UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CLARISSA SPIGIORIN CAMPOMIZZI

DO CORPO À TERRA: ARTE E “GUERRILHA” EM EM 1970

CAMPINAS 2017

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 1263587

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Campomizzi, Clarissa Spigiorin, 1986- C157d CamDo Corpo à Terra: arte e guerrilha em Belo Horizonte em 1970 / Clarissa Spigiorin Campomizzi. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

CamOrientador: Nelson Alfredo Aguilar. CamDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Cam1. Morais, Frederico, 1936-. 2. Arte brasileira - Exposições. 3. Vanguarda (Estética). I. Aguilar, Nelson, 1945-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Do Corpo à Terra: art and guerilla in Belo Horizonte in 1970 Palavras-chave em inglês: Brazilian art - Exhibitions Vanguard (Aesthetics) Área de concentração: História da Arte Titulação: Mestra em História Banca examinadora: Nelson Alfredo Aguilar [Orientador] Gabriel Ferreira Zacarias Maria de Fátima Morethy Couto Marcos Tognon Daria Gorete Jaremtchuk Data de defesa: 22-03-2017 Programa de Pós-Graduação: História

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão realizada em 22 de março de 2017, considerou a candidata CLARISSA SPIGIORIN CAMPOMIZZI aprovada.

Prof. Dr. Nelson Alfredo Aguilar

Prof. Dr. Gabriel Ferreira Zacarias

Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto

AGRADECIMENTOS

Primeiramente gostaria de agradecer ao Programa de pós-graduação em História da Unicamp, pela oportunidade única de realizar esta pesquisa. Agradeço aos professores Luís Marques, Luciano Migliaccio e Jorge Coli pelas disciplinas ofertadas, que tanto colaboraram para a minha formação. Agradeço aos professores Marcos Tognon e Claudia Valladão, pela leitura atenta e sugestões preciosas em minha qualificação. Agradeço ainda ao Leandro e a todos os funcionários do IFCH pela constante atenção nos serviços prestados. Ao meu orientador, Nelson Aguilar, agradeço pela confiança e por todo o apoio ao longo deste trabalho. Sua inteligência única, suas colocações instigantes e sua visão questionadora e abrangente sobre a história da arte transformaram a minha percepção da pesquisa e contribuíram muito para meu amadurecimento acadêmico e pessoal. Foi um enorme privilégio compartilhar desta convivência. A realização dessa pesquisa só foi possível com a presença da Biblioteca do IFCH, da Biblioteca do MAC-USP, da Coleção Sérgio Milliet da Biblioteca Municipal Mario de Andrade, da Biblioteca da FFLCH-USP, e da Biblioteca do MAM- RJ, onde encontrei boa parte das leituras feitas. Em Belo Horizonte pude consultar a Biblioteca da EBA-UFMG, o Palácio das Artes, o Museu de Arte da Pampulha e a Hemeroteca do Estado de . Agradeço a todos os funcionários destas instituições pelo atendimento, especialmente a Maria Rossi Samora, da Biblioteca do MAM-SP, pela valiosa ajuda. Agradeço a Frederico Morais, que me recebeu em sua casa no Rio de Janeiro e - apesar de sua agenda cheia - generosamente disponibilizou uma tarde inteira de conversa. As minhas perguntas foram respondidas com muita cordialidade e atenção e seu testemunho foi fundamental para o enriquecimento deste trabalho. Ao longo dos últimos anos, o IFCH me proporcionou, além de todo o aprendizado, convivências valiosas que carregarei por toda a vida. Agradeço muito a Juliana Guide pela amizade acolhedora, pelas inúmeras ajudas e pela hospedagem em Campinas – fundamental para o aproveitamento da Universidade. Agradeço aos amigos Allan Moura, Camila Colombo e Marcos Pedro, que me ampararam em diversos momentos em Barão Geraldo. Muito obrigada a Anita Lazarim, pela parceria e amizade. Aos queridos colegas André Barros e Renato Menezes,

agradeço pelas conversas, trocas e colaborações. Agradeço a Gabriela Lodo pela leitura de meu projeto e pelas sugestões bibliográficas. Agradeço muito a todos os amigos e familiares que torceram por mim e que compreenderam minhas inúmeras ausências em função da distância. Muito obrigada Lívia Caroline, Fernanda Caixeta e Melissa Lima pela amizade incondicional. Obrigada aos avós, tios e primos pelo incentivo. Meu agradecimento maior por este projeto e tantos outros é a Mario de Bem; sou grata pela companhia, pela paciência nos momentos difíceis, pelo incentivo e encorajamento. Obrigada pelas imagens digitalizadas e tratadas e pela revisão na formatação. E sobretudo pelo amor comigo compartilhado, fonte de força e alegria. Dedico a realização deste trabalho a meus pais, Maria Helena e Jader Bernardo, que tanto esforço empregaram para garantir minha educação e minha felicidade. Muito obrigada pelo exemplo de luta e perseverança, pela torcida e pelo apoio emocional e material. Agradeço à CAPES pela bolsa concedida.

RESUMO

Esta dissertação investiga um evento artístico acontecido em Belo Horizonte em abril de 1970, conhecido como Do Corpo à Terra . Tratou-se de uma ação organizada pelo crítico e curador Frederico Morais em que vários artistas brasileiros foram convidados a criar trabalhos e apresenta-los em espaços públicos da cidade – o Parque Municipal e a Serra do Curral- extrapolando as fronteiras do museu e explorando novas linguagens, como a performance, o happening e a intervenção urbana. Através de um levantamento documental e da análise das imagens e registros do evento, esta pesquisa pretende investigar seus aspectos poéticos e políticos, e contextualizá-los em todo um quadro de arte política que se desenvolveu no Brasil neste período. Além disso, a dissertação aborda o conceito de arte- guerrilha , trazido por diversos autores e fundamental para a compreensão das propostas de Frederico Morais. Investiga também a recepção do evento na imprensa mineira e os desdobramentos da exposição. O trabalho contém em anexo um depoimento inédito do próprio Frederico Morais com detalhes sobre a mostra.

Palavras chave: Frederico Morais, Arte Brasileira, vanguarda, exposições

ABSTRACT

This thesis investigates an artistic event which happened in Belo Horizonte in April 1970, known as Do corpo à Terra. It was about an action organized by the critic and curator Frederico Morais in which various brazilian artists were invited to create artworks and exhibit them on the city’s public spaces – Parque Municipal and Serra do Curral - extrapolating the boundaries of the museum and exploring new languages, such as the performance , the happening and urban intervention. Through a documental survey and analysis of the imagery and records of the event, this research intends to investigate its poetic and political aspects, contextualize them in a whole picture of political art that was developed in Brazil during this period. Furthermore, the thesis addresses the concept of arte-guerrilha (guerrilla art) brought by several authors and basal for the comprehension of the propositions of Frederico Morais. It also investigates the acceptance of the event by the Press of Minas Gerais and the unfolding of the Exhibit. In the paper is attached the unedited testimony of

Frederico Morais himself with details about the Exhibit.

Keywords: Frederico Morais, Brazilian Art, Vanguard, Guerrilla Art

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10

CAPÍTULO 1. DO CORPO À TERRA : ANTECEDENTES E CONTEXTOS ...... 14 1.1. Arte de vanguarda no Brasil ...... 17 1.2. A guerrilha artística: pensamento e prática entre a arte e a política ...... 22

CAPÍTULO 2. O CORPO E A TERRA: ESPAÇOS PARA A CRIAÇÃO E A EXPERIÊNCIA ...... 30 2.1. Objeto e Participação e Do Corpo à Terra ...... 36 2.2.1. Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político , Cildo Meireles ...... 53 2.2.2. Situação T/T1 , Artur Barrio ...... 60 2.3. Frederico Morais: da crítica à criação...... 72

CAPÍTULO 3. LEITURAS E DESDOBRAMENTOS DE DO CORPO À TERRA .... 83 3.1. A repercussão de Do Corpo à Terra na imprensa ...... 85

CONCLUSÃO: UM MARCO RADICAL NA ARTE BRASILEIRA? ...... 93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 100

ANEXOS ANEXO 1. MANIFESTO DO CORPO À TERRA ...... 110 ANEXO 2. QUINZE LIÇÕES DE ARTE E HISTÓRIA DA ARTE ...... 115 ANEXO 3. ENTREVISTA COM FREDERICO MORAIS ...... 118

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação investiga um acontecimento específico da arte e da cultura brasileira: o evento Do Corpo à Terra , realizado em Belo Horizonte entre os dias 17 e 21 de abril de 1970. Organizado pelo crítico e curador Frederico Morais, Do Corpo à Terra trouxe à capital mineira jovens artistas, convidados a realizar propostas inéditas no Palácio das Artes e em espaços públicos da cidade – o Parque Municipal e a Serra do Curral. O evento foi promovido pela Hidrominas - na época empresa de turismo do estado de Minas Gerais – e pela diretora de artes visuais do Palácio das Artes Mari’Stella Tristão. Do Corpo à Terra foi palco para a realização de obras que exploravam novas linguagens e práticas da época, como a performance, o happening , a intervenção urbana e a participação ativa do espectador. Algumas obras utilizavam materiais e suportes não usuais, explorando as possibilidades e limites do fazer artístico. Propostas foram realizadas em áreas públicas de Belo Horizonte, numa corajosa recusa ao museu e à galeria e trazendo a discussão das expansões do território da arte. O evento explorava a cidade como um espaço ativo e integrado aos trabalhos e apontava as tensões entre a natureza e o crescimento urbano e entre o corpo e a obra. Para a pesquisadora Marília Andrés Ribeiro:

Nessa manifestação, os artistas e o próprio crítico realizaram propostas corporais, ecológicas e políticas que se transformaram em ritual simbólico de reivindicação libertária e de protesto contra a repressão e o terror que imperava no Brasil. 1

A ideia de realizar esta pesquisa surgiu em 2008, após uma visita à exposição Neovanguandas , realizada no Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte, com curadoria de Marconi Drummond e pesquisa de Marília Andrés Ribeiro. Lá estavam exibidos alguns dos registros das ações realizadas em Do Corpo à Terra , e foi a primeira vez que soube que Belo Horizonte havia sido palco deste acontecimento. Impressionei-me bastante com propostas, especialmente com as trouxas ensanguentadas lançadas no Rio Arrudas pelo artista Artur Barrio. Este trabalho despertou um desejo de refletir sobre as possibilidades da arte, o emprego

1 RIBEIRO, Marília Andrés: Neovanguardas . Belo Horizonte, Editora C/Arte, 1998, p.175.

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de materiais e métodos não tradicionais, a ocupação de espaços públicos e as formas de construir poéticas engajadas - que abordem questões políticas com profundidade para além do mero discurso panfletário. Assim surgiu um grande interesse em pesquisar o evento Do Corpo à Terra , descobrir mais detalhes sobre os artistas participantes, as obras realizadas, as ideias produzidas, seus desdobramentos e significados para a arte e a cultura brasileira. Para isso, foi necessário compreender a forma com que este evento se relacionou com a sua época e se inseriu dos posicionamentos e debates presentes na arte. As décadas de 1960 e 70 foram marcantes pela experimentação da linguagem artística, o questionamento da ordem vigente e a inserção de novas práticas criativas. Segundo a crítica e curadora Ligia Canongia:

as décadas de 1960 e 70 foram cruciais para o implemento de uma nova visualidade mundial, através de operações revolucionárias que discutiram a própria natureza da arte e sua função na pós- modernidade. Esses anos de ouro do período contemporâneo realizaram conquistas e formulações novas em relação à era moderna, discutindo a questão da identidade das coisas, a forma rígida e fixa de se estabelecer os limites da ação estética, a ideia de pureza dos meios como instrumento para a circunscrição de linguagens excludentes, alargando o campo visual para uma diversidade de motivos (meios, lugares, materiais, energias, atitudes), inéditas historicamente. 2

Neste sentido, Do Corpo à Terra deve ser compreendido por uma perspectiva mais ampla e tratado não como um evento isolado, mas como parte integrante de seu tempo e dos acontecimentos históricos que o cercaram. E desta forma certos movimentos artísticos internacionais podem ser relacionados com Do Corpo à Terra , por compartilhar das mesmas práticas e propor modos semelhantes de pensar e fazer arte. A Arte Povera, que trouxe a prática da precariedade e a relação com a guerrilha, a Internacional Situacionista (IS) que evoca a cidade como o espaço para a criação artística, o Fluxus, com obras efêmeras e que exigiam a participação do público são movimentos que trouxeram ideias exploradas nas obras realizadas em Do Corpo à Terra . O Brasil da década de 1960 - antes da realização de Do Corpo à Terra - já vinha construindo uma linguagem artística de experimentação e rupturas. O

2 CANONGIA, Ligia: O Legado dos anos 60 e 70 . Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2005, p. 88-89.

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movimento Neoconcretista já propunha uma relação de aproximação entre a obra e o espectador e evocava a participação do público e sua integração às criações artísticas. Um de seus principais artistas - Hélio Oiticica - propôs posteriormente certas ideias que chamou de Programa Ambiental e contribuiu para parte da produção artística brasileira incorporar ainda mais o espaço à obra de arte, tornando-a mais ampla e possibilitando a ocupação de espaços antes não imaginados. Diversos artistas das várias regiões do Brasil experimentaram práticas que exploravam novos materiais, novas relações com o espaço, com o corpo e com as instituições artísticas. Este movimento foi também acompanhado pela crítica de arte, que se aproximou do espírito criativo, de ruptura e transgressão. Neste contexto realizaram-se importantes exposições que incorporavam as características da produção artística desta época. Podemos destacar a Opinião 65, Nova Objetividade Brasileira, Arte no Aterro, Salão da Bússola, etc, como momentos importantes para as realizações artísticas da época. Estas iniciativas em certa medida abriram espaço para que posteriormente Do Corpo à Terra se realizasse. É importante colocar que neste momento o Brasil estava sob a ditadura militar, que controlava a imprensa, censurava ideias e interrompia uma proposta de modernização que vinha dos governos anteriores e era acompanhada pelos projetos artísticos. A partir de 13 de dezembro de 1968, com a proclamação do Ato Institucional n. 5 e o endurecimento do regime, os setores culturais radicalizaram sua crítica e suas ações. Nesse momento emerge a chamada Geração AI-5, nome dado aos artistas e críticos que realizaram propostas ainda mais engajadas e tornaram suas criações ainda mais politizadas. Suas obras propunham debates acerca de temas como o nacionalismo, subdesenvolvimento, imperialismo cultural e dependência econômica. Do Corpo à Terra pode ser compreendido como um evento contextualizado neste panorama, já que suas propostas possuíam uma politização latente e engajavam- se com as críticas políticas dos movimentos do período. O evento relaciona-se inclusive com o conceito de Arte Guerrilha utilizado naquele momento por Frederico Morais – e por outros críticos e artistas - de claro teor crítico e militante, aproximando o acontecimento de um ato político. Para investigar Do Corpo à Terra foi possível acessar certos registros realizados na época, que fornecem uma ideia do que aconteceu no evento: fotografias e vídeos das obras, textos e o manifesto redigido por Frederico Morais e

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notícias da imprensa. Apesar disso nem todos os trabalhos foram registrados com minúcia – algumas obras aconteceram simultaneamente - e existem lacunas sobre os detalhes da realização de certas propostas. Tornou-se um desafio para a dissertação resgatar aquele momento e identificar quando foi realizada cada ação, suas características, interferências, desdobramentos e leituras. Para isso foi muito importante tomar o depoimento de Frederico Morais, pois ele pode esclarecer dúvidas, dar detalhes das obras, acontecimentos e do clima do evento. Frederico Morais compartilhou suas lembranças, impressões pessoais e suas palavras foram uma fonte de informações importantes. Mas as memórias são falhas e sujeitas a floreios, exageros e esquecimentos. Portanto foi necessário problematizar as fontes consultadas para manter o rigor crítico do trabalho. Do Corpo à Terra é visto por grande parte da crítica como um ocorrido marcante. Segundo o próprio Frederico Morais, foi o novo marco da arte brasileira após a Semana de Arte Moderna de 1922. 3 Tenta-se pensar o que este evento de fato significou para a arte brasileira naquele período e sua inserção na história da arte brasileira. Também é um desafio para esta dissertação refletir de maneira crítica sobre essa memória construída, seus reflexos na arte contemporânea brasileira e suas apropriações em outras exposições.

3 Em entrevista para o Jornalista Francisco Bittencourt para o Jornal do Brasil,(BITTENCOURT, Francisco, A Geração Tranca-Ruas, Jornal do Brasil, 9 de maio de 1970) Frederico Morais fez esta declaração ao jornalista e ainda apontou outras questões que serão posteriormente abordadas no trabalho.

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CAPÍTULO 1. DO CORPO À TERRA : ANTECEDENTES E CONTEXTOS

O evento Do Corpo à Terra ocorreu no primeiro semestre do ano de 1970: um período de grandes impactos na política, na arte, na cultura e na sociedade do Brasil. Para realizar uma contextualização do período é importante recuar brevemente o olhar para a década anterior. Os anos cinquenta e especialmente os anos sessenta abriram muitos dos caminhos que foram percorridos e aprofundados pelos artistas da década de 1970, transformando profundamente a compreensão e a natureza da obra, do artista, do crítico e até mesmo do público. O cenário artístico do Brasil e do mundo esteve repleto de movimentos e artistas que transformaram a arte e a história da arte naquele momento, rompendo paradigmas e reestabelecendo perspectivas. Alguns deles serão brevemente comentados. Nos Estados Unidos a década de 1960 viu surgir a Pop Art, um movimento que já lança algumas das premissas do que hoje se é denominado arte contemporânea. Apesar de seus impulsos iniciais terem vindo de artistas ingleses, foi nos Estados Unidos que a Pop Art se desenvolveu plenamente e encontrou um profundo diálogo com a cultura e o contexto local. Na Pop Art o objeto de interesse, produção e reflexão da arte é o mundo cotidiano, banal, popular e comercial. A sociedade de consumo, a televisão, o cinema, os quadrinhos e a estética publicitárias foram incorporados como linguagem artística e o modo de produzir obras de arte passou a acompanhar o ritmo da indústria e da mídia. Andy Warhol foi um dos mais conhecidos artistas da Pop Art. Possivelmente seus trabalhos mais lembrados são as diversas serigrafias com a imagem de celebridades, políticos e ícones. Tais imagens eram multiplicadas e coloridas em seus suportes, adquirindo o aspecto vibrante da linguagem publicitária. Ele também produziu vídeos, fotografias e performances tornou-se uma figura bastante midiática. É interessante observar que seu espaço de trabalho deixa de ser chamado de ateliê, mas de factory . A industrialização torna-se declaradamente seu modo de trabalho e o fazer artístico distanciando-se do manual e incorporando tecnologias e novos processos. Para o historiador da arte e crítico Arthur Danto, a obra de Andy Warhol foi um marco para a arte contemporânea, especialmente o trabalho Brillo Box , de

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1964. (Warhol reproduziu caixas de sabão em pó da marca Brillo em sua factory , usando no lugar do papelão a madeira como suporte. Para Danto:

Uma pessoa pouco habituada à arte de vanguarda nessa época não veria arte naquelas caixas. Em termos ainda mais incisivos pode-se dizer que seria impossível que as caixas de Warhol fossem arte muito antes de 1964. (...) Para tomar como arte as Brillo Box seria preciso conhecer um pouco da história da arte recente – saber alguma coisa sobre Marcel Duchamp, por exemplo – e compreender o que levaria alguém a mandar fazer centenas de objetos exatamente iguais aos que podem ser vistos em qualquer supermercado dos Estados Unidos. Por que as caixas de Andy Warhol eram arte e suas contrapartidas reais, simples embalagens utilitárias, não tinham nenhuma pretensão ao status de arte? A indagação sobre a definição de arte faz parte da filosofia desde os tempos de Platão. Mas Andy nos obrigou a repensar a questão de modo inteiramente novo. 4

Andy Warhol – mesmo que sob novos moldes - traz à tona uma prática artística inaugurada no princípio do século XX pelo artista Marcel Duchamp: o readymade . Duchamp em 1917 enviou para uma exposição coletiva uma obra nunca imaginada antes: um urinol, com a assinatura de um suposto artista R. Mutt. A obra foi batizada de A Fonte . Embora recusada na mostra em questão, tratou-se de um trabalho que evoca reflexões sobre a natureza da arte, do artista, e as múltiplas possibilidade de construir obras recusando os suportes tradicionais. A realização de Duchamp manteve-se bastante presente no espírito artístico de muito da produção das décadas de 1960 e 70. 5 Enquanto os Estados Unidos viam seu cenário artístico plenamente impactado pelas realizações da Pop Art, na Europa uma série de outros movimentos e propostas se realizavam. No final da década de 1950 surgiu o movimento chamado Novo Realismo, encabeçado pelo crítico francês Pierre Restany. Integravam o grupo os artistas Yves Klein, Arman, Raymond Hains, entre outros. O movimento, já em seu nome, evoca a questão da realidade nas artes. Porém, realizam obras que não se preocupam mais com a reprodução pictórica da realidade, mas com a apropriação direta de seus fragmentos, rejeitos e objetos. Os

4 DANTO, Arthur : Andy Warhol . São Paulo, Editora Cosac Naify, 2012, p. 91-92. 5 Existe uma extensa bibliografia sobre Marcel Duchamp e seu legado. Registro como indicação CABANNE, Pierre : Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. São Paulo, Editora Perspectiva, 2012.

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ready-mades advindos de Duchamp são utilizados em alguns trabalhos dos Novos Realistas, assim como a assemblage. Colagens, sobreposições, colecionismo, expansão, compactação são algumas das diversas técnicas empregadas pelos Novos Realistas e que até hoje encontram-se presentes na arte. Em muitos dos trabalhos havia um caráter político, questionador e provocativo. A influência dos Novos Realistas fez-se presente no Brasil especialmente a partir da 7ª Bienal de São Paulo em 1963. Neste momento o artista brasileiro Waldemar Cordeiro tomou contato com o movimento e no mesmo ano conheceu pessoalmente Pierre Restany. Este contato influencia profundamente a obra de Cordeiro e o movimento Concretista que se desenvolveu em São Paulo na década de 1960. 6 A década de 1960 no Brasil foi explicada pelo pesquisador Guy Brett como um “salto radical” na arte brasileira. 7 Um momento de extenso desenvolvimento de ideias e práticas experimentais e transformadoras – já presentes em outros países – em que o Brasil integrou-se de fato ao desenvolvimento de uma vanguarda renovada, imersa em uma “inédita síntese de radicalidade de linguagem, experimentação e reflexão sobre a cultura brasileira” 8. A influência da arte pop se fez presente em diversas propostas, assim como a abstração e o novo realismo. Mas o Brasil passou a acompanhar, participar e até mesmo a integrar alguns dos movimentos e das tendências internacionais. A arte brasileira atingiu um nível de qualidade e reconhecimento internacional – apesar da suposta defasagem das décadas anteriores - participando de mostras de outros países e relacionando-se com o circuito da Europa e dos Estados Unidos. Do Corpo à Terra surgiu portanto, em um momento de bastante riqueza na produção artística nacional, em que apesar da censura e da repressão política, propostas diversas, plurais e experimentais abriam caminho no repertório das exposições.

6 AMARAL, Aracy: Arte Construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner. São Paulo, editora DBA, 1998. 7 BRETT, Guy: Um Salto Radical . In: ADES, Dawn. Arte en iberoamérica - 1820-1980. Madri: Ministério da Cultura, 1990. p.253-283. 8 BRAGA, Paula, Os anos 1960: Descobrir o Corpo . In: BARCINSKI, Fabiana Werneck (org) Sobre a Arte Brasileira . São Paulo, Editora Martins Fontes/ Edições Sesc, 2014, p. 295.

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1.1. Arte de vanguarda no Brasil

O termo vanguarda está presente no vocabulário artístico desde o final do século XIX, com o advento da arte moderna. De origem militar, a palavra designa o pelotão que, durante uma batalha, marcha na frente de todos e é o primeiro portanto a enfrentar o inimigo. Assim, os artistas e movimentos de vanguarda são aqueles que acreditam ser pioneiros, inovadores, romper tradições e produzir obras que inaugurem paradigmas e modelos. A ideia de vanguarda percorreu a Europa e estabeleceu bases para a produção artística moderna. O teórico Peter Burger foi um dos autores que deu início às reflexões sobre arte e vanguarda, publicando em 1974 o livro Teoria da Vanguarda . A obra contém análises consistentes das teorias estéticas de Kant e Hegel para a partir de sua teoria crítica, propor uma nova forma de vislumbrar a arte do século XX. Para Burger, é essencial que a arte de vanguarda questione e problematize a própria instituição da arte. No Brasil a ideia de vanguarda é bastante presente na produção crítica das décadas de 1960 e 70. Basta, para isso, observar o título de alguns importantes artigos escritos no período: “Situação da vanguarda no Brasil”, de Hélio Oiticica; “Opinião 65/66: Artes Visuais de Vanguarda” de Mario Barata; “Declaração de princípios básicos de vanguarda”, autoria coletiva; “Nota sobre vanguarda e conformismo”, Roberto Schwarz e “Vanguarda e subdesenvolvimento” de Ferreira Gullar. Frederico Morais também inclui-se nesse panorama; ele realizou em Belo Horizonte em 1966 a exposição Vanguarda Brasileira - posteriormente tratada nessa dissertação - e o artigo “Por que a vanguarda é carioca?” redigido na mesma época. Para o historiador Paulo Reis,

Desde os primeiros processos de modernização das artes visuais no Brasil, agregaram-se às poéticas visuais elementos extra-estéticos. Questões de brasilidade ou de identidade nacional faziam parte de programas modernos nacionais no início do século XX. A modernidade das artes plásticas nacionais nasceu sob um signo diferente das vanguardas europeias: no Brasil, as movimentações artísticas de meados dos anos 50 trouxeram também, em seus programas estéticos, formulações em conformidade com o projeto nacional. Nos anos 60 a vanguarda apenas constituiu-se como tal ao

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incluir também em seu conceito e operacionalização a crítica social e política. 9

Desta forma, podemos compreender que os movimentos de vanguarda no Brasil na década de 1960 – chamados de neovanguardas pela historiadora Marília Andrés Ribeiro – realizaram-se à partir de não apenas a experimentação artística, mas também do engajamento político. Arte e política são campos que há muito tempo estabelecem diálogos na História da Arte. É inevitável deixar de pensar nos trabalhos do espanhol Francisco Goya e do francês Jacques-Louis David como exemplos explícitos de profundo contato entre política e artes visuais. Para Miguel Chaia:

As relações entre arte e política ganham diferentes matrizes no transcurso histórico, em função de inúmeros fatores como as particularidades das formações sociais, os períodos de valorização do coletivo ou do individual, os contextos de guerra e revoluções, a importância de ações políticas de grupos, vanguardas ou movimentos e os domínios de gêneros, escolas ou tendências artísticas. Assim, sob diferentes condições, o artista alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade, de maneira que a obra possa conter – de forma mais ou menos explícita – o conjunto de fatores sociais circundantes a ela. 10

No Brasil da década de 1960, especialmente após o golpe civil-militar de 1964, parte da produção artística (especialmente de vanguarda) ganhou um ar combativo e engajado. Muitos foram os artistas que tomaram estas posições: Helio Oiticica, Antônio Dias, Antônio Manuel, Lygia Pape, Rubens Gerchman, Anna Bella Geiger, Cildo Meireles, Artur Barrio e Waldemar Cordeiro são apenas alguns exemplos aqui citados. Nesse momento as exposições artísticas também tomam um posicionamento político. Elas aconteceram em diversos locais e contextos e colaboram para a solidificação de práticas artísticas de experimentação e processo. Além disso, elas contribuíram para a formação de um projeto de arte comprometido com o contexto social do Brasil, utilizando como forte ferramenta de criação o experimentalismo e o debate crítico. De agosto a setembro de 1965, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) realizou a exposição Opinião 65 , composta por 17 artistas

9 REIS, Paulo. Arte de Vanguarda no Brasil . Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2006, p. 14. 10 CHAIA, Miguel. Arte e Política . Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2007, p. 14.

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brasileiros e 13 estrangeiros. O título da mostra foi inspirado no emblemático show “Opinião” organizado por Augusto Boal no Teatro de Arena no final de 1964. E já carrega todo o intuito da mostra: opinar e participar. Os artistas apresentaram obras que exploravam diversas técnicas e suportes, e por vezes com a influência da Pop Arte e do Novo Realismo. Duas presenças fundamentais na mostra foram Helio Oiticica, que pela primeira vez apresentou seus Parangolés e Waldemar Cordeiro que exibiu os Popcretos. A mostra repercutiu diretamente na crítica de arte, com a publicação de textos de Ceres Franco, Ferreira Gullar, Harry Laus, Mario Pedrosa e o próprio Frederico Morais. 11 Em depoimento, Frederico Morais afirma que a mostra Opinião 65 trouxe grande influência em seu trabalho e foi decisiva para a realização da mostra Vanguarda Brasileira em Belo Horizonte. Ele declara que:

A exposição Opinião 65 reunia artistas brasileiros e europeus e a qualidade da arte brasileira era visível, até maior que da arte francesa. Mas também o que veio da Europa eram desenhos e gravuras enquanto aqui tivemos pinturas e obras já tendendo ao objeto. Mesmo com muitos artistas o núcleo forte era (Antônio) Dias, (Rubens) Gerchman, (Carlos) Vergara, Roberto Magalhães e é claro, o Helio Oiticica, que fazia uma espécie de ponte entre o Neoconcretismo, que já estava encerrando seu primeiro período histórico, e esta nova geração, que começava a ser influenciada alguns pela Nova Figuração Francesa e outros já pela Pop Art. (...) A Opinião não era apenas a respeito da situação política, com o golpe de 64, que começava a criar dificuldades para os artistas, mas era também uma opinião sobre o estado da arte brasileira. A minha ideia era levar essa influência para Belo Horizonte. 12

A Exposição Opinião 65 pode ser vista como um marco inaugural da realização de mostras no período, pois foi a primeira que - após o golpe civil-militar de 1964 – explorou com ousadia as experimentações contemporâneas e criou articulação entre discursos e linguagens nacionais e estrangeiras. Pouco depois, por iniciativa de Waldemar Cordeiro, a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) em São Paulo, realizou a mostra Proposta 65 . A iniciativa foi inspirada na Opinião 65 e trouxe obras de 49 artistas, entre eles Sérgio Ferro, Flávio Império, Maria do Carmo Secco e Maurício Nogueira Lima. A exposição

11 Opinião 65: 50 anos depois . Rio de Janeiro, Pinakotheke, 2015. (Catálogo) 12 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 2015.

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trouxe à tona na arte brasileira discussões importantes, como a presença das mulheres nas exposições – foram dez mulheres participantes e Mona Gorovitz redigiu o texto “Porque o Feminino” presente no catálogo. Houve ainda a inclusão de peças gráficas de publicidade entre as obras dos artistas plásticos, rompendo as fronteiras de linguagens e aproximando os dois universos. Em abril de 1967 outra exposição importante foi realizada no MAM-RJ: a Nova Objetividade Brasileira. Foi organizada coletivamente por Helio Oiticica, Hans Haudenschild, Mauricio Nogueira Lima, Pedro Escosteguy e Rubens Gerchman. A presença de obras em diferentes suportes e linguagens tornou-se ainda mais marcante e a categoria “objeto” é evocada na mostra. No mesmo ano realizou-se o IV Salão Nacional de Brasília , exposição que integrou artistas de diversas regiões e estados. Frederico Morais participou como júri da mostra e declara:

em 1967 eu participei do Salão de Brasília, e andei o Brasil inteiro para levantar artistas de fora do Rio e de São Paulo para se apresentar em Brasilia. Foi um salão gigantesco, e foi muito polêmico, teve o incidente do porco do Nelson Leirner. O prêmio principal foi para o João Câmara e a vanguarda não aceitava, pois achava que ele era muito regionalista. Mas ele era um artista interessante, politizado, muito inteligente. O (Ferreira) Gullar já estava mudando a posição dele nessa época em relação ao Neoconcreto e fez um elogio pela primeira vez ao Helio Oiticica. Na verdade, mesmo eu estava defendendo o Helio Oiticica e o Mario Pedrosa. Mas o (Walter) Zanini estava defendendo o Nordeste, artistas da Bahia e de Pernambuco. Já o Mario Barata estava meio em dúvida. Acabou que o prêmio grande foi para o João Câmara. 13

Morais recorda a maior polêmica do salão, protagonizada pelo artista Nelson Leirner. O artista, ao inscrever-se no Salão, apresentou como obra um porco empalhado. A atitude ousada foi questionada por outros artistas e Leirner indagou os críticos que compunham o júri, sobre seus critérios de escolha e seus conceitos de arte. Sobre o incidente, Morais recorda:

a novidade do salão de Brasília era justamente a introdução do objeto. E essa era uma decisão contraditória, pois se o objeto não era uma categoria (e o Helio Oiticica, por sua vez, teorizava sobre a questão do objeto, dentro de uma perspectiva anárquica) (...) E eu

13 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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achava muito importante ampliar essa discussão dentro de um evento oficial. Assim o objeto foi incluído no regulamento, mesmo que com isso surgissem polêmicas, como o porco empalhado. 14

Frederico Morais também participou da organização do evento Arte no Aterro em 1968, no MAM-RJ. Com a participação de Lygia Pape, Helio Oiticica, Antonio Manuel, entre outros, o evento propôs a ocupação da parte de fora do museu – o aterro do Flamengo. A mostra contou com performances, ocupações e obras que exploravam a paisagem e o espaço público. Morais declara que:

Durou um mês, chamava-se o mês de arte pública. Teve exposição da Ione Saldanha, do Julio Plaza, artista espanhol que veio para o Rio de Janeiro e ainda haviam aulas dadas pela minha esposa (a artista Wilma Martins) e a Maria do Carmo Seco. No domingo ainda aconteceram umas manifestações de vanguarda, teve o Hélio fazendo o Apocalipopótese. 15

O crítico relaciona sua experiência no MAM-RJ à ideia de realizar Do Corpo à Terra no Parque Municipal:

uma coisa interessante do MAM do Rio de Janeiro é que ele é parte do aterro, e fica no extremo, na ponta do aterro. Eu até costumava brincar, dizendo que o aterro era a extensão do museu. Os Domingos da Criação tiveram um pouco esse sentido. Eu já tinha esse interesse em trabalhar o lado de fora. (...)Foi nesse contexto que eu pensei no Palácio das Artes. Ele é parte de um parque, o parque do município. E a frente dava para a principal avenida de Belo Horizonte, a Avenida Afonso Pena. 16

O Salão da Bússola , também proposto por Morais no MAM-RJ no final de 1969 foi um dos eventos que também abriu-se para a experimentação radical de artistas como Artur Barrio, Cildo Meireles e Antônio Manuel. Barrio lá realizou pela primeira vez suas Trouxas Ensanguentadas , repetidas posteriormente e em maior escala em Belo Horizonte. Diversas obras ocuparam o espaço externo do museu e exploravam novos suportes e técnicas. Em torno de todo este contexto de desenvolvimento artístico do país foi que Do Corpo à Terra aconteceu, poucos anos depois, carregando o legado de importantes mostras que antes ocorreram.

14 Idem. 15 Idem. 16 Idem.

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1.2. A guerrilha artística: pensamento e prática entre a arte e a política.

Frederico Morais, em fevereiro de 1970 redigiu um artigo para a Revista Vozes que tornou-se um marco para a crítica e a produção artística da época: Contra a Arte-Afluente: o Corpo é o Motor da “Obra”. Nesse artigo, Morais explora diversas ideias e conceitos: o corpo, o objeto e a participação. Bastante influenciado pelas obras de Lygia Clark e Helio Oiticica, Morais propõem que o corpo (compreendido como a ação, o movimento e a presença do espectador) seja o ponto de partida e o principal elemento da obra de arte contemporânea. Neste artigo, Morais também utiliza uma expressão que se torna referência para sua prática artística e para diversos outros artistas: o conceito de arte guerrilha . Ele declara que:

O artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro. A arte, uma forma de emboscada. Atuando imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada (pois tudo pode transformar-se hoje em instrumento de guerra ou de arte), o artista cria um estado de permanente tensão, uma expectativa constante. Tudo pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano. Vítima constante da guerrilha artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos. 17

Morais defende que a arte seja construída não apenas como expressão estética, mas como um instrumento de transformação social e luta contra as mais diversas formas de injustiça e opressão. Neste sentido, a guerrilha torna-se prática a ser incorporada na linguagem artística, tanto de forma teórica, com a crescente politização do conteúdo das obras e da postura dos artistas, quanto de forma prática, com a escolha de materiais e espaços que criam um ambiente de tensão, surpresa e emboscada. A escolha por espaços fora dos museus para as obras, por materiais diferentes do repertório artístico – muitas vezes sujos, agressivos e desvalorizados- criaram uma linguagem da arte guerrilha , presente nas propostas do evento Do Corpo à Terra e também de outras exposições da época. A ideia de arte guerrilha vinha sendo desenvolvida e explorada por outros críticos, teóricos, artistas e movimentos durante as décadas de 1960 e 70. Entre eles estava a Arte Povera, peça fundamental para compreender os acontecimentos

17 MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da “Obra”. Revista de Cultura Vozes, Rio de Janeiro, n.1, jan.fev. 1970, p.50.

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artísticos de Belo Horizonte em Do Corpo à Terra . A forma de realização das obras, as ideias e posturas do crítico idealizador influenciaram profundamente Frederico Morais em suas realizações artísticas. O termo arte povera foi cunhado em 1967 pelo crítico de arte e curador italiano Germano Celant, para denominar um movimento composto por jovens artistas oriundos de diversas regiões da Itália. Originalmente foram 13 artistas participantes (Giovanni Anselmo, Alighiero Boetti, Pier Paolo Calzolari, Luciano Fabro, Jannis Kounellis, Mario Merz, Marisa Merz, Giulio Paolini, Pino Pascali, Giuseppe Penone, Michelângelo Pistoletto, Emilio Prini e Gilberto Zorio), mas com o passar dos anos foi integrado por outros participantes. Este grupo - nutrido por uma nova perspectiva do fazer artístico - buscava estreitar a relação entre arte e vida, através de práticas ousadas e de obras construídas com materiais pobres, acessíveis e desvalorizados. Os artistas não trabalharam de maneira uniforme ou homogênea, mas criaram um diálogo e uma conexão em suas propostas, através da experimentação aplicada em suas técnicas. Eles realizaram diversas mostras em conjunto, onde recusaram os rótulos de estilo e valorizaram a incongruência e o contraste das obras realizadas. Apresentavam tanto obras em suporte mais tradicional (como a pintura e a escultura) quanto performances, instalações e happening em espaços não convencionais, permeadas por uma postura de rebeldia, típica de muitas das ações culturais da década de 1960. A Arte Povera foi um movimento complexo, que agregou elementos contrastantes e por vezes contraditórios. Os artistas realizaram trabalhos que se apropriavam de uma estética urbana, artificial e industrial (influenciados pelo futurismo, movimento igualmente italiano) mas também propunham obras que evocavam a presença da natureza, do orgânico, incluindo o universo animal, vegetal e mineral em suas poéticas. Desta forma, a Arte Povera reuniu o natural e o artificial, o urbano e o rural, a tradição local e a modernidade global, em uma trama rica de significados. A presença do corpo é primordial em muitas das obras presentes, retomando o ideal humanista do renascimento da centralidade do corpo humano. Alguns artistas do grupo realizam obras que dialogam diretamente com as tradições clássicas; Giulio Paolini apresenta uma fotografia do Ritratto di Giovane de Lorenzo Lotto, pintura de 1505 e no título levanta a relação entre o artista e seu modelo. Michelangelo Pistoletto, por sua vez, realiza a instalação Venus dos

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Retalhos . Nela está presente a réplica de uma Vênus Calipígia, representação típica do período helenístico em que a deusa é apresentada despindo-se de suas vestes. Em frente à escultura Pistoletto coloca uma enorme pilha de retalhos: panos de todas as cores, em um diálogo com o tecido carregado pela Vênus e trazendo um contraste nítido entre os distintos tempos, linguagens e técnicas da história da arte. Uma das mais fortes influências para a Arte Povera foi o dito teatro de vanguarda desenvolvido por grupos do mundo inteiro. Entre eles estava o Teatro da Crueldade , proposto pelo dramaturgo francês Antonin Artaud. Em sua principal obra - O Teatro e seu Duplo, escrita em 1935- Artaud defende que o principal elemento do teatro deve ser o corpo do ator, e propõe a ruptura das barreiras cênicas, dos textos rigorosamente engessados e da separação entre elenco e plateia. 18 Outra referência importante é o Poor Theatre , de Jerzy Grotowski. Já no próprio nome encontramos a convergência com a Arte Povera – ambos dizem-se pobres. Em um ensaio publicado em 1965, Grotowski diz que:

Independente do quanto o teatro se expanda e explore seus recursos mecânicos, tecnologicamente permanecerá sempre inferior ao cinema e à televisão. Portanto, proponho a pobreza no teatro. Ainda que nos conformemos com a planta do palco e auditório, para cada montagem é projetado um novo espaço para atores e espectadores. (...) A aceitação da pobreza no teatro, despojado de tudo que não é essencial a ele, nos revelou não apenas sua espinha dorsal, mas também as profundas riquezas que estão na verdadeira natureza desta forma de arte. 19

Ao sugerir um teatro despido dos efeitos e artifícios (cenário, figurino, iluminação, recursos visuais), Grotowski pretende construir um espetáculo mais autêntico e focado no que considera essencial: o corpo do ator e sua relação com o público. O grupo dos Estados Unidos The Living Theatre , organizado por Judith Malina e Julian Beck, também teve importante atuação artística na época e influência para todo o cenário cultural. Fundado em 1946, foram pioneiros no experimentalismo teatral e na ruptura das barreiras entre ator e plateia. Em 1970 o grupo esteve no Brasil, a convite do Teatro Oficina e teve 13 de seus integrantes

18 ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo . São Paulo, Martins Fontes, 2006. 19 GROTOWSKI, Jerzy : Em Busca de um Teatro Pobre.Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1971.

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presos em Ouro Preto. Acusado de portar maconha, o grupo foi encaminhado para Belo Horizonte e seus membros tratados como presos políticos. A reclusão causou mobilização internacional e após grande repercussão, foram expulsos do país. 20 Tais grupos buscavam a retomada da origem ritualística do teatro, como um espaço de catarse e envolvimento direto do público, explorando novas possibilidades de ocupação, novos espaços de permanência e linguagens experimentais e abertas. Tais elementos também fizeram-se presentes nas propostas da Arte Povera, e concomitantemente, na arte brasileira que desembocou em Do Corpo à Terra. Germano Celant teve um papel importante no desenvolvimento da Arte Povera e sua atuação expandiu as fronteiras da crítica de arte e explorou novos conceitos. A ideia de arte guerrilha- presente nos textos de Frederico Morais e fundamental para a compreensão das ações desenvolvidas em Do Corpo à Terra – foi apresentada por Celant em 1967. Celant iniciou sua trajetória artística em Gênova, como aluno de Eugenio Battisti, historiador que renovou paradigmas das tradições clássicas, estudando os aspectos rústicos e sombrios da produção artística italiana dos séculos XV e XVI. 21 No início da década de 1960 começou a trabalhar como crítico de arte em revistas italianas e aproximou-se da arte contemporânea, construindo com esta conexão, uma postura engajada e ativa na defesa das novas práticas artísticas. No artigo Arte Povera: Notas Para uma Guerrilha, publicado pela primeira vez em 1967 na revista Flash Art , Celant comenta a produção dos artistas da Arte Povera e sua relevância para a arte no mundo, contextualizando-os em relação a outros movimentos, como a pop arte e a arte conceitual e comentando-o a proximidade desta produção com o teatro pobre de Grotowski. Demonstra uma posição crítica com o sistema de arte vigente, que segundo sua visão, transforma obras em mercadorias e artistas em mão-de-obra alienada. Como forma de combater esta realidade, ele sugere que os artistas produzam uma “arte pobre”, com materiais desvalorizados, descartados e baratos. Celant neste momento diz que

20 A comunidade artística internacional fez uma grande demonstração de apoio ao grupo; foram enviados telegramas de John Lennon, Marlon Brando e Bob Dylan clamando pela libertação dos atores. Mais informações sobre o episódio estão em: MALINA, Judith . Diário de Judith Malina: O Living Theathe em Minas Gerais . Belo Horizonte, Secretaria do Estado da Cultura de Minas Gerais, 2008 e VANNUCCI, Alessandra : O Living Theatre em Ouro Preto e a Invenção do Ato Público , in Revista ArteFilosofia, julho de 2012, p.85. 21 Sobre a obra de Batistti, ver: MARINHO, Fernanda: Eugenio Battisti e o Léxico Conceitual e Historiográfico do Antirrenascimento . TESE- Unicamp IFCH 2013

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“Este artista, que foi anteriormente explorado, agora torna-se um guerrilheiro. Ele quer escolher as suas batalhas, pois possui as vantagens da mobilidade, para fazer ataques-surpresa – e não vice-versa” 22 . A menção do artista como guerrilheiro evoca a politização latente em suas ações e o desejo de construir uma arte que combata as explorações, alienações do trabalho e consumismo. Uma utopia que norteou também a produção artística brasileira do mesmo período, que ainda encontrava mais uma inspiração, no combate ao Regime Militar que vigorava. É possível perceber que o evento Do Corpo Á Terra vai ao encontro da Arte Povera, tanto com relação às ideias defendidas por Germano Celant, mas também na forma das obras produzidas pelos artistas do movimento – apresentadas em novos espaços, efêmeras, feitas de materiais desvalorizados e carregadas da relação entre a natureza e a cidade. Frederico Morais comenta, em entrevista, sobre seu contato com a Arte Povera e a crítica de Guermano Celant:

em outras oportunidades eu digo que na verdade quem primeiramente utilizou o termo arte guerrilha foi o Germano Celant, crítico da Arte Povera. (...) eu vinha acompanhando alguns dos trabalhos da Arte Povera, na medida do que conseguia ver naquela época. Eu podia não conhecer as obras principais, mas eu lia os textos. Na época que escrevi o texto (“Contra a arte afluente”) me escapou o nome do Celant. 23

Em 1967 o poeta Décio Pignatari redigiu um artigo que inaugura no Brasil a ideia da guerrilha artística. Intitulado “Teoria da Guerrilha Artística”, Pignatari declara que “nada é mais parecido que a guerrilha que o processo da vanguarda artística consciente de si mesmo” 24 . Defende a arte de vanguarda e aproxima sua prática às ideias políticas de combate e resistência. O artista argentino Julio Le Parc foi também um dos propositores da ideia de arte guerrilha. Autor de um trabalho marcado sobretudo pela influência da Op Arte e da Arte Cinética, ele não deixou de desenvolver posturas politizadas e críticas. Passou por um período na França e integrou o Groupe de Recherche d'Art Visuel (GRAV), que explorava a arte partindo dos efeitos visuais, ilusões de ótica e

22 CELANT, Germano. Arte povera, Milano, Mazzotta, 1969. (Tradução própria) 23 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015. 24 PIGNATARI, Decio. Teoria da Vanguarda Artística. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 4 de junho de 1967.

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tecnologias. Em 1968 Le Parc escreveu o texto Guerrilha Cultural? Apresentando reflexões sobre a responsabilidade dos artistas e intelectuais em tempos de crise. Ele aponta que é função do artista realizar “uma espécie de guerrilha cultural contra o estado atual das coisas, sublinhar as contradições, criar situações onde as pessoas reencontrem sua capacidade de produzir mudanças.” 25 Por sua vez, o artista e historiador da arte uruguaio Luis Camnitzer realizou em Nova Iorque em 1969 a conferência Arte Contemporânea Colonial que foi transcrita e publicada no jornal Marcha de Montevidéu em 1970. Camnitzer afirma que:

Há determinados casos em que a guerrilha urbana atinge níveis estéticos, transcendendo amplamente a função puramente política do movimento. É quando o movimento alcança esse estágio que ele realmente se encaminha para a criação de uma nova cultura, em vez de simplesmente fornecer novas formas políticas a velhas percepções. 26

Para Camnitzer, os movimentos guerrilheiros, mesmo desconhecendo os propósitos estéticos, podem oferecer modelos e possibilidades a serem exploradas pelos artistas que pretendem romper a relação colonialista e de dependência com as potências econômicas. É importante também situar a ideia de guerrilha no contexto político que o Brasil atravessou a partir do golpe e da instauração do Regime Militar, em 1964. Com o autoritarismo e repressão dos movimentos sociais, parte dos grupos de esquerda no Brasil aderiram à guerrilha como prática de combate à ditadura. Após o Ato Institucional n. 5 , decretado pelo governo em 1968, o ambiente de tensão tornou-se ainda maior e os movimentos guerrilheiros - mesmo muito combatidos pelas autoridades - ocuparam espaço, tanto nas cidades quanto nos campos. Tais iniciativas foram em grande parte inspiradas pelas experiências de Cuba e da China, que construíram governos socialistas a partir de guerrilhas. Movimentos como a Guerrilha do Araguaia (que iniciou suas ações em 1967, mas só foi completamente exterminada em 1974) e acontecimentos como sequestros de embaixadores e assaltos à bancos movimentaram o cenário político brasileiro, combatendo o regime

25 LE PARC, Julio. Guerrilha Cultural? (1968), in: FERREIRA, Gloria, COTRIM, Cecília (org.) Escritos de Artistas: Anos 60/70 . Rio de Janeiro, editora Jorge Zahar, 2009 p. 202. 26 CAMNITZER, Luis. Arte Contemporânea Colonial . In: FERREIRA, Gloria, COTRIM, Cecília (org). Idem.

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militar- mesmo que por vias ilícitas e violentas- e buscando a construção de uma sociedade com valores de justiça e igualdade. 27 Frederico Morais comenta que:

Eu usei essa expressão porque o termo vanguarda é um termo de guerra. É o grupo que vai na frente na batalha. E são também as primeiras vítimas. Com o Vietnã eu sinto que criou essa ideia de uma guerrilha. Porque a guerra tradicional tem um molde dos exércitos, dos avanços, etc. Mas no Vietnã os combatentes usaram táticas de guerrilha e derrotaram toda a tecnologia dos Estados Unidos, os aviões modernos. Criavam armadilhas. No caso dessa arte de guerrilha, ela também funciona nesse sentido. Pois o artista guerrilheiro trabalha exatamente com o elemento surpresa, as circunstâncias do espaço e do momento, táticas para envolver o espectador. Inclusive a própria ideia do medo. Como quando você entra numa favela... eu acho que o medo é muito importante como parte do processo de criação. Em face do medo que você tem que tomar iniciativas, tem que usar sua sensibilidade e sua percepção. Num lugar perigoso você tem que olhar mais, ouvir mais, cheirar mais, potencializar todos os seus sentidos para poder enfrentar os perigos. (...) Em 1969, 70, era o auge da ditadura. E a guerrilha agia, no Araguaia, mas também no Rio de Janeiro, tinham assaltos a bancos, etc. Era o momento da arte pensar dentro desse contexto. 28

Um dos principais articuladores da ideia da guerrilha no Brasil foi o militante e ex-deputado do Partido Comunista Carlos Marighella, que escreveu em 1969 o importante Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano. O texto visava inspirar qualquer cidadão a tornar-se um guerrilheiro para contribuir no combate à ditadura e ensinar práticas de guerrilha- a preparação técnica, o manejo de armas, os espaços de luta e a mobilidade. Para Marighella:

O guerrilheiro urbano tem que ter a iniciativa, mobilidade, e flexibilidade, como também versatilidade e um comando para qualquer situação. A iniciativa é uma qualidade especialmente indispensável. Nem sempre é possível se antecipar tudo, e o guerrilheiro não pode deixar se confundir, ou esperar por ordens. Seu dever é o de atuar, de encontrar soluções adequadas para cada problema que encontrar, e não se retirar. É melhor cometer erros atuando a não fazer nada por medo de cometer erros. Sem a iniciativa não pode haver guerrilha urbana. 29

27 Para mais detalhes da guerrilha no Brasil durante o regime militar ver: GORENDER, Jacob Combate nas Trevas. São Paulo, Editora Ática, 2003. 28 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015. 29 MARIGHELLA, Carlos . Manual do Guerrilheiro Urbano e outros Textos . Lisboa, Editora Assírio & Alvin, 1974, p.20.

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Pode-se perceber nas características descritas por Marighella da guerrilha urbana elementos que a aproximam de práticas artísticas como a performance e o happening : a surpresa, a mobilidade e a ocupação de espaços improvisados e inesperados. Neste sentido, arte e política encontram-se conectadas e constroem uma linguagem de sintonia, especialmente nas propostas desenvolvidas no final da década de 1960 e início de 1970. Este contexto torna-se presente em toda a realização do evento Do Corpo à Terra. Nesse momento o Brasil viu surgir uma geração de Artistas Guerrilheiros , também denominados pelo jornalista Francisco Bittencourt de Geração Tranca- Ruas . Antônio Manuel, Cildo Meireles e Artur Barrio são artistas lembrados por suas ações da época, que causavam surpresa no expectador e questionavam o sistema de arte vigente. Para Artur Freitas:

no que diz respeito aos artistas “guerrilheiros”, é preciso ter em mente que boa parte de suas ações consistiam em desdobramentos radicais, muitas vezes agressivos, dos limites fenomenológicos e éticos já propostos por artistas de origem neoconcreta. Questões como o dado ambiental, a plurissensoralidade, ou o corpo como obra – fundamentais na poética de Lygia Clark e Oiticica – foram levadas, na sequência, a condições de extrema negatividade e quando não transformadas mesmo em outras questões, como nos casos da precariedade, do circuito e da violência. 30

A ideia da guerrilha foi, portanto, presente nos textos críticos e nas práticas artísticas do final da década de 1960. É importante frisar que nem toda a produção artística brasileira envolveu-se com essa prática – bem como com a própria vanguarda. A guerrilha também permaneceu como uma espécie de analogia para muitos dos artistas, uma vez que foram poucos que engajaram-se diretamente como guerrilheiros – como Carlos Zílio e Sérgio Ferro. Mas é possível perceber que a guerrilha foi uma ideia que direcionou, inclusive o evento Do Corpo à Terra em sua dinâmica e seus reflexos.

30 FREITAS, Artur. Arte de Guerrilha: Vanguarda e Conceitualismo no Brasil . São Paulo: Edusp, 2013, p. 68.

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CAPÍTULO 2. O CORPO E A TERRA: ESPAÇOS PARA A CRIAÇÃO E A EXPERIÊNCIA

Um grande desafio para um pesquisador do campo da história da arte é explicar o que foi Do Corpo à Terra . Tratou-se de uma exposição? Uma festa? Uma ação política? Uma intervenção na cidade? O evento carregou inúmeras características que parecem distintas do que se presencia regularmente nas exposições de arte. Muitos dos seus elementos parecem vir de movimentos políticos, ações espontâneas e até mesmo festividades e tradições. Uma forma de chamar o evento – presente entre alguns dos artistas e no discurso do próprio Frederico Morais – é Manifestação Do Corpo à Terra . A palavra “manifestação” traz um sentido político evidente, como o ato de tornar público e expressar uma opinião, ideia ou posição. Pensar em Do Corpo à Terra como uma manifestação nos permite compreende-lo como um espaço de posicionamento e expressão dos artistas e dos espectadores. Do Corpo à Terra nos oferece uma extensa possibilidade de olhares, aproximações e análises. O título do evento, escolhido por Frederico Morais, já carrega diversas questões e anuncia com precisão as propostas realizadas. Corpo e terra - palavras-chave para o desenvolvimento da arte contemporânea no mundo todo - foram escolhidas cuidadosamente para denominar a mostra e constroem um vínculo com as diversas realizações artísticas daquele momento. Primeira palavra citada no título, o corpo evoca um elemento presente sistematicamente na arte ocidental desde o renascimento. Ao longo da história, o corpo humano serviu de modelo e referência para as suas inúmeras representações, na pintura, escultura, desenho, gravura e posteriormente na fotografia. Sua presença nas obras de arte torna possível a construção de conceitos como a beleza, o erótico, a passagem do tempo e a morte. A partir do século XX o corpo deixa de servir apenas como tema de representação e torna-se também suporte, um espaço onde a obra se realiza. Nas décadas de 1910 e 1920 o movimento dadaísta integrou esta empreitada, quando propôs alguns projetos que utilizaram o corpo e a presença do artista como o espaço de realização da obra, esboçando as primeiras performances e questionando com isso as linguagens tradicionais. Os Estados Unidos mergulharam nesta questão na década de 1950, com o desenvolvimento do Expressionismo Abstrato, sobretudo a partir do trabalho de Jackson Pollock. Suas

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pinturas colocaram a gestualidade corporal em evidência e incorporaram o ritualismo e o movimento na obra, expandindo seus limites e possibilidades. Em 1960 o artista francês Yves Klein realizou um projeto que chamou de Antropometrias , onde modelos nus embeberam seus corpos em tinta azul e imprimiam suas marcas em enormes telas esticadas no chão, em ações que romperam com as estruturas tradicionais de suporte e técnica. Durante tais pinturas/performances uma orquestra ainda executava uma sinfonia composta pelo artista e uma plateia assistia de perto a ação, inovando ainda mais o formato produtivo das obras. Em 1961 o artista italiano Piero Manzoni inseriu sua assinatura no corpo de mulheres, criando ready-mades vivos e explorando as possibilidades de apropriação e seus paralelos com a autoridade e a dominação. Ao longo da década de 1960 outros artistas passaram a realizar sistematicamente propostas que utilizavam seus próprios corpos como suporte e construíam linguagens com suas ações físicas, numa tendência que foi denominada body art . Entre suas propostas, a body art buscava desconstruir o distanciamento e a frieza do minimalismo e evocar a premissa presente em Duchamp de que “ tudo pode ser arte”. 31 O corpo dos artistas oferecia meios para se abordar várias questões, incluindo identidade, gênero, sexualidade, violência, política e sociedade. Dente os diversos artistas importantes que realizaram propostas da body art nas década de 1960 e 70 é possível destacar Bruce Nauman, Chris Burden, Yoko Ono, Dennis Oppenheim, Marina Abramovíc e muitos outros. O Fluxus foi um movimento artístico internacional - batizado com este nome em 1961 pelo artista George Maciunas – que também incorpora o corpo como importante elemento de integração da arte. Envolveu artistas, escritores, músicos e pessoas de áreas diferentes, que trabalhavam de maneira fluida e colaborativa. O impulso inicial para a formação do Fluxus foi o trabalho do músico e compositor John Cage – muitos dos seus artistas frequentaram um curso por ele ministrado. Diversos elementos explorados por Cage (a aleatoriedade, a incorporação do acaso, a participação do público) foram fortes bases para a construção da poética do Fluxus. O maior fundamento do Fluxos é a ideia de que a própria vida pode ser vivenciada como arte. Com isso, a presença marcante de jogos performáticos, obras

31 DEMPSEY, Amy, “Body Art” In: Estilos, Escolas, e Movimentos , São Paulo, Cosac Naify, 2003, p. 244

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participativas, arte postal e interações multidisciplinares. Participaram do movimento os artistas Dick Higgins, Alison Knowles, Yoko Ono, entre outros. Para a historiadora da arte Amy Dempsen:

A obra do Fluxus foi do absurdo ao mundano, passando pelo violento e incorporou muitas vezes elementos de crítica sociopolítica, com a finalidade de ridicularizar as pretensões do mundo da arte e fortalecer o espectador e o artista. O conceito de “faça você mesmo” permeou a obra do Fluxus, boa parte da qual existiu sob a forma de orientações escritas a serem levadas adiante por outros. 32

O Fluxus circulou por diversos países do mundo, disseminando suas propostas artísticas. No Brasil, artistas ligados ao movimento trocaram correspondências com o artista pernambucano Paulo Brusky. Também estabeleceram contato com o curador Walter Zanini e enviaram pelo correio trabalhos que constituem o acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). 33 No Brasil o debate e as experiências com o corpo surgem com consistência na obra de diversos artistas da década de 1960. O movimento neoconcretista, mesmo mantendo o legado da abstração, evoca a força da presença do corpo na obra de arte e suas possibilidades de conduzir experiências libertárias. A artista Lygia Clark realizou propostas – como a série Bichos - que convidam o espectador para próximo da obra, tornando-o agente da ativação de seus múltiplos sentidos. Já Lygia Pape em 1968 realizou a proposta Divisor , onde um imenso pano com buracos é preenchido por uma multidão. Pape explora a dimensão social do corpo, que movimenta coletivamente, atravessados pelo tecido e unidos na mesma estrutura. Antônio Manuel colocou literalmente o seu próprio corpo como obra, na intervenção que realizou durante a abertura do XIX Salão Nacional de Arte Moderna no MAM-RJ. Durante a vernissage o artista ficou nu, causando espanto geral e repercussões na imprensa 34 . No trabalho de Hélio Oiticica a presença do corpo do espectador é evocada com constância, desde os Bólides , Penetráveis e Parangolés . Mas no trabalho de 1968, Seja Marginal, Seja Herói, o corpo toma dimensões ainda

32 DEMPSEY, Amy: Estilos, Escolas e Movimentos. São Paulo, Editora Cosac Naify, 2010, p. 229. 33 Sobre o movimento Fluxus e sua presença nos museus consultar LIMA, Ana Paula Felissicimo: Fluxus em Museu, museus em fluxo . Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, IFCH, ano de obtenção 2009. 34 A imprensa carioca deu bastante atenção ao ocorrido, dedicando diversas páginas à proposta de Antônio Manuel. Ver em FREITAS, Artur, Op Cit. p. 285-302

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mais políticas e engajadas. Oiticica estampa em uma bandeira o cadáver do famoso bandido Cara de Cavalo , morto pela polícia do Rio de Janeiro em 1964 e embaixo da imagem insere a frase “Seja marginal, seja herói”. O corpo do homem morto torna-se imagem de resistência e luta e a marginalidade torna-se a postura política do heroísmo 35 . Frederico Morais neste momento atua na crítica de arte em total defesa de uma arte integrada ao corpo do artista e do público. O já mencionado artigo Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da “Obra” enuncia já no título a importância da presença do corpo como o motor que ativa, realiza e conecta a obra, levando-a em sentido oposto à arte afluente, automática e mercadológica.

Em Oiticica, como em Lygia Clark, o que se vê é a nostalgia do corpo, em retorno aos ritmos vitais do homem, a uma arte muscular. Um retorno àquele “tronco arcaico” (Morin), natural, como menciona Friedmann. Arte como cosa corporale (...) Em ambos artistas brasileiros, a “obra” é frequentemente o corpo (“a casa é o corpo”), melhor, o corpo é o motor da obra. Ou ainda, é ele que a obra leva. À descoberta do próprio corpo. O que é de suma importância, numa época em que a máquina e a tecnologia alienam o homem não só de seus sentidos, mas de seu próprio corpo. 36

Neste sentido, Do Corpo à Terra participa e compartilha do legado da época, dialogando com este conjunto de obras, movimentos e tradições que evocam a presença do corpo do artista e do público e com suas ações constroem uma postura crítica, experimental e de resistência. As diversas obras realizadas no evento propunham transportar o corpo do espectador para um estágio de consciência crítica e sensibilidade despertada. Propostas presentes em Do Corpo à Terra como as Trouxas Ensanguentadas do Artur Barrio e Tiradentes: Totem- Monumento ao Preso Político de Cildo Meirelles carregam questões relacionadas ao corpo com radicalidade e impacto, expondo a morte, a putrefação e a precariedade e explorando suas possibilidades estéticas e políticas. Também o Manifesto do Corpo à Terra , publicado por Frederico Morais no evento, aborda a presença do corpo na arte com a presença de todos os seus sentidos na realização e interação e seu funcionamento orgânico interagindo e integrando as obras.

35 CARNEIRO, Beatriz Seigliano. Caracara Cara de Cavalo . São Paulo, Revista Verve, 25: 2014, p.47. 36 MORAIS, Frederico. Op Cit.1970. p.20

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A arte de hoje reflete uma nostalgia do corpo. O corpo e sua ecumenidade, sua relação com os ritmos fundamentais da própria vida. Ritmos naturais e orgânicos. O corpo como um pulmão da existência. Sístole e diástole – respirar e transpirar. O sangue como elemento de comunicação de todos os homens. Como o suor. O corpo – cabeça, tronco e membros. Todos os sentidos e não apenas a visão. Um código tátil-olfativo. Uma gramática gustativa. Uma linguagem acústica. Os demais sentidos determinam espaços circulares, por isso mesmo dinâmicos. A mão que apalpa, o corpo que anda, olfato – imaginar. E participar. 37

A terra , segundo conceito trazido no título do evento, pode ser compreendida de várias maneiras. A terra como espaço que a obra ocupa (o museu, a cidade, a sociedade), a terra como natureza, como lugar da semeadura, do plantio, da colheita e da fartura. Também como paisagem, expansão e universalidade, o planeta habitado por tudo e por todos. Uma das principais transformações na arte trazidas pela modernidade foi a expansão dos espaços para a criação artística e de ocupação das obras de arte. A primeira vanguarda modernista do século XIX - o Impressionismo – inovou quando os seus artistas deixaram de produzir apenas em seus ateliês e passaram a pintar ao ar livre, explorando os efeitos da luz na natureza e ampliando as possibilidades pictóricas. Mas no século XX alguns artistas começam a explorar com mais consistência as possibilidades do espaço e levam suas obras para lugares diferentes do museu, da galeria, do salão e do ateliê. No final da década de 1960 surgiu nos Estados Unidos uma corrente denominada land art , que assumiu o meio ambiente e a natureza como matéria prima e como espaço para a realização de obras. Esta tendência surgiu em consonância com um crescente interesse pela ecologia e a preocupação com o meio-ambiente e as consequências da poluição no planeta. Neste contexto, artistas deslocaram seus trabalhos para fora das cidades e criaram diversas propostas em locais afastados e resguardados. As obras envolviam escavações, esculturas e desenhos com materiais orgânicos e naturais, experiências com a água, com tempestades, evocando a paisagem e os entornos. Em 1968 o artista Robert Smithson organizou na Dwan Gallery, em Nova Iorque, a exposição Earth Works , que tornou-se um marco para o movimento. Lá foram expostos os registros

37 MORAIS, Frederico. Manifesto do Corpo à Terra , publicado em TRISTÃO, Mari’Stella. Da Semana de Vanguarda (I). Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 28 de abril de 1970, p.5.

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documentais e fotográficos de diversas obras realizadas em espaços naturais, de artistas como Sol LeWitt e Walter de Maria. Frederico Morais comenta a escolha do nome do evento:

Chamei de Do Corpo à Terra porque tinha a questão da Body Art, a arte performática, e também a ideia da Earth Art, ou Land Art, trabalhos com a terra, que só podiam ser realizados fora. 38

Em todo este contexto Do Corpo à Terra sugere que as propostas corporais realizadas eclodam e desemboquem nos espaços. Que a arte caminhe “do corpo à terra”, em um movimento que o corpo da obra, do artista e do público não se tornem isolados e distantes, mas participem, interajam e transformem os lugares que ocupam.

38 Depoimento de Frederico Morais à autora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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2.1. Objeto e Participação e Do Corpo à Terra

A historiografia da arte muitas vezes confunde Do Corpo à Terra com uma mostra artística que aconteceu simultaneamente no Palácio das Artes: a exposição Objeto e Participação. Para Frederico Morais, trataram-se de dois eventos absolutamente distintos – enquanto Do Corpo à Terra ocupou o Parque Municipal e a Serra do Curral, Objeto e Participação era uma mostra aos moldes mais tradicionais, na Galeria do Palácio das Artes. Porém estavam integrados :ambos aconteceram na mesma época e foram realizados sob a curadoria de Morais, convidado pela então diretora da Palácio das Artes Mari’Stella Tristão. Os eventos, denominados também pela imprensa como Semana de Vanguarda seriam uma espécie de extensão do Salão de Ouro Preto, ocorrido no feriado da Inconfidência Mineira e naquele ano especificamente transferido para o Palácio das Artes em comemoração de sua abertura. Apesar da proposta ter sido elaborada por Frederico Morais, Mari’Stella Tristão também cumpriu um papel fundamental nos eventos; ela não apenas convidou Morais a assumir a curadoria, mas também organizou os recursos e a produção da mostra, garantindo a estrutura e o funcionamento da dinâmica proposta. Ela também redigiu dois textos no Jornal Estado de Minas comentando Do Corpo à Terra, colaborando para a sua divulgação e acesso. Segundo Frederico Morais:

naquele ano, o tema do salão era escultura. A primeira coisa que eu fiz foi juntar escultura e objeto. Pois já havia na arte brasileira uma discussão sobre o conceito de objeto. O Ferreira Gullar já tinha publicado a Teoria do Não Objeto, ainda ligado ao neoconcretismo. O Helio Oiticica também discutia a questão do objeto. Pois o Objeto não era mais pintura, não era desenho, não era escultura, era uma coisa nova, uma nova categoria. Mas acabou se transformando em uma não-categoria, pois era a negação das outras. 39

Muitas foram as inovações realizadas por ambos os eventos: pela primeira vez os artistas foram convidados a criar propostas inéditas para a mostra e não a expor uma obra já anteriormente realizada. Para isso, os artistas que vieram do Rio de Janeiro receberam passagens, hospedagens e todos os artistas receberam uma ajuda de custo para financiar seus projetos. Os recursos para tal

39 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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assistência vieram da Hidrominas – empresa pública de turismo gerida pelo estado de Minas Gerais que apoiou a mostra. Da mostra Objeto e Participação participaram desde artistas renomados e reconhecidos nacionalmente, como Franz Weissmann e Carlos Vergara até artistas do cenário mineiro, como Terezinha Soares e José Ronaldo de Lima. Outros nomes são Claudio Paiva, George Helt, Guilherme Vaz, Ione Saldanha, Yvone Etrusco Junqueira, Manoel Serpa, Marcello Nitsche, Nelson Leirner, Odila Ferraz, Dileny Campos, Orlando Castaño, Thereza Simões, Umberto Costa Barros e Manfredo de Souzanneto. Uma grande diversidade de técnicas, linguagens, estilos e propostas estiveram presentes na mostra. Terezinha Soares é uma artista mineira que teve uma atuação muito importante no cenário artístico de Belo Horizonte nas décadas de 1960 e 1970; seus trabalhos foram pioneiros ao abordarem o feminismo e problematizarem o corpo e a sexualidade da mulher. Na mostra Objeto e Participação , Soares apresentou a obra “Ela Não Me deu Bola” (imagem 1). Tratou-se de uma instalação com três camas com as cores de times de futebol em seus colchões. O título da obra já é sugestivo e conecta o universo do futebol com as relações amorosas. Sua proposta traz à tona a presença do corpo e da sexualidade como elementos estéticos e conceituais da obra, levantados de maneira clara e longe dos tabus e constrangimentos. O estádio e a cama tornam-se nesta obra espaços similares; tanto o sexo quanto o jogo de futebol são práticas que envolvem estratégia, contato físico, sensações corporais e emoções. Em entrevista para Marília Andrés Ribeiro, Terezinha Soares lembra que:

Nesse evento apresentei Camas. Eu não focava, nos meus trabalhos, apenas sexo, mas usando três camas como meio de expressão para contar a história do nosso futebol, naturalmente, ele aí se fez também presente no título: “Ela me deu a bola”. Cada cama tinha o corpo de uma mulher recortada em madeira, sobre colchões com listras coloridas nas cores dos três times escolhidos. Quando as tampas se abriam, apareciam os colchões e, no avesso das tampas, rostos de jogadores, técnico e frases escritas. A primeira cama apresentava a nossa seleção canarinho, verde, amarelo e azul. Rostos de Pelé, Tostão, e ainda cinco estrelas no azul. A segunda mostrava o Flamengo representado por Yustrich, como se fosse o próprio diabo, enorme, em vermelho e preto, e a frase: “Yustrich, meu bem”. A terceira cama representava o Atlético, preto e branco, e a frase: “Ela me deu a bola.” Escolhi esse trabalho para a exposição Objeto e Participação por vários motivos. Além de objeto, ele, na verdade, foi o primeiro em que eu coloquei a obra de arte no chão. Nada melhor para representar o corpo que a cama. Ela é o seu

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berço, nela você encontra prazer, descanso e sonhos. É onde nasce a vida e encaramos a morte. 40

Imagem 1: Terezinha Soares, Ela Não Me deu Bola , 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

José Ronaldo de Lima, também mineiro, estudou Sociologia na década de 1960 e foi editor de livros escolares e proprietário da Livraria do Estudante em Belo Horizonte. Artista autodidata, participou de Salões em Belo Horizonte e teve obras expostas na X Bienal de São Paulo em 1971. Ele participou dos dois eventos, tanto o Objeto e Participação quanto Do Corpo à Terra. No primeiro, seu trabalho consistia em nove caixas de madeira, separadas a dois metros de distância (imagem 2). Em cada uma delas o artista colocou uma essência diferente, como jasmim, lavanda, fumo, orégano, entre outras. O artista com este trabalho realiza uma ruptura com a perspectiva puramente visual da obra de arte, estabelecendo parâmetros mais abrangentes para a sua criação. O espectador, ao entrar em contato com a obra, ampliava sua percepção sensorial, explorando não apenas a visão, mas também o olfato. Lima passou um tempo na galeria e registrou a percepção e as reações dos visitantes à sua obra. Redigiu ao todo nove observações, descrevendo a surpresa e em certos momentos o estranhamento do público.

40 SOARES, Terezinha. Entrevista à Marília Andrés Ribeiro . Belo Horizonte, Revista da UFMG, n.1 e 2, dezembro de 2012, p.137.

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Imagem 2: José Ronaldo de Lima, Caixas Olfativas , 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

O artista mineiro George Helt realizou uma espécie de intervenção na entrada da galeria do Palácio das Artes. Ele estendeu uma faixa de papel contendo marcas de seus pés, impressas em tinta litográfica (imagem 3). O título da obra “Vamos caminhar?” carrega um convite, uma proposta de um percurso de interação e experiência no espaço expositivo. A obra sugere ao espectador que com ela interaja, caminhando sob as pegadas do artista. Nesse sentido, simbolicamente o artista e o público ocupam um mesmo lugar, compartilhando de um mesmo espaço físico e incorporando uma mesma presença. A participação do público é fundamental para que a experiência da obra seja concretizada e a presença do corpo do artista e do espectador é evidenciada em cada pegada exibida, como um marco presente e reforçado no espaço.

Imagem 3: George Helt, Vamos Caminhar? , 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

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A artista carioca Thereza Simões já integrava o grupo da vanguarda do Rio de Janeiro e havia participado de exposições como a Nova Objetividade Brasileira e o Salão da Bússola. Na mostra Objeto e Participação a artista desenvolveu uma série de carimbos, para serem usados nas paredes da galeria, nas portas e até mesmo no corpo dos visitantes (imagem 4). Os carimbos continham mensagens como Verbotten , Fragile e Act silently – a última atribuída a Malcom X, um dos maiores ativistas negros da história dos Estados Unidos. O uso de carimbos dá ao público uma liberdade direta de interagir com a obra e escolher como utilizar o instrumento e onde estampar os dizeres presentes. A reprodutibilidade da obra é trazida à tona – ao passar pela galeria o público pode reproduzir as imagens (ou no caso as palavras) propostas pela artista de forma ilimitada, disseminando a mensagem proposta. O caráter político fica evidente com os dizeres que o carimbo reproduz e a escolha de frases de um ativista deixa um ar de militância subversiva à proposta, pertinente ao contexto brasileiro do período.

Imagem 4: Thereza Simões, Carimbos, 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

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O mineiro Dileny Campos realizou uma proposta artística que dialogava diretamente com a arquitetura e a cidade. Em frente à entrada do Palácio das Artes o artista colocou duas placas de madeira: a primeira delas apontava para a rua com a palavra “paisagem” escrita. Já a segunda placa apontava para o vão que existe abaixo do edifício, dizendo “sub paisagem”(imagem 5). O olhar para a cidade mostra-se presente nesta obra e a atenção ao que se apresenta nas entrelinhas dos espaços trás um ar de questionamento e proposição ao trabalho. Ao apontar para a rua e para o vão ali presente, Campos convida o espectador a observar o que tem por debaixo do prédio, e a realizar atravéz deste ato um aprofundamento do seu olhar e uma atenção ao que não está explicito e escancarado nas paisagens urbanas.

Imagem 5: Dileny Campos, Paisagem e Subpaisagem, 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

Carlos Vergara, um artista nascido no Rio Grande do Sul mas formado no Rio de Janeiro, já realizara anteriormente projetos acompanhados por Frederico Morais. Seu trabalho proposto na mostra foi uma série de figuras recortadas em papelão, com o formato de seres humanos, colocadas sobrepostas umas às outras (imagem 6). O trabalho possui um aspecto formalista, com a repetição das figuras, mas explora também a estética da precariedade, com o uso do papelão. Os múltiplos seres humanos, alinhados e voltados para a mesma direção nos fazem

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pensar na massificação produzida pela sociedade de consumo. Tal temática pode aproximar a obra da Pop Arte.

Imagem 6: Carlos Vergara, Sem Título , 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

Franz Weissmann, artista austríaco que viveu no Brasil, foi um dos maiores nomes da escultura na época e também integrou a exposição. Seu trabalho é distinto das experiências de vanguarda realizadas pela maioria dos artistas participantes, mas sua presença nos mostra justamente que a produção artística não estava necessariamente rompida com as questões construtivas e formalistas. A obra apresentada (imagem 7) estava localizada na divisão entre o Palácio das Artes e o Parque Municipal. Com isso, a obra incorpora a paisagem externa: árvores, gramados, bancos e pessoas tornaram-se visíveis por trás da estrutura linear e geométrica da escultura de Weissmann. O trabalho nos lembra um desenho no espaço e faz parte de uma investigação presente em seus projetos de esculturas habitáveis.

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Imagem 7: Franz Weissmann, Labirinto Linear, 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

Do Corpo à Terra foi a exposição que aconteceu fora do museu – especialmente no Parque Municipal. Apenas a obra de Helio Oiticica e Lee Jaffe foi realizada fora do Parque, na Serra do Curral. Frederico Morais, em depoimento, comenta sobre a sua trajetória, sua formação e relaciona a escolha de realizar Do Corpo à Terra no Parque Municipal como algo que se incorpora em sua própria história de vida:

Eu sou autoditata, não terminei sequer o curso científico. Eu saí da escola pois a situação da minha família piorou e eu precisava trabalhar. Frequentei por um tempo a escola noturna, mas dormia a maior parte das aulas. Alguns anos após a morte do meu pai minha família passou graves dificuldades. Eu virei vendedor ambulante, camelô, vendia doce de leite no parque, tanto que quando eu fiz Do Corpo à Terra eu acho que não foi por acaso que eu fiz no Parque Municipal, pois eu passei dois ou três anos vendendo doce de leite ali, com uma vasilinha de madeira e eu conhecia cada pedacinho daquele parque. A gente sempre ao criar algo traz também as situações da nossa vida. Eu ia à pé de Santa Teresa –morei na rua São Gotardo, perto de um hospital de meningite onde meu pai morreu - até o Colégio Arnaldo, atravessava três bairros, sozinho. O colégio era católico e eu era obrigado a ir à missa de domingo, mas domingo era o dia que eu mais vendia doce de leite e eu não queria perder essa chance. (...) E sobre o Parque Municipal, naquela época ele era enorme, quase o dobro do tamanho de hoje. E havia uma parte do parque meio vazia, perigosa. Eu tinha medo de ser assaltado lá. E tinha o Rio Arrudas, que passava por lá. E ficou uma memória daquela época. Tinha também um ringue de patinação, eu cheguei a ter patins e tentava andar por ali e eu tinha certas estratégias pra tentar vender mais rapidamente o doce, me aproximava de casais de namorados. 41

41 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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A experiência nostálgica relatada por Morais pode ser vista como um propulsor que o levou, como curador da exposição a explorar o território do Parque e suas possibilidades artísticas e criativas. As obras lá realizadas exploraram com consistência o espaço e inseriam-se na dinâmica do Parque, por vezes questionando a ordem vigente e por vezes afirmando suas características. Frederico Morais teve uma atuação ampla no evento: foi simultaneamente propositor, curador, crítico de arte e artista. Desta forma, as posições rígidas e as funções claramente definidas foram diluídas ao longo do evento.

Imagem 8: Volante da divulgação do evento, 1970. Acervo Pessoal de Frederico Morais.

Ao contrário da mostra Objeto e Participação , que teve uma abertura marcada no Palácio das Artes com vernissage , os trabalhos realizados em Do Corpo à Terra aconteciam em dias e horários diferentes. Tanto o público quanto o próprio curador do evento não conseguiram presenciar o momento de realização de todas as propostas, pois algumas aconteciam simultaneamente. Esse elemento da imprevisibilidade do momento de realização das obras novamente remete às práticas guerrilheiras: o público, a crítica e o curador poderiam ser surpreendidos com a realização de uma obra em um momento inesperado. As obras realizadas em Do Corpo à Terra tinham em comum o caráter efêmero; permaneciam em seu local de realização até serem naturalmente destruídas, ou retiradas. Muitas sofreram modificações com a participação do público e algumas foram diretamente interferidas pelas autoridades do Parque: a plantação de Milho da Lótus Lobo foi destruída antes mesmo de germinar. A obra de

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Artur Barrio chamou a atenção de autoridades estaduais e sofreu a interferência do Corpo de Bombeiros e posteriormente da Polícia Militar. O artista Alfredo José Fontes realizou uma obra que consistia em caixas de madeira pintadas, dispostas na entrada do parque (imagem 9). Tais engradados lembravam armadilhas para capturar animais selvagens. Tratavam-se de objetos recolhidos do uso cotidiano, compostos por madeira comum, com um aspecto de precariedade que faz lembrar as propostas da Arte Povera. Segundo Frederico Morais, os engradados “foram definidos pelo artista como metáforas de comportamento político: esquerda, direita, volver”.42 O artista emprega diretamente práticas guerrilheiras em sua poética, ao criar literalmente armadilhas. Além disso problematiza os posicionamentos políticos polarizados da época, a tensão entre esquerda e direita e as disputas ideológicas, tão presentes no cotidiano do mundo durante a guerra-fria.

Imagem 9 : Alfredo José Fontes, Opção III ou Volver , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

O artista mineiro Dilton Araújo realizou duas propostas em Do Corpo à Terra ; a primeira delas consistiu em lançar pelo Parque Municipal pedras de cal, tingindo de branco a grama e a paisagem (imagem 10). Essa ação pode ser vista como uma performance ou um happening , prática já empregada pelo artista em propostas anteriores e que carregava um espírito de novidade na época. A obra pode abrir caminhos para uma leitura política – vista como uma referência aos confrontos em que manifestantes atiravam pedras nos policiais. Mas também traz

42 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco Radical da Arte Brasileira. Belo Horizonte, Itaú Cultural, 2001 (catálogo de exposição).

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uma experiência estética, com a investigação de materiais e suas interações com as ações do artista e o território por ele ocupado. A cor branca das pedras, em contraste com o verde da grama trazem um impacto visual ao público e um sentido lúdico, lembrando a neve dos países frios.

Imagem 10 : Dilton Araújo, Sem Título , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

Sua outra proposta foi realizada em conjunto com Luciano Gusmão e explorava ainda mais as possibilidades do território do Parque Municipal. Juntos, os artistas demarcaram o território do parque com cordonetas. A partir das divisões, identificavam áreas livres e áreas de repressão. Este trabalho posicionou-se de maneira explicitamente política, ao reforçar o momento de repressão que atingia o Brasil com o governo militar; evoca o contraste entre locais onde a liberdade pode ser vivenciada e outros onde o autoritarismo impera. A obra não possui registro fotográfico, pois foi rapidamente desfeita pelos funcionários do Parque; segundo Frederico Morais, enquanto os artistas cercavam o parque em uma ponta, os funcionários imediatamente retiravam as marcações colocadas. 43 Luciano Gusmão – artista, crítico e professor mineiro – realizou também uma obra que envolve elementos da arte conceitual e da investigação do território. Ele posicionou abaixo de uma palmeira do Parque, um espelho retangular (imagem 11). O público podia, através da obra, perceber o reflexo da árvore e do seu espaço e as múltiplas percepções de imagens possibilitadas através do fenômeno ótico da reflexão. O parque, sua natureza e toda a paisagem existente naquele espaço são evocados, incorporados e tornam-se protagonistas da obra.

43 Op. Cit.

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Imagem 11: Luciano Gusmão, Reflexões , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

O artista, ilustrador e cenógrafo mineiro Decio Noviello explorou a “desmaterialização” da obra, o uso da cor no espaço e novos suportes artísticos em sua proposta em Do Corpo à Terra. Ele produziu granadas de sinalização militar, das cores rosa, branco, vermelho e azul. Ao acende-las, toda a fumaça colorida invadia a atmosfera do Parque, ampliando o espaço ocupado pelo trabalho, mas logo desaparecendo sem deixar vestígios. As cores – mesmo que por alguns instantes – transformaram a paisagem do parque e transportarem o público para um universo lúdico, de fantasia e êxtase. A obra possui as características de um happening, com seu caráter efêmero e explora a estética da guerrilha: o efeito visual remete imediatamente às granadas, armas muitas vezes caseiras empregadas nos combates guerrilheiros. Hoje comuns nos estádios de futebol, os sinalizadores militares eram de uso exclusivo do Exército; Décio Noviello precisou valer-se de sua patente de Tenente-Coronel para obter um Manual Técnico de Munições Químicas e produzir as granadas.

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Imagem 12: Décio Noviello, Sem Título , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

Luiz Alphonsus, artista mineiro radicado no Rio de Janeiro montou em Do Corpo à Terra uma faixa de plástico de 15 metros de comprimento, estendida pela grama (imagem 12). O artista em seguida ateou fogo ao plástico, e o que restou de sua obra foi o resíduo do incêndio e a marca na grama. Segundo Frederico Morais, sua ideia era “marcar o chão, deixar um rastro de arte no planeta” 44 O título da obra – Napalm – remete à Guerra do Vietnã, tema presente em outros trabalhos de Do Corpo à Terra . Napalm é a substância química inflamável utilizada pelos Estados Unidos para devastar aldeias e regiões na Guerra do Vietnã e causou danos humanos e ambientais imensuráveis. Alphonsus evoca esta realidade, de outro canto do mundo, para o Parque Municipal, propondo um olhar político sobre a ação de atear fogo. O fogo – usado também na proposta de Cildo Meireles – provoca a destruição física do trabalho e ressalta a desmaterialização da proposta. A experiência colocada pelo artista é mais significativa que a presença material de algum suporte.

44 Idem, 2001.

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Imagem 13: Luiz Alphonsus, Napalm , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

José Ronaldo de Lima (que participava também da mostra Objeto e Participação ) realizou no Parque Municipal a obra (Grama)Tica Amarela e (Ver)Melha . Tratou-se de uma intervenção no piso de uma das calçadas do Parque; o artista grafitou as palavras gramática , vermelha e amarela no piso e ao lado posicionou diversos jornais com manchetes noticiando sobre a Revolução Chinesa, também pintados com uma faixa vermelha (imagem 13). A proposta possui um caráter político evidente; as cores usadas fazem referência à etnia chinesa (chamada popularmente de raça amarela) e o vermelho, evidentemente, ao comunismo. As palavras escritas na calçada trazem ainda um jogo linguístico; em “gramática”, as duas primeiras sílabas estão separadas, formando a palavra “grama”. Na palavra “vermelha”, a primeira sílaba está circulada na cor verde, formando a palavra “ver”; a palavra encontra-se também escrita em duas partes, com o texto de cima formando a palavra “verme”. Tais trocadilhos, presentes em obras da tradição conceitual, reforçam as múltiplas possibilidades de leitura apresentadas por suas palavras. A obra demonstra toda a atenção do artista com o contexto político atravessado no mundo durante a Guerra Fria e após a Revolução Chinesa. O

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estabelecimento do regime comunista num país com a larga extensão da China trouxe fortes impactos geopolíticos para o mundo e o maoísmo tornou-se referência teórica para parte da esquerda brasileira. 45 Lima, como Sociólogo, carrega essas indagações em suas poéticas e incorpora tais reflexões de forma direta em suas obras.

Imagem 14: José Ronaldo de Lima, Gramática Vermelha , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

Os jornais também foram um material presente em outra proposta realizada em Do Corpo à Terra , mostrando a extensa utilização de novas linguagens neste momento. O artista mineiro Eduardo Ângelo explorou o espaço do parque de maneira lúdica e onírica. Ele espalhou vários pedaços de jornal rasgados pela grama, onde as pessoas se sentavam e as crianças brincavam (imagem 14). A leveza dos papéis incorporava-se à paisagem e trazia um ar festivo ao local.

45 SANTANA, Cristiane Soares. O Maoísmo na Esquerda Brasileira: a Trajetória do Partido Comunista do Brasil- Ala Vermelha . In. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011

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Imagem 15: Eduardo Angelo, Sem título , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

Lótus Lobo, gravurista mineira e importante artista das práticas de vanguarda em Belo Horizonte, realizou para Do Corpo à Terra uma plantação de milho no Parque Municipal. A ideia era observar o crescimento das plantas e sua interação no espaço. O milho é um alimento ancestral no continente americano e a artista buscava evocar sua cultura como força em sua ação. A proposta buscava incorporar o tempo da natureza, com o delicado processo do desenvolvimento de uma planta, desde sua germinação até o momento propício da colheita. A obra não chegou a concretizar-se; os seguranças do Parque Municipal imaginaram que tratava-se de uma plantação de maconha e imediatamente interromperam tudo. Helio Oiticica não esteve presente pessoalmente no evento, mas colaborou com a elaboração de uma proposta que foi executada pelo artista estadunidense Lee Jaffe. Nascido em Nova York em uma comunidade judaica no Bronx, Lee Jaffe estudou artes visuais e filosofia e foi guitarrista de algumas bandas de rock. Conheceu nos Estados Unidos o cineasta Neville D’almeida e mudou-se para o Brasil em 1969, onde realizou vídeos e fotografias. Posteriormente mudou-se para a Jamaica, onde viveu por cinco anos e colaborou com álbuns e shows do Bob Marley. 46 Este projeto foi o único trabalho realizado fora do Parque Municipal, na Serra do Curral – um dos cartões postais de Belo Horizonte, mas hoje completamente devastada com a ação das mineradoras. Lee Jaffe, utilizando

46 Informações sobre a sua carreira encontram-se em http://www.leejaffe.com/

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diversos sacos de açúcar, preparou uma trilha, como um desenho de linha branca em larga escala na montanha (imagem 15). Segundo Frederico Morais:

O trabalho do Helio Oiticica foi o único realizado fora do parque. Foi pra Serra do Curral. Ele achava importante esse conflito visual, entre a terra vermelha da mineração, do ferro, e a trilha de açúcar. Há uma discussão se o trabalho era ou não do Helio, ou uma dupla autoria com o Lee Jafee, o artista americano. Mas para mim não há dúvida nenhuma, eu sustento que era um trabalho do Helio Oiticica executado pelo Lee Jaffe (...). Esse trabalho correspondia também às linhas extensas de cocaína que ele fazia em outras obras. O Jimmy Hendrix, a Marilyn Monroe. 47

Morais relaciona a proposta da trilha de açúcar com os desenhos que Helio Oiticica realizou na época, usando cocaína em suas instalações e experiências com audiovisual. Trata-se de uma obra com proporções grandes e com um caráter que a aproxima da Land Art, com o distanciamento do centro urbano e a aproximação com a natureza. A proposta foi registrada, mas durou breves instantes, pois logo um trator da mineradora passou por cima da trilha e desfez o trabalho.

Imagem 16: Helio Oiticica e Lee Jaffe, Trilha de acúcar , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

47 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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2.2.1. Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político , Cildo Meireles

Uma das obras de maior impacto na crítica e na história da arte no evento Do Corpo à Terra foi realizada por Cildo Meireles. No momento em que Frederico Morais evoca a ideia da arte guerrilheira, Cildo Meireles inicia o desenvolvimento de um trabalho singular, que traz à tona questões da estética, da política, da experiência e da crítica, tangendo limites da violência e do terror. Segundo o crítico de arte Paulo Herkenhoff:

A obra de Cildo poderia ser descrita como uma teoria poética da sociedade. Ele coloca questões que vão da política a ideais e estratégias. Examina espaços e processos de comunicação, as condições do espectador, os legados da história da arte e o espaço social do gueto- espaço frequentemente evocado. O foco de sua arte pode abranger desde a expansão econômica do capitalismo internacional a um pequeno gesto cultural de índios brasileiros. 48

Seus primeiros trabalhos são da década de 1960: um dos mais populares foi a série Espaços virtuais: Cantos, desenhos dos cantos de uma sala ou quarto, construídos com um rigor geométrico e realizando uma investigação dos princípios euclidianos do espaço. Tal projeto também foi realizado como uma instalação. Cildo Meireles neste período dialogava com o movimento do Neoconcretismo, que partia de obras de tradição formal para explorar relações experimentais entre o corpo, o espaço e a sociedade. 49 Cildo Meireles também realizou obras que se aproximam de uma tradição conceitual ou conceitualista: as séries Inserções em Circuitos Ideológicos , iniciadas em 1970. Neste projeto Cildo gravou mensagens subversivas (como Yankees Go Home ) em garrafas de Coca-Cola retornáveis, que voltaram para o mercado e tornaram a ser vendidas, com a marca do artista impressa. As garrafas reinserem-se no sistema de circulação do produto e podem aleatoriamente ser encontradas por algum consumidor. Em outra versão Cildo Meireles carimbou notas com mensagens políticas – como quem matou Herzog? - e colocava o dinheiro de volta na circulação. Tais ações foram comparadas por Henkenhoff às táticas de guerrilha.

48 HEKENHOFF, Paulo (org.) Cildo Meireles . São Paulo, Editora Cosac Naify, 2000, p.38. 49 Em entrevista a Geraldo Mosquera, Cildo Meireles declara-se influenciado em sua obra pelos artistas do Neoconcretismo. Ver Paulo Herkenhoff et al. Cildo Meireles. São Paulo, Cosac Naify, 2000

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Ele afirma que:

A proposta de Cildo em Inserções... poderia ser comparada, no plano político, à estratégia clandestina de guerrilha do líder brasileiro Carlos Marighella: manifestações populares de rua em reação à uma rede de repressão. Cildo desencadeia também o confronto nos espaços do capitalismo e seus sistemas de troca. 50

Imagem 17: Cildo Meireles. Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-cola, 1968. Imagem do acervo pessoal de Cildo Meireles.

E neste mesmo momento Cildo Meireles vai à Belo Horizonte, a convite de Frederico Morais e realiza a proposta de Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político . Na área externa do Palácio das Artes (espaço artístico e cultural da cidade que estava sendo inaugurado naquela ocasião) Meireles instalou no centro de um pano branco estendido um poste de madeira de 2,50 m com um termômetro clínico ao topo. Esta estaca ficou centralizada em uma espécie de quadrilátero, estruturado por pedras e materiais que davam ao lugar um aspecto de construção civil. A estrutura do edifício recém-construído ficava evidente naquele espaço preparado para a ação acontecer. Naquele poste foram amarradas 10 galinhas vivas e nelas Cildo Meireles jogou gasolina e ateou fogo (imagem 17). A fumaça e cheiro de queimado

50 HEKENHOFF, Paulo (org.)Op Cit, p.48.

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espalharam-se por todo o espaço e o público assistiu assustado e surpreendido a violência e crueldade desta ação.

Imagem 18: Cildo Meireles, Tiradentes: Totem.Monumento ao Preso Político , 1970. Fonte: Catálogo Do Corpo Á Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira , 2001.

Cildo Meireles invoca diversas visões e percepções com esta obra. Uma possibilidade de melhor compreendê-la é partir do título dado à ação: Tiradentes: Totem- Monumento ao Preso Político. Já com a primeira palavra Meireles traz à tona uma imagem repleta de significados para a cultura política brasileira: o inconfidente José Joaquim da Silva Xavier, popularmente conhecido como Tiradentes. Ele foi um dos participantes do movimento revolucionário conhecido como Inconfidência ou Conjuração Mineira, ocorrido no final do século XVIII na capitania de Minas Gerais. O movimento reuniu escritores, poetas e intelectuais, que questionavam os abusos políticos e tributários cometidos pela coroa portuguesa e almejavam a independência do Brasil e a proclamação da república. Movidos por ideais de utopia e liberdade e inspirados pelo iluminismo, o grupo reunia-se para tramar um levante contra a coroa, mas foi descoberto e seus participantes julgados e punidos. Todos os réus foram condenados ao exílio, exceto o alferes Tiradentes, que foi enforcado no dia 21 de abril de 1972 e teve seu corpo esquartejado e exposto publicamente no trajeto entre Vila Rica e o Rio de Janeiro. 51

51 Para mais detalhes sobre a Inconfidência Mineira ver CARVALHO, José Murilo de: Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil . São Paulo, Cia das Letras, 1988.

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Imagem 19:Pedro Américo. Tiradentes Esquartejado , 189. Óleo s/ tela, 262 X 162 cm. Museu Mariano Procópio.

A imagem de Tiradentes foi apropriada pela República após a sua proclamação, que construiu a imagem de um herói nacional, defensor da liberdade e da pátria – um homem que sacrificou a própria vida em nome de seus ideais. Neste momento o pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo pintou em 1893 a tela Tiradentes Esquartejado (imagem 18). Uma representação forte e marcante, evidenciando a morte, o sacrifício e a agressão de seu corpo. 52 A obra trouxe polêmica e rejeição por parte da crítica quando foi exposta em 1893 e passou anos guardada na Câmara Municipal de Juiz de Fora, até ser doada ao Museu Mariano Procópio em 1922. Ao longo do século XX a pintura de Pedro Américo foi ressignificada pela historiografia e ganhou valor de caráter político e artístico. Para a pesquisadora Maraliz Christo:

A pintura histórica de Pedro Américo esvazia o herói de sua força clássica, culminando com a fragmentação de seu corpo. (...) Tiradentes não é o vencedor de grandes batalhas – na verdade, não participou de nenhuma. É um herói vencido, sem ter disparado a arma na defesa de seus ideais. 53

52 Uma análise muito completa sobre esta obra pode ser encontrada em: MILLIET, Maria Alice: Tiradentes: O Corpo do Herói. São Paulo, Martins Fontes, 2001. 53 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira: Pintura, História e Heróis no século XIX: Pedro Américo e “Tiradentes Esquartejado”. TESE, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2005, p. 233.

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Durante o regime militar a imagem de Tiradentes também foi apropriada, tanto pelo governo quanto pelos movimentos de esquerda. Por um lado, o regime militar exaltava Tiradentes como um herói nacionalista, um defensor da pátria e dos valores brasileiros, os grupos de resistência evocavam um Tiradentes rebelde, que desafiou a ordem em busca de seus valores e morreu pela defesa da liberdade. 54 Uma demonstração desta dicotomia pode ser percebida em como Tiradentes serviu para batizar causas distintas, de ambos os lados. Em 1969 uma dissidência do Partido Comunista do Brasil fundou o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), liderado pelo metalúrgico Devanir de Carvalho. O grupo de orientação militarista foi exterminado pelas forças de repressão em 1971. Também o famoso presídio em São Paulo, por onde passaram muitos dos principais quadros da esquerda Brasileira e líderes da resistência chamava-se Presídio Tiradentes. Criado em 1825 como Casa de Correição, a antiga cadeia localizava-se na Avenida Tiradentes, no centro de São Paulo e recebia em primeiro momento, escravos que fugiam de seus senhores. Desde o Estado Novo o presídio recebeu presos políticos, inclusive Monteiro Lobato e após o golpe de 1964 foram inúmeros os opositores do regime lá encarcerados. Pelo presídio Tiradentes esteve aprisionado, inclusive o artista plástico Sérgio Ferro. 55 Ainda encontramos no título da ação de Meireles o totem-monumento. Dedicado à figura do preso político, este totem-monumento não é o que geralmente esperamos para estas duas ideias, mas uma espécie de ritual de morte cruel de galinhas em plena exposição artística. Meireles faz com esta ação uma provocação a toda a sociedade e o que se faz presente como monumento, em um país que aprisiona seus opositores e comete atrocidades contra seus presos políticos. Para Artur Freitas:

Cildo parece ter atingido a extremidade desse movimento quando assumiu em sua ação – num fato inédito na cultura brasileira – a violência e a morte não como assunto da retórica de choque, mas como matéria-prima. Com isso, partindo da fricção entre a realidade na arte e a mais absoluta morbidez do arbítrio, o artista burlou, se for possível assim falar, o esquema estético da estética da violência, e

54 Para aprofundar esta análise ver: BARROS, Edgar Luiz de Tiradentes . São Paulo, Moderna, 1985. 55 Mais detalhes sobre o presídio Tiradentes estão em FREIRE, Alípio (org), Tiradentes, um Presídio da Ditadura . São Paulo, Scipione, 1997.

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acabou por introjetar a violência não alhures como de hábito, mas na própria estrutura performática da arte. 56

Poucos anos antes de Cildo Meireles realizar esta obra havia uma vanguarda internacional que também explorava os limites do corpo, seus gestos e possibilidades, rompendo barreiras e produzindo obras chocantes: o Acionismo Vienense. O grupo era formado por quatro artistas austríacos: Otto Mühl, Rudolph Swarzkogler, Gunter Brus e Hermann Nitsch. No final da década de 1960 o grupo realizava performances que envolviam atos de agressão, mutilação, masturbação, excreção e violência. Suas ações abordavam o escatológico e o obsceno, gerando estranhamento por parte do público e da crítica, mas aos poucos ganhando força como linguagem artística de ruptura e politização. 57 Hermann Nitsch realizou diversas ações de ritual e sacrifício, em uma crítica direta aos valores católicos, criando uma profunda reflexão sobre a ideia do sagrado e do profano. Práticas pagãs de abatimento de animais eram apropriadas em suas obras e o sangue, carne e vísceras serviam como instrumento de interação com o corpo do artista, em conjunto com flores, frutas, vinho e música, mesclando a ideia da festividade com o sacrifício. 58 Já Otto Mühl, no mesmo ano de 1970, realizou o polêmico vídeo Oh Sensibility , onde interage com uma ave, numa proposta que faz explícita referência à lenda de Leda e o cisne - recorrente tema pictórico da história da arte. O artista pratica sexo com o animal e após sua ejaculação mata o cisne, corta sua cabeça e a utiliza para estimular sua parceira. Tratou-se de uma obra que chocou a crítica e a sociedade, com a crueza do gesto de violência, a escatologia e a obscenidade nos gestos do artista. Os terrores do nazismo e da Segunda Guerra Mundial eram de uma maneira implícita, tratados nas obras de tais artistas, dando um ar engajado e social em suas obras. Toda a violência e o horror do período, dos campos de concentração, bombardeios e destruição eram trazidos à tona através dos corpos dos performers, suas ações e gestos. Pode-se perceber que a proposta de Cildo Meireles em Do Corpo à Terra posicionava-se em um contexto de ruptura e transgressão já presentes

56 FREITAS, Artur. Op Cit.p. 244. 57 Mais informações estão em SILVA, Priscilla Ramos: Os Acionistas Vienenses: Revolucionários ou Perversos? Artigo, IV Encontro de História da Arte. IFCH/Unicamp, 2008. 58 NITSCH, Hermann. Museum Hermann Nitsch. Viena, Hatje Cantz, 2007.

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anteriormente em outros movimentos artísticos. O acionismo vienense influenciou artistas de diversos lugares do mundo e abriu espaços para a arte aprofundar suas relações e práticas com o grotesco, o chocante e o provocador, de maneira reflexiva e profunda. A obra de Meireles não foi completamente aceita pela crítica especializada da época e nem pelo público, pelo extremo que chegou na violência e no sacrifício. Uma obra que extrapolou limites e rompeu paradigmas, ao explorar o território da morte em sua prática e não hesitar em praticar uma ação violenta em novos territórios. O próprio Cildo Meireles em entrevista afirma:

É claro que eu nunca repetiria um trabalho como Tiradentes... Ainda posso ouvir as pobres galinhas em minha memória psicológica. Mas em 1970 senti que aquilo tinha de ser feito. 59

59 HERCKENHOFF, Op Cit. p. 48.

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2.2.2. Situação T/T1 , Artur Barrio

Quando examinamos com atenção o evento Do Corpo à Terra , é inevitável pensar imediatamente na obra realizada por Artur Barrio: as Trouxas Ensanguentadas carregaram muito da proposta “guerrilheira” do evento, trazendo o elemento surpresa, a emboscada, o terror e a participação do público. Artur Barrio foi um dos mais emblemáticos artistas de sua geração. Suas propostas lidavam diretamente com os limites e rupturas da linguagem artística, posicionando-o em sintonia com as vanguardas da década de 1960. Durante este período, Barrio realizou experiências e interações com lixo, materiais precários, dejetos e sobras, quebrando a aura imaculada do objeto artístico e dando luz aos objetos renegados na sociedade de consumo. Para a pesquisadora Ligia Canongia:

Muito embora alguns artistas de origem construtiva, especialmente Helio Oiticica, já tivessem culminado em experiências marginais, explorando a percepção através de vários sentidos e dilatando a capacidade sensorial, nada acontecera que fosse semelhante ao radicalismo das obras de Barrio. Ele estabeleceu um novo paradigma, uma referência inaugural e, possivelmente, permaneça único até os dias de hoje. Barrio levou ao clímax todas as tentativas que seus antecessores fizeram em direção ao rompimento com a ideia de obra estável, monolítica e distante da relação direta com a vida. 60

Nascido em Portugal - na cidade do Porto - Artur Barrio mudou-se para o Rio de Janeiro aos 10 anos de idade e naturalizou-se brasileiro. Estudou economia, mas deixou o curso para dedicar-se à carreira artística, ingressando na Escola Nacional de Belas Artes em 1966. Suas primeiras obras eram chamadas cadernos- livres e compunham uma série de registros que mesclavam o desenho e a escrita. Aproximou-se de Frederico Morais ao frequentar o MAM-RJ, em cursos, rodas de conversa e eventos do museu. Neste momento suas obras tomaram dimensões mais espaciais e corporais: em 1969, Barrio realizou uma série de ações em que soltava no espaço, rolos de papel higiênico. O papel interagia no espaço, caindo na água, posando no chão, voando com o vento, criando uma imagem poética e singela. Ao mesmo tempo a proposta também carregava uma ideia crítica: o papel

60 CANONGIA, Ligia. Barrio Dinamite . In. CANONGIA, Ligia (org). Artur Barrio . Rio de Janeiro, Modo, 2002, p. 195.

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higiênico é um material usado em um contexto de intimidade, para limpar dejetos – associado à higiene mas também à sujeira, excreção e rejeito.

Imagem 20: Artur Barrio, P... H...... , 1969. Fotografia: César Carneiro

Tal relação com os materiais pode conectar o trabalho de Artur Barrio à Arte Povera, movimento italiano anteriormente mencionado. A recusa pelos suportes tradicionais e o uso de lixo, restos, entulhos, rejeitos e sucatas aproxima o trabalho de Barrio da Arte Povera, que no final da década de 1960 já havia alcançado projeção internacional e influenciava outros artistas e movimentos com a sua estética de ruptura e experimentação. Em 1969 Barrio realizou pela primeira vez uma proposta utilizando trouxas ensanguentadas no Salão da Bússola , organizado por Frederico Morais no MAM-RJ. A obra foi inscrita na “categoria etc.” do salão, por não se enquadrar formalmente em nenhuma classificação artística tradicional. O artista confeccionou duas grandes trouxas, utilizando lixo, espuma e tinta e elas foram expostas nos meses da mostra. No último dia da exposição interagiu diretamente com as trouxas, recheando-as com carne, levando-as para fora do MAM e expondo-as nas bases de concreto do jardim do museu reservadas às esculturas consagradas.

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Imagem 21: Artur Barrio, Situação... ORHHHHHHH... ou 5.000...T.E... em...... N.Y...City...... , 1969, Salão da Bússola, Rio de Janeiro.

A experiência de Barrio no Salão da Bússola foi fundamental para configurar muitas das características de suas propostas artísticas. A escolha por materiais precários, a ocupação de espaços alternativos, a interação direta do artista com a obra e a percepção multissensorial tornaram-se presentes em seu trabalho como um todo. A recusa pelas categorias tradicionais da arte também é importante para as ideias de Barrio e sobre isso o artista escreve:

Reneguei as categorias em arte em função de uma maior abertura e consequente possibilidade de ação – inclusive a denominação obra de arte: envolta em pompa bastante duvidosa. Refiro-me ao que faço apenas como trabalhos. A cidade, substituindo o papel, a tela, etc, da mesma forma o país ou o continente: política e geograficamente: ou o próprio planeta em relação ao cosmos. 61

Alguns meses depois, em sua participação em Do Corpo à Terra, Artur Barrio voltou a utilizar trouxas em sua proposta, e dessa vez radicalizou ainda mais em sua ação. A obra se chamou Situação T/T1 e consistiu em três etapas distintas. Na primeira delas, Artur Barrio preparou quatorze trouxas, feitas de tecido, contendo sangue, carne, ossos, barro, espuma de borracha, pano, etc. As trouxas foram montadas uma a uma pelo próprio artista de forma cuidadosa, e seu movimento corporal e gestualidade na ação deram um caráter ritualístico, registrado em fotografia por César Carneiro.

61 Barrio, Artur: Meu trabalho está ligado à uma situação subjetiva . In. Canongia, Ligia. Op. Cit. p. 47.

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Imagem 22: Artur Barrio, Situação T/T1, 1970. Fotografia de César Carneiro. Catálogo Neovanguardas, 2008.

O segundo momento da obra aconteceu no Parque Municipal no início da manhã do dia 20 de abril de 1970. Artur Barrio lançou as quatorze trouxas no Rio Arrudas, que na época atravessava parte do parque. As pessoas que passavam por ali logo foram atraídas pelo impacto das trouxas no rio: aqueles enormes sacos com um cheiro forte de putrefação de matéria orgânica eram inusitados naquele espaço e atraíram uma multidão de curiosos. Logo criou-se uma espécie de mistério no parque; o que seriam aquelas trouxas? O que estaria acontecendo? Crianças chegaram a se aproximar e brincar com as trouxas, em uma cena que sensibiliza o espectador pelo contraste entre a imagem da inocência em meio ao caos e destruição, lembrando as cenas de guerra em que as crianças brincam com os escombros em cenários destruídos (imagens 22 e 23). Poucas horas depois o corpo de bombeiros foi acionado e chegou ao local para verificar o ocorrido. A polícia militar em seguida também interviu na ação e retirou as trouxas do local.

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Imagens 23: Á esquerda, crianças próximas às trouxas ensanguentadas, Belo Horizonte, 1970. Imagem de César Carneiro. Imagens 24: Á direita, crianças brincam entre escombros em Londres durante a 2ª Guerra Mundial, 1944. Fonte: Getty Images.

Imagem 25: A polícia averiguando a ação de Artur Barrio, Belo Horizonte, 1970. Fonte: Catálogo Neovanguardas, 2008.

A terceira etapa da obra ocorreu após a retirada das trouxas ensanguentadas do parque. Neste momento, Artur Barrio aproxima-se das margens do Rio Arrudas e lança cerca de 60 rolos de papel higiênico, em ação semelhante à suas primeiras obras. O papel movimenta-se com o vento, tomba no ambiente, deixando o rio forrado de papel, com extensas faixas brancas, o que lembra a proposta de Helio Oiticica e Lee Jaffe no mesmo evento, tanto pela extensão da obra e a ocupação de um espaço natural porém vítima de algum tipo de devastação ambiental. Esta etapa da obra é registrada também em fotografia e vídeo.

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Imagem 26: Artur Barrio, Situação T/T1, 1970. Fonte: Catálogo Neovanguardas, 2008.

Ao analisar a proposta realizada por Artur Barrio em Do Corpo à Terra , é possível perceber elementos importantes já no próprio título. Barrio rejeitava o título de “artista” e preferiu não chamar suas realizações de “obra”, “projeto” ou “trabalho”. No caso de sua ação em Belo Horizonte, ele tratou como uma “situação”, portanto um ocorrido no tempo e no espaço, uma circunstância, ou mesmo uma disposição que envolve múltiplos elementos: o artista, o público, o tempo, o espaço, as interferências externas, etc. A criação de Artur Barrio está submetida a uma série de dinâmicas que não podem ser previstas pelo artista: a interação das trouxas com o ambiente, a ação do público e a interferência das autoridades são acontecimentos únicos naquela circunstância e que dão à obra um caráter de imprevisibilidade e dinamismo. A sigla criada por Barrio “T/T1” atribui um aspecto de experimento científico ao trabalho, o que mostra que os resultados de sua proposta eram de fato imprevisíveis. A palavra “situação” também nos remete a uma influência específica; o situacionismo. A Internacional Situacionista (IS) foi um movimento artístico e político fundado na Itália em 1957. Dela participaram artistas, escritores, cineastas, teóricos e militantes de diversos países, entre eles Guy Debord, Michele Bernstein, Gil J. Wolman, Asger Jorn, Pinot-Gallizio e Constant. O grupo reunia-se em conferências anuais e escrevia revistas, periódicos, panfletos e publicações diversas. Os situacionistas possuíam um profundo e radical engajamento político e buscavam construir com suas propostas caminhos para a revolução. Uma das suas premissas artísticas era desvincular a obra do objeto, para criar uma oposição à

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lógica do mercado que transforma a arte em consumo. Em contrapartida, propunham que os artistas criassem “situações”, a serem experienciadas pelo público e que transformassem a sua relação com o espaço. Guy Debord escreveu em 1957, na ocasião da fundação do movimento, um artigo em que apresenta suas principais ideias, objetivos e práticas.

Nossa primeira ideia: é preciso mudar o mundo. Queremos a mais libertadora mudança na sociedade e da vida em que estamos aprisionados. Sabemos que esta mudança é possível por meio de ações adequadas. (...) Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e o comportamento que ele provoca e que o alteram. 62

Os projetos situacionistas apresentavam uma forte conexão com a cidade e a vida urbana. Apontavam uma crítica direta ao modelo urbanístico moderno de Le Corbusier - que agregava funções específicas às áreas da cidade - e propunham aos homens uma relação com as cidades mais livre, lúdica e criativa. As intervenções urbanas eram tidas pelos situacionistas como um importante instrumento para aproximar as pessoas dos ambientes que as cercavam e trazer às cidades uma dinâmica que supere relações de consumo e especulação. Uma ideia que percorreu a produção da Internacional Situacionista é da “psicogeografia”: um estudo da relação de uma cidade com seus habitantes e das possibilidades de subversão de padrões e funções. A deriva também foi uma prática presente na proposta situacionista: vagar pelas cidades, sem lugar para chegar, percorrer livremente os caminhos urbanos. A Internacional Situacionista viveu seu apogeu no ano de 1968: integrou intensamente os protestos estudantis em Paris e produziu textos, imagens, projetos e “situações” diversas, unindo de maneira simbiótica a ação artística da prática política. O movimento se desfez em 1972 após divergências ideológicas entre os participantes.

62 DEBORD, Guy: Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internaciona l em JACQUES, Paola Berenstein (org): Apologia da Deriva: Escritos Situacionistas sobre a Cidade . Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003, p. 43.

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Entre o legado situacionista e a proposta de Artur Barrio encontram-se semelhanças e diálogos; as trouxas não são as únicas protagonistas em sua situação, mas o rio Arrudas, o Parque Municipal e a cidade de Belo Horizonte adquirem papéis fundamentais naquele contexto. Barrio traz a experiência estética para a dinâmica da cidade e de seus espaços, inserindo uma situação imprevista na sua vivência. Um dos importantes elementos que aparece na situação de Artur Barrio é o Rio onde as trouxas foram depositadas. O Arrudas é o principal rio que corta a cidade de Belo Horizonte; nasce no município de Contagem e desemboca do Rio das Velhas, passando por vários córregos regionais. Até a década de 1950 o rio era limpo e os moradores de Belo Horizonte costumavam ocupa-lo para pesca e recreação. Em 1961 o rio foi retificado e com o crescimento acelerado da cidade, tornou-se completamente poluído. 63 O trecho de água que corria no parque municipal em 1970 parecia um esgoto, e não um rio extenso que atravessa a cidade, participando do espaço como um depósito de lixo e sujeira. Ao trazer para esse lugar a sua situação , Barrio inevitavelmente traz a atenção para a presença desse rio no parque, tantas vezes esquecido e apagado dos olhares cotidianos. Barrio revela a potência do Arrudas e com suas trouxas promove uma transmutação de seus sentidos; faz dele um lugar de criação e experiência e não mais de esquecimento. Frederico Morais comenta que:

O trabalho do Artur Barrio chegou a ter uma multidão. É claro que com o tempo as pessoas vão aumentando, mas acho que tinham umas 5 mil pessoas. Mas hoje falam em 10 mil. E isso logo cedo, de manhã. E eram aquelas trouxas ensanguentadas que vistas do alto da ponte, lá no rio – que já era uma espécie de esgoto da cidade. 64

Uma presença explícita nesta obra de Barrio é a violência. Ela aparece contida tanto na escolha de materiais viscerais como o sangue, a carne, os ossos - elementos que que associam à violência, tortura, agressão, terror e morte – quanto com a ação do artista de depositar as trouxas em pleno parque. As trouxas ensanguentadas, pelo seu tamanho, cheiro, características e aspecto foram vistas

63 A Universidade Federal de Minas Gerais desenvolve o Projeto Manuelzão, que pesquisa e realiza ações de resgate ambiental dos rios da bacia do Rio das Velhas. Outros detalhes sobre a história do Rio Arrudas, suas transformações e seu estado atual encontram-se em: http://www.manuelzao.ufmg.br/ 64 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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como cadáveres por alguns dos que presenciaram a obra. Neste sentido, houve por parte da crítica de arte e do próprio público uma interpretação bastante política, relacionando as trouxas aos corpos das pessoas mortas e desaparecidas pelo regime político brasileiro. Tratou-se de uma visão pautada nas experiências daquele período, em que a ditadura militar havia reforçado o seu caráter autoritário após a instauração do AI-5 e acirrado o combate direto aos grupos de oposição. De acordo com as pesquisas realizadas pela Comissão da Verdade apresentado oficialmente em 2014, houveram 434 mortos e desaparecidos políticos no Brasil entre os anos de 1946 e 1988 65 . Portanto, antes mesmo dos chamados “anos de chumbo”, a polícia política e o exército já exerciam explícita violência contra parte da população. Foi o ano de 1969 que marcou o início de uma postura mais combativa por parte do regime, especialmente após o sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick, solto em troca de 15 presos políticos. 66 Esta ação tornou-se uma das ações mais bem sucedidas empreitadas da esquerda armada e contribuiu para ampliar a disposição de combate das forças de segurança, agindo então de maneira mais organizada. Várias agências governamentais realizavam ações repressivas, sob a justificativa de promover a segurança nacional, e trocavam informações entre si, configurando uma rede ampla de vigilância e perseguição. É importante observar que a obra proposta por Artur Barrio era composta por trouxas. Aquilo que continham não estava explicitamente revelado; elas propunham um jogo com o expectador, de mistério e suposição. Deste modo, não é necessário afirmar com certeza o que elas significavam ou se referiam. Porém, naquele momento, a leitura que prevaleceu sobre a obra foi a associação explicita com os mortos e desaparecidos do regime militar. Frederico Morais, ao opinar sobre a obra de Barrio, comenta que:

No início era uma metáfora do sangue. Mas lá em Belo Horizonte ele foi a um matadouro e pegou sebo, ossos, carcaças e amarrou. Então já era uma matéria orgânica. Não de homens, mas de animais. O cheiro ficou muito forte na época. Aquilo ficou ali no meio, eram cinco ou seis trouxas, naquele rio que estava raso. E as pessoas viram. Começou a entrar gente, apareceram os soldados do corpo de bombeiro, abriram as trouxas. Num determinado momento um soldado até escorregou e caiu no meio daquela lama. O pessoal

65 Os relatórios da Comissão Nacional da Verdade encontram-se disponíveis em: http://www.cnv.gov.br/ 66 O episódio é narrado em: GABEIRA, Fernando. O que é isso, Companheiro? São Paulo, Companhia de Bolso, 2009.

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vaiou. Logo em seguida apareceu a radio patrulha. Tinha gente achando que era filme, cenas de filmagem. Outros já pensaram que eram cadáveres, diziam “isso é um presunto”. A ideia das trouxas ensanguentadas, no caso do Barrio era também uma referência às vítimas dos esquadrões da morte. Gente que matavam e deixavam o corpo. Eu mesmo encontrava aqui no meu bairro corpos apodrecendo, com cachorros cheirando. Era uma referência aos grupos paramilitares e parapoliciais. E existem até hoje. E matam sem o menor pudor. Então o trabalho do Barrio também teve essa leitura política. As pessoas perceberam isso. 67

A situação de Artur Barrio, em seu decorrer, acaba por também revelar de outro modo as questões políticas da atualidade. Após o depósito das trouxas no Rio Arrudas, o Corpo de Bombeiros e a Polícia Militar interferiram diretamente na ação, investigando o conteúdo das trouxas e retirando-as do local. Essa interferência revela a vigilância exercida pelos órgãos de repressão e o autoritarismo latente do estado brasileiro. É importante situar que ainda no ano de 1969 outros episódios políticos haviam ocorrido em mostras, como a proibição do envio das obras de artistas brasileiros à Bienal de Paris e o boicote nacional e mundial à X Bienal de São Paulo, mostrando que parte do sistema da arte no Brasil reagia contra a repressão. A precariedade na obra de Artur Barrio é também uma de suas maiores características. Desde seus primeiros trabalhos e ao longo de toda a sua trajetória, ele escolheu construir propostas perecíveis, usando rejeitos e dejetos. Com essa escolha, Barrio desconstrói a aura sagrada sob a obra de arte, questionando seu caráter imaculado e puro. Essa atitude provocadora segue em confluência com as ações do artista italiano Piero Manzoni, que em 1961 enlatou suas próprias fezes e apresentou como a obra Merde d’artiste , ironizando a exaltação sob o artista e os limites da obra de arte. Artur Barrio – assim como outros artistas da época - formava-se como um artista/escritor. Além de produzir seu trabalho plástico, lançou textos e manifestos explicitando suas visões sobre o espaço da arte na sociedade, os materiais, o mercado, a crítica e a função do artista. No dia da realização da Situação T/T1 Barrio escreveu o texto Lama/Carne Esgoto, que comenta um pouco sobre a experiência de Do Corpo à Terra. Barrio coloca no texto que:

67 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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O que procuro é o contato da realidade em sua totalidade, de tudo que é renegado, de tudo que é posto de lado, mais pelo seu caráter contestador; contestação essa que encerra uma realidade radical, pois que essa realidade existe, apesar de dissimulada através de símbolos. Em meu trabalho, as coisas não são indicadas (apresentadas), mas sim vividas, e é necessário que se dê um mergulho, que se o mergulhe/manipule , e isso é mergulhar em si. O trabalho tem vida própria porque ele é o todos nós, porque é a nossa realidade do dia- a-dia, e é nesse ponto que abro mão do meu enquadramento como “artista”, porque não sou mais, nem especificamente necessito de qualquer outro rótulo e isso, claro, estende-se ao trabalho, pois ele não pode ser rotulado, pois não necessita disso nem existem quaisquer outras palavras que o possam enquadrar, pois o que acontece é que o tudo e o nada perderam o sentido de ser. Portanto, esses trabalhos, no momento em que são colocados em praças, ruas etc., automaticamente tornam-se independentes, sendo que o autor inicial (EU) nada mais tem a fazer no caso, passando esse compromisso para os futuros manipuladores/autores do trabalho, isto é:... os pedestres etc. O trabalho não é recuperado, pois foi criado para ser abandonado e seguir sua trajetória de envolvimento psicológico. 68

A proposta realizada por Barrio em Do Corpo à Terra tornou-se ainda mais significativa para a arte brasileira quando seus registros foram expostos na mostra Information em 1970. Realizada em Nova Iorque no Museum of Modern Art (MoMA) com a curadoria de Kynaston L. McShine, essa exposição foi um marco para a arte contemporânea, pois reuniu em um museu de renome mundial, obras de artistas jovens de diversos países que de alguma maneira exploravam novas linguagens e suportes, aproximando-se da Arte Povera, da arte conceitual ou da Land Art. McShine esteve no Brasil em 1969 e visitou no Rio de Janeiro o Salão da Bússola (promovido no MAM por Frederico Morais) onde conheceu um pouco da produção artística do período. Convidou para participar da mostra Information três artistas presentes na mostra: Cildo Meireles, Guilherme Vaz e Artur Barrio. Hélio Oiticica - que naquele momento já tinha certo reconhecimento internacional e residia em Nova Iorque com uma bolsa da Fundação Guggenhein - também participou da exposição. 69 Foram expostas na mostra Information as filmagens das ações realizadas por Barrio em Belo Horizonte no Parque Municipal. O vídeo foi exibido sem título e sem nenhum tipo de edição, mantendo assim o espírito de precariedade,

68 BARRIO, Artur: Lama/Carne Esgoto . In: CANONGIA, Ligia. Op Cit. p. 46 69 ANDRADE, Marco Antonio Pasquali de. Artistas Brasileiros na Exposição Information . Campinas, XXXI Colóquio CBHA, 2011 (artigo).

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experimentação e crueza da proposta original. Pode-se assim observar que, mesmo tratando-se de uma obra perecível e temporária, seus registros conseguiram manter parte de sua força e foram responsáveis por apresentar ao público internacional do MoMA um pouco da situação criada pelo artista.

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2.3. Frederico Morais: da crítica à criação

Nascido em Belo Horizonte - no tradicional bairro Santa Teresa - Frederico Morais possui uma origem humilde e quando criança já trabalhava para auxiliar no sustento da família. Trabalhou como vendedor ambulante, entregador de panfletos, atendente em bar, livreiro e posteriormente conseguiu seu primeiro emprego em um jornal local. Atuava até o início da década de 1960 especialmente como repórter de economia mas também escrevia em uma coluna sobre cinema. Morais participou ativamente do Cineclube de Belo Horizonte, que organizava encontros, debates e fundou - em conjunto com os colegas Cyro Siqueira, Jacques do Prado Brandão, Maurício Gomes Leite e Newton Silva - a Revista de Cinema em abril de 1954. Nesse período também realizou reportagens sobre teatro e dança. Aos poucos seus interesses foram voltando-se para as artes plásticas e este tornou-se o principal assunto abordado em suas matérias jornalísticas. Segundo Frederico Morais:

Os dois primeiros textos densos e pesados que eu fiz foram um sobre Mondrian e o outro sobre Malevich, figuras ímpares da História da Arte. O Mondrian era um teósofo, adorava Madame Blavátsck, (tinha um retrato dela no ateliê) e o Malevich vivia no regime comunista mas também era místico, religioso, refletia sobre a presença de Deus, mesmo participando daquela coisa construtiva. Curiosamente eu fiz esses dois ensaios e como resultado eu fiz duas conferências na Sociedade Teosófica, para místicos. E depois o texto sobre o Mondrian foi publicado por uma revista fundada pelo Glauber Rocha na Bahia chamada Revista Mapa. 70

Frederico Morais nesta época aproximou-se da geração de artistas mineiros que formavam-se na Escola Guignard e escreveu reportagens extensas sobre temas da arte mineira no Suplemento dominical do Jornal Estado de Minas. No início da década de 1960 assumiu a função de professor de História da Arte na Faculdade Mineira de Arte e no Colégio Helena Guerra e deu início a uma de suas principais atividades profissionais – a de professor. Recebeu em 1961 o Prêmio Esso de Reportagem e conquistou espaço junto à Associação Brasileira de Críticos

70 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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de Arte, após uma série de matérias denunciando a especulação financeira no mercado da arte com as vendas de pinturas de Guignard. Em 1965 Morais começa a frequentar o Rio de Janeiro, realizando cursos e trabalhos jornalísticos por lá, e aproxima-se de diversos artistas de vanguarda que atuavam na capital fluminense – entre eles Helio Oiticica, Carlos Vergara e Rubens Gerchman. Aderiu com convicção às práticas artísticas dessa geração e foi representando-a que organizou sua primeira exposição: Vanguarda Brasileira , na Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1966. Segundo Frederico Morais:

Apesar do título, Vanguarda Brasileira, era uma exposição de artistas que atuavam no Rio de Janeiro. Eu considerava que a verdadeira vanguarda brasileira naquele momento estava sediada no Rio de Janeiro. Era a vanguarda carioca. Eu fiz a vanguarda Brasileira três ou quatro meses antes de me mudar para o Rio de Janeiro. E esta exposição significou duas coisas: a minha despedida de Belo Horizonte e a minha rentrée no Rio de Janeiro. Além de ter sido minha primeira curadoria. E a exposição foi em 66, pouco depois do golpe. Eu entrei em contato com o Gerchman, com o Vergara, com o Helio Oiticica, Maria do Carmo Secco, que é paulista, com Dileny, que é mineiro mas morava no Rio.. Eu resolvi propor uma exposição com este grupo em Belo Horizonte. Pois a exposição Opinião 65 reunia artistas brasileiros e europeus e a qualidade da arte brasileira era visível, até maior que da arte.

Da Vanguarda Brasileira participaram os artistas Adriano de Aquino, Angelo de Aquino, Antonio Dias, Carlos Vergara, Dileny Campos, Maria do Carmo Secco, Pedro Escosteguy e Rubens Gerchman. Hélio Oiticica constava na lista de participantes, mas no dia da abertura não pode comparecer à Belo Horizonte. As obras realizadas durante a exposição são comentadas pelo pesquisador Rodrigo Andrade:

Os artistas mostram diversos trabalhos experimentais: Rubens Gerchman apresenta a série Caixas de Morar , focalizando elevadores com figuras recortadas no interior; Dileny Campos expôs um políptico, no qual desenvolve uma seqüência cinematográfica denominada O Sorriso ; Maria do Carmo Secco apresenta vários closes simultâneos de Roberto Carlos, líder da jovem Guarda: Oiticica envia seus Bólides , caixas com materiais elementares da terra (pigmentos coloridos, pedras, carvão), abertas à participação do espectador; Ângelo de Aquino focaliza figuras do

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super-herói Batman e Antônio Dias exibe relevos pautados pelas recordações de infância de seu Diário Íntimo. 71

Frederico Morais, em depoimento, comenta e analisa a mostra:

A Vanguarda Brasileira teve algumas curiosidades. Ela foi realizada na Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais, que era um prédio novo na Pampulha, mas ainda inacabado. E ela consistiu do trabalho desses artistas, cada um com dois ou três trabalhos. E foi feito um cartaz, bem verticalizado, em uma face era aquela placa de trânsito “Pare”, que na verdade era uma imagem já usada em uma exposição anterior na Galeria G4, um lugar que teve uma vida curtíssima mas pretendia ser muito vanguardista e foi uma exposição muito ousada, com Happenings. O desenho era do Rubens Gerchman e ele repetiu esta mesma imagem quando fez o cartaz em Belo Horizonte. E na outra face tinha um texto meu, dizendo porque a vanguarda é carioca, e tinham umas colunas, quase como colunas de jornal, um pouco mais largas, com uma foto do trabalho, um pequeno currículo do artista e um depoimento do artista sobre o seu próprio trabalho. (...) O Helio Oiticica foi convidado para participar, concordou, chegou a fazer um texto para o cartaz, mas acabou não participando da exposição. Eu me interessava pelas ideias do Helio, e ele defendia o conceito de apropriação, que se aproxima da ideia do readymade do Marcel Duchamp. O Hélio era muito inteligente, escrevia muito bem. E pra não ficar faltando, eu o Gerchman e o Dias (em algum lugar saiu que o Vergara participou, mas ele confirmou que não) fomos ao Mercado Municipal de Belo Horizonte. Eu frequentava aquele mercado aos sábados para tomar cerveja, comer moela de galinha, que hoje eu odeio (risos). Lá nós pensamos em utilizar esse conceito de apropriação e compramos umas cestinhas artesanais de arame usadas para guardar ovos. E lá na própria Reitoria pegamos um daqueles carrinhos de pedreiro cheio de brita e areia e ficou lá como a participação do Hélio. (...) E a partir da proposta dos ovos surgiu uma espécie de guerra, pessoas atirando ovos, pedras e areia. Ficou tudo imundo. Agora isso não tinha sido programado. Foi um resultado da ausência do Hélio Oiticica. Mas foi importante e atualmente se faz uma leitura política disso. 72

Dessa forma a proposta de Hélio Oiticica foi realizada mesmo sem a presença do artista, através de procedimentos de apropriação e releitura. Morais demonstra com essa escolha uma afinidade com as experiências contemporâneas da arte: a presença física do artista não é mais essencial para a concretização de um trabalho e suas ideias podem ser executadas de forma legítima por outras

71 ANDRADE, Rodrigo Vivas. Os Salões Municipais de Belas Artes e a Emergência da Arte Contemporânea em Belo Horizonte . TESE. Campinas, IFCH, Unicamp, 2008. 72 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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pessoas. A figura do crítico, curador, do artista e do próprio público se mesclam, já que todos participam ativamente da experiência da obra de arte e o ato de criação possui seus horizontes expandidos. Na ocasião do evento, Frederico Morais lançou um texto que justificava a participação quase exclusiva de artistas do Rio de Janeiro na exposição, com o título “Por que a Vanguarda Brasileira é Carioca?”. Inicia descrevendo o processo de colonização do Brasil e defendendo que o barroco foi o primeiro movimento artístico que expressava o poder genuíno da arte aqui produzida, repleta de contradições e especificidades. Relata também a contradição presente entre o Rio de Janeiro e São Paulo no campo artístico e cultural:

Uma das oposições mais nítidas é a representada por Rio e São Paulo, que não é apenas econômica ou política, mas também psicológico-cultural. Ela existe na arte e no futebol. (...) No movimento concreto, enquanto os paulistas se mantiveram dogmáticos, os cariocas como que introduziram o elemento expressionista (isto é, pessoal) no impessoalismo da arte concreta; trazendo-lhe uma liberdade estrutural, uma espontaneidade que escapava aos paulistas, uma como que busca de síntese dialética entre razão e intuição, entre programação e acaso. E é essa liberdade, ampliada e levada às últimas consequências, o que, na verdade, compõe a nova geração brasileira sediada no Rio. 73

Frente à tensão entre os projetos artísticos do Concretismo e Neoconcretismo, Morais claramente posiciona-se a favor do lado carioca, reconhecendo sua faceta mais experimental e ousada. Morais ao longo do artigo demonstra todo o seu entusiasmo com a cidade para onde está se mudando, e declara que:

O Rio é um Happening . Antes de tudo, o uso ilimitado da liberdade criadora. Ausência de qualquer compromisso com as tradições, ou com o que vem de fora. Esta sensação de liberdade cresce à medida que se sabe ser o Rio uma cidade aberta, cidade sem raízes ou pelo menos não tão marcantes como Minas ou São Paulo... O Rio é o lugar onde todos acontecem e tudo acontece. A própria cidade é um acontecimento. 74

73 MORAIS, Frederico . Por que a Vanguarda é Carioca? Proposta 66, Artes. São Paulo, n. 9, nov-dez. 1966, p.1. 74 Idem

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A partir de 1966, vivendo no Rio de Janeiro, Frederico Morais continuou atuando como professor de história da arte em cursos livres e crítico de arte do Jornal do Brasil, do Diário de Notícias e de outros veículos esporadicamente. Assumiu também o cargo de diretor cultural do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O MAM-RJ durante esta época consolidou-se ainda mais como um espaço de efervescência cultural e experimentação – assim como um ponto de encontro de artistas, críticos e curadores - com a presença de propostas realizadas por Frederico Morais:

Eu cruzei com o Roberto Magalhães em uma das esquinas, descemos juntos para ir ao museu e lá eu me encontrei com a diretora executiva e ela me convidou para dar aulas de História da Arte. Eu aceitei mas continuei no Diário de Notícias e pouco a pouco eu fui me entrosando mais. Nisso acabei assumindo a direção dos cursos e fiz uma reforma profunda tentando integrar todas as matérias, criando uma série de cursos novos e ocupando os espaços, a cinemateca, os jardins com atividades que iam da manhã até à noite, todos os dias da semana. Nos domingos vieram os Domingos da Criação. Lá eu passei anos, chegava às sete da manhã e ia embora meia-noite. (...) O museu foi um espaço que permitiu que eu ampliasse a minha atividade. 75

Neste momento, aproxima-se ainda mais de novos nomes da arte brasileira, artistas de uma geração um pouco posterior à Helio Oiticica e que já iniciaram a carreira pautados nas linguagens mais contemporâneas e experimentais. Tratavam-se especialmente de Cildo Meireles e Artur Barrio - jovens politizados e ousados, pertencentes a uma geração de plena efervescência e engajamento latente:

Pouco a pouco eu fui me aproximando de uma geração posterior. O Cildo Meireles, o Artur Barrio, que eram artistas mais jovens, quase da minha idade. E é uma geração com a qual eu estou ligado até hoje, especialmente o Cildo, que é um amigo fraterno há mais de cinquenta anos. Dos demais eu me afastei um pouquinho, afinal o Gerchman foi para os Estados Unidos, o Hélio também, mas eu cheguei a visita-lo em Nova Iorque. O Antônio Dias foi para a Europa, o Roberto Magalhães foi a Paris. Sem me afastar totalmente da geração em que eu me iniciei eu acabei me conectando mais a uma geração posterior. Não era apenas uma questão de afetividade ou amizade, mas eu achava que fazia sentido. Debatíamos os trabalhos,

75 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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trocávamos ideias. Eles frequentavam a minha casa, ficavam para jantar, tomavam cerveja. 76

É importante salientar que em meados da década de 1960, momento em que o trabalho de Frederico Morais se difunde no Brasil, havia um importante número de críticos de arte e curadores que atuavam de maneira propositora e renovadora na arte brasileira. Em São Paulo o diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) Walter Zanini realizou mostras e projetos com diversas novas linguagens, como a arte conceitual e a arte postal, iniciando inclusive uma coleção do museu dedicada a tais linguagens. Realizou também as exposições denominadas JACs (Jovem Arte Contemporânea), dedicadas às produções mais recentes dos artistas brasileiros, muitas delas repletas de experimentação e inovação 77 . O professor e pesquisador do campo da física Mario Schemberg teve também uma importante atuação como crítico de arte e mesmo em momento anterior ligando-se à arte moderna, engajou-se na arte contemporânea brasileira, escrevendo importante textos sobre Lygia Clark e Helio Oiticica 78 . Em Belo Horizonte o artista e professor Marcio Sampaio realizava os Salões Municipais, participou de sua abertura para as linguagens contemporâneas e envolvia-se com a produção artística local. 79 Dentre os muitos nomes importantes na crítica de arte, a principal influência intelectual para Frederico Morais foi Mario Pedrosa. Crítico de arte e militante político, Pedrosa exerceu papel fundamental junto às instituições de arte de meados do século XX e inclusive contribuiu com a profissionalização da crítica de arte no Brasil. Sua postura engajada foi também autônoma – Pedrosa rompeu com o Partido Comunista por se identificar com os ideais Trotskistas e se distanciou da arte de teor militante. Seu pensamento permaneceu aberto às práticas de vanguarda das décadas de 1960 e 70 e sua colocação da arte como “exercício experimental da liberdade” tornou-se uma ideia importante na orientação de Frederico Morais. 80 O reconhecimento e admiração por Mario Pedrosa ficam evidentes na carta escrita por Frederico Morais e publicada no Jornal O Globo em 1980:

76 Idem. 77 JAREMTCHUK, Daria. Jovem Arte Contemporânea no MAC da USP . Dissertação de mestrado, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999. 78 OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Schemberg: Crítica e Criação . São Paulo, Edusp, 2012. 79 RIBEIRO, Marilia Andrés. Op. Cit. 80 Amaral, Aracy. Mario Pedrosa: um homem sem preço . In: Marques Neto, José Castilho (org.), Mario Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

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Meu querido Mario Pedrosa, você será homenageado na Bienal de São Paulo pelo formidável impulso que deu à crítica de arte no Brasil- com seu talento, sensibilidade e irrepreensível postura ética. Irei à Bienal ouvir- com a emoção de sempre - sua palavra lúcida e experiente e abraça-lo com força para dizer o quanto aprendi com você. Aprendi que o crítico não deve nunca demitir-se de sua função - que é de enfrentar a obra de arte com critérios, o mais possível objetivos, porém abertos - com a lucidez que não exclui a paixão. Para retirar do caos e do informe sua estrutura clara e limpa, que ilumina nossa vida e nosso ser; para poder situar a cada proposta individual em um processo mais amplo, que diga respeito a sua época e a sociedade a qual pertence. 81

Em 1970 a participação de Frederico Morais em Do Corpo à Terra explora uma extensa gama de papéis: ele ocupou o lugar de propositor do evento, curador, crítico, jornalista, artista e autor do Manifesto do Corpo à Terra . O manifesto, de caráter engajado e panfletário, foi distribuído como um panfleto mimeografado no Parque Municipal por volantes e foi publicado no Jornal Estado de Minas no dia 20 de abril de 1970. Morais desenvolve no texto uma serie de ideias apresentadas na exposição: a consciência do corpo como elemento fundamental da criação; a aproximação do contato com a terra – incluindo tanto a cidade quanto a natureza; a fusão entre arte e vida, os múltiplos sentidos despertados pelas obras e o papel essencial da arte na construção de uma sociedade com liberdade e justiça social. O texto foi dividido em nove parágrafos e sua estrutura é didática, acessível e engajada; explicita de forma corajosa a repressão que o Brasil vive na esfera cultural e cobra um posicionamento do governo para promover a liberdade artística de seus cidadãos.

A afirmação pode ser temerária. Mas tenho para mim que não existe ideia de nação sem que ela inclua automaticamente a ideia de arte. A arte é parte de qualquer projeto de nação, integra a consciência nacional. Noutro sentido, pode-se dizer que a arte toca diretamente o problema da liberdade. Claro, também, que o exercício criador será tanto mais efetivo quanto maior for a liberdade. Necessidade vital do homem, a arte é por isso mesmo uma necessidade social. É mais que um fato coletivo- é parte integrante da sociedade. Todo homem é criador (...) A repressão ao instinto lúdico do homem é uma ameaça à própria vitalidade social. Cabe ao governo, portanto, criar condições efetivas para que o “desejo estético do corpo social” se realize plenamente. (...) A terra. O corpo envolvido e envolvendo-se com os elementos naturais, com o estrutural básico da vida. O corpo reaprendendo tudo, como instrumento de uma nova cartilha. Roteiro do novo

81 MORAIS, Frederico. Carta a Mario Pedrosa . Jornal O Globo, abril de 1980.

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homem – simples, bom, espontâneo, despojado e criador. O homem pacífico. Livre. A arte deve ser um instrumento de pacificação dos espíritos. A arte é mais que um símbolo hermético da liberdade. A arte é a própria experiência da liberdade. Mantê-la e ampliá-la é a tarefa de todos, é tarefa do governo. 82

É interessante observar que a presença de um manifesto artístico em Do Corpo à Terra trouxe à mostra um comprometimento político evidente e preciso. Os manifestos artísticos estiveram presentes desde a emergência das vanguardas europeias na segunda metade do século XIX e acompanharam o século XX, expondo ideias ousadas, propondo rupturas e gerando questionamentos e provocações ao status dominante. Ao longo das décadas de 1960 e 70 alguns importantes manifestos foram escritos por artistas e críticos de arte, entre eles o Manifesto Neoconcreto, assinado por Ferreira Gullar e por um grupo de artistas engajados com o movimento, o Manifesto de Artur Barrio, redigido pouco antes de sua participação em Do Corpo à Terra , o Manifesto Cajú, proposto por Helio Oiticica em 1979. A proposta de Frederico Morais mostra-se integrada aos elementos de sua época, integrando a composição de um cenário propositivo e engajado. Porém, em 2001, Frederico Morais admite problemas no texto:

Devo reconhecer, no entanto, que em alguns momentos a apresentação resvalava para uma retórica afirmativamente dogmática, a lembrar a linguagem de outros manifestos da vanguarda histórica, contudo, plenamente justificável, tendo em vista a radicalidade das propostas dos artistas envolvidos no projeto. 83

Em 1970, na realização de Do Corpo à Terra, uma importante mudança acontece no trabalho de Frederico Morais: pela primeira vez ele apresenta-se também como artista. Além do trabalho desenvolvido como curador, crítico e idealizador, Frederico Morais exibiu no Palácio das Artes um trabalho denominado Quinze Lições sobre Arte e História da Arte – Apropriações: Homenagens e Equações. Trata-se de uma série de quinze fotografias da cidade de Belo Horizonte e do próprio Parque Municipal, feitas por Maurício Andrés. As imagens são numeradas e embaixo de cada uma delas foi inserido um pequeno texto. Alguns são

82 MORAIS, Frederico. Manifesto do Corpo à Terra. In: TRISTÃO, Mari’Stella. Da Semana de Vanguarda (1). Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 28 de abril de 1970. 83 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra . in FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no Brasil : temáticas contemporâneas, Rio de Janeiro, Ed Funarte, 2006.

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reflexões sobre a cidade, o crescimento urbano e questões sociais, como o lixo e o uso dos espaços públicos. Outros evocam homenagens a artistas, teóricos e figuras históricas (Bachelard, Brancusi, André Breton, Duchamp, Schwitters, Malevich, Tiradentes e Mondrian). Havia ainda questionamentos sobre a arte, sua função, seus limites e suas possibilidades. Morais mantém no discurso do trabalho a defesa de uma arte que promova questionamentos, tensão social e caminhe para a conquista da liberdade e para a fusão da arte com a vida e a integração entre natureza e desenvolvimento urbano. Segundo Frederico Morais:

eu escrevia no jornal e dava aula e usava slides para exibir imagens e acabava criando narrativas. Levava sequencias inteiras do mesmo artista. Eu não só agreguei textos na minha voz, e era um autor único, que fotografava, montava, era locutor e projetava. Era quase um cinema de autor. Eu achava que estava abrindo com isso um caminho para mim. Mas não que eu buscasse o status de um artista, eu só achava que aquilo poderia melhorar a minha leitura da obra de arte. Tive a influência do Roland Barthes e o seu conceito de uma crítica amorosa me interessou. Então eu fiz isso, as fotografias do parque, e chamei de lições. Era uma certa pretensão. Eu selecionei algumas imagens do parque e dos seus arredores e o fotógrafo não fui eu, era o Mauricio Andrés. A minha ideia era outra vez o lado de fora. Eu considerei o parque como uma área de prospecção e leitura. O desejo era fazer uma leitura daqueles espaços, mediados por uma obra de arte, estabelecendo uma espécie de equação entre a paisagem, ou o objeto fotografado e fazendo referência a uma obra de arte ou uma determinada definição da obra de arte. O Mauricio – sempre com a minha presença – fotografava, por exemplo, um monte de grama cortada e a respeito daquilo eu dizia “a arte não deixa traços”, o que era uma brincadeira, pois eu sempre achei que a arte deixa traços. Eu também prestei uma homenagem ao meu querido Malevich em uma imagem que abordasse o vazio. Também o Mondrian, que dizia que em um momento na vida tudo será arte. Na minha leitura a arte não seria apenas aquelas estruturas geométricas, cambiantes, mas haveria um equilíbrio total e tudo, a natureza, as pessoas, os lugares, as comidas, tudo seria arte. E é uma fotografia que aparecem as pessoas simplesmente no parque, mas havia uma harmonia, nem sempre visível a todo mundo, mas as pessoas e a paisagem compunham um equilíbrio que ao meu ver correspondia à ideia de Mondrian. E também teve as fotos daqueles tubos enormes e me lembraram o Brancusi. No passeio tinha o trabalho do Dileny que eu na foto chamei de “escavar o futuro”, pensando na Land Art. Mas quando a exposição foi inaugurada já estava coberto. E tinha uma coisa meio arqueológica mesmo, de sugerir a escavação. Arqueologia é escavar em toda a plenitude da palavra: escavar no sentido de pesquisar, aprofundar. Então fui fazendo essas relações todas. As fotografias com a legenda eu coloquei diante do local que

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eu fotografei. Os montinhos de grama já não existiam mais, mas era como se dissesse que ali existiu uma obra de arte. 84

Certas características das fotografias realizadas por Morais podem ser relacionada com a tradição conceitual (ou conceitualista), marcante na década de 1960 e com significativa inserção na arte brasileira da época. O uso da linguagem escrita e a prática de relacionar imagens a textos foi utilizada com frequência por artistas conceituais, como o estadunidense Joseph Kosuth e o grupo Art & Language 85 . Morais, mesmo com uma postura artística predominantemente próxima da Arte Povera, mostrou-se neste momento alinhado às pesquisas e propostas da arte conceitual, empregando alguns de seus recursos explicativos e textuais. Com essa ação ele reforçou ainda mais a politização e engajamento de suas propostas, depositando nas imagens reflexões e discussões sobre o caráter libertário e transformador da arte e sua importância na construção da sociedade. O título dado por Morais à proposta coloca o seu papel como professor e educador em destaque e evidência; as “lições sobre arte e história da arte” nos lembram que ele foi professor em diversas instituições e cursos livres e este era um pilar fundamental de sua atividade profissional. Morais através dessa obra mantém o caráter didático de sua atuação; apresenta ao público artistas e teóricos (alguns mais populares e outros desconhecidos do grande público) imersos e contextualizados em situações distintas e inusitadas, construindo narrativas criativas e questionadoras. Após a realização de Do Corpo Á Terra e a criação de seu primeiro trabalho artístico em Belo Horizonte, a atuação de Frederico Morais passou por uma significativa expansão. Antes dessa experiência seu trabalho pautava principalmente no jornalismo, na crítica, na curadoria e na docência; porém, após Do Corpo à Terra , ele também ocupa a posição de artista, produzindo trabalhos e participando de mostras e exposições. Ao longo da década de 1970, Frederico Morais realizou diversas propostas que utilizaram o suporte audiovisual, assim como uma reinterpretação de uma das propostas de Cildo Meireles, na mostra A Nova Crítica , em 1970 na Petite Galerie no Rio de Janeiro. Em 1973 o Museu de Arte Moderna de São Paulo inaugura a mostra Audiovisuais dedicada a três dos principais trabalhos de Frederico Morais: Memória

84 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015. 85 FREIRE, Cristina. Arte Conceitual . Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2016.

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da Paisagem , de 1970, O Pão e o Sangue de Cada Um , de 1970 e Cantares , de 1971. A curadora Aracy Amaral escreve:

À atividade interdisciplinar do artista – que se espraia agora por áreas de investigação adjacentes ou atividades ou não-afins – a essa extensão de seu atuar em muitos lugares hoje muito mais social e político do que propriamente artístico, corresponde, sem dúvida, também, uma extensão do agir do crítico. O crítico-criador e artista- crítico (que desde o início do século não é mais exceção, o artista teórico). E posiciona-se entre nós, como em outros centros, o crítico- criador, ao mesmo tempo em que assume essa postura, se defronta com o artista em circunstâncias estranhas e novas, não mais o objeto de sua reflexão, mas o colega, o companheiro de pesquisa, o concorrente, conceitualmente falando. No caso específico de Frederico Morais, ele passou não apenas a interpretar por escrito as manifestações que vê à sua volta, como estimulá-las, a ele próprio realizar propostas. 86

Ao longo da década de 1970 Frederico Morais promoveu importantes iniciativas artísticas, culturais e educativas – no Rio de Janeiro e no restante do Brasil. Entre as mais destacadas encontram-se os Domingos de Criação, realizados em 1971 na área externa do MAM-RJ. Morais convidava artistas 87 para aos domingos desenvolver uma ocupação nos entornos do Museu – o aterro do Flamengo e os jardins do museu – com a ampla participação do público. Disponibilizava materiais diversos e explorava múltiplos recursos, possibilitando uma vivência lúdica e participativa. Tais eventos mesclavam performance, música, brincadeiras e um engajamento de toda a comunidade da região, incluindo artistas e público em uma interação direta e horizontal. 88 A atuação e o legado de Frederico Morais para a arte brasileira ultrapassam as fronteiras conceituais e geográficas. Sua atuação profissional centrou-se especialmente em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, mas também se fez presente em Brasília, Curitiba, Bahia e outras cidades, através de exposições realizadas, críticas redigidas e participação em júris de concursos. Ao longo do desenvolvimento de suas atividades manteve o olhar crítico e jornalístico sobre a arte – não apenas interessado em categorizar ou qualificar, mas como propositor de ideias e práticas.

86 AMARAL, Aracy . Frederico Morais- Audiovisuais . MAM- SP, junho de 1973 (catálogo). 87 Entre os artistas participantes encontravam-se Carlos Vergara e Amir Haddad. 88 O documentário Um Domingo com Frederico Morais, dirigido por Guilherme Coelho apresenta depoimentos e registros sobre os Domingos de Criação.

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CAPÍTULO 3. LEITURAS E DESDOBRAMENTOS DE DO CORPO À TERRA

O evento Do Corpo à Terra , desde sua inauguração, gerou diversos tipos de repercussão. Já nos dias de ocorrência da mostra surgiram nos jornais de Belo Horizonte uma variedade de notícias e textos comentando os acontecimentos – alguns manifestando apoio e outros expressando incompreensão acerca das propostas. Poucos dias depois, no mês de maio de 1970, uma reportagem de Francisco Bittencourt no Jornal do Brasil apresentou uma retrospectiva da mostra e uma entrevista com Frederico Morais. 89 O texto nomeava o grupo de artistas participantes de geração tranca-ruas e contribuiu para a divulgação nacional da mostra, bem como com a construção do status de importância, irreverência e marco de Do Corpo à Terra . A presença dos registros da Situação T/T1 de Artur Barrio na mostra Information , realizada pelo MoMA em Nova York colaborou para a projeção internacional do evento, bem como para a consolidação da importância da arte de resistência do Brasil, apresentada ao lado da produção de outros países. Décadas depois Do Corpo à Terra tornou-se objeto de estudo e reflexão para artistas, curadores e pesquisadores. Marília Andrés Ribeiro defendeu em 1995 sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo – posteriormente transformada em livro – com o título de Neovanguardas: Belo Horizonte: anos 60 , onde analisa a produção artística da cidade naquela década, seus principais artistas, críticos e exposições 90 . Ribeiro apresenta em seu trabalho relatos do próprio Frederico Morais, informações, dados e imagens de Do Corpo à Terra. Em 2005 o pesquisador Paulo Reis defendeu sua tese pela Universidade Federal do Paraná intitulada Exposições de Arte: Vanguarda e Política entre os anos 1965 e 1970 .91 O autor apresenta uma série de exposições – incluindo Do Corpo à Terra e seu papel na arte contemporânea. Também pela Universidade Federal do Paraná o pesquisador Artur Freitas desenvolveu a tese de doutorado – posteriormente publicada como um livro pela Edusp – com o título Contra-Arte: Vanguarda, Conceitualismo e Arte de Guerrilha – 1969 – 1973. 92 O autor explorou o conceito de contra-arte , bem como os textos de Frederico Morais que levantam o tema. Analisou

89 BITTENCURT, Francisco. A Geração Tranca-Ruas . Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, Caderno 2, 9 de maio de 1970. 90 RIBEIRO, Marilia A. Op. Cit. 91 REIS, Paulo. Op. Cit. 92 Freitas, Artur. Op. Cit.

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de maneira detalhada os trabalhos Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político de Cildo Meireles e Situação T/T1 de Artur Barrio. O pesquisador Rodrigo Vivas Andrade desenvolveu uma pesquisa de doutorado, na Universidade Estadual de Campinas, defendida em 2008, intitulada Os Salões Municipais de Belas Artes e a Emergência da Arte Contemporânea em Belo Horizonte.93 O autor apresenta com detalhes das exposições ocorridas na década de 1960, inclusive Do Corpo à Terra . A presença de tais pesquisas nas universidades brasileiras mostra como as exposições realizadas durante as décadas de 1960 e 1970 são bastante consideradas nas narrativas da História da Arte brasileira. Do Corpo à Terra é compreendido, neste contexto como um importante espaço de criação, experimentação e resistência e os registros de suas obras mantem-se até hoje presentes em mostras e coleções.

93 VIVAS, Rodrigo. Op. Cit.

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3.1. A repercussão de Do Corpo à Terra na imprensa

Nas décadas de 1960 e 1970 o principal espaço de divulgação da produção artística era a imprensa. A grande maioria dos jornais da época possuíam espaços destinados a comentar exposições, trabalhos artísticos e até mesmo temas mais gerais da arte no Brasil e no mundo. Em Belo Horizonte os principais veículos que tratavam de temas ligados às artes eram o Suplemento Literário de Minas Gerais (criado em 1966) o Jornal Estado de Minas e o Jornal Diário da Tarde. No primeiro dia de Do Corpo à Terra - 17 de abril de 1970 - o Jornal Estado de Minas publicou uma matéria ocupando duas páginas, assinada pelo Frederico Morais. Nela continha algumas das imagens da série “Quinze Lições sobre Arte e História da Arte”, mostrando locais de Belo Horizonte e do Parque Municipal, com legendas e textos associados às imagens realizadas pelo fotógrafo Maurício Andrés. No Texto do artigo Morais apresenta ao leitor o projeto que pretende realizar com a mostra Do Corpo à Terra e para isso utiliza termos como “arte conceitual”, “happenings ”, “apropriações” e “arte cinética”, mostrando um vocabulário crítico alinhado com as práticas artísticas realizadas no evento. O autor ainda comenta que se trata de uma exposição diferente - ao ar livre - ocupando o Parque Municipal, uma vez que o espaço tradicional de um museu já não consegue abrigar todas as propostas. Apresenta também no texto um convite ao leitor para descobrir esta experiência:

Percorra a exposição à pé. Após ver, bulir e imaginar as obras, pare por alguns instantes em qualquer lugar do parque, ou sente-se, ou deite-se sobre a grama. Respire profundamente. Escute as batidas do coração, tome o pulso, sinta o suor e o cansaço no seu corpo. A obra está pronta. E terminada. 94

Frederico Morais expressa no texto sua proximidade com as propostas artísticas desenvolvidas ao longo da década de 1960 e sua intenção de que Do Corpo à Terra fosse para o público uma experiência corporal. As obras pretendiam aguçar os sentidos, ampliar as sensações físicas e despertar percepções além do campo visual. O espectador ganha também um papel ativo na criação; a realização de muitas das propostas depende bastante de sua integração com o público. A visão

94 MORAIS, Frederico. Quinze lições sobre arte e História da Arte. Apropriações: homenagens e equações. Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 17 de abril de 1970, p.6.

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expandida do campo artístico fica evidente no texto, que defende que os objetos e situações comuns e do cotidiano podem transformar-se em arte. Para Morais:

Hoje, tudo pode transformar-se em uma situação artística: um campo de tênis, a grama cortada, a multidão, fumaça colorida, uma faixa, velas acesas, gelo desfazendo-se, um volante que anuncia a exposição, um filme ou a documentação da mostra, o detrito. Durante dois dias, portanto, o Parque será um território livre, uma espécie de cidade lúcida, na qual todos, artistas e espectadores poderão criar livremente”. 95

Logo no dia seguinte – 18 de abril de 1970 - também no Jornal Estado de Minas, a crítica da arte e diretora do Palácio das Artes Mari’Stella Tristão escreveu uma matéria sobre o evento, listando todos os artistas participantes e elogiando a iniciativa de Do Corpo à Terra . Tristão, conforme anteriormente mencionado, foi quem convidou Frederico Morais a elaborar uma proposta de exposição no Palácio das Artes como parte das comemorações da Semana da Inconfidência, e teve, portanto, um papel fundamental na realização e planejamento das ações. O artigo contextualiza Do Corpo à Terra no cenário internacional, afirmando que experiências artísticas dessa natureza já são mais comuns na Europa e nos Estados Unidos, e afirma que “com essa exposição, atingimos o ‘clímax’ das realizações vanguardistas e pioneiras em Belo Horizonte”. 96 Mari’Stella Tristão voltou a comentar sobre Do Corpo à Terra no Jornal Estado de Minas no dia 28 de abril, portanto, após o término do evento. A crítica relata sobre os artistas que “apesar do aspecto irreverente trouxeram novas linguagens à arte belorizontina” 97 e menciona que houve um estranhamento em relação às obras mas considera esta situação, pois as propostas eram inovadoras e exigiam novas maneiras de perceber a arte. Segundo Tristão, “aceito por uns, criticado por outros, é isto que ocorre no mundo civilizado de hoje e nós fazemos parte dele”. 98 Porém no texto Mari’Stella Tristão lamenta o episódio envolvendo a

95 Idem. 96 TRISTÃO, Mari’Stella. Uma Semana de Arte de Vanguarda . Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 18 de abril de 1970. 97 TRISTÃO, MariS’tella. Da Semana de Vanguarda . Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 28 de abril de 1970, p.5. 98 Idem.

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queima de galinhas e afirma que “esta obra não aparecerá nos anais da promoção”. 99 Algo bastante curioso ocorreu na repercussão de Do Corpo à Terra na imprensa mineira. O evento não foi comentado apenas pelos críticos de arte nos cadernos de cultura dos jornais da cidade, mas tornou-se assunto de colunistas sociais e notas políticas. O jornalista Wilson Frade, autor desde a década de 1950 da renomada coluna Notas de um Repórter no Jornal Estado de Minas, teve seu interesse despertado por Do Corpo à Terra e redigiu em sua coluna breves considerações sobre a mostra. Já no dia 18 de abril o jornalista lançou duas notas comentando a abertura da mostra no Palácio das Artes; primeiramente ele relata a homenagem prestada por José Ronaldo a José Narciso, falecido recentemente:

José Ronaldo colocou uma tela de José Narciso na parede e fez dois cordões de velas acesas que se prolongavam pelo interior do Palácio, saiam pela rua e foram até a casa do pintor. Dizem que foram necessárias, para isso, mais de duas mil velas. 100

Em seguida Frade relata suas impressões acerca da proposta de Decio Noviello:

O Salão de Vanguarda está uma coisa louca. Só indo lá para ver. Coisas que só o próprio artista, com a sua imaginação, seria capaz de explicar. Noviello, um astro da vanguarda, apresenta um trabalho que é (assim disseram) uma fumaça, que sobe e desaparece. 101

Percebe-se já neste momento o tom de estranhamento com o qual Wilson Frade comenta as experiências realizadas na mostra. O artista é descrito ironicamente como um “astro da vanguarda” e sua proposta é considerada incompreensível para além da imaginação do artista. No dia 19 de abril de 1970, Frade volta a comentar a abertura do evento, ocorrida no Palácio das Artes e a reação das autoridades frente às propostas artísticas exibidas. Ele afirma que o secretário Diz Ventura, representante do governador de Minas Gerais, ao se deparar com as obras presentes, declarou que “se o governador Israel Pinheiro tivesse vindo

99 Idem. 100 FRADE, Wilson. Notas de Um Repórter. Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 18 de abril de 1970, p. 2. 101 Idem.

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aqui, teria mandado fechá-la na hora”. 102 O prefeito de Belo Horizonte Sousa Lima – de acordo com o repórter – também manifestou insatisfação e parecia bem irritado, dizendo que “não sabia que era isso”. 103 Frade voltou ainda a mencionar as mostras Objeto e Participação e Do Corpo à Terra nos dias 23 e 24 de abril de 1970, dizendo primeiro que as obras eram “ prafrentex ”104 e afirmando em seguida que “do jeito que a arte está mais dia menos dia vai acabar indo pro brejo”. 105 A maneira sincera e espontânea que Wilson Frade empregava ao expressar suas percepções acerca da mostra evidenciam o desgosto que possuía com as práticas artísticas contemporâneas. Frade dedicava sua coluna a assuntos como futebol, política, cotidiano e sociedade e eventualmente comentava sobre as exposições da cidade. O jornalista era pintor amador e foi colecionador de arte, constituindo ao longo de sua vida um acervo de mais de 500 obras de artistas como Alberto da Veiga Guignard, Inimá de Paula, Carlos Bracher, entre outros 106 . Apesar de seu apreço pela arte moderna, Wilson Frade demonstra em seus textos falta de interesse acerca das linguagens contemporâneas e resistência em perceber qualidade nos trabalhos executados. A ideia apresentada de que a arte pode estar “indo para o brejo” explicita um olhar presente em parte da sociedade e da própria imprensa, de que a arte perdeu a sua qualidade, uma vez que a arte deixou de lado os suportes e práticas tradicionais e passou a explorar poéticas mais ousadas. Frade também em sua coluna apresentou um importante testemunho das reações de autoridades políticas na noite de abertura de Objeto e Participação no Palácio das Artes. De acordo com o colunista, tanto o prefeito de Belo Horizonte quanto o secretário que representava o governador de Minas Gerais reagiram com susto e insatisfação perante as obras apresentadas. O secretário inclusive mencionou que caso o governador estivesse presente na exposição ele teria mandado fechar a galeria. É importante observar de que modo que esta fala

102 FRADE, Wilson. Notas de Um Repórter. Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 19 de abril de 1970, p. 6. 103 Idem. 104 Frade, Wilson. Notas de um Repórter. Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 23 de abril de 1970, p.4. 105 Frade, Wilson. Notas de um Repórter. Belo Horizonte, Jornal Estado de Minas, 24 de abril de 1970, p.5. 106 Estas informações foram citadas no pronunciamento do Senador Francelino Pereira realizado na ocasião do falecimento de Wilson Frade no dia 17 de novembro de 2000. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/313060

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posiciona-se no contexto político de censura cultural e autoritarismo predominante no Brasil no ano de 1970. Um ano antes, em 1969, a exposição que exibiria as obras brasileiras que estariam presentes na Bienal de Paris foi cancelada por ordem do Ministério das Relações Exteriores. Em 1967 a IX Bienal de São Paulo teve algumas de suas obras recolhidas pelas autoridades e em 1968 a Bienal da Bahia teve seus trabalhos apreendidos pela Polícia Federal. 107 O regime militar que vigorava no país vinha interferindo com veemência na produção artística e cultural, exercendo a censura no teatro, na música, na literatura, nas artes visuais através de diversos mecanismos políticos. 108 O comentário relatado por Wilson Frade feito pelo representante do Governador do Estado mostrou a possibilidade de fechamento da mostra, uma vez que outras mostras de características semelhantes já haviam sido fechadas nesse período. As exposições Objeto e Participação e Do Corpo à Terra ocorreram conforme a programação prevista, apesar da ameaça de fechamento no momento da abertura e posteriormente algumas obras sofreram interferência da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e dos funcionários do Parque Municipal. No jornal Diário da Tarde o crítico Morgan da Motta comentou em sua coluna sobre as mostras no Palácio das Artes e no Parque Municipal. No dia 23 de abril ele comenta sobre o debate realizado por Frederico Morais, considerando o evento com pouca qualidade, apesar da mostra conter bons artistas:

Em sequência ao IV Salão de Ouro Preto – Vanguarda Brasileira – foi realizado debate no Palácio das Artes segunda-feira à noite dirigido pelo crítico Frederico Morais. Ao contrário do que se esperava o debate não deu em nada, redundando num vazio total, ao contrário desta coletiva que é de elevado nível e com raríssimas exceções quase todos os participantes são qualificados de fato. 109

Motta voltou a comentar o evento e redigiu no dia 27 de abril uma matéria mais completa sobre Do Corpo à Terra , que comentava sobre os trabalhos realizados e ressaltava o estranhamento que certas obras despertaram na crítica e no público. Motta apresenta também uma narrativa acerca da obra Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político, de Cildo Meirelles.

107 SCHROEDER, Caroline. A censura política às Artes Plásticas em 1960. Anais do IX Fórum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013. 108 RIDENTI, Marcelo. Cultura e Política: os anos 1960 e 1970 e sua Herança. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.) O Brasil Republicano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009. 109 MOTTA, Morgan da. Notas . Belo Horizonte, Jornal Diário da Tarde, 23 de abril de 1970, p.11.

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Por estranho paradoxo, o sacrifício foi duramente criticado por deputados, que comiam frango ao molho pardo, às custas do governo, em Ouro Preto, no dia 21 de abril. Frangos que foram mortos pela manhã. O frango do forno não choca tanto os deputados quanto o outro, que foi sacrificado numa demonstração de retorno à vida tribal. 110

O relato de Morgan da Motta acerca da refeição dos deputados mineiros na celebração da Inconfidência Mineira em Ouro Preto não foi confirmado em mais nenhum texto, veículo de informação ou testemunha. Desta forma, pode ser interpretado como uma espécie de anedota, como uma provocação à postura conservadora da sociedade, que se chocou com a obra de Cildo Meireles mas contraditoriamente permite outros tantos modos de sacrifício, tanto na política quanto na própria cultura alimentar. O frango ao molho pardo, também conhecido como cabidela é uma receita típica – bastante popular na cozinha mineira - de origem portuguesa e utiliza o sangue da ave recém-abatida para o preparo do molho que envolve a carne. A utilização do sangue como ingrediente culinário é tradicional em certas culturas, mas proibido para alguns povos, como judeus e mulçumanos. 111 Motta, ao relacionar a obra de Cildo Meireles com o frango ao molho pardo, abre a possibilidade para um diálogo entre o trabalho realizado e a culinária mineira. O autor – apesar de criticar o debate realizado no Palácio das Artes - defende a arte de vanguarda e as propostas artísticas realizadas em Do Corpo à Terra . Admite ao longo de seu texto o estranhamento sentido por parte da imprensa e do público frente às propostas apresentadas e declara que “a falta de informação quase total impede que o público perceba mais profundamente os significados colocados” 112 . Do Corpo à Terra também foi noticiado pela imprensa do Rio de Janeiro, em jornais onde o Frederico Morais colaborava. Porém, sua presença mais significativa foi no artigo redigido por Francisco Bittencourt no Jornal do Brasil no dia 5 de maio de 1970, intitulado Geração Tranca-Ruas . Já no título do texto, o autor escolhe um nome bem específico para batizar os artistas oriundos do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte participantes de Do Corpo à Terra. O nome geração tranca-ruas foi inspirado na entidade religiosa da cultura afro-brasileira Exu Tranca-Ruas

110 MOTTA, Morgan da. As Galinhas morrem queimadas na arte de vanguarda . Belo Horizonte, Jornal Diário da Tarde, 27 de abril de 1970, p.7. 111 LOPES, Dias. Ascensão e queda da galinha de cabidela . Jornal Estado de São Paulo, 2 de setembro de 2010. 112 Idem.

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responsável pela proteção dos terreiros de Umbanda e Candomblé. Tal inspiração veio das propostas de Do Corpo à Terra , que segundo Bittencourt “seguiram uma linha de pobreza e despojamento quase religiosos”. 113 O autor comenta brevemente no texto sobre as obras realizadas em Belo Horizonte e diz que a proposta de Cildo Meireles foi “de uma crueldade terrível” 114 . Por fim, apresenta uma entrevista com Frederico Morais, que posiciona o desenvolvimento de suas propostas no panorama do modernismo no Brasil:

Mario de Andrade, 20 anos após a Semana, comenta em conferência que “nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou”. Nós somos mais pretenciosos: se a nossa civilização está apodrecida, voltemos à barbárie. Somos os bárbaros de uma nova raça. Os imperadores da velha ordem que se guardem. (...) Trabalhamos com sangue, ossos, lama, terra ou lixo. O que fazemos são celebrações, ritos, rituais sacrificatórios. Nosso instrumento é o próprio corpo – contra os computadores. 115

Em entrevista, Frederico Morais comentou sobre a repercussão dessa reportagem e do título utilizado para designar os artistas de Do Corpo à Terra:

O Francisco Bittencourt escreveu no Jornal do Brasil. Foi nesse momento que ele cunhou a expressão geração tranca-ruas . Isso levou depois a uma discussão. O Bittencourt acompanhou muito o que eu fazia e era inclusive muito amigo da Wilma também. Mas o Helio Oiticica em um texto, ou carta, não me lembro, nega a participação nessa dita geração. O Helio não aceitou esse termo. E na verdade foi um erro do Bittencourt, pois a geração tranca-ruas se aplica a uma geração posterior à do Helio. A ligação do Helio era com o Neoconcretismo e com o Tropicalismo. Ele já era um artista maduro na arte brasileira, um artista veterano - mesmo com todos os seus pioneirismos - e foi colocado no mesmo meio que artistas bem mais jovens. A geração tranca-ruas é muito mais ligada ao Barrio, que fazia umas espécies de “despachos” de macumba e colocava nas esquinas. Isso incomodou o Helio. 116

As notícias e textos presentes nos jornais da época nos aproximam dos múltiplos olhares que Do Corpo à Terra despertou em seus contemporâneos. Surgiram desde comentários entusiasmados por parte dos críticos de arte mais ligados às propostas contemporâneas até colocações negativas, advindas de

113 BITTENCOURT, Francisco. A Geração Tranca-Ruas. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, Caderno 2, 5 de maio de 1970. 114 Idem. 115 Idem. 116 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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setores mais conservadores. Belo Horizonte – apesar de possuir uma crítica de arte especializada e ativa – teve maneiras diversas de construir seus discursos acerca do evento. Estes testemunhos inclusive escaparam dos cadernos de cultura e dos espaços destinados ao pensamento da arte e inseriram-se nas páginas políticas e nas colunas sociais. Muitos dos textos sobre Do Corpo à Terra não dedicam-se a analisar com rigor as características estéticas ou qualidades artísticas da mostra e sim a expressar surpresa, estranhamento ou descontentamento em relação ao que foi proposto.

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CONCLUSÃO: UM MARCO RADICAL NA ARTE BRASILEIRA?

Após a realização das mostras Objeto e Participação e Do Corpo à Terra o curador Frederico Morais e alguns dos artistas participantes consolidaram-se como figuras importantes no desenvolvimento da arte brasileira. Suas propostas inovadoras - repletas de crítica, engajamento e ousadia – ganharam espaço em mostras nacionais e internacionais e ajudaram a difundir um novo modo de fazer e de pensar a arte. Para este grupo as fronteiras entre o artista e seu público são mais tênues e o ato da criação é compartilhado com os que da obra se aproximam. O espaço do museu ou da galeria de arte não foram mais fundamentais para a realização e exposição dos seus trabalhos, mas outros espaços - como o parque, a cidade ou uma montanha – serviram de palco para as propostas artísticas, aproximando-as mais do cotidiano da cidade e dos que dela vivem. De acordo com o pesquisador Paulo Reis, Do Corpo à Terra marcou o encerramento de um ciclo de exposições oriundas de um projeto de vanguarda nacional comprometida. Diversas mostras vinham sendo realizadas durante a década de 1960 – comentadas anteriormente - contendo obras engajadas em um discurso de crítica política e explorando linguagens distintas. Do Corpo à Terra seria, portanto, a última mostra que carregaria latente todas as questões de uma época específica. De acordo com o autor:

A manifestação Do Corpo à Terra estava inserida em diversas questões e problemas apontadas por sua época. De um lado, fundamentada no contexto cultural e político de final dos anos 60, ela deu continuidade e mostrou o esgotamento do projeto de uma vanguarda nacional comprometida social e politicamente. De outro, pela proximidade das pesquisas experimentais da vanguarda brasileira com a vanguarda internacional (européia e norte americana), ela configurou uma nova discussão na arte brasileira, a da arte conceitual (já evidenciada no Salão da Bússola em 1969). 117

Em certo modo, Do Corpo à Terra pode ser visto como uma espécie de apogeu da experimentação artística da década de 1960. A mostra reuniu diversas das características marcantes da arte de sua época – a ruptura com os suportes tradicionais, a ocupação de espaços fora do museu e da galeria, a participação do público e a latente politização das propostas. Alguns dos mais relevantes artistas da

117 REIS, Paulo. Op. Cit. P. 187.

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época estiveram presentes na mostra e lá realizaram trabalhos significativos em suas carreiras. Após a realização de Do Corpo à Terra os cenários políticos e culturais do país foram transformando-se e outras práticas artísticas tornaram-se comuns. O final da década de 1970 assinala para a abertura política no Brasil, após ampla mobilização nacional e internacional. A revogação do Ato Institucional n.5 em 1978 e a promulgação da Lei da Anistia em 1979 pelo presidente João Figueiredo foram fatores que reconfiguraram o cenário nacional, transformando inclusive a produção artística e cultural. 118 Deste momento adiante, algumas das obras realizadas nas décadas de 1960 e 1970 passaram a representar o legado de uma época de politização e ruptura de linguagem. Do Corpo Á Terra manteve-se considerada ao longo das décadas que lhe sucederam um momento importante da arte brasileira. A mostra foi tema de entrevistas, matérias jornalísticas e pesquisas acadêmicas, que explicitavam sua importância e seu caráter de inovação entre as mostras realizadas na época. Como parte disso, em 2001 o Instituto Itaú Cultural realizou em Belo Horizonte uma mostra retrospectiva inteiramente dedicada a Do Corpo e a Terra . Com a curadoria do próprio Frederico Morais, a exposição recebeu o título de Do Corpo à Terra: um marco radical na arte brasileira . Ela foi organizada a partir dos registros das obras realizadas no Palácio das Artes, no Parque Municipal e na Serra do Curral – pertencentes ao acervo do Palácio das Artes, do Instituto Itaú Cultural, de Frederico Morais e dos próprios artistas. A exposição continha algumas das obras que podiam ser apresentadas, mas também fotografias, vídeos, desenhos, anotações, documentos e projetos de execução. A escultura de Franz Weissmann foi apresentada em uma versão reduzida na galeria. A mostra foi montada de maneira tradicional – ocupando o espaço do cubo branco 119 e com seus objetos exibidos nas paredes ou vitrines (imagem 26). Além disso, a mostra produziu um catálogo, contendo um texto inédito de Frederico Morais sobre o evento, bem como fotografias, registros e documentos.

118 NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro . São Paulo, Editora Contexto, 2014. 119 A Ideia de um espaço expositivo capaz de transmitir neutralidade, com paredes brancas é presente desde o advento da arte moderna e tornou-se objeto de discussão do livro: O’DOHERTY, Brian. No interior do Cubo Branco: A Ideologia do Espaço da Arte . São Paulo, Editora Martins Fontes, 2002.

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Imagem 27: Exposição Do Corpo à Terra: Um Marco Radical na Arte Brasileira. Fonte: Catálogo Itaú Cultural.

Grande parte dos trabalhos originalmente realizados em Do Corpo à Terra são impossíveis de se expor em uma galeria e incluem em sua proposição a presença do espaço exterior e das condições do parque ou da Serra do Curral para serem efetivamente executados. Tratavam-se de obras perecíveis ou happening s que ocorriam em um determinado momento e apenas as pessoas presentes acompanhavam a realização. Como solução para esta situação, a mostra optou por exibir os registros e a documentação sobre a obra, como ferramenta para apresentar ao público o que foi anteriormente realizado. Frederico Morais comenta a proposta de realizar uma retrospectiva:

eu fiz essa revisão, lá na Galeria do Itaú, que já nem existe mais. O Itaú se interessou pela arte dos anos 70 e fez um trabalho de registro e catalogação, como faz até hoje. Mas essas releituras encaixam exatamente na minha ideia de que uma obra de arte é como um filho: você lança no mundo, mas quando ela cresce e vai criando novas relações o artista já não controla mais. A obra vai ampliando seu espaço de influência. Eu acho que é preciso de tempos em tempos revisar a história da arte brasileira, pois como há um acúmulo muito grande de coisas que estão acontecendo, há uma tendência a apagar certas coisas. E quando eu fiz a Bienal do Mercosul também foi uma revisão da arte latino-americana. Era um espaço muito pequeno, mas tinha uma documentação fotográfica das obras. Foi bacana, teve discussões, um catálogo. 120

Em 2008 a mostra Do Corpo à Terra voltou a ser tratada em uma exposição. O Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte realizou na ocasião de

120 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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comemoração dos seus 50 anos de funcionamento a exposição Neovanguardas , com curadoria de Marconi Drummond e co-curadoria de Marcio Sampaio e Marília Andrés Ribeiro. Dessa vez a exibição abordou a produção artística de Belo Horizonte das décadas de 1960 e 1970 e contou com a presença de obras, registros fotográficos, projetos e vídeos - além de um catálogo contendo imagens e textos produzidos na época. Alguns trabalhos foram expostos na área externa do Museu, trazendo uma proximidade maior com as propostas originais, que exploravam as possibilidades de novos espaços para a arte. No texto de abertura, o curador Marconi Drummond ressaltou o viés político trazido no recorte presente na mostra:

Entre 1964 e 1975, a arte se manifestou sob a compreensão da censura implantada pelo regime militar, o que haveria de induzir a uma tomada de posição dos artistas, tanto política quanto artisticamente. É o momento de explosão da vanguarda, da ruptura com os antigos padrões estéticos, da atualização das linguagens em função de novas formas de comunicação. Cada vez mais distante do niilismo da abstração, a arte, por um lado, retomava a figuração, no tom de um realismo crítico exacerbado e, por outro, introduzia novos elementos extressivos – e transgressivos – como happenings, as intervenções no espaço urbano, as criações multidisciplinares e o uso de novos meios, como a fotografia e o audiovisual. Quase todos esses acontecimentos foram marcados por elementos de impacto, pela contestação ao status quo e à violência da repressão e da censura, mas não desprezaram a força da imagem poética. 121

Ao avaliar a retomada de Do Corpo à Terra em tais iniciativas, Frederico Morais comenta que:

Se você não conhece o seu passado também não vai conhecer o seu futuro. Então de tempos em tempos precisamos dar uns mergulhos. E fazer releituras e resgates pode propiciar novas indagações e debates. E até novos eventos. 122

A realização de tais mostras contribuiu para o resgate de Do Corpo à Terra , para a apresentação deste momento para outros públicos tornou possível que novas gerações de es0000pectadores experimentassem um pouco da vivencia de uma exposição repleta de possibilidades de interação e contato. Para as exposições

121 DRUMMOND, Marconi. NEOVANGUARDAS. Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, 2008, p. 6. (Catálogo) 122 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015.

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atuais, tais características podem se mostrar comuns e difundidas, mas nas décadas anteriores eram consideradas inovações. Desta forma, é possível observar que alguns dos acontecimentos da arte brasileira nas décadas de 1960 e 1970 – entre eles Do Corpo à Terra - deixaram um legado para a produção atual. Muitos dos mais importantes artistas contemporâneos realizam propostas ligadas às matrizes lançadas neste momento, e voltam suas ideias para a desconstrução das técnicas tradicionais, proposição de novos suportes e ocupação de espaços públicos, criando obras participativas e com intercessão política. Entre os nomes desta produção contemporânea está Yuri Firmeza, artista nascido em Fortaleza e participante de diversas exposições individuais e coletivas, inclusive a 31ª Bienal de São Paulo. Uma de suas mais importantes ações foi realizada em 2006 e suscitou polêmica, debates e questionamentos: Firmeza “criou” um artista japonês fictício e batizou-o de Souzousareta Geijutsuka – que em português significa artista inventado. O Museu de Arte Contemporânea do Ceará preparou-se para receber uma exposição do suposto artista, e após divulgação oficial, publicação de textos e até uma entrevista forjada, a imprensa desmascarou a farsa. Assim como Nelson Leirner – que gerou polêmica com a já mencionada proposta do porco empalhado apresentada ao Salão de Brasília em 1967, Firmeza traz à tona os controversos meandros das instituições artísticas e as formas artificiais de construir legitimidade de uma obra ou de um artista. Yuri Firmeza questiona o sistema de arte, a imprensa, a mídia e apresenta uma verdadeira provocação, que muito faz lembrar a recusa pelas instituições presentes em propostas das décadas de 1960 e 1970. 123 Paulo Nazareth é um jovem artista mineiro, nascido na cidade de Governador Valadares, que já integrou importantes mostras no Brasil e em outros países, inclusive a 55ª Bienal de Veneza em 2013. Como eixo fundamental de sua produção artística está a performance, tratada de maneira expandida; Paulo Nazareth é uma espécie de andarilho, que insere seu corpo e sua condição de artista advindo de uma realidade pobre em novas atmosferas e contextos. Seus

123 O Museu de Arte Contemporânea do Ceara, na época dirigido por Ricardo Resende, convidou Yuri Firmeza para o projeto Artista Invasor e expôs textos e desdobramentos de sua ação. O Canal Contemporâneo realizou um clipping com as notícias publicadas na ocasião do trabalho de Yuri Firmeza, com opiniões controversas sobre sua proposta: http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/000609.html

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projetos já envolveram percorrer o trajeto de sua cidade natal até Miami à pé e uma viagem de navio até o continente africano. As fronteiras atravessadas são reveladas de forma crítica e os problemas e realidades geopolíticas são trazidos à tona em seus percursos, como a xenofobia, a discriminação racial e as distintas formas de linguagem e comunicação. 124 Outros nomes podem ainda ser pensados 125 e tais exemplos nos levam a observar que as décadas de 1960 e 1970 participaram profundamente da formação artística contemporânea e deixaram um legado que foi perpetuado nas décadas seguintes, reinventando e recriando as formas de pensar a obra. Mesmo com as constantes renovações presentes nos circuitos artísticos, as propostas realizadas na época mantém-se presentes no circuito artístico e são constantemente evocadas e retomadas em pesquisas, publicações e mostras expositivas. 126 Apesar da significativa presença de ideias e práticas artísticas das décadas de 1960 e 1970 na arte brasileira da última década, determinadas transformações no circuito foram explícitas e visíveis. O mercado de arte, que anteriormente era recusado pelos artistas 127 , tornou-se um elemento fundamental na produção, interferindo em todo o sistema da curadoria e da crítica e ocupando cada vez mais espaço frente às exposições. Sobre este novo momento na arte brasileira, Frederico Morais comenta:

No meu trabalho eu nunca me interessei pela questão material e financeira da obra de arte. Pra mim este é o lado sobrejacente da obra de arte. Eu penso no que a obra é enquanto espírito, discussão, inteligência e sensibilidade. Não enquanto um objeto que é vendido como qualquer outra mercadoria por questões puramente materiais, como investimento ou especulação. E muitas vezes essas obras não comovem em nada o seu proprietário. Mas a circulação de dinheiro na arte é grande, traz repercussões nas economias dos países e pode ajudar. (...) Eu não vejo Do Corpo à Terra influenciando uma feira de arte, mas eu vejo artistas que participaram do evento com obras, que não tem um caráter “guerrilheiro” mas são importantes. Cada momento agrega novos conteúdos, pois muda o conceito material, a paisagem, o comportamento dos museus, as cidades e as obras mudam. As coisas caminham juntas: o museu, a crítica, a obra

124 NAZARETH, Paulo. Paulo Nazareth, Arte Contemporânea LTDA . São Paulo, Editora Cobogó, 2012. 125 O artista Paulinho Fluxus realizou propostas artísticas interligadas às manifestações políticas de 2013, com um trabalho repleto de referências à guerrilha artística ; Eduardo Srur construiu intervenções urbanas na cidade de São Paulo (inclusive no Rio Pinheiros) trazendo à tona discussões sobre poluição e meio-ambiente. 126 Alguns catálogos foram consultados e encontram-se citados na bibliografia. 127 Artur Barrio em seu ‘Manifesto” declara uma recusa ao mercado de arte e a comercializar suas criações. In. CANONGIA, Ligia. Op. Cit.

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de arte, o espectador. O que me incomoda é que algumas dessas feiras já se realizam nos próprios espaços das bienais. Aí a crítica se mistura também, fica meio comercial e a gente não sabe o que é o que. Então exposições como Do Corpo a Terra tem esse papel de balançar, questionar e virar uma provocação. 128

Ao avaliar o papel que Do Corpo à Terra cumpriu na arte brasileira, Frederico Morais reconhece sua importância, mas lembra-se de outros momentos significativos da arte brasileira:

reconheço que é um trabalho de mérito. Talvez o mais importante que já fiz. Acho apenas que às vezes as coisas viram uma espécie de moda. E todo mundo começa a estudar o assunto, enquanto outras coisas são esquecidas. Mas foi um projeto pioneiro, muito ousado, muito arriscado mas sinto que deu tudo certo. E é hoje um marco. Mas não foi a única, assim como o Salão de Brasília, com a polêmica do porco, tiveram os domingos no MAM. São coisas importantes. Mas tem coisas também que eu fiz que ficaram para trás, não foram boas. A gente não pode ser criativo 24 horas por dia. 129

Esta observação nos leva a pensar na construção do discurso de Do Corpo à Terra como um marco da arte brasileira. Apesar de tratar-se de um evento repleto de inovações, singularidades e proposições significativas, deve ser compreendido como parte de uma composição maior, que inclui outros momentos da arte brasileira. Desta forma, ao invés de pensar-se em seu acontecimento como um acontecimento isolado, é interessante perceber o conjunto de proposições – plurais e dinâmicas – presentes na época e que tanto movimentaram a arte brasileira. Mesmo com as múltiplas vozes presentes na produção artística do momento, Do Corpo à Terra levantou a bandeira da defesa da liberdade política, da inovação artística e da aproximação entre artista e espectador, obra e cidade.

128 Depoimento de Frederico Morais à pesquisadora. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2015. 129 Idem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FILMOGRAFIA

COELHO, Guilherme. Um Domingo com Frederico Morais , 2012. COUTINHO, Wilson. Cildo Meireles . Brasil, 1979. MOURA, Gustavo Rosa de. Cildo . Brasil, 2008. OITICICA FILHO, Cesar. Helio Oiticica , 2012.

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ANEXOS

ANEXO 1. MANIFESTO DO CORPO À TERRA

Frederico Morais

I - A afirmação pode ser temerária. Mas tenho para mim que não existe idéia de Nação, sem que ela inclua automaticamente a idéia de arte. A arte é parte de qualquer projeto de Nação, integra a consciência nacional. Noutro sentido, pode-se dizer que a arte toca diretamente o problema da liberdade - a arte é, na verdade, um exercício experimental da liberdade. Claro, também que o exercício criador será tanto mais efetivo quanto maior for a liberdade.

II - Necessidade vital do homem, a arte é por isso mesmo uma necessidade social. É mais que um fato coletivo - é parte integrante da sociedade. Todo homem é criador. O instinto lúdico é vital no homem e sua manifestação e expansão necessárias à própria vida social. Segundo Pareto, “há uma adequação total da obra de arte aos fins da sociedade, sempre que a forma da pirâmide sociocultural está em correlação suficientemente forte com o exercício estético.” A repressão ao instinto lúdico do homem é uma ameaça à própria vitalidade social. Cabe ao governo, portanto, criar condições efetivas para que “o desejo estético do corpo social” se realize plenamente.

III - O poeta Maiakovski afirmava que “a arte não é para a massa desde o seu nascimento. Ela chega a isso no fim de uma soma de esforços. É preciso saber organizar a compreensão.” Entendo que organizar a compreensão é criar condições para que todos possam exercitar sua liberdade criadora, treinar continuamente sua percepção. Pois a arte tem por objetivo ativar todos os sentidos do homem, criando- lhe condições para melhor captar e perceber o ambiente ou mesmo antecipar-se aos novos ambientes. Trata-se, portanto, de um problema bastante geral. É uma questão de mentalidade geral, de cada indivíduo, de cada professor, crítico ou artista, das instituições culturais, de todo o governo.

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IV- E tarefa deste Palácio das Artes (verdadeiramente um Museu de arte): mais que acervo, mais que prédio, o Museu de arte é uma ação criadora - um propositor de situações artísticas que se multiplicam no espaço-tempo da cidade, extensão natural daquele. É na rua, onde o “meio formal” é mais ativo, que ocorrem as experiências fundamentais do homem. Ou o museu leva à rua suas atividades “museológicas”, integrando-se no quotidiano e considerando a cidade (o parque, a praça, os veículos de comunicação de massa) sua extensão, ou será apenas um trambolho. Expor unicamente é tarefa estática - se bem que ainda útil quando se trata de mostrar retrospectivas, mostras - temas ou propostas. Atuando sem limite s geográficos - a manifestação “Arte no Parque” é certamente o esboço de uma ação bem mais ampla - o objetivo do Museu é tornar-se invisível- pelo excesso de sua presença. Plano- piloto da futura cidade lúdica, o Museu deve ser cada vez mais um laboratório de experiências, campo de provas visando à ampliação da capacidade perceptiva do homem, exercício continuado de seu instinto lúdico. Esta sala e, em torno, o Parque Municipal - são hoje áreas de liberdade - aqui a vida se faz plenamente.

V - Da arte à antiarte, do moderno ao pós-moderno, da arte de vanguarda à contraarte (proposições) a abertura é sempre maior. O horizonte da arte, hoje, é mais impreciso, ambíguo, provável - porém necessário. Situações, eventos, rituais ou celebrações - individuais ou coletivas - a arte permanece. Contudo, não se distinguindo mais nitidamente da vida e do quotidiano. O gelo que desfaz-se, a chama precária da vela, semear o campo o homem que caminha no Parque. O ponto faz-se linha, plano, chegou a espaço. E desfez-se no tempo. Como movimento Virtual, de início. Acústico, em seguida. Uma realidade contínua: espaço - tempo. Não existe mais separação entre a realidade externa e a realidade do quadro. O que deixou de existir foi a estrutura da representação. A tela rompe com a moldura, o suporte vira espaço e ampliando-se serpenteia pela parede, até despencar-se no chão, espaço real, como um animal ou inseto. Coisa orgânica. É o vôo de pássaro do objeto. Acabou-se a metáfora. A arte vive seu próprio tempo. Não havendo mais um muro a separar duas realidades antagônicas, o espaço da arte confunde-se com o espaço da vida, e é o espectador que preenche, agora, o quadrado branco. A moldura é o próprio espectador, que só tem diante de si, e nela caminha, a ausência. Não há limites. A escultura de Brancusi, da mesma forma, transforma-se em coluna infinita - o pedestal como módulo de uma programação espacial. Para o

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alto e para baixo a escultura perdeu sucessivamente volume, peso, vazando-se, confundindo-se com o chão, até que, aérea e livre, broto u do próprio céu movendo- se como as folhas de uma árvore ou no vento. De tão leve fez-se brisa, murmúrio, pura imagem colorida na sala escura, um grito no espaço , gota d’água, grama crescendo, um bocejo ou respiração. Da estátua à arte cinética , a desmaterialização sempre crescente. A vida que bate no seu corpo - eis a arte. O seu ambiente - eis a arte. Os ritmos psicofísicos - eis a arte. Sua vida intra - u erina - eis a arte. A supra - sensorialidade - eis a arte. Imaginar (ou conceber - faça-se a luz) - eis a arte. O pneuma - eis a arte. A simples apropriação de objetos, de áreas urbanas e suburbanas, geográficas ou continentais eis a arte. O puro gesto apropriativo de situações humanas ou vivências poéticas - eis a arte.

VI- Mas o homem, como a vida, não é uno. Desigual e múltiplo movimenta-se simultaneamente em várias perspectivas. Cruzadas e contrapostas, como a própria arte. Não basta o sopro anímico ou o ritual mental. É preciso recuperar ou retomar o corpo. E a terra. Entre ambos vive o objeto. A “pop” é a reificação dos objetos comuns, fetichização do óbvio e do quotidiano. Nostalgia do objeto - cuja representação desaparecera da arte. Com a “pop” acabou-se o faz- de- conta. E o reino do objeto, que é apresentado e não representado. Objeto modificado, seriado, transformado, acumulado, prensado, acrescentado, aterrorizado, mumificado, destruído, comprimido, reaproveitado, somado, dividido, multiplicado. Objeto enigmático. A entranha e o sangue do objeto - abjeto, objectum, objectar, contestar , contrariar. Colocando-se defronte do homem, obrigando-o a iniciativas. Objeto ampliado até os limites do gigantismo - por isso mesmo situado de fora do Museu. O objeto encontrado. O objeto lúdico - peça de um brinquedo, ritual ou jogo. Seria possível acompanhar a vida de um objeto - até a morte e a destruição final? O ser como um objeto, coisa abjeta. O homem como mercadoria na sociedade mercantil. O objeto é a casca, sua imagem, a embalagem. A caixa de papelão, o homem de papelão. Lixo industrial - e é da sobra que vivem os países periféricos , como do resto, freqüentemente, o artista.

VII - Objetivo, objetividade. Objeto-situação e não objeto-categoria. Como afirmava em 66: “a arte vive, no momento, uma situação nova: a do objeto, que configura ou é o veículo mais adequado para expressar as novas realidades, as novas idéias deste

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estágio pós-moderno da arte. O objeto não pode ser rotulado em qualquer meio particular de expressão - pintura ou escultura. Trata-se, agora, de uma busca de expressividade em si mesma, de uma linguagem objetiva. Mais do que isso: o objeto corresponde a uma nova situação existencial do homem, a um novo humanismo. A arte perdeu a aura mítica e aristocrática e não exige mais do espectador êxtase contemplativo, passividade. Propõe uma relação de dependência na qual o seu desenvolvimento, desabrochar ou crescimento depende da escolha ou vontade do espectador.” O objeto, que hoje defino como contra-arte, é dinâmico, aberto, orgânico.

VIII - Pollock, com gestos amplos e expressivos, praticamente esgotou o processo da pintura. Num corpo-a-corpo violento colocou-se literalmente dentro da tela. Seu processo de gotejar a tinta era o mesmo que ejacular sobre a tela, deitada no chão, os espasmos da intensidade da vida moderna. Sua pintura abriu caminho para a “pop”, e para a arte atual no que ela tem de corporal, de fisiológico. A arte de hoje reflete uma nostalgia do corpo. O corpo e sua ecumenidade, sua relação com os ritmos fundamentais da própria vida. Ritmos naturais e orgânicos. O corpo como um pulmão da existência. Sístole e diástole - respirar e transpirar. O sangue como elemento de comunicação de todos os homens. Como o suor. O corpo cabeça, tronco e membros. Todos os sentidos e não apenas a visão. Um código tátil-olfativo. Uma gramática gustativa. Uma linguagem acústica. Os demais sentidos determinam espaços circulares, por isso mesmo dinâmicos. A mão que apalpa, o corpo que anda, olfato - imaginar. E participar.

IX - A terra. O corpo envolvido e envolvendo-se com os elementos naturais, com o estrutural básico da vida. O corpo reaprendendo tudo, como instrumento de uma nova cartilha. Aqui o ar-liberdade, aqui o fogo, precário e eterno, aqui a água que como a terra fecunda e procria. Um pensamento escorre dos dedos quando a mão apalpa e sente a terra fria ou áspera e outras sensações táteis ou hápticas capazes de transmitir sutilmente um mundo subjetivo e lírico. Até que se transforme em uma nova geografia e uma nova história. Roteiro do novo homem - simples bom espontâneo despojado e criador. O homem pacífico. Livre. A arte deve ser um instrumento de pacificação dos espíritos. A arte é mais que um símbolo hermético da

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liberdade. A arte é a própria experiência da liberdade. Mantê-Ia e ampliá-Ia é a tarefa de todos, é tarefa do governo.

Belo Horizonte, 18 de abril de 1970 Publicado em: TRISTÃO, Mari’Stella. Da Semana de Vanguarda (1). Estado de Minas, Belo Horizonte, 28 de abril de 1970, p. 5.

TRISTÃO, Mari’Stella. Da Semana de Vanguarda (2). Estado de Minas, Belo Horizonte, 5 de maio de 1970, p. 5.

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ANEXO 2. QUINZE LIÇÕES DE ARTE E HISTÓRIA DA ARTE Imagens da série Quinze Lições sobre Arte e História da Arte: Apropriações: Homenagens e Equações. Apresentadas em Do Corpo à Terra – Belo Horizonte, 1970. Fonte: Acervo pessoal de Frederico Morais

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ANEXO 3. ENTREVISTA COM FREDERICO MORAIS Rio de Janeiro, 14 de outubro de 2015

PERGUNTA: O senhor iniciou sua carreira intelectual em Belo Horizonte como crítico, escrevendo em jornais importantes, como o Estado de Minas e O Binômio e foi também nesta época professor de História da Arte. Quando o senhor começou a organizar curadorias? F.M: Eu na verdade comecei como crítico de cinema e também fui presidente do Cineclube, do Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte. Eu considero uma experiência fundamental e até costumo dizer que quem não passou por um Cineclube não é gente boa. Tínhamos esta coisa de tentar buscar filmes, localizar em cidades do interior, e ninguém tinha muito dinheiro, a gente ia de Belo Horizonte até Nova Lima à pé. Depois conseguimos uma sala e procurávamos nos cinemas desativados as cadeiras... foi uma experiência muito bacana. A minha geração, que é chamada “Complemento”, que foi uma revista pequena, saíram apenas quatro ou cinco números, com textos e também umas plaquetas de poesia, toda esta geração passou pelo Centro de Estudos Cinematográficos. Um era poeta, um era historiador, um era economista, mas em comum aos sábados à noite a gente ia no CESC pra ver um filme, debater e depois íamos ao Restaurante Albino ou outro restaurante qualquer para comer feijão tropeiro... este era o clima. Belo Horizonte era uma cidade de críticos de cinema, e esta nossa Geração Complemento era uma geração de classe-média, em alguns casos classe-média baixa. Não havia propriamente ninguém muito rico. A gente tinha que se virar pra trabalhar. Esta geração é o Silviano Santiago, Maurício Leite, Pedro Vieira, eu, a Wilma Martins, o Klaus Vianna, o Carlos Dênis... e a gente atuava em todas as áreas. Tínhamos até uma área principal, mas Belo Horizonte virou um núcleo de teóricos de cinema, tanto que a gente fundou uma revista chamada Revista de Cinema, e esta teve uma duração bastante razoável, chegou a publicar 20 ou 25 números e ela levantou uma série de questões ligadas ao cinema. A primeira atividade, para muitos de nós foi de fato o cinema. E por outro lado, como éramos uma classe-média sem parentescos e a gente tinha que trabalhar. Uma das possibilidades era o jornal. E todos os jornais tinham uma coluna de cinema e eu durante dois ou três anos também tive esta coluna. Mas ao mesmo tempo eu

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trabalhava mesmo como jornalista e durante um bom tempo a minha área de trabalho foi economia. Mas Belo Horizonte não foi propriamente um produtor de filmes. Produziu muito pouco, só mais tarde isso aconteceu. E curiosamente a nossa ligação no caso do Cinema foi mais com a Bahia. E aí o Glauber... eu fiz uma viagem para o Nordeste e no retorno eu conheci o Glauber e morei com ele por um tempo. Conheci a irmã, a mãe e o pai dele e presenciei o início de sua atividade. Ele era estudante de Direito e lá na Escola de Direito eles faziam algo que chamavam de “jogralescas”, eram como recitais de poesia. Eu passei por lá, depois voltei pra Belo Horizonte. E num determinado momento o Glauber foi à Belo Horizonte e ele reconhece que foi exatamente esta movimentação teórica de Belo Horizonte que o influenciou no início desta nova geração, o Cinema Novo Brasileiro. Os dois primeiros textos densos e pesados que eu fiz foram um sobre Mondrian e o outro sobre Malevich, figuras ímpares da História da Arte. O Mondrian era um teósofo, adorava Madame Blavatsck, tinha um retrato dela no ateliê e o Malevich vivia no regime comunista mas também era místico, religioso, refletia sobre a presença de Deus, mesmo participando daquela coisa construtiva. Curiosamente eu fiz esses dois ensaios e como resultado eu fiz duas conferências na Sociedade Teosófica, para os místicos. E depois o texto sobre o Mondrian foi publicado por uma revista fundada pelo Glauber Rocha na Bahia chamada Revista Mapa, que depois deu nome à produtora dele. Havia uma relação inter-regional e nossa meta não era Rio e São Paulo. Mas acabou que em dez ou vinte anos uma parte foi pra São Paulo, uma parte foi pro Rio.

PERGUNTA: O senhor mesmo veio morar no Rio... F.M: Eu tentei morar em Brasília, depois São Paulo, mas São Paulo me assustou pela solidão. Mas antes disso, como havia muita gente com coluna de cinema eu mudei a minha área e fui pra artes plásticas. Foi quando eu entrei em contato com a Escola Guignard, e um pouco depois eu conheci a Wilma Martins, que foi aluna de Guignard e a gente se casou. E eu não tinha mais uma coluna só de cinema, era uma coluna que eu abordava várias coisas, como o meu grupo. Tinha gente que fazia teatro, outros cinema, outros dança, outros poesia, então eu falava de todos esses assuntos com um certo caráter de divulgação. Também fazia algumas críticas e

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mesmo dança eu acompanhei um tempo, já fui em um congresso de dança na Bahia. Pouco a pouco eu fui me fixando em artes plásticas. Por outro lado, a gente era de classe-média e precisava sobreviver e chegava a atuar em dois ou três jornais ao mesmo tempo usando pseudônimos. Com um deles eu cheguei a escrever no Binômio, que era como um Pasquim aqui no Rio de Janeiro. Um jornal muito crítico e com uma equipe com muito talento. Assim eu fui me fixando na questão de artes plásticas e fiquei só nisso. Cheguei a escrever alguns textos para a Revista de Cinema e abordei as relações entre cinema e pintura. Eu analisava filmes de arte. E pouco a pouco também comecei a dar aulas. Eu usava muito nas minhas aulas filmes de arte. Filmes que eu encontrava na área cultural das embaixadas e dos consulados. Também usava filmes que não eram documentários, mas eram filmes de arte mesmo, filmes experimentais, como o Buñuel. Filmes que experimentavam com as imagens. Uma personalidade que a gente se interessava muito era o Norman McLaren, com as formas bem coloridas, ele desenhava diretamente sob a película. Enfim, eu fui me fechando exatamente das artes plásticas pouco a pouco. Aí eu fiz contato com a escola do parque, conheci o Guignard, depois se criaram outras escolas; havia a Escola da Universidade Federal, mais acadêmica, depois criou a Universidade Mineira de Arte e virou FUMA, onde eu cheguei a dar aulas também e fui ampliando minha atuação. Um conheci um grupo chamado Oficina articulado pela Lotus Lobo. Ela teve um papel importante como artista e também divulgadora cultura. Aí eu escrevi meu primeiro livro, chamado Arte e Indústria. Lá eu falei de Max Bill, da Bauhaus e ganhei uma menção honrosa no prêmio da prefeitura. E isso deu uma certa projeção local. Então, uma das primeiras coisas que eu fiz foi promover um concurso de desenho industrial, patrocinado pela Federação das Indústrias, pois estava trabalhando no Conselho de Desenvolvimento Industrial, na área de economia. Quem ganhou foi um jovem ligado ao grupo da Lótus Lobo. Participou um pessoal bem interessante. A gente fazia muitas coisas ao mesmo tempo e essa sempre foi uma característica da minha atividade, eu me meto em muitas coisas, mas sempre dentro desse universo da arte. Eu comecei a ter contatos no Rio de Janeiro antes de vir morar. E já havia sido realizada a exposição Opinião 65, que eu fiz uma retrospectiva quando ela fez 20 anos. No dia da abertura da Opinião 65 abriu também uma exposição do Franz Krajcberg com um texto meu no catálogo. E essa mostra (opinião) repercutiu em

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Belo Horizonte. E a primeira exposição que eu organizei foi a Vanguarda Brasileira na Reitoria da UFMG em 1966. Apesar do título, Vanguarda Brasileira, era uma exposição de artistas que atuavam no Rio de Janeiro. Eu considerava que a verdadeira vanguarda brasileira naquele momento estava sediada no Rio de Janeiro. Era a vanguarda carioca. Eu fiz a vanguarda Brasileira três ou quatro meses antes de me mudar para o Rio de Janeiro. E esta exposição significou duas coisas: a minha despedida de Belo Horizonte e a minha entrada no Rio de Janeiro. Além de ter sido minha primeira curadoria. E a exposição foi em 66, pouco depois do golpe. Eu entrei em contato com o Rubens Gerchman, com o Carlos Vergara, com o Helio Oiticica, Maria do Carmo Secco, que é paulista, com Dileny, que é mineiro mas morava no Rio. O Ângelo Aquino que era mineiro também, e o Adriano (Aquino). O Antônio Dias, e o sogro dele, o Pedro Escosteguy. Eu resolvi propor uma exposição com este grupo em Belo Horizonte. Pois a exposição Opinião 65 reunia artistas brasileiros e europeus e a qualidade da arte brasileira era visível, até maior que da arte francesa. Mas também o que veio da Europa eram desenhos e gravuras enquanto aqui tivemos pinturas e obras já tendendo ao objeto. Mesmo com muitos artistas o núcleo forte era Dias, Gerchman, Vergara, Roberto Magalhães e é claro, o Helio Oiticica, que fazia uma espécie de ponte entre o Neoconcretismo, que já estava encerrando seu primeiro período histórico, e esta nova geração, que começava a ser influenciada alguns pela Nova Figuração Francesa e outros já pela Pop Art. Houve também um certo deslocamento de interesse da Europa para os Estados Unidos. Tanto que o Gerchman, que recebeu o prêmio de viagem, mesmo se dizendo influenciado pela nova figuração francesa, acabou indo para os Estados Unidos. Enquanto o Dias que valorizava muito a Pop Art acabou indo pra Europa... inverteu a situação. Mas num certo momento ambos foram influenciados pela Pop. Mas a Vanguarda Brasileira teve muitos outros artistas, e não foi essa unidade que parece que foi. E a questão não era só política. A Opinião não era apenas a respeito da situação política, com o golpe de 64, que começava a criar dificuldades para os artistas, mas era também uma opinião sobre o estado da arte brasileira. A minha ideia era levar essa influência para Belo Horizonte. A Vanguarda Brasileira teve algumas curiosidades. Ela foi realizada na Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais, que era um prédio novo na Pampulha, mas ainda inacabado. E ela consistiu do trabalho desses artistas, cada um com dois ou

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três trabalhos. E foi feito um cartaz, bem verticalizado, em uma face era aquela placa de trânsito “Pare”, que na verdade era uma imagem já usada em uma exposição anterior na Galeria G4, um lugar que teve uma vida curtíssima mas pretendia ser muito vanguardista e foi uma exposição muito ousada, com happenings. O desenho era do Gerchman e ele repetiu esta mesma imagem quando fez o cartaz em Belo Horizonte. E na outra face tinha um texto meu, dizendo porque a vanguarda é carioca, e tinham umas colunas, quase como colunas de jornal, um pouco mais largas, com uma foto do trabalho, um pequeno currículo do artista e um depoimento do artista sobre o seu próprio trabalho.

PERGUNTA: O senhor ainda tem imagens desta montagem? F.M: Da montagem da exposição não... naquela época a gente não tinha tanta preocupação de documentação, o que eu lamento muito. Hoje eu guardo qualquer pedacinho de papel. Mas esta exposição foi montada na Reitoria e eu acompanhei o processo, e o Helio Oiticica foi convidado para participar, concordou, chegou a fazer um texto para o cartaz, mas acabou não participando da exposição. Eu me interessava pelas ideias do Helio, e ele defendia o conceito de apropriação, que se aproxima da ideia do readymade do Marcel Duchamp. O Hélio era muito inteligente, escrevia muito bem. E pra não ficar faltando, eu o Gerchman e o Dias (em algum lugar saiu que o Vergara participou, mas ele confirmou que não) fomos ao Mercado Municipal de Belo Horizonte. Eu frequentava aquele mercado aos sábados para tomar cerveja, comer moela de galinha, Lá nós pensamos em utilizar esse conceito de apropriação e compramos umas cestinhas artesanais de arame usadas para guardar ovos. E lá na própria Reitoria pegamos um daqueles carrinhos de pedreiro cheio de brita e areia e ficou lá como a participação do Hélio. E lá na Vernissage estava o Reitor da Universidade, Aluizio Pimenta, que talvez seja um dos primeiros reitores que não era da área de humanidades, ele era da Faculdade de Odontologia. E estava também um dos primeiros militares do golpe, Carlos Luis Guedes, Foi um dos Generais que comandou as tropas até o Rio de Janeiro... Tanto esse General quanto o Reitor ficaram impassíveis e se comportaram muito bem. E a partir da proposta dos ovos surgiu uma espécie de guerra, pessoas atirando ovos, pedras e areia. Ficou tudo imundo. Agora isso não tinha sido programado. Foi um resultado da ausência do Hélio Oiticica. Mas foi importante e atualmente se faz uma leitura política disso.

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PERGUNTA: Mas naquele momento o senhor não fez uma leitura política dessa situação? F.M.: Não, não. É claro que eu tinha problemas com a situação. Eu tinha uma postura crítica. A minha mulher tinha passagem pela JOC (Juventude Operária Católica) e também se ligou a alguns comunistas, como o próprio Roberto Drummond. Eles se reuniam em nossa casa, pois lá era quase uma floresta. E quando o golpe foi dado a gente enterrou lá uma porção de livros que recebíamos da Polônia, de Cuba, da China. Mas ela nunca foi muito ativista, ela não chegava a ir pra rua protestar. Eu já cheguei a ir em passeatas, mais no Rio do que em Belo Horizonte.

PERGUNTA: O senhor chegou a frequentar oficialmente algum grupo, organização ou partido político? F.M.: Não. Eu tinha uma afinidade com o chamado Grupo dos Onze, com o Brizola. Mas a minha situação era até curiosa. Um dos meus irmãos, o mais novo, era membro do Sindicato dos Securitários. Nosso pai foi gerente de uma companhia de seguro. Quando ele morreu eu tinha dois anos – só conheci meu pai de fotografia. Mas meu irmão era da companhia de seguro Minas Brasil. Ele teve que se esconder por um bom tempo. Eu também me escondi em Lagoa Santa. Já meu irmão mais velho, já falecido, foi preso antes do 31 de março, pois ele trabalhava na Assembleia. Ficou preso algumas semanas Nessa época, como jornalista, eu fui convidado a participar de um Congresso na Checoslováquia. O evento foi num navio russo, no Mediterrâneo. Foi uma grande experiência. A única coisa que eu tinha que fazer era ir até Nápoles pois ali a gente ia pegar o navio. As reuniões de trabalho eram lá dentro. E as assembleias eram nos países que a gente ia parando. Pra fazer isso eu tive que vender meu carro. Tirar o passaporte era demorado naquela época, mas como jornalista eu já cobria o Palácio da Liberdade e isso ajudou o passaporte a sair mais rápido. E quando eu estava no navio eu nunca sabia exatamente para onde estava indo. Passamos três meses viajando de país pra país. Paramos no Egito, na Argélia, na Tunísia, na Líbia. E eu consegui realizar entrevistas com líderes políticos. Nessa viagem fui um dos poucos brasileiros que conseguiu entrevistar o Khrushchov. Seguimos também para países socialistas, a Rússia, etc. Eu escrevi

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algumas matérias. E no dia anterior ao golpe saiu uma reportagem minha sobre a União Soviética, no Estado de Minas com a página inteira. Algumas matérias foram até publicadas no Rio no Jornal Correio da Manhã. Lá eu falava o que havia de bom e de ruim na União Soviética. E o fato de ter sido uma crítica mais equilibrada pode ter me poupado de alguma represália maior. Mas nessa ocasião eu me deixei fotografar com a mão no ombro do Khrushchov. Só que essa foto eu acabei não trazendo pro Brasil pois foi tirada no meu último dia em Moscou e de lá eu fui pra Hungria e já voltando para Roma para pegar o avião de volta no trem que eu estava me roubaram a máquina em que eu tinha tirado minha foto ao lado do Khrushchov. Eu conto essa história, mas eu não posso provar. Eu cheguei a publicar uma entrevista com o genro do Khrushchov que era diretor de um jornal. Na entrevista com o Khrushchov eu aproveitei para fazer uma pergunta sobre arte. Eu havia lido algumas de suas severas críticas à arte abstrata, pois a arte oficial da União Soviética era o Realismo Socialista. Ele disse que a arte abstrata era como pegar um pedaço de pau e mexer num vaso sanitário. O evento era uma comemoração do acordo entre Estados Unidos e União Soviética de não proliferação das armas atômicas. Eu perguntei ao Khrushchov se ele não poderia fazer um acordo semelhante no campo da cultura, aceitando a arte abstrata e aprendendo a coexistir pacificamente com as diferenças. Ele respondeu dizendo que era uma pergunta burguesa e não quis falar no assunto. Enfim, se quando invadiram a casa da minha mãe encontrassem a minha fotografia com o Khrushchov eu provavelmente estaria fuzilado. E quando eu fui à Cuba, e acabei indo algumas vezes eu tenho fotos com o Fidel, mas já era um momento mais tranquilo Mas isso tudo mostra que no período da ditadura eu precisei me esconder um pouco e me preservar, pois tinha esse histórico na família e essa minha passagem pela União Soviética. Minha esposa teve um engajamento maior, porém mais reservado. Mas eu cheguei a participar de alguns atos mais violentos no Rio de Janeiro. Mas de qualquer maneira não houve uma leitura política naquele momento, eu vi a coisa mais pela perspectiva da arte mesmo, como um happening e uma forma de manifestação. Inclusive já morando no Rio, cheguei aqui com muita energia, apesar da minha timidez. Eu vim disposto a fazer muitas coisas e já no primeiro dia escrevi uma coluna no jornal Diário de Notícia, um jornal que tendia à esquerda, pois um dos donos havia sido ministro do Jango. O jornal tinha um suplemento estudantil muito

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importante, com o Artur da Távola. Depois, um pouco mais tarde é que eu fui pro jornal O Globo. Naquele momento eu era considerado um agitador na minha área.

PERGUNTA: Ao chegar no Rio de Janeiro como o senhor sentiu as diferenças entre os cenários artísticos carioca e mineiro? F.M.: Meu primeiro contato com arte foi com o grupo mineiro, mas quando eu vim para o Rio de Janeiro, já com esse emprego no Diário de Notícias. E mesmo morando em Belo Horizonte eu passei um semestre vindo ao Rio para dar um curso, em um instituto de dança. Nisso eu já começava a me relacionar com o Carlos Vergara e com este grupo que foi à Belo Horizonte. Eu ficava duas vezes por semana no Rio por conta desse curso e em Belo Horizonte eu dava aulas. E ainda escrevia duas páginas inteiras no Jornal Estado de Minas, uma sobre arte e outra sobre a história da riqueza de Minas, o barroco mineiro, etc. Quando eu me mudei para o Rio, em agosto de 1966, já com a Wilma, que trabalhou como assistente do Gerchman na Revista Joia, como diagramadora. Eu me aproximei desse grupo, do Gerchman, do Antônio Dias. Pouco a pouco eu fui me aproximando de uma geração posterior. O Cildo Meireles, o Artur Barrio, que eram artistas mais jovens, quase da minha idade. E é uma geração com a qual eu estou ligado até hoje, especialmente o Cildo, que é um amigo fraterno há mais de cinquenta anos. Dos demais eu me afastei um pouquinho, afinal o Gerchman foi para os Estados Unidos, o Hélio também, mas eu cheguei a visita-lo em Nova Iorque. O Antônio Dias foi para a Europa, o Roberto Magalhães foi a Paris. Sem me afastar totalmente da geração em que eu me iniciei eu acabei me conectando mais a uma geração posterior. Não era apenas uma questão de afetividade ou amizade, mas eu achava que fazia sentido. Debatíamos os trabalhos, trocávamos ideias. Eles frequentavam a minha casa, ficavam para jantar, tomavam cerveja.

PERGUNTA: E como o MAM tornou-se um espaço de encontro dessa geração? F.M.: Na realidade os artistas já se encontravam por lá, mas não muito. Eu cruzei com o Roberto Magalhães em uma das esquinas, descemos juntos para ir ao museu e lá eu me encontrei com a diretora executiva e ela me convidou para dar aulas de História da Arte. Eu aceitei mas continuei no Diário de Notícias e pouco a pouco eu

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fui me entrosando mais. Nisso acabei assumindo a direção dos cursos e fiz uma reforma profunda tentando integrar todas as matérias, criando uma série de cursos novos e ocupando os espaços, a cinemateca, os jardins com atividades que iam da manhã até à noite, todos os dias da semana. Nos domingos vieram os Domingos da Criação. Lá eu passei anos, chegava às sete da manhã e ia embora meia-noite. O museu foi um espaço que permitiu que eu ampliasse a minha atividade. Quando eu saí do Museu fui dar aulas em cursos de História da Arte, a Carmen Coutinho me levou para alguns cursos, dei aula na PUC e fiz também uma porção de exposições. Eu não fiz uma carreira acadêmica tradicional pois não sou formado em nada. Eu sou autoditata, não terminei sequer o curso científico. Eu saí da escola pois a situação da minha família piorou e eu precisava trabalhar. Frequentei por um tempo a escola noturna, mas dormia a maior parte das aulas. Alguns anos após a morte do meu pai minha família passou graves dificuldades. Eu virei vendedor ambulante, camelô, vendia doce de leite no parque, tanto que quando eu fiz Do Corpo à Terra eu acho que não foi por acaso que eu fiz no Parque Municipal, pois eu passei dois ou três anos vendendo doce de leite ali, com uma vasilinha de madeira e eu conhecia cada pedacinho daquele parque. A gente sempre ao criar algo trás também as situações da nossa vida. Eu ia à pé de Santa Teresa –morei na rua São Gotardo, até o Colégio Arnaldo, atravessava três bairros, sozinho. O colégio era católico e eu era obrigado a ir à missa de domingo, mas domingo era o dia que eu mais vendia doce de leite e eu não queria perder essa chance. E o que mais gratificava o meu trabalho no domingo é que depois das vendas eu ia a um cinema, que naquele tempo chamava-se poeira. A programação durava quatro horas, eram dois filmes e duas séries. Mas eu saí do colégio e depois disso trabalhei em banco, em livraria, e ficava mudando de emprego, até chegar no jornal. Mas nunca fiz carreira acadêmica ou universitária. Eu lecionei em algumas universidades, mas não sou formado em nada. E sobre o Parque Municipal, naquela época ele era enorme, quase o dobro do tamanho de hoje. E havia uma parte do parque meio vazia, perigosa. Eu tinha medo de ser assaltado lá. E tinha o Rio Arrudas, que passava por lá. E ficou uma memória daquela época. Tinha também um ringue de patinação, eu cheguei a ter patins e tentava andar por ali e eu tinha certas estratégias pra tentar vender mais rapidamente o doce, me aproximava de casais de namorados. Minha família tinha

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também um botequim logo que meu pai morreu, ao lado da nossa casa, mas durou pouco, deu muito prejuízo.

PERGUNTA: O senhor pensa que Do Corpo à Terra foi uma espécie de encontro desses dois universos, dos artistas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte? Pois, diferente da exposição Vanguarda Brasileira, havia artistas mineiros também. F.M: Bem, seria uma ousadia naquele momento não colocar artistas mineiros. Quem me convidou pra criar o evento foi a Mari’stella Tristão, Ela escrevia no jornal e organizava o Salão de Ouro Preto, em que cada ano era um tema ou um modo de expressão. No ano de 1970 deveria ser o salão de escultura. O Salão era de Ouro Preto, mas naquele tempo ele iria para o Palácio das Artes, que havia sido recentemente inaugurado. Depois o Marcio Sampaio foi diretor. Ela me chamou pra fazer esse salão. E aí eu já tinha feito algumas coisas, o Arte no Aterro em 1968, patrocinado pelo Diário de Notícias. E já participava de uns happenings promovidos pela Lygia (Pape), ocupações do espaço público, também de um trabalho do Jackson Ribeiro, que eram esculturas feitas com sucata de navio e eram de ferro, ficavam ao ar livre, a pessoa podia até fazer xixi nelas. Durou um mês, chamava-se o mês de arte pública. Teve exposição da Ione Saldanha, do Julio Plaza, um artista espanhol que veio para o Rio de Janeiro e ainda haviam aulas dadas pela minha esposa e a Maria do Carmo Seco. No domingo ainda aconteceram umas manifestações de vanguarda, teve o Hélio fazendo o Apocalipopótese. Uma coisa interessante do MAM do Rio de Janeiro é que ele é parte do aterro, e fica no extremo, na ponta do aterro. Eu até costumava brincar, dizendo que o aterro era a extensão do museu. Os Domingos da Criação tiveram um pouco esse sentido. Eu já tinha esse interesse em trabalhar o lado de fora. Acho que o projeto arquitetônico explorou muito bem essa horizontalidade do aterro. As pessoas usavam o pátio, iam à praia atravessando o museu, mesmo quase nunca entrando. O terraço também incorporava a paisagem. Foi nesse contexto que eu pensei no Palácio das Artes. Ele é parte de um parque, o parque do município. E a frente dava para a principal avenida de Belo Horizonte, a Avenida Afonso Pena. Eu já tinha feito coisas em áreas externas, pois sempre pensei muito na arte do lado de fora. Isso é uma constante, eu sempre busquei o lado de fora. Mesmo que dentro do museu, pensei muito na praça, no aterro, na rua.

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E naquele ano, o tema do salão era escultura. A primeira coisa que eu fiz foi juntar escultura e objeto. Pois já havia na arte brasileira uma discussão sobre o conceito de objeto. O Ferreira Goulart já tinha publicado a Teoria do Não Objeto, ainda ligado ao neoconcretismo. O Helio Oiticica também discutia a questão do objeto. Pois o Objeto não era mais pintura, não era desenho, não era escultura, era uma coisa nova, uma nova categoria. Mas acabou se transformando em uma não-categoria, pois era a negação das outras. Em 1967 eu participei do Salão de Brasília, e andei o Brasil inteiro para levantar artistas de fora do Rio e de São Paulo para se apresentar em Brasilia. Foi um salão gigantesco, e foi muito polêmico, teve o incidente do porco do Nelson Leirner. O (Ferreira) Gullar já estava mudando a posição dele nessa época em relação ao Neoconcreto e fez um elogio pela primeira vez ao Helio Oiticica. Brasilia tinha uma posição radial, atraindo as diferentes áreas culturais do país. E era o papel de Brasília, esse de atração. E tinha sentido, por isso viajamos o Brasil inteiro, o interesse não era apenas prestigiar o Rio de Janeiro. E a novidade do salão de Brasília era justamente a introdução do objeto. E essa era uma decisão contraditória, pois se o objeto não era uma categoria- e o Helio Oiticica, por sua vez, teorizava sobre a questão do objeto, dentro de uma perspectiva anárquica, para ele achava que o objeto poderia ser o gesto. Ele tinha um trabalho em que fazia uma espécie de lamparina com fogo, e entrou com esse conceito de apropriação, começou apropriando objetos e depois se apropriou de áreas, de espaços, como a Mangueira. E eu achava muito importante ampliar essa discussão dentro de um evento oficial. Assim o objeto foi incluído no regulamento, mesmo que com isso surgissem polêmicas, como o porco empalhado. Em Belo Horizonte, quando a Mari’stella me chamou, eu quis também colocar a questão do objeto, então o salão foi de estultura e objeto. Foi o evento Objeto e Participação. A Ideia de participação vinha do neoconcreto, do trabalho da Lygia Clark, da participação do espectador na obra. A ideia de que o artista seria um autor de uma estrutura inaugural, mas a vida dessa estrutura dependia fundamentalmente da participação do espectador. Ele é que ia dar o sentido. O bicho da Lygia só existe no sentido em que ele é manipulado. Como se fosse um corpo que respondesse ao toque do espectador. Eu transformei a proposta da Mari’stella nesse salão, que juntava a presença do objeto e a ideia de arte como participação. Por outro lado, como o palácio estava dentro do parque, eu achava que eu deveria também estender a proposta ao parque.

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PERGUNTA: E essa extensão que o senhor chamou de Do Corpo à Terra? F. M.: Sempre foram dois eventos paralelos. Do Corpo à Terra foram os trabalhos realizados fora do Palácio. Chamei de Do Corpo à Terra porque tinha a questão da Body Art, a arte performática, e também a ideia da Earth Art, ou Land Art, trabalhos com a terra, que só podiam ser realizados fora. E o trabalho do Cildo, de alguma maneira era uma performance com a queima das galinhas, se deu exatamente na frontera, de onde começava o parque e terminava o Palácio. Ele fez essa ligação. E foi um ato corajoso e polêmico.

PERGUNTA: A obra de Cildo Meireles recebeu aquele título já no momento que foi realizada? F.M: O Cildo às vezes muda um pouco os títulos. Mas ele já escolheu este nome no próprio evento, apesar de que a obra é hoje conhecida como “a queima das galinhas”. Mas é evidente para mim e para o próprio Cildo que era um trabalho ligado à Tiradentes porque este salão sempre se realizava na semana de Tiradentes. E o trabalho aconteceu no próprio dia 21. O Cildo recusa vários rótulos, de artista conceitual, de artista latino-americano, mas hoje ele reviu a questão da arte conceitual. Ele considerava a arte conceitual muito cerebral e muito ligada às universidades, com muito mais texto do que imagem. E muito mais discurso do que obra. Mas a arte conceitual, quando chega ao Brasil, ganha uma dimensão política. E também na América Latina. Ele não queria se ver envolvido na ideia do realismo fantástico da América Latina, que primeiro virou moda na literatura, com Mario Vargas Lhosa, o Gabriel Garcia Marques, pois ele sentia aquilo como um modismo. Ele quer ser o Cildo. Mas eu discuti muito com ele sobre isso, porque independente da vontade do artista, quando sua obra passa a circular num espaço cultural, ela ganha autonomia em relação ao próprio autor. Ela vai ganhando ou perdendo significados, de acordo com a potência da obra. Se ela é forte, vai crescer, se ela é fraca, os acontecimentos externos acabam apagando-a. Enfim, o Cildo chegou a falar pra mim que uma obra, não sendo política em sua origem, pode se tornar política em determinadas circunstâncias, em função das leituras que são feitas dela, a maneira com que ela é recebida, com que ela interage. Agora eu, pessoalmente, acho que o Cildo é um artista político e as suas obras mais significativas são políticas. Mas são políticas com uma qualidade que, no caso dele, é muito

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importante. Não é simplesmente um discurso político e sobretudo, não é panfletário. O Cildo recusa a ideia da obra como panfleto, pois isso deixa sua existência muito curta. Mas ele acha que Tiradentes foi seu único trabalho que já nasceu político. E ele diz que por isso jamais poderá repetir. Esse trabalho já existiu, reapareceu quando eu fiz a releitura no Itaú Cultural. Mas eu não queimei as galinhas. Montei o poste, a madeira, o lençol que estava embaixo, umas peninhas de galinha, um medidor de temperatura e as fotografias. Depois eu até usei essas fotografias quando fiz uma exposição chamada “A Nova Crítica” com a ideia de levar a crítica para outro patamar, questionando o julgamento. Por isso comecei a fazer meus audiovisuais, para explorar outras formas de crítica, uma leitura não verbal das obras. Mas ali eu mostrei as fotos do ritual de Belo Horizonte mas ali eu agreguei alguns versículos bíblicos sobre o sacrifício de Abraão do carneiro e ainda relacionei a queima das galinhas com duas imagens de monges vietnamitas que se queimaram, talvez sugerindo uma aproximação. Pois quando o Cildo apresentou na exposição dele eu tentei mostrar que ele de alguma maneira estava estetizando a vivência de Belo Horizonte, ao transformar as fotografias numa espécie de segunda obra de arte. A minha ideia com a minha crítica era não fechar o trabalho dele, que a situação pudesse permanecer aberta. Esse era o meu conceito da crítica como criação.

PERGUNTA: No evento Do Corpo à Terra o senhor realizou uma série de fotografias. Foi a sua primeira participação como artista em uma exposição? F.M: Foi. Afinal, não foi uma coincidência fazer o Do Corpo à Terra naquele lugar, pois eu conhecia cada pedacinho daquele parque. Eu passava por lá todos os dias, passava horas vendendo as coisas. Eu aproveitava pra colher coquinhos amarelos. E o que é curioso desse evento é que os artistas que eu convidei receberam uma carta da Hidrominas, que era uma empresa de turismo. Eu não sei se a Hidrominas tomava conta do parque ou do Palácio das Artes. Essa carta autorizava o trabalho dos artistas e não mencionava nenhuma censura, nenhum tipo de impedimento ou proibição. Isso era um documento fantástico para aquela época. Uma época de censura, em que as exposições estavam sendo fechadas, ou obras retiradas. Foi a Bienal da Bahia, a mostra dos brasileiros que iam para Paris... essa nem sequer foi aberta. E eu estava justamente começando a participar e teorizar sobre essa questão. Publiquei alguns textos sobre a importância do crítico como um parceiro, e

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já me referindo à experiência de Belo Horizonte (Na Vanguarda Brasileira), em que eu já me sentia nessa posição. Ao participar da recriação de uma obra do Helio eu me sentia bem mais próximo do artista. De alguma maneira eu perdia um pouco da minha autoridade, mas ganhava acuidade. Isso já explica um pouco eu ter feito um trabalho em Do Corpo à Terra. Até porque eu escrevia no jornal e dava aula e usava slides para exibir imagens e acabava criando narrativas. Levava sequencias inteiras do mesmo artista. Eu não só agreguei textos na minha voz, e era um autor único, que fotografava, montava, era locutor e projetava. Era quase um cinema de autor. Eu achava que estava abrindo com isso um caminho para mim. Mas não que eu buscasse o status de um artista, eu só achava que aquilo poderia melhorar a minha leitura da obra de arte. Tive a influência do Roland Barthes e o seu conceito de uma crítica amorosa me interessou. Então eu fiz isso, as fotografias do parque, e chamei de lições. Era uma certa pretensão. Eu selecionei algumas imagens do parque e dos seus arredores e o fotógrafo não fui eu, era o Mauricio Andrés. A minha ideia era outra vez o lado de fora. Eu considerei o parque como uma área de prospecção e leitura. O desejo era fazer uma leitura daqueles espaços, mediados por uma obra de arte, estabelecendo uma espécie de equação entre a paisagem, ou o objeto fotografado e fazendo referência a uma obra de arte ou uma determinada definição da obra de arte. O Mauricio – sempre com a minha presença – fotografava, por exemplo, um monte de grama cortada e a respeito daquilo eu dizia “a arte não deixa traços”, o que era uma brincadeira, pois eu sempre achei que a arte deixa traços. Eu também prestei uma homenagem ao meu querido Malevich em uma imagem que abordasse o vazio. Também o Mondrian, que dizia que em um momento na vida tudo será arte. Na minha leitura a arte não seria apenas aquelas estruturas geométricas, cambiantes, mas haveria um equilíbrio total e tudo, a natureza, as pessoas, os lugares, as comidas, tudo seria arte. E é uma fotografia que aparecem as pessoas simplesmente no parque, mas havia uma harmonia, nem sempre visível a todo mundo, mas as pessoas e a paisagem compunham um equilíbrio que ao meu ver correspondia à ideia de Mondrian. E também teve as fotos daqueles tubos enormes e me lembraram o Brancusi. No passeio tinha o trabalho do Dileny que eu na foto chamei de “escavar o futuro”, pensando na Land Art. Mas quando a exposição foi inaugurada já estava coberto. E tinha uma coisa meio arqueológica mesmo, de sugerir a escavação. Arqueologia é escavar em toda a plenitude da palavra: escavar

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no sentido de pesquisar, aprofundar. Então fui fazendo essas relações todas. As fotografias com a legenda eu coloquei diante do local que eu fotografei. Os montinhos de grama já não existiam mais, mas era como se dissesse que ali existiu uma obra de arte. Como, alias, quando houve o trabalho da Lotus Lobo, do Luciano Gusmão, na proposta Territórios, no final eles não sabiam o que fazer com o que restou da obra. Quando eu fiz a releitura na galeria do Itaú Cultural, eu fiz uma caixa, igual a que eles fizeram com os restos da obra e coloquei lá dentro da exposição. Ela estava vazia, mas na ocasião, eles doaram para o museu uma caixa com os resíduos. Mas eu soube que alguém jogou aquilo no lixo, coisa assim. Por outro lado, essas fotografias que eu fiz ficaram também como obras expostas em um salão. Tínhamos que fazer um percurso, como o que se faz no Metropolitan ou no Louvre. E eu incluía como parte dessa experiência o próprio cansaço, o próprio suor, o cansaço físico como parte da consumação dessa obra de arte. Portanto ela envolvia não só questões teóricas, questões visuais, mas também a aproximação não apenas com a ideia de Land Art e da própria Body Art, com o suor, o cansaço, etc.

PERGUNTA: O senhor escreveu no Jornal Estado de Minas, na ocasião do evento, uma espécie de convite ao público à interagir e participar das obras. O senhor percebeu se os frequentadores do parque participaram das propostas? F.M: Então, não houve catálogo. O que a gente fez foi uma coisa meio mimeografada, com volantes, com um texto que eu fiz. E esse texto foi divulgado no Jornal Estado de Minas pela Mari’stella. Esse texto circulou, foi entregue em alguns lugares. Pois era uma exposição inédita. Talvez tenha sido a primeira exposição de site specifics no Brasil. As obras foram feitas para aqueles lugares. Ninguém levou para lá uma obra pronta. Levaram ideias e lá construíram. E teve uma série de novidades, foi de fato uma exposição revolucionária, talvez a coisa mais revolucionária que eu fiz. Alguns artistas chegaram a produzir textos, como o Dilton Araujo, dizendo que acha mais importante que a arte chutar uma lata vazia... com irreverência e humor. Ele fez coisas muito interessantes, mas depois enlouqueceu, nem sei se ele está vivo ainda. Mas eu não saberia dizer exatamente qual foi a intensidade da participação. Afinal, não houve vernissage. Só no Palácio das Artes. Nos outros eventos, cada um fez a

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sua coisa, com público ou sem público e cada um no seu horário, mas tinha que ser naqueles dias.

PERGUNTA: O senhor viu todos os trabalhos? F.M: Eu vi tudo, mas nem sempre no momento exato. Mas eu inclusive comentei todas as obras, mas tinham coisas muito curiosas. O trabalho do Luciano Gusmão de ir amarrando as árvores e fazendo uma cerca no parque. Enquanto ele fazia as amarrações de um lado na outra ponta os guardas do parque estavam desamarrando isso. Os guardas não sabiam de nada, achavam que era uma provocação. A Lotus Lobo, quando fez a plantação de milho, com uma certa antecedência, para crescer durante o evento, foi confundida com uma plantação de maconha. Teve várias coisas assim. O trabalho do Luciano Gusmão tinha uma certa definição de espaços no parque e já era uma espécie de trabalho cartográfico. Ainda não se falava muito nessa vertente cartográfica. Mas ele foi criando legendas para o parque e definindo espaços de liberdade, onde os gays se encontravam, e também espaços de repressão, onde a polícia aparecia. Foi dando nome aos espaços e foi um trabalho muito interessante. Acho que eu tenho até hoje esse mapa. Foi feito no papel manteiga. E ele era matemático de formação e fez um trabalho mais antropológico ou sociológico. O Alphonsus queimou o Napalm, que era usado no Vietnã, um ato muito ousado e muito corajoso. Agora eu tenho a impressão de que as pessoas que frequentavam o parque participaram de alguma coisa... provavelmente não estavam entendendo, mas possivelmente alguma coisa ficou na cabeça deles. Agora tinha também um público, no sentido do público que vai ao cinema ou ao teatro. O trabalho do Artur Barrio chegou a ter uma multidão. É claro que com o tempo as pessoas vão aumentando, mas acho que tinham umas 5 mil pessoas. Mas hoje falam em 10 mil. E isso logo cedo, de manhã. E eram aquelas trouxas ensanguentadas que vistas do alto da ponte, lá no rio – que já era uma espécie de esgoto da cidade. Estavas sujas, manchadas. Fui eu que batizei esses trabalhos do Barrio como Trouxas Ensangentadas . No início era uma metáfora do sangue. Mas lá em Belo Horizonte ele foi a um matadouro e pegou sebo, ossos, carcaças e amarrou. Então já era uma matéria orgânica. Não de homens, mas de animais. O cheiro ficou muito forte na época. Aquilo ficou ali no meio, eram cinco ou seis trouxas, naquele rio que estava raso. E as pessoas viram. Começou a entrar gente, apareceram os soldados do

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corpo de bombeiro, abriram as trouxas. Num determinado momento um soldado até escorregou e caiu no meio daquela lama. O pessoal vaiou. Logo em seguida apareceu a radio patrulha. Tinha gente achando que era filme, cenas de filmagem. Outros já pensaram que eram cadáveres, diziam “isso é um presunto”. A ideia das trouxas ensanguentadas, no caso do Barrio era também uma referência às vítimas dos esquadrões da morte. Gente que matavam e deixavam o corpo. Eu mesmo encontrava aqui no meu bairro corpos apodrecendo, com cachorros cheirando. Era uma referência aos grupos paramilitares e parapoliciais. E existem até hoje. E matam sem o menor pudor. Então o trabalho do Barrio também teve essa leitura política. As pessoas perceberam isso. O que sobrou da ação foi um vídeo e fotos, que ainda são expostas. Antes disso o Barrio fazia umas trouxinhas de pães... pelo que me lembro, sua família tinha padaria. Ele espalhava essas trouxinhas pela cidade, ia distribuindo para as pessoas. Depois isso foi ampliando. Finalmente lá em Belo Horizonte ele radicalizou, usando matéria orgânica. Ele passou a noite inteira preparando isso. Depois ele fez outras coisas muito boas também. Fizemos juntos um trabalho lá em Curitiba, num Museu de Arte de lá. Ele colocou o peixe dentro da caixa de força e depois amarrou um gato perto. Ficou uma tensão entre o gato que queria comer o peixe. Ele fez algumas coisas com os modes usados da namorada dele também. Tudo dele parece que fedia, cheirava mal e visualmente incomodava. Eu fiz um audiovisual que chamava O Pão e o Sangue, contrapondo imagens de obras do Barrio com imagens publicitárias que falavam de um Brasil maravilhoso

PERGUNTA: Em minha pesquisa observei que no evento Do Corpo à Terra as obras do Cildo Meireles e do Artur Barrio foram as duas que tomaram a maior dimensão. São até hoje comentadas por críticos, pesquisadores e acadêmicos. O senhor acha que foram eleitas como trabalhos-chave do evento? F.M: É verdade. É exatamente isso que você falou. De fato foram trabalhos fortes. Mas tinham outros trabalhos, pouco comentados, como por exemplo, a faixa de plástico do Luis Alphonsus queimada com Napalm. O trabalho tinha uma ligação com a Guerra do Vietnã. Nem se comentou muito o trabalho da Lotus Lobo. Mas foram sim os dois mais comentados e eu concordo que foram os dois trabalhos mais impactantes. As pessoas ficam comovidas com o impacto. Mas seria muito interessante observar como contraste a delicadeza do trabalho da Lotus Lobo.

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Mas no Palácio das Artes tinham outros trabalhos. Tinha a obra do Franz Weismann, uma escultura vazia. Tinha um trabalho bem interessante do Umberto Costa Barros que foi uma montagem com resíduos de material de construção. Tinha também o Vergara, A Terezinha Soares, Ione Saldanha. E tinha o trabalho do Helio Oiticica, que foi o único trabalho feito fora do parque. Foi pra Serra do Curral. Ele achava importante esse conflito visual, entre a terra vermelha da mineração, do ferro, e a trilha de açúcar. Há uma discussão se o trabalho era ou não do Helio, ou uma dupla autoria com o Lee Jafee, o artista americano. Mas para mim não há dúvida nenhuma, eu sustento que era um trabalho do Helio Oiticica executado pelo Lee Jaffe, porque pela segunda vez o Helio não estava presente. Então o Lee Jaffe que era amigo dele, junto com uma outra moça americana. Esse trabalho correspondia também às linhas extensas de cocaína que ele fazia em outras obras. O Jimmy Hendrix, a Marilyn Monroe. E a trilha de açúcar era uma ampliação dessas trilhas de pó. Então não há nenhuma dúvida quanto à autoria da obra. O Lee e essa mulher lançaram o açúcar na trilha, mas rapidamente os tratores passaram desfizeram a coisa.

PERGUNTA: Como foi a presença e a circulação do Manifesto Do Corpo à Terra que o senhor redigiu? F.M : Ele era como um volante que foi entregue no Parque. E também saiu no Jornal Estado de Minas. E saíram fragmentos em outros jornais, pois o evento foi comentado fora de Belo Horizonte. O Francisco Bittencourt escreveu no Jornal do Brasil. Foi nesse momento que ele cunhou a expressão “geração tranca-ruas”. Isso levou depois a uma discussão. Mas o Helio Oiticica em um texto, ou carta, não me lembro, nega a participação nessa dita geração. O Helio não aceitou esse termo. E na verdade foi um erro do Bittencourt, pois a “geração tranca-ruas” se aplica a uma geração posterior à do Helio. A ligação do Helio era com o Neoconcretismo e com o Tropicalismo. Ele já era um artista maduro na arte brasileira, um artista veterano - mesmo com todos os seus pioneirismos - e foi colocado no mesmo meio que artistas bem mais jovens. A geração tranca-ruas é muito mais ligada ao Barrio, que fazia umas espécies de “despachos” de macumba e colocava nas esquinas.

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PERGUNTA: O senhor considera Do Corpo à Terra uma realização do que o senhor chamou na época de Guerrilha Artística? F.M: Eu na época fiz um texto “Contra a arte-aflulente: o corpo é o motor da obra” e me refiro a este conceito de guerrilha artística. Lá eu digo que o artista deve ser um guerrilheiro. Mas este texto foi publicado originalmente na Revista Vozes e tinha uma paginação bacaninha, uma diagramação legal e tinha à esquerda uma espécie de legenda, ao invés de colocar o título dos capítulos acima, eles vinham do lado. E num desses pequenos textos eu digo que estou criticando meu texto enquanto estou escrevendo. Uma dialética. Como se eu comentasse um erro meu enquanto estava escrevendo, mas eu não quis tirar. Do outro lado eu fiz uma homenagem ao Decio Pignatari, como sendo quem primeiro usou o termo arte guerrilha. Ocorre que esse texto foi republicado, traduzido e virou um texto clássico. Na minha opinião nem é o melhor texto que eu fiz. Mas foi um texto importante pra época, veio acompanhado de uma série de coisas e a gente não pode ir contra a história. Mas em outras oportunidades eu digo que na verdade quem primeiramente utilizou o termo arte guerrilha foi o Germano Celant, crítico da Arte Povera. Eu usei essa expressão porque o termo vanguarda é um termo de guerra. É o grupo que vai na frente na batalha. E são também as primeiras vítimas. Com o Vietnã eu sinto que criou essa ideia de uma guerrilha. Porque a guerra tradicional tem um molde dos exércitos, dos avanços, etc. Mas no Vietnã os combatentes usaram táticas de guerrilha e derrotaram toda a tecnologia dos Estados Unidos, os aviões modernos. Criavam armadilhas. No caso dessa arte de guerrilha, ela também funciona nesse sentido. Pois o artista guerrilheiro trabalha exatamente com o elemento surpresa, as circunstâncias do espaço e do momento, táticas para envolver o espectador. Inclusive a própria ideia do medo. Como quando você entra numa favela... eu acho que o medo é muito importante como parte do processo de criação. Em face do medo que você tem que tomar iniciativas, tem que usar sua sensibilidade e sua percepção. Num lugar perigoso você tem que olhar mais, ouvir mais, cheirar mais, potencializar todos os seus sentidos para poder enfrentar os perigos. O Barrio, por exemplo, quando distribui suas trouxas pela cidade faz como uma guerrilha. Algo que surpreende o espectador desprevenido. Ele fica chocado, mas de alguma maneira ele está sendo surpreendido. E por outro lado em 1969, 70, era o auge da ditadura. E a guerrilha agia, no Araguaia, mas também no Rio de Janeiro, tinham assaltos a bancos, etc. Era o momento da arte pensar dentro desse contexto.

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PERGUNTA: A Arte Povera foi uma inspiração para o trabalho do senhor? F.M: Sim, eu vinha acompanhando alguns dos trabalhos, na medida do que conseguia ver naquela época. Eu podia não conhecer as obras principais, mas eu lia os textos. Na época que escrevi o texto (“Contra a arte afluente) me escapou o nome do Celant, mas pensei no Decio, que usou o termo também.

PERGUNTA: Como foi em 2001 remontar o evento Do Corpo à Terra , trazendo seus registros para uma instituição? Deu certo levar um evento que aconteceu no parque para dentro da galeria? F.M: Bom, eu acho o seguinte: não foi a primeira revisão que eu fiz. Eu fiz na Galeria do Banerj uma retrospectiva sobre o Neoconcretismo. Também do grupo FRENTE, que estavam começando a ser esquecidos. E trouxeram à tona outra vez artistas que foram importantíssimos. E eu fiz essa revisão, lá na Galeria do Itaú, que já nem existe mais. O Itaú se interessou pela arte dos anos 70 e fez um trabalho de registro e catalogação, como faz até hoje. Mas essas releituras encaixam exatamente na minha ideia de que uma obra de arte é como um filho: você lança no mundo, mas quando ela cresce e vai criando novas relações o artista já não controla mais. A obra vai ampliando seu espaço de influência. Eu acho que é preciso de tempos em tempos revisar a história da arte brasileira, pois como há um acúmulo muito grande de coisas que estão acontecendo, há uma tendência a apagar certas coisas. E quando eu fiz a Bienal do Mercosul também foi uma revisão da arte latino- americana. Era um espaço muito pequeno, mas tinha uma documentação fotográfica das obras. Foi bacana, teve discussões, um catálogo.

PERGUNTA: O senhor acredita que Do Corpo à Terra deixou um legado à arte brasileira? F.M: Sim, não sou vaidoso mas reconheço que é um trabalho de mérito. Talvez o mais importante que já fiz. Foi um projeto pioneiro, muito ousado, muito arriscado mas sinto que deu tudo certo. E é hoje um marco. Mas não foi a única, assim como o Salão de Brasília, com a polêmica do porco, tiveram os domingos no MAM. São coisas importantes. Mas tem coisas também que eu fiz que ficaram para trás.

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Se você não conhece o seu passado também não vai conhecer o seu futuro. Então de tempos em tempos precisamos dar uns mergulhos. E fazer releituras e resgates pode propiciar novas indagações e debates. E até novos eventos. Por isso acho ótimo que pessoas tão jovens se interessem por isso.

PERGUNTA: Quando o senhor pensa nos dias de hoje, no cenário artístico brasileiro, tão pautado pelas bienais e pelas feiras de arte, será que Do Corpo à Terra dialoga com esse modelo mais comercial da obra de arte? F.M: Sem dúvida tem, e precisa ter. A gente encontra obras do Cildo, do Helio, do Barrio à venda nas feiras. Essas feiras são comerciais, a intenção é vender e hoje a valorização de alguns artistas tá muito mais ligada ao preço da obra do que ao seu conteúdo. Os melhores artistas não são os que são realmente inovadores, mas são aqueles com altas cotações. No meu trabalho eu nunca me interessei pela questão material e financeira da obra de arte. Pra mim este é o lado sobrejacente da obra de arte. Eu penso no que a obra é enquanto espírito, discussão, inteligência e sensibilidade. Não enquanto um objeto que é vendido como qualquer outra mercadoria por questões puramente materiais, como investimento ou especulação. E muitas vezes essas obras não comovem em nada o seu proprietário. Mas a circulação de dinheiro na arte é grande, traz repercussões nas economias dos países e pode ajudar. Desde que a arte foi emoldurada e passou a circular ela pode ser vendida e seu propósito também mudou. Mas não dá para imaginar um mundo que não tenha obra de arte e não há nada a fazer se ela ganha uma dimensão comercial. Mas ela deve ser lida pelo que ela tem de emoção, beleza, etc. Eu continuo achando que a relação com uma obra de arte deve ser amorosa. Uma obra de arte pode mudar a vida de uma pessoa. Não podemos imaginar uma nação que não inclua como parte de sua riqueza a obra de arte. E nos momentos críticos sempre tem uma obra de arte participando. O Delacroix, o Goya. Artistas que viveram acontecimentos. Eu não vejo Do Corpo à Terra influenciando uma feira de arte, mas eu vejo artistas que participaram do evento com obras, que não tem um caráter “guerrilheiro” mas são importantes. Cada momento agrega novos conteúdos, pois muda o conceito material, a paisagem, o comportamento dos museus, as cidades e as obras mudam. As coisas caminham juntas: o museu, a crítica, a obra de arte, o espectador. O que me incomoda é que algumas dessas feiras já se realizam nos próprios espaços das bienais. Aí a crítica se mistura também, fica meio

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comercial e a gente não sabe o que é o que. Então exposições como Do Corpo a Terra tem esse papel de balançar, questionar e virar uma provocação.