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DON JUAN ÀS AVESSAS: A PARÓDIA AMOROSA EM CONFISSÕES DE NARCISO, DE AUTRAN DOURADO

Elis Angela Franco Ferreira Santos1 Alessandra Leilla Borges Gomes2

Publicado em 1997, ano em que o primeiro livro do escritor, Teia, completava cinquenta anos de editado, Confissões de Narciso apresenta dois narradores: o primeiro em terceira pessoa, representado através de uma escrita em itálico; o segundo, presente na maior parte do romance, aparece em primeira pessoa. Trata-se da história de Tomás de Sousa Albuquerque, poeta e advogado nascido em São Paulo, mas que, aos quarenta anos, mudou-se para Duas Pontes, em Minas Gerais, por sugestão de um amigo, após ter gastado a herança deixada pela avó. Aos sessenta anos, ele decide escrever suas memórias relatando as diversas experiências amorosas por que passou, todas marcadas pela traição, morte ou ciúme. Justamente por causa dos insucessos amorosos, Tomás decide escrever suas memórias em cadernos escolares e, após sua morte, a viúva Sofia procura um editor, tendo em vista a publicação dos escritos do marido. Dividido em dez capítulos — os capítulos levam o nome do número cardinal que representam — em cada um narra-se o relacionamento com uma das mulheres por quem Tomás se apaixonou. O romance apresenta temáticas recorrentes na ficção autraniana: a memória, personagem escritor, a reflexão sobre o fazer literário, personagens perturbadas psicologicamente, suicídio, personagens leitores e o cenário da mítica cidade de Duas Pontes. Em Confissões de Narciso, inúmeros são os intertextos e, tanto as epígrafes, as alusões como os empréstimos são significativos e devem ser observados no sentido de melhor compreender a unidade do romance. O conceito de intertextualidade nasce no interior da Teoria Literária, a partir da definição utilizada pela crítica francesa, Julia Kristeva, ao analisar o dialogismo bakhtiniano. Segundo Kristevai, é com Bakhtin que,

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana. 2 Doutora em Estudos Literários (UFMG) e professora de Literatura Portuguesa e Tópicos da Crítica e da Cultura, na Universidade Estadual de Feira de Santana.

ISBN 978-85-7395-210-0 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

primeiramente, introduz-se na teoria literária a noção de que um texto se faz a partir do cruzamento entre outros textos. Assim, “[...] todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”ii. Desse modo,

[...] o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade; face a esse dialogismo, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” começa a se esfumar, para ceder lugar a uma outra, a da “ambivalência da escritura”. iii

A ambivalência seria a relação entre texto e história, sendo que tanto a história pode se inserir no texto, como este naquela. Kristeva propõe a escrita do texto enquanto um mecanismo de reescrita de outros textos, em um jogo de apropriação inovadora em relação aos textos anteriores. Com o conceito de intertextualidade, põe-se em discussão a noção de imanência do significado do texto e a ideia humanista do autor enquanto “[...] fonte original e originadora do sentido fixo e fetichizado do texto” iv. Desse modo, tal conceito auxilia os estudos literários comparativos, já que o sentido da influência é deslocado e não mais entendido como uma relação de dependência, mas como uma prática natural e adequada. O que passa a ser importante a partir da intertextualidade não é atribuição de valor ao intertexto. A proposta é refletir sobre as causas que levaram à retomada do texto, seja na forma de paráfrase, paródia ou citação e quais os atuais sentidos atribuídos ao texto que foi inserido em uma nova temporalidade. Ao se apropriar de textos anteriores, o autor deixa claro suas escolhas, realizando tanto a afirmação do discurso e do estilo, como se afastando deles de maneira crítica. Percebe-se através da teoria da intertextualidade que a prática intertextual é inerente ao texto literário, podendo ocorrer de forma intencional ou através de reminiscências de leituras realizadas anteriormente. Logo no título, Dourado nos apresenta a relação entre o personagem Tomás e o mítico Narciso, relação reforçada na epígrafe retirada d’As metamorfoses, de Ovídio, e que é de grande importância na composição das características do personagem. A epígrafe do primeiro capítulo traz os versos do poeta romântico Casimiro de Abreu: “Oh que saudades eu tenho./ Da aurora da minha vida”. Esses versos são no mínimo irônicos, haja vista que, como veremos posteriormente, Tomás não guarda boas lembranças do passado. O nome do personagem principal nos remete ao poeta árcade,

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Tomás Antônio Gonzaga, que dedicou versos a sua amada Marília, revelando-se um homem apaixonado. O Tomás personagem também é poeta e, assim como o poeta árcade, passou parte de sua vida nas terras mineiras. Vale salientar que ao aludir às personagens de outras obras, Dourado, às vezes, testa o leitor, trocando nomes, confundindo características, como no exemplo a seguir: “De uma certa maneira chego a pensar que me assemelho a Vielhtcháninov, aquele personagem de O eterno marido, de Dostoiévski, que dava ensejo a que suas mulheres o traíssem, forçando-as mesmo”v. Ocorre, porém, que o esposo traído é Pavel Pavlovich e Vielhtcháninov é o amante. No entanto, a suposta confusão ganha sentido se pensarmos que Tomás assume não apenas o papel de traído, mas, ao se relacionar com mulheres comprometidas, torna-se o traidor. Do Dom casmurro de ele conserva a dúvida da traição, pois não se sabe ao certo se a primeira namorada de Tomás, Amélia, a quem ele julgava parecer moralmente com a Capitu machadiana, o traiu ou se a suspeita não passou de um ato de ciúme. O intertexto ocorre também com o poeta Dante Alighieri, o qual Dourado pôs o nome em uma livraria que tem por dona a senhora Beatrice, uma provável referência a Beatriz da Divina Comédia. Beatrice, senhora casada, é umas das mulheres com quem Tomás tem um relacionamento. A análise dessas relações intertextuais nos ajudará a compreender melhor como Autran Dourado se utiliza dos aspectos da cultura (literária, filosófica, psicanalítica), ao criar uma personagem que vive um processo de busca e que tem esse processo mediado pelas leituras que realiza. Dourado, em um de seus ensaios, afirma: “Ler e parodiar bons autores como exercício, incorporá-los na sua mente, e esquecê-los, para que as imagens, símiles e metáforas deles passem a fazer parte do seu arsenal inconsciente, é um conselho que me permito dar-lhe” vi. Em estudo acerca da paródia, Affonso Romano de Sant’Anna (1991) afirma que, apesar do recurso paródico se configurar como marca nas obras contemporâneas, não se deve concluir que seja um efeito de linguagem recente, mas que está presente entre os gregos, romanos e em produções da Idade Médiavii. Apresentando uma breve história do termo paródia, Sant’Anna revela que a institucionalização do termo se deu a partir do séc. XVII, mas, já na Poética de Aristóteles, há referências ao texto paródico, quando o filósofo comenta que Hegemon de Thaso “[...] usou o estilo épico para representar homens não como superiores ao que

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 154-165. 156 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

são na vida diária, mas como inferiores” viii. Dessa maneira, Hegemon realiza uma inversão, visto serem a epopeia e a tragédia gêneros destinados aos feitos nobres dos heróis, ao contrário da comédia, que era reservada à representação do popular. Assim, em Aristóteles, a paródia implica descontinuidade. Rastreando a definição do termo, Sant’Anna diz que a “[...] paródia significa uma ode que perverte o sentido de outra ode” ix. Essa definição grega marca a origem musical do termo, pois evidencia um contracanto, uma canção cantada simultaneamente à outra. Em relação à literatura, o autor propõe, a partir das ideias de Shipley, três tipos básicos de paródia: a paródia formal (alteração do estilo e efeito técnicos), a verbal (alteração de palavras) e a temática (caricatura da forma e do espírito do autor)x. Ao situar a paródia enquanto um dos recursos intertextuais, o autor a diferencia da estilização. Para ele, a estilização apresentaria um desvio tolerável, ou seja, “[...] seria o máximo de inovação que um texto poderia admitir sem que se lhe subverta, perverta ou inverta o sentido. Seria a quantidade de transformações que o texto pode tolerar mantendo-se fiel ao paradigma inicial” xi. Segundo Bakhtin, “[...] o importante para o estilizador é o conjunto de procedimentos de discursos de uma outra pessoa precisamente como expressão de um ponto de vista específico”xii. Dando prosseguimentos as suas reflexões, Sant’Anna elenca ainda outros conceitos relacionados ao estudo intertextual: o de paráfrase e o de apropriação. Elencando as particularidades de cada conceito, o autor nos diz que a paráfrase “[...] repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma” xiii. Ou ainda, “Enquanto a paráfrase é o discurso em repouso, e a estilização é a movimentação do discurso, a paródia é o discurso em progresso” xiv. Ainda para Bakhtin, tanto na estilização como na paródia

[...] o autor fala a linguagem do outro, porém, diferentemente da estilização, reveste essa linguagem de orientação semântica diametralmente oposta à orientação do outro. A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entra duas vozes. xv

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Problematizando o conceito de estilização de Bakhtin, Sant”Anna propõe um novo modelo, não mais dual, mas triádico: a paráfrase como um pró-estilo e a paródia como contra-estilo. Nesse modelo, tanto a paráfrase como a paródia aparecem como um processo de estilização,

[...] isto equivale a dizer que a estilização é uma técnica geral, e a paródia e a paráfrase seriam efeitos particulares. É necessário, por isto, diferenciar efeito e técnica. E, para esclarecer, em outros termos, pode-se dizer que a estilização é o meio, o artifício (= técnica), e a paródia e a paráfrase são o fim, o resultado (= efeito). xvi

Acerca da apropriação, o autor evidencia que foi uma prática advinda das artes plásticas, sobretudo das experiências realizadas pelos dadaístas, no início do século XX, e retomadas pela pop art, na década de 1960xvii. Em termos literários, tem-se a apropriação quando um escritor transcreve o texto alheio, sem nenhuma indicação de autoria, o que se configura, segundo Sant’Anna, como um plágio. O que na verdade a apropriação desloca é o sentido de autoria, de propriedade do texto. Além disso, um texto que contenha apropriações intencionais, que motivem um sentido específico na totalidade textual, exige um leitor apto para identificar o texto apropriado, ou, do contrário, parte do sentido da apropriação se perde. A noção de autor parte do princípio de que exista um sujeito criador e sua assinatura demarca uma propriedade, legitimada por uma prática considerada autêntica. Mapeando a origem do termo autor, Hansenxviii afirma que ele deriva da forma latina auctore(m), significando em latim arcaico uma produção a partir de si mesmo e, em latim clássico, crescer. Desse modo “A significação genérica de auctor é, assim, / o que faz crescer/, mas também / o que faz surgir; o que produz” xix. Segundo Hansen, a partir do século XVIII, passou-se a relacionar a produção do autor a uma prática envolvendo a subjetividade, e esse passa a ser visto enquanto artista, ou seja, indivíduo capaz de produzir originalmente.

A novidade posta em circulação é o artista como originalidade de autor: levada pela concorrência a ultrapassar-se a si mesma em cada momento, a originalidade fundamenta a noção de autor como um augusto, áugere que promove a unificação do mundo dividido e a divisão do mundo unificado, gênio no limiar da loucura, da profecia, herói marginal das altas profundezas. xx

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Com essa nova concepção, tem-se uma diferenciação em relação à Antiguidade, em que o autor era visto como o artífice, aquele que realizava com habilidade alguma técnica (ars). A partir da noção da presença e originalidade do autor, o artífice é visto como inferior e sua produção como resultante de um trabalho mecânico e sem originalidadexxi, assim, a produção do autor/artista se distingue da do artífice, pois evidencia a questão da autoria e da propriedade. Mas a ideia de autor enquanto detentor de uma originalidade foi posta em xeque pela crítica literária desenvolvida na França nos anos 60 e 70 do século passado, que “Opõe-se radicalmente a ‘criação’ e anula o autor como subjetividade na obra” xxii. Roland Barthes chegou até mesmo a decretar a morte do autor, em um ensaio em que “[...] propõe que a escritura, como destruição de toda origem, também destrói toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” xxiii. Ao anular a presença do autor, tem-se a escritura enquanto

[...] prática transgressiva, basicamente; assim, desloca-se para o leitor a função autoral, que deve realizar um sentido à custa da morte do autor como presença. Tal leitor é “um qualquer”, uma casa vazia indicada por um pronome pessoal e sujeita a múltiplas apropriações que, tendo uma função escritural, de scriptor, têm uma função produtiva.xxiv

Resumindo os conceitos propostos por Sant’Anna, temos:

[...] a paródia deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido. Já a paráfrase reafirma os ingredientes do texto primeiro conformando seu sentido. Enquanto a estilização reforma esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura. xxv

Desse modo, compreende-se que enquanto na paráfrase, o deslocamento é mínimo e a intenção é a da continuidade das ideias do texto anterior, na paródia temos, de certa maneira, uma descontinuidade. É justamente essa descontinuidade que percebemos em Confissões de Narciso, visto que Dourado, ao retomar os mitos de Narciso e Don Juan, cria um personagem que, ao contrário do Narciso da fábula, se entrega diversas vezes ao amor e, diferentemente do sedutor Don Juan, é traído ou

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abandonado pelas mulheres. Apesar de se dizer parecido com o Werther de Goethe, Tomás, não se mostra um autêntico romântico como aquele, já que, enquanto Werther cometeu o suicídio por não ser correspondido em seu primeiro amor, Tomás sofre com as desilusões, no entanto, seu suicídio só ocorre aos sessenta anos. Em Poética do pós-modernismo (1991) Linda Hutcheon, ao analisar a prática paródica na pós-modernidade, tanto na arquitetura, literatura, como em outras práticas artísticas, não se refere à paródia enquanto “[...] imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se originam das definições de humor do século XVIII” xxvi. Ela redefine a paródia “[...] como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” xxvii. Desse modo, a paródia não funcionaria como “[...] destruição do passado; na verdade, parodiar é sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo” xxviii. A sacralização se dá pelo fato de que, para realizar a crítica, faz-se necessário retomar a obra que se quer questionar. Assim, a paródia promove a permanência da produção anterior, ainda que dela se distancie criticamente.

Em certo sentido, a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia. Ela também obriga a uma reconsideração da idéia de origem ou originalidade, idéia compatível com outros questionamentos pós-modernos sobre os pressupostos do humanismo liberal [...].xxix

Como evidencia Hutcheon, Fredric Jameson optou pelo termo pastiche, entendendo este como a retomada de outros textos visando à continuidade e não ao desvio, já “[...] que ele (por estar preso a uma definição de paródia como imitação ridicularizadora) considera [o pastiche] como uma paródia neutra ou inexpressiva” xxx. Em “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, Jameson afirma ser o pastiche “Uma das práticas ou traços mais importantes da pós-modernidade [...]” e, assim como a paródia, envolve “[...] imitação ou, melhor ainda, mimetismo de outros estilos [...]” xxxi O conceito de pós-modernidade utilizado pelo autor está relacionado à periodização e à necessidade de analisar os pontos de contato entre o surgimento de novas marcas formais nas produções culturais, ao mesmo tempo em que se tem um novo tipo de vida social atrelada a uma nova ordem econômica, a qual é “[...] chamada,

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freqüente e eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo, sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional” xxxii. Jameson (1996), ao analisar as modificações sócio-político-econômicas na modernidade, vai mostrar os efeitos dessas modificações nas produções artísticas, sobretudo no campo das letras. Sua opinião é de que na pós-modernidade há um comprometimento na questão da autoria, pois, com o desaparecimento do sujeito individual, perde-se também o desejo por criação original, marca dos escritores românticos, reforçada pelos modernistasxxxiii. Desse modo, se o sujeito criador já não preza por representar suas idiossincrasias visto ter perdido seu espaço na criação artística, torna-se favorável à realização do pastiche dos estilos consagrados. Jameson acredita ser o pastiche fruto da incapacidade dos sujeitos compreenderem a temporalidade e organizarem passado e futuro de forma a gerar uma experiência coerentexxxiv. Assim, segundo o autor, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não “um amontoado de fragmentos” e uma prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatórioxxxv. Dessa maneira, ao visualizar o pastiche como decorrência do capitalismo tardio, Jameson atribui a essa técnica intertextual um caráter negativo. Selecionamos um trecho do romance Confissões de Narciso para exemplificar uma das práticas intertextuais utilizadas por Autran Dourado. Para a análise dos trechos a seguir, optamos por usar o termo empréstimo, em vez de pastiche ou apropriação, visto que Jamenson atribui um caráter negativo à prática do pastiche, e Santana compara a apropriação a um plágio, o que, em relação à obra em estudo, não concordamos ser o caso.

I Farei todo o esforço possível para ser objetivo, eu que sou dado aos vôos das divagações desnecessárias. É preciso silenciar o coração, que acredita ter muito a dizer, e procurar a objetividade que devem ter as coisas escritas, mesmo quando se descrevem coisas delirantes [...]. xxxvi

II

Faço todos os esforços possíveis para ser frio. Desejo impor silêncio a meu coração, que imagina ter muito a falar. Sempre tremo ante a idéia de só vir a escrever um suspiro, quando imagino ter anotado uma verdade. xxxvii

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Percebe-se através dos trechos acima que o autor transcreveu, quase que fielmente, um trecho do livro Do amor, de , autor valorizado por Dourado (2009). Essa obra, citada diversas vezes no romance, serve para embasar a concepção que o narrador personagem tem sobre a paixão, além de se apropriar dos conceitos de “cristalização” e “descristalização”, cunhados por Stendhal. Aqui o empréstimo não funciona como um plágio (SANT’ANNA, 1991), pois, provavelmente, pelas alusões realizadas no romance, Dourado não tem interesse em esconder os intertextos que realiza. Ele surge como uma maneira de trazer para o texto o estilo já citado, o que, necessariamente, exige um leitor apto a identificar a textualidade do passado no texto atual, pois, “A não depreensão do texto-fonte, nesses casos, empobrece a leitura ou praticamente impossibilita a construção de sentidos próximos àqueles previstos na proposta de sentido do locutor” xxxviii. A prática dialógica realizada por Dourado no romance em estudo é analisada sobre a perspectiva da criação/recriação, e enquanto técnicas utilizadas de forma consciente, por um autor com anos de experiência literária e vasta fortuna crítica. A construção do romance nos leva a refletir como a questão autoral é aqui concebida pelo escritor, já que ele não se contenta apenas com a intertextualidade implícita, mas assume explicitamente as fontes nas quais se alimentou para a escrita de Confissões de Narciso, chegando mesmo a se apropriar de um trecho completo de outra obra.

______i Kristeva, 1974, p. 64. ii Kristeva, 1974, p. 64. iii Kristeva, 1974, p. 67. iv Hutcheon, 1991, p. 165. v Dourado, 2000, p.15, itálico do autor. vi Dourado, 2009.p. 35. vii Sant’Anna, 1991. p. 7. viii Sant’Anna, 1991, p.11. ix Brewer apud Sant’Anna, 1991, p. 12 x Sant’Anna, 1991, p 12. xi Sant’Anna, 1991, p. 39 xii Bakhtin, 1997, p. 190. xiii Sant’Anna, 1991, p. 27-28. xiv Sant’Anna, 1991, p. 28. xv Bakhtin, 1997, p. 194. xvi Sant’Anna, 1991, p. 36, itálico do autor. xvii Sant”Anna, 1991, p. 43-44. xviii Hansen,1992, p.16.

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xix Hansen, 1992, p. 16. xx Hansen, 1992, 18-19. xxi Hansen, 1992, p. 19. xxii Hansen, 1992, p. 29, itálico do autor. xxiii Hansen, 1992, p. 31. xxiv Hansen, 1992, p. 32. xxv Sant’Anna, 1991, p. 41. xxvi Hutecheon, 1991, p. 47 xxvii Hutecheon, 1991, p. 47. xxviii Hutecheon, 1991, p. 165. xxix Hutecheon, 1991, p. 28. xxx Hutecheon, 1991, p. 47. xxxi Jamesen, 1985, p. 18. xxxii Jameson, 1985, p. 17. xxxiii Jameson, 1996, p. 43-44. xxxiv Jameson, 1996, p. 52. xxxv Jameson, 1996, p. 52. xxxvi Dourado, 2001, p. 13. xxxvii Stendhal, 2007, p. 26, grifo do autor. xxxviii Kock; Bentes; Cavalcante, 2007, p. 35.

RESUMO

O texto desta comunicação é um recorte da pesquisa, ainda em andamento, intitulada “Don Juan às avessas: as representações do amor em Confissões de Narciso, de Autran Dourado”, realizada no Programa de Pós-gradução em Literatura e Diversidade Cultural, da Universidade Estadual de Feira de Santana. O recorte aqui realizado tem como objetivo divulgar aspectos iniciais da pesquisa, analisando o fazer literário de Autran Dourado no romance em estudo. Em Confissões de Narciso, Dourado, através do diálogo intertextual, buscou na poesia, no teatro, no ensaio e no próprio romance, elementos que favorecessem o desenvolvimento de sua narrativa, em que ironiza alguns modelos amorosos, expondo, assim, sua própria representação do amor. As relações dialógicas ocorrem desde a epígrafe de Casimiro de Abreu à Mitologia grega (poesia de Ovídio), passando pelo teatro (Tirso de Molina, Molière), ensaio (Stendhal) e o romance (Goethe). Para compor o personagem principal e estruturar sua narrativa, Dourado retoma os mitos de Narciso e Don Juan, além de dialogar com O sofrimento do jovemWerther, de Goethe, com Do amor, de Stendhal, entre outros. Buscaremos aqui analisar o pastiche e a paródia no processo de criação dessa narrativa autraniana. PALAVRAS-CHAVE: Autran Dourado. Diálogo intertextual. Processo de criação.

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SUMMARY

The text of this communication is part of a research, still in progress, entitled "Don Juan in reverse: the representation of love in Confessions of Narcissus, of Autran Dourado", conducted in the Post-graduate degree in Literature and Cultural Diversity by State University of Feira de Santana. Cropping done here aims to disseminate initial aspects of the research, analyzing the composite creative literary of Autran Dourado, in the Romance study. In Confessions of Narcissus, Dourado, through intertextual dialogue, sought in , theater, rehearsal and the novel itself, factors favoring the development of his narrative, in which ironically loving models, thereby exposing his own representation of the love. The dialogic relations occur from the title of Casimiro de Abreu to Greek mythology (the poetry of Ovid), through the theater (Tirso of Molina, Moliere), essay (Stendhal) and romance (Goethe). To make the main character and his narrative structure, Dourado takes the myths of Narcissus and Don Juan, and dialogue with the suffering of young Werther of Goethe, with The love of Stendhal, among others. We will try here to analyze the pastiche and parody in the process of creating this narrative autraniana. KEYWORDS: Autran Dourado. Intertextual dialogue. Creation process.

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