3 No Alvorecer Da Pátria
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Alcino Joaquim Marques da Silva 3 no alvorecer da pátria (Dissertação de Mestrado em História Medieval e do Renascimento Apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto) Porto Faculdade de Letras 2004 Foi no início do Verão de há três anos que algum desconforto profissional me tornou receptivo ao incentivo de uma amiga para o retorno às lides académicas e ao satisfazer de uma vontade longamente adiada. Encontrada a forma de compatibilizar o novo com o antigo desafio, com a ajuda económica, assaz preciosa, da empresa onde tenho vivido os últimos vinte e três anos, a paciência daqueles a quem sempre tenho pedido um adiamento de compromissos familiares que nunca deviam ser protelados e com a colaboração, os conselhos, os ensinamentos e as directrizes do Prof. Luís Miguel Duarte, aqui estou a tentar ser útil à análise histórica de uma época marcante, talvez determinante na caminhada deste País ao longo dos séculos. Se o objectivo que me propus for alcançado, os meus agradecimentos a todos os que me permitiram chegar até aqui; mas se, porventura, não chegar ao destino, ficam os agradecimentos com a mesma grandeza. 2 Abertura... Objecto e objectivos Foi no início desta caminhada que quase sem querer tropeçámos com o título de um trabalho do nosso orientador, intitulado "Os Melhores da Terra", que nos fez aguçar o engenho no sentido de desenvolver algo na mesma direcção, mas procurando os contrários, ou seja, os "piores da terra", só que escasseando as fontes, assim como a nossa disponibilidade académica, pouco tempo após, a ideia que parecia boa, começou a esboroar-se. Foi então que tivemos essa sensação de que as revoluções são o cadinho onde tudo e todos se encontram, sejam os melhores, sejam os piores. Daí até olharmos para os acontecimentos de 1383 foi quase um instante. Só que, na timidez do nosso escasso saber, este momento da História revela-se gigante. Como poderíamos nós, recém-regressados a estas lides, agarrar tamanha revolução de forma a cativar a atenção para uma qualquer ideia ou hipótese ainda não trabalhada, foi a pergunta que durante algum tempo sustentámos no pensamento. Sem dúvida que os incentivos do Prof. Luís Miguel Duarte acabariam por se tornar decisivos para que finalmente enveredássemos por este caminho da nossa História. Definido o objecto, importava ainda conceber o que estudar e como fazê-lo, sabendo nós de antemão o quanto já o tema foi tratado, analisado e dissecado pela nata dos nossos historiadores, quantas obras e teses foram já elaboradas, quantas ideias construídas, quantos caminhos apontados, o sem número de reflexões e hipóteses desenhadas. Começámos, também nós, por reflectir sobre o muito que foi escrito, para onde apontavam as ideias determinantes, quais os aspectos passíveis de discordância, o que os diversos estudos não esclareceram, as dúvidas que persistem. Procurávamos com atenção, "...no terreno concreto da investigação, (...). Por onde começar?"(i), qual a vereda por onde nos infiltraríamos nesse cenário de deslumbramento que são todas as revoluções que impulsionam uma nação. Nação. Foi um dos momentos em que nos detivemos a pensar, a questionar, a construir esses pontos de interrogação que devem ser uma constante no caminhar dos homens pela vida e necessariamente na construção do presente que será passado e por consequência, lugar da história, "procurar essa selecção fundada sobre interrogações"©. Interrogações, porque a história ao ser investigação (3), mais saber do que ciência (4), 3 leva-nos a conjecturar, a aproximar acções, a analisar causas, a reflectir sobre os efeitos, a obter explicações que nunca serão em absoluto comprovadas. A revolução dezembrina, incentivadora de paixões, havia arrastado gentes e insuflado a nação, quer dizer, um conjunto territorial bem definido e consubstanciado em interesses comuns e homogéneos, muito para além do território de qualquer senhor feudal. Esta foi outra palavra mágica que nos transportou para mesteirais, burgueses e burguesia. Foi a revolução um acto da burguesia de Trezentos ou um mero golpe de estado em que mudaram apenas os actores no palco do poder? Uma revolução burguesa não seria, pois essa tardaria ainda cinco séculos, mas foi uma revolução da burguesia, da "...burguesia comercial-marítima"(5). E se logo na reflexão nos permitimos essa ousadia de concluir, então quem eram esses homens, esses burgueses e que traziam de novo que justificasse a mudança, que a fizesse realçar quando procurássemos no conjunto dos documentos, na junção dos factos acontecidos? "Seriam também, para além da burguesia, "...os proprietários dos concelhos que utilizavam trabalho assalariado e os pequenos produtores independentes"(5)? Movíamo-nos por estes caminhos quando deparámos com essa ideia, a princípio abstracta, da pátria. Faria sentido procurar o conceito de pátria e de patriota em época tão recuada, numa sociedade de ordens, de interesses feudais tão profundos, no espaço em que o sagrado não dava tréguas ao profano(ó)? Será que encontraríamos esses símbolos que formam um todo abstracto mas palpável, visível? Poderemos afirmar que "...unidos pela língua (...) pela estrutura socioeconómica"(7) sê-lo-íamos também ".. .pela ideologia"(7)? Diremos que aqui nesta época se encontrará o essencial de toda a nossa vivência. De facto, são estes séculos paradigma de acontecimentos, de actos, de intenções, de novidade, do brotar de algo que nascia, aflorava e em alguns casos só muito depois despontaria à luz do dia, apareceria de corpo inteiro, pleno de vigor e de ardor. Com a pátria será algo parecido. Este sentimento, incluído entre os nobres valores das comunidades, vai surgir do interior das cidades e assim sendo, naturalmente que da alma daqueles grupos, daquelas camadas que lhe darão corpo, seja a arraia-miúda, sejam os mesteirais, sejam os burgueses, essas oligarquias mercantis que vão encontrar interesses comuns numa união contra o estado vigente, ou seja, a toda-poderosa nobreza feudal nuns casos, senhorial noutros, mas independentemente das variantes produtivas e das relações de vassalagem, eram os detentores do poder, mesmo que entre eles houvesse um rei, quer dizer, mesmo que um entre todos estivesse no cimo da pirâmide, só que as cidades, essencialmente estas, vão reivindicar que o poder de esse primus inter pares, passe a ser abrangente a toda a sociedade, a toda a co- 4 munidade e que certas camadas façam também parte desse poder, com direitos e que estes se constituam de forma diferente. No fundo, será isso que dirão em 1383, só que a nobreza ao trazer para a cena do jogo a questão da independência do reino e este cada vez menos se prendia com as fronteiras feudais, territoriais e mentais, mas cada vez mais com fronteiras que significavam comércio, troca de produtos e interesses mais longínquos, vai puxar para a disputa algo mais vasto que já se entende por independência. Claro que esta pode ser do território, pode ser ainda de território e nação, mas quando estas duas componentes se juntam, tem de necessariamente arrastar a pátria, esse sentimento interior, essa sensação de pertença, essa consciência de cidadania. Fomos explorando, separando aqui e ali, recuando e tornando a avançar, hesitando, voltando a reforçar opiniões, fomos construindo um pequeno muro, o qual passado algum tempo, apesar de estreito parecia ganhar alguma solidez. "A mentalidade popular das cidades, porém, como longínqua antecessora da cultura burguesa, permanece em Portugal um tema de estudo praticamente desconhecido."(8) Avisados por José Mattoso, entrámos receosos nas portas das cidades medievais na procura desses sentimentos, sintomas e símbolos que nos poderiam levar até à pátria. É verdade que não os encontrámos com essa percepção com que hoje os olhamos, mas estavam lá, vislumbrava-se com nitidez o seu embrião transportado no seio dessa burguesia que se movimentava, que se afanava pelas ruas das urbes que cresciam ao ritmo do comércio. Foi assim que pusemos mãos à obra, encontrado que estava o objectivo a perseguir. Mas havia uma tese para construir, para sustentar e para defender se tão longe chegássemos. Se construímos essa tese outras doutas opiniões o dirão, mas como se poderá 1er nas páginas seguintes, procurámos com as interrogações, as dúvidas, a polémica, dissertar e tentar ajudar a perseguir caminhos, outros para além dos muitos já alcançados. Se o objecto é a revolução de 1383, o objectivo, visível aqui e ali, ao longo do texto, será demonstrar que a burguesia que se revoltou transportava novos valores, novos símbolos, novas ideias, representava uma nova mentalidade, no interior da qual vinha esse conceito novo que é a pátria, daí intitularmos este trabalho como o seu alvorecer. Estrutura Procurámos ser simples e objectivos por imposições metodológicas pessoais e para maior facilidade na compreensão do texto. Seguimos assim o roteiro inerente a todas as revoluções, quer dizer, procurámos as causas, seguimos as consequências e detectámos os efeitos. Se pretendermos doutra forma, o trajecto começou pelo princípio, deteve-se 5 no meio e acabou no fim. Levando um pouco longe de mais esta nota, poderemos ainda pensar que foi pelo antes, o durante e o depois que seguiu a caleche da nossa procura. Começámos por situar Portugal no século que antecede o desenrolar da revolta. Analisámos a sociedade nas suas diversas componentes, como se caracterizava, que bloqueios fizeram germinar o desejo de mudança, quem compunha a estrutura social e como se decompunham os diversos estratos. Avaliámos a possibilidade de estarmos perante uma sociedade em que a ordem trinitária já não respondia à estrutura económica e, rasgada nos pontos mais frágeis, abria-se por pressão para outra organização social. Fomos ao encontro das comunidades urbanas que o comércio enriquecia e que lentamente começavam a ostentar o resultado desse labor. Encontrámos os germes da revolução e seguimos o rastilho que foram semeando até ao Outono de 1383. Num segundo momento, aceitamos o convite dos burgueses de Lisboa e fomos ao encontro das suas reivindicações, assistimos ao preliminar da insurreição e acompanhamos os seus diversos momentos, primeiro, guerreiros e depois, já na paz, legislativos, no sentido de conduzirem e consubstanciarem a mudança.