Don Juan Às Avessas: a Paródia Amorosa Em Confissões De Narciso, De Autran Dourado
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3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL DON JUAN ÀS AVESSAS: A PARÓDIA AMOROSA EM CONFISSÕES DE NARCISO, DE AUTRAN DOURADO Elis Angela Franco Ferreira Santos1 Alessandra Leilla Borges Gomes2 Publicado em 1997, ano em que o primeiro livro do escritor, Teia, completava cinquenta anos de editado, Confissões de Narciso apresenta dois narradores: o primeiro em terceira pessoa, representado através de uma escrita em itálico; o segundo, presente na maior parte do romance, aparece em primeira pessoa. Trata-se da história de Tomás de Sousa Albuquerque, poeta e advogado nascido em São Paulo, mas que, aos quarenta anos, mudou-se para Duas Pontes, em Minas Gerais, por sugestão de um amigo, após ter gastado a herança deixada pela avó. Aos sessenta anos, ele decide escrever suas memórias relatando as diversas experiências amorosas por que passou, todas marcadas pela traição, morte ou ciúme. Justamente por causa dos insucessos amorosos, Tomás decide escrever suas memórias em cadernos escolares e, após sua morte, a viúva Sofia procura um editor, tendo em vista a publicação dos escritos do marido. Dividido em dez capítulos — os capítulos levam o nome do número cardinal que representam — em cada um narra-se o relacionamento com uma das mulheres por quem Tomás se apaixonou. O romance apresenta temáticas recorrentes na ficção autraniana: a memória, personagem escritor, a reflexão sobre o fazer literário, personagens perturbadas psicologicamente, suicídio, personagens leitores e o cenário da mítica cidade de Duas Pontes. Em Confissões de Narciso, inúmeros são os intertextos e, tanto as epígrafes, as alusões como os empréstimos são significativos e devem ser observados no sentido de melhor compreender a unidade do romance. O conceito de intertextualidade nasce no interior da Teoria Literária, a partir da definição utilizada pela crítica francesa, Julia Kristeva, ao analisar o dialogismo bakhtiniano. Segundo Kristevai, é com Bakhtin que, 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana. 2 Doutora em Estudos Literários (UFMG) e professora de Literatura Portuguesa e Tópicos da Crítica e da Cultura, na Universidade Estadual de Feira de Santana. ISBN 978-85-7395-210-0 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL primeiramente, introduz-se na teoria literária a noção de que um texto se faz a partir do cruzamento entre outros textos. Assim, “[...] todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”ii. Desse modo, [...] o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade; face a esse dialogismo, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” começa a se esfumar, para ceder lugar a uma outra, a da “ambivalência da escritura”. iii A ambivalência seria a relação entre texto e história, sendo que tanto a história pode se inserir no texto, como este naquela. Kristeva propõe a escrita do texto enquanto um mecanismo de reescrita de outros textos, em um jogo de apropriação inovadora em relação aos textos anteriores. Com o conceito de intertextualidade, põe-se em discussão a noção de imanência do significado do texto e a ideia humanista do autor enquanto “[...] fonte original e originadora do sentido fixo e fetichizado do texto” iv. Desse modo, tal conceito auxilia os estudos literários comparativos, já que o sentido da influência é deslocado e não mais entendido como uma relação de dependência, mas como uma prática natural e adequada. O que passa a ser importante a partir da intertextualidade não é atribuição de valor ao intertexto. A proposta é refletir sobre as causas que levaram à retomada do texto, seja na forma de paráfrase, paródia ou citação e quais os atuais sentidos atribuídos ao texto que foi inserido em uma nova temporalidade. Ao se apropriar de textos anteriores, o autor deixa claro suas escolhas, realizando tanto a afirmação do discurso e do estilo, como se afastando deles de maneira crítica. Percebe-se através da teoria da intertextualidade que a prática intertextual é inerente ao texto literário, podendo ocorrer de forma intencional ou através de reminiscências de leituras realizadas anteriormente. Logo no título, Dourado nos apresenta a relação entre o personagem Tomás e o mítico Narciso, relação reforçada na epígrafe retirada d’As metamorfoses, de Ovídio, e que é de grande importância na composição das características do personagem. A epígrafe do primeiro capítulo traz os versos do poeta romântico Casimiro de Abreu: “Oh que saudades eu tenho./ Da aurora da minha vida”. Esses versos são no mínimo irônicos, haja vista que, como veremos posteriormente, Tomás não guarda boas lembranças do passado. O nome do personagem principal nos remete ao poeta árcade, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 154-165. 155 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Tomás Antônio Gonzaga, que dedicou versos a sua amada Marília, revelando-se um homem apaixonado. O Tomás personagem também é poeta e, assim como o poeta árcade, passou parte de sua vida nas terras mineiras. Vale salientar que ao aludir às personagens de outras obras, Dourado, às vezes, testa o leitor, trocando nomes, confundindo características, como no exemplo a seguir: “De uma certa maneira chego a pensar que me assemelho a Vielhtcháninov, aquele personagem de O eterno marido, de Dostoiévski, que dava ensejo a que suas mulheres o traíssem, forçando-as mesmo”v. Ocorre, porém, que o esposo traído é Pavel Pavlovich e Vielhtcháninov é o amante. No entanto, a suposta confusão ganha sentido se pensarmos que Tomás assume não apenas o papel de traído, mas, ao se relacionar com mulheres comprometidas, torna-se o traidor. Do Dom casmurro de Machado de Assis ele conserva a dúvida da traição, pois não se sabe ao certo se a primeira namorada de Tomás, Amélia, a quem ele julgava parecer moralmente com a Capitu machadiana, o traiu ou se a suspeita não passou de um ato de ciúme. O intertexto ocorre também com o poeta Dante Alighieri, o qual Dourado pôs o nome em uma livraria que tem por dona a senhora Beatrice, uma provável referência a Beatriz da Divina Comédia. Beatrice, senhora casada, é umas das mulheres com quem Tomás tem um relacionamento. A análise dessas relações intertextuais nos ajudará a compreender melhor como Autran Dourado se utiliza dos aspectos da cultura (literária, filosófica, psicanalítica), ao criar uma personagem que vive um processo de busca e que tem esse processo mediado pelas leituras que realiza. Dourado, em um de seus ensaios, afirma: “Ler e parodiar bons autores como exercício, incorporá-los na sua mente, e esquecê-los, para que as imagens, símiles e metáforas deles passem a fazer parte do seu arsenal inconsciente, é um conselho que me permito dar-lhe” vi. Em estudo acerca da paródia, Affonso Romano de Sant’Anna (1991) afirma que, apesar do recurso paródico se configurar como marca nas obras contemporâneas, não se deve concluir que seja um efeito de linguagem recente, mas que está presente entre os gregos, romanos e em produções da Idade Médiavii. Apresentando uma breve história do termo paródia, Sant’Anna revela que a institucionalização do termo se deu a partir do séc. XVII, mas, já na Poética de Aristóteles, há referências ao texto paródico, quando o filósofo comenta que Hegemon de Thaso “[...] usou o estilo épico para representar homens não como superiores ao que 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 154-165. 156 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL são na vida diária, mas como inferiores” viii. Dessa maneira, Hegemon realiza uma inversão, visto serem a epopeia e a tragédia gêneros destinados aos feitos nobres dos heróis, ao contrário da comédia, que era reservada à representação do popular. Assim, em Aristóteles, a paródia implica descontinuidade. Rastreando a definição do termo, Sant’Anna diz que a “[...] paródia significa uma ode que perverte o sentido de outra ode” ix. Essa definição grega marca a origem musical do termo, pois evidencia um contracanto, uma canção cantada simultaneamente à outra. Em relação à literatura, o autor propõe, a partir das ideias de Shipley, três tipos básicos de paródia: a paródia formal (alteração do estilo e efeito técnicos), a verbal (alteração de palavras) e a temática (caricatura da forma e do espírito do autor)x. Ao situar a paródia enquanto um dos recursos intertextuais, o autor a diferencia da estilização. Para ele, a estilização apresentaria um desvio tolerável, ou seja, “[...] seria o máximo de inovação que um texto poderia admitir sem que se lhe subverta, perverta ou inverta o sentido. Seria a quantidade de transformações que o texto pode tolerar mantendo-se fiel ao paradigma inicial” xi. Segundo Bakhtin, “[...] o importante para o estilizador é o conjunto de procedimentos de discursos de uma outra pessoa precisamente como expressão de um ponto de vista específico”xii. Dando prosseguimentos as suas reflexões, Sant’Anna elenca ainda outros conceitos relacionados ao estudo intertextual: o de paráfrase e o de apropriação. Elencando as particularidades de cada conceito, o autor nos diz que a paráfrase “[...] repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem.