UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

O nativo-experimental:

Música experimental e seus contatos com a cosmologia nativo-ancestral da América do Sul

Jonathan Xavier Andrade

São Paulo 2015 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

O nativo-experimental:

Música experimental e seus contatos com a cosmologia nativo-ancestral da América do Sul

Jonathan Xavier Andrade

Dissertação apresentado à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Música, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa.

São Paulo 2015

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO, POR QUALQUER MEIO, CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA

FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados fornecidos pelo(a) autor(a)

JONATHAN XAVIER ANDRADE

O nativo-experimental: Música experimental e seus contatos com a cosmologia nativo-ancestral da América do Sul

Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Sonologia.

Aprovado em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr.:______

Instituição: ______

Assinatura: ______

Prof. Dr.:______

Instituição: ______

Assinatura: ______

Prof. Dr.:______

Instituição: ______

Assinatura: ______

Agradecimentos

A Rogério Moraes Costa pela predisposição, apoio e gratas experiências musicais compartilhadas durante a realização desta pesquisa.

Aos professores Alexandre Zamith e Silvio Ferraz pelas relevantes e frutíferas contribuições no exame de qualificação.

A Fernando Iazzetta pela oportunidade de participar do Núcleo de Pesquisa em Sonologia (NuSom) que foi uma fonte indispensável de conhecimentos teóricos e técnicos para direcionar esta pesquisa, possibilitando o contato com colegas experimentadores.

A Secretaria de Educación, ciencia, tecnología e innovación (SENESCYT) pela bolsa concedida, que possibilitou toda a pesquisa.

A meus colegas Lílian Campesato, Julián Jaramillo, Alexandre Porres e André Martins pelas contribuições e conversas sempre importantes.

A meus colegas da Orquestra Errante: Fábio, Migue, Mari, Max, Felipe, Antônio e Renato por todas essas improvisações e sons compartilhados.

A Yonara Dantas pela ajuda nas correções do texto, seu trabalho foi fundamental para esta pesquisa.

Ao professor Manuel Falleiros por suas importantes contribuições junto com o Coletivo Improvisado.

A meus pais Verónica e Alfonso pelo seu apoio eterno e incondicional. A minha família por estar sempre aí.

A María Sol por proporcionar o amor e a inspiração para realizar qualquer projeto de transcendência.

Este trabalho está dedicado para minha irmã Johana (1990 – 2013) por ser luz, amor e paz.

Resumo

A dissertação procura compreender os acontecimentos musicais derivados do contato da denominada Música Experimental com realidades musicais Nativo Ancestrais Indígenas do continente sul-americano. Para isso, realiza uma contextualização histórica da evolução do experimentalismo musical desde 1950, seguindo um percurso linear até a atualidade, onde se destacam trabalhos e pesquisas de compositores ativos, que têm abordado especificamente as relações entre música, cosmovisão indígena e o xamanismo dentro do processo de experimentação sonoro/musical. Nesse contexto, se evidencia a criação de relações transculturais, produzidas entre duas realidades heterogêneas que, na contemporaneidade, se complementam. Para finalizar a presente pesquisa apresenta o trabalho prático, decorrente da criação de partituras gráficas e instruções verbais, desenvolvidas com o grupo de pesquisa em improvisação e experimentação musical Orquestra Errante (ECA-USP), onde foram utilizados elementos conceituais e sonoro/musicais nativo-indígenas e eco-escuta em práticas regulares de improvisação livre, evidenciando as dificuldades e possíveis estratégias para a conjunção entre o nativo-natural e o experimental.

Palavras chave: Música Experimental, Compositores, Transculturalidade, Cosmovisão nativa-ancestral.

Abstract

The thesis seeks to understand musical events derivate from the contact of the so called Experimental Music with musical realities of Indigenous Native-Ancestry of the South American continent. To do so, it performs a historical context of the evolution of musical experimentation since 1950, following a linear path to the present, which features work and research of active composers who have specifically addressed the relationship between music, indigenous worldview and shamanism within the process of sound/musical experimentation. In this context, it highlights the creation of cross-cultural relations, produced between two heterogeneous realities that, in contemporary times, complement each other. Finally this research presents the practical work, arising from the creation of graphic scores and verbal instructions, developed with the research group in improvisation and musical experimentation Orchestra Errante (ECA-USP), where are used conceptual and sound/musical elements forma indigenous native-ancestry of South America and eco-listening in regular practices of free improvisation, highlighting the difficulties and possible strategies for the conjunction between two antagonistic elements, native-experimental.

Keywords: Experimental Music, Compositors, transculturality, indigenous native-ancestry cosmology.

Sumário

Agradecimentos ...... 4 Resumo ...... 5 Abstract ...... 6 Introdução ...... 9 Capítulo 1. Dois Paradigmas da Música Experimental: Considerações históricas, metodológicas e tecnológicas ...... 15 I. Primeiro Paradigma: O som como experimento na Europa ...... 15 A. Schaeffer ...... 16 B. Stockhausen ...... 21 C. Apontamentos finais sobre o som na música experimental na Europa ...... 25 II. Segundo Paradigma: Experimentalismo Musical na América do Norte ...... 28 A. Características gerais do Happening e da Performance...... 28 B. Diferenças entre o Happening e a Performance ...... 30 C. Atitude experimental norte-americana: “Cage and Beyond” ...... 34 D. Apontamentos finais sobre o experimentalismo musical na América do Norte ..... 41 Capítulo 2 . Improvisação e Indeterminismo (free-jazz, partitura gráficas/event score, improvisação livre) ...... 44 I. Três tipos de “improvisação” ...... 52 A. Free Jazz como Improvisação não estruturada idiomática...... 53 B. Partituras gráficas e event-score como Improvisação estruturada não idiomática 57 C. Free Improvisation como Improvisação não estruturada não idiomática ...... 68 II. Apontamentos finais sobre a improvisação e o indeterminismo na música experimental...... 77 Capítulo 3 . A máquina fazendo música: suas origens e sua projeção na América do Sul ..... 81 I. Revoluções desde 1950 ...... 81 II. As máquinas de manipulação sonora analógica e sua progressiva digitalização na música experimental ...... 84 III. Música Experimental na América do Sul: uma revisão histórica ...... 93 A. Argentina ...... 95

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B. Brasil ...... 100 IV. Apontamentos finais sobre as máquinas fazendo música na América do Sul ...... 112 Capítulo 4 . O experimental nativo: Música experimental, cosmovisão indígena e tecno- xamanismo ...... 118 I. Generalidades da cosmovisão indígena e seu processo transcultural na atualidade 120 II. Música, Experimentação e Cosmovisão indígena (Cergio Prudencio) ...... 127 A. La Ciudad (1980 – 1986) ...... 133 B. Apontamentos finais sobre o termo Nativo-Experimental no trabalho de Cergio Prudencio...... 139 III. Tecno-Xamanismo na composição multimídia e performance...... 141 A. O tecno-xamanismo na música multimídia de Matthew Burtner ...... 149 B. Apontamentos finais sobre o termo tecno-xamanismo na composiçnao musical e performance...... 155 IV. Dois trabalhos de experimentação musical transcultural ...... 157 A. Tato Taborda – Amazônia: A Queda do Céu (2010) ...... 158 B. Mesías Maiguashca – Canción de la Tierra (2012) ...... 169 V. Apontamentos finais sobre a música nativa-experimental...... 178 Capítulo 5 . A prática entre o nativo-experimental e a livre improvisação ...... 181 I. Orquestra Errante como improvisação ecológica ...... 184 II. Experimentação com os instrumentos musicais nativo-ancestrais ...... 190 III. Duas Peças ...... 200 A. Do natural ao artificial (instrução verbal) ...... 203 B. Ñan Urkuman ...... 208 Conclusões ...... 213 Referências ...... 225 Anexos ...... 237 Anexo A - Entrevista com o compositor Mesías Maiguahca ...... 238 Anexo B - Análise espectro-morfológica da peça eletroacústica El Oro ...... 246 Anexo C - Imagens de instrumentos andinos ...... 256 Anexo D - Instrução verbal da peça Do natural ao ancestral ...... 259 Anexo E - Partitura gráfica da peça Ñan Urkuman ...... 260

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Introdução

A presente pesquisa realiza o levantamento de informações de contextos práticos, teórico e históricos que vem sendo, desde 1950, os fatores que demarcam a música experimental, que se configura como uma série de características, processos e tecnologias conseguidas por meio de renovações e avanços progressivos dos meios tecnológicos e modos de criação musical, que resultaram em estéticas abstratas e não-representativas. Constatamos que, durante os quarenta anos de avanços e desenvolvimento dessa prática, não se manifestaram quaisquer tipos de contato evidente entre a música experimental e as cosmologias e tradições indígenas. Apenas entre as décadas de 1980 e 2000 observamos o aparecimento de gravações, composições, compositores e instituições que se dedicam a pesquisar a música, os instrumentos e o pensamento nativo-ancestral1 indígena da América do Sul, conseguindo inserir os mencionados conhecimentos e tradições musicais autóctones do continente na experimentação musical.

Nossa perspectiva é de que o novo, o moderno, o experimental e o inovador na música podem ser influenciados por tecnologias ancestrais, ligadas ao conhecimento e relacionamento com a ordem natural, relacionada aos ciclos solares e cósmicos ou a uma procura por ritualizar os modos de criação musical experimental. As tecnologias ancestrais permitem a conexão com o ritual, o natural. As Técnicas arcaicas do êxtase, como as citadas por Mircea Eliade2 (1998); processos técnicos dominados pelo xamã da comunidade indígena, que no contemporâneo, se relacionam com os mais variados meios de criação multimídias, além de se converter em atribuições técnicas e tecnológicas que podem transitar dentro de um contexto moderno, dando origem ao termo tecno-xamanismo, o mesmo que será explicado no transcurso deste trabalho.

Por outra parte os instrumentos autóctones ancestrais começam a cobrar novas

1 O termo nativo-ancestral é usado por nós entendendo sua dupla conotação. Primeiramente Nativo é explicado no dicionário Houaiss (2009) como: nascido ou oriundo de determinado local; natural; relativo, pertencente a, próprio de indígena (HOUAISS, 2009 p. 1342); por outra parte encontramos o termo Ancestral que é explicado como: relativo ou próprio dos antepassados; muito antigo, remoto (HOUAISS, 2009, p. 128). Para nós o termo nativoancestral significa: que pertence a um lugar geográfico ou etnologia específica com um passado de séculos ou milênios. As línguas nativas dos indígenas das Américas, os cantos e línguas aborígenes do norte da Austrália; Cantos e mantras da música do norte da Índia, e diversas outras manifestações culturais, podem ser definidas como nativo-ancestrais. Nesta pesquisa, partiremos da perspectiva nativo-ancestral na América do Sul, nós aproximando na música e cosmologia indígena. 2 Estas técnicas podem ser seus cantos, os ritos de iniciação, seus objetos sagrados e principalmente a capacidade de tornar o cotidiano numa experiência de hipersensibilidade.

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dimensionalidades em orquestras de experimentação musical e multimídia e, dessa forma, se consolida um importante processo de transculturalidade que, mediante a visão do experimentalismo sonoro, resgata sonoridades e filosofias que tradicionalmente têm sido marginalizadas, restritas a estudos do folclore musical ou pesquisadas dentro dos limites da antropologia e etnomusicologia.

Para o desenvolvimento dessa pesquisa sintetizamos, mediante o levantamento sistemático e contextualizado historicamente, os diversos aspectos da música experimental, uma prática musical caracterizada por: (1) a emergência do ruído/silencio como material musical; (2) o uso de tecnologias e meios de manipulação, interação e espacialização sonora; (3) o desenvolvimento de processos criativos/compositivos relacionados com o indeterminismo e a improvisação; (4) uma marcada direção estética de desestruturação e abstração do discurso musical e (5) prática que foi desenvolvida primordialmente na Europa e na América do Norte, apresentando a música experimental com uma prática etnocêntrica de ocidente, que terá suas repercussões dentro da próprias fibras musicais de América do Sul.

O trabalho de compositores como Cergio Prudencio, Tato Taborda, Mesías Maiguashca e Alejandro Iglesias Rossi certamente contemplam os aspectos da música experimental acima mencionados, mas por uma perspectiva do nativo-ancestral da América. Essa afinidade se manifesta como duas linhas de força: a primeira, que se exerce a partir da tradição ancestral indígena para fora, levando esses conhecimentos para ampliar a concepção da experimentação musical; e a segunda, que se exerce de fora da tradição nativo-ncestral, proveniente do acúmulo de processos, meios e tecnologias que estão relacionados com o experimentalismo, e que, relacionados com conceitos musicais e cosmológicos nativos, permitem a sua permanência e reafirmação dentro do contemporâneo. É evidente que as tradições nativas-indígenas pertencem ao contexto cultural especifico das comunidades e povoados que se vêm representados naquelas manifestações. Mas, ultrapassando os conceitos de globalização ou colonialismo, observamos que as filosofias indígenas nativas ancestrais são, agora, parte dessa grande colagem que é a pós-modernidade; nesse contexto, defendemos que a cultura indígena, seus mitos e tradições, sejam fontes de referência para potencializar a criação de novas naturezas sonoras.

As culturas nativo-ancestrais de América do Sul, guardam dentro delas conceitos bem

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definidos sobre o funcionamento do mundo, as relações dos seres que habitam nele e a função do humano dentro do cosmo. Esses conceitos funcionam principalmente baseados num pensamento ritualístico, influenciando evidentemente também suas manifestações musicais. A imensa quantidade de instrumentação nativa indígena, as quais principalmente se caracterizam por apresentar instrumentos aerófonos de diversos tamanhos e formas, também está incluía dentro da cosmologia nativa, sendo fundamentais na realização de rituais, danças e festividades representativas daqueles povos. Durante o processo de industrialização e comercialização musical surgido desde começos do século XX, se desenvolveu um processo de hibridismos, onde foram utilizados alguns elementos musicais nativo indígenas da América do Sul dentro de cânones de produção musical com um fim comercializador, dirigido para as massas da população. Esses elementos musicais nativo-ancestrais, os mesmos que guardam profundas conexões dentro da cosmologia andina, tiveram que ser moldados para funcionar dentro dos cânones próprios da música ocidental, procurando um temperamento de alturas das notas, a esquematização da forma musical e a produção de artistas e agrupações que utilizem aqueles instrumentos nativos ancestrais, dentro de um formato propício para sua reprodução.

Num exemplo de processo de hibridação acontecido entre a industrialização musical (potencializada por tecnologias de produção e reprodução mediática) e música nativa ancestral está a chica, gênero característico for incluir instrumentos e sonoridades eletrônicas com alguns fundamentos de música indígena como melodias ou instrumentos tradicionais. O pesquisador Rodrigo Montoya no seu texto Música Chica: Mudanças da canção andina quéchua no Peru3 (1996). Explica que esse processo de “modernização” traz consigo a criação de fundamentos novos dentro da música altiplánica4, os mesmos que geram uma perda substancial da conotação ritual tradicional que tem aquelas manifestações musicais. Desde essa perspectiva nasce esta pesquisa, originada pelo termo nativo experimental usados dentro de uma entrevista realizada com o compositor Cergio Prudencio em 20105, que afirma não ter simpatia por aqueles processos de hibridação ou criolozação antes mencionados, gerando nele, a necessidade de transcender aqueles fundamentos colocados pela indústria musicais para procurar, desde uma visão experimental, novas junções que permitam a subsistência daquele material cosmológico e ritual inseparável da música nativa ancestral da América do

3 Original: Música Chicha: cambios de la canción andina quéchua no Perú 4 Que vêm das terras altas da zona dos . 5 Ampliaremos as informações desta entrevista no capitulo 4 desta dissertação.

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Sul.

Nós observamos que durante os primórdios da constituição da experimentação musical, especificamente na década de 1960, compositores como John Cage, Cornelius Cardew e Karlheinz Stockhausen aludiram a cosmologias ritualísticas orientais para a geração de propostas de experimentação musical. Nesse sentido observamos uma primeira abertura para aquelas manifestações ritualísticas que conseguem dialogar dentro dos fundamentos de experimentação sonora que, desde suas origens, procura um afastamento progressivo daqueles fundamentos musicais estabelecidos e consolidados pela música ocidental mediática.

Nesse contexto se coloca esta pesquisa, a mesma que têm como propósito primeiramente: evidenciar quais são as características que constituem a experimentação musical, através do levantamento de diversas informações que ajudaram a delimitar o território daquela prática. O segundo propósito está direcionada à evidenciar quais são as características cosmológicas e musicais das manifestações nativas ancestrais e descobrir quais são os compositores ou pesquisadores que têm optado por criar processos de transculturalidade onde tanto a experimentação quanto o nativo, conseguem subsistir em complementação e equilíbrio.

Finalmente este trabalho propõe uma aproximação prática direta aos desafios que este processo transcultural apresenta; desenvolvendo principalmente a criação de peças musicais que dialoguem dentro do contexto experimental, mas que estejam fundamentadas desde uma visão musical nativo-ancestral proveniente dos indígenas de América do Sul. Ao final conseguiremos formular conclusões sobre as principais características que a música nativa experimental tem, as possíveis estratégias utilizadas para criar o nexo transcultural e sua importância no mundo musical contemporâneo.

Para conseguir abarcar as diversas informações que representam tanto a música experimental, quanto a cosmologia nativa sul-americana, nós optamos por dividir nosso trabalho em duas partes bem definidas. A primeira realiza uma pesquisa desde os primórdios da música experimental entendida como prática desde 1950. Dividiremos a primeira parte em três capítulos os quais giram em torno de dois paradigmas que consideramos fundamentais para o entendimento desta prática musical. O primeiro capítulo intitulado: Dois paradigmas da música experimental: Considerações históricas, metodológicas e tecnológicas afirma a

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existência de duas tendências, a primeira fundamentada num projeto de tratamento laboratorial do som, propiciando o uso de máquinas de manipulação sonora. Em paralelo afirmamos que através de procedimentos de indeterminação e acaso tenta-se atribuir novas funcionalidades e meios de criação musical. O segundo capítulo intitulado: Improvisação e Indeterminismo: free jazz, partitura gráficas/event score e improvisação livre amplia as informações relevantes para a música experimental indeterminada, as quais serão fundamentais para contextualizar o trabalho prático deste trabalho em conjunto com a Orquestra Errante, grupo de pesquisa em improvisação e música experimental que foi o ateliê para a criação de peças transculturais dentro desta pesquisa. O terceiro capítulo intitulado: A máquina fazendo música: seus primórdios e sua projeção na América do Sul retoma a ideia de música laboratorial apresentando sua expansão para diversos meios tecnológicos que conseguiriam seu total desenvolvimento mediante o uso do computador, como ferramenta de criação musical experimental. Neste capítulo também levantamos informações sobre a atividade musical experimental na América do Sul, principalmente no Brasil e na Argentina, onde observamos uma clara influência dos meios de experimentação sonora provenientes de Europa e América do Norte, sendo fundamental para nós, constatar o ponto histórico onde os compositores de nossa região começam a se interessar por uma experimentação musical próxima aos elementos cosmológicos ou instrumentais provenientes das culturas nativas ancestrais em América do Sul.

A segunda parte desta dissertação faz um enfoque no trabalho de pesquisadores e compositores relacionados com o estudo de dois pontos fundamentais dentro da cosmologia nativa ancestral. O primeiro é o conceito de cosmovisão indígena, o mesmo que está relacionado com as tradições ancestrais e práticas musicais desenvolvidas no contexto da comunidade indígena. O segundo foca na figura do xamã como entidade capaz de guiar e conectar tanto o mundo físico quanto o espiritual, e que é agente social fundamental do desenvolvimento dessas comunidades. Dessa forma apresentamos o quarto capítulo intitulado: Tranculturalidade e relações nativo-ancestrais: Música, cosmovisão indígena e Tecno- xamanismo, o mesmo que começa propondo os termos transcultural versus hibridação, permitindo entender as diferenças entre dois processos relacionados com a mistura entre dois conceitos evidentemente heterogêneos (a música experimental e a cosmologia nativa- indígena) dando como resultado o surgimento do nativo experimental. Em seguida se aprofunda no trabalho do compositor Cergio Prudencio, conseguindo formular as principais

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características dos instrumentos nativo ancestrais pertencentes às comunidades indígenas dos Andes, conjuntamente com suas relações cosmológicas dentro da música nativa dessa região; posteriormente levanta informações do pesquisador Pedro Peixoto Ferreira o qual fundamentará os conceitos relativos ao tecno-xamanismo e suas traduções dentro da música eletrônica atual. Ainda neste capítulo desenvolvemos nossa pesquisa em torno de dois compositores transculturais: Tato Taborda e Mesías Maiguashca, quando evidenciaremos algumas de suas características compositivas através de uma análise dos aspectos estruturais de uma peça respectivamente, a partir das perspectivas cosmológicas nativo-ancestrais.

Finalmente propomos um quinto capítulo intitulado: A prática entre o nativo- ancestral e o experimental, onde levantaremos informações relacionado às práticas de improvisação livre com a Orquestra Errante, colocando alguns apontamentos relacionados com a improvisação desde a visão eco-acústica6 e a ecologia sonora7 permitindo interligar aqueles conceitos com diversas perspectivas de relacionamento autossustentável com o entorno fundamentadas na cosmovisão nativo-ancestral, e que podem servir como marco conceitual dentro de processos criativos espontâneos de livre improvisação. Neste contexto, continuaremos explicando nossas experiências e estratégias de aproximação aos instrumentos e cosmologias nativo-ancestrais indígenas, que foram realizadas mediante a interpretação de instrumentos tradicionais indígenas variados dentro de um marco de experimentação, além de expor as vivências resultantes do contato com uma comunidade nativa do Equador (Kotama) onde reforçaremos os apontamentos sobre música e cosmologia indígena. Por último apresentaremos três peças compostas com a finalidade de criar processos de transculturalidade onde evidenciamos as dificuldades e estratégias para contextualizar diversos pensamentos nativo indígenas dentro de um marco de experimentação musical.

Dessa forma é que propomos, dentro desta dissertação, um percurso com o objetivo de evidenciar as conotações relacionados ao termo nativo experimental, conduzindo a conclusões relevantes num esforço por decifrar os acontecimentos relacionados a uma prática musical experimental com raízes próprias de América do Sul.

6 Termo formulado por Murray Schafer em 1977 que trata de uma escuta atenta do entorno sonoro específico do ouvinte. 7 Termo utilizado por Makis Solomos (2012) e Rogério Costa (2014) o mesmo que explica o relacionamento autossustentável e auto-gerativo do processo sonora dentro de espaços interativos e espontâneos de criação musical.

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. Dois Paradigmas da Música Experimental: Considerações históricas, metodológicas e tecnológicas

O primeiro capítulo de nossa pesquisa se destina a enquadrar contornos, limites e observações gerais sobre o que chamaremos de música experimental. Para isso identificamos algumas relações na composição, interpretação e apreciação desta música. Colocaremos informações inerentes aos processos de experimentação musical ocorridos na década dos 50’s, tanto na Europa quanto na América do Norte, onde transitaremos por alguns conceitos apontados por compositores como Schaeffer, Stockhause, John Cage, grupo Fluxus. Todos eles de alguma forma se relacionam com as seguintes qualidades que temos limitado em dois paradigmas inerentes à experimentação musical de pós-guerra: O paradigma do som como experimento (objeto sonoro - sínteses sonoras Schaeffer - Stockhausen), e o paradigma do experimentalismo musical (happening-performance - Fluxus - John Cage).

O que é sonoro, o audível para nós, vira objeto de experimento quando é tratado de forma laboratorial dentro dos estudos de gravação e sínteses a partir dos anos 50´s. Schaeffer, Stockhausen. Outra perspectiva do agenciamento desse material sonoro, é a desenvolvida por John Cage e o grupo performático Fluxus, os quais por meio de uma atitude e predisposição para a experimentação, derivada de valorização significativa do momento presente, que se transforma em ritual, atribuindo sentido estético de aquilo que emerge como material criativo do cotidiano ou do caótico, o não intencional.

I. Primeiro Paradigma: O som como experimento na Europa

A partir da segunda metade do século XX as tecnologias de registro sonoro expandiram-se para tecnologias de produção sonora e a própria criação musical sem a participação de intérpretes tornou-se possível. Ainda no mesmo período a performance sofre um outro deslocamento em virtude das propostas associadas ao experimentalismo. (IAZZETTA, 2011, p. 2-3)

Michael Chion (1994), em seu livro Músicas: Mídia e Tecnologia, argumenta sobre as consequências artísticas, criativas e sociais sobre a música em meio à massificação progressiva das diferentes plataformas midiáticas (álbuns, radio, cinema). Segundo o autor,

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esse acontecimento se deve ao desenvolvimento de diversas tecnologias de gravação, reprodução e transmissão sonora, que facilitam a comercialização das manifestações musicais ao redor do mundo, possibilitando o intercâmbio de referências entre culturas de diversos pontos geográficos e com variadas referências históricas. Nas palavras do autor:

Todos eles transitam exclusivamente pelo mesmo canal acústico, incluindo certos tipos, até então inseparáveis do seu contexto dramático, como a ópera ou seu contexto circunstancial – música de caça, de trabalho – dessa forma, diversas músicas encontraram-se em fileira, lado a lado em lojas de discos, e tratados como uma mesma coisa, ou seja, um material sonoro (CHION, 1994, p. 64 nossa tradução8).

A tecnologia da fonofixação permite “não só a retenção dos sons existentes, mas também produzir aqueles especificamente destinados a ficar gravados na mídia, usando a voz, instrumentos, ou qualquer ação sonora voluntária ou não” (CHION, 1994, p. 16 – grifo nosso - nossa tradução9). Antes da invenção da fonofixação, o som pertencia inseparavelmente ao instante temporal no qual acontecia. Só aqueles ouvintes presentes no momento poderiam guardar em suas memórias o evento sonoro. O som pertencia ao efêmero: um concerto, um trovão, um discurso - cada evento sonoro era único e irrepetível. A fonofixação chega para modificar radicalmente o modo de conceber e interagir com o som, nos permitindo traduzir alguns dos seus atributos dentro de uma mídia: timbre, alturas, dinâmicas, podendo reproduzi- lo inúmeras vezes. Esse desenvolvimento técnico motivou o desenvolvimento de laboratórios acústicos, altamente especializados, permitindo a realização de diversos “experimentos” com o som.

A. Schaeffer

Pierre Schaeffer (1910-1995) foi um dos precursores desses experimentos na Office de Radiodifussion Télévision Fraçaise (ORTF). Schaeffer (1936) desenvolveu seu trabalho sobre a gravação, edição e tratamento de diferentes sons, apoiado pelo uso de alto-falantes, filtros e equipe de gravação, edição e mixagem. Em 1952, Schaeffer e outros pesquisadores criaram o

8 Original: “Les ont toutes fait transiter par le même canal exclusivement acoustique, y compris certains genres jusque-là indissociables de leur contexte dramatique, comme l’opéra, ou de leur contexte circonstanciel – musiques de chasse, de travail -, de sorte qu’elles se sont trouvées alors rangées côte à côte chez les disquaires, et traités comme une seule et même chose, à savoir une matière audible” (CHION, 1994, p. 64) 9 Original: “non seulement de les sons existants, mais aussi de produire des sons spécifiquement destinés à être gravés sur le support, à l’aide de la voix, d’instruments, ou de n ‘importe quelle cause actionnée volontairement ou non” (CHION, 1994, p. 16)

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Grupe de Recherche de Musique Concrète-GRMC que posteriormente se transformaria no Groupe de Recherches Musicales-GRM (1958-1960).

A partir da noção de matéria concreta, de objeto concreto ou, empregando o termo preferido por Schaeffer, de objeto sonoro, que deve ser entendido no sentido que vai do ruído de uma porta ao ruído de um suspiro, passando neste percurso pelo instrumento tradicional de música, é a partir, pois, dessa noção bem estendida, que se estabeleceu definitivamente o conceito, diríamos, de uma pan-música, de uma música na qual cada evento sonoro possa ter lugar – na medida em que a intenção assim o deseje. (MENEZES, 2009, p. 18)

Pierre Schaeffer (1966) no seu livro Traité Des Objets Musicaux, explica que os compositores concretos10 utilizam diversos atributos que a fonofixação permite registrar. Esses valores são tomados de sons de várias procedências, mas preferentemente de realidades acústicas diversas: ruídos, sons de instrumentos tradicionais ocidentais, instrumentos exóticos, vozes, linguagens e alguns sons sintéticos11. Estes sons gravados eram transformados graças a diversos processos de manipulação eletrônica. A principal mídia era a fita magnética e sua apreciação era realizada mediante alto-falantes. Este processo daria origem, posteriormente, a discussões relacionadas com a acusmática, possibilitando a interação com a acústica dos espaços, o posicionamento dos alto-falantes e a recepção e percepção das fontes sonoras.

A princípio a aceleração e desaceleração que permitiu o acetato em 1948 e, continuamente a fita magnética, foi um procedimento utilizado de forma empírica por Schaeffer; consequentemente, essa experiência daria lugar à divisão de sons no tempo (cortes de fita), a modificação das qualidades tímbricas mediante filtros, criando a possibilidade de decompor e recompor o som em função de técnicas de mixagem e montagem. Neste sentido a música concreta poderia realizar (em teoria) síntese de qualquer som preexistente, passando previamente por uma fase de análise.

Os esforços por concretizar uma análise musical, tanto da música romântica-clássica (Heinrich Schenker, 1954), quanto do dodecafonismo e serialismo de começos do século XX (Allan Forte, 1977 - teoria dos conjuntos), se mostraram pouco eficientes para realizar uma aproximação precisa da concretude do material sonoro; devido a que essas novas perspectivas

10 Schaeffer faz diferenciação entre os compositores concretos (França) e os compositores eletrônicos (Alemanha) 11 Sons sintéticos são aqueles produzidos mediante síntese sonora, criada a partir de uma frequência fundamental senoidal que pode ser alterada a través de processos de sínteses: aditiva, subtrativa, por modulação, modelagem física e granular. (Iazzetta) http://www2.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/

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sonoras se mostravam afastadas das relações com o temperamento das doze notas.

Nesse contexto, Pierre Schaeffer (1966) cria um conjunto de conceitos que procuram descrever de forma objetiva as qualidades dos objetos sonoros. Analisar o som mediante sua morfologia e tipologia geraria uma série de ferramentas conceituais úteis para a qualificação e contextualização de sons: enarmônicos, harmônicos, espectralmente simples e complexos12.

Schaeffer (1966) também realiza apontamentos e discussões sobre a escuta, voltando sua atenção para a materialidade mesma do som, ou objeto sonoro. Para conceber a fundamentação do objeto sonoro, é preciso considerar “a escuta enquanto instrumento musical, um elemento fenomenológico, e uma via de acesso à percepção” (REYNER, 2011, p.78).

Entre os anos 1941-1942 Schaeffer, no ensaio Sur la Radio e le Cínema: estethique e technique des arts-relais, expõe alguns dos seus primeiros pensamentos sobre a escuta. Ele concebe a escuta como um instrumento, quer dizer, como uma ação sonoro-perceptiva focada especificamente nas qualidades de ressonância das coisas vibrantes: a voz, o tráfego, uma língua nativo-ancestral, enfim, tudo quanto nossos ouvidos podem escutar estaria sujeito a uma escuta com possibilidades estéticas, destacando a concretude dos sons como material criativo.

Para Schaeffer existem quatro funções da escuta, as quais classificou como: ouir, écouter, enténdre e compréendre.13 Essas funções da escuta constituem para Schaeffer o “circuito da comunicação sonora, que vai desde a emissão até a recepção” (SCHAEFFER, 1966, p. 113). Apresentamos as principais diferenças entre esses quatro estados fundamentais da escuta:

4.- Compréendre 1.- Écouter - para mim: indícios

- para mim: signos - diante de mim: acontecimentos 1 e 4: Referências exteriores

12 O termo espectral de um evento sonoro se refere à quantidade de parciais (frequências que ressoam sobre uma frequência fundamental) determinando o timbre característico daquele som. 13 Utilizamos aqui estes termos em francês devido a falta dessas palavras na tradução à línguas como o português ou inglês. No espanhol também existem as palavras: oir, escuchar, compreender y entender, como quatro processos diferenciados da escuta.

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- diante de mim: valores (agente-instrumento) externas.

(sentido-linguagem)

Emissão do som.

Aparecimento do conteúdo do som e Reconhecimento das fontes. referências, confrontação das noções extra- sonoras.

3.- Enténdre 2.-Ouïr

- para mim: percepções qualificadas - para mim: percepções brutas, esboços do objeto. - diante de mim: objeto sonoro qualificado. 2 e 3: Experiência interna. - diante de mim: objeto sonoro bruto.

Seleção de alguns aspectos particulares do som, Qualificação do objeto. Repetição do som, Identificação do objeto.

3 e 4: abstrato. 1 e 2: concreto.

Tabela 1: Funções da escuta (SCHAEFFER, 1966, p. 116)

Num esforço por contextualizar o termo objeto sonoro e suas vinculações com as funções da escuta, observamos que écouter representa uma percepção empírica do som, primeira, libertada de qualquer atribuição conceitual ou abstrata; é uma escuta não intencional onde são percebidas as fontes sonoras, mas sem identificar maiores qualidades nem atributos, “em geral, é uma identificação do som dentro do seu contexto causal e instantâneo, mas também pode ser que os indícios se mostrem equivocados, e que a dedução só seja produzida depois de comparação e dedução” (SCHAEFFER, 1966, p. 114-115 – tradução nossa14).

A segunda função da escuta, o ouïr, envolve uma atenção direcionada ao elemento sonoro, mas ainda como esboço; isto é, o que Schaeffer chamaria de objeto sonoro bruto: “É o que permanece idêntico através do fluxo de impressões diversas e sucessivas que tenho dele e das minhas diversas intenções a respeito dele” (SCHAEFFER, 1966, p. 115 – nossa

14 Original: “En général, cette identification de l’événement sonore à son contexte causal est instantanée. Mais il se peut aussi, les indices étant équivoques, qu’elle ne se produise qu’après diverses comparaisons et déductions.” (SCHAEFFER, 1966, p. 114-115).

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tradução15)

Para a função de enténdre, mencionaremos os apontamentos de Rogério Costa referindo-se a uma “intenção de escuta dirigida às características pré-musicais do som descontextualizado de sistemas abstratos ou idiomas e tomado como um objeto em si mesmo” (COSTA, 2003, p. 38). Dessa maneira, o enténdre é a função de escuta que está interessada na concretude do som, suas qualidades acústicas especificas, próprias das atribuições ressonantes desse elemento sonoro. Por exemplo, se queremos “entender” o som do trovão, ressaltamos suas qualidades tímbricas, de duração e dinâmica: rugoso, curto, estridente, mas não serão atribuídas essas características relacionando-as com outros elementos que compõem o trovão (descarga eletromagnética que libera som e luminosidade); pelo contrário, focamos em descrever suas qualidades estritamente sonoras.

A respeito da última função da escuta, o compréendre, Costa comenta que “os sons valem por sua função dentro de um sistema que os articula” (COSTA, 2003, p. 37). Neste sentido, os sons são percebidos pelo ouvinte com todo seu conteúdo semântico. Um apito, por exemplo, passa a representar um sinal de aviso, sem ressaltar suas qualidades sonoras próprias: agudo, curto, simples, etc. Dentro da linguagem, as palavras, por exemplo, além de suas qualidades fonéticas, estão carregadas de sentido semântico, representando funções especificas (gramaticais, de sintaxe, etc.) próprias em cada idioma. As notas musicais, por seu turno, também passam a ter funções interligadas a um contexto musical específico.

Uma nota assume certo valor expressivo dentro de um determinado discurso musical (uma melodia) articulado sobre um sistema hierarquizado e gramaticalizado (o sistema tonal), ela não vale por si mesma. Seus atributos acústicos e perceptivos, se definem em função de seus relacionamentos com os outros elementos e de sua colocação dentro do discurso. (COSTA, 2003, p. 38)

Podemos dizer, então, que as diversas funções da escuta estão ligadas à disposição de escuta do receptor, isto quer dizer, as funções de escuta écouter e ouïr podem ser percebidas primeiramente de forma externa ao indivíduo, para serem posteriormente processadas internamente mediante as outras funções enténdre e compréendre. Por conseguinte, o objeto sonoro nasce daquilo que Schaeffer denomina de escuta reduzida. A escuta reduzida será

15 Il est cela qui reste identique à travers le – flux d’impressions – diverses et successives que j’en ai, tout autant qu’au regard de mes diverses intentions le concernant.” (SCHAEFFER, 1966, p. 115).

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definida como uma escuta intencionalmente afastada de qualquer conteúdo semântico, potencializando as singularidades acústicas de determinado som. De acordo com o autor:

O objeto sonoro aparece quando levo a cabo, tanto material, quanto espiritualmente, uma redução ainda mais rigorosa que a redução acusmática (...) não procuro nada no meio dele, não me direciono a outra coisa (o interlocutor ou seu pensamento), mas é o próprio som o que me interessa, aquilo que eu identifico. Esta intenção de escutar exclusivamente o objeto sonoro, é chamada de escuta reduzida. (SCHAEFFER, 1988, p.268 – nossa tradução16)

B. Stockhausen

A partir dos anos de 1950, Karlheinz Stockhausen junto com outros compositores como Pierre Boulez e Luciano Berio, constituíram o que, na Alemanha, seria chamada de Neue Musik. Stockhausen (1928-2007) é um dos mais proeminentes nesse movimento, um compositor e pesquisador altamente produtivo, com mais de 300 trabalhos e 10 volumes de textos sobre música. Foi ele quem desenvolveu alguns dos primeiros trabalhos com base em geradores eletrônicos de frequência, explorando uma variedade de estratégias para moldar e sintetizar sons. Diferentemente do francês Pierre Schaeffer, que usava a gravação como ferramenta criativa, Stockhausen partia do zero para criar uma única frequência fundamental senoidal; a partir desse elemento, ele pesquisaria diversos procedimentos acústicos e matemáticos, vislumbrando a mesma constituição do som desde suas características atômicas17. Segundo Stockhausen (1953), as possibilidades advindas de síntese sonora seriam inúmeras, criando, mediante processos laboratoriais, materiais sonoros impossíveis de serem concebidos de forma convencional. Desse modo pode-se criar todo tipo de som, de qualquer altura, dinâmica ou espectro, abrindo caminho para o surgimento de novas ferramentas criativas. Flo Menezes (1991) pode nos ajudar com alguns apontamentos importantes a respeito:

16 Original: “El objeto sonoro aparece cuando llevo a cabo a la vez material y espiritualmente una reducción más rigorosas aún que la reducción acusmática. (…) no intento nada por medio de él, no me dirijo hacia otra cosa (el interlocutor o su pensamiento), sino que es propio sonido lo que me interesa, aquello que yo identifico. Esta intención de escuchar más que el objeto sonoro, la llamamos de escucha reducida.” (SCHAEFFER, 1988, p. 268). 17 Para maiores informações sobre conceitos de acústica e matemática relacionada com o som, visitar os tutoriais de Fernando Iazzetta: http://www2.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/, acesso 01-04-2015)

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Em princípio, a música eletrônica não se interessaria pelos dados sonoros concretos, provenientes do mundo exterior, mas visaria ao contrário, à elaboração mais elementar do som a partir de suas mais fundamentais propriedades físicas trazendo ao seio das experiências um alto grau, ao mesmo tempo, de abstração e de racionalidade (...). É nesse sentido que podemos interpretar a postura eletrônica como sendo o apogeu do pensamento weberniano. Coerência e rigor aliavam-se, pelas vias de um racionalismo absoluto, a serviço da abstração. Ao isolamento do som, à importância implacável de cada gesto sonoro – por mais ínfimo que este seja (o que se configura, em Webern, nada mais e nada menos do que a consequência mais lógica da exacerbação expressionista) -, típica da escrita weberniana, corresponderia à elaboração minuciosa do som eletrônico a partir de suas componentes senoidais, ou seja, a partir de sua constituição “atômica” (MENEZES, 1991p. 31).

Desde seu início como estudante em Darmstadt (1951), Stockhausen começaria a exploração de novas formas estruturais, estéticas e tecnológicas dentro de suas composições. Sua formação foi reforçada pelo acesso que teve Stockhausen a um equipamento altamente sofisticado de produção sonora; voltando para sua cidade em 1953, começa seu trabalho na Rádio de Colônia (WDR), equipada com um estúdio-laboratório de instrumentos: “melo- chord, Trautonium, dois moduladores de anel, um filtro-oitavador, dois filtros W49 desenvolvidos para aplicações em rádio-drama, dois estúdios full-track de gravação em fita e quatro canais de gravação” (MACCONIE, 1990, p. 50); o laboratório também contava com equipamento de análise de som como espectrômetros e oscilo-gráficos permitindo a realização de inúmeras experimentações, junto com os técnicos Meyer-Eppler e o engenheiro de som Heinz Schutz. A partir disso, Stockhausen decidiu focar no uso de sinais de tom puro (senoidal), produzidos por geradores de frequência. O próprio Stockhausen aponta:

Para resumir: tornou-se tecnicamente viável a realização deste objetivo. A prática analítica e o estúdio nos conduziram à uma ideia: se o espectro sonoro podia ser analisado, possivelmente ele poderia ser também gerado sinteticamente. Goeyvaerts escreveu para mim de Paris, que ele tinha feito estudos em Bruxelas e aprendido alguma coisa sobre geradores de sinal de onda. (...). Em 1953 meu trabalho em Colônia começou com os instrumentos eletrônicos (melochord e Tratonium) que serviria para a realização de alguns experimentos; mas logo depois que a ideia de síntese mediante espectro- sonoro foi adotada, os outros instrumentos não foram utilizados mais (STOCKHAUSEN, 2004, p. 372 – tradução nossa18).

18 Original: “In short: it has become technically feasible to realize this aim. Practical analyses and studies led us to the idea: if sound spectra can be analysed, perhaps they can also be synthetically generated. Goeyvaerts wrote to me at the time in Paris, that he had made inquiries in Brussels and learn something about generators of sine waves (...) In 1953 my work at the Cologne Radio began. Among the sound sources of the Cologne Studio were first of all electronic performance instruments – a melochord and a Trautonium – which serves as sound sources in some experiments but then, soon after the idea of sound – spectrum synthesis was adopted, were no longer used” (STOCKHAUSEN, 2004, p. 372).

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Na sequência, apresentamos brevemente os apontamentos descritos por Robie Maconie (1990) sobre uma das peças de Stockhausen, fruto da pesquisa com sons senoidais: Elektronische Estudie I (1953), que foi realizada com a combinação de frequências parciais de sons previamente concebidas mediante a germinação de séries simétricas. Partindo de uma frequência 1920 Hz, a série de seis frequências se desenrola de acordo com a sucessão de intervalos: décima menor descendente, terça maior ascendente, sexta menor descendente, décima maior ascendente e terça maior descendente, num processo conhecido como sínteses aditivas (MACCONIE, 1990, p. 52).

Elektronische Studie II, também de Stockhausen, pode ser observada como a continuação das pesquisas com síntese aditiva. Para isso Glenn Llorente argumenta:

Diferentemente do Study I, Stockhausen não se apoia na série harmônica como fonte do material sonoro (ou fonte de frequências), no Study II pelo contrário, ele usou o número cinco de forma serial ao redor da partitura. Para gerar os materiais sonoros, Stockhausen utiliza o número 5 dentro de um algoritmo exponencial para determinar exatamente que frequências usar. Este algoritmo exponencial 25√5, gera a série de frequências desde um espectro sonoro que vai desde 100 até 17200 Hz. (LLORENTE, 2014, p. 4 – nossa tradução19).

Paul Griffiths no livro “Modern Music and After” (2010) menciona que uma das características mais significativas do uso da música eletrônica de Stockhausen foi a oportunidade de apresentar o uso da fusão coerente dos três parâmetros: timbre, altura e duração, ou como “Stockhausen preferia dizer, enfatizando a mudança da nota escrita, atômica, para o som percebido, substancial - composição colorística, composição harmônico- melódica e composição rítmico-métrica”. (GRIFFITHS, 2010, pos. 3320, versão eletrônica – nossa tradução20). Nesse sentido podemos afirmar que Stockhausen, teria um conceito de estruturação musical, que em conjunto com seus conhecimentos na música serial,21 poderia

19 Original: “Unlike in Studie I, Stockhausen does not rely on the harmonic series as a source of sound materials (or frequency sources) in Studie II. Instead, he uses the number 5 serialistically throughout the score. In generating the sounding materials, Stockhausen uses the number 5 within an exponential algorithm to determine exactly which frequencies to use. This exponential algorithm, 25√5, generates the series of frequencies within the selected sound spectrum (100-17200 Hz)” (LLORENTE, 2014, p. 4). 20 Original: “as Stockhausen preferred to call them, his emphasis shifting from the atomic, written note to the substantial, heard sound-“coloristic composition, harmonic-melodic composition and metrical-rhythmic composition”. (GRIFFITHS, 2010, pos. 3320, versão eletrônica) 21 O serialismo musical, derivasse de uma das correntes musicais fundamentais no processo de ruptura com a tradição musical na Europa de começos do século XX: A música Atonal-Dodecafónica. Idealizada e concebida por Arnold Schomberg desde 1908. Nesse sentido a série é uma sequência numérica específica, a mesma que pode ser aplicada para marcar no pentagrama qualquer microestrutura da composição (alturas, dinâmicas, timbres, ritmo), sendo a escola de Darmstadt, o centro do serialismo integral. Stockhausen conhecia muito bem esta técnica de composição, o que foi aplicado

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permitindo a emergência do ruído como material musical, possibilitando a exploração de camadas sonoras complexas.

Observamos só o início das pesquisas de Stockhausen com a música eletrônica, que seria desenvolvida mediante a estreita relação que ele manteve com a teoria acústica, composição, as matemáticas, o cálculo, eletrônica e computação, fazendo pesquisas sobre a constituição do som senoidal que podia ser transformado em diferentes tipos de onda: dente de serra, quadrada, triangular, além de abrir a possibilidade de trabalhar com síntese de frequência modulada e amplitude modulada, modulação em anel, obtendo resultados sonoros únicos, exclusivamente mediante a utilização de fórmulas matemáticas com relação à ressonância das frequências senoidais, além de ferramentas tecnológicas especificas como geradores de som, sintetizadores, espectrômetros, etc. Stockhausen não tardaria em misturar sons eletrônicos e instrumentos convencionais. Isso ocorreria na peça Kontakte (1959-1960), música eletrônica para quatro canais de fita com piano e percussão onde os elementos sonoros eletrônicos se fundem com os sons de instrumentos tradicionais mediante relações espectrais naturais dos instrumentos tradicionais potencializadas pelos sons eletrônicos, fazendo com que as duas camadas sonoras, tanto a instrumental quanto a eletrônica, consigam se complementar numa massa sonora espectralmente ampla. Por conseguinte, Stockhausen identifica quatro áreas distintivas onde a música eletrônica é capaz de expandir e informar sobre as percepções humanas do mundo sonoro, elas são:

(1) a estruturação temporal ou integração proporcional de micro e macro sons; (2) a divisão do som para revelar seus elementos constitutivos; (3) espaços de multicamadas, que são a criação e revelação de perspectivas profundas do som; e (4) a igualdade do tom e ruído. (MACONIE, 1990, p. 107.- Nossa tradução22)

Dessa forma podemos observar as novas atribuições que passa a ter o ruído dentro da composição musical, permitindo que possa ser apreciado como um recurso útil dentro da construção do discurso musical. O ruído pode ser apreciado pela sua estrutura interna que está mais perto de estruturas complexas que de tons puros. Nesse sentido os diferentes sons apresentados em Kontakte dão abertura para identificar diferentes tipos de ruído com micro- da sua obra Gruppen (1957) para três orquestras, conseguindo a serialização de uma ampla quantidade de parâmetros musicais em conjunção; realizando um complexo jogo de relações, estruturas, e blocos sonoros. Para mais informações sugerimos MACONIE, 1990. 22 Original: “(1) the unified time-structuring or integrated proportioning of micro and macrostructures: (2) the splitting of the sound to reveals its constituent elements: (3) multi-layered space, which is the creation and revelation of depth perspectives in sound: and (4) the equality of tone and noise” (MACONIE, 1990, p. 107).

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estruturas, descobrindo beleza e ordem onde antes existia exclusivamente ruído sem ser atribuído como material musical.

C. Apontamentos finais sobre o som na música experimental na Europa

Foi fundamental apresentar o início da música eletrônica, observando três exemplos das obras de Stockhausen, que estariam em relação com nosso critério do som como experimento. Metzger pode nos dar uma ideia concreta sobre este assunto:

Uma pesquisa em Die Reihe ou Perspectives of New Music é suficiente para notar que, em alguns aspectos, a música nova aceita tal analogia; linguagem e teoria emprestadas das ciências é um dos pilares do discurso entre os compositores. Mas a crítica vem reclamando da música de vanguarda ser desumanizada, e não natural. "Experimental", junto com adjetivos como "antisséptico" e "clínico" contribuíram para essa tradição de crítica. Metzger coloca o uso do "experimental" na companhia de termos como "música de laboratório" e "música de engenheiros". Estes modificadores sugerem que essa música substitui procedimentos e meios artificiais pelo imediatismo da expressão natural encontrado na música de concerto tradicional (MAUCERI, 1997, p.189 – nossa tradução23).

“O humano e o natural são construídos como normativas e como representações próprias da tradição. O artificial está associado com novas forças de produção musical manifestada pela vanguarda” (MAUCERI, 1997, p. 189 – grifo nosso – nossa tradução24). Neste sentido, podemos argumentar que existe uma evolução dentro da música experimental europeia, a mesma que nos começos se bifurca em música concreta e música eletrônica, se unificando mediante a utilização do termo como música eletroacústica, rapidamente abrindo passagem à música mista, onde o material sonoro pré-gravado e editado, em conjunto com sons dos instrumentos ao vivo, seriam utilizados para a constituição do todo da composição musical. Desta forma a música experimental europeia foi constituída por “diversas técnicas de

23 Original: “A survey of Die Reihe or New Music is sufficient to note that in some respects new music invites such an analogy; language and theory borrowed from sciences is a mainstay of discourse among composers. But criticism has long complained of vanguard music as dehumanized, and unnatural. “Experimental” along with adjectives like “antiseptic” and “clinical,” contribute to this tradition of criticism. Metzger places the use of “experimental” in the company of terms such as “laboratory music” and “engineers’ music”. These modifiers suggest that this music substitutes artificial procedures and means for the immediacy of natural expression. Found in traditional concert music” (METZGER apud MAUCERI, 1997, p.189). 24 Original: “The “human” and the “nature” are constructed as normative and as representatives of the tradition. The “artificial” is associated with the new forces of musical production manifested by the vanguard” (MAUCERI, 1997, p. 189).

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experimentação ou produção experimental de dados (sonoros), como uma forma de expressão de processos que envolvem experimentos com vários tipos de materiais, ferramentas ou instrumentos” (GOEHR, 2008, p. 113), criando a ilusão de controle para o músico experimentador. Nesse sentido Goehr aponta que “o experimento sempre está do lado das ciências e da sociedade enquanto o experimentalismo sempre está ao lado das artes” (GOEHR, 2008, p. 127), explicando essa dupla função que teve a música quando, mediante estudo acústico e cientifico conseguisse experimentar com o som, e por outro lado, mediante uma atitude de experimentação sonora, foram se constituindo novas formas de criação musical.

Para ampliar nossa discussão sobre o som como experimento, Lílian Campesato (2012) sugere diversos apontamentos a respeito:

Nesse processo, a aproximação entre o espírito artístico e o científico desempenha um papel importante. O artista, ao tomar o modelo das ciências aplicadas, acaba por afastar a arte do que é humano ao evidenciar o métier como um fim em si mesmo. O seu atelier se transforma em laboratório, na qual ele testa e verifica o funcionamento de suas “obras”, ou melhor, de seus “experimentos”, os quais são baseados em dinâmicas estabelecidas por um sistemático e refinado método” (CAMPESATO, 2012, p.27).

A exaltação do métier, relacionada por Campesato (2012) à ideia de arte por si mesma, significa que os próprios processos e descobertas utilizados na criação de uma peça musical eram o sustento estético e objetivo da arte sonora que estava nascendo; o compositor “tinha que acrescentar seu métier além de seus estudos de acústica para poder obter maiores conhecimentos sobre seu material” (STOCKHAUSEN, 2004, p. 371 – nossa tradução25).

As manifestações musicais europeias de pós-guerra foram influenciadas principalmente pelas metodologias científicas e avanços tecnológicos próprios daquela época, gerando uma tecnificação de procedimentos relacionados à construção do som, tanto da concepção conceitual do objeto sonoro de Pierre Schaeffer, quanto dos diversos processos acústicos e síntese sonora da música eletrônica de Stockhausen. A partir desse ponto, a música experimental teria um aspecto científico, onde os compositores europeus observariam nas características e propriedades da constituição do sonoro, elementos para criar novas estéticas audíveis; a descoberta de sons sintéticos, ou a repetição de um som só, além do ruído

25 Original: “He had to enlarge his métier and study acoustics in order to get to know his material better” (STOCKHAUSEN, 2004, p. 371)

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como grande renovador da música experimental, modificariam irremediavelmente todas as relações que a música tem conosco, expandindo-se para diversas áreas do conhecimento.

Nosso interesse foi apresentar os pilares geradores que se mostraram indispensáveis para a constituição da música de vanguarda na Europa, possibilitando que a música adquirisse um enfoque científico-experimental. Entendemos que os desenvolvimentos tecnológicos proporcionaram melhoras significativas nas áreas de gravação, sínteses e reprodução do som. Também se modificaram substancialmente as relações entre compositor-intérprete-público. Fernando Iazzetta (2009) resume esta ideia da seguinte maneira:

Compositores aventaram a hipótese do surgimento de uma arte nova, intérpretes sentiram-se ameaçados pela reprodução em massa de gravações e pela automatização da performance trazida por sistemas eletroeletrônicos, ao passo que os ouvintes viram-se, em mais de um sentido, obrigados a desenvolver novas estratégias de escuta, à medida que o contato com a música passou a ser mediado pelas tecnologias de áudio, em última instância emblematizadas pela onipresença dos alto-falantes (IAZZETTA, 2009 ,p. 21).

Finalmente podemos concluir, que no desenvolvimento técnico científico de meados do século XX, a música incorpora a ciência em seus procedimentos, produzindo visões do mundo obviamente permeadas pelas percepções culturais, científicas e mediáticas que afetaram as relações compositor-performer-público. Fruto dessa mudança de relações, a música toma diversos caminhos, possibilitando o contato com uma ampla gama de áreas interdisciplinares como a física, a acústica, a fonética, a construção de instrumentos, a psicoacústica, a cognição, as ciências computacionais, a eletrônica, a musicologia, a improvisação, a instrumentação e a performance, constituindo-se como uma arte sonora dotada de fundo e contexto laboratorial. Concluímos que as experiências científico-artísticas dos compositores e pesquisadores europeus de pós-guerra deixaram caminho fértil para que surgissem ainda mais inovações tecnológicas (novas mídias e aparelhos de gravação e reprodução), permitindo que dessa forma proliferassem obras sonoras laboratorialmente concebidas.

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II. Segundo Paradigma: Experimentalismo Musical na América do Norte

Afirmamos a existência de um segundo paradigma na música experimental que se bifurca do trabalho compositivo na Europa, para criar um paralelo com os compositores norte- americanos da década de 1950. Para isso será fundamental estabelecer alguns conceitos relativos ao happening e à performance, explicando suas origens nas artes plásticas e teatrais, e sua rápida expansão para outras áreas das artes, criando assim uma nova corrente da música experimental com centro em Nova Iorque.

Seguidamente colocaremos diferentes apontamentos ao redor dos compositores e performers (grupo Fluxus) afirmando sua importância para definir uma postura diante da composição e execução da música experimental, influenciada, e em contraposição ao movimento de vanguarda europeu.

A. Características gerais do Happening e da Performance.

A característica de arte de fronteira da performance que rompe convenções, formas e estéticas, num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e aglutinação, permite analisar, sob outro enfoque, numa confrontação com o teatro, questões complexas como a representação, do uso da convenção, do processo de criação, etc., questões que são extensíveis à arte em geral (COHEN, 2001, p. 27).

Os limites da performance estão definidos como uma “função do espaço e do tempo (...); para caracterizar uma performance, algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local” (COHEN, 2001, p. 28). Uma performance então pode ser composta por uma gama de procedimentos multimídia descritos por Richard Schechner (1978) como multiplex code, aceitando relações com áreas do audiovisual, as artes plásticas, a música, instalações26, e teatro e a dança.

Tanto o happening quanto a performance são pensados como uma manifestação de

26 Renato Cohen aclara no seu texto “Performance como linguagem” (2001) que uma instalação é algum elemento sígnico, que pode ser um objeto, um ator, um vídeo, uma escultura etc, que fica “instalado num local fixo e é observado por pessoas que geralmente chegam em tempos distintos (COHEM, 2001, p. 28).

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ruptura com o que poderia ser descrito como arte estabelecida27, dando origem a uma valorização de procedimentos, situações e objetos que antes não eram apreciados como artísticos, expandindo os limites entre arte e vida. O happening e a performance procuram uma ritualização das ações, toma o presente e seus acontecimentos como material potencial de criação. Nesse sentido encontraremos claras conexões com a action painting de Pollock, “as pinceladas, as manchas, as linhas, os borrões se tornaram cada vez menos ligados a objetos representados e passaram a existir cada vez mais por conta própria, de maneira auto- suficiente” (KAPROW, 2006, p. 39), é assim que Pollock utiliza os próprios devires de suas pinceladas realizadas espontaneamente sobre a tela, se deixando levar pelo momento presente, intensificando sua atenção e ação e imprimindo seus traços espontâneos de tal forma que a pintura vai tomando forma e contexto ao vivo. Por outro lado, a ideia de John Cage de musicalizar o ruído do entorno, aquelas manifestações sonoras que vêm da não intencionalidade, do acaso e da entropia do sonoro cotidiano, tomam valor substancial para a performance.

Outra das características gerais, tanto do happening quanto da performance, é que são expressões desligadas dos locais destinados para a realização de eventos artísticos. Elas podem se manifestar em diversos espaços físicos como elevadores, parques, igrejas, instituições político-sociais, piscinas, enfim, qualquer espaço que permita um contato direto com o espectador, o qual não será delimitado pela diferenciação palco-plateia - próprio de lugares destinados para as artes tradicionais -, e sim serão incluídos muitas vezes como elementos e estruturadores do processo criativo.

Finalmente podemos argumentar que o importante para o happening e para a performance é o processo, valorizando as nuances do procedimento criativo ao vivo, engajando o risco do momento presente com a criatividade do performer. Ao contrário das obras artísticas que são exibidas e adquirem seu valor quando são expostas como concluídas, o happening e a performance constituem obras de arte vivas, que ganham seu valor estético exclusivamente no tempo presente onde estão sendo realizadas. Esse valor estético estará

27 Em seguida apresentamos o que descreve Cohen (2001) como arte e não arte: “Allan Kaprow, o idealizador de Happening, que se autodenomina um fazedor de conceitos, estabelece o contraponto ARTE-Arte e NÃO-Arte. A primeira, que chamamos de arte estabelecida, é herdeira da arte instituída, é intencional, tem fé e aspira a um plano superior. Exprime-se numa série de formas e ambientes sagrados (exposições, livros, filmes, monumentos etc.). A NÃO-Arte engloba tudo o que não tenha sido aceito como arte, mas que haja atraído a atenção de um artista com essa possibilidade em mente (...). Um exemplo claro disto são os ready-mades de Marcel Duchamp, que vão dar um valor de objetos de arte a produtos industrias, feitos em série e absolutamente cotidianos, como uma bicicleta ou um vaso sanitário” (COHEN, 2001, p. 38).

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determinado pela qualidade do processo em si, quer dizer, na capacidade do performer de transmitir seus valores e habilidades dentro do espaço-temporal em conjunto com o espectador.

B. Diferenças entre o Happening e a Performance

Umas cinquenta pessoas se juntam para a visita, que transcorreu sob uma forte chuva. Bréton e Tzara ficam provocando o público com discursos, Ribemont-Dessaignes se faz de guia – diante de cada coluna ou estátua ele lê um trecho, escolhido no acaso, do Dicionário Larousse. Depois de uma hora e meia os espectadores começam a se dispersar. Recebem então pacotes contendo retratos, ingressos, pedaços de quadros, figuras obscenas e até notas de cinco francos com símbolos eróticos. Não será esta excursão de 1921 um típico happening dos anos sessenta? (GLUSBERG, 1987, p. 20).

Em 1958, dois anos depois da morte de Jackson Pollock (1912-1956) o artista visual Allan Kaprow (1927-2006) escreveria um artigo intitulado “O legado de Jackson Pollock”. Nesse texto, Kaprow “parece prever o futuro da produção artística dos anos 60, em sua tendência a diluir-se na vida cotidiana” (KAPROW, 2006, p. 38). No final do texto, Kaprow envia uma mensagem para a geração seguinte de artistas, argumentando que deixem as etiquetas (pintor, poeta, músico) para se abrir como entes artísticos livres, não tentando tornar extraordinário o natural, mas simplesmente exprimindo o significado real das coisas. Criando o extraordinário a partir do nada. Finalmente expõe que essa habilidade será a alquimia dos artistas dos anos 60.

Kaprow fez diversos assemblages como uma continuação do action painting de Pollock. Nas assemblages são recolhidos materiais pouco convencionais ou reciclados e colocados em forma de “colagens de impacto”. Para a criação, são usados elementos como máquinas, espelhos que refletiam o público, fotografias, palha, telas, alimentos, além de colocar efeitos de iluminação (luzes que se acendem em intervalos) e som (ruídos de campanas, sinos, brinquedos). Sua intenção, como ele mesmo explica, foi “acumular quase todos os elementos sensoriais com os quais trabalharia nos anos seguintes” (GLUSBERG, 1987, p. 29).

O happening pode ter conexões fundamentais com a pintura e com a escultura, além

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de ser uma atividade teatral; também pode conter material musical – sonoro e até aromas, integrando diferentes camadas de inserções sensitivas dentro de um mesmo plano. Para esclarecer este conceito, colocamos o exemplo da obra Untitled Event (1952), realizada no Black College Mountain da qual participaram John Cage, Merce Cunningham, o pintor Robert Rauchenberg, o pianista David Tudor e os poetas Mary Richards e Charles Olsen. Para isso “Cage se propôs uma fusão original de cinco artes: o teatro, a pintura, a dança e a música, e o cinema” (GLUSBERG, 1987, p. 25). Nesta obra “ele [Cage] foi capaz de combinar uma variedade de elementos expressivos incluindo matrizes de realizadas numa estrutura indeterminada e compartimentada que faz uso da relação expressiva do espectador-performer” (KIRBY, 1995, p.19 – nossa tradução28). Nesse sentido Michael Kirby, no seu texto Happenings: An Introduction (1965), explica como foi realizada Untitled Event:

As cadeiras, todas apontando ao centro, foram colocadas no meio da sala de jantar, deixando espaço aberto entre a audiência e as paredes da sala. Programado por segundos como numa composição musical, as diferentes performances ocorriam ao redor da audiência. Cage, vestido com terno preto e gravata, lia um manifesto do Meisnter Eckhart em uma estante ao seu lado (...). M.C. Richards recitava desde uma escada, Charles Olsen e outros performers “plantados” na plateia se levantam quando sua hora chega e falam uma ou duas linhas. David Tudor toca piano preparado. Filmes são projetados no teto: no princípio mostram a cozinha da escola, logo o sol, e, conforme a imagem ia se movimentando desde o teto para a parede, o pôr do sol. Robert Rauschenberg colocava velhas gravações num fonógrafo de mão e Merce Cunningham improvisava uma dança ao redor do público. Logo mais um cachorro começou a seguir a Cuningam sendo aceito na apresentação (KIRBY, 1995, p.19 – nossa tradução29).

Entre os anos 1956 e 1958, Allan Kaprow estudaria com John Cage na New School em Nova Iorque, a matéria composição musical. Cage viu que não existia impedimento para incluir material visual dentro de suas aulas de composição. Em consequência Cage compôs pequenas peças onde seriam usados sons concretos, além de movimentação e imagens puramente visuais. Estes trabalhos influenciariam a Kaprow para, no ano 1959, estruturar seus 18 happenings in 6 parts, dando origem a esta expressão multidiversa.

28 Original: “He was able to combine a variety of expressive elements including indeterminate nonmatrixed performing in a compartmented structure that made use of an expressive spectator-performance relationship” (KIRBY, 1995, p. 19) 29 The chairs, all facing the center, were arranged in the middle of the dining room hall, leaving open space between the audience and the walls of the room. Timed to the second as in a musical composition, the various performances took place in around the audience. Cage, dressed in a black suit and tie, read a lecture on Meinster Eckhart from a raised lectern to the side. (...). M.C. Richards recited from a ladder. Charles Olsen and others performers “planted” in the audience each stood up when their time came and said a line or two. David Tudor played prepared piano. Movies where projected on the ceiling: at first they showed the school cook, then the sun, and, as the image moved from the ceiling down the wall, the sun sank. Robert Rauschenberg operated old records on a hand-wound phonograph, and Merce Cunningham improvised a dance around the audience. A dog began to follow Cunningham and was accepted into the presentation” (KIRBY, 1995, p.19).

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Na procura por estabelecer um nome para suas propostas de ação em tempo real, Kaprow cria o termo happening. Como ele mesmo menciona: “não sabia como chamar minhas peças que supostamente devem acontecer de forma natural” (HIGGINS, 1976, p.368). Suas propostas incluíam em muitos casos a participação do público, como foi no caso de Household (fevereiro de 1964); acontecido na Universidade de Cornell (Ithaca-NY). Este happening consiste em treze instruções que os participantes deveriam realizar em horas determinadas. O lugar também é especificado: deve ser isolado num campo aberto, com acúmulo de lixo, parte pegando fogo. As ações são as mais diversas: criar torres de lixo, construir ninhos com ramas, gritar, bater, ficar nu, cantar canções de rock & roll, etc. Kaprow, dessa maneira, outorga ações que incitam o participante a vivenciar uma seqüência de atos descontextualizados da rotina e do cotidiano, criando momentums, estados de permanência carregados de significado estético, que são vivenciados em primeira pessoa pelos atuantes, sem a mediação de nenhum artista-criador que represente aqueles acontecimentos.

Uma característica fundamental do happening é sua ação no aqui-agora. Cohen aponta:

Algo que está acontecendo naquele espaço, naquele instante; sua realização é viva naquele momento. (...). Existe uma acentuação maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo real). Isso cria uma característica do rito, com o público não sendo mais o espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão (e para isto acontecer não é absolutamente necessário suprimir a separação palco-plateia e a participação do mesmo, como nos espetáculos dos anos 60). A relação entre o espectador e o objeto artístico se desloca então de uma relação precipuamente estética para uma relação mítica, ritualística, onde há um menor distanciamento psicológico entre o objeto e o espectador (COHEN, 2001, p. 97-98).

A seguir, descrevemos as principais diferenças entre o happening e a performance. O happening ocorre num período anterior à constituição da performance, sendo uma prática suscitada na década dos anos 1960, relacionando-se com a chamada live-art. O happening é sustentado exclusivamente como ritualizador do instante presente, que depois, na década de anos 1970, teria sido substituído pela performance, agregando a essa ritualização elementos conceituais especificamente designados num roteiro (gráfico, textual, visual). O fio condutor do happening são exclusivamente as ações, também chamadas sketches onde existe pouco controle, enquanto a performance apresenta um aumento significativo do controle, em parte agenciado por roteiros bem estabelecidos. Outra diferença é a qualidade grupal do happening,

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sendo uma atividade que precisa da atenção tanto dos performers quanto do espectador; a performance ao contrário representa uma ideia individual, utopia pessoal de quem a criou. O happening nasce desde uma cena plástica, como observamos com Pollock e Kaprow, enquanto a performance vai suscitar a multiplicidade de possibilidades que o happening ganhou no transcurso da década de 1960, chegando a incluir elementos tecnológicos, audiovisuais e teatrais. O happening acontece como um evento sem repetição destinado a pertencer exclusivamente ao espaço-tempo onde foi realizado, por outro lado, a performance se apresenta como uma estruturação susceptível a ser repetida, que apesar de ser aberta, pode ser representada em diversos contextos espaço-temporais e ainda guardar sua singularidade e caráter estético. Outra diferença é a possibilidade de interação do público sendo muito maior num happening (dado que está sujeita aos acontecimentos do instante-presente) ao invés da performance “trabalha-se com o jogo dialético performer x personagem, tempo real x tempo ficcional, mas é menos comum ou imprevista esta abertura ao público” (COHEN, 2001, p. 138).

Finalmente colocaremos os apontamentos de Renato Cohen (2001) sobre a principal diferença dentro da prática do happening e da performance e a função do performer dentro de cada atividade. Ele sugere que o performer dentro da prática do happening, tem que se disponibilizar como canalizador do momento ritual, entre o cotidiano-material, e o público presente. Ele, nesse sentido, funciona como agente para traduzir esse cotidiano num aspecto mais meditativo, carregado de significância.30

O performer em relação ao praticante do happening necessitará uma maior habilidade de artista para “segurar a cena”. Justamente porque no happening não havia esse sentido de “cena”, de “espetáculo”, o condutor deste funcionava mais como um xamã, um catalisador, um mestre de cerimônias do ritual. A participação do público diminuía sua responsabilidade enquanto atuante – a ênfase do trabalho se dava na elaboração dos sketches e na habilidade de improvisar diante de situações imprevistas (COHEN. 2001, p. 138).

30 Esta obrigação do performer, para transformar, mediante processos cénicos o cotidiano em ritual, será amplamente explorado quando falarmos da cosmovisão andina e o tecno-xamanismo na segunda parte deste trabalho.

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C. Atitude experimental norte-americana: “Cage and Beyond”

Parece indispensável que dediquemos nossa atenção para alguns eventos e peculiaridades do trabalho do compositor americano John Cage (1912 – 1992) que, com compositores como Morton Feldman (1926-1987), Earl Brown (1926-2002), o grupo Fluxus (1961), Christian Wolff (1934), definirão as práticas musicais experimentais na América do Norte. Alguns desses apontamentos foram expostos por Michael Nyman (1999 no seu livro Experimental Music: Cage and Beyond (1999), que apresenta de forma clara os acontecimentos relacionados à experimentação sonoro-musical, suas características e seus principais protagonistas. Seus apontamentos esclarecem pontos fundamentais do modo de escuta, interpretação e composição musical, que foram reestruturados em meados de século XX, principalmente em contraposição ao movimento da Neue Musik na Europa, especificamente na Alemanha e França.

É importante ressaltar que o termo "música experimental", sofre uma bifurcação a partir de dois pontos geográficos: a música experimental norte-americana e sua contrapartida na Europa, a música avant-garde ou Neue Musik. As diferentes perspectivas são apresentadas, por exemplo, no artigo escrito por Frank X. Mauceri em 1997, “From Experimental Music to Musical Experiment” (1997). Nesse artigo, o autor destaca a existência de uma lista publicada pela coleção National Gallery of Art NGA, contendo uma variedade de métodos, influências e sensibilidades.

O aspecto mais interessante desta lista, no entanto, são as omissões: Os exemplos dados excluíram qualquer figura importante da música europeia Avant-Garde, as contribuições de Stockhausen, Schaeffer, Boulez, Xenakis e Posseur não eram tão ousadas, tão individualistas e tão excêntricas quanto as dos seus colegas norte-americanos. O NGA caracteriza a "música experimental" como uma longa tradição americana. (...) Nyman tenta excluir a avant-garde europeia, associando-a com a tradição da música europeia de concerto. "Música experimental" não só coloca o novo em oposição ao velho, mas também o mundo novo em oposição ao velho mundo (MAUCERI, 1997, p. 190 – nossa tradução31).

31 Original: “The most interesting aspect of the list is the omissions. The examples given notably exclude any major figure from the European avant-garde. Presumably, the contributions of Stockhausen, Schaeffer, Boulez, Xenakis, and Pousseur were not as bold, as individualistic, as eccentric, as their American colleagues. The NGA entry characterizes "experimental music" as a largely American tradition. (…) Nyman attempts to exclude the European avant-garde by associating it with the tradition of European concert music. "Experimental music" not only places the new in opposition to the old, but also the new world in opposition to the old world” (MAUCERI, 1997, p. 190).

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John Cage reconheceu a influência dos futuristas (Russolo), e os Dada (Tzara, Duchamp) na música experimental. E, certamente, há os compositores "experimentais" que seguiram a Cage, assim como os compositores de vanguarda europeus. É aí que podemos encontrar o ponto de partida de uma nova atitude frente a constituição e estruturação do som. Existe a procura por um ideal sonoro, que vem sendo alimentado desde a década de 1950. Assim Maucery (1997) afirma:

Em qualquer caso, a questão não são as inovações desses compositores motivadas por um ideal europeu. O ponto importante é que a categoria "música experimental" é motivada por um ideal europeu. A categoria se baseia sobre o “discurso de originalidade" que caracteriza a teoria da arte e da crítica e tem suas raízes na vanguarda europeia. O “experimentalismo" que é exclusivamente americano é legitimado como uma categoria artística de acordo com os termos da cultura europeia; ele tenta "levantar a aposta" no avant-garde europeia reivindicando uma originalidade mais radical (MAUCERI, 1997, p. 191 – Nossa tradução32)

Também é importante reiterar a influência que as teorias científicas tiveram dentro da música avant-garde europeia, em particular, a física e a teoria da informação, refletindo esses desenvolvimentos técnicos e inspirando um discurso teórico profícuo. Podemos definir a "música experimental":

Como uma tradição americana que não se refere à prática científica, mas à mitologia do intelecto e invenção americana (Franklin, Bell, Edison). Neste contexto, em relação a Cage, Schoenberg disse: "Ele não é um compositor, mas um inventor genial" (MAUCERI, 1997, p. 192 – nossa tradução33).

Nesse sentido, entra a figura de John Cage como modelador fundamental dos limites da função experimental que teria a música na América do Norte. Sobre isso, podemos agregar:

Cage sugere que os meios técnicos se aproximem da natureza real do som. O som natural não está dividido em escalas, tempos, instrumentos e assim por diante, não está conformado às necessidades de meios expressivos. O experimento musical, ao se afastar das exigências da expressão, é livre para

32 Original: “In any case, the issue is not whether these composers’ innovations were motivated by a European ideal. The important point is that the category “experimental music” is motivated by a European ideal. The category draws on the “discourse of originality” that characterizes art theory and criticism and has its roots in the European avant-garde (Krauss en idem). The uniquely American “experimentalism” is legitimated as an artistic category according to the terms of European culture; it tries to “up the ante” on European avant-gardism claiming a more radical originality” (MAUCERI, 1997, p. 191). 33 Original: “American tradition refers not to scientific practice but more to the mythology of American ingenuity and invention (Franklin, Bell, Edison)” (MAUCERI, 1997, p. 192).

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incluir os sons do ambiente e os irrestritos (e imprevisíveis) comportamentos do som natural (MAUCERI, 1997, p. 198 – nossa tradução34).

Cage também se interessa em encontrar as relações da bifurcação na “música experimental” (Europa - América do Norte) reconhecendo a relevância que tinham os meios tecnológicos desenvolvidos:

Concepções tradicionais sobre o tratamento dos sons musicais como timbre, ritmo, amplitude etc., estão divididos em unidades discretas. As técnicas de contraponto, harmonia e orquestração se preocupam em formar distinções significativas da estrutura formal da rede descrita como unidades discretas, enquanto as técnicas eletrônicas tratam destes parâmetros como contínuos (MAUCERI, 1991, p. 198 – tradução nossa35).

Antes de prosseguir, devemos esclarecer que na Europa também existiu um interesse dos compositores por aproximações a processos de indeterminismo na composição. Segundo o pianista e pesquisador Alexandre Zamith (2009), as peças herdeiras dessa aproximação eram conhecidas como música com forma polibalente. Stockhausem compôs em 1956 sua peça para piano Klavierstucke XI. Nesta peça:

Os segmentos musicais [foram] distribuídos espacialmente por uma única folha de papel, a serem ordenados randomicamente na performance – [esse procedimento] é em geral assumido como responsável pelas classificações de obra aberta, forma-mobile ou forma polivalente, pela concessão de liberdades ao intérprete (ZAMITH, 2009, p. 591).

Compositores como Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen também idealizaram a chamada música aleatória, tendo o critério do performer como parte substancial da construção da obra musical.

Estruturas autônomas, cuidadosamente estabelecidas e imutáveis, balizam, portanto, a obra, não como pilares indispensáveis a um equilíbrio fixado uma vez por todas, mas como um feixe de possibilidades, das quais umas serão deixadas de lado e outras concorrerão para a edificação de uma obra em formação (BARRAUD, 2005, p. 131).

Voltando para a América, John Cage é quem possibilita uma libertação absoluta dos

34 Original: “Cage suggest that technical means draw as closer to sound’s real nature. Natural sound is not divided into scales, beats, instruments and so on. It does not conform to the necessity of expressive means. Musical experiment, by divesting itself of the requirements of expression, is free to include the sound environment and the unrestricted (and unpredictable) behavior of natural sound” (MAUCERI, 1997, P. 198) 35 Original: “Conceptions of musical sound treat parameters such as pitch, rhythm, amplitude, etc., as divided into discrete units. Counterpoint, harmony and orchestration are all concerned with structuring significant distinctions within this grid of discrete units, whereas electronic techniques treat these parameters as continuous” (MAUCERI, 1991, p. 198).

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eventos sonoros do cotidiano e as entrópicas estruturações que aparecem no plano do audível, como material, fonte primeira do material sonoro que se torna musical. Neste contexto, Michael Nyman (1999) afirma que o processo, para o compositor experimental, não estava ligado a definir objetos temporais que determinassem o material, estrutura e relações que são previamente calculadas, mas, pelo contrário, “são caracterizados pelo modo de delinear uma situação onde os sons podem ocorrer, um processo gerativo da ação (sonora ou de outra índole), um plano delineado por certas regras composicionais” (NYMAN, 1999, p. 4, nossa tradução36). Podemos afirmar a busca de um ideal por libertar a composição musical de estruturas e acontecimentos sob o controle humano, e permitir que os sons não intencionais, aqueles sons que se manifestam no cotidiano, o ruído, e sons não-musicais, sejam parte constitutiva do discurso musical.

Nyman explica que as influências do budismo-zen e da não intencionalidade, influenciariam o trabalho de John Cage desde a década de 1940 e nas seguintes décadas. O I Ching (o antigo livro chinês do oráculo) foi usado para responder a perguntas referentes a articulação dos materiais em Music of Changes, 1951 e Mureau, 1971. Outro exemplo que encontramos em Cage é o uso de procedimentos composicionais onde se utilizam as imperfeições do papel para criar a estrutura musical (Music for Piano, 1952-1956), dando origem a 86 peças escritas de maneira arbitrariamente aleatória. (NYMAN, 1999, p. 6)

Para Cage, a função do imprevisível como método de experimentação foi central em seu pensamento musical; um exemplo é sua peça “4:33” (1952), que poderia ser considerada como a primeira peça musical que considera o ruído não intencional da plateia como o discurso sonoro durante um tempo determinado. Nesse sentido, a intenção de Cage foi dissolver a oposição entre sons intencionais e não intencionais, essa divisão implícita na música tradicional, que divide os sons musicais (produzidos intencionalmente por instrumentos musicais) e não musicais (o restante dos sons ou mesmo ruídos que compõem a paisagem sonora), ou seja, sons não intencionais. Sobre essa premissa, a música experimental se apresenta não mais de forma discursiva, mas sim como uma constelação de sons que ganham valor estético pela sua própria existência e relação com o contorno acústico do presente. Sobre esse assunto, Cage reflete no seu livro Silence, de 1961:

36 Original: “but are more excited by the prospect of outlining a situation in which sounds may occur, a process of generating action (sounding or otherwise), a field delineated by certain compositional rules”

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Nova música: nova escuta. Não é uma tentativa de compreender algo que está sendo dito, para, se alguma coisa estivesse sendo dito, os sons poderiam dar as formas das palavras. Simplesmente uma atenção para a atividade dos sons (CAGE, 1961, p. 10 – tradução nossa37).

Neste momento, é preciso mencionar o grupo Fluxus e sua relação com a performance musical experimental. No livro Fluxus Reader, editado por Ken Friedman (1998), a pesquisadora Hannah Higgins oferece informações valiosas sobre o início do Fluxus: no ano de 1958, John Cage dava aulas para um grupo de artistas (posteriormente identificados como Fluxus) de composição musical na New School for Social Research de Nova York. A comunidade de artistas que expandiriam as implicações do trabalho desenvolvido nas aulas de Cage incluiria, ao final de 1950, o grupo conhecido como New York Audio-Visual Group (Al Hasen e Dick Higgins), que participava de uma série de performances organizadas por La Monte Young e Yoko Ono, em um espaço conhecido como SoHo, e que funcionava no loft, de propriedade de Ono entre os anos 1964-1972. Desde então se realizaram atividades artísticas em cidades como Nova York, Los Angeles e Vermont; adicionalmente, na Europa, as ideias de Fluxus estavam se espalhando entre as diferentes raízes europeias que incluíam, além dos concertos e festivais organizados pelo Fluxus, outras atividades ao redor da artista alemã Wolf Vostell entre 1962 e 1969.

Além disso, o estabelecimento de Stockhausen em Colônia (Alemanha) foi significativo no início da década de 1950. Nesse momento, o compositor Karlheinz Stockhausen esteve imerso ativamente no centro da avant-garde musical, seu trabalho no campo da música eletrônica no Estúdio WDR, em Colônia, como observamos no paradigma anterior, serviram de importante ateliê de performance, dirigido por sua esposa Mary Bauermeinster. Isto sugere a existência de receptividade para o trabalho do Fluxus por parte do experimentalismo europeu, permitindo que Stockhausen trabalhasse com artistas do grupo Fluxus, Nam June Paik e Ben Patterson em uma série histórica de concertos no ateliê de Bauermeinster.

Quando John Cage visitou Colônia, em 1960, esses artistas realizaram o que viriam a ser as peças originais de Fluxus, escritas para sua classe de composição.

37 Original: “New music: new listening. Not an attempt to understand something that is being said, for, if something were being said, the sounds would be given the shapes of words. Just an attention to the activity of sounds” (CAGE, 1961, p. 10).

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Bauermeinster organizou o "Centre-Festival", a ser realizado em Colônia durante quatro dias em junho. As apresentações incluíram performances de John Cage, Toshi Ichiyanagi, Sylvano Bussotti, George Brecht, La Monte Young e Christian Wolff interpretados por David Tudor – assim como dois concertos de Nam June Paik (em Outubro). Merce Cunmngham e Caroly Brown dançaram duas peças de John Cage, Christian Wolff, Earle Brown, Toshi Ichiyanagi e Bob Nilsson, interpretados por David Tudor e John Cage. Um dia depois, novamente no estúdio do ático, algumas pessoas puderam ouvir e ver as composições de Cage, La Monte Young e Paik - os intérpretes foram Cornelius Cardew, Hans G. Helms, David Tudor e Benjamin Patterson (DORSTEL, STEMBERG, von ZAHN, apud HIGGINS, 1998, p. 33 –nossa tradução38).

Dessa forma apontamos a importância dos relacionamentos surgidos nos anos 1950 por parte de compositores como Morton Feldman (1926-1987), Earle Brown (1926-2002) e Christian Wolff (1934) que, em conjunção com John Cage, La Monte Young (1935) e o grupo Fluxus, constituíram parte fundamental do grande movimento experimental na cidade de Nova Iorque; considerando esta cidade como a capital da experimentação mundial do século XX. É importante mencionar os conceitos por trás das composições que, neste período (finais de 1950 e década de 1960), estão caracterizadas pela criação e utilização de novas estratégias de notação musical (gráficas e textuais) direcionando as ações dos músicos em performances musicais de diversas manifestações. Para isso, destacamos uma sinopse de cinco processos mencionados por Michael Nyman, no livro Audio Cultures: Readings in Modern Music (2004), os quais são analisados com vistas a estabelecer fundamentos sobre as práticas experimentais dos compositores antes nomeados.

1. O processo determinado pelo acaso: no qual observamos o caso de John Cage e a utilização do I Ching como fonte de articulação do material musical. O uso de tabelas numéricas randômicas ou números da lista telefônica foram estratégias usadas por La Monte Young (Young’s Poem, 1960). Ou ainda o uso de cartas escolhidas aleatoriamente, procedimento empregado pelo compositor George Brecht (Card Pieces For Voices, 1959). Estes são exemplos de algumas formas de composição utilizadas para gerar, mediante processos de indeterminação, um estado de não controle por parte do compositor, que utiliza

38 Original: “[Bauermeister] organised a 'Centre-Festival', to be held in Cologne over four days in June The performances included works by John Cage, Toshi Ichiyanagi, Sylvano Bussotti, George Brecht, La Monte Young and Christian Wolff performed by David Tudor - as well as two concerts by Nam June Paik [In October]. Merce Cunmngham and Carolyn Brown danced to pieces by John Cage, Christian Wolff, Earle Brown, Toshi Ichiyanagi and Bob Nilsson, performed by David Tudor and John Cage. One day later, again in the attic studio, one heard and saw compositions by Cage, La Monte Young and Paik - the interpreters were Cornelius Cardew, Hans G Helms, David Tudor and Benjamin Patterson” (DORSTEL, STEMBERG, von ZAHN, apud HIGGINS, 1998, p. 33).

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essas informações randômicas como fonte criativa na composição.

2. Processo das pessoas: estes processos permitem aos performers se relacionar entre si, trabalhando a criação do material sonoro ao redor do processo e desenvolvimento das relações interativas, e de escuta profunda, entre todos os performers. Cada um deles, desde suas singularidades, capacidades e potencias sonoras, se devem deixar influenciar pelo material sonoro dos outros, determinando as velocidades em que a forma do fluxo sonoro criativo vai sendo construido. O processo de estruturação musical está relacionado com o próprio fluxo de ações e decisões que o intérprete gera, sendo influenciado pelas próprias ações e as dos outros. Podemos mencionar o trabalho de Cornelius Cardew (Great Learning 1968-1971) e Morton Feldman (Piece for Four Pianos, 1957).

A ideia de uma e igual atividade feita simultaneamente por um número de pessoas de tal maneira que cada um seja parcialmente diferente, ou seja, a “unidade” transforma-se em “multiplicidade”, nos oferece uma forma de notação econômica – somente necessária para especificar procedimentos e variedades de acordo com os modos com que cada um faz, diferentemente. Este é um exemplo do uso de “recursos escondidos” no sentido da natureza da individualidade (ao contrário de talento ou habilidade) que estão completamente descuidados na música clássica de concerto, mas não na música folclórica (PARSONS apud NYMAN, 2004, p. 212 – nossa tradução39).

3. Processo Contextual: Estes processos dependem de condições imprevisíveis e de variáveis que surgem de dentro da continuidade musical. O compositor, mediante suas instruções, cria relações entre os intérpretes, promovendo a estruturação colaborativa e interativa do fluxo musical. Nyman dá alguns exemplos como a peça de Cornelius Cardew (1936-1981) The Great Leaning – Paragraph 7, onde as alturas dos sons são escolhidas devido à imitação dos sons gerados pelos performers40.

4. Processo de Repetição: Utiliza o uso extensivo de repetições como única referência para a geração de movimento – como por exemplo, na composição de John White

39 Original: “The idea of one and the same activity being done simultaneously by a number of people, so that everyone does it slightly differently, “unity” becoming “multiplicity”, give one a very economical form of notation – it is only necessary to specify one procedure and the variety comes from the way everyone does differently. This is an example of making use of “hidden resources” in the sense on natural individual differences (rather than talent and abilities), which is completely neglected in classical concert music, though not in folk music” (PARSON apud NYMAN, 2004, p. 212). 40 Podemos mencionar a experiência que tivemos interpretando “The Great Larning: paragraph 5”. O grupo de pesquisa em sonología da USP: NuSom vem realizando anualmente uma série de concertos chamados: Música? Este concerto em sua nona edição (Maio - 2014) foi dedicado exclusivamente ao trabalho de partituras verbais. http://www2.eca.usp.br/nusom/musica9 Detalhes serão ampliados no seguinte capítulo.

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(Machines, 1978), nas peças de Steve Reich (1936) ou nas peças de Charlemange Palestina (1945) Strumming Music (1995) – as quais se estruturam por meio de um processo gradual de acumulação e repetição com variações. Posteriormente em 1960 esta corrente tomaria o nome de música minimalista.41

5. Processos Eletrônicos: No começo dos anos de 1960, os compositores começam a introduzir processos eletrônicos e de experimentação musical, levando para o palco o equipamento dos estúdios eletrônicos que proliferou na década anterior, ao mesmo tempo em que inventavam e adaptavam tecnologias eletrônicas que foram facilmente integradas ao repertório da performance e da música experimental. Podemos mencionar versões eletrônicas de partes em que a instrumentação era inespecífica, incluindo as peças mistas para instrumentos e fita-magnética de John Cage (Variation II, 1961) ou Christian Wolff (For 1, 2, 3 People, 1969).

D. Apontamentos finais sobre o experimentalismo musical na América do

Norte

Podemos afirmar que o termo música experimental, surge como uma denominação um tanto controversa, abrigando uma ampla gama de músicas, práticas e gêneros, especialmente desde o período pós-guerra. O adjetivo experimental, no termo música experimental, designa não apenas um conjunto de técnicas e práticas, mas também configura perspectivas sociais e ideológicas particulares, representadas nos modos de apreciação, engajamento e estruturação da música. Como descrevemos anteriormente, trata-se de uma marcada ruptura diante da tradição e arte estabelecida por parte de compositores e performers, que com suas múltiplas individualidades, construíram um repertório vasto em processos, estratégias e conceitos que sustentaram e permitiram a evolução da experimentação nativa norte-americana, sendo sua capital Nova Iorque.

Devemos mencionar ainda o trabalho fundamental do pianista David Tudor, que foi um dos mais importantes intérpretes das obras dos compositores experimentais. Tudor

41O livro Four Musical Minimalists: La Monte Young, Terry Riley, Steve Reich, Philip Glass. (POTTER, 2000)

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encarnaria perfeitamente o performer ideal no contexto experimental de 1950. O compositor Christian Wolff se refere a Tudor da seguinte forma:

David Tudor, é difícil imaginar nossa cena musical sem ele. Ele foi um devoto do trabalho novo. Ele gostava especialmente de tarefas difíceis e intrincadas. Ele tinha estranhas e novas habilidades como performer (a habilidade, por exemplo, de fazer diferenciação entre as mudanças mais extremas de dinâmicas, a máxima velocidade e em todo o slang do teclado do piano.) Ele também tinha um excepcional ouvido. Sua forma de tocar era clara e a precisão, elétrica. (...). Quando nós começamos a fazer música com notações indeterminadas, requerendo do performer escolhas e ações, em diversos aspectos, especificamente, foi sua musicalidade e ouvido e sua imaginação do som que foram ponto de referência para nós. Em meados de 1960 ele parou de tocar o piano e foi ele mesmo devoto dos live electronics, com seu próprio circuito inventado, se transformou em compositor- performer (WOLFF, 2009, p. 426- grifo nosso - nossa tradução42),

Reconhecemos que a música experimental possibilita a escuta essencialmente direcionada para elevar ou ressaltar elementos sensoriais, reestruturando a atenção da trindade compositor-interprete-público, através da realização de propostas sustentadas em conceitos como Live Art ou Obra Aberta. Compartilhar o processo de produção musical gerou novas relações entre o intérprete e a obra aberta, reestruturando os modos de interpretação e apreciação musical. O compositor dava regras com algum grau de rigidez, o performer recriava essas regras em processos criativos musicais espontâneos, esses processos singulares e espontâneos modificavam a atenção e a apreciação da música pelo espectador, criando assim, uma renovação nas três funções da música: criação, interpretação e apreciação. No caso da música experimental norte-americana, a experimentação estaria configurada em resposta ao esgotamento da ordenação e do raciocínio como princípios que regem a criação de música tradicional. Observamos que o experimentalismo norte-americano indica uma função cujo resultado, o trabalho final, é imprevisível. O surgimento do happening e da performance influenciariam marcadamente o trabalho experimental dentro da composição de América do Norte; podemos observar como várias das obras de Cage eram proposições abertas cuja forma e notação abriam diversas opções para que a performance fosse realizada de maneiras

42 Original: “As David Tudor, it is hard to imagine our musical scene without him. He was devoted to new work. He enjoyed especially difficult and intricate task. He had uncanny and new skills as a performer (the ability, for example, to differentiate the most extreme dynamics changes, at he highest speeds and across the whole range of the piano). He also had an exceptionally acute ear. His playing was sharp and precise, electric. (…) When we started making music with indeterminate notations, that is, requiring the performer to make choices and realizations not, in various ways, specified, it was his musicianship and ear and imagination for sound that was our point of reference. By the mid-1960s he had stopped playing piano and devoted himself to live electronics, with his own invented circuitry, becoming a composer-performer” (WOLFF, 2009, p. 426).

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substancialmente diferentes. Cada execução era um experimento com resultados imprevisíveis. Nesse sentido Lílian Campesato (2012) explica:

A ideia de experimentação está fortemente ligada à experiência, para vivenciar os processos e materiais que compõem a obra de arte (…). Se parece óbvio o caráter sensorial em qualquer situação em que a música possa ser experiência, é também significativo o esforço em tornar a música de concerto um evento no qual o aspecto sensorial deva estar contido dentro de certos limites para que não se sobreponha à compreensão de um nível mais objetivo e racionalizável de seu discurso. É especialmente o experimentalismo do pós-guerra que vai questionar esse cerceamento do sensório como modo de apreensão, propondo novas situações de escuta e de envolvimento com a música que suavizaram a rigidez do ritual do “concerto tradicional” (CAMPESATO, 2012. p. 43).

43

. Improvisação e Indeterminismo (free-jazz, partitura gráficas/event score, improvisação livre)

Neste capítulo abordamos a prática musical experimental a partir da perspectiva do indeterminismo, onde evidentemente serão pesquisados processos onde a improvisação será agenciada em diferentes niveis. Discutiremos o percurso teórico-prático e pesquisaremos limites e paralelos entre a improvisação livre e a improvisação “dirigida”, termo sugerido para esta pesquisa como aquele estado da improvisação na qual existe um roteiro (gráfico ou textual) que direciona as ações dos performers e o discurso musical.

Realizamos apontamentos para caracterizar duas plataformas de criação musical: partitura gráfica e instruções verbais, junto com alguns dos compositores que se relacionam com essa prática. Estes procedimentos composicionais vêm sendo desenvolvidos, principalmente com o propósito de fomentar a criação coletiva em práticas performáticas, redefinindo as atribuições e funções tanto do compositor quanto do intérprete e outorgando novas estratégias de apreciação dessa música para o público.

Parte substancial da renovação observada na música experimental de meados do século XX tem a ver com o conceito denominado pelo filósofo italiano Umberto Eco (1932) como Obra Aberta. A proliferação de composições, peças ou performances que se denominam como abertas criou uma diferença entre tais gêneros de composição musical e aqueles da tradição clássica. Umberto Eco (1932) explica que as obras abertas representam uma mensagem inconclusa, não definida, confiando sua organização às escolhas e ações musicais do intérprete; dessa forma as “obras abertas” são uma espécie de guia criativo, que favorece a estruturação do material da obra desde uma perspectiva maiormente participativa e criativa por parte do performer.

No capitulo Poética da Obra Aberta, (1962) Umberto Eco menciona uma definição para a obra de arte, categorizada como:

Um objeto produzido por um autor, que organiza uma seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa compreender (através de jogo de respostas à configuração de efeitos sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz uma forma

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acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual” (ECO, Umberto, 1962, p. 40).

O autor afirma, ainda, que uma obra de arte acabada e fechada pode ser também aberta, se considerarmos sua qualidade de ser interpretada ou apreciada de diversas formas, sem alterar sua irrepetível singularidade. Por outro lado, Eco (1962) explica que algumas obras de Stockhausen, Brown, Cardew e Cage são abertas num sentido menos metafórico e mais material, devido ao uso de processos de indeterminação. No capítulo anterior, evidenciamos o desenvolvimento do happening-performance dentro da reconstituição das funções composicionais e interpretativas na música, motivando uma descentralização do ato compositivo (antes exclusivo do autor) para um ato compositivo colaborativo entre performer e compositor. No caso da improvisação livre, esse ato compositivo é de responsabilidade do próprio improvisador. Portanto, podemos afirmar que na obra aberta se realiza um processo delineado de maneira imanente pelas habilidades, riscos e soluções dadas pelos performers. Esse procedimento passa a constituir como bloco sensível dentro das plataformas abertas, recebendo valor estético tanto por meio das sugestões direcionadas pelo autor, quanto pelas soluções dadas pelo performer, encerrando um ciclo de construção criativa que é susceptível de repetição, mas com resultados sempre singulares.

Nas décadas dos anos 1960 aquelas plataformas de criação catalogadas como obras abertas foram desenvolvidas em ambos polos da música experimental (Europa e América do Norte), evidenciando características singulares de agenciamento do termo aberto, gerando assim o motivo para esclarecer, num sentido amplo, as implicações, parâmetros e agenciamentos dos “graus de liberdade”, que transitam ao redor da prática da improvisação e sua relação com a experimentação musical.

Segundo Elliott Schwartz e Daniel Godfrey existe uma distinção gradativa da improvisação em diferentes níveis de indeterminação, que vai desde as propostas de free improvisation com um nível total de indeterminismo, passando por outras plataformas com níveis variáveis de indeterminação. Eles afirmam que na improvisação a imediação da experiência performática é importante, “dado que a improvisação é criação em tempo real, os

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performers43 não tem a possibilidade de editar suas ações musicais, ou considerar diferentes possibilidades. Suas decisões ocorrem durante o processo musical” (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 413 – nossa tradução44).

Podemos argumentar que durante a década de 1950 começou o interesse por parte da música ocidental de aprofundar sobre a estruturação de plataformas de criação musical onde estivessem envolvidos tanto processos composicionais quanto agenciamentos do uso do indeterminismo, o acaso, ou o caos, como o verdadeiro grande renovador (além do processo de ruidização da nota musical), usando como procedimento e prática, a improvisação musical. Podemos afirmar a existência de diversas plataformas de improvisação, que trabalham dentro de um contexto predeterminado onde são potencializadas situações de imprevisibilidade, forçando o performer – improvisador, a reagir abertamente para achar soluções aos direcionamentos colocados num roteiro aberto; evidentemente o performer deverá “improvisar”, em algum grau, suas ações, que são escolhidas também em tempo real. No desejo de aprofundar nas diversas formulações com respeito à improvisação e suas relações com a composição desde 1950 devemos primeiro mencionar os apontamentos do pesquisador Steven Nachmanovitch quem afirma que a diferença substancial entre a composição e a improvisação é regida pela temporalidade da improvisação ao contrário da atemporalidade da composição; desde esse ponto de vista a composição poderia ter início com “o momento de inspiração onde a intuição direta de beleza ou verdade chega ao artista; em seguida, a luta muitas vezes trabalhosa para registra-lo, e segura-lo o suficiente para poder registra-lo no papel, a tela, ou filme ou a pedra” (NACHMANOVITCH, 1990, p. 17 – nossa tradução45). Por sua vez, na improvisação segundo Nachmanovitch existe só um momento: o tempo real. “O tempo da inspiração, o tempo da estruturação técnica e a realização da música, o tempo de toca-la, e o tempo de comunicação com a audiência, da mesma forma que o tempo do relógio é um só” (idem, 1990, p. 18 – nossa tradução46). Nesse sentido entendemos tanto a improvisação quanto a composição como termos que podem representar, mediante plataformas específicas de interação (roteiros), um estado quase diluído entre os

43 Também chamados de improvisadores num contexto de improvisação coletiva. 44 Original: “Because improvisation is “real-time creation,” performers don’t have the luxury of examining material, editing their takes, or considering multiple possibilities. Their decisions are made while the music is in progress” (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 413. 45 Original: “the moment of inspiration in which a direct intuition of beuty or truth come to the artist; then the often laborious struggle to hold onto it enough to get it down on paper or canvas, film or stone” (NACHMANOVITCH, 1990, p. 17) 46 Original: “The time for inspiration, the time of technical structuring and realizing music, the time of playing it, and the of communicating with the audience, as well as ordinary clock time, are all one” (NACHMANOVITCH, 1999, p. 18)

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delineamentos entre eles, incluindo elementos realizados num momento atemporal,47 onde são constituídos previamente os delineamentos ou estruturas numa postura explicitamente composicional, para passar a outro momento temporal,48 onde serão executadas as instruções que dependerão das decisões e ideias dos performers - improvisadores ocorrendo durante os mesmos instantes em que a performance é gerada. É assim que concordamos com o músico- pesquisador Larry Solomon quem afirma:

Improvisação tem sido chamada de composição incompleta, mas é justo e válido chamar a composição como uma improvisação hiper-realizada. (...) A linha desenhada entre a improvisação e a composição é tão artificial quanto a linha que divide arte étnica e arte oficial. A composição implica algo mais fixo, menos cambiante que a improvisação, mas a distinção é uma questão de graus e nunca poderá ser definida” (SOLOMON, 1989, p. 74 – 75 – grifo nosso - nossa tradução49)

Nós formulamos a existência de um roteiro, parametrizado mediante regras (concretas ou abstratas), a quantidade de liberdades que o performer deverá respeitar. “A indeterminação de fato pode ser parcial ou total; pode afetar a uma pequena área da composição ou a toda” (SMITH, 1987, p. 60 – nossa tradução50).

Se faz importante mencionar o trabalho do pesquisador Andrew Edward Calligham, que no seu texto “Spontaneus Music: The First Generation British Free Improvisers” (2007) aprofunda os termos utilizados por Derek Bailey (1990) para categorizar as práticas de improvisação musical “idiomática” e “não-idiomática”51. Estes termos que, no princípio dos anos 1990 foram úteis para descrever e teorizar sobre expressões musicais que utilizam improvisação, não contemplavam a prática da improvisação dentro de peças indeterminadas (como as de Cage, Feldman, Brown e Cardew). Mas primeiramente passaremos por algumas formulações ampliando nosso entender sobre como estariam representados os termos idiomático e não idiomático, mencionando brevemente os apontamentos de Sumiko Sato (1996) sobre o tema.

47 Que está fora do tempo, esse processo pode ser o instante prévio da performance (criação de partituras gráficas pelos próprios performers) BERGSTRØM, Nielsem (2009) ou durar décadas para completar os gráficos musicais da obra Treatise de Cornelius Cardew que demoro quarenta e cinco anos (1936 – 1981) 48 Referido a um estado latente do tempo, em “tempo real” ou “ao vivo. 49 Original: “Improvisation has been called incomplete composition, but is just as valid to call composition overdone improvisation. (…) The line drawn between improvisation and composition is as artificial as that drawn between ethnic art and “official” art. Composition implies something more fixed, less changeable, than improvisation, but the distinction is a matter of degree and has never been defined” (SOLOMON, 1989, p. 74 – 75) 50 Original: “Indeterminacy can in fact be partial or total; it can affect a small area of a composition only or the whole” (SMITH. 1987, p. 60) 51 Derek Bailey. “Improvisation: its nature and practice in music.” (1992, p.Xi)

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Sumiko Sato no seu texto Improvisação Motívica: Aproximação e Análise de dois trabalhos selecionados52 (1996), pode acrescentar ainda mais informações sobre os estágios entre improvisação idiomática e não – idiomática, sugerindo a existência de três tipos de categorização da improvisação, definidos pelo grau de liberdade permitida na performance. A improvisação idiomática (improvisação restrita – improvisação sistemática – improvisação dentro de um estilo53) permite a menor quantidade de liberdade para o performer. Os ornamentos sobre notas estão permitidos, mas restringe maiores liberdades. O segundo tipo é improvisação semi-idiomática, envolve maiores possibilidades criativas como arranjo e manipulação de elementos mais singulares da música (notas, padrões rítmicos); este tipo de improvisação se relaciona com a maior quantidade de estilos do jazz. (o performer cria dentro de um ideal aceito e circunscrito dentro desse idioma). Para chegar ao terceiro tipo de improvisação chamado livre improvisação, contendo algumas características dos outros dois tipos, mas com a peculiaridade que eventualmente, pode passar a um estado de rejeição de qualquer outro tipo de improvisação idiomática ou semi-idiomática, possibilitando a exploração individual, espontânea e sem restrições.

Afirmamos dessa forma que a improvisação poderia estar ligada ao estilo ou gênero musical. Derek Bailey (1992) foi claro ao identificar diversos gêneros que utilizam improvisação, como por exemplo: blues, jazz, música barroca, rock, música indiana, flamenco. Eles pertencem, segundo Bailey (1992), ao grupo da improvisação idiomática, já que pressupõem a existência de um repertorio estabelecido, constituído por formas musicais determinadas com elementos rítmicos, melódicos e harmónicos definidos, além de um consenso a respeito do temperamento da “nota musical”. A improvisação livre, pelo contrário, nomeada principalmente na Inglaterra e na Alemanha como free improvisation, pertence ao grupo de improvisação não idiomática - caracterizada por uma marcada ruptura com as linguagens musicais, aproveita as qualidades concretas do som em detrimento da noção de “nota musical”; não está sujeita a um repertório prévio e sua constituição se estabelece exclusivamente na ação, interação e agenciamento espontâneo do fluxo sonoro por parte do improvisador ou coletivo de improvisação. Calligham faz uma diferenciação importante para que possamos compreender melhor como a improvisação e a composição se inter-relacionam afirmando a existência de “três estruturas” fundamentais da constituição de um gênero

52 Original: Motivic Improvisation: Approach and Analyses of two selected Works. (1996) 53 Original: “Strict Improvisation – Systematic Improvisation – Improvisation within a Style” (SATO, 1996)

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musical, explicando:

Se as características cumulativas54que definem o “gênero” se relacionam com a meta-estrutura (e cada canção separadamente ou peça instrumental como macro-estrutura) então estes conceitos distintivos e elementos práticos passam a cumprir um papel micro-estrutural (CALLINGHAM, 2007, p. 207 – nossa tradução)55

Dessa forma Callingham, utilizando os conceitos formulados através das meta – macro e micro estruturas consegue propor uma diversificação das funções da improvisação ao redor dessas três estruturas, dando origem a criação de quatro tipos de improvisação que acreditamos funcionam como delimitadores mais exatos das diversidade de práticas que tem a improvisação: (1) Improvisação estruturada idiomática; (2) Improvisação não estruturada idiomática; (3) Improvisação estruturada não idiomática; (4) Improvisação não estruturada não idiomática; contendo, dessa forma, todas as expressões musicais que utilizam indeterminismo e espontaneidade dentro de sua constituição estrutural.

Em seguida apresentaremos brevemente o primeiro tipo de improvisação, o qual, não aprofundaremos em maiores detalhes devido à estrita e rígida constituição de suas metas, macro e micro-estruturas, numa linguagem específica e fechada56.

Improvisação estruturada idiomática

Categorizada como uma prática que contém improvisação dentro de uma linguagem musical determinada. Podemos relacionar este tipo de improvisação com o termo utilizado por Derek Bailey “improvisação idiomática”.

Improvisação idiomática, que seria a mais usada, se constitui principalmente como expressão de um idioma [musical] - como o jazz, flamenco ou barroco

54 Essas características cumulativas são repertório, forma estabelecida, ritmo-harmonia-melodia padrão e temperamento da nota musical. 55 Original: “If the cumulative characteristics that define “genre” equate to a meta-structure (and each separate song or instrumental piece a macro-structure), then these distinctive conceptual and practical elements fulfill a micro-structural role” (CALLINGHAM, 2007, p. 207) 56 Academicamente existem muitos métodos para aprender a improvisação estruturada idiomática no jazz, mencionamos alguns: BAKER, David. How to Play Bebop 1-2-3. 1987; COKER, Jerry. Complete Method for Improvisation, 1980; CROOK, Hal, How to Improvise, 1993.

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– e toma sua identidade e motivação através desse idioma” (BAILEY, 1992, p. Xi – nossa tradução57).

O improvisador deve estar ciente da linguagem que acolherá suas ideias musicais espontâneas; esse idioma ou linguagem, dentro das singularidades e características que constitui o gênero musical é o que Callingham denomina de meta – estruturas. Por exemplo, na improvisação no jazz, “o jovem músico aprende mediante imitação de outros improvisadores consolidados. Em parte, isto envolve adquirir um vocabulário complexo de frases estabelecidas e componentes do fraseado, que são agenciados pelo improvisador na formulação do solo melódico” (BERLINER, 1994, p. 95 – nossa tradução58). Neste tipo de improvisação (jazz) as liberdades são reguladas estritamente num contexto meta-estrutural bem definido, isso significa: um grande repertório musical criado durante décadas, por compositores e reinterpretada por improvisadores que reafirmam e expandem os limites de aquele meta-gênero mediante uma renovação constante dentro de seus próprios paradigma. Para esclarecer estes apontamentos o pesquisador Rogerio Costa explica através do uso de alguns termos do filósofo Gilles Deleuze, como os géneros musicais vão se territorializando, ou seja, vão se reafirmando em sua existência mediante ritornelos (hábitos, repetições, frequências) que vão constituindo os limites desse plano de consistência.59 Podemos mencionar mais uma relação com o termo improvisação idiomática estruturada nas palavras do pesquisador Jeff Pressing quando se refere a improvisação sistemática (referente – based):

A improvisação sistemática está bem estabelecida (...) em tradições de produção e controle, avaliação estética, repertório, ideais sonoros, e referências. (Ex. jazz, tema e variações, sistemas melódicos ocidentais como os ragas de dastgah, etc) (PRESSING apud STENSTRØM, 2009, 2002, p. 2 – grifo nosso - nossa tradução60)

Como observamos, tanto a improvisação no blues ou no jazz, no rock, na música barroca com baixo cifrado, a música indiana, estão sustentadas por uma meta-estrutura que tardou décadas em evoluir e se concretizar, dando origem a diversos estilos dentro desse

57 Original: “Idiomatic improvisation, much the most widely used, is mainly concerned with the expression of a idiom – such as jazz, flamengo or baroque – and takes its identity and motivation from that idiom” (BAILEY, 1992, p. xi) 58 Original: “So Young musicians learn to speak jazz by imitating seasoned improvisers. In part, this involves acquiring a complex vocabulary of conventional phrases and phrase components, which improvisers draw upon in formulating the melody of a jazz solo” (BERLINER, 1994, p. 95). 59 MORAES COSTA, O Ambiente da Improvisação: referencias para um plano de consistência, O Músico enquanto Meio e o Territórios da Improvisação. (2003) 60 Original: “Systematic improvisation has well – established (…) traditions of production of control, aesthetic evaluation, repertoire, sound ideals, and referents (eg., jazz, theme and variations, Eastern melodic systems like the raga of dastgah, etc.)” (PRESSING apud STENSTRÖM, 2009, p. 149)

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mesmo gênero; dessa forma aquele gênero musical (território) está sustentado através de macro-estruturas (repertório de canções ou peças instrumentais), que funcionam como meio gerativo e evolutivo que criara um repertorio determinado. Dessa forma o repertorio constitui a constância, a verdadeira representação da complexidade do gênero musical; um processo constante de repetição e inovação, delineado nas singularidades próprias do gênero, deixando o nível de improvisação exclusivamente no agenciamento das estruturas fundamentais chamadas de micro-estruturas (notas musicais, padrões rítmicos, figuras melódicas, clichês singulares, fórmulas e círculos harmônicos, etc) que estão interligados mediante algum tipo de modelo hierarquizador forte. Nesse sentido, a existência de um modelo hierarquizador forte está presente em improvisação com meta e macro-estruturas bem definidas, as mesmas que se espera sejam interpretadas mantendo suas características fundamentais. Exemplos são muitos: jazz, rock, blues, pop, ou qualquer outro gênero main-stream ocidental, onde a Harmonia (relações de acordes musicais e círculos harmónicos) o ritmo ou levada para tocar um gênero (groove61, swing62, el rasgueo, el sabor63), e a forma (A-B-A ou A-B-A-B, etc.); trabalham como chão, como fio condutor para a improvisação.

O caso da música indiana é similar, com a semelhança de apresentar dois tipos de estilos musicais: música Hindustani (norte da índia) e música Carnática (sul da Índia) com formas de improvisação idiomáticas estruturadas com diferentes estéticas. Derek Bailey explica de onde surge aquela divisão estética entre a música do norte ou sul da Índia:

Um dos efeitos da colisão entre as culturas Islâmicas e Hinduístas ocorrendo ao norte da Índia foi produzir uma música de menor natureza de especificação religiosa que no Sul. A mudança na atenção dos textos tradicionais à um lado musical mais puro encabeçou uma atitude menos rígida, mais aventureira na música Hindustánica. Mas histórica e teoricamente toda a música da Índia está arraigada na vida espiritual do pais. (BAILEY, 1992, p. 1-2 – nossa tradução64)

Em seguida Bailey (1992) explica que o quadro onde acontece a improvisação na

61 Aprofundaremos este termo em breve, por enquanto podemos explica-lo como “o jeito de tocar” na música funk dos anos 1980 em Norte-América, também utilizado como “o jeito de tocar” jazz, ou qualquer outro gênero de precise de precisão e prolixidade rítmico melódica do baixo e a bateria. 62 O “jeito de tocar” o conjunto de duas colcheias como se fosse uma tercina de colcheias com silêncio na segunda colcheia. 63 Termos para expressar “o jeito de tocar” ritmos afro-caribenhos (salsa, guaguanco, merengue, etc) ou mestiços (bolero, corridas, yumbos, guaynos, chacareiras, flamenco). 64 Original: “One of the effects of the collision between the Islamic and Hindi cultures occurring in Northern India was to produce a music of a less specifically religious nature that in the South. A shifting of attention from the traditional texts to the more purely musical side leads to a less rigid, more adventurous attitude in Hindustani music. But historically and theoretically, all Indian music is embedded in the spiritual life of the country” (Bailey, 1999, p. 1-2)

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música Indiana é o raga65, conformado por diversos elementos. As relações intervalares usadas: sruti66 e o svara67 formando as duas divisões fundamentais das notas na música Indiana; o ciclo rítmico tala68 são elementos musicais variáveis. O laya é a prolixidade e capacidade do músico indiano dentro do material rítmico, o tala. As relações entre o laya (o jeito de tocar o ritmo) e sruti (relação de alturas microtonais) conformam as variações e permutações de ragas que constituem o pilar elementar do modelo hierarquizado da música indiana.

Prosseguindo, expandimos nossas discussões nos aprofundando nos três tipos de improvisação restantes descritos por Callingham, os quais se apresentam como não idiomáticos ou não estruturados de alguma forma. Realizaremos apontamentos relevantes tanto de fatos históricos quanto teóricos característicos de cada um deles. Esses três tipos de improvisação são: Improvisação não estruturada idiomática (free jazz), Improvisação estruturada não idiomática (partituras gráficas e verbais), e improvisação não estruturada não idiomática (livre improvisação)

I. Três tipos de “improvisação”

Executar música livremente improvisada envolve um constante equilíbrio entre complexidade e inteligibilidade, controle e descontrole, constância e imprevisibilidade, um ato de equilíbrio que convida à consideráveis debates e discordância. (BORGO, 2002, p. 182 – nossa tradução69)

Seguindo nossa análise sobre a improvisação e o indeterminismo dentro da música experimental, nos encontramos diante de uma prática que em si mesma, guarda desde suas origens, posições antagônicas explícitas. Nos referimos aos apontamentos de diversos

65 Conjunto de parâmetros para criar melodias na música indiana. 66 Traduzido do sânscrito significa “escutar” e conforma o menor movimento interbáltico de uma nota, dividindo a oitava em vinte dois pontos variáveis. 67 A divisão da oitava em sete pontes dando origem a o conceito de “escalas” variáveis. “Estrutura molecular do raga” (BAILEY, 1992, p. 3) 68 Traduzido do sânscrito significa palma da mão, é o ciclo rítmico com o qual se estrutura o raga. Existem muitas variações e permutações de talas criando variedade complexidade rítmica. 69 Original: “Performing freely improvised music involves a constant balancing act between complexity and comprehensibility, control and non control, constancy and unpredictability, a balancing act that can invite considerable debate and disagreement” (BORGO, 2002, p. 182).

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autores70 que evidenciam, nas raízes dos conceitos de free improvisation, dois polos catalogados pelo improvisador e teórico Geroge Lewis (1996) como pensamento Afrológico e Eurológico da improvisação categorizados respectivamente em: Free Jazz – Great Black Music e British Free Improvisation. Entre esses polos evidenciaremos três tipos de gradações da improvisação (1) Free Jazz – (2) Partituras gráficas/Event Score – (3) Free Improvisation, que serão analisadas em seguida.

A. Free Jazz como Improvisação não estruturada idiomática.

Para George Lewis (1996), a distinção está relacionada tanto à experimentação musical quanto à reinvindicação social. Nesse sentido, Lewis (1996) explica que se deve observar dois sistemas de improvisação livre: uma visão “Afrológica” e outra “Eurológica” se referindo a contextos culturais e sociais diferentes, com procedimentos práticos e teóricos antagônicos. A visão Afrológica da improvisação livre tem suas raízes no jazz, gênero nativo norte-americano que ao redor dos anos de 1950 tinha uma forte relação com discursos sociais a favor dos direitos dos afro-americanos.

Com relação ao caráter sócio cultural do free jazz, George Lewis argumenta que os diversos estudos acadêmicos frequentemente subestimam ou mesmo desacreditam as indigenously black musics - que não estão predominantemente estabelecidas ou representadas nas culturas de massas (LEWIS apud BORGO, 2002, p. 184). Se observa uma clara segregação cultural sofrida pelos afro-americanos na década dos anos 1950, onde as companhias de discos não realizavam pagamentos nem negociações equitativas com seus artistas afro-americanos, muitas vezes os artistas nem recebendo regalias pelas suas gravações; além da opressão racial, diferenciação de condições laborais e até maltrato físico por parte das autoridades oficiais, daria passo a um movimento social ligado ao pensamento conhecido como “Black Power que começava a reivindicar os movimentos sobre direitos civis, esse discurso social podia ser ouvido intensamente no crescente movimento do jazz

70 Andrew Edward Callingham (2007), David Borgo (2002), George Lewis (1996).

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avant-garde.” (NISENSON, 1995. P. 162 – nossa tradução71).

Uma corrente experimental daria origem à nova geração de improvisadores e agrupamentos musicais encarregados de procurar novos “espaços onde a improvisação como construção teórica, poderia claramente ser vista como um espaço não só a conexões na teorização musical, mas também competências sociais e culturais entre músicos representando modos de improvisação e composição do discurso musical” (LEWIS, 1996, P. 92 – nossa tradução72). A proliferação destes novos modos de improvisação daria origem a agrupamentos de improvisadores que delineariam as características daquela prática. Nesse contexto, podemos mencionar a “Association for the Advancement of Creative Musicians73” (AACM) que desde sua origem em 1965, em Chicago, começaria a vida musical diversos improvisadores, que iniciaram o movimento conhecido como “Great Black Music”, caracterizado por improvisações altamente ativas, energéticas e polirrítmicas, derivadas dos ritmos africanos, utilizando técnicas instrumentais estendidas e ancoradas na negação do repertório de jazz tradicional (apresentação de um tema musical e improvisação consecutiva sobre a forma)74.

Nessa geração de improvisadores estão incluídos os saxofonistas John Coltrane (1926- 1967) e Ornette Coleman (1930), o pianista Cecil Taylor (1929), o grupo Art Ensemble of Chicago, entre outros; todos eles focando seu trabalho musical dentro desta prática de improvisação que marcaria o curso da cena nascente da livre improvisação na América do Norte.

O saxofonista americano Steve Lacy, que morou durante as décadas de 1950 e 1960 em Nova Iorque, explica as mudanças substanciais observadas no final dos anos 1950 e que provavelmente foram sintetizadas nos anos 1960: “Quando nos referimos ao termo hard-

71 Original: “The cries of “Black Power” that were beginning to dominate the civil rights movement could be heard echoed the screaming intensity of the avant-garde jazz movement” NISENSON, Eric, 1995. P. 162). 72 Original: Space where improvisation as a theoretical construct could clearly be viewed as a site not only for music- theoretical contention but for social and cultural competition between musicians representing improvisative and compositional modes of musical discourse. (LEWIS, 1996, p.92) 73 Incluindo os compositores-improvisadores: Muhal Richard Abrams (fundador), saxofonista Fred Anderson, multi- instrumentista Douglas Ewart, saxofonistas Anthony Braxton, Henry Thereadgill e Edward Wilerson, baterista Kahil El- Zabar, pianista Anthony Davis, para nomear alguns. 74 Sobre a forma Scruton explica: “a ausência de uma estrutura profunda faz com que a organização que percebemos na música seja ainda mais extraordinária: essa intrincada teia de conexões, que pode ser sustentada por horas, enquanto se cria a impressão irresistível de um argumento unificado e de uma ordem compreensível, é apreciada na superfície do todo musical. (SCRUTON, 1997, p. 337).

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bop,75 não existe qualquer mistério. Era como algum tipo de ginástica mecânica. Os padrões (musicais) eram bem conhecidos e todos os estavam tocando” (LACY apud BAILEY, 1992, p. 54 –nossa tradução)76. Foi fundamental o esgotamento dos princípios da improvisação no jazz que estavam estruturados através das concepções dentro do agenciamento dos materiais harmônicos, melódicos e rítmicos que o bebop tinha fundamentado há duas décadas; nesse sentido, acrescenta Lacy que “o que estava fazendo Cecil Taylor nos começos de 1950 era o resultado de algo livre, nunca antes ouvido. Mas não era feito de uma forma liberada, construído de forma muito, muito sistemática, mas com novos ouvidos e novos valores” (LACY apud BAILEY, 1992, p. 55 –nossa tradução77).

É também importante ressaltar as qualidades “metafísicas” que o free jazz estaria incitando em suas práticas performáticas; muitos livre improvisadores discutiram os estados espirituais, estáticos, ou transcendentais que experimentavam. Alguns mencionam um envolvimento mental absoluto, enquanto outros descrevem a experiência como uma completa alienação das faculdades críticas e racionais. Os improvisadores dentro do free jazz tem como objetivo performático transitar entre um completo relaxamento ou catarse até sensações transcendentais de perda do ego ou consciência coletiva.

A energia pura e densidade do som às vezes experimentada em improvisações livres coletivas podem potencialmente criar estados de hipersensibilidade beirando uma sobrecarga sensorial. (...). Outros descrevem uma forma voluntária auto induzida de transe – quase parecida com uma prática xamânica - guiando o ouvinte numa viagem espiritual. (BORGO, 2002, p. 175 – nossa tradução78)

Este caráter espiritual estaria relacionado não só à prática da improvisação, mas também aos vestuários dos improvisadores, à utilização de instrumentos cerimoniais nativos africanos, e particularmente à cosmovisão dos improvisadores que estariam envolvidos neste movimento musical. Podemos citar como exemplo a perspectiva de John Coltrane que,

75 Estilo musical que evoluiu do Be-Bop e que foi representado por músicos improvisadores como John Coltrane (inicios de sua carreira) Joe Henderson (1937 – 2001) Cannomball Adderley (1928 – 1975), Dexter Gordon (1923 – 1990), Miles Davis (1926 1991), Charles Mingus (1922 – 1979), por mencionar alguns. 76 Original: “When you reach what was called “hard-bop” there was no mystery anymore. It was like – mechanical – some kind of gymnastic. The patterns are well-known and everybody is playing them” (LACY apud BAILEY, 1992, p. 54). 77 Original: “What Cecil Taylor was doing started in the early 50’s. And the results were as free as anything you could hear. But it was not done in a free way. It was built up very, very systematically but with a new ear and new values” (LACY apud BAILEY, 1992, p.55). 78 Original: “The sheer energy and density of sound at times experiences in free and collective improvisation can potentially create a state of hyper stimulation verging on sensory overload. (...) Others describe a voluntary, self-induced form of trance – more akin to shamanic practice – as they guide the listener on a spiritual journey” (BORGO, 2002, p.175).

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através da improvisação livre, se conectaria, segundo ele, com forças espirituais complexas que marcariam sua vida até seus últimos dias79.

Neste ponto vamos tratar o free jazz numa conotação teórico-musical. Ele nasce das práticas de improvisação estruturada e idiomática que foram definidas anteriormente; mas sua principal característica é a expansão dos elementos rítmico-harmónico-melódicos para formas de improvisação idiomática não estruturadas. A retenção dos fundamentos próprios do jazz criou nos improvisadores de free jazz uma catalogação denominada American Groovers80.

O exemplo do baterista Elvin Jones servirá para apresentar uma restruturação do groove do jazz. “Da mesma forma o pulso e o ritmo, a virtuosa interpretação de Jones, evoca formas tanto melódicas quanto rítmicas, fornecendo toda a gama de variações tímbricas e texturais do kit de bateria” (CALLINGHAM, 2007, p.218 – nossa tradução81). Essa singular interpretação do groove dá a sensação aproximada de um solo constante, chegando quase a transformá-lo numa estrutura textural; nesse sentido, o free jazz abre a possibilidade de delinear a improvisação, não regida por uma macro-estrutura (jazz standards), mas sim conduzida pelas vontades e potencialidades coletivas dos seus improvisadores. Callingham (2007) colocará dessa forma o free jazz dentro da segunda categorização da improvisação.

Mecanismos internos da Improvisação não estruturada idiomática

Ainda incluída numa meta-estrutura proveniente do jazz, mas amplamente afastada das formas padronizadas (macro-estrutura – jazz standards), se diferencia por um agenciamento de suas micro-estruturas diluídas num groove quase textural permitindo maiores liberdades tímbricas, gestuais e harmônico-melódicas. Callingham (2007) comenta:

O legado da improvisação não estruturada idiomática, é principalmente a emancipação dos instrumentistas da hegemonia do compositor. Sendo representativamente viável o “impulso instrumental”, auto determinando-se através da criatividade, as limitações formais da ortodoxia musical ocidental eram cada vez mais corroídas. Isto deixou os principais elementos da

79 Para maiores informações procurar a livro “Ascencion: John Coltrane and his quest” (NISENSON, Eric, 1993). 80 Segundo Callingham o “groove” se refere a um padrão rítmico determinado, característico de um género musical, no caso do jazz o groove-padrão e conhecido como swing (CALLINGHAM, 2007, p. 68). 81 Original: “As well as pulse and rhythm, Jones virtuoso playing evoked both melodic and harmonic shapes, also providing the full range of timbral and textural variations from the drum kit” CALLINGHAM, 2007, p. 218).

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organização musical – aqueles que definem as “microestruturas” – expostos e íntegros à um potencial nível macroestrutural. O resultado foi um novo formato de agenciamento, permitindo o acesso à composição para os músicos tradicionalmente intérpretes (CALLINGHAM, 2007, p. 223 – nossa tradução82).

B. Partituras gráficas e event-score como Improvisação estruturada não idiomática

As implicações decorrentes do uso do acaso e da indeterminação dentro da composição musical criou novos relacionamentos entre o compositor e o intérprete. Este tipo de “composição experimental” (Callingham, 2007 p. 224) enfatiza o processo criativo mediante o resultado final, criando um tipo de composição híbrida onde o indeterminismo abre possibilidades de improvisação para o performer. Este tipo de plataforma criativa utiliza grafismos ou instruções verbais para agenciar e sugerir as ações musicais feitas pelo performer em tempo real.

É assim que nos perguntamos: quais são os elementos musicais que podem ser deixados ao acaso? As notas, sua duração, a forma musical, o tempo, as dinâmicas, o timbre ou todos esses elementos em conjunto. Foi assim que, por volta da década de 1950, as noções composicionais sustentadas no serialismo não forneciam maiores inovações com respeito a utilização de algum tipo de improvisação por parte do pefromer. Isto abriu espaço para que compositores europeus como Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio, Gyorgy Ligeti e Pierre Boulez trabalhassem numa fusão composicional utilizando elementos entre o serialismo e a indeterminação para direcionar elementos como o tempo, dinâmica ou timbre de suas obras. Esse é o caso da composição Zeitmasse (1956) para quinteto de sopros de Stockhausen, onde a execução de cada instrumento estaria regida por tempos diversificados criando um grau de indeterminismo agenciado pela escuta e sincronia dos performers. Podemos mencionar da mesma forma a obra Sequenza para flauta (1958) de Luciano Berio, onde também existe um grau de indeterminismo no tempo das notas a serem executadas.

82 Original: “The legacy of non-structured idiomatic improvisation is chiefly that of the emancipation on the instrumentalist from the hegemony of the composer. As the “instrumental impulse” became representative of a viable, self-determining means of creativity, the formal limitations of Western musical orthodoxy were increasingly eroded. This left elemental principles of musical organization – those that defined “micro-structures” – exposed and integral at a potentially macro- structure level. The result was a newly negotiable format, which allowed access to composition for otherwise traditionally interpretative players” (CALLINGHAM, 2007, p. 223).

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Reginald Brindle no seu livro New Music: Avant-Garde since 1945 (1987) faz apontamentos sobre a dificuldade que os compositores europeus tiveram em deixar de forma indeterminada, as alturas das notas em suas composições. “Para compositores como Stockhausen, Boulez e Berio, educados na ultra precisão do serialismo integral, foi particularmente difícil digerir o fato de que toda essa exatidão, num momento seja abandonada” (SMITH, BRINDLE, 1987, p. 68 – falta tradução).

Aquelas noções de indeterminação que começaram sendo fundamentadas desde uma visão Eurológica (LEWIS, 1996)83 da improvisação, com suas raízes na música avant-garde europeia, posteriormente encontrariam seu maior desenvolvimento na América do Norte. Compositores experimentais como John Cage, Earle Brown, Morton Feldman, Christian Wolff, Harry Partch, entre outros, criaram macroestruturas principalmente focadas em potencializar as liberdades do intérprete mediante obras abertas, susceptíveis a serem representadas através das decisões e sensibilidades individuais dos performers. Nesse sentido Erhard Karkoschka aponta que:

Os compositores se direcionaram para áreas menos determinadas ou indeterminadas ao final dos anos 1950. As novas descobertas que fizeram, envolveram o intérprete no ato da composição, espontaneidade, ação, circunstância, música para ser lida textualmente, vários tipos de ruídos e a composição de qualquer situação sonora concebível, anti-música e teatro musical (...) compositores desenvolveram símbolos para anotar valores aproximados, logo seguidos por “gráficos musicais” - desenhos que direcionam a imaginação estética do intérprete (KARKOSCHKA, 1972, p. 2 – tradução nossa84).

Partituras Gráficas

Elliot Schwartz e Daniel Godfrey no livro Music Since 1945: Issues, Materials and Literature (1993), mencionam que a função primordial da notação consiste em outorgar

83 Esta perspectiva eurológica seriam a crescente utilização de processos de indeterminismo e aleatoriedade que compositores como Stockhausen, Berio e Ligueti começaram a incluir em alguns de seus trabalhos. 84 Original: “Composers turned to less determined or indeterminate areas at the end of the 1950. The new discoveries they made included involving the interpreter in the act of composition, spontaneity, action, chance, music for reading only, various kinds of noise and the composition of any conceivable sound occurrence, anti-music and musical theater (…) Composers developed symbols for notating approximate values, soon followed by “musical graphics” – drawings which are meant to lead a player with aesthetic imagination” (KARKOSCHKA, 1972, p. 2).

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instruções aos performers. A música de concerto ocidental particularmente desde o Barroco até o Romantismo utiliza a notação primordialmente para estabelecer a subdivisão da oitava em doze sons equivalentemente temperados, sua intensidade, timbre e formas de execução; estabelece também o ritmo periódico (pulsações regulares, e sua subdivisão temporal) possibilitando a conjunção das partes dentro do conjunto musical, e sua movimentação narrativa em uma única direção.

Mediante o afastamento da escrita musical convencional, as partituras gráficas pretendem que a obra deixe seu estado fixo, fechado e acabado, para se transformar num processo criativo com maiores aberturas. É evidente que a ação do performer é ampliada, deixando que os grafismos funcionem como instruções sobre a obra; desse modo o intérprete passa a ser o criador de uma obra que, por sua natureza aberta, sempre será única e singular. Na notação gráfica, o intérprete não recebe funções interpretativas inalteráveis, pelo contrário, se estabelece uma relação de participação num jogo musical a partir das sugestões que os gráficos aportam.

O conteúdo visual representa um leque de elementos mediante os quais os sons serão contextualizados de forma concreta. Podemos observar formas geométricas, linhas, texturas, cores, pontos, colagens, fotos, etc., representado a afinidade que este tipo de notação tem com as artes plásticas, além do happening e a performance, que observamos no paradigma anterior.

Quando nos aproximamos deste tipo de notação experimental identificamos cinco graus de interpretação dos elementos da notação de acordo com os níveis de indeterminação da partitura gráfica. São eles:

(1) obras que constam de elementos gráficos, mas cujos signos estão bem definidos e deixam pouca liberdade na execução, (2) obras nas quais os signos e símbolos estão mais ou menos definidos, dirigindo a leitura por meio de ordenações semelhantes ao pentagrama, (3) são gráficos nos quais não podem ser identificados começo e fim, tampouco a direção da leitura é clara, mas que podem ser lidos através de processos associativos. No extremo oposto encontram-se (4) obras que não apresentam signos traduzíveis em música, os quais estão ali para influenciar de forma livremente associativa o intérprete, e (5) por fim, as notações gráficas de outras obras que não foram criadas para serem traduzidas em fenômenos musicais, porém sua concepção é influenciada por uma determinada estética

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musical, sem serem classificadas como partituras no sentido funcional do termo (KARKOSCKA apud FUGELLIE, 2012, p. 13 – nossa tradução85).

Esses cinco parâmetros de indeterminismo descritos por Karkoshka estão presentes nas obras gráficas dos compositores experimentais da América do Norte de diversas formas. Observamos, por exemplo, no compositor Morton Feldman, uma habilidade composicional que escapa aos sistemas metodológicos tradicionais, mediante o controle metafórico da composição. Dessa forma afirmamos que o trabalho de Feldman está se estrutura numa ação instintiva, espontânea, mas de algum modo estruturada mediante roteiros gráficos, que oferecem uma ordenação a essas ações musicais. Sua peça Intersection 1 (1951), dedicada a John Cage, dá início à criação de uma série de partituras gráficas (Intersection 2, Intermision 2, 4 e 5, Intersection 3), as quais utilizam quadros com números colocados de forma vertical que representam o momento de ação do performer e o registro (agudo, médio ou grave) a ser utilizado, deixando as notas específicas à escolha do instrumentista.

Depois de ter composto durante alguns anos com partituras gráficas, Feldman compreenderia que o mais importante era o fluxo criativo da própria performance musical. Nesse sentido, ele encontra uma libertação tanto do som quanto do performer para possibilidades musicais espontâneas. “Ele nunca tinha pensado através do gráfico como uma arte de improvisação mas sim como uma aventura abstrata totalmente sônica” (NYMAN, 1999, p. 70 – grifo nosso - nossa tradução86).

O compositor norte-americano Earle Brown, sumamente interessado no trabalho pictórico de Pollock e Calder, criaria entre 1952-53 uma série de peças sob o nome de Folio, deixando marcas na história da notação musical. Dentro destas partituras está a peça December 1952, “sendo uma obra que se distancia radicalmente de todos os parâmetros da escrita convencional e de qualquer referência de notação musical. O intérprete tem que traduzir a informação gráfica – linha vertical e horizontal de diferentes grossuras distribuídas

85 Original: “(1) Obras que constan de elementos gráficos, pero cuyos signos están bien definidos y dejan poca libertad a la ejecución, asando por (2) obras en la que los signos y símbolos están más o menos definidos, y que dirigen la lectura por medio de ordenaciones que se asemejan a las líneas del pentagrama, (3) gráficas en las que no pueden identificarse ni un principio ni un final, ni tampoco la dirección de la lectura es clara, pero que pueden ser leídas a través de procesos asociativos. En el extremo opuesto se encuentran (4) obras que no constan ya de signos ‘traducibles’ en música, los cuales están ahí sólo para influenciar de manera libremente asociativa al intérprete, y (5) finalmente las notaciones gráficas de obras que no han sido creadas para ser traducidas en fenómenos musicales, pero cuya concepción se ve influenciada por una determinada estética musical, sin poder ser clasificadas como partituras en el sentido funcional del término” (KARKOSCKA apud FUGELLIE, 2012, p. 13). 86 Original: “He had never thought of the graph as an ‘art of improvisation’ but more as a totally abstract sonic adventure” (NYMAN, 1999, p. 70)

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na página toda” (BUJ, 2013, p. 5 – tradução nossa87). Posteriormente, Brown cria sua composição Four Systems” (1945). John Cage se refere a Four Systems da seguinte maneira:

Esta peça pode ser interpretada por um ou vários performers. Não existe qualquer partitura, tanto para interpretação solista ou grupal. A qualidade da indeterminação não é removida da performance mesmo que com um número inexato de performers, enquanto não exista relações arranjadas das partes existentes. A notação original é um desenho de retângulos de vários comprimentos e larguras em tinta num mesmo roteiro tendo quatro divisões (sistemas). As posições verticais dos retângulos representam o tempo relativo. O comprimento dos retângulos poderia ser interpretado de forma intervalar sendo o gráfico lido em duas dimensões, ou como amplitudes onde o gráfico é lido numa ilusão de terceira dimensão. Qualquer interpretação desse material pode ser sobreposta em qualquer ordem, com adição ou não de silêncios entre eles, pode ser usado para produzir a continua largura temporal. Para poder multiplicar as possíveis interpretações, o compositor oferece algumas permissões de leitura do roteiro em qualquer das quatro posições: voltado para cima, de cabeça para baixo, lateralmente, para cima ou para baixo (CAGE, 1961, p. 37 – nossa tradução88).

De forma similar, John Cage compôs entre 1958 e 1967 uma série de peças conhecidas como Variations. O compositor utiliza linhas, círculos e pontos desenhados para representar, num sentido abstrato, as alturas das notas, sua intensidade, duração e possíveis conexões entre elas. Podemos mencionar como exemplo a peça Variations II (1961), passível de execução por um número indeterminado de intérpretes e gerando quaisquer tipos de sons. Esta peça consiste em onze folhas de papel transparente onde estão desenhadas seis linhas e cinco pontos de forma aleatória. Este tipo de partitura gráfica “móvel” é gerada mediante a sobreposição das folhas transparentes, criando sempre um gráfico diferente a cada vez. Os pontos e as linhas não estão fixos dentro de um gráfico inalterável, pelo contrário, sua sobreposição cria sempre um gráfico único, permitindo que funcione como um roteiro com possibilidades de interpretação sempre variadas.

87 Original: “Perteneciente a la serie de partituras gráficas Folio – marca un hito en la historia de la notación musical. Esta obra se distancia radicalmente de todos o casi todos los parámetros de la escritura convencional y de cualquier referencia a la forma tradicional de la notación musical. El interpreta ha de traducir la información gráfica – líneas verticales y horizontales de diferentes grosores esparcidas por toda la página” (BUJ, 2013, p. 5). 88 Original: “There is no score, either for the solo circumstance or for that of ensemble. The quality of indeterminacy is for this reason not removed from the performance even where a number of players are involved, since no fixed relation of the parts exists. The original notation is a drawing of rectangles of various lengths and widths in ink on a single cardboard having four equal divisions (which are he systems). The vertical position of the rectangles refers to relative time. The width of the rectangles may be interpreted either as an interval where the drawing is read as two-dimensional, or as amplitude where the drawing is read as giving the illusion of a third dimension. Any of the interpretations of yhis material may be used to produce a continuity of any time-length, with the addition or not of silences between them, may be used to produce a continuity of any time-length. In order to multiply the possible interpretations the composer gives a further permission – to read the cardboard in any of four positions: right side up, upside down, sideways, up and down. (CAGE, 1961, p. 37)

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São evidentes as intenções de Morton Feldman, Earle Brown e John Cage de motivar a prática da improvisação “dirigida” dos performers da época; a realização de partituras gráfica tão abstratas envolve, como forma viável de interpretação, um agenciamento individual e espontâneo dos elementos musicais. Nos exemplos expostos anteriormente, a partitura gráfica funciona como um incitador e não representa uma obra finalizada. O verdadeiro bloco criativo musical será constituído pelos performers durante a sua interpretação. Para explicar a capacidade diversificada da interpretação em partituras gráficas, o pesquisador Carl Bergstrøm aponta:

As imagens permitem um acesso randômico, como quando se olha livremente num mapa. Através de uma representação pictórica, detalhes do todo podem aparecer integrados, e um grande número de dados podem ser rapidamente compreendidos por outros, isto significa que diversos detalhes são facilmente sintetizados e ainda permanecem disponíveis para a atenção em suas individualidades (BERGSTRØM, 2009, p. 73 – tradução nossa89).

Para Brindle (1987) “A essência da improvisação é a espontaneidade. Para isso a improvisação controlada ou semi improvisação nunca poderá atingir a total fantasia e ingenuidade do performer” (BRINDLE, 1987, p. 86 – grifo nosso - nossa tradução90). Dessa forma Brindle (1987) afirma que num contexto de improvisação “dirigida” por algum roteiro ou esquema conceito, o performer deverá respeitar o rumo indicado previamente, impedindo que dele brotem de forma totalmente aberta, toda sua capacidade inventiva; mas podemos também afirmar que as denominadas improvisações “dirigidas” podem fomentar tipos exclusivos de interação entre os performers, os mesmos que deveram desenrolar sua atençãoo e interação para conseguir executar as direções do roteiro, sendo um ótimo treinamento para posteriormente, conseguir estados de livre improvisaçãoo com maiores recursos interativos, técnicos e teóricos.

No decorrer da década de 1960 proliferam as composições com notação gráfica, aumentando o grau de controle e complexidade da sua interpretação. Esse é o caso do compositor Sylvano Bussotti e sua obra La Passion selon Sade (1966) “onde se apresenta todo tipo de elementos – direcionamentos dentro do palco, indicações de iluminação,

89 Original: Pictures allow for ‘random access’, like when looking freely around a map. Through a pictorial representation, details and whole can appear integrated, and a large number of data can also be quickly comprehended by others. This is the overview aspect, meaning that details are easily synthesized into a whole and yet remain available for attention in their individuality (BERGSTRØM, 2009, p.73). 90 Original: The essence of improvisation is spontaneity, so that “controlled” improvisation or “semi” – improvisation can never fully release the performer’s true fantasy and ingenuity (BRINDLE, 1987, p.86).

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fragmentos de música, palavras para serem cantadas (ou faladas?), instrumentação, gestos, etc.” (BRINDLE, 1987, p. 89 – nossa tradução91), precisando de uma considerável preparação e ensaio para garantir a consistência da performance.

Outro exemplo nos apresenta o compositor Cornelius Cardew na sua obra Solo with accompaiment (1964), onde signos e símbolos representativos de específicas ações musicais (notas, gestos, figuras) devem ser memorizadas e trabalhadas previamente pelo performer para que ele possa interpretar corretamente a peça. A diversificação de componentes que podem ser representados e estruturados mediante notação gráfica ampliam as possibilidades performáticas que envolvem a atenção intensificada do performer, a preparação previa dos matérias e conhecimento sobre as indicações e instruções outorgadas pelo compositor mediante bulas informativas.

Event – Score (Partituras verbais)

Outro tipo de notação surgida na década de 1960 foi consolidada por diversos compositores como Cornelius Cardew, John Cage, George Brecht, Karlheinz Stockhausen entre outros92. Mediante o uso de instruções verbais, é constituída uma gama de repertório onde se misturam tanto elementos musicais, quanto cênicos e pictóricos, influenciados pelas práticas relacionadas ao happening e à performance, próprias da música experimental de América do Norte.

John Cage em 1959 compôs sua obra Water Walk, onde ele prepara uma cena com variados objetos: banheira, gravador de fita magnética, piano preparado93, rádio, panela com tampa e água fervendo, liquidificador, copos, regadeira, apitos, enfim, diversos objetos com os quais ele interage criando sonoridades diversas colocadas numa sequência especificada mediante instruções escritas que devem acontecer em tempos específicos. O uso de instruções verbais delineia o percurso temporal por minutos, dessa forma Cage utiliza um relógio que

91 Original: “Shows all kinds of elements – stage directions, lighting indications, fragments of music, words to be sung (or spoken?), instrumentation, gesture, etc. (BRINDLE, p. 89) 92 Alvin Lucier, Music for solo performer (1965), Alison Knowles, quem participou do grupo Fluxus, #2 Proposition (1962), Chriatian Wolff, Stones (1968), por mencionar alguns. 93 John Cage foi pioneiro na concepção da preparação do piano onde ele coloca intencionalmente objetos metálicos (parafusos, pregos, etc.) entre as cordas do piano alterando seu som original.

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determina o momento da ação a ser efetuada. Esta performance, além de criar um fluxo continuo de sonoridades, possui características cênicas evidentes.

Reginald Brindle no seu texto The New Music: Avant Garde since 1945 (1987) menciona a obra de Stockhausen Aus den sieben Tagen (1958) como um exemplo claro de event score. Esta obra para vários ensambles (para três ou mais músicos) é descrita como uma coleção de peças. Cada uma compreende um texto com sugestões sobre o comportamento dos músicos, jeito de tocar, alguns tipos de ações musicais e possíveis combinações entre esses elementos. A continuação apresentamos uma dessas peças intitulada Gold Dust:

GOLD DUST

Vive completamente sozinho por quarto dias

sem comida

em completo silencio, sem movimentação

dormir o menos possível

pensar o menos possível

depois de quatro dias, tardes e noites

sem ter conversado previamente nada

toque/faça um som

SEM PENSAR que está tocando/fazendo.

Feche os olhos, só escute. (BRIDLE SMITH, 1987, p. 96 – nossa tradução94)

No livro What’s Fluxus? What’ not! Why (2002) editado por Jon Hendricks, observamos um texto de 1961 escrito pelo compositor George Brecht: “Se uma partitura musical (partitura de sons) proporciona uma situação sonoro musical, a partitura do evento proporciona uma situação para eventos em todas as dimensões (ou fora delas)” (BRECHT

94 Original: “Live completely alone for four days, without food, in complete silence, without much movement, sleep as little as possible, after four days, late and night, without conversation beforehand, play single sounds WITHOUT THINKING witch you are playing, close your eyes, just listen” (BRINDLE SMITH, 1987, p. 96)

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apud HENDRICKS, 2002, p. 84 – nossa tradução95). Podemos evidenciar que não só são atingidos níveis de improvisação musical (sonora) mas também estão incluídas as ações próprias que requeridas na performance. As instruções dadas pelos event – scores representam um todo de como deve ser efetuada a ação performática, a improvisação ocorre num nível mais sutil dando passo a possibilidades de ação tanto física quanto sonora. A peça Concerto for Orchestra (1962) de Brecht é uma amostra de como podem ser agenciadas as ações dos performers incitando trocas e jogos que derivam em resultados sonoro-musicais que promovem a improvisação coletiva; onde se pede dividir a orquestra em dois bandos, um só cordas e outro só ventos, os quais deveram projetar misseis de papel para seus contrários mediante soprar nos instrumentos de vento ou mediante o uso das cordas para lançar o projetil, conseguindo eliminar a cada um dos integrantes do grupo contrário. O diretor funciona exclusivamente como referi.

Para finalizar nossa análise das partituras verbais (score-events) apontamos nossas próprias reflexões ao interpretar uma das peças da obra do compositor Cornelius Cardew The Great Learning composta para a Scratch Orchestra entre 1968 e 1971. Nos referimos especificamente ao Parágrafo 6 onde o material textual foi gerado a partir de um proverbio de Confúcio, tomado de seu texto A Grande Doutrina escrito em 500 a.C: “Desde o Imperador, Filho do Céu, até o homem comum, individualmente e coletivamente, esta auto-disciplina é a raiz”. Esta frase é fragmentada e diversas instruções são colocadas ao lado de cada fragmento indicando a execução dos sons a serem produzidos. Durante a interpretação, também podem ser faladas as palavras correspondentes a cada fragmento, guiando dessa forma o percurso de cada performer que, por sua vez, direciona o avanço coletivo através da peça. As ações sonoras a serem executadas são as seguintes:

DESDE: fazer ou escutar um som isolado e escutar uma pausa geral. Logo fazer vários sons, o primeiro deles sincronizado.

O IMPERADOR: par de sons, logo par de sons opcionais.

FILHO DO CÉU: dois sons, o primeiro sincronizado, Entre os dois esperar a ocorrência de uma pausa prolongada.

ATÉ O: um som sincronizado seguido por um som isolado. Logo um som opcional seguido por um som isolado.

95 Original: If a musical score (sound – score) prepares a music (sound) situation, the event-score prepares one for events in all dimensions (or outside of dimensions) (BRECHT apud HENDRICKS, 2002, p. 84).

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ATÉ O: Cinco sons; o segundo sincronizado, o terceiro isolado, o último precedido por uma pausa geral.

ATÉ O: Dois sons, o primeiro isolado. Logo um grupo de quatro sons opcionais, o segundo sendo alto e longo. Finalmente um par de sons isolados (ambos executados ou ambos escutados ou um executado e o outro escutado)

HOMEM: Cinco sons; o primeiro isolado, o terceiro opcional, o quinto sincronizado. Logo esperar por uma pausa geral e em algum ponto colocar uma constelação de quatro sons (executados, ouvidos ou parte executados, parte ouvidos)

COMUM: Par de sons opcionais.

INDIVIDUALMENTE: Fazer um som. Esperar por uma pausa geral seguido de quatro sons, o segundo isolado, o terceiro alto e longo. Esperar por outra pausa geral e continuar com três sons, o primeiro sincronizado, os últimos dois separados por um par de sons isolados.

E: Esperar por uma pausa geral e continuar com quatro sons, o primeiro sincronizado. Logo um par de sons opcionais e esperar outra pausa geral. Finalmente mais um son.

COLETIVAMENTE: Fazer quatro sons, o primeiro e o terceiro sincronizados. Esperar por uma pausa geral e logo fazer mais três sons, o primeiro sincronizado.

ESTA: Um som sincronizado, um som isolado, um som opcional, e um som isolado em essa ordem.

AUTO: Depois de um som opcional espere dois pausas gerais. Logo dois sons opcionais separados por um som sincronizado. Outra pausa geral. Logo um grupo de três sons, o primeiro sincronizado, alto e longo.

DISCIPLINA: Fazer um som isolado e escutar uma pausa geral. Logo um grupo de cinco sons; o primeiro é sincronizado, alto e longo, e o último é opcional.

É: Um som isolado seguido por um grupo de três sons isolados. Logo um som opcional seguido por um grupo de três sons sincronizados. Logo um som opcional seguido por um grupo de sincronizados (dois ou todos podem ser simultâneos, mas em qualquer casso sincronizados com outro intérprete). Logo uma constelação isolada de quatro sons.

A RAIZ: Três sons, os últimos dois opcionais. Logo esperar por uma pausa geral e finalizar com um som.

A peça foi executada em 2014 pelo grupo de pesquisa em sonologia da Universidade

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de São Paulo. Na preparação desta peça, que envolveu doze performers96, iniciamos pela seleção minuciosa dos objetos a serem utilizados como geradores de som; em nosso caso específico, optamos por utilizar o vocal da flauta transversal, copos de cristal de diversos tamanhos, apitos, facas, e objetos metálicos (parafusos e pregos) e um reco reco; tendo dessa forma a possibilidade de executar sons curtos e longos, além de diversas texturas.

A interação das ações sonoras está ligada intimamente aos sons produzidos pelos demais performers. Foram trabalhadas exaustivamente as pausas, tentando fazê-las evidentes. Cada performer interpreta sua sequência de ações em tempos individuais, criando uma rede de interações que tecem a trama sonora geral da peça. Os performers precisam de uma atenção profunda, em especial, porque os sons requeridos têm que ser realizados de forma sincronizada ou isolada, mas sempre de forma interativa.

Uma entre as várias complicações é a interpretação das instruções fornecidas pela partitura textual, que apresenta termos como “par de sons” ou “constelação de sons”. Apesar disso, os resultados sonoros foram de intensa interação possibilitando que os sons executados estivessem sempre interligados entre si.

Como conclusão, observamos que a improvisação dirigida sob estritas instruções não possibilita o agenciamento aberto das potencialidades e gostos individuais do performer, porém suas relações são resultado da escuta direcionada para encontrar momentos propícios para executar os sons. Tanto os performers quanto o público sentem a existência de uma estreita relação entre os sons produzidos, possibilitando que o fluxo sonoro seja principalmente estruturado pela presença de pausas longas que facilitam a execução dos sons sincronizados (realizados pela previsão dos gestos de ação dos performers) bem como pelo auxílio das palavras correspondentes às ações descritas na partitura verbal. Todos esses elementos facilitam o trabalho dos performers durante a interpretação. Cada performer finaliza quando tiver concluído todas as instruções para cada palavra, assim cada um termina em diferentes tempos, propiciando diversas camadas de criação que conjuntamente representam o todo desta peça indeterminada97.

96 Todos pertencentes ao grupo de pesquisa em sonologia NuSom, sob a direção do pesquisador Prof. Dr. Fernando Iazzetta. 97 Para maiores informações sobre a interpretação desta peça, sugerimos o trabalho do pesquisador Carlos Arthur Avezum Pereira no seu artigo: Paragraph 6 em Great Learning de Cornelius Cardew: Paradoxos de uma Performance. 2014.

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Mecanismos internos da improvisação estruturada não idiomática

Caracterizada principalmente por criar sua meta – estrutura entre a década de 1950 e 1970, seu repertório foi amplamente diversificado, estruturando possibilidades criativas que dialogam com as artes plásticas, o happening, a performance, a dança e o cinema. As macroestruturas (peças individuais) procuram alcançar níveis de abstração: usualmente a aparência e seu estado se posicionam dentro das artes abstratas. Tanto a notação gráfica quanto a verbal permutam para o que poderia ser descrito como sugestões dinâmicas ou de texturas onde as microestruturas (notas, métrica, duração) são somadas a outros tipos de micro–estruturas (movimentação, gestos, ações sonoras), representadas mediante signos, símbolos ou instruções verbais que são agenciadas numa improvisação dirigida pelas diretrizes descritas pelo compositor. A interação entre os performers e a escuta atenta dos eventos musicais suscitados no tempo presente da performance são essenciais para possibilitar a estruturação interativa do fluxo sonoro criativo neste tipo de composição experimental.

C. Free Improvisation como Improvisação não estruturada não idiomática

O ato de se engajar na livre-improvisação se tornará numa libertação e emancipação, para muitas pessoas tocará suas vidas emocionais em formas não-verbais e sem julgamentos. Nós devemos introduzir à este saudável modo de vida (SMITH apud PETERS, 2009, p. 19 – nossa tradução98).

Retomando os apontamentos do pesquisador George Lewis sobre a visão Eurológica da improvisação, realizamos o levantamento de diversas perspectivas que constituem a prática da improvisação livre. Segundo Lewis (1996), a livre improvisação se estabelece fortemente na Alemanha por volta da década de 1960 com os conhecidos German Blasters99: Peter Brötzmann (saxofone) e na Inglaterra com os improvisadores Derek Bailey (guitarra), Evan Parker (saxofone), Paul Rutherford (trombone), Kent Carter (contrabaixo). Eles seriam partícipes da conformação do Spontaneus Music Ensamble (SME) organizado pelo baterista

98 Original: “The act of engaging in Free Improvisation will become a liberator, and emancipator, for many people touch into their emotional lives in a non-verbal and non-judgmental way. We must introduce this healthy way of life. (SMITH apud PETERS, 2009, p. 19) 99 Em contraposição com os American Groovers, surgidos nos Estados Unidos.

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John Stevens e o saxofonista Trevo Watts no ano de 1965. A partir desses encontros se estabelecem as bases de um tipo de improvisação que, no princípio inspiradas pelo trabalho do grupo de Ornette Coleman, procuram novas formas expressivas caracterizadas principalmente pela improvisação afastada de qualquer linguagem referente, procurando interações espontâneas baseadas nas potencialidades da concretude do som, além das redes de interação surgidas dentro da improvisação. Tudo isso foi fomentado pelas influências da música avant - garde europeia, as novas tecnologias e uma aproximação mais sintética e menos hierárquica da prática da improvisação.

O SME foi uma partida radical dos paradigmas tanto do post-bop quanto do free jazz, representando a fundação de uma nova e revolucionaria estética e prática da improvisação. Abandonando muitos aspectos que foram tão influentes para eles, o SME descobriu uma nova forma de tocar música que esteve fundamentada em conceitos revolucionários: principalmente uma reconsideração radical da constituição própria das linhas melódicas (SCOTT, 2014, p. 96 – nossa tradução100).

Um exemplo claro da estética nas improvisações do SME se observa em seu material discográfico Withdrawal (1966) onde escutamos a clara influência de Ornette Coleman, caracterizada por uma estrutura de motivos musicais e timbres fusionados numa camada de sobreposições, dando a sensação de um jogo de pergunta e resposta em altíssima velocidade (similar a um jogo de ping pong). Este disco inclui ainda uma suíte composta por John Stevens intitulada Seeing Sounds and Hearing Colours, atribuindo sua influência ao compositor vienense Anton Webern. Quanto ao disco, Callighan (2007) afirma: “O que é mais significativo sobre Withdrawal é a introdução e assimilação de distintivas características (musicais) europeias dentro de concepções musicais relacionadas com improvisação americana do jazz” (CALLINGHAM, 2007, p. 33). Sobre seu posterior trabalho discográfico Summer (1967) Callingham (2007) comenta:

O que é evidente do CD Summer 1967, é o ponto onde o SME formulou e adotou definitivamente seu estilo maduro. É aqui, onde os duetos atomísticos dessa primeira formação de John Stevens e o saxofonista Evan Parker, que o som distinto do grupo e os modos de trabalhar podem ser escutados

100 Original: “The SME was a radical departure from the established paradigms of post-bop and free jazz, representing the foundation of a new and revolucionary improvisational practice and aesthetic. Abandoning many aspects of the music that had so influenced them, the SME discovered a new way of playing music which was predicated on some revolucionary concepts: most strikingly a radical reconsideration of the melodic line itsel” (CALLINGHAM, 2007, p. 33).

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conclusivamente, numa forma que duraria pelos próximos 27 anos” (CALLINGHAM, 2007, p. 33 – tradução nossa101).

No artigo The molecular imagination (2014), o pesquisador Richard Scott qualifica o som do SME como “imaginação molecular” , derivado principalmente dos conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari (1987) O conceito “molecular” coloca particular ênfase nas potencialidades do indeterminado, destacando partículas microscópicas fora de algum tipo de organização molar. Numa aproximação desse termo com a improvisação livre, Richard Scott afirma que a “molecularização” dos fragmentos musicais pode ser dividida em três estágios. O primeiro se relaciona com a retirada do fragmento musical de sua significância idiomática. Esse fragmento será observado “molecularmente” afastado do seu contexto idiomático, ou seja, da sua função dentro de uma linguagem musical específica. O segundo estágio corresponde à observação desse fragmento musical em sua natureza puramente sonora, que terá, evidentemente, uma relação mais próxima com o ruído. O terceiro e mais importante estágio aborda a potencialidade que obtém esse fragmento musical para criar interações e conexões com outros fragmentos musicais tratados “molecularmente”.

Quando o som não é mais limitado tanto por suas qualidades inerentes ou suas interações determinadas por paradigmas ou funções iniciais, sua superfície pode revelar ganchos e fendas com o qual é capaz de se conectar e se combinar e formar novos relacionamentos com outros sons, constituindo potencialmente uma variedade diversificada, uma extensiva e complexa rede do fenómeno musical (SCOTT, 2014, p. 101).

Devemos mencionar outro grupo importante que surge na Inglaterra no ano de 1965, conhecido como AMM, um grupo ativo e dedicado à prática da livre improvisação até os dias de hoje, tendo suas raízes no jazz e na música de concerto europeia. Formado no início pelos músicos Eddie Prèvost na percussão, Keith Rowe na guitarra, Lou Gare no saxofone e Lawrence Sheaff no contrabaixo, ganharam experiência principalmente interpretando jazz (post-bop) durante a década de 1950, passando pelo free jazz para finalmente se estabelecer esteticamente na prática da livre improvisação. Andrew Callinhgam explica como esta última mudança no AMM aconteceria primeiro pelo contato do guitarrista Keith Rowe com as experiências escolásticas de John Cage. Também mencionaa participação do pianista Cornelius Cardew, quem previamente trabalhou com o compositor Karlheinz Stockhausen.

101 Original: “What becomes apparent form the CD Summer 1967, however, is the point by which the SME had definitively formulated and adopted their mature style. It is here, in the atomistic duets of then-current line-up Stevens and sax player Evan Parker, that the group’s distinctive sound and mode of working can first conclusively be heard, in a form that endured for the next twenty-seven years” (CALLINGHAM, 2007, p. 33).

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Cardew seria fundamental para aproximar o ensamble AMM à uma prática definida como composição experimental, além de contribuir com sua visão renovadora e espontânea da música experimental sem contato ou influência do jazz.

Segundo Callingham (2007), a música do ensamble AMM é descrita usualmente como laminar em contraposição à prática de pergunta–resposta formulada anteriormente no grupo SME. Callingham (2007) se expressa da seguinte maneira com respeito ao som do AMM:

Enquanto o som era delicado, linear, unidimensional e complexo (SME), AMM era corroído, frequentemente alto e relativamente estático. Coletivamente denso, ele se comprime simultaneamente ocorrendo camadas de sons friccionadas umas contra as outras, mudando texturas e estruturas de forma gradual. Eles também exploravam uma faixa dinâmica expandida de volume e timbres (e não de tempo), sendo esses degraus de extrema dissonância contrastados por passagens de aparente silêncio (CALLINGHAM, 2007, p. 38 – nossa tradução102).

Outra diferenciação entre estes conjuntos de livre improvisação está estabelecida na forma como o grupo SME distribuía as responsabilidades de improvisação a partir das potencialidades individuais dos seus membros, no qual cada frase era rapidamente negociada fazendo com que a atenção do improviso seja compartilhada pelo coletivo; por outra parte no grupo AMM essas mesmas responsabilidades da improvisação consistiam numa série de colagens às quais cada música ia aderindo consecutivamente, cada camada era lentamente transformada por outra permutação.

Podemos mencionar a existência de uma reconstituição da divisão dos papéis dos improvisadores, desintegrando progressivamente as funções do leader band, seção rítmica, solista e acompanhamento para um conjunto vetado de hierarquização instrumental, onde todos os integrantes cumprem a função estruturadora da improvisação. Por essa razão se enfatiza a prática da improvisação num contexto grupal. “Os livres improvisadores, em geral, compartilham o ponto de vista de que a técnica e a realização da improvisação são agenciadas melhor através do contexto de desenvolvimento e da experiência, e não mediante treinamento

102 Original: “Where the latter’s sound was delicate, linear, one-dimensional and busy, AMM’s was coarse, often loud and relatively static. Collectively dense, it comprised simultaneously occurring layers of sound that grated against one another, shifting texture and structure only gradually. They also exploited an expansive dynamics range of volume and timbre (rather than tempo), so that dirges of extreme dissonance might be contrasted against passages of apparent silence (CALLINGHAM, 2007, p. 38).

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isolado” (BORGO, 2002, p. 174 – nossa tradução103). Por outra parte, reafirmamos o fato de que a improvisação livre, além de potencializar a atenção minuciosa dos seus participantes, promove a exploração do instrumento musical sem restrições nem preconceitos baseados nas técnicas tradicionais de interpretação; é por isso que a livre improvisação fornece a oportunidade propícia para o desenvolvimento das chamadas técnicas estendidas104 possibilitando a geração do sons não convencionais e a inserção de aparelhos que modificam a morfologia própria do instrumento.

Depois de ter apresentado informações referentes ao princípio da improvisação livre, a partir de uma visão eurocêntrica, podemos descrever certas características teóricas e práticas que constituem os parâmetros da livre improvisação. A criatividade espontânea é o material inerente a essa prática musical. Observamos uma clara preocupação por novos agenciamentos, tanto dos materiais musicais - sua estruturação e desenvolvimento, quanto na forma de tocar os instrumentos musicais inseridos dentro dos condicionamentos e funcionalidades das linguagens musicais específicas.

Os exemplos apresentados constituem as bases para a quebra desses condicionamentos afiançados durante os séculos mediante um repertório musical estabelecido, principalmente dentro das funcionalidades instrumentais presentes nas orquestras de concerto ou grupos musicais que realizam seus trabalhos ao redor de paradigmas bem instituídos. Consideramos paradigmas o temperamento estável das notas, sua relação intervalar, pulsações fixas criadoras de padrões rítmicos e estruturações harmônicas geradoras de círculos harmônicos bem identificados. Até processos de atonalismo e serialização estão constituídos dentro desses paradigmas, reformulando alguns desses condicionamentos, mas de modo geral regidos por uma hierarquização do processo compositivo, o que inviabiliza a livre exploração instrumental e performática do intérprete. Por essa razão, apresentamos os apontamentos da livre improvisadora Chefa Alonso (2007), em que ela explica quais são as qualidades dos livres improvisadores, afastados da interpretação e da composição tradicional:

103 Original: Free improvisers, in general, share the view that technical and improvisational accomplishments are best arrived at through in-context development and experience rather than through isolated training (BORGO, 2002, p. 174). 104 Técnicas de interpretação instrumental que não se relacionam com a forma estabelecida ou convencional de tocar o instrumento. Tocar multifônicos no saxofone, colocar objetos entre as cordas do instrumento, mudar de boquilha ou simplesmente tocar sem ela, bater no corpo do instrumento, utilizar som das chaves dos instrumentos de sopro, tocar dentro da arpa do piano, fazer raspagem com o arco dos instrumentos de corda são alguns exemplos de técnicas estendida. Este termo será aprofundado no Capítulo V deste trabalho.

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Os improvisadores, cada um com sua própria bagagem cultural, musical e vital, vão na busca de novas paisagens sonoras, explorando as possibilidades expressivas dos seus instrumentos – escavam a técnica, a estendem, exprimem as possibilidades tímbricas -, e inclusive as modificam e reinventam. Os improvisadores se reúnem com outros músicos com quem nunca tocaram antes, músicos de outros países, de outras línguas, de outras culturas, e o milagre pode acontecer. Partituras invisíveis voam sobre suas cabeças. Mas a liberdade é exigente e tem suas regras: tem que ouvir o outro, tem que o sentir. O improvisador teve que aprender a tomar decisões rápidas, a criar no momento, a compor sobre a marcha (ALONSO, 2007, p. 13 – 14 – nossa tradução105).

Mas podemos perguntar: se dentro de cânones musicais tão afiançados e preestabelecidos, qual seria o procedimento para conseguirmos nos libertar daquelas regras que a tradição musical fixou? O saxofonista, improvisador e pesquisador Rogério Moraes Costa na sua tese de doutorado O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação (2003) apresenta a livre improvisação como uma prática desenvolvida especificamente dentro de planos de consistência106 obtidos através de “um estado de prontidão auditiva, visual e sensorial que é diferente daquele exigido para a prática da interpretação ou da composição” (COSTA, 2003, p. 27). Costa (2003) afirma que o livre improvisador deve reagir a diversos estímulos sonoros, visuais e sensoriais, criando uma camada de relações interativas que serão expressadas através do seu instrumento; é por isso que as potencialidades do instrumento estão intimamente ligadas à capacidade de reação do improvisador; quanto mais o improvisador explora e descobre novas formas de tocar seu instrumento, mais singular e abrangente é a sua capacidade de resposta.

Rogério Costa afirma que na atualidade, devido a processos sócio culturais107 e tecnológicos o músico improvisador está diante de uma crescente interação e integração

105 Original: Los improvisadores, cada uno con su propio bagaje cultural, musical y vital, van a la búsqueda de nuevos paisajes sonoros, explorando las posibilidades expresivas de sus instrumentos – escarban en la técnica, la extienden, exprimen las posibilidades tímbricas-, e incluso modificándolos o inventándolos. Los improvisadores se reúnen con otros músicos con los que nunca han tocado, músicos de otros países, de otras lenguas, de otras culturas, y el milagro puede suceder. Partituras invisibles vuelan sobre sus cabezas. Pero la libertad es exigente y tiene sus reglas: hay que oír al otro, hay que sentirlo. El improvisador ha tenido que aprender a tomar decisiones rápidas, a crear en el momento. A componer sobre la marcha (ALONSO, 2007, p. 13-14). 106 Planos de consistência é um termo por Gilles Deleuze (1925 – 1995), através de Rogério Moraes Costa: “um bloco de espaço-tempo indefinível em seus contornos onde acontecem as atuações agenciamentos - dos improvisadores e onde, por conseguinte, coexistem diferentes energias, atitudes singulares, pensamentos, conexões, histórias pessoais e coletivas. (...)Na obra de Deleuze o plano de consistência se opõe ao plano de organização ou de desenvolvimento que dizem respeito à forma e à substância (onde se "preenche" uma forma pré-estabelecida com uma matéria qualquer). Na consistência, a forma e a substância são meras consequências possíveis de conexões e agenciamentos entre elementos singulares, díspares e heterogêneos” (COSTA, 2003, p. 52 - 53). 107 Robert J.C. Young. Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race. (1995). Maria Elisa Cevasco. Hibridismo Cultural e Globalização. (2003). Néstor García Canclini. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. (1998)

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global afirmando que “a maior parte dos músicos no mundo ocidental são submetidos à uma enorme multiplicidade de sistemas e idiomas” (COSTA, 2003, p. 29). Nessas condições se estabelece uma multiplicidade de referências com as quais o improvisador deve trabalhar, várias linguagens musicais se entrelaçam formando a consciência musical do improvisador. Mas é preciso- como observamos na molecularização das estruturas musicais por parte do grupo SME -, de alguma estratégia para agenciar a bagagem complexa e individual do improvisador que está inegavelmente afetando e condicionando suas capacidades de improvisar. Para isso, Rogério Costa (2003) utiliza os conceitos da escuta reduzida108 como ferramenta para nos liberar das conotações idiomáticas dos materiais musicais que o livre improvisador possui. “Da soma destes tipos complementares e interrelacionados de experiência emergem, entre outras coisas, os eventuais hábitos/clichês/ritornelos pessoais, sociais e culturais” (COSTA, 2003, p. 61-62 – grifo nosso). Embora essas experiências sejam dentro de um contexto de improvisação (jazz, música flamenca, blues, música indiana), o livre improvisador deve optar por modificar sua escuta para uma relação mais íntima com as qualidades próprias do som, além de estruturar estratégias para reagir e descontextualizar seus conhecimentos prévios em função da espontaneidade, do acaso e da surpresa.

Rogerio Costa (2003), através das formulações de Brian Ferneyhough, formula três tipos de materiais com os quais o improvisador pode identificar e utilizar dentro da estruturação da livre improvisação: primeiramente o gesto, entendido como uma ação sonoro- musical encaixada dentro de uma referência musical (idioma), por exemplo, um gesto do bebop, que se entende como um fragmento musical que remete a esse estilo em específico. O gesto também é concebido como a movimentação do corpo gerador daquele material musical em particular; nesse sentido observamos que o gesto pode ser agressivo, descontrolado ou, pelo contrário, sob total controle, representando sua utilidade dentro do idioma musical predeterminado. O gesto é útil dentro da livre improvisação como um dos elementos da microestrutura explicada anteriormente por Callingham (2007); é dessa forma que, dentro da prática da livre improvisação, o performer faz uso de gestos controlados ou descontrolados, possibilitando dessa forma a criação de material susceptível a interação. Esse material, à primeira vista, não pode ser identificado dentro de sua própria estruturação, mas pode ser qualificado como gestos controlados (previamente estruturado e aprendido pelo improvisador)

108 Foi anteriormente descrito o conceito da escuta reduzida no Capítulo 1 desta dissertação.

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ou gestos descontrolados (por exemplo tocar uma frase no piano, de forma instintiva e sem preparação). Outros qualificadores podem ser: gesto agressivo, gesto sutil, identificados principalmente por ter um começo, um desenvolvimento e um fim.

Por outra parte, a figura “é um material ‘plástico’, geralmente de caráter rítmico- melódico, conveniente, por exemplo, para o trabalho de variação e desenvolvimento temático” (COSTA, 2003, p. 103). Quer dizer que a figura funciona como um elemento detalhado do gesto, servindo para contextualiza-lo de forma concreta, detalhando suas particularidades de forma numérica (relação intervalar, quantidade das notas, altura das notas, direcionamento do fraseado). A figura pode ser permutada, baseada nas informações que ela mesma outorga para o improvisador. “O improvisador se serve da figura como um elemento que é submetido a transformações locais constantes e que vai deste modo revelando sua potência em contato com outros materiais que surgem na performance” (COSTA, 2003, p. 103).

Finalmente Costa (2003) descreve a textura como “uma sensação a partir de uma configuração e de um dinamismo entre os elementos presentes num determinado fluxo sonoro. É a escuta de um grande tecido sonoro em plena modulação/transformação” (COSTA, 2003, p. 105). A textura descrita constitui a trama produzida mediante a somatória das camadas sonoras do coletivo improvisador. Pode também estar relacionada com matérias sonoras espectralmente complexas, onde não é possível determinar sua estruturação figural devido a sua riqueza em ressonâncias e parciais. A textura nesse sentido pode ser criada mediante um gesto, por exemplo, rasgar as cordas do piano cria uma sonoridade mais próxima ao sentido textural do ruído. Dessa forma, o livre improvisador pode identificar e interagir com estes três elementos configurando-os espontaneamente durante a improvisação.

O gesto, a figura e a textura constituem as microestruturas que configuram as ferramentas fundamentais da livre improvisação. Saber distingui-las e contextualiza-las dentro da performance é o trabalho exaustivo do livre improvisador; enquanto interage com outros improvisadores, sua capacidade de restruturação dos elementos antes descritos será o motor criativo que instaura correlações entre os demais performers. Mas não é suficiente ter como referência esses três elementos durante a improvisação; o livre improvisador deve também se valer de estratégias teóricas para reestruturar novos significados a esses materiais, que

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guardam por si mesmos, suas próprias relações e significados dentro de algum tipo de linguagem musical fixa. Dessa forma, um gesto tradicional do jazz não pode ser utilizado de forma prolixa dentro da livre improvisação, mas antes deve passar por um “filtro” que reestruture seu significado, despojando-o de seu contexto idiomático natural. Uma figura musical permutável, também deve ser filtrada ou molecularizada em seus componentes tímbricos; o ruído e as texturas devem ganhar novos significados dentro desta prática musical; tudo isso se atinge por meio de processos de restruturação ou reterritorialização que serão explicados a seguir.

A partir de conceitos filosóficos estabelecidos por Deleuze (1987) e apropriados por Rogério Costa (2003) no contexto da livre improvisação, depreendemos que deve existir primeiramente um processo de desterritorialização, promovendo o uso de linhas de fuga que servirão de desestabilizadores dos idiomas preestabelecidos. Todos os planos de consistência têm por natureza procurar sua estabilidade em territórios bem definidos. Nesse sentido, observamos os diferentes gêneros musicais (metaestruturas) que vão se afiançando por meio da repetição (ritornelos) e permutação dentro desses limites. A livre improvisação afeta especificamente esses limites, procurando saídas e linhas de fuga mediante diversos processos: técnicas estendidas, utilização de tecnologias sonoras de sínteses e gravação, e a própria escuta reduzida, para colocar os elementos - antes constituídos dentro de um território - em sua forma molecular permitindo assim que se encaixem dentro da prática da livre improvisação com novas potencialidades e significados.

Finalmente, Costa (2003) propõe que a natureza da prática da livre improvisação está baseada no jogo, onde cada participante cria em tempo real as regras (sonoro-musicais) que gerenciam o percurso da performance. Por outro lado, Costa (2003) utiliza os apontamentos de Gilles Deleuze sobre o jogo ideal descrito da seguinte maneira:

Ao contrário do jogo ‘menor’, neste não há regras preexistentes. Todas as jogadas são possíveis pois cada lance inventa suas próprias regras. Sem intenção de dividir o acaso em um número de jogadas distintivas, o conjunto de jogadas afirma todo acaso e o ramifica em cada jogada. No jogo ideal, portanto, as jogadas não são numericamente distintas (...). Assim, parece que o jogo ideal é o próprio jogar em que ainda não se formalizaram regras. Ele é, nas palavras de Deleuze, um ritornelo primordial de territorialização anterior à própria territorialização. Nestes termos, esta nos parece ser a diferença entre a improvisação idiomática (jogo com regras) e a nossa

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proposta de improvisação não idiomática (jogo ideal) (COSTA, 2003, p. 41- 42).

Mecanismos internos da improvisação não estruturada não idiomática

Existe uma complexa interação entre a meta, macro e micro-estruturas agenciadas através de diversas permutações que constituem a singularidade da improvisação livre. A meta-estrutura neste caso foi consolidada na década de 1960 por coletivos de livre improvisação, gerando assim um ideal por se afastar das linguagens musicais preestabelecidas. Para isso foi preciso redefinir os parâmetros e procedimentos anteriormente contextualizados dentro dos paradigmas do temperamento das notas, padrões rítmico- melódicos e estruturas harmônicas tonais, atonais e serialistas. As macroestruturas não representam formas preestabelecidas, mas sim serão constituídas dependendo das peculiaridades próprias da livre improvisação suscitada em tempo real. Essas macroestruturas podem ser conceitos como interação de pergunta-resposta, ideais abstratos de interação109, ou conceitos guiados por breves indicações verbais. As microestruturas deixam de ser os elementos rítmico-melódico-harmônicos para se transformar em gestos, figuras e texturas, que serão utilizadas em processos de interação espontânea. “Em teoria, a livre improvisação assume que (musicalmente) nada precisa ser determinado – nada deveria ser determinado – se uma resposta ‘livre’ é o resultado” (CALLINGHAM, 2007, p. 265 – nossa tradução110).

II. Apontamentos finais sobre a improvisação e o indeterminismo na

música experimental.

Concordamos plenamente com o mencionado por Jackes Derrida (1930 – 2004) que afirma:

109 Nesse sentido mencionamos o trabalho de doutorado do improvisador e pesquisador Manuel Falleiros onde utiliza palavras como gatilhos para a livre improvisação. Palavras Sem Discurso: Estratégias Criativas da Livre Improvisação. (2012) 110 Original: “In theory, free improvisation assumes that (musically) nothing need be predetermined – nothing should be predetermined – if a ‘free’ response is to result” (CALLINGHAM, 2007, p. 265)

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Não é fácil improvisar, é a coisa mais difícil de fazer. Mesmo se um improvisa diante de uma câmera ou microfone, um ventríloquo se coloca para falar em nosso lugar. Os esquemas e as linguagens que já estão aí, estão constituídas num grande número de referências que estão prescritas em nossa memória e em nossa cultura. Todos os nomes estão realmente programados. É precisamente os nomes os nomes que inibem nossa habilidade para realmente improvisar. Um poderia dizer o que um quiser; um é mais ou menos obrigado, de certo modo, a reproduzir os recursos estereotipados. Então eu acredito na improvisação, eu luto pela improvisação, mas com a crença de que é impossível. (...) o que é chamado de improvisação nunca é absoluto, nunca terá a pureza do que se pensa que uma pessoa pode exigir de uma improvisação forçada: a surpresa da pessoa interrogada, espontaneidade absoluta, instantânea, quase simultânea. Uma rede de aparatos e distrações – e principalmente linguagens – vem a interromper o impromptu, colocá-lo ao lado de si mesmo, reverte-lo de si mesmo. Uma bateria de antecipação e artefatos de distração, de procedimentos e abrandamentos que estão inevitavelmente em ação quando um abre sua boca... com o propósito de protegê-lo da exposição da improvisação (DERRIDA apud PETERS, 2009, p. 167-168 – nossa tradução111)

Gary Peters (2009) afirma que para Derrida o final da representação é, ao mesmo tempo, o começo, o espaço ou a apertura do espaço onde a verdadeira peculiaridade do que Derrida chama de “representação original” interrompe na presença de qualquer situação familiar. Evidentemente as formulações de Derrida nos levam a afirmar que não existe um real “estado puro” da improvisação, e sim gradações dessa prática baseada na negociação entre: (1) liberdades criativas individuais e coletivas, (2) capacidade e potência de ação- reação-interação, e (3) modos de hierarquização estritos, flexíveis ou nulos112, que regulam as liberdades da performance. O improvisador vive com sua memória, a qual ira guardando nossas ações musicais ‘espontâneas’, que num primeiro momento poderiam ser fruto da intuição ou o acaso, e consideradas puramente ‘improvisadas’, mas na natureza de sua repetição, vira recurso criativo vetando dessa pureza e ingenuidade do primeiro contato ocorrido.

111 Original: “It’s not easy to improvise, it’s the most difficult thing to do. Even when one improvises in front of a camera or a microphone, one ventriloquizes or leaves another to speak in one’s place. The schemas and languages that are already there, there are already a great number of prescriptions that are prescribed in our memory and culture. All the names are already programmed. It’s already the names that inhibit our ability to ever really improvise. One can’t say whatever one wants; one is obliged, more or less, to reproduce the stereotypical discourse. And so I believe in improvisation, and I fight for improvisation, but with the belief that it is impossible. (...) what is called improvisation it is never absolute. It never has the purity of what one thinks one can require of a forced improvisation: the surprise of the person interrogated, the absolutely spontaneous, instantaneous, almost simultaneous response. A network of apparatuses and relays – and first of all language – has to interrupt the impromptu, put it beside itself, set it aside from itself. A battery of anticipatory and delaying devices, of a slowing-down procedures are already in place as one opens one’s mouth... in order to protect from improvised exposition” (DERRIDA apud PETERS, 2009, p. 167-168) 112 Na nulidade de restrições ainda estão nossas memórias, hábitos ou ritornelos que passam a se converter em novos limites e territórios a serem restruturados.

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E é assim que o improvisador procura mais, se expande, expande seus instrumentos, sua técnica, seus recursos, em procura de novas possibilidades, novas linhas de fuga para se fusionar com outras manifestações e estéticas. Numa procura sem fim pela epifania do genial, desse momento sutil onde uma frase, um gesto, um ruído, uma nuança rítmica, se manifestam para o regozijo do sonoro, do musical; para regozijo do improvisador, seus colegas e o público.

Essa capacidade de renovação exponencial que tem a improvisação possibilita, nos termos do pesquisador Harald Stenstrøm formas mistas de improvisação. Através do seu texto Free Ensamble Improvisation, (2009), o mesmo que está repleno de citações de diversos autores falando sobre improvisação, chamou a atenção uma categoria da improvisação onde estava principalmente o exemplo do saxofonista, compositor e pesquisador John Zorn (1953) com a criação de “peças de jogo”;113estruturando uma complexa dinâmica mediante signos físicos e visuais, símbolos que representam procedimentos e regras desenhadas em cartas pré- fabricadas, direcionamentos provocados por um regente e estratégia de jogo. John Zorn afirma que a intenção com esta plataforma/jogo de improvisação performática é colocar o processo criativo das pessoas em vez dos sons, onde o importante é não se focar no som, e sim no improvisador, o jeito de se relacionar com seu instrumento e com os outros improvisadores, a capacidade estratégica de criação espontânea de duos, trios, e demais ensambles dentro do coletivo de improvisação, fomentando uma espécie de jogo sonoro onde as equipes formadas vão se comunicar, se opor entre elas, se reestruturar, etc; um tipo de jogo coletivo onde o som e seus agenciamentos cooperativos ou antagónicos delineiam as nuanças da improvisação de John Zorn chamada Cobra.

Se faz importante apresentar nesta pesquisa a grande gama de possibilidades práticas e teóricas que a improvisação musical carrega. Este fato permite a possibilidade de formular nossas próprias plataformas; criando assim novas e diversas estratégias de improvisação misturando instruções verbais, gráficos, ou promovendo tipos específicos de estados de improvisação (estabilidade, pergunta-resposta, saturação, improvisação silenciosa); podemos também trazer elementos idiomáticos, que dentro do ambiente de livre improvisação podem aparecer em forma de citações ou alegorias, susceptíveis a serem descontruídas, reteritorializadas ou molecularizadas.

113 Original: “Game Pieces” Cobra (1984). Mais informações em BRACKETT, John. Notes on John Zorn’s Cobra. (2010)

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Finalmente será importante para esta pesquisa, contextualizar a pratica da improvisação, e em especifico da improvisação livre, como um sistema complexo de relacionamentos, uma visão ecológica para relacionar e construir o fluxo criativo musical, mediante a constante negociação dos materiais sonoro-musicais com o ambiente, com os outros sons, com outros seres humanos. Da mesma forma que num ambiente ecológico, cada ação dos indivíduos pertencentes a esse ecossistema, criará uma reação direta com os outros indivíduos e nessa cadeia de relações modificará seu entorno, na livre improvisação, cada ação musical cria uma reação sonora por parte do coletivo, modificando estruturalmente o fluxo sonoro, o plano de consistência, o ecossistema criado dentro da performance. O improvisador e pesquisador Marcel Cobussen no seu texto Steps to an Ecology of Improvisation (2014) reafirma este fato explicando que:

Improvisação trabalha como uma rede complexa, como um sistema ecológico como um ensamble Deleuziano. Estabelece relações sempre permutáveis entre o material sonoro presente (incluindo escolhias estéticas, habilidades técnicas, recursos formais, conhecimentos inter-musicais), o ambiente (tecnologia, acústica, espacialidade) e o social (incluindo o artístico e até o ético) o comportamento mutuo entre músicos performers e público. (COBUSSEN, 2014, P. 23 – nossa tradução114)

114 Original: “Improvisation thus works as a complex network, as an ecological milieu, as an Deleuzian assemblage. It establishes ever-changing relationships between the actual sonic material (including aesthetic choices, technical abilities, formalistic features, inter-musical knowledge), the environment (technology, acoustics, spatiality) and the social (including the artistic and even the ethical) behavior of the musicians mutually as well as that of performers and listeners” (COBUSSEN, 2014, P. 23)

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. A máquina fazendo música: suas origens e sua projeção na América do Sul

É fundamental levantarmos diferentes apontamentos para determinar quais foram as ressonâncias dentro da música experimental a partir do desenvolvimento de tecnologias, no princípio analógicas e depois digitalizadas, num processo que trouxe diversas mudanças dentro da composição e da performance principalmente pelo desenvolvimento de sistemas de interação que trabalhavam em conjunto com a performance. Começamos explorando as formulações de Karheinz Stockhausem que em 1986 escreveu um pequeno texto enumerando cinco “revoluções” que as tecnologias analógicas e digitais trouxeram para a música experimental.

Nos aprofundamos com relação as maquinas de produção sonora e musical mediante os apontamos do pesquisador e compositor Fernando Iazzetta, além dos pesquisadores Elliot Schwartz e Daniel Godfrey para isso abordamos um paralelo com respeito a música eletroacústica/experimental desenvolvida por compositores de América do Sul, principalmente nos países de Argentina e Brasil, os mesmos que foram influenciados de diversas formas pelos avanços em experimentação sonora acontecidos na Europa e na América do Norte.

I. Revoluções desde 1950

O texto Cinco revoluções desde 1950 de Karlheiz Stockhausen (1986) apresenta um claro panorama do que significaram diversos avanços tecnológicos para a música experimental. Stockhausen escreve que a primeira revolução ocorreu entre 1952/53 com a música concreta, música eletrônica com fita magnética, e música com espacialização; conseguida principalmente mediante transformadores, geradores, moduladores, magnetógrafos, e multipistas de quatro canais, permitindo uma integração de sons (também ruídos) e a projeção controlada desse material sonoro no espaço acústico.

A segunda revolução mencionada por Stockhausem ocorreu em 1963, através de uma

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expansão para o que ele denomina live electronic;115 utilizanda em muitas composições116 de sua autoria.

A terceira revolução ocorre no seu trabalho composicional Sirius (1975/77) realizada nos estudos WDR na Colônia. Stockhausen menciona a utilização do grande EMS Synthi 100 e uma tabela rotativa de oito canais. “Durante três anos eu tive que reaprender tudo sobre o processo de regulação da formação sonora em tempo real utilizando um complexo equipamento de oito canais” (STOCKHAUSEN, 1986, p. 381 – nossa tradução117)

A quarta revolução ocorre nos anos de 1984 com o desenvolvimento de sistemas de computação e processamento digital; Stockhausen menciona o computador PDP 11 e o sintetizador 4X do IRCAM118. Estes aparelhos mostram algumas das inovações que traziam a utilização de processos digitais dentro da sínteses e manipulação sonora. Como exemplo Stockhausen menciona sua peça Kanthinkas Gesant (1984) para flauta e música eletrônica, onde foi utilizado um sistema de áudio multicanal de seis pistas. Estes avanços só eram os esboços de uma eminente e massiva modernização das máquinas sonoras.

Finalmente a quinta revolução sucede no meio de uma expansão dos estúdios musicais eletrônicos e sua crescente capacidade de mobilidade e adaptação performática, possibilitando uma maior presença desses aparelhos (sintetizadores, gravadores, filtros, osciladores etc.), dentro do palco ou plateia das salas, ou espaços de concerto. Stockhausen comenta que este poderia ser o maior desenvolvimento em tudo o que ele vinha formulando há quarenta e três anos, evidenciando que dominar os diversos sistemas de sintetizadores demanda grandes habilidades, imaginação e paciência.

A possibilidade de sistemas integrais de manipulação sonora e sua miniaturização, permitiu que todo compositor, de forma individual ou conjuntamente com os intérpretes,

115 Utilização de processamento eletrônico e digital e manipulação sonora em tempo real. 116 Mixtur (1963) para orquestra, quatro geradores de onda senoidal e quatro moduladores em anel. Stop (1964/65) para orquestra dividida em seis grupos: (1) oboé, piano e sintetizador. (2) sintetizador, trompete e violoncelo. (3) vibra-fone, tamtam, clarinete baixo e violoncelo elétrico. (4) corno inglês, sintetizador e fagote. (5) clarinete, violino, harpa e trombone. (6) flauta, fagote elétrico e corno. Hymnen (1966/67) conformada pela gravação e manipulação eletrônica de diversos hinos nacionais os quais são transmutados mediante processos de sínteses e colagem sonoro, com a participação de solistas. 117 Original: “For three years I had to relearn everything about regulating sound-formation processes in real time and utilizing highly complex eight-track equipment” (STOCKHAUSEN (1986) em SCHWARTZ, CHILDS, 1998, p. 381). 118 Sobre o IRCAM: Institut de recherche et coordination acoustique/musique. Paris, França (1975) baixo a direção do compositor Pierre Boulez com a colaboração de Jean-Claude Risset, Luciano Berio, Vinko Globokar e Max Matthews.

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realizassem um trabalho intrínseco e sincrónico de produção sonora em tempo real. O caso de Stockhausen como compositor e pesquisador, foi um marcado interesse pela renovação e desenvolvimento das diferentes ferramentas de processamento, e sua interação em simbioses com a prática instrumental; Nesse sentido o compositor menciona sua evolução desde sistemas analógicos e elétricos de síntese e gravação, passando por um processo de miniaturização e evidente transportabilidade das unidades de síntese e gravação; exemplo dessa evolução são suas peças: Gesang der Jünglinge119 (1955/56). Hymnen (1966/67). Telemusik120 (1966), Spiral121 (1969), chegando até Evas Zauber122 (1985) onde se foram utilizados diversos sintetizadores analógicos. No seu texto, Stockhausen detalha a complexidade dos equipamentos para cada um dos três conjuntos de sintetizadores utilizados em Evas Zauber: Sintetizador (1): o sintetizador PPG Wave 2.2 operado por um teclado máster Oberheim XK1, e o sintetizador Prophet VS, permitindo em Split a seleção de quatro programações diferentes, todos em conjunto com o Roland digital effects processor DER-3. Sintetizador (2): dois Yamaha DX7-II FD, um modulo de sampling CASIO FZ1, e um sistema de efeitos ART ProVERB. Sintetizador (3): usando os sintetizadores Oberheim XPANDER com teclado máster XK1 e um sintetizador Yamaha DX7-II.

Podemos observar um desenvolvimento exponencial das possibilidades em equipamentos de síntese, de efeitos e gravação a partir dos anos 1980 graças ao emprego de transistores e o desenvolvimento da programação em computadores. Stockhausen apresenta no seu curto texto um panorama amplo da evolução daquelas tecnologias no seu próprio trabalho; o mesmo que foi afetando suas próprias afirmações sobre a tecnologia musical, dirigindo sua pesquisa para uma exploração dentro desse campo de sistemas, módulos e equipamentos. No final do seu texto lemos:

119 Peça composta utilizando geradores de tom senoidal, geradores eletrônicos de pulso e filtros de ruído branco em conjunto com elementos vocais de meninos utilizando vogais, fonemas e estruturações espectrais. 120 Telemusik é uma peça composta inteiramente de processamento eletrônico em conjunto com material sonoro nativo tradicional idiomáticos. Composta nos estudos NHK em Tokyo a peça mistura gravações de música cerimonial clássica japonesa, além de outras manifestações nativas tradicionais do seu repertorio privado. “a mensagem inequívoca é de uma unidade oculta entre o mundo musical de tradições nativas que pode ser claramente integrado a traves da mediação do compositor e o processo sonoro eletrônico” (MACONIE, 1990, p. 176). 121 Para leitor solo, campanas de templo japonês, uma pequena onda recebida pela performance e processada num aparelho de multi-delay. Duração inespecífica. 122 Um projeto composicional e de espacialização criado para quatro canais nos estúdios WDR na Colônia. As utilizações de cenas acústicas criadas com materiais sonoros procedentes de diversos contextos da vida cotidiana são compostas em conjunto com solo de flauta, coro de crianças, percussão e três sintetizadores realizada, tocando o cantando em diferentes “cenas sonoras” identificando processos de imitação, e transformação progressiva da estrutura sonora.

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Em todo meu trabalho composicional eu me senti constantemente como um estudante no limiar de novos desnvolvimentos na prática instrumental. Não é comum que um fale publicamente sobre o continuo avanço diário deste métier, mas esta experiência crucial deveria também transformar a consciência daqueles que tenham se mal informado em torno da nova composição (STOCKHAUSEN, 1986, p. 383 –nossa tradução123).

II. As máquinas de manipulação sonora analógica e sua progressiva digitalização

na música experimental

O que foi formulado anteriormente por Stockhausen (1985) pode ser observado como um resumo sobre a evolução da manipulação sonora analógica e o início de sua digitalização; nesse sentido, representa um ponto de vista fundamental, mas inconcluso; embora atinja grande parte das inovações ocorridas na manipulação sonora entre 1950 até 1980 na Europa, não menciona a importância e a contribuição de outros pontos geográficos que também participaram na contextualização da máquina (eletrônica/digital), a criação do computador e de plataformas como os laptop, num percurso que se transporta até a contemporaneidade, nossas potencialidades tecnológicas em manipulação e interação sonora e os compositores que participaram no processo para desenvolver a experimentação musical.

A inclusão do fonograma e a radio na primeira metade do século XX como geradores do material sonoro seriam expostas pelo compositor Max Butting, no seu artigo intitulado Music of and for the Radio onde formula que:

As sonoridades das composições tradicionais haviam sido efetivamente planejadas para a sala do concerto, e uma vez que os alto-falantes do rádio modificam as características dos sons, seria preciso que as músicas destinadas ao meio radiofônico fossem pensadas especialmente para isso” (BUTTING apud IAZZETTA, 2009, p. 138).

As potencialidades dos estudios de gravação e produção de música experimental, proliferaram desde começos da década de 1960. Algumas das características destes

123 Original: “In all my compositional work I constantly feel that I am a student on the threshold of a new development in instrumental practice. One does not normally talk in public about ongoing daily advancement of this metier, but such crucial experiences should also transform the awareness of those who ill-informedly hold forth on new composition” (STOCKHAUSEN, 1986, p. 383)

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laboratórios de produção sonora incluíam uma mixer124para fita magnética, microfones, unidades de reverberação, osciladores, geradores de pulso, geradores de ruído, moduladores em anel, e variedades de filtros sonoros125. Para esse período podemos mencionar, além do estúdio NWDR na Colonia, ou GRM no Paris, outros laboratórios sonoros funcionando como: a radio Nipoon Horo Kyokai (NHK) estúdio em Tokio, fundada em 1954 por Toshiro Mayazumi; o Studio of Experimental Music em Polonea: Warsaw, estabelecido em 1957; em Holanda o Institute of Sonology em Utrecht, estabelecido em 1964 pela Philips Laboratories, que seria uma extensão do estúdio Philips em Eindhoven126 fundada oito anos antes por Henk Badings, onde foi composta a peça de Varèse Poème électronique (1958). Por outro lado, o estúdio GRM em Paris continua com sua própria pesquisa primordialmente com materiais concretos de gravações.

Na América do Norte podemos encontrar importantes centros de pesquisa sonora e estudos musicais. Lá foi a academia, e não fontes privadas ou governamentais, as quais se interessaram pelo desenvolvimento e pesquisa de ferramentas de manipulação sonora; entre os principais pode-se mencionar: o Experimental Music Studio da Universidade de Illinois fundada em 1958 e dirigida pelo compositor americano Lejaren Hiller e o Columbia- Princeton Electronic Music center estabelecido pelos compositores Luening, Ussachevsky e Milton Babbitt em 1959.

O compositor Elliot Schwartz e o pesquisador Daniel Godfrey no seu livro Music since 1945: Issues, Material and Literature colocam uteis informações para que possamos compreender o alcance que teve o paradigma laboratorial através das máquinas, e sua clara influência na música experimental de diversas partes do mundo; explicando que na América do Norte, sucederam algumas das descobertas mais significativas em termos tecnológicos e grandes avanços na construção de instrumentos musicais, conhecidos como voltage-controller synthesizer127. Ditas afirmações podem ser complementadas pelos apontamentos de Fernando Iazzetta, sendo pertinentes para explicar de forma concisa o desenvolvimento de instrumentos eletrônicos pioneiros como:

124 Mesa de som que seleciona entre dois e até quatro canais separados de gravação. 125 Efeitos e filtros como compressores, eq, distorções, gates, chorus-flanger-phaser, loop estation, etc. 126 Cidade no sul dos Países Baixos. 127 Sintetizadores de Voltagem Controlada

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Telharmonium, Theremium, Trautonium e ondas de Martenot foram desenvolvidos para a performance musical, imitando o funcionamento dos instrumentos tradicionais, os primeiros sintetizadores produzidos para a música eletroacústica eram voltados apenas à geração de sons para alimentar o trabalho de composição. Muito mais geralmente ocupavam espaços enormes, eram extremamente caros e de manipulação bastante difícil. (IAZZETTA, 2009, p. 165)

Schwartz e Godfrey (1993) explicam que o primeiro sintetizador criado nos estúdios da Columbia Princeton foi conhecido como o RCA Mark II, que foi instalado em 1959, e ocupava as paredes de toda uma sala completa; foi operado principalmente por Milton Babbit quem foi um dos poucos em trabalhar e dominar aquele sintetizador. Soluções mais viáveis, foram possíveis em 1960 com os avanços da eletrônica na construção de circuitos mediante componentes estáveis, incluindo transistores, que começariam a ser utilizados como ganho de sinal ao invés dos tubos de vacum. A principal consequência foi que aparelhos como osciladores, filtros, envelopes dinâmicos e amplificadores de sinal podiam ser acoplados em módulos menores. “Estes módulos podiam se conectar entre eles num processo conhecido como controle de voltagem. Podemos mencionar o trabalho de Donald Buchla e sua Electric Music Box no Tape music Center em San Francisco (1966); em Nova Iorque o inventor Robert Moog aperfeiçoava seu Moog Synthesizer System (controladores de voltagem); na Itália o engenheiro Paolo Ketoff tinha construído o modulo Syn-Ket, relativamente pequeno e flexível à adaptação das unidades de tensão controlada cuja mesa altamente portátil feita exclusivamente para performance ao vivo.

Os fatos históricos presentados anteriormente, foram fundamentais para compreender como a digitalização dos processos de gravação e manipulação sonora, começariam a se reafirmar a presença do computador como ferramenta “alquímica” para o desenvolvimento das artes experimentais (performance e multimídia) e seu papel fundamental na música experimental. Este início é descrito por Iazzetta afirmando que no final dos anos 1950 os primeiros experimentos com síntese digital requeriam computadores extremadamente grandes e de manipulação complexa. “Os trabalhos pioneiros de Max Mathews com síntese digital nos laboratórios da Bell Telephone já no final dessa década representam o início de uma revolução nos modos de produção e manipulação do som” (IAZZETTA, 2009, p. 166). Em 1962, Mathews desenvolve uma máquina-computador128 chamada MUSIC4, a primeira

128 O termo maquina-computador, expressa o processo na qual a máquina (elétrica, mecânica, analógica) ganha um cérebro, que pode ser programável para realizar funções diversas (programação computacional, código binário, electrónica).

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linguagem de computação musical; embora tinha sido complexo e pouco eficiente, diversos compositores trabalharam naquela plataforma.129 Segundo Schwartz e Godfrey foi o cientista e compositor Lejarem Hiller quem sintetizaria o computador como ferramental composicional musical. Nos anos de 1955, Miller Puckette dava os primeiros sinais de sua inventiva e capacidade na criação de programas de computação musical. Exemplos daquelas experiências são: Illiac Suite (1957). Composição para quarteto de cordas composta pelo computador e realizada por Lejaren Hiller em colaboração com Leonard Isaacson. A mesma que consiste em quatro movimentos onde o computador escreve a composição baseada em tabelas de probabilidade para a distribuição dos intervalos melódicos das quatro vozes. O ritmo no movimento foi determinado por um pulso em ostinato de colcheias; o computador decidia que altura de som estabeleceria à colcheia. (SANDRED, LAURSON, KUUSKANKARE, 2009, p. 2).

Além de Lejarem Hiller podemos mencionar as contribuições de Iannis Xenakis ajudando a calcular as massivas complexidades das texturas instrumentais. Xenakis também deu importantes contribuições para a composição musical baseada em leis de probabilidades, teorias do jogo, Cadeia de Markov, álgebra de Boolean e outros sistemas matemáticos. Schwartz e Godfrey explicam o trabalho de Xenakis na peça Metastasis (1954):

As nuvens ou clusters de atividade em sua música às vezes comprometem literalmente milhares de sons individuais; fórmulas matemáticas permitiram a Xenakis especificar a forma, densidade e comportamento da textura global, deixando as inúmeras notas, durações e articulações para que sejam calculadas pelo computador (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 348 – nossa tradução130).

Dessa forma chegamos a fundação de uma das mais conhecidas instituições de pesquisa sonora-musical do ocidente. Em 1975 Jean-Claude Risset junto com Pierre Boulez fundaram o IRCAM (Institude de Recherche et Coordination Acoustique/Musique) em Paris, que se converte em referência fundamental nas pesquisas de música computacional, tecnologia e performance. Schawartz e Godfrey se referem ao IRCAM da seguinte forma:

129 James Tenney, Jean-Claude Risset, Hubert Howe e Godfrey Winham. 130 Original: “The clouds or clusters of activity in his music sometimes comprised literally thousands of individual sound; mathematical formulas permitted Xenakis to specify the shape, density, and behavior of the overall texture, leaving the innumerable notes, durations, and articulations within it to be calculated by the computer. (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 348)

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IRCAM é um centro a nível mundial em todos os sentidos: compositores de diversas nacionalidades estiveram lá. Os Americanos em particular, como John Chowning e Max Mathews, tiveram um papel central na fundação de uma institucionalidade, usando computadores americanos PDP-10 e PDP-11 (de Corporações de Equipamento Digital) e linguagens de programação musical MUSIC4 e MUSIC5. Desde então, compositores americanos teriam continuamente presença dentro do IRCAM. (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 351 – nossa traduçao131)

Durante a década de 1970 continuariam se desenvolvendo sistemas híbridos de computação e eletrônica, mas foi chegando a década de 1980 os computadores e pequenos sintetizadores digitais começariam a ser utilizados, dando forma à pesquisa da denominada computação musical, um concepto fundamental para a progressiva diversificação dos meios de criação composicional e performance que estaria por vir. Segundo Schwartz e Godfrey (1993) um aspecto significativo representa o timbre do “som do computador”, a mesma que estaria fundada a começos de 1980 como sínteses aditiva, onde cada som é formado pela combinação ondas senoidais de diferentes frequências, conseguindo a síntese de complexas estruturas de timbre. Este processo de sínteses oferece um alto nível de controle sobre o color do som; mas também, pela sua natureza de constituição artificial, seu resultado audível tomaria uma referência de som não-natural; os sons sintetizados dos anos 1980, as vezes apresentavam qualidades típica dos geradores computacionais de som. Pelo contrário, a sínteses subtrativa, elimina frequências especificas de elementos sonoros espectralmente complexos e ressalta outras frequências para conseguir o timbre desejado.

Sistematicamente as plataformas digitais (computadores) foram se fazendo menores, mais rápidos e mais amigáveis para seu uso permitindo maiores desenvolvimentos tecnológicos em menor tempo. A versão desenvolvida pelo pesquisador Barry Vercoe no Massachusetts Institute of Technology (MIT) do sistema MUSIC360 do IRCAM foi o MUSICA11 podia funcionar em computadores menores e menos custosos como os PDP 11, levando a síntese digital para os estúdios musicais pequenos.

Em Paris, Xenakis estava projetando a ideia de processos de interação, do computador para performance em tempo real. Nesse sentido em 1966 funda um centro para estudar as

131 Original: “IRCAM is a world center in every sense: composers form many countries have worked there. Americans in particular such as John Chowning and Max Mathews, played a central role in the institute’s founding, using U.S. – built PDP- 10 and PDP-11 computers (from Digital Equipment Corporation), and MUSIC4 and MUSIC5 programming languages. Since then, composers from America have continued to be a sizable presence at IRCAM” (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 351)

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matemáticas e sistemas de música ‘automática’ (Centren d’Etudes de Mathématique et Automatique Musicales) chamado também CEMAMu. Nos começos da década de 1980 três sistemas estariam já funcionando com pesquisas focadas com interação computador- performance. O sistema UPIC de Xenakis deu como resultado a peça para fita magnética Mycenae A (1978/80). No centro de pesquisas musicais da Universidade de Colgate em Hamilton, Nova Iorque, o pesquisador Dexter Morrill experimentava com configurações permitindo tocar com o computador criando padrões rítmicos que interagiam nos impulsos melódicos do performer.

Essa demanda por sistemas de computação musical interativa também atingiu ao IRCAM; desde meados de 1970 foram desenhadas máquinas musicais interativas como o 4A, 4B, 4C e 4X, que funcionavam com um computador DPD-11. O jovem pesquisador Tod Machover, Diretor de Pesquisa Musical de aquela época (1975-1980) usou as maquinas 4A e 4C para duas de suas mais famosas peças: Light (1979) para dois computadores geradores de fita magnética e catorze instrumentos e Soft Morning, City! (1980), para soprano, contrabaixo e computador produzindo fita magnética (computer tape).

Progressivamente potentes componentes eletrônicos como microchips, os quais já tem incluídos vários dentro deles osciladores digitais e geradores de ruído, deixando a necessidade de digitalizar as frequências de onda de osciladores análogos. Isto trouxe diversos avanços explicados por Schwartz e Godfrey (1993) como as capacidades e características que os instrumentos musicais elétrico-computacionais foram adquirindo durante a década de 1980: (1) Computadores com desenhos simples e capacidade de armazenamento (em discos externos floppy) onde eram guardados patches (programas específicos). (2) Teclados de piano e interfaces para assinar controladores como afinação, ataque, volume, vozes simultâneas, resposta dinâmica das teclas etc. (3) Geradores de envelopes digitais, filtros e outros processos de manipulação sonora, incluindo módulos de efeitos de reverberação, eco, pitch shiffting, chorus, e time compression.132 (4) Processamento do som em tempo real mediante

132 Pitch Shifting modula todas as frequências componentes de um som em equivalência igual, criando covos rádios harmónicos e novos timbres; chorus faz que uma voz só soe como se fosse um ensamble dessas vocês em uníssono, e time compressing aumenta a velocidade sem mudar a altura, algo que a fita não consegui. (SCHWARTZ, GODFREY, 1993, p. 357)

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pedais ou controladores de sopro (onde o performer respira) para criar glissandos, alterar o tempo, o volume, o timbre, as modulações, vibrato e outras variáveis. (5) Sequenciadores multicanal, capazes de memorizar as notas digitadas no teclado são reproduzidas de forma imediata. (6) Síntese Aditiva, onde o timbre de cada voz pode ser facilmente programável usando ondas senoidais para criar espectros harmônicos. (7) FM (Síntese de Modulação de Frequência) onde a frequência de um oscilador pode ser modulada por outro ou vários outros osciladores de acordo com algoritmos ajustáveis, resultando em sidebands (soma e subtração de frequências) e funcionam como harmonia do som principal. (8) Sampleamento do som a um hard disk, onde os fragmentos de som gravado de forma digital podem ser transformados em loops (repetições continuas), revertidos, multiplicados, transpostos, filtrados, modulados, guardados dentro de um disco floppy e utilizados num apertar de botão. (9) Um crescente avanço nos display de vídeo para edição de notação musical, aliasses sonoro ou edição de som. (10) MIDI (Musical Instrument Digital Interface) sendo um sistema de comunicação (protocolo computacional), que permite uma interconexão entre diferentes aparelhos ou módulos digitais, criando redes de instrumentos e unidades digitais, além de computadores, funcionando em conjunto.

Os apontamentos de Fernando Iazzetta são fundamentais para compreender nosso momento contemporâneo tecnológico diante da música experimental. Ele explica como uma família de diversos instrumentos musicais baseados em programas de computação (software) foram sendo desenvolvidos a partir de 1960; desde o desenvolvimento do Music N por Max Mathews; o ambiente de programação CSound por exemplo é utilizado desde a década de 1990 com uma arquitetura baseada nos programas de Mathews. O programa Max criado por Mathews se convertendo numa ferramenta digital poderosa e de fácil acesso para o usuário musical comum. “Lançado comercialmente em 1990, a partir de um projeto iniciado alguns anos antes no IRCAM, Max é um ambiente de programação baseado em objetos gráficos que podem ser interconectados pelo usuário para produzir programas complexos” (IAZZETTA, 2009, p. 188). Em 1997 é lançada a versão MSP (Max Signal Processing) desenvolvido pelo pesquisador Miller Puckette no IRCAM que foi comercializado inicialmente pela empresa OPcode, posteriormente desenvolvido em 1999 e comercializado pela empresa Zicarelli, Cycling’ 74. Iazzetta menciona que este sistema foi adotado de forma natural por

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compositores interessados em realizar processos musicais interativos.

O uso de programas como Max/Msp, instalados em computadores portáteis, trouxe toda a tecnologia do estúdio eletroacústico para o palco, com a vantagem de que os processos – não apenas de síntese e processamento sonoro, mas também de geração de estruturas musicais – podiam ser realizados em tempo real (IAZZETTA, 1993, p. 188)

As conclusões de Iazzetta explicam a existência de um grande esforço, a partir de 1990 por criar relações interativas entre o computador e o performer, permitindo a integração, mediante processos computacionais e sistemas de controladores e sensores, captar as ações (sonoras, gestuais) do performer para transforma-los em dados processados pelo computador, as vezes de forma autónoma. Iazzetta menciona que o concerto tradicional esteve apoiado sobre as dimensões do ritual gerado exclusivamente pela orquestra, tendo uma ruptura com o aparecimento progressivo das máquinas de manipulação sonora entro do palco, chegando a música eletroacústica, presindir de qualquer performer presente. O trabalho laboratorial dos estúdios de gravação e experimentação sonora foram integrando a eletroacústica com o performer para ser mediada pelas potencialidades dos alto-falantes, criando uma espécie de cooperação e relação entre a performance instrumental e a máquina. “A partir de 1980, com a reintrodução dos intérpretes no palco ao lado dos equipamentos eletrônicos, naquilo que se convencionou chamar de música eletroacústica mista” (IAZZETTA, 2009, p. 204); o acontecimentos posteriores ocorridos na música experimental a partir de 1985, estariam focados na procura e criação de sistemas interativos, que permitissem uma maior vinculação entre o performer, o público, a espacialidade sonora e o compositor (que em muitos casos operava os processos computacionais). Todos estes processos encontrariam conexão com outras mídias, o vídeo, a dança, o teatro, a ópera, dialogavam com processos de estruturação e produção computacional, numa espécie de mágica interconexão.

Alguns apontamentos formulados por Iazzetta colocam em evidencia um tipo de misticismo que traria o computador, como ente regulador dos processos estruturais da performance, do momento ritual; experiências que podem ser comparadas com as suscitadas o redor da misticismo do xamã133; abrindo para nós uma porta para dialogar e discutir se as alegorias referidas por Iazzetta (no contexto do computador como reestruturador da magia

133 Neste casso temos um contato ideal do xamã, o mesmo que pode ser entendido a breves rasgos como ente transdutor do momento cotidiano para o ritual-espiritual, ou neste casso, para um estado de profunda escuta e hipersensibilidade. A ideia ritualística do xamã esta baseada no misticismo envolvido em suas técnicas, assim o computador traz para o palco a ilusão de um misticismo promovido tecnologicamente.

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performática) que poderiam ter relação material e não subjetiva com a prática da música experimental. Nesse sentido Iazzetta escreve:

O laptop recoloca essas questões do ritual e do espectador sob outro prisma. Emblema tecnológico na primeira década do século XXI, essas pequenas caixas-pretas são como uma espécie de altar em que o operador desenha um papel de sacerdote e a audiência mantém sua posição de devoção e admiração. A performance é o rito sagrado em que o operador transforma-se em xamã manipulando poções feitas de bits e bytes. Como em qualquer culto, embora todos participem, apenas os iniciados realmente têm acesso aos códigos-fonte da magia. Os números e símbolos que habitam a tela só fazem sentido para o músico, ao passo que os ouvintes imaginam que deve haver uma grande sabedoria por trás dos rápidos movimentos do mouse (IAZZETTA, 2009, p. 204)

Podemos finalizar deixando em evidencia que o desenvolvimento do computador como ferramenta de manipulação e criação sonora, prontamente foi se expandindo para a criação de espaços multimídia interativos dentro da performance, incluído manipulação de vídeo e áudio em tempo real. A dissertação de mestrado do músico e pesquisador Vitor Kisil (2009) intitulada A Performance enquanto elemento composicional na música eletroacústica interativa apresenta bons exemplos de processamento sonoro e síntese em tempo real mencionando a peça Jupiter (1987) de Philippe Manory, a mesma que trabalha “de forma bem definida com as ferramentas interativas, e, ao invés de apenas buscar o que os músicos fazim no palco, utilizou o sistema para gerar uma grande diversidade de resultados musicais” (KISIL, 2009, p. 213). Outra peça que involucra composição auxiliada pelo computador (software) é Voyager (1988) desenvolvido pelo músico George Lewis; esta “composição consiste basicamente na criação de um grupo de instrumentistas virtuais que se comportam como improvisadores reagindo com o músico no palco (KISIL, 2009, p, 214); ou processos multimídia como a peça The Brain Ópera (1996) do compositor Tod Machover e sua equipe de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) Media Lab; dessa maneira Kisil coloca claros apontamentos sobre esta peça:

Em The Brain Opera, de Tod Machover e diversos colaboradores, observamos um uso bastante distinto, em relação à tradição de concerto, improviso, experimentação, acaso, ouvinte, intérprete, compositor, obra, partitura, entre outros. Neste caso, a composição musical constituiu basicamente na criação de macroestruturas que permitiam a liberdade dos performers, público e internautas, em três situações distintas (pela internet, pela experimentação de instalações sonoras e pelo concerto). A performance em seu conceito ampliado, passa a ser um dos mais importantes elementos composicionais (KISIL, 2009, 214).

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III. Música Experimental na América do Sul: uma revisão histórica

Em nossa pesquisa, destacamos o termo música experimental, desenvolvido nos capítulos anteriores, em especial a partir de 1950, e apresentamos diferentes plataformas de criação musical (Música Eletroacústica, Improvisação Livre, Event Scores, Live Electronics, Música Multimídia) que se relacionam principalmente com o uso de tecnologias sonoras, uso de mídias fixas (gravadores, fitas, computadores, componentes eletrônicos e alto-falantes) e estratégias de composição experimental (improvisação livre, event-score, música computacional), fundamentadas principalmente desde sua visão na Europea e na Norte Americana. Essa perspectiva será visualizada desde a perspectiva dos compositores de América do Sul, que foram os precursores na constituição da prática/pesquisa da experimentação musical, trabalhando na criação e desenvolvimento de instituições de educação e experimentação, além de obras que fundamentam essa prática na América do Sul desde a década de 1950. Para esse propósito, se mostra indispensável analisar os trabalhos dos compositores e pesquisadores Ricardo Dal Farra (2010) e Igor Lintz Maués (1989), entre outros, que exploraram a produção musical experimental na América do Sul.

O trabalho de Ricardo Dal Farra (2010)134, em especial, é indispensável para nossa pesquisa devido a quantidade e qualidade de informações e material audiovisual, publicados pelo compositor (em parceria com a Foundation Daniel Langlois135), fruto de um trabalho de pesquisa iniciado 1970 e publicado no 2010. Este trabalho, de livre acesso na internet, contempla compositores e peças eletroacústicas produzidas na América do Sul e na América Central. O trabalho de compilação dos trabalhos em música eletroacústica realizados na América Latina, por Dal Farra (2010) se depara com dificuldades como a falta de registro dos trabalhos eletroacústicos e uma inexistente catalogação ou distribuição sobre o trabalho dos compositores latino-americanos e suas obras. Na tentativa de superar esses desafios, Dal Farra se dedica a coletar e reunir gravações da música eletroacústica produzida no continente conseguindo, durante cinquenta anos, completar o acervo de 558 gravações, catalogadas e disponibilizadas para acesso livre.

134 Compositor argentino Ricardo Dal Farra atualmente trabalha como professor no Departamento de Música na Universidade de Concordia (Montreal). É fundador e diretor do Electronic Arts Experimenting and Research Center (CEIArtE) em Buenos Aires; é pesquisador em The Daniel Langlois Fundation na Canada e da UNESCO na França. Suas composições têm sido interpretadas de 40 cidades no mundo todo e tem lançado 18 trabalhos discogreaficos internacionais. (BLACKBURN, 2011) 135 Para maiores informações acessar ao link: http://www.fondation-langlois.org/html/e/

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O texto El Archivo de Música de Compositores Latinoamericanos de Dal Farra (2010), e o acervo de gravações, vídeos e fotografias, se configuram como registro das primeiras iniciativas de música experimental na América do Sul. Nesta região, a criação musical experimental (com meios tecnológicos ou uso de indeterminismo) despertou notável interesse em compositores, que a partir da década de 1950, começaram por explorar as possibilidades criativas propostas na Europa e na América do Norte.

Embora muitas obras para fita magnética, peças mistas e inclusive trabalhos de live electronics tinham sido extraviados ou danificados, Dal Farra (2010) conseguiu recuperar muito do trabalho pioneiro em gravações de 1950 e 1960, procurando contato com os compositores ou pesquisando nos arquivos dos estúdios de gravação onde foram realizadas as experiências em música experimental. Com o tempo, conseguiria compilar muitos exemplares em diferentes formatos: fita magnética, LP, cassetes de fita, etc., decidindo não só compartilhar os registros, mas promovendo seminários e concertos como primeiras ações de difusão. As informações incluídas na base de dados sobre música eletroacústica na América do Sul, obtidas por Dal Farra (2010) foram conseguidas mediante pesquisas em diversas fontes bibliográficas, notas de programas de concertos e edições discográficas, além de comunicações telefônicas e entrevistas pessoais com alguns dos compositores ou seus familiares.

Desde 1980, começaram formalmente os registros de atividades vinculadas à música eletroacústica na Argentina, por meio de publicações sobre o tema na revista International Computer Music Association136. Na sequência, foram realizados ciclos de programas de radio especializados em música eletroacústica; nesse sentido, se menciona as transmissões realizadas pela Radio Nacional de Argentina e pela Radio Municipal de la ciudad de Buenos Aires, tendo como resultado a produção de um CD com gravações de música eletroacústica de compositores da América do Sul.

Nas décadas de 1980 e 1990, Dal Farra (2010) deu continuidade ao seu trabalho de arquivo de música eletroacústica da América Latina e, finalmente, no ano 2002, foi convidado pela UNESCO para participar de uma série de investigações sobre a música eletroacústica e media arts. Os resultados dessa empreitada foram a criação de dois informes publicados

136 Para maiores informações sobre esta revista acessar: http://www.computermusic.org/

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online durante o ano 2003 na Digi-arts UNESCO Knowledge Portal137. Um dos informes é o Historical Aspects of Electroacustic Music in Latin América: From the Pioneering to the Present Days (2003), onde se observa um número significativo de trabalhos de compositores: 191 da Argentina; 14 da Bolívia, 90 do Brasil; 39 compositores do ; 39 da Colômbia; 5 compositores Costa Rica; 44 de Cuba; 3 da Republica Dominicana; 11 do Equador; 5 do Salvador; 6 da Guatemala; 73 do México; 3 do Panamá; 4 do Paraguai; 15 do ; 27 s do Uruguai e 35 da Venezuela.

As informações fornecidas por Dal Farra foram conseguidas mediante um exaustivo trabalho de procura, organização e estruturação, além da digitalização dos diversos LP’s e fitas magnéticas colecionadas pelo pesquisador. Depois de ter recolhido e digitalizado as obras dos diferentes compositores de América Latina, essas informações fundamentaram a criação do acervo de compositores e música eletroacústica que está disponível na internet pela fundação Daniel Langlois, oferecendo importante registro para compreender a música experimental realizada em nosso continente.

A seguir, destacamos informações sobre compositores, organizações e peças musicais que tiveram um papel relevante na criação do panorama musical eletroacústico do continente sul-americano.

A. Argentina

No texto de Dal Farra: El Archivo de Música Electroacústica de Compositores Latinoamericanos138 (2003) encontramos menção ao trabalho do compositor Argentino Mauricio Kagel139, que compôs oito peças eletroacústicas entre 1950 e 1953; e que, mais tarde, em 1954, compôs a obra Musique de Tour140, sonorização para uma exposição em Mendoza, registrada como uma das primeiras peças de música eletroacústica realizada na Argentina. Outro compositor mencionado por Dal Farra (2010) é o argentino Tirso de

137 Para maiores informações acessar ao site: http://portal.unesco.org/culture/en/ev.php- URL_ID=1391&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html 138 Este artigo foi apresentado em 2003, junto com uma cópia traduzida ao inglês do artigo Historical Aspects of Electroacustic Music in Latin América: From the Pioneering to the Present Days apresentado para a Digi-arts da UNESCO. 139 Buenos Aires - Argentina (1931) – Colônia (2008) 140 Música para la Torre

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Olazabal que, durante a década de 1950, trabalhou em Paris, onde realizou uma obra com meios eletroacústicos intitulada Estudio para Percusión (1957) – para percussão e fita magnética. Olazabal, da mesma forma, organizou em 1958 um dos primeiros concertos de música eletroacústica na Argentina. Em 1959, o compositor Francisco Kröpfl, em colaboração com o técnico Fausto Maranca, fundaram o Estudio de Fonología Musical, na Universidade de Buenos Aires (UBA). Nesse laboratório, Kröpfl compôs seus primeiros trabalhos utilizando sons eletrônicos dentre os quais se destacam Ejercicios y Texturas (1959) e Ejercicio con Inpulsos (1960). Destaca-se também o trabalho do compositor Cesar Franchisena, que trabalhou com fontes eletrônicas e concretas, durante o mesmo período, na rádio da Universidade Nacional de Córdoba, onde compôs uma obra em fita magnética para ballet Numancia (1960). Dal Farra (2010) também cita o compositor Horacio Vaggione141, que começou seu trabalho de experimentação musical compondo peças tal como a intitulada Música Eletrónica I (1960), para fita magnética, além de Ensayo sobre Mezcla de Sonidos, Ceremonia e Cantata I – as três últimas em 1961.

Outros compositores argentinos realizaram trabalhos utilizando meios eletroacústicos em estúdios e laboratórios da Europa e da Norte América. Esse é o caso da compositora Hilda Dianda, que começou a trabalhar com fontes eletrônicas no Studio di Fonologia Musicale da RAI (Rádio e Televisão italiana) onde compôs a peça Dos Estudios en Oposición (1959) para fita magnética. Outro compositor importante nesse contexto é Mario Davidovsky, que teve a oportunidade de realizar várias peças eletroacústicas na Columbia-Princeton Electronic Music Center em Nova Iorque, onde compôs peças como Electronic Study No 1 (1960) e Electronic Study No 2 (1962) – ambas para fita magnética. Nesse mesmo ano, Davidovsky começou a compor uma série de obras mistas sob o nome de Synchronisms, recebendo o prêmio Pulitzer em 1971 pela composição Synchronisms No 6 (1970) para piano e sons eletrônicos.

No ano de 1965 foi fundado o Centro de Música Experimental na Universidade Nacional de Córdoba, que contou com a participação de compositores como Oscar Bazan, Pedro Echarte, Carlos Ferpozzi, Graciela Castillo e Virgilio Tosco. Um trabalho especialmente importante nesse contexto é o do compositor Alcides Lanza que, em 1963, compôs a obra para piano e fita magnética Contrastes, com a participação do compositor

141 O compositor Mauricio Kagel e Horacio Vaggione posteriormente migraram para a Europa onde construíram sólidas carreiras enquanto professores e compositores.

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Armando Krieger. Em 1965, Lanza viaja para os Estados Unidos, especificamente para Columbia-Princeton Electronic Music Center, onde compõe sua primeira obra para fita magnética intitulada Exercises I, começando assim uma carreira de compositor com mais de sessenta obras onde são utilizados recursos eletrônicos e eletroacústicos.

Um fato importante, mencionado por Dal Farra, é a criação do Instituto di Tella, em Buenos Aires no ano de 1958, que levaria, na sequência, à criação do Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales (CLAEM) fundado pelo compositor Alberto Ginastera em 1962. Esse espaço acabou se convertendo em um dos centros mais importantes para os estudos de música contemporânea e experimental na América do Sul, até a prisão de seu fundador por razões políticas em 1970. O CLAEM fomentou o trabalho de estudantes de toda a região, que se dedicaram a realizar composições com os recursos técnicos que o centro oferecia, além de terem a oportunidade de participar de aulas e conferências de prestigiosos compositores como: Luigi Nono, Iannis Xenakis, Bruno Maderna, Aaron Copland, Oliver Messiaen, Vladimir Ussachevsky e Luigi Dallapiccola.

O compositor peruano Cesar Bolaños, que foi bolsista e posteriormente responsável pelo laboratório de música eletroacústica no CLAEM, foi o primeiro a utilizar esse laboratório para compor a peça eletroacústica Intensidad y Altura (1964) para fita magnética. Durante os anos seguintes, Bolaños trabalhou intensamente com meios eletroacústicos, além de adotar o uso de computadores para criar sua música, compondo obras para fita magnética e peças mistas incorporando o uso de recursos de live electronics e elementos multimídia em várias de suas composições, das quais destacamos: Interpolaciones (1966) para guitarra e fita magnética e Alfa-Omega (1967) para dois recitantes, coro misto teatral, guitarra, contrabaixo, três percussões, duas bailarinas, fita magnética, projeções e luzes sincronizadas. Bolaños também trabalhou experimentalmente com computadores junto com o matemático Mauricio Milchberg em 1970 num sistema chamado ESEPCO (estrutura sonoro – expressiva por computador) dando origem a peça ESEPCO II para piano (dois performers) e fita magnética.

O pesquisador Raúl Minsburg no texto Apuntes para una historia de la música Electroacústica (2010) nos brinda com informações referentes à década de 1970 na Argentina. Ele se refere a essa década como “os anos terríveis” começando pelo fechamento definitivo do CLAEM (Centro latinoamericano de altos estudios musicales), principalmente

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devido aos problemas financeiros pelos quais passava o Instituto di Tella, que acolhia o centro. Sua estrutura acadêmica seria transferida para o CICMAT (Centro de Arte en Comunicación Masiva, Arte y Tecnologia) mantendo a perspectiva de outorgar bolsas, mas com a diferença de que essas seriam exclusivas para estudantes nacionais. Entre os estudantes contemplados, estão os compositores Cesar Franchisena, Oscar Bazán, Maria Teresa Luengo, entre outros. O centro funcionou produtivamente com seus bolsistas até o ano de 1973, quando começaram a surgir problemas de financiamento, somados ao fechamento do Laboratório de Fonologia Musical. Em 1976, fecha definitivamente o CICMAT, se transformando num laboratório musical menor, sob a Direção Nacional de Educação Argentina que passaria a ser definitivamente em 1982 parte do Centro Cultural Recoleta, dirigido pelo compositor José Maranzano. Evidentemente, o pesquisador Raul Minsburg (2010) se refere a esses anos como terríveis já que três das principais instituições dedicadas à música experimental foram fechadas, dando espaço à criação de laboratórios e estúdios musicais privados, entre os quais destaca-se o estúdio Arte 11, o mesmo que organizou concertos de música eletroacústica em meados de 1970 em Buenos Aires e o Laboratorio del Centro de Estudos Musicales, dirigido pelo compositor e técnico em gravação Jorge Rapp.

Na década de 1980, o Centro Cultural Recoleta vira novo ponto de criação musical experimental em Buenos Aires devido, principalmente à grande produção de trilhas sonoras e música incidental trabalhada naquela época. Para atender a essa demanda, o centro investiu na renovação de seu equipamento, o que incluiu sistemas controlados por computadores, equipamentos de mixagem e gravação sofisticados, sistemas de amplificação de quatro canais, filtros e efeitos de som, além de um sintetizador Synclavier. Dessa forma, o novo laboratório foi chamado de LIPM (Laboratorio de Investigación y Producción Musical) sob a direção do compositor uruguaio Ariel Martinez desde sua abertura em 1984, passando posteriormente a ser dirigido por Francisco Fröpfl. O laboratório ficou famoso pelo seu curso de composição em meios eletrônicos.

Raul Minsburg (2010) realça o trabalho de Enrique Belloc142 que se desenvolveu como docente e compositor quando assumiu a direção do Departamento de Música de la Ciudad de la Plata, além de ter se tornado catedrático nos conservatórios Juan José Castro e o conservatório Ciudad de Buenos Aires. Dessa forma, Enrique Belloc e Francisco Fröpfl

142 Buenos Aires – Argentina (1836)

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influenciaram toda uma geração que, posteriormente, se veria apoiada pela criação de novos centros e laboratórios de música experimental. Misburg (2010) também descreve uma importante atividade iniciada no interior do país, no Estudio de Fonología y Música Electroacústica (EFME) fundado pelo compositor Ricardo Pérez Miró na Universidad Nacional del Litoral. Também é mencionado por Minsburg (2010) o compositor Claudio Lluán, que esteve na direção do TADMER (Taller de Música Electroacústica de Rosario) da Escuela Nacional de Música de Rosario entre os anos de 1985 e 2006.

Durante a década de 1980 também foram criados festivais de música que movimentaram a cena musical experimental no país, como a Semana Nacional de la Música Electroacústica, organizada a partir de 1985, o Festival Sonoimágenes, Festival Encuentros, Festival de Música Electrónica organizado na cidade de Bahía Blanca na Província de Buenos Aires, o ciclo “Música y Arte Sonoro”;, a Bienal Patagónica de Música de Música Electroacústica y Arte Sonoro organizada na cidade de San Martín de los Andes, as Jornadas Argentinas de Música Contemporánea realizadas na cidade de Córdoba, além dos frequentes eventos e concertos organizados de forma independente.

Durante a década de 1990, se projetam diversas instituições que fomentaram na Argentina a música experimental, principalmente na província de Buenos Aires. Além disso, a partir de 1950, se dá a criação de diversas universidades Nacionais que acolhem laboratórios e centros especializados em música eletroacústica, dentre as quais podemos destacar a Universidad Nacional de Quilmes, a Universidad Nacional de Lanus, e a Universidad Nacional de Tres de Febrero, instituições que abrem o caminho para cursos ou núcleos de pesquisa que se dedicam à criação musical experimental e eletroacústica.

Tendo apresentado um panorama da experimentação musical na Argentina, passamos para um levantamento de informações similares dentro Brasil, foco importante desta prática musical na América do Sul.

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B. Brasil

Para apresentar um panorama histórico sobre as ressonâncias da música experimental no Brasil utilizamos os apontamentos e formulações do compositor austríaco-brasileiro Igor Lintz Maués, que concluiu em 1989 sua pesquisa de mestrado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo o trabalho intitulado Música Eletroacústica no Brasil: Composição utilizando o meio eletrônico. Outro livro importante para nossa pesquisa é The International Electronic Music Catalog (1968), editado por Hugh Davies, onde encontramos uma lista dos diversos compositores que trabalharam na música eletroacústica, incluindo nomes de compositores brasileiros, mas sem aprofundar nos seus trabalhos.

De forma similar a Dal Farra (2010), Maués (1989) argumenta que existe uma produção bibliográfica limitada sobre o tema, apesar da produção significativa de obras eletroacústicas no país. As diversas informações levantadas por Maués (1989) sobre peças e compositores vem da pesquisa com um número considerável de fonogramas, além de textos como: Catálogos de Obras de Compositores Brasileiros (1975 – 78), editado pela Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, Music in Latin América: an introduction (BÉHAGUE, Gerald, 1979) e The Music of Brazil (APPLEBY, David, 1983), sendo estes textos fundamentais para o pesquisador no seu esforço por construir um marco relevante sobre a música experimental brasileira.

Maués (1989) afirma que o desenvolvimento da vanguarda musical da década de 1950 na Europa foi um detonador importante para o despertar da música eletroacústica no Brasil que, antes disso, não apresentava registros prévios de alguma tentativa de experimentação sonora. O que existe, nesse sentido, são referências de Mário de Andrade, na década de 1930 a um instrumento eletromagnético, o theremin, afirmando que o seu valor se concentrava no fato de ser um instrumento novo, que poderia se juntar a qualquer orquestra já existente. Mas é evidente, segundo Maués (1989), que, para aquela época, tendo em vista a força do movimento nacionalista e populista dos compositores brasileiros, a postura frente aos novos procedimentos e ferramentas tecnológicas (ainda primárias) de composição foi de desconcerto e desconfiança, utilizando apenas o fonógrafo para a gravação de manifestações musicais folclóricas ou indígenas, sem iniciativas de criação de material composicional.

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O pesquisador Maués (1989) afirma que a primeira iniciativa de procura por novos meios de criação musical, e especificamente, o emprego de material sonoro eletrônico, vem do grupo Música Viva, a partir de 1940, fundado pela iniciativa do compositor alemão Hans- Joachim Koellreutter. As atividades desse grupo se configuram como uma das primeiras manifestações de experimentação musical no Brasil, procurando se afastar, aos poucos, das estéticas nacionalistas daquela época. Nesse contexto, Maués (1989) menciona o Manifesto Música Viva, publicado em 1946, que previu a forma pela qual a música eletroacústica se estabeleceria poucos anos depois, na França e na Alemanha:

Compreendendo que a técnica da música e da construção musical depende da técnica da produção material, propõe a substituição do ensino teórico- musical baseado em preconceitos estéticos tidos como dogmas, por um ensino científico baseado em estudos a pesquisas das leis acústicas, e apoiará as iniciativas que favoreçam a utilização artística dos instrumentos radioelétricos (MARIZ, 1983, p. 236).

Maués (1986) considera instrumentos radioelétricos: geradores de onda e ruído, filtros, amplificadores, máquinas de gravação e transmissão. Esses equipamentos foram utilizados para as transmissões de rádio do grupo Música Nova, a partir de 1944, através da Rádio MEC do Rio de Janeiro. Mesmo assim, o próprio compositor Koellreutter trabalharia anos depois, especificamente na década de 1960 quando finalizou a composição Sunyata (1968) para flauta, orquestra e fita magnética, sendo este compositor e pesquisador um dos principais personagens para o estabelecimento de "uma tradição experimental que seria mais tarde fundamental para o desenvolvimento da pesquisa eletroacústica no Brasil" (MAUÉS, Igor, 1989, p. 2).

Continuando com os apontamentos fornecidos por Lintz Maués (1989), observamos que um dos compositores pioneiros da música eletroacústica propriamente dita no Brasil foi o compositor Reginaldo de Carvalho, que começou seus estudos em composição com o compositor Heitor Villa-Lobos. Posteriormente, no início da década de 1950, ele daria continuidade a seus estudos no exterior, especificamente em Paris, França, com os compositores Paul le Flem e Olivier Messiaen. Nesta cidade, ele também começou a participar de diversas oficinas na área de pedagogia da Universidade de Sorbonne, além de trabalhar como estagiário no estúdio experimental da Organização de Radiodifusão e Televisão Francesa (ORTF), sob a orientação do compositor e pesquisador Pierre Schaeffer. Entre 1956 e 1959, Reginaldo Carvalho retornou ao Brasil para criar um Estúdio de

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Experiências Musicais no Rio de Janeiro, dando origem às primeiras composições eletroacústicas do país. Daquele período, se encontram mencionadas algumas peças de estudos de música incidental como, por exemplo: Si bemol (1956) com duração de 1 minuto e 13 segundos; Temática (1956) e as duas peças Troços (1956 e 1957), todas utilizando sons do piano gravados e manipulados como material sonoro para um só canal (monofônico). Posteriormente, o compositor trabalharia com materiais como o vidro e a madeira; nesse sentido, compôs dentro do Estúdio de Experiências Musicais no Rio e posteriormente em Brasília as peças Estudo I (1958), utilizando vidro como material de gravação e manipulação, e Estudo II (1959) utilizando madeiras.

Maués (1989) aponta que no início da década de 1960, a recentemente construída cidade de Brasília se tornou ponto de encontro dos compositores experimentais daquela época. Procurando fundar um estúdio musical destinado à pesquisa e à produção da música eletroacústica, além de incentivar atividades acadêmicas, Reginaldo de Carvalho mudou-se para Brasília em 1960, conseguindo criar um núcleo de experimentação musical, que envolveu diversas instituições da cidade, como o Centro de Estudos Musicais Villa-Lobos, os Departamentos de Música e de Eletrônica da Universidade de Brasília e a Rádio Educadora onde continuou com a composição com materiais, dando origem às peças Estudo III (1963- 64), que utilizava o barulho da água, e o Estudo IV (1964), que utilizava plástico, sendo esta última composta de forma estereofônica (duas pistas). Desse período é também sua primeira composição eletroacústica mista intitulada Alegria de Natal (1963–4) para coro misto e fita a duas pistas.

Seguindo com as informações históricas apresentadas por Maués (1989), podemos mencionar o grupo de compositores voltados para a experimentação musical no Departamento de Música da Universidade de Brasília, como os compositores Claudio Santoro, que foi o fundador do departamento em 1962 e, junto com ele, os compositores Damiano Cozzella e Rogério Duprat, que realizaram diversos happenings e manifestações de música aleatória. Provavelmente alguns desses eventos tenham envolvido recursos eletroacústicos, mas não foram documentados. Infelizmente, o desmantelamento do departamento de música da Universidade de Brasília provocou a interrupção dos programas de pesquisa realizados em música experimental. Como resultado, os compositores que trabalhavam no Departamento de Música passaram a procurar outros lugares para dar

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continuidade a seus estudos e experiências em música eletroacústica. Dessa forma, Reginaldo de Carvalho voltou para o Rio de Janeiro, enquanto Claudio Santoro viajou para o exterior. Os compositores Cozzella e Duprat se movimentaram para São Paulo, encerrando, assim, a primeira iniciativa em música experimental de Brasília143.

Com relação ao trabalho de Carvalho logo após sua saída de Brasília, Maués (1989) afirma, através de informações dadas pelo compositor e pesquisador Rodolfo Caesar, o seguinte:

De volta ao Rio de Janeiro, Reginaldo de Carvalho estabelece outro estúdio privado, que chama de "Estúdio de Música Experimental" (EME). Ali produz em 1966 mais alguns estudos para fita, agora sempre utilizando duas pistas. Em seguida, nomeado diretor do antigo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico do Rio de Janeiro, muda o nome dessa escola para Instituto Villa-Lobos e faz dela um centro de estudos e divulgação da música experimental. Segundo Rodolfo Caesar (na época aluno do Instituto e mais tarde compositor atuante da música eletroacústica brasileira), Reginaldo de Carvalho, no período em que dirigia o Instituto demonstrava grande preocupação com o futuro da música eletroacústica no país, procurando, portanto, desenvolver nessa escola um ambiente propício para sua prática. O Instituto Villa-Lobos foi um grande centro de divulgação da música contemporânea (...) O trabalho didático desenvolvido no Instituto na época buscava principalmente uma sincronia com a linguagem musical do momento. É do final do período de direção de Reginaldo de Carvalho a importante primeira passagem de Pierre Schaeffer pelo Brasil (1971), quando deu palestras no Instituto, animando a que compositores brasileiros fossem procurar sua orientação e do Grupo de Pesquisas Musicais em Paris (MAUÉS, Igor, 1989, p. 3)

Podemos afirmar a importância do compositor Reinaldo de Carvalho para o início a prática musical eletroacústica no Brasil, principalmente devido a seu trabalho como coordenador e pedagogo em diferentes institutos e departamentos musicais durante as décadas de 1950 e 1970. Maués (1989) afirma ainda que o compositor assumiria, anos mais tarde, a coordenação do Centro de Pesquisas Culturais e Comunicação do Piauí, onde, a partir de 1974, organizou diversos cursos e oficinas de inicialização às técnicas compositivas e aos equipamentos utilizados na música eletroacústica. Além de servir como tradutor144 de textos fundamentais da música contemporânea como A Música Hoje, do compositor francês Pierre Boulez e ter trabalhado na concepção de uma numerosa obra na música incidental eletroacústica, as quais se destacam: Os inimigos não mandam flores (1964); A morte do

143 Retomada, em 1969, pelo compositor uruguaio Conrado Silva. 144 Em colaboração com Mary Amazonas Leite de Barros.

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homem que quis ser livre (1966); Vozes das Nuvens (1965) e Apelo da Montanha (1966).

Outro importante compositor referido por Maués (1989) é Jorge Antunes, que pode ser considerado o pioneiro na utilização de materiais sonoros provenientes exclusivamente de fontes eletrônicas. Poderíamos fazer um paralelo entre o seu trabalho e o de Stockhausen, em Colônia, onde se focou no uso deste tipo de recurso para a composição musical. Antunes montou, no ano de 1962, no Rio de Janeiro, um laboratório destinado a pesquisas utilizando gravadores e alguns aparelhos básicos, incluindo geradores de sinal senoidal e quadrada, filtros e moduladores desenvolvidos por ele, realizando algumas peças eletrônicas. Como parte dessas experiências seria composta em 1962, a primeira peça inteiramente constituída por sons eletrônicos intitulada Valsa Sideral, onde foram utilizados sons senoidais gerados eletronicamente com contínuos ostinatos rítmicos a partir de geradores de modulação de frequência e melodias de diversos timbres. Esta peça foi realizada em dois canais estereofônicos, dando a possibilidade de se realizar a mixagem em estéreo. Na sequência, o compositor reafirmaria seu interesse pelo aspecto sintético da música experimental, em 1965, acunhando o termo de Arte Integral, que deu origem a uma serie de composições chamadas "Ambientes", "Cromofonias" e "Cromoplastofonias". O próprio Jorge Antunes, em seu livro A correspondência entre os sons e as cores (1982), afirma que sua preocupação no período da Arte Integral era trabalhar “simultaneamente com sons, cores, odores, paladares e elementos visuais para serem apresentados em salas de concerto, e algumas obras plásticas com elementos sonoros para serem apresentadas em salões de artes plásticas” (ANTUNES, 1982, p. 7).

A peça Ambiente I (1965) para fita magnética, luzes, objetos estáticos e cinéticos, incenso e comestíveis, que poderia ser considerada como uma peça instalação, foi apresentada entre os dias 31 de março e 15 de abril de 1966 no Salão de Abril do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O pesquisador Gilberto André Borges em sua monografia Vida, obra e fontes para pesquisa (2008) cita que, no mesmo ano, a peça integraria o Salão Nacional de Artes Plástica.

O compositor Jorge Antunes explora ainda outras perspectivas nas chamadas obras "Cromofonias" ou como ele mesmo as denomina, Música Cromofônica, nas quais “o jogo tímbrico e as escolhas das notas são baseadas em um critério colorístico, que reporta o

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fenômeno sonoro a um espaço imaginário, onde formas coloridas cinéticas evoluem no tempo (ANTUNES, 1982, p. 7). Podemos mencionar através de Maués (1989) a composição intitulada Contrapuntus Contra Contrapunctus (1966), onde são apresentados sons analógicos e eletrônicos distribuídos numa espacialização estereofônica, utilizando reverberações. Nela, Maués (1989) menciona a preocupação de Antunes em produzir sons polidos, refinados, evitando o descontrole ou a distorção. A peça apresenta uma clara dedicação aos procedimentos de controle e tensão; as estruturas sonoras apresentadas são permutadas, e alteradas para serem expostas entre si, formando um contraponto de matérias sonoras que justificam ao nome da peça.

O pesquisador Gerson Valle, no seu livro Jorge Antunes: uma trajetória de arte e política (2003), descreve como em março de 1969, deu a estreia de sua Missa Populorum Progressivo, a mesma com a qual conseguiu uma bolsa de estudos para o CLAEM (Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales). Sua estada no CLAEM foi, também, seu primeiro contato com um laboratório profissional de música eletrônica; e pode ser mencionada como composição desse período em Buenos Aires a peça Cinta, cinta (1969), elaborada apenas com material eletrônico e que que reflete uma organização gráfica, medida e controlada do uso da fita magnética com os novos recursos tecnológicos disponíveis no estúdio. “A maior novidade reside no tratamento formal extremamente racional dado à obra, que reflete influência da música eletrônica europeia da época” (MAUÈS, 1989, p. 20).

Podemos mencionar também Auto-retrato sobre paisaje portenho (1969) para fita magnética. Nessa peça, Valle (2003) observa uma “identificação dos dois povos, brasileiro e argentino. Partindo da gravação de um disco de gramofone de um tango gravado por Francisco Canaro, Jorge [o compositor] repete um defeito do disco que comprara no subúrbio de Buenos Aires, fazendo de sua repetição o surgimento do ritmo de samba” (VALLE, 2003, p. 111). Outra composição desse período é Histórias de um Pueblo (1970), caracterizada por apresentar uma distribuição marcada de diferentes seções, diferenciadas principalmente pela organização das intensidades. O pesquisador Maués (1989) descreve a peça com um início com ruído branco filtrado por ressonância que simula o vento, com dinâmica pianíssimo; dessa forma, é instaurado um ambiente fixo, sem articulação; posteriormente, a peça cresce em dinâmica para uma entropia mais fluida, a mesma que “resulta numa modulação lenta de frequência, criando parábolas com glissandos de osciladores, as quais se acumulam num novo

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crescendo, até que a trama sonora é subitamente interrompida por um corte brusco” (MAUÉS, 1989, p. 21).

Posteriormente, Jorge Antunes volta ao Rio de Janeiro e, em novembro de 1969, funda a Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (SBMC) juntamente com Aylton Escobar, Vania Dantas Leite, David Korenchendler e Airton Barbosa. Podemos continuar contando o processo de Antunes através de Valle, que afirma que, depois de sair em 1970 do CLAEM, Antunes começou a procurar novos caminhos no exterior, conseguindo em 1971 uma bolsa de estudos do governo Holandês, para visitar o Instituut voor Sonologie, da Universidade de Utrecht. Em 1971, já na Holanda, ele compôs a peça Music for eight persons playing things. Impossibilitado de voltar para o Brasil enquanto perdurasse o governo militar, Antunes pede outra bolsa, agora para o governo francês, conseguindo dessa forma se envolver com o Groupe de Recherches Musicales (GRM), dirigido pelo prestigioso compositor e pesquisador Pierre Schaeffer, e com o Instituut voor Sonologie, sob orientação do compositor alemão Gottfried Michael Koening. Desse período, podem ser mencionadas as peças Idiosynchronie (1972) para orquestra (27 instrumentos solistas com tratamento eletroacústico) e Proudhonia (1972) para coro misto de doze vozes e fita magnética preparada a partir de material eletrônico. Referindo-se a essa última peça, Maués (1989) afirma:

Os sons vocais são aproximados dos eletrônicos, numa tendência que o compositor já apresentava em Cromorfénica de 1969 para vozes (sem eletrônica). Há um diálogo entre as vozes e a eletrônica geralmente num processo de interação. O compositor opera com oposições de altura determinada/ruído, sons curtos (ponto) / longos (linha), utilizando como elementos básicos densidade, espaço, timbre e dinâmica (MAUÈS, 1989, p. 22)

Prosseguindo com os apontamentos realizados por Maués (1989), é mencionado o trabalho do compositor Rogerio Duprat, que depois de seus trabalhos em música experimental em Brasília, frequentou em 1962 os Cursos Internacionais para Música Experimental de Darmstadt (Alemanha ocidental). Posteriormente, em 1963, lançaria com outros músicos145 o Manifesto Música Nova, além de montar um estúdio de gravação chamado Pauta, onde desenvolveu efetivamente seus conhecimentos sobre a música eletrônica, criando peças que

145 Damiano Cozzella, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia, Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira, Alexandre Pascoal.

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misturassem elementos da música popular brasileira146 com música eletroacústica, amplamente divulgados pelos meios de comunicação daquela época. Se menciona também o trabalho de Damiano Cozzella que, conjuntamente com Duprat, seriam os precursores nos anos de 1960 da experimentação musical com computador. Dessa atividade surge a composição Música Experimental (1963) “que aplica cálculos por computador na realização da montagem da obra, similares as experiências também realizadas com computador pelos poetas concretistas paulistas147” (MAUÈS, 1989, p. 15). Rogerio Duprat também teria experiência na realização de happenings, como o realizado no Concerto Alimentar (1969), que organizou um evento para televisão com a participação antecipada dos telespectadores, utilizando utensílios e instalações de cozinha e banheiro, comida e bebida.

Um compositor que encontramos no catálogo realizado por Hugh Davies (1968) é o compositor Willy Corrêa de Oliveira que foi o autor de uma série de experiências musicais com meios eletroacústicos a partir de 1959. Entre 1962 e 1963, o compositor participou dos Cursos de música experimental em Darmstadt, além de ter visitado alguns estúdios de música eletroacústica na Europa, dentre os quais se destaca o Laboratório de música Eletrônica da Phillips, em Eindhoven, Holanda. A partir de 1969, Willy Corrêa de Oliveira se estabelece como professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e, paralelamente, continua sua produção como compositor, realizando quatro peças curtas intituladas Experiências (1959/1960) onde observamos um claro interesse por reunir as sonoridades provenientes de instrumentos populares brasileiros com a música eletroacústica. Nesse sentido, Hugh (1968) cita as seguintes peças: Experience I (1959), utilizando cavaquinho; Experience II (1959), utilizando percussão; Experience III (1959), utilizando gaita harmônica, e Experience IV (1960), utilizando vozes. Outras peças de Oliveira são detalhadas por Maués (1989) como as peças da série Kitschs (1968), da qual se destaca a peça Narcisus, para piano e fita magnética. A partitura requer que o solista (pianista) que corte trechos da fita magnética contendo a gravação das quatro peças Experiências antes mencionadas; esses trechos são montados imediatamente, de forma aleatória, devendo o solista, em seguida, se sentar na plateia junto ao público para assistir a montagem da fita. No final, o solista deve aplaudir euforicamente incitando a plateia a participar dos aplausos.

146 Rogério Duprat também teve desenvolveu um importante trabalho colaborativo com os artistas brasileiros da chamada música tropicália como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes, etc. 147 Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos, Wlademir Dias-Pino.

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Outro importantíssimo compositor ao qual se refere Maués (1989) é Gilberto Mendes, que depois de ter estudado com Cláudio Santoro em 1954 e Oliver Toni entre 1962 e 1968, também frequentou junto com outros compositores brasileiros os Cursos Internacionais de Verão para Música Nova em Darmstadt, país, conhecendo, assim, as principais tendências dentro da música experimental daquela época. Depois dessa experiência, o compositor teria atuação importante no movimento conhecido como Música Nova, que começou com a organização do Festival Música Nova148, juntamente com outros compositores, a partir de 1962. Podemos observar Maués (1989) se referindo a Mendes como um compositor original, interessado em incluir nas suas composições diferentes procedimentos experimentais. Dessa forma, os meios eletrônicos de criação sonoro/musical são parte dos elementos utilizados pelo compositor, que inclui também elementos cênicos, objetos sonoros (esculturas sonoras) e meios eletroacústicos (fita magnética).

Nessas obras muitas vezes a parte da fita magnética é a portadora de todo o acontecimento sonoro, numa espécie aforística de pantomima com sonoplastia, verdadeiras visões musicais no mais puro estilo realista mágico latino-americano. A estrutura dessas peças é criada por jogos de oposições como com som/sem som, som/luz, movimento/imobilidade. Enquanto os atores e os objetos (incluindo silenciosos instrumentos musicais) atuam visualmente (MAUÉS, 1989, p. 16)

Algumas das peças mencionadas pelo pesquisador são Nascemorre (1963) composta a partir do poema de Haroldo de Campos, que utiliza coro misto, duas máquinas de escrever e fita magnética com estruturas aleatórias. Outra composição é Cidade (1964), composta sobre o poema de Augusto dos Campos, onde o compositor utiliza três vozes, contrabaixo, piano, percussão e duas fitas magnéticas monofônicas com sons urbanos onde também são misturados elementos teatrais. Outra, ainda, é a composição Son et Lumière (1968) para atores (manequim feminino e dois fotógrafos masculinos), objetos (piano, duas máquinas fotográficas com flash) e fita magnética. Segundo Maués (1989), nessa obra, a gravação de um único acorde executado fortíssimo no piano é ouvido sempre em conjunto com o som das quatro vozes durante a peça. Outro elemento de destaque é o flash de diversas máquinas fotográficas, colocadas contra a luz numa ideia de pontilhismo luminar, em alternância com a

148 Nós tivemos a oportunidade de participar com a Orquestra Errante do festival Música Nova Gilberto Mendes, em sua 48ª edição, realizada em Ribeirão Preto no ano de 2014. Nessa oportunidade, utilizamos instrumentos nativo indígenas dos Andes em conjunto com processamento eletrônico (live electronics), já como desdobramento dessa pesquisa, o que deu lugar à criação de matérias sonoros complexos que se misturaram de forma adequada com a performance. Para assistir apresentação acessar ao link em youtube: https://www.youtube.com/watch?v=4OtNTArX564

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interação do manequim feminino. Vale citar também a peça O objeto Musical – homenagem a Marcel Duchamp (1972), que consiste numa espécie de invenção a duas vozes, ao estilo de Bach, utilizando ventilador e barbeador elétrico.

Observamos também que diversos compositores brasileiros, durante a década de 1960, tiveram a oportunidade de se especializar em diferentes institutos, laboratórios e estúdios ao redor do mundo. Podemos mencionar o Intituto Torcuato Di Tella, sede do CLAEM (Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales), que recebeu compositores como Marlos Nobre, Jorge Antunes e Marlene Fernandes. O compositor Frederico Richter, viajou para Canadá estudando na Universidade Mc Gill em Montreal; Jocy de Oliveira dirigiu-se para a Universidade de Washington, passando pelos Laboratórios de Música Eletrônica da Universidade de Columbia em Nova Iorque. Outro grupo de compositores encontrou seu caminho na Europa, principalmente no Grupo de Pesquisas Musicais (GRM – Grupe de Recherches Musicales) em Paris, evidentemente influenciados pelo trabalho de Pierre Schaeffer, como os compositores Reginaldo de Carvalho, Jorge Antunes, Vânia Dantes Leite, Rodolfo Caesar, José Maria Neves e José Augusto Mannis. O Curso de Verão de Darmstadt também recebeu importantes compositores brasileiros como Willy Correia de Oliveira, Rogerio Duprat e Gilberto Mendes, todos mencionados anteriormente.

Vale oferecer atenção especial ao trabalho do compositor Claudio Santoro, que foi mencionado anteriormente como fundador do Departamento de Música na Universidade de Brasília (1962), e que, posteriormente seria responsável por uma vasta produção musical eletroacústica. Na década de 1965, depois de ter encontrado dificuldades dentro do Departamento de Música que ele ajudou a fundar, o compositor viaja para Alemanha com ajuda de uma bolsa de estudos outorgada pela Fundação Ford, permanecendo na Berlim Ocidental; desse período, Maués (1989) menciona a produção das peças Aleatórios I, II e III (1966/67) para fita magnética, que juntamente com Intermitências II (1967) para piano, orquestra, microfones e alto-falantes seriam suas primeiras experiências compositivas eletroacústicas. Sobre a peça Intermitências II, Maués (1989) aponta que as ressonâncias dos sons instrumentais são registradas por quatro microfones e projetadas através de um conjunto de quatro alto-falantes, dando a noção de espacialidade acústica. Depois de viajar brevemente para os Estados Unidos, posteriormente, passou pelo GRM em Paris.

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Santoro conseguiu, via concurso realizado em 1970, o trabalho de professor na Escola Superior de Música de Heidelberg, na Alemanha, onde prosseguiria com seu trabalho composicional eletroacústico, compondo peças como Struktur aus Zement und Eisen (1975) para fita magnética. Nesse período, Santoro começaria a composição de uma serie importante de peças intituladas Mutações (1968/75) onde trabalhou diferentes tipos de instrumentos juntamente com a fita magnética. Podemos mencionar do catálogo de obras do compositor149 Mutações I (1968) para cravo e fita magnética, composta ainda no Rio de Janeiro; Mutações II (1969) para violoncelo e fita magnética, composta no período de viagens entre estados Unidos, Paris e Berlim; Mutações III (1970) para piano e fita magnética, composta já em Heidelberg; Mutações IV (1971/72) para viola e fita magnética; Mutações V e VI para primeiro e segundo violino respetivamente e fita magnética. Uma peculiaridade das quatro últimas Mutações (II, IV, V, VI) é que elas podem ser executadas como peças individuais ou em conjunto, formando um quarteto de cordas.

Paralelamente, ainda no período em Heidelberg, Santoro compôs um ciclo de peças intitulado Ciclo Brecht (1974/75), em homenagem ao poeta alemão Bertold Brecht onde observamos cinco ciclos: Von den verführten Mädchen (no 1 do Ciclo Brecht), para uma voz livre, duas vozes e sintetizador gravadas em fita; Sonet der emigration (no 2 do Ciclo Brecht), para voz e fita magnética; Liturgie von Hauch (no 3 do Ciclo Brecht), para voz manipulada, cantada, falada e transformada por sintetizador e 2 fitas magnéticas (4 canais) com sons de sintetizador; Liebes lied (no 4 do Ciclo Brecht), para voz, piano e sintetizadores e Lied von der Wolke der Nacht, Das (no 4 do Ciclo Brecht), para voz e fita magnética.

Da década de 1970, segundo Maués (1989), pode-se mencionar o trabalho da compositora Jocy de Oliveira, uma pioneira pelo desenvolvimento do trabalho multimídia no Brasil, envolvendo música, teatro, instalações e vídeo. Dentro da música eletroacústica, Oliveira tem utilizado eletrônica com combinações de instrumentos e vozes; um exemplo disso é a série de peças Estórias, iniciada em 1968 com Estória II, realizada durante seus estudos nos Estados Unidos, que utiliza voz, percussão e fita magnética, construída com elementos sonoros vocais e sons eletrônicos analógicos.

149 Para maiores informações sobre o catálogo de obras do compositor Claudio Santoro acessar na página de internet: http://www.claudiosantoro.art.br/

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A peça, dividida em três partes, usa os sons de maneira programática. Na primeira parte ouve-se o texto e a percussão, a eletrônica entra na segunda parte. Na terceira parte atuam todos. A peça introduz uma enorme quantidade de elementos que se justapõem criando um universo latino, desorganizado e rítmico (MAUÉS, 1989, p. 23).

Outras composições mencionadas por Maués (1989) são Polinterações (1970) para vídeo, esculturas, projeções e eletrônica; Dimensões (1976) para quatro sintetizadores; Wave Song (1977) para piano e fita magnética e que pertence à serie Estórias, onde a composição dos sons deriva de uma aproximação entre as cordas dos piano e sons eletrônicos, e na qual as figurações rítmicas estão relacionadas com os batimentos das vibrações restantes acusticamente.

Uma característica importante da produção musical eletroacústica na década de 1970 é a pulverização de referências em diferentes partes do Brasil. Temos, por exemplo, o Grupo de Compositores de Bahia, anexado a Escola de música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, constituído por Ernst Widmer, Fernando Cerqueira, Jamary Oliveira, Rufo Herrera e Lindembergue Cardoso. Nesse período foram compostas obras que envolvem grandes conjuntos instrumentais onde a fita magnética funciona como uma ferramenta que possibilita a introdução de grande diversidade de sonoridades.

Do final da década de 1970, Maués (1989) se refere ao compositor Rodolfo Caesar, que estudou no Instituto Villa-Lobos do Rio de Janeiro, onde foi instruído na criação da música eletroacústica pelos compositores Reginaldo de Carvalho e Marlene Fernandes. Em 1973, viajou à Paris com o desejo de se aprofundar nessa prática musical e frequentou o Grupo de Pesquisas Musicais (GRM) onde produziu Curare I (1975), Les Deux Saisons (1975/76) e Tutti-frutti (1976). No seu retorno ao Brasil, em 1978, realizou a produção do seu disco A arte dos Sons, onde podem ser escutadas peças como Curare II. Maués (1989) aponta que o compositor Rodolfo Caesar é um dedicado pesquisador e criador da música eletroacústica, sendo seu trabalho criativo quase artesanal, partindo sempre do mínimo material. “Em termos de sistemas de composição, procura começar sempre do nada, adotando para cada nova composição um novo pensamento” (MAUÉS, 1989, p. 34). Ele utiliza em suas peças as técnicas de permutação, combinação e interpolação de sequências sonoras, além de manipulações próprias da música concreta eletroacústica, abrangendo meios eletrônicos destinados para a difusão em concertos com sistemas de vários alto-falantes - o que torna

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suma importância a audição de obras desse compositor em contexto ao vivo.

Rodolfo Caesar é parte deste processo de experimentação musical, que deve ser mencionado por ter transitado durante muitos anos dentro da música experimental. Desde 1980 vem compondo peças como Fragmentos do Paraiso (1980) para duas fitas magnéticas, Vibrata (1982) para fita e um percussionista, Espiral (1982) composta em conjunto com Vânia Dantas Leite para dois sintetizadores e fita magnética e Ricercare-Fuga (1985) para dançarinos e fita magnética. No final da década de 1980, as peças compostas apresentam novos recursos computacionais para sua estruturação, além de mostrar seu interesse por trabalhar com materiais naturais150. Analisando-os numa perspectiva sonoro auditiva, podemos mencionar Introdução à pedra151 (1989), peça que o próprio Cesar comenta, em sua tese de doutorado The Composition of Electroacustic Music (1992), que foi criada a partir da gravação da queda de pedras de diversos tamanhos, por meio de uma técnica de gravação chamada microphone-shaping (morfomicrofonia). Sobre essa técnica de gravação, a professora e pesquisadora Carole Gubernikoff coloca de forma sintética:

Que transforma o natural em informação acústica ou objeto sonoro. Esta etapa é considerada como parte do processo de composição. As técnicas de gravação têm sido meticulosamente observadas por Rodolfo Caesar, uma vez que ele credita a este momento uma das etapas mais importantes da composição, chegando muitas vezes a mimetizar experimentalmente situações e posições de escuta (GUBERNICOFF, 2009, revista eletrônica152)

IV. Apontamentos finais sobre as máquinas fazendo música em América do Sul

Depois de ter realizado um percurso através dos acontecimentos relevantes dentro da experimentação musical, principalmente nos países de Brasil e Argentina, conseguimos evidenciar um desenvolvimento compositivo e técnico dentro da performance. A emergência do ruído como elemento sonoro, a composição de peças eletroacústicas e mistas, e

150 Nesse sentido observamos importante mencionar a peça Circulos Ceifados (1998) e seus artigos intitulados: Artefatos FM para a produção de ritmos ‘pseudo-naturais’ (1996) e Um encontro da composição com a bio-acústica via FM, disponíveis da página academia do compositor. 151 Para conhecer uma análise gráfica da peça acessar ao artigo da pesquisadora Denise H. L. Garcia no seguinte link: file:///Users/imac/Downloads/2018-7052-1-PB%20(1).pdf 152Acesso: http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv12/12/carole_gubernik.htm

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principalmente, o surgimento de diversos centros de experimentação sonora, foram possibilitando o estabelecimento de um tipo de tradição de experimentação musical na América do Sul. Foi preciso reconhecer o trabalho de alguns dos pioneiros da experimentação dentro destes países (Argentina – Brasil), em procura por evidencias de algum contato entre os dois focos de experimentação mais representativos de América do Sul, e as tradições que poderiam pertencer as cosmologias nativo-ancestrais153do continente.

As instituições e laboratórios de experimentação sonora de Argentina e Brasil foram relevantes para impulsionar aquelas práticas e pesquisas em compositores de outros países de América do Sul, como é o casso do compositor peruano Cesar Bolaños, e o compositor equatoriano Mesías Maiguashca, os mesmos que participaram como bolsistas do Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales (CLAEM); estes compositores são um claro exemplo da realidade oposta que vivia o continente de América do Sul, com relação a música experimental desenvolvida em Europa. Logo de que fecharam as portas do CLAEM em 1970, Bolaños que até 1970 teria composto diversas peças para orquestra, música eletroacústica e trilha sonora, teve que deter seu processo composicional ao seu retorno no Peru, se encontrando com um panorama nulo para a experimentação musical no seu pais. Bolaños “não contava com os recursos tecnológicos que necessitava para poder continuar ligado a experimentação e criação musical. Como consequência desse abrupto final, ele [Bolaños] inicia uma etapa em sua vida, onde a etno-musicologia ocuparia um papel relevante” (ALVARADO, 2009, revista eletrônica154); dessa forma Bolaños seria um dedicado pesquisador das tradições musicais nativo-ancestrais do seu pais, mas não formalizou um processo de experimentação musical com elas; por outra parte, Maiguashca logo do fechamento do CLAEM viaja para Alemanha, onde teve a oportunidade de ser participe de muitos dos desenvolvimentos da música experimental, descritos por nós anteriormente, dando como resultado um contato direto com a experimentação sonora com algum tipo de tradição ameríndia. Maiguashca em 1971 finalizou sua peça eletroacústica Ayayayayay (1971), para fita magnética, realizada a partir de diversas gravações principalmente de ambientes sonoros rurais, e de elementos naturais como rios, vento, cachoeiras; logo de junta-los com síntese e

153 Nós referimos as diversas comunidades indígenas de America do Sul, as mesmas que se relacionam com o mundo através de cosmovisões ancestrais que tem relação direta com sua concepção do ser humano e as artes, com a natureza. Expandiremos amplamente estes conceitos no Capítulo IV. 154 Revista eletrônica acessada em 1 julho 2015: http://www.especial35.net/Reportajes/ABCDE/062010- TiempoYObraDeCesarBolanos.htm

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processamento sonoro, o resultado seria uma das primeiras composições que colocaria os fundamentos desta pesquisa (experimentação musical nativo-ancestral) de forma material. Estes dois compositores servem de exemplo para observar as dificuldades desde as décadas de 1970, para iniciar um projeto de criação musical experimental que tenha a ver com alguns dos elementos nativo-ancestrais de América do Sul. A música ameríndia de nosso continente foi atendida por um lado, pelos diversos etno-musicólogos que registraram e pesquisaram suas características sonoras em seu contexto social, e por outro, pelo folclóre, resultado da progressiva criação de conjuntos de música folclórica, que foram paulatinamente formando a indústria e o gênero música folclórica.

Podemos observar alguns exemplos de experimentação com elementos culturais, que, apesar de que não sejam nativos-ancestrais, estão relacionados com a cultura musical popular do lugar; o trabalho do compositor Willy Correia de Oliveira quem entrando na década de 1960 realizou experimentações musicais com instrumentos próprios do Brasil como sua peça Experiment I (1959) onde utilizou um cavaquinho junto com fita magnética. Em 1969 Jorge Antunes quem com sua peça Auto-retrato sobre paisaje portenho coloca duas realidades sonoras referentes da paisagem sonora em Buenos Aires que vai se aproximando mediante manipulação na reprodução à uma analogia do ritmo de samba. Estes são exemplos de um tipo de experimentação sonora com influencias de América do Sul.

Apesar destes exemplos servirem como referência dos primeiros contatos da música experimental com material cultural de nossa região (América do Sul) temos que aguardar até a década de 1970 para realmente encontrar obras que significativamente utilizam material sonoro nativo dentro de suas práticas de experimentação. Podemos citar alguns exemplos mencionados anteriormente através da compositora e pesquisadora Graciela Paraskevaídis (2011), que menciona o compositor uruguaio Coriún Aharonián que em 1974 finalizou a peça Homanaje a la flecha clavada en el pecho de don Juan Díaz de Solis, a mesma que é considerada como a primeira obra realizada num estúdio eletroacústico que utiliza flautas andinas como única fonte sonora. É mencionada também a compositora colombiana Jacqueline Nova, que foi bolsista do Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales e tem composto diversas peças com relacionamentos nos conceitos da cosmologia nativo- ancestral; um exemplo é a composição Creación de la Tierra (1972) que trabalhada a partir um canto cosmogônico dos índios Tunebo que foi registrado em 1963 em Sarare (povoado na

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província de Arauca ao nordeste da Colômbia) que se constitui através da voz do xamã como única fonte sonora de uma complexa mas ao mesmo tempo transparente trama eletroacústica.

Menciona também Paraskevaídis (2011) o trabalho do compositor uruguaio Fernando Condon e sua composição Suina Wanka (1981) que utiliza instrumentos andinos aerófonos como quenas, pinkillos, sikus, tarkas, mohoceños155, e vários tipos de percussão andina conjuntamente com instrumentos tradicionais ocidentais como órgão, flauta transversal, contrabaixo, apitos e membranófonos. Outro compositor mencionado por Paraskevaídis é Tato Taborda que em sua composição Prostituta Americana (1983) incorpora o uso de pinkillos e sikus, além de utilizar clarinete, trombone, piano, guitarra, tambores de água, chocalhos de tamanho gigantesco, bombo, e garrafa de água percutida enquanto se esvazia. Paraskevaídis (2011) comenta que tanto a composição de Condon Suina Wanka (1981) quanto a composição de Taborda Prostituta Americana (1983) nascem inspiradas pelo trabalho composicional de Cergio Prudencio em La Ciudad156 (1980). Nós podemos mencionar também o trabalho compositivo de Tato Taborda para a Orquesta Experimental de Instrumentos Nativos intitulada Estratos (1999), conseguindo se aproximar à instrumentação andina, com direção do compositor Cergio Prudencio.

Dessa forma chegamos a 1986 onde o compositor Cergio Prudencio funda a Orquesta Experimental de Instrumentos Nativos (OEIN) que será amplamente comentada no capítulo a seguir, nos permitindo expandir as informações sobre a utilização de instrumentos e cosmologias nativas dentro de uma perspectiva experimental.

É evidente que o interesse desenvolvido no final da década de 1970 por compositores de América do Sul relativo às perspectivas características da música andina evidenciam a procura por novos meios de instrumentação e composição que não estão precisamente contemplados dentro das estéticas e procedimentos observados nos fundamentos da música experimental, dando lugar a novos relacionamentos entre estes dois mundos.

Para finalizar é fundamental colocar os apontamentos da compositora e pesquisadora Manuella Blackburn (2011) que em seu artigo Electroacustic Music Incorporating Latin American Influences explica que na maioria dos trabalhos eletroacústicos, os sons constituem

155 Estes instrumentos nativos indígenas andinos serão descritos no seguinte capítulo deste trabalho de dissertação. 156 As informações desta peça serão ampliadas no seguinte capítulo.

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o elemento fundamental para sua construção e é nesse sentido onde aparece a dificuldade no momento de usar sonoridades nativas, particularmente devido a que a música representativa das culturas nativas utilizam material melódico ou rítmico substancial e específico para sua própria denominação. Nesse sentido o compositor deve decidir a medida em que retêm ou abstrai o som dessas associações étnicas. Através da retenção, os sons são escolhidos com base em seus aspectos anedóticos ou emblemáticos e não em sua potencialidade abstrata, enquanto com a abstração, implica uma completa ou quase completa remoção de sua fonte reconhecível, e nesse sentido, a remoção do seu contexto de associação tradicional” (BLACKBURN, 2010, p. 1). Certamente, evidenciaremos nos seguintes capítulos como os compositores chamados de transculturais, conseguem manter essas conotações tradicionais dentro da música experimental, mediante a exaltação performática do elemento ritual das cerimonias nativas, ou pelo uso abstrato de cosmologias dentro de estruturação de suas composições.

A música eletroacústica forma parte fundamental do contexto da experimentação musical podendo, segundo Blackburn, se relacionar de diversas formas com as tradições nativas de América do Sul; dessa forma são mencionados: (1) a utilização de instrumentos tradicionais como é o caso do compositor Rodolfo Coelho de Souza em sua peça Concerto (2000) onde utiliza instrumentos típicos brasileiros como berimbau, cuíca e zunidores; (2) formas de danças tradicionais; (3) influências do ambiente, como é o caso do compositor Ricardo Dal Farra em sua peça Tierra y Sol (1996) onde são encontradas sonoridades próprias das montanhas dos Andes como quenas e mohoceños em adição com cantos tradicionais andinos. (4) pontos de partida, mencionando ao compositor chileno Federico Schumacher que encontra como ponto de partida composicional influências dentro da tradição nativa chilena, podendo colocar sua peça Palabras al Sur (1998) construída a partir de sons e palavras sintéticas de gravações de comunidades Yamanas157, Kaweskar158, e Mapuches159. (5) declarações políticas, Alberto Villalpando em sua composição Bolivianos...! referente a guerra do Chaco e (6) conhecimento das raízes.

Desta forma conseguimos realizar uma contextualização do processo de experimentação sonora impulsado desde a perspectiva dos avanços em manipulação e síntese

157 Comunidade indígena ao sul do continente Americano. Também conhecidos como Yamán 158 Grupo indígena da zona austral do Chile. 159 Povo indígena nativo da zona sul do Chile.

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sonora e seus contatos com realidades musicais nativo-ancestrais de América do Sul. Afirmamos que dentro da música eletroacústica puderam ser abstraídos alguns dos elementos constitutivos de cosmologias relativas as comunidades indígenas, servido como marco conceitual, ou como fonte sonora dos processos de estruturação da trama musical. A síntese e abstração sonora funcionam como uma ferramenta para transmutar o mito do nativo-ancestral, se atrevendo a colocar culturas e tradições que usualmente tendem a pertencer ao mundo do folclore, dentro de uma perspectiva de transmutação permitindo redimensionar o conceito do nativo-ancestral dentro de um processo de experimentação contemporânea.

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. O experimental nativo: Música experimental, cosmovisão indígena e tecno-xamanismo

De qualquer forma, acho convincente o argumento de que toda inovação é uma espécie de adaptação e que encontros culturais encorajam a criatividade (BURKE, 2003, p. 17).

Neste capítulo pesquisamos elementos que possam constituir uma ideia geral do que simboliza a cosmovisão indígena na América do Sul; dessa forma analisaremos primeiramente a cosmovisão indígena andina, a mesma que respeita diversos fundamentos e que está representada por seus instrumentos musicais em relação cosmológica; e em segundo lugar, analisaremos a cosmovisão do xamã, o que se encontra principalmente nas comunidades indígenas amazônicas e se representa como mestre/guia, possibilitado a transmissão de técnica e saberes ancestrais destinados à servir, espiritual e fisicamente, na vida da comunidade.

Partimos de duas visões: a cosmovisão indígena (que está ligada inseparavelmente com a música), projetada como operador da prática de diversos mitos, rituais, cerimonias e festividades que projetam a perspectiva de vida dos povos nativo-ancestrais; e o xamã; ente funcional dos saberes ancestrais, que simboliza o contato espiritual do homem como receptor e guia do mundo não-material ou não-humano. É através dele que a comunidade e sua cosmologia podem ser projetados e vivenciados na relação com os humanos, os animais e a natureza. O termo nativo experimental surge numa entrevista realizada pelo Centro Experimental Oido Salvage160 com o compositor e pesquisador boliviano Cergio Prudencio161, que inicia a entrevista afirmando que “comecei escutando o que estava aí, o que esteve antes, mas que não teve predisposição para atender devido aos condicionamentos de minha formação musical”. Nesse sentido, o que “estava aí” eram precisamente as manifestações musicais e culturais dos povos Aymara e Quechua do Altiplano boliviano. Prudencio afirma: “Quando eu estive na Universidade Católica, nem se mencionou a palavra

160 O Centro Experimental Oido Salvage (Quito) começou em 1996 como um coletivo de artistas dos mais diferentes meios e geografias. Ele surge primeiramente como RAEL (Radio Artística Experimental Latinoamericana), desenvolvendo um importante trabalho como gestor e promotor de produções culturais focadas na experimentação sonora na América do Sul. Iniciou suas atividades com o projeto: Navegantes del Eter (programa de rádio transmitido entre 1998 e 2000). No ano 2001, é fundado definitivamente o Centro Experimental Oido Salvage tendo como membros os artistas e gestores culturais Iris Disse, Mayra Estévez e Fabiano Kueva. Desde então, o centro vem realizando diversos trabalhos na área de pesquisa sonora, gestão cultural, produção discográfica e entrevista com compositores, artistas e pesquisadores de experimentação sonora na América do sul. 161 Esta entrevista pode ser acessada em: https://vimeo.com/48465743.

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sikus ou tarka”. Ele afirma, com isso, que La Paz está rodeada de uma de tradição musical nativa indígena, mas que essa tradição não dialogava com os cânones aprendidos na “academia musical” na qual se formou. O nativo experimental é explicado por Prudencio na perspectiva de que o nativo, ou o autóctone/folclórico, estava sendo apropriado pela “música folclórica”, tendência com a qual Prudencio não estava de acordo. Essa tendência é, evidentemente, o processo de hibridismo, fundamentado por Canclini (1989) como perspectiva onde elementos culturais nativos e o grande projeto globalizador, impulsionado pelas industrias mediáticas, se misturam dando origem a processos de criolização – onde se procura uma estetização do folclore, dentro de cânones susceptíveis a serem processados e comercializados. “O autóctone, o nativo, o aborígene não tem importância como denominação, o que importa é a qualidade como referente que passa a constituir um propósito”. O experimental, explica Prudencio, é um termo que representa “a tecnologia, a inovação, o novo, desde o processo histórico da longa linha europeia”, e como é possível experimentar com instrumentos nativos, esse é o ponto de origem do nativo experimental.

O próprio Prudencio contextualiza a sua primeira experiência com o som nativo experimental. “Quando eu escutei conscientemente ao vivo e direto a uma tropa162 de tarka163, eu disse: esses sons são extraordinários! Muito do que o processo europeu está descobrindo como inovador, em termos de sonoridade e construção de temporalidades, está aqui! Como isso é possível?”. Ele afirma que “o fundamental é a predisposição”, referindo-se a abertura que teve Prudencio para destacar, de dentro dos fundamentos cosmológicos e evidentemente musicais, elementos potencializadores de novos processos de experimentação musical.

Dessa forma abrimos espaço para os apontamentos do compositor Cergio Prudencio e do pesquisador Pedro Peixoto Ferreira – os mesmos que, através de suas experiências musicais e acadêmicas, fomentam o relacionamento transcultural entre experimentalismo, tecnologia e formas fundamentais da cosmovisão indígena (comunidade – xamã), conseguindo transcender as qualidades relativas de cada um desses eventos.

162 Conjunto de instrumentos andinos de sopro de um mesmo tipo. 163 Tipo de flauta andina vertical nativa da Bolívia. Este instrumento será aprofundado em seguida.

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I. Generalidades da cosmovisão indígena e seu processo transcultural na

atualidade

Podemos ampliar o desacordo que Prudencio demonstra com a tendência folclórica, explicada mediante “processos de hibridação que a globalização cultural envolve” (PIETERSE apud BURKE, 2003, p. 2), explicitando que “o preço da hibridização, especialmente naquela forma inusitadamente rápida que é característica de nossa época, inclui a perda de tradições regionais e de raízes locais” (BURKE, 2003, p. 7). Sob esse aspecto, o desenvolvimento do mainstream da indústria musical promove um tipo de hibridismo, produto da modernização. Nas palavras de Canclini: “A modernização diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime. Redimensiona o folclore, o saber acadêmico e a cultura industrializada, sob condições relativamente semelhantes” (CANCLINI, 1989, P. 22). Dessa forma, procuramos outro termo que não esteja relacionado precisamente com essa troca cultural, resultado da progressiva modernização, mas sim que esteja ancorado em trocas igualitárias, heterogêneas, sem bandeiras comerciais ou modernizadoras. É sob essa perspectiva que o termo transculturalidade se apresenta para nós, definido mediante os apontamentos da pesquisadora Verónica Hidalgo Hernández (2005), que descreve o termo como “um processo de aproximação entre culturas diferentes, que procura estabelecer vínculos por cima e além da cultura mesma em questão, quase criando fatos culturais novos que nascem do sincretismo e não da união, nem da integração cultural que interessa a uma determinada relação” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 79 – nossa tradução164). Hernández (2005) explica que este procedimento, promovido principalmente pelos meios modernos tecnológicos, de comunicação e informação, como elemento fundamental para a convivência, promulgando um acordo para a promoção de valores universais além de raças, etnias, pensamentos religiosos ou espirituais. Afirmamos, diante dessas formulações, a contraposição entre o termo transculturalidade (acima explicitado) com o termo etnocentrismo que, por seu turno, pretende “juiz a partir de culturas desde sua própria função” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 81 –

164 Original: “Un proceso de acercamiento entre las culturas diferentes, que busca establecer vínculos más arriba y más allá de la cultura misma en cuestión, casi creando hechos culturales nuevos que nacen del sincretismo y no de la unión, ni de la integración cultural que interesa a una determinada transacción” (HIDALGO HERNÁNDEZ, 2005, p. 79)

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nossa tradução165).

Este fenômeno está claramente evidenciado no processo musical experimental, que durante seus primórdios vem se desenvolvendo etnocentricamente a partir da cúpula das artes vanguardistas de pós-guerra (formada principalmente por compositores e instituições). A música experimental, que foi desenvolvida por meio da evolução de meios composicionais e tecnológicos de forma progressiva, como observamos especialmente nos processos compositivos de indeterminação ou event-scores em compositores como Cage, Stockhausen e Cardew, vão realizando contatos com filosofias ritualísticas orientais como o taoísmo e budismo, como marco conceitual para a criação de processos musicais experimentais166.

A progressiva aproximação da experimentação musical com as filosofias ritualísticas e espirituais primeiramente de oriente, e posteriormente de América do Sul poderiam ser consequência do avanço da modernidade (caracterizada por plantear rupturas), à pos- modernidade (não seu procupa pelas rupturas e relaciona aproximações com variadas culturas e cosmologias), evidenciada a partir de 1960. Como afirma Sébastien Charles (2009), existe uma tendência a evidenciar e valorizar formas de tradição que não correspondem com a progressiva modernização, uma “recusa da amnesia voluntária dos modernos em relação ao mundo das tradições; tolerância com relação às diferenças de formas, de estilos ou de épocas e celebração da mestiçagem” (CHARLES, 2009, p. 18).

Parte dessa celebração da mestiçagem passa a ser evidente, por exemplo, na transfiguração do ritual, que tradicionalmente estava ligada ao ritual do concerto167, para um agenciamento do rito místico, espiritual168 e coletivo, próprios das culturas nativas-ancestrais. É preciso mencionar os apontamentos do sociólogo contemporâneo Pierre Bourdieu (1980) sobre o significado do rito nas culturas. Ele formula que “o rito deve resolver, mediante uma operação socialmente aprovada e coletivamente assumida, a contradição que se estabelece ao construir como separados e antagonistas os princípios que devem ser reunidos para assegurar

165 Original: “Jusgar el resto de culturas de su propia función” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 81) 166 Podemos evidenciar estas aproximações anteriormente no capítulo 2 deste trabalho, como reconhecemos em peças como Gold Dust (1958), de Stockhausen, em que o performer incita um processo de meditação rigoroso, ou no Great Leaning (1971), de Cornelius Cardew, onde são utilizadas diversas filosofias relacionadas a provérbios do pensador Confúcio, tomados de seu texto A Grande Doutrina, escrito em 500 a.C. 167 O ritual do concerto onde existe uma marcada diferenciação entre público e artistas, onde o público assiste o espetáculo de forma atenta, para no final, contribuir com sua aprovação mediante o bater das palmas. 168 Outro tipo de ritualização que a partir dos happenings/performance, ganha novo significado como um potencializador da realidade, elevando a concretude do material para esferas que atingem com a percepção do artista e do público.

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a reprodução de grupo” (BOURDIEU apud CANCLINI, 1989, p. 46). Esta definição serve como começo para a ampliação dos apontamentos sobre a ritualidade que as artes vanguardistas instauram a partir de 1960. Canclini 1989 explica que, no avanço do cubismo para o surrealismo, e daí para o expressionismo abstrato, as formas se tornam cada vez mais desmaterializadas, “assim como a ênfase em temas tais como luz, e o ar, proclamam a superioridade do espiritual e do transcendental sobre as necessidades cotidianas terrestres” (DUNCAN e WALLACK apud CANCLINI, 1989, p. 47).

Nessa perspectiva de abertura por parte das artes vanguardistas é que se destaca o processo de transculturalidade, onde são incitadas tanto peculiaridades próprias da experimentação, quanto elementos musicais e culturais significativos para os povos nativos, conseguindo-se reestruturar em pé de igualdade a troca de paradigmas para criar novas formas. Dessa maneira, deixa de existir o conceito de rupturas, próprio da modernização que procura estabelecer o novo, mas, ao contrário, estamos diante de um processo de constante reestruturação, onde os elementos inovadores das artes experimentais conseguem se nutrir dos mais diversos e heterogêneos elementos culturais, permitindo a incorporação de elementos culturais nativos indígenas, que passam a ser reproduzidos e reinventados, com novos paradigmas, assegurando sua própria existência.

A seguir, focamos na compreensão das características filosóficas comuns às comunidades nativas indígenas da América do Sul. Para isso, começamos com a definição outorgada pela historiadora Guadalupe Vargas Montero (2010), que explica o seguinte:

Consideramos a cosmovisão como a categoria que é o continente de ordenamentos da existência humana. Os sistemas simples ou complexos que se originaram nas sociedades arcaicas, na aurora da humanidade. A cosmovisão é, de forma sucinta, a concepção que um grupo social tem de seu cosmos, isto é, de seu ambiente natural e social imediato. É feito através da idealização decorrente de questões fundamentais como: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos depois da vida? O que é e quem criou tudo à nossa volta? Assim, as sociedades criaram gradualmente, ao longo dos milênios, explicações elaboradas que também têm servido para regular suas vidas diárias (MONTERO, 2010, p. 107 – nossa tradução169).

169 Original: “Consideramos a la cosmovisión como la categoría que es continente de los elementos ordenadores de la existencia humana. Sistemas simples o complejos que tuvieron su origen en las sociedades arcaicas en el amanecer de la humanidad. La cosmovisión es sucintamente la concepción que un grupo social tiene de su cosmos, es decir de su entorno natural y social inmediato. Se realiza através de las ideaciones surgidas a partir de preguntas fundamentales como: ¿Quiénes somos? ¿De dónde venimos? ¿a dónde vamos después de la vida? ¿Qué es y quien creó todo lo que nos rodea? Así, las

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Dessa forma, contextualizamos vários pontos convergentes em diferentes tradições, rituais, festas e, principalmente, identidades da cultura indígena na América do Sul. Começamos por esclarecer quais são os pilares nos quais a visão de mundo indígena se fundamenta. Como afirma Montero: “O sistema de crenças está imerso na dinâmica do fazer histórico e cultural do povo. As representações coletivas, às vezes plásticas, são percebidas através da especificação dos mitos mediante os ritos, em um contínuo criar e recrear” (MONTERO, 2010, p. 108 – nossa tradução170). Essas representações estão envolvidas em ideais artísticos, sociais, morais e normativas dentro de sua cultura. Todas as representações culturais como, por exemplo, música, emblemas, costumes, trajes, insígnias, ordenação de festividades e cerimônias, disposição do espaço, etc, representam a ordem ideal do funcionamento do universo. Deve-se notar que essas tradições foram transmitidas oralmente, à exceção de momentos em que sua celebração foi vetada (conquista e colonização). E que muitos mitos são semelhantes em diferentes tradições culturais indígenas da América. Podemos ver também que: “Não existe aproximação direta à cosmovisão-indígena como ela é. Não existe nenhuma abordagem direta à cosmovisão em nenhuma cultura, mas sim uma aproximação com certos referentes documentais, arqueológicos ou rituais” (MONTEMAYOR, 2000, p. 96 – nossa tradução171).

Consideramos importante identificar alguns dos principais aspectos das tradições indígenas na América do Sul. O céu é o lugar de residência dos deuses astrais: o sol, a lua, estrelas. Nessa região também habitam os deuses do vento, trovões, relâmpagos e chuva. É um lugar luminoso, fértil e masculino do cosmos. Na cosmovisão indígena atual, o submundo tem uma importância semelhante à que lhe ofereciam os antigos mesoamericanos. Fisicamente descrito como o interior da Terra, é uma região fria, úmida e escura, atravessada por rios e cavernas subterrâneas. As cavernas são as aberturas que ligam o mundo subterrâneo com a superfície, sendo o armazém onde as sementes são guardadas (LUPO apud FLORESCANO, 2000, p. 18).

Outro importante ponto dentro da cosmovisão indígena é a relação simbiótica do sociedades han ido creando, poco a poco en el transcurso de milenios, elaboradas explicaciones que a la vez han servido para normar su vida cotidiana” (VARGAS MONTERO, 2010, p. 108) 170 Original: “El sistema de creencias se encuentra inmerso en la dinámica del quehacer cultural e histórico de los pueblos. Las representaciones colectivas, a veces plásticas, se perciben por ejemplo, a través de la escenificación de los mitos mediante los ritos, en un continuo crear y recrear.” (VARGAS MONTERO, 2010, p. 108) 171 Original: “No hay acercamiento directo a la cosmovisión de ninguna cultura, sino acercamientos a ciertos referentes documentales, arqueológicos o rituales.” (MONTEMAYOR, 2000, p. 96)

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indígena com seu entorno natural. Sobre este fato, Montemayor (2000) explica:

Para aqueles que pertencem à tradição judaico-cristã, o mundo está a nosso serviço; para os índios em todo o continente, no entanto, a Terra está viva, é um ser vivo, e dessa condição vão se derivar muitos compromissos com o homem que está a serviço do mundo. Para os povos indígenas, a sua relação com a terra é muito precisa: para ajudar na sua conservação, em sua vida. Seu destino está ligado às estrelas, não no contexto de fatalidade da astrologia ocidental, mas por um compromisso de ação com eles. Os povos indígenas estão obrigados a cumprir esta grande responsabilidade. No Ocidente, a grandeza do destino é a transcendência individual; entre os indígenas, a continuidade de seu povo representa a preservação do mundo. A sua relação com a natureza é por isso distinta. Eles podem distinguir muitos elementos que nossos olhos não veem. Não é só identificar pegadas, sinais atmosféricos ou riscos. Também se referem a muitas palavras-chave que, em sua linguagem, em sua forma cotidiana de dizer, revelam a vitalidade que eles se comprometem a manter. Nada está desligado na natureza, tudo está conectado (MONTEMAYOR. 2000, p. 98 – nossa tradução172).

O povo indígena possui compromisso com a natureza, as estrelas e os ciclos vitais do mundo, da mesma forma que suas expressões artísticas estão relacionadas a esta cosmovisão. Os povos indígenas têm vivido um processo contínuo de adaptação e resistência, mantendo-se fiéis às tradições camponesas que, ao longo dos séculos, os constituíram como um povo, determinando suas formas de viver e compreender o mundo. Sua concepção do cosmos, assim como a de seus antepassados, é uma mitificada do mundo, fundada uma contorção social agraria de cultivo e trabalho da terra. Sua ideia da divisão do cosmos e dos mecanismos que regulam o universo é baseada nos movimentos do sol, o grande ordenador, juntamente com a agricultura, as tarefas diárias, festas típicas e calendários dos povos camponeses. (FLORESCANTO, 2000).

Também podemos mencionar a importância dos ritos e eventos tradicionais que sobreviveram ao longo do tempo como meios e ferramentas para perpetuar sua cultura, pensamento e estilo de vida. O rito é um instrumento que os povos indígenas utilizaram como correntes de transmissão da memória coletiva, junto com o calendário solar e mitos religiosos

172 Original: “Para los que pertenecemos a la tradición judeocristiana, el mundo está a servicio nuestro; para los indios de todo el continente, en cambio, la tierra está viva, es un ser vivo, y de esa condición se derivan muchos compromisos para el hombre, que está al servicio del mundo. Para los pueblos indígenas su relación con la tierra es muy precisa: ayudar en su conservación en su vida. Su destino está ligado a los astros, no en el contexto de la fatalidad de la astrología occidental, sino por un compromiso de acción con ellos. El pueblo indígena está obligado a cumplir con esa alta responsabilidad. En occidente, la grandeza del destino es la trascendencia individua; entre los indígenas, su continuidad como pueblo representa la conservación del mundo. Su relación con la naturaleza es por ello distinta. Pueden distinguir muchos elementos que nuestros ojos no ven. No se trata solamente de identificar huellas, señales atmosféricas o peligros, Se refiere a muchas expresiones que en su lengua, en su forma cotidiana de decir, revelan la vitalidad que ellos se comprometen a conservar. Nada está desligado en la naturaleza, todo está unido” (MONTEMAYOR. 2000, p. 98)

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e tradição oral. Sobre este assunto, Florescano (2000) reconhece esses instrumentos como armazenadores e condutores da memória indígenas. Ele se refere da seguinte forma aos ritos indígenas:

Os ritos que atualizam a criação do cosmos para começar o ano agrícola, o grande rito de iniciação de plantações em 3 de maio, o festival da colheita e rituais celebrando o santo patrono eram atos que simultaneamente congregavam toda a população, transmitindo a memória étnica e reforçando a memória coletiva. Pela via de convocar a população e de fazê-la participar de um ato coletivo, o rito transmite com força uma mensagem de identidade que faz vibrar aos indivíduos e é compartilhada pelo conjunto social (FLORESCANO, 2000, p. 27 – nossa tradução173).

As celebrações relacionadas ao plantio deram aos indígenas o calendário agrícola que se conserva gravado na sua memória. Paulatinamente, vão se integrando a esse calendário as festas religiosas estabelecidas pela igreja católica, dando passagem ao sincretismo que forma o repertório de imagens, mitos e tradições essenciais da memória indígena.

Finalmente mencionamos os princípios que sustentam a cosmovisão-indígena, representando, assim, sua relação com sua existência e seu ambiente. O congresso chamado Fondo Indígena realizado em 2007, em La Paz, na Bolívia, realizou um módulo de História e Cosmovisão-indígena onde foram detalhados os princípios que mantêm a visão de mundo indígena que explicitamos a seguir:

Princípio de relação

Este princípio é o mais importante para nós, sem ele não poderiam existir outros. Este princípio nos diz que tudo está ligado a tudo, o que nos leva a afirmar que o mais importante para nós não são necessariamente os indivíduos, mas sim as relações, os vínculos estabelecidos entre as coisas. Além do mais, a cada dia as pessoas e as coisas no universo não existem por si mesmas, mas porque estão todos interligados. Estes nexos são de vários tipos, podem ser emocionais, ecológicos, éticos, estéticos e produtivos. Tudo de uma vez ou

173 Original: “Los ritos que actualizan la creación del cosmos al comenzar el año agrícola – el gran rito del inicio de las siembras el 3 de mayo, la fiesta de la cosecha y los ritos de celebración al santo patrono del Pueblo – eran actos que simultáneamente congregaban a la población, transmitía la memoria étnica y fortalecían la identidad colectiva. Por la via de convocar a la población y de hacerla actuar en un acto colectivo, el rito transmitía con vigor un menaje de identidad que hacia vibrar a los individuos y contaminaba al conjunto social” (MONTEMAYOR. 2000, p. 98)

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intercalados. Até mesmo o divino, o sagrado, não está fora deste princípio. Mesmo o Deus cristão está ligado, indissoluvelmente ligado, a tudo o resto. Assim, as escolhas que fazemos, as ações que empreendemos ou deixar de realizar, influenciam em outros processos e em outros seres. (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 55 – nossa tradução174).

Princípio da correspondência

Este princípio se reflete em todas as nossas vidas, nos diz que há uma ligação entre micro e macrocosmos. Tanto no grande quanto no pequeno. O que acontece na dinâmica dos planetas e das estrelas ocorre igualmente em nosso mundo, afetando homens, animais e plantas, minerais e água. Existe também um vínculo semelhante como o mundo dos mortos. A correspondência existe em tudo; todo acima tem um abaixo, e os lados também são ambos. A vida tem a sua morte, o homem e mulher mantém sua dualidade, a correspondência universal e em todos os aspectos da vida, inclusive no social e no político. (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 56 – nossa tradução175).

Princípio de complementariedade

Este princípio explica mais claramente os dois princípios anteriores. Como sabemos, para nós, indígenas, nenhum ser, nenhuma ação existe por si mesma, sozinha no mundo, mas articula muitas relações com outros seres e outras ações. Uma vez que tudo está ligado a tudo, entendemos que somos parte de um todo. Para formar esse cósmico complexo e fazer que as coisas funcionarem temos que encontrar as peças que se encaixam, os nossos complementos,

174 Original: “Este principio es ele más importante para nosotros, sin él no podrían existir los demás. Este principio nos dice que está vinculado con todo, lo cual nos lleva a afirmar que lo más importante para nosotros no son necesariamente los seres en sí mismos sino las relaciones, los vínculos que se establecen entre ellos. Es más, diríamos que los seres y las cosos en el universo existen no por sí mismas, sino gracias a que están relacionados entre todos. Estos vínculos son varios tipos, pueden ser afectivos o productivos, ecológicos, étnicos, estéticos e productivos. Todos a la vez o intercalándose. Ni siquiera lo divino, está fuera de este principio. Incluso el Dios cristiano está relacionado, vinculado indesligablemente a todo lo demás. Por eso las decisiones que tomemos, las acciones que acometemos o dejamos de acometer, influyen en otros procesos y en otros seres” (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 55) 175 Original: “Este principio se manifiesta en toda la vida, nos dice que hay un vínculo entre el micro cosmos y el macro cosmos. Tal en lo grande y tal en lo pequeño. Lo que ocurre en el mundo de los planetas y las estrellas ocurre igual en nuestro mundo, afecta a los hombres, a los animales y plantas, a los minerales y el agua. También hay un vínculo similar cone l mundo de los muertos. La correspondencia está en todo, todo arriba tiene un abajo, y los costados también son dos. La vida tiene su muerte, el hombre tiene a la mujer, la correspondencia universal; y en todos los aspectos de lla vida, incluso en lo social y en lo político” (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 56)

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e deixar a solidão de ser partes isoladas. (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 56 – nossa tradução176).

O princípio de reciprocidade

Para que tudo exista e se movimente normalmente há uma justiça cósmica, e esta deve ser repetida na terra e em outros mundos. É assim que os indígenas compreendem que todos devemos retribuir, dar e devolver, para a terra, o céu, os animais e as plantas, montanhas e rios, a nossos irmãos, nossos pais, nossos deuses e a nós mesmos. A reciprocidade deve ser praticada em todos os níveis da vida, nos afetos, na economia e no trabalho, no religioso, já que até o divino está sujeito a este princípio. A cada ato corresponde outro complementar e recíproco. (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 57 – nossa tradução177).

II. Música, Experimentação e Cosmovisão indígena (Cergio Prudencio)

Nas terras altas dos Andes centrais, a música, dança, canção e ritual estão proximamente interligados. A dança está presente em quase todas as manifestações musicais grupais. O termo quechua taki (canção) não só contém a ideia da linguajem cantada, mas também o ritmo melódico e a dança. Os três termos fundamentais, takiy (cantar), tukay (tocar), e tusuy (dançar), cada um enfatiza só um aspecto do comportamento musical como um todo. Estes três elementos são complementares uns com os outros e simbolizam a unidade inerente da estruturação do som, o movimento e a expressão simbólica (BAUMANN, 1996, p. 19 - nossa tradução178).

176 Original: “Este principio nos explica mas claramente los dos principios anteriores. Como ya sabemos, para nosotros los indígenas, ningún ser, ninguna acción existe por si misma, sola en el mundo, sino que está articulada a muchas relaciones con otros seres y otras acciones. Ya que todo está relacionado, comprendemos que somos partes de un todo. Para formar ese todo cósmico y que las cosas funcionen, debemos encontrar aquellas partes que nos encajan, nuestros complementos, y dejar la soledad de ser partes aisladas” (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 56) 177 Original: “Para que todo exista y se mueva con normalidad, existe una justicia cósmica, y está se debe repetir en la tierra y en los mundos. Así ocurre, los indígenas entendemos que todos debemos retribuir, dar y devolver, a la tierra, al cielo, a los hermanos animales y plantas, a las montañas y a los ríos, a nuestros padres, nuestros dioses, a nosotros mismos. La reciprocidad se debe practicar en todos los niveles de la vida, en los afectos, en la economía y en el trabajo, en lo religioso, ya que hasta lo divino está sujeto a este principio. A cada acto le corresponde una acción complementaria, otro acto recíproco” (FONDO INDÍGENA, 2007, p. 178) 178 Original: “In the Central Andean Highlands, music, dance, song, and ritual are closely intertwined. Dance is present in almost all group-oriented forms of music making. The Quechua term taki (song) does not just contain the idea of language that is sung, but also rhythmic melody and dance. The three key terms, takiy (“to sing”), turkey (“to play”), and tusuy (“to dance”), each emphasize only one aspect of the musical behavior as a whole. These three elements are complementary to

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Evidenciamos um primeiro contato entre experimentação e música nativa indígena no trabalho de compositor Cergio Prudencio179, fundador e diretor da Orquesta Experimental de Instrumentos Nativos (OEIN), iniciada em 1980, e que tem como propósito de “trazer ao presente as raízes ancestrais das culturas andinas, reconhecendo seus valores, mas sobretudo, assumindo o desafio da criatividade” (ZULETA, 2007, p. 178 – nossa tradução180). O trabalho composicional de Prudencio passa a ser fundamental para evidenciar um processo transcultural que consegue estabelecer diálogos em iguais condições entre as tradições musicais das comunidades Aimaras e Quechuas da , com estratégias de composição que ressaltam a criação de complexas estruturas tímbricas, conjunção com procedimentos de composição experimental baseada nas peculiaridades de afinação e registro dos instrumentos nativo-ancestrais, além da utilização de notação musical criada especificamente para promover a interação entre os performers, se desligando do uso convencional de notação sem determinar as asturas das notas.

Diversos pesquisadores têm se aproximado do trabalho de Prudencio e dos fundamentos da música andina que serviram para contextualizar a vasta instrumentação nativo indígena dos Andes Bolivianos. Muitos dos conceitos absolutistas observados na música ocidental, como o temperamento das notas, proveniente de um pensamento cartesiano de alturas definidas no tempo, é concebido de forma diferente pelas culturas andinas, resultado evidente de sua visão diferente a respeito das concepções musicais. Dessa forma, observamos que a organização do pensamento andino não está interpolada pelos conceitos de afirmação e negação, (nota afinada ou desafinada); mas que existe uma terceira opção, relativa às outras duas, colocando em dúvida tanto a afirmação quanto a negação, apresentando um pensamento relativista das coisas.

A organização dos aimarás é trivalente, a diferencia do pensamento cartesiano que é dual. (...) O uníssono é sem dúvida um conceito absoluto, como também é o sistema temperado. Se está ou não se está afinado. Na

one another and signify the inherent unity of structured sound, movement, and symbolic expression. (MAUMANN, 1996, p. 19) 179 Fez seus estudos em orquestração e composição na Universidad Católica Boliviana entre 1973 e 1978. Posteriormente participou dos Cursos latinoamericanos de Música Contemporánea (CLAMC) nos anos de 1980, 1982, 1984, 1985 e 1989, autofinanciados e autogestionados de forma itinerante na América do Sul (Uruguay, Argentina, Brasil, Venezuela e República Dominicana). Entre 1978 e 1981 esteve na Orquesta Nacional Juvenil de Venezuela. Prudencio também realizou estudos particulares em prática instrumental: violão clássico entre os anos de 1968 e 1972; Flauta transversal entre os anos de 1973 – 1977; piano 1978 – 1982; e percussão em 1978). 180 Original: “traer al presente las ancestrales raíces culturales andinas, reconociendo sus valores, pero sobre todo asumiendo el reto de la creatividad” (ZULETA, 2007, p. 178)

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música nativa altiplánica não existe o uníssono absoluto nem os intervalos absolutos, quer dizer, que não existem ferquencias fixas. Não existindo frequências fixas, o que se produz pela aglutinação de intérpretes tocando uma mesma posição do instrumento, é uma faixa de frequências próximas, mas não iguais que geram uma qualidade tímbrica de intensa movimentação interna (ZULETA, 2007, p. 180 – nossa tradução181).

Esse pensamento relativista está presente na afinação de seus instrumentos que, habitualmente utilizam alturas ou “notas musicais” que podem se aproximar as “escalas” pentatônicas anemitônicas182.

O etnomusicólogo Max Peter Baumann (1996) explica que este tipo de escala é a mais comum na tradição musical andina, dando abertura a melodias com semitons, particularmente em melodias com tessitura maior. As melodias (com semitons) são conseguidas pela transposição mediante deslocamento de intervalos de quarta para o registro grave, ou quintas para o registro agudo. Este tipo de transposição ocorre em muitos grupos de sikus. Se menciona também que tipos de escalas hexatônicas (seis notas) ou heptatônicas (sete notas), que podem ser entendidas em termos de combinação de duas escalas pentatônicas anemitônicas de diferentes sikus colocadas uma por cima da outra. (BAUMANN, 1996, p.17).

Outra peculiaridade instrumental radica na formação de grupos formados por diversas flautas andinas, conhecidas como Tropas compostos de até 60 músicos. As tropas consistem em um conjunto de um mesmo tipo de flauta que podem ser de diversos tamanhos que, por sua morfologia, oferecem mobilidade aos instrumentistas183. Dentre as flautas que encontramos nas tropas, podemos citar as flautas sikus184 (tipo de flauta construída pelo conjunto de tubos de bambu ou carriso185 de diversos tamanhos).

A mais profunda e longa é chamada charka machu, o instrumento que prossegue no seguinte registro alto (uma quinta acima) é chamado de charka mala, uma oitava acima da charka machu está a charka tara. O instrumento com o registro tonal mais alto é chamado charca ch’ili, sendo o instrumento

181 Original: “La organización de los aimaras es trivalente, a diferencia del pensamiento cartesiano que es dual. El unísono es sin duda un concepto absoluto, como también lo es el sistema temperado. Se está afinado o no se está afinado. En la música nativa altiplánica no existe el unísono absoluto ni los intervalos absolutos, es decir que no existen frecuencias fijas. Al no existir frecuencias fijas, lo que se produce por el aglutinamiento de intérpretes tocando una misma posición en el instrumento, es un rango de frecuencias cercanas pero no iguales que generan una cualidad tímbrica de intenso movimiento interno (ZULETA, 2008, p 180) 182 As escalas anemitônicas são aquelas que não apresentam semitons dentro de sua estruturação. 183 Esta mobilidade é crucial dentro da interpretação da música andina, a mesma que como observamos antes, esta interligada com a dança e outras expressões culturais próprias das regiões andinas. 184 Dentro deste grupo entram as zampoñas, charkas ou flautas de pan. 185 Tipo de bambu comumente achado nas zonas altiplánicas e paisagens andinas.

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mais pequeno, soando uma quinta acima da charka tara e uma oitava acima da charca mala. Machu, mala (também chamada malta), tara e ch’ili simbolizam ao mesmo tempo a hierarquia social: machu simboliza “honorável” e é, como regra, associado com o músico mais velho e experimentado, mala ou malta significa “intermeio”, enquanto ch’ili referisse ao instrumento “menor”, que é usualmente tocado pelos músicos mais jovens e menos experientes (BAUMANN, 1996, p. 16 – 17 – nossa tradução186).

Podemos mencionar também uma característica presente nos conjuntos de música tradicional boliviana e, consequentemente, no trabalho de Cergio Prudencio: a relação entre a interpretação destes instrumentos e o conceito de complementaridade próprio da cosmovisão indígena. O conceito de dualidade187 é um dos fundamentos da cosmologia indígena representada nas divindades de Pachamama e Pachatata, reiterando desta forma a relação entre a masculinidade e feminidade presente na natureza. “A terra viva (pacha)188 na concepção holística é homem-mulher, tudo o que é, assim como cada elemento individualmente observado, está composto de ambos pólos complementares das características básicas da feminidade e masculinidade” (BAUMANN, 1996, p. 22 – nossa tradução189). Nesse sentido são utilizados os termos ira, proveniente do verbo irpaña, que significa ir adiante, e seu complemento, o termo arca, do verbo arcana, que significa ir atrás ou seguir. Esta dualidade está representada claramente na forma como são interpretados os sikus, tocados em pares, existindo numa mesma tropa os instrumentos que representam ira tocados em alternância com os instrumentos representativos da arca. Esta forma de interpretar

186 Original: “the deepest and longest flute is called chakra macho, the instrument belonging to the next higher register (about one fifth higher) is called charka mala. One octave higher than the charka macho is the charka tara. The instrument belonging to the highest tonal register is called charka ch’ili; it is aldo the smallest instrument, sounding one higher than the charka tara and once octave higher than the charka mala. Machu, mala (also called malta), tara and ch’ili symbolize at the same time the social hierarchy: macho means “honorable” and is, as a rule, associated with the oldest and most experienced musicians, mala or malta means “intermediate one,” while ch’ili refers to the “smallest” instrument, which is usually played by the youngest and least experienced musician” (BAUMANN, 1996, p. 16 – 17) 187 Esta dualidade representativa da masculinidade e feminidade pode ser observada em diversos termos e celebrações andinas como: O padre sol (inti) e a madre lua (killa); também as estações do ano apresentam esta dualidade, principalmente porque as regiões andinas (por sua posição geográfica no globo) apresentam duas estações, com duas festividades cada. A estação chuvosa se relaciona com a feminidade, com a fertilidade e a renovação da terra; a primeira festividade é celebrada no solstício de verão (21 – dezembro) chamada de Qhapaj Raymi, a segunda festividade é celebrada em 21 de março e é chamada de Paukar Raymi, ou florescimento da natureza. A estação seca se relaciona com a masculinidade, com a energia e calor do sol e apresenta da mesma fora duas festividades: a primeira em 21 de junho, chamada de Inti Raymi ou a grande celebração do sol; a segunda se celebra em 22 de setembro e é chamada de Qoya Raymi, relacionada com a festividade da mãe lua. 188 Max Peter Baumann explica que o termo pacha inclui o sentido da terra, o tempo, a história, e o mundo que com ela se relacionam. Nesse sentido o tempo passado e o futuro estão inclusos dentro do pensamento de dualidade andino. O passado é conhecido com o termo janan pacha; o futuro é respresentado com o termo ukhu pacha; o tempo presente, o tempo dos humanos está denominado com o termo kay pacha. Baumann também explica que Pacha representa uma outra dualidade que divide o mundo de acima (onde moram os deuses) e o mundo de baixo (onde moram os antepassados e os mortos. 189 Original: “The living earth (pacha) as holistic conception is a man-woman. Everything that is, as well as each thing individually observed, is composed of both complementary poles of female and male basic characteristics” (BAUMANN, 1996, p. 22)

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os instrumentos sikus forma uma unidade. Muitas vezes, os sikus ira possuem metade das alturas e os sikus arca a outra metade conseguindo em conjunto uma relação de pergunta/resposta presente nas bases dos khantus190 da música andina. Sebastian Zuleta no seu artigo Acercamiento al trabajo compositivo de Cergio Prudencio para la OEIN a partir del análisis de La ciudad191 (2007) explica que:

A música destas culturas (...) está concebida num estatismo temporal, onde não existe princípio nem fim, mas a ideia de que o tempo é circular. O pensamento circular se expressa pela repetição indefinida de sua macroestrutura muitas vezes tripartite, a repetição de cada seção e, sobretudo, pela interpolação dos elementos dentro das seções (ZULETA, 2007, p 181 – nossa tradução192)

Podemos ampliar as informações sobre os conjuntos instrumentais (tropas), que também podem ser formados por diversos tipos de flautas verticais e transversais, que conformam algumas famílias que incluem flautas com embocadura em forma de bico ou aberta. Podemos destacar um tipo de flauta conhecida como as tarkas – flautas construídas principalmente de madeira talhada com forma ortoédrica – constituídas por seis furos superiores que chegam a ter um registro de duas oitavas. A tropa de tarkas é conhecida como tarkeadas que é usualmente constituída por grupos de até quarenta músicos que tocam as tarkas em distintas afinações com relação de quartas, quintas e oitavas.

Outras flautas verticais andinas são as quenas, construídas de bambu ou carriso e que apresentam seis furos frontais e um furo traseiro. Uma peculiaridade das quenas é sua embocadura aberta, chamada muesca193 e, no outro extremo, uma abertura de diâmetro menor em relação ao resto do instrumento. As quenas são originárias da região andina do Equador e, da mesma forma que outras flautas andinas, apresentam diversos tamanhos e afinações. Sua medida é aproximadamente de 28 a 30 centímetros de largura e geralmente estão afinadasna aproximadamente na escala sol maior, sendo este tipo de flautas usualmente diatónica. Um tipo maior de quenas, chamadas de quenachos, podem apresentar até 30 centímetros de largura e usualmente apresentam afinação na escala de dó maior. Como mencionamos

190 O termo khantus é conhecido como o repertorio tradicional interpretado pelos sikus. Ampliaremos essas informações em seguida. 191 Aproximação ao trabalho compositivo de Cergio Prudencio paara a OEIN a partir da análise de La Ciudad (2007). 192 Original: “La música de estas culturas (…) está concebida en un estatismo temporal, donde no existe principio ni fin sino que el tiempo es circular. El pensamiento circular se expresa por la repetición estructura muchas veces tripartita, la repetición de cada sección, y sobre todo por la interpolación de elementos dentro de las secciones” (ZULETA, 2007, p. 181) 193 Tipo de bocal aberto que se constrói mediante uma incisão na parte frontal do extremo do instrumento.

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anteriormente, a afinação destes instrumentos é relativa, criando efeitos de variações dos espectros sonoros quando interpretadas. Outro instrumento derivado da quena é o pífano, que pode ser vertical com embocadura de bico ou transversal com embocadura aberta.

Devemos também mencionar outra família de flautas andinas chamadas pinkillos194, um tipo de flauta vertical com diversos tamanhos e que pode ser encontrada com três e até seis furos frontais. Seu bocal não é aberto, porém, se constrói em forma de bico, parecido ao da flauta dolce. Em uma edição da revista digital Tierra de Vientos195, editada pelo pesquisador argentino Edgardo Civallero, se explica que estes instrumentos têm uma ligação com o feminino dentro da cosmovisão andina, sendo utilizados principalmente em celebrações na temporada de chuvas. Os pinkillos também se apresentam em diversos tamanhos e formas, que podem ser: Pinkillo k’chuiri, tem cinco furos frontais e possui dois tamanhos, possui procedência boliviana; pinkillo koiko com seis furos e dois tamanhos (jach’a pinkillo de 60 cm e mala pinkillo de 40 cm) originários do Peru; o pakochis pinkillo utilizado em danças homônimas peruanas e conta com três orifícios, dois frontais e um lateral. Este tipo de pakochis pinkillo pode ser tocado com uma só mão, permitindo ao instrumentista tocar com a outra mão o bombo andino ou a chamada wank’ara, que é um tipo de instrumento menbranófono, de duas caras, com cordas de coro de animal (boi ou cabrito) percutido com uma ou duas baquetas.

Finalmente podemos mencionar os mohoceños, um tipo de flauta vertical feita de cana, com embocadura de bico com dez furos, ou os mohoceños transversais com nove furos. Dependendo do seu tamanho, encontramos os mohoceño bajo (transversal - 1,20m a 1,50 m – registro grave); mohoceño salleba (transversal - 1,08m a 1,20m – quinta superior do bajo); mohoceño eraso (vertical – 72cm a 90 cm – oitava superior do bajo); mohoceño requinto (vertical – 54cm a 70 cm – oitava superior do salleba); mohoceño tiple (vertical – 35cm a 50 cm – oitava superior do eraso).

194 Também chamados de pingullos. 195 A revista virtual Tierra de Vientos pode ser acessada no link: http://tierradevientos.blogspot.com.br/

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A. La Ciudad (1980 – 1986)

Estendemos nossa atenção especificamente ao trabalho de Cergio Prudencio, que expressa sua visão e postura diante da principal questão desta presente dissertação: a troca transcultural entre a cosmologia musical andina e os conceitos de experimentação musical. Nesse sentido, Prudencio afirma: “Os instrumentos são tratados com fidelidade aos gestos, inflexões e características originais das tradições altiplánicas, mas incorporados a um contexto musical distinto da música culta de vanguarda” (PRUDENCIO apud PARASKEVAÍDIS, 2011, p. 4 – nossa tradução196). O compositor encara esse desafio desde sua composição La Ciudad197 (1980), que vêm a se configurar como obra de referência na utilização de uma variada instrumentação nativa em conjunção com uma elaborada construção composicional experimental. Devemos mencionar, ainda que brevemente, como entendemos a composição experimental através dos termos de Callinhgham (2007): “Composição experimental atua para transmitir as notações da indeterminação, enquanto, na prática, concerne a resposta de algum tipo do intérprete, resposta convertida num determinado gesto musical” (CALLINGHAM, 2007, 196 – nossa tradução198). Certamente, a existência de um diretor, além dos modos de notação presentas na composição, moderaram em certa medida uma estruturação abertamente indeterminada, mas observamos, principalmente na resposta dos interpretes que trabalham em blocos ou tropas que interagem coletivamente, a finalidade de criar estruturações circulares199 e correlações de dualidade200 principalmente obtidas pela interação, em muitos casos de correlação ou dualidade, de massas sonoras espectralmente amplas201. Nesse sentido La Ciudad propõe uma estruturação de blocos sonoros que se sucedem ou se sobrepõem; às vezes numa lógica contínua; às vezes por vertiginosas interrupções” (PRUDENCIO apud

196 Original: “Los instrumentos son tratados con fidelidad a los gestos, inflexiones y rasgos originales de la tradición altiplánica, aunque incorporados a un contexto musical distinto en la música culta de vanguardia” 197 Esta peça foi composta antes da constituição definitiva da OEIN, tendo uma segunda versão de 1986, apresentando diferenças principalmente na sua instrumentação, mas não em sua estrutura. (PARASKEVAÍDIS, 2011) 198 Original: “Experimental composition, acts to transmit the notation (s) of indeterminacy, whilst also coercing in practice a response of some kind from the interpreter: a response which once performed has then become determinate musical gesture” (CALLINGHAM, 2007, p. 196). 199 A estruturação circular, se relaciona diretamente com a cosmologia nativa de circularidade, explicada anteriormente e que será ampliada através da visão de Prudencio na composição citada. 200 A concepção da dualidade, se relaciona diretamente com a cosmologia nativa de ira (ir adiante) e arca (seguir). 201 A complexidade espectral conseguida pelos blocos sonoros criasse por seu amplo registro harmônico, que em conjunção, as tropas têm.

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PARASKEVAÍDIS, 2011, p. 14 – nossa tradução202).

Os instrumentos utilizados para esta peça estão relacionados com as diferentes flautas andinas e membranófonos mencionados anteriormente e estão distribuídos da seguinte maneira:

• Flautas verticais: 8 pinkillos pequenos (registro ch’ili); 8 quenas grandes (quenachos – registro grave); 3 flautas pífano grandes; 3 flautas pífano; 2 flautas pífano pequenas. • Mohoceño Wanaca Amaya (mi bemol – si bemol): 1 tiple, 2 requinto, 2 eraso, 2 salleba, 2 bajo. • Mohoceños Alonso (mi – si): 1 tiple, 2 requinto, 2 eraso, 2 salleba, 2 baixo. • Tarkas Salinas: 5 grandes, 4 meias, 1 pequena. • Sikus Khantus203 (tropa completa – 11 ou 12 tubos): 2 pares de sikus toyos, 3 pares de sikus sankas, 2 pares de sikus maltas ou 4 pares de sikus sankas, 3 pares de sikus maltas. • Percusões: 4 bombos Italaque204, 2 wankara grandes (70 cm de diámetro), 3-4 wankaras (50-60 cm de diámetro)205.

Observamos que na versão realizada em 1986 foi preciso dispor os músicos de forma que se alternassem em diferentes instrumentos rotativamente206, com momentos de convergência onde todos tocam um mesmo instrumento, divididos em dois, três ou mais grupos dependendo da necessidade (PUDENCIO apud PARASKEVAÍDIS, 2011). Foi proposta uma disposição dos músicos agrupados em cinco grupos, que tocam as diferentes famílias de forma que: (1) um grupo de 12 músicos toca alternadamente quenas, quenachos, pinkillos ch’ili e tropa de pífanos, alcançando três registros de alturas; (2) um grupo de 12 músicos toca tropa de tarkas (alcançando três registros de alturas); (3) um grupo de 12 músicos toca alternadamente tropa de mohoceños Alonso207alcançando cinco registros de

202 “La Ciudad platea una estructura de bloques sonoros que se suceden o sobreponen; a veces en una lógica continuidad; a veces por vertiginosas irrupciones” (PRUDENCIO apud PARASKEVAÍDIS, 2011, p. 14) 203 O termo Khantus ou k’antus é um tipo de prática musical ancestral nativa da Bolivia, interpretada com sikus de uma ou duas fileiras, a mesma que tem uma conotação festiva e ritualística nas comunidades nativas da Bolívia. Para maiores informações podemos mencionar o texto do pesquisador André Langevi 1990 intitulado: A organização musical e social do conjunto de kantu na comunidade de Quiabaya (província de Batistuta Saavedra) Bolívia. 204 Tipo de bombo cilíndrico proveniente do povoado de Italaque na Bolívia. 205 (PARASKEVAÍDIS, 2011) 206 A rotatividade instrumental representa em analogia a ideia de circularidade da cosmovisão indígena. 207 Tipo de tropa de mohoceños procedentes da província de Osasuros (Bolívia)

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altura (mohoceños em mi – si) e tropa de mohoceños Wanaka Amaya alcançando cinco registros (mohoceños em mi bemol e si bemol); (4) um grupo de 14 músicos toca alternadamente tropas de sikus khantus208 de seis e sete tubos alcançando seis registros; e sikus onze ou doze tubos em três registros (malta, sanka, toyo); (5) um grupo de cinco músicos tocando os dois primeiros bombos de Italeque cada um, o terceiro toca dois wankaras grandes; o quarto duas wankaras medianas e o quinto três wankaras chicas.

É dessa maneira que estão agrupados os diferentes instrumentistas, encarregados de criar os blocos de sonoridade estruturados mediante processos descritos por Paraskevaídis (2011) como massas sonoras, de diversas durações, texturas, densidades e timbres, que funcionam como elementos articuladores essenciais para o afastamento de um discurso previsível e convencional (PRUDENCIO apud PARASKEVAÍDIS, 2011). Dessa maneira, traz o conceito de circularidade mediante as permutações progressivas e interações pela rotatividade de ações das diferentes tropas. Por outra parte, a superposição e justaposição dos blocos de distintas entidades parecem corresponder à dualidade do conceito de complementaridade ira – arca (ir adiante – seguir), refletido nos sikus ou antaras atuando por pares (uma unidade de dois) com distintos números de tubos segundo a tropa e os registros. Ira (ir adiante) toca o número ímpar de tubos 1, 3, 5 etc; enquanto arca (seguir) toca os números pares dos tubos 2, 4, 6 etc - os mesmos que estão alinhados da esquerda para a direita, do menor para o maior, num registro que vai do grave ao agudo (PARASKEVAÍDIS, 2011). Observamos, nas relações de dualidade internas dentro de cada tropa, um fator de improvisação que corresponde ao jogo entre os instrumentos nas funções de ira e arca, promovendo interações e interpelações evidentes em práticas de composição experimental.

Outro ponto importante nessa composição radica na estruturação e definição das alturas, tímbres, gestualidade e duração dos materiais estruturais da composição. Começando pelas alturas, onde fica claro que não há relação com um sistema temperado de alturas definidas, mas, pelo contrário, o trabalho se aproxima do conceito da cosmologia indígena, mencionado anteriormente, que trata da relatividade com a presença de um terceiro elemento entre a afirmação e a negação, colocando parâmetros de relatividade na ejecussão do uníssono, pudendo ser chamado o “uníssono relativo”. A afinação ocorre desde essa

208 Os sikus khantus apresentam uma divisão de seus registros classificada em: toyo (contrabaixo); sanqa (baixo); sobre- sanqa (entre baixo e tenor) malta (mediano tipo tenor); sobre malta (entre mediano e pequeno); ch’ili (pequeno); sobre ch’ili (0 menor).

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perspectiva relativista, permitindo trabalhar uma ideia relativa das relações de uníssono entre os instrumentos andinos, que não precisam necessariamente estabilizar a afinação numa altura fixa, e sim constituir uma visão construção relativa do uníssono. Como consequência dessa relatividade na definição das alturas, a notação musical também deve ser modificada para funcionar dentro desses parâmetros. Dessa forma o pentagrama passa a ser utilizado dentro desta perspectiva relativista. Por exemplo, no caso do grupo 1, as quenas, quenachos, pinkillos e pífanos utilizam as notas desenhadas no pentagrama para representar posições de digitação e não alturas definidas; os pífanos soam em superposição de duas quintas justas (aproximadamente). Da mesma forma, as tarkas, interpretadas pelo grupo 2, utilizam a notação para representar posições de digitação idênticas para os três registros da tropa, obtendo como resultado sonoro um bloco de duas quintas justas (aproximadamente). Para o grupo 3, representado pelos mohoceños, é utilizada a notação para representar posições de digitação idênticas para os cinco registros da tropa; o resultado sonoro é uma superposição de quinta-quarta, quinta-quarta sucessivas. Para o grupo 4, representado pelos sikus, a notação no pentagrama representa o tubo em que o interprete deve tocar, dividido entre os sikus ira (ir adiante): primeira linha = primeiro tubo (o mais grave), segunda linha = segundo tubo, e assim por diante; para sikus arca (seguir): base do pentagrama = primeiro tubo (o mais grave), primeiro espaço = segundo tubo, e assim por diante. Finalmente, o grupo 5, correspondente às percussões, apresenta uma notação que corresponde ao movimento temporal da peça, funcionando como sustentação métrica, as vezes fixa, as vezes livre. Prudencio (apud PARASKEVAÍDIS, 2011) propõe a utilização de instrumentos aimarás da mesma procedência de construção, sugerindo o artesanato aimará tradicional para guardar relações mais próximas com as sonoridades nativas tradicionais da região.

Por outro lado, o pesquisador Sebastián Zulteta (2007) explica que a proposta tímbrica reside em reproduzir, o mais fidedignamente possível, o caráter espectral tímbrico das flautas nativas utilizadas, com a peculiaridade da adição de simultaneidade de posições, o que permite estruturações harmônicas complexas dentro de uma mesma tropa ou em simultaneidade com outras tropas. Zuleta (2007) reflete sobre a possível conexão deste tipo de organização sonora, “proveniente da simultaneidade que se dá naturalmente nas festividades e ritos, quando as tropas tocam ao mesmo tempo” (ZULETA, 2007, p. 184). Nesse sentido, o conceito de sobreposição entre as quenas, tarkas, e mohoceños, cria um bloco tímbrico estático, onde sua textura está determinada pela interpretação individual,

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gerando uma movimentação interna constante de frequências e intensidades, dimensionando territórios de complexas sonoridades com qualidades timbricas nativo-ancestrais provenientes principalmente de sons de sopro e estruturas rítmicas.

Nos concentrando agora sobre os elementos figurais e gestualidade das diferentes sonoridades e nas possibilidades de execução instrumental abordadas nessa composição. Para lograr esta descrição, Zuleta (2007) divide as qualidades gestuais dos instrumentos de ventos e dos instrumentos de percussão. Para os ventos existem notas (posições de digitação) de larga e variada duração que estão relacionadas diretamente com a respiração individual do performer. São encontrados também gestos formados por uma, duas ou três notas (posições de digitação) de curta duração acentuados e com diferentes instrumentos. Se observam também aponhaturas ascendentes ou descendentes, conseguidas entre figuras intervalares de segunda ou terça, que se contrapõem as notas (posições de digitação) longas. Outra possibilidade gestual é tocar notas conjuntas, que temos nas flautas sikus quando se toca velozmente todas as posições ou tubos de forma ascendente ou descendente. Temos também micro variações de texturas conseguidas pela simultaneidade de notas (posições de digitação) longas numa interação dentro de meta-uníssono. E finalmente observa-se um elemento figural correspondente ao modo mi – sol – la – do – ré) (escala pentatônica anemitônica) que é um elemento figural carregado de sentido fonético ou idiomático.

Se referindo as percussões, Zuleta (2007) distingue figuras rítmicas marcadas, mas irregulares, se distribuindo desde o começo da apresentação de um elemento, podendo também transformá-lo ou interrompê-lo abruptamente. Apresenta também pulsações constantes ou distintos tipos de pulsações sobrepostas.

Trazemos as informações aportadas por Zuleta (2007) num esforço por descrever o uso dos materiais estruturais da obra La Ciudad209 (1980) distribuídas em macroseções. Primeiramente existe uma introdução, caraterizada por sucessões de pulsações realizadas pelo grupo de percussão que se relaciona com a marcação própria da tradição musical andina observada em práticas tradicionais nativo-ancestrais (entre os 0min00seg e 1min22seg). Na sequência, aparece a primeira macroseção, caraterizada por conter quatro pequenas seções menores com o propósito de mostrar cada tropa separadamente. Nesse sentido, encontramos a

209 A versão que é analisada corresponde à gravação de La Ciudad de 1980 que está disponível na internet no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=YxBLq2Lm-Iw

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primeira apresentação das tarkas, quenas e mohoceños de tipo Alonso, passando de um a outro por meio de um uníssono relativo (1min23seg). A segunda pequena seção está focada na apresentação dos sikus khantus (2min36seg), os mesmos que estão sustentados por outra camada formada pela tropa de mohoceños. A terceira pequena seção apresenta os pinkillos (3min21seg). Posteriormente entra outro tipo de mohoceños, chamados Huanaca-Ayama, fazendo um jogo de complementaridade com a tropa dos mohoceños, linhas melódicas indefinidas de baixa intensidade em forma de rede. A quarta seção (4min32seg) retoma uma marcada percussão onde se interpõem as tropas de sikus com notas curtas e acentuadas com a tropa de mohoceños, apresentando num momento determinado (5min40seg) a soma de todas as tropas num uníssono relativo.

A segunda macroseção (5min55seg) começa como um bloco sonoro criado pela percussão em diferentes tempos, assimétricos, que são intercalados por blocos de sikus, fazendo notas curtas e acentuadas que vão se relacionando com camadas inferiores independentes de tropas de tarkas, quenas e mohoceños. Chegado um momento (6min29seg), a seção rítmica se regulariza marcando um pulso acentuado onde a tropa de sikus aumenta também sua pulsação em resposta a percussão, dando lugar a sobreposição de camadas de sikus curtos acentuados e demais tropas com notas longas que paulatinamente vão se integrando num tecido de sonoro de intercalações e justaposições entre tropas. Num momento (7min15seg) essa textura complexa se desarma para deixar os pífanos e os sikus numa interação de baixa intensidade. A finalização da segunda macroseção se dá num uníssono curto (7min50seg).

A terceira macroseção (7min51seg) começa num jogo de relação entre sons curtos e acentuados e sons longos produzidos pelas tropas de quenas e mohoceños criado sobreposições de melodias, os pinkillos, tarkas e pífanos que vão se somando progressivamente, criando estruturas sonoras estáticas de baixa intensidade, enquanto aparecem por intervalos indefinidos a tropa de sikus com sons curtos e acentuados. A primeira parte da terceira macroseção se caracteriza por apresentar sons com muito ar. Dentro da segunda parte, ainda nessa macroseção, se deixa maior espaço (silêncios) para a apresentação de uma melodia entre as tarkas e as quenas (9min50seg). A partir de um momento (10min55seg), entra a tropa de mohoceños que dá lugar a um tipo de coral em duas vozes; paulatinamente vai se somando uma percussão marcada e que se concretiza

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conjuntamente com uma melodia realizada em conjunto com as tropas intercaladas. Em determinado momento (13min03seg) se desestrutura a melodia principal dando passagem a um jogo melódico estático de baixa intensidade criado pela tropa de mohoceños, tarkas e quenas e num momento específico (14min42seg) entra a tropa de sikus em registro grave (sanka e toyo) complementando um ambiente estático de baixa intensidade.

Finalmente apresentamos a quarta macroseção, (15min41seg) onde retornam as tropas de mohoceños, tarkas e quenas e se observam figuras melódicas em intervalos de segundas e terças que se intercalam com ataques fortes, curtos ou longos, da tropa de sikus. Na sequência (17min15seg) se apresenta um jogo de entradas entre as diversas tropas isoladas ou sobrepostas com golpes de percussão, criando blocos sonoros complexos. A partir de determinado momento (18min30seg) aparece o canto de sikus de 11 e 12 tubos que vai se transformando novamente numa textura formada pela tropa de sikus, num contraponto com a tropa de tarkas e mohoceños onde aparecem golpes da percussão fazendo pulsações irregulares. Adiante (22min00seg) se apresenta a coda que utiliza elementos da introdução de percussão com variações.

B. Apontamentos finais sobre o termo Nativo-Experimental no trabalho de

Cergio Prudencio.

A música é a predisposição de escutar, a música é feita por quem escuta, se não existe quem escuta, não há música; e cada vez mais estou convencido que o ouvinte é poderoso por esse atributo, por esse privilegio da escuta que há que fomentar, estimular e desenvolver em nossas crianças e em nossos jovens, como uma alta missão. (PRUDENCIO, 2011, entrevista ao vivo – nossa tradução210)

Certamente podemos afirmar a existência de uma renovada visão trazida por Cergio Prudencio aos elementos musicais relativos das culturas nativo-ancestrais indígenas da zona andina. Observamos como, em meados da década de 1980, pela criação de composições experimentais e posterior fundação da Orquesta Experimental de Instrumentos Nativos

210 Original: “La música es la predisposición de escuchar; la música la hace el que escucha, si no hay quien escucha, no hay música. Y cada vez más estoy convencido de que el oyente es un poderoso, por ese don, por ese privilegio de la escucha, que hay que fomentar, que hay que estimular, que hay que desarrollar en nuestro niños y jóvenes como una alta misión” (PRUDENCIO, 2011, entrevista acessada no link: https://www.youtube.com/watch?v=mFBA01Hs3_c)

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(OEIN) se conseguiu atribuir novos processos dentro do tratamento e compreensão, tanto dos instrumentos nativo-ancestrais, quanto da cosmologia envolvida inerentemente com os povos dos quais se derivam aquelas práticas musicais nativo-ancestrais. Observamos nos povos indígenas a existência de uma marcada relação entre o humano e a natureza, principalmente baseada na criação de princípios que possam ser tratados a partir da posição da terra, e não do homem. Essa perspectiva, colocada a serviço dos ciclos naturais resulta em discussões importantes para a atualidade, focadas principalmente na criação de vínculos entre a modernização ocidental e as suas consequências ambientais e culturais.

Prudencio, que começou seu trabalho composicional há trinta anos, coloca essas discussões a partir do âmbito musical moderno, onde a experimentação sonoro/musical, que foi observada em capítulos anteriores, é fundamentada nos aspectos que reconstruíram e modificaram o modo de escuta, valorizando o ruído e o silêncio do momento presente, envolvendo processos de indeterminismo e desenvolvendo, progressivamente, máquinas e ferramentas que permitiram a integração multimídia dentro da criação musical. Todas essas características derivadas da experimentação sonoro/musical foram impulsionadas no ocidente principalmente pela Europa e América do Norte. A proeza de Prudencio se concentra em fundamentar aquela visão a partir do ponto de vista nativo, encontrando em princípios como a dualidade e a circularidade do natural, presentes na cosmologia andina, fundamentos traduzíveis em experiências musicais experimentais. Prudencio também renova a escuta de instrumentos e tradições musicais nativo-ancestrais, conseguindo incluir um pensamento sonoro evidentemente próximo a criação de espetros harmônicos ressonantes, releitura de termos como uníssono para um uníssono relativo derivado da utilização de notas não temperadas; composição experimental (improvisação estruturada não idiomática) onde são permitidas as explorações sonoras individuais, além de permitir interseções grupais formadas por tropas de instrumentos; uso de técnicas estendidas em instrumentos nativo-ancestrais como harmônicos, diferenciais e multifônicos - um esforço por renovar a escuta do panorama musical nativo para um contemporâneo musical experimental.

O trabalho de Prudencio valoriza, além dos estudos antropológicos ou etno- musicológicos, as perspectivas culturais da América do Sul, sendo de notável importância por conter, em suas raízes étnicas e culturais, evidências vivas (que conseguiram sobreviver) de manifestações ritualísticas e conhecimentos tão perduráveis e sustentáveis, que tem

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conseguido projetar-se numa modernidade que durante séculos tentou desvaloriza-los. Essa desvalorização cultural foi exposta nos processos de hibridação que, como observamos nos apontamentos de Canclini (1989), respondem a princípios de produção e comercialização dentro dos meios de reprodução (processos que fundamentam as nossas sociedades contemporâneas), dando como resultado a perda de valores e identidades próprias das manifestaçnoes culturais indígenas, em pos de uma adaptaçnao para se modernizar. Como exemplo observamos principalmente em amostras musicais como a chicha peruana ou a tecno-cumbia equatoriana211. Pelo contrário, Prudencio utiliza processos de transculturalidade em que se estabelecem relações de cooperação entre dois polos antagônicos que conseguem se conectar e influenciar igualmente. Já que não existe nenhum interesse comercial que esteja além da perspectiva da experimentação, não se pretende acoplar os fundamentos musicais nativo-ancestrais dentro de uma estética de produção, mas pelo contrário, são ressaltadas as qualidades, peculiaridades e cosmologias inerentes às manifestações musicais nativo- ancestrais através de uma visão inovadora, produto da experimentação musical.

III. Tecno-Xamanismo na composição multimídia e performance.

[O tecnoxamanismo] é uma tentativa de juntar duas formas de conhecimento que são constantemente separadas. A bruxa e o cientista. O curandeiro e o médico. A feiticeira e o robô. A convergência entre técnica e xamanismo é um investimento de reparação de erros antigos de má distribuição de saberes e julgamentos deterministas precipitados a respeito das formas de conhecimento. O tecnoxamanismo apela ao animismo, às religiões da natureza, as visões do mundo mais tradicionais, ou ainda ancestrais, a fim de trazer à tona suas sincronicidades, fazê-las interpenetrarem-se. (MELO, BORGES, 2012, p. 2)

A seguir, inserimos na presente pesquisa diversos apontamentos e informações referentes a um elemento fundamental dentro das comunidades nativo-ancestrais, que funciona como transdutor dos saberes míticos para uma realidade dentro da funcionalidade da comunidade: O xamã. Essa figura foi citada tanto por Renato Cohem (2001)212, quando o

211 Estes gêneros musicais utilizam principalmente os parâmetros da música andina misturados com instrumentos e processos de produção eletrônica. Sobre o assunto, podemos mencionar o texto de Fanny Pineau e Andrés Mora Ramírez, La reconstrucción de las Identidades en la Música Popular Andina en Perú (2011) e o artigo de Alfredo Santillán e Jacques Ramírez, Consumos Culturales Urbanos: el caso de la tecno-cumbia en Quito (2004) 212 Observar ao final do ponto 1.2.2.- Diferenças entre o Happening e a Performance, neste trabalho.

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autor explica como o performer pode ser comparado com essa figura pela função de trazer a imersão do ritual dentro do happening; e também por Fernando Iazzetta (2009)213, quando comparou o operador computacional em conjunto com a máquina (computador) com o xamã, manipulando “porções feitas de bits e bytes” num ambiente alterado que propicia essa mesma imersão ritual. Podemos afirmar que, nesse sentido, a ideia do xamã reside num ente regulador ou transmissor do momento ritual. De forma empírica sua imagem é usada com a função de transmissor ou facilitador da ritualidade, algo que foi amplamente discutido anteriormente dentro da contextualização do happening-performance, potencializando a capacidade de transmutar o cotidiano através de ferramentas tecnológicas como o computador, os alto-falantes ou de uma hipersensibilização do momento presente com o propósito de apresentar novas realidades, capazes de atingir a percepção tanto do performer quanto do público.

Se bem observamos a utilização empírica da figura do xamã para atribuir uma imersão ritualística à performance, depreendemos aquelas formulações que dividem a função do xamã primeiramente a partir do aspecto ritual, que será observado através da funcionalidade do xamanismo como ferramenta para promover o dito estado estático imersivo dentro de práticas performáticas; posteriormente observamos o termo tecnoxamanismo como o modo de relação com as máquinas, a partir dos vários apontamentos que descrevem o xamã e seus artefatos em analogia com as tecnologias propiciados pelos desenvolvimentos técnicos do “homem branco” –uma nova visão para o relacionamento com algumas tecnologias. Finalmente colocamos em evidência o trabalho do compositor Matthew Burtner (2005) quem conseguiu misturar alguns elementos relacionados com as práticas e capacidades do xamã dentro da composição multimídia performática onde foram utilizados os saberes do xamã, potencializando a cosmologia da floresta dentro de espaços de experimentação musical e fortalecendo nossos argumentos sobre as relações entre o xamanismo e as práticas musicais experimentais na atualidade.

Devemos esclarecer primeiramente que o conceito de ritual deve ser aprofundado se desejamos compreender o tecno-xamanismo como ferramenta potencializadora do campo de imersão. Para isso, o pesquisador Richard Schechner (2013) traz importantes apontamentos

213 Observar ao final do ponto 3.2.- As máquinas de manipulação sonora analógica e sua progressiva digitalização e integração na música experimental.

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sobre a ritualidade dentro da performance. Podemos afirmar que existem evidências da prática ritual na cultura humana desde milhares de anos, devido aos vestígios de pinturas e esculturas rupestres achadas nas cavernas de Lascaux e Altamira, na atual França e Espanha, que datam do período entre 9000 anos a.C. e 40000 anos a.C. Segundo Schechner (2013): “Em muitas culturas, participar performaticamente é o núcleo da prática ritual. Na antiga Atenas, o grande festival de teatro foi um ritual, arte, competições esportivas e o entretenimento popular simultaneamente” (SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 1419 – nossa tradução214).

A ritualidade é parte fundamental da cosmologia humana, os “rituais são memórias coletivas codificadas em ações. Os rituais também ajudam as pessoas a lidar com transições difíceis, relações ambivalentes, hierarquias, desejos que problematizam, se excedem, ou violentam as normas da vida cotidiana” (SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 2015 – nossa tradução215). Todas as nossas atividades cotidianas mediante sua repetição constante tomam o contexto de ritual; esse modo de operação Schechner (2013) o identifica como rito secular; por outo lado é mencionado rito místico ou sagrado, que a diferencia do rito secular, o rito sagrado atinge a nossos afetos, conseguindo colocar ao espetador num estado de hipersensibilidade, algo que deve ser considerado como elemento utilitário dentro da tecnologia do xamã. Dessa forma, “a eficiência do ritual deriva do oculto. O oculto difere do aparente onde o aparente pode ser conhecido, em última instância pela experiência sensorial, e conforma as regularidades da causa material. O oculto não pode ser conhecido nem conformado” (RAPPAPORT apud SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 2063 – grifo nosso - nossa tradução216). Portanto, encontramos nos atributos do xamã, a capacidade de lidar com esse fator oculto, que poderia ser também catalogado como não-humano, se manifestando nas palavras do antropólogo Eduardo Vivieros de Castro (2002) como “uma potência (capacidade manifestada) de certos humanos [xamã] de cruzar as barreiras e adotar a perspectiva de subjetividades não-humanas. Sendo capazes de ver os não-humanos como estes se vêm (como humanos), os xamãs ocupam o papel de interlocutores ativos no dialogo

214 Original: “In many cultures, participatory performing is the core of ritual practice. In ancient Athens, the great theatre festivals were ritual, art, sport-like competition, and popular entertainment simultaneously” (SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 1419). 215 Original: “Rituals are collective memories encoded into actions. Rituals also help people deal with difficult transitions, ambivalent relationships, hierarchies, and desires that trouble, exceed, or violate the norms of daily life” (SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 2015). 216 Original: “The efficacy of ritual derives from ‘the occult.’ The occult differs form ‘the patent’ in that the patent can be known in the last resort by sensory experience, and it conforms to the regularities of material cause. The occult cannot be so known and does not so conform” (RAPPAPORT apud SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 2063)

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cósmico” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 468).

Esse fator ritual e sua relação xamânica foi explorado pelas pesquisadoras Camila melo e Fabiane Borges que, em 2011, realizaram várias oficinas utilizando o conceito tecno- xamanismo para promover práticas performáticas baseadas em alguns conceitos do ritual xamânico ameríndio. Dessas experiências, nasce o texto Tecnoxamanismo (2012) em que elas explicam as experiências realizadas na University of London em maio de 2011. Nesse texto, o componente ritual é explicado da seguinte maneira:

O ritual é capaz de fortalecer o foco de atenção das pessoas, sensibilizar e ampliar a conexão do mundo. Acredita-se que no estado ritual, os modos de conhecer alguma coisa se intensificam. Enquanto na vida cotidiana das cidades e universidades se pensa o conhecimento como apreensão de um pedaço do mundo, da crítica, da história, criando-se dominação sobre a coisa, no espaço ritual o paradigma é outro: matéria, objetos, elementos sígnicos se tornam mais vivos, mais presentes e a relação é mais direta, menos cristalizada. Talvez seja uma forma mais alucinada de ver a realidade (MELO, BORGES, 2012, p. 3).

Consequentemente observamos que o ritual parece ser um estado de atenção focada que cria uma hipersensibilidade promovendo leituras diferenciadas do mundo real; permitindo a conexão de sutilezas que não poderiam ser atendidas num estado natural de vigília. Podemos observar que em certos contextos performáticos o ritual, se configura como um elemento de sustentação dentro de plataformas que agudizem a atenção e promovam espaços para conseguir atingir um estado sensível, entregar o controle das sensações em prol da experiência sensorial, promovendo vinculações entre os participantes e os performers, valorizando o momento presente e acentuando as relações interpessoais. A figura do xamã como ente condutor desse processo ritual passa a ser evidente para evocar aquele estado de hipersensibilidade ou atenção aguda mediante “a utilização de variadas ferramentas performáticas que incluem música, dança, máscaras, vestuários e objetos místicos”. (SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 6890 – nossa tradução217). Portanto afirmamos que o ritual descreve a passagem da realidade comum, dentro de uma compreensão simbólica que encena uma mudança nas relações individuais e seu entorno. A simbolização da realidade comum que atravessa o ritual cria a sensação de uma experiência transcendental em quem participa do ato.

217 Original: “Shamans employ a rich performance toolkit that includes music, dance, masks, costumes, and metical objects”. (SCHECHNER, 2013, versão eletrônica, pos. 6890)

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Continuando com nossos apontamentos sobre o termo tecno-xamanismo, observamos uma relação com as ciências modernas que se configura de forma não-equivalente, quer dizer, enquanto “a ciência opera pela desanimação do mundo: para obter um conhecimento objetivo, é preciso remover qualquer vestígio de subjetividade. Pelo contrário o xamã não só reconhece, como é capaz de dialogar com as subjetividades não-humanas, atribuindo a elas faculdades de intencionalidade e agência” (BELISÁRIO, 2015, p. 276). Nesse sentido, a perspectiva científica moderna estabelece a unidade da natureza com o desenvolvimento tecno-cientista, além de presenciar a pluralidade subjetiva das culturas como fonte de estudo de acontecimentos culturais considerados como estáticos218; por outro lado a posição ameríndia supõe um multinaturalismo, descrito especificamente nas relações dos seres que ocupam a floresta, criando assim “uma unidade do espírito e uma diversidade de corpos” (VIVEIROS DE CASTRO apud BELISÁRIO, 2015, p. 376).

O sociólogo e pesquisador Pedro Peixoto Ferreira aponte importantes considerações dentro de dois trabalhos fundamentais sobre xamanismo e tecnologia, em seu artigo intitulado: Os xamãs e as Máquinas: Sobre algumas técnicas contemporâneas do êxtase (2005) e posteriormente em sua tese de doutorado: Música Eletrônica e Xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase (2006) serão levantados diversos argumentos uteis para aproximar os fundamentos relativos ao xamã como ente técnico e tecnológico.

Primeiramente colocaremos brevemente esboços que nos ajudaram a compreender melhor a funcionalidade e capacidades místicas do xamã explicadas pelo pesquisador Peixoto (2006) quem utiliza as formulações do historiador Mircea Eliade219 (1998) que dá uma definição preliminar dentro da complexidade do termo: xamanismo = técnica do êxtase, nesse sentido se explica que o xamã teria a capacidade de controlar tecnicamente o seu próprio

218 Muitos dos ritos e cosmologias nativo-ancestrais vêm se mantendo inalterados durante séculos, de aí que se acredite que eles continuem sendo estáveis e inalteráveis. Evidentemente evidenciamos que muitas dos ritos e manifestações socioculturais nativo-ancestrais, dentro de nosso contemporâneo, “um universo acelerado do ciberespaço e liberalismo globalizado” (LIPOVETSKY, 2004, p. 61) 219 Pedro Peixoto explica que o trabalho de Mircea Eliade frequentemente é criticado na antropologia por nunca ter pesquisado o xamanismo fora da biblioteca. Mas certamente Eliade oferece pontos importantes que são ressaltados no trabalho de Peixoto que serão trazidos para este trabalho. Outras obras importantes relacionadas aos temas são: Shamanism, History and State editado por THOMAS, Nicholas e HUMPHREY, Caroline. (1999); Shamans Through Time: 500 years on the path to knowledge por NARBY, Jeremy e HUXLEY, Francis (2001); Shamans and religion: An Anthropological Exploration in Critical Thinking por KEHOE, Alice (2000); concluindo que apesar das diversas críticas sobre a obra de Eliade existe um acordo entre os pesquisadores sobre dois pontos meritórios que sua obra pode aporta: (1) a disponibilização de maneira ordenada e sintética da enorme quantidade de pesquisas até então dispersas sobre o xamanismo, dando inicio a uma nova fase de estudo do fenómeno e (2)ter proposto uma terminologia unificada centrada principalmente no conceito embrionário de “técnicas do êxtase” (Peixoto, 2006, p 121)

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êxtase e aquele dos outros. Portanto “se afirma que quase todos os que escrevem sobre o tema apontam o êxtase como o ingrediente inescapável do xamanismo, sendo o elemento comum em todos esses relatos o fato de o xamã manter o controle de seu êxtase” (PETERS, PRICE- WILLIAMS apud PEIXOTO, 2006, p. 121).

Seguidamente Pedro Peixoto (2006) explica que existem uma variedade de atividades que iniciam a pessoa dentro do xamanismo, tais experiências podem assumir formas e contextos diversos, baseados principalmente nos primeiros contatos com o mundo do sobrenatural sendo este o ponto de partida para o aprendizado das técnicas do êxtase. Aqueles contatos são principalmente vivenciados em situações limite (doenças, traumas, rupturas existenciais, experiências próximas da morte ou a morte mesma) sendo indispensáveis a superação destas experiências num sentido de rituais de iniciação220. Peixoto explica através de Eliade (2006) que esses rituais de iniciação se destacam com uma forte relação com os sonhos, as visões e as doenças com o propósito de gerar uma “viagem da alma” dando como resultado “experiências estáticas” profundas. Essas experiências têm clara relações com o que se denomina como “a morte ritual” onde o iniciado deverá descer ao inframundo221conseguindo obter revelações fundamentais sobre os elementos não-humanos que podem se projetar no mundo presente do homem. “A experiência estático-mórbida iniciática do xamã é, portanto, uma espécie de aprendizado” (PEIXOTO, 2006, p. 125).

O xamã é curandeiro e psicopompo222 porque conhece as técnicas do êxtase, isto é, porque sua alma pode abandonar impunemente o corpo e vagar por enormes distancias, entrar nos Infernos e subir ao Céu. Ele conhece, por experiência estática pessoal, os itinerários das regiões extraterrenas. Pode descer aos Infernos e subir ao Céu porque já esteve lá. O risco de perder-se nessas regiões proibidas é sempre grande, mas, santificado pela iniciação e munido de seus espíritos guardiões, o xamã é o único ser humano que pode correr esse risco e aventurar-se numa geografia mística (...) É graças a essa capacidade extática que o xamã conhece o itinerário e, além disso, é capaz de controlar e conduzir ‘almas’, sejam elas de pessoas ou de animais” (ELIADE apud PEIXOTO, 2006, p. 126)

A compreensão do xamã e sua relação com a tecnologia, definindo que a tecnologia

220 Uma prática muito utilizada dentro do ritual xamánico amazônico é ingerir uma bebida conhecida como Ayahuasca (o cinema da floresta) que além de induzir fortes alucinações gera na pessoa um estado de “doença” produzindo vomito ou diarreia, atribuindo-se como passo essencial para a limpeza interna e externa do ser. 221 Lembremos que anteriormente descrevemos a cosmologia ameríndia dividida em três mundos, o mundo de acima onde e encontram os deuses, o mundo presente onde mora ou homem, e o mundo de abaixo (infra-mundo) onde estão os mortos e os mestres ancestrais. 222 O termo psicopompo pode ser traduzido como “guia espiritual” (KEHOE, 2000, p. 42)

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pode ser observada como “conhecimento técnico e sistemático” considera as tecnologias do xamã relativas a sua “ciência sistemática da alma”, afirmando que ao tratar dos pontos fundamentais referentes à variedade “de mitos da origem humana na América do Sul”, se evidencia a capacidade de saber por imitação ou representação simbólica constituindo-se na essência da tecnologia xamânica, podendo ser projetada nas formas de arte, música, uso de ferramentas e ação ritual, como fundamento da criatividade da cultura humana. (SULLIVAN apud PEIXOTO, 2006). Dessa forma se explica que dentro das mitologias de América do Sul, a tecnologia se representa como um modelo do sobrenatural que pode ser entendido através do acesso ao tempo mítico223, o contato com deuses, espíritos ancestrais e mestres animais. “É, enfim, através da imitação de procedimentos míticos que a tecnologia é transferida para os homens, atualizada em cada sociedade” (PEIXOTO, 2006, p. 147).

Dessa forma o próprio corpo do xamã passa a ser sua tecnologia que depois de ter superado o ritual de iniciação consegue acessar a estados de consciência alterados possibilitando sua conexão com diversos planos míticos da realidade. A capacidade de deixar seu corpo e realizar viagens pelos mundos espirituais cosmicizando o caos e trazendo às comunidades da floresta conhecimentos antes inaccessíveis, devem ser vistas como tecnologias que anteriormente foram restritas aos seres míticos (xamãs primordiais) e que são agora atualizadas de diversas maneiras por novos xamãs. Peixoto (2005) explica através de Lawrence Sullivan (1988) que o corpo do xamã é parte de sua tecnologia e o controle do xamã sobre sua própria fisiologia, a fisiologia dos animais da floresta, e sobre as pessoas de sua comunidade são conhecimentos que são uteis para tratar e transferir atributos sanadores à várias entidades participantes do ritual.

Outros atributos do xamã mencionadas por Peixoto (2005) são as chamadas “técnicas corporais”, as mesmas que se relacionam com a capacidade metamorfomica do xamã quem poderia se converter em um “animal mítico”. Peixoto expõe que dita capacidade é ampliada pelo antropólogo Eduardo Viveiro de Castro no texto Os pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio (1996) onde se considera uma relação metaestável de diferenciação entre a universalidade espiritual virtual da cultura dos humanos e a singularidade somática atual da natureza do não-humanos (espíritos ou energias). Viveiros de Castro expõe que os

223 Segundo Mircea Eliade é o regime temporal específico em que se da a experiência do sagrado. Um regime trans-histórico em que o tempo não passa linearmente, mas sim ciclicamente, um tempo que é sempre reencontrado pelo xamã quando ele entra em êxtase (ELIADE apud PEIXOTO, 2006, p. 136)

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animais têm em seu interior uma humanidade, tal concepção está quase sempre ligada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envolvente (uma roupa) que esconde uma forma interna humana, que pode ser visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Nesse sentido Viveiros de Castro manifesta:

Teríamos então, a primeira vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável. A noção de roupa é uma das expressões privilegiadas das metamorfoses – espíritos, mortos e xamã que assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em animais -, um processo omnipresente no mundo “altamente transformacional proposto pelas ontologias amazônicas (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 117).

Ainda sobre as capacidades metamórficas do xamã Peixoto Ferreira (2005) menciona que de forma análoga, as etapas essenciais de iniciação xamânicas consiste em transformações radicais do corpo do xamã, lhe entregando faculdades e formas não-humanas e lhe possibilitando o acesso à alteridade radical da natureza e da sobrenatureza. “O corpo é visto aqui como uma roupa para o espírito, ao mesmo tempo em que roupas, mascas, mascaras etc. São percebidos como meios de transformar esse corpo e torná-lo capaz de ingressar em outros ambientes”. (PEIXOTO, 2005, p. 8)

Com respeito às relações técnicas e teológicas que possui o xamã podemos também afirmar que o corpo de xamã comumente também pode ser colocado em analogia com um receptor de rádio, um canalizador de frequências elevadas que só ele, com sua capacidade técnica, pode perceber e transmitir; nesse sentido, Pedro Peixoto (2005) traz considerações úteis através dos apontamentos de Eduardo Viveiros de Castro (1986) sobre a relação xamã e máquinas, podendo mencionar que dentro do povo Araweté224se tem a ideia de associação entre potencialidades xamânicas e tecnológicas. Ele afirma que: “O xamã é um rádio”, com isso, o povo Araweté diz que o xamã é um veículo, um instrumento para entrar em contato com as realidades não-humanas. Esta metáfora do xamã funcionando como rádio também pode ser observada em outras comunidades indígenas da floresta, como os Desana225 que entendem o xamã como um “transmissor”, um ente que comunica, à modo de telefone ou de um rádio (DOLMATOFF apud PEIXOTO, 2005, p. 6). Por outra parte os

224 Povo nativo-ancestral indígena da região Araweté Igarapé Ipixuna no Pará – Brasil. 225 Etnia nativa-ancestral indígena situada na região noroeste do estado brasileiro do Amazonas.

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Ashanica226explicam que as almas dos mortos são como “ondas de rádio” que andam voando por aí, e cujas canções podem ser receptadas e registradas por rádios e gravadores (NARBY, apud PEIXOTO, 2005, p. 6). Os Yanomami227 entendem que muitos dos objetos rituais usados na vestimenta do xamã se assemelham a antenas de rádio (GARCIA dos SANTOS apud PEIXOTO, 2005, p. 6). É assim que algumas das comunidades nativas-ancestrais relacionam ao xamã e sua capacidade mística em analogia com as transmissões de rádio do mundo moderno, sendo um exemplo claro da função tecnológica do xamã para essas comunidades da floresta.

Associando o xamã a um rádio, se está simultaneamente revelando aspectos do xamanismo enquanto tecnologia e da tecnologia como xamanismo. Poderíamos perguntar: qual é o limite entre o xamã enquanto ser humano e o rádio enquanto objeto técnico? Ora, tal não parece ser a questão colocada pelos próprios xamãs. Antes, eles parecem evidenciar a existência de uma realidade pré-individual, anterior à distinção entre sujeito e objeto, entre o homem e a máquina desejante mítico-ritual. Talvez os Araweté não estejam sendo tão metafóricos afinal, quando dizem que “o xamã é um rádio”, visto que o próprio radio não parece ser mais do que um aspecto da virtualidade tecnológica do corpo do xamã que foi externalizado e tornado objeto atual. (PEIXOTO, 2005, p.7)

A. O tecno-xamanismo na música multimídia de Matthew Burtner

Para finalizar nossa exploração sobre o termo tecno-xamanismo, trazemos o compositor norte-americano Matthew Burtner, que tem se caracterizado por relacionar parte do seu trabalho compositivo com elementos naturais de paisagens geográficas, colocando a performance musical em ambientes naturais como as terras congeladas do Alaska, onde o gelo e os sons produzidos por esse mundo natural são integrados aos sons musicais de instrumentos tradicionais. Esse é o caso da composição Sintex of Snow (2011), para 1 a 4 xilofones e neve amplificada. Por outra parte, o trabalho de Burtner se mostra útil para esta pesquisa por ter inserido numa composição multimídia parte da própria cultura tradicional de Alaska, na qual a figura do xamã é fundamental, e processos tecnológicos, audiovisuais e interativos que conformam as ferramentas para a construção de discursos artísticos

226 Povo nativo-ancestral indígena situado nas regiões fronteiriças entre Peru, Bolívia e o estado do Acre no Brasil. 227 Etnia nativa-ancestral indígena na região amazônica da Venezuela e do Brasil, a mesma está dividida em três grupos: os sanumá, yanomam e yanam e constituem importantes referências ancestrais dos povos da floresta com mais de 15000 pessoas.

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transculturais. No artigo intitulado Ecoacoustic and shamanic Technologies for multimídia composition and performance (2005), Burtner apresenta composições de experimentação musical com aproximações a técnicas e tecnologias xamânicas. Burtner (2005) esclarece que dentro do seu trabalho compositivo Ukiup Tulugaq (Winter Raven) (2002) as interfaces tecno- xamânicas são especialmente utilizadas para evocar os poderes míticos dos rituais tradicionais e as conexões com as formas do ambiente. A tentativa de criar um novo tipo de plataforma de trabalho musical nutrida pelas tradições xamânicas das artes performáticas de Alaska – sendo a tecnologia, uma ponte entre o movimento físico e virtual do som – explora manifestações contemporâneas das formas de artes não-europeias/ocidentais onde cultura e natureza estão intimamente ligadas. (BURTNER, 2005, p. 3).

Burtner (2005) evidencia que os condicionamentos sociais do ocidente relativizam estereótipos opostos para o “ambientalista” e o “tecnocrata”; a cultura europeia/ocidental, através de seus condicionamentos, coloca também em estereótipos antagônicos o “desenvolvimento” do ponto de vista da natureza rumo ao progresso e o “conservacionista” que vê o desenvolvimento tecnológico como uma força opressiva invasora. Essas generalizações são resultados históricos das relações culturais europeias/ocidentais com seus ambientes naturais. Por outro lado, Burtner (2005) identifica que as culturas não europeia/ocidentais (em nosso caso, chamadas nativo-ancestrais) tem apresentado notavelmente diferentes relações entre o desenvolvimento tecnológico humano e o ambiente natural.

Burtner (2005) explica que, de forma geral, as manifestações culturais que surgem de celebrações ou rituais nativo-ancestrais possuem uma conotação intrinsecamente multimídia, misturando vestuário, dança, teatralidade e música. Essa caraterística de performance multimídia também é observada nas manifestações musicais das etnias Inuit228 do Alaska. O xamã é o interprete primordial do mundo espiritual, sua função é preparar as pessoas da comunidade através de uma variedade de cerimônias rituais. Para esses eventos são criadas diversas indumentárias, um exemplo é a elaboração de máscaras que, na tradição Inuit, é uma importante parte da preparação cerimonial.

É nesse contexto que Burtner (2005) desenvolve sua visão musical do tecno-

228 Inuit é o nome pelo qual são conhecidas as comunidades indígenas esquimós das regiões árticas do continente Americano.

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xamanismo. Ele explica que “as tradições xamânicas do Alaska fazem uso de objetos especiais para manifestar sua compreensão espiritual. Máscaras para face e mãos, vestimentas ou objetos podem atuar como eixos simbólicos onde as transformações liminares ocorrem” (BURTNER, 2005, p. 4 – nossa tradução229). As pesquisas de Burtner a respeito da tradição cultural do Alaska tem servido de inspiração para trabalhos multimídia que utilizam as interfaces expressivas230 para construir mundos de realidade virtual que evocam as transformações ritualísticas da exploração xamânica. “Os controles por si mesmos criam interfaces em tempo real entre o artista e a mídia, em analogia à interface entre o objeto ritual xamânico e o mundo espiritual” (BURTNER, 2005, p. 5 nossa tradução231).

O trabalho do compositor Matthew Burtner representa um perfil significativo na fusão de tradições nativo-ancestrais e a experimentação musical desenvolvida tecnologicamente; a criação da ópera multimídia Ukiup Tulugaq (Winter Raven) (2002) é um exemplo contemporâneo das tecnologias sonoras e interativas como ferramentas para, através do rito do passagem das estações representado numa cerimônia xamênica, atingir processos relevantes de escuta e percepção, propiciados pela fusão do cerimonial com a arte multimídia. Se o que caracteriza a experimentação musical é sua constante abertura e interação com outros tipos de meios artísticos232, o que Burtner (2005) faz é utilizar essa mesma abertura para dialogar com a manifestação artística multimídia dentro da tradição cerimonial nativo- ancestral das comunidades Inuit de Alaska.

Ukiup Tulugaq ou Winter Raven233 (2002) é descrita por Burtner (2005) como um trabalho de teatro multimídia para conjunto de instrumentos, vozes, computador multicanal de som e vídeo, dança, encenação teatral e iluminação. A obra tem duração de cerca de 90 minutos, está dividida em três atos e é inspirada no mito Unipiaq, que narra a criação do

229 Original: “Shamanic traditions in Alaska employ the use of especial objects to manifest spiritual understanding. Face and hand masks, staffs or clothing can act as the symbolic axis around which liminal transformation occurs” (BURTNER, 2005, p. 4) 230 Interfaces expressivas se referem a sistemas de interação humano-computador. A sigla em inglês é HCI (human-computer interface). 231 Original: “The controllers themselves create a real-time interface between the artist and the media. Analogous to the shamanic ritual object’s interface with spiritual world” (BURTNER, 2005, p. 5) 232 No capítulo 3 desta dissertação discutimos como os meios tecnológicos desenvolvidos a partir do aparecimento do computador possibilitaram a criação de trabalhos experimentais que conjugam arte visual, arte sonora, teatro, poesia, performance. 233 Para maiores informações sobre esta obra e em geral sobre o trabalho de Matthew Burtner acessar ao seguinte site: http://matthewburtner.com/winter-raven-ukiuq-tulugaq/

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mundo pelo Corvo da Neve234. O mito conta que, no começo, só existia o Corvo voando pela escuridão do espaço onde caía neve. Pouco a pouco a neve foi se acumulando nas asas do corvo, logo se agrupou em uma pequena bola de neve. O Corvo lançou essa bola de neve no espaço e ela continuou crescendo pela acumulação de neve até conseguir suficiente tamanho para se manter por si mesma. Dessa maneira a obra Ukiuq Tulugaq ainda conecta metaforicamente essa narrativa com a temporada de inverno que se aproxima: se a neve estava presente originalmente com o Corvo, a chegada do inverno é entendida como sinônimo de renovação ou gênesis na cosmologia nativa do Alaska.

Com a intenção de representar a mudança entre o outono e o inverno, a obra se estrutura em três atos. Essa estruturação em três atos permite que a obra possa transitar por momentos de transformação tanto no contexto dramático teatral da própria obra, como nas seções multimídia. O primeiro ato representa o que ocorre antes do inverno, no outono, momento em que as famílias se preparam para a seguinte estação e existe abundante luz solar. O segundo ato apresenta as transformações psicológicas na passagem do outono para o inverno, o encontro entre as estações ocorre pela justaposição entre o espírito guardião das zonas gélidas do norte e as vozes das indústrias humanas; nesse ato a chegada do gelo congela tudo, quebrando repentinamente a indústria. O terceiro e último ato representa a ideia do vento deixando marcas no gelo. As luzes mudam e as sombras emergem, os animais procuram abrigo enquanto suas pisadas vão desenhando outros padrões na neve. Dessa forma, o terceiro ato trata predominantemente do movimento progressivo que vai se convertendo em estático durante o inverno, se relacionando com a noção de memória e do processo cíclico presente na natureza. A presença do vento é representada pela aparição do Corvo do Inverno que traz consigo a memória da preparação e nova coleta da lenha pelas famílias no outono; é uma analogia do processo contínuo de coabitação entre o homem nativo-ancestral de Alaska e seu entorno natural. A figura do xamã representa nesta obra a força da natureza projetada na energia do sol, no gelo e no vento. Existe o desejo de evocar o poder do xamã para relacionar o humano com seu entorno natural representado na criação simbólica de objetos sagrados e máscaras (BURTNER, 2005, p. 6)

O desenvolvimento da obra em três atos define também em estágios diversos de criação multimídia. Dessa forma, tanto o material sonoro quanto visual e sua respectiva

234 Animal mítico e sagrado dentro das comunidades nativas Inuit de Alaska.

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representação teatral se fundem no decorrer da obra dando lugar a seções bem definidas. Cada ato apresenta diversas peças musicais com instrumentação e processos multimídia específicos que envolvem vídeo, dança e interação de vídeo. A instrumentação é muito variada, incluindo: voz, flauta piccolo e transversal, clarinete e clarinete baixo, saxofone alto, violino, viola, violoncelo, piano, de 2 a 4 tímpanos, 2 glockenspiels235, bombo, vibraphone, marimba, congas, tom toms, 4 tambores graves e 3 pratos. Na obra também são utilizados equipamentos como: de 1 a 3 projetores e teias no palco, sistema de amplificação com altofalantes de oito canais, transmissores de rádio e geradores de ruído como gravadores portáteis que gravam ao vivo muitos dos sons ocorridos e os reproduzem em tempo real por um transmissor de vídeo wireless.

O primeiro ato intitulado Sikñik Unipkaak (sol) é formado pelas peças Family para cortador de madeira, piano e sopros e Tingngivik (o momento em que as folhas caem e os pássaros voam) para viola, saxofone ato, piano, geradores de ruído e vídeo; a primeira seção finaliza com Sikñik Unipkaaq (a história da luz solar) para dança, coreografia de máscaras, percussão, sistema computacional de som multicanal e vídeo interativo. O segundo ato intitulado Siku Unipkaak (gelo) é formado pelas peças Kunikluk (uma delgada linha no horizonte ligeiramente obscurecida pelo soprar do gelo e a neve) para conjunto, geradores de ruído e vídeo; na sequência estão as peças Speaking Flesh para percussão corporal e vídeo e Industrial Garden (vozes perdidas) para dança, percussão vozes e eletrônicos; encerrando a segunda seção está a peça Siku Unipkaak (a história do gelo) para dança, coreografia de máscaras, vídeo interativo, glockenspiels e sistema computacional de som multicanal. O terceiro ato intitulado Anugi Tulugaq (vento) é constituída pelas peças Anugi Unipkaak (a história do vento) para solo de percussão, tambores graves, dança, coreografia de máscaras, vídeo interativo e instrumentos de vento; a peça Snowprints para flauta, violoncelo, piano, eletrônicos e três vídeos e finaliza com Ukiuq Tulugaq (Corvo de Inverno) para voz soprano, violino eletrônico (representando o Corvo), glockenspiels, piano, sons produzidos pelo computador, transmissor de rádio e vídeo.

A presença do xamã, representado por um dançarino, está durante toda a obra. Ele realiza diversas trocas de máscaras, que são processadas em vídeo em tempo real mediante uma técnica de rastreamento de imagem (vídeo tracking), que é sintetizada e alterada em suas

235 Tipo de instrumento idiofone percussivo metálico.

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formas e coloração na imagem projetada na tela, por um software especializado em processamento de vídeo chamado software Isadora. Para conseguir a interação com o vídeo tracking foi preciso realizar um vídeo coreografia, produzida pela coreógrafa Aniseh Khan Burtner. Ela explica que cada uma das máscaras utilizadas nessa obra simbolizam um elemento ou um espírito; por exemplo os movimentos do primeiro ato estão ligados ao sol, eles são fluidos, circulares e estáveis; os movimentos coreografados para o segundo ato representam o gelo, propõem-se movimentos realizados devagar, quase estáticos; os movimentos coreografados para o terceiro ato representam o vento, com movimentos pequenos e orgânicos. O xamã leva consigo um sistema wireless de transmissão de vídeo. Todos os movimentos são mapeados e processados pelo software Isadora, com um tipo de vídeo específico para cada ato, processado num computador e posteriormente projetado em tempo real nas telas do palco.

Outro ponto importante nessa obra é a ideia de distribuição e espacialização sonora para a imersão em ambientes. Este tipo de sistema é chamado de ecoacústica, Burtner o explica da seguinte maneira:

Ecoacústica é o nome usado aqui para uma abordagem que deriva procedimentos musicais de processos ambientais abstratos, remapeando dados ecológicos para o domínio musical. No sentido mais geral, eco- acústica é um tipo de ambientalismo no som, uma tentativa de desenvolver uma maior compreensão do mundo natural por meio de uma percepção mais próxima. No campo da composição, isso assume a forma de procedimentos e materiais musicais que, direta ou indiretamente atuam no desenvolvimento de sistemas ambientais para estruturar música (BURTNER, 2005, p. 10 – nossa tradução236).

Burtner (2005) explica que os diferentes dados obtidos da natureza podem ser traduzidos como informação. Esses dados podem ser as ondas do oceano ou o vento, por exemplo, e a forma de espacialização sonora pode estar relacionada à ecoacústica por meio da composição da paisagem sonora237 natural de um lugar específico, como descrito no trabalho de pesquisa de Barry Truax Handbook for Acoustic Ecology (1999). Também pode estar

236 Original: “Ecoacoustics is the name used here for an approach deriving musical procedures from abstracted environmental processes, remapping data from the ecological into the musical domain. In the most general sense, ecoacoustics is a type of environmentalism in sound, an attempt to develop a greater understanding of the natural world through close perception. In the field of composition, this takes the form of musical procedures and materials that either directly or indirectly draw on environmental systems to structure music” (BURTNER, 2005, p. 10) 237 A paisagem sonora tem uma referência visual forte, dada que a paisagem é frequentemente uma imagem, dessa forma o termo é entendido uma imagem dos elementos sonoros de um determinado lugar (site-specific) (ambientes sonoros específicos). Será discutido no capítulo V desta dissertação.

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relacionada com modelos de sonificação ecológica, uma técnica bem articulada por Damian Keller no seu trabalho Compositional Process from an Ecological Perspective (2000). Nesse sentido, Burtner (2005) explica que “a aproximação que eu tomei da ecoacústica nessas peças começa como processualmente causal de tal modo que os dados são mapeados de forma simples e direta. A questão foi primeiramente conseguir uma representação sonora perceptível do sistema ambiental” (BURTNER, 2005, p. 11 nossa tradução238). Nesse sentido, a composição com sonificação ecoacústica representa um processo em que pode ser controlado o grau de distorção da gravação de um ambiente sonoro, criando um mapeamento capaz de manter algumas das características da fonte sonora natural enquanto simultaneamente vai se fusionado e compilando com a música.

B. Apontamentos finais sobre o termo tecno-xamanismo na composição

musical e performance.

Depois de ter levantado meticulosamente as perspectivas dos diferentes pesquisadores citados anteriormente podemos afirmar que o termo tecno-xamanismo, passa a estar constituído principalmente de duas perspectivas. A primeira que se relaciona especificamente com as técnicas utilizadas pelo xamã para invocar estados de êxtase, emergência sensorial e atenção focada; estas técnicas foram conseguidas através de um rito de iniciação, o mesmo que mediante o deslocamento de seu espírito para geografias místicas dos mundos não matérias, sofre um processo primeiramente de morte, de doença, conseguindo dessa maneira obter, mediante a superação de estágios de dor e agonia, conseguir a “vacina” para controlar ditos estados de vulnerabilidade. Essa fortaleza outorga ao xamã o poder para transitar entre o mundo material, e em essência, estabelecer contato com energias, os espíritos de animais de poder239, das plantas e dos mortos dentro da floresta. Esta técnica do êxtase permite ao xamã se estabelecer como vínculo entre o mundo material da floresta e o mundo imaterial do resto de energias e seres não humanos, os mesmos que trabalham de diversas formas, tanto positiva

238 Original: “The approach I took to ecoacoustic in these pieces began as procedurally causal such that data is mapped simply and directly. The point was first to achieve a perceivable sonic representation of the environmental system” (BURTNER, 2005, p. 11) 239 Uma vez que o xamã consegue se conectar com o mundo não-material, consegue acesso a diversas entidades espirituais, as mesmas que são visualizadas como diversos animais que habitam na floresta; dessa forma o xamã pode obter habilidades específicas dos animais invocados, ou mesmo se metamorfosear simbolicamente com o uso de meascaras representativas.

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quanto negativamente dentro das comunidades nativo-ancestrais.

O tecno-xamanismo adquire também outra dimensão, uma dimensão física em objetos tecnológicos, redimensionando a própria relação do homem com a máquina; o xamã nesse sentido, é comparado com uma rádio, um transmissor capaz de detectar e guiar aquelas energias que, mediante o rito e o êxtase pode acessar a planos onde os demais humanos não conseguem. Observamos que o xamã também é um conhecedor e manipulador de objetos místicos, como bebidas alucinógenas ou objetos como máscaras, que lhe permitem se metamorfosear em diversos animais de poder que guiam seu caminho. O xamã também usa sua voz, seus cantos para invocar o rito. Todos esses elementos são considerados como as tecnologias do xamã; técnicas e conhecimentos adquiridos mediante específicos processos de iniciação e transe que fazem de seu próprio corpo e sabedoria parte de suas tecnologias.

Em analogia, observamos que em práticas performáticas principalmente relacionadas com experimentação sonora e multimídia, existe uma leitura equilibrada da técnica do êxtase do xamã, para uma realidade de arte experimental atual. Observamos um interesse por potencializar a escuta e promover a atenção focada, além de incluir a utilização de máscaras, ou objetos simbólicos tradicionais, que podem ser processados pelas diversas tecnologias multimídia próprias da experimentação artística. A experimentação sonora pode também ser impulsada pelos ideais xamanistas, dando lugar a utilização de material sonoro, (cantos, cerimonias, festividades), além de incluir paisagem sonoro característico das comunidades ameríndias, o mesmo que pode ser especializado dando lugar a modificação da percepção acústica recriando ambientes naturais específico; esses elemento se misturam dentro de uma abstração da cosmologia do xamã, conseguindo redimensionar as próprias características estéticas nativo-ancestrais, dentro de um marco experimental, transcendendo as barreiras entre a inovação ocidental e a tradição indígena.

Dessa forma observamos como o tecno-xamanismo pode ser traduzido dentro de processos de experimentação contemporânea, como é no casso do compositor Matthew Burtner, que utiliza a força do mito para juntar procedimentos próprios do rito do xamã em conjunção com processos de composição musical experimental multimídia. O tecno- xamanismo vem a formar dessa maneira, um conceito que relaciona os saberes do xamã com os processos tecnológicos que permitem uma inserção dentro do ritual, o tecno-xamanismo é

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nesse sentido a técnica, seja mediante elementos ancestrais ou tecnológicos, de conseguir acessar a estratos ritualísticos da realidade, potencializando a imersão dentro hiper-sensitiva dos momentos cotidianos, permitindo que o espectador, independentemente de suas crenças ou dogmas, experimente estados alterados da realidade onde o som, a dança, a movimentação e principalmente a imersão a um estado de atenção focada ou hiper-sensibilidade, fazem do tecno-xamanismo uma realidade contemporânea que consegui colocar o mito ancestral dentro de projetos de experimentação contemporânea.

IV. Dois trabalhos de experimentação musical transcultural

Nesta seção apresentamos três trabalhos de compositores de América do Sul que tem relacionado tanto os elementos do tecno-xamanismo quanto fundamentos a cosmologia nativo-ancestral dos ameríndios. Levantamos diversas informações conseguidas principalmente através de material bibliográfico, entrevistas disponibilizadas na internet ou realizadas pessoalmente via e-mail; dessa forma obtemos apontamentos diretamente dos compositores. Começamos com o trabalho Amazônia: Música Teatro em Três Partes (2010) o mesma que está centrado no mito Yanomami conhecido como “A queda do Céu”; a concepção desta obra foi possível graças ao trabalho em conjunto de pesquisadores, artistas, compositores e representantes indígenas Yanomami dando como resultado três partes bem diferenciadas dentro desta obra; no presente trabalho nós focaremos exclusivamente na segunda parte desta obra intitulada A Queda do Céu com música e sample240 do compositor brasileiro Tato Taborda, o texto de Roland Quitt e direção de Michael Scheidl.

O segundo trabalho apresentado nesta seção corresponde a uma composição do compositor equatoriano Mesías Maiguashca intitulada Canción de la Tierra (2013), inspirada na celebração do Inti Raymi241. Esta composição além de utilizar instrumentos nativo- ancestrais indígenas e instrumentos tradicionais de orquestra é realizada durante o amanhecer do 21 de junho utilizando o mito e a ritualidade da celebração indígena como parte fundamental da composição.

240 Amostra digitalizada do som. 241 Celebração indígena do altiplano de América do Sul realizada entre os dias 20 e 21 de junho considerada como a grande celebração do Sol.

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Finalmente realizamos diversas conclusões sobre as composições mencionadas, acrescentando brevemente o trabalho do compositor argentino Alejandro Iglesias Rossi, quem é o fundador da Orquesta de Instrumentos Autóctonos y Nuevas Tecnologías, que está focada em pesquisar os diversos instrumentos nativo-ancestrais das culturas ameríndias, os mesmos que são utilizados dentro de composições de música experimental onde se fusiona o caráter ritual em cena, a utilização de tecnologias eletroacústicas e evidentemente, sonoridades provenientes da cosmologia nativo-ancestral.

É dessa maneira que colocaremos trabalhos contemporâneos que trazemos uma visão clara sobre as relações que a música experimental tem com as tradições musicais nativo- ancestrais na atualidade. Desses exemplos obteremos apontamentos fundamentais que servirão para compreender como são as relações transculturais desenvolvidas neste tipo de obras, os matérias e recursos tecnológicos utilizados e principalmente, a cosmologias nativo- ancestral que passa a ser material sustentador dos diversos processos experimentais que dela podem surgir. Afirmamos que este tipo de prática musical atual revitaliza os discursos sobre as culturas tradicionais projetando aquelas tradições fora das catalogações folclóricas e revitalizando sua prática ne cenário contemporâneo.

A. Tato Taborda – Amazônia: A Queda do Céu (2010)

Amazônia foi uma criação coletiva na qual, desde 2006, importava fazer uma ópera não sobre, mas com a floresta e sua gente. O que, de saída, implicava em apostar na possibilidade de abertura de um dialogo transcultural, e não intercultural nem multicultural, isto é, apostar na construção de um solo comum no qual as diferenças culturais sobre a questão fossem postas e contrapostas, não para encontrar um denominador comum, uma síntese, ou um acordo, mas sim para que o próprio compartilhamento de saberes e práticas fosse estabelecendo parâmetros para lidarmos com as diversas visões da floresta de um modo produtivo (SANTOS, 2013, p. 13).

Começamos com os fundamentos da concepção e realização da obra Teatro Música Amazônia a mesma que “deve ser encarada como uma experiência transcultural (...) Seus pressupostos, passos e procedimentos e resultados deveriam ser observados, analisados e avaliados porque foram continuamente nutridos pela convicção de que nenhuma cultura deve

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ser abstratamente como superior a outra” (SANTOS, 2013, p. 15). Para Santos (2013), na obra deve ser abordada a Amazônia e as comunidades que habitam em ela, como culturas que têm conseguido subsistir apesar do desenvolvimento produtivo do homem “branco”; nesse sentido, essas manifestações nativo-ancestrais, por serem culturas vivas, formam parte do contemporâneo. Esta obra se fundamenta no desenvolvimento do homem contemporâneo que observa as tradições ancestrais dos povos da floresta. “Em poucas palavras: seria preciso que as duas cosmologias e as duas culturas [a cultura de progresso do homem moderno e a cultura ritualística das comunidades nativas da floresta Amazônica], mesmo guardando suas diferenças, fossem tomadas em pé de igualdade, fossem respeitadas em seu modo próprio de enunciação” (SANTOS, 2013, p. 14).

O sociólogo e pesquisador Laymert Garcia dos Santos em seu livro Amazônia Transcultural: Xamanismo e Tecnociência na Opera (2013) oferece um ponto de partida importante para compreender a concepção desta obra, que será exposta primeiramente dentro da conotação em que foi concebida. Essa obra, que pode ser catalogada como ópera multimídia ou Teatro Música, está organizada em três atos, sendo o segundo ato, que foi composto pelo compositor Tato Taborda e intitulado A queda do Céu, nosso principal ponto para evidenciar as relações entre música experimental multimídia e seu contato com a cosmologia nativo-ancestral dos povos Yanomami das florestas amazônicas.

Para produzir uma visão transcultural que albergasse as cosmologias evidentemente opostas foi preciso a criação de um processo em que estivessem envolvidas as línguas portuguesa, alemã, inglesa e yanomami, se misturando umas com as outras com o propósito de estabelecer um espaço de diálogo transcultural, e também instituições europeias, brasileiras e yanomami, como a Bienal de Munique, o Instituto Goethe, ZKM – Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe, o Teatro Nacional São Carlos de Lisboa, Sesc São Paulo e Hutakara Associação Yanomami, unindo esforços sob a coordenação do pesquisador artista plástico Joachim Bernauer do Instituto Goethe em São Paulo. Essa combinação tornou exequível este grande projeto de arte experimental transcultural, em que foram mobilizados recursos materiais, humanos, intelectuais, artísticos culturais e técnicos. A ideia de fazer esta obra considerada como Teatro-Música foi concebida pelos artistas José Wagner Garcia e Joachim Bernauer a partir do ano 2005. Posteriormente, em 2006, foram discutidos alguns projetos preliminares com diversos parceiros do ZKM, em Karlsruhe, Alemanha, assinados pelos pesquisadores

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Laymert Garcia dos Santos e Eduardo Viveiros de Castro. A importância desta obra é explicada por Santos (2005) da seguinte maneira:

Trata-se de fazer o público erudito perceber e realizar que, nessa região do mundo [Amazônia] (cuja dimensão geoestratégica se expressa no fato de ser a número um em termos de megadiversidade biológica, conter as maiores reservas de água doce do planeta e influir dramaticamente no clima em toda parte), confrontam-se duas concepções das relações entre natureza e cultura, duas perspectivas que merecem ser esteticamente trabalhadas porque, talvez, só assim será possível converter o seu desencontro num diálogo crucial para o futuro da espécie humana e, também das outras espécies (SANTOS, 2013, p. 18)

A partir desses pressupostos, a obra foi concebida em torno de três atos desenvolvidos como linhas de força que colocam em cena a luta entre o desenvolvimento e a tradição. O primeiro ato foca na perspectiva ocidental onde se evidencia a tecnociência que entende e explora a floresta como informação, inserindo elementos como biodiversidade e biotecnologia, e envolvendo cientificamente a floresta como recursos variados em questões de genética de plantas, animais e humanos. O segundo ato coloca como figura central o xamã, através dele estaria projetada a perspectiva ameríndia de “uma cultura, muitas naturezas”. Neste ato são abordadas, por exemplo, a incompreensão secular da sociedade indígena, o genocídio, a assimilação, a desqualificação do conhecimento tradicional e, principalmente, as diversas perspectivas ameríndias estabelecidas para o entendimento da floresta, das plantas, dos animais e do homem nesse contexto. “Em cena, portanto, não estaria a ‘cultura indígena’ como uma entre outras, mas a força do mito e criação das múltiplas naturezas” (SANTOS, 2013, p. 19). Finalmente, o terceiro ato representa as possibilidades de confrontação e resolução do conflito apresentado num diálogo aberto, potencializando as capacidades do virtual, da invenção e da individuação. “Aqui, o tecnólogo-filósofo poderia se encontrar com o xamã para conversarem sobre a magia e a tecnologia como operação de diálogo com a(s) natureza(s)” (SANTOS, 2013, p. 19).

Quando passamos dos ‘civilizados’ aos ‘selvagens’ na Amazônia contemporânea testemunhamos, portanto, a criação de mundos muito diferentes. É verdade que em termos quantitativos, é enorme a desproporção entre os milhões de ‘brancos’ que vivem segundo os parâmetros ocidentais e os milhares de índios que vivem segundo a perspectiva ameríndia; mas é preciso lembrar que os territórios indígenas representam cerca de 10% da Amazônia brasileira, e que é neles que se concentra a maior riqueza em bio e sociodiversidade. Além disso, é preciso sobretudo, dar-se conta de que, talvez, pela primeira vez na História, existe uma possibilidade concreta de

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transformar o conflito, que opõe as duas perspectivas, num dialogo fecundo para ambas as partes se percebemos que tanto a ciência contemporânea quanto o mito ameríndio podem contribuir para um novo entendimento da individuação humana e não humana (animais e máquinas). Isso porque, paradoxalmente, a concepção cibernética de natureza e de cultura gera, através da própria noção de informação, uma interface que encontra intensa ressonância com o plano do animismo do qual homens e animais participam nos primórdios, isto é, essa espécie de continuidade metafísica comum a todos eles (SANTOS, 2013, p, 23).

As diversas formulações sobre a relação entre a cultural ocidental e ameríndia amazônica foram obtidas durante discussões sobre o tema. Santos (2013) explica que foram fundamentais os aportes e contribuições do líder xamã yanomami Davi Kopenawa, que não desconhecia o poder da arte como forte aliada na luta pelo reconhecimento dos direitos à terra e à cultura. Santos (2013) conta que foi convidado pela Associação Yanomami com sede em Boa Vista, Roraima, para apresentar a proposta da criação da obra e, com isso, teve a oportunidade desse relacionar com a comunidade Watoriki e a Hutukara. A proposta foi aceita com generosidade e interesse. Davi Kopenawa, o líder xamã, convidou a equipe da obra para visitar sua aldeia por ocasião da Festa da Pupunha, que ocorre em março, e isso lhes permitiu ter um contato maior com sua cultura e tradições.

Voltando para São Paulo, Santos (2013) explica que foi fundamental seu encontro com o antropólogo Bruce Albert, que é um grande erudito da cultura Yanomami e que, juntamente com Davi Kopenawa, publicaria um trabalho de pesquisa intitulado La chute du ciel (2010). Por meio desses contatos, Santos (2013) explica vários aspectos importantes para compreender a função do xamã dentro da comunidade Yanomami e como essas perspectivas se encontram projetadas na obra. A realização da obra enfrentou dificuldades evidentemente fundamentadas na posição do conhecimento tecnocientífico acumulado sobre a floresta e sobre sua destruição, a qual afirma que a mesma não parece ter força para influir no percurso de desenvolvimento predatório levado a cabo pela civilização. Essa perspectiva era contraposta, por outro lado, pelo conhecimento ancestral dos povos indígenas que ansiavam assegurar, mais do que a coexistência, a sustentabilidade de uma relação positiva entre natureza e cultura (SANTOS, 2013). Diante do conflito entre a ciência e a tradição, Santos (2013) encontra nas artes um ponto de concordância:

Ora, o conhecimento tecnocientífico contemporâneo não dá credito, por princípio, ao que diz o conhecimento tradicional, pois a própria constituição de seu discurso se dá pela negação dos saberes que o precedem. Mas a arte,

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que parte de outros pressupostos, pode ser mais livre do que a ciência para arriscar-se a ouvir o que os povos indígenas estão dizendo. A arte não tem problema em relacionar-se com o mito, a estética não tem nada a perder ao se abrir para essa dimensão (SANTOS, 2013, p. 44).

Focamos nos princípios de criação da obra Amazônia: Teatro-Música em três partes começando por descrever brevemente o primeiro e o terceiro atos, para posteriormente nos concentrarmos no segundo movimento que é o que está mais relacionado com nossa pesquisa. No Programa da peça, entregue por ocasião da apresentação dos espetáculos em São Paulo, é possível encontrar uma sinopse das três partes desta obra242. A primeira parte, intitulada TILT, representa um olhar à distância, um olhar sobre a floresta desde a perspectiva da Europa, dos ‘descobridores’ e conquistadores; é, de forma similar, um olhar retrospectivo para as consequências do contato entre o velho e o novo mundo. Esta parte consta no momento da leitura da carta de Sir Walter Raleigh243 para a rainha Elizabeth I em 1956. Um dos temas principais dessa carta é o temor pela natureza, a luta conquistadora das terras contra os ameríndios e a procura de riquezas, sobretudo o ouro. Essa parte da música foi realizada pelo compositor Klaus Schedl, o texto é do dramaturgo Roland Quitt e a direção e concepção do vídeo é de Michael Scheidl. Dessa maneira, Santos (2013) explica que em TILT Roland Quitt faz uma adaptação do relato de Raleigh para que a dramaturgia se estruturasse na perspectiva da cobiça, da conquista e do cálculo; portanto a ideia central reside na atração pelo ouro, motivando a expedição e projetando tudo o que foi dito, percebido, visto e sentido pelos conquistadores, elaborando um relato sobre o encontro entre o homem branco e a América e desdobramentos.

Passamos para o terceiro ato intitulado Conferência Amazônia – Na expectativa da aptidão de um método racional para a solução do problema climático; parte que destaca o olhar para o futuro. Esse ato surge como projeto multimídia do ZKM – Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe, concebido pelo artista Peter Weibel e com composição musical de Ludger Brümmer. A mesma que foi dividida em três partes: Paraíso, o princípio de criação algorítmica na natureza se torna o princípio da criação artística visual e musical; Conferência, em que o objeto criativo do Teatro-Música é a comoção do público mediante formulações racionais apresentadas num formato de conferência científica; e finalmente Entropia, em que

242 Santos (2013) explica que, por se tratarem de três partes autônomas, embora interligadas, é possível realiza-las tanto separado quanto conjuntamente. 243 Marinho, pirata, corsário, escritor e político inglês do século XVI quem popularizou e comercializou com tabaco na época.

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o público é surpreendido com uma polêmica autoatribuição de argumentos desgastados (SANTOS, 2013, p. 66).

Nesse ponto, aprofundamos nossa análise do segundo ato, intitulado A Queda do Céu, que representa um olhar de perto, o olhar dos indígenas Yanomami, um dos maiores povos nativo-ancestrais da Amazônia, e um dos principais por ter conservado suas tradições, crenças, rituais e, principalmente, por se manterem guiados pelo seu representante, o xamã Davi Kopenawa Yanomami. A Queda do Céu conta com a composição musical de Tato Taborda244, texto de Roland Quitt, direção de Michael Scheidl, cenografia e figurinos de Nora Scheidl e dramaturgia de Roland Quitt – sendo fundamental o acompanhamento intensivo do antropólogo Bruce Albert, autor do livro La Chute du Ciel (2010) que oferece referências importantes para a peça. Para descrever os diversos recursos e elementos apresentados nesta parte utilizamos, além dos apontamentos de Santos (2013), também diversas entrevistas realizadas com o compositor Tato Taborda, que serão apresentadas para explicitar de forma direta os processos composicionais e estruturais que formam a peça A Queda do Céu.

Para a realização dessa peça, Tato Taborda visitou a floresta tropical. Teve contato com xamãs e antropólogos; descobriu a existência de duplos animais, ouviu os sons das flautas Yanomami e adentrou nos cantos próprios da floresta tropical. Numa entrevista realizada em 2010 pelo Instituto Goethe245, Taborda explica que o som da floresta é uma polifonia espacialmente distribuída, onde cada criatura emite seu sinal em faixas de frequências complementares aos de outras espécies; esse é o motivo da geração de um tipo de acordo tácito estabelecido para o desenvolvimento de uma “orquestração” bioacústica, pois “na floresta tropical cada criatura pode ser ouvida em um contexto de brutal biodiversidade” (TABORDA, 2010, online). Ele explica que a instrumentação utilizada para traduzir em música o som da floresta é composta por seis instrumentos metais, dois trompetes, duas trompas, trombone e tuba, incluindo também três percussionistas que utilizaram exclusivamente instrumentos sonoros metálicos. Foram também utilizados doze instrumentos

244 Tato Taborda nasceu em 1960 em Rio de Janeiro. Estudou composição com Hans-Joachim Kollreuter e Esther Sciliar, posteriormente participou dos Cursos Latinoamericanos de Música Contemporánea. O compositor teve diversas apresentações como no Festival Música Nova, o Donaueschhinger Musiktagen, o Festival de Música Atual e o Résonance Contemporaine. Dentro do Brasil foi curador de diferentes festivais de música experimental como são: Festival de Música de Invenção (1995), Festival Fronteiras (1999) e Festival Diálogos (2002). Em 2004 Taborda obtêm seu doutorado na área de pesquisa bio-acústica e estratégias polifônicas. 245 Esta entrevista foi realizada por Verena Hütter em março de 2010 para o Instituto Goethe, e pode ser acessada no link: http://www.goethe.de/ins/pt/lis/prj/ama/mag/mus/pt5816000.htm

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baseados nas flautas Yanomami, construídos com materiais e registros diferentes. Taborda acrescenta que, na verdade, a instrumentação oferece o suporte para o principal elemento sonoro que é a voz do xamã e sua contraparte, a voz da xawara, que representa a epidemia, a poluição e as doenças trazidas pelas máquinas e pelo desenvolvimento do homem banco para dentro da floresta; a xawara pode ser traduzida como “a fumaça do metal”, portanto toda a peça se concentra nessa luta entre o xamã e as forças de fora da floresta que tentam apagar seu canto.

A peca A Queda do Céu é inspirada no mito Yanomami, cuja narrativa diz que quando a voz do xamã é apagada, e/ou quando o último xamã morre, o peito do céu, que representa a toda a cúpula sustenta o mundo Yanomami cairá desenfreadamente, dando origem ao fim de sua comunidade e sua cultura. Seguindo a narrativa deste mito, a peça é concebida como uma obra multimídia, que inclui projeção em vídeo, performance teatral, música instrumental, improvisação vocal e espacialização sonora, descrita em cena como uma instalação labirinto, que permite ao público transitar dentro do espaço de criação e ser partícipe no desenvolvimento da obra.

O espaço representa a floresta: o palco é “um longo retângulo de 50 metros de comprimento, coberto de terra vermelhada para evocar o chão de uma maloca, figura a cena. Instalado nas duas arquibancadas que a margeiam, o público está mergulhado na escuridão” (SANTOS, 2013, p. 74). Taborda (2010, online) explica que existem dois artistas vocais, o primeiro representa o xamã, interpretado pelo cantor Christian Zender, e o segundo representa a voz do xawara, apresentada pelo improvisador vocal Phil Minton. Nas palavras de Taborda (2010, online) “não foi a música deles [os Yanomami] que me inspirou, mas o som das vozes dos xamãs que emerge de suas gargantas poderosas. O som é um elemento chave da cutura Yanomami”. Assim, podemos afirmar que são dois os pilares que dão sustentação à música da obra A Queda do Céu, o som como arquitetura e as vozes do xamã e da xawara.

A descrição da obra realizada por Santos (2013) indica que a peça começa com a conversa do xamã com os espíritos xapiri pë. Esses espíritos são as imagens dos ancestrais que se transformaram nos primeiros tempos, aqueles que se apresentam diante dele no transe xamânico. Em cena, a voz do xamã surge amplificada e espacializada por 24 alto-falantes dispersos pela cena, apresentando no começo só as vozes desse dialogo, na intimidade da

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escuridão, acompanhada por sutilíssimos sons que evocam a floresta à noite. É dessa forma que, num primeiro momento, o público ouve e percebe o que está acontecendo na Amazônia desde a arquibancada, a partir da perspectiva dos habitantes da Amazônia noturna. Essa conversação entre o xamã e os espíritos xapiri pë, explica, segundo Santos (2013), a origem mítica dos brancos. A conversa se desenvolve mediante a representação da chegada dos forasteiros ao território Yanomami e o cortejo de desgraças que ela acarreta, prenunciando o apocalipse vaticinado pelos xamãs, em virtude da destruição da terra-floresta, de sua gente, do xamanismo e de toda a cultura fundada no pensamento mágico. “Assim, na linguagem poética da conversa entre o xamã e os xapiri pë se espalha a grandeza e a decadência da cosmologia Yanomami enquanto saber coletivo que liga o homem à terra e sela o seu destino comum” (SANTOS, 2013, p. 74). O fio condutor da conversa entre o xamã e seus espíritos auxiliares xapiri pë é interrompido pouco a pouco por um eixo negativo diversificado que é a xawara. Em uma definição recolhida por Rolland Quitt da comunidade Watoriki lemos:

Xawara é o monstro do infecto branco. (...) Xawara é a epidemia, a morte coletiva, o suplemento fumegante e canibal do metal negociado pelos brancos. Os brancos dizem em Watoriki, seriam apaixonados por Xawara, são apaixonados pelos seus produtos de consumo, que no final só trazem a morte, falta de vida. Xawara mora dentro desses produtos de consumo. Estes roubam dos brancos a razão, muito na forma como um Yanomami conhece do amor por mulheres. Xawara, a destruição de sua cultura, hoje está por todas partes (QUITT apud SANTOS, 2013 p. 76).

Passa a existir uma contraposição de forças que começam a ser expostas pelo xamã e o aparecimento da xawara. Para isso, o xamã, além de espalhar sua voz mediante os 24 alto- falantes disponibilizados ao redor do espaço, procura focar seu canto com sonoridades overtone frequentemente utilizados em cantos étnicos. Ele conta também com a projeção246 de vídeos sobre as paredes do labirinto, constituídos por imagens vividas da floresta tropical que dão a ilusão ao espectador de imersão dentro dessa floresta metafórica e que são trabalhadas digitalmente de modo a exibir a movimentação do xapiri pë através do espaço como pontos de luz, em sintonia com a modulação do canto do xamã (SANTOS, 2013). É assim que o xamã projeta sua própria mente dentro desse espaço virtual com a intenção de criar confusão na xawara e evitar seu avanço pela floresta. O xamã conta em cena com diversos entes que simbolizam e potencializam suas várias maneiras de incidir e alterar essa mesma floresta metafórica.

246 Os vídeos foram criados pelos artistas multimídia Leandro Lima e Gisela Motta.

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A xawara é representada por diferentes elementos; a xawara é a voz (do improvisador vocal Phil Minton) difundida por uma torre de alto-falantes em mono, que cria contraposição e reverbera em contraposição à voz do xamã. Assim, podemos mencionar que “o xamã canta reto, altivo, forte límpido, desafiador, guerreiro; em contrapartida, a xawara canta de modo insinuante, sedutor, traiçoeiro, precipitado, por vezes imitando o adversário, tentando se passar por ele, por outras choramingando, fingindo, para, finalmente, revelar-se cruel como fera predadora” (SANTOS, 2013, p. 80). A xawara também possui três agentes que transmitem as perspectivas simbólicas da representação da xawara no homem, eles vão divagando e realizando suas específicas atividades, convidando e sugestionando o público a sair da arquibancada e se movimentar dentro dessa floresta metafórica. Esses agentes são três performers que representam a trivalente perspectiva em que a xawara atua dentro da obra e dentro da realidade Yanomami; cada um deles possui um objeto em forma de caixa grande, produzem fumaça branca e emitem diversos sons próprios às suas atribuições individuais, além de servir como ferramenta para representação de seus respetivos trabalhos dentro da floresta. Podemos realçar também que, dentro da idealização dramatúrgica de Rolland Quitt, em consequência da cosmologia Yanomami, os entes xawaras representam um duplo humano- animal ao qual estariam ligados por toda a vida.

Esses três entes são explicados por Santos (2013) como: o missionário–falcão247, com sua pregação e seu desígnio de conversão dos nativos. Para o missionário, o principal desafio é desqualificar o xamanismo. Mediante seus discursos, sua intenção é romper com fio condutor entre xamã e xapiri pë, calar as vozes dos espíritos e introduzir o pecado, a culpa e a danação; da caixa grande que leva consigo, além de brotar a fumaça branca, saem sons de sermões e hinos evangélicos, sons de órgão; o falcão é seu duplo animal que caça presas, que caça as almas dos nativos. No rastro do missionário, caminha o segundo ente da xawara, o cientista-formiga248, o pesquisador e sua visão de iluminação e conhecimento racional da floresta. Ele recolhe dados, amostras, patrimônio genético de plantas, animais e humanos que habitam nesse lugar; sua atuação se mostra sempre como uma curiosidade insaciável por descobrir todos os mistérios científicos que envolvem a floresta metafórica. De sua caixa saem palestras sobre os recursos genéticos e os benefícios da ciência para a humanidade. Como a formiga, seu trabalho não tem fim. Finalmente, se desloca pela instalação o

247 Interpretado pelo cantante tenor João Cipriano Martins. 248 Interpretada pela soprano Katia Guedes.

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garimpeiro/político–porco do mato249 destruindo a floresta, envenenando os rios com mercúrio, corrompendo pessoas, dando grandes discursos sobre a exploração da terra e seus recursos. De sua caixa saem sons de motosserras, discursos políticos, sons de máquinas de extração e, como um porco, ele se coloca sempre a chafurdar a terra a fim de encontrar o que puder devorar (SANTOS, 2013).

Continuando com a descrição da obra A Queda do Céu, utilizamos os apontamentos e informações encontradas numa entrevista audiovisual250 com o compositor Tato Taborda (2010), realizada pelo Center for Art and Midia (ZKM). Nela, conseguimos importantes apontamentos sobre o desenvolvimento e finalização da dramaturgia da obra, além de informações sobre sua produção e conclusões sobre sua relevância dentro da atualidade.

Taborda explica que a sofisticada arte visual projetada nas paredes do labirinto representa os três elementos que criam a ambientação da obra. Primeiramente as imagens são uma floresta metafórica, desenhada com material visual tomado da própria floresta Yanomami; um segundo elemento são as ideias, pensamentos e conversações do xamã com seus espíritos auxiliares, representadas em jogos de cores e luz e, finalmente, o próprio cérebro do xamã, uma profecia dos seus sonhos. Taborda explica que, no resto da obra:

A voz da xawara impulsiona os três vetores brancos - o cientista, o missionário e o político [garimpeiro] - a cumprirem suas missões, que seriam: a posse do ouro, assunto que é material do político; a posse do conhecimento, por parte do cientista, e a posse das almas pela parte missionária. (...) O público é atraído por essas três personagens. A montagem tem um aspecto de instalação também, já que eles estão transitando por partes diferentes do labirinto e público segue ora um, ora outro, ora outro, não conseguindo estar com os três ao mesmo tempo. Você não consegue ver os três, mas só consegue escutar o que estão fazendo. O tempo inteiro a escuta é a forma de você entender o que está acontecendo ao seu redor (TABORDA, 2010, entrevista ao vivo).

Taborda também explica que a voz da xawara, amplificada em mono, assim como suas três personagens em cena, têm como apoio musical a orquestração dos instrumentos de sopro metais e percussões descritos anteriormente. Eles vão conjugando estruturas operísticas que permitem o canto dos personagens; já a voz do xamã, que está sendo amplificada pela rede de 24 alto-falantes, está relacionada com as 12 flautas Yanomami da orquestra, dando

249 Interpretado pelo barítono Nuno Dias. 250 Esta entrevista pode ser acessada no link: https://www.youtube.com/watch?v=zZlr2roL-s0

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apoio a seus cantos. Dessa forma, forma-se uma rede de eventos sonoros que criam, por um lado, a interação ou luta entre as vozes xamã – xawara, bem como um jogo de dramaturgia sonora independente entre os personagens que transitam pelo espaço da obra, que tentam se encontrar dentro de labirinto de imagens que representam a floresta metafórica simbolizada como o cérebro do xamã. Num dado momento, os três personagens finalmente se encontram, o que culmina numa forte interação estre o xamã e a xawara. A última, pouco a pouco, vai apagando a diversidade desses 24 canais sonoros do xamã que, em determinado momento, desaparece. Nesse instante, os três entes da xawara constróem uma torre alta no centro do espaço cênico, com suas caixas que expelem muita fumaça branca e ruídos diversos. Paulatinamente, a escuridão vai desaparecendo e as imagens do xamã vão sendo desintegradas, deixando o espaço real da instalação iluminado e perdendo, dessa forma, o mistério e a sua diversidade visual. O púbico retorna ao seu plano cotidiano, mas rodeado por indivíduos com mascaras similares à dos entes da xawara. A morte da voz e da visão do xamã são o cumprimento da profecia Yanomami: A Queda do Céu.

A obra A Queda do Céu resulta numa clara amostra dos diferentes debates realizados sobre o contato da música experimental com temas nativo-ancestrais. Observamos o uso de diversificado de recursos multimídia, dispostos para criar um ambiente sonoro complexo e diverso onde o espectador se aproxima, por dentro, do mito-profecia Yanomamino, potencializando intensamente a escuta, como se estivesse dentro de uma floresta tropical. O tecno-xamanismo é representado magistralmente pela complexa manipulação visual projetada dentro da instalação e pela voz especializada, que permite o desenvolvimento do conceito de imersão necessário nas técnicas rituais do xamã. Também evidenciamos práticas de improvisação, efetuadas durante a peça nas vozes do xamã e a xawara, além da interação com a performance realizada pelas personagens dentro da cena. Esta obra coloca em movimentação uma serie de processos criativos que exemplificam muito bem o trabalho de experimentação musical atual.

Além das diferentes possibilidades criativas observadas em A Queda do Céu, Taborda agrega debates socio-políticos que o contato com a cosmologia dos povos da floresta representa dentro do mundo experimental atual. Sendo a música experimental uma plataforma que permite expor originalmente a perspectiva dos Yanomami, ela fundamenta debates essenciais dentro dos presentes problemas climáticos e sociais que vive o mundo atual. A

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ópera completa Amazônia: Teatro Música em três partes, foi estreada no Reithalle, em Munique, em maio de 2010, tendo sua posterior estreia em São Paulo em julho do mesmo ano. Taborda afirma que, posteriormente, a obra A Queda do Céu foi apresentada de forma autónoma e em junho de 2012, por ocasião da conferencia da ONU em desenvolvimento sustentável Rio+20. Taborda afirma que foi precisamente nesse período que os olhos da cidade, do Brasil e do mundo estavam voltados a questões ambientais. Para Taborda:

Esta ópera [A Queda do Céu] trata dessa questão [conservação], desde um ponto de vista original, um ponto de vista de dentro para fora, a visão dos povos da floresta que, de certa maneira, são os guardiões da integridade física e espiritual daquele ambiente. Isso é fácil detectar, porque se você faz um mapeamento da distribuição florestal, você vê que ela só acontece nas regiões onde existem grupos humanos habitando; eles precisam desse espaço preservado para sua sobrevivência, existindo uma conexão direta entre a presença dessas populações nesses espaços e a sua manutenção. Então fazia total sentido retomar essa peça como um ato independente, nesse momento da Rio+20 (TABORDA, 2010, entrevista ao vivo).

B. Mesías Maiguashca – Canción de la Tierra (2012)

O compositor equatoriano Mesías Maiguashca compõe a presente pesquisa principalmente por sua biografia musical. Sua formação e desenvolvimento criativo são consequência das experiências musicais, além de suas passagens por diversos centros de música experimental e arte sonora tanto na Europa como na América. Maiguashca constitui um inovador dentro da arte ruidista251 no Equador, um constante experimentador sonoro que durante seu percurso criativo conseguiu incluir em seu trabalho sua própria visão sobre a experimentação musical com raízes nativo-ancestrais. Trazemos diversas informações obtidas de bibliografias sobre Maiguashca, análises musicais de duas peças e uma entrevista realizada, as quais ajudam a aprofundar o percurso criativo deste compositor.

Começamos com uma pequena resenha sobre os estudos e diversos trabalhos compositivos de Maiguashca, ampliando as informações constantes na entrevista realizada para sua publicação no Art Journal (Setembro 2015), anexa a esta dissertação. É preciso mencionar os diferentes encontros que tivemos com a música e o pensamento do compositor:

251 Arte do ruído: Movimento musical equatoriano que tem sua origem em Quito desde 1980.

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através da entrevista realizada, na visita à exposição do compositor (Quito – 2013) e numa oficina-concerto que pudemos participar durante uma semana. Na sequência, aprofundamos em sua música, especificamente no seu trabalho eletroacústico, uma prática utilizada pelos compositores durante 1980 e 1990 para fusionar instrumentos e elementos da cosmologia nativos-ancestrais com procedimentos de experimentação musical eletroacústica. Dessa forma realizamos a análise espectrofológica252 da peça de Maiguashca intitulada: El Oro (1992) para flauta, violoncelo e fita magnética, que inclui frases em linguagem Quichua253, espanhol e sons do rondador254. Essa análise resultou em artigo apresentado para o congresso ANPPOM 2015, anexo desta dissertação. Por fim, trazemos referências e apontamentos sobre a composição de Maigushca intitulada Canción de la Tierra (2013), que será aprofundada mediante referências bibliográficas sobre a peça e nossas próprias conclusões sob a perspectiva de espectador. Consideramos que, dessa forma, podemos discutir as úteis experiências deste compositor que, evidentemente, é outro claro exemplo do processo transcultural que vive a música experimental na atualidade.

Maiguashca realiza seus primeiros passos com a música eletrônica em 1967 nos estudios WDR em Colônia255. Nesse período, dentre outras atividades, Maiguashca fez parte do grupo coordenado por Karlheinz Stockhausen que, na década de 1970, realizou diversas apresentações da obra Stimmung, na qual Maiguashca trabalhou como técnico sonoro em suas apresentações. Paralelamente, Maiguashca realizou diversos projetos de música experimental amplamente discutidos no livro Mesías Maiguashca: Los Sonidos Posibles (2013) editado por Fabiano Kueva. Sobre esse período, Maiguashca comenta:

O ambiente musical na Alemanha, especificamente em Colônia foi, na década de 1965 a 1975, particularmente efervescente. Fluxus e a Neue Musik (nova música) foram os paradigmas que dominaram na época256. Junto a vários companheiros de geração (Peter Eötvös, Joachim Krist e Gaby

252 Análise espectromorfológica fundamentada por Denis Smalley em seus textos Spectromorphology and structuring processes (1986) e Spectromorphology: explaining sound shapes (1997). Estas informações estão amplamente discutidas na análise encontrada anexa a esta dissertação. 253 Linguagem indígena das populações andinas e amazónicas do Equador. Tem uma linguagem irmã que é o Quechua boliviano e peruano. 254 Tipo de flauta andina equatoriana parecida aos sikus com a diferença de que os tubos não se encontram organizados do menor para o maior, mais de maneira graduada: tubos longos ao lado de pequenos criando intervalos de terça, quarta, quinta ou oitava. 255 Podemos acrescentar que os estudos anteriores à sua viagem para a Alemanha incluem um intercambio acadêmico na Eastman School of Music em Rochester (América do Norte) entre 1958 e 1962, e seus posteriores estudos como bolsista do Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales (CLAEM) durante 1963. 256 Estes paradigmas foram amplamente discutidos no primeiro capítulo desta pesquisa. Acrescentamos, ainda, formulações de Maiguashca sobre este tópico na entrevista anexa a este trabalho.

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Schumacher) formamos, em 1971, uma comuna artística. Residíamos numa fazenda a uns 50 km de Colônia, que tinha um celeiro que adequamos como sala de concerto. Construímos nosso próprio estudo de música eletroacústica e nos rodeamos de músicos especializados na prática da música contemporânea. Conseguimos fazer realidade o sonho de um coletivo artístico autossuficiente: podíamos compor, realizar música eletrônica, organizar (por razões de clima, exclusivamente em verão) concertos em nosso celeiro-auditorio, realizar turnês. Tudo isto completamente em autogestão, sem dependência de nenhuma instituição. Tenho documentado este lindo período da minha vida na composição Oeldorf 8257 (MAIGUASHCA apud KUEVA, 2013, p. 14 – 15 nossa tradução258).

Durante a década de 1980, Maiguashca se envolve academicamente com o IRCAM, o que representa o ponto de chegada de um longo processo de evolução das técnicas analógicas para as técnicas digitais. Maiguashca explica que as instalações do IRCAM foram, na sua época, as mais generosas e mais bem montadas instalações, representando a vanguarda no desenvolvimento técnico e informático da Europa. O compositor menciona o orgulho de ter colegas como Peppino di Giurgno (inventor da máquina 4x259) e Miller Puckette (inventor do software Max-Esp). Ali, Maiguashca aprendeu os rudimentos da música computacional. Desse período podem ser mencionadas as peças FMelodies II (1983) para violoncelo, percussão e sons do computador (MAIGUASHCA apud KUEVA, 2013).

De 1978 a 1987, Miaguashca foi professor de música eletrônica no Centre Européen pour la Recherche Musicale (CERM) de Metz, na França. Posteriormente, trabalharia como docente em conservatórios e centros musicais nas cidades de Stuttgartm, Karlsruhe, Basel, Sofía, Buenos Aires, Bogotá, Madrid, Barcelona, Györ, Szombathely, seoul, Quito e Cuenca.

Maiguashca esteve envolvido também com a ARS Electronica Center em Lintz, na Áustria, que está orientada para a pesquisa na convergência entre arte, ciências e tecnologia, promovendo as práticas de experimentação multimídia. No ano de 1987, Maiguashca se

257 Oeldorf (1972-1974) para violino, clarinete, violoncelo, órgão eletrônico e fita magnética. Para maiores informações sobre o extenso catálogo de composições de Mesías Maiguashca, contamos com sua página disponível na internet, que contém amplas informações e material audiovisual: http://www.maiguashca.de/index.php/es/ 258 Original: “El ambiente musical de Alemania, específicamente el de Colonia, fue en el decenio de 1965 a 1975 particularmente efervescente. Fluxus y Neue Musik (Nueva Música) fueron los paradigmas que dominaron la época. Junto a varios compañeros de generación (Peter Eötvös, Joachim Krist y Gaby Schumacher) formamos hacia 1971, una comuna artística. Residíamos en una granja, a unos 50 kilómetros de Colonia, que disponía de un granero que adecuamos como sala de concierto. Construimos nuestro propio estudio de música electrónica y nos rodeamos de músicos especializados en la práctica de la música contemporánea. Pudimos hacer realidad el sueño de un colectivo artístico autosuficiente: podíamos componer, realizar música electrónica, hacer (por razones de clima, solamente en el verano) conciertos en nuestro granero- auditorio, realizar giras. Todo esto completamente en autogestión, sin dependencia de ninguna institución. Nunca, desde entonces, he podido replicar esa utopia del artista autónomo de las instituciones. He documentado este hermoso periodo de mi vida en la composición Oeldorf 8” (MAIGUASHCA apud KUEVA, 2013, p 14 – 15) 259 Um protótipo para estaçnao de trabalho musical controlada por computador.

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aprofundou no trabalho compositivo com a informática musical participando, em 1990, do festival Digitale Traume (Sono Digital) organizado pelo ARS com sua composição A Mandelbox (1990) que cria sons e imagens a partir do algoritmo de Mandelbrot260. Maiguashca comenta que esse conjunto utiliza um programa informático baseado em formulas matemáticas simples. Os resultados dos cálculos criam representações visuais numa tela colorida, criando imagens fractais. Durante a década de 1990, Maiguashca tem acesso também ao Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe (ZKM) onde conseguiu ampliar seu campo de ação para as artes multimídias.

Mas o que complementa a singularidade de Maiguashca é o vínculo que ele mantém com suas raízes. Seu trabalho que, no princípio, foca nas técnicas de experimentação musical e tratamento sonoro europeias, vai se misturando progressivamente com sua tradição nativo- ancestral, o que favorece a projeção do músico experimental na América do Sul. O resultado dessa aproximação com as manifestações culturais nativas-ancestrais da zona andina pode ser percebido em sua composição de música concreta e eletrônica ayayayayay (1971)261, baseada nas gravações de diversas paisagens sonoras obtidas nas visitas do compositor ao Equador que se misturam numa complexa rede de manipulação e síntese sonora.

A composição El Oro (1992) para flauta, violoncelo e fita magnética é parte do seu ciclo composicional denominado Reading Castañeda (1983-1993). Esse período impulsou em Maiguashca a necessidade de procurar novas fontes sonoras, dando lugar a criação de instrumentos inventados ou esculturas sonoras - as que denominou como Objetos Sonoros262 - construídos a partir de objetos de madeira ou metal pendurados em uma estrutura cúbica metálica amplificada por microfones de contato, que resultam em instrumentos que podem ser percutidos ou tocados com um arco.

Outro trabalho do compositor é o intitulado Boletin y Eligíade las Mitas (2006)263, uma cantata cênica inspirada em textos do escritor equatoriano Cesar Dávila Andrade (1959),

260 Complexa teoria conhecida também como conjuntos fractais, pesquisada pelo matemático Benoit Mandelbrot na década de 1970, que consiste num conjunto de objetos geométricos de estrutura fragmentada que se repete a diferentes escalas constantemente. (KUEVA, 2013, p. 26) 261 Para maiores informações sobre esta peça visitar a página: http://www.maiguashca.de/index.php/es/1970-1979-a/316- 051971-ayayayayay-es 262 Debemos aclarar que o termo Objeto Sonoro, utilizado por Maiguashca, é entendido diferente que o Objeto Sonoro, explicado no primeiro capítulo deste trabalho quando falamos de Pierre Schaeffer. 263 Para ter aceso aos áudios da peça acessar ao link em internet: http://www.maiguashca.de/index.php/es/2000-2009-a/99- 552006-boletin-y-elegia-de-las-mitas-es

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crônicas sobre as complexas e difíceis condições de vida e trabalho a que foram submetidos os índios durante a conquista do Equador. Nessa obra são utilizados trechos do texto de Andrade (1959) e vídeo mostrando faces indígenas; o vídeo é acompanhado pela Orquesta de Instrumentos Andinos (OIA) de Quito, três coros, objetos sonoros de madeira e sons eletrônicos.

Contamos ainda com a instalação sonora Yakushimi (2012-2013), que pode ser entendida como “a linguagem da agua” - uma instalação sonora disposta para permitir a seus visitantes pensar, sentir e redimensionar os sons da agua. Esta proposta utiliza espacialização eco-acústica a partir de diversas fontes sonoras de gravações de água, compiladas por Maiguashca durante quase 50 anos. Sobre esses trabalhos, Maiguashca comenta:

Meus mais recentes trabalhos Boletín y Elegía de las Mitas, Canción de la Terra e a instalação sonora Yakushimi têm sido um esforço intenso e ciente para superar aquele paradoxo que determina minha vida e trabalho artístico: estar enraizado em duas tradições (andino e europeia), “montado em dois cavalos”. Nestes trabalhos, eu tentei sintetizar o que herdei e que aprendi, já que tanto o primeiro quanto o segundo são partes constitutivas do meu ser humano e artístico. Durante o meu desenvolvimento, tenho conseguido formar algo denominado como “minha linguagem musical”, que está constituída de uma série de procedimentos conscientes ou inconscientes, com os quais normalmente me sinto identificado. Uma vez constituída uma linguagem, o próximo passo seria o que “dizer” com ela. O novo paradoxo é que a "linguagem" está intimamente ligada ao “dizer”. Eu me encontro especificamente aí: fazendo o esforço para unificar o “que dizer” com o “como dizer”. Os resultados têm sido as obras mencionadas. Eu me reconheço nelas, especialmente em suas contradições, mas também são parte de um percurso (MAIGUASHCA, 2014, entrevista realizada por nós).

Maiguashca representa uma visão singular sobre o significado do paradigma da música experimental. Atravessando uma geração repleta de inovações criativas, estéticas e técnicas, chega ao século XXI equipado com todos esses recursos para criar um nexo com o popular e o nativo ancestral. Por outro lado, se afasta do folclorismo estabelecido, contextualizando diversos elementos da realidade indígena de forma inovadora e transparente, mediante processos conceituais de transculturalidade que sintetizam um processo criativo sonoro-musical que envolve o ancestral e o experimental.

A seguir, trazemos nossas próprias experiências do contato com o compositor, que ocorreram durante sua apresentação na cidade de Quito em uma série de trabalhos composicionais e expositivos realizados durante os meses de junho e julho de 2013: a estreia

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da obra Canción de la Tierra, realizada em 21 de junho; a exposição Los Sonidos Posibles realizada nas instalações do Centro de Arte Contemporáneo (CAC) entre 6 de julho e 8 de setembro de 2013, apresentando várias perspectivas do seu trabalho composicional; e a oficina ¿Existe una sintaxis musical?, realizada nos dias 8 e 9 de julho.

A exposição Os Sonidos Posibles264 incluía material audiovisual de diversas obras, partituras gráficas, gravações de suas obras eletroacústicas, cartazes e fotografias dos diversos festivais dos quais o compositor participou ao redor do mundo, diversos discos e publicações, além de variados equipamentos de síntese sonora utilizados pelo compositor. A exposição também incluía geradores de frequência senoidal, quadrada, triangular e de serra disponibilizados para o público, instalações sonoras com max-msp interativa à disposição; incluía também, no centro de uma das salas, alguns dos objetos sonoros construídos por Mesías Maiguashca e seu filho Gabriel Maiguashca, que foram disponibilizados para o uso do público.

Nesse espaço, participamos da oficina ministrada por Maiguashca ¿Existe una sintaxis musical?. A ideia era reunir um grupo de músicos de diferentes procedências (popular, erudita, improvisação) para discutir se, mediante o ruído, pode ser criada uma sintaxe musical. Foram discutidas estratégias para acesar ao ruído a partir dos diversos instrumentos inseridos em cada música, catalogando os resultados sonoros como potenciais materiais de construção do discurso musical. No ambiente de improvisação foram organizados duos ou trios, muitos dos quais utilizaram os objetos sonoros dispostos no espaço. Tudo isso resultou num processo criativo frutífero que foi apresentado como parte do evento da exposição Los Sonidos Posibles. Tivemos a oportunidade de ter contato com instrumentos nativo-ancestrais levados por músicos da oficina e aprender estratégias interpretativas para acessar fontes de ruído ou sonoridades espectralmente complexas. Também observamos as técnicas de multifônicas de flautas andinas como a quena e o rondador, batimento de frequências quando se tocam dois sikus em paralelo, experiências utilizadas dentro de nosso próprio trabalho musical.

Mencionamos dois trabalhos compositivos de Maiguashca: o primeiro, baseado na análise espectro-morfológica, criada pela necessidade de se ter alguma ferramenta analítica

264 Esta foi a primeira exposição dedicada ao compositor, dando a conhecer seu trabalho em Quito, que antes era quase desconhecido pelo público, já que Maiguashca reside há 50 anos em Alemanha. Para maiores informações sobre esta exposição acessar ao link: http://www.maiguashca.de/index.php/es/2013-es/216-01072012-ggg-muestra-en-el-centro-de-arte- contemporaneo-de-quito

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musical para descrever os resultados sonoros do desenvolvimento do atonalismo, total serialismo, expansão dos instrumentos de percussão, advento da mídia electroacústica e música compotacional, desenvolvimentos que contribuem para o reconhecimento da musicalidade inerente a todos os sons. Denis Smalley (1986) explica que a “espectro- morfologia é uma aproximação aos materiais sonoros e estruturas musicais que foca na conformação do espectro das frequências presentes e suas transformações durante o tempo” (SMALLEY, 1986, p. 61). Smalley (1986) outorga uma ferramenta de análise com variadas terminologias, por exemplo: os movimentos dos sons com relação a alturas; a qualidade e a textura dos sons; termos para descrever suas relações entre si e as relações entre a forma da obra, etc. Entendemos necessário utilizar os apontamentos de Smalley (1986) e a peça eletroacústica de Maiguashca El Oro (1992). Conseguimos utilizar as formulações da espectro-formologia aplicadas a uma peça com características que envolvem elementos sonoros nativo-ancestrais como parte de sua estruturação e conformação espectral. Os detalhes da espectro-morfologia de Denis Smalley e a analise da peça El Oro (1992) podem ser consultadas nos anexos desta dissertação.

Nos parece fundamental mencionar, ainda, a apresentação da obra La Canción de la Tierra (2013) que tivemos a oportunidade de assistir. O compositor explica a influência da composição Canção da Terra (composta entre 1907 e 1909) de Gustav Mahler, afirmando que “é para mim, uma das obras mais comovedoras da música europeia. Uma das características é o ar de melancolia e fatalismo que permeia a obra. Um presságio? Em 1914 é detonada a I Guerra Mundial” (MAIGUASHCA, 2013, p. 72 nossa tradução265). A partir dessa perspectiva, decide idealizar uma canção da terra pertencente ao “novo mundo”, dando lugar a uma necessária aproximação com as perspectivas e cosmologias nativo-ancestrais, que constituem a estética do processo composicional.

La Canción de la Tierra (2013) é inspirada no recebimento do Sol durante o solstício de verão entre os dias 20 e 21 de junho de cada ano, representado na celebração indígena do Inti Raymi, a grande festividade do Sol. Maiguashca menciona: “Adorar ao Sol me parece absolutamente coerente. Tenho me proposto realiza-lo com esta experiência musical” (MAIGUASHCA, 2013, p. 72).

265 Original: “es para mi una de las obras más conmovedoras de la música europea. Una de sus características es el aire de melancolía y fantasmalismo que permea la obra. ¿Un presagio? En 1914 estalla la I Primera guerra Mundial.

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Esta obra está contextualizada no conceito da pacha, terra do mundo andino, anteriormente explicada na tripartição representada em Hanan-Pacha (o mundo de arriba) Kay-Pacha (o mundo presente) e Uku-Pacha (o mundo de baixo). Maigushca visualiza o transito temporal entre esses três mundos na cosmogologia nativo-ancestral, um processo de vibração e ondulação constante. O pesquisador Javier Lajo (2006), que se aprofunda no estudo da cosmologia indígena, explica que esse trânsito das diferentes terras (pachas) é representado em desenhos tradicionais como uma serpente que oscila, começando em seu centro até a expansão e contração máximas (JIJÓN, 2005).

Desenho Inca representado a ondulação dos três estados da terra ou pacha. (JIJÓN, 2005, p. 155)

Dentro desse marco conceitual, Maiguashca faz uso de diversos recursos instrumentação sonora e musical de espacialização sonora. Um componente importante é próprio do lugar onde a obra foi realizada (site-specific), o Palacio de Cristal do Centro Cultural Itchimbia, edificação ampla, de cristal, com visão de 360 graus da cidade e situada no meio da colina com mesmo nome em Quito. A proposta era que a obra fosse interpretada a partir das 5 horas da manhã, transcorrendo a obra durante o nascer do sol nas montanhas que rodeiam Quito. A instrumentação era deslocada pela área do Palacio de Cristal, possibilitando o transito do público por diferentes setores. A obra contou com a Orquesta de Instrumentos Andinos (OIA) de Quito, a Banda Sinfónica Metropolitana de Quito, o coro misto Ciudad de Quito e uma instalação eletroacústica baseada no fenômeno das ondas

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estacionárias, que impactam o ouvinte pela escuta de harmonizações de ondas senoidais diversas, conforme os espectadores se movimentam pelo espaço. Podemos mencionar que a obra também apresenta objetos sonoros metálicos, dispostos como um enorme totem no meio da sala. Esse grande instrumento vibraria livremente quando fosse puxado, incluindo também dois outros objetos sonoros pequenos de madeira e metal. Maiguashca afirma que “esses fatos constituem um convite ao público para escutarem o concerto se deslocando do seu jeito pelo espaço, mas claro, procurando periodicamente espaços fixos para descansar” (MAIGUASHCA, 2013, p. 74).

Como espetadores, conseguimos apreciar as diferenças entre a escuridão das 5:30 horas da manhã e os jogos de sonoridades que iam sendo apresentadas como próprias da noite. A obra que seguia uma sequência de 24 sessões, começando com a denominada canção do ser, silenciosa e estática, a qual, progressivamente, vão se somando diversas estruturas timbricas que dialogavam com sons mais ruidosos, num marco de abruptos silêncios que, envoltos na noite e caminhando pela instalação acompanhado de harmonias senoidais, criavam uma interessante experiência auditiva que certamente evidencia o poder das vibrações nos estados do humano, favorecendo um estado de escuta atenta que cobria de transcendentalismo o momento. Logo depois chega a seção denominada canção das coisas pequenas, possibilidade de explorar uma atividade micro-sonora em conjunção, com intensidades baixas que ia se somando para criar texturas maiores, eram o prefacio do progressivo amanhecer que iam se apresentando diante da escuridão da noite, refletindo uma pequena linha de luz nas montanhas leste; começa o momento da canção da montanha, a mesma que estabelece estruturas harmônicas estáveis que progressivamente se desarmam. Paulatinamente, o Sol ia se tornando mais claro e a música ia recebendo o astro com estruturas harmônicas complexas, de longa duração, as vezes em notas hiperagudas, o que nos faz pensar na relação do som com a luz, dois tipos de energias vibratórias. O amanhecer chega e com ele a última seção chamada canção do amanhecer, que evoca um cântico sagrado nativo-ancestral, único momento em que se consegue diferenciar uma estrutura musical idiomática, com uns dos cantos mais belos do repertorio andino, o que durante a conquista perdeu sua linguagem ancestral e passou a ser utilizado como um canto eclesiástico à evangelização do índio.

É assim que Maiguashca realiza nessa obra uma celebração ao amanhecer, e

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principalmente, ao Sol. Ele nos apresenta uma perspectiva renovada, experimental e atual de uma das tradições mais representativas das comunidades indígenas, a adoração ao Inti-Sol que simboliza esse constante devir dos astros e sua relevância na vida do homem. Sua biografia é um exemplo vivo das possibilidades estéticas e criativas que podem acontecer quando são colocados como complementares os saberes nativo-ancestrais com a composição experimental, tecnologia multimídia e performance. Se vitaliza nosso termo nativo experimental que, dentro da música, faz uma aproximação conceitual sobre os diversos processos de sonorização e musicalização experimental dos componentes fundamentais da cosmologia nativo-ancestral; redimensionando sua sabedoria, envolvendo suas sonoridades e fomentando debates à uma visão transcultural contemporânea da música experimental.

V. Apontamentos finais sobre a música nativa-experimental.

É preciso levantar algumas conclusões logo depois de ter observado as possibilidades estéticas da singularidade de relações na que poderíamos considerar como música nativo- experimental. Partindo o ponto de partida conceitual as cosmologias, mitos e sonoridades nativo-ancestrais, a música experimental, graças a sua caraterística inovação e avanço, consegue ser o meio para potencializar o significado do mundo indígena, que usualmente tende a ser observado desde a perspectivo do folclore. Vimos quão importante é ter uma relação transcultural, ou seja, sem intenção de padronizar ou restringir, numa espécie de choque cultural, mas sim, promovendo a mutua correlação se aprofundando e respeitando as cosmologias de ambos polos. Conseguimos também distinguir claramente os dois agentes que consideramos, sejam a base da constituição do pensamento nativo-ancestral. Por uma parte sua cosmologia, a mesma que é compartida pelo grupo humano dentro da comunidade, a mesma que está intimamente ligada a suas expressões artísticas e rituais; e por outro lado, o xamã, que é o representante espiritual e político da comunidade, ele também possui as técnicas do êxtase transformando-lo em um ente tecnológico dentro da comunidade.

Algumas das qualidades sonoras e musicais das cosmologias ameríndias na selva amazônica ou na zona dos Andes, foram explorados dentro deste capítulo, pudendo mencionar também a comunidade de Alaska, encontrando grandes similitudes sobre a

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compreensão do mundo nativo-ancestral, o mesmo que trata ao som e a música como a concepção de forças naturais; a energia das vibrações é poderosa, o xamã o sabe; a ritualidade da música é poderosa, as tropas de sikus também sabem disso. É possível experimentar com esses saberes desde a perspectiva som e a música? A resposta poderíamos dizer que é afirmativa, o que implica uma transmissão dos componentes míticos e componentes sonoro- musicais para plataformas de experimentação multimídia; as mesmas que procuram criar diferentes espaços de percepção musical como são: escuta profunda, recriação de espaços acústicos naturais; diversos estratos de sonoridades (micro e macro), potencializar o estado ritual, de introspeção que a escuta; a escuta pode estar direcionada no xamã, ou em elementos que representem as ideias ou seus objetos, dando um aspeto dramatúrgico ao performance; ou pode estar dispersa, abstraída num ambiente sonoro de ampla complexidade e “brutal bio- diversidade” sonora, como afirma Taborda, própria da composição do paisagem sonora da floresta; o ambiente sonoro site-specific de ambientes naturais é levando para a experiência musical, conceitos de espacialização eco-acústica. Na aproximação transcultural ocorrem frutíferas fontes criativas e de experimentação que tivemos a oportunidade de analisar neste trabalho.

O contato da experimentação com as culturas nativo-ancestrais também traz debates relacionados a temas fundamentais em nosso mundo atual, como são a conservação, a utilização de recursos naturais e a correlação do mundo ocidental com as comunidades ameríndias ancestrais. Dando origem a diálogos étnicos, sociopoliticos e musicológicos e antropológicos relevantes como pontos de futuras pesquisas.

Finalmente podemos ratificar a experimentação musical desde uma perspectiva nativo- ancestral, mediante o surgimento de instituições de pesquisa focadas precisamente no contato transcultural do nativo-ancestral com o experimental; esse é o caso da Oquesta de Instrumentos Autóctonos y Nuevas Técnologias266 (2004), que na direção do compositor argentino Alejandro Iglesias Rossi, vêm trabalhando um programa de pós-graduação na Universidade Nacional Tres de Febrero267, a mesma que procura uma aproximação do ensino da música experimental, música eletroacústica e performance, desde uma perspectiva

266 Para maiores informações sobre a Orquestra de Instrumentos Autóctonos y Nuevas Tecnologías visitar su canal de Youtube com varias apresentacões realizadas: https://www.youtube.com/channel/UC__Iz6hFyyTe_FsuDHVv4qg 267 Para maiores informações sobre Universidade nacional Tres de Febrero e seu programa de pós-graduação visitar o link: http://untref.edu.ar/posgrados/maestria-en-creacion-musical-nuevas-tecnologias-y-artes-tradicionales/

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marcada pelos saberes e conhecimentos próprios das culturas ameríndias de América (asteca e inca). Alejandro Iglesias Rossi, num ideal de construir um músico-compositor-lutier, realiza diversos trabalhos de pesquisa na interpretação e construção de instrumentos nativo- ancestrais. Suas pesquisas incluem o analise dos materiais de cosntruçnao dos instrumentos, a exposição de instrumentos autoctonos reais a raios x, para conhecer melhor sua morfologia e contato com as comunidades indígenas de América do Sul.

Alejandro Iglesias Rossi também explora com sua orquestra e seus estudantes (muitos deles pertencentes a orquestra) maneiras de se aproximar a conceitos da ritualidade mais profundos, mediante a prática de artes marciais os mesmos que estão destinados para desenvolver os conceitos de ritualismo e controle nos performers. Além disso, é promovido o estudo etno-musicológico das comunidades indígenas (pesquisa de campo), incluindo dentro de seus diversos modos de contextualização teórico-prática o estudo das diversas ferramentas e plataformas de experimentação sonora e interação multimídia (arte experimental).

Todos esses elementos (interpretação e construção de instrumentos musicais nativo ancestrais, ritualidade e desenvolvimento corporal, etno-musicologia, e tecnologia) são utilizados como motores pedagógicos e criativos, os mesmos que são contextualizados pela Orquesta de Instrumentos Autoctonos y Nuevas Tecnologías, em obras e apresentações carregadas de energia, potencia, experimentação sonora, utilização de instrumentos e indumentárias ancestrais, ritualidade e inovação; a orquestra vem realizando apresentações ao redor do mundo com criticas muito boas sobre seu trabalho268.

Estamos sendo testemunhas do encontro estético de mundos que poderiam se pensar incompatíveis, a música desde a perspectiva nativo experimental nos brinda um panorama inovador de conceitos cosmológicos e musicais que tem sido por muito tempo, desvinculados dos processos de experimentação musical, e que certamente, podem restabelecer os nexos do que pareceria ser um afastamento gigante do humano, sua arte com a natureza e sua sabedoria ancestral.

268 A Orquestra de Instrumentos Autóctonos y Nuevas Técnologias tem realizado um registro audiovisual importante do seu trabalho performático, podendo nos apresentar melhor à sua interessante estética e interpretação musical. Isso pode ser observado no seu canal de Youtube: https://www.youtube.com/channel/UC__Iz6hFyyTe_FsuDHVv4qg

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. A prática entre o nativo-experimental e a livre improvisação

A experiência composicional prática de nossa pesquisa é baseada principalmente numa perspectiva grupal, num espaço criativo que permite uma visão experimental do som, da escuta atenta e fundamentada na criação espontânea. Essas são as características do trabalho realizado pela Orquestra Errante269 (O.E.), fundada pelo pesquisador, saxofonista improvisador e livre docente Rogério Moraes Costa270 no ano de 2008, no Departamento de Música e Sonologia da Universidade de São Paulo. A Orquestra errante pode ser caracterizada como um laboratório de pesquisa da improvisação livre, aberto a processos e delineamentos de interação espontânea, experimentação eletroacústica, multimídia e relações transculturais. Durante os dois anos e meio que trabalhamos com a O.E, podemos levar para o processo criativo diversos instrumentos nativo-ancestrais, experimentação com síntese sonora, técnicas de livre improvisação e tivemos a oportunidade de compartilhar experiências musicais valiosas com cada um de seus membros, que a partir de suas próprias singularidades e modos de ação, nutrem a transculturalidade que é característica da O.E. O processo transcultural é promovido dentro do laboratório pela presença de músicos de variados contextos, nacionalidades (Brasil, Paraguai, Equador) e instrumentos como: voz, piano, saxofone, trombone, clarinete contrabaixo, instrumentos andinos e live-electronics271, que conseguem estabelecer vínculos musicais profundos e complexos através da atenção e predisposição criativa na prática da livre improvisação. Nosso desafio foi incluir dentro dessa frutífera, interativa relação e perspectiva de fazer musical da O.E. a presença dos instrumentos e sonoridades nativo-ancestrais. Seria possível? Quais estrategias adotar? Essas foram algumas das inquietudes que promoveram esta pesquisa.

Por outra parte, a O.E fomentou o contato com importantes improvisadores como a saxofonista Franziska Schroeder (Sonic Art Research Centre em Queen’s University, em Belfast) e do o improvisador Marcel Cobussen (Artistic Reseach da Universidade de Laiden, nos Países Baixos), que descreveram algumas das estratégias de interação em forma de

269 Para consultar alguns registros de diversas apresentações da Orquestra Errante visitar o canal de YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCMpYcZ6wiu4YaGYZdVFeTCA 270 Rogério Moraes Costa tem um extenso trabalho bibliográfico sobre a improvisação livre, interação e música experimental, o mesmo que pode ser acessado no seguinte link: https://usp-br.academia.edu/Rog%C3%A9rioCosta 271 O Live-electronics, pode ser entendido como a plataforma criativa que permite a síntese sonora em tempo real. Sobre esse assunto, furamos uma aproximação desde nossa experiência prática com dita plataforma de criação musical.

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conceitos simples de improvisação em roda, ou mais complexos como criação espontânea de duos ou trios que trabalham camadas de improvisação sobrepostas. Podemos também mencionar as experiências no palco realizadas nas diversas participações da O.E. em festivais (48º Festival Música Nova, Festival Jazz na Fábrica) e concertos em diferentes locais da cidade de São Paulo.

A O.E. se estabelece como um ateliê de improvisação e música experimental que trabalha especificamente a improvisação livre mediante a abrasão ou reinterpretação do som e do ruído como material musical fundamental. Não importa o instrumento que se possa levar à O.E., o importante explorar uma série de recursos sonoros, muitas vezes fora da interpretação tradicional, que deverão estar a disposição na construção do discurso musical. O processo criativo para ser livre, como observamos no cápitulo II desta dissertação a improvisação não estruturada não idiomática, se caracteriza por eventos sonoros espontâneos realizados durante a performance. As estratégias individuais e coletivas de improvisação representam a interação, o fluxo sonoro criativo que se alimenta de suas microestruturas, que podem se transformar de forma abrupta ou gradual, ser altamente receptivos ou estáticos, durar vinte minutos ou um minuto, enfim, todas as possibilidades estão dispostas para o improvisador que será responsável por esse momento musical único e singular.

A característica de redefinir as próprias capacidades sonoras dos instrumentos e performers dentro da O.E. dá, como resultado, num processo de reconstituição tanto interpretativa quanto de percepção auditiva. O som passa a ser reconhecido por sua estrutura espectral, pela sua qualidade tímbrica. Essa visão do som como microestruturas, ou molecularização272 do som, deve estar predisposta para o processo criativo de experimentação espontânea. Assim podem ser explicados a partir da perspectiva da testerritorialização o modo como se trabalha e se improvisa com o som, explicado por Costa como:

A improvisação livre, propriamente dita, não existe já que ninguém é totalmente livre de seus condicionamentos técnicos, culturais, corporais etc. O que chamamos de improvisação livre é, na realidade, uma improvisação contemporânea em que há um intenso processo de desterritorialização, reterritorialização e transterritorialização através de uma superação e mistura de idiomas. A livre improvisação não se submete a nenhum idioma ou

272 Estes termos foram expostos anteriormente no capitulo II, e são entendidos como a menor estrutura sonora, que conforma o material musical que será desenvolvido e trabalhado durante a improvisação. Esta microestrutura passa a ser o joelho sonoro que conformará o material primário gerador do fluxo musical da performance.

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sistema específico, mas cria sistemas no seu devir” (COSTA em FALLEIROS, 2012, p. 256).

Podemos mencionar que, na atualidade, a Orquestra Errante e composta pelo coordenador Rogério Costa, já citado, e por alunos do Departamento de Música da Universidade de São Paulo, seis membros ativos, aceitando sempre a participação de mais performers. Os alunos são: Fábio Martinelli (Trombone e live-electronics), Miguel Antar (contrabaixo), Mariana Carbalho (piano preparado), Max Schenkman (voz e instrumentos inventados), Felipe Fraga (Clarinete) Jonathan Andrade (instrumentos andinos e live electronics), formando um coletivo de improvisação que se reúne em ensaios periódicos semanais.

Nosso trabalho prático, num primeiro momento, é impulsionado pelas formulações realizadas no artigo escrito por Rogério Moraes Costa e Ana Luisa Fridman intitulado Inside the Sound: A path to improvisation with no borders (2011). Os autores propõem estratégias para colocar em diálogo diferentes territórios idiomáticos, sugerindo um processo de desconstrução gradual que deixa ao performer a condução de regras e sistemas pré- estabelecidos, mas também possibilitando a transcendência dos territórios, a liberdade criativa e a interação, mergulhando dentro da profundeza do som (COSTA, FRIDMAN, 2011). Propõe, portanto, a oportunidade de experimentar um relacionamento de abstração gradual da improvisação livre para conseguir descontextualizar e re-interpretar, a partir da experimentação sonora, elementos musicais e cosmológicos nativo-ancestrais.

No texto de Costa e Fridman (2011): “para a prática da improvisação livre, necessitamos descontruir todos os idiomas, técnicas e sistemas tradicionais com o objetivo de criar um território comum de conversação” (COSTA, FRIDMAN, 2011, p. 2). Os idiomas, os códigos musicais e as técnicas de interpretação estão presentes como potencialidades musicais das biografias individuais de cada músico. Nesse sentido entendemos que seria também plausível colocar como elemento inicial de reconstituição a perspectiva musical e cosmológica do nativo-ancestral. O texto de Costa e Fridman (2011) se refere especificamente a necessidade de partir ou reconstruir o diálogo musical mediante improvisação livre, a partir de limites conceituais e musicais territorializados. Sobre essa ideia podemos agregar o mencionado por Costa e Fridman (2011):

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Necessitamos criar novas técnicas e repensar a ideia de instrumento, baseado na noção de que o som vem primeiro que a música. (...). Nós poderíamos considerar aqueles materiais como partes da abstração dos idiomas, tais como: modos, escalas, ritmos e padrões formais, como se fossem a concretude variável de acontecimentos na construção da performance, incluindo todas as variáveis que poderiam acontecer relativas a instabilidade de um ambiente expressivo e criativo (COSTA, FRIDMAN, 2011, p. 2)

É assim que propomos uma perspectiva de marcada abstração e reconstituição do material musical: a reinterpretação de instrumentos nativo-ancestrais, explorando técnicas estendidas e potencialidades de sínteses eletrônica. Por outro lado, formulamos estratégias com marcados princípios da cosmologia nativo-ancestral que possam ser utilizados como estratégias de processos de criação musical espontânea e coletiva. Esses dois vetores são o marco que sustenta nossa pratica criativa, que contou com as importantes contribuições da O.E. para colocar em prática os diversos trabalhos de experimentação musical transcultural.

I. Orquestra Errante como improvisação ecológica

Improvisação é agora uma forma de saúde, um exercício dentro da vida saudável. O movimento cultural em direção a espiritualidade do Oriente, a autossuficiência da terra, a preocupação com a coexistência pacífica com o outro ‘homem’, a preocupação com o ecossistema, a preocupação com os oprimidos e os silenciados, tudo isso deixo sua marca indelével sobre os discursos dominantes da improvisação como eles podem ser encontrados hoje. (PETERS, 2009, p. 23 – nossa tradução273)

É momento de procurar algum tipo de estratégia conceitual, num esforço por relacionar, por um lado, a improvisação livre (que por princípio esta deliberadamente desligada de qualquer condicionamento composicional ou conceitual – não idiomática), e por outro lado, a cosmologia nativo-ancestral de América do Sul (com suas características sonoro- musicais e perspectiva autossustentável com o ambiente). Se bem observamos uma marcada oposição ou contradição desses dois conceitos, nossa estratégia seria então olhar a improvisação livre a partir de uma perspectiva naturalista ou ecológica. Podemos dizer que, dessa forma, conseguimos encontrar similitudes na forma de conceber e agenciar o material

273 Original: “Improvisation is now a form of health, an exercise in healthy living. The cultural turn toward the spirituality of the East, the self-sufficiency of the land, the concern for peaceful coexistence with the other ‘man,’ the concern for the ecosystem, the concern for the downtrodden and silenced, all of this has left its indelible mark on the dominant discourse of improvisation as they can be found today” (PETERS, 2009, p. 23).

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sonoro na livre improvisação numa perspectiva de circularidade e complementaridade própria do pensamento nativo-ancestral. A forma com que a cosmologia indígena se relaciona com seu entorno, promovendo processos de conservação faz que pensemos em visualizar, através de um enfoque ecológico, a improvisação sistema interativo autossustentável.

Para isso, revisamos algumas formulações relacionadas com a eco-acústica, mencionada por Matthew Burtner (2005)274, Murray Schafer (1977)275 e a ecologia sonora mencionada por Rogério Costa (2014)276 e Makis Solomos (2012)277. Esses textos são utilizados para criar um marco teórico apropriado, onde adicionamos as similitudes e analogias encontradas com as perspectivas musicais e cosmológicas evidenciadas dentro das comunidades nativo-ancestrais de América do Sul, processo que representa um esforço por criar espaços de interação musical transcultural realizados com a O.E. durante nossa pesquisa, aplicando algumas de nossas ideias.

Começamos pelo termo Eco-acústica descrito por Murray Schafer (1977): “A ecologia acústica [eco-acústica] é, assim, o estudo dos sons em relação à vida e à sociedade (...) A melhor forma de entender o que quero dizer como projeto acústico é considerar a paisagem sonora mundial como uma imensa composição musical desdobrando-se incessantemente à nossa volta” (SCHAFER, 1977, p. 287). O termo paisagem sonora, mencionado por Schafer, resulta do acúmulo de sons que constituem o espectro de um determinado ambiente acústico. A paisagem sonora recalça sua conotação visual, como uma fotografia do panorama sonoro ambiental. Nesse sentido, segundo Schafer (2007), se diferenciam dois tipos de Paisagens Sonoras. Uma é descrita como paisagem sonora hi-fi entendida como de alta fidelidade, ou seja, em que é possível discernir as diversas sonoridades que constituem o espectro sonoro de

274 Matthew Burtner em Ecoacoustic and Shamanic Technologies for Multimidia Composition and performance (2005). Este texto foi apresentado anteriormente e permitiu a aproximação da eco-acústica a um recurso criativo dentro da música experimental e performance. 275 Murray Schafer em A Afinação do Mundo (1977). Este texto toma relevância por ser o primeiro em pesquisar a ideia de uma ecologia acústica a mesma que pode ser entendida como a relação entre o som e os seres vivos, que conformam uma paisagem sonora natural. A paisagem sonora pode ser entendida dentro da música experimental como a representação, por meio de meios áudio visuais e espacialização (distribuição de sons no espaço) de um ambiente acústico específico e particular. Aprofundamos esses conceitos neste capítulo. 276 Rogério Costa em Livre improvisação e ecologia sonora: uma aproximação a partir da estética da sonoridade (2014). Este artigo descreve uma perspectiva da improvisação livre como sistema autossuficiente de criação musical, dessa forma surge o de diversos pontos: o som como noção de emergência na improvisação, a questão da interação e espontaneidade, autopoiese e sistemas auto-organizados, noções de complexidade e multiplicidade e a incorporação do ruído, mediante a escuta reduzida e a ideia de molecularização. 277 Makis Solomos em Emtre musique et écologie sonore: quelques exemples (2012). Neste artigo temos colocados diversas formulações sobre o termo ecologia sonora, apresentando trabalhos de arte sonoro e música experimental que debatem sobre a ideia de inserção na construção do discurso musical, de processos coletivos, de autopoiesis, interação e não hierarquização.

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um ambiente determinado. Um claro exemplo disso foi exposto pelo compositor Tato Taborda no capítulo anterior: a floresta tropical pode ser entendida como uma paisagem sonora hi-fi onde existe uma variada diversidade sonora presente no balanço acústico dos sons dos seres vivos em relação transparente com seu entorno. A escuta pode perceber mais elementos sonoros com maior detalhe nas qualidades sonoras individuais. Uma outra paisagem sonora descrita por Schafer (1977) tem a ver com o termo lo-fi, ou seja, de baixa fidelidade, principalmente caraterístico das zonas urbanas ou industrializadas das sociedades. A paisagem sonora lo-fi passa a ser um quadro difuso ou saturado dos elementos sonoros de um ambiente. A presença de uma desmesurada propagação do ruído das máquinas, o tráfego e o comércio fazem com que o ambiente sofra uma poluição acústica que impossibilita a escuta diferenciada dos componentes que estão presentes no ambiente, dando a impressão de uma parede sonora diante da escuta (SCHAFER, 1977).

Vale citar o projeto relacionado com a escuta ecológica que levou adiante Murray Schafer, no denominado World Soundscape Project278 (WSP), iniciado 1971 na cidade de Vancouver, Canadá. Esse projeto envolve a prática de sounds-walks (caminhadas sonoras), que focalizam a atenção, a escuta das qualidades sonoras e a invasão do ruído dentro do panorama sonoro dos arredores da cidade - práticas que foram levadas para outras cidades do mundo. As paisagens sonoras são a marca sonora de uma região específica que vai ser definida pelos sons dos objetos viventes, as máquinas e os sons naturais que a caracterizam.

A eco-acústica pode ser entendida no aspecto prático da improvisação livre, realizado com a O.E., como perspectiva viável à criação musical espontâneo que permite a subsistência de todos os elementos sonoros apresentados pelos performers, numa paisagem sonora Hi-fi, de alta fidelidade, que possibilita a participação das potencialidades sonoras individuais, e que estas sejam claramente escutadas. Outro caso pode ser uma improvisação livre com altas dinâmicas e saturação, ou lo-fi, de baixa fidelidade, onde os elementos sonoros formam entre si paredes acústicas, complexas estruturas tímbricas que impedem uma escuta diferenciada dos elementos. Outra aplicação das formulações de Schafer (1977) sobre eco-acústica reside na documentação de dados sonoros durante a participação de experiências da escuta dos espaços acústicos, algo que possibilita ao ouvinte sintetizar e, posteriormente, recriar as peculiaridades sonoras do ambiente acústico que escutou. Fomentamos também caminhadas

278 Projeto de paisagem sonora mundial. (SCHAFER, 1977)

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sonoras com os músicos da O.E., que tinham como propósito treinar e fazer os performers perceber o mundo sonoro que os rodeia. Isso permite a distinção entre as paisagens sonoras hi-fi ou lo-fi. Os dados recolhidos das caminhadas sonoras através de paisagens hi-fi (naturais) ou lo-fi (urbanos), são utilizados como guias para a criação de uma improvisação livre, que pode ser realizada sobre o registro sonoro da caminhada sonora. Essas estratégias de aproximação da eco-acústica à prática da improvisação livre são utilizadas como fundamento na criação de uma proposta que contextualiza musicalmente as mencionadas formulações.

Trabalhamos ainda o conceito de ecologia sonora, que se diferencia do termo eco- acústica de Schafer (1977) devido a que, no primeiro: “na noção do sonoro, é o sujeito que é enfaticamente colocado em causa e, em consequência, à questão da escuta” (SOLOMOS apud COSTA, 2014, p. 191). Rogério Costa (2014) afirma: “Alguns aspectos fundamentais da abordagem de Solomos são adequados para uma aproximação com a prática da livre improvisação, que seria – da mesma forma que a ecologia sonora – fundamentada nesta ideia de emergência do som com ênfase na questão da escuta, e indissociável de um espaço e um tempo específicos” (COSTA, 2014, p. 191). Relacionamos os apontamentos de Solomos (2012) e Costa (2014) com a ideia de uma plataforma de criação musical espontânea, baseada na escuta atenta, em junção com uma interação auto-organizada, autossuficiente, que se mantém e se desenrola, principalmente, devido a construção progressiva de estruturas sonoras que vão sendo desenvolvidas dentro da improvisação livre. O som como elemento ligado a seu espaço físico, como emergência de suas propriedades acústicas próprias; e a escuta, como ferramenta estética de criação, promovida por uma atenção atenta e interativa, participam em conjunção para sustentar o discurso musical, o fluxo sonoro em práticas de livre improvisação dentro da O.E., como acrescenta Costa:

Através da interação entre as ações instrumentais dos performers emerge o fluxo sonoro constituído por texturas sucessivas com graus diversificados de permanência, coerência e identidade e que dão consistência ao ambiente processual e auto-organizado da livre improvisação. Deste ponto de vista. Os sons gerados nas ações instrumentais, pensados aqui como nível microscópico da performance (numa analogia com a ideia de granulação, numa dimensão inicialmente quantitativa), acabam adquirindo consistência (num nível macroscópico, já numa dimensão qualitativa) no fluxo da performance. (COSTA, 2014, p. 193).

Outra perspectiva valiosa é encontrada no texto de Costa (2014) que trata a livre improvisação numa perspectiva de causalidade circular, fomentada primordialmente pelo

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funcionamento de um sistema de ações interativas dos instrumentistas, que geram sonoridades que serão utilizadas como fonte de criação e desenvolvimento, fomentando um ciclo continuo de geração e interação dos materiais sonoros que vai sendo nutrido das informações sonoras geradas. Para expandir o conceito da causalidade circular e composição, Makis Solomos (2012) expõe mediante os apontamentos do compositor Di Scipio que:

De acordo com Di Scipio, a composição poderia, ao contrario, consistir em compor as interações – sendo o resultado sonoro apenas o que é composto diretamente. Teríamos então um sistema verdadeiramente interativo: neste tipo de sistema “um objeto primordial seria criar um sistema dinâmico com um comportamento adaptativo às condições externas circundantes, e capaz de interagir com estas mesmas condições externas (...) Há aqui um afastamento substancial da composição musical interativa em direção à composição de interações musicais (SOLOMOS apud COSTA, 2014, p. 195).

Costa (2014) ainda afirma que “na livre improvisação, esta ideia de causalidade circular está presente o tempo todo, já que o sistema se mantém em funcionamento unicamente a partir das ações interativas dos instrumentistas que atuam e fazem parte do ambiente específico da performance” (COSTA, 2014, p. 196).

Outro ponto mencionado no texto de Costa (2014) é a noção de complexidade e multiplicidade. A presença de caos e de organização que têm como vetor a participação ativa dos improvisadores. Dessa forma, Costa (2014) expõe as formulações de Mitchell Waldrop, dando mostra do tênue e instável dinamismo da livre improvisação, transitando entre momentos de estabilidade ou ambientes de caos e saturação:

Os sistemas complexos são mais espontâneos e desorganizados do que os estáticos, seus componentes vivem em estado de turbulência oscilando entre estágios caóticos e ordenações complexas. Do que os estáticos, seus componentes vivem em estado de turbulência oscilando entre estágios caóticos e ordenações complexas; um constante estado de transitório em que os componentes do sistema nunca estão completamente fixos, sem que, no entanto, se dissolvam na turbulência (WALDROP apud COSTA, 2014, p. 200).

Os apontamentos formulados por Costa (2014) fazem analogia com a forma como se entende o som da floresta, um sistema complexo de relações sonoras. Um sistema complexo de interação onde cada uma das manifestações sonoras dos humanos, animais e do ambientem conseguem projetar suas próprias manifestações sonoras, numa rede de relações de grande multidiversidade sonora. A floresta, como sistema autossustentável, oferece a oportunidade de

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que dentro de sua paisagem sonora possam ser colocados processos de experimentação sonora. A multiplicidade de eventos sonoros, vistos a partir de uma perspectiva de organização do caos, nos faz pensar que dentro do aparente caos presente nas paisagens sonoras de nossos arredores imediatos, conseguimos desenvolver um conceito de criação musical, baseado numa improvisação que dialoga tanto com paisagens sonoros transparentes, quanto poluídas.

A cosmologia nativo-ancestral, especificamente referida a seus princípios de ação em seu entorno natural, encontra uma similitude circunstancial com a ideia de ecologia sonora, e seu sentido de autopiesis, como sistemas com modos de interação que tendem a ser autossustentáveis, ou como lemos nos apontamentos de Humberto Maturana (1997), de “organismos vivos”. Maturana explica que um ser vivo é composto por moléculas num jogo de interações e relações de proximidade que tendem a compor redes fechadas de mudança e síntese de suas próprias microestruturas (moléculas). Ele explica que essa rede de produção de componentes, vai gerando um processo de circularidade dentro de si mesma, “através do qual existe um constante fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede, o que neste livro denominamos autopoiesis” (MATURANA apud COSTA, 2014).

O que se almeja é justamente que o ambiente da performance seja auto- organizado e adaptativo; que se preserve a riqueza proveniente da complexidade e da multiplicidade, tanto no que fez diz respeito aos caminhos da performance quanto nos caminhos abertos à escuta. Há, no entanto, o risco de dissolução na turbulência se o ambiente não for bem preparado. Isto é, não basta juntar os músicos e fazê-los tocar (COSTA, 2014, p. 201)

Dessa forma podemos aproximar a escuta ecológica com os quatro princípios categorizados como as ações de auto-sustentabilidade que mantém as comunidades nativo ancestrais com seu entorno natural. Na livre improvisação e, especificamente, na execução das peças propostas para esta pesquisa, aparecem os princípios de relação, complementaridade, correspondência e reciprocidade como fundamentos dentro da criação de sistemas circulares de livre interação, promovendo ações sonoras que estejam ligadas exclusivamente a uma escuta atenta e a uma atitude de criação coletiva. Utilizamos os princípios mencionados anteriormente no capítulo IV descritos pelo Congresso do Fondo Indígena (2007) como base de uma reinterpretação de aqueles princípios vistos desde a

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perspectiva da ecologia sonora.

* Princípio de relação: Nenhum som existe por si mesmo, mas sim graças à existência de uma relação criadora entre eles; vinculando aspectos afetivos, ecológicos, éticos, estéticos e produtivos dos sons que fazemos ou deixamos de fazer, influem em outros processos e em outros sons.

* Princípio de correspondência: Existe um vínculo entre os micro-sons e os macro- sons. Todos os sons contêm outros sons. Tanto nas sonoridades mais simples até as espectralmente complexas. O mesmo acontece com os performers, cada performer está vinculado e deve estar ciente da relação que tem com os outros performers.

* Princípio de complementaridade: Nenhuma ação sonora existe por si mesma, sozinha, mas sim está conectada com diversas relações sonoras. Estas relações acontecem muitas vezes em duos. Cada som pode ser complementado por outro som gerando processos musicais naturalmente interligados.

* Princípio de reciprocidade: A atenção do performer deverá ser focada em cada uns dos sons gerados pelos outros performers. Identificando interações e interagindo produtivamente na interpretação das diferentes seções descritas dentro de um roteiro que guia das interações musicais.

Utilizamos a improvisação livre dentro da O.E. numa perspectiva “naturalista” de recriar os sistemas ecológicos sustentáveis como marco conceitual da performance musical, servindo como fundamento para a constituição das peças musicais destinadas a colocar em prática nossas formulações sobre a improvisação livre como ecologia sonora.

II. Experimentação com os instrumentos musicais nativo-ancestrais279

Neste item nos parece imprescindível descrever nossas aproximações pessoais com diversos instrumentos nativo-ancestrais da zona andina de América do Sul. Foi importante

279 As imagens dos instrumentos descritos deste item pode ser consultadas nos Anexos desta mesma dissertação.

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contar com instrumentos, principalmente de sopro, como alguns tipos de flautas andinas, tanto verticais quanto transversais. Entre as flautas verticais utilizamos a quena, quenacho e alguns tamanhos de pinkillos. Outras flautas andinas verticais trazidas para a prática da improvisação livre foram as sampoñas, que podem ser descritas como a união de diversos tubos de cana, da mesma forma que os sikus, mas apresentando uma relação cromática entre cada nota. Incluímos também nas flautas verticais o rondador, instrumento parecido aos sikus com a diferença que apresenta tubos intercalados entre longos e curtos, que cria notas conjuntas com intervalos de quarta, quinta e oitava. Outros instrumentos de sopro utilizados nas práticas de improvisação livre com a O.E. são ocarinas, instrumentos pequenos de duas, três e quatro sons feitos de argila ou barro, amplamente usados na música de comunidades nativo- ancestrais do mundo todo.

Podemos mencionar ainda o uso de flautas andinas transversais dentro da O.E., um tipo singular de instrumento andino, nativo da comunidade indígena de Kotama280, na província de Imbabura – Equador. Nessa comunidade, tivemos a oportunidade de conhecer suas tradições e sua música, além de aprender alguns conceitos interpretativos de sua música nativo-ancestral.

Alguns apontamentos sobre a cosmologia de sua música podem ser encontrados no livro do pesquisador e músico equatoriano Julian Pontóne o pesquisador Luis Enrique Cachiguango intitulado Yaku-mama: La crianza del agua (2010). É explicado no texto que, na música de Kotama, os principais instrumentos usados para a interpretação de suas músicas são as flautas transversais que, devido a construção e afinação micro-tonal das flautas, não está relacionado com um repertorio tradicional conhecido amplamente no folclore musical tradicional. Estas flautas são feitas principalmente de tubo de cana o carrizo que apresentam diversos tamanhos. Da menor para a maior temos: cucha, agudas, medias e graves. Elas podem produzir quatro, cinco, seis, oito e nove sons, dando lugar a escalas tetrafônicas, exafônicas, ortofônicas e nonefônicas. Todas essas escalas são não-temperadas, tendo nenhuma conexão com as escalas usualmente usadas na música ocidental (PONTÓN, CHACHIGUANGO, 2010). Nesse sentido, lemos uma afirmação sobre as flautas andinas que

280 Kotama está povoado por 200 familias que conformam uma população de ao redor de 1000 moradores. De esta população o 99% corresponde a etnia originaria andina e um 1% é etnia mestiça. Kotama desde sempre é uma comunidade agrícola, sendo o calendário agro-astronómico anual da coleta do milho o que conforma os diferentes tempos delineando as atividades e festividades da comunidade (PONTÓN, CACHIGUANGO, 2010).

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diz: “para nós, os instrumentos musicais são pessoas capazes de conversar, fazer dançar e extasiar a runa [ser humano]. Dessa forma, no caso da flauta andina, o instrumento que faz a primeira flauta é masculino e a flauta que faz a segunda [voz] é feminina” (PONTÓN, CACHIGUANGO, 2010, p. 63 – grifo nosso - nossa tradução281).

Também podemos mencionar alguns componentes da concepção de dualidade e circularidade dentro da compreensão da estruturação de sua música, que resultam em escalas com micro-tons. É nesse sentido que podemos expandir alguns conceitos da música de Kotama, segundo os apontamentos de Pontón e Cachiguango (2010), que explicam o termo em quechua Taki-Unkuy como o masculino, representando a luta, o enfrentamento, a desestabilização e transformação. Este termo tem sua repercussão no estilo de música específico do masculino chamada Kari-Taki. Já a música Taki-Sami representa a música do feminino porque provoca relaxamento, estabilidade e harmonia. Dessa forma, junto com a música Taki-Unkuy, necessariamente deve existir Taki-Sami para complementar o processo circular de criação musical (em analogia com ira – arca).

Para dar um ponto de vista geral sobre a música andina desde a perspectiva Kotama podemos colocar o mencionado por Pontón e Cachiguango:

Falar de música andina é falar sobrea linguagem dos sons da Pacha-mama (natureza), é imitar o murmulho da agua, o sopro do vento, a força do furacão e a cachoeira, a voz do fogo que inspira, a voz do silencio da alma e o êxtase da conexão do runa [ser humano] com seu entorno. É a voz do espírito das montanhas da agua, do fogo, do vento, da terra, dos animais, dos insetos. Em fim, o som do sagrado presente no cotidiano. Isto evidencia que muitas canções são inspirações naturais e outras são revelações escutadas nos momentos de êxtase de conexão espiritual (PONTÓN, CACHIGUANGO, 2010, p. 64 – grifo nosso – nossa tradução282).

Nossa experimentação instrumental também incluiu instrumentos de percussão como o bombo andino, também conhecido wankara, feito de madeira com dupla membrana de pele de boi, que tem diversos tamanhos e apresenta sons percutidos na pele de couro e na madeira

281 Original: “Para nosotros, los instrumentos musicales son personas capaces de conversar, hacer bailar, y extasiar al runa. De esta forma en el caso de la flauta andina, el instrumento que hace de primera flauta es varón y la flauta que hace de segunda es mujer” (PONTÓN, CACHIGUANGO, 2010, p. 63) 282 Original: “Hablar de la música andina es hablar el lenguaje de los sonidos de la Pacha-Mama (naturaleza), es imitar del murmullo del agua, el silbido del viento, la fuerza del huracán y la cascada, la voz del fuego que inspira, la voz del silencio del alma y el éxtasis de conexión del runa con su entorno. Es la voz del espíritu de las montañas, del agua, del fuego, del viento, de la tierra, de los animales, los insectos. En fin, es el sonido del o sagrado presente en la cotidianidad. Esto evidencia que muchas canciones son inspiraciones naturales y otros son revelaciones escuchadas en los momentos de éxtasis de conexión espiritual” (PONTÓN, CACHIGUANGO, 2010, p. 64)

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do instrumento. Outro instrumento de percussão usado foram as chajchas, feitas do conjunto de cascos de animais como cabras ou ovelhas. As chajchas se caracterizam por ter um som textural parecido com o correr das águas, remetendo a sons de rios.

Adotando como ponto de partida o instrumental andino apresentado anteriormente, começamos nosso processo de abstração e experimentalismo sobre as qualidades sonoras, morfológicas e técnicas dos instrumentos expostos. Nosso objetivo foi introduzir, como parte das possibilidades sonoras dos instrumentos nativo-ancestrais escolhidos, o ruído, passando por suas gradações entre som sustentado (representativo dos instrumentos de vento), micro- sons, sons percutidos e texturas. Esta aproximação com a forma de tocar o instrumento tem clara relação com o uso de técnicas estendidas. Esse conceito será contextualizado junto com nossas próprias experiências práticas.

É assim que pesquisamos diversas formas de tocar as flautas andinas, explorando técnicas de geração sonora, além das formas tradicionais mediante o sopro. Como primeiro recurso, observamos que o material com que são construídos esses instrumentos (principalmente madeiras) oferecen um primeiro passo para ressaltar as capacidades sonoras das flautas andinas em procura da emergência do ruído, sons que não estão tradicionalmente vinculados às tradicionais práticas musicais. Dessa forma, podemos mencionar: (1) sons produzidos na ação de raspar as flautas umas com outras; o som resultante pode ser definido como textural, ruído de altura predominantemente aguda, mudando a entonação dependendo do tamanho das flautas utilizadas; (2) sons percutidos da ação de bater as flautas umas com outras; sons curtos, de altura variada; (3) a construção dos instrumentos de tubos em fileira: sampoña, sikus, rondador, permite um leque de sons percutidos também interessante para ser implementado em processos de improvisação livre, conseguindo criar uma constelação de sons curtos com alturas variadas, que pode funcionar como motivo ou “recurso sonoro” na improvisação. Esses sons podem ser amplificados mediante microfones de contato colados nos dedos do performer, assim as texturas sonoras resultado das ações antes mencionadas ganham presença dentro da performance. Essa experiência foi um dos primeiros testes realizados nesta pesquisa para incluir elementos da música eletroacústica e síntese sonora nos instrumentos andinos, propondo uma aproximação do instrumento mediante o uso de técnicas estendidas.

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Aqui devemos fazer uma pausa para descrever de forma geral o significado das técnicas estendidas, uma estratégia e ferramenta musical amplamente usada e discutida dentro da experimentação musical. O pesquisador e músico Mario del Nunzio (2011) explica que as técnicas estendidas podem ser analisadas, por um lado, como o desenvolvimento de meios mecânicos não convencionais de tocar um instrumento, utilizando objetos para modificar seu funcionamento e sonoridade (instrumento preparado); por outro lado, como o desenvolvimento de meios eletrônicos (pelo uso de processamento sonoro em tempo real), mas também pelo uso de corpo do performer envolvido no fazer musical, pela “dissociação paramétrica”, independência rítmica das partes do corpo envolvidas na produção sonora, e mesmo a energia corpórea requerida para determinadas resultantes sonoras (NUNZIO, 2011).

Ampliando nossa exposição sobre as técnicas estendidas, os compositores e pesquisadores Rael Bertarelli e Gimenes Toffolo (2010) explicam que:

As técnicas estendidas têm sido utilizadas de forma ampla na composição desde meados do século XX. Neste período, podemos considerar alguns fatores, que apesarem de não serem os únicos nem excludentes entre si, como responsáveis pela busca por ampliações na forma de tocar os instrumentos tais como: a consideração do timbre como elemento estrutural do discurso musical; proposição de obras musicais que se aproximem das outras artes como instalação, o happening, as performances cénicas, entre outras; desenvolvimento eletrônico que propicia o desenvolvimento do leve- electronics; cooperação entre instrumentistas e compositores (BERTARELLI, TOFFOLO, 2010, p. 1280)

A livre improvisação, como observamos nos capítulos anteriores, utiliza as técnicas estendidas para fugir dos idiomas musicais estabelecidos. Pode utilizar também os instrumentos andinos, que tendem a ter uma construção artesanal. Diferentemente dos instrumentos utilizados em orquestras ou em conjuntos de jazz, rock, etc., os instrumentos nativo-ancestrais de América do Sul mantiveram uma marcada técnica de interpretação consolidada durante gerações e fortemente ligada a seu contexto social. Pudemos observar nos trabalhos de Cergio Prudencio, Mesías Maiguashca e Alejandro Iglesias Rossi que os instrumentos nativo-ancestrais, vão sendo contextualizados tecnicamente, com o intento de incluir no processo da experimentação musical estes instrumentos tradicionalmente afastados dela.

Relacionamos as técnicas extendidas amplamente utilizadas dentro da instrumentação

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ocidental aos instrumentos andinos. Nesse sentido podemos descrever: o uso de multifônicos (tocar duas ou mais notas de uma vez) nas flautas andinas; esta técnica pode ser conseguida de várias formas, como soprando a flauta enquanto se canta ou tocando fortemente para conseguir que apareça a série harmônica dessa nota. No caso dos instrumentos de tubos em fileira como os sikus, sampoñas, podem ser colocadas duas flautas em paralelo para conseguir multifônicos. No caso do rondador, seus tubos são suficientemente pequenos e próximos para que seja possível tocar duas notas de uma vez.

Outra técnica estendida aplicada aos instrumentos nativo-ancestrais utilizados nesta pesquisa é a respiração circular, que consiste em manter um fluxo constante de ar entrando na flauta. Esta técnica pode ser aplicada nas flautas andinas com embocadura fechada, como os pinkillos ou as ocarinas. Também pode ser usada nas notas agudas das flautas de tubos em fileira (sikus, rondador, sampoña). Outra forma adotada foi soprar no extremo das flautas andinas verticais (quena, quenacho), fazendo vibrar o lábio, o que permitiu a obtenção de um som constante, de textura rugosa.

Podemos agregar ainda os sons micro-tonais, sons com alturas quase próximas ou uníssono relativo. Nesse sentido, afirmamos que os instrumentos nativo-ancestrais possuem esta qualidade sonora dentro de sua própria construção (sem temperamento), sendo instrumentos com possibilidades de atingir estruturas de melódicas de micro-tons, demostrando uma evidente facilidade para utilizar este tipo de técnica estendida. Os micro- tons também podem ser conseguidos ticando duas flautas sikus (colocadas uma encima da outra) para soprar dois tubos, criando harmonizações de uníssonos, quintas, quartas e oitavas também relativas.

Durante a procura de outras técnicas estendidas aplicadas aos instrumentos utilizados, acudimos aos processos de síntese e manipulação sonora expostos durante esta pesquisa. Foram utilizadas técnicas de síntese aditiva, geração de FM, síntese por modulação em anel e uso de efeitos de espacialização e reverberação, sendo o computador ferramenta fundamental para a realização desses processos em tempo real durante as práticas de improvisação livre. Como consequência, conseguimos redimensionar os sons tanto convencionais (técnica tradicional) e não convencionais (técnicas estendidas) de nossos instrumentos, conseguindo explorar ainda mais capacidades e potencialidades sonoras provenientes dos instrumentos

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nativo-ancestrais que, tradicionalmente e em grande parte, foram excluídos dos processos de experimentação sonora.

Além das formulações e procedimentos de experimentação interpretativa dos instrumentos usados nesta pesquisa, nos interessamos também por desenvolver o uso de algumas ferramentas tecnológicas versáteis e de fácil acesso para serem trazidos como recursos para fomentar a perspectiva experimental nos instrumentos nativo-ancestrais. Durante as experiências práticas desta pesquisa, visualizamos a utilização de live- electronics283 como uma ferramenta técnica e criativa que trabalha com a reconstituição e abstração das qualidades sonoras singulares dos instrumentos nativo-ancestrais, nos permitindo acessar outros campos e possibilidades sonoras, procurando uma estética ao juntar os sons naturais das flautas com a artificialidade dos sons do computador. Nosso interesse é conseguir uma técnica instrumental que permita a fusão sonora entre os naturais das flautas andinas e a eletrônica, abrindo caminho para explorações tímbricas úteis em contextos de improvisação livre.

Em seguida, detalhamos o equipamento e os procedimentos utilizados dentro de nosso projeto de pesquisa, que foram desenvolvidos e discutidos durante os ensaios semanais com a Orquestra Errante. Seus resultados podem ser observados no registro de duas apresentações onde foram utilizados os instrumentos nativo-ancestrais ligados a esta pesquisa e Live Electronics.

A primeira apresentação foi realizada o 11 de abril de 2013, num centro cultural situado na praça do relógio - Tenda Cultural Ortega y Gasset284. A proposta musical em formato de trio (live coding285 – Trombone/Didgeridoo – Flautas andinas/live electronics) foi realizada numa improvisação livre de 45 minutos, onde foram utilizadas as interações sucedidas durante a performance na qual seu desenvolvimento e permutação conduziu fluxo

283 Desde nossa experiência, podemos explicar o termo live-eletronics como o conjunto de processos (processamento) realizados para manipular, programar e transformar dados computacionais para resultados sonoros e visuais em tempo real. O live-electronics desde nosso ponto de vista, representa a mediação tecnológica, tanto analógica quanto computacional, que foram desenvolvidas desde a prática da música eletroacústica e que vem ganhando novos campos de ação incluído, dentro das possibilidades de processamento em tempo real, dados provenientes de fontes sonoras, visuais e cinéticas (sensores ou detecção de movimento por câmeras) que passam a serem incluídos dentro do live-electronis. Para maiores detalhes sobre live electronics consultar o trabalho de Simon Emersson em Live Electronic Music (2007) 284 Para poder observar esta apresentação acessar ao seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=D6titZTFfy0 285 Tipo de prática computacional focada na criação e desenvolvimento em tempo real, mediante códigos ou outro tipo de linguagem de programação computacional aplicados à geração sonoro/musical ou audiovisual. O live coding é utilizada amplamente em práticas de música experimental e improvisação livre.

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musical.

A segunda apresentação foi realizada em 30 de setembro de 2014 no 48º Festival Música Nova Gilberto Mendes286. Dessa vez, utilizamos nosso conjunto de flautas andinas e live-electronics dentro de uma proposta de improvisação livre chamada duos-tutis (estratégia de improvisação livre que consiste em começar por um duo de improvisação partindo pelas performers dos extremos e seu companheiro do lado). Esses duos foram organizados numa espécie de roda que transita até chegar ao duo em que participa o último músico da fileira. Em nossa apresentação, contamos com a presença de duas seções: duo-tutti, foi aproveitado para utilizar nos duos exclusivamente os sons das flautas andinas sem processamento, para posteriormente no tutti, fazer uso das possibilidades sonoras do live-electronics, pudendo comparar os resultados de interação e compatibilidade (ou incompatibilidade) sonora que tem as flautas andinas e o live-electronics.

Apresentamos em seguida uma breve descrição de nosso equipamento para o uso de live-eletronics aplicado aos instrumentos nativo-ancestrais utilizados para esta pesquisa. Este equipamento será dividido entre Hardware (equipamento físico) e Software (programas ou aplicativos) usados por nós.

Hardware

Primeiramente, focamos na construção de osciladores criados a partir da construção de circuitos baseados principalmente nas experiências adquiridas com o professor Marcelo Muniz dentro do centro cultural Ibrasotope, na oficina chamada Eletrônica básica aplicada à bugiganga sonora. Nesta oficina, aprendemos a construir teremins287 com foto-sensores e osciladores de variadas frequências. Esses componentes foram acoplados às flautas de tubos em fileira como a sampoña e o rondador, mudando a morfologia do instrumento (instrumento preparado) e permitindo obter, além dos sons tradicionais das flautas, frequências de osciladores que, em conjunto, podem criar multifônicos ou sobreposição de varias frequências dando a ilusão sonora de espectros de ampla ressonância.

286 Para poder observar esta apresentação acessar ao seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=4OtNTArX564 287 Tipo de instrumento eletrônico que gera uma frequência senoidal constante e a variação das alturas dos sons cria um constante efeito de glissando.

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Outro tipo hardware ou equipamento digital que está sendo utilizado como recurso sonoro e composicional do nosso trabalho é o pedal Loop-Station288, da companhia Boss, que tem sido utilizado para permitir ao performer gravar em tempo real fragmentos ou sequências, sejam fixas ou resultantes do acaso, que podem ser inseridas e processadas dentro da performance. As flautas andinas conseguem linhas melódicas fixas, que podem ser acrescentadas colocando camadas melódicas correspondentes aos harmônicos naturais, gerando, dessa maneira, exclusivamente com instrumentos nativo-ancestrais, texturas da ordem espectral de ampla ressonância. O loop-station pode ter outras funções, já que ele pode ser programado e carregado previamente com seções sonoras que podem ser ativadas durante a performance, além de incluir efeitos digitais como Chorus, Flanger e Octavador. Outro pedal importante que está sendo utilizado neste projeto é o MM1 Multi Modulator, que funciona como um modulador (frequência e amplitude) com as seguintes funções: Chorus, Flanger 1-2 Tremolo, Phaser Vibrato mod Filter Ring Modulator. Todas essas modulações são aplicadas às flautas andinas e aos diversos instrumentos nativo-ancestrais para misturar e ampliar a gama sonora de cada instrumento. Funcionam especialmente bem em pedais com notas graves. Contamos também com microfones Shure, Sm57 e Akg Perception Wireless 45, utilizados nas flautas andinas, permitindo uma movimentação absoluta, o deslocamento do instrumento e do performer através da plateia e do palco, em contraste com os sons projetados de caixas de som que podem conter efeitos de reverb ou os processos do live-electronics.

Contamos ainda com aparelhos portáteis (computador, i-pad), nos quais são processados aplicativos. Utilizamos também um sistema de amplificação inovador, desenvolvido para este projeto, chamado de “mochila amplificador”, uma sacola escolar instaurada um alto-falante de 200 watts com um pequeno pré-amplificador. A mochila conta no interior com uma bateria recarregável de 12 volts, conseguindo tocar, processar e enviar som contínuo proveniente da posição espacial específica do performer. Esse processo é especialmente efetivo quando precisam ser realizados deslocações ou movimentações dentro e fora do palco.

288 Este equipamento permite a gravação e reprodução imediata e sincronizada de porções de áudio que podem ser gravados e repetidos de forma cíclica e constante durante a performance.

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Software

Foram utilizados aplicativos de tablets ou telefones móveis conhecidos como Filtatron289 e Touch Osc290. A plataforma portátil e compacta dos dispositivos móveis facilita o acesso, a síntese e a manipulação sonora de forma confortável durante a performance. Quase todos os processos de síntese, gravação e reprodução podem ser efetuados por um destes dispositivos, que podem ser usados como controlador, no caso de Touch Osc, para a manipulação dos controles e os parâmetros dos aplicativos de síntese e manipulação sonora de forma remota, sem fio.

Plataformas de programação musical como Max-Msp291 e Pure-Data292 têm sido utilizadas para efetuar processos de sínteses e live-electronics. Também têm sido usadas para a composição de pequenas plataformas interativas, nas quais o performer não sabe o que o programa, de forma aleatória, modifica nos parâmetros da síntese e manipulação do som. Assim podem ser usados em situações de controle (sem a função aleatória) onde o performer decide os parâmetros do programa, ou descontrole (função aleatória) com o computador determinando o resultado sonoro final.

Esses equipamentos foram utilizados com o propósito de contextualizar de forma prática muitas das caraterísticas timbricas e musicais de alguns instrumentos nativo- ancestrais, numa perspectiva experimental baseada na procura por novos caminhos para reconfigurar ou redefinir aqueles sons característicos. Foram usados recursos técnicos e tecnológicos para conseguir maiores capacidades sonoras dentro de ambientes de criação musical experimental, como estratégia para conseguir a emergência do ruído desde fontes instrumentais nativo-ancestrais. Conseguir sintetizar desde os instrumentos nativo-ancestrais, a emergência de ruídos e a concretude do som, deu como resultado que o uso e a morfologia

289 Aplicativo desenvolvido pela companhia Moog Synth. Este aplicativo é um sintetizador digital táctil com VCF (Volt control frequency) Envolventes, LFO (Low Frequency Oscilator), Samplers e mais funções. 290 Touch Osc é um aplicativo que funciona como sistema de Controle sem fio que utiliza a tela do dispositivo tablete ou telefone, para criar uma serie de controles, botões, faders virtuais para controlar via rede internet funções dentro de softwares no computador. 291 Max-Msp é um programa computacional de criação e processamento de sinais. Este programa pode ser usado para a geração e manipulação de som e imagens em tempo real. Num começo foi desenvolvida uma plataforma de programação que não utilizasse a linguagem de programação de texto lineal de códigos, mas pelo contrario, incluísse uma forma gráfica de criar desenvolver a programação. Num começo o programa Max desenvolvido por Max Mathews começo na concepção do programa que posteriormente foi desenvolvido por Miller Puckette, dando origem ao Max-Msp. Este programa é comercializado pela companhia cycling74. 292 Programa desenvolvido por Miller Puckette na década de 1990 baseado na de estilo de programação de Max-Msp que é de acesso livre para o público. Para maiores informações e acesso ao programa visitar o seguinte link: https://puredata.info/downloads

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do instrumento mudem. As flautas andinas e o live electronics passaram a serem visualizados como um exemplo da contraposição do hi-tech e low-tech, trazendo para nossa pesquisa uma constante dupla afetação quando são colocados, numa perspectiva do experimental, dois elementos antagônicos, mas complementares.

III. Duas Peças

Depois de ter explorado diferentes informações e apontamentos relevantes à fusão entre o nativo-ancestral e a experimentação musical, podemos afirmar que, de certa maneira, é possível sintetizar mediante a experimentação componentes singulares e característicos encontrados na música e cosmovisão nativo-ancestral.

Os trabalhos realizados pelos compositores mencionados neste trabalho representam a manifestação estética e conceitual de um movimento que se bifurca a partir das muitas fontes criativas que alberga a música experimental, trazendo discussões que ratificam um interesse primordial por restabelecer contato com culturas pouco mencionadas em processos de experimentação. Tendo em vista seus pressupostos cosmológicos e musicais, se estabelecem nexos que dialogam positivamente com alguns fundamentos da experimentação sonoro- musical como: a emergência do ruído, o uso da paisagem sonora, o silêncio, a escuta atenta e a predisposição à interação sustentável.

Alguns desses pontos foram observados em propostas composicionais expostas nesta pesquisa (Prudencio, Taborda, Maiguashca), carregadas de conceitos e significados trazidos da cosmologia indígena: (1) a circularidade do tempo e das relações; (2) a dualidade ou correlação entre complementários. E outros trazidos pela figura do xamã: (1) escuta e atenção profunda (2) predisposição para aceder a estados de hipersensibilidade.

A improvisação livre é o marco processual para contextualizar as nossas formulações sobre a experimentação musical com raízes nativo-ancestrais. Este marco nos permite analisar possibilidades sonoras e técnicas pouco exploradas com instrumentos andinos, sendo esse enfoque uma experiência inovadora para se aproximar as sonoridades tradicionais dos instrumentos nativo-ancestrais desde a abstração e experimentação. Os quatro pontos

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mencionados anteriormente são colocados junto com os princípios de relação293, complementaridade294, correspondência295 e reciprocidade296, para servirem de fundamentos da preparação do ambiente de criação musical. Também serão usados como material conceitual na estruturação das peças. Dessa forma a circularidade temporal pode ser representada como circularidade de interações entre os performers e a dualidade pode ser representada na criação de camadas sonoras diversificadas mas correlacionadas. Utilizamos dois conceitos de improvisação dirigida ou composição experimental297, descrita no Capítulo 3 como Improvisação Estruturada Não idiomática, realizando para isso o uso de instruções verbais (score-events) e partituras gráficas.

As duas peças propostas como complemento prático de nossa pesquisa estão descritas no campo da chamada improvisação estruturada não idiomática e a improvisação livre. O grau de liberdade na geração dos materiais sonoros para a construção do fluxo musical é variado, trabalhando estratégias de relacionamento entre os performers e os sons produzidos. Estas relações estão sustentadas sobre o principio de auto-sustentação que promove uma constante escuta e atitude musical baseada na cooperação e a correlação entre os integrantes da performance. Começamos pela peça Do natural ao artificial (eco-acústica e ecologia sonora) e em seguida apresentamos a Ñan Urkuman (interação sonora eco-sonora, dualidade e circularidade). Estas pecas são apresentadas em formato de partituras gráficas ou instruções verbais e podem ser interpretadas por três ou mais performers.

Apresentamos também os resultados da realização destas peças interpretadas por dois grupos de improvisação livre e música experimental diferentes. O primeiro é a Orquestra

293 Nenhum som existe por si mesmo, mas sim graças à existência de uma relação criadora entre eles; vinculando aspectos afetivos, ecológicos, éticos, estéticos e produtivos dos sons que fazemos ou deixamos de fazer, influem em outros processos e em outros sons. 294 Existe um vínculo entre os micro-sons e os macro-sons. Todos os sons contêm outros sons. Tanto nas sonoridades mais simples até as espectralmente complexas. O mesmo acontece com os performers, cada performer está vinculado e deve estar ciente da relação que tem com os outros performers. 295 Nenhuma ação sonora existe por si mesma, sozinha, mas sim está conectada com diversas relações sonoras. Estas relações acontecem muitas vezes em duos. Cada som pode ser complementado por outro som gerando processos musicais naturalmente interligados. 296 A atenção do performer deverá ser focada em cada uns dos sons gerados pelos outros performers. Identificando interações e interagindo produtivamente na interpretação das diferentes seções descritas dentro de um roteiro que guia das interações musicais. 297 Improvisação dirigida pode ser entendida como um tipo de criação musical espontânea e coletiva que terá algum tipo de roteiro que direcione algum elemento constitutivo ou interpretativo dentro da performance.

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Errante298 (O.E.), que funciona dentro da Universidade de São Paulo sob a coordenação de Rogério Costa. O outro grupo é o Coletivo Improvisado299 (C.I.) formado por estudantes da Universidade de Campinas, sob a coordenação de Manuel Falleiros.

Podemos levantar conclusões sobre os modos de interação e particularidades no desenvolvimento de cada peca, que pode contar com referências interpretativas de duas versões diferentes. Nos apontamentos sobre a peça Do natural ao artificial é utilizada a versão da Orquestra Errante, peça estruturada no conceito de instruções verbais (event- score). Já os apontamentos da peça Ñan Urkuman, no formato de partitura gráfica, levanta conclusões sobre as diferentes interpretações que a peça ativa. As duas versões evidenciam como foram representadas a leituras das diversas grafias presentes na partitura gráfica e de que forma foram sintetizadas as aproximações sobre dualidade, circularidade, conceitos de correlação (ira – arca) e conceitos de naturalismo (representação de paisagens sonoros naturais) presentes nessa peça.

Adotamos gráficos espectro-morfológicos300, colocados em comparação, para explicar os diversos acontecimentos sonoros ocorridos dentro das peças e realizar observações substanciais sobre a efetividade ou dificuldade de concretizar musicalmente alguns dos conceitos trazidos das noções musicais e cosmológicas nativo-ancestrais, traduzidas em termos como circularidade, dualidade, ecologia sonora, escuta e atenção focada, relação, complementaridade, correspondência, reciprocidade, como abstrações para o desenvolvimento de estratégias de interação e estruturação musical, relacionando os sons e os performers em autossustentáveis de improvisação.

298 As gravações com a Orquestra Errante incluem estes instrumentos: Saxofone alto, trombone, clarinete, piano preparado, contrabaixo, voz masculina e flautas andinas. Dependendo da peça esta formação pode variar e será explicitado respetivamente. 299 As gravações com o Coletivo Improvisado incluem esses instrumentos: Dois Saxofones tenores, piano-sintetizador, voz feminina e instrumentos de percussão indús (tablas). Sua formação não mudou para interpretar as peças. 300 Este tipo de gráfico funciona para representar a morfologia do som durante o tempo. Neste tipo de gráficos são representas as alturas dos sons, a intensidade com que foram executadas, e seu transcurso e duração no tempo, sendo amplamente utilizados para análise de música eletroacústica, e analise sonoro em geral. Representação visual da experiência musical (SMALLEY, 1997)

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A. Do natural ao artificial (instrução verbal)301

Esta peça se relaciona com o conceito de ecologia sonora, entendido como uma perspectiva de criação e apreciação musical que promove processos de autopoises sonora e composição gerativa. Outro conceito presente é o de eco-acústica, entendido como o modo de relação dos indivíduos (performers) com os sons do seu entorno. Utilizando esses conceitos, propomos uma improvisação que, apesar de não ser considerada como totalmente “livre”, apresenta uma interessante aproximação com os relacionamentos e as ações musicais espontâneas presentes durante a experimentação com uma paisagem sonora determinada. Propomos desenvolver um sentido de escuta profunda para os sons ao nosso redor, e nessa interiorização, participar da criação de um panorama sonoro autossustentável e correlacionado entre si.

Em Do natural ao artificial propomos uma improvisação realizada sobre uma peça eletroacústica composta previamente. A peça eletroacústica utiliza em sua estruturação composicional sons concretos relacionados com a natureza e com as máquinas. Os sons foram recolhidos de gravações realizadas em ambientes de natureza no Equador, além de gravações das flautas tradicionais tocadas no Pawka Raymi302, registradas junto com a comunidade Kotama. Outros sons relacionados com as máquinas resultam de gravações em diversos lugares da cidade de São Paulo, principalmente em trabalhos de construção e estações de metrô. Posteriormente esses sons passaram por um processo de síntese para constituir a plataforma sonora onde seriam realizadas as improvisações coletivas. A partir da perspectiva da livre improvisão, a peça eletroacústica se coloca como um performer surdo e não interativo que toma parte na rede de conexões sonoras e musicais. Assim distinguimos os sons naturais relacionados com paisagens sonoras (P.S.) hi-fi – transparente; e sons de máquinas relacionados com paisagens sonoros lo-fi – poluídos. Estas duas perspectivas estão distribuídas durante a peça eletroacústica no seguinte gráfico espectro-morfológico (figura 2).

301 A instrução verbal desta peça pode ser consultada nos Anexos desta dissertação. A gravação das da peça eletroacústica e interpretação da O.E pode ser consultadas no DVD desta mesma dissertação.

302 Festividade Indígena andina que celebra a chegada de florescimento das plantas. É uma das quatro festividades

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Figura 2: Gráfico espectro-morfológico da peça eletroacústica mostrando as áreas transparentes e saturadas.303

Distinguimos algumas áreas que vão de um panorama sonoro transparente, que permite escutar os sons de forma clara e definida, para áreas mais saturadas, onde estão presentes ruídos de máquinas (drones), que criam panoramas sonoros próximos ao conceito de “parede sonora”.

A seguir, apresentamos uma descrição dos processos sonoros realizados pela O.E.304 para a interação, mediante improvisação livre, sobre o panorama sonoro apresentado na peça eletroacústica (figura 2). Cabe recalcar que os resultados sonoros e o gráfico espectro- morfológico exposto em seguida são resultado da interação espontânea conseguida no primeiro contato dos performers com a peça eletroacústica, possibilitando que o processo criativo fosse desenvolvido da forma espontânea. Nela observamos:

303 O áudio pode ser acessado no link SoundCloud: https://soundcloud.com/jonathan-andrade-428979496/electroacustica-do- natural-ao-artificial 304 Nesta peça não foram utilizadas as flautas andinas.

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(1)305 O primeiro acontecimento sonoro é um ambiente transparente com sonoridade de pássaros. Nele, os integrantes da O.E. trabalham de forma imitativa, propiciando o relacionamento e a complementaridade sonora em forma de geração de micro-sons que se relacionam entre si. Escutamos ruídos curtos e sons de alturas variadas que trazem um panorama sonoro relacionado com o que poderíamos escutar da biodiversidade de uma floresta.

(2) Com o início do primeiro som de máquina, observamos que alguns performers (trombone, saxofone) começam a ser influenciados por esse ruído, que dura pouco.

(3) É observado um brusco retorno para um panorama transparente de sons de floresta. Esse evento faz com que o trombone (que foi recíproco e correspondente sonoramente com o ruído da eletroacústica) fique exposto. O instrumentista aproveita esse momento para começar um motivo rítmico que se contrapõe a uma constelação de sons percutidos e pequenas figuras melódicas.

(4) O aparecimento de um ruído sintetizado no meio do panorama sonoro transparente que foi estabelecido anteriormente parece um começo não se relaciona com nenhum performer. Pouco a pouco o saxofone começa a interagir com ele, criando uma reação em cadeia a qual se somam o piano, o trombone, o clarinete e a flauta de nariz306. O som eletroacústico diminui a frequência do ruído.

(5) O piano e o contrabaixo o seguem, dando lugar a ações sonoras em registro grave. O seguinte é a interação entre duas camadas de ações sonoras, a primeira correspondente aos instrumentos que interagem com o ruído da eletroacústica, o segundo fazendo linhas melódicas (saxofone e trombone) numa espécie de contraponto. O contrabaixo desenvolve uma outra camada de sons curtos e alturas variadas enquanto o saxofone cria uma terceira ação com sons agudos espaçados, dando a noção de complementaridade sonora entre eles, enquanto a eletroacústica e o piano continuam em correspondência sonora.

(6) No momento em que aparecem as pulsações de sons sintetizados de pássaros, o contrabaixo e a voz começam um processo de relação e correspondência sonora. Em

305 Esses números servem de guia para a visualização dos processos sonoro/musicai descritos dentro da gráfico espectro- morfológico da interpretação da O.E. 306 Tipo de flauta que utiliza a exalação do ar pela nariz, fazendo a boca como caixa acústica.

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contraposição, o saxofone desenvolve uma linha melódica individual que ecoa no clarinete, numa ideia que poderia ser pensada de complementaridade sonora com o espectro grave gerada pelos outros instrumentos.

(7) O ruído vai se consolidando na eletroacústica enquanto os performers atuam por vezes de forma sincronizada com sons relacionados entre si, e outras vezes com matérias musicais contrastantes sem nenhuma relação. Vão se fazendo presentes sons percutidos e o saxofone. Enquanto os sons eletroacústicos estão entre faixas graves, nos ruídos de máquinas de construção, os performers criam eventos sonoros individuais não relacionados entre si.

(8) De repente a eletroacústica e os performers conjuntamente descem ao registro grave, apresentando um material que rompe com o estado estático dos sons das maquinas, deixando mais espaço entre os sons.

(9) Pouco a pouco, surgem sons glissandos entre o saxofone e a voz que sobem e baixam no espectro de frequências médias e agudas. O saxofone que apoia esse material e impulsa a suma de frequências por parte do trombone, enquanto a flauta de nariz está em contraste com a camada consonante.

(10) Por fim, a peça eletroacústica volta para uma paisagem sonora transparente constituída pelos sons das flautas tradicionais da comunidade indígena de Kotama, baseados numa figura melódica que se repete. Parece interessante perceber que a peça sugere uma espécie de orquestração na melodia tocada pelas flautas Kotama, voltando a um panorama sonoro transparente onde podem ser apreciados efetivamente as relações e redes sonoras que vão se criando ao redor da melodia repetitiva das flautas Kotama.

(11) Quando as flautas param, a orquestra entra numa textura lisa, sustentada na última altura do som das flautas kotama, que parece a sombra ou uma espécie de ressonância tardia do padrão melódico deixado.

A seguir, apresentamos o resultado espectro-morfológico da gravação da O.E. da peça do natural ao artificial (figura 3).

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Figura 3: apresenta o gráfico espectro-morfológico da interpretação da O.E. mostrando os números com os diferentes momentos de interação entre os performers.307

Assim, evidenciamos um processo de criação musical baseado em improvisação que nos ofereceu a oportunidade de apreciar as diferentes soluções dadas pelos performers para relacionar os eventos sonoros já fixados na peça eletroacústica e os próprios sons gerados pelo conjunto de interações suscitadas pela peça. Se faz importante observar a existência de princípios de relacionamento e complementaridade sonora, realizados em camadas sonoras diferenciadas, dando a ideia da criação de opostos que se complementam.

Com respeito a diferenciação de paisagens sonoras transparentes (sons da natureza) e paisagens sonoras saturadas (sons de máquinas e drones), observamos que os performers também reconhecem os dois tipos de condições sonoras. Notamos momentos de interação e criação de jogos tipo pergunta-resposta, formados pelos sons de pássaros ou da natureza (paisagem sonora de alta fidelidade) e os sons quase imitativos dos performers, que vão

307 O áudio pode ser acessado no link SoundCloud: https://soundcloud.com/jonathan-andrade-428979496/oe-do-natural-ao- artificial

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gerando tipos de relações que parecem a orquestração de uma paisagem sonora hi-fi, onde todos os sons podem ser escutados claramente e de forma diferenciada, mantendo um equilíbrio entre as microestruturas sonoras. Por outra parte, os performers reagem de modo diferente à presença de paisagens sonoras lo-fi, criando duas camadas de interação. Uns em correspondência com os ruídos estáticos (parede sonora), criando seus materiais musicais ao redor desses ruídos, e outros em complementaridade sonora, as vezes desvinculados dos acontecimentos sonoros que ocorrem na outra camada. Isso leva a que se sobreponham entre si e criem níveis de saturação, sendo o resultado sonoro um claro exemplo da poluição de informação sonora numa prática de livre improvisação.

B. Ñan Urkuman308

Na língua quéchua no Equador Ñan Urkuman significa “o caminho do vulcão”. Nosso interesse por essa peça reside na possibilidade de realizar um caminho de diversos níveis de interação transmitidos mediante partitura gráfica. Procuramos que esses níveis de interação estejam relacionados aos dois conceitos fundamentais observados na cosmologia nativo- ancestral indígena. O primeiro se refere a dualidade, a relação em dupla que tem, segundo a cosmologia indígena, todas as coisas do mundo. Observamos esta dupla relação dentro da música no conceito ira (ir diante) e arka (segui ou ir detrás). O segundo se refere à ideia de circularidade, conceito que abarca o funcionamento de constantes relacionamentos cíclicos com os homens, animais e natureza, explicadas na cosmologia nativo-ancestral andina. A circularidade está representada nos quatro princípios que regem os modos de comportamento das comunidades indígenas: relação, complementaridade, correspondência e reciprocidade. Dessa forma, observamos uma oportunidade para representar esses conceitos de forma sonora, que podem também ser transmitidos mediante gráficos ou ideias que sugem num tipo de estruturação e execução de sons.

A peça conta com três sistemas com três seções cada. A leitura da partitura gráfica é realizada da esquerda para a direita, mas pode também ser executada de forma contrária. No

308 A partitura gráfica desta peça pode ser consultada nos Anexos desta dissertação. A gravação das duas versões O.E. e C.I. consta no DVD desta dissertação.

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começo de cada seção se encontra desenhado um circulo vermelho que serve para determinar o número de performers que participam na execução sonora dessa seção em específico, devendo ser preenchido antes da performance. Existe uma barra de cores na parte inferior de cada um dos sistemas que indica com cores a intensidade da atividade sonora: azul - baixa; amarela - média e vermelha - alta dinâmica.

O conceito dualidade desenhado na partitura gráfica coloca dois elementos gráficos que se complementem entre si. Esses gráficos são executados com suas caraterísticas individuais (linhas longas ou pontos, linhas retas ou curvilíneas). Os performers, mediante um processo de improvisação, traduzem esses gráficos em ações sonoras. As seções em que são sugeridos dois eventos ou camadas sonoras sobrepostas, devem ser realizadas distribuindo o número de performers para sua execução.

Pensamos o conceito da circularidade como os relacionamentos cíclicos e interativos. Durante toda a peça devem ser tomadas decisões de participação que envolvem um ir e vir de informações (sonoras ou gestuais) que os performers interpretam para se comunicar e decidir em conjunto a estruturação da peça. O círculo permite um nível de contato visual e atenção que facilita o contato visual no grupo. Por último, a circularidade está presente na execução de seções mais abertas como terra, vento, agua, ou vulcão, onde a troca de material sonoro vai surgindo desse processo de enviar e receber informação sonora. Cada um dos performers deve decidir que elemento gráfico deseja representar, como resultado de sua procura individual, mas sempre interligada, de forma a executar um outro material sonoro-musical que seja complementar. Da soma dos elementos sonoros executados em tempo real, resulta o panorama sonoro da obra.

Finalmente foi nosso interesse conectar os conceitos “naturalistas” delineados nesta pesquisa à criação de eventos sonoros representativos. Nesse sentido, propomos a interpretação sonora de elementos naturais como aguas, vento, terra e vulcão. Sugerimos que se crie uma espécie de representação sonora de elementos naturais, pensando no conceito schaefereano de representar sonoramente uma determinada paisagem sonora. Portanto, foi fundamental fazer uma comparação entre a interpretação da peça Ñan Urkuman entre dois

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grupos de improvisação livre. Tanto a Orquestra Errante309 quanto o Coletivo Improvisado foram registradas as interpretações dessa peça, nos dando a oportunidade de observar as nuances e peculiaridades de interpretação, levantando conclusões sobre as formas de interação e relacionamentos construídas durante a performance, além de permitir a análise do resultado sonoro. Em seguida colocamos em comparação os gráficos espectro-morfológicos das interpretações realizadas pela Orquestra Errante (figura 4) e pelo Coletivo Improvisado (figura 5), para termos uma ideia clara dos momentos e atividades sonoras de cada seção.

Figura 4: Gráfico espectro-morfológico da interpretação da O.E. de Ñan Urkuman.310

309 Para a execução desta peça a Orquestra Errante contou com os seguintes instrumentos: saxofone, trombone, contrabaixo, piano, voz, flautas andinas, live-electronics. 310 O audio pode ser acessado no link de SoundCloud: https://soundcloud.com/jonathan-andrade-428979496/orquestra- errante-nan-urkuman

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Figura 5: Gráfico espectro-morfológico da interpretação da C.I. de Ñan Urkuman.311

Comparando os dois gráficos, um ponto de destaque é a similaridade espacial dos eventos sonoros. As seções da peça são interpretadas de maneiras muito similares. Os dois grupos percorreram o primeiro sistema em três minutos. A mudança entre o segundo e terceiro sistema também ocorreu em tempos análogos, de quase aos seis minutos. A seção do vulcão aconteceu aos sete minutos em ambos os casos. Porém as seções com desenhos que remetem à criação livre apresentam proporções dessemelhantes.

A partitura gráfica começa com uma linha verde reta que é atravessada por uma linha amarela. Em seguida, as duas linhas se afastam, uma para cima e a outra para baixo, dando lugar à formação de duas camadas sonoras sobrepostas. O mesmo acontece no início do segundo sistema, com a unificação de um bloco sonoro durante a execução da seção terra.

No espectrograma correspondente à Orquestra Errante, observamos que o material sonoro da linha amarela se sobrepõe à linha verde. No caso da performance do Coletivo Improvisado, o material da linha verde se apresenta com mais preponderância. Outra

311 O audio pode ser acessado no link SoundCloud: https://soundcloud.com/jonathan-andrade-428979496/coletivo- improvisado-nan-urkuman

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diferença notável se encontra entre as seções da terra e do vento, ali observamos interpretações quase opostas. Apesar disso, o tempo total da peça foi semelhante entre os grupos. A última seção sugerida na partitura gráfica corresponde ao sol. No caso da Orquestra Errante, os músicos optaram por explorar por pouco mais de um minuto sons sustentados, enquanto o Coletivo Improvisado optou por um final enxuto.

A respeito das interpretações em relação à partitura gráfica, concluímos que os performers realizaram ações análogas aos gráficos. Observamos que a interação em grupos de improvisadores pode se valer de recursos como roteiros e mapas que fomentem um direcionamento para o fluxo sonoro, sem, no entanto, engessar os performers em uma estrutura prévia que delimite as ações improvisadas. O uso de notação gráfica experimental, oferece uma plataforma para a improvisação livre capaz de sugerir um sentido ao fluxo, ao mesmo tempo em que se oferece aberta para as mais diversas interpretações de cada participante, dando como resultado uma estruturação de partes iguais com resultados sonoros sempre singulares e únicos. Nossas ideias de uma improvisação autossustentável mediante relacionamentos de dualidade e circularidade também foi refletida no processo da execução da peça, que teve poucos ensaios (com o C.I. só um) mas que conseguiu funcionar como um roteiro de criação coletiva, promovendo diversos relacionamentos sonoros de complementaridade e correspondência entre os diversos materiais sonoros e, evidentemente, entre os performers.

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Conclusões

Nesta dissertação foi nosso propósito colocar em paralelo dois conceitos que poderiam parecer heterogêneos: a experimentação musical e a cosmologia nativo-ancestral. A partir dessa dupla perspectiva, realizamos o levantamento de algumas das particularidades de cada um. Nos parece relevante evidenciar a existência, dentro do contexto atual, de diversos compositores que aproximam esses dois pontos de vista aparentemente afastados através de uma perspectiva transcultural de relacionar musicalmente os meios de criação e experimentação musical com conceitos, instrumentos e sonoridades provenientes de manifestações cosmológicas e musicais ameríndias.

Dividimos nosso trabalho em duas partes como estratégia para compreender em perspectiva e organização, as diversas informações que devem ser contextualizadas neste trabalho. Aprofundamos os fundamentos históricos e teóricos daquilo que pode ser considerado como os dois paradigmas da música experimental: dois campos de ação que surgiram nos anos de 1950 e 1960 em busca de meios de criação sonora. Por um lado, o estudo do som e sua aplicação musical de forma “material” (música-concreta, música- eletrônica, música-eletroacústica), mediante processos de gravação e síntese, sendo o alto- falante o meio gerador do som. E, por outro lado, processos de criação musical que trabalham a emergência do ruído-silencio312, processos de aleatoriedade e improvisação na estruturação do discurso musical. Ambas perspectivas, desde o ponto de vista do público, promovem “uma transposição da arte para a práxis vital” (BÜRGER, 2008, p. 104) surgida mediante a concepção de formas de arte como os happenings-performance, ready-made e instalações sonoras, música eletroacústica. Todos esses campos de ação, fundamentados nesses dois paradigmas, se juntam, se inter-relacionam e desenvolvem a perspectiva experimental do fazer música.

Desde esse ponto de vista foi nosso propósito evidenciar a existência de processos de experimentação musical que trabalham em conjunto com a pesquisa sobre a cosmologia e música das comunidades nativo-ancestrais. Nesta dissertação, aprofundamos especificamente alguns dos fundamentos das comunidades indígenas da floresta amazônica e da zona andina,

312 CAGE, Silence, 1961.

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sendo os apontamentos obtidos mediante a aproximação que tivemos com o trabalho composicional de Tato Taborda e Mesías Maiguashca, claras evidências de uma sintaxe dentro dos conceitos música experimental e nativo-ancestral, pontos focais do estudo nesta pesquisa. Estes compositores apresentam uma aproximação estética que nos ajudou a compreender o verdadeiro alcance da junção desses dois conceitos, trazendo ao processo de criação musical, ideias de sustentabilidade e conservação das comunidades indígenas, com o proposito de redimensionar o pensamento nativo-ancestral, as coisas e pensamentos dessas comunidades. As ideologias nativo-ancestrais ameríndias passam através da abstração e progressivo desenvolvimento dos meios de experimentação multimídia. Observamos que, nessa dupla afetação, tanto do nativo quanto do experimental conseguem se complementar e correlacionar.

Além do enfoque musicológico sobre a música experimental, foi importante desenvolver fundamentos para estruturar uma proposta prática que decidimos denominar como música nativo-experimental. Este termo foi inspirado no compositor Cergio Prudencio (1985), um dos primeiros a realizar a construção experimental do discurso sonoro, desenvolvendo texturas complexas de timbres utilizando diversos instrumentos nativo- ancestrais aimarás.

O termo Nativo-Experimental, contextualizado em nosso percurso criativo pessoal, e alguns dos conceitos composicionais que Prudencio usou para organizar os materiais sonoros no seu trabalho, serviram de ideias para a improvisação. Dessa forma, nasceram duas propostas de composição experimental: do natural ao artificial e Ñan Urkuman, resultado da mistura dos diversos apontamentos relacionados com a improvisação na música experimental a partir de uma aproximação da improvisação livre como sistema de ecologia sonora, evidenciando importantes paralelos com conceitos de dualidade, circularidade e princípios nativo-ancestrais ameríndios que fundamentam sua cosmologia mediante uma rede de conexões físicas e míticas dos humanos com seu entorno natural.

Evidenciamos no primeiro capítulo a ideia de dois paradigmas da música experimental representados por Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen na Europa, e por compositores como John Cage e seus contemporâneos na América do Norte. Eles trabalharam em paralelo, a partir de seus campos de ação, plataformas de criação musical que

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representaram, por um lado, a ideia do experimentalismo laboratorial do som e da música realizado pelos constantes avanços técnicos e tecnológicos dos meios de composição eletroacústica e, por outro lado, as potencialidades de processos de indeterminismo e improvisação em relação principalmente com a ideia de happening-performance, que possibilitou uma abertura direta para manifestações sonoras do acaso valorizando o processo da experiência musical ao invés do resultado como obra. Evidenciamos que estes dois paradigmas, apesar de funcionarem em dos pontos distintos da experimentação musical, estão direcionados na procura da emergência da ideia do “som”, incluindo os ruídos como material estruturador do discurso musical. Assim o primeiro capítulo contextualiza esses dois campos de ação da experimentação musical, indispensáveis para abrir o diálogo especificamente dentro de dois conceitos que sintetizam a prática da música experimental: a improvisação e a mediação tecnológica.

Passamos ao segundo capítulo onde observamos diferentes modalidades de improvisação nos baseando nos úteis apontamentos de Callingham (2007) e seus quatro estados da improvisação que, de forma sintetizada, descrevem o relacionamento de processos de indeterminismo com seu contexto idiomático e estrutural. Notamos que dentro da improvisação estruturada não-idiomática estão representadas duas plataformas de criação musical denominadas partituras gráficas e instruções verbais. Cada uma com suas peculiaridades promovem a estruturação musical mediante a valoração do elemento processual desenvolvido pelo(s) performer(s) em tempo real. O grau de liberdade das ações sonoras do performer só pode ser encaminhado mediante o uso de partituras gráficas (desenhos traduzíveis a ações sonoras) ou instruções verbais (texto que indica as ações sonoras).

Outro ponto importante se fundamenta na improvisação não-estruturada não- idiomática que, além de valorizar o elemento processual da construção do discurso musical, permite uma aproximação aberta por parte dos performers, para desenvolver relacionamentos que gerem novas potencialidades sonoras a partir de seus instrumentos, promovendo em consequência, estratégias de interação que sejam desenvolvidas em espaços de criação coletiva onde a escuta atenta e focada na concretude do som (escuta reduzida) funciona como estratégia dentro da construção processual do fluxo musical.

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Já no terceiro capítulo, mediante a pesquisa de alguns aspectos históricos que representam o desenvolvimento tecnológico dos processos de síntese e manipulação sonora desde 1950, percorremos o trajeto da progressiva digitalização e modernização daquelas ferramentas que, no princípio, foram concebidas no laboratório e que foram sendo incluídas no palco, potencializando a presença dos alto-falantes dentro da música eletroacústica. Os performers seriam incluídos durante esse processo, na denominada música eletroacústica mista, que promoveu o desenvolvimento de equipamentos menores e mais sofisticados de manipulação e síntese do som que poderiam ser colocados no palco junto com os performers. Assim a criação do discurso musical seria dada na conjunção de meios tecnológicos e performáticos que iriam incluído outras áreas das artes visuais, plásticas e do espaço. Achamos pertinentes as formulações do compositor Maiguashca sobre o progressivo desenvolvimento da experimentação da música:

Neue Musik ou, simplesmente, Nueva Música, se trata da música que continua a tradição da música clássica e romântica europeia [música erudita]. Na primeira metade do século XX aparece a atonalidade e o dodecafonismo; nos anos 1950 a tradição se bifurca (música instrumental, e música eletroacústica) e perto da década de 1980, se “trifurca” ou até se “quadrifurca” com a aparição dos gêneros multimídia. (MAIGUASHCA apud KUEVA, 2013, p. 17 – nossa tradução313)

Ainda no terceiro capítulo tivemos nossa primeira aproximação com a realidade experimental musical surgida na América do Sul em 1960. Esse ponto foi fundamental para trazer à nossa pesquisa alguns compositores representativos de dois focos de criação experimental delineados na Argentina e no Brasil, assim como também as instituições que contribuíram com os meios tecnológicos para impulsionar algumas das primeiras práticas de experimentação musical na América do Sul. Mencionamos na Argentina o Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicais (CLAEM) e os centros especializados em música eletroacústica como a Universidade Nacional de Quilmes, Universidade de Lanus, e a Universidade Nacional de Tres de Febrero; e no Brasil o Centro de Estudos Musicais Villa- Lobos, os Departamentos de Música e da Universidade de Brasília.

Também evidenciamos um processo de “peregrinação” por parte de alguns

313 Original: “Neue Musik o, simplemente Nueva Música. Se trata de música que continua la tradición de la música clásica y romántica europea. En la primera mitad del siglo XX aparecen la atonalidad, el dodecafonismo; hacia los años cincuenta la tradición de bifurca (música instrumental y música electroacústica) y, cerca de los ochenta se “trifurca” o incluso se “cuatrofurca” con la aparición de los géneros multimedia. (MAIGUASHCA, 2013, p 17)

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compositores experimentais na Argentina314 e no Brasil315, na procura por se aprofundar nos conceitos, técnicas e avanços conseguidos pelos experimentadores musicais na América do Norte e Europa. Esses deslocamentos nas perspectivas composicionais e criativas dos músicos na América do Sul promoveram a tecnificação dos processos de composição eletroacústica de nosso continente, mas também foram fundamentais para permitir o desenvolvimento das bases e perspectivas que estariam funcionando na experimentação musical na América do Norte desde então. Com o desenvolvimento e proliferação cada vez maior dos meios técnicos e conceituais da produção musical eletroacústica, compositores na América do Sul como os uruguaios Coriún Aharonián em Homanaje a la flecha clavada en el pecho de don Juan Díaz de Solis (1974), e Fernando Condon em Suina Wanka (1989), a compositora colombiana Jacqueline Nova em Creación de la Tierra (1972), o brasileiro Tato Taborda em Prostituta Americana (1983) e em Estratos (1999) - entre outros compositores eletroacústicos mencionados - começaram a aplicar aproximações com instrumentos ou sonoridades nativo- ancestrais ameríndias. Algumas das perspectivas mencionadas nesta pesquisa destacam o interesse por um olhar experimental de elementos culturais ameríndios, os quais até então estavam desligados dos processos de inovação e experimentação musical fundamentados nesta dissertação.

Evidenciamos no trabalho de Manuella Blackburn (2011) alguns dos desafios que constituem a fusão entre noções musicais provenientes de etnias ameríndias e da música eletroacústica, sugerindo até um novo subgênero denominado “avant-garde world music” (BLACKBURN, 2011). Afirmamos que as sonoridades de procedência étnica nativo-ancestral têm que ser “abstraídas” para acessar as dimensões sonoras do pressuposto da música eletroacústica. O compositor deve decidir, de forma individual propiciada pelo seu senso artístico, quão reconhecível ou não se tornará o material sonoro nativo-ancestral. Nesse sentido lemos em Balckburn (2011):

Muitos compositores concordam que não é o ato de pegar emprestado de culturas que é potencialmente problemático; é mais o modo de uso que se faz com tais empréstimos e quanto o compositor é respeitoso com esses

314 Hilda Dianda foi para Itália a trabalhar no Studio di Fonologia Musicale (1959); Mario Davidovsky na Columbia- Princeton Electronic Music Center em Nova Iorque (1960) 315 Reinaldo de carvalho foi estagiário no estúdio experimental da Organização de Radiodifusão e Televisão Francesa (ORTF) (1950); Jorge Antunes foi ao Instituut voor Sonologie, da Universidade de Utrecht (1971); Willy Corrêa de Oliveira participou dos dos Cursos de música experimental em Darmstadt (1962-63) para posteriormente se mudar para o Laboratório de música Eletrônica da Phillips, em Eindhoven, Holanda

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materiais. Do ponto de vista da questão levantada anteriormente surge a dúvida: o que é considerado não respeitoso quando se toma emprestado de outras culturas? As respostas sugerem o pré-requisito de superar a ignorância das associações culturais dos materiais sonoros, antes do seu uso enquanto eles foram também estabelecidos no confinamento dos sons étnicos para usos só dentro das implicações que pertencem à cultura (BLACKBURN, 2011, p. 6 – nossa tradução316)

Estes primeiros encontros com apontamentos referentes às atividades na América do Sul relacionadas com a experimentação musical, nos levaram a evidenciar no começo de nosso quarto capítulo o trabalho de Cergio Prudencio (1985), a primeira formação instrumental e musical que se dedicaria plenamente às formulações de uma perspectiva de inovação, experimentação dos materiais sonoros e instrumentos musicais de tradições nativo- ancestrais andinos (aimarás e quíchuas). Nessa perspectiva, ele conseguiu redimensionar os atributos de não temperamento, relações temporais cíclicas e de complementaridade dualística (ira – arca), uso de notação musical experimental e estruturação de complexos processos de composição textural desenvolvido desde 1985 com a Orquesta Experimental de Instrumentos Nativos (OEIN).

O trabalho de Prudencio constituiu um ponto focal onde começam a tomar forma as práticas de performance musical onde existe uma evidente intenção de realizar processos transculturais, que valorizam e se nutrem de culturas nativo-ancestrais desde as próprias qualidades tímbricas, musicais e sonoras a partir da compreensão dos seus saberes ancestrais. A cosmologia nativo-ancestral aimará foi trazida através da apresentação de uma série de instrumentos andinos e técnicas de relacionamento sonoro e de estruturação musical, que promovem a correlação sonora de diversos instrumentistas (tropas) os quais trabalham em conjunto para criar um fluxo sonoro que apresenta qualidade sonoras micro-tonais, o desenvolvimento cíclicos das texturas sonoras em conjunção de pergunta-resposta, relacionamentos de correspondência entre os sons gerados pelos performers, uso de notação musical que permita a interação de microestruturas e sua relação temporal dentro do fluxo musical, dando a sensação de uma constante desestabilização e reconstituição dos matérias gerados pelos instrumentos nativo-ancestrais.

316 Original: “Many composers agreed that it is not the act of borrowing from other cultures that is potentially problematic; it is more a case of the use one makes of such borrowings, and whether the composer is respectful to these materials. Transpiring from this notion the question “what is consider disrespectful when borrowing from other cultures?” responses suggested the prerequisite of overcoming ignorance of the sound material’s cultural associations before use, whilst it was also established that the confining of ethnic sound usage only within cultures of ownership” (BLACKBURN, 2011, p. 6)

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Observamos como as qualidades tímbricas das diversas flautas andinas apresentadas neste texto317 trazem sonoridades com muito ar, podendo facilmente se aproximar de texturas ruidosas mediante efeitos ou técnicas estendidas como multifônicos, micro-tons, batimento de frequências, além dos imponentes blocos sonoros que podem ser escutados em manifestações musicais tradicionais de tropas de sirkuiadas ou tarkiadas.

Evidenciamos também no quarto capítulo os apontamentos sobre o conceito do tecno- xamanismo que consideramos fundamental para nos aproximar de dois focos da cosmologia nativo-ancestral ameríndia dos Andes e da floresta Amazônica. A comunidade funciona como o poder da representação étnica que se estabelece e reproduz seus modos e saberes ancestrais, mantendo vivo seu legado primordial com sua maneira de se relacionar com o meio ambiente. O xamã se configura como o ente técnico e tecnológico que permite o trânsito dos saberes ancestrais, não só projetados no mundo material presente (kay pacha), mas também nos mundos de cima onde moram os deuses (hanan pacha), e dos mundos de baixo onde moram os espíritos, os mortos e os mestres ancestrais (uku pacha).

Afirmamos que o tecno-xamanismo deve ser observado em duas perspectivas. A primeira do ponto de vista que concerne o xamanismo a partir das tecnologias do próprio xamã (seu corpo como metabolizador do transe do êxtase, sua voz para guiar os espíritos, suas máscaras de animais como ferramentas de metamorfose simbólica, seu rito como potencializador das atenções e a hipersensibilidade dentro dos participantes da cerimônia). A segunda a partir das possibilidades de reinterpretação de alguns desses conceitos xamânicos mediante o uso de processos de experimentação musical. Conseguimos observar, dentro do desenvolvimento da obra em formato de teatro-música ou ópera multimídia chamada A Queda do Céu (2010) - concebida pelo compositor Tato Taborda e o dramaturgo Rolland Quitt -, uma amostra das potencialidades estéticas de se levar o mito xamânico para cenários de experimentação transcultural. Esta obra, que forma a segunda parte de uma série de três trabalhos autônomos que, em conjunto, formam a ópera multimídia Amazônia: teatro-música em três partes, foi uma importante referência conceitual para observar esse processo de transculturalidade promulgado durante todo o texto e que fomentou o trabalho cooperativo e em parceria, tanto com artistas e antropólogos da Alemanha e Brasil. O estudo antropológico

317 Flautas andinas verticais: pinkillos, quenas, tarkas, mohoceños médios e agudos. As flautas andinas de tubos em fileira: sikus, rondador, sampoñas. Flautas andinas transversais: mohoceños grandes, pífanos e flautas andinas Kotama.

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de Bruce Albert e o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, em conjunto com a principal liderança yanomami, com o xamã Davi Kopenawa Yanomami, sustentam os fundamentos cosmológicos dos povos da floresta tropical representados na obra A Queda do Céu.

Podemos afirmar que a interpretação do mito yanomami denominado A Queda do Céu, representado como a destruição da cúpula que contém a cosmologia yanomami sustentada pela voz do xamã, toma um caráter dramatúrgico que envolve, mediante uma sofisticada produção sonora e audiovisual, uma representação metafórica das visualizações do xamã na luta por deter a fumaça que calará sua voz: a xawara. É assim que podemos constatar o desenvolvimento de elementos conceituais que guardam as qualidades sonoras do xamã e do seu entorno natural, evidenciando a escuta multi-diversa que se dá num ambiente de floresta tropical. A escuta-multi-diversa é propiciada por uma disposição do palco em forma de instalação, promovendo o deslocamento do público, e das diferentes fontes de sons gerados pelos performers onde todos os sons produzidos pelos seres vivos e o ambiente que ocupam nesse espaço natural são escutados de forma transparente. Existe uma correspondência nas diferentes faixas de sons que se apresentam no espaço. A voz do xamã, como representação principal do mito yanomami se conjuga com um complexo sistema de projeção de vídeo que cria uma floresta metafórica que vai desenrolando a dramaturgia do avanço da xawara, numa constante predação dos meios naturais e humanos que habitam a floresta.

Esta obra apresenta o desenvolvimento de diversos recursos técnicos, conceituais e de estruturação experimental, desenvolvidos desde as ideologias nativo-ancestrais da floresta amazônica, que além de apresentar uma inovação dentro do contato transcultural do nativo- experimental, traz também discussões de conservação, e proteção desses povos da floresta, sendo um patrimônio humano indispensável para ou homem moderno aprender a se relacionar com sistemas de biodiversidade tão complexa. Através de redimensionar o mito mediante a experimentação multimídia, as cosmologias das florestas amazônicas ganham território em espaços onde anteriormente nunca conseguiram acessar.

Como complemento das perspectivas da cosmologia andina em práticas de música experimental, observamos na trajetória académica e musical do compositor Mesías Maiguashca um claro exemplo dos diversos processos de criação musical experimental (eletroacústica, indeterminismo, multimídia) que vão sendo estruturados numa dupla afetação.

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A experimentação musical se nutre dos fundamentos da música andina que, como observamos, por pertencer a culturas nativo-ancestrais ameríndias, encontram sistemas de relacionamentos complementares, correspondentes e recíprocos tanto do som, como do seu funcionamento dentro dos processos de circularidade e dualidade que sustentam grande parte do seu entender do mundo. Tomamos também dos contatos com Maiguashca diversos apontamentos fundamentais sobre a prática de técnicas estendidas dentro dos instrumentos andinos. Se faz importante também trazer para esta pesquisa as experiências com Maiguashca através da exposição de seu trabalho, os diálogos pessoais, a oficina em que participamos, os trabalhos de análise e entrevista realizada, além de presenciar a estreia de uma de suas obras. Todos esses contatos ratificam o sustentado durante esta pesquisa que é uma progressiva aproximação, em condições de dupla afeção da experimentação musical e as culturas musicais nativo-ancestrais.

Os trabalhos musicais de Taborda, Prudencio e Maiguashca foram um elemento crucial para o avanço desta pesquisa. Esses trabalhos impactaram a criação musical realizada nesta pesquisa junto com a Orquestra Errante fomentando debates, testes e estratégias criativas desde nossa própria perspectiva que é: a prática da livre improvisação como ecologia sonora. Como resultado, nosso último capítulo que se nutre dos diversos apontamentos levantados no transcurso desta pesquisa.

Foi fundamental concluir esta dissertação com apontamentos a partir do trabalho prático desenvolvido a partir de conexões ou relações entre a prática da livre improvisação, termo que foi amplamente debatido nesta pesquisa e que poderia ser resumido nos termos de Callingham (2004) como improvisação não estruturada não idiomática. Ao discutir as estratégias a serem utilizadas concluímos que não seria possível, desde o pressuposto de improvisação livre que rejeita qualquer influencia estrutural ou idiomática para sua “pura” constituição, uma plataforma accessível para que acontecerem processos transculturais de dupla afetação (HERNANDEZ, 2005). Optamos por utilizar plataformas de criação ligadas a improvisação que trabalhe processos de relacionamento sonoro autossustentável, descrito por Rogério Costa (2014) como o desenvolvimento de praticas de improvisação que trabalhem a construção do fluxo musical mediante o conceito de ecologia-sonora. Podemos afirmar que a construção de sistemas auto-organizados de criação sonora desenvolve redes de multiplicidades e complexidades derivadas das diversas interações ocorridas na performance.

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Para atingir esse sistema de “improvisação ecológica”, caracterizado por ser autossustentável - auto-organizativo e adaptativo, numa ideia de autopoieis, é necessária a atenção nos dinamismos das ações sonoras entre os músicos, essa condição de adaptação e auto- sustentabilidade baseada na escuta e a interação foi desenvolvida na criação da peca Do natural ao ancestral, em formato de instruções verbais e Ñan Urkuman.

Junto com um trabalho técnico não convencional (técnicas estendidas) de interpretação dos instrumentos nativo-ancestrais andinos, em espaços de experimentação musical e “improvisação ecológica”, conseguimos realizar uma experiência na procura da emergência do som e do ruído a partir dos instrumentos andinos utilizados. Essa emergência foi desenvolvida na procura por sons próprios das madeiras com que são feitas as flautas, evidenciando diversas formas de geração do som (bater, esfregar e obviamente soprar) que o conjunto das flautas andinas ofereceram, realizando dessa forma durante dois anos ensaios e recitais levando as sonoridades das flautas andinas para processos de improvisação experimentação musical.

Conseguimos um acúmulo de experiências dentro da pratica da improvisação livre utilizando as possibilidades sonoras de alguns instrumentos nativo-ancestrais que, em conjunto com a criação das duas peças de improvisação estruturada não idiomática (composição experimental), realiza uma aproximação direta à processos transculturais de experimentação musical, mediante a utilização de perspectivas tanto da cosmologia nativo- ancestral, quanto da ecologia sonora, traduz esse paralelo em relações de improvisação auto- organizada e autossustentável.

Colocamos também como plataforma para o processo espontâneo de construção do fluxo musical a ideia de paisagem sonora (SCHAFER, 1977), que foi utilizada na peça Do natural ao artificial, propondo um relacionamento construtivo e complementar das paisagens sonoras delineadas como transparentes ou poluídas. Observamos que os níveis de interação numa paisagem sonora transparente (sons de ambientes naturais) permitem maiores relações entre microestruturas, que podem ser fruto de uma complexa interação, resultado da capacidade que tem os performers de acessar informações dos diversos materiais sonoros apresentados durante a performance de forma clara equilibrada. Observamos ainda que em paisagens sonoras poluídos (sons de máquinas) existe a tendência de dividir o fluxo das

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atividades sonoras dos performers, uns de forma correspondentemente sonora com os drones ou sonoridades ruidosas das maquinas, e os outros, numa exploração individual em contraposição com as sonoridades ruidosas. Nesses ambientes de improvisação em paisagens sonoras poluídas, os performers tendem ha apresentar um acúmulo de informações sonoras que terminam em estruturas de saturação próximas a ideia de parede sonora.

Já para Ñan Urkuman, optamos por fazer com que os performers fossem atingidos ou influenciados pela abstração dos desenhos descritos numa partitura gráfica, em ações sonoro- musicais. Algumas figuras, linhas e formas são colocados com a função de criar duas camadas de interações sonoras superpostas. Esse conceito representa a correspondência na cosmologia nativo-ancestrais ameríndia, conseguindo que os performers decidam em tempo real as ações sonoras a serem realizadas para atingir esse conceito de dupla camada de interações. A ideia de circularidade se reafirma nesse constante fluxo de informações sonoras que devem ser atendidas pelos performers para conseguir sincronismo na execução de cada uma das seis seções da peça.

Usamos também a comparação dos resultados das duas versões de Ñan Urkuman, resultado da interpretação de dois grupos de improvisação diferentes (Orquestra Errante – USP e Coletivo Improvisado – UNICAMP). Observamos uma concordância entre as duas versões na estruturação dos materiais sonoros em cada uma das seções da peça e, por conseguinte, na forma como vai sendo estruturada, que mantém uma concordância com a forma macro-estrutural (tries sistemas – três seções) descrita na partitura gráfica. Resulta interessante notar que cada interpretação gera dentro das determinadas seções e sistemas da partitura gráfica conteúdos sonoros que são particulares e únicos, causados pelo elemento processual individual, e da atenção conjunta dos performers que participaram no processo de criação do fluxo musical.

Após ter levantado diversos apontamentos sobre os fundamentos históricos e musicológicos da música experimental, afirmamos que é plausível justificar uma aproximação experimental com influências musicais e cosmológicas nativo-ancestrais. Constatamos que durante o transcurso histórico as sonoridades nativo-ancestrais foram sendo incluídas primeiramente na música eletroacústica. A partir da década de 1980, se deu uma aproximação da performance musical experimental utilizando os recursos instrumentais e as próprias

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qualidades de não-temperamento ou relacionamentos temporais cíclicos foram acionados para criar complexos relacionamentos sonoros em camadas de interação. Evidenciamos ainda que no contato com realidades culturais ameríndias se reafirmam discussões sobre a valorização desses elementos cosmológicos e musicais, abstraídos de um contexto de experimentação sonora que promove uma reconstituição de algumas das técnicas tradicionais de interpretação desses instrumentos, migrando para processos de exploração sonora que redescobrem novas possibilidades sonoras para os instrumentos nativo-ancestrais.

Concluímos dessa forma que a existência de uma música nativo-experimental deixa um espaço frutífero de pesquisa musicológica tendo em vista o crescente interesse por perspectivas de experimentação que tenham raízes pertencentes ao continente de América do Sul. As diversas obras que trabalham o assunto da transculturalidade experimental e nossas próprias experiências práticas ratificam o fato de que este tipo de encontro entre música nativo-ancestral e experimentação na América do Sul promove renovados valores e princípios de criação musical. Um processo que fomenta, principalmente na atualidade, o desenvolvimento criativo musical que ainda está em curso e que continua trazendo novas formulações às práticas de experimentação musical contemporâneas.

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Anexos

Os Anexos se dividem em cinco elementos.

O Anexo A é uma entrevista realizada ao compositor Mesías Maiguahca para a revista Arts Journals. Esse anexo corresponde a cópia fidedigna da publicação realizada pela revista. Sua versão em inglês pode ser acessada no link: http://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/7035/5686

O Anexo B é uma análise espectro-morfológica da peça eletroacústica El Oro (1992), publicada nos Aneis de Comunicação do Anppom em agosto 2015. Esse anexo corresponde a cópia fidedigna da publicação realizada pela revista.

O Anexo C são imagens de instrumentos andinos citados nesse relatório de pesquisa.

O Anexo D corresponde a instrução verbal da peça Do natural ao ancestral.

O Anexo E corresponde a partitura gráfica da peça Ñan Urkuman.

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Anexo A - Entrevista com o compositor Mesías Maiguahca

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Anexo B - Análise espectro-morfológica da peça eletroacústica El Oro

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Anexo C - Imagens de instrumentos andinos

Acima, da esquerda para a direita temos: o rondador, duas quenas e um pinkillo.

Abaixo temos uma Sampoña com um circuito de oscilador eletrônico e alto-falante integrado na morfologia do instrumento.

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Acima temos o bombo andino ou wankara

Abaixo, da esquerda para a direita, temos um tipo de ocarina trifônica. No meio temos o instrumento chamado chajchas e na direita uma pequena ocarina antropomorfa de dois sons.

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Duas flautas andinas transversais de sois tamanhos, provenientes da comunidade indígena Kotama.

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Anexo D - Instrução verbal da peça Do natural ao ancestral

Do Natural ao Ancestral.

Primeiro Movimento (10 min.)

* Princípio de relação: Nenhum som existe por si mesmo, mas sim graças à existência de uma relação criadora entre eles; vinculando aspectos afetivos, ecológicos, éticos, estéticos e produtivos (...) os sons que fazemos ou deixamos de fazer, influem em outros processos e em outros sons.

* Princípio de correspondência: Existe um vínculo entre os micro-sons e os macro-sons. Todos os sons contêm outros sons. Tanto nas sonoridades mais simples até as espectralmente complexas. O mesmo acontece com os performers, cada performer está vinculado e deve estar ciente da relação que tem com os outros performers.

* Princípio de complementaridade: Nenhuma ação sonora existe por si mesma, sozinha, mas sim está conectada com diversas relações sonoras. Estas relações acontecem muitas vezes em duos. Cada som pode ser complementado por outro som gerando processos musicais naturalmente interligados.

* Princípio de reciprocidade: A atenção do performer deverá ser focada em cada uns dos sons gerados pelos outros performers. Identificando interações e interagindo produtivamente na integração de contextos sonoros baseados na escuta atenta dos performers.

1. Baseados nos anteriores princípios realizar uma improvisação livre gerativa e coletiva sobre uma peça eletroacústica previamente composta.

2. A peça eletroacústica deve ser pensada como um outro músico, surdo e não interativo, o coletivo improvisador deverá tomar em conta as formulações de Murray Schaefer (1997) Afinação do Mundo, tendo uma aproximação da escuta ecológica (os materiais sonoros se interrelacionam dentro de um ecossistema acústico) descrevendo dois tipos de fidelidade dentro desta escuta.

Chamada de hi fi (alta fidelidade) onde a paisagem sonora se apresenta transparente, possibilitando a escuta de diversos elementos sonoros, sua ubiquação e relacionamentos com o entorno (espaços acústicos relacionados com a natureza ou rurais).

Chamada de lo fi (baixa fidelidade) onde a paisagem sonora se apresenta confusa, saturada de sons e ruídos principalmente gerados por máquinas e artefatos elétricos ou de combustão. Não se consegui discernir claramente os materiais sonoros deixando ao ouvinte diante de uma parede sonora (espaços acústicos com presença de maquinas ou urbanos).

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Anexo E - Partitura gráfica da peça Ñan Urkuman

Partitura gráfica da peça Ñan Urkuman.

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