o Percurso do Prestígio de José de Alencar e sua Consagração com Iracema

Valéria Cristina Bezerra I

Introdução

Um estudante ou curioso da literatura brasileira que hoje folheie uma história literária ou um livro didático certamente encontrará algumas páginas sobre José de Alenear e muitas referências ao seu nome. Ao ler a apreciação oferecida por esses materiais acerca do escritor, geralmente apresentado de for- ma sistemática e linear, talvez não se pergunte se a posição que Alencar ocupa na literatura foi historicamente sempre a mesma, partilhando da crença de que o romancista esteve continuamente "em lugar de centro, pela natureza e exten- são da obra que produziu'", âo quero com isso discordar da posição central em que Alencar chegou a figurar ao longo de sua atuação, mas ela foi resultado de muitas tensões, embates e incertezas, num período em que a literatura bra- sileira era ainda um anseio dos homens de letras e precisava de muitas novas composições para que viesse a ter dimensão e a conquistar o reconhecimento de sua autonomia. A "natureza" da obra de Alencar estava em construção e a sua "extensão" só viria a se concretizar ao final de sua vida. O que ocorreu ao longo da atividade de Alencar, os percursos para o seu prestígio e as diferentes formas de avaliação feitas à sua produção pelos seus pares favorecem a com- preensão do status de suas obras em sua primeira circulação e posteriormente, uma vez que a leitura de seus livros por si só não é suficiente para entender o

I Doutoranda em Teoria e História Literária pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Este texto é resultado das pesquisas desenvolvidas ao longo do mestrado e do doutorado, sob orien- tação da professora doutora Márcia Abreu. 2 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 134.

287 o PERCURSO DO PRESTÍGIO DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA CONSAGRAÇÃO COM IRACEMA lugar que ocupam na história literária. Além disso, o nome de um escritor não é um pressuposto, coerente com um "projeto" literário prévio (como muitos fazem crer quando falam de Alencar), mas resultado das posições que desem- penha e das posturas que defende em seu exercício'. Para a análise que aqui proponho, recorri à recepção crítica de José de Alencar publicada em periódicos do século XIX no momento da publicação de suas obras, sobretudo Iracema, com o fim de buscar entender por meio de quais aspectos o escritor passou a ocupar o lugar de "chefe da literatura nacio- nal'", a quem foi creditado o papel de enriquecer e de assegurar a legitimidade da literatura brasileira.

Trajetória

Alencar começou a escrever com regularidade no Correio Mercantil, dando início, em 3 de setembro de 1854, à publicação dos folhetins de "Ao correr da pena". Ao ser convidado a assumir a gerência do Diário do Rio de Janeiro, levou a seção consigo, cujos folhetins saíram até novembro de 1855. A atividade de folhetinlsta não era considerada de prestígio no tempo, mas certamente concedia alguma visibilidade ao novel escritor, que passava a ter leitores interessados em saber das novidades, através de um texto de leitura leve e ligeira. Ali Alencar encontrou um espaço no qual, além dos bailes e da moda, podia falar também de teatro e literatura, buscando criar um público que pudesse incentivar a incipiente produção nacional. Entre os meses de junho e agosto de 1856, Alencar escreveu cartas sobre o poema de Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios, que culmi- naram na primeira grande polêmica literária acontecida no país'. Magalhães figurava, então, como um dos principais representantes da literatura nacional e detinha enorme prestígio perante o imperador. José de Alencar era apenas um jovem folhetinista e redator de uma folha diária. Como crítico, colocou-se contra o poema de Magalhães (que pretendia ser a concretização da expressão máxima da literatura nacional) e teceu a desconstrução dos fundamentos de

3 Cf. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

4 A designação é bastante recorrente nas críticas ao escritor posteriormente à publicação de Iracema. 5 BUE O, Alexei; ERMAKOFF, George. Duelos no serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil (1850-1950). Rio de Janeiro: G. ErmakoffCasa Editorial, 2005.

288 JOS~ DE ALE CAR S~CULO XXI composição da obra, defendendo que a forma escolhida não era feliz, assim como o assunto não teria elevação e os personagens, profundidade. Alencar ensaiava, dessa forma, uma proposta para a execução de obras de caráter emi- nentemente nacional", As cartas mobilizaram a opinião de alguns expoentes das letras e até mesmo a do imperador. Assinadas com o pseudônimo Ig., a adoção desse codinome foi explicada pelo autor em prefácio à edição em livro das cartas: Ig. significava a abreviação do nome da personagem Iguaçu, do poema A Confederação dos Tamoios, mas bem poderia ser interpretado pelo leitor da época como significando Ignoto, tendo em vista não só o caráter anônimo das cartas, mas também, ao ver do público, a posição de pouco des- taque que possivelmente seu autor usufruiria, considerando sobretudo o lugar de prestígio dos nomes contra os quais se em batia. No mesmo ano de 1856, Alenear publicou, em folhetins no Diário do Rio de Janeiro, Cinco minutos, cujos capítulos apareceram entre os dias 22 e 30 de dezembro. Já no dia 111 de janeiro do ano seguinte, começaram a ser veiculados os folhetins de O guarani, cujo último capítulo foi publicado em 20 de abril de 1857. No dia 22 de abril de 1857, teve início a publicação dos folhetins de , suspensos no oiravo capítulo, no dia 26 de abril. Não foram loca- lizadas, até o momento, críticas a essas obras durante esse período. O próprio Alenear se queixou do silêncio a respeito de O guarani em Como e por que sou romancista: "Durante todo esse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer elogio, crítica ou simples notícia do romance, a não ser em uma folha do Rio Grande do Sul, como razão para a transcrição dos folhetins'". Ainda em 1857, Alencar estreou no teatro. Foram representadas, no Ginásio Dramático, as peças Rio de Janeiro, verso e reverso, em outubro; O de- mônio familiar, em novembro; e O crédito, no mês de dezembro". Essas peças tiveram acolhida pela crítica na imprensa periódica, que se dividiu quanto à qualidade dessas composições". O demônio familiar, por exemplo, recebeu

6 Cf MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. A Confederação dos Tamoios. (Edição fac-similar seguida da polêmica sobre o poema). Organização de Maria Eunice Moreira, Luís Bueno. Curitiba: Ed. UFPR, 2007.

7 ALE CAR, José de. Como e por que sou romancista. São Paulo: Pontes, 2005. p. 63. 8 AGUlAR, Flávio. A comédia nacional no teatro de José de A/encar. São Paulo: Ática, 1984. p.93-94.

9 Cf FARIA, João Roberto. José de A/encar e o teatro. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1987; BEZERRA, Valéria Cristina. A recepção crítica de José de A/encar: a avaliação de seus romances e a representação de seus leitores. 2012. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2012.

289 ° PERCURSO DO PRESTÍGIO DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA CONSAGRAÇÃO COM IRACEMA artigos elogiosos, como o de autoria de Francisco Otaviano", mas também foi alvo dos ataques de Paula Brito em artigo publicado na sua A Marmota", o qual, contrariamente ao esperado pelo crítico, mobilizou a opinião dos ho- mens de letras em favor da peça. Logo em seguida, a interdição de As asas de um anjo pela policia provocou a reação dos críticos, que saíram em defesa da peça e do nome de Alenear, através de artigos que discutiam a qualidade da peça e buscavam compreender os aspectos que poderiam suscitar tal proibi- ção. Mãe (1860) e O que é o casamento? (1862) também obtiveram críticas, as quais, juntamente com as anteriores, compunham o cenário no qual o escritor passava a ser alocado. Alenear era então considerado um escritor jovem e ta- lentoso, cuja produção, "imperfeita em alguns pontos?", poderia contribuir para o enriquecimenro das letras e cuja atividade era vista como promissora". Ao lado de sua dedicação ao teatro, Alenear voltou a publicar os seus romances. Em 1860, saíram a lume em livro os romances A viuvinha e Cinco minutos, pela tipografia do Correio Mercantil. Em crítica sobre A viuvinha, F. Teixeira Leitão revia do seguinte modo a atuação de Alencar até então:

Outrora Alenear era aplaudido pelos seus serviços em prol da imprensa e do teatro, e seu nome era com louvor pronunciado por todos quantos amam a leitura de romances nacionais. Aí estáo bem visíveis os folhe- tins: Ao correr da pena, do Correio Mercantil; os artigos de fundo do Diário do Rio, o Demônio Familiar, As asas de um anjo, Mãe, e outras belas produçóes dramáticas representadas no Ginásio e no teatro nor- mal de Lisboa, e o Guarani, mimoso e importante romance brasileiro, a meu ver o primeiro romance nacional. E note que nâo lhe falei nas conceituadas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, com as quais provou Alenear a messe feita dos mais varia- dos e importantes estudos literários, mostrando-se êmulo de Lopes de Mendonça".

10 OTAVIANO, Francisco. Correio Mercantil, 7 de novembro de 1857.

11 BRITO, Paula. Estreia dramática. A Marmota, 10 de novembro de 1857. 12 Um crítico anônimo do Jornal do Comércio declarava: "não deixemos de reconhecer no autor, quem quer que ele seja, um talento brilhante, que claramente se está revelando numa obra, mesmo que a nosso ver, imperfeita em alguns pontos". ANONIMO. Jornal do Comércio, 12 de outubro de 1862. !3 "Este escritor mais esta vez nos deu uma prova do seu grande talento, e Deus queira que ele à vista dos grandes louros que tem colhido, continue na sua carreira, que dentro em pouco não precisaremos de traduções': MONTEIRO, Reinaldo Carlos. Ensaios artísticos da mocidade. Correio da Tarde, 14 de novembro de 1857.

14 LEITÃO, F. Teixeira. A viuvinha: carta sobre esse romance de José de Alencar. Revista Mensal da Sociedade, n. 1, 1863.

90 JOSÉ DE ALE CAR: SÉCULO XXI

o crítico se queixa do fato de Alencar ter passado a se dedicar à política, o que, a seu ver, comprometeria a carreira literária que o escritor vinha desen- volvendo em favor da literatura pátria. O conteúdo do texto aponta para o lugar de prestígio que a atuação de Alencar e a sua recepção crítica iam-no co- locando, de forma a começar a torná-lo uma referência para as letras no país. Alenear produzia ininterruptamente e, em 1862, foram publicados os dois primeiros volumes de pela coleção "Biblioteca Brasilei- ra", de iniciativa de Quintino Bocaiúva", O romance foi resenhado por Ma- chado de Assis, que o elogiou, mas também emitiu algumas ressalvas. Ainda no mesmo ano, saiu Luciola, sobre o qual novamente Machado expressou o seu parecer em artigo de 1864, por ocasião da publicação de Diua. Machado fez críticas à construção da protagonista Emília, pela sua inverossimilhança, pela sua peculiaridade excessiva, mas relativizou o seu tom ao incentivar a leitura do romance, não sem algumas censuras:

Esses reparos feitos à pressa, como ocorrem em um escrito desta or- dem, não invalidam os merecimentos da obra. Repito: há páginas de uma deliciosa leitura, tão naturais, tão verdadeiras, tão coloridas as faz o poeta. Mas é para sentir que diante de uma obra tão recomendável a admiração não possa ser absoluta e o aplauso sem reservas".

Como se vê, as obras de Alencar passavam a ter um espaço no debate literário do período, despertando julgamentos variados, indo do incentivo às advertências, passando pelos ataques, o que assegurava ao escritor um lugar de visibilidade e de importância para as letras brasileiras. Essa posição de desta- que não foi resultado exclusivo de seu trabalho como literato. A legitimação de Alenear, assim como de outros escritores do tempo, passava necessariamente por setores responsáveis pela consagração, e um deles era a crítica na imprensa periódica. No caso da recepção crítica de Alencar, os posicionamentos sobre o escritor ao longo de sua atuação não foram unânimes e sim bastante divi- didos e mesmo controversos, como foi o caso das polêmicas da déeada de 1870, quando Franklin Távora, José Feliciano de Castilho, em 1871 e 1872, e Joaquim Nabuco, em 1875, produziram séries de artigos que tinham como

15 O terceiro e quarto volumes, que completariam o romance, não chegaram a ser publica- dos pela coleção.

16 SILENO. Imprensa Acadêmica, São Paulo, 17 de abril de 1864.

291 o PERCURSO DO PRESTíGIO DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA CONSAGRAÇÃO COM IRACEMA

fim desestabilizar o lugar central que então Alencar ocupava nas letras brasileiras e estimular a manifestação da nova geração contrariamente à produção do escritor'?

A consagração

Antes de ser duramente atacado ao longo dessa década bastante tortuo- sa para a sua atividade, Alencar alcançou o auge de sua conceituação através da publicação de Iracema, romance em que dava execução a muito do que a críti- ca favorável ao escritor ansiava em torno da representação da nacionalidade na literatura. A recepção crítica, seguindo a indicação do próprio escritor em pre- fácio ao romance, classificou Iracema como poema em prosa e considerou-a eminentemente nacional. Havia, no período, um forte interesse dos letrados pela composição de um grande poema nacional que declarasse, de vez, a inde- pendência, a autonomia e a importância da literatura do país. Como A Confe- deração dos Tamoios não alcançou esses objetivos, todas as atenções passavam a se voltar a Alencar, sobretudo depois da escrita de Iracema". Nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, José de Alenear havia provocado expectativas nesse sentido ao afirmar: "se, algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e as suas belezas, se quisesse fazer um poema, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento minhas ideias de homem civilizado"!", Na "Carta ao Dr. Jaguaribe", espécie de posfácio de Iracema, Alenear repetiu a mesma sugestão, evidenciando a importância da língua indígena para a construção de um estilo "que se molde à singeleza primitiva da língua bárbara?". Declarou

17 VE T RA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 18 José Aderaldo Castello avaliou a representatividade do poema de Magalhães em meio ao anseio de dar autonomia à literatura nacional. Referindo-se às cartas de Alencar contra o poema, declarou: "Realmente, o crítico mostrou, e disto estamos hoje conven- cidos, que A Confederação dos Tamoios não possuía valor artístico apreciável e, como tal, não correspondia, na época, à necessidade da afirmação da poesia nacional, que, pelo contrário, a julgar pelo poema, aparecia desfigurada" CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre a confederação dos tamoios. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953. p. IX.

19 ALENCAR, José de. Carta primeira. ln: MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. A Confederação dos Tamoios. Organização de Maria Eunice Moreira, Luís Bueno. Curitiba: Ed. UFPR, 2007. p. XVI.

20 ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará. : Edições UFC, 2005. p. 333. Em 20 de junho de 1872, foi publicado um fragmento de Os filhos de Tupã, obra que cum- priria a promessa feita por Alencar de realização de um poema nacional. Antônio Hen-

292 JOSÉ DE ALENCAR: SÉCULO XXI

que, a partir desse pressuposto, deveria ser criado "o verdadeiro poema nacio- nal", tal qual imaginava". Em vários pontos do país, os leitores tinham notícia da novidade li- terária. Enquanto no Rio de Janeiro o romance foi anunciado pelo Jornal do Comércio em setembro de 1865 nos seguintes termos: "À hábil pena do Sr. conselheiro Dr. José de Alenear, devemos mais uma obra sob o título de Ira- cema, lenda do Ceará. É um poema em prosa, poema eminentemente nacio- nal?". Em São Luís do Maranhão, o crítico Anselmo de Petitot, pseudônimo de Gentil Homem de Almeida Braga", colocava Iracema acima de Madame Bovary, pois, ao ver do crítico, esse romance de Alencar contrapunha-se aos danos que o realismo do romance francês provocaria à literatura, superando-o:

em teria ânimo para lavrar este protesto, se não tivesse ouvido a voz poderosa de um brasileiro muito distinto, que, neste crítico momen- to para as letras, aponta para um caminho sedutor, que ele acaba de percorrer. Esse grito de alerta veio-me sob a forma de um livrinho. O livro de que falo é mais do que uma novidade literária; é um grande acontecimento. Iracema chama-se o livro e seu autor José de Alencar".

riques Leal demonstrou conhecer trechos de Osfilhos de Tupã antes da publicação dess- es fragmento :·0 filho de Tupã - que a continuar e terminar no elevado e majestoso ponto em que está debuxado esse fragmento, promete vida longa e próspera" A literatura brasileira contemporânea. In: ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará (1865-1965). Edição do centenário. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1965. p. 208. A nota de apresentação aos capítulos do poema, publicados no jornal A Reforma, registrou: "Agora oferece-nos ele uma amostra da pujança do eu enorme engenho, em um poema nacional [...) O poema, cujo aparecimento esta para breve, é uma epopeia indiana, na qual figuram os usos, os sentimentos e a teogonia do primitivos filhos da América" In: Um Poema Americano. A Reforma, 20 de junho de 1 2. Apesar da ansiedade dos letrados para a sua finalízação, a empreitada fracassou.

21 ALE CAR, José de. Carta ao Dr. Jaguaribe. In: o Iracema: lenda do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 2005. p. 334. 22 Jornal do Comércio, 26 de setembro de 1865. 23 Cf PESCHKE, Michael. International Encyclopedia of Pseudonyms. Munich: K. G. Saur/ Gale, 2006. p. 55. 24 PETITOT, Anselmo. Literatura: filigranas de ouro falso. A Coalição, MA, n. 52, 30 de dezembro de 1865. Boa parte da sequência desse artigo aparece, com as mesmas palavras, na crítica que Joaquim Serra escreveu em carta a Machado de Assis, publicada em 15 de janeiro de 1866 no Diário do Rio de Janeiro. É possível supor que a crítica, dada a antecedên- cia de sua publicação e o seu caráter visivelmente mais bem encaixado dentro do artigo, tenha sido redigi da, de fato, por Gentil Homem de Almeida Braga.

293 o PERCURSO DO PRESTíGIO DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA CONSAGRAÇÃO COM IRACHíA Era comum o confronto das obras de Alencar com romances franceses de sucesso e/ou prestígio. Chateaubriand foi recorrentemente referido pelos letrados brasileiros na leitura de Iracema. Atala (1801) e René (1802), episó- dios que integrariam Os natchez (1826), foram romances citados à exaustâo por aqueles que emitiram juízos sobre Iracema, integrados ao leque de refe- rências que estava no horizonte de composição e recepção do romance. Ma- chado de Assis ressaltou a especificidade do romance de Alencar, relacionan- do-o a um conjunto de obras exemplares, mas singularizando-o ao apontar para a sua originalidade:

As tradições indígenas encerram motivos para epopeias e para églogas; podem inspirar os seus Homeros e os seus Teócritos. Há aí lutas gigan- tescas, audazes capitães, ilíadas sepultadas no esquecimento; o amor, a amizade, os costumes domésticos, tendo a simples natureza por teatro, oferecem à musa lírica, páginas deliciosas de sentimento e de origi- nalidade. A mesma pena que escreveu 'I-Juca-Pirama' traçou o lindo monólogo de 'Marabá', o aspecto do índio Cobé e a figura poética de Lindóia são filhos da mesma cabeça; as duas partes dos Natchez resu- mem do mesmo modo a dupla inspiração da fonte indígena. O poeta tem muito para escolher nessas ruínas já exploradas, mas não comple- tamente conhecidas. O livro do Sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não é destinado a cantar lutas heroicas, nem cabos de guerra, [é] votado à história tocante de uma virgem indiana, dos seus amores, e dos seus infortúnios".

Nesse esforço crítico, através de Iracema, os homens de letras se entu- siasmavam com a possibilidade de que a literatura brasileira pudesse se equi- parar à estrangeira, pois não estaria emprestando desta ou imitando-a, e sim a par dela, contribuindo, com sua peculiaridade, para a formação do patrimô- nio literário mundial. Para Machado, o romance de Alencar seria até mais bem realizado que o de Chateaubriand:

A esposa de Martim concebe um filho. Que doce alegria não banha a fronte da jovem mãe! Iracema vai dar conta a Martim daquela boa nova; há uma cena igual nos Natchez; seja-nos lícito compará-Ia à do

,- A IS, Machado de. Semana Literária. Diário do Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1866. JOSÉDE ALENCAR:SÉCULOXXI

poeta brasileiro [...]. A cena é bela, decerto, é Chateaubriand quem

26 fala; mas a cena de Iracema aos nossos olhos é mais feliz •

o problema da nacionalidade da literatura brasileira para os homens de letras consistia não apenas em emancipá-Ia dos modelos europeus ou em criar urna tradição literária no país, mas também em elevá-Ia, torná-Ia soberana, igualá-Ia à produção do centro que detinha o poder de legitimar as produçóes do mundo". Os letrados brasileiros queriam disputar os espaços literários internamente, en- frentando a concorrência feita pelos romances europeus, assim como queriam ser reconhecidos pelo mundo. O romance Iracema atiçava a ambição dos letrados de tornar a literatura brasileira, nas palavras de Don Rodrigo y Mendonza, em crítica à obra, "urna literatura mais rica do que quantas existem?", Na província do Ceará, Domingos José Jaguaribe, a quem são destina- das as cartas que compõem o prefácio e o posfácio do romance, foi ainda mais longe na alusão às letras estrangeiras ao transcrever, na sua resenha ao romance Iracema, as palavras de urn crítico francês - não informado - sobre Tbe song o/ Hiauiatha, poema de Longfellow. Segundo Jaguaribe:

De seu romance se pode dizer o que um literato francês disse ao célebre poema norre americano de Hiawatha, a mais bem acabada das obras de Longfellow: "um sopro da natureza perpassou por estas páginas, suble- va para assim dizer e faz tremular suas imagens, como o vento subleva e faz tremular as folhas entre os bosques ... o autor sabe prestar, como um moderno, vozes a todos os objetos inanimados da natureza, conhece a língua das aves, compreende o murmúrio do vento entre as folhas, e interpreta o arruído das águas... seu poema participa de dois caracteres: é homérico pela precisão, simplicidade e familiaridade das imagens, e é moderno pela vivacidade das impressóes, e por um certo sopro lírico que percorre todas as suas páginas?".

26 ASSIS,Machado de. emana Literária. Diário do Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1866. 27 Cf CASANOVA,Pascale. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appen- zeller.São Paulo:Estação Liberdade, 2002. l8 MENDO ZA, Don Rodrigo y. Iracema: lenda do Sr.Alencar,Arquivo Literário, mar./abr. de 1866. O trecho foi retirado da seguinte passagem:"Há nas nossas florestas,nas matas secularesque matizam a terra dos brasis, elementos para uma literatura mais rica do que quantas existem': 29 JAGUARIBE,Domingos José. Literatura: Iracema. A Constituição, CE, 28 de novembro de 1865.

295 o PERCURSODO PRESTíGIODE JOSÉDE ALENCARE SUACONSAGRAÇÃOCOM IRACEMA

Jaguaribe parece não ter sido feliz na escrita do seu artigo, pois foi for- temente atacado pelos colegas de imprensa. O nome que Alencar escolheu como intermediário entre o seu romance e seus compatriotas não representou garantia de boa acolhida. O artigo de Jaguaribe teria demorado a sair, segun- do suas próprias explicações, em razão de uma série de cartas sobre Iracema publicadas em outro jornal de Fortaleza, das quais dizia esperar a conclusão. Como tardava o encerramento da série, Jaguaribe decidiu emitir o seu parecer. A demora não foi perdoada pelos seus pares, que busearam destacar ainda sua ineficiência enquanto crítico:

Há 60 dias que é chegada às nossas plagas a encantadora tabajara, a me- líflua Iracema, filha de Araken, mimoso presente feito ao Sr. Domingos José e só agora é que a sua Constituição a anuncia! Ainda bem: mais vale tarde do que nunca. Uma estirada insulsa, prosaica, enjoativa e até narcótica sob o pomposo título de - literatura - eis a coroa que o Sr. Domingos teceu, em dois meses, para oferecer ao simpático e fecundo autor das - asas de um anjo! Aguardamos um trabalho de mérito, bem acabado (60 dias era tempo por demais suficiente) ao menos uma resposta à carta dirigida pelo autor de Iracema ao Sr. Domingos; mas oh! decepção, oh! engano!".

A série de cartas a que Jaguaribe se referiu foi veiculada no jornal O Ce- areme, a qual, tratando do romance, por vezes fazia rasgados elogios: ''Adiante do facho que ia dissipar as trevas em que jazia imenso o mundo literário, pôs ele [Alenear] de repente a mão, e tão de repente que apenas partiu um tênue raio?", em outras, fazia vários reparos quanto à verossimilhança do romance: ''A falar a verdade, meu amigo, não me agrada toda essa cena que ocupa a página sexta da lenda. Há ai um quer que seja de inverossímil?". O jornal do Dr. Jaguaribe, A Constituição, respondeu a essas cartas, fazendo-lhes censuras, no que foi duramente rebatido por um crítico de O Cearense, que assinava como Caubi:

30 PERY.O Sr.Domingos José metido a literato. O Cearense, CE, 30 de novembro de 1865.

31 POTYUARA.Cartas sobre a Iracema, lenda nacional por J.d'Alencar:carta P. O Cearense, CE, 24 de outubro de 1865.

32 POTYUARA.Cartas sobre a Iracema, lenda nacional por J.d'Alencar:carta 3'. O Cearense, CE, 14 de novembro de 1865.

296 JOSÉDE ALENCAR:SÉCULOXXI

Lemos as cartas [do jornal O CearenseJ sobre Iracema; seu autor reco- nhece J. de Alenear como um dos primeiros vultos da nossa literatura, e, fazendo a análise de sua lenda, náo oculta belezas, admira o estilo, faz justiça ao talento do escritor. Sem fumaças de literato, sem pre- tensões pedanrescas escreveu suas impressões de leitura, mostrou que era inadmissível linguagem táo elevada na boca da Iracema; apontou

inverossimilhanças, etc., etd3.

Nesse mesmo artigo, intirulado "O bobo da Constituição", o jornalista lamentava: "O Sr. conselheiro Alenear deve sentir que seu romance tivesse inspirado ao Sr. Domingos Jaguaribe tanta asneira">'. Ambos os jornais ocu- pavam campos opostos na política, sendo A Constituição um órgáo do partido conservador no Ceará e O Cearense de filiação liberal", daí a razão do bate-bo- ca provocado pela recepção de Iracema e, sobretudo, pelo seu oferecimento ao político conservador Domingos José Jaguaribe. O prestígio desse político pe- rante Alencar possivelmente lhe garantiu a permissão para publicar o romance em folhetim no jornal A Constituição, fato que se deu entre os dias 28 de feve- reiro e 5 de maio de 1866. ó após o término da veiculação dos folhetins é que apareceram os anúncios da disponibilidade do romance em livro na província. As condições de recepção do romance no Ceará foram lamentadas por Machado de Assis em artigo para a «Semana Literária", do Diário do Rio de[a- neiro": Nesse artigo, Machado expôs urna imagem bastante negativa do estado das letras no país, queixando-se da falta de gosto do público, da precariedade da imprensa e da inexistência do trabalho crítico. Sobre Iracema, o crítico alegava que "foi lida, foi apreciada, mas não encontrou agasalho que urna obra daquelas merecia. e alguma vez se falou na imprensa a respeito dela, mais detidamente, foi para deprimi-Ia; e isso na própria província que o poeta escolheu para teatro de seu romance'?", São célebres as lamúrias dos escritores do século XIX, corno as do próprio José de Alencar. Muitas pesquisas que desconfiaram de seus discursos e recorreram a outras fontes constataram não

33 CAUBY.O bobo da Constituição. O Cearense, CE, 1" de fevereirode 1866.

34 Ibidem.

3S Cf CORDEIRO,Celeste.Antigos e modernos no Ceará provincial. SãoPaulo:Annablurne, 1997.

36 Nesse texto, Machado anunciava as críticas que publicaria a respeito de Iracema e de O culto do dever, de Joaquim Manoel de Macedo.

37 ASSIS,Machado de. Semana Literária. Diário do Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 1866.

297 o PERCURSO DO PRESTÍGIO DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA CONSAGRAÇÃO COM IRACEMA só a existência de um relevante público leitor no país como também um efi- ciente esquema de publicação, distribuição, publicidade e críticas de obras". A imprensa periódica veiculou muitos textos críticos sobre Iracema. Foi possível localizar, entre os anos de 1865 e 1870, na imprensa do país, 28 artigos e notas sobre o romance, e penso que essa pesquisa ainda não está esgotada. O teor geral das apreciações era bastante laudatório e, como já referido, o romance significava para os críticos não só a promessa de consolidação da literatura brasileira como anunciava a possibilidade de uma obra de maior prestígio em verso. O próprio Machado de Assis considerou o romance uma obra-prima. Para Don Rodrigo y Mendonza, "o novo poema do festejado escritor virá continuar a obra já começada, e sobre ele em parte se assenta- rá o majestoso edifício da verdadeira literatura nacional'P, José Ignácio Go- mes Ferreira de Menezes considerou" Iracema [...] o peristilo de um grande e suntuoso edifício; é a peanha que terá de suportar em breve um colosso de bronzel":". O romance colocava Alenear à frente de todos os demais escritores brasileiros: "E qual é o romancista brasileiro que o excede? Apontem-nos. Nes- te terreno, que não é perigo, e que não resvala, ousamos arrojar a quem quer que seja, que nos conteste, a luva do desafio"!'. As Cartas sobre a Confederação dos Tamoios assim como as cartas que abrem e encerram Iracema foram refe- rências na leitura que os críticos coetâneos fizeram desse romance e funciona- ram como diretrizes para a reflexão sobre o caráter da literatura nacional e os caminhos de sua autonomia. Esses críticos retomaram as palavras de Alencar

38 ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo: Papesp, 2003; ABREU, Márcia (Org.). Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Mercado de Letras; Papesp, 2008; BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Márcia (Org.). Impressos no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2010; DEAECTO, Marisa Midori. O império dos livros: instituições e práticas de leitura na São Paulo oitocentista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Papesp, 2011; EL FAR, Alessandra. Pá- ginas de sensação: leitura popular e pornografia no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004; HALLEWEL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 2005; PAIXÃO, Alexandro Henrique. Elementos constitutivos para o estudo do público literário no Rio de Janeiro e em São Paulo no Segundo Reinado. 2012. Tese (Dou- torado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012; PINHEIRO, Alexandra Santos. "Baptiste Louis Garnier. O Homem e o Empresário". I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro, 2004.

39 MENDONZA, Don Rodrigo y. Iracema: lenda do Sr. Alencar. Arquivo Literário, mar.-abr, de 1866. 40 MENEZES, José Inácio Gomes Ferreira de. José de Alencar: Iracema. Arquivo Literário, set. de 1867. 4' Ibidem.

298 JOSÉDE ALENCAR:SÉCULOXXI

quanto à maneira adequada de lidar com a história, a paisagem, os persona- gens e a língua. Nesse sentido, concorrem as palavras de Flaminius, publicadas no Correio Mercantil em 1866:

Quando a majesrade, a variedade, o clima da nossa natureza física constituírem o nosso gênio literário, teremos então verdadeira litera- tura nacional. Poesia americana, como vulgarmente denominam a essa pinrura mais ou menos exata de linguagem e costumes indianos, não

basra por i só para criá-Ia. Queremos-lhe o espírito sim, não o fato42•

No que diz respeito à linguagem, houve vozes dissonantes nesse coro. a romance foi censurado pelos seus aspectos estilísticos, sobretudo pelos por- tugueses. Em 1 6 • Pinheiro Chagas publicou, em Novos ensaios críticos, a sua análise do romance a qual havia prometido realizar ainda em 186643• Nesse artigo Pinheiro Chagas náo reconhecia haver, no Brasil, uma literatura própria e evidenciou o valor da literatura dos Estados Unidos, por conquistar nobreza ao deixar de seguir os modelos europeus, voltando-se para o seu pas- sado. Para o crítico. as literaruras americanas, para alcançarem independência e autonomia diante das literaruras europeias, deviam "esquecer-se um pouco da metrópole européia. impregnar-se nos aromas do seu solo, [...] e aceitar as tradições do primeiro povoadores, que seus antepassados bárbara e irnpoliti- camente expulsaram da pátria"44. Esses elementos dariam "ao Brasil a literatu- ra que lhe falta . Iracema era a seu ver, a primeira obra que teria concretizado efetivamente o que entendia por literatura de "cunho nacional". Mas Pinheiro Chagas apresenta -a ressalvas. Referindo à opiniáo de um crítico que teria visto como problemática a adoção de termos indígenas, retrucou:

42 FLAM1NIU .• 'ondas literarias: Iracema, lenda do Ceará, por José de Alencar. Correio Mercantil, 20 de fevereirode 1 66.

43 Mesmo que essa critica de Pinheiro Chagas não se enquadre na seleção do corpus para esta pesquisa, ou seja, não tenha sido publicada na imprensa periódica, é importante a sua verificação por ter sido anundada na imprensa dois anos antes, em artigo publicado no Anuário do Arquivo Pitoresco, n. 25, janeiro de 1866, em que falabrevemente do romance, e pela sua importânda no conjunto da recepção crítica de Alencar. « CHAGAS,Pinheiro. Literatura Brasileira:Joséde Alencar.ln: Novos ensaios críticos, 1868, apud SILVA,Hebe Cristina da. Imagens da escravidão: uma leitura dos escritos políticos e ficcionaisde José de Alencar. 2004. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. p. 251-255.

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Não; esse não é o defeito que me parece dever notar-se na Iracema, o defeito que eu vejo nessa lenda, o defeito que vejo em todos os livros brasileiros, e contra o qual não cessarei de bradar intrepidamente, é a falta de correção na linguagem portuguesa, ou antes a mania de tor- nar o brasileiro uma língua diferente do velho português, por meio de neologismos arrojados e injustificáveis, e de insubordinações gramati- cais, que, (tenham cautelal) chegarão a ser risíveis se quiserem tomar as proporções de uma insurreição em regra contra a tirania de Lobato'".

Para Marcelo Peloggio, a censura portuguesa à forma do emprego da língua portuguesa pelos escritores brasileiros, sobretudo por Alencar, foi uma tentativa de conter o desenvolvimento da autonomia da literatura no país, que se ia revelando original e peculiar. Para ele, esse tipo de crítica "foi a maneira encontrada de se tentar manter o controle a rédeas curtas?": O conteúdo do artigo de Pinheiro Chagas gerou discussão e desdobramentos em muitas ou- tras críticas que surgiriam a partir da década de 70 do século XIX até meados

do século XX47• O romancista, no pós-escrito à segunda edição de Iracema, em 1870, respondeu ao opositor, destacando o caráter dinâmico da língua e conside- rando a independência política, a diferença geográfica e climática e a misci- genação como fatores que interferiam nessa diferenciação. Nesse contexto, os escritores desempenhariam um papel que exercia influência no processo de mudança. Diante da boa recepção do romance, desmereceu a apreciação do crítico português e declarou:

Vale a pena ser advertido por crítico tão ilustrado, quando a censura, como a sombra que destaca no quadro o vivo e fino colorido, não passa

45 CHAGAS, Pinheiro. Literatura Brasileira: José de Alencar. In: Novos ensaios críticos, 1868, apud SILVA, Hebe Cristina da. Op. cit., p. 254. De acordo com Marcelo Peloggio, "Antô- nio José dos Reis Lobato [...] é autor de Arte da gramática da língua portuguesa, de 1771; conforme Ierônimo Soares Barbosa, dataria de 1770 a primeira edição da gramática de Lobato, e que, em Portugal, "fora mandada adotar nas escolas, encarregando o ensino dela aos professores, que já ensinavam a gramática latina: isto por virtude de um alvará datado de 30 de setembro de 1770': José de Alencar e as visões de Brasil. Tese (Doutorado) - Uni- versidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 86, nota 82.

46 Ibidem, p. 72.

47 Marcelo Peloggio, na sua tese de doutorado, oferece uma análise da crítica ao estilo de Alencar.

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de um relevo imerecido a elogios dispensados com excessiva generosi- dade. A questão vai, portanto, estreme de qualquer assomo de vaidade, que estaria por demais satisfeita com finezas recebidas'".

Com o romance Iracema, Alencar alcançou a consagração e teve acen- tuada a sua relevância para as letras no pais, como se pôde verificar no tom com que a maioria do críticos se referiu ao romancista, o qual aparecia, nesses textos, como o escritor mais apto para estabelecer de vez a soberania da litera- tura brasileira pois Iracema correspondia às expectativas geradas pelos letrados em torno de obras de cunho nacional. Em 1870, por ocasião do aparecimento da segunda edição de Iracema, A Semana Ilustrada, em nota sobre o romance, sintetizava a recepção de crítica e de público da obra até então e apresentava a posição que Alencar alcançava no campo literário do período:

o que este romance é, já o disseram todas as pessoas competentes, e

di-lo o público que em breve prazo esgotou a 1a edição. É um modelo de poesia nacional, e um dos mais belos Horôes da coroa de glória do ilustre escritor.

Ta eminente posição literária a que chegou o autor das Minas de Prata, cada publicação é um triunfo. A seu respeito não há duas opiniões, todo lhe tributam a homenagem devida".

Até a publicação de Iracema, Alencar teve uma trajetória ascendente no âmbito literário brasileiro, resultado dos diversos espaços em que buscou figurar - folhetim teatro, crítica, romance - e da forma como essa obra cir- culava e era recebida pelos seus pares. Era impossível para Alencar direcionar a recepção que teriam os seus trabalhos, apesar de buscar dialogar com os aspectos que compunham as expectativas dos letrados e do público, por isso não se pode atribuir exclusivamente a um escritor a trajetória e o prestígio que uma obra assume. O fenômeno literário tem a sua existência imbricada a vários fatores, que vão da escrita, passando pela edição, publicação e chegando à recepção da obra. Todos esses aspectos é que determinam o seu percurso. Como se observou, até 1870 o discurso crítico acerca das obras de Alencar foi

48 ALENCAR, José de. Iracema. Organizado por Tâmis Parron. São Paulo: Hedra, 2006. p.l77.

49 ANÔNIMO. Iracema. A Semana Ilustrada, n. 519, 1870.

301 o PERCURSO DO PRESTÍGIO DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA CONSAGRAÇÃO COM IRACEMA predominantemente elogioso e buscou promovê-Ias, mas não deixou também de advertir, censurar e até mesmo atacar. O nome do escritor também passou por um processo gradual de ascensão, de jovem folhetinista a crítico desconhe- cido até chegar ao título de "chefe da literatura nacional", de "ilustre escritor" que "já não precisajva] de elogios nem de recomendação't". Alencar passava a ocupar um lugar de prestígio que o colocava acima dos demais literatos no país. Tal posição não foi tolerada por alguns homens de letras que também buscavam construir o seu espaço e, para isso, enten- deram ser necessário destruir o ícone, provocando o movimento de ataque a Alenear que perpassou toda a década posterior à de sua consagração, como já referido, através dos textos de Pranklin Távora, José Peliciano de Castilho, Joaquim abuco, entre outros. Iracema representa, portanto, um diviso r de águas na avaliação de Alen- car, pois assim como conquistou para ele um grupo de admiradores e incenti- vadores, despertou também a reação de concorrentes que viam a sua produção e o seu nome como danosos para a formação da literatura brasileira. A partir de então, esses dois polos passaram a se embater e a realizar uma discussão literária bastante calorosa, que teve existência até a morte de Alenear. Mesmo que os esforços dos opositores tivessem por finalidade apagar o seu nome da história", o auge alcançado por Iracema e a posição central em que o romance pôs o escritor contribuíram de maneira contundente para inserir definitiva- mente o nome de José de Alencar na história da literatura brasileira.

50 ANÔNIMO. Suplícios dos invejosos. A Semana Ilustrada, n. 251, 1865. 51 Em carta a Machado de Assis, sobre Castro Alves, em 1868, Alencar demonstrou o quanto a boa recepção crítica e a publicidade são determinantes para a inserção de uma obra ou de um escritor nos quadros literários do país e da posteridade. Revelou que havia três ciclos para que tal ocorresse: a decepção, a indiferença e, finalmente, a glória, sugerindo estar ainda no segundo patamar do processo. Em Como e por que sou romancista (1873), retomou a ideia, mas, em vez da indiferença, era o sentimento de despeito, que, no seu entender, estaria movendo a sua recepção crítica de então. Mas afirma que abriria mão da boa publicidade se, em troca, lhe fosse assegurada a posteridade: "Aí começa outra idade, a qual eu chamei de minha velhice literária, adotando o pseudônimo de Sênio, e outros querem que seja a da decrepitude. Não me afligi com isto, eu que, digo-lhe com todas as veras, desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa vontade os favores do presente pelas severidades do futuro" (p. 70). Taunay testemunhou a preocupação do romancista, que teria lhe questionado: "Você acha que passarei à posteridade? Não nu- tro essa segurança e, contudo, quanto alento me daria': TAUNAY, Alfredo d'Escragnolle. Reminiscências. Rio de Janeiro: F. Alves, 1908. p. 89.

302 JOSÉ DE ALENCAR: SÉCULO XXI

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