Leonor Teles, "Flor De Altura"

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Leonor Teles, m m\ LEONOR TELES I DO AUTOR: Tristia. (2.a edi9ao.) AlSm. Partindo da Terra. Palavras de Agnelo. Estrada nova. (Pe^a em 3 actos.) Recordagoes e viagens. (2.a edi^ao.) C6micos. Doida de amor. (4.a edigao.) D. Pedro e D. Ines. (4. a edi^ao.) A arte na educa^io da mulher. (Conferencia.) (3.a edi?ao.) . Leonor Teles. (3.a edi9ao.) Jornadas em Portugal. (2.a edi^ao.) Maria Amalia Vaz de Carvalho. (Discurso.) ^l ANTEROAI DE FIOUEIREDO Da Academia das SdCncias Leonor teles 'FLOR DE ALTURA. Terceira edicao revista 5.0 MILHAR LiVRARIAS AlLLAUD E BeRTRAND PARIS-LISBOA LlVRARIA FRANCIS(iO AlVES RIO DE JANEIRO I918 Todos OS exemplares sao rubricados pelo autor DP 5 7? F55 Cop. 2 Tipografia lA Editora L.*«» —Largo do Conde Barao 50 — Lisboa «Thicrry avail appele I'histeire narration; Guizot, analyse; — }C I'appele resurrection.* MiCHELET. PREFACIO DA 1," EDICAO ESTE livro 6 ainda, como o meu <D. Pedro e D. In6s», um tre- cho de histdria posto em arte — e com isto quero dizer que o pas- sado 6 campo de estesia, pois ele res- surge com beleza, quando reconstituido pela imagina(;ao colorida e emotiva, pelo estudo honesto, pela inteligencia clara. Compondo-o — escrupulosamen- te dentro dos factos apurados por um cronista, mui antigo, que primeiro or- denou em historia ^ste assunto, e por outro que de novo os investigou em documentos de chancelaria guardados no Tombo — guiei-me, como naquela . obra, pela idea de Michelet: — d'his- toire est une resurrection » Estes reservados autores, um da pu- ridade de antigo rei e guardador de escrituras, outro monge de rial mostei- ro, precisam de ser lidos nas linhas e nas entrelinhas — no que escreveram e no que deixaram de escrever. Eis tudo. Porque nao h^, no que relato, uma asser9ao que se nao apoie nessas fon- tes, o livro leva o menor numero possl- vel de cita(;:6es justificativas e de notas explicativas. Assim, fica 61e limpo de ostenta<;:6es eruditas a que nao aspira, e mais prbximo da leveza que deseja atingir. Todos OS historiadores deformam a verdade ao vision^-la atrav6s dos sens preconceitos crlticos ; e tanto mais des- viada 6 essa deforma9ao, quanto maior o seu esfdr^o de encontrar interpreta- XI ^oes novas e o de se abalan^arem a sin- teses concludentes. Mesmo fora da sis- tematiza^ao extrema, ou da maior ou menor relaciona9ao scientlfica de fa- ctos, 6ste desvio 6 fatal, pois basta a simples leitura preconcebida de um ino- cente documento, para logo ai entrar a parte subjectiva do historiador — o seu sentido pessoal — que tudo trans- porta. Pensou, alterou. As ideas gerais sao para os fil6sofos o que as emo^oes sao para os poetas. Uns e outros v^em a exist^ncia atrav^s destes preconceitos que julgam verdades absolutas e que nao passam de visoes e sensa^oes indi- viduais. Da hist6ria pode dizer-se nao s6 que ela 6 (como Amiel disse da pai- sagem) um estado de alma emotivo, mas ainda um estado de alma intele- ctual, isto d, a sintese da associa9ao das ideas do historiador. Todos a pertur- bam; e, ainda assim, o que menos erra ;. XII 6 o que menos pensa. Melhor que a in- teligencia, o instinto, penetra a verda- de; e, melhor que a inteligencia e o instinto, adivinha-a o sentimento. Um poeta v6 melhor um astro do que o ve um s^bio. A razao 6 curta de vista ; so i o sentimento rasga espa90s infinitos, e caminha, caminha ainda, quando jd a inteligdncia ficou para tr^s, exausta ! . A razao gelaria o mundo, se o senti- mento o nao abrasasse. Emfim, nao se sabe com precisao o que 6 a hist6ria; mas sente-se com verdade o que 6 a beleza. O pensa- mento entra em desordem na crltica dos factos encarados pelas ideas gerais e, no entanto, jamais o sentimento du- vidou de si pr6prio, na admira^ao das coisas belas. Portanto, de toda a defor- ma^ao que da histbria se faz, a linica desculpdvel, por ser a linica aprovei- t^vel ao sonho (alimento da vida), 6 a XIII que se exerce no sentido da beleza — \ convergencia luminosa em que os es- piritos se encontram extasiados, acor- des e amigos. Assim penso, porque assim sinto. Eis uma filosofia curta, numa emo^ao ingenua. A. DH F. —; INTRODUgAO Nesses tempos, segunda metade do s6culo catorze, a nobreza era em Portugal grande f6r- Qa, porque os fidalgos, que haviam ajudado a construir o reino e a firmar seu renome, tinham OS maiores direitos. Estes raorgados eram os herdeiros de outros grandes que, mais ou me- nos, durante os dois liltimos s^culos, haviam auxiliado os reis Portugueses nas lutas contra sarracenos e castelhanos, cujos domfnios, por direito de conquista, pertenciam agora ao rei e a quem Ihos ajudara a filhar. A riqueza estava na terra. A nobreza, poderosa pela posse dSstes vastos terrenos, uns dados, outros usurpados, e prestigiosa pelas suas tradigoes e magnos pri- viI6gios, afirmava-se, nesse momento, logo a seguir ao soberano, a primeira forcja do reino e OS seus orgulhos levavam-na a considerar o rei maior dos seus iguais — o ((primus inter' paresn. Dela safam as personagens da cdrte, os capitaes da guerra — permanente preocupaQao e OS conselheiros do rei, que sempre com 61e ; XVI Leonov Teles estavam, e cujo saber apoucado, mas sensato, se fizera na pr^tica das batalhas e na experifen- cia da vida. Gompreender a nobreza no seu valor e pres- tfgio era a natural instrugao dos filhos de algo e conhecS-la nos seus pormenores mundan^- rios, brioso e ledo atavio, mui pr6prio de uma rica-dona dosses orgulhosos tempos. Sabia-se, e bern, o que era um peao, um cavaleiro, um es- cudeiro, um rico-homem, um vassalo e ainda o que distinguia o escudeiro por nascimento do escudeiro nao fidalgo, os besteiros do conto dos b^steiros de cavalo, e a diferenga entre cavaleiros de espora dourada, de grande estado e poderio, e cavaleiros de um so escudo e de uma s6 lan- Qa. legislador das Partidas definira vassalos OS que «recebiam honra ou boas obras dos se- nhores)), havendo-os de tr^s esp6cies : senhores de terras dependentes do rei ; fidalgos acontia- dos que traziam consigo homens de cavalo e de p6 — a sua mesnada; e peoes abastados sem- pre prontos a acudir, «trotando ou correndow, ao apelido do chefe. Conhecia-se a linha titular e a gerarquia ecle- sidstica, desde os simples cl6rigos de missa ate k alta dignidade prelatfcia dos arcebispos; e, entre estes extremos, os freires maiores e os freires menores, os graus dos abades, os co- mendadores, os priores e os Mestres das or luivodu^du wii dens — tfio acrescentadas — com seus mantos brancos, tendo nfeles, no peito, os de Cristo, a cruz vermeiha, aberta; os de Santiago, a cruz em forma de espada ; os de Aviz \ a cruz verde com remates de flores de liz ; e ainda o prior do Hospital, com ^les irmanado em honras, com sua cruz malteza de oito pontas. A todos OS nobres era familiar a linguagem do brasao, com suas insignias e divisas, e o que significavam, n§le, os metais ouro e prata; as c6res vermelhas, aziiis, verdes e negras; as arruelas, besantes, escaques, muletas, lisonjas, veiros, asnas, palas, faixas, bandas, contraban- das; OS leoes rompentes, os lobos caqantes, os cavalos e os cervos correntes, as ^guias voan- tes, a onqa saltante, as cabras passantes, os leopardos batalhantes ; as disposigoes do es- cudo em chefe, em roquete, em aspa ; e ainda OS castelos, os pinheiros, as oliveiras, os cres- centes, as estrSlas e outras figuras. Os olhos das donzelas filhas de algo, ^vidos do fausto das grandezas, enchiam-se de prazer, ao ver as cores e os ouros dos balsoes fidal- gos, pendao e a caldeira dos ricos-homens — slmbolos de poderio e honra ; e a maior festa a oferecer-se-lhes era a de assistir a armar um cavaleiro, por mao de parente seu, menos pelo que nesse acto havia de culto ao direito da ea- xvm Leotior Teles pada, que pelo espect^culo da investidura e pelo sentido da pragm^lica — uma ostentosa vassa- lagem afirmativa do poder de quem a dava e da fidalguia de quem a recebia — nobreza assegu- rada por uma prol de quatro geragoes valoro sas *. Em tal cerim6nia — a do casamento de uma alma com uma espada, — o herdeiro de fidal- gos, empenhando a honra de av6s que, pop seus exemplos, o incitavam a proezas, afimaava, para OS dias futuros da sua vida guerreira, os com- promissos da pr6pria honra. Com outras don- zelas da sua condigao, a fidalga assistia a missa que moQO cavaleiro tinha de ouvir, na pri- meira hora do dia, na igreja onde passava a noite, velando suas armas sagradas, todo o tempo de joelhos e de maos postas, rogando ao Deus das batalhas, para haver bom nome, per- calqar sua honra e no mundo ficar relembranqa de sua auddcia na defesa da justiga e de suas feridas honradas em corpo ardido. Diante do altar-mor, iluminado com velas de cera amarela, enlre rudos cl^rigos de tez barrenta cortada de linhas duras, revestidos, uns, de simples so- brepelizes, outros de ricos aurisamitos, o moQO cavaleiro, -agitado, -de olhos vagos, p^lido pelo jejum, pela vigilia e pela Snsia, armado como para lidar, a quem haviam calqado esporas de gineta e cingido, sdbre o brial vermeiho, uma ! : : — Intvodufdo xix espada refulgente aspergida de ^gua-benta, dobrava os joelhos ante o Padrinho que, pondo- -Ihe na cabeqa o capacete espelhante, e tirando- -Ihe a Iflmina da bainlia, Ihe preguntava: — ^Quercs ser cavaleiro e juras, s6bre 6ste missal, morrer pela f6, por teu reino, por teu Senhor? moQo, pundonoroso, sentindo-se auxiliado por Deus, a quern, para o servir, prometera seu sangue, respondia confiado — j Sim Entao Padrinho, depois de Ihe dar com a espada um sonoro golpe no capelo brunido, e tr§s suaves pancadas no ombro direito, profe- ria a palavra longinqua, presligiosa de bSngaos e de esperanqas, que sdbre a sua cabe^a descia como um sacramento ~ Deus te faca bom cavaleiro ! J Metia-lhe o ferro na bainha, e logo ali fazia um auto em voz alta, nomeando as pessoas que testemunharam aquela scena religiosa e nobre, tocada de mist^rio.
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