Carlos Eduardo Pinto De Pinto1
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Nada será como antes: o engendramento de um passado democrático para a Rede Globo CARLOS EDUARDO PINTO DE PINTO1 A Rede Globo, emissora de TV que faz parte do maior conglomerado de empresas de comunicação do Brasil, consegue manter um grau elevado de influência na opinião pública nacional, sustentada em uma retórica que lhe atribui papel proeminente na defesa de valores democráticos. Contudo, a manutenção desse discurso enfrenta alguns entraves, como as evidências de colaboração da empresa com a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), reforçadas pela assumida simpatia de Roberto Marinho, seu criador e administrador até a década de 1990, pelo regime autoritário. Além disso, o fato de a empresa ter sido criada um ano após o Golpe civil-militar de 1964 (já durante a ditadura, portanto) colabora para a associação. A defesa institucional contra essas conexões é explicitada no site responsável por manter a memória do canal, mas também pode ser encontrada em programas de ficção, caso da série abordada neste texto. São exemplos de narrativas audiovisuais que abordam (ou escamoteiam) a memória da ditadura civil-militar brasileira, de modo a propiciar uma leitura desse período histórico afinada com a trajetória da emissora, tal como narrada por seus veículos de memória. Nada será como antes foi exibida em 12 episódios, às terças-feiras, entre setembro e dezembro de 2016. Apesar de narrar a mesma história ao longo de sua duração, ao modo de uma minissérie com capítulos diários, foi apresentada em parcelas semanais. Foi escrita por Guel Arraes, Jorge Furtado e João Falcão, com direção de Isabella Ferreira e direção de fotografia de Walter Carvalho. O enredo gira em torno da fictícia TV Guanabara (TVG), apresentada na trama como a primeira emissora de televisão brasileira, inaugurada em 1950. A ideia do roteiro não é abordar literalmente a história dos primórdios da teledifusão no Brasil, mas fazer uma síntese de tipos e situações que poderiam estar associados a ela. Desse modo, no universo ficcional criado pela série, os protagonistas são empresários, produtores e artistas (a maioria com experiência no rádio), que se lançam à aventura de “inventar” a televisão brasileira. Nessa empreitada, precisam enfrentar o desafio de adquirir e fazer 1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Adjunto de História do Brasil República no Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 2 funcionar as novas tecnologias e realizar a adaptação da linguagem radiofônica ao universo audiovisual, em produtos de entretenimento, jornalismo e publicidade. A história se desenvolve entre 1946 e 1960, com maior atenção à década de 1950, momento em que a TVG se consolida, tornando-se líder de audiência. A empresa está sempre na vanguarda da tecnologia, como na transmissão ao vivo via satélite e no uso do vídeo-tape, que permitiria gravar os programas antecipadamente, aumentando o nível de controle sobre seus produtos. Vale ressaltar que, na história da TV no Brasil, tais avanços técnicos foram conquistados por emissoras diversas, impulsionados pelo jogo de concorrência que as fazia buscar novidades com vistas a aumentar a audiência. Na lógica da minissérie, contudo, o pioneirismo é concentrado pela TVG, salvo poucas exceções, quando o roteiro faz referências a outras transmissoras, igualmente fictícias. Esse recurso se mostrará fundamental para compreender a equiparação entre a TV Guanabara e a TV Globo (não coincidentemente, dois nomes iniciados com a letra G), levada a efeito no fim do último episódio. Apesar de ter sido inaugurada quinze anos após a chegada da televisão ao Brasil, a TV Globo se atribui, por meio de um recurso metalinguístico, o papel de herdeira do protagonismo que, na série, é associado à TVG. Em paralelo à abordagem da história da TV, os aspectos do enredo atinentes à vida privada dos personagens estabelecem diálogo com as tramas folhetinescas das telenovelas (os principais produtos da TVG). O casal de protagonistas, Saulo Ribeiro (Murilo Benício) e Verônica Maia (Débora Falabella) são profissionais do rádio (ele, produtor; ela, atriz) que enfrentam juntos a “aventura” de criar a TV no Brasil. Na intimidade, vivem as agruras de uma relação marcada por muitos rompimentos e reconciliações, como um típico “casal de novela”. Em contraste com o profissionalismo de Verônica Maia, Beatriz dos Santos (Bruna Marquezine) é uma atriz iniciante (“cria” da TV) que, apesar de ser bastante talentosa, é acusada de ter alcançado o estrelato apenas por conta de sua beleza. A corroborar tal leitura, é Otaviano Azevedo Queiroz (Daniel de Oliveira), o “playboy” que investe dinheiro na TVG, quem consegue articular sua escalação para o elenco da primeira telenovela da emissora. Beatriz inicia um romance com Otaviano e, aos poucos, percebe que a irmã dele, Júlia 3 Azevedo Queiroz (Letícia Colin) também se sente sexualmente atraída por ela, dando origem a um triângulo amoroso marcado por muita tensão, acessos de ciúme e autocondenação. Como se pode apreender dessa descrição sucinta, trata-se de uma estrutura melodramática, como muitas encenadas nos primeiros anos da trajetória da televisão brasileira, embora incorporando aspectos vetados à representação naquele momento. Por exemplo, Verônica enfrenta uma gravidez ocasionada por uma relação extraconjugal, o que leva ao desquite, exigido por Saulo. Ao final da trama, o casal reata e Saulo, que é estéril e deseja ser pai, aceita assumir o filho da esposa como seu. Embora a primeira parte da trama e seu desfecho pudessem figurar nos enredos, o desquite dificilmente seria tema de uma novela nos anos 1950. Igualmente, os triângulos amorosos não eram raros, mas jamais assumidos e muito menos envolvendo relações incestuosas e homoeróticas, como no caso de Otaviano, Beatriz e Júlia. Apesar de esses detalhes da trama merecem atenção mais detalhada (sobretudo, por conta das representações de gênero), meu objetivo neste trabalho é outro. Proponho analisar um recurso narrativo mobilizado no último episódio, por meio do qual se procura criar uma ponte simbólica entre o passado representado e o presente (da Rede Globo). Minha abordagem está ancorada nos pressupostos defendidos por Robert Rosenstone (2010: 54), de que “uma nova mídia, como as imagens em movimento em uma tela acompanhadas de sons, cria uma mudança enorme na forma como contamos e vemos o passado – e também na maneira como pensamos o seu significado”. Vale enfatizar que suas reflexões se referem ao cinema, que possui produção e regime espectatorial distintos dos associados à TV. No entanto, como empreendo aqui uma abordagem focada apenas no modo como a linguagem audiovisual produz sentidos sobre o passado, analisando não mais que um trecho de um capítulo da série, considero válida a apropriação, já que não me atenho ao caráter seriado da obra, nem me ocupo de sua recepção. Por mais que considere estes como aspectos relevantes para uma leitura mais complexa, não disponho de espaço para dar conta desses elementos aqui. Ainda de acordo com as propostas de Rosenstone, não pretendo realizar um cotejamento entre a história escrita e a filmada, para tão somente reafirmar as falhas da representação audiovisual (que, por sinal, são assinaladas de partida, se configurando em pressupostos de 4 minha leitura). Mais que “denunciar” uma representação histórica equivocada, me interessa compreender que interpretação o suposto equívoco propõe. Para tanto, apresento a partir deste ponto os principais elementos mobilizados pela narrativa nas sequências finais do último capítulos da série. No réveillon de 1960, Saulo e Verônica, o casal de protagonistas, já reconciliado, decide “fugir” da festa oferecida pela empresa e saudar o novo ano em casa, junto do filho. Eles se beijam na sala de casa, num enquadramento fechado que permite visualizar um aparelho de TV ligado por trás de seus rostos, enquanto é executada a música tema do casal, Little girl blue, interpretada por Diana Krall. Após o beijo, um fade out2 faz a transição para um minidocumentário sobre o Brasil no limiar da década de 1960. Trata-se de um recurso isolado, sem paralelo na narrativa da série, claramente inserido como um aposto, um complemento alocado após o desfecho do enredo. É iniciada uma sequência formada por imagens em preto e branco, que parecem pertencer à época em que se passa a estória narrada, representando aspectos vários do cotidiano: um bonde, duas mulheres de maiô, homens jogando frescobol. Um locutor, acompanhado de um fundo sonoro instrumental, começa a narrar: “Somos 66 milhões de brasileiros prontos para enfrentar os desafios da modernidade”. O fundo musical continua e, apesar de muito discreto, pode ser reconhecido como o Canto de Ossanha (Vinícius de Moraes/Baden Powell), interpretado por Vinícius e Odete Lara. O fluxo de imagens prossegue, sempre acompanhado da canção e da voz do locutor: imagens dos canteiros de obra de Brasília, Pelé comemorando um gol, Grande Otelo em Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957) e Lourdes de Oliveira em Orfeu do Carnaval (Marcel Camus, 1959). A narração avança: “Nossa democracia está consolidada. Deixamos para trás o tempo das ditaduras, das quarteladas”. Simultaneamente, as imagens exibem pessoas nas ruas acenando para a câmera com o que parecem ser lenços brancos, um take de JK desfilando de carro e acenando, recebendo uma chuva de confete, mais imagens de Brasília em construção. O locutor comenta: “Brasília, a nova capital, plantada com aço e concreto no coração do cerrado, anuncia que o Brasil é o país do futuro”. Uma sequência de 2 Recurso narrativo que consiste no escurecimento gradual da tela. 5 imagens apresentadas em alta velocidade procura corroborar tal afirmação: São Paulo, com seus arranha-céus e trânsito intenso, a primeira Bienal de Artes, uma linha de produção industrial. Retratos de figuras eminentes de diversas áreas são exibidos, sem identificação por escrito: Oscar Niemeyer, Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, João Gilberto, Tom Jobim. O narrador acrescenta: “... os automóveis enchem as ruas das cidades, que sobem aos céus, enquanto foguetes cruzam o espaço e nos mostram a face escura da lua.