supor que realmente não existia nada como a nós apresentado; e porque alguns homens erram nos raciocínios, e entram em paralogismos, até mesmo nos assuntos mais simples da geometria, eu, convencido que estava tão aberto a erro quanto qualquer outro, rejeitei como falso todos os raciocínios que até então tomara por demonstrações; e finalmente, quando considerei

498 Nas palavras do próprio Foucault: “No começo do século XVII, nesse período que, com razão ou não, se chamou barroco, o pensamento cessa de se mover no elemento da semelhança. A similitude não mais a forma do saber, mas antes a ocasião do erro, o perigo ao qual nos expomos quando não examinamos o lugar mal esclarecido das confusões. ‘É um hábito frequente’, diz Descartes nas primeiras linhas das Regulae, ‘quando se descobrem algumas semelhanças entre duas coisas, atribuir tanto a uma como à outra, mesmo sobre os pontos em que elas são na realidade diferentes, aquilo que se reconheceu verdadeiro para somente uma das duas’. A idade do semelhante está fechando-a sobre si mesma. Atrás dela só deixa jogos. Jogos cujos poderes de encanto crescem com esse parentesco novo da semelhança com a ilusão; por toda a parte se desenham as quimeras da similitude, mas sabe-se que são quimeras; é o tempo privilegiado do trompe-l’oeil, da ilusão cômica, do teatro que se desdobra e representa um teatro, do quiproquó, dos sonhos e visões; é o tempo dos sentidos enganadores; é o tempo em que as metáforas, as comparações e as alegorias definem espaço poético da linguagem. E por isso mesmo, o saber do século XVI deixa a lembrança deformada de um conhecimento misturado e sem regra, onde todas as coisas do mundo se podiam aproximar ao acaso das experiências, das tradições ou das credulidades. Doravante as belas figuras rigorosas e constringentes da similitude serão esquecidas. E se tornarão os signos que as marcavam por devaneios e encantos de um saber que ainda não se tornara razoável” (FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 70). 499 A importância e contribuições do cogito de Descartes são abordados com maior profundidade por Miguel Spinelli, para quem o conceito atendeu a várias necessidades: “Em primeiro lugar, ele veio como uma resposta à agonia da dúvida, em vista de um duplo benefício: (a) superar a precariedade do saber filosófico e as incertezas que tomaram conta da razão filosófica em seu tempo; (b) recuperar o significado e a atribuição de valores a começar, em sentido positivo (contra qualquer tipo de anulação), pela afirmação da existência humana acima de qualquer dúvida. Daí, em segundo lugar, porque o cogito (levando-se em conta o que consta em “b”) veio a ser uma retomada extrema do conhece-te a ti mesmo, e com um propósito bem definido: recuperar o indivíduo humano da tutela do divino, desconcentrá-lo das expectativas de transcendência em favor do presente e de si mesmo, e do gerenciamento de sua liberdade e de seu destino. Desse propósito, a obra de Descartes La recherche de la vérité... (A busca da verdade pela luz natural, que, toda pura, e sem recorrer ao socorro da Religião nem da Filosofia, determina as opiniões que um homem honesto deve ter sobre todas as coisas que podem ocupar o seu pensamento) constituiu-se em síntese. A obra por si só continha um objetivo específico: reabilitar a possibilidade humana de se debater com a verdade para além do foco restrito da Teologia e dos ditames das crenças adquiridas; não só com a verdade relativa à Ciência (atinente às coisas, referida ao outro, externa), mas, antes de tudo, com a verdade do sujeito cognoscente, relativo ao qual o cogito, para além da superação da dúvida, se ocupou: com o resgate do eu, de um eu objetivo, humano, disposto a se autorreconhecer como indivíduo humano. Não através de seus semelhantes, mirando-se no visage alheio, e, sim, prioritariamente, em si mesmo, em sua própria e inequívoca autenticidade, sem hipocrisia” (SPINELLI, Miguel. O cogito de Descartes enquanto retomada extrema do conhece-te a ti mesmo. Filosofia Unisinos, v. 10, n. 1, jan./abr. 2009, p. 39).

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que os mesmo pensamentos (apresentações), os quais experimentamos quando dormimos, enquanto naquele moimento nenhum deles é verdadeiro, supus que todos os objetos (apresentações) que alguma vez tinham entrado em minha mente acordado, não tiveram mais verdade que as ilusões de meus sonhos. Mas imediatamente observei que, ainda que desejasse pensar que tudo era falso, era absolutamente necessário que eu, que assim pensei, deveria ser algo; e como observei que esta verdade, eu penso, logo existo (cogito ergo sum), era tão certa e de tal evidência que nenhuma base para dúvida, ainda que extravagante, poderia ser alegada pelos céticos capazes de abalá-la, conclui que posso, sem ressalva, aceitar como o princípio primeiro da filosofia à qual estava a busca.500

Com isso, Descartes elevou a consciência como princípio norteador e legitimador da filosofia: o “eu penso” se torna fundamento primeiro do saber501 e, consequentemente, a consciência se transforma numa instância última que concebe sentido, momento em que passa a se falar de um sujeito “assujeitador”, que conforma os objetos ao sentido que sua consciência atribui502. Essa abertura promovida por Descartes será fundamental para permitir que Kant promova a sua virada copernicana e, consequentemente, reforce a ruptura da centralização do conhecimento e da verdade no objeto. Segundo Kant, todas as tentativas de se descobrir algo sobre os objetos a priori se mostraram fracassadas, razão pela qual seria mais apropriado que os objetos sejam regulados pelo nosso conhecimento, a partir da nossa faculdade intuitiva503-504. A metafísica de Kant, nesse sentido, acaba por levar a subjetividade ao topo do pensamento filosófico já que “a forma a priori da razão, isto é, a estrutura prévia existente no

500 DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 36-37. 501 Como ressalta Fernando Vieira Luiz para Descartes o sujeito, enquanto ser racional que pensa, é o lugar da verdade, e, consequentemente, o ponto de partida para qualquer conhecimento, o que acaba por inaugurar a visão do subjetivismo como reflexo da verdade (LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à Constituição de Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, op. cit.). 502 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit. 503 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. 504 No prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura Kant ressalta que: “Até hoje se assumiu que todo o nosso conhecimento teria de regular-se pelos objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a priori, por meio de conceitos, para assim alargar nosso conhecimento, fracassaram sob essa pressuposição. É preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos sairemos melhor, nas tarefas da metafísica, assumindo que os objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o que já se coaduna melhor com a possibilidade, aí visada, de um conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre os objetos antes que nos sejam dados. Isso guarda uma semelhança com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, não conseguindo avançar muito na explicação dos movimentos celestes sob suposição de que toda a multidão de estrelas giraria em torno do espectador, verificou se não daria mais certo fazer girar o espectador e, do outro lado, deixar as estrelas em repouso. Pode-se agora, na metafísica, tentar algo similar no que diz respeito à intuição dos objetos. Se a intuição tivesse de regular-se pela constituição dos objetos, eu não vejo como se poderia saber algo sobre ela a priori; se, no entanto, o objeto (Gegenstand) (como objeto (Object) dos sentidos) regular-se pela constituição de nossa faculdade intuitiva, então eu posso perfeitamente me representar essa possiblidade” (KANT, Immanuel, op. cit., p. 29-30).

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sujeito, transforma em objeto quaisquer dados ao homem, de sorte que o próprio sujeito cria o seu objeto num processo de objetificação do mundo [...]”505. Em outras palavras: o sujeito não é mais orientado pelo objeto, mas o objeto é que passa a ser constituído, modelado e orientado pela perspectiva do sujeito. Essa visão iluminista do sujeito “assujeitador” passou a influenciar o conhecimento, inclusive no âmbito do direito, trazendo uma nova perspectiva na busca da verdade que privilegiava práticas solipsistas, calcadas numa estrutura de interpretação de mundo a partir de um aspecto claramente subjetivo: um “eu penso” definidor do sentido das coisas como elas devem ser. No início do século XX, contudo, as variadas tentativas de se estabelecer cânones interpretativos a partir da dicotomia objetividade x subjetividade, ou mesmo a de conjugar o aspecto objetivo do texto com a subjetividade do intérprete, não suportaram as teses da virada linguístico-ontológica, “superadoras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da desobjetificação provocada pelo círculo hermenêutico e pela diferença ontológica”506. A primeira ruptura com a “filosofia da consciência” se dá com o surgimento de um grupo de pensadores que constituíram um movimento filosófico intitulado Neopositivismo Lógico cuja atuação promoveu o deslocamento da linguagem para o epicentro das questões epistemológicas. Dentre os inumerados pensadores que participaram dos trabalhos desenvolvidos pelo também denominado Círculo de Viena destacam-se Hans Hahn, Rudolf

Carnap, Moritz Schlick, dentre outros507. Há, também, a contribuição essencial de outro autor que, embora não integrasse o Círculo de Viena, teve forte impacto na nova corrente de pensamento que se inaugurou, notadamente por meio do seu “Tractatus logico- philosophicus”, qual seja: Ludwig Wittgenstein508. Essa nova tendência epistemológica trazida pelo Neopositivismo Lógico trouxe algumas modificações importantes: a) redução da filosofia à epistemologia e dessa à semiótica509, essa compreendida como teoria geral dos signos que contempla todo e qualquer sistema comunicativo; e b) atribuiu à linguagem o caráter de instrumento por excelência do

505 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit., p. 141. 506 STRECK, Lenio Luiz, 2008, p. 128-129. 507 ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit. 508 Idem. 509 A semiótica tem sido, inclusive, utilizada na atualidade como proposta de interpretação do fenômeno jurídico, na medida em que, sendo possível considerar o direito como um sistema de linguagem artificialmente elaborado, os fenômenos jurídicos podem ser analisados na condição de fenômenos semióticos. Nesse sentido, ver: ARAUJO, Clarice Von Oertzen. Semiótica do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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saber científico, ou seja, o controle dos conhecimentos produzidos pela linguagem será por ela própria efetivado510. Por meio desse primeiro giro linguístico, contrariamente ao modelo da filosofia da consciência, a busca pela verdade começa a ser perquirida em bases dotadas de maior intersubjetividade, a partir de um movimento que, segundo Paulo de Barros Carvalho, apresentava alguns pontos fulcrais:

O manifesto apresentava uma concepção científica do mundo, como algo a ser conquistado mediante uma série de medidas, entre elas: (a) colocar a linguagem do saber contemporâneo sob rigorosas bases intersubjetivas; (b) assumir uma orientação absolutamente humanista, reafirmando o velho princípio dos sofistas: o homem é a medida de todas as coisas; e (c) deixar assentado que tanto a Teoria quanto a Filosofia não poderiam ostentar foros de genuína validade cognoscitiva, formando, no fundo, um aglomerado de pseudoproblemas. De tal concepção emergem dois atributos essenciais: (1º) todo o conhecimento fica circunscrito ao domínio do conhecimento empírico; e (2º) a reivindicação do método e da análise lógica da linguagem, como instrumento sistemático da reflexão filosófica. Este último aspecto dá originalidade ao movimento, em contraste com a tradição psicologizante da própria gnosiologia empírico-positiva.511

O giro linguístico-pragmático, assim, surge como instrumento de superação do esquema sujeito-objeto para extirpar a indevida cisão entre teoria e prática antes propagada pela filosofia do ser vinculada ao paradigma da consciência. Nessa “perspectiva do ‘giro’, a linguagem consiste na substância do pensamento, condição de possibilidade para o pensar”512. O giro passa a ter uma forma mais consistente a partir do livro “Investigações

Filosóficas”, publicado no que se denomina de segunda fase de Wittgenstein513, e de Sein und

Zeit (Ser e Tempo514) de Martin Heidegger515.

510 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2009. 511 CARVALHO, Paulo de Barros, op cit., p. 23. 512 ARRABAL, Alejandro Knaesel; ENGELMANN, Wilson; KUCZKOWSKI, Sidnei. Filosofia da linguagem e giro linguístico: implicações para os direitos autorais. Scientia Iuris, Londrina, v. 20, n. 2, jul. 2016, p. 87. DOI: https://doi.org/10.5433/2178-8189.2016v20n2p81. 513 “A linha divisória que tem sido traçada entre a primeira e segunda fase do pensamento de Wittgenstein, de maneira geral, está associada à crítica de Wittgenstein às teorias filosóficas precedentes, especialmente por aquela desenvolvida por ele mesmo em seu Tratactus logicus-philosophicus, primeiramente editado em 1921. O Tractatus faz parte de uma tradição filosófica de longa data, caracterizada pela ideia de que o mundo impõe uma estrutura fixa a nosso pensamento. Essa postura filosófica tradicional se coaduna com aquilo que Baker e Hacker, em seu detalhado comentário sobre as Investigações filosóficas, descrevem como a concepção agostiniana de linguagem, que, segundo os autores, Wittgenstein considera uma concepção primitiva da linguagem. Em linhas gerais, essa concepção entende que a essência da linguagem é dar nome às coisas e que o significado das palavras é a fundação primeira da linguagem. O funcionamento da linguagem é entendido como uma correspondência unívoca entre ela e uma realidade anterior, cuja estrutura determina, de antemão, todos os usos linguísticos possíveis. Essa visão simples de linguagem é tida como natural, porque encontra sustentação em jogos de linguagem bastante comuns em nosso dia-a-dia, precisamente porque envolvem a nomeação de objetos, o apontamento e a descrição de situações. Comentadores de Wittgenstein consideram que é essa

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A partir das ideias do segundo Wittgenstein, por meio do que denomina de jogos de linguagem516, a linguagem deixa de ser considerada apenas como um simples mecanismo de instrumentalização do conhecimento e se torna verdadeira condição de possibilidade para a construção do conhecimento; o que lança por terra a teoria objetivista que reconhecia uma função meramente designativa da linguagem517. O que Wittgenstein pretende ressaltar por meio da teoria dos jogos de linguagem é que existem regras que definem o sentido das expressões linguísticas, nos diferentes contextos, e que dessa forma a significação somente será alcançada quando estiver adaptada ao modo em que a linguagem é utilizada em dada coletividade518. Dessa forma, o conhecimento do mundo pela linguagem somente será possível quando se aprender a jogar em atenção às regras estabelecidas no meio social. A linguagem se apresenta, assim, como o modo pelo qual o mundo é conhecido, conforme ressalta Manfredo Araújo de Oliveira:

No jogo [de linguagem], o homem age, mas não simplesmente como indivíduo isolado de acordo com seu próprio arbítrio, e sim de acordo com regras e normas que ele juntamente com outros indivíduos estabeleceu. Essas regras constituem um quadro de referência intersubjetivo que, por um lado, determina as fronteiras das ações possíveis, estabelecidas comunitariamente, e, por outro, deixa ao indivíduo, dentro dele, o espaço para as iniciativas.519

concepção agostiniana de linguagem que está na base das várias confusões gramaticais discutidas por Wittgenstein em sua filosofia tardia” (FRANCO, Joana Bortolini; VIOTTI, Evani. A linguística cognitiva e a filosofia de Wittgenstein. Veredas – Revista de Estudos Linguísticos, v. 17, n. 2, 2013, p. 200). 514 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas/SP: Editora da UNICAMP; Petrópolis/RJ: Vozes, 2012. 515 Embora os autores trabalhem com campos filosóficos distintos, ambos contribuem para repensar o paradigma do conhecimento, sendo Wittgenstein responsável pela incursão da pragmática analítica no campo da linguagem por meio dos jogos de linguagem, e Heidegger pela realocação do sentido do ser a partir da pragmática existencial (Cf. ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit.). 516 Os jogos de linguagem são assim definidos por Wittgenstein: “7. Na prática do uso da linguagem (2), uma parte grita as palavras, a outra age de acordo com elas; mas na instrução da linguagem vamos encontrar este processo: o aprendiz dá nome aos objetos. Isto é, ele diz a palavra quando o professor aponta para a pedra. De fato, vai-se encontrar aqui um exercício ainda mais fácil: o aluno repete as palavras que o professor pronuncia – ambos, processos linguísticos semelhantes. Podemos imaginar também que todo o processo de uso de palavras em (2) seja um dos jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Quero chamar esses jogos de ‘jogos de linguagem’ e falar de uma linguagem primitiva às vezes como de um jogo de linguagem. E poder-se-ia chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e de repetição da palavra pronunciada. Pense em certo uso que se faz das palavras em brincadeiras de roda. Chamarei também de ‘jogo de linguagem’ também a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução Marcos G. Montagnolli. 9. ed. Petrópolis/RJ: Editora Universitária São Francisco, 2014, p. 18-19). 517 STRECK, Lenio Luiz, 2014a. 518 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, op. cit. 519 Ibidem, p. 143-144.

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Ainda e não menos importante, a proposta de Wittgenstein somente pode ser compreendida completamente quando se percebe que para o autor não há uma linguagem privada, vale dizer, só há linguagem que assuma um caráter intersubjetivo, oriundo da interação social e fundamentado pela coletividade520. Heidegger, por sua vez, propõe a superação do esquema sujeito-objeto por meio de uma ontologia fundamental521, isto é, um estudo sobre o ser dos entes. A partir dessa ontologia522, Heidegger apresenta três subprojetos a saber que se coadunam por meio da questão do ser: a) a extinção da história da ontologia; b) a progressão de uma hermenêutica da facticidade; e c) a analítica existencial523. Embora a conceituação do ser seja um tema abordado por Heidegger, esse não é propriamente o seu objeto de estudo, mas sim a identificação do sentido do ser a cada momento, já que a temporalidade524 é quem permite o projeto do Dasein como questionador do ser, o que justifica a nomenclatura da obra Ser e tempo525. Do mesmo modo, a ideia de

520 OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de; CAMACHO, Matheus Gomes. Reviravolta Linguístico-Pragmática e esboços de uma nova hermenêutica jurídica. Revista de Argumentação e Hermenêutica Jurídica, , v. 1, n. 2, p. 228-243, jul./dez. 2015. 521 Ernildo Stein esclarece a significação da ontologia fundamental em Heidegger ao prelecionar que: “Heidegger declarou o seguinte: somos seres humanos, temos uma relação com as coisas que não é puramente com os entes, mas é também com o ser. Temos, ainda, uma relação conosco que não é simplesmente de nós mesmos, enquanto entes, mas enquanto somos. Assim, enquanto compreendemos, compreendemos o ser, enquanto compreendemos o ser, compreendemos a nós mesmos. Temos duas compreensões e uma depende da outra. Desse fato pôde-se constituir aquilo que Heidegger vai chamar ontologia fundamental, quer dizer, pôde-se encontrar um fundamento que, ao mesmo tempo que ele nos funda, nós o fundamos (STEIN, Ernildo. Pensar e errar: um ajuste com Heidegger. Ijuí: Editora Unijuí, 2011, p. 88). 522 “Com o que denominou ontologia fundamental, fundamento epistemológico da analítica existencial, Heidegger se liberta das amarras das teorias da razão, provocando uma guinada quanto à perspectiva da compreensão e da apreensão do conhecimento. Através de um mecanismo de circularidade hermenêutica, a compreensão passa a se dar como um processo prévio; como condição prévia surgida da articulação do mundo não mais como um estabelecimento do eu transcendental moderno, mas como um sistema do ser. E neste sistema, o estar-aí se encontra desde sempre jogado em sua condição existencial-mundana. Por essa nova investida hermenêutica, que trata da ‘compreensão da compreensão’, e que procede a revisão e releitura da relação sujeito-objeto, desaparecem do campo da interpretação os ideais subjetivos de transparência, espelhamento, reflexão, introspecção, próprios do universo racional-subjetivo” (MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar. O giro linguístico contemporâneo e os contributos de Heidegger e Gadamer: o renascer da hermenêutica jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 2, n. 3, 3º quadrimestre 2017, p. 548-549). 523 CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009. 524 Toda e qualquer compreensão do ser deve ser sempre ter como parâmetro de interpretação o tempo, conforme indicam Fernando de Brito Alves e Guilherme Fonseca de Oliveira a partir de Giacoia Junior: “Não obstante, para Heidegger o objetivo consiste em interpretar o tempo como possível horizonte para toda e qualquer compreensão do Ser. Consiste num retornar a pergunta pelo sentido do Ser de forma consciente da relevância da própria pergunta, tendo o tempo como possível limiar de compreensão e resposta” (ALVES, Fernando de Brito; OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de, op. cit., p. 147). 525 KRUG, Luíza Kitzmann. Hermenêutica filosófica e direito: contribuições teóricas. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, Porto Alegre, v. 8, n. 1, ago. 2013. DOI: https://doi.org/10.22456/2317-8558.40433.

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ente está imbricada à noção de ser, o que permite afirmar que “o ser tem uma relação de caráter indissociável com o ente, como se aquele estivesse neste contido”526. A noção de Dasein – o ser-aí no mundo que é carregado de experiências concretas, relações com outros entes, ocupações e interações com outros entes – adotadas pelo autor se mostrou um passo essencial para a visão sobre o conhecimento e das coisas como ela são. Isso porque, a partir de Heidegger, ao não se falar mais em sujeito, consequentemente não é possível caracterizar os fenômenos como objetos, assim, será considerado como fenômeno aquilo que ostenta um modo de ser que se apresente de forma desvinculada das nossas determinações527. Com isso, Heidegger propõe a máxima da fenomenologia de se voltar à análise das coisas mesmas (zu den Sachen selbst)528. A temporalidade, em Heidegger, é essencial para se compreender o Dasein, pois o homem é tido como ser histórico que, quando pergunta sobre algo, já o faz a partir de uma tradição cultural específica. Assim, o Dasein representa a compreensão de si enquanto ser da temporalidade e tudo o que se compreende é também linguisticamente articulado e comunicável, razão pela qual o lugar no qual o Ser reside é a linguagem529-530. A linguagem, assim, deixa de ser mera transmissora das imanências humanas para se mostrar como verdadeira condição de expressão do sentido, uma vez que:

[...] Com a linguagem, que respalda o existencial como abertura à compreensão, rompe-se com a verdade subjetiva para se reconhecer uma verdade inter-subjetiva, “que pertence à constituição fundamental da presença”. Superam, assim, as verdades absolutas em nome de verdades relativas. O sentido deixa de ser elemento de reprodução interpretativa para se transformar naquilo que dá sustentação ao compreender. Isto é, compreensão que sempre antecipa qualquer interpretação e que se dá como abertura lingüística a partir de um projeto. Neste, o ente se abre em sua possibilidade, e provoca o desvelar prévio, o porvir, a transparência num contexto intersubjetivo de ser-com, viver-com. O compreender, assim, torna- se modo de existir na relação sujeito-sujeito.531

526 KRUG, Luíza Kitzmann, op. cit., p. 361-362. 527 SIQUEIRA, Ana Carla de Abreu. A crítica de Heidegger ao esquema sujeito-objeto. Ekstasis: Revista de Hermenêutica e Fenomenologia, v. 6, n. 2, 2017. DOI: https://doi.org/10.12957/ek.2017.30721. 528 Idem. 529 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, op. cit. 530 Manfredo Araújo de Oliveira destaca que: “Compete á linguagem revelar o ente em sua verdade e exprimi-la na palavra. No entanto, o que se revela nunca é só um ente: no dizer o ente transcendemos o ente na direção do ser. Então, é por meio da palavra que se realiza no evento do desvelamento. Assim, é na força da palavra que o homem, ser histórico, vem ao ser. Heidegger chama esse evento de relação hermenêutica entre o homem e o ser. A consideração dessa problemática significa, em Heidegger, o pôr o alicerce para a construção de um novo paradigma: a ontologia hermenêutica é um retorno ao evento de desvelamento que é também, ao mesmo tempo, ocultamento (essa é a aporia originária do ser enquanto evento de desvelamento) (Entbergen) e ocultamento (Verbergen) enquanto temporalização do ser” (OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, op. cit., p. 213). 531 MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar, op. cit., p. 523.

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A reviravolta linguística impulsionada por Heidegger no sentido de deslocar o compreender da relação sujeito-objeto para sujeito-sujeito, influenciou diretamente variados estudiosos, como o próprio Wittgenstein em sua segunda fase, mas há um destaque especial para o seu discípulo, Hans-George Gadamer, que, notadamente por meio do seu “Verdade e

Método”532, fincou os fundamentos para o nascimento da hermenêutica filosófica e reforçou a nova forma de compreensão da verdade pela relação sujeito-sujeito.

Reforçando aquilo que seu mestre defendeu533, o giro hermenêutico proposto por Gadamer defenderá que a hermenêutica jurídica não poderá mais ser compreendida como um conjunto de técnicas ou métodos para o alcance da verdade ou mesmo das certezas jurídicas, de modo que não sendo ela (hermenêutica) um método, mas filosofia, a linguagem não poderá mais ser entendida como terceira coisa interposta entre um sujeito e um objeto. A linguagem, assume, nesse sentido, condição de possibilidade e de constituição de sentidos e de mundo. É por isso que a partir de Gadamer, como ressalta bem ressaltado por Lenio Streck: “O mundo dizível é o mundo linguisticizado. Daí a noção de compreensão enquanto condição de possibilidade da interpretação. No compreendido está o compreendedor. Cada interpretação é uma nova interpretação”534. A partir do giro linguístico-linguístico e com a visão de que a linguagem está no centro do conhecimento e da verdade, Gadamer irá propor a sua hermenêutica filosófica e, consequentemente, uma nova perspectiva sobre o ato de compreensão, interpretação e aplicação do direito. Para se chegar a essa nova proposta que, repita-se, não constitui um método, mas um filosofar, é preciso compreender importantes aspectos da teoria desenvolvida pelo autor, tais como a importância da tradição, da história efeitual, bem como dos conceitos de pré-compreensão, compreensão e da fusão de horizontes. Esse é o caminho que se seguirá nos próximos tópicos.

532 GADAMER, Hans-George. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. trad. Flávio Paulo Meurer. 14 ed. Petrópolis/RJ: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014; e GADAMER, Hans-George. Verdade e Método II: complementos e índice. Trad. Ênio Paulo Giachini. 6. ed. Petrópolis/RJ: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011. 533 Embora Gadamer siga a filosofia da linguagem de Heidegger, é preciso registrar que ele, diferente do seu mestre, vinculou o tema da linguagem às questões humanas, razão pela qual não a concebe mais de forma prioritária como “morada do Ser” (como defendido por seu mestre), mas como “morada do homem” (Cf. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre Heidegger e Gadamer!. Nat. Hum. [on-line]. São Paulo, v. 14, n. 2, p. 14-36, 2012). 534 STRECK, Lenio Luiz, 2014a, p. 308.

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4.2 A Importância do Processo de Pré-Compreensão, da Tradição e do Círculo Hermenêutico em Gadamer

Ao discorrer inicialmente sobre os traços fundamentais de uma teoria hermenêutica Gadamer ressalta a importância de se compreender inicialmente como a hermenêutica faz jus à historicidade da compreensão e, mais especificamente, como os preconceitos são importantes para o processo interpretativo. Inicialmente, após creditar a Heidegger a descoberta sobre a estrutura prévia da compreensão535, Gadamer destaca que toda interpretação adequada deve estar protegidas de arbitrariedades, tanto de intuições repentinas como da estreiteza de hábitos de pensamento imperceptíveis, o que permitirá, por consequência, um direcionamento do olhar para “as coisas mesmas” (o que para os filólogos significam textos dotados de sentido que, por sua vez, tratam sobre coisas)536. Essa postura de pautar-se pela própria coisa, destaca o autor, não deve ter vista como uma decisão heroica, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente a tarefa primeira, constante e última, vale dizer, “quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar”537. Com isso quer Gadamer dizer que a compreensão se constitui como constante tarefa de reformulação a partir de determinadas perspectivas do intérprete. Essas perspectivas, por sua vez, que se constituem como opiniões prévias antecipadoras de sentido, precisam ser reprojetadas até que seja estabelecida univocamente a unidade de sentido538. A tarefa permanente da compreensão, dessa forma, será a elaboração de projetos corretos e conformados às coisas. É importante aqui ressaltar que a noção de pré-compreensão antecipadora de sentido trabalhada por Gadamer não admite arbitrariedades já que, segundo o autor:

A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso, faz sendo que o intérprete não se dirija diretamente aos textos a partir da opinião prévia que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez.539

535 Como aponta Cleyson de Moraes Mello: “O círculo hermenêutico deve ser compreendido a partir dos estudos heideggerianos, ou seja, a estrutura circular da compreensão é dada a partir da temporalidade do ser-aí (Dasein). É o círculo hermenêutico em um sentido ontológico originário, através do qual a verdade se manifesta por meio do desvelamento do ser” (MELLO, Cleyson de Moraes, op. cit., p. 49). 536 GADAMER, Hans-George, 2014. 537 Ibidem, p. 356. 538 MELLO, Cleyson de Moraes, op. cit. 539 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 356.

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Significa dizer que, frente a qualquer texto, não é admitido que o intérprete introduza, direta e acriticamente, seus próprios hábitos extraídos de sua própria linguagem, pois o que deve fazer é buscar alcançar a compreensão do texto por meio do hábito e da linguagem epocal e do seu autor540. O problema, entretanto, é que do texto podem emergir mal-entendidos oriundos de uma possível diferença no uso da linguagem (o texto pode não fazer nenhum sentido ou não atender às nossas expectativas, como também restar preso ao círculo das próprias opiniões prévias), o que levanta o questionamento sobre como proteger o texto de tais mazelas. A resposta apresentada por Gadamer para resolver este problema estará centrada na linguagem, pois quando se ouve alguém ou se faz uma leitura não é necessário que as opiniões próprias e prévias sobre o conteúdo sejam descartadas. O que se exige é que o ouvinte esteja receptivo à opinião do outro ou mesmo para apreender a opinião do texto. Essa abertura tem por consequência reunir as opiniões próprias e do outro, ou no mínimo que nos coloquemos em certa aproximação com as opiniões alheias. Dessa forma, aquele que visa a compreender não pode estar entregue exclusivamente às suas opiniões arbitrárias e exclusivas, sem levar em consideração a opinião do próprio texto. Conforme ressaltado por Gadamer:

[...] Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.541

A importância de deixar que o texto se revele por si é importante para rechaçar qualquer possibilidade de mal-entendidos, ou seja, de um escoramento em opiniões prévias que possam levar a arbitrariedades542. Por isso é importante que o intérprete fundamente suas opiniões prévias em parâmetros de legitimidade (origem e validez). É por isso que, segundo Gadamer, uma compreensão orientada a partir de uma consciência metodológica não apenas realizará as suas antecipações, como também buscará

540 Idem. 541 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 358. 542 MELLO, Cleyson de Moraes, op. cit.

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efetivá-las de modo consciente, controlando-as, e, consequentemente, alcançando uma compreensão adequada a partir das coisas mesmas543. A compreensão, por sua vez, tem como ponto de partida os preconceitos do intérprete, que se constituem como pré-juízos, que, por sua vez, representam muito mais que meros juízos individuais, mas se apresentam verdadeiramente como a realidade histórica do ser544. Ademais, segundo Gadamer, apenas ao se reconhecer o caráter preconceituoso inerente à compreensão é que o problema hermenêutico mostrará a sua real agudeza. Com isso, o autor esclarece o significado de preconceito consignando que:

[...] Em si mesmo, “preconceito” (Vorurteil) quer dizer um juízo (Urteil) que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos determinantes segundo a coisa em questão. No procedimento da jurisprudência um preconceito é uma pré-decisão jurídica, antes de ser baixada a uma sentença definitiva.545

Vale aqui o alerta, como bem pondera Gadamer, que preconceito não significa necessariamente um falso juízo, pois ele pode ser valorado positiva ou negativamente. O caráter negativo está imbricado à época do Iluminismo (Aufklärung) e se constituiu como uma espécie de juízo não fundamentado, que consistiu basicamente em fundamentar o método como origem da autoridade e conferir validez somente ao conhecimento crivado pela razão546. O caráter positivo, e, consequentemente, a sua legitimidade, estará configurado quando esses (preconceitos) estejam assentados na experiência hermenêutica e na história, especialmente porque essa última “rege a compreensão como uma mediação, tendo em vista que o horizonte do presente não se forma sem que haja uma intermediação do horizonte do passado”547. Visando a defender a existência de preconceitos legítimos que se apresentam como condição sine qua non para a efetivação da compreensão, Gadamer combate o cientificismo da Alfklärung que condicionou a existência da autoridade à razão548, momento em que

543 GADAMER, Hans-George, 2014. 544 MOURA, Rafael Soares Duarte de; OLIVEIRA, Daniela Rezende de. Apontamentos acerca da pré- compreensão e da compreensão nas teorias hermenêuticas de Martin Heidegger e Hans-George Gadamer e suas implicações no ato de julgar. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, v. 4, n. 1, abr. 2011. 545 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 360. 546 SILVA, Almir Ferreira da; LOPES, Maria dos Santos Silva. Experiência hermenêutica em Gadamer: da reabilitação dos preconceitos ao conceito de experiência hermenêutica. PERI, v. 6, n. 1, p. 1-18, 2014. 547 BARBOSA, Magaly do Carmo. O conceito de história efeitual (Wirkungsgeschichte) em Hans-George Gadamer em paralelo com a historicidade do Dasein (Geschichtliches) em Martin Heidegger. Kínesis, v. XI, n. 27 (Ed. Especial), abr. 2019, p. 101. 548 Gabriela Miranda Zabeu destaca nesse tocante que: “Gadamer, em Verdade e Método, explora uma fonte de preconceitos provinda do pensamento próprio que se consagrou no Iluminismo, a saber, o que diz respeito as

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apresenta uma importante forma de autoridade trazida pelo romantismo que legitima os preconceitos: a tradição. Segundo Gadamer,

[...] O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre nossa ação e nosso comportamento. [...] É isso, precisamente, que denominamos tradição: ter validade sem precisar de fundamentação.549

O conceito de tradição para o filósofo alemão está inter-relacionado com a linguagem. Tal relação está integrada no sujeito que fala a partir de um contexto e se assume como tal, razão pela qual a tradição representa um ato racional e um desenvolver histórico550. Nas palavras do próprio Gadamer, “a tradição é essencialmente conservação e como tal está atuante nas mudanças históricas551”. Deve-se alertar, no entanto, que ao reconhecer a importância da tradição para a compreensão humana Gadamer não a retrata como uma natural continuidade histórica, como se um mero progresso histórico fosse, mas percebe que há uma variação temporal na adoção de concepções distintas, por vezes excludentes entre si e desprovidas de unidade harmônica. Assim, a tradição deve ser vista como consciência histórica perceptível aos efeitos históricos que interferem e atuam sobre a sua compreensão, de modo que sua relação com o passado seja tido como algo dinâmico que se encontra e se integra à tradição, projetando, por meio de seus efeitos, preconceitos que origina e conserva552. Como a tradição está enraizada por preconceitos, os quais se apresentam como condição de cada momento compreensivo e constituem o modo de ser do homem, sua abertura e projeção ao mundo, aquele que vislumbra a historicidade, reconhece a existência dos limites de toda a compreensão e a atuação dos preconceitos em tudo que é concebido, fato concepções de tradição (Tradition, Überlieferung) e de autoridade (Autorität) instauradas a partir de Descartes. De acordo com Gadamer, na época, tradição e autoridade são combatidas enquanto falsas e prévias aceitações, devendo ser recusadas ‘como fonte dos erros no uso da razão’ [GADAMER, 1999, p. 346, trad. própria]. A posição tomada pelo pensamento iluminista encontra seu fundamento na denúncia de um uso inadequado da razão, ou seja, na acusação de a autoridade e a tradição tomarem lugar do juízo próprio, enquanto preconceito que, uma vez consolidado, vigora inconscientemente impedindo o conhecimento. Mas isso, como aponta Gadamer, não exclui o fato de a autoridade e a própria tradição poderem também ser fontes de verdade, o que parece ter sido ignorado pelo Iluminismo” (ZABEU, Gabriela Miranda. Tradição e autoridade na hermenêutica de Hans-George Gadamer. PERI, v. 6, n. 1, 2014, p. 101-102). 549 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 372. 550 VENTURA, Pedro Ramos. Linguagem e tradição em Hans Georg Gadamer. Sociais e Humanas, Santa Maria, v. 28, n. 1, jan./abr. 2015. 551 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 373. 552 ZABEU, Gabriela Miranda, op. cit.

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que o orienta para uma relação investigava com o passado, mas também com os outros mediante opiniões já consolidadas, “dando abertura a possibilidade de provocar grandes rupturas e mesmo de conservar suas opiniões vigorosamente”553. A partir disso, indicará Gadamer que:

O que satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado. O passado só aparece na diversidade dessas vozes. É isso que constitui a essência da tradição da qual participamos e queremos participar. A própria investigação histórica moderna não é só investigação, mas também mediação da tradição. Não a vemos somente sob a lei do progresso e dos resultados assegurados; nela também realizamos nossas experiências históricas, na medida em que permite que ouçamos cada vez uma nova voz em que ressoa o passado.554

A tradição, dessa forma, representará tudo que alcança o existente humano na e a partir da linguagem, aquilo que foi cultivado e perpassou por gerações, os preconceitos – legítimos, ilegítimos, ocultos e descobertos –, a história e os efeitos que dela ressoam555. Após apresentar o conceito de tradição como elemento essencial para a compreensão, Gadamer passa a trabalhar como se constitui o trabalho hermenêutico e quais são as consequências advindas para a compreensão pelo fato de seu pertencimento à tradição556, momento em que apresenta o significado hermenêutico da “distância temporal”. Segundo Gadamer, é preciso inicialmente rememorar a determinação da regra hermenêutica557 segundo a qual a compreensão é um movimento circular que vai do todo ao individual e do individual ao todo. Com isso, “a antecipação de sentido que visa ao todo chega a uma compreensão explícita através do fato de que as partes que se determinam a partir do todo determinam, por sua vez, a esse todo”558. A intenção dessa circularidade do movimento da compreensão que vai do todo para a parte e vice-versa é que haja uma ampliação do sentido em círculos concêntricos, e o critério para se aferir a justeza da compreensão é a adequação de cada particularidade com o todo.

553 Ibidem, p. 101. 554 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 377. 555 ZABEU, Gabriela Miranda, op. cit. 556 Conforme Gadamer, o lugar do intérprete deve estar assentado na mediação entre o seu pertencimento a uma tradição e uma distância relativa com relação aos objetos que fazem parte de suas pesquisas (GADAMER, Hans- George. O problema da consciência histórica. Trad. César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998). 557 Essa regra, como ressalta Gadamer, procede da antiga retórica e posteriormente foi transportada pela hermenêutica moderna da arte da retórica para a arte da compreensão (Cf. GADAMER, Hans-George, 2014). 558 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 385.

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Quando as partes não estão em concordância com a totalidade, dirá Gadamer, significa que a compreensão falhou559. Essa relação de circularidade constitui o “círculo hermenêutico”, trabalhado inicialmente por Heidegger560, cuja descrição revela que a compreensão do texto é constantemente determinada pelo movimento em que a pré-compreensão é concebida, por isso que quando a compreensão é realizada, o círculo do todo e das partes não é dissolvido, mas ao contrário, atinge sua realização mais autêntica561. Ao esclarecer o significado do círculo hermenêutico proposto por Gadamer, Rodolfo Viana Pereira ensina que:

O círculo hermenêutico ocorre no instante em que o sujeito, através de sua pré-compreensão, participa na construção do sentido do objeto (moldado por tais preconceitos), a passo que o próprio objeto, no desenrolar do processo hermenêutico, modifica a compreensão do intérprete.562

Marco Aurélio Marrafon, por sua vez, descreve o círculo hermenêutico como uma metáfora que “indica o momento metódico que se realiza através dos giros entre o ser- interpretante e o objeto interpretado, numa dada tradição, onde a compreensão surge como um acontecimento que eclode ‘entre’ esses giros a partir da historicidade em que está inscrita”563. A partir da descrição heideggeriana indigitada Gadamer critica a distinção do círculo hermenêutico do todo para a parte em objetivo e subjetivo como proposto por Schleiermacher para apontar que ele (círculo) não possui natureza formal, tampouco é objetivo ou subjetivo, antes, contudo, descreve a compreensão como um jogo a partir do qual ocorre a intersecção entre o movimento da tradição e o movimento do intérprete. Ou seja, a antecipação de sentido que guina a nossa compreensão sobre um texto não se constitui como um ato de subjetividade, uma vez que é determinado a partir da comunhão que nos enlaça com a tradição. Ao tratar sobre a relação da pré-compreensão com a noção de círculo hermenêutico apontada por Gadamer, Luíza Kitzman Krug salienta a identidade existente entre eles, pois, ao acessar o texto, o intérprete já se encontra localizado no horizonte de sentido que este lhe

559 Idem. 560 Embora tenha sido influenciado por Heidegger, a expressão do círculo hermenêutica passou a ter uma significação mais profunda com Gadamer “passando a ser vista não no ambiente formal e restrito da metodologia de interpretação de textos, mas como momento estrutural ontológico da compreensão, na medida em que caracteriza o modo de sua formação (PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 34). 561 GADAMER, Hans-George, 2014. 562 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 35. 563 MARRAFON, Marco Aurélio. A questão da consciência histórica na obra “Verdade e Método” e suas implicações na (teoria da) decisão judicial. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de verdade e método. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 78.

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proporciona, razão pela qual falar em círculo hermenêutico significa enfrentar o caráter circular da compreensão, já que a compreensão do homem (Dasein) só se completa com a compreensão do ser. Assim, “na interpretação, isso quer dizer que esta é revista a todo instante pelo leitor, à medida que este vai se abrindo aos significados que o texto lhe propõe”564. Com isso, o sentido do círculo que se constitui como base de toda a compreensão apresenta uma nova consequência hermenêutica que Gadamer denomina como “concepção prévia da perfeição”, de modo que somente será considerado compreensível aquilo que apresente uma unidade de sentido perfeita. Ainda, segundo o indicado autor, compreender significa inicialmente estar versado na coisa em si565, e apenas num segundo momento destacar e apreender a opinião do outro como tal. É por isso que, para ele, a primeira de todas as condições hermenêuticas é a pré- compreensão que exsurge da relação com a coisa mesma. Dessa forma, a influência da tradição no comportamento histórico-hermenêutico é efetivada por meio da comunidade de preconceitos que a fundamentam e sustentam, ao que Gadamer denomina como “sentido da pertença”566-567. Com efeito, por considerar que os preconceitos e opiniões prévias que estão na consciência do intérprete não estão à sua livre disposição, e que é uma tarefa inalcançável distinguir por si mesmo e antecipadamente quais preconceitos são produtivos e quais podem

564 KRUG, Luíza Kitzmann, op. cit. 565 Nas palavras do autor: “A tarefa hermenêutica transforma-se assim, espontaneamente, num questionamento voltado para as coisas elas mesmas que sempre a codetermina. Com isso, a empresa hermenêutica alcança uma base sólida. Quem quiser compreender não pode de antemão abandonar-se cegamente à casualidade das próprias opiniões, para em consequência e de maneira cada vez mais obstinada não dar ouvidos à opinião do texto, até que esta opinião não mais se deixe ouvir, impedindo a compreensão presumida. Quem quiser compreender um texto está, ao contrário, disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto” (GADAMER, Hans-George, 2011, p. 76). 566 GADAMER, Hans-George, 2014. 567 Como aponta Richard Palmer: “Este fenômeno de pertença (Zugehörigkeit) é da maior importância para a experiência hermenêutica, pois é a sabe que permite encontrar no texto a nossa herança. Porque pertencemos à linguagem e porque o texto pertence à linguagem, torna-se possível um horizonte comum. A emergência de um horizonte comum é aquilo que Gadamer chama a fusão de horizontes pois ocorre devido à consciência historicamente operativa. A linguisticidade, torna-se pois a base de uma consciência verdadeiramente histórica. A pertença a ou a participação na linguagem como meio da nossa experiência no mundo, – de facto a base da possibilidade de podermos ter um mundo como aquele espaço aberto em que o ser das coisas se pode revelar – é a verdadeira base da experiência hermenêutica” (PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 210).

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lhe induzir a erros, tornando-lhes surdos para as coisas ditas pela tradição568. Assim, essa distinção deve ocorrer no âmbito da compreensão569. O problema, entretanto, é que ao reabilitar a importância da tradição e da autoridade simultaneamente à nova significação à existência dos preconceitos e opiniões prévias do intérprete, Gadamer percebe que a compreensão de um texto antigo570, por exemplo, ocorre a partir de uma conexão entre dois horizontes históricos: o do intérprete e o do autor/obra a ser interpretada. Ou seja, nessa situação o intérprete vai, consequentemente, colidir com uma distância temporal que o separa da época em que o texto foi concebido571. Nesse aspecto, é importante ressaltar que Gadamer não repudia a distância histórica, mas antes a acolhe, pois, segundo afirma, é apenas mediante essa distância que se torna possível, hermeneuticamente, responder à questão relativa à legitimidade dos preconceitos:

Muitas vezes essa distância temporal nos dá condições de resolver a verdadeira questão crítica da hermenêutica, ou seja, distinguir os verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem mal-entendidos. Nesse sentido, uma consciência formada hermeneuticamente terá de incluir também a consciência histórica. Ela tomará consciência dos próprios preconceitos que guiam a compreensão para que a tradição se destaque e ganhe validade como uma opinião distinta.572 (grifos originais)

Para Gadamer, é importante que cada época consiga apreender a seu modo um texto transmitido, já que o texto compõe um todo da tradição “na qual cada época tem um interesse objetivo e onde também ela procura compreender a si mesma”573. Em outras palavras, o fato de o homem ser histórico e ter a historicidade como condição de ser-no-mundo não pode ser desconsiderado, notadamente em razão de estarmos

568 “São os preconceitos não percebidos que originam a alienação, bloqueando-nos em nossa capacidade de ouvir a tradição: estes são de fato os preconceitos falsos ou ilegítimos que, por não se colocarem em questão, induzem ao erro de compreensão” (SILVA, Almir Ferreira da; LOPES, Maria dos Santos Silva, op. cit., p. 11). 569 GADAMER, Hans-George, 2014. 570 Como apontado por Renata Ramos da Silva, a estrutura circular da compreensão em Gadamer é destacada no caso em que o intérprete se depara com um texto antigo de modo que: “Os intérpretes, por exemplo, contemporâneos tendem inicialmente a lê-lo sob a ótica dos dias atuais, com os usos linguísticos próprios da sua época. É, contudo, apenas no confronto com o texto mesmo, que podem dar-se conta, isto é, ganhar a consciência de que os sentidos são distintos. E isso ocorre mesmo diante de um texto da tradição na qual o intérprete se encontra inserido, o que, a princípio, facilitaria ou tornaria mais imediata a compreensão daquele, dada a familiaridade que o intérprete teria com o texto. Porém, a diferença histórica entre esses ainda impõe a plena realização da tarefa hermenêutica, já que os sentidos antecipados pelo intérprete não coadunariam prontamente com aqueles expressos no texto” (SILVA, Renata Ramos da. Compreensão e linguagem: o caminho para a reabilitação da tradição no pensamento de Hans-George Gadamer. Synesis, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, jan./jun. 2014, p. 209-210). 571 FERREIRA, Leonardo Magalde. A hermenêutica contemporânea: entre texto e vida. Kínesis, v. XI, n. 27 (Ed. Especial), abr. 2019. 572 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 395. 573 Ibidem, p. 392.

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inseridos numa tradição e, uma vez a ela pertencidos, há a necessidade de analisar uma obra do passado sempre a partir de uma perspectiva histórica (não é possível desvincular a análise sobre a história da obra)574.

O sentido de um texto sempre supera o seu autor575, razão pela qual para o filósofo alemão a compreensão nunca é uma tarefa meramente reprodutiva, mas sempre produtiva. Dessa forma, compreender não significa compreender melhor, seja porque há um suposto melhor conhecimento sobre a coisa em razão de se ter conceitos mais claros, ou mesmo em função de eventual superioridade básica que o consciente possui se comparado ao caráter inconsciente da produção576. Na verdade, é suficiente dizer que “quando se se logra compreender, compreende-se de um modo diferente” (grifos originais)577. A distância temporal assumirá, assim, para Gadamer, um papel crucial, pois é a única ferramenta que evidencia o verdadeiro sentido existente numa coisa que apresenta um processo infinito – o sentido contido num texto ou mesmo numa obra de arte não se exaure quando descoberto o seu ponto final, eis que sempre surgem novas fontes de compreensão, e, consequentemente, novos sentidos. Será por meio dela (distância), a partir do seu constante movimento e expansão, que o principal problema crítico da hermenêutica – a distinção entre os preconceitos legítimos daqueles que nos tornam surdos para ouvir a coisa ela mesma –, poderá ser resolvido578-579.

574 FERREIRA, Leonardo Magalde, op. cit. 575 “Com a distância temporal, quem interpreta uma obra a compreende ‘melhor’ do que o seu autor, pois o significado do texto lhe transcende. Então, há uma superioridade entre a interpretação posterior em face da produção originária. [...] Dessa forma, como dito, o sentido do texto sempre superará o seu autor, razão pela qual a compreensão nunca é um comportamento reprodutivo, mas, sempre, produtivo. Assim, o tempo já não é um obstáculo a ser transposto, pelo contrário, é um elemento essencial para o caráter produtivo da compreensão, pois ele está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição. O tempo é produtivo e fornece segurança para que sejam formulados julgamentos” (SILVA, Yuri de Oliveira Dantas. O conceito de “história efeitual” de Hans-George Gadamer, aplicado ao direito. Revista RDI, v. 106, n. 1, 2015, p. 108). 576 Nesse mesmo sentido é a conclusão de Rafael Tomaz de Oliveira quando analisa a questão da distância temporal na obra de Gadamer e ressalta que: “Assim, quando se procura fazer um esforço de retorno autorreflexivo aos conceitos do passado, a tentativa de encurtar a distância temporal que separa o intérprete do momento originário de sua constituição não só é errado como inútil. Com efeito, a distância do tempo é, mais do que qualquer coisa, um elemento essencial da compreensão. Note-se bem: a distância temporal é um elemento essencial da compreensão mesma. Não se trata de fazer a compreensão melhorar, em um sentido de se saber mais em virtude de possuir conceitos mais claros; trata-se, simplesmente, de compreender, de conseguir levar as coisas a se manifestarem como objeto. Gadamer, sobre isso afirma apenas que não se trata de compreender melhor; bastaria dizer que quando se compreende, compreende-se de um modo diferente” (OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Hermenêutica e Ciência Jurídica: Gênese conceitual e distância temporal. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de verdade e método. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 50). 577 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 392. 578 Idem. 579 Maiquel Angelo Dezordi Wermuth consigna a importância da distância temporal para a hermenêutico ao afirmar que: “Em síntese, então, pode-se asseverar que a distância temporal é um importante elemento hermenêutico para uma melhor – e diferente – compreensão das coisas, que resulta justamente do contato do texto com novos horizontes históricos que são posteriores ao de sua produção” (WERMUTH, Maiquel Angelo

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CAPÍTULO 5 A APLICAÇÃO DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA GADAMERIANA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

5.1 O Princípio da História Efeitual, a Fusão de Horizontes e o Problema Hermenêutico da Aplicação

Inicialmente, é importante destacar que o princípio da história efeitual assume uma posição notável na hermenêutica filosófica de Gadamer, pois é a partir dele que se torna possível à compreensão assumir um caráter universal. Ainda, a partir dela (história efeitual) Gadamer busca reforçar o movimento formativo dos processos históricos que elaboram campos de sentido consolidados, as pré-compreensões e até mesmo a tradição, bem como demonstrar que é por ela que ocorre a formação da própria consciência histórica que determina o “ser-aí” no mundo580-581. Embora o conceito de história efeitual (Wirkungsgeschichte) seja trabalhado por Gadamer como um elemento essencial de sua obra, não foi ele o responsável por sua criação/definição, já que desde o século XX, nas ciências literárias, ela é definida como “o estudo das interpretações produzidas por uma época, ou a história das recepções”582. Gadamer, entretanto, abre uma nova perspectiva elevando-a ao status de princípio do qual toda a hermenêutica é deduzida, especialmente porque, para o autor, toda “quando procuramos compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual”583. Ao abordar o impacto da história efeitual em Gadamer, Jean Grondin salienta que:

Dezordi. A hermenêutica gadameriana e a tradição como background para o engajamento no mundo. Prisma Jurídico, v. 14, n. 1, jan./jun. 2015, p. 246). 580 OLIVEIRA, Paulo César Pinto de. Filosofia do direito e hermenêutica filosófica: do caráter hermenêutico da filosofia do direito. 2017. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017. 581 O papel decisivo do princípio da história efeitual em Gadamer é também observado por Magaly do Carmo Barbosa ao aduzir que: “Nesse ponto, porém, importa esclarecer o papel decisivo que o conceito de história efeitual exerce para a compreensão hermenêutica nos moldes da filosofia traçada por Gadamer, tendo em vista que a história efeitual passará a ser tratada como uma disciplina auxiliar das ciências do espírito e faz-se mister reconhecer os efeitos que a história efeitual opera em toda a compreensão, estejamos conscientes ou não conscientes disso” (BARBOSA, Magaly do Carmo. Gadamer versus Heidegger: o conceito de história efeitual e a historicidade do Dasein. 2018. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018, p. 39). 582 BARBOSA, Magaly do Carmo, op. cit., p. 39. 583 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 306.

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Ultrapassando a elaboração de uma disciplina colateral da literatura, a história efeitual expressa, em seu primeiro nível, a exigência de tornar consciente a própria situação hermenêutica, para “controlá-la”. Esta é a interpretação da própria pré-compreensão, solicitada por Heidegger. Gadamer reconhece, no entanto, de um modo mais marcante do que Heidegger, que essa tarefa não pode ser plenamente resolvida ou concluída. A história efeitual não está em nosso poder ou à nossa disposição. Nós estamos mais submissos a ela, do que disso podemos ter consciência.584

Nesse sentido, a história efeitual se apresenta em todas as partes em que exista algum tipo de compreensão, constituindo-se como instância obrigatória para o compreender, especialmente porque ela é “mais ser do que consciência. Ela impregna a nossa ‘substância’ histórica de uma forma que não permite ser conduzida à última nitidez de distância”585. Por perceber que toda compreensão está historicamente situada a partir da noção de distância temporal entre o autor e aquele que interpreta, bem como que a tradição carregada por cada um é revelada por meio dos preconceitos, Gadamer conclui que a compreensão só ocorre no horizonte do sujeito que se propõe a interpretar alguma coisa586. Com isso, o acesso do homem ao mundo e, por consequência, o ato de compreensão, se efetiva mediante o ponto de vista do sujeito e de sua situação hermenêutica, como um tipo de resultado decorrente da tensão entre o presente e suas experiências e pré-compreensões587. Esse posicionamento do intérprete sobre os fenômenos é denominado por Gadamer de horizonte588, cujo termo é assim conceituado pelo próprio autor:

Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo.

584 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 190. 585 GRONDIN, Jean, op. cit., p. 191. 586 DIAS, Leonardo Augusto Gonçalves. Hermenêutica filosófica de matriz gadameriana e processo democrático. 2018. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. 587 Idem. 588 “Influenciado pelas investigações de Husserl acerca do mundo da vida, Gadamer se compromete com uma análise na qual a relação com a totalidade da experiência humana acontece no âmbito da práxis da vida. É nesse sentido que a noção de horizonte é explicitamente retomada, pois, como em Husserl, Gadamer também deseja tornar conscientes – no esclarecimento do acontecer da compreensão – os traços essenciais da experiência humana” (BATISTA, Gustavo Silvano. Compreensão, fusão de horizontes e filosofia prática. Pensando – Revista de Filosofia, v. 6, n. 12, 2015, p. 97.

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Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso.589

Com isso, toda forma de compreensão está assentada na situação hermenêutica do sujeito, nesse espaço universal de que todos partem, de forma consciente ou não, enquanto conhecemos, o que está também vinculado ao plexo de experiências carregadas na história que criam a nossa perspectiva e pré-constituem nossas interações intelectivas frente aos fenômenos colocados ao intérprete590. Ainda, para Gadamer, ter horizontes significa saber valorizar adequadamente o significado de todas as coisas que integram o horizonte, no que tange à sua proximidade e distância, grandeza e pequeneza, de modo que a concretização da significação hermenêutica está centrada na obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se situam frente à tradição591. Significa dizer que a tarefa da compreensão histórica tem por objetivo identificar em cada caso o horizonte histórico, o que permitirá que se mostre, assim, em suas verdadeiras medidas, aquilo que buscamos compreender. Isso porque, para Gadamer, a omissão do deslocamento histórico a partir do qual a tradição se manifesta implicará numa má compreensão sobre o significado dos conteúdos dela (tradição), razão pela qual “parece ser uma exigência hermenêutica justificada o fato de termos de nos colocar no lugar do outro para poder compreendê-lo”592. Urge destacar aqui uma importante observação feita por Leonardo Augusto Gonçalves Dias no sentido de que:

Mesmo propondo que não há possibilidade de se compreender à margem do horizonte histórico em que o intérprete está situado e dos preconceitos advindos desta situação hermenêutica, deve-se ressaltar que isto não implica em enclausuramento e anulação, como se houvesse uma vinculação absoluta a uma determinada posição ao se tentar compreender algo. Pelo contrário! O que Gadamer faz questão de ressaltar é que este horizonte se apresenta em um contexto de abertura, pois ter consciência da sua existência significa poder conhecê-lo mais profundamente, tornando-o algo dinâmico e móvel.593

589 GADAMER, Hans-George, op. cit., p. 399-400. 590 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit. 591 GADAMER, Hans-George, 2014. 592 Ibidem, p. 400. 593 DIAS, Leonardo Augusto Gonçalves, op. cit., p. 53.

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O próprio Gadamer, inclusive, faz questão de esclarecer que a compreensão nunca possui um horizonte verdadeiramente fechado, mas antes é algo que se desloca no âmbito da consciência humana594:

[...] Assim como cada um jamais é um indivíduo solitário, pois está sempre se compreendendo com os outros também o horizonte fechado que cercaria uma cultura é uma abstração. A mobilidade histórica da existência humana se constitui precisamente no fato de não possui uma vinculação absoluta a uma determinada posição, e nesse sentido jamais possui um horizonte verdadeiramente fechado. O horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que conosco faz o caminho. Os horizontes se deslocam ao passo de quem se move. Também o horizonte do passado, do qual vive toda vida humana e que se apresenta sob a forma de tradição, que já está sempre em movimento. Não foi a consciência histórica que colocou inicialmente em movimento o horizonte que tudo engloba. Nela esse movimento não faz mais que tomar consciência de si mesmo.595

Com isso, Gadamer pretende demonstrar que quando a consciência histórica é transmitida para horizontes históricos ela não está sendo transladada a mundos estranhos e incompatíveis com o nosso, mas, contrariamente, todos são direcionados para um grande e único horizonte que se orienta e se move a partir de dentro e que contempla a profundidade histórica da nossa autoconsciência para fronteiras que não se limitam apenas ao presente596. Para se compreender uma tradição, por sua vez, exige-se um horizonte histórico, mas, diferentemente do que se pensa, ele (horizonte) não é alcançado quando há um deslocamento para uma situação histórica, e sim quando nós mesmos nos deslocamos a outra situação. Para nos deslocarmos à situação de outro homem, por exemplo, é preciso que o compreendamos, tornando-nos conscientes de sua alteridade e até mesmo de sua individualidade. Esse deslocamento “significa sempre uma ascensão a uma universalidade mais elevada que supera tanto nossa particularidade quanto a do outro”597. Esse deslocamento que deve ocorrer para que a compreensão se efetive, caracterizando um “diálogo hermenêutico” e permitindo uma interação entre o intérprete e o objeto a ser interpretado, é denominado por Gadamer como “fusão de horizontes”, o qual concebe a

594 Como ressaltado por Ramon Tácio de Oliveira: “Na medida em que desenvolvemos nossos preconceitos pessoais e geramos novos espaços de compreensão, o horizonte nunca se esgota ou se estabiliza, pois evolui sempre, sendo certo ainda que esse horizonte não é representado como algo rígido, mas sim como algo que se desloca junto à pessoa, permitindo o acesso dela ao mundo, envolvendo-a” (OLIVEIRA, Ramon Tácio de. Fundamentação como condição da decisão judicial, uma garantia constitucional e conquista da democracia. In: TJMG (Coord.). 30 anos da Constituição Federal. Coleção Especial. Belo Horizonte: 2018, p. 430. Disponível em: bd.tjmg.jus.br/jspui/handle/tjmg/9183). 595 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 402. 596 GADAMER, Hans-George, 2014. 597 Idem.

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teorização de que a verdade do texto não é integralmente submissa à opinião de quem o escreveu (autor), tampouco apenas nos preconceitos de quem a analisa (intérprete), mas na fusão de horizonte entre eles598. Ao analisar a fusão de horizontes apresentada em Gadamer, Alexandre Pasqualini ressalta que:

Na acepção mais plena, o sentido não existe apenas do lado do texto, nem somente do lado do intérprete, mas como um evento que se dá em dupla trajetória: do texto (que se exterioriza e vem à frente) ao intérprete; e do intérprete (que mergulha na linguagem e a revela) ao texto. Esse duplo percurso sabe da distância que separa texto e intérprete e, nessa medida, sabe que ambos, ainda quando juntos, se ocultam (velamento) e se mostram (desvelamento).599

Ao partir de uma reflexão filosófica que considera a importância da consciência humana dotada de historicidade e finitude, bem como a necessidade de expansão do modo pelo qual nos relacionados com a tradição – o que permite uma abertura a novas possibilidades do ser600 –, Gadamer destaca que a formação de um horizonte presente é sempre conectado aos horizontes do passado, i.e, a vigência da tradição se dá exatamente no ponto de fusão entre o novo (presente) e o velho (passado)601. O objetivo da fusão de horizontes proposta por Gadamer é garantir que o homem respeite a perspectiva do outro, de modo que seja possível vislumbrar além daquilo que lhe é próximo e, consequentemente, o integrar num contexto mais amplo e menos suscetível a avaliar as questões que lhe são colocadas a partir de um viés individualista/subjetivista602.

598 RIBEIRO, Fernando José Armando; BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica de Hans-George Gadamer. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 45, n. 177, jan./mar. 2008. 599 PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica: uma crença intersubjetiva na busca da melhor leitura possível. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 171. 600 BATISTA, Gustavo Silvano, op. cit. 601 Nas palavras do próprio Gadamer, a fusão é assim definida: “O horizonte do presente não se forma pois à margem do passado. Não existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como não existem horizontes históricos a serem conquistados. Antes, compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumidamente dados por si mesmos. Conhecemos a força dessa fusão sobretudo de tempos mais antigos e da ingenuidade de sua relação com sua época e com suas origens. A vigência da tradição é o lugar onde essa fusão se dá constantemente, pois nela o velho e o novo sempre crescem juntos para uma validez vital, sem que um e outro cheguem a se destacar explicita e mutuamente” (GADAMER, Hans-George, 2014, p. 404-405, grifos originais). 602 Essa é a observação perfilhada por Luísa Portocarrero F. Silva ao aduzir que: “Levar o homem a respeitar a perspectiva do outro, de modo a conseguir ver para além do que lhe é próximo, para o integrar num contexto mais vasto e avaliar segundo proporções, menos egoístas, tal é o objetivo e a força desta fusão dialógica de horizontes, que segundo o autor é comandada pelo primado da questão e caracteriza toda a compreensão. Daí que a questão decisiva na nova Hermenêutica não resida, de modo nenhum, numa suspensão de todos os pressupostos da compreensão mas, pelo contrário, no reconhecimento destes como a verdadeira possibilidade de

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A fusão em Gadamer será ainda orientada pela historicidade prática da consciência hermenêutica603, a partir da qual o filósofo assinala:

Todo encontro com a tradição realizado graças à consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa da hermenêutica consiste em não dissimular essa tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica tem consciência de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição de seu próprio horizonte.604

A compreensão, assim, realizar-se-á por meio de um diálogo hermenêutico que exige a fusão dos horizontes do intérprete e daquele que é interpretado, de modo que a partir desse inter-relacionamento do próprio horizonte com o do outro, surgirá um novo horizonte. Essa visão gadameriana produz uma virada hermenêutica em que o interpretar não pode mais ser vislumbrado como realização de um sujeito soberano. Por isso, “o intérprete não pode impor ao texto a sua pré-compreensão, devendo confrontá-la criticamente com as possibilidades razoáveis dentro de um contexto”605. A partir disso é certo afirmar que para o filósofo a verdade de um texto não poderá ser encontrada na submissão incondicionada à opinião do autor, tampouco à sua objetividade, mas também não o será apenas nos preconceitos do intérprete. Ao interpretar, o intérprete não apenas reproduz o texto analisado, mas o produz a partir de uma nova perspectiva, já que a tarefa hermenêutica é sempre produtiva606. Deve-se ter em mente, assim, que a fusão de horizontes deve ser compreendida como um importante mecanismo para que a compreensão atinja um acordo de vontades, de modo que o entendimento só se torna possível por meio dela (fusão)607 e, como bem observado por

pensar o acesso sempre implicado, perspectiva ou relacional do homem ao sentido ou verdade. Se, de facto, é, apesar da sua finitude, a implicação incondicional do homem no sentido (ou pressuposição da verdade), o novo ponto de partida do pensar, então a questão verdadeiramente crítica da Hermenêutica reside, segundo Gadamer, na distinção entre pressupostos verdadeiros, que permitem aprender com o outro, isto é que fomentam a compreensão como relação e pressupostos falsos, que induzem o homem no erro ou mal entendido” (SILVA, Luísa Portocarrero F. Da “fusão de horizontes” ao “conflito de interpretações”: a hermenêutica entre H.-G. Gadamer e P. Ricoeur. Revista Filosófica de Coimbra, n. 1, 1992, p. 137). 603 BATISTA, Gustavo Silvano, op. cit. 604 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 405. 605 RIBEIRO, Fernando José Armando; BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo, op. cit., p. 273. 606 LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n. 145, jan./mar. 2000. 607 DRUMMOND, Victor Gameiro, op. cit.

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Chris Lawn, “uma coisa, uma pessoa ou um texto estende seus horizontes para incluir e se fundir com outros”608. O acordo de vontades efetivado pela fusão de horizontes, por sua vez, será mediado pela linguagem, e permitirá que os interlocutores estabeleçam uma espécie de acordo semântico, chegando-se a um resultado equilibrado como uma espécie de média da compreensão609. Deve-se ressaltar que a fusão de horizontes em Gadamer não apenas permite que a tradição se revele ao intérprete do presente, como também exprime o seu próprio movimento, de modo que a cada nova compreensão ela (tradição) se altera, se atualiza. É por isso que toda compreensão representa um acontecimento, uma realização própria da tradição, e é mediante a aplicação de sentidos à situação concreta que a compreensão se mostra como um acontecer610. É por isso que, segundo Gadamer,

o projeto de um horizonte histórico é, portanto, só uma fase ou um momento na realização da compreensão, e não se prende na autoalienação de uma consciência passada, mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do presente. Na realização da compreensão dá-se uma verdadeira fusão de horizontes que, com o projeto do horizonte histórico, leva a cabo simultaneamente sua suspensão. Nós caracterizamos a realização controlada dessa fusão como a vigília da consciência histórico-efeitual. Se o positivismo estético e histórico, herdeiro da hermenêutica romântica, ocultou essa tarefa, precisamos reafirmar que o problema central da hermenêutica se estriba precisamente nisso. É o problema da aplicação, presente em toda compreensão.611 (grifo original)

A partir dessa visão de que o problema da hermenêutica está centralizado exatamente na aplicação, Gadamer critica a concepção da hermenêutica clássica de que a compreensão estaria cindida em três componentes distintos: a) subtilitas inteligendi, que personifica a compreensão; b) subtilitas explicandi, a interpretação; e c) subtilitas applicandi, a aplicação. Isso porque, para o autor, a interpretação não é um ato meramente complementar e posterior à compreensão, mas, antes, compreender é sempre interpretar, e, consequentemente, a interpretação é a forma pela qual a compreensão se revela612.

608 LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 190. 609 DRUMMOND, Victor Gameiro, op. cit., p. 322. 610 SILVA, Renata Ramos, op. cit. 611 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 405. 612 Idem.

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Some-se a isso o fato de que houve o reconhecimento da linguagem e da conceitualidade da interpretação como uma etapa estrutural e interna da compreensão, o que permitiu que a linguagem assumisse o centro da filosofia, e não se apresentasse apenas como coisa interposta e de importância marginal no processo intelectivo613. A impossibilidade dessa cisão, como ressalta Lenio Luiz Streck, é extremamente importante uma vez que implica na impossibilidade de o intérprete desconsiderar a essência do texto, como se fosse possível meramente reproduzir os sentidos, como também afasta a possibilidade de acolhida das teorias argumentativas que propõem a possibilidade de cisão da aplicação, como promover ponderações em etapas, eis que se tornam reféns do paradigma da filosofia da consciência – que pregam combater614. Ainda, segundo Gadamer, a íntima relação entre a compreensão e a interpretação acabou afastando completamente do contexto da hermenêutica o problema da aplicação (terceiro momento). A proposta do filósofo, nesse sentido, é de recuperar esse momento que fora escondido e eliminado para reintegrá-lo aos demais, de modo que o fenômeno da compreensão contemple de forma cumulativa e unitária os fenômenos da compreensão

(Verstehen), interpretação (Auslegung) e aplicação (Anvedung)615. Ao insistir no caráter dialético da compreensão enquanto resultante da fusão de horizontes, Gadamer destaca um aspecto central no seu pensamento que defende uma afinidade essencial entre a sua hermenêutica filosófica e a tradição da filosofia prática616, especialmente a noção de ética trabalhada por Aristóteles617. Conforme é ressaltado pelo próprio Gadamer: “se, para concluir, referirmos à nossa problemática a descrição aristotélica do fenômeno ético, e, em particular, da virtude do saber moral, então a análise aristotélica

613 Ibidem, p. 406. 614 Nas palavras do autor: “A impossibilidade dessa cisão – tão bem denunciada por Gadamer – implica a impossibilidade de o intérprete “retirar” do texto “algo que o texto possui-em-si-mesmo”, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível reproduzir sentidos; ao contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung). Mais ainda, essa impossibilidade da cisão – que não passa de um dualismo metafísico – afasta qualquer possibilidade de fazer “ponderações em etapas”, circunstância, aliás, que coloca a(s) teoria(s) argumentativa(s) como refém(ns) do paradigma do qual tanto tentam fugir: a filosofia da consciência. O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes (Horizontenverschmelzung), porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos” (STRECK, Lenio Luiz, 2008, p. 121). 615 SILVA, Renata Ramos, op. cit. 616 BATISTA, Gustavo Silvano, op. cit. 617 A relação feita por Gadamer com sua teoria e a noção de ética aristotélica é também destacada por Renata Ramos da Silva ao assinalar que: “[...] Desse modo, a aplicação como parte constitutiva do compreender implica que toda compreensão é um acontecimento numa tradição. Cabe agora investigarmos, de modo mais detido, o que significa, para Gadamer, esse momento do compreender, isto é, o aplicar. Para tanto, convém analisarmos, ainda que brevemente, o paralelo que o próprio filósofo traça entre o seu pensamento e o de Aristóteles: é a partir da conclusão de que a hermenêutica trabalha com um caso especial da relação entre o geral e o particular que Gadamer aponta a atualidade da ética aristotélica e a toma como paradigma para a hermenêutica filosófica” (SILVA, Renata Ramos, op. cit., p. 213.

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servirá como uma espécie de modelo dos problemas inerentes à tarefa hermenêutica”618 (grifos originais). A retomada dos paradigmas abordados pela ética aristotélica por Gadamer representa a possibilidade de revisitar os aspectos da compreensão (tida como cerne da questão hermenêutica), livrando-a da análise puramente objetivista decorrente da relação sujeito- objeto, e aplicar o tipo de conhecimento que, para Gadamer, é comum entre sua reflexão filosófica e o saber prático aristotélico. Como salienta Gustavo Silvano Batista, essa questão conduz argumentação de Gadamer que

[...] enfatiza a distinção aristotélica entre os modos dos saberes práticos – a poiesis e (sua respectiva virtude) a techne e a praxis e (sua respectiva virtude) a phronesis – tomando a phronesis como uma forma de razão própria do homem em sua relação interpretativa com as coisas. A descrição aristotélica da virtude que orienta o homem em seu ser ético, isto é, a phronesis (prudência, saber prático), é exemplar para que se entenda, de acordo com Gadamer, o modo como a compreensão orienta a nossa condição interpretativa de ser-no-mundo. Nesse sentido, o modo de ser da phronesis se confunde com o mesmo modo de ser da compreensão. Como afirma Bernstein, “o que Gadamer enfatiza acerca da phronesis é que esta é uma forma de razão que produz uma espécie de “know-how ético” no qual tanto o que é universal como o que é particular são codeterminados. [...] A compreensão é uma forma de phronesis.619

Ou seja, Gadamer identifica a compreensão como phronesis quando percebe, tanto na ética aristotélica como na hermenêutica filosófica, que o momento da aplicação é um instante fundante da nossa relação com o mundo. A phronesis, a partir da leitura gadameriana, assume um caráter especial por considerar, de modo único, a situação particular a partir do qual o sujeito se encontra, o que lhe assegura um saber ético de cunho prático que se distingue de um conhecimento teórico (epistéme) e técnico620 (tékhne)621.

618 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 426. 619 BATISTA, Gustavo Silvano, op. cit., p. 102. 620 O saber próprio da hermenêutica filosófica é indicado a partir da diferenciação entre a techne e do saber prático da poesis como apontado por Gadamer: “Uma techne se aprende, e pode também ser esquecida. Mas o saber ético não pode ser aprendido nem esquecido. Não nos confrontamos com ele ao modo de poder apropriar- nos ou não, como podemos escolher ou deixar de escolher uma habilidade objetiva, uma techne. Ao contrário, encontramo-nos sempre na situação de quem precisa atuar (com abstração feita da fase da menoridade, na qual a obediência ao educador substitui a decisão pessoal) e, assim, já devemos sempre possuir e aplicar o saber ético” (GADAMER, Hans-George, 2014, p. 417-418). Gustavo Silvano Batista complementa no sentido de que: “Esta primeira distinção mostra que o saber ético, ao contrário da techne, não se aprende, mas sempre pode acontecer quando estamos numa situação na qual se deve tomar uma decisão. [...] Tal aspecto está também em jogo na compreensão, pois somente em uma situação efetiva na qual o intérprete se encontra diante do que deve ser interpretado, é que a compreensão pode ser percebida em sua realização prática” (BATISTA, Gustavo Silvano, op. cit., p. 103). 621 SILVA, Renata Ramos, op. cit.

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Dessa forma, o objetivo de Gadamer ao relacionar a hermenêutica filosófica com o pensamento ético aristotélico é definir um paradigma hermenêutico que a) defenda um tipo de conhecimento que demonstre a relação entre o universal e o particular; e b) traga um tipo de saber que afeta e interage diretamente com o sujeito que o possui. Em Aristóteles, o agir ético é representado justamente um conhecimento que considera o próprio agente, e, que além de exigir um conhecimento, exige uma ação boa. Para Gadamer, o conhecimento não está atrelado à figura exclusiva do objeto, mas também exige a compreensão do horizonte presente daquele que interpreta, de modo que “ao compreender, consideramos impreterivelmente a nossa situação atual, os nossos preconceitos presentes. E isso é manifestado no momento da aplicação próprio à compreensão [...]”622. É por isso que Gadamer acentua que

também nós tínhamos nos convencido de que a aplicação não é uma parte última, suplementar e ocasional do fenômeno da compreensão, mas o determina desde o princípio e no seu todo. Também aqui a aplicação consistia em relacionar algo geral e prévio com uma situação particular. O intérprete que se confronta com uma tradição procura aplicá-la a si mesmo. Mas isso tampouco significa que, para ele, o texto transmitido seja dado e compreendido como algo de universal e que só assim poderia ser empregado posteriormente numa aplicação particular. Ao contrário, o intérprete não quer apenas compreender esse universal, o texto, isto é, compreender o que diz a tradição e o que constitui o sentido e o significado do texto. Mas para compreender isso ele não pode ignorar a si mesmo e a situação hermenêutica concreta na qual se encontra. Se quiser compreender, deve relacionar o texto com essa situação.623

O fenômeno da compreensão em Gadamer, portanto, entendido como um acontecer que se efetiva mediante uma verdadeira experiência hermenêutica, contempla uma relação especial entre o geral e o particular. Por isso, a aplicação é um momento de relevância destacada para a compreensão, à medida que permite a captação do fenômeno como um acontecimento que, por se pautar no horizonte presente do intérprete, o prepara para a fusão de horizontes com aquele que é interpretado624. Com isso, o fenômeno da compreensão é tido por Gadamer como fruto da fusão de horizontes pela qual o mundo do objeto interpretado é intermediado pela sua história, por meio do passado alcançado pela tradição pertencida, e que colide com o horizonte presente do intérprete. A abertura transmitida pelo objeto, assim, é resultado da nossa situação

622 SILVA, Renata Ramos, op. cit., p. 215, 623 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 426. 624 SILVA, Renata Ramos, op. cit.

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hermenêutica, que, por sua vez, é concebida previamente e de forma limitada ao impulso que nos leva a conhecer625. Essas assertivas possibilitam concluir que, em Gadamer, toda compreensão pressupõe aplicação. Resta, contudo, saber, de que forma a abertura para o fenômeno observado é realizada, qual a sua estrutura e que procedimento pode nos inspirar. Para responder a esses questionamentos, o filósofo se socorre da dialética da pergunta e da resposta, que, segundo ele, demonstra a estrutura dialógica da compreensão, i.e, a compreensão como diálogo626. Nesse sentido, como bem destacado por Rodolfo Viana Pereira, Gadamer toma como pressuposto a relevância da pergunta e como ela se constitui (modo finalidade) para que a compreensão seja produzida, de modo que:

Saber, conhecer, nesse sentido, passa necessariamente pela clivagem efetuada pela indagação que, assim, possibilita o entendimento acerca do que é dado a conhecer. Interrogar significa abrir-se ao conhecimento, impulsionar a vontade de saber, que passa, obviamente, pelo reconhecimento de que não se sabe ou, pelo menos, de que não se sabe por completo. Reconhecimento esse que confirma o que anteriormente foi desenvolvido a respeito da historicidade (temporalidade intrínseca à compreensão) e da estrutura da mediação. Interrogar é entrar nessa tensão com o objeto, marcada pela certeza que dele se conhece algo (ainda que difusamente), mas que, lado outro, também se desconhece muito. É, no fundo, reconhecer que na polaridade existente entre familiaridade e estranheza, a Hermenêutica ocupa a posição intermediária.627 (grifos originais)

A questão é inclusive clarificada pelo próprio Gadamer ao mencionar o que significa a estrutura da pergunta a resposta. Em sua concepção, a comprovação de que o fenômeno hermenêutico possui a estrutura da pergunta e da resposta é demonstrada pelos seguintes elementos: a) quando o texto transmitido se converte em objeto a ser interpretado, ao intérprete é colocada uma pergunta; b) a interpretação, será, por sua vez, uma referência essencial para responder à pergunta que foi colocada pelo texto; c) compreender um texto, por sua vez, significa também a compreensão da pergunta colocada; e d) só é possível compreender o texto quando o intérprete se coloca no horizonte hermenêutico marcado pela tradição (a fusão de horizontes entre passado e futuro). É por isso que o filósofo salienta que verdadeira dimensão da experiência hermenêutica somente ocorre a partir da íntima relação entre perguntar e compreender628.

625 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 46. 626 Idem. 627 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 46-47. 628 GADAMER, Hans-George, 2014.

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Dessa forma, a interrogação a respeito daquilo colocado sob análise do intérprete, tido como ser que conhece, é o caminho adequado para a correta compreensão da coisa. Esse caminho, destaque-se, é acompanhado da necessária interação dialética que decorre da fusão de horizontes: o mundo daquele que interpreta, e o daquele/daquilo que é interpretado. Com isso Gadamer rompe com a antiga tradição que segregava a relação entre sujeito e objeto do fluxo do conhecimento629. O processo de compreensão proposto por Gadamer, assim, exige reconhecer de que aquilo que se quer conhecer já está velado, ainda que de forma disseminada, naquele que conhece, razão pela qual o questionar – pergunta que se faz ao se entregar ao conhecimento – é o caminho a ser percorrido em direção ao entendimento.

5.2 A Linguisticidade como Fio Condutor da Hermenêutica Filosófica: A Nova Postura Assumida pelo Sujeito Interpretante

Antes de adentrar na análise final que demonstra a perfeita compatibilização da hermenêutica filosófica gadameriana como instrumento de aprimoramento da atuação do STF quando da prestação jurisdicional, torna-se necessário abordar um último e importante tema de extrema importância em Gadamer: a linguisticidade. Como exposto, Gadamer é um dos principais responsáveis pela virada linguístico- ontológica que desloca a relação sujeito-objeto para a relação sujeito-sujeito, e, consequentemente, retira o papel da linguagem como terceiro fator interposto no processo de conhecimento entre o sujeito e o objeto para situá-la como condição essencial da compreensão630. A partir do reconhecimento de que estamos mergulhados em um mundo em que tudo ocorre na e pela linguagem, algo somente pode ser definido se pudermos dizer que ele é, ou seja, “esse poder dizer é linguisticamente mediado, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo é limitada e capitaneada pela linguagem”631. Nesta senda, Gadamer eleva a

629 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit. 630 Nesse sentido Rodolfo Viana Pereira ressalta que: “Assim, a linguagem não pode ser vista como mero instrumento cujo objeto seja ligar uma subjetividade ilhada (homem) a uma objetividade isolada (coisa). Essa acepção é reducionista, já que não consegue perceber a amplidão do fenômeno linguístico. A linguagem significa muito mais: além de possibilitar o conhecimento dos fenômenos que nos cercam – eis que sem linguagem não há comunicação –, a ela pertencemos, como se pertence a um grupo ou país; não a possuímos, nela participamos (PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 50-51, grifo original). 631 STRECK, Lenio Luiz, 2014a, p. 295-296.

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linguagem ao patamar mais alto, numa espécie de ontologia hermenêutica, defendendo, com isso, que a compreensão e o próprio objeto hermenêutico são determinados pela linguagem632. Ao abordar a importância da linguisticidade para a hermenêutica filosófica gadameriana Rodolfo Viana Pereira destaca que

Não se pode esquecer que o meio pelo qual ocorre a compreensão é a linguagem. Tanto o pensamento como a comunicação só são realizados lingüisticamente, eis que ela representa o nosso acesso aos fenômenos, a nossa possibilidade de conhecimento. É a linguagem que nos abre o mundo, é através dela que o vivenciamos e nada existe, para o homem, que a ela seja exterior.633

Significa dizer que para Gadamer todo o processo de compreensão e de ser-aí no mundo representa um processo de linguagem, a qual tem a importante tarefa de possibilitar o acordo dos interlocutores e o entendimento a respeito da coisa analisada634. É na e pela linguagem que todo o processo de compreensão, que ocorre a partir da fusão de horizontes e calcado na tradição, que o conhecimento nos é revelado e desenvolvido635. Assim, com a defesa de que “ser é linguagem”, a ontologia assume um caráter hermenêutico e somente é possível compreender em função de estarmos inseridos na linguagem. Tudo o que compreendemos é linguagem, sendo ela o instrumento que permite a existência de uma unidade entre homem e mundo, sujeito e objeto, pensamento e coisa636. O problema hermenêutico, dessa forma, não envolve uma discussão sobre o uso e domínio adequado da língua, mas, ao contrário, de um acordo correto sobre um assunto, o que somente ocorre por meio da linguagem. Ainda, para o filósofo, a conversação é um tipo de acordo que implica nossa reação frente ao outro, o que, consequentemente, exige que deixemos um real espaço para o horizonte do outro e colocar-se no seu lugar, não para compreendê-lo em sua individualidade, mas para captar aquilo que ele diz.

632 Idem. 633 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 50. 634 GADAMER, Hans-George, 2014. 635 Nessa consonância Renata Ramos da Silva destaca que em Gadamer a linguagem atua como a matéria por meio da qual é desenvolvida a compreensão. Isso porque, aponta a autora, segundo o filósofo, os preconceitos dos interlocutores precisam estar mobilizados sob um ponto comum que permita a comunicação, o qual, nesse caso, é a linguagem. É por isso que: “a linguagem corresponderia ao aspecto concreto do fenômeno da compreensão, daí que estaria para a matéria assim como o sentido para a forma, cumprindo um papel determinante para a compreensão. O compreender, assim, se dá no meio da linguagem” (SILVA, Renata Ramos da, op. cit., p. 222-223). 636 PEREIRA, Viviane Magalhães, op. cit.

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No plano hermenêutico, essa situação do acordo empreendida na conversação apresenta um caráter próprio denominado como compreensão de textos. Por sua vez, o acordo na conversação, segundo Gadamer, que

[...] os interlocutores estejam dispostos a isso, abrindo espaço para acolher o estranho e o adverso. Quando isto ocorre de ambas as partes e cada interlocutor sopesa os contra-argumentos, ao mesmo tempo que mantém suas próprias razões, pode-se, por uma recíproca, imperceptível e involuntárias transferência dos pontos de vista (o que chamamos de intercâmbio de opiniões) chegar finalmente a uma linguagem e decisão comum.637

É mediante o diálogo – que, destaque-se, só é possível efetivar-se por meio da linguagem –, que o(s) sujeito(s) interpretante(s) pode(m), a partir da fusão de horizontes, encontrar uma linguagem e decisão comum. Essa conversação hermenêutica, destaque-se, é efetivada não apenas pela conversação, mas também pela interpretação dos textos, os quais são considerados pelo filósofo como “manifestações da vida fixadas de modo permanente” que também devem ser entendidas. Assim, o sentido do texto só pode ser encontrado pela conversação hermenêutica com o outro (nesse caso o intérprete)638. Nesse aspecto, Rodolfo Viana Pereira relembra que todos os nossos conceitos e preconceitos dependem da linguagem para sua transmissão, os quais, inclusive, assumem formatações distintas a depender da época, do lugar e das circunstâncias. Vale dizer, a linguagem não é um mero conjunto de signos que tem por desiderato reunir palavras que descrevem de forma objetiva coisas colocadas ao conhecimento de forma individual, de modo que o acesso aos fenômenos é sempre mediado na e pela linguagem639. Mais uma vez, Gadamer trabalha com a noção da fusão de horizontes que apregoa a necessária ligação entre o sentido do texto (lido a partir do horizonte passado) e o horizonte presente do intérprete, para, a partir da linguagem, descrever essa relação como forma de realização da conversação, por meio da qual “chega à expressão uma ‘coisa’ que não é somente minha ou de meu autor, mas uma coisa comum a ambos”640. A interpretação, por sua vez, da mesma forma que a conversação, carrega em si um circuito fechado marcado pela dialética da pergunta e resposta e se apresenta como uma

637 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 501. 638 GADAMER, Hans-George, 2014. 639 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit. 640 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 503.

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verídica relação histórica efetivada através da linguagem que, mesmo em se tratando de interpretação de textos, pode ser denominada como conversação. Do mesmo modo, também a tradição – conceito essencial na leitura gadameriana – possui a essência assentada na linguagem, o que traz variadas consequências para a hermenêutica, notadamente o fato de frente a outras formas de tradição, a compreensão daquela estabelecida na e pela linguagem possui uma especial primazia uma vez que:

A tradição de linguagem é tradição no sentido autêntico da palavra, ou seja, aqui não nos defrontamos simplesmente com um resíduo que se deve investigar e interpretar enquanto vestígio do passado. O que chegou a nós pelo caminho da tradição de linguagem não é o que restou, mas é transmitido, isto é, nos é dito – seja na forma de tradição oral imediata, onde vivem o mito, a lenda os usos e costumes, seja na forma da tradição escrita, cujos signos de certo modo destinam-se diretamente a todo e qualquer leitor que esteja em condições de o ler.641

O fato de a essência da tradição estar marcada por seu caráter linguístico642 lhe permite alcançar um significado hermenêutico pleno, pois ela (tradição) se torna escrita. Por isso, nessa forma tudo que é transmitido assume um caráter atemporal e alcança qualquer atualidade, pois há em si a união da existência do passado e do presente. Na forma escrita a tradição permite que a consciência do horizonte presente tenha um livre acesso a tudo que foi transmitido, convertendo-a numa parte do próprio mundo, de modo que o que ela comunica tem acesso imediato à linguagem643. Do mesmo modo, é apenas pela mediação na tradição da linguagem que o processo de compreensão pode se mover e efetivar, sendo a tarefa da hermenêutica exatamente essa “ao perguntar pelas condições de realização do compreender, buscar o encontro com o ser que nos

é transmitido linguisticamente”644. Ao tratar sobre o poder da linguagem em todo o processo de acesso ao conhecimento Richard Palmer salienta que

esta concepção alarga extraordinariamente o horizonte em que consideramos a experiência hermenêutica. O que se compreende pela linguagem não é só uma experiência particular as o mundo no qual ela se revela. O poder que a

641 Ibidem, p. 504. 642 O caráter linguístico da tradição é ressaltado por Lenio Luiz Streck quando afirma: “Tradição é transmissão. A experiência hermenêutica, diz o mestre, tem direta relação com a tradição. É esta que deve anuir à experiência. A tradição não é um simples acontecer que se possa conhecer e dominar pela experiência, senão que é linguagem, isto é, a tradição fala por si mesma” (STRECK, Lenio Luiz, 2014a, p. 298). 643 GADAMER, Hans-George, 2014. 644 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 52.

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linguagem tem de revelar ultrapassa mesmo o tempo e o espaço: um texto antigo de um povo há muito extinto pode tornar presente, com a mais espantosa exactidão, o mundo linguístico interpessoal que existiu entre essa gente. Assim os nossos próprios mundos de linguagem têm uma certa universalidade neste poder de compreender outras tradições e lugares [...]. É tão grande o poder de dizer da linguagem, que ele cria o mundo no interior do qual tudo pode ser revelado: o seu alcance é tão grande que podemos compreender mais diversos mundos que se exprimiram na linguagem; tão grande é o seu poder de revelação que mesmo um texto relativamente curto pode abrir um mundo diferente do nosso, um mundo que no entanto conseguimos compreender.645

Dessa forma, ao defender que “ser que pode ser compreendido é linguagem”, Gadamer acaba por converter a linguagem como o elemento da universalidade hermenêutica, o que jamais havia sido ressaltado anteriormente. Assim, “sendo a linguagem o locus privilegiado em que se realiza o evento da compreensão, todo fenômeno é, por derivação, linguisticamente delineado: tudo o que pode ser compreendido pelo homem também é linguagem”646 (grifos originais). Por fim e não menos importante, resta imperioso assinalar que a leitura gadameriana sobre a hermenêutica filosófica aliada à leitura ontológica fundamental de matriz heideggeriana implica uma nova visão sobre o direito, o qual passa a ser compreendido no novo lugar destinado à linguagem647. A partir dessa nova perspectiva, a linguagem é constituidora de mundo e condição de possibilidade, razão pela qual não está mais à disposição do intérprete/sujeito, antes, é o sujeito/intérprete que depende da linguagem648. Essa é a diferença fundamental entre as teorias anteriormente apresentadas (Hans- Kelsen, Herbert Hart, Carl Schmitt e Robert Alexy) que apostavam na relação sujeito-objeto, ou seja, que o conhecimento e a busca da verdade estariam centralizadas apenas nas coisas em si, ou posteriormente na relação sujeito-objeto, em que a verdade restaria à disposição da consciência do interpretante, ou mesmo a teoria argumentativa que relega o descobrimento da “verdade jurídica” a partir de métodos que acabam apostando em metacritérios e que se escoram na subjetividade quando da decisão final. Além disso, como se demonstrou, tais teorias consideravam a linguagem como terceiro elemento colocado entre o sujeito e o objeto, além de cindir, erroneamente, os momentos da compreensão – como se primeiro se

645 PALMER, Richard E., op. cit., p. 209. 646 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 53. 647 Conforme aponta Lenio Luiz Streck, a história do conhecimento é marcada basicamente por três fases: a) a primeira, efetivada na metafísica clássica, a preocupação sobre a verdade repousava sobre as coisas; b) na segunda, pela metafísica moderna, a verdade estava à disposição da consciência do intérprete; e c) apenas no paradigma exsurgente da filosofia da linguagem é que a preocupação está na palavra, na linguagem (STRECK, Lenio Luiz, 2014a). 648 STRECK, Lenio Luiz, 2014a.

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compreendesse, para depois interpretar e só então aplicar – o que contribuiu severamente para a consolidação dos problemas epistemológicos surgidos com relação à aplicação. A partir de Gadamer, a adequada interpretação exige uma nova postura do intérprete, que, na e pela linguagem e valendo-se da estrutura da compreensão (inclusive dos próprios preconceitos do sujeito), controlado pela tradição, mediante a fusão de horizontes (entre os sujeitos interpretantes e a coisa) e a partir da consciência histórica, consegue decidir adequadamente.

5.3 Gadamer e Supremo: Proposta de Aprimoramento da Justiça Constitucional a Partir de uma Ideia de “Hermenêutica Filosófica Dialógica”

Como se demonstrou no capítulo anterior, a hermenêutica filosófica apresentada por Gadamer possui caracteres que garantem um novo olhar para a busca pelo conhecimento (não apenas jurídico) e que implica uma mudança para o processo de compreensão e consequente aplicação das normas jurídicas. Inicialmente, a hermenêutica filosófica tem como pressuposto a superação do antigo esquema sujeito-objeto que, a partir da metafísica clássica, atribuía o conhecimento e busca pela verdade apenas nas coisas em si, ou seja, o objeto investigado assume uma posição essencial no processo de compreensão, a linguagem se apresenta como um mecanismo meramente intermediário. Do mesmo modo, superou-se a teoria proposta pela denominada “filosofia da consciência”, gerada pela metafísica moderna, a partir da qual a busca pela verdade e do conhecimento estaria centralizada não mais no objeto, mas na figura do intérprete, vale dizer, o objeto passa a ser constituído, modelado e orientado a partir das perspectiva do sujeito. Essa visão do denominado sujeito “assujeitador” que, conforme as coisas, a sua vontade acaba por privilegiar condutas solipsistas, uma vez que o “eu penso” acaba sendo o responsável pela definição dos sentidos, razão pela qual, mais uma vez, a linguagem é relegada a uma função intermediária. Essas concepções equivocadas sobre o papel intermediário ou meramente acessório da linguagem foram, inclusive, as premissas epistemológicas nas quais alguns importantes autores se fundamentaram em suas teorias sobre o processo interpretativo. Hans Kelsen, por exemplo, de modo a fundamentar a sua teoria normativa defendeu que há no processo interpretativo uma estrutura dupla no processo de aplicação do direito, que seria resultante de um ato de conhecimento, e, simultaneamente, um ato de vontade. Com isso, apresenta a ideia

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de “moldura normativa” como um espaço de indeterminação normativo que precisa ser preenchido, daí a necessidade da interpretação como ato de conhecimento, num primeiro momento, em que o intérprete deve identificar a partir do problema colocado quais são as soluções possíveis, para, a partir de um ato de vontade, selecionar a hipótese de solução que lhe parece mais adequada. A norma (objeto/coisa em si mesma) era o parâmetro a partir do qual o conhecimento deveria ser desvelado, o que, posteriormente, fora substituído pela subjetividade do intérprete, para o preenchimento, a partir de um ato de vontade, da norma a ser aplicado quando constatada uma indeterminação normativa. Herbert Hart, por sua vez, embora tenha reconhecido que a linguagem não pode ser vista como mero instrumento, mas verdadeiramente como elemento indispensável para a compreensão do mundo e do direito, também apostou no subjetivismo do intérprete para a resolução das chamadas zonas de penumbra, i.e, lugar reservado para a solução dos casos de dificultosa interpretação, ao defender que há e deve existir um espaço de discricionariedade para o intérprete. Já em Carl Schmitt a subjetividade do intérprete é elevada a outro patamar, pois sua teoria decisionista está atrelada aos conceitos de soberania, Estado de exceção e justificativa do poder político. O decisionismo está assentado no fato de que, para o autor, toda a decisão deve ser tomada pelo poder soberano, o qual não possui qualquer tipo de limitação e decidirá a partir de um ato discricionário e de vontade. Apenas no século XX, a partir do denominado Círculo de Viena, e também das contribuições de Ludwig Wittgenstein e Martin Heidegger, há um giro linguístico-pragmático extremamente essencial que afasta a vinculação do ser ao paradigma da consciência e eleva a linguagem como verdadeira condição de possibilidade para o pensar. Ou seja, a linguagem é o modo por meio do qual o mundo nos é conhecido, dado e interpretado. Gadamer, nesse sentido, veio a reforçar o giro linguístico para reconhecer o papel crucial desempenhado pela linguagem na busca pelo conhecimento, fato esse que trouxe implicações essenciais na forma pela qual a hermenêutica deve se balizar em sua atuação. É por isso que a proposta de aprimoramento da Justiça Constitucional no Brasil objetivada por essa tese, destaque-se, é calcada essencialmente a partir da hermenêutica filosófica em Gadamer e possui duas perspectivas: a) a primeira, de cunho teórico, busca promover uma reflexão e conscientização sobre o giro linguístico e a importância da linguagem no papel de busca pela verdade, bem como os perigos de ainda se manter preso à estrutura do esquema sujeito-objeto; e b) a segunda, de cunho prático, apresenta o mecanismo institucional do “diálogo entre Juízes” para, a partir da leitura gadameriana a respeito da fusão de horizontes e do diálogo hermenêutico, auxiliar no processo de construção de decisões mais

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adequadas e conformes ao texto constitucional. É por isso que se propõe aqui uma espécie de hermenêutica filosófica dialógica. Quanto ao primeiro ponto, é preciso que o STF enquanto órgão máximo da Justiça Constitucional no Brasil esteja ciente de todos os pressupostos apontados pela hermenêutica filosófica gadameriana, notadamente sobre a importância do giro linguístico e como isso impacta diretamente no processo de compreensão, interpretação e aplicação do direito, bem como a necessidade de que o caminho percorrido na busca pela “verdade” – nesse caso representada na decisão final constitucional adequada – percorra os caminhos da compreensão, respeitando a tradição e a historicidade e seus efeitos. Inicialmente, se faz necessário romper-se com o tradicional esquema sujeito-objeto marcado pela tradição das metafísicas clássica e moderna, que apostam na atribuição de verdade à coisa ou ao sujeito “assujeitador”, para passar a reconhecer que o conhecimento está na e pela linguagem, instrumento por meio do qual temos todo acesso ao mundo e à compreensão. Essa primeira premissa implica, por consequência, que a Corte Constitucional abandone as teorias filosóficas de fundamentação que, de alguma forma, acabem por relegar à linguagem um papel meramente intermediário, acessório, e que apostem na subjetividade do intérprete para a resolução das questões que lhe são apresentadas. Mesmo as teorias que acabam por apostar num certo tipo de “procedimento” ou fases que precisam ser seguidas para o ato de decidir, acabam, de algum modo, permitindo a subjetividade do intérprete, já que a escolha da decisão correta acabará sendo relegada a um ato de vontade/discricionariedade. Soma-se a isso o fato de que, comumente, há uma indevida cisão entre os atos de compreensão, intepretação e aplicação, como se fosse possível segregar as etapas que constituem todo o processo compreensivo, o que, no entanto, se mostra equivocado, como demonstrado alhures. Nesse sentido, pautando-se em Gadamer, não é outra a conclusão de Lenio Streck ao afirmar que:

Toda a interpretação começa com um texto, até porque, como diz Gadamer (1990, p. 274), “se querer dizer algo sobre um texto, deixa primeiro que o texto te diga algo”. O sentido exsurgirá, de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intérprete em dizê-lo, d’onde pré-juízos inautênticos acarretarão graves prejuízos hermenêuticos. Ou seja, ao contrário do que se diz, não interpretamos para, depois, compreender. Na verdade, compreendemos para interpretar, e a interpretação é a explicitação do compreendido, para continuar a usar as palavras de Gadamer. Essa explicitação não prescinde de uma estruturação no plano argumentativo (é o

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que se pode denominar de o “como apofântico”). A explicitação da resposta de cada caso deverá estar sustentada em consistente justificação, contendo a reconstrução do Direito, doutrinária e jurisprudencialmente, confrontando tradições, enfim, colocando a lume a fundamentação jurídica que, ao fim e ao cabo, legitimará a decisão no plano do que se entende por responsabilidade política do intérprete no paradigma do Estado Democrático de Direito.649

Disso resulta que ao interpretar o sujeito não está no cume de uma relação sujeito- objeto, mas antes está obrigatoriamente inserido no mundo linguístico, do qual pertence e depende, razão pela qual a atividade hermenêutica surge desse momento de auto compreensão650. Em outras palavras: “quando o operador do direito fala do Direito ou sobre o Direito, fala a partir do seu desde-já-sempre, o já-sempre-sabido sobre o Direito, enfim, como o Direito sempre-tem-sido [...]”651. E, para que a interpretação esteja protegida de arbitrariedades ou mesmo de pensamentos imperceptíveis, Gadamer aponta para a existência de uma estrutura prévia da compreensão, a qual demanda a necessidade de um olhar para “as coisas mesmas”. Ou seja, para o filósofo a compreensão é constituída por opiniões prévias do intérprete que influenciam quando da análise do objeto colocado sob sua análise. Até mesmo porque, repita-se, o próprio Wittgenstein, um dos responsáveis pelo giro linguístico-pragmático reconhecera a existência dos denominados jogos de linguagem, vale dizer, estruturas prévias a partir das quais o intérprete está colocado e que se vale quando da análise das coisas. Entretanto, essa pré-compreensão antecipadora de sentido não admite nenhum tipo de arbitrariedade, sendo a linguagem o instrumento que permitirá solapar qualquer tipo de arbítrio. Em verdade, segundo Gadamer, a resposta para enfrentar as arbitrariedades decorrentes dos preconceitos é estar aberto à opinião do outro, ou pelo menos que estejamos atentos às opiniões alheias, especialmente àquilo que é apresentado pelo próprio texto. Assim que uma consciência hermeneuticamente formulada deve estar aberta à alteridade do texto, o que permitirá um confronto entre as opiniões prévias e o que diz o texto. A legitimação dos preconceitos, por sua vez, estará assentada na tradição, conceito filosófico trazido por Gadamer e que também possui relação direta com a linguagem e com a ideia de historicidade. É por meio da relação circular existente na compreensão (círculo hermenêutico) que o sujeito, por meio de sua pré-compreensão, participa na definição do

649 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, constituição e autonomia do direito. Revista de Estudos Constitucionais (RECHTD), v. 1, n. 1, jan./jun. 2009, p. 71. 650 STRECK, Lenio Luiz, 2009. 651 Idem.

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sentido da coisa a partir de seus preconceitos, e o próprio objeto, durante o processo hermenêutico, atua e modifica a compreensão do intérprete652. É por isso que, para Gadamer, a compreensão é sempre uma tarefa produtiva e não meramente reprodutiva, ou seja, compreender significa sempre alcançar os sentidos de modo diferente, de modo que reconhecer a importância da distância temporal e dos efeitos da história efeitual – ambas atuando no processo de historicidade humano –, é essencial para que a compreensão seja efetivada de modo adequado, permitindo-se a apresentação de uma resposta hermeneuticamente correta para cada caso concreto. Nesse sentido, como bem ressalta Lenio Streck:

Com efeito, entendo ser possível encontrar uma resposta constitucionalmente adequada para cada problema jurídico. Hermenêutica é aplicação. Não há respostas a priori, que exsurjam de procedimentos (métodos ou fórmulas de resolução de conflitos). Em outras palavras, definitivamente não se percebe primeiro o texto para, depois, acoplar lhe o sentido (a norma). Isso quer dizer também que, na medida em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo – é unitário, o texto não está – e não aparece – desnudo, à disposição. A applicatio evita a arbitrariedade na atribuição de sentido, porque é decorrente da antecipação (de sentido) própria da hermenêutica de cariz filosófico. Aquilo que é condição de possibilidade não pode vir a se transformar em um “simples resultado” manipulável pelo intérprete. Afinal, não se pode esquecer que mostrar a hermenêutica como produto de um raciocínio feito por etapas foi a forma que o subjetivismo encontrou para buscar o controle do processo de interpretação. Daí a importância conferida ao método, supremo momento da subjetividade assujeitadora. Ora, a pré- compreensão antecipadora de sentido de algo ocorre à revelia de qualquer regra epistemológica ou método que fundamente esse sentido. A compreensão de algo precisa ser vista como algo que simplesmente ocorre, porque o ato de compreender é existencial, fenomenológico e não epistemológico. Qualquer sentido atribuído arbitrariamente será produto de um processo decorrente de um vetor (standard) de racionalidade de segundo nível, meramente argumentativo/procedimental, porque filosofia não é lógica e tampouco um discurso ornamental.653

Com isso, a primeira proposta trazida por meio do presente trabalho é clarificar os conceitos trazidos pela hermenêutica filosófica gadameriana para permitir um aprimoramento teórico na fundamentação da prestação jurisdicional levada a cabo pelo STF, vez que, como fora devidamente ressaltado no capítulo 3, tal órgão enfrenta uma nítida tensão em razão da prolação de decisões judiciais que estão numa linha extremamente sensível entre o exercício hermenêutico constitucionalmente adequado, de um lado, e de outro manifestações subjetivistas, calcadas em critérios metajurídicos e inadequados a partir do ideal democrático.

652 PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit. 653 STRECK, Lenio Luiz, 2009, p. 76.

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Daí a importância de se pautar teoricamente e compreender a construção hermeneuticamente adequada proposta por Gadamer que fora fruto de intensos estudos por Gadamer, e anteriormente, cujos tópicos centrais foram trabalhados por autores como Wittgenstein, Husserl, Heidegger, dentre outros. A segunda proposta, por sua vez, de caráter prático, parte dos conceitos de “fusão de horizontes” e “diálogo hermenêutico” propostos por Gadamer para propor uma aproximação com o “diálogo entre juízes/cortes”, dando luz a uma espécie de hermenêutica filosófica dialógica. Para se entender a correlação entre os conceitos trazidos por Gadamer e o diálogo entre juízes/cortes, é preciso antes definir o que significa o diálogo entre juízes/cortes, o que se faz a seguir. Inicialmente, é importante levar em consideração que o “diálogo entre juízes”, também conceituado como “diálogo institucionalizado entre Cortes”654, ou, ainda, “diálogo jurisdicional multinível”655, é comumente analisado a partir de um contexto de internacionalização, vale dizer, tenciona-se enfrentar esse processo de integração institucional pela perspectiva de um diálogo multinível e internacional, especialmente quando temas afetos aos direitos humanos fundamentais estejam em discussão656. Para Cláudia Márcia Costa e Wagner Gundim, o diálogo pode ser compreendido como:

[...] o uso de referências cruzadas e de forma qualificada entre Cortes Constitucionais, Tribunais internacionais e nacionais, bem como Juízes, que se traduz como verdadeira rede de informações institucionalizada (judicial network) e tem como finalidades: (i) o aperfeiçoamento da entrega jurisdicional reclamada; (ii) a eficiência/rapidez da decisão – atrelada também a uma ideia de razoável duração do processo; (iii) o estabelecimento de um consenso, de modo a reforçar a ideia de natureza jurídica e uniformidade do sistema; e (iv) a vinculação ao que fora decidido – o resultado do diálogo não pode ser opcional, mas vinculante, sob pena de o fenômeno quedar-se ineficiente.657 (grifo original)

654 ARAÚJO, Luís Cláudio Martins de; MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. O diálogo institucional entre Cortes Constitucionais: A jurisdição constitucional justificada pelos diálogos transnacionais. In: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; RAMOS, Paulo Roberto Barbosa (Orgs.). Teoria constitucional. Florianópolis: CONPEDI, 2015, v. 1, p. 1-28. 655 CAVALLO, Gonzalo Aguilar. Juiz constitucional e diálogo jurisdicional multinível: a experiência chilena. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 61-89, jan./abr. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rinc.v6i1.57697. 656 COSTA, Cláudia Marcia; GUNDIM, Wagner Wilson Deiró. O “diálogo entre juízes” como mecanismo de unidade institucional e decisória no âmbito do Supremo Tribunal Federal. In: STRAPAZZON, Carlos Luiz; SILVA, Lucas Gonçalves da; SILVEIRA, Vladimir Oliveira da. Anais III Jornada Interamericana de Direitos Fundamentais e I Seminário Nacional da Rede Brasileira de Pesquisa em Direitos Fundamentais [recurso eletrônico on-line]. São Paulo: RBPDF, 2017. 657 Ibidem, p. 5.

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Em síntese, o diálogo entre juízes “poderia expressar-se em uma prática entre dois ou mais juízes que manifestam suas ideias tentando chegar a um acordo. Nesse sentido, o diálogo entre juízes se entenderia como uma discussão, um acordo, uma busca por consenso” [...]658. Noutro turno, Maria Edelvacy Marinho e Solange Teles da Silva designam o fenômeno como um mecanismo que permite a Cortes hierarquicamente independentes a utilização de referências cruzadas para a tomada de suas próprias decisões. Destacam ainda que embora não se trate de uma novidade no mundo jurídico, a utilização de decisões proferidas por Cortes internacionais como parâmetro decisório tem provocado efeitos positivos, especialmente em razão da difusão de seu conteúdo decisório pelos meios digitais659, bem como pelo elevado grau de confiabilidade de tais informações660. Há, assim, uma tendência cada vez mais frequente na invocação do direito transnacional para a tomada de decisões locais pelas Cortes661, o que resulta não apenas numa salutar troca de experiências, mas também no valoroso e mútuo aprendizado decorrente desse diálogo institucional662. Além disso, como observado por Flávia Piovesan, é por meio do envolvimento de variados saberes e diversidade de atores existentes no diálogo que se verifica

658 CAVALLO, Gonzalo Aguilar, op. cit., p. 63. 659 Como apontam Patrícia Adriani Hoch e Fernanda Graebin Mendonça: “Desse modo, as decisões produzidas em alguns países são utilizadas como referência em outros, revelando a mobilidade do direito nos últimos anos e a possibilidade de que os juízes passem a estabelecer relações além-fronteiras, das formas mais diversas, dentre as quais se destacam: referência a julgamentos estrangeiros em decisões de âmbito nacional; intercâmbio de argumentos; formações comuns; diálogos entre tribunais; criação de associações transnacionais, de clubes ou sindicatos de juízes; capitalizações informais de jurisprudências, entre outros. Evidencia-se, assim, a ocorrência de um processo informal de integração normativa em escala mundial” (HOCH, Patrícia Adriani; MENDONÇA, Fernanda Graebin. Os diálogos entre juízes na jurisdição constitucional mundializada e a impossibilidade de realização do “cherry picking”. Anais do 5º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. Santa Maria/RS, 2019, p. 10). 660 MARINHO, Maria Edelvacy; SILVA, Solange Teles da. Diálogo entre juízes: condições e critérios para a identificação do fenômeno “diálogo entre juízes”. In: MARINHO, Maria Edelvacy; SILVA, Solange Teles da; OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva (orgs.). Diálogo entre juízes. Brasília: UniCEUB, 2014. 661 Essa frequente utilização do diálogo é apontada em variados países e autores, como por exemplo: (1) na Argentina: AMAYA, Jorge Alejandro. El diálogo inter-jurisdiccional entre tribunales extranjeros e internos como nueva construcción de las deciones judiciales. In: MEZZETI, Luca; CONCI, Luiz Guilherme Arcaro (Coords.). Diálogo entre cortes: a jurisprudência nacional e internacional como fator de aproximação de ordens jurídicas em um mundo cosmopolita. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2015; (2) No Paraguai: SALGUEIRO, Jorge Silvero. Paraguay: diálogo entre Tribunales Nacionales e Internacionales. In: MEZZETI, Luca; CONCI, Luiz Guilherme Arcaro (Coords.). Diálogo entre cortes: a jurisprudência nacional e internacional como fator de aproximação de ordens jurídicas em um mundo cosmopolita. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2015; e (3) no Reino Unido: FROSINI, Justin O. The domestic Law of the United Kingdom and Internacional and European Law: An ever more tense relationship. In: MEZZETI, Luca; CONCI, Luiz Guilherme Arcaro (Coords.). Diálogo entre cortes: a jurisprudência nacional e internacional como fator de aproximação de ordens jurídicas em um mundo cosmopolita. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2015. 662 ARAÚJO, Luís Cláudio Martins de; MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de, op. cit.

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a democratização da interpretação constitucional capaz de proporcionar uma ressignificação do direito663. A partir disso é possível apontar que o diálogo entre juízes decorre basicamente de três circunstâncias: a) a primeira, está atrelada à globalização/internacionalização do conhecimento, especialmente pelo desenvolvimento das plataformas digitais e meios de comunicação que permitem o acesso a diferentes ordenamentos jurídicos transnacionais de forma facilitada; b) a dificuldade apresentada pelos Estados na concreção dos direitos humanos fundamentais; e c) o elevado grau de insegurança jurídica nos ordenamentos jurídicos nacionais664. Vale ressaltar, conforme bem destacado por Anne-Marie Slaughter, que a efetivação do diálogo pode ocorrer em diversos graus, de modo que essa comunicação transjudicial pode se efetivar a partir de três vertentes: a) horizontal: nos casos em que a comunicação ocorre em Cortes – nacionais ou internacionais – de mesma estatura; b) vertical: o diálogo ocorre entre Cortes nacionais e Cortes supranacionais; ou c) vertical-horizontal: representa o diálogo misto, i.e, aquele que combina as comunicações vertical e horizontal, como, por exemplo, quando uma decisão nacional é distribuída perante as Cortes supracionais665. O diálogo entre juízes, assim, nada mais é que um mecanismo institucional que apregoa a necessidade de que o Poder Judiciário adote mecanismos por meio dos quais os responsáveis pela prestação jurisdicional, notadamente em órgãos colegiados – mas não apenas neles – possam dialogar visando chegar a um consenso sobre a decisão final. É importante registrar que o fenômeno do diálogo não se presta apenas e tão somente a uma mera conversa informal entre os julgadores666, mas efetivamente que sejam previstos mecanismos formais e bem estruturados que “constranjam” o Poder Judiciário a, antes de cumprir o seu papel, fundir o seu horizonte com o de outros julgadores, como forma de se

663 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In: MEZZETI, Luca; CONCI, Luiz Guilherme Arcaro (Coords.). Diálogo entre cortes: a jurisprudência nacional e internacional como fator de aproximação de ordens jurídicas em um mundo cosmopolita. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2015, p. 83-116. 664 COSTA, Cláudia Marcia; GUNDIM, Wagner Wilson Deiró, op. cit. 665 SLAUGHTER, Anne-Marie. A global community of courts. Harvard International Law Review, Cambridge, v. 44, n. 1, 2003. 666 No caso do Brasil, como se sabe, o diálogo assume um caráter meramente informal, especialmente no âmbito dos Tribunais Estaduais ou Federais. Isso porque, é muito comum que em momentos informais, como uma roda de conversa entre os julgadores, ou em momentos que antecedem o início da sessão, os desembargadores acabem por comentar um ou outro caso de maior relevância, ou nos casos em que irão divergir de seus pares, alguns Tribunais têm por praxe informal a disponibilização dos votos no dia anterior à sessão. No entanto, até mesmo em função da exiguidade temporal, não há um diálogo no sentido técnico do termo, pois geralmente os julgadores apenas antecipam suas opiniões e votos já afirmando (e não dialogando) qual a sua decisão. Da mesma forma, se sabe que alguns Tribunais e até mesmo ministros do STF têm a prática de disponibilizar as minutas de votos antes das sessões, para evitar surpresas durante o julgamento, mas, além de não se tratar de uma prática formalizada no âmbito dos regimentos, não representa tecnicamente um diálogo.

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entregar a decisão mais adequada. A ideia central é facilitar a troca de juízos e proposições, bem como evidenciar a oposição e contradição a respeito do caso concreto, o que abrirá ao outro questões que, eventualmente, não tenham sido percebidas por um dos julgadores. Daí a importância da hermenêutica filosófica de Gadamer também como fórmula de aprimoramento da atuação do STF, mas agora sob um viés prático. Isso porque, a partir da definição que se viu alhures sobre o conceito de diálogo entre juízes, é possível fazer uma correlação com os conceitos de fusão de horizontes e diálogo hermenêutico trabalhados por Gadamer. Conforme linhas atrás, para Gadamer, todo ser humano é constituído por preconceitos que o moldam e definem a sua condição de ser no mundo. Eles (preconceitos), diferentemente do que se costuma apregoar, não são necessariamente juízes negativos, podendo se constituir em antecipações de sentido adequadas, desde que aderentes a parâmetros de validade e adequação (daí a importância da distância temporal e da tradição trabalhadas pelo filósofo, como se viu). Com isso quer Gadamer defender que uma situação hermenêutica é delimitada pelos preconceitos carregados pelo intérprete. No entanto, advertirá o autor, o horizonte do presente que forma os preconceitos do intérprete não está desvinculado do passado. É por isso que para ele:

O horizonte do presente não se forma pois à margem do passado. Não existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como não existem horizontes históricos a serem conquistados. Antes, compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos. Conhecemos a força dessa fusão sobretudo de tempos mais antigos e da ingenuidade de sua relação com sua época e com suas origens. A vigência da tradição é o lugar onde essa fusão se dá constantemente, pois nela o velho e o novo sempre crescem juntos para uma validez vital, sem que um e o outro cheguem a se destacar explícita e mutuamente.667

Em outras palavras: ao propor a fusão de horizontes Gadamer tenciona garantir que o processo de compreensão não seja pautado exclusivamente a partir do horizonte presente do intérprete, já que isso além de levar a uma desconsideração da situação temporal do objeto constituído (quando a coisa ou o texto foram criados a historicidade era outra), pode conduzir a arbitrariedades. Por isso que, para o autor, a partir de uma consciência humana marcada pela historicidade e finitude, o sentido deve ser buscado sempre a partir dessa fusão entre o horizonte presente daquele que interpreta, e, do outro, do horizonte passado em que o texto está inserido.

667 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 404-405.

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Essa fusão de horizontes permitirá ao intérprete descobrir um novo horizonte, excluindo do processo compreensivo a possibilidade de que o sujeito seja visto como soberano no processo interpretativo, vale dizer, como sujeito-assujeitador, que conforma o sentido das coisas à sua discricionariedade. É por isso que, para Gadamer, a verdade de um texto não será encontrada apenas na opinião individual do seu autor668, tampouco exclusivamente nos preconceitos do intérprete, mas antes na fusão desses horizontes que deve ser intermediada pela tradição, inserida na historicidade humana. Essa fusão, que também pode ser denominada de diálogo hermenêutico, não se dá apenas do intérprete com o texto, mas de intérprete para intérprete, como verdadeira condição de efetivação da compreensão. É por isso que Victor Gameiro Drummond destaca que:

A fusão de horizontes entre os interlocutores-hermeneutas é necessária para que o diálogo hermenêutico possa ocorrer. Mas há de se atentar ao fato de que não se está diante de uma média de compreensão, mas de uma possibilidade de interpretação. A facticidade não pode impedir a compreensão do outro, nem a própria posição do sujeito pode impossibilitar a hermenêutica pela simples constatação de uma diferença conceitual ou mesmo de horizontes. Ou, visto de outra forma, a fusão de horizontes é a possibilidade do diálogo, em que o interlocutor irá deslocar-se de uma visão do horizonte que ocupa para buscar alcançar a hermenêutica.669

Para que a compreensão consiga alcançar um acordo de vontades válido e seguro sobre o sentido do texto ou das coisas, exige-se a efetivação da fusão de horizontes/diálogo hermenêutico, o que permitirá que, sendo mediado pela linguagem, os interlocutores possam chegar a uma espécie de acordo semântico e alcancem um resultado balanceado, como se fosse uma média da compreensão. Ainda, como bem consignado pelo próprio Gadamer ao tratar sobre o acordo na conversação,

o acordo na conversação implica que os interlocutores estejam dispostos a isso, abrindo espaço para acolher o estranho e o adverso. Quanto isto ocorre de ambas as partes e cada interlocutor sopesa os contra-argumentos, ao mesmo tempo que mantém suas próprias razões, pode-se, por uma recíproca, imperceptível e involuntária transferência dos pontos de vista (o que chamamos de intercâmbio de opiniões) chegar finalmente a uma linguagem e uma decisão comum.670

668 Por isso que “não há que se falar em conhecimento gerado por meio de um movimento unidirecional que parte do sujeito, unidade absoluta de compreensão, em direção ao objeto, realidade externa dotada de um sentido perene acessível por um procedimento controlável em sua isenção. É novamente o significado do círculo hermenêutico que aparece em toda a sua extensão” (PEREIRA, Rodolfo Viana, op. cit., p. 48). 669 DRUMMOND, Victor Gameiro, op. cit., p. 322. 670 GADAMER, Hans-George, 2014, p. 501.

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É possível, com isso, demonstrar a possibilidade de uma aproximação entre a hermenêutica filosófica em Gadamer e seus conceitos de fusão de horizontes e diálogo hermenêutico com o fenômeno do diálogo entre juízes, uma vez que ambos têm por objetivo promover o diálogo, com intensas fusões de horizontes e sentido para que o resultado da compreensão seja o mais adequado possível, e, consequentemente, livre de arbitrariedades. No caso do STF, como se viu e discutiu, o instituto do diálogo entre juízes pode ser um mecanismo extremamente valoroso para seu aprimoramento como Corte Constitucional, especialmente pelo fato de sua configuração hoje como “onze ilhas” dotadas de pretensa autossuficiência decisória e nítida ausência de posicionamento como Corte. Essa ausência de unidade decisória foi evidenciada não só pelos casos anteriormente discutidos, mas também pelas reiteradas notícias a respeito de conflitos internos entre membros do próprio Tribunal, o que acaba por gerar discussões sobre o real papel da Justiça Constitucional no país, o que não se pode admitir. Como salientado no início do presente trabalho, não se busca aqui desmoralizar ou mesmo criticar a legitimidade do STF no país enquanto órgão máximo da Justiça Constitucional, mas, ao contrário, o que se propõe é uma mudança de cunho teórico (a tomada dos pressupostos filosóficos trazidos por Gadamer), mas também prático (diálogo entre juízes) para robustecer o papel do órgão no sistema constitucional brasileiro. Daí a importância de se criar um mecanismo formal e bem estruturado que operacionalize e imponha a existência do diálogo dentro do STF como condição obrigatória antes da prolação de decisões sobre temas relevantes. Aqui vale o registro de que não se está a propor que todas as decisões do STF devam possuir o mesmo conteúdo, ou que os ministros não possam divergir, o que seria impossível. O que se pretende é estabelecer uma cultura de diálogo que implique necessária fusão de horizontes, com real e adequado compartilhamento de preconceitos (no sentido gadameriano), fundindo-se essas antecipações de sentido para que o resultado final seja coerente e, mais importante, constitucionalmente adequado. O objetivo do diálogo é justamente suscitar discussões, levantar perspectivas históricas, filosóficas e sociológicas, mas antes de tudo, como diz Gadamer, estar atento à alteridade do que o próprio texto fala, mas também se colocar na perspectiva do outro. É importante também rechaçar desde logo que o simples fato de se ter a discussão plenária no âmbito do STF demonstraria a existência de diálogo. Isso porque, pela prática adotada pela Corte nos últimos anos – quiçá desde sempre –, não há diálogo, não há fusão de horizontes e perspectivas, especialmente porque, via de regra, todos os julgadores chegam

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para a sessão de julgamento com os seus preconceitos isolados e já bem definidos desde logo. O que se faz é colocar sua opinião perante os outros buscando sagrar-se vencedor no sentido que ele (intérprete) atribuiu ao texto constitucional. Isso não é diálogo, tampouco fusão de horizontes partindo-se da alteridade do texto ou da perspectiva do outro. Não bastasse a completa ausência de diálogo, é importante lembrar que a estrutura atual não apenas do STF, mas da totalidade de órgãos do Poder Judiciário no País, não está preparada para suportar a quantidade exacerbada de demandas diariamente distribuídas, ou que ainda pendem de julgamento final671. Esse fator, por óbvio, acaba por contribuir para a precarização da prestação jurisdicional, que reclama uma duração razoável, e diminui consideravelmente as chances de efetivação de uma verdadeira fusão de horizontes. Inclusive, uma solução paliativa apresentada pelo Poder Judiciário no Brasil para resolver o problema da alarmante quantidade de processos foi a implementação de julgamentos por meio virtual. No caso do STF, o denominado “Plenário Virtual” foi inicialmente implementado no seu Regimento Interno no ano de 2007 exclusivamente para análise, por seus ministros, a respeito da existência ou não de repercussão geral de recursos extraordinários. Desde então, diante da pulverização cada vez mais frequente de demandas, o julgamento por meio virtual foi se tornando cada vez mais frequente, até que em 6 de junho de 2019, por meio da Emenda Regimental 52, de 14 de junho de 2019, a Corte acrescentou o art. 21-B ao seu regimento interno, por meio da qual ampliou significativamente a quantidade de processos e matérias que podem ser julgadas pela Corte672, senão veja-se:

Art. 21-B. O Relator poderá liberar para julgamento listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico. Parágrafo único. A critério do Relator, poderão ser submetidos a julgamento em ambiente eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário, os seguintes processos: I – agravos internos, regimentais e embargos de declaração; II – medidas cautelares em ações de controle concentrado; III – referendum de medidas cautelares e de tutelas provisórias; IV – recursos extraordinários e agravos, inclusive com repercussão geral reconhecida, cuja matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF;

671 Apenas para que se tenha uma ideia geral, o acervo atual do STF possui até o dia 10.1.2020, 31.681 (trinta e um mil, seiscentos e oitenta e um processos), conforme estatística disponibilizada pela própria Corte. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=acervoatual. 672 Para aprofundamento sobre os aspectos atinentes ao desenvolvimento do plenário virtual e sua evolução, ver: a) COELHO, Damares Medina. A repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. 2014. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014; e b) PASSOS, Hugo Assis. Repercussão geral da questão constitucional e o meio eletrônico de julgamento: a progressiva concentração de poderes do relator no Supremo Tribunal Federal diante do desenho institucional e da ampliação de competência do plenário virtual. 2016. Dissertação (Mestrado) – Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, 2016.

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V – demais classes processuais cuja matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF.

Como se vê, mesmo em casos relevantes como ações relativas ao controle de constitucionalidade de leis o STF poderá julgá-las pelo Plenário Virtual, procedimento que, embora agilize o julgamento das demandas, permitindo uma prestação jurisdicional mais rápida, acaba dificultando ou impossibilitando o diálogo. Vale dizer, ganha-se em eficiência – a quantidade de processos julgados é consideravelmente maior –, mas perde-se em qualidade – vez que não há efetivamente debates frutíferos ou troca de horizontes válidos para a prestação jurisdicional. A operacionalização do plenário virtual, inclusive, reforça o argumento da ausência de diálogo como se ora propõe. Isso porque por expressa previsão de artigos que compõem a Resolução 642, de 14 de junho de 2019, editada pelo STF para dispor sobre o julgamento de processos em lista nas sessões presenciais e virtuais da Corte, prevê que:

Art. 2º As sessões virtuais serão realizadas semanalmente e terão início às sextas-feiras, respeitado o prazo de 5 (cinco) dias úteis exigido no art. 935 do Código de Processo Civil entre a data da publicação da pauta no DJe, com a divulgação das listas no sítio eletrônico do Tribunal, e o início do julgamento. § 1º O relator inserirá ementa, relatório e voto no ambiente virtual; iniciado o julgamento, os demais ministros terão até 5 (cinco) dias úteis para se manifestar. § 2º A conclusão dos votos registrados pelos ministros será disponibilizada automaticamente, na forma de resumo de julgamento, no sítio eletrônico do STF. § 3º Considerar-se-á que acompanhou o relator o ministro que não se pronunciar no prazo previsto no § 1º. § 4º A ementa, o relatório e voto somente serão tornados públicos com a publicação do acórdão do julgamento. § 5º O início da sessão de julgamento definirá a composição do Plenário e das Turmas. § 6º Os votos serão computados na ordem cronológica das manifestações.

Observe-se com especial atenção a regra disciplinada no § 3º do indigitado art. 2º: se iniciado o julgamento virtual e ultrapassado o prazo de cinco dias pelos ministros sem qualquer manifestação sobre o voto do relator, considerar-se-á que a sua inércia implica em concordância com o voto prolatado. Dessa forma, numa situação hipotética de difícil configuração, mas possível, se apenas o relator inserir o voto no sistema e todos os demais ministros simplesmente deixarem de se manifestar no prazo previsto pela Resolução, o julgamento será tido por realizado, e, sem qualquer tipo de diálogo, a decisão que deveria ser

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tomada por um Tribunal – destaque-se, o mais importante do país –, foi na verdade efetivada individualmente por um único ministro. Ao analisar o comportamento do STF adotado no âmbito do plenário virtual entre os anos de 2010 a 2016, Hugo Assis Passos salienta que:

Analisando o comportamento decisório do STF, adotado no plenário virtual na última década, pode-se esperar que, com cinco dias para julgamento de agravos regimentais e embargos de declaração, apenas o relator proferirá seu voto (MEDINA, 2016a). Porquanto, em uma perspectiva paralela ao julgamento da repercussão geral, constata-se que apenas o relator do processo fundamenta o seu voto e os demais ministros possuem prazo de 20 dias para se manifestar e, mesmo votando apenas sim ou não, os ministros deixam de votar em 30% dos casos de repercussão, gerando a prevalência do voto do relator em 99% dos casos, tanto em razão do quórum qualificado, quanto pelo alto índice de abstenção dos ministros (MEDINA, 2016a). Assim, diante do número maior de recursos internos – listas – e do prazo de apenas 5 dias para votar, é factível que as omissões dos ministros aumentarão significativamente. Desta feita, a ampliação da competência do plenário virtual pode gerar efetivas ofensas aos princípios constitucionais processuais, assim como o dever de fundamentação das decisões de modo efetivo.673

Com isso, percebe que o desenho institucional do STF nos dias atuais não facilita a existência do diálogo entre juízes, o que justifica a necessidade de um instrumento institucional que garanta a fusão de horizontes dos intérpretes para que o processo de compreensão seja alcançado de forma adequada, i.e, longe de perspectiva subjetivistas ou meramente objetivistas, para entrega de uma decisão final hermenêutica e constitucionalmente adequada. Por isso que, mediante uma proposta de cunho prático, esse trabalho propõe que o STF adote o mecanismo do diálogo entre juízes no âmbito de sua estrutura interna, de modo a prover decisões cunhadas pelo modelo gadameriano da fusão de horizontes. Para isso, não se exige muito, basta que: a) qualquer um de seus ministros, comissões ou o presidente da Corte apresentem uma proposta de Emenda Regimental de modo a criar no âmbito do Regimento Interno do Tribunal o mecanismo do diálogo; e b) a proposta seja aprovada pela maioria absoluta dos membros do Tribunal, nos termos previstos pelo art. 362 do Regimento Interno.

673 PASSOS, Hugo Assis, op. cit., p. 88.

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É importante consignar a perfeita possibilidade de criação do mecanismo do diálogo entre juízes pela via regimental, ao se considerar que é de competência exclusiva do próprio STF, mediante regimento, dispor sobre questões de cunho administrativo e de interesse direto da Corte, o que é o caso. Vale dizer, não se está aqui a propor uma questão de matéria processual constitucional, o que demandaria, em função da CF de 1988, regulamentação pela via legislativa. O fenômeno do diálogo visa a regulamentar questão de organização interna do Tribunal, ainda que os efeitos de sua utilização se desdobrem nas demandas de sua competência. Ademais, ao menos inicialmente, seria importante traçar uma delimitação das matérias e situações em que o diálogo entre juízes deve ocorrer, pois em função da exacerbada quantidade de processos do Tribunal, criar um mecanismo fora da realidade possível de sua efetivação representaria uma utopia. É por isso que, para fins desta pesquisa, entende-se como razoável que o mecanismo do diálogo seja direcionado exclusivamente aos casos que envolvam discussão no âmbito do processo de controle concentrado de constitucionalidade. No que tange ao conteúdo material, levando-se em conta as definições de fusão de horizontes e diálogo hermenêutico trabalhadas por Gadamer, a proposta desta tese é de que o diálogo no STF seja operacionalizado da seguinte maneira: antes das sessões de julgamento sobre processos que envolvam o controle de constitucionalidade concentrado, todos os ministros do STF, bem como as partes do processo e seus representantes, devem participar de uma sessão preliminar, momento em que as teses centrais do processo devem ser discutidas. Não haverá nesse momento inicial disponibilização de votos ou mesmo antecipação do que será decidido, mas um diálogo por meio do qual todos os julgadores poderão apresentar os seus preconceitos e horizontes de sentido sobre o tema discutido. Nesse mesmo momento, inclusive, deve-se permitir a realização de eventuais pedidos de sustentação oral pelos advogados, notadamente para que também a perspectiva das partes seja integrante da decisão posterior e final que será tomada – já que no modelo atual o impacto das sustentações é quase nulo, pois os patronos são ouvidos depois que a decisão já foi em regra redigida, ao menos pelo relator. Com base nas propostas indigitadas, propõe também desde logo uma possível redação para uma Emenda Regimental:

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Do Diálogo entre Juízes nos Casos de Controle Concentrado de Constitucionalidade

Art. [...]. Nos casos que envolvam ações relativas ao controle concentrado de constitucionalidade, a Corte designará uma sessão preliminar antes da realização da sessão de julgamento, para permitir que os ministros, as partes e seus patronos, inclusive por meio de sustentação oral, apresentem suas opiniões e divergências a respeito do caso concreto. Parágrafo Único: A sessão de julgamento final deverá ser realizada no prazo máximo de [...] dias úteis/corridos contados da data de realização da sessão preliminar, momento em que os ministros apresentarão suas decisões finais sob a forma de acórdãos.

É óbvio que a simples criação do mecanismo, desprovido de uma importante mudança de mentalidade dos julgadores a respeito do necessário afastamento de subjetivismos (daí a importância da proposta filosófica que também aqui se propôs) não conseguirá promover a mudança objetivada nesse trabalho. Mas a sugestão precisa ser apresentada, para que o STF possa permanecer exercendo a sua função primordial de guarda da Constituição, e que o exercício da jurisdição constitucional não seja visto como um instrumento de manipulação do poder – como alguns costumam apontar –, mas como verdadeira proteção do espírito constituinte. É perceptível que a criação do diálogo nos termos acima expostos, notadamente pela proposta de realização de uma sessão preliminar, trará uma morosidade aos julgamentos. Entretanto, como também se destacou, enquanto se perde de um lado em termos de eficiência/produtividade decisória, ganha-se do outro em qualidade de decisão. Vale ressaltar, inclusive, que o controle concentrado de constitucionalidade é um dos mecanismos mais importantes previstos pelo texto constitucional, eis que lida diretamente com a manutenção da higidez e supremacia constitucional, o que justifica um processo cuidadoso e uma decisão imbuída de maior qualidade hermenêutica, por assim dizer. Espera-se, com isso, que a legitimidade e importância do STF enquanto órgão máximo da Justiça Constitucional no Brasil sejam percebidas por todos, e que o diálogo entre juízes, na perspectiva de fusão de horizontes, comece a se tornar uma prática recorrente em todo o Poder Judiciário brasileiro.

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Por derradeiro, apenas para ressaltar que há aqui a proposta de uma hermenêutica filosófica dialógica, nomenclatura que se propõe a partir da fusão entre a filosofia de matriz gadameriana com o fenômeno do diálogo entre juízes.

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CONCLUSÃO

A proposta da presente tese foi analisar a aplicabilidade da hermenêutica filosófica gadameriana como mecanismo de aprimoramento das interpretações produzidas pelo STF com relação aos casos que lhe sejam submetidos, enquanto órgão máximo da Justiça Constitucional no Brasil. Isso porque percebeu-se que algumas das decisões prolatadas pelo indicado órgão enfrentam uma tensão problemática entre, de um lado, o exercício hermenêutico adequado e, de outro, a possível prática de decisões subjetivistas, que acabam por desconsiderar a essência do texto constitucional. Para desenvolvimento do trabalho proposto, partiu-se originariamente de duas problemáticas centrais. A primeira, questionou se a atuação jurisdicional do STF estaria se dando em perfeita consonância ao quanto estabelecido pelo texto constitucional quando da prestação jurisdicional reclamada para, posteriormente, discutir se a hermenêutica filosófica proposta por Gadamer se apresentaria como um instrumento viável para, cumulativamente, limitar e aprimorar a atuação do Supremo, permitindo se chegar a uma ideia hermeneuticamente mais adequada. Para responder à primeira problemática, tornou-se necessário inicialmente entender qual é a gênese e justificação da relação estabelecida entre o texto constitucional e o papel do Tribunal Constitucional na qualidade de defensor da integridade da Constituição. Embora se tenha demonstrado que o conceito de Justiça Constitucional contemple não apenas o STF, mas também outros juízes e tribunais que tenham como competência a fiscalização e aplicação da Constituição – dever atribuído a todas as instâncias judiciais no Brasil, especialmente pelo modelo híbrido de controle de constitucionalidade adotado –, o recorte metodológico adotado direcionou a análise sobre indicado órgão. A partir disso, discorreu-se sobre o desenvolvimento do constitucionalismo e da noção de Estado de Direito, momento essencial a partir do qual se passou a reconhecer não apenas o caráter de “entidade viva” da Constituição – isto é, a sua necessária interligação com a situação histórica e social o que permite concretizar o seu papel regulador. A noção de supremacia constitucional com a consequente visão sobre a necessidade de que todas as normas devem conformação à Constituição, por sua vez, fez nascer o controle de constitucionalidade das normas, função que, assim como a de limitação da atuação Estatal, e permitiu o surgimento dos modelos clássicos de Justiça Constitucional no mundo (modelo americano / modelo austríaco / sistema misto) solidificando a sua legitimidade.

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Na sequência, discorreu-se sobre as funções da Justiça Constitucional ressaltando que, além de atividade de defesa da integridade constitucional (tarefa primordial), os órgãos que a compõem ainda possuem outras atividades essenciais que, a partir de estruturação indicada por André Ramos Tavares, desdobram-se em funções interpretativa, estruturante, arbitral, governativa e legislativa. A função interpretativa, por sua vez, assume uma posição central pela Justiça Constitucional, apresentando-se ainda como de difícil e delicada compreensão, haja vista que: a) há uma importante diferença entre texto escrito (enunciado) e norma, o que significa dizer que a Justiça Constitucional não pode criar novos enunciados, tarefa exclusiva do legislativo, o que acaba por limitar a função; b) as interpretações efetivadas pelo Tribunal Constitucional possuem posição hierárquica semelhante às normas que decorrem do Poder Constituinte originário; e c) ao interpretar a Constituição, o Tribunal Constitucional complementa o texto da Constituição, o que representa um perigo latente, pois a significação da Constituição pode ser indevidamente assenhorada pelo órgão. Discutiu-se também um tema sempre levantado a respeito da legitimidade da Justiça Constitucional em função de eventual caráter político assumido pelas Cortes Constitucionais, notadamente pela possibilidade de que, no exercício de suas funções, tenham que decidir sobre questões de cunho político, o que poderia lhes trazer uma conotação mais política que jurídica. Do mesmo modo, é extremamente comum se questionar sobre a legitimidade a partir de uma perspectiva democrática quando se verifica a constituição das Cortes por procedimentos que prescindem da escolha popular. Esclareceu-se que o enfrentamento de temas políticos pelos Tribunais Constitucionais se mostra inevitável, o que faz com que as funções desempenhadas assumam um viés político, especialmente quando se constata que os problemas constitucionais são verdadeiramente problemas de poder e não apenas tecnicamente jurídicos. Do mesmo modo, as questões políticas estão imbricadas na própria Constituição, o que se constata pela existência de normas com cláusulas aberta e também pelos princípios trazidos pelo texto constitucional dotados de maior abstração. No entanto, ainda que a matéria seja política, a decisão adotada pela Corte Constituição deverá ser sempre jurídica, vale dizer, a sua fundamentação deve obediência irrestrita ao ordenamento jurídico. Assim, há verdadeiramente uma simbiose entre os aspectos político e jurídico, o que reforça a legitimidade do Tribunal Constitucional quando, mediante uma técnica racional e argumentativa de caráter essencialmente jurídico, decide questões políticas.

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Do mesmo modo, demonstrou-se que a legitimidade da Justiça Constitucional também é identificada a partir de uma análise democrática, especialmente nos países que adotam um processo de escolha dos ministros que integram o Tribunal Constitucional por indicação do Chefe do Poder Executivo, ou seja, por uma escolha de cunho político/discricionário. Embora defenda que o processo de escolha dos ministros deva passar por modificações, o presente trabalho reafirma a legitimidade da Justiça Constitucional, especialmente pelos seguintes argumentos: a) a vitaliciedade garantida pela Constituição aos ministros do STF é capaz de afastar a influência e constrangimento que existiria caso a permanência dos integrantes do Tribunal dependesse de ato dos órgãos que o escolheu, de modo que sem a necessidade de serem “reconduzidos” ao cargo, não precisarão reavaliar e manifestar opiniões pensando em sua reeleição; b) de acordo com dados apresentados no decorrer do trabalho, estimou-se que a Corte apresentou um elevado grau de decisões consensuais, além de um grau considerável de independência e responsabilidade pela maior parte dos ministros do STF no país; c) o caso da AP 470 (Caso Mensalão) foi um nítido exemplo dessa desvinculação, quando o então relator ministro Joaquim Barbosa, escolhido pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, condenou diversos integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), atribuindo-lhes rigorosas penas previstas na lei; d) a existência de vedação expressa na Lei orgânica da magistratura de que os integrantes do Judiciário exerçam atividade político-partidária; e e) mesmo que não sejam escolhidos a partir de escolha popular, ainda assim o regime democrático resta garantido, especialmente quando se vislumbra que o papel assumido pela Justiça Constitucional é contramajoritário em defesa dos elementos essenciais da Constituição. Ainda, abordou-se a evolução da função interpretativa assumida pela Justiça Constitucional, uma vez que é por meio dela que os Tribunais Constitucionais exercem sua missão institucional: assegurar a integridade do texto Constitucional. Dito isso, consignou-se a defesa inicial de que a Justiça Constitucional deveria atuar como um legislador negativo, vale dizer, no âmbito de sua atuação somente seria reconhecida a função de invalidação das leis contrárias ao texto constitucional, de modo que a tarefa de criação do direito só seria admitida em pequena medida. A fundamentação para a tese do legislador negativo se fundamentava principalmente em dois fundamentos principais: a) a criatividade judicial deveria ser restrita em função da limitação trazida pelo próprio texto constitucional; e b) impedir que o Tribunal Constitucional causasse desequilíbrio na fórmula da separação de poderes. Entretanto, conforme se demonstrou, essa concepção sobre o legislador negativo tem sido cada vez mais questionada na atual hermenêutica constitucional, notadamente em função

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do Constitucionalismo contemporâneo e do papel assumido pelos direitos fundamentais na atividade interpretativa, que justificam a abertura interpretativa trazida pelo texto constitucional. Por isso, é importante reconhecer que o papel de criação normativa pela Corte Constitucional é real e igualmente legítimo. A preocupação deve girar em torno não sobre a possibilidade de criação, mas no grau criativo admitido sem que haja uma violação à legitimidade democrática. No caso do STF brasileiro, discorreu-se ainda sobre a sua evolução no país e se demonstrou, tecnicamente, que ele não pode ser considerado como um Tribunal Constitucional no sentido de corpo técnico e especializado, em função da exacerbada quantidade de funções que lhe são atribuídas pelo texto constitucional. Após apresentar os contornos teórico e técnico que revestem a ideia de Justiça Constitucional, o trabalho passou a analisar, a partir de uma perspectiva prática, se a atuação do STF brasileiro, enquanto órgão máximo da Justiça Constitucional, estaria respeitando a integridade do texto constitucional ou se estaria sendo guinada para qualquer direção, a partir de leituras decisionistas. Antes, contudo, foram apresentadas situações peculiares que têm levantado questionamentos sobre a atuação legítima do órgão, quais sejam a) a ausência de unidade decisória no âmbito do STF, já que em variados casos o que se percebe é que a decisão final representa a mera somatória dos votos dos ministros, não havendo um pronunciamento final como Corte Constitucional que o é; b) nos últimos dois anos foram protocolados perante o Senado Federal dez pedidos de impeachment contra ministros do Supremo, quase todos a partir de decisões adotadas pelos integrantes que teriam contrariado o texto constitucional; e c) a apresentação de variadas propostas de EC que tramitam no Congresso Nacional que têm por objetivo restringir a intervenção da Corte no processo político sob a alegação de ativismo judicial e invasão de competência dos demais poderes. Para que a análise aqui proposta não assumisse um caráter meramente teórico, o trabalho analisou a manifestação do STF em cinco recentes julgados a saber: a) a eficácia erga omnes das decisões prolatadas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade: por meio de julgamento iniciado em 1º de fevereiro de 2007 a Suprema Corte discutiu o teor da Reclamação Constitucional 4.335, ajuizada pela Defensoria Pública da União contra decisões proferidas pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC indeferindo a progressão de regime para condenados a penas de reclusão sob o regime integralmente fechado pela prática de crimes hediondos. Embora o caso tenha aparentado se tratar apenas de uma questão processual penal, em verdade, trouxe

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importantes contornos do ponto de vista constitucional, uma vez que passou a rediscutir o papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade de leis e atos normativos, propondo uma releitura da dicção do art. 52, inciso X, da Constituição, de modo a constar que o papel da Casa legislativa se limitaria agora apenas a dar publicidade à decisão do STF (perdendo-se a outrora função de suspender a execução de lei); b) flexibilização dos efeitos do trânsito em julgado pela possibilidade de prisão após decisão condenatória por órgão colegiado de segunda instância: aqui, inicialmente por meio do julgado do HC 126.292, ocorrido em 17 de fevereiro de 2016, o STF passou a admitir a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença por órgão colegiado em segundo grau. Posteriormente, o tema foi discutido por meio das ADCs 43 e 44, as quais objetivavam a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código Penal, o qual condicionava a prisão ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Apenas em 7 de novembro de 2019, mais de três anos após a fixação da tese que admitiu a execução provisória da pena condenatória, o STF, por maioria apertadíssima de votos (seis favoráveis e cinco contrários), concluiu pela constitucionalidade do art. 283 do Código Penal, o qual exige o trânsito em julgado da decisão condenatória para o cumprimento da prisão pena (definitiva). Vale dizer, afastou-se o entendimento anterior sobre a possibilidade de antecipação da prisão após decisão condenatória proferida em segunda instância, mantendo-se a integridade do texto constitucional; c) a restrição da garantia constitucional do foro por prerrogativa da função de senadores e deputados: Nos autos da AP 937 a Corte fixou o entendimento de que o foro por prerrogativa de função assegurado a deputados e senadores e estatuído no art. 53, § 2º, da Constituição Federal, somente se aplicaria a crimes cometidos no exercício do cargo e conexos às funções a ele relacionadas. Aplicou-se, na oportunidade, segundo o ministro relator, necessária interpretação restritiva do sentido e alcance do foro por prerrogativa de função; d) restrição de acesso aos cargos de linha sucessória da Presidência da República a réus em ação penal: nos autos da ADPF 402, ajuizada pelo partido político Rede Sustentabilidade, o Supremo decidiu por analogia pela vedação de que os substitutos eventuais do Presidente da República, se réus em ações criminais perante a Corte, não podem assumir temporariamente o cargo; e

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e) condenação criminal e perda do mandato parlamentar: o STF, ao menos em três oportunidades distintas, exarou entendimentos diversos a respeito da competência para cassar o mandato de parlamentares. Inicialmente, nos autos da AP 470/MG (Caso Mensalão), decidiu que a cassação do mandato seria automática no caso de condenação criminal transitada em julgado, independentemente da deliberação da Casa parlamentar. Já nos autos da AP 565/RO, caso do julgamento do senador Ivo Cassol, a Corte decidiu que a perda do mandato não é automática, dependendo de manifestação da Casa parlamentar sobre a questão. Por fim, nos autos do MS 32.326, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o posicionamento apresentado individualmente pelo indicado julgador destoou completamente dos posicionamentos anteriores fixados pelo colegiado, momento em que decidiu que nos casos em que o prazo de prisão estabelecido na condenação seja em regime fechado e em período superior ao que resta para conclusão do mandato haverá a perda automática do mandato.

O que se demonstrou é que há, nos casos indigitados, uma nítida tensão entre o exercício hermenêutico constitucionalmente adequado e a prática de decisões subjetivistas que podem, a depender da leitura que se faça, extrapolar a função interpretativa da Corte e invadir a competência do Poder Constituinte originário ou reformador. Considerou-se que um dos fatos que promove essa tensão está assentada na pluralidade de fundamentação teórica sobre a interpretação que acompanham as escolas da filosofia da consciência, do positivismo jurídico, do decisionismo de matriz schimittiana, bem como do pós-positivismo e as teorias de tópica argumentativa. Vale dizer, compreender como se constrói a própria interpretação, mas também o papel da ciência jurídica dentro do direito se mostrou uma tarefa crucial para entender as razões que justificam a dualidade outrora retratada. Assim, direcionou-se a análise inicialmente sobre a perspectiva teórica de Hans Kelsen a respeito da tarefa interpretativa e sua dogmatização de um “método científico” caracterizado por um objetivismo de matriz formalista, tendo sido possível demonstrar que a compreensão kelseniana sobre o direito está firmada numa concepção normativa universalmente válida e que o discurso cientificista expressado em seu modelo de ciência objetivo abandonou a importância da moral e do mundo real, o que implica em afastar uma possível mudança valorativa como instrumento de reconstrução da Constituição. A análise da teoria hartiana, do mesmo modo, foi fundamental para que se percebesse que, embora tenha o autor reconhecido

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o papel central da linguagem no processo interpretativo, direcionou a resolução dos problemas de indeterminação do direito ao alvedrio do intérprete, vale dizer, a decisão final recairia num ato de discricionariedade, assim como em Kelsen. Posteriormente, o trabalho se debruçou sobre a teoria subjetivista/decisionista de Carl Schmitt que funda a estrutura do ato de interpretar numa relação de poder e voluntarismo, ou seja, toda a concepção do direito está na decisão política do soberano, a qual é inclusive o fundamento de existência e validade de todo o ordenamento jurídico. Por fim, quanto a análise teórica que se propôs, o trabalho investigou os caracteres da teoria argumentativa esboçada por Robert Alexy, que, a partir de sua fórmula para a solução dos denominados casos difíceis, acaba por cindir o processo de compreensão (como se compreender, interpretar e aplicar fossem momentos distintos) e também acaba incidindo em certa medida de discricionariedade com sua técnica da ponderação. O caminho percorrido até então foi essencial para se fixar algumas premissas fundamentais. Primeiro, que o papel da Justiça Constitucional é de extrema importância nas democracias modernas, de modo que compreender o papel do STF na conformação de toda a ordem jurídica ao texto constitucional é um passo fundamental para se investigar mecanismos que proporcionem o aprimoramento de suas funções. A despeito disso, se constatou que o Supremo brasileiro não possui unidade decisória e que existem decisões questionáveis do ponto de vista jurídico-constitucional, algumas delas fundamentadas em escolas clássicas do pensamento jurídico-filosófico que apostam na discricionariedade como elemento resolutivo de casos complexos. Em razão desse cenário é que a hermenêutica filosófica cunhada por Hans George Gadamer apresentou sua importância como mecanismo de aprimoramento do STF no País a partir de uma nova perspectiva sobre o fenômeno da compreensão. Com isso se pretendeu apresentar um modelo que visa à compreensão e consequente interpretação judicial dentro de um parâmetro hermeneuticamente adequado e democrático, esvaziado de práticas subjetivistas. Como se destacou, o objeto do trabalho não é teorizar ou modelizar uma teoria da decisão, a partir de um método científico bem definido formado por fases, o que além de se mostrar pretensioso, contrariaria a própria lógica da hermenêutica filosófica em Gadamer, a qual busca romper com o método. Antes, aqui, apresentou-se uma proposta de aprimoramento da atuação da Justiça Constitucional no Brasil a partir de uma mudança de mentalidade e fundamentação teórico-filosófica sobre o ato de compreensão, até mesmo para se mostrar que o pensamento filosófico está atrelado ao pensamento jurídico, ambos com idêntico acesso à realidade, e que essa união permitirá um novo olhar sobre o processo interpretativo no Brasil.

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A análise sobre a importância da obra de Gadamer foi precedida pela apresentação de um pressuposto essencial relativo à compreensão sobre como se compreende e manifesta a verdade: a importância de reconhecer o giro linguístico-pragmático responsável por centralizar a linguagem na busca pelo conhecimento. Em outras palavras: a linguagem não pode ser entendida como terceira coisa colocada entre o sujeito que compreende e a coisa interpretada, mas antes, como condição de conhecimento e do próprio mundo. Assim, a ausência de consciência de que houve a superação do denominado esquema sujeito-objeto tem sido uma das causas de crise da hermenêutica jurídica, tendo Gadamer, com base em Wittgenstein, Husserl, Heidegger e Hegel, reforçando a importância da linguagem no processo de compreensão. Após discorrer sobre a importância desse paradigma linguístico, apresentaram-se os conceitos de pré-compreensão, tradição e de círculo hermenêutico trabalhados sob a ótica da filosofia gadameriana. Mostrou-se inicialmente que em Gadamer – a partir da doutrina de Hegel – há uma estrutura prévia da compreensão (denominada de preconceitos) formada pelas perspectivas prévias do intérprete, ou seja, opiniões prévias que antecipam o sentido e que precisam ser reprojetadas com o objetivo de se estabelecer univocamente a unidade de sentido. Na sequência, mostrou-se que, embora a perspectiva interna do intérprete seja um momento essencial na tarefa compreensiva, não devem ser admitidas arbitrariedades, exigindo-se sempre que a busca para compreensão do texto se dê mediante o uso da linguagem. Daí a importância da tradição no processo de compreensão, pois a partir da e pela linguagem tudo que foi cultivado e historicamente construído se apresenta como parâmetro de legitimação dos preconceitos. Ademais, também se apresentou a importância do denominado círculo hermenêutico, o qual representa a relação circular existente no processo de compreensão entre o ser que interpreta e o objeto interpretado, encontre esse mediado pela tradição. Do mesmo modo, destacou-se a importância dos conceitos de história efeitual, fusão de horizontes e o problema hermenêutico da aplicação trabalhados detalhadamente por Gadamer. Demonstrou-se que para a filosofia gadameriana a história efeitual assume a posição de uma instância obrigatória para o saber, pois toda a compreensão está historicamente situada a partir da noção de distância temporal entre o ser que interpreta e o objeto interpretado, de modo que o acesso do homem ao mundo e, por sua vez, o ato de compreensão, só é possível no horizonte do sujeito que se propõe a interpretar alguma coisa. Por isso, o seu acesso ao mundo é efetivado a partir do seu ponto de vista, vale dizer, do horizonte presente imbuído das experiências e pré-compreensões do intérprete. No entanto,

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também se viu que para Gadamer o horizonte presente do sujeito não é o único que deve ser considerado no processo de compreensão, exigindo-se também que a perspectiva do texto (seu horizonte passado) também seja considerado, ao que Gadamer nomeia de fusão de horizontes, ou seja, a verdade do texto não está integralmente submissa à opinião do seu autor, mas também não está apenas nos preconceitos do intérprete, antes é resultado do processo de fusão de horizonte entre eles. A consequência da adoção da hermenêutica filosófica em Gadamer é a impossibilidade da cisão comum e erroneamente feita sobre os momentos da compreensão, interpretação e aplicação, como se representassem momentos distintos. Segundo o autor, quando se tem a linguagem como elemento central de ser e atuação no mundo, os processos de compreensão, interpretação e aplicação ocorrem simultaneamente. Daí a importância da linguisticidade, pois quando reconhecemos que estamos num mundo em que tudo é mediado pela linguagem, algo somente pode ser definido quando é mediado linguisticamente, razão pela qual a compreensão e o próprio objeto hermenêutico são determinados pela linguagem. O trabalho desenvolveu ainda a aproximação teórico-prática objetivada inicialmente, isto é, indicou de que forma seria possível utilizar-se da hermenêutica filosófica gadameriana como parâmetro de aprimoramento do STF no Brasil a partir de uma ideia de hermenêutica filosófica dialógica, para propor duas teses como fruto da pesquisa: a) a primeira, de cunho teórico, busca promover uma reflexão e conscientização sobre o giro linguístico e a importância da linguagem no papel de busca pela verdade, bem como os perigos de ainda se manter preso à estrutura do esquema sujeito-objeto; e b) a segunda, de cunho prático, apresentou o mecanismo institucional do “diálogo entre Juízes” para, a partir da leitura gadameriana a respeito da fusão de horizontes e do diálogo hermenêutico, auxiliar no processo de construção de decisões mais adequadas e conformes ao texto constitucional. A soma das duas teses permitiu designar aqui uma espécie de hermenêutica filosófica dialógica. Por fim, ainda no que se refere ao aspecto prático da proposta indigitada, apresentou- se uma sugestão de como efetivar o diálogo entre juízes no STF, por meio de emenda a ser incluída no Regimento Interno do Tribunal que preveja, antes das sessões de julgamento sobre processos que envolvam o controle de constitucionalidade concentrado, que todos os ministros do STF, bem como as partes do processo e seus representantes, devem participar de uma sessão preliminar, momento em que as teses centrais do processo devem ser discutidas. Não haverá nesse momento inicial disponibilização de votos ou mesmo antecipação do que será decidido, mas um diálogo por meio do qual todos os julgadores poderão apresentar os seus preconceitos e horizontes de sentido sobre o tema discutido. Nesse mesmo momento,

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inclusive, deve-se permitir a realização de eventuais pedidos de sustentação oral pelos advogados, notadamente para que também a perspectiva das partes seja integrante da decisão posterior e final que será tomada – já que no modelo atual o impacto das sustentações é quase nulo, pois os patronos são ouvidos depois que a decisão já foi em regra redigida, ao menos pelo relator. Espera-se que a efetivação dessa hermenêutica filosófica dialógica se apresente como um importante mecanismo de robustecimento do papel exercido pelo STF, e, posteriormente, que tal expediente possa ser replicado para toda a estrutura do Poder Judiciário. Deve-se ressaltar que o presente trabalho não se baseou numa teoria da verdade com pretensão de validade universal, mas como um meio de instigar o debate, o dissenso e principalmente o diálogo, tudo com o intuito de fortalecer o exercício da Justiça Constitucional, a qual se tem como indispensável no âmbito dos regimes democráticos. Com isso não se pretende aqui apresentar uma verdade inquestionável e exclusiva por meio da qual a Justiça Constitucional deve pautar a sua busca na concretização constitucional (a visão aqui não possui um caráter pragmático), mas antes, promover uma mudança interna na mentalidade do intérprete para que tenha consciência de como funciona o processo interpretativo, e, a partir disso, encontrar o melhor caminho no âmbito da interpretação constitucional, evitando decisionismos e práticas que violam a legitimidade do Poder Constituinte originário. A verdade é que o tema da pesquisa não se esgota com o trabalho ora apresentado, o qual atua apenas como instrumento a dar nova perspectiva crítica aos modelos de decisão e busca pelo conhecimento que se apresentam na atualidade.

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