UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

MICHELLE FERNANDA TASCA

Alexandre Herculano e a construção do texto histórico: escrita, fontes e narrativa

CAMPINAS 2018

MICHELLE FERNANDA TASCA

Alexandre Herculano e a construção do texto histórico: escrita, fontes e narrativa

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em História na Área de Política Memória e Cidade.

Supervisor/Orientador: Cristina Meneguello

ESSE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MICHELLE FERNANDA TASCA E ORIENTADA PELA PROFESSORA DOUTORA CRISTINA MENEGUELLO.

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CAMPINAS 2018

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 12 de abril de 2018, considerou a candidata Michelle Fernanda Tasca aprovada.

Profa. Dra. Cristina Meneguello

Prof. Dr. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes

Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto

Profa. Dra. Iara Lís Franco Schiavinatto

Prof. Dr. Julio Cesar Bentivoglio

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Para meus pais...

AGRADECIMETOS

Escrever os agradecimentos de um trabalho é atestá-lo como concluído. É uma parte fácil se pensada em relação a tudo o que trabalhamos para chegar nesse momento. Mas é também a mais difícil, pois exige a consciência do fim. Não é tarefa simples abrir mão de algo que esteve como companhia muitas vezes invisível em tantos cafés da manhã e chás de madrugada. Ter a consciência do trabalho terminado é gratificante, libertador e dolorido ao mesmo tempo. Uma ausência que passa a ser sentida. Exige um retorno, um repensar de cada etapa e de cada pessoa que direta ou indiretamente participaram desse grande processo.

Agradeço primeiramente aos meus pais Natale e Cida, que sem eles nada disso teria sido possível. Foram os primeiros que realmente acreditaram em mim e no meu trabalho. Me apoiaram de todas as formas. Meu amor é imenso.

Ao meu irmão Gustavo, pelas turranices e conversas controversas.

À Vanessa, irmã sempre amorosa e apoiadora em todos os momentos. Ao meu cunhado André Vecchiato e à minha sobrinha Isabella que nasceu em meio à todo esse processo e me encheu de amor e vontade de me tornar cada vez melhor, por ela e por mim.

Ao meu avô Antônio, exemplo de vida, e minhas queridas avós Iracema e Carmen, que infelizmente já partiram. Saudades eternas.

Frida, minha pincher louca e companheirinha de todos os dias.

Ligia Guido, amiga de todas as horas, agradeço pelos momentos vividos em , pela companhia nas viagens, nas aulas da pós-graduação e pela leitura interessada de meu texto nos momentos finais de preparação.

À orientadora Cristina Meneguello, que me acompanha já há tantos anos. Agradeço não só pela orientação, mas também pela inspiração e amizade.

Aos professores do Departamento de História da Unicamp.

Agradeço em especial aos professores Aldair Rodrigues, Alessandra Pedro, Iara Lis, José Alves de Freitas Neto, Júlio Bentivoglio, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Temístocles Cezar, que gentilmente aceitaram a compor a banca de defesa.

Aos colegas de curso da pós-graduação.

Aos coordenadores do curso de Publicidade e Propaganda e de Jornalismo da faculdade Eduvale, Marco Apollonio e Erick Fasciolli, pela oportunidade de ingressar na docência acadêmica.

Aos colegas de trabalho e amigos que fiz em Avaré.

Aos colegas que fiz em Lisboa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Ao professor Sérgio Campos Matos, que atenciosamente me acolheu em Portugal para as pesquisas feitas durante o doutorado sanduiche.

Agradeço também às bibliotecas vinculadas à Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa, assim como, ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, à Biblioteca Nacional de Portugal e à Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 5632-13-7.

Construir a história é narrá-la. (H. Pirenne)

Depois d’elle succedido conta-o, torna-o a contar: a poesia o vai enfeitando, a imaginação enriquecendo, o espirito associando, e no fim de annos tem a historia sahido d’esse chaos, d’essa Babel de linguas dispersas já outra, sempre para mais pasmosa e estupenda: e tanto mais o for, tanto maior certeza terá de ferir a imaginação e tocar os corações, especialmente do sexo que recolhe mais itimas sensações, e que depois nol-as transmite com o leite. O historiador só apparece mais tarde quando o povo se tem constituido e adiantado em civilização; mas d’esse facto que ao povo interessou, e pela fórma que lhe interessou, já elle tem registrado a historia n’um archivo muito mais popular, e não menos duradouro que os documentos escriptos em pergaminho: é o da tradição. (Francisco Adolfo de Varnhagen)

RESUMO

Este trabalho propõe um estudo sobre a escrita da História de Portugal de Alexandre Herculano. A fim de melhor compreender a obra abordada e sua relação com o autor e seu contexto de produção, buscamos inicialmente apresentar a trajetória do historiador português, sua formação e escolhas profissionais. Salientamos também, os anos iniciais de aprendizado e a importância da experiência do exílio, para então, adentrar ao seu desenvolvimento profissional e à junção dos afazeres de bibliotecário aos de historiador. Pretendemos demonstrar a conciliação entre as duas instâncias, ao mesmo tempo em que discutimos o processo de construção da historiografia oitocentista em que o historiador, para escrever sua síntese histórica, deveria antes de tudo reunir os materiais necessários através de incessantes buscas, catalogações e estudos de documentos que ainda não haviam sido adequadamente manuseados para servir a tais propósitos. Nosso objetivo foi demonstrar a importância dada por Herculano para as fontes documentais e compreender como as utilizava para construir sua narrativa histórica. A partir da compreensão das relações estabelecidas entre o historiador e seu material de pesquisa, intentamos delinear os caminhos percorridos pelo autor para a construção de seu discurso. Estabelecemos, por fim, uma relação entre história, imaginação e literatura, a fim de perceber as distinções possíveis de um mesmo tema abordado a partir do viés histórico, no caso, o primeiro livro da História de Portugal, e do viés literário em O Bobo.

Palavras Chave: Herculano, Alexandre, 1810-1877; Historiografia; Portugal– século XIX

ABSTRACT

This work proposes a study on the writing of the História de Portugal by Alexandre Herculano. In order to better understand the work dealt with and its relationship with the author and his context of production, we initially seek to present the trajectory of the Portuguese historian, his training and professional choices. We also emphasize the initial years of learning and the importance of the experience of exile, and then, to enter into his professional development and the joining of the tasks of librarian to those of historian. We intend to demonstrate the conciliation between the two instances, at the same time as we discuss the process of construction of eighteenth century historiography in which the historian, to write his historical synthesis, should first of all gather the necessary materials through incessant searches, catalogs and studies of documents that had not yet been properly handled to serve such purposes. Our objective was to demonstrate the importance given by Herculaneum to documentary sources and to understand how he used them to construct his historical narrative. From the understanding of the relations established between the historian and his research material, we try to delineate the paths taken by the author for the construction of his discourse. Finally, we establish a relation between history, imagination and literature, in order to perceive the possible distinctions of the same theme approached from the historical bias, in the case, the first book of the História de Portugal, and the literary bias in O Bobo.

Keywords: Herculano, Alexandre, 1810-1877; Historiografy; Portugal–

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

CAPÍTULO I -A CONSTRUÇÃO DE ALEXANDRE HERCULANO ...... 17 1.1.Escolhas e experiências...... 18 1.2.Biblioteca do ...... 21 1.3.Biblioteca da Ajuda ...... 23 1.4.Principais obras ...... 32 1.5.Sobre a História de Portugal ...... 36 1.6. Historiografia francesa e alemã ...... 41 1.6.Bibliografia sobre Alexandre Herculano ...... 43

CAPÍTULO II - CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA - O HISTORIADOR E SUAS FONTES .... 47 2.1. A história encoberta ...... 55 2.2. O quadro da história ...... 62 2.3. História, fontes e narrativa ...... 64 2.4. O primeiro livro da História de Portugal ...... 65 2.5. As fontes históricas ...... 67 2.6. Fontes utilizadas no primeiro livro da História de Portugal ...... 68 2.7. Historia Compostellana e as Crônicas Anônimas de Sahagun: relato contemporâneo e testemunho ...... 69 2.8. Fontes que dialogam ...... 77 2.9. Como Herculano utiliza as Crônicas Anônimas de Sahagún ...... 84 2.10. Conclusão do capítulo ...... 91

CAPÍTULO III - NARRATIVA E IMAGINAÇÃO ...... 93 3.1. Personagens ...... 102 3.2. Quem é D. Teresa na História de Portugal? ...... 106 3.3. Os antagonistas – Diogo Gelmires e Fernando Peres De Trava ...... 114 3.4. Afonso Henriques e a figura do herói ...... 116

CONCLUSÃO ...... 119

BIBLIOGRAFIA ...... 122

ANEXO I ...... 131

ANEXO II ...... 133

ANEXO III ...... 140

ANEXO IV ...... 143

ANEXO V ...... 148

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INTRODUÇÃO

Fechando um ciclo pessoal de estudos sobre Alexandre Herculano, iniciado nos anos finais da graduação, essa tese de doutorado propõe uma análise da História de Portugal escrita por Alexandre Herculano e publicada entre os anos de 1846 e 1853. O objetivo central desse trabalho é compreender a formação do historiador oitocentista e o processo de trabalho que levou à escrita dessa grande obra, considerada um marco na historiografia portuguesa contemporânea. Dentre as muitas edições pelas quais a História de Portugal passou desde sua primeira publicação, escolhemos trabalhar com a oitava, datada de 1875 e dirigida por David Lopes, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Essa edição nos interessou sobremaneira por se tratar de uma versão definitiva, ou seja, já com todas as modificações feitas por Alexandre Herculano e incluindo todas as Advertências e o Prefácio, além de preservar a grafia do século XIX. Dessa forma, optamos também por manter as citações em sua forma original conforme aparecem nos livros e documentos consultados. A História de Portugal em sua última edição organizada durante a vida do autor é composta de duas Advertências (da primeira e da quarta edição) e do Prefácio da terceira edição, seguidas pela Introdução, que funciona como um grande capítulo de abertura da obra; também pelos livros e as notas ao final de cada um deles. A Introdução, por sua vez, é dividida em três partes: a primeira delas que é bastante detalhada e rica em referências documentais e bibliográficas, e as duas outras, cujo rigor documental pode ser considerado um tanto reduzido. A Introdução da obra, embora não seja o grande ponto de análise dessa tese, apresenta algumas das questões que serão abordadas ao longo de nosso texto e nos dão algumas pistas sobre o teor e a metodologia de trabalho seguida pelo historiador: nela são abordadas questões relativas à documentação medieval; o autor confronta a historiografia medieval com a historiografia renascentista, ressaltando sempre os méritos da primeira; inicia suas discussões acerca da origem da nação portuguesa salientando os primeiros povos que se fixaram na península Ibérica; e apresenta ainda, um extenso conhecimento de autores e fontes, cujas referências aparecem, em geral, em notas de rodapé. Constam em seu texto referência a autores dos mais variados países como Portugal, França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Espanha. Além de autores antigos da Grécia e

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de Roma, a exemplo de: Tito Lívio, Plínio, Plutarco, Políbio e Quintiliano. Mas é Estrabão quem aparece com maior frequência, sendo utilizado ao falar da geografia antiga da península. Com exceção dos autores clássicos e de Santo Agostinho, que também aparece referenciado algumas vezes, grande parte das fontes citadas por Herculano datam a partir do século XV, com destaque para algumas obras dos séculos XVIII e XIX. A segunda e terceira parte da Introdução são consideravelmente distintas da primeira. Apesar de notarmos um considerável embasamento documental, as fontes não aparecem referenciadas com tanta precisão. Os temas centrais abordados nessas duas partes remetem ao domínio árabe na península, à conquista e processo de formação dos reinos cristãos. Ao narrar os eventos que culminaram com a separação do reino de Portugal do reino leonês, por exemplo, Herculano apresenta uma quantidade muito pequena de notas e referências textuais. A justificativa é dada pelo próprio autor que vê nesses eventos uma espécie de prólogo da história que realmente lhe interessa, ou seja, é válido e necessário apresentar a formação dos povos que antecederam a formação do reino português, mas apenas para contextualizar o que será abordado a seguir.

É, pois, unicamente para lançar os alicerces da historia politica de Portugal e para facilitar ao leitor a intelligencia dela que a fazemos preceder de um bosquejo da historia do dominio arabe da Hespanha e da monarchia leonesa, não consultando nessa parte as fontes primitivas, porque não escrevemos os annaes da Peninsula, mas extrahindo-o das narrativas dos escriptores modernos que parece haverem-nas melhor estudado.1

A terceira parte da Introdução, mais especificamente, é escrita a partir da leitura em paralelo de autores árabes e cristãos, que são citados de forma bastante genérica: Crônicas quase contemporâneas. Crônicas cristãs. Cronistas cristãos. Cronistas árabes. Antigos cronistas. Antigos cronicons. Antigos historiadores. Historiadores da península. Historiadores. Historiadores árabes. Historiadores cristãos. Historiadores modernos. Historiadores cristãos. Escritores antigos. Escritores árabes. Dessa forma, poucas dessas fontes são nomeadas, mas dentre as que se tornam identificáveis, percebemos algumas das grandes obras ou compilações

1 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomos I. p. 100.

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documentais que abordaremos ao longo do trabalho, como as elaboradas por Henrique Flores, Rodrigos Ximenes, Lucas de Tuy e João Pedro Ribeiro (contemporâneo à Herculano). Apesar de a Introdução apresentar muitas características peculiares que a distinguem do restante da obra, ela apresenta também alguns pontos em comum, como a relação do autor com suas fontes e a maneira como elabora sua narrativa a partir do estudo desse material. Isso pode ser visto como uma prévia da forma de estudo e escrita elaborada por Alexandre Herculano, como observaremos mais detalhadamente especialmente ao longo do segundo capítulo. Assim sendo, a primeira parte do trabalho busca apresentar a trajetória de Alexandre Herculano, sua formação e escolhas profissionais. Para tal objetivo, salientamos os anos iniciais de aprendizado e a importância da experiência do exílio, para então, adentrarmos ao seu desenvolvimento profissional e à junção dos afazeres de bibliotecário aos de historiador. Pretendemos demonstrar a conciliação entre as duas instâncias, ao mesmo tempo em que discutimos o processo de construção da historiografia oitocentista em que o historiador, para escrever sua síntese histórica, deveria antes de tudo reunir os materiais necessários através de incessantes buscas, catalogações e estudos de documentos que ainda não haviam sido adequadamente manuseados para servir a tais propósitos. Apresentamos ainda, ao final do capítulo, a forma como Herculano foi lido ao longo dos anos e a mudança no viés crítico dos estudos analíticos. A análise pretendida da História de Portugal, focada, sobretudo, no primeiro livro da obra, dialoga com as ideias de historicismo, romantismo e a premissa da história como ciência, então em voga na historiografia europeia durante o século XIX. Nesse sentido, o trabalho de Herculano teria surgido no contexto das grandes obras de história nacional, como um dos precursores dessas e de tantas outras questões que ligavam a história aos afazeres objetivos e conscientes de um resgate das origens da nação. O segundo capítulo, portanto, está diretamente ligado a tais questões historiográficas e procura estabelecer um paralelo entre a obra histórica do autor e a historiografia europeia em desenvolvimento. Uma das questões centrais a ser aborda será a importância do documento de época como fonte principal para a construção do discurso do historiador. Para isso apresentamos o surgimento da ideia moderna de documento histórico e como Herculano se relacionava com ela. Importante salientar ainda a distinção entre a ideia de documento e monumento, sendo a primeira mais ligada a uma escolha consciente do historiador sobre as pistas que irão compor o quadro passado a ser construído. Dessa forma, a importância do documento e da historiografia de bases científicas estaria diretamente ligada à ideia de verdade na história,

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contrapondo-se à história fabulosa de tempos anteriores. Entra em questão, portanto, o embate entre a história verdadeira e a tradição fabulosa, que estaria mais ligada ao conceito de verossimilhança. Trataremos em seguida de duas metáforas criadas por Herculano para se referir à construção histórica. A primeira delas sugere a ideia de um passado sempre escondido em meio ao desconhecido. Essa percepção é criada a partir de construções visuais que transmitem a impressão de que o conhecimento histórico estaria sempre oculto na escuridão, e que o trabalho do historiador seria torná-lo visível através de um esforço de resgate da memória através dos documentos antigos. A segunda metáfora, também ligada à ideia de visão, conforme argumentaremos a partir da teorização de François Hartog, trata a história como um grande quadro e o historiador como responsável por designar-lhe as cores. A questão central a ser abordada no segundo capítulo, no entanto, se refere ao documento histórico. Nosso objetivo é compreender o que Herculano entendia por documento histórico e qual a sua importância dentro do trabalho desenvolvido. Dessa forma, procuramos apresentar como o historiador se relacionava com esse material, qual a sua forma de leitura e abordagem e como essas fontes apareciam dentro da História de Portugal. Intentamos assim apresentar os caminhos utilizados pelo autor desde os primeiros contatos com as fontes até a transformação do documento consultado em narrativa histórica. Para isso elaboramos uma lista de todos os documentos que são citados pelo autor ao longo do primeiro livro, promovendo uma comparação pontual entre as fontes originais e a forma como elas aparecem citadas ao longo do texto. O terceiro e último capítulo é dedicado à compreensão dos elementos subjetivos da escrita histórica, ou seja, da habilidade do autor e dos procedimentos imaginativos que permitem a transformação das informações documentais em narrativa. Para isso estabelecemos uma relação entre a história e a imaginação, sempre a diferenciando dos procedimentos imaginativos literários, cuja finalidade e liberdade de construção seriam distintos. Nesse sentido, promovemos também uma leitura em paralelo de passagens da História de Portugal que coincidem com textos literários escritos pelo mesmo autor, a fim de melhor compreender como se dão as construções literárias e históricas de um mesmo assunto e dos mesmos personagens a partir de propósitos distintos.

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CAPÍTULO I

A CONSTRUÇÃO DE ALEXANDRE HERCULANO

O objetivo desse capítulo não é elaborar uma biografia detalhada sobre Alexandre Herculano. Sua vida já foi muito abordada a partir dos mais diferentes aspectos, desde análises que partiam das características físicas do autor para entender sua personalidade, de obras que se centraram em momentos mais intensos de sua vida, a exemplo de sua juventude e os anos de exílio, e mesmo outras que tentaram entender os motivos para o seu retiro final em Vale de Lobos. Cabe-nos, entretanto, ressaltar alguns pontos da vida do historiador que parecem relevantes para construir a imagem do autor que nos propomos a estudar e ao mesmo tempo, compreender o processo que levou à escrita da sua grande obra histórica: a História de Portugal. Sabemos que esse processo de interpretação da realidade vivida não nos garante acesso a uma realidade última, impossível mesmo de ser alcançada. Mas permite a significação da vida a partir de leituras possíveis: “O sentido da vida é um puzzle que constantemente se completa e se refaz. Cada jogador que pretenda completá-lo irá introduzir peças que o implicarão a ele, ao seu meio e ao seu tempo.”2 É nesse sentido que procuramos compor Alexandre Herculano. Para compreendê-lo é necessário pensar sua trajetória como um grande quebra-cabeças, em que cada peça colocada acrescenta um ponto a mais de entendimento. Assim, para dar um sentido possível à sua existência optamos por algumas peças, ou seja, alguns momentos e alguns aspectos, que auxiliam nossa interpretação do autor de acordo com determinados interesses, no caso, sua relação com a história de Portugal.

2 MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins – política, historiografia e identidade nacional no Portugal contemporâneo (1867-1960). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005. p. 13.

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Como nosso objetivo é, portanto, estudar Alexandre Herculano como historiador, consideramos válido abordar sua formação intelectual de forma introdutória, apenas para nos situarmos em relação ao seu contexto de vida e formação. Da mesma forma, pareceu-nos impossível desligar os interesses e os trabalhos históricos de Herculano de sua profissão de bibliotecário, visto que, ao mesmo tempo em que foi atraído para o interior das bibliotecas por interesses na história de seu país, foram os acervos dessas mesmas instituições que permitiram a elaboração de sua densa obra histórica.

1.1. Escolhas e experiências

Nascido em Lisboa no ano de 1810, período em que Portugal andava às voltas com as invasões napoleônicas, Alexandre Herculano, conheceu desde cedo a ideologia liberal que o iria caracterizar em diversos momentos de sua vida. Já o pai do nosso autor foi um funcionário público que manteve certo contato com pessoas letradas e se interessou pelo liberalismo político. Não obstante, seus primeiros estudos foram feitos na Congregação de S. Felipe Néri no Hospício junto ao Paço Real das Necessidades, uma instituição de base religiosa, como era muito comum no período.3 Apesar de não se ter certeza sobre as datas em que Herculano frequentou essa instituição – provavelmente durante a década de 1820 – sabe- se que estudou disciplinas de humanidades e língua latina, que o preparariam para um curso superior, ao qual não ingressou por problemas familiares.4 Alexandre Herculano não fez parte da intelectualidade acadêmica que era muito proeminente em universidades portuguesas como a do Porto e a de Coimbra durante o século XIX, mas nem por isso seus trabalhos tiveram menor relevância. Ao invés de frequentar a universidade, ele cursou matemática na Escola Naval e participou da Aula do Comércio, que fora um curso prático criado pelo Marquês de Pombal para os filhos dos negociantes.5 Seguiu, dessa forma, por um caminho alternativo ao ensino superior, a exemplo de outras personalidades portuguesas que também estiveram fora do meio universitário, como Oliveira Martins. Tanto ele quanto Herculano, tiveram uma formação inicial para o comércio e apenas

3 SARAIVA. Herculano e o Liberalismo em Portugal. Amadora: Bertrand, 1977. p. 14. 4 NEMÉSIO, Vitorino. A mocidade de Herculano ate a volta do exilio (1810-1832). Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda; 2003. p. 144-145. 5 GODINHO. Vitorino Magalhães. “Alexandre Herculano – O cidadão e o cientista”. In: Ensaios e Estudos - uma Maneira de Pensar, Vol. I. Lisboa: Sá da Costa, 2009. p. 474.

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posteriormente ingressaram nos estudos históricos e literários. Como salienta Vitorino Magalhães Godinho: “Quer dizer que são homens que ficam em contacto com as realidades e que se abrem para uma problemática que era estranha à Universidade do seu tempo.”6 Nesse sentido, a Aula de Comércio teria sido preponderante nos interesses posteriores de Herculano pela história do Terceiro Estado, ou seja, da classe comercial e do povo. Ao estudar a história do comércio e dos mercadores o autor fez opções que talvez não fossem possíveis dentro do meio acadêmico, em que predominava a história política tradicional. 7 Em seguida, e aqui encontramos um ponto crucial na sua formação, Alexandre Herculano frequentou as aulas de Diplomática no Arquivo Real da Torre do Tombo entre os anos de 1830 e 1831. 8 Nesse curso, estudou paleografia, tornando-se apto para trabalhar com a documentação manuscrita quando se viu empregado na Biblioteca do Porto, o que facilitou também a abordagem dos documentos necessários para a escrita de seus textos históricos. Foi nesse período que conheceu João Pedro Ribeiro, seus trabalhos em arquivos e seus estudos históricos.9 No entanto, apesar do curso frequentado na Torre do Tombo, a carreira de bibliotecário e posteriormente de historiador não fora uma ação planejada desde o princípio, já que esses conhecimentos o habilitariam tanto para a investigação histórica quanto para uma possível carreira no funcionalismo público.10 O contato com círculos de pessoas intelectualizadas e influentes foi outro ponto importante na formação inicial do historiador. Participou dos salões lisboetas, dentre eles o mais importante da época, o salão da Marquesa de Alorna, onde foi iniciado ao romantismo e provavelmente também à língua alemã. Dentre as diversas personalidades que conheceu, estavam: António Feliciano de Castilho e Morgado de Assentis, antigo poeta da geração de Bocage. 11

Foi o período dos debates sobre o classicismo e o romantismo, da recepção das novidades poéticas, novelísticas (o romance histórico) e filosóficas que vinham da Europa e, da Alemanha, influência pouco comum num país dominantemente francófilo. Para isso terá contribuído a sua facilidade para as línguas, pois é ponto assente que, embora sejam escassas as informações

6 Ibidem, p. 475. 7 Ibidem, p. 475. 8 CATROGA, Fernando. “Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico”. In TORGAL, MENDES, CATROGA. História da História em Portugal (Sécs. XIX-XX). Lisboa: Temas e Debates, 1998. p. 57. 9 FERREIRA, Ema Tarracha. Introdução à obra: Herculano, A. Lendas e narrativas. [Seleção e introdução por Maria Ema Tarracha Ferreira] Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1998, 2ª edição. p. 11. 10 CATROGA, op. cit., p. 57. 11 SARAIVA, op. cit., p. 14.

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acerca do modo como adquiriu esses conhecimentos, falava e lia o espanhol, o francês, o italiano e o alemão, além de, logicamente, ser perito no latim.12

Antes do início da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834), Herculano já estava inserido no círculo letrado de Lisboa, teve contato com os principais debates intelectuais do período, conheceu o romantismo e algumas das vertentes literárias e filosóficas que se desenvolviam no restante da Europa, além de um considerável conhecimento de línguas estrangeiras. No ano de 1828, D. Miguel foi declarado legítimo rei de Portugal, assumindo a regência, restaurando a monarquia absoluta e anulando todas as decisões decretadas por D. Pedro, então Imperador do Brasil. A anulação da Carta Constitucional outorgada em 1826, após a morte de D. João VI, foi o estopim para a eclosão das batalhas civis. Alexandre Herculano, com 21 anos, deixou os estudos e se uniu aos constitucionais contra os absolutistas. Como consequência de suas posições políticas, Herculano foi exilado de Portugal, partindo inicialmente para Inglaterra e em seguida para a França. Essa viagem forçada para o exterior trouxe, no entanto, elementos importantes para sua formação. Além de ter aprofundado o conhecimento das línguas estrangeiras, frequentou diferentes bibliotecas e conheceu novos temas de discussões intelectuais e historiográficas. De acordo com Veríssimo Serrão, a “primeira raiz” da cultura de Herculano “desabrocha no exílio” 13, ou seja, apesar de já conhecer um pouco sobre o Romantismo pelas reuniões na casa da Marquesa de Alorna e sobre o liberalismo pelo próprio contexto político português, teria sido na Inglaterra onde sentiu o primeiro arrebatamento romântico e liberal. A França o fez aprofundar-se no liberalismo e nos autores dessa língua, dos quais já conhecia de antemão alguns da matéria histórica. Herculano regressou para Portugal como combatente ativo dos “7500 bravos do Mindelo”, que em 8 de julho de 1832, participaram do cerco na cidade do Porto. Como nos lembra Fernando Catroga, já conquistada a cidade, o soldado deu lugar ao poeta e ao homem de história.14

12 CATROGA, op. cit., p. 57. 13 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência do liberalismo português. Lisboa: Livraria Bertrand, 1977. p. 41. 14 CATROGA, op. cit., p. 58.

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1.2. Biblioteca do Porto

O retorno de Herculano para Portugal se deu em uma época ainda muito conturbada da história nacional. Com a vitória do governo liberal, seguiu-se a extinção das ordens religiosas masculinas do país15, que eram detentoras das grandes bibliotecas. Como consequência, todas as obras passaram para a posse do Estado, que não possuía até então uma estrutura montada para armazenar e operar com essa quantidade de livros e documentação. Como agravante, as bibliotecas particulares dos religiosos também foram empossadas pelo poder público, dando origem a uma quantidade ainda maior de material a ser alocado e organizado. Os primeiros trabalhos de Herculano com livros e documentos se iniciaram em 1832 nas “livrarias abandonadas”16 das ordens religiosas e, sobretudo, na biblioteca sequestrada do Bispo do Porto, D. João de Magalhaes e Avelar. Nessa época, constam dois períodos distintos de trabalho, o primeiro como voluntário por cerca de oito meses e outro remunerado por mais quatro meses.17 Essas bibliotecas foram os primeiros fundos que constituíram a Real Biblioteca Pública do Porto. Na intenção de alocar esses acervos sob o poder do Estado, o governo liberal, através da Comissão Administrativa dos Conventos Extintos ou Abandonados, instalou livrarias e cartórios em diversos locais da cidade do Porto, que seriam reunidos posteriormente com a fundação da Biblioteca Pública. Como salienta Luís Cabral, o momento não era propício para a recolha e abrigo dessa grande quantidade de livros advinda das bibliotecas religiosas. No entanto, necessitando de uma forma de reunir e armazenar todo esse material, o governo liberal resolveu criar uma biblioteca pública na cidade do Porto. 18 A biblioteca foi fundada pelo decreto de 9 de julho de 1833 sendo o primeiro bibliotecário, Diogo de Góis Lara de Andrade, nomeado já no dia seguinte (10 de julho de 1833). 19 Alexandre Herculano foi um dos nomes cotados para ocupar o lugar de segundo

15 As ordens religiosas masculinas foram extintas oficialmente pelo decreto de 28 de maio de 1834, referendado por Joaquim António de Aguiar. CABRAL, Luís. “Alexandre Herculano: crônica breve de um bibliotecário.” In: Cadernos BAD. 2009/2010, Évora. p. 7. 16 Livrarias abandonadas – bibliotecas que integrava o patrimônio das ordens religiosas, que foram consideradas abandonadas na ocasião da entrada do exército liberal. Livrarias sequestradas – bibliotecas de pessoas particulares tidas por miguelistas e que, por essa razão, tiveram seus bens tomados pelo Estado. CABRAL, op. cit., p. 10. 17 CABRAL, op. cit., p. 10. 18 Ibidem, p. 7. 19 Ibidem, p.8.

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bibliotecário, juntamente com José Rodrigo Passos e José Augusto Salgado. Na proposta de indicação dos nomes apresentada pela Câmara ao Governo, temos a passagem20:

Senhor. Em execução do Art.° 7.° do Decreto de 9 do presente mez cabe a esta Comm.ão a honra e satisfação de propor a V.M.I. para segundo Bibliotecario da Real Biblioteca Publica em primeiro lugar a Alex.e Herculano de Carv.° e Ar.°, natural de Lisboa, de 23 anos de idade, porque, segundo ella é informada, é conhecedor das Linguas principaes, da Diplomacia [sic], emigrado, Voluntario do Regimento da Senhora D. Maria 2ª; entrou já em algumas acçoens e principiou a servir espontaneamente no arranjo de varias livrarias abandonadas em Novembro, e por ordem de V.M.I. em Março.” (AHMP – sessão de 16 de julho de 1833. Copiador 18 Avulsos 1833-1838, f. 113 novo, 108 antigo. A-PUB – 2172. Ver tb. Ata Vereaçãomdem16 de julho de 1833, f. 168v-169v, A – PUB – 00107. 21

O período em que Herculano trabalhou na biblioteca do Porto foi crucial para sua carreira de historiador e também para a escrita de muitos de seus textos publicados a partir de então. A experiência adquirida com essa atividade, assim como o desenvolvimento de suas bases históricas, foi somada ao conhecimento dos manuscritos e impressos que o historiador foi recolhendo ao longo dos anos e que utilizou não só para a escrita de suas obras históricas como a História de Portugal (1846-1853), a História da origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859), os Portugaliae Monumenta Historica (1856-1873), mas também para a escrita dos seus textos literários e para a publicação de artigos em diversos periódicos. O trabalho de montagem da nova biblioteca foi imenso, abrangendo a recolha, transporte e inventariação de uma enorme quantidade de livros, documentos e objetos da cidade do Porto e posteriormente de outras cidades portuguesas. Herculano participou de todo esse processo: inventariação dos livros e manuscritos das bibliotecas; louvações22; transporte dos acervos; seleção e custódia das obras de maior valor; catalogação de impressos23; classificação do material utilizando o método de Brunet; além da participação na escolha do Convento de Santo António da Cidade para abrigar a biblioteca. Nesse processo, deveu-se

20 Ibidem, p. 8. 21 Ibidem, p. 8. 22 Louvação - sf (louvar+ção) 3 Avaliação feita por louvado. 4Escolha de louvados ou peritos. http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=louva%E7%E3 o (30.05.16) 23 Esta catalogação foi feita entre 1835 e 1836, e originou a primeira geração de catálogos chamados de catálogos de Alexandre Herculano. CABRAL, op. cit., p. 12.

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ainda a Herculano o salvamento de muitas obras importantes da cultura portuguesa, como: a livraria de mão de Santa Cruz de Coimbra e o Diário de Vasco da Gama e a Crônica de D. Afonso Henriques, dentre outros. 24 Alexandre Herculano permaneceu na Real Biblioteca Pública do Porto até 17 de setembro de 1836, quando pediu demissão do cargo de 2° bibliotecário por se recusar a jurar a Constituição de 1822. Essa atitude foi tomada em consonância com diversas pessoas importantes da cidade, inclusive o primeiro bibliotecário com quem trabalhava, Diogo de Góis Lara de Andrade.25 O período em que Herculano passou no Porto, intensamente cercado por livros e documentos históricos foi crucial no aprofundamento da cultura e história portuguesa, resultando na publicação de diversos textos.

1.3. Biblioteca da Ajuda

Ao abandonar o trabalho de bibliotecário no Porto, Herculano mudou-se para Lisboa onde passou a escrever ativamente para jornais e revistas. Assumiu a direção do Panorama em 1837, ao mesmo tempo em que contribuiu para diversos outros periódicos, tais como: O País, O Português, Diário do Governo, Repositório Literário e Revista Universal Lisbonense. Como Jacinto Baptista nos diz: “... sabemos, igualmente, que o futuro historiador fazia do jornalismo, nesta fase da sua vida, a ocupação permanente e que esta era a principal e (exceptuando talvez magros direitos de autor de um estreante nas Letras) fonte única de seus meios de subsistência.”26 Em 1839, Herculano foi convidado pela rainha D. Maria II (por indicação de seu marido D. Fernando) para dirigir as bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades no lugar do Padre António Nunes, que estava adoentado e acabara de pedir a exoneração do cargo.27 Com a possibilidade de um empego estável e bem remunerado, Herculano deixou a direção do Panorama para se dedicar aos livros e aos estudos históricos que o novo ambiente de trabalho lhe propiciava. Ele permaneceu como Bibliotecário-Mor de Sua Majestade até o final de sua

24 CABRAL, op. cit., p. 12-13. 25 Ibidem, p. 14. 26 BAPTISTA, Jacinto. Alexandre Herculano – Jornalista, Amadora: Bertrand, 1977. p. 16. 27 SANTOS, Mariana A. Machado. Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda. Seperata de o Instituto, vol. CXXVII. Coimbra: Coimbra Editora Limitada, 1965. p. 7-8.

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vida em 187728 e ao longo desse período, passou pelo reinado de D. Maria II e regência de D. Fernando II (1834-1853), e os reinados de D. Pedro V (1853-1861) e D. Luís I (1861-1889). A Real Biblioteca da Ajuda não foi um simples local de trabalho para Alexandre Herculano. Desde a sua nomeação, ele trabalhou intensamente para a organização e complementação da biblioteca e fez disso sua vida. Não fosse sua atividade como bibliotecário, talvez seus trabalhos históricos não adquirissem a profundidade erudita e analítica que o historiador conseguiu imprimir em suas obras. Durante todos os anos em que efetivamente esteve presente na Biblioteca da Ajuda, Herculano morou ao lado dela, em uma casa que recebera juntamente com o novo cargo29. Para termos uma noção da proximidade da casa do escritor e bibliotecário em relação ao seu local de trabalho, convém examinar duas plantas que apresentam a configuração da primitiva Biblioteca de Sua Alteza Imperial e Real (designação usada nos tempos de D. João VI e D. Pedro IV), a primeira datada de 1817 e a segunda de 1862. Essas plantas apresentam as instalações do Palácio Real, conjuntamente com a biblioteca e a posição da casa de Herculano em relação a ela.30

28 Mesmo após mudar-se para Vale de Lobos, continua no posto de bibliotecário-mor. SANTOS, op. cit., p. 38. 29 SANTOS, op. cit., p. 8. 30 Ibidem, p. 14.

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31

31 Ibidem, sem página.

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32 Ibidem, sem página.

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Mariana A. Machado Santos, descreve as duas plantas da seguinte forma:

As plantas são de 181733 e 1862, e nelas se vê em esboço, o actual Palácio Novo, e, na mais recente, a Patriarcal com a torre, as primitivas instalações da Biblioteca Real, o passadiço que ficou durante algum tempo a liga-la ao actual Palácio, percebendo-se nitidamente o corredor que ligava a habitação de Herculano (habitação que ainda hoje existe), às salas da Biblioteca velha, sem que ele necessitasse de sair à rua, e os jardins interiores, que a iluminavam. No entanto, a topografia da Biblioteca Velha está mais nítida na planta de 1817. 34

(...)

Saía de casa, pelo lado oposto ao do Largo da Ajuda, caminhava em frente, sem ter de ir á rua, e descendo uns pequenos degraus (que se distinguem na planta topográfica de 1822), podia penetrar na Biblioteca Real, e trabalhar sem que nada o incomodasse. 35

O padre oratoriano Vicente Ferreira de Sousa Brandão, também apresenta uma descrição da casa em relação à biblioteca:

...No fim dessas 3 Salas ha uma pequena Casa, que dá sahida p.ª o quintal. Entre esta dita Casa e o Gabinete fomava o Sñr. Herculano hum paçadisso coberto, e claro para servir de comunicação entre a parte nova da Livraria, e a parte antiga, ~q he a actualmen.te existente: devendo por baixo deste paçadisso dar-se saida p.ª as duas p.ter do seu Quintal. 36

Ou seja, tanto as plantas quanto as descrições dos autores apresentam a localização da residência de Herculano exatamente ao lado da biblioteca, o que permitia que o historiador tivesse acesso direto a ela sem precisar sair para a rua. Podemos imaginar, assim, a íntima relação estabelecida entre o escritor e seu local de trabalho, levado a uma intensa vivência de tantos anos rodeado dos materiais que foram objetos de sua profissão e também de seus interesses pessoais. De acordo com Joaquim Veríssimo Serrão, Herculano fez da Biblioteca da Ajuda uma “grande oficina de investigação histórica”. Para além das fontes manuscritas e impressas

33 Apesar da planta de 1817 ser anterior ao período de trabalho de Herculano, percebe-se que a casa em que habitou estava integrada ao corpo da Livraria Real. 34 SANTOS, op.cit., p. 15. 35 Ibidem, p. 21-22. 36 Ibidem, p. 18.

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que permitiam os estudos históricos, ele recebia em sua residência a visita constante de diversos jovens que viriam a se tornar nomes importantes nas letras portuguesas como: Bulhão Pato, Rebelo da Silva, Antonio Pedro Lopes de Mendonça e Oliveira Marreca. Com esses encontros, Herculano teria ajudado a formar muitos desses jovens. 37 Em relação à atuação de Herculano nas referidas bibliotecas, sabemos que as recebeu em um estado de considerável desordem e deterioração. Não apenas os acervos encontravam-se caóticos, mas também o prédio estava bastante comprometido. Como suas funções compreendiam ainda as de uma espécie de inspetor das bibliotecas reais e do Real Gabinete de Física, anexo à Biblioteca da Ajuda, Herculano acabou por atuar em diversas frentes: “Mais do que um simples bibliotecário, orientava, dirigia, informava as licenças pedidas (mesmo as do diretor do Real Gabinete de Física) e tinha às suas ordens funcionários (oficiais bibliógrafos e moços da biblioteca) para os diversos serviços.”38 Um dos problemas enfrentados por ele foi a grande saída e entrada de obras de forma desorganizada que, dentre outros motivos, eram reflexos das sucessivas mudanças no governo. Logo que Alexandre Herculano assumiu seu cargo, por exemplo, D. Maria mandara restituir os livros que anteriormente eram de posse dos liberais e solicitava também a retirada de muitos depósitos pertencentes a particulares ou a outras instituições: “O Pe. António Nunes começara por solicitar a retirada de muitos livros depositados: os do Duque da Terceira, os dos Marqueses de Sampaio e de Ponde de Lima, dos condes de Linhares e de Óbidos e do Visconde de Laborim, que impediam a boa arrumação da “Livraria Real”, dizia ele.”39 Diante de tantas saídas e entradas de obras, vindas de diversos fundos e mesmo de livrarias pertencentes a conventos extintos que haviam sido ali alocadas, já não se tinha clareza dos materiais que constituíam o acervo da Biblioteca Real.40 Em vista disso, Alexandre Herculano esmerou-se no arrolamento de todas as obras pertencentes a essa biblioteca, elaborando inclusive, listas de obras duplicadas, que posteriormente seriam vendidas ou trocadas por outras no intuito complementar o acervo real. Em uma carta escrita em 1875 ao Administrador-Geral da Casa Real, Sebastião do Canto e Castro Mascarenhas, Herculano refere-se à organização e catalogação das obras feitas entre os anos de1840 e 1850, durante o reinado de D. Maria II:

37 SERRÃO, op. cit., p. 62. 38 SANTOS, op. cit., p. 9. 39 Ibidem, p. 6-7. 40 Ibidem, p. 7.

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A Bibliotheca Real, que se conservava em completa desordem, e as suas collecções manuscriptas a ponto de se arruinarem, foi nos anos de 1840 a 1850 ordenada e colocada methodicamente. Existe o seu catalogo em bilhetes, não se tendo reduzido a catalogo definitivo por falta de recursos materiais e pessoaes necessários para se obter esse fim. 41

Alexandre Herculano se encarregou ainda, da recolha de todo o material disperso que havia sido emprestado e não devolvido, desde livros, mapas, documentos até utensílios diversos.42 Uma das obras mais celebres a que o historiador se dedicou em recompor, e que se encontra até hoje nessa mesma biblioteca, foi o Cancioneiro da Ajuda. Trata-se de uma obra em pergaminho, datado do século XIII, escrito em galaico-português e que pertencera ao Colégio dos Nobres. Chegara ao seu conhecimento que a Biblioteca Nacional de Évora possuía diversas folhas soltas que haviam sido arrancadas, motivo que o fez requisitar esse material para recompor o Cancioneiro com a maior exatidão possível. 43 Solicitou também a devolução de muitas obras retiradas por particulares, embora muitas vezes sem sucesso, como os 44 volumes do Dicionário Geográfico de Portugal que havia sido requisitado pelo antigo diretor da biblioteca, o Conselheiro Doutor António Nunes de Carvalho, e armazenados na Torre do Tombo. Reclamou ainda: a “Fábrica que falece á cidade de Lisboa” de Francisco de Holanda, alguns volumes da “Symmicta Lusitanica” e o “Bulario de Clemente XIV”. 44 Apresentamos essas atividades detalhadas apenas para exemplificar a forma como Herculano procedia em sua atividade bibliotecária, e também para salientar o conhecimento minucioso do acervo que se encontrava sob sua responsabilidade. Conjunto esse, que servirá de base para a escrita de seus principais trabalhos. Outro empreendimento que nos permite ter uma noção das obras pelas quais o autor se interessou e considerou importantes foi a troca, venda e aquisição de livros para o acervo da biblioteca, que possuía muitas duplicatas devido ao confisco ou alienação de bibliotecas diversas. A primeira venda documentada foi feita em 6 de junho de 1843 à Real Biblioteca de Munique e com o dinheiro arrecadado, Alexandre Herculano encomendou diversas obras na livraria Viúva Bertrand & Filhos, sendo algumas delas vindas diretamente da França: Historia de la dominacion de los Arabes; Histoire d’Espagne de Rosseeuw Saint

41 Ibidem, p. 75. 42 A Biblioteca da Ajuda possui em seu acervo uma série de ofícios nos quais Herculano procede dessa forma. 43 SANTOS, op. cit., p. 23. 44 Ibidem, p. 23-24.

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Hilaire; Institutions de l’Espagne e Essai sur la domination des Arabes en Espagne de Viardot; Theoria de las Cortes de Mercier. 45 A segunda venda que temos registrada foi feita para a Biblioteca Real de Berlim em 1844, a qual se seguiram mais cinco outras negociações constando, respectivamente a venda de: 87, 98, 20, 166 e 55 volumes. Em 1866, Herculano realizou nova venda de 74 volumes ao livreiro de Paris J. Demichelis, de quem comprou por sua vez, os 9 volumes da Monumenta Germaniae Historica. Em dezembro do mesmo ano vendeu mais 58 volumes a António Rodrigues.46 Essas são apenas as transações que ainda se encontram registradas, pode ter havido outras do mesmo teor que não chegam ao nosso conhecimento.47 Algumas correspondências trocadas com os editores da família Bertrand ao longo dos anos também nos dão pistas semelhantes sobre os interesses bibliográficos do autor. Na carta datada de 14 de junho de 1843, que apresentamos abaixo, Herculano cita também a requisição de obras francesas aos editores, e pede especial atenção para a entrega dos quatro volumes “do Brunet”.48

Ill Snr. Bertrand Martyres

Ill Snr. Remetto a V. S a importancia dos livros: rogo a V. S declare no fim da Lista que – ficaram encommendados para França taes e taes obras – (que são aquellas que nós concordamos até perfazer a somma de 230 ou 232 mil reis) – Tambem me lembrou que não sendo precisos cá os livros ja, os podia o moço vir trazendo aos poucos, quando fosse a Lisboa. Assim tenha V. S . a bondade de lhe arranjar um ballotezinho, para trazer hoje, e peço-lhe que venham nelle os 4 vol. do Brunet. Sou de V. S . Am . e C. obrig. A.Herculano

Ajuda 14 de Junho 184349

A opção de Herculano pela compra das referidas obras reflete seu próprio interesse e o que considerava importante dentre tantos assuntos do conhecimento. Nota-se

45 Ibidem, p. 26. 46 SANTOS, op. cit., p. 26 e 27. 47 Ver: Anexo I. 48 DOMINGOS, Manuela D. Herculano e os Bertrand: alguns inéditos. Revista Portuguesa de História do Livro. Lisboa: Edições Távola Redonda. A. IV, n. 7 (2000), p. 87-118. 49 Ibidem, p. 109.

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uma predileção por livros contemporâneos, dos quais o acervo real estaria defasado, e também por muitas obras estrangeiras, sobretudo francesas. As obras encomendadas da França, e que foram citadas anteriormente, demonstram a grande relevância dada pelo historiador para a formação dos reinos espanhóis, já em consonância com seu grande tema de pesquisa, que seria a constituição do reino português. Importante salientar também, a compra da Monumenta Germaniae Historica que começou a ser publicada em 1826 e funcionou como uma compilação de estudos e textos medievais da história germânica, modelo que será seguido posteriormente para a elaboração da Portugaliae Monumenta Historica, organizada por Herculano. Mariana A. Machado Santos estudou de forma aprofundada o período em que Herculano trabalhou nas bibliotecas reais de Lisboa. Como bibliotecária, percebemos que ela assume uma postura em defesa da atuação de Herculano como tal, ou seja, de acordo com a autora, ele fora um bibliotecário de carreira, dedicando-se fundamentalmente a este ofício e não utilizando seu cargo apenas para ter acesso aos acervos de acordo com seu interesse como historiador e investigador.

Alexandre Herculano trabalhou muito naquelas salas, e sublinhamos muito porque temos ouvido a muitas pessoas dizer que a Herculano, como historiador, não lhe devia importar o arranjo duma biblioteca; que ele era apenas investigador e homem de letras, e não um bibliotecário de carreira, e que, por isso, aquele cargo só lhe devia ter servido como meio, para melhor poder penetrar na intimidade dos recheios livrescos de valia, e permitir-lhe escrever a História de Portugal e reunir os Portugaliae Monumenta Historica.50

Apresentar a imagem de Alexandre Herculano como bibliotecário acima de quaisquer outras classificações que sua trajetória permite, é uma opção de representação. Como Herculano foi um autor já muito estudado, devido à sua importância na cultura portuguesa, a vastidão de sua obra fez com que fosse designado como historiador, literato, poeta, polemista, jornalista e mesmo como político em raros casos, além, é claro, de bibliotecário. Isso fez com que muitos estudiosos, que abordaram uma dessas facetas isoladamente, colocassem tal posição como sendo a dominante: “Representamos os outros

50 SANTOS, op. cit., p. 15.

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para dar sentido à sua existência, para conferir sentido ao mundo, para falar do que somos e do que desejamos ser”, escreve Carlos Maurício. 51 A atividade de Herculano como bibliotecário não foi um meio para atingir seus fins como historiador, mas parte de sua profissão e também uma etapa complementar que o levou a execução de seus trabalhos históricos. Não seria possível pensarmos nas “faces do poliedro” de Herculano, como designou Candido Beirante, de forma isolada, pois não compreenderíamos as muitas possibilidades do autor. Os dois períodos de Herculano como bibliotecário foram fundamentais para a escrita da História de Portugal. Não fossem esses empregos talvez até tal obra (e outras do mesmo caráter histórico e literário) não tivesse sido escrita, ao menos não com mesma forma e substância.

1.4. Principais obras

Alexandre Herculano escreveu uma grande quantidade de textos ao longo de sua carreira, desde obras completas até artigos que eram exclusivamente publicados em periódicos. Os últimos anos de 1820 introduziram Herculano na carreira de escritor. Esse primeiro período, que se estendeu até a década seguinte, foi marcado, sobretudo, por poemas que nos mostram um autor engajado em questões políticas, enlevado por um romantismo melancólico e fortemente inspirado por sentimentos religiosos. Datam dessa época: A Voz do Profeta, datado de 1836, em que protestou poeticamente contra a Revolução de Setembro, e a Harpa do Crente de 1838, em que poetizou a Semana Santa, além de poesias avulsas reunidas na obra Poesias publicada em 1850. Os anos seguintes marcaram um abandono da poesia e enfoque em textos em prosa, que passaram a ser publicados em jornais como O Panorama e Ilustrações. Muitas das novelas datadas desse período foram editadas e reunidas posteriormente para compor as Lendas e Narrativas, publicadas em 1851, em dois volumes. O primeiro é formado por textos ambientados na Idade Média: “O Alcaide de Santarém”, publicado pela primeira vez na revista A Ilustração em 1845 e 1846, cuja narrativa se desenvolve entre os anos de 950 e 961, durante o domínio árabe na Península Ibérica; “Arras por Foro de Espanha” (1841), “O Castelo de Faria” (1838) e “A Abóboda” (1839), que se passam entre o século XIV e início do

51 MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins – política, historiografia e identidade nacional no Portugal contemporâneo (1867-1960). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005. p. 12.

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XV, sendo que as duas primeiras durante o reinado de D. Fernando e a última sob o reinado de D. João I. O segundo volume, por sua vez, é composto por novelas de temas mais variados: “A Dama Pé-de-cabra” (1841), que apresenta um enredo fantástico ambientado no século XI. “O Bispo Negro” (1839), que se passa em 1130 e “A Morte do Lidador” (1839), em 1170. Os dois textos finais fogem do cenário histórico e medieval: “O Parocho de aldeia” (1825) e “De a Granville” (1830). Ainda em relação às obras literárias, temos os dois romances: Eurico, o Presbítero (1844)52 e O Monge de Cistér (1848), cujos episódios foram, de início, periodicamente publicados nas revistas com as quais Herculano colaborava e por fim a novela O Bobo que, apesar de ser publicada no Panorama em 1843, apenas saiu como romance editado em 1878, após a morte do autor. Alexandre Herculano elaborou três obras históricas de grande importância entre as décadas de 1840 e 1870: a História de Portugal foi publicada entre os anos de 1846 e 1853, muito embasada nas cinco Cartas sobre a história de Portugal escritas à Revista Universal Lisbonense entre 1842 e 1843; a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal que datam dos anos 1854 até 1859, período em que o historiador iniciou sua jornada de pesquisa pelo reino, onde coletou os documentos que foram publicados posteriormente nos Portugaliae Monumenta Historica (1856-1873). De grande relevância para a escrita da História de Portugal, as Cartas sobre a História de Portugal, que foram reunidas posteriormente nos Opúsculos (“Controvérsias e Estudos Históricos”), tratam de uma gama de temas caros à constituição da história portuguesa, sobretudo dos primórdios da formação do reino. Compõem um total de cinco cartas, com os títulos: “Sobre a História de Portugal” (Cartas 1 e 2); “Separação de Portugal do Reino de Leão” (Carta 3); “Necessidade de uma nova divisão de épocas. Falso aspecto da História” (Carta 4); “Ciclos ou grandes divisões históricas” (Carta 5). Nelas, o autor delineia a forma como concebia a história, faz críticas aos trabalhos de estudiosos anteriores, apresenta algumas formas de interrogar os documentos e apresenta discussões acerca de fatos e eventos tidos a priori como certos e incontestáveis. Dessa forma, também temas como nação e memória constituem pontos cruciais de sua abordagem. As Cartas são importantes, pois lançaram as bases do que viria a ser a História de Portugal, desenvolvendo conceitos

52 Eurico, o Presbítero teve seu primeiro fragmento publicado a 22 de setembro de 1842, na Revista Universal Lisbonense, n 1, sob o título de “A Batalha do Chryssus”. Seguiram-se outros trechos nessa mesma revista até que em 1843, no volume II de O Panorama, foi publicada mais uma série de passagens com o título A Meditação no Promontório e, em nota, Fragmento de um livro inédito, que seria o capítulo IV de Eurico.

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fundamentais da ciência histórica e ao mesmo tempo, abordando algumas questões consideradas polêmicas na época.53 Em contrapartida, a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal surgiu como consequência direta da História de Portugal, ou seja, era intenção do autor refutar as críticas geradas pela publicação da obra no que se refere, sobretudo, ao Milagre de Ourique e às relações conturbadas estabelecidas com o clero português. Nesse sentido, a obra é carregada de ideologia política e embate com as instituições religiosas. Por fim, quando Herculano começou a trabalhar na Portugaliae Monumenta Historica já possuía uma grande bagagem historiográfica adquirida na escrita de seus trabalhos anteriores. O seu conhecimento sobre as fontes medievais, assim como a dificuldade sentida ao abordá-las, trouxe-lhe à mente a ideia de criar um grande corpus documental que servisse ao propósito do historiador. Ainda nesse período, grande parte dos materiais referentes ao início da formação do reino encontravam-se perdidos, esquecidos e frequentemente mal conservados no interior de antigas bibliotecas ou arquivos do país. Membro da Academia Real das Ciências de Lisboa, Herculano propôs no ano de 1852 a elaboração de uma coletânea de documentos referentes à história medieval de Portugal, relativos aos séculos VIII ao XV. O projeto deveria abranger três séries: documentos narrativos; legislação e jurisprudência; diplomas e atos públicos e particulares.54 Assim, juntamente com Costa Basto, percorreu os cartórios eclesiásticos da Beira e do Minho durante os anos de 1853 e 1854. Essa viagem deu origem também ao texto Apontamentos de Viagem, em que o autor registrou algumas notas e impressões gerais dos lugares que visitou, além de diversas cartas dirigidas à Academia - publicadas posteriormente por António Baião – e que são fontes importantes para conhecer o trabalho de pesquisa empreendido por Herculano durante esses anos.55 A Portugaliae Monumenta Historica seguiria, portanto, os moldes das grandes compilações documentais que estavam sendo feitas por outras nações europeias, como a França, por exemplo. Mas teve como modelo direto a Monumenta Germaniae Historica, já conhecida do historiador, como mencionamos anteriormente. A empreitada em busca desse material esquecido não foi simplesmente mérito de interesses individuais. Apesar de Herculano ter tido a consciência do trabalho que necessitava ser feito e tomado iniciativa junto à Academia Real das Ciências, é necessário salientar que se

53 SERRÃO, op. cit., p. 84. 54 SERRÃO, op. cit., p. 122-123. 55 COELHO, António Borges. Alexandre Herculano – vida, pensamento, obra. Lisboa: Editorial Presença, 1965. p. 70-71.

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tratou de um esforço em conjunto com o Estado português. Da mesma forma como a corte portuguesa foi a grande patrocinadora, direta ou indireta, da História de Portugal, ela também teve sua parcela de importância no financiamento da Portugaliae Monumenta Historica. Ou seja, era sua intenção estimular o resgate histórico que afirmaria as bases da nação em um passado conhecido ─ estudado agora com bases científicas ─ glorioso e honrado, já que se tratava da época dos grandes reis que se tornariam modelos de força e justiça. Perspectiva correlata ao romantismo então em voga também em outros países europeus. Sabemos que o passado de Portugal não era um grande mistério. A história do país era já bem conhecida por parte da maioria dos portugueses, mas essa história era, em grande parte, transmitida pela tradição oral, cercada de mitos e fantasias ou escrita a partir de interesses institucionais bem específicos, como a justificativa religiosa, por exemplo. A História de Portugal teria, portanto, como um de seus grandes propósitos, afirmar a nacionalidade portuguesa a partir de uma história escrita com bases documentais e científicas, que ao deixar de lado todos os enlevos da tradição mítica se firmaria nos pilares da verdade objetiva. Apesar da falta de documentos reclamada pelo autor, eles seriam absolutamente necessários para rever e reelaborar as origens históricas do país. A grande História de Portugal, escrita nesse momento, serviu assim, para reafirmar a nacionalidade do povo português, em um século XIX permeado de questões e crises nacionais e políticas. Nesse sentido, a obra pode ser vista como uma espécie de esforço para desvincular a história do domínio régio e aproximá-la do campo das ciências, o que daria um novo status de seriedade e valoração às origens de Portugal, que agora não seriam mais frutos de grande um milagre religioso. Como nos apresenta o autor na passagem abaixo:

Quanto a successos maravilhosos, a tradições embusteiras ataviadas para bem parecerem ao vulgo, não as busquem neste livro os que, movidos por um falso pundonor nacional seriam capazes de tomar por materia historica as lendas das Mil e Uma Noites, se lá encontrassem alguma que lhes lisonjeasse o appetite.56

No entanto, para cumprir tais desígnios, era mister ter em mãos todo um arcabouço de materiais para sustentar as novas proposições históricas. Documentação esta que, como dissemos, encontrava-se completamente dispersa, fazendo com que o historiador, se quisesse completar a síntese histórica a que se propunha, deveria primeiramente reunir o

56 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomos I. p. 21.

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material que seria necessário para a escrita. Como salienta Herculano: “A culpa é de quem pretende, que o architecto dê a traça do edificio, e carreie para elle a pedra e o cimento.”57 Esse foi o grande dilema em que Alexandre Herculano se encontrou e a justificativa para nos determos tão demoradamente em seu trabalho como bibliotecário. Ou seja, para conseguir escrever a História de Portugal, teve primeiramente de recolher, organizar e catalogar todas as fontes que lhe estavam disponíveis naquele momento. Feito isso com o material que se encontrava sob sua supervisão nas bibliotecas em que trabalhara, tomou consciência da expansão necessária de todo esse processo de recuperação. Foi quando lhe surgiu a ideia da elaboração da Portugaliae Monumenta Historica, como uma grande compilação necessária à memória histórica e documental do país. Essa obra teve, portanto, um importante papel nos estudos em arquivos e também na forma como se pensava a Idade Média até o século XIX, que a partir de então, passou a ser encarada de forma menos arredia e vista como um período de grande importância para a compreensão da história portuguesa. 58

1.5. Sobre a História de Portugal

A História de Portugal foi publicada entre os anos de 1846 e 1853. Quando o primeiro volume saiu da prensa, Alexandre Herculano contava então com trinta e seis anos e no último com quarenta e três. No período de sete anos, portanto, o autor publicou os oito livros que compõem a obra completa. Como nos lembra José Mattoso:

Assim, a obra mais duradoira da historiografia portuguesa do século XIX foi escrita rapidamente. Fez parte de um projeto não muito elaborado, abandonado prematuramente, e que o autor nunca tentou verdadeiramente remodelar. Nasceu no meio de preocupações variadas, em que avultavam a actividade jornalistica, a criação literária, a atenção dada aos acontecimentos públicos e, por fim, o empenhamento político. Ciscunstâncias que não pareciam destiná-la a tão grande fortuna e que por isso mesmo só acentuam a viva inteligencia e os dotes historiográficos de seu autor.59

57 Ibidem, p. 24. 58 COELHO, op. cit., p. 125. 59 MATTOSO, José. “Prefácio”. In: HERCULANO, A. História de Portugal – Desde o começo da Monarquia até ao fim do Reinado de Afonso III. Lisboa: Bertrand Editora, 2007. p. 14.

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Além do tempo que levou para a obra completa ser publicada, a preparação anterior não teria durado mais do que alguns anos. Foi este, um período de grande produção intelectual, quando Alexandre Herculano escreveu a maior parte de seus romances e narrativas históricas, dirigiu o Panorama, escreveu diversos artigos, trabalhou nas bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades, além de exercer brevemente o cargo de deputado (1840- 1841), e iniciar sua acirrada polêmica com o clero.60 Como apresentamos, foi apenas depois da publicação da História de Portugal, que Herculano se dedicou à publicação de suas duas outras obras históricas de maior relevância: História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859) e Portugaliae Monumenta Historica (1856-1873). A Torre do Tombo foi um importante local de pesquisa, onde foi auxiliado por José Manuel Severo Aureliano Basto, lente de Diplomática. Em suas pesquisas, fez uso ainda da documentação de outras bibliotecas do país como a Biblioteca do Porto, o arquivo da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Pública de Évora e o arquivo catedralício de Braga. Foi também importante para o historiador, a livraria de Joaquim José da Costa de Macedo, secretário da Academia das Ciências. 61 De acordo com Fernando Catroga, o interesse de Herculano pela história não teria surgido como um simples “ímpeto de juventude, ou como um interesse prioritário”. Fora um projeto amadurecido após os trabalhos realizados na Biblioteca Municipal do Porto, ou seja, a recolha e tratamento arquivístico de cartulários e epistolários medievais, iniciados nessa biblioteca, serviriam de base para a elaboração da História de Portugal e também teriam originado a Portugaliae Monumenta Historica.62 Além disso, a intenção de escrever uma história de Portugal remontaria já aos primeiros anos da volta do exílio, como uma exigência do novo regime instaurado e da percepção da necessidade de reconstruir a memória do país:

Como não acreditar que, perante as exigências de reconstrução nacional e o espetáculo de decadência e de delapidação da nossa memoria histórica, não lhe tenha então surgido, como a outros intelectuais do liberalismo, a ideia de se devotar a edificação de uma “História de Portugal”? 63

60 Ibidem, p. 9. 61 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomos I, p. 24-25. 62 CATROGA, op. cit. 63 Ibidem, p. 58.

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A partir desse ponto de vista, a História de Portugal teria sido um projeto elaborado para suprir as necessidades de um país que passava por uma série de transformações sociais e políticas e que olhava atônito à sua volta em busca de pilares para sustentar seu próprio passado. Nesse sentido, o contexto de produção da obra é também importante para compreender a forma como ela foi composta e construída, como nos lembra Quentin Skinner: “... o próprio contexto pode ser utilizado como uma espécie de tribunal de última instância para avaliar a plausibilidade relativa de intenções incompatíveis que tenham sido atribuídas a um autor.”64 Apesar das longas discussões sobre as reais possibilidades de recuperação das intenções de um autor ao escrever sua obra e mesmo a relevância de tais informações, muitas vezes especulativas, no caso de Herculano e da História de Portugal especificamente, muitas dessas questões podem ser retomadas a partir de dados que retiramos de textos ou correspondências escritas pelo historiador. Tendo visitado a cidade de Braga em uma missão do exército em 1832, Alexandre Herculano encontrou o tumulo do conde D. Henrique, há muito tempo esquecido.65 Alguns anos depois, estando já em Lisboa escreve a seguinte passagem:

Ali jazem depositadas as cinzas de D. Henrique. Ali dorme o velho Conde fundador da Monarquia o seu sono de repouso. Cresceu a nação que ele constituíra e a idade viril lhe chegou e a sua estatura era de gigante. Estendeu os braços para o oriente e o ocidente, estreitou o mundo dizendo-lhe – “és minha conquista” – envelheceu e caíu. Hoje, como o seu fundador, esta nação é um cadáver e sem nome; mas o velho Conde morreu entre o estrondo da armas e das vitórias, e ela pereceu como viúva sem filhos no leito da miséria e da agonia. Arrazaram-se-me os olhos de lágrimas contemplando este humilde e derradeiro alvergue do bom cavaleiro francês. Veteranos são para mim os sepulcros de quase todos os reis portugueses até D. João II, porque a virtude se deve venerar até sobre o trono, ou antes, em parte mais digna é de acatamento. Tão bela é a história dos nossos primeiros monarcas, quanto a dos mais vizinhos a nós é torva e muitas vezes abominável. Em quanto entre nós foram os reis primeiros cidadãos de um povo livre, eram grandes e fortes e virtuosos: tornados pouco e pouco senhores de um povo corrupto, enlodaram-se de envolta com ele em vícios e maldades. 66

Para historiadores como Joaquim Veríssimo Serrão, teria sido nesse momento que Herculano intentara escrever uma grande obra sobre a história portuguesa. Nesse texto, ele

64 SKINNER, Q. Visões da política – sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005, p. 124. 65 SERRÃO, op. cit., p. 46. 66 HERCULANO apud SERRÃO, op. cit., p. 47.

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apresentaria as “linhas fundamentais” de seu pensamento histórico e uma espécie de prólogo da História de Portugal. Na passagem citada, são salientados alguns aspectos desenvolvidos na obra, como o apreço pela monarquia e a valorização da figura régia, à qual Herculano nunca se posicionou contra.67 Nesse sentido, motivados ainda pela possibilidade apontada por Quentin Skinner de apreender os motivos da escrita de uma obra a partir de seus “fatores externos” 68 e contingentes, somos instigados a indagar sobre quais teriam sido as intenções de Alexandre Herculano ao escrever a História de Portugal? Pelo tanto que temos apresentado e argumentado, nos parece bastante plausível que seu objetivo se relacionasse à recriação e reafirmação de uma memória nacional. Seguindo o mesmo propósito do que expusemos em relação à Portugaliae Monumenta Historica, o passado conhecido seria agora aprofundado e reelaborado cientificamente, deixando de lado as lendas fundadoras e os milagres que delegavam à Igreja um grande domínio sobre a história do país. Herculano viria na esteira das ideias iluministas e de uma historiografia de base documental e científica que estava sendo desenvolvida em Portugal desde o final do século XVIII, e que teve seu eco principal na Academia Real das Ciências, que apregoava uma história crítica e desligada das origens míticas de Portugal: “A crença no progresso, a confiança na razão e o sentido crítico perante a teologia contribuía para minar a credibilidade dessas tradições tão difundidas mas, na verdade, nunca fundamentadas em evidências históricas.”69 A História de Portugal, escrita a partir dessa perspectiva crítica, rompeu com várias tradições ligadas à origem do país, colocando em questão, por exemplo: a autenticidade do Milagre de Ourique e das cortes de Lamego, assim como a correspondência identitária entre Portugueses e Lusitanos, muito popular a partir do século XV.70 No entanto, é importante também salientar, como nos lembra Sérgio Campos Matos, que mesmo a história científica cedeu lugar, por vezes, à representação mítica: “Não chegou o jovem Herculano a admitir as Cortes de Lamego como autênticas e a preconizar que se difundisse a tradição da Padeira de Aljubarrota, correspondesse ela ou não a factos verídicos?”71 Independente disso, Portugal não necessitava mais de um passado fantástico e permeado de milagres para se afirmar, deveria ao contrário, se honrar de sua própria memória

67 SERRÃO, op. cit., p. 47. 68 SKINNER, op. cit., p. 140. 69 MATOS, Sérgio Campos. “História e identidade nacional - A formação de Portugal na historiografia contemporânea”. Lusotopie, p. 123-139, 2002. p. 124. 70 Ibidem, p. 125. 71 Ibidem, p. 125.

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e dos feitos de seus antepassados: “a própria independência do Estado no século XII se devera às qualidades da nobreza portucalense medieval (em particular do seu belicoso príncipe, Afonso Henriques) e ao seu querer político”.72 A mesma passagem citada acima traz ainda outro elemento importante, a afirmação da história de Portugal frente às histórias de outros países: “Tão bela é a história dos nossos primeiros monarcas, quanto a dos mais vizinhos a nós é torva e muitas vezes abominável.” Herculano está, muito provavelmente, fazendo referência à formação dos reinos espanhóis e ao histórico de disputas de terras e poder que permearam a história da península Ibérica ao longo de séculos. Devemos lembrar que o reino português surgiu após a separação do condado dos reinos de Leão e Castela e que dessa forma, as querelas entre os reinos perduraram por muitos e muitos anos. Herculano, nesse momento, não apenas ratifica as origens de Portugal, como afirma sua superioridade. Ainda tratando sobre a concepção da História de Portugal, temos uma carta enviada por Herculano a Oliveira Martins, em que ele se refere ao seu projeto inicial de escrever uma história do povo e das suas instituições, à semelhança da Histoire du tiers état, de Thierry: “Porém, tendo coligido materiais para a primeira época, vi que possuía neles todo o que era necessário para a história política; daí veio a resolução de escrever uma história de Portugal.”73 Ou seja, tendo em mãos uma série de relatos cujas informações nem sempre eram coincidentes, como veremos nos próximos capítulos, o passo seguinte dado por Herculano foi a elaboração da síntese, ou seja, uma narrativa que fizesse uso de todo o material disponível e facilitasse o olhar crítico do historiador sobre os eventos retratados. Apesar de Herculano referenciar esta obra de Thierry, ela foi publicada apenas depois do primeiro volume da História de Portugal (a partir de 1850), sendo assim, sua inspiração viria provavelmente, como afirma Mattoso, das Lettres sur l´Histoire de France, publicadas no Courrier Française, desde 1820, sendo posteriormente reunidas em 1837. 74 De forma muito semelhante, antes de escrever sua obra completa, Herculano escreveu seus Estudos de História Portuguesa, que posteriormente foram editadas com o nome de Cartas sobre a História de Portugal na Revista Universal Lisbonense, a partir de 1842. Esses textos apresentavam estudos sobre princípios e conceitos da história nacional que dariam origem à História de Portugal.75

72 Ibidem, p. 126. 73 HERCULANO apud MATTOSO, op. cit., p. 10. 74 Ibidem. 75 Ibidem.

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A referência à Thierry é bastante significativa para entender o método de trabalho e às vinculações historiográficas de Herculano tanto com a história científica quanto com a história política de cunho liberal. De acordo com Hartog:

...a tentativa de reforma histórica e reconquista do passado nacional, inaugurada por Guizot, Thierry e Barante nos anos de 1820. Com suas Lettres sur l´Histoire de France, Thierry incitava de fato uma nova maneira de escrever a história: “científica” e “política”, a história liberal será enfim a “verdadeira” história do país, enquanto o século XIX, por oposição ao século XVIII, surgirá como o século da história: já não o filósofo, mas o grande professor como Guizot ou Cousin, já não as ideias e a abstração, mas os fatos pacientemente coligidos.76

Thierry apresenta, portanto, uma vinculação da história tanto com a ciência quanto com a política: “quanto mais científica ela for, melhor será politicamente, e vice-versa”.77 Ao referenciar os historiadores liberais franceses – em diversos momentos Herculano cita também Guizot – há uma vinculação da história feita pelo historiador português com a vertente francesa trabalhada. Nesse sentido, Fernando Catroga corrobora a assertiva de Jorge Borges de Macedo (1975), para o qual Herculano seguia uma nova proposta de escrever história, consonante com as necessidades do novo ambiente do liberalismo político. Aliava a isso, suas habilidades pessoais, como sua grande cultura histórica, a capacidade de comunicação pública escrita e a capacidade dedutiva, que o ajudaram na exploração e análise de suas hipóteses, além de visualizar a importância e o lugar a ser ocupado pelos estudos históricos dentro da cultura portuguesa. 78 O regime liberal instaurado em Portugal, aliado com o conhecimento da historiografia liberal francesa teriam, portanto, facilitado o desenvolvimento da cultura histórica portuguesa do século XIX. Desse mesmo período, logo após a implementação do novo regime, datam também outros trabalhos históricos relevantes de autores como Almeida Garret e António Feliciano de Castilho.

1.6. Historiografia francesa e alemã

76 HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2003. p. 98. 77 Ibidem, p. 99. 78 Ibidem, p. 58.

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O desenvolvimento do pensamento histórico de Alexandre Herculano costuma ser pautado na historiografia três países: Portugal, França e Alemanha. No primeiro caso, como não poderia ser diferente, a obra de Herculano dialoga constantemente com a historiografia desenvolvida em seu país até então. Não obstante, em seus textos, o historiador cita invariavelmente autores alemãs e franceses, muitas vezes para corroborar um argumento ou para contextualizar seu discurso. No entanto, essa é uma questão que divide as opiniões de diversos estudiosos, sendo que alguns ressaltam mais a relevância dos escritores franceses e outros dos escritores alemães para composição de seu pensamento. O cuidado que se deve tomar, no entanto, é para não cairmos na simples imputação de ideias estrangeiras ou externas, descaracterizando assim o trabalho do próprio autor. A importância de percebemos que Herculano conhecia profundamente autores de língua estrangeira e os utilizava na composição de seus escritos apenas pode nos indicar a complexidade do pensamento histórico que estava sendo desenvolvido por ele e a consciência da vinculação de algumas ideias com os temas que estavam sendo debatido no contexto europeu. Como ressaltaram alguns historiadores, a exemplo de Francisco da Gama Caeiro (1977), as bases científicas do pensamento de Herculano seriam frutos de uma forte ligação com a Escola Histórica alemã da primeira metade do XIX, que teria lhe fornecido as ideias, métodos e bases científicas para seu trabalho79, relação já apontada também por Albin Eduard Beau em Considerações sobre Alexandre Herculano e a Historiografia Alemã (1937). Da mesma forma, temos a concepção de Barradas de Carvalho (1971) que apresenta o pensamento de Herculano de forma dicotômica, afirmando que este buscara o método na escola alemã e a teoria na escola francesa, a partir, sobretudo, das obras de Guizot e Thierry, motivo pelo qual foi muito criticado por Fernando Catroga80, que ressalta acertadamente o exagero de se afirmar que Herculano teria herdado especificamente da Alemanha os princípios da análise documental e da coleta de informações, como se essas preocupações metodológicas fossem monopólio de tal historiografia. Dentro dessa discussão sobre qual historiografia seria mais relevante para a formação do pensamento de Herculano, temos Barradas de Carvalho, por exemplo, que criticava a proposição de Albin Eduard Beau que insistia em filiar o pensamento de Herculano às teorias rankianas. Para Barradas de Carvalho, os autores alemães serviram para Herculano,

79 CAEIRO, Francisco da Gama. “Herculano – homem romântico ou liberal?”, in: Alexandre Herculano à luz do nosso tempo – Ciclo de conferencias, Lisboa: 1977. p. 17. 80 CATROGA, Fernando. “Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico”. In TORGAL, MENDES, CATROGA. História da História em Portugal (Sécs. XIX-XX). Lisboa: Temas e Debates, 1998. p. 63.

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sobretudo, no sentido de “averiguar datas, fatos e acontecimentos.”81 Ou seja, o interesse por essa historiografia auxiliaria na apreciação do trabalho de erudição e investigação.82 O autor conclui, enfim, que as principais fontes de inspiração para o historicismo de Herculano não teriam vindo da Alemanha, mas sim da França, a partir sobretudo das obras Histoire de la Civilisation en Europe, Essais sur l’histoire de France de Guizot; Dix ans d’études historiques, Lettres sur l’histoire de France de Thierry. 83 Em resumo, Barradas de Carvalho rechaça a teoria de que Herculano teria sua teoria da história vinculada com os historiadores alemães, para defender a ligação direta de seu pensamento com os franceses. No entanto, o autor nos passa uma certa impressão de uma falta de novidade da obra de Herculano, como se cada elemento de seu pensamento histórico estivesse diretamente baseado ou em Tierry ou em Guizot. Sendo que, a partir dos elementos constatados, consideramos a concepção histórica de Herculano mais como um recorte de tudo o que conheceu, os autores que leu (portugueses e estrangeiros), juntamente com o contexto sócio-político português. Associar tão diretamente o pensamento dele com os autores franceses acaba por simplificar sua historiografia frente à ampla gama de estudos e análises que seu trabalho permitiu ao longo dos anos. Portanto, é realmente importante que consigamos mapear de certa forma, o fluxo e as vertentes de ideias que tiveram sua parcela na formação do pensamento de Herculano, mas sem imputarmos aos seus trabalhos uma mera apropriação de ideias estrangeiras que viriam a descaracterizar o trabalho do historiador.

1.6. Bibliografia sobre Alexandre Herculano

Para entendermos a importância da História de Portugal escrita por Alexandre Herculano é necessário refletir um pouco sobre quem foi o autor e o lugar ocupado por sua obra no contexto geral da escrita da história. No entanto, também é mister localizá-lo dentro da cultura e tradição intelectual portuguesa. Alexandre Herculano não foi apenas um historiador dedicado aos livros e documentos, as causas nacionais tiveram sempre um lugar muito importante em sua vida, e isso se refletiu na posição de destaque que, com o passar dos anos, ele acabou por ocupar dentro do imaginário português. Herculano tornou-se uma personagem nacional. Não apenas

81 CARVALHO, op. cit., p. 136. 82 Ibidem, p. 136-137. 83 Ibidem, p. 137.

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suas obras têm sido muito estudadas ao longo dos anos, mas também sua vida pessoal deu origem a diversos estudos biográficos. Herculano foi muitas vezes elevado a uma espécie de pedestal, onde permaneceu como um intocável herói nacional por muito tempo. Mas não se tornou um herói aos moldes de D. Sebastião ou D. Affonso Henrique, guerreiros de armas nas mãos prontos para defender seu país. Herculano foi um herói de penas e livros. Defendia sua terra pela educação e pelo amor à pátria. Essa foi a imagem criada pela sociedade portuguesa nos finais do século XIX e meados do XX, ou seja, nas décadas que seguiram à sua morte em 1877. Como bem referiu Antonio José Saraiva, muito já foi escrito sobre a vida anedótica de Herculano: os anos heroicos em que lutou no exército liberal, seu trabalho com a imprensa e como bibliotecário real, suas obras memoráveis, o sofrimento com a morte do jovem príncipe, a desilusão com a vida pública e o derradeiro retiro para Vale de Lobos: “É preciso, enfim, descê-lo do pedestal onde o imobilizaram, e recolocá-lo no seu meio e no seu tempo, como um homem vivente entre os outros homens.” 84

... um autor deixa à sua volta um rasto indiciário (feitos de palavras e de obras, de actos e de comportamentos) que é e irá sendo apreendido e interpretado de inúmeras maneiras. Essas interpretações serão por sua vez reinterpretadas na construção de novas interpretações. Forma-se assim uma trajectória de recepção. E esta é sempre uma interacção entre diversas dinâmicas interpretativas. 85

A partir desse rasto indiciário deixado por Herculano, suas obras e seus feitos, é que ele foi sendo interpretado, construído e reconstruído, por décadas a fio até que hoje nós podemos olhar para trás e perceber as múltiplas faces dadas ao autor. Em vista da imensa quantidade de estudos sobre o tema, alguns autores foram considerados mais significativos seja pela densidade das análises ou pela permanência dessas obras como referências para escritores que vieram depois. São alguns deles: Vitorino Nemésio (1901-1978), Antonio José Saraiva (1917-1993), Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980), Jorge Borges de Macedo (1921-1996), Joaquim Verissimo Serrão (1925), Candido Beirante (1937-2010) e Fernando Catroga (1945). No entanto, para além dos autores citados, muitos outros textos foram publicados desde a morte do historiador até os dias de hoje, sendo que muitos estudos recentes têm

84 SARAIVA, António José. Herculano e o liberalismo em Portugal. Lisboa: Livraria Bertrand, 1977, p. 12. 85 MAURÍCIO, op. cit., p. 12.

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proposto novas abordagens e novos objetos de análise dentro da obra de Herculano. A partir da leitura da bibliografia básica sobre esse tema, conseguimos ter uma ideia como o autor foi interpretado ao longo dos anos e da imagem de cidadão exemplar e historiador ideal que foi sendo construída, até que ele se tornasse uma espécie de mito dos estudos históricos portugueses. Nas duas primeiras décadas que se seguiram à morte de Alexandre Herculano, percebemos que as obras referentes a ele são de cunho memorial, elogios ao homem e reconhecimento pelo legado. Como exemplo, podemos citar: Gomes Leal (1848-1921), À morte de Alexandre Herculano, publicado em 1877 e Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895), Elogio histórico do sócio de mérito Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo em 1890. Curiosamente, a década seguinte, que corresponde aos anos de 1898 a 1907, praticamente não apresenta publicações relevantes. As obras sobre Herculano começam a se tornar mais expressivas a partir do ano de 1910, ocasião do primeiro centenário de seu nascimento, quando aparecem de forma mais constante alguns textos críticos e analíticos, que estudam sua obra. No entanto, os elogios históricos ainda continuam presentes. Os anos entre 1918-1927 são mais marcados por reedições de obras do que por estudos propriamente ditos. Não obstante, a partir da década de 1930 os textos analíticos retornam de forma preponderante. A partir desse período são publicadas análises mais aprofundadas e completas, sobretudo, na década de 1970, quando se comemorou o primeiro centenário de morte de Herculano. Em relação às primeiras décadas da vida de Herculano, a obra de Vitorino Nemésio, A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio (1934) é sem dúvida a mais completa e por isso, a mais frequentemente citada, mesmo por autores que escreveram estudos posteriores, a exemplo da “Introdução Biográfica” do livro Herculano e o Liberalismo em Portugal (1977), escrita por Antonio José Saraiva, que cita muitas vezes da obra de Vitorino Nemésio (embora não exclusivamente, já que o autor elenca uma série de outras fontes de acordo com o tema tratado). Uma das características da obra de Nemésio é que ela objetiva um estudo da vida do autor, e não uma análise de sua obra. Como estudo biográfico, ela é muito mais detalhada e completa em referências documentais do que outras obras que tratam das primeiras décadas de vida do historiador. Para termos uma noção da forma como Herculano foi lido citamos duas obras que constam entre as mais representativas sobre esse tema: Ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano de Joaquim Barradas de Carvalho e Herculano e o Liberalismo em Portugal, de Antonio José Saraiva.

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As duas obras foram publicadas originalmente em 1949 e reeditadas na década de 1970, sendo que as Ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano data de 1971 e Herculano e o Liberalismo em Portugal de 1977. Não por acaso o enfoque dos dois textos é bastante semelhante, ou seja, eles são guiados por conceitos políticos, econômicos e sociais, refletindo uma tendência da historiografia portuguesa nesse momento. Por outro lado, é interessante notar o olhar dos autores sobre suas próprias obras a partir dos prefácios das reedições em que eles afirmam que já não possuem o mesmo posicionamento histórico da época da primeira edição, mas que fazer certas modificações alterariam seu caráter original. Joaquim Barradas de Carvalho, inclusive assume já uma outra visão sobre a história intelectual e Antonio José Saraiva afirma já ser uma pessoa muito distante da que foi quando escreveu o livro. Dessa forma, eles preocupam-se com as ideias ou o pensamento de Herculano, embora Carvalho se identifique mais com uma vertente marxista. Ambos defendem que o autor a ser estudado deve ser visto em consonância com o seu meio e não isolado dele. Os dois autores tentam promover a humanização da figura de Alexandre Herculano, o primeiro afirmando que sua obra não foi fruto de uma simples genialidade, mas que deve ser vista em consonância com o momento vivido em Portugal e na Europa e o segundo salientando a necessidade “descer Herculano do pedestal” que por muito tempo foi colocado. No entanto, será que Saraiva consegue realmente tirar Herculano do pedestal? As análises e leituras críticas apresentadas nos capítulos cumprem essa função, embora na introdução biográfica o autor acabe por não se abster por completo de algumas formas de elogios, que muito provavelmente se justifiquem. Mas no geral a obra consegue se distinguir de autores do início do século que se contentavam apenas em exaltar as qualidades de Alexandre Herculano enquanto cidadão exemplar e modelo de ser português. O mérito, portanto, está em apresentar o historiador inserido em seu próprio meio e se posicionando em relação àquilo que o rodeava. Descer o autor do pedestal não implica em isentá-lo de seus méritos e esquecer suas qualidades, mas em observá-lo a partir de uma perspectiva crítica e talvez mais generosa, procurando compreendê-lo a partir das diversas perspectivas possíveis que seriam limitadas pelo simples enaltecimento da personagem e não tanto pelo mérito de sua obra.

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CAPÍTULO II

CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA - O HISTORIADOR E SUAS FONTES

A obra histórica de Alexandre Herculano, por ser datada do século XIX, dialoga com algumas bases de análise historiográfica, tais como: o historicismo, a história como ciência e o romantismo. Premissas essas que, de fato, não podem ser consideradas de forma isolada, já que suas proposições se interseccionam em diversos momentos. A primeira delas, o historicismo, abrange uma série de definições que variam de acordo com o contexto e o período em que o termo foi empregado. A palavra historicismo, como utilizada no português, é derivada do termo inglês historicism, sendo que, a forma original na língua alemã, historismus, foi empregada pela primeira vez por em 1797 na obra Die Griechen und die Römer. Inicialmente aplicado em contextos filosóficos, o termo foi posteriormente utilizado também por Christlieb Julius Braniss, Carl Prantl e Immanuel Hermann Fichte, dentre outros, referindo-se a uma filosofia especulativa da história.86 Dentre as diversas acepções do historicismo, considerando que o termo passou por uma série de ressignificações desde que foi utilizado pela primeira vez nos finais do século XVIII, temos a definição de Friedrich Jaeger e Jörn Rüsen de acordo com a qual o historicismo seria uma forma do pensamento histórico que estabelece uma correlação entre história e ciência. A história passa então, a ser considerada como um conhecimento específico dos tempos passados “distintos do conhecimento do tempo presente, mas que coloca aqueles em perspectiva com este e com o tempo futuro.”87 Ou seja, o historicismo traz em si a relação entre história e ciência, estabelecendo uma forma de pensar o mundo historicamente,

86 MARTINS, Estevão C. de Rezende. “Historicismo: o útil e o desagradável”. In: VARELLA, Flávia et al. (orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. p. 15-16. 87 Apud, MARTINS, op. cit., p. 17.

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propondo uma relação entre passado, presente e futuro, considerando cada uma dessas instâncias em concatenação com a outra. Nesse sentido, o historicismo do século XIX intentaria afastar a história dos jugos literários, estabelecendo novas formas de rigor metodológico referentes à forma científica de compreensão e explicação dessa corrente. Como aponta Estevão C. de Rezende Martins, baseado nos autores Jörn Rüsen e George G. Iggers, o pensamento historicista teria como base a produção de uma história científica ou metodicamente controlável pautada na ideia de compreensão. Ou seja, o conhecimento histórico pode ser considerado científico porque requer o controle metódico de suas operações. Aliado a isso, a visão de mundo historicista consideraria também a importância dos elementos imprevisíveis e espontâneos, da liberdade e criatividade humana.88

O historicismo combina o impacto da experiência histórica na sociedade (por exemplo, a ruptura da tradição, a aceleração das transformações políticas, sociais e econômicas, as mudanças advindas da modernidade no quotidiano das pessoas desde o final do século XVIII) como requisito do rigor metódico na apresentação dos dados, na sua articulação, na sua compreensão e na sua explicação. Se a „historicização‟ total dos processos de evolução do mundo produzido pelo agir humano pressupõe, de uma parte, a experiência da realidade tal como ela é (ou foi), requer igualmente a cientifização do modus operandi necessário à confiabilidade da narrativa que dela dá conta de modo convincente (plausível, verossímil). A radicalidade de determinadas experiências impõe uma revisão também radical do modo de as entender. 89

Teria sido essa correlação estabelecida entre a história e a ciência, através da conceitualização do historicismo como forma de pensamento histórico, que motivou muitos autores a transferirem esse conceito surgido da Alemanha do século XIX para outros contextos de acepções semelhantes. O paralelo entre história e ciência que o pensamento historicista delineia surgiu e se desenvolveu também na obra de Alexandre Herculano, embora não debaixo desse mesmo epíteto. Essa identificação pode ser observada na “Advertência” à primeira edição da História de Portugal, em que Herculano nos diz:

Averiguar qual foi a existencia das gerações que passaram, eis o mister da historia. O seu fim é a verdade. Onde o auctor errou involuntariamente é condemnavel o livro; onde pretendeu illudir os que o lêem, a condemnação

88 MARTINS, op. cit., p. 17. 89 Ibidem, p. 22.

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deve caír sobre o livro e conjuntamente sobre o auctor. Nenhumas considerações humanas podem alterar esta regra; e por isso, longe de pedir indulgencia, pedirei aos homens competentes a severidade para com este escripto. É o interesse da sciencia que o exige. Nas doutrinas de opinião talvez sejam licitas as concessões: nas materias de factos seriam absurdas. A verdade historica é uma. Os que não sabem abstrahir do amor proprio, para só pôrem a mira no progresso da sciencia, mentem se dizem que a ama.90

Nessa passagem, Herculano apresenta uma relação direta entre a história, a verdade e a ciência. A verdade está nos fatos. Pode ser inatingível, de acordo com a proposição de nosso autor, mas ela existe. O historiador deve, portanto, utilizar-se de meios científicos para aproximar-se dela. E qual seria a porta de entrada para essa verdade? Os documentos antigos. Por isso, as fontes históricas se tornaram tão importantes e da mesma forma, os métodos de abordar e julgar sua veracidade, que atuariam concomitantemente com a imparcialidade do historiador ao abordá-las. Apesar da crítica documental ter sido aprimorada durante o século XIX e ter se tornado um dos grandes pilares da história de pretensões científicas, a historiografia europeia seguia uma tradição de leitura e crítica documental que, desde os eruditos humanistas, se preocupava em julgar a veracidade dos documentos com base em técnicas de análise interna e externa do discurso. Vide, por exemplo, a importância adquirida pela filologia ao longo desse processo.91 Como nos lembra Jacques Le Goff, os historiadores do Renascimento, com o auxílio dos procedimentos filológicos, “ ...começaram a "laicizar" a história e a eliminar-lhe os mitos e as lendas; lançaram as bases das ciências auxiliares da história e estreitaram a aliança da história com a erudição.”92 É importante nos lembrarmos, também, do contexto português na época em que Herculano se dedicava aos seus estudos históricos. Entre os séculos XVIII e XIX, os procedimentos de erudição e crítica documental se desenvolveram em Portugal ligados, sobretudo, às instituições nascentes durante o século XVIII, como a Academia Real da História (1720) e posteriormente a Academia Real das Ciências de Lisboa (1779). Durante esse período inicial, os estudos históricos apresentavam-se ainda atrelados, sobremaneira, aos interesses eclesiásticos, característica que se modificou consideravelmente com a virada para o oitocentos. Com João Pedro Ribeiro (1758-1839), a esquematização dos estudos documentais se desenvolveu de forma mais proeminente e foram estabelecidos os princípios

90 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomo I. p. 19. 91 LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990. p. 510. 92 Ibidem, p. 118.

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de uma história crítica, com novos métodos e regras para apreender com maior rigor os fatos históricos a partir dos documentos.93 A necessidade de uma história crítica que começava a se delinear era corroborada pela ideia de que a história de Portugal, como fora transmitida e recontada, havia sido até então, em grande parte fabulosa:

Os falsos Documentos, - diz Ribeiro – que no fim do século XVI e principio do século XVII, se fabricarão da Hespanha, e mesmo em Portugal, enredarão de tal maneira a nossa História, que dous Séculos, e o trabalho de tanto Sábios não tem bastado a reduzi-la a sua pureza. A ignorância augmentou o mal, produzindo-nos cópias inexactas, e cada passo defeituoso, principalmente nas datas.94

Ao lado da noção de “falsos documentos” - muitas vezes forjados para propagar determinada versão do passado - e da tomada de consciência da importância de se estabelecer uma origem confiável de determinadas fontes, surgia, no contexto europeu da segunda metade do século XVIII, um novo modo de ler as fontes que colocava em questão muitos dos escritos até então vistos como intocáveis. De acordo com Jorge Cañizares-Esguerra, essa nova “arte da leitura”, desenvolvida inicialmente no norte da Europa, mudava a forma como as testemunhas eram percebidas, ou seja, não se privilegiava tanto mais sua educação ou posição social, mas as julgava por sua consistência interna.95 Assim também, a noção moderna de documento histórico começava a se estabelecer. Apesar de a palavra “documento” já constar há muito tempo no vocabulário dos estudiosos europeus96 ligada à ideia de ensino, o conceito começou a se modificar durante o século XVII, quando o termo foi incorporado na linguagem jurídica francesa e passou a ser utilizado no sentido legislativo. No entanto, foi somente no século XIX que surgiu o conceito de documento como um testemunho histórico.97 A partir dessa ideia moderna de documento, portanto, cumpre diferenciar tal conceito de outro muito próximo: o monumento, palavra muito utilizada pelos historiadores do século XIX. Entende-se como monumento tudo o que possa remeter ao passado e “perpetuar a recordação”. A palavra teria origem em sua raiz indo-europeia men, que denota uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere

93 BARREIRA, Aníbal. “João Pedro Ribeiro – sua posição na historiografia nacional”. In: Revista de História da Faculdade de Letras do Porto. Porto,1979, p. 56-58. 94 Ibidem, p. 58. 95 CANIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a história do Novo Mundo: histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo, SP: EDUSP, 2011. p. 29. 96 A palavra “documento” deriva do termo em latim documentum, que vem de docere, ou seja, ensinar. 97 LE GOFF, op. cit., p. 510.

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significaria ainda: “fazer recordar”, “avisar”, “iluminar”, “instruir”. Apesar de os dois conceitos estarem intrinsecamente ligados, o documento consistiria em uma escolha consciente do historiador, que se restringe inicialmente (durante o século XIX e início do XX) a testemunhos escritos que acabam por se tornar provas históricas. Tanto que o próprio Herculano faz uso constante dos termos “monumento” ou “fonte” e não tanto do “documento” como usaríamos na concepção atual.98 Portanto, embora o “monumento” continue a ser muito utilizado durante o século XIX (sobretudo para grandes compilações documentais: Portugaliae Monumenta Historica, Monumenta Germaniae Historica, Monumenta Historiae Patriae) e figure constantemente inclusive na linguagem do nosso autor, a ideia oitocentista de documento vem atrelada aos processos científicos pelos quais a história estava então sendo submetida, dentro da ideia de criar uma série de métodos de estudo, classificação de fontes e, sobretudo, de se provar cientificamente o passado histórico. Nesse sentido, como nos apresenta Verissimo Serrão, o apreço pela verdade estaria de acordo com a nova fase dos estudos históricos que se desenvolviam no país, em que o historiador deveria ser íntegro e se pautar em documentos. As tradições que não pudessem ser comprovadas, mesmo que com base em um patriotismo secular não teriam lugar nos estudos históricos. A história era então tratada como uma ciência exata, sendo que os elementos lendários não fariam parte dela.99 Também Herculano muitas vezes apresentou-se como crítico dessa história fabulosa e baseada em elementos da tradição, como nas seguintes passagens:

... como a de quase todos os fundadores de antigas monarchias, a sua vida foi desde o berço povoada de maravilhas e milagres pela tradição popular. Infelizmente os inexoraveis monumentos contemporaneos destroem, ou com o seu testemunho em contrario ou com o seu não menos severo silencio, esses dourados sonhos que uma erudição mais patriotica e piedosa que illustrada recolheu e perpetuou. A historia é hoje uma cousa assás grave para não se entreter em conservar lendas nascidas e derramadas em epochas mui posteriores aos individuos a quem se referem. 100

(...)

O principe de Portugal Affonso Henriques depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a historia se contenta com

98 Ibidem. 99 SERRÃO, op. cit., p. 100. 100 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomo I. p. 113.

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o triste espetaculo de um filho condemnando ao exilio aquella que o gerou, a tradição carrega as tinctas do quadro, pintando-nos a desditosa viuva do conde Henrique arrastando grilhões no fundo de um calabouço. A historia conta-nos o facto; a tradição os costumes. A historia é verdadeira, a tradição verosimil; e o verosimil é o que importa ao que busca as lendas da patria.101

No primeiro excerto retirado da História de Portugal, Herculano trata da vida de Affonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Por ser uma figura de vital importância para a história da pátria portuguesa, toda a sua vida, desde seu nascimento foi cercada de maravilhas e milagres transmitidos pela tradição popular. No entanto, os documentos coetâneos não confirmam tais eventos fabulosos, ou silenciam ou depõem em contrário. Para Herculano, a história seria uma matéria demasiadamente importante para se deixar levar por lendas criadas em tempos antigos. No trecho seguinte, que consta na narrativa O Bobo, em que o autor narra de forma literária o desfecho da batalha que colocou o direito das terras portuguesas nas mãos de Affonso Henriques, Herculano é ainda mais direto: a história conta os fatos e por isso é verdadeira; já a tradição, ao dar conta dos costumes e das lendas da pátria, não precisa e nem deve ser verdadeira, basta-lhe ser verossímil. Não seria permitido ao historiador contar a história conforme a tradição a desenha, isso seria depor contra a verdade encontrada nos documentos. Mas a literatura não possui essa barreira, nela a relação entre o que é historicamente comprovável e o que é fruto de lendas e mitos é muito mais fluida e sem regras pré-estabelecidas. Por esse motivo, Herculano escolheu a literatura para tratar dos mesmos eventos, dando espaço ao improvável, ou seja, em suas narrativas literárias ele se permite abordar, muitas vezes, eventos que aparecem na História de Portugal, mas com base nas versões tradicionais. Dessa forma, embora tanto a narrativa histórica quanto a literária sejam exercícios de representação do passado, na literatura, a associação do tema histórico com eventos míticos e fabulosos não romperia o princípio da verdade e objetividade internas, já que seus pressupostos são distintos dos perseguidos pela história. Por um lado, é pensando nessa aura fabulosa, com mitos e lendas que giravam em torno da história nacional que Herculano irá clamar por uma história verdadeira e objetiva. Por outro, considera também o apelo nacionalista exacerbado como um grande empecilho na escrita de uma história científica: “... tenho fé que não me cegou malevolência para com os estranhos, nem parcialidade pela terra natal”. No entanto, apesar dessa ressalva, é evidente a

101 Ibidem, p. 233.

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preocupação de Herculano com a história nacional e seu esforço para justificá-la dentro desse novo pensamento historiográfico. Como afirma Fernando Catroga, essa abordagem não comprometia a busca pela verdade, se interpretada à luz dos ideais românticos da época. Ou seja, o argumento histórico embasava o ideal refundador da nação, legitimando o projeto político no intuito de criar uma nova memória nacional, condizente com o momento histórico de rupturas e perda de referenciais que caracterizou o século XIX europeu. 102 Joaquim Veríssimo Serrão faz um paralelo entre a história científica e a história nacional. De acordo com ele, Herculano “... não obedeceu cegamente aos princípios do ceticismo histórico que a Europa do tempo cultivava, pois deu à sua obra uma coloração própria, baseada na sua experiência de exilado e de português.” 103 Ou seja, apesar de seguir os princípios de uma história científica que estava sendo desenvolvida em diversos países europeus, o autor teria feito uma espécie de releitura desses parâmetros historiográficos externos, criando uma obra com características próprias portuguesas.

Torna-se assim possível compreender a metodologia de Herculano com vista à edificação de uma história causal, isto é, um labor de investigação que procura encontrar o fio explicativo dos factos numa ampla visão documental e crítica. O historiador não devia encarar à luz do presente o que tinha forçosamente de ser visto à luz do passado, impondo-se-lhe recuar no tempo, como se fora um homem de outras eras, para descrever os sucessos então ocorridos. Mas descrever com verdade, pondo esta acima de tudo, mesmo que tocasse em lendas venerandas, mesmo que ferisse crenças seculares. A verdade estava acima de tudo e de todos, como fundamental do ideário do historiador. Entra-se assim, na zona crítica do pensamento de Herculano, buscando os seus conceitos de patriotismo e de religião quando aplicados à história. Para ele as tradições irreais e desprovidas de sentido não tinham aproveitamento no campo histórico.104

Tratava-se de reconstruir a história de Portugal deixando de lado as versões lendárias e concentrando-se em um passado verdadeiro. O objetivo era retornar aos anos gloriosos de tempos longínquos para reencontrar as raízes de uma sociedade portuguesa que era vista então como decadente. Esse retorno ao passado exemplar vinha na esteira do pensamento romântico europeu e de acordo com J. Guinsburg, ao tratar do romantismo em escala europeia, o movimento traria consigo a relevância da “consciência histórica”, propondo

102 CATROGA, Fernando. CARVALHO, Paulo Archer de. Sociedade e cultura portuguesas II. Lisboa, 1996, p.70. 103 Ibidem, p. 102. 104 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. “Alexandre Herculano e a fundamentação da “História de Portugal””. In: Alexandre Herculano – ciclo de conferências comemorativas do I centenário da sua morte. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto. Gabinete de História da Cidade, 1979. p.91.

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pensar a sociedade historicamente.105 Pressuposto que estaria de acordo com Michael Löwy e Robert Sayre, para os quais a nostalgia romântica orientaria o olhar para a busca de um passado mais ou menos longínquo (invariavelmente localizado na Idade Média), em que o estado ideal da sociedade pudesse ser reencontrado.106 O recurso ao medievalismo, muito presente no trabalho de Herculano, também é ressaltado por Francisco da Gama Caeiro, ao afirmar que “esse regresso de interesse devia-se antes a uma nova e consequente filosofia da História, que correspondia à expressão teórica dada aos apelos da época, de natureza ideológica e política, de feição católica e nacionalista.”107 Assim sendo, o romantismo poderia estar ligado às correntes historicistas citadas anteriormente. Portanto, a história cumpriria os propósitos de refundar as bases de uma nação decadente que precisava se regenerar: “Justamente no pensamento romântico, a especificidade nacional remontava às origens, fundamento e raiz da sua verdadeira essência. Logo, esse percurso desembocava na valorização da Idade Média, tempo de gestação das línguas nacionais e dos povos modernos.”108 De forma complementar, de acordo com Barradas de Carvalho, o ideal de cientificidade advindo da mudança de perspectiva da história ao se afastar do individual e voltar-se para o social, procurando o necessário e afastando-se do contingente, aproximaria a obra de Herculano das vertentes historicistas de que temos tratado.109 Esse pensamento estaria presente na obra de Herculano, na medida em que ele se preocuparia mais em retratar as instituições do que os acontecimentos, desenvolvendo assim a história das sociedades e não dos indivíduos. Essa perspectiva analítica que tenta afastar o autor do que não seria esperado em um escritor de base científica, ou seja, o fato de ele não se preocupar com os acontecimentos acaba forçando algumas conclusões que talvez não fossem procedentes ao analisar a História de Portugal sem um viés pré-determinado. As instituições são de fato importantes, mas os acontecimentos indubitavelmente também o são, do contrário não seriam justas as páginas e páginas que Alexandre Herculano dedicou a contar minuciosamente uma série de eventos que foram considerados relevantes ao longo da sua narrativa histórica. Todo o espaço dedicado às querelas entre os membros da realeza portuguesa e espanhola e as longas descrições das batalhas, por exemplo, podem ter realmente o objetivo de explicar a

105 GUINSBURG, J. O romantismo. São Paulo, SP: Perspectiva, 2005, p. 14. 106 LÖWY, M.; SAYRE, R. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade, Imprenta Petrópolis: Vozes, 1995. p. 40-42. 107 CAEIRO, op. cit., p. 17. 108 CARVALHO, op. cit., p. 64. 109 Ibidem, p. 66.

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formações das instituições portuguesas, mas não podemos negar a importância dada aos acontecimentos e personagens que levaram a isso. Nesse sentido, a preocupação de Herculano poderia ser realmente apresentar uma história da sociedade portuguesa, mas não devemos pensar que por isso as personagens individuais não tivessem importância em sua obra, ou fossem relegadas ao segundo plano. O que ocorre, na verdade, é que em muitos momentos, para não falar na maior parte da obra, os eventos são centrados nas figuras dos grandes líderes portugueses e espanhóis, que no caso dos primeiros livros seriam eles: D. Afonso Herniques, D. Theresa, D. Diogo Guelmires, Dona Urraca, dentre diversos outros que permeiam as páginas da História de Portugal. O que podemos afirmar, no entanto, é que Herculano não faz uma história biográfica ou despropositada. Muito pelo contrário, o que queremos demonstrar é que ele pretende realmente fazer uma história da sociedade e das instituições, mas ao longo de sua narrativa, não necessariamente abre mão dos eventos e das personagens principais, e nem deveria fazer dessa forma, já que um pressuposto não invalida o outro.

2.1. A história encoberta

Existem duas grandes metáforas utilizadas na História de Portugal que remetem à ideia de história: a primeira traz a impressão de uma história oculta, seja por estar ainda nas trevas ou coberta por um grande véu prestes a ser revelada; e a segunda que relaciona a representação histórica do passado a um grande quadro e suas cores. Ao apresentar o conceito de evidência na história, François Hartog perpassa por três aplicações do termo: sugere a evidência como abordada por Descartes, sendo mais associada com a retórica e a filosofia do que com a história, e “concebida como instituição, visão completa, que fornece a certeza de um conhecimento claro e distinto”; a evidência como foi usada na antiguidade, com Cícero, Quintiliano, Aristóteles e Homero, para o qual significava a aparição de um deus em “plena luz”. Remetia à ideia de “visibilidade do invisível”, uma espécie de epifania, ou seja, o “surgimento do invisível no visível”110; e por fim, conforme utilizada na língua inglesa, em que a evidência foi entendida como um sinal, uma marca, prova ou testemunho: “De natureza principalmente jurídica e judicial, mas

110 HARTOG, François. Evidências da história: o que os historiadores veem. Authentica Editora, 2011, p. 12.

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também na área de medicina, esse registro tem sido utilizado pela história.”111 Em qualquer uma das formas como a “evidência” foi utilizada, a visão permanece como ponto central do conceito, e quando aplicada à história, ela sugere uma analogia entre o que é visível e invisível em relação ao passado histórico. A concepção de história elaborada por Alexandre Herculano, e que transparece nas páginas da História de Portugal, sugere uma posição semelhante entre o passado velado e desvelado. O passado histórico é aquele que se mostra aos olhos do historiador, numa relação próxima à que Hartog apontou entre a história e a visão.

De fato, há uma história da visão ou, de maneira mais ampla, do visível e do invisível, de sua organização e de seu compartilhamento, passível de sofrer mutações de uma época para outra. Essa história com múltiplos componentes, científico, artístico, religioso, assim como político, econômico e social – seria também uma história da verdade.112

Nas páginas analisadas, Herculano elabora metáforas que irão designar esse passado oculto e a forma como ele será revelado aos olhos do historiador. O passado para Herculano encontra-se escondido das trevas, podendo apenas aparecer imprecisamente aos olhos dos que se voltam para ele. Nesse sentido, o historiador conhece inicialmente apenas aquilo que o documento lhe conta, sendo esta normalmente a versão pública ou oficial dos acontecimentos e não mais do que isso.

Há muitas vezes na história ao lado dos factos públicos outros sucedidos das trevas, os quaes frequentemente são a causa verdadeira daquelles e que os explicariam se fossem revelados. Mas ordinariamente, não passando de enredos obscuros, a noticia de tais factos morre com os que nelles intervieram, e o mais que ao historiador cabe, quando crê descortina-los, é apontar as suas suspeitas e deixar aos que o lêem avaliar o fundado ou o infundado delas. É tal doutrina applicavel ás considerações que vamos fazer; considerações que, a serem exactas, lançam bastante luz sobre a época de que tratactamos e sobre successos posteriores, aliás inexplicáveis.” 113

111 Ibidem, p. 13. 112 Ibidem, p. 143. 113 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875, tomo II. p. 67.

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A partir dessa passagem compreendemos que, na concepção do autor, o passado não é acessível ao historiador em sua forma integral. O evento abordado possuiu uma existência real, guardando em si sua própria verdade, mas ela se perdeu no tempo. Findou com o próprio acontecimento e as pessoas que participaram dele. O que nos resta seriam apenas os vestígios do que se passou. O trabalho do historiador estaria em “descortinar”, ou seja, desvendar o que ocorreu, indicando as possibilidades e elaborando conjecturas, deixando ainda ao leitor a tarefa de julgar seus fundamentos. Se a versão do historiador, escolhida dentro de um campo de possibilidades, for “exata”, o curso dos eventos poderia enfim ser parcialmente desvendado. A ideia do passado obscuro e que se revela aos poucos aparece em diversas passagens: “jazem sepultadas em profundas trevas”114, “luz frouxa e duvidosa”115, “succedidos nas trevas”, “enredos obscuros”, “descortiná-los”, “lançam bastante luz”116, “rasgar um pouco mais o véu que nos encobre as causas”117. A partir desse jogo de palavras, Herculano cria metáforas visuais que nos permitem perceber um pouco do que seria esse passado obscuro e oculto, assim como sua possível revelação através de focos de luz ou por fendas no tecido que o encobre. O autor nos apresenta a ideia da impossibilidade de recuperação total do passado e, dessa forma, o historiador é visto como aquele que irá indicar possíveis caminhos de análise e explicação. Em suas palavras, caberia ao historiador apontar as “suspeitas e deixar aos que o lêem avaliar o fundado ou o infundado delas”118. Dessa forma, apenas a parcela dos acontecimentos que se encontram sob a luz poderia ser estudada e o passado total permaneceria escondido. Com seu trabalho de investigação, questionamento e elaboração de hipóteses, o historiador tentaria, portanto, tirar o passado das sombras. Esse jogo de palavras elaborado por Herculano para nos dar a ideia de claro e escuro, oculto e revelado, visível e invisível, cria a imagem da história. Podemos conjecturar que a história é vista por ele como um pequeno ponto de luz cercado por uma densa escuridão, ou uma pequena vela em uma sala escura. O que está no entorno desse ponto de luz é claro e evidente, mas, à medida em que afastamos os olhos dele, as imagens vão se desvanecendo até a escuridão completa nas extremidades da cena. Percebemos, no entanto, que mesmo distante desse ponto, existem imagens pouco definidas, são apenas alguns borrões

114 Ibidem, 16. 115 Ibidem, 17. 116 Ibidem, 67. 117 Ibidem, 68. 118 Ibidem, 67.

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escuros que indicam sua presença. Não conseguimos distingui-las, mas sabemos que estão presentes. A ideia de escuridão faz particular sentido se pensarmos no momento em que a História de Portugal foi escrita. Temos uma sociedade oitocentista que precede o uso de energia elétrica. As ruas e o interior das casas iluminados por velas ou luminárias a gás que criavam uma mística em torno das trevas, do não alumiado. Vinda ainda como herdeira do iluminismo, com as devidas rupturas e mudanças de pensamento, a luz simboliza a informação, o conhecimento em si. Um ponto de luz que ilumina a escuridão sufocante seria uma réstia de saber em meio ao desconhecido instigante. Podemos entender também esse ponto de luz como um símbolo do documento histórico, que ao ser estudado, permite o conhecimento de apenas uma parcela, uma versão dos acontecimentos. Ou seja, o que está ao seu redor pode ser entendido como o passado conhecido. Observemos a passagem abaixo:

Expulso d‟aqui dous annos antes, e combatendo encarniçadamente durante os seguintes contra Affonso Henriques, como depois veremos, só por este meio se poderá explicar a vinda do conde aos estados de seu émulo, cuja auctoridade parece reconhecer nas próprias expressões do documento que nos guia e que nos deixa ver uma luz fugitiva no meio das trevas que cercam estes primeiros tempos do governo do infante; luz na verdade, tenuissima, mas que é preferivel ás fabulas inventadas com o correr dos seculos e ás tradições maravilhosas recebidas com sobrada boa fé, não só pelos chronistas, mas até pelos mais graves historiadores.119

Corroborando, em partes, a concepção historicista desenvolvida nesse período, a afirmação em destaque apresenta o documento como a única forma de esclarecer o passado. Não de forma certa, ampla e definitiva, já que ele apenas deixa entrever “uma luz fugidia no meio das trevas”, ou seja, uma luz fraca e incerta, mas ainda assim preferível às “fábulas inventadas” e às “tradições maravilhosas” que chegavam até os cronistas e historiadores. O passado como entendido por Herculano apresenta-se de forma semelhante: uma parcela ou uma versão dos acontecimentos é acessível e conhecida, mas muitas das causas reais e muitos outros fatos que comporiam a história de Portugal não são visíveis ao historiador. Eles são desconhecidos e muitas vezes continuarão dessa forma, a menos que o

119 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875, tomo II. p. 140.

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historiador consiga desvendar um pouco mais dos acontecimentos através de seu trabalho de investigação. A metáfora utilizada por Herculano na seguinte passagem descreve também essa relação entre luz e escuridão aplicada ao conhecimento histórico:

A escaceza de memorias e documentos divulgados sobre a historia do nosso paiz na ultima década do seculo XII apenas consente uma luz frouxa e duvidosa, que mal deixa descobrir o fio que prende os sucessos daquella epocha.120

Mais uma vez, Herculano compara a ação dos documentos em relação à história com a luz que clareia a escuridão do passado. Como as fontes referentes ao início da história portuguesa seriam escassas, elas apenas poderiam emitir uma “luz frouxa e duvidosa”. Nesse sentido, o historiador apresenta também a ideia de que os acontecimentos são ligados por um fio que relaciona os eventos ocorridos entre si. Existe aqui a noção de história como uma sucessão de fatos que se relacionam entre si e não de eventos que se fecham em si mesmos. As passagens a seguir apresentam outra ideia muito semelhante utilizada por Herculano e que também transmite a ideia de um passado oculto:

Foi no meio destas repetidas discordias e pacificações passageiras que findou a carreira das ambições e esperanças do conde, atalhando-lhe a morte os designios; mas o modo, o logar e as particularidades deste successo cobre- os véu impenetrável.121

Outras circunstancias se deram nesta elevação de Hugo, relatada por escritor contemporâneo e testemunha ocular dos sucessos que narra, as quaes vão rasgar um pouco mais o véu que nos encobre as causas probabilíssimas, não só dos acontecimentos desse tempo, mas ainda dos subsequentes.122

O historiador cria a imagem do passado oculto por um véu que é rompido aos poucos através do conhecimento advindo dos documentos e que deixam entrever as causas mais prováveis dos acontecimentos. O véu cumpre as mesmas funções da escuridão, ou seja,

120 HERCULANO, op. cit., p. 17. 121 HERCULANO, op. cit., p.67. 122 Ibidem, p. 68.

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ocultar o passado e ao mesmo tempo revelar vestígios prováveis que poderão ser acessados conforme ele é rompido. Aliada à ideia de um passado oculto nas trevas, Herculano insere a função do historiador que, ao elaborar hipóteses e suposições criam a possibilidade de desvendar os acontecimentos e assim contribuir com o progresso dos estudos históricos: “Eis uma serie de questões que, nas trevas espessas que obscurecem a maior parte dos sucessos daquelle tempo, não passam de conjecturas, mas conjecturas verosimeis, que os progressos dos estudos históricos virão acaso algum dia resolver affirmativamente.”123 Essa afirmação sugere a crença em uma verdade do passado, ou seja, entende-se que o fato ocorreu de determinada forma, mas o historiador não consegue ter a certeza de como se deu exatamente, nem seus motivos. O pesquisador pode, no entanto, atingir o passado através da comparação dos documentos, na intenção de capturar vestígios, e através deles elaborar versões plausíveis. Tendo em vista as passagens assinaladas ao longo do texto, percebemos que o autor considera a existência uma verdade do acontecimento e ao mesmo tempo, a impossibilidade de alcançá-la, dai a utilização da metáfora de luz/ escuridão e das brechas no véu que ocultam o passado. Dessa forma, apreendemos a relação que o autor estabelece com a história: como premissa dos estudos históricos, a verdade ocupa um lugar central em seu trabalho, ou seja, ela é o objetivo final da história, sendo que todo o caminho de pesquisa e escrita tem como objetivo aproximar-se o máximo possível dela. No entanto, Herculano reconhece frequentemente a dificuldade em alcançar o que de fato ocorreu, porque como citamos anteriormente, isso morre com as pessoas que participaram dos acontecimentos. O que torna seu pensamento histórico peculiar, no entanto, é a ideia de que a verdade, embora existente, dificilmente será obtida. O historiador ao tentar encontrá-la elabora um discurso verossímil, que tem a pretensão de se aliar com a realidade do passado, mas que não atinge a verdade em si.

Na falta absoluta que se dá de notas chronologicas nas chronicas comtemporaneas, o historiador moderno que deseja acertar com a verdade vê-se muitas vezes perplexo para assignalar a ordem e ligação dos acontecimentos. Quando a Hespanha tiver uma historia escripta com sinceridade e consciência, o período do governo de D. Urraca será um daquelles em que o discernimento do historiador terá sido posto a mais dura prova. Ligados, porém, os acontecimentos que nos cumpre mencionar aos do resto da Hespanha christan, cabe-nos fazer uma parte desse trabalho, sem

123 Ibidem, p. 112.

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que nos seja possível examinar os archivos da nação vizinha, e somos constrangidos a deduzir a nossa narrativa dos monumentos impressos. Procedendo por conjecturas, podemos não acertar; mas ao menos no que escrevermos procuraremos harmonizar os documentos portugueses com as narrações das chronicas que desse tempo nos restam.124

De acordo com essa passagem, a intenção do historiador é elaborar uma narrativa com base nas fontes acessíveis, na intensão de harmonizar os documentos e estabelecer uma linha dos acontecimentos. Apesar de objetivar a verdade, Herculano reconhece que o historiador pode não acertar, ou seja, pode não conseguir desvendar completamente o passado e seu texto pode não atingir as causas reais ou a forma como os eventos se desenvolveram. Ao trabalhar através de conjecturas e possibilidades, portanto, o historiador tenta construir uma narrativa que se aproxime o máximo possível da verdade, sem na realidade alinhar-se totalmente com ela. Temos aqui, portanto, a união de dois conceitos: a verdade e o discurso histórico. Quando Herculano fala do passado oculto pelas trevas ou escondido por um véu, faz relação com o que Hartog chamou do visível e o invisível na história. Em outras palavras, refere-se ao olhar do historiador ou da relação estabelecida entre o olhar e a história. O historiador estaria posicionado na fronteira entre o que pode ou não ser visto, “conseguiriam se apresentar como mestres da verdade, ornarem-se mestres-escolas e, às vezes, também provedores de cegueira e funcionários do apagamento, além de pretenderem ser atualmente decifradores do presente.”125 A história estaria organizada de acordo com um regime de “visibilidade invisível”, em que o verdadeiro visível não é visível imediatamente.126

124 HERCULANO, op. cit., p. 40. 125 HARTOG, op. cit., p. 144. 126 Ibidem, p. 151-152.

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2.2. O quadro da história

A segunda metáfora a que nos referimos trata do quadro da história, ou seja, em diversos momentos o autor trata dos eventos históricos como se formassem grandes pinturas artísticas, o que se torna interessante se pensarmos no século XIX como um período de popularização da história em diversos campos culturais e, sobretudo, no desenvolvimento de pinturas de temática histórica preocupadas em representar os ideais fundacionais e a construção da nação. No prefácio da terceira edição, Alexandre Herculano nos diz:

Foi na afeição de D. Pedro V, no desejo de lhe comprazer que achei alentos para galgar de novo a íngreme ladeira donde me tinham despenado; foi animado por elle que prosegui em ajunctar materiaes, não para levar a cabo os ambiciosos designios concebidos na idade das grande audacias, mas para concluir o quadro sincero da epocha mais obscura da nossa deturpada historia; para deixar ao mundo um livro em vez de um fragmento.127

Ao nos apresentar que a grande força para continuar seus trabalhos veio do desejo de agradar o jovem monarca D. Pedro V, Herculano reforça o intuito de “concluir o quadro sincero da época mais escura e deturpada da nossa história”. Estabelece uma relação, portanto, entre a história escondida na escuridão de que já tratamos, com a ideia do quadro ou pintura da história que abordaremos agora. Herculano não foi o único e nem o primeiro autor a pensar nessa relação. Essa foi na realidade, uma fórmula utilizada por alguns historiadores do século XIX para retratar a história. Prosper de Barante (1782-1866), por exemplo, intentava reproduzir as cores e apresentar uma pintura fidedigna dos séculos de história.128

...por analogia com a pintura, a questão formulada já não é como ocorra no século XVIII, a do ponto de vista, mas a da cor. Em sua obra L‟Histoire des ducs de Bourgogne, Prosper de Barante pretende “apresentar uma pintura fidedigna de um dos séculos de nossa história” (Barante, 1824-1826, p. XXXIV). Como? Com base nas “crônicas ingênuas” da época; mas imitar a

127 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875, tomo I, p. 16. 128 HARTOG, op. cit., p.146.

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linguagem de tais crônicas teria sido artificial e afetado. Impõe-se, então, “compenetrar-se de sua vitalidade, reproduzir suas cores”.129

Em diversos momentos Herculano também utiliza fórmulas que remetem à um quadro, tais como:

Traçámos com cores que reputamos verdadeiras o quadro da tenebrosa trama que ahi se urdira; porque sem conhecer esse quadro nunca se comprehenderá bem o periodo do governo de D. Theresa, nem se poderá encontrar a dedução natural dos factos pertencentes a esta dificultosa época da nossa historia.130

Visto, porém, o quadro á conveniente luz, as manchas que, aliás, assombrariam o altivo e nobre vulto do nosso primeiro rei quase desaparecem...131

O quadro que do estado das cousas publicas naquelle tempo nos deixaram os escriptores arabes, ou contemporaneos ou mais proximos, é, na verdade, lastimoso. A ruina do paiz, aos olhos das pessoas pridentesm parecia inevitável, porque a decadencia moral era extrema.132

Tal é o quadro que, apesar da decadencia politica de Alcacer, ainda nos fazem della os escriptores arabes do seculo XII.133

Nestes enganos mutuos, nesta guerra covarde e tenebrosa passaram os primeiros meses de 1121. Então ocorreram os sucessos que interessam especialmente a nossa historia, para explicar os quaes era preciso comprehender a situação dos dous partidos e, sobretudo, a de Diogo Gelmires, especie de Mephistopheles sacerdotal, cujo caracter é assás negro para ainda sobresair no quadro da anarchia e dos crimes que despedaçavam o seio da monarchia leonesa.134

Mas o silencio dos monumentos chistãos ácerca destes sucessos extraordinarios, a confusão e variedade que reinam a semelhante respeito nas relações arabes e, até, as contradições em que ellas laboram, tudo nos persuade que os escriptores mussulmanos quizeram, com entradas e victorias imaginarias, tornar menos triste o quadro das perdas exprimentadas nos

129 Ibidem, p. 146. 130 HERCULANO, op. cit., p. 108. 131 HERCULANO , op. cit., p. 133. 132 Ibidem, p. 202. 133 Ibidem, p. 56. 134 HERCULANO , op. cit., p. 96.

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districtos orientaes e do nenhum resultado importante que o amir tirara no occidente da passada tentativa contra D. Theresa. 135

Ao fazer constantes referências aos quadros históricos, Alexandre Herculano nos traz novamente o paralelo entre a história e a visão. O que está apresentado no quadro deixado pelos autores antigos ou o quadro quando observado através de uma luz conveniente é o que o historiador pode ver ou conhecer acerca do passado. De acordo com Paul Ricoeur, é possível dizer tanto que uma pessoa interessada por arte lê uma pintura, quanto que um narrador pinta uma cena qualquer. Em ambas as afirmativas, estão implícitas, portanto, relações entre visão e narrativa.

2.3. História, fontes e narrativa

O primeiro livro da História de Portugal nos interessa sobremaneira, por tratar diretamente dos eventos fundacionais da monarquia portuguesa no século XII, iniciando com a formação dos reinos católicos na Península Ibérica, a relação deles com os mouros e a emancipação do reino de Portugal dos domínios de Leão e Castela. Nesse sentido, o livro aborda as relações de D. Henrique, conde de Portugal, e de sua esposa D. Teresa com os reinos Ibéricos em formação e o caminho trilhado até emancipação de Portugal, finalizando com D. Affonso Henriques levantando os exércitos contra sua mãe. A formação do reino português foi tradicionalmente cercada por mitos e versões lendárias que permaneceram no imaginário popular durante muito tempo, e sobre os quais Alexandre Herculano intentou apresentar uma versão crítica mais apegada aos conteúdos documentais e aos princípios científicos então em voga. Ao fazer isso, acabou por participar em uma série de debates - sobretudo, com o clero – cujas questões foram desenvolvidas na obra História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Nesse momento, propomos uma análise mais focada no primeiro livro da História de Portugal na intenção de apreender alguns elementos importantes da escrita histórica de Alexandre Herculano como: quais foram as fontes escolhidas pelo historiador, seus critérios e objetivos; e a relação estabelecida entre elas e a construção narrativa histórica.

135 Ibidem, p. 96.

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2.4. O primeiro livro da História de Portugal

O primeiro livro da História de Portugal remonta aos anos entre 1097-1128 e é dedicado aos acontecimentos que levaram à formação do reino português. Nesse livro, Alexandre Herculano inicia sua narrativa com a expansão dos domínios territoriais dos cristãos a partir de Fernando Magno e a divisão do território após a sua morte entre seus três filhos. A partir da descendência de Fernando Magno, o autor destaca Afonso de Leão, que foi o responsável por unir novamente os territórios de seu pai sob uma única autoridade. Ao mesmo tempo em que registra a luta dos cristãos contra os sarracenos pela conquista do território, Herculano narra também as querelas internas entre os governantes cristãos. O interesse de Herculano em apresentar as divisões territoriais da península Ibérica está no distrito ou condado portucalense que foi a origem do reino de Portugal. Os primeiros registros sobre a existência desse território datariam do século XI, sendo que nesse período encontrava-se ainda sob o domínio da província da Galliza. Assim sendo, por volta dos anos de 1094 e 1095, D. Henrique, nobre cavaleiro francês, teria recebido o condado portucalense como dote de casamento ao desposar D. Theresa, filha ilegítima de D. Affonso VI, rei de Leão e Castela. Após governar por alguns anos, logo surge ao conde de Portugal o desejo de expandir seus domínios. A partir de então, iniciam-se as batalhas contra os muçulmanos e posteriormente contra outros governantes cristãos pelas conquistas territoriais.136Aos poucos delineia-se o desejo de D. Henrique de não se sujeitar mais ao poder real de Leão e Castela, ideia que estava também na mente de diversos outros senhores cristãos da península. Não bastando os anseios de emancipação, o conde de Portugal desejava também aumentar seu território com a anexação de partes do reino de Leão e Castela que poderiam ser herdadas por sua esposa com a morte de Affonso VI. No entanto, D. Henrique teve suas ambições frustradas quando, o rei de leão de Castela declarou D. Urraca, sua filha mais velha, como única herdeira da coroa real e consequentemente de todas as regiões do reino. Inconformado por não conseguir expandir seus domínios legalmente, D. Henrique passou a intentar a anexação das terras que lhe interessavam por meio do conflito direto com a coroa. A morte de D. Affonso VI trouxe uma série de disputas territoriais entre os governantes da península. D. Urraca foi declarada como única herdeira legítima e passou a governar Leão e Castela ao lado de seu segundo marido Affonso I, rei de Aragão. Coube, no

136 No ano de 1097, D. Henrique dominava os territórios que iam do Minho ao Tejo.

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entanto, a seu filho do primeiro casamento, Affonso Raimundes, a região da Galliza. Os anos seguintes marcaram um período muito conturbado na história dos reinos cristãos ibéricos, com alianças entre os governantes feitas e desfeitas e a situação da península alterando-se constantemente. Nesse cenário, o conde Henrique também jogava com as alianças visando, ao mesmo tempo, a independência do condado e a soberania sobre os territórios limítrofes. Com a morte do conde Henrique, provavelmente no ano de 1114, conforme citado pelo autor, ele de fato havia ampliado o território e diminuído consideravelmente o domínio dos muçulmanos na península, apesar de não ter conseguido ainda a almejada independência. D. Teresa, sua esposa, assumiu então os desígnios do marido e tiveram início as disputas entre ela e sua irmã D. Urraca. Os anos que se passaram foram alternados entre períodos de alianças e combates até que, por volta de 1122, Affonso Raimundes assumiu o título de Affonso VII de Leão e Castela subjugando os estados de sua mãe, D. Urraca, que morreu quatro anos depois. Nesse período, D. Theresa tinha conseguido aumentar o território de seu condado, que contava já com quase o dobro da extensão original. Governando ao lado de seu companheiro D. Fernando Peres, conde de Trava, gerava descontentamento dos barões portugueses, e também dos poderosos parentes do conde na Galliza. Ao mesmo tempo, a recusa de D. Theresa de se submeter ao jugo de Affonso VII, fez com que seu território fosse mais uma vez invadido e devastado, e a infanta foi obrigada a reconhecer a supremacia de seu sobrinho. D. Affonso Henriques, filho de D. Theresa e de D. Henrique, contava então com quatorze anos, quando em 1125, armou-se cavaleiro em Zamora. Reuniu em torno de si importantes forças contrárias ao governo de sua mãe, que nesse momento estava enfraquecido pela derrota nas disputas com Affonso VII, e iniciou, por volta de 1127, uma rebelião que no ano seguinte estourou em uma guerra civil contra o governo de D. Theresa e Fernando Peres de Trava. As tropas de D. Theresa marcharam para Guimarães onde encontraram o exército de seu filho no campo de S. Mamede. Após essa batalha, Affonso Henriques venceu as tropas de sua mãe e obteve o poder absoluto sobre Portugal, declarando sua independência. D. Theresa, por sua vez, terminou seus dias em desterro, falecendo em 1130.

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2.5. As fontes históricas

A história de Portugal, conforme narrada por Alexandre Herculano apenas foi passível de ser escrita a partir do conhecimento e trabalho com a documentação histórica sobre o período abordado. Durante séculos, muitos documentos medievais ficaram esquecidos no interior dos mosteiros e arquivos reais portugueses, até que no século XIX o nacionalismo crescente e a busca pelas origens da nação, encabeçada pelos movimentos românticos europeus, reabilitaram a Idade Média como um momento ideal a ser seguido. Como nos lembra Leandro Karnal: “... o documento não é um documento em si, mas um diálogo claro entre o presente e o documento. Resgatar o passado é transformá-lo pela simples evocação. Em decorrência da ideia anterior, todo documento histórico é uma construção permanente.”137 Ao pensar o documento como uma construção que tem suas características determinadas pela época em que é questionado e pelo agente que o faz, temos que, não apenas o valor atribuído ao documento é variável, mas também são diversas as leituras que o documento possibilita. A importância do documento, portanto, não é imutável, da mesma forma como os fatos históricos não o são: “Se concluímos que não existe um fato histórico eterno, mas existe um fato que consideramos hoje um fato histórico, é fácil deduzir que o conceito de documento siga a mesma lógica”.138 Alexandre Herculano foi um dos responsáveis pela revivificação e ressignificação dos documentos medievais em Portugal. Imbuído da ideologia crescente de um liberalismo romântico, buscava no passado elementos que pudessem auxiliar na resolução de problemas que via em seu próprio tempo. Construir a história de Portugal era, para ele, uma obrigação do historiador para com a sociedade. Nesse sentido, o apreço pelos documentos medievais, a empreitada em busca da documentação dispersa e esquecida e mesmo seu trabalho como bibliotecário, ou seja, todo o caminho que o levou a escrever a História de Portugal, tinha como objetivo final construir a história da nação portuguesa.

137 KARNAL, L.; TATSCH, F. G.. “A Memória evanescente”. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R. (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 12. 138 Ibidem, p. 13.

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2.6. Fontes utilizadas no primeiro livro da História de Portugal

Por tratar da formação e estabelecimento dos reinos Ibéricos na península, e o consequente enfoque no processo de constituição do reino português, as fontes utilizadas por Herculano para escrever o primeiro livro da História de Portugal são documentos e obras que tratam diretamente dos séculos XI e XII. Apenas no primeiro livro, o autor cita cerca de 75 fontes diferentes ao escrever sua narrativa.139 Para escrever esse livro, Herculano utilizou basicamente dois tipos de materiais: primeiramente, os documentos produzidos durante o período estudado ou muito próximo a ele (muitos contidos em compilações documentais) como, por exemplo: a Historia Compostellana, editada por Enrique Flórez em 1765, obra que abriga diversos textos e documentos, com destaque para a España Sagrada, documento mais citado pelo autor nesse livro; as Crônicas Anônimas de Sahagun, publicadas em 1782 pelo P. Escalona compondo o Apêndice I da Historia del Real Monasterio de Sahagun; o Livro Preto da Sé de Coimbra e a Monarchia Lusitana - todas essas obras contendo documentos datados entre os séculos XII e XIII. Em segundo lugar, utilizou também as obras contemporâneas a ele ou, ainda que mais antigas, obras analíticas que usaram as fontes primárias para tratar dos assuntos de seu interesse, como: as Dissertações Chronologicas e Criticas Sobre a Historia e Jurisprudencia Ecclesiastica e Civil de Portugal (1819) de João Pedro Ribeiro e os artigos publicados nas Memórias da Academia Real de Ciências de Lisboa (1837). Apesar dessas obras e documentos serem referentes ao primeiro livro, elas representam uma amostra das fontes utilizadas por Herculano para escrever a História de Portugal como um todo. Para isso o autor utilizou tanto fontes do Arquivo Régio, quanto antigas crônicas leonesas e compostelanas, incluindo ainda textos literários e religiosos. Ao mesmo tempo, a bibliografia impressa também foi uma parcela importante de seu trabalho, incluindo obras estrangeiras que considerou importantes para melhor compreender o panorama histórico português. 140 É importante notar que a História de Portugal foi escrita antes das viagens de Herculano pelo reino a fim de coletar a documentação que posteriormente constaria nos Portugaliae Monumenta Historica. Essas viagens tiveram início no ano de 1853 e foram

139 Ver: Anexo II. 140 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência do liberalismo português. Lisboa: Livraria Bertrand, 1977. p. 98.

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muito importantes para o recolhimento de documentação que estava espalhada e, em geral, em mau estado de conservação. Ou seja, seu trabalho foi pautado nas fontes que conhecia e podia ter acesso enquanto trabalhava na Biblioteca da Ajuda e imediações, sendo que muita documentação inédita se revelou posteriormente quando trabalhou em cartórios, conventos extintos e arquivos diversos que iam além das cidades do Porto, Coimbra e Lisboa, seus primeiros locais de trabalho. Ao analisar a relação de Herculano com suas fontes levantamos algumas questões que tentaremos responder ao longo do texto: quais são os documentos mais citados e porque ele os escolheu em detrimento aos outros; o que determina a confiabilidade no documento; como os apresenta e faz a crítica. A fim de contemplarmos todos esses pontos, iniciaremos com uma análise das principais fontes citadas a fim de compreender o que as torna tão importantes para o autor.

2.7. Historia Compostellana e as Crônicas Anônimas de Sahagun: relato contemporâneo e testemunho

Dentre todas as fontes utilizadas por Alexandre Herculano para escrever o primeiro livro da Historia de Portugal, percebemos que as mais citadas são documentos contemporâneos ao evento narrado. Ou seja, tratam-se de documentos ou compilações documentais produzidos durante a Idade Media e que se apresentam agora como testemunhos do passado. A importância dada a esse tipo de fonte indica o grande valor assumido pela documentação primária dentro da historiografia oitocentista. Nesse sentido, a proposição de Jacques Le Goff, de que no início do séc. XIX o documento apresenta já o sentido moderno de testemunho histórico acaba corroborando a forma como Herculano via esses materiais, e nos dá uma pista do motivo de considerá-los como fontes básicas para sua escrita.141 Nesse sentido, François Hartog também apresenta o documento compreendido como testemunho do passado:

Arrastada pela agitação subliminar da memória, a testemunha – entendida, por sua vez como portadora de memória – impôs-se, gradualmente, em nosso espaço público; ela é reconhecida e procurada, além de estar presente e, até mesmo à primeira vista, onipresente. A testemunha, qualquer testemunha,

141 LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990, p. 537.

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mas acima de tudo, a testemunha como sobrevivente: a pessoa que o latim designava por superstes, ou seja, alguém que está firmado sobre a própria coisa, ou alguém que ainda subsiste. 142

A ideia da testemunha como portadora da memória remete a uma relação estabelecida na Grécia Antiga entre o ver e o saber, ou seja, para saber é necessário ver e nesse sentido, os ouvidos se tornam menos confiáveis do que os olhos. A testemunha tornava- se confiável, então, pelo fato de ter visto e não por ter ouvido. No entanto, a etimologia da palavra testemunha (em grego: martus) tem como base o radical de um verbo que significa lembrar-se: em sânscrito, smarati; em grego, merimna; em latim, memor(ia). Da forma como era utilizado nas epopeias, o termo remete a ouvir e guardar na memória, e não a ver. Martus seria uma testemunha não ocular.143 No nosso caso, a importância do documento seria sua contemporaneidade com o evento, sendo que o fato de a testemunha ter visto ou ouvido diretamente algo sobre o acontecimento dariam credibilidade ao seu discurso. Para ilustrar a relação de Herculano com essas fontes, selecionamos duas que são algumas das mais utilizadas no primeiro livro: a História Compostellana e as Crônicas Anônimas de Sahagun. Essas duas obras destacam-se não apenas por tratarem detalhadamente do período de formação do reino de Portugal, mas também por apresentarem relatos do próprio período dos acontecimentos. A Historia Compostellana é a obra mais citada por Herculano no primeiro livro da História de Portugal, aparecendo em cerca de 44 notas ao longo de seu texto. Ela é considerada de suma importância devido ao período de produção, a autoria, a intenção com que foi escrita e aos assuntos abordados nos documentos. Trata-se de uma obra do século XII que foi editada e publicada pela primeira vez por Enrique Flórez em 1765, compondo o volume XX da España Sagrada sob o título de Historia Compostellana siue de rebus gestis D. Didaci Gelmirez, primi Compostellani archiepiscopi. No entanto, apesar do título original, desde o século XVIII a obra é conhecida como Historia Compostellana.144

142 HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 204. 143 Ibidem, p. 213. 144 Existem duas edições dessa obra feitas por Flórez, com pouca diferença entre elas: a primeira publicada em Madri em 1765 pela Imprensa da Viúva de Eliseo Sánchez e a segunda publicada em Madrid em 1791 pela Imprensa da Viúva e Filho de Pedro Marín. Devido a sua extensão a Historia Compostellana foi dividida inicialmente em dois livros. O primeiro De episcopatu dedicado ao período de bispado de Gelmires e as aquisições da igreja de Santiago e o segundo De archiepiscopatu referente ao período de arcebispado e a realização da dignidade metropolitana. Posteriormente fez-se uma nova divisão e a obra passou a ser composta por três livros. Cada livro está ainda subdividido em capítulos com títulos ou epígrafes indicando o assunto

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O documento foi concebido originalmente como Registrum da igreja de Santiago e tinha por objetivo apresentar os feitos de D. Diogo Gelmires, natural da Galícia e arcebispo de Compostela, que viveu durante o século XII.145 Os fatos narrados nessa obra referem-se, sobretudo, aos anos de 1100 a 1139, ou seja, período em que D. Diogo Gelmires foi inicialmente bispo (1100-1120) e depois arcebispo de Compostela, cargo que ocupou até sua morte (1120-1140).146 Por ter sido uma pessoa muito influente nesse período, a obra narra grandes episódios históricos que, de uma forma ou de outra, teriam relação com o prelado.147 O período tratado pela Historia Compostellana coincide com os reinados de Afonso VI (até 1109), de sua filha Urraca (1109-1126) e de Afonso VII (a partir de 1126), ou seja, através dos documentos e relatos presentes na obra, cria-se um panorama dos acontecimentos políticos que antecederam a formação do reino português. 148 No entanto, de forma ainda mais específica, essa obra foi utilizada por Alexandre Herculano para tratar de episódios referentes à D. Henrique, conde de Portugal, D. Theresa e ao próprio D. Diogo Gelmires, que também é uma personagem constante da História de Portugal. Apesar da Historia Compostellana ser uma obra que se refere diretamente ao arcebispo de Compostella, ele não seria seu autor. Não se sabe com toda certeza quem foram os escritores responsáveis por cada parte da obra, mas o latim bem cuidado sugere que foram pessoas que tiveram uma educação erudita e religiosa, se destacando como os três principais autores mais prováveis: D. Nuño ou Munio Alfonso, tesoureiro da Igreja de Santiago; D. Hugo, cônego e arquidiácono da igreja de Santiago; e Mestre Gerardo ou Giraldo, também cônego.149 Todos eles foram homens de confiança de Diogo Gelmires, e escreveram sobre eventos de seu próprio tempo.150

tratado. Não se sabe ao certo se tais títulos e epigrafes foram feitos pelos seus autores originais, ou adicionados posteriormente por copistas, o que pode ter acarretado algumas pequenas variações da obra ao longo do tempo. Ver: REY, Emma Falque. Historia Compostellana. Madrid: Ediciones Akal. 1994, pp. 21, 22, 43. https://books.google.pt/books?id=XVybJYbv27AC&printsec=frontcover&dq=historia+compostelana &hl=pt- BR&sa=X&ved=0ahUKEwic5tPGntvJAhUKi5AKHbBXDOIQ6AEIHTAA#v=onepage&q&f=false.( 12.12.15) 145 A data de seu nascimento não é exata sendo provável entre 1065 a 1070, mas sabe-se que morreu em 1140. 146 REY, op. cit., p. 7-9. 147 Durante o reinado de D. Urraca, D. Diogo Gelmires comandou a oposição da nobreza galega e defendeu os direitos do futuro rei Afonso VII. Em 1127, foi nomeado por Afonso VII como chefe da Concillería Real, o que lhe garantiu um importante papel nas decisões políticas do período. REY, op. cit., p. 9-10. 148 Ibidem, p. 9-10. 149 Ibidem, p. 11-13. 150 Em estudos posteriores, embora de forma não consensual, foram identificados ainda outros possíveis autores: Pedro, provavelmente capelão da Igreja de Santiago e Rainerio, clérigo de Pistoya. REY, op. cit., p.15-16. Apesar de muitas controvérsias e incertezas, alguns pesquisadores identificaram até sete autores, sem falar ainda na existência de diversas narrações independentes de autores anônimos que foram inseridas posteriormente. Ao longo da obra existem também alguns textos de Gelmires. REY, op. cit., p.25.

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A autoria da Historia Compostellana é citada algumas vezes por Alexandre Herculano ao longo da História de Portugal:

Ao mesmo tempo que Diogo Gelmires buscava assim attrahir as sympathias populares, defendendo a Galliza das aggressões dos mouros, não se esquecia de promover por todos os outros meios a realização das suas ambiciosas miras. Quaes estas fossem transluz do seu panegyrico hisorico (feito por ordem dele próprio), o qual chegou até nós com o titulo de Historia Compostellana. Viviam os auctores deste livro em tempos demasiado rudes e faltos d‟arte, e por isso não souberam dar ás acções do seu patrono o aspecto de honestidade e rectidão que intentam attribuir-lhes. Gelmires era homem de intoleravel vaidade e de não menos cubiça, e para satisfazer estas duas paixões nenhuns meios julgava vedados: a corrupção, a revolução, a guerra, a insolência, a humilhação, os enredos occultos eram as armas a que successivamente recorria, conforme as circunstancias lhe indicavam a conveniência de usar de umas ou de outras.151

A audácia com que D. Urraca satisfazia assim odios antigos e feria no coração o partido dos seus adversarios, longe de conter estes, fez rebentar mais breve essa conjuração latente cujos vestígios bem palpaveis nos apparecem nas bullas de Callixto II, nas cartas do cardeal Boso e do duque de Aquitania, nos actos de Gelmires e nas frequentes tentativas da rainha contra este homem dissimulado, cujo caracter e machinações seria impossivel descortinar, se os seus três panegyristas, auctores da grande chronica de Compostella, fossem tão destros na arte de transfigurar a historia como elle foi em tecer enredos politicos.152

Nas passagens acima, o autor cita o “panegírico histórico” escrito por ordem de D. Diogo Gelmires que ficou conhecido como História Compostellana e salienta a falta de habilidade dos escritores da obra em retratarem o referido religioso com aspecto de retidão e honestidade - qualidades que, aos olhos de Herculano, realmente lhe faltariam - e que a narrativa dos religiosos não fora hábil o suficiente para transfigurar. Na realidade, Herculano não se mostra nada benevolente ao descrever D. Diogo Gelmires. Em sua concepção, ele fora um homem vaidoso, dissimulado e cheio de cobiças, usando de corrupção, guerras, insolências, humilhações e enredos ocultos. Nesse caso, e isso aparecerá também ao retratar outras personagens, o juízo de valor esboçado sobre a figura apresentada afastaria, portanto, Herculano da imparcialidade do autor ao compor sua narrativa. Um dos motivos da Historia Compostellana ser considerada tão importante por Alexandre Herculano seria a contemporaneidade da escrita com os eventos narrados, ou seja,

151 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. 8ª edição, Paris-Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, s.d., pp. 78-79. 152 Ibidem, p. 105.

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os autores escreveram sobre fatos que teoricamente vivenciaram direta ou indiretamente. De acordo com Emma Falque Rey, essa obra se destacaria, nesse sentido, por apresentar uma inovação em relação aos documentos produzidos até então153, ou seja, desde o século X até inícios do século XII a historiografia espanhola produzia apenas crônicas de reis, nas quais eram enumerados os principais sucessos de cada reinado. Mas, no início do século XII, a Historia Compostellana tinha por objetivo narrar acontecimentos contemporâneos, apresentando biografias de personagens do reino e não mais dos soberanos. Ela se destaca, portanto, por apresentar relatos mais extensos, por utilizar documentos referentes ao biografado, e por abrigar uma compilação de documentos de diversos tipos.154 Herculano salienta a importância que esta obra possui como fonte para construção de sua narrativa quando se refere ao autor da Historia Compostellana como um guia de seu trabalho: “Era causa deste empenho, diz o escritor que nos guia, o desejo ardente que tinha de se ver com Gelmires para tractarem mais plenamente de remover a discórdia, de restabelecer a paz e de dar tranquilidade á igreja...”.155 Ou ainda: “A narração deste §, bem como dos antecedentes e posteriores, resulta de um estudo atento do 2º livro da Historia Compostellana, o que dizemos aqui para evitar repetição das citações”.156 Enfim, o fato de a Historia Compostellana ser a obra mais citada no primeiro livro da Historia de Portugal, se deve a dois principais motivos: ao interesse de Herculano pelos temas nela contidos, ou seja, os eventos referentes à D. Theresa, ao conde D. Henrique, à D. Urraca, e todos os eventos que circundaram a criação de Portugal; e à data de escrita da obra, que se aproxima muito aos acontecimentos narrados. Não obstante, diversas outras obras são utilizadas por Alexandre Herculano da mesma forma e por motivo semelhante, como as Crônicas Anônimas de Sahagun, por exemplo. Como o autor salienta: “O anonymo não só viveu em tempo de D. Theresa, mas tambem devia tê-la tractado de perto quando ella residiu em Sahagun”.157 Essa obra foi publicada pela primeira vez em 1782 pelo P. Escalona compondo o Apêndice I da obra Historia del Real Monasterio de Sahagun.158 Além da divisão interna da

153 O método empregado na obra consiste, em geral, na descrição de um importante acontecimento seguido pelo texto dos documentos que o recordam. A parte narrativa frequentemente serve como uma introdução e em algumas ocasiões para relacionar os documentos. Apesar desse esquema básico de construção do texto, existem muitas variações de acordo os objetivos e as características do autor responsável por cada parte do texto. REY, op. cit., p.20-21. 154 REY, op. cit., p.27. 155 HERCULANO, op. cit., p. 69. 156 Ibidem, p. 94. 157 Ibidem, p. 230. 158 Las crónicas anónimas de Sahagún. Madrid: Establecimiento Tipográfico De Fortanet, 1920, p. 5.

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obra, ela possui três apêndices ao final, que ficaram conhecidos como as Crônicas Anônimas de Sahagun: o primeiro, que foi escrito por dois monges que não são diretamente identificados, contém uma história do Monastério e dos principais acontecimentos daquele tempo. O primeiro monge narrou até o ano de 1117 e o segundo deu continuidade até o ano de 1255. 159 O segundo apêndice é uma apologia em honra da rainha D. Urraca, escrita por Maestro Perez. E o terceiro são cópias literais de trezentas e vinte e sete escrituras autênticas. A primeira e mais antiga das crônicas anônimas faz referência à fundação do mosteiro de Sahagun e trata do reinado de D. Urraca. A segunda crônica dedica-se às origens da abadia e à rebelião dos burgueses no tempo de Alfonso VI, narrando também os acontecimentos dos reinados de Fernando III e Alfonso X até a promulgação do Foro de 1255.160 Esse texto permite visualizar o nascimento da vila, a chegada dos monges de Cluni atraídos por Alfonso VI, a outorga dos primitivos Foros e o auge do poder da Abadia, os primeiros indícios que anunciaram a luta secular dos burgueses contra esse poder, a invasão dos aragoneses no reinado de “Alfonso I, o Lidador” e aos “pleitos sostenidos en el de Alfonso de X de Castilla”. As Crônicas apresentam ainda o processo do concelho de Sahagun, cujos períodos estão determinados pelas três rebeliões da vila.161 A importância dessa obra para Herculano está também em dois motivos: o primeiro pelos eventos narrados servirem de base para o autor escrever a História de Portugal. Ou seja, narra o período do reinado de D. Urraca, cujos eventos foram considerados cruciais para o início história de Portugal e, sobretudo, aborda atividades de D. Enrique de Borgonha, conde de Portugal, no período compreendido entre as vésperas do falecimento de seu sogro Affonso VI de Leão e Castela (1109) em Toledo, e o seu próprio, em Astorga do ano de 1112.162 Ou seja, a obra apresenta os caminhos tomados pelo conde Henrique e por sua esposa D. Theresa, filha de Affonso VI, até a aquisição da província de Portugal e o início das disputas territoriais que se seguiram com a morte do rei de Leão e Castela. O segundo motivo se assemelha à importância da Historia Compostellana, pois os autores também dizem escrever no mesmo tempo dos episódios que estão sendo narrados. A partir dos critérios estabelecidos por Herculano, isso faria com que a obra se tornasse uma fonte confiável, já que o fato dos escritores serem contemporâneos aos eventos permitiria, a princípio, presumir certa veracidade e objetividade da narrativa. Herculano ressalta a

159 ESCALONA, op. cit, p. 297 160 Las crónicas anónimas de Sahagún, op. cit., p. 5-6. 161 Ibidem, p. 8. 162 Ibidem, p. 8.

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importância dessa obra ao dizer que ela foi “escripta em latim por um monge anonymo, que viveu na época dos sucessos que narra.” 163 Para Herculano, o valor de testemunho de obras com tais características é inestimável e isso transparece nas muitas vezes em que cita as Cronicas Anonymas de Sahagun ao longo de seu texto:

Depois outro acadêmico (D. Francisco de S. Luiz) pretendeu sustentar a legitimidade com os fundamentos que logo avaliaremos (Vol. 12, P. 2), sem todavia refutar, porque não o podia fazer, o testemunho dos auctores coevos, entre os quaes, fique já dicto, o primeiro acadêmico se esquecera de mencionar o da importante chronica do anonymo de Sahagun, publicada por Escalona na sua historia daquelle mosteiro. O anonymo não só viveu em tempo de D. Theresa, mas tambem devia tê-la tractado de perto quando ella residiu em Sahagun. Apesar de não existir este monumento senão numa traducção vulgar, talvez do seculo XIII, e de ter perecido o original no incendio do mosteiro, a sua frase latino-barbara transparece ainda na frase da versão, e nunca sobre a authenticidade dela se levantou, que nós saibamos, a mínima duvida, sendo citada frequentemente pelo continuador da Hespanha Sagrada, o P. Risco, e pelo severissimo, e ás vezes exaggeradamente desconfiado auctor da Historia Critica da Hespanha, Masdeu. Fazemos aqui esta advertência, porque nos espanta o haverem desconhecido os nossos modernos escripores tão importante fonte da historia portuguesa no primeiro quartel do seculo XII, para escrever a qual não sobram os recursos. 164

O monge veio de França para Hespanha em 1080, segundo o testemunho do anonymo, ou antes em 1079... 165

D. Theresa usava do titulo de rainha durante a vida de seu marido, o que é desmentido pelos documentos contemporâneos, posto que seja innegavel que os subditos já então lh‟o davam, segundo o testemunho do anonymo de Sahagun, a este respeito anteriormente citado.166

As Cronicas Anonimas de Sahagun geram uma certa discussão quando se trata dos autores, já que como o próprio título sugere referem-se a textos com a autoria não declarada. De acordo com François Hartog, nas obras históricas do final do século XII até o

163 HERCULANO, op. cit., p. 19. 164 Ibidem, p. 229-230. 165 Ibidem, p. 236. 166 Ibidem, p. 71.

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século XVI, os historiadores responsáveis pela elaboração das obras seriam compiladores e não autores, ou seja, eles reuniriam textos de outros autores para compor o texto da própria obra. E por isso mesmo, muitas vezes permanecem anônimos.167

O que se produz efetivamente a partir do século XIII: quanto mais o compilator vai tornar-se um autor, tanto menos o auctor será uma autoridade ou, para dizê-lo de outra forma, a transformação do auctor de testemunha em fonte passa pela afirmação do historiador como compilator.168

No entanto, como estamos analisando essa documentação medieval aos olhos de um historiador do século XIX e não a partir de nossa ótica contemporânea, temos que, essas obras são compilações, mas ao mesmo tempo são “testemunhais”, já que seus escritores viveram no período dos eventos narrados. É importante ressaltar que as crônicas medievais não se dedicavam apenas a narrar o passado, muitas vezes objetivavam os acontecimentos contemporâneos ao autor na intenção de legitimar o presente.169 E nesse sentido, os autores seriam testemunhas porque não só apresentavam documentos, mas também narravam episódios contemporâneos. E é isso o que faz com que essas crônicas sejam importantes para nosso autor. A partir disso, retomamos a relação entre ver e ouvir esboçada no início do texto, ou seja, o saber das testemunhas representadas pelos autores da Historia Compostellana e das Cronicas Anonymas de Sahagun não se apresenta tanto a partir da observância direta do acontecimento, mas a partir do ouvir, guardar na memória e transmitir o conhecimento a partir do testemunho escrito.

167 HARTOG, op. cit., p. 222. 168 Ibidem, p. 222. 169 FONTOURA, Odir. Sobre o “historiar” medieval: o lugar das crônicas e dos cronistas na escrita da história. Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. 20, p. 119-137, 2014. p.124.

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2.8. Fontes que dialogam

Uma das questões mais colocadas quando analisamos uma obra histórica do século XIX é a relação estabelecida entre o historiador e o documento. Já foi um topos da análise histórica, que os historiadores oitocentistas imbuídos por arroubos científicos, apresentavam um certo culto pelas fontes documentais e as consideravam como base indiscutível de vestígios sobre o passado. O que era apresentado nos documentos seria considerado como uma verdade incontestável. Além disso, de acordo com esse pensamento, a história seria uma compilação de fatos objetivos e inquestionáveis e as obras históricas nada mais do que um enredado de informações verídicas retiradas dos documentos. Pensamento semelhante já foi também aplicado à obra de Alexandre Herculano, considerada como um grande repositório de informações documentais recolhidas ao longo das pesquisas. Nesse sentido, Joaquim Veríssimo Serrão contrapõe-se à argumentação de Fidelino Figueiredo de acordo com a qual, a história para Herculano havia sido uma “ciência de aplicação”. Ou seja, através do estudo e crítica do documento “o nosso autor teria procedido depois à “aplicação” dos conhecimentos hauridos na crítica das fontes, segundo um método de rigor e que só tinha em conta a verificação documental.” A ideia seria que as fontes guardariam a verdade histórica e o historiador, ao desenterrá-las, apenas reproduziria seus testemunhos ao escrever seu texto. 170 Apesar de concordar com a ideia do grande valor dado por Alexandre Herculano às fontes, Veríssimo Serrão é contrário à teoria de que a História de Portugal seria apenas uma “arquitetura de tipo documental, como se fora mera colagem de notícias que o autor colheu nas suas investigações.” Muito pelo contrário, a obra de Herculano traria em si uma concepção da ciência histórica antes não em voga em Portugal171:

... a da fidelidade, sem escravidão, ao “documento” que lhe serve de base, mas que se prova ou discute quando do seu enquadramento na matéria histórica. Não há pois colagem do testemunho à narração, mas o justo aproveitamento do que realmente interessa para tornar historiável o documento. O que permite defender que Herculano não se limitou a “aplicar” o contributo das fontes, mas que sobre elas soube “criar” as linhas orientadoras do seu pensamento. 172

170 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Herculano e a consciência do liberalismo português. Lisboa: Livraria Bertrand, 1977, p. 105. 171 Ibidem, p. 105. 172 Ibidem, p. 106.

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Para verificar a proposição de que Herculano não fez uma simples compilação de testemunhos, mas elaborou um trabalho a partir de uma proposta científico-analítica, partiremos de duas questões: 1. Como Herculano compara diversos documentos para chegar à sua versão dos acontecimentos? 2. Se o historiador não copia suas fontes, como as utiliza para escrever sua narrativa? Dessa forma, continuaremos ainda, por um momento, analisando como o autor trabalhou com Historia Compostellana e as Crônicas Anônimas de Sahagun, ampliado por vezes a análise para outras fontes semelhantes, procurando apresentar como determinadas passagens se encontram escritas no documento e como Herculano as apresenta em seu próprio texto. Como já citamos anteriormente, essas duas obras foram muito utilizadas pelo historiador por seu valor testemunhal e em diversos momentos foram abordadas concomitantemente para tratar de um mesmo assunto: “Fala-se neste último logar de muitos nobres e cavaleiros mortos em Monteroso. A narração que vamos fazendo parece-nos a única possível para conciliar a Historia Compostellana com o Anonymo de Sahagun.” 173 Ao fazer uso desses dois documentos, o autor constrói, portanto, uma narrativa própria e verossímil.

Anon. de Sahagun., c. 21 Hist. Compostell., L. I, c. 73. As duas chronicas comtemporaneas de Sahagun e Compostella parece contradizerem-se e até certo ponto não concordam entre si. A primeira omite os processos de Viadangos e d‟Astorga e dá a entender que Affonso I, sabida a mudança do conde de Portugal, se retira para Penafiel, emquanto a segunda o faz acolher- se a Carrion depois do cerco d‟Astorga. Nós atemo-nos ao único arbítrio que nos parece razoável. O silencio de uma das chronicas não basta para recusar a narrativa da outra, sendo ambas coevas, e por isso, não havendo impossibilidade de tempo ou de logar que o prohiba, procuramos ligar os sucessos contidos numa e noutra. Quanto ao sitio para onde se retirou o rei d‟Aragão seguimos o anonymo de Sahagun, que escrevia mais perto do theatro da guerra. 174

Herculano compara os dois documentos para chegar à versão dos acontecimentos que considera mais plausível. Como as informações apresentadas nos relatos não são sempre coincidentes e tendo em vista que ambos os autores viveram no mesmo período dos episódios narrados, o historiador deveria basear-se em algum outro critério que o permita escolher entre o que está escrito em um ou outro texto. Nesse caso, percebemos que Herculano opta por aquele que se encontrava mais próximo dos eventos descritos, ou seja, o “anônimo de Sahagun”, que estaria mais perto do “teatro da guerra”.

173 HERCULANO, op. cit., p. 36. 174 Ibidem, p. 52.

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Em outra passagem também se refere a um “historiador desse tempo”, tendo mais uma vez em mente a Historia Compostellana:

As igrejas roubadas; muitos personagens notaveis do clero e da fidalguia mortos a ferro, presos ou fugitivos; os peões perecendo de nudez e de fome ou passados á espada; tal é o quadro que nos apresenta um historiador desse tempo, lançando-o á conta do rei de Aragão, mas em que é de crer fossem culpados os diversos partidos.175

Nessa citação, fica evidente que Herculano recorre ao relato contemporâneo para obter as informações que lhe são necessárias. No entanto, seu toque narrativo transforma os dados documentais em um panorama visual, como ele mesmo diz: “tal é o quadro que nos apresenta um historiador desse tempo”. A partir dessa passagem, conseguimos visualizar os terrores da batalha em apenas poucas linhas descritivas. Não obstante ainda, Herculano apresenta também uma relativização em relação ao que está escrito no documento, ou seja, a fonte imputa todas as desgraças ao rei de Aragão, mas em sua opinião analítica, outros partidos teriam também sua parcela de culpa. Apesar da frequência com que cita a Historia Compostellana e as Crônicas Anônimas de Sahagun, outras obras são igualmente valorizadas pelo período em que foram escritas:

Ou fosse que entre Gomes Gonçalves, e D. Urraca existisse affeição secreta ou que elle soubesse de novo accende-la no coração da rainha, que os escriptores contemporaneos nos pintam como pouco severa em costumes, o que parece certo é que entre Affonso I e sua mulher rebentaram graves dissensões. 176

Em nota ao trecho citado, Herculano identifica esses “escritores contemporâneos” com os autores da Historia Compostellana e com Rudericus Tolentanus, autor de De Rebus Hispaniae, obra datada do século XII. É valido notar que, apesar de utilizar determinadas obras como fontes que guiam sua narrativa, Herculano reconhece nelas algumas incongruências e compara as informações fornecidas por elas com dados presentes em outras obras, chegando mesmo a questionar alguns que não o convencem:

175 Ibidem, p. 57 176 Ibidem, p. 39.

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Flores estabelece para data destes sucessos o outono de 1110 – Como advertimos na nota VII no fim do volume, a chronologia da Historia Compostellana é errada. Lucas de Tuy, Rodrigo Ximenes e todos os historiadores põem o reencontro de Viadangos depois do de Campo d‟Espina. Os annaes Complutenses fixam este em outubro de 1111, o que é confirmada pelos Annaes Compostellanos da Esp. Sagrada, T. 23, p. 321. 177

Ao atestar que a cronologia da Historia Compostellana não está correta, o autor nos indica que apesar de ter usado esta obra como uma das fontes principais de seu relato, não aceita cegamente tudo o que nela está escrito. O historiador optou por apresentar uma visão crítica da cronologia e comparou os dados dessa obra com outros, até chegar à conclusão de que elas se contradiziam. Evidencia-se, portanto, que para apresentar ao leitor uma única informação, o historiador recorreu à pelo menos seis obras diferentes, as escritas por: Flores, Lucas de Tuy e Rodrigo Ximenes; os Anaes Complutenses, os Anaes Compostellanos e a própria Historia Compostellana. Portanto, a citação de diversas obras em um curto parágrafo indica uma característica importante do trabalho do historiador, ou seja, o embate entre as fontes para alcançar a versão mais plausível dos acontecimentos:

Rodrigo de Toledo diz ter sido o casamento do rei de Aragão com D. Urraca celebrado ainda em vida de Affonso VI. – Apezar do peso que tem o testemunho deste historiador, a opinião que seguimos funda-se na da Historia Compostellana, L. I, c. 64, § I, com quem concordam Lucas de Tuy, a Chronica de Fleury e o Anonymo de Sahagun (c. 15).178

Nesse caso, em que Herculano aborda a morte do rei de Leão e a sucessão dos territórios, percebemos que o testemunho de um autor, Rodrigo de Toledo179, apesar de muito importante, não apresenta sempre as informações mais confiáveis, principalmente se elas são contraditas por quatro outras fontes: Historia Compostellana, a obra de Lucas de Tuy, Chronica de Fleury e as Crônicas Anônimas de Sahagun. Ao fazer a comparação de diversos documentos, o autor escolhe a versão que pode ser confirmada pelo maior número de fontes. Ainda outro exemplo:

177 Ibidem, p. 50. 178 Ibidem, p. 35. 179 Em determinados momentos Alexandre Herculano cita Rudericus Tolentanus e em outros Rodrigo de Toledo, provavelmente para se referir ao mesmo autor.

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... Posto que no meio das inquietações e revoltas, em que figuravam tantos individuos eminentes, os factos relativos ao conde de Portugal sejam muitas vezes esquecidos nas incompletas e informes memorias desse tempo, todavia se dermos credito a um documento ácerca do qual não nos occorre duvida, mas que já foi impugnado, ao menos na sua data, Henrique ligou-se com a rainha quando ella, tendo voltado do Aragão, se achava mais uma vez separada do marido (1). Foi no meio destas repetidas discordias (2) e pacificações passageiras que findou a carreira das ambições e esperanças do conde, atalhando-lhe a morte os designios; mas o modo, o logar e as particularidades deste successo cobre-os véu impenetravel. Sabemos só que elle falleceu no I° de maio do anno de 1114 (3). A narração do Anonymo de Sahagun faz suspeitar que, durante a residencia de Affonso e D. Urraca em Astorga, Henrique os seguira e ali morrera (4), o que de certo modo é fortificado pela tradição dos chronistas portuguezes, que o dão por morto naquella cidade, postoque essa tradição revista o facto das ciscunstancias extraordinarias e fabulosas com que a imaginação do povo costuma poetisar a historia (5).

Em nota, o autor cita: Esp. Sagr.; Chron. Gothor.; Anon. De Sahag.; Nobiliario attribuido ao conde D. Pedro; Galvão, Chronica d‟elrei D. Aff. Henriques; Acenheiro: Chron. Dos Reys de Port. Ou seja, em um único trecho, Herculano utiliza seis documentos. Padrões semelhantes aparecem ao longo de toda a narrativa da História de Portugal, embora tenhamos nos detido mais especificamente na análise do primeiro livro por questões operacionais. Em passagens frequentes, as Crônicas Anônimas de Sahagun são confrontadas ou complementadas também pelos dizeres de outras importantes obras como: o Livro Preto da Sé de Coimbra, a Monarchia Lusitana, a España Sagrada, dentre outras obras que tratam do mesmo período da história portuguesa. Concomitante ao diálogo promovido entre as fontes, salientamos também a importância da forma como o autor elabora as informações recolhidas nos documentos a fim de criar seu próprio texto. Nesse sentido, percebemos que muitas vezes, a narrativa da História de Portugal incorpora elementos subjetivos que, por exemplo, caracterizam traços comportamentais dos personagens (podendo ou não ser uma referência direta aos textos medievais consultados), e que sugerem a utilização de recursos narrativos:

Falto acaso de forças para quebrar com a assembléa que assim lhe impunha a lei, o principe aragonez valeu-se da dissimulação; fingiu reconciliar-se com a rainha e, tendo-se demorado algum tempo em Carrion, veio com ella residir em Astorga. 180

180 Ibidem, p. 58.

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De acordo com essa passagem, o príncipe dissimulou e fingiu seus intentos para com a rainha. São atitudes subjetivas e valorativas. E, contudo, Herculano nos passa as fontes onde podemos confirmar essas passagens: Anonimo de Sahagun. C. 29 e Historia Compostellana, L. I, c. 80. No Anonimo temos:

Empero el Rey no tuvo en efecto cosa que hobiese prometido, ni aun demostró algun amor; mas fuese com ella para Leon; la torre de la qual como la tuviesen los Aragoneses, é la Reyna la demandase, é que se la dexasen, el Rey disimulando menospreció sus palabras, é entrambos fuéronse para Astorga.181

Na Historia Compostellana:

Eodem tempore, Aragonensis tyrannus, & Regina Urraca, simulato iterum nomine pacis foedera concordiae inter se composuerunt, ut alter ab altero Castella & municiones quadam argumentosa machinatione abstraherent. 182

O que percebemos ao confrontar essas passagens com a História de Portugal é que as atitudes dissimuladas do rei não foram um recurso criado por Herculano para humanizar as personagens, mas estavam de fato escritos dessa forma na fonte em que baseou a narrativa. O ato de aproveitar-se desses elementos já existentes e transferi-los para seu texto nos mostra que o historiador considerou relevante apesentar ao leitor que o comportamento das personagens individuais influenciou diretamente no curso dos acontecimentos. De forma semelhante, temos também que:

D. Theresa, que durante a ausencia do marido parece ter residido sempre em Portugal, partira nesse meio tempo de Coimbra para vir unir-se com elle. Chegada ao acampamento, poucos dias tardou em semear ahi a discórdia, persuadindo ao conde que, antes de tudo, exigisse a divisão dos estados leoneses que lhe fora prometida, lembrando-lhe que era rematada loucura arriscar a própria vida e a dos seus soldados só em proveito alheio. Deu-lhe Henrique ouvidos e começou a apertar para que se realisassem as promessas feitas. A estas pretensões se ajunctavam outras circunstancias que ajudavam a irritar D. Urraca. Os portugueses que se achavam no exercito, tractavam a irman como rainha. Este titulo, que alias fora vão, dado á mulher do mais

181 Las crónicas anónimas de Sahagún, op. cit., p. 35. 182 Historia Compostellana, op. cit., p 142-143.

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poderoso dos seus barões, daquelle que era o principal cabeça do exercito, apontava-lhe o alvo em que a irman e o cunhado punham a mira. A fraqueza do seu sexo incitou-a então a seguir a politica tortuosa a que nesse tempo não duvidavam recorrer os mais fortes e mais nobres cavalleiros. Abrindo relações ocultas com o rei de Aragão, procurou de novo congraçar-se com elle e, aproveitando o pretexto de querer satisfazer ás pretensões de Henrique e de D. Teresa, levantou o cerco e dirigiu-se com eles para Palencia.183

Em nota Herculano cita: Anon. De Sahag., c. 21 e Hist. Compostell., L. I, c. 73, 4. Essa passagem sobre D. Teresa é interessante, pois ao mesmo tempo em que o autor apresenta as fontes que serviram de base à sua escrita, ele se utiliza de juízos de valor para descrever a esposa de D. Henrique. Ela semeia a discórdia, tem a fraqueza do sexo feminino e incita o marido a tomar decisões contraditórias. Quase como a Eva que incita Adão a comer do fruto proibido ou Lady Macbeth impele seu esposo a matar o rei, também D. Teresa incentiva o conde Henrique a tomar caminhos tortuosos que sem seus conselhos não cogitaria. Nas Crônicas Anônimas de Sahagun encontramos a seguinte passagem:

En esto estando, Doña Teresa, muger del Conde Enrique, fija del Rey D. Alonso, que habia quedado en Coimbra, vínose para él, é despues de pocos dias comenzó á incitar al marido, diciéndole: primero habia de partir el Reyno, segun que habia quedado, é despues debría echar al Rey. Decia aun mas: gran engaño parece por honor, é Reyno de otro trabajar vos con los vuestros, é sudar por alcanzar al destruidor; é entre estas cosas, como es costumbre de las lenguas lisonjeras, la muger del Conde era ya llamada de los suyos Reyna, lo qual oyendo la Reyna, mal le sabia, mayormente como se viese desamparada del solaz varonil, é á su hermana verla con el ayuntamiento de varon sobresalir.184

Na Historia Compostellana:

Mane autem facto Regina cum fidis Gallicianorum Proceribus foras in planum egressa est, suosque dirigens Legatos, jusit ad se venire Castellanos & Astures, & quoscumque fideles sibi per Campos & Extrema habere videbatur, & jam non in Castellis seu Civitatibus morabatur, sed in tabernaculis habitabat, & congregavit, exercitum magnum valde & fortem, & persequuta est crudelem regulum Aragonensem, castra sua & tentoria,

183 HERCULANO, op. cit., p. 53. 184 Las crónicas anónimas de Sahagún, op. cit., p. 307.

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suumque exercitum circumponens, eum Carrione obsedit, obsessumque diuturno tempore tenuit.185

Ou seja, Herculano faz uma narrativa própria a partir dos dados que constam nos documentos. Não há invenção de informações, mas em contrapartida, são raras as vezes em que encontramos a transcrição direta do texto de suas fontes. O que notamos é que, com base nos documentos consultados, o autor escreve sua História, muitas vezes de forma bastante semelhante ao que encontrou em suas fontes, mas inserindo comentários que lhe parecem apropriados e muitas vezes apresentando juízos de valor que são colocados a partir de questões e problemas de sua própria época. O documento medieval é então ressignificado a partir dos interesses do autor que o interpola. Fosse outro historiador escrevendo em outro período, as questões apresentadas e as informações escolhidas dentro documento e transmitidas ao leitor seriam também outras. Talvez então, não tivessem importância as dissimulações ou a incitação da mulher que corrompe seu esposo, mas naquele momento fazia sentido para Herculano retratar a história dessa forma. O documento, portanto, foi construído com base no pensamento e nos intuitos de Alexandre Herculano, um historiador português do século XIX, que estava inserido em uma série de questões políticas e sociais muito específicas.

2.9. Como Herculano utiliza as Crônicas Anônimas de Sahagún

A fim de comprovar a forma como Alexandre Herculano se relaciona com as fontes ao escrever sua obra, propomos observar as passagens em que faz referência às Crônicas Anonimas de Sahagún186 em seu próprio texto e em seguida consultamos o documento original, conforme suas indicações. A primeira vez que as Crônicas Anônimas de Sahagún aparecem citadas na História de Portugal é com o intuito de relatar a doação da província de Portugal recebida pelo conde Henrique de Borgonha ao desposar uma das filhas de Affonso VI:

185 Retirado de Flórez, Henrique (1702-1773). España sagrada. Theatro geographico-historico de la iglesia de España (02). origen, divisiones, y limites de todas sus provincias. Tomo XX. Historia compostelana. Enrique Florez. 179.Source gallica.bnf.fr / Université Paris Sud. 186 Ver: Anexo III.

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Se não supusermos devido exclusivamente o consorcio de Henrique á influencia da rainha Constancia, a concessão de uma filha propria, bem que illegitima, feita por Affonso VI a um simples cavalleiro, posto que illustre, parece provar que ele merecera tal distinção pelos seus méritos pessoaes e por serviços feitos na guerra, serviços que vagamente lhe atribue um seu contemporâneo.187

Ao apresentar essa passagem, Herculano faz referência em nota ao seguinte trecho das crônicas anônimas:

... el qual enquanto elrey D. Alonso vevia noblemente domô a los moros, guerreando contra ellos; por lo qual el dicho rey le dió com sua fija em casamento a Coimbra e a la província de Portugal, que son fronteras de moros, em las quales com el exercício batalloso muy noblemente egrandescia su caballeria.188

De acordo com as Crônicas Anônimas de Sahagún, D. Henrique teria desposado a filha do rei D. Affonso e com isso recebido a província de Portugal como dote e como reconhecimento devido aos seus méritos de cavaleiro ao ajudar no combate aos mouros. Herculano reescreve com suas palavras as informações que retira das crônicas, mas acrescenta alguns pontos como: a possível influência da rainha Constancia no casamento de D. Henrique, a ilegitimidade da filha de D. Affonso VI, e o fato de o marido não ser um nobre, mas um simples cavaleiro. Ou seja, a informação da doação da terra foi retirada do documento em questão, mas Herculano insere uma problemática que era de seu interesse: a ilegitimidade da filha e o status de simples cavaleiro do noivo, dados que irão influenciar diretamente as explicações posteriores sobre a forma como o território de Portugal se tornou propriedade de D. Teresa e de seu marido. Herculano procede da mesma forma na seguinte passagem:

Henrique havia concebido, como o pacto feito por Raimundo e os sucessos posteriores o provam, a atrevida idéa de ficar senhor por morte do monarca de uma parte dos seus estados. Fallecido o conde de Galliza, a ambição delle, longe de enfraquecer, punha, talvez, ainda, mais longe a mira. Poucos dias antes de expirar o monarca, Henrique foi persegui-lo no seu leito de morte. Ignoram-se até onde chegavam as pretensões do conde; mas sabe-se que ele saíra de Toledo furioso contra o sogro moribundo.189

187 HERCULANO, op. cit., p. 19. 188 Las crónicas anónimas de Sahagún, op. cit., p.19 189 HERCULANO, op. cit., p. 33.

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E em nota apresenta os dizeres das Crônicas Anônimas de Sahagún que complementam suas palavras:

... pocos dias antes que elrey ficiese fin de vivir, no sê porque saña o discórdia se partió ayrado del; e porque aquesto era ansi no estuvo presente quando elrey quera morir, e disponia de la succession del reyno este conde non era presente; por no qual, por zelo del reyno movido, traspasó los montes Perineos por haber ayuda de los franceses, com los quaes guarnecido e escoltado, digo esforzado, por fuerza tuviesse el reyno de España. Anonymo de Sahagun, c. 21. 190

De acordo com as Crônicas, por motivo de alguma possível discórdia, o conde Henrique não esteve com o rei no momento de sua morte e da sucessão do trono. Os fatos narrados por Herculano e a citação das crônicas tratam basicamente dos mesmos pontos, ou seja, da relação de D. Henrique com o rei D. Affonso em seus últimos momentos de vida e a intenção do conde de herdar uma parcela do território. Como é possível perceber, Herculano se baseia no documento citado, mas não o parafraseia, ou seja, apenas o utiliza como base para criar sua própria narrativa. Nos mesmos moldes, Herculano escreve os seguintes parágrafos baseando-se na mesma passagem das Crônicas Anônimas de Sahagún citadas acima191:

No meio destas revoltas e guerras conservava-se acaso tranquilo o conde de Portugal, satisfeito com ter reduzido á obediência os sarracenos de Cintra? Não, por certo. Ambicioso, irado pela accensão de D. Urraca ao trono leonês, determinara vingar-se. Mais do que isso. As suas pretensões em vida de Affonso VI ainda se limitavam a herdar uma porção da monarchia: agora intentava dominar tudo. Abandonando os estados que governava ás invasões dos sarracenos atravessou a Hespanha e, passando os Pyrenéus, foi alistar gente de guerra em França, visto que a do condado de Portugal não bastava a levantar a machina de tamanha ambição. Dedicava-se a esse negocio quando (ignora-se porque) foi preso naquele paiz; talvez por algum receio que houvesse de que a sua volta á França tivesse fins diversos do que aparentava. Não menos ignora-se como pôde fugir da prisão, mas é certo que obteve escapar e, passando de novo as montanhas, internar-se em Aragão. 192

190 Las crónicas anónimas de Sahagún, op. cit., p.33. 191 Ver: Anexo III. 192 HERCULANO, op. cit., p. 37.

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Chegando aos estados de Affonso I, Henrique achou ahi o rei aragonês. Temendo que este príncipe, que se julgava com direito á coroa leonesa, sabendo de seus intentos, lhe atalhasse os passos, procurou e alcançou alliar- se com elle. Foi a condição da liga marcharem as suas forças contra D. Urraca, procurando unidos conquistar as terras de Leão e Castella e reparti- las depois igualmente entre ambos. Depois deste pacto vemos, todavia, Henrique voltar para Portugal, onde se demorou uma parte do verão de 1111.193

Anonymo de Sahagun, c. 21 – Pela narração desta chronica parece ter começado a guerra apenas feita a liga de Affonso I e o conde; todavia os documentos de Portugal provam a residencia do ultimo neste paiz em maio e junho. – A batalha de Campo d‟Espina entre os dous aliados e o conde Gomes foi dada em outubro desse anno.194

Como apresentado pelo historiador, as crônicas informam que o conde Henrique não esteve presente na ocasião da morte do rei já que ele teria sido aprisionado ao transpassar os Montes Pirineus. Em seguida, vemos a aliança firmada entre ele e Affonso I de Aragão para lutarem contra D. Urraca a fim de conquistar territórios de Leão e Castela. A esta última informação, Herculano acrescenta sua análise de credibilidade, ou seja, de acordo com a narração da crônica a guerra teria começado assim que a aliança fora feita, no entanto, outros documentos “provam” que as datas informadas pelas crônicas anônimas estariam equivocadas. Observamos nas passagens acima, que o texto de Herculano e da Crônicas Anônimas de Sahagún não são exatamente coincidentes, embora muito próximos. Pretendemos demonstrar com isso que Herculano não inventava suas informações, visto a grande importância dada por ele às suas fontes. Por outro lado, também não parafraseava os documentos, ou seja, utilizava-os para ter uma base confiável sobre os acontecimentos, mas escrevia a partir de seus próprios critérios interpretativos. De acordo com Joaquim Veríssimo Serrão, a obra de Herculano possui inevitavelmente pedaços de antologia, já que o conhecimento documental era uma importante parte de seu trabalho, mas não se resumia a isso. Pelo contrário, seu arcabouço documental estaria aliado a um grande poder evocador, no qual equilibrava a secura narrativa com uma “euforia prosódica”.195 Alexandre Herculano, portanto, faria uso de seus materiais para

193 Ibidem, p. 38. 194 HERCULANO, op. cit., p. 38. 195 SERRÃO, op. cit., p. 106.

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reconstruir o curso dos acontecimentos e ao mesmo tempo valorizava a construção da narrativa. Nas palavras de Torquato de Sousa Soares:

Nas páginas de Herculano há, por vezes, lampejos que são como clarões a revelar-nos essa espécie de poder divinatório que é a marca autêntica do Historiador – cuja alta missão é construir, servindo-se dos materiais que a erudição lhe fornece, e de que terá de dispor para poder reconstituir com segurança o curso dos acontecimentos que se sumiram na voragem do tempo.196

Torquato de Sousa Soares fala de um “poder divinatório” do historiador que ajudaria a clarificar o passado através de certos lampejos. Herculano possuiria essa habilidade, justamente por ser um historiador cuja função seria a de utilizar os materiais eruditos para reconstruir o curso dos acontecimentos que se perderam ao longo do tempo. José Mattoso trata de uma questão semelhante, ao afirmar que Alexandre Herculano se distanciava dos simples narradores, que reconstituíam a factologia política e biográfica e mesmo de eruditos que se propunham a estudar as instituições do passado sem se preocuparem em analisar seu significado real e político. Herculano teria sido um mestre na arte de contar, tanto em seus romances históricos quanto nas obras históricas propriamente ditas 197:

A sua teoria histórica, embora eclética e haurida mais em historiadores do que em filósofos (tirando Vico e Herder), embora não alcance um grau elevado de abstração, lhe falte geralmente uma linguagem técnica e se baseie muitas vezes no simples bom senso, compreendia os princípios suficientes para se poder abalançar a uma interpretação global da sociedade e da sua evolução.198

Ou seja, é reconhecida a importância dos documentos históricos dentro do trabalho de Herculano, sem eles sua História de Portugal não seria escrita. No entanto, seu trabalho vai além da compilação e transcrição de todo esse material. A elaboração da escrita

196 Torquato de Sousa Soares, citado por: SERRÃO, op. cit., p. 106. 197 MATTOSO, José. “Prefácio”. In: HERCULANO, A. História de Portugal – Desde o começo da Monarquia até ao fim do Reinado de Afonso III. Lisboa: Bertrand Editora, 2007, p.16. 198 Ibidem, p. 16.

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da história como forma de transmitir todas as informações coletadas nos documentos aos leitores também foi algo realmente pensado por Alexandre Herculano. Podemos considerar, assim, três grandes pilares estruturais que sustentam a historiografia moderna e que podem ser encontrados também na História de Portugal: o documento, a interpretação crítica e a narrativa. Em outras palavras, se a história não é feita apenas com documentos, também o documento, em si, sem o olhar e a interpretação do historiador, ainda não é história. Para se tornar um historiador, o investigador deve procurar uma explicação causal para os acontecimentos e não apenas repetir o testemunho das fontes. Nesse sentido, Costa Lima, ressalta a importância da construção textual:

O cuidado com a construção textual pressupõe que já não se tome a linguagem como simples modo de referência de conteúdos factuais. Preocupar-se com a construção do texto não supõe considerar-se a verdade (alethéia) uma falácia convencional. A procura de dar conta do que houve e por que assim foi é o principio diferenciador da escrita da história; ela é sua aporia. Analiticamente porém, cabe mostrar os povos que nela se infiltram, assim como que a alethéia não se esgota no plano da factualidade.199

Portanto, o historiador seria aquele que ao utilizar as informações dos documentos, também julga o seu conteúdo: “O documento é falso? Pois então rejeite-se. Mas se é verdadeiro, que peso contem para clarear o conhecimento? Trata-se de um original ou de um apócrifo? Em que medida permite a revisão do saber adquirido?” 200 Consideramos aqui que Herculano tenha alcançado essas três instâncias: soube utilizar os documentos para responder suas problemáticas e elaborar uma estrutura de pensamento, criando uma história crítica, que teria sido capaz de abordar tanto as origens de sua comunidade, quanto as estruturas que a definiam no seu conjunto.201 Ao mesmo tempo, não abdicou da instância narrativa, produzindo um texto claro e atrativo. Essa relação de Herculano com os documentos pode ser percebida da seguinte forma:

As collecções impressas de monumentos históricos, que todos ou quasi todos os paizes possuem, faltam neste nosso. Documentos avulsos, derramados por obras escriptas em epochas, nas quaes as luzes diplomaticas quasi que não

199 LIMA. Luis Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 36. 200 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. “Alexandre Herculano e a fundamentação da “História de Portugal””. In: Alexandre Herculano – ciclo de conferências comemorativas do I centenário da sua morte. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto. Gabinete de História da Cidade, 1979, p. 88. 201 Ibidem, p. 88.

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existiam, mal pódem, ás vezes, pelo errado da sua leitura e por se acharem confundidos com diplomas forjados, ser acceitos como auctoridades seguras. Outro caracter têem os que se encontram nas Memorias da Academia Real das Sciencias; ou nas obras publicadas pelos seus sócios; mas esses documentos, na maior parte, reduzem-se a simples extractos, como convem aos fins, que se propõem os auctores que os citam. Assim quem se ocupar da historia portuguesa, ha-de sepultar-se nos archivos públicos, e descubrir entre milhares de pergaminhos, frequentemente difficeis de decifrar, aquelle que faz ao seu intento: ha-de indagar nos monumentos estrangeiros onde é que se encontram passagens que ilustrem a historia do seu paiz: ha-de avivar as inscripções, conhecer os cartorios particulares da cathedraes, dos municipios, e dos mosteiros; ha-de ser paleographo, tudo.202

Alexandre Herculano, assim como outros historiadores do mesmo período que tinham os mesmos propósitos de construir histórias nacionais, foram obrigados a trilhar um caminho de múltiplas tarefas: coligir e ler os documentos, averiguar sua autenticidade, coletar dados e redigir a história. Um dos grandes diferenciais desses historiadores oitocentistas estava justamente nesse trabalho inicial de buscar e organizar os documentos medievais ainda não catalogados. No entanto, vale salientar que o trabalho arquivístico, de erudição e de crítica historiográfica apenas foi possível com o desenvolvimento técnico anterior elaborado por nomes como João Pedro Ribeiro, José Anastácio Figueiredo, António Caetano do Amaral, Fortunato de São Boaventura e Francisco de S. Luís Saraiva. 203 A partir de todo esse trabalho, a História de Portugal atingiria, então os parâmetros históricos que de acordo com Veríssimo Serrão seriam estabelecidos por Herculano: ser uma história nacional que englobasse as várias realidades do organismo português; buscar o passado como ele realmente foi “e não como se imagina que ele tivesse sido”, e isso pode ser observado através de todo o seu interesse pelas fontes, pela crítica e pela verificação das informações obtidas, como apresentamos ao longo do texto; construir um “edifício global” e não apenas um registro de nomes e datas.

Tinha pois o nosso autor de erguer uma nova concepção histórica, quanto ao método e quanto aos princípios, na obediência ao que se impõe definir como “história-ciência”. Esta devia fundar-se nos documentos como testemunho do passado.”204

202 HERCULANO, op. cit., P. 23. 203 MATTOSO, op. cit., p. 24. 204 SERRÃO, op. cit., p. 87.

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Como nos lembra também Paul Veyne, a história é de fato o conhecimento por meio dos documentos, mas esses documentos não apresentam o próprio evento em si. Dessa forma, a história não nos mostra o passado “como se você estivesse lá”. O historiador irá utilizar suas fontes para falar sobre o acontecimento, fazendo da narrativa um dos pontos centrais da escrita da história: “Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo “como se você estivesse lá.” 205

2.10. Conclusão do capítulo

Retomemos o caminho seguido nesse capítulo para chegar até este ponto. Primeiro começamos pela análise das fontes utilizadas por Alexandre Herculano para escrever o primeiro capítulo da História de Portugal, a fim de compreender, através desse recorte, a forma como operou com os documentos ao longo de sua obra. Percebemos o uso de fontes medievais datados do período estudado pelo autor, ou seja, séculos XI e XII, que chegaram até ele na forma de documentos que foram angariados em suas pesquisas em arquivos e bibliotecas medievais ou através de grandes compilações documentais, e também de autores posteriores que também se utilizaram dessa documentação para produzir suas histórias. A partir disso, constatamos que Herculano conhecia uma imensa quantidade de fontes medievais, que como vimos no primeiro capítulo, foi obtida, sobretudo, pelo trabalho nas bibliotecas particulares e públicas do Porto, na biblioteca da Ajuda e nas viagens pelo reino com o objetivo de reunir os documentos que fizeram parte dos Portugaliae Monumenta Historica. E, além disso, possuía uma grande habilidade para trabalhar com fontes documentais, no que se destacam: a leitura e escrita em latim, idioma da grande maioria dos documentos do período; a crítica em torno da veracidade, autoria e data das fontes. Constatamos os critérios que levaram Herculano a confiar ou não em suas fontes, ou seja, percebemos que a questão da testemunha em primeiro plano, em que os autores escrevem no momento e local próximo ao evento ocorrido, dão o status de verdade ou de relato fidedigno que o historiador buscava. Na maioria das vezes, Herculano procurava as mesmas informações em mais de um documento, a fim de verificar se eram coincidentes ou

205 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 18.

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não, caso não fossem, apresentava ao leitor as possibilidades, indicando o motivo de considerar mais fidedigno um ou outro relato. Dessa forma, as citações e referências aos autores consultados ocorrem algumas vezes no corpo do texto, mas em geral, são especificadas apenas nas notas de rodapé. Sendo que as discussões mais específicas e de caráter mais eruditos são feitas em notas ao fim de cada livro. As informações são, muitas vezes, apresentadas da forma como se encontram nos documentos originais, mas geralmente não parafraseando o seus autores. Percebemos assim, que Herculano reescreve, de acordo com seus próprios princípios narrativos, os textos que usa como base, mesmo que isso signifique colocar citações do texto original (muitas vezes em latim) em notas de pé de página. E por fim, como que enlaçando todo esse procedimento metodológico, notamos o processamento de todas as informações ao criar um texto que, por um lado discute e apresenta as questões das origens e desenvolvimento do reino, do povo e da nacionalidade portuguesa; e por outro lado trabalha habilmente os dados obtidos, na intenção de elaborar uma narrativa consciente e crítica, e que fosse, ao mesmo tempo, clara, atrativa aos leitores e cumprisse suas obrigações com a verdade histórica, que não deixava de estar sempre em seu horizonte.

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CAPÍTULO III

NARRATIVA E IMAGINAÇÃO

Tendo em vista o caminho seguido no capítulo anterior, qual seria então, a importância de precisar como Herculano usou suas fontes, se as parafraseou, se as copiou ou não, se apenas as utilizou para basear seu discurso? Qual a importância de todos esses estudos e levantamento de dados? Qual a grande questão que nos impulsionou a tão extensa investigação? Para além de compreender como se desenvolveu a construção do discurso histórico baseado no material documental elencado, é nosso interesse compreender também o processo de trabalho subjetivo do historiador, ou seja, como fazia para transformar um texto documental em um texto histórico narrativo. Nesse processo de construção, sabemos que nem tudo o que se passou está descrito nas fontes, sendo elas mesmas pequenas versões do que aconteceu no passado. Como fazer então, para preencher essas lacunas de informações dúbias ou ausentes? Como Alexandre Herculano foi escritor de história e literatura, e invariavelmente, abordou os mesmos eventos históricos a partir das duas perspectivas, podemos recorrer às suas narrativas histórico-literárias para nos ajudar a compor nosso estudo. Uma passagem de Luiz Costa Lima poderá nos ajudar:

Tudo o que dissemos acima só terá condições de ficar patente quando viermos a comparar a escrita da história com a ficção e a literatura, pois cada uma delas ocupa uma posição diferencial quanto à imaginação. A imaginação atua na escrita da história, mas não é o seu lastro. Porosa, a história não há de ser menos veraz. Mas veraz, ela não pode pretender, como as ciências da natureza, a formulação de leis porque não pode renunciar à parcialidade.206

206 LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 65.

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Ou seja, nossa preocupação constante com a forma com que Herculano utilizou suas fontes para escrever seu próprio texto pode ser pensada em concomitância com a escrita de ficção, observando-se também a forma como a imaginação se insere nos dois tipos de escrita. Ter o documento histórico como base do discurso, fixa o paralelismo do historiador com a verdade, predicado que a ficção pode ou não se identificar, mas que seria uma condição implícita do texto histórico. No entanto, apesar do pacto estabelecido com a verdade, a história não pode ser construída a partir de leis determinantes e imparciais. O posicionamento do historiador é também de fundamental importância e a forma como elabora o discurso torna-se uma das bases da construção histórica. Como salienta Luiz Costa Lima, a história faz uso da imaginação, mesmo não sendo ela seu ponto de partida. Em outras palavras, se a verdade é a base da história e a forma que o historiador tem para tentar se aproximar dela é através das fontes, então o documento histórico é também uma das bases fundamentais de seu trabalho. Ao mesmo tempo, a imaginação é o elemento que irá atuar juntamente com as fontes para formar o discurso histórico. Ela não compromete a verdade, já que atua em complementação a ela. Na elaboração do discurso na historiografia romântica, da qual Herculano faz parte, Hayden White salienta o desenvolvimento do modo metafórico de escrita, o qual se valeria do “mythos da estória romanesca para representar-lhes os processos.”207 Essa escrita permitiria apresentar ao leitor o passado de forma artística, tendo sido este já estudado a partir dos parâmetros científicos de investigação documental. Dentre os historiadores românticos que trabalharam de forma semelhante temos, por exemplo, Jules Michelet208 (1798-1874), cuja obra representa uma tentativa de conciliar a tensão existente na historiografia oitocentista entre o veio poético e a objetividade científica. 209 Para ele, “uma sensibilidade poética, criticamente autoconsciente, proporcionava acesso a uma apreensão especificamente realista do mundo”, 210 sua proposta estaria na utilização do modo metafórico para alcançar e reviver o passado em sua totalidade.

207 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: USP, 1995. p.155. 208 A classificação de um autor como sendo ou não romântico, necessárias, por vezes, como um recurso esquemático para guiar determinadas análises, é um ponto invariavelmente controverso. Nesse caso, Edmund Wilson questiona tal classificação quando aplicada à Michelet: “Há quem chame Michelet de romântico; e de fato, sua história tem muita movimentação, muito de pitoresco, bem como, nas partes iniciais, trechos de retórica verborrrágica. Porém não há dúvidas de que a atitude fundamental de Michelet é, conforme ele próprio insiste, realista e não romântica.” WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia: escritores e atores da história, São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 16. 209 LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário: Razão e Imaginação no Ocidente, São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p.125. 210 WHITE, op. cit., p. 160.

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Nesse sentido, antes mesmo de Michelet, Barante já fazia uso da metáfora inserindo também a imaginação para conceituar a relação com a história “as if it were a dramatic representation: we also imagine what we cannot see as if it were a „picture‟”.211 Para ele, como resultado da tendência dos historiadores seus contemporâneos em anunciar demasiadamente sua relação com as pesquisas, muitos acabaram por se perder em reflexões políticas e morais, negligenciando, enfim a imaginação, os heróis fictícios do drama, da épica ou da novela, tornaram-se frequentemente mais vivos aos olhos dos leitores do que os personagens reais da história.212 Defende assim uma nova forma de narrativa, exposta em sua obra Ducs de Bourgogne (1824-1826). Para Stephen Bann, tanto Barante quanto Michelet concordavam que o historiador deveria apelar para a imaginação do leitor, mas não abandonaram a visão de que sua pratica seria, de modo essencial, distintiva e inimitável. Isso não significa necessariamente dissolver a especificidade da operação histórica, mas implica inevitavelmente em suspender a operação universal da dicotomia ente verdade e ficção. Essa dicotomia, de qualquer maneira, seria o instrumento mais cego para analisar a proliferação de novas formas em que o entendimento histórico procurou se expressar no período romântico.213 Esse processo permitiria, então, a concepção de duas definições distintas de história. A primeira ligada ao desenvolvimento da história como profissionalizada e científica, que se colocava para além da atividade de amadores e rejeitava a abordagem da história como objeto desinteressado. A segunda viria da inundação de formas de expressão literárias, visuais e espetaculares com uma tonalidade histórica, que tornava-se em si mesma, um fenômeno de grande importância, sem necessariamente entrar em conflito com a visão anterior. 214 Como ressalta Luiz Costa Lima, ao lado do projeto da história científica baseada na razão e legada pelo Iluminismo, a história mantinha seu lugar entre as belas letras:215

Assim a História não nos oferece mais do que probabilidades porque não poderia deixar de visualizar o palco, conquanto incessantemente mudado, do eterno combate que a razão entretém com as paixões e os preconceitos.

211 “... como se ela fosse uma representação dramática: também imaginamos que não podemos vê-la como vemos um quadro.” [tradução da autora] In: BANN, Stephen. and the Rise of History.New York: Twayne Publishers, 1995. p. 21. 212 Ibidem, p. 22. 213 Ibidem, p. 25. 214 Ibidem, pp. 25-26. 215 LIMA, op. cit., p. 116.

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Sempre assediada, nem sempre vitoriosa, a razão sente-se pouco a vontade na História.216

Portanto, acompanhando conceito moderno de História que se firmava, estava presente a querela entre a razão e a imaginação na formação interna do discurso. Mesmo com a cientifização da História, o elemento poético não seria deixado de lado, sendo constituído a partir dessa mesma relação estabelecida com as fontes.217

Em suma, portanto, quer a animosidade nutrida contra a res fictae, quer a importância concedida pelo historicismo estético à poesia levam a um mesmo resultado: a historiografia se encara a si própria como ciência, surgindo sob sua auto-imagem, a face escarninha, debochada, inescrupulosa da arte. Aí, submersa, recalcada, ela como que se vinga, fazendo-se perversa. Onde a indesejada seja reconhecida, será o desprezo de seu praticante. 218

Em uma aproximação com a fala de Jean Baptiste Du Bos (1719), a ilusão criada por uma determinada obra seria a primeira causa de prazer do espectador em um quadro ou espetáculo. Ela nada mais seria do que o ato de fazer crer ao observador que ele não está assistindo uma representação do acontecimento, mas o próprio acontecimento em si.219 Podemos aplicar essa mesma lógica à escrita bem cuidada do texto histórico, justificando o paralelismo estabelecido por Costa Lima entre a arte e a escrita histórica, que em dados momentos brinca com a imagética do leitor ao criar uma nova realidade na qual o leitor visualiza os eventos históricos narrados em sua própria imaginação. A criticidade da historiografia de Alexandre Herculano e o perfil analítico de suas construções, não entram em desacordo com essa estilística narrativa adotada. O historiador- romancista, aos moldes também de outros historiadores românticos citados soube enredar o leitor através das histórias que contava. Como afirma Costa Lima sobre a historiografia positivista, o poético “se mantém como um desejado clandestino, a partir mesmo do culto das fontes”.220 Ou seja, dentro das discussões sobre as especificidades do discurso histórico e literário, mesmo a história tendo muitas vezes se esforçado demasiadamente para se apartar da

216 LIMA, op. cit., p. 116. 217 Ibidem, p. 117-122. 218 Ibidem, p. 123. 219 DU BOS, apud LIMA, op. cit., p. 66. 220 LIMA, op. cit., p. 66.

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literatura, o elemento poético acaba lhe sendo intrínseco. Nas palavras de Jörn Rüsen: “Como articulação de sentido, as fontes e os documentos do passado humano serão vistos em princípio como obras de arte. O método histórico é assim, numa formulação extremada, a consumação regularizada da estetização da história”.221 A estetização do discurso histórico, para nos apropriarmos dos termos de Jörn Rüsen, se torna patente na configuração da historiografia romântica e funciona como um elemento operacional a ser trabalhado em concomitância com a busca por uma história científica e verdadeira, tão almejada pelos historiadores oitocentistas. Nesse sentido, também Stephen Bann ressalta a possibilidade do uso da imaginação por esses autores. Enquanto se considerava que a preocupação de Ranke estaria em demonstrar o que realmente acontecera, para Barante o propósito da escrita da história não seria provar, e sim narrar, sugerindo a possibilidade do uso da imaginação no discurso histórico.222 Mas, se seguirmos por outra linha argumentativa ─ e que de fato nos interessa mais ─, também no discurso rankeano e positivista a imaginação estaria também patente no momento da escrita. Sendo a objetividade absoluta, se é que algum dia realmente se pensou em tal possibilidade, uma grande quimera a ser perseguida ad infinitum. Alexandre Herculano não foi um historiador positivista, mas sua historiografia localiza-se no momento em que a história necessita já do aval científico para “ser levada a sério”. Hayden White caracteriza os estudos históricos da primeira metade do século XIX, como representantes de um período em que a história se profissionalizava, mas suas bases ainda não estavam completamente definidas, operando-se muitas em uma combinação entre ciência e arte:

Mas os sentidos dos termos “ciência” e “arte” não eram claros. Sem dúvida era evidente que o historiador deveria tentar ser “científico” em sua investigação dos documentos e em seus esforços para determinar “o que de fato aconteceu” no passado, e que devia representar o passado “artisticamente” para seus leitores. (...) Como forma de arte, a escrita histórica poderia ser “vívida” e estimulante, até recreativa, contanto que o historiador artista não ousasse utilizar qualquer outra coisa que não fossem as técnicas e estratagemas da novelística tradicional.223

221 RÜSEN, J. apud LIMA, op. cit. p. 122. 222 BANN, Stephen. As Invenções da História – Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. p. 20-21. 223 WHITE, op. cit. p. 148.

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Não estamos dizendo com isso, que a arte comprometesse o trabalho histórico e nem que os artifícios literários formassem as bases da escrita histórica. No entanto, Herculano faz realmente parte dessa geração de escritores oitocentistas que opera concomitantemente com a história e a literatura, tendo se tornado ao mesmo tempo, crítico também dessas duas instâncias. A forma como a história é escrita, ou seja, a estética do discurso histórico dada a partir da sua apresentação – e nesse sentido, o conhecimento dos mecanismos literários depõem à favor de Herculano – não pode se abster da relação estabelecida com o público receptor224:

“Estética” designa aqui duas coisas: um plano e uma intenção, mediante os quais qualquer pessoa é interpelada pela apresentação histórica. É estético o plano pré-cognitivo da comunicação simbólica, sobre o qual têm de se basear construtos cognitivos como o conhecimento e o saber, na medida em que influenciam culturalmente a vida de uma sociedade ou de um indivíduo. O elemento estético da formatação historiográfica permite a percepção do saber histórico, abre-lhe a possibilidade de imediatez e da força de convencimento da percepção sensível.225

Consideramos inicialmente ideia de Estética como uma disciplina filosófica que, desde seu surgimento na Antiguidade, se ocupou de questões relacionadas à definição do belo e do gosto. No entanto, quando aplicada à construção discursiva, ela teria, de acordo com Jörn Rüsen, o papel de liberar o sujeito para agir, fomentando sua reflexão. Nesse sentido, por exemplo, apesar das posições políticas que possam aparecer em um determinado texto, as qualidades estéticas possibilitam que ele também possa agradar pessoas com pensamentos distintos.226 Para compreender o desenvolvimento dessas questões, recorremos à análise da construção da narrativa propriamente dita, em que Herculano trabalha com os documentos, pensando sempre em como elaborar um discurso com o máximo de certeza sobre os acontecimentos abordados, e ao mesmo tempo, opera com mecanismos de elaboração textual. Ou seja, nosso objetivo, nesse momento, é compreender como Herculano faz para transformar toda a documentação selecionada em uma narrativa longa, informativa, crítica e ao mesmo

224 Rüsen, Jörn. História viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 28. 225 Ibidem, p. 29. 226 Ibidem, p. 38.

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tempo atrativa aos leitores, não sendo apenas uma simples enumeração dos dados encontrados em suas fontes. Tratamos, portanto, da atividade subjetiva do escritor, que nos permite encontrar passagens da História de Portugal como a que se segue:

Foi terrivel o reencontro, e o campo disputado com igual esforço; mas por fim a victoria declarou-se a favor dos mussulmanos. Sancho, provavelmente já quando os seus começavam a retroceder, sentiu fraquear o ginete em que montava. Assustado bradou ao conde Gomes: “Oh pae! Oh pae! O meu cavallo está ferido”! Correu o aio e chegou no momento em que Sancho caía. Estavam cercados de sarracenos. O conde apeou-se e, mettendo o infante ente si e o escudo, defendia-se e defendia-o como um leão aos golpes que choviam por todos os lados, até que uma cutilada lhe decepou um pé. Não podendo mais suster-se, deitou-se em cima de Sancho, para morrer antes delle, e assim acabaram ambos.227

Como percebemos, em determinados momentos a escrita vai além da fria da enumeração de dados objetivos. Ela torna-se intensa e dinâmica. Se disséssemos que essa passagem comporia uma novela não seria de se estranhar, pois narra um episódio histórico com os recursos retóricos que poderiam ser usados em um texto literário. Aqui Herculano mostra-se não apenas como um historiador metódico, mas também como um grande escritor, que joga com as palavras para criar uma cena emocionante e enredadora. Ele sabe das agonias de seus personagens. Sabe da tristeza dos últimos dias de Affonso VI e do grande amor que este tinha pelo único filho varão. Sabe também de detalhes da luta que acabou com a vida do infante e de seu aio. Sabe que quando o cavalo foi atingido, o infante gritou para o conde Gomes de Cabra: “Oh pae! Oh pae! Meu cavalo está ferido!”, e que este o defendeu usando seu próprio corpo como escudo contra os golpes dos muçulmanos. Sabe, enfim, que Affonso VI, que já se encontrava bastante enfermo, teve o seu mal agravado pela enorme tristeza de saber da morte de seu filho. Tornam-se patentes as emoções das personagens, a fala atribuída a elas no momento da ação e os detalhes da cena. É possível criar uma imagem perfeita dos fatos que são narrados por Herculano nesse trecho. Não podemos afirmar com certeza que esses acontecimentos estavam descritos dessa forma nos documentos consultados pelo historiador, já que essa passagem faz parte da “Introdução” da História de Portugal e, diferentemente do restante da obra, ela não é muito bem referenciada ─ ou seja, o autor não indica a procedência dessa e de muitas outras

227 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomo I. p. 255.

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informações apresentadas. No entanto, para nosso historiador, no momento de sua escrita, independente do acontecimento estar descrito dessa forma ou não na fonte consultada, ele optou por apresentá-lo dessa maneira ao leitor. Ao mesmo tempo em que realmente lhe parecia plausível que o fato tivesse ocorrido da forma contada, a estratégia discursiva utilizada cumpria seus fins narrativos. Ao analisar a narrativa de Geoges Duby sobre Guilherme, o Marechal, Rui Bebiano deparou-se com semelhante processo historiográfico:

Nada daquilo que Duby transcreveu se encontrava nos documentos, mas, para a sua leitura, encontrava-se implícito e era como se lá estivesse. Não existia nada que o negasse e tudo parecia plausível. Porque não escrevê-lo então, se a alternativa seria uma enumeração espartana de dados que, não ligados pelo elemento poético, manteriam um traço esfíngico que, nem por isso, estaria mais próximo da realidade observada pelo autor?228

Ou seja, o que Herculano narrou nessas linhas poderia não estar descrito nos documentos da forma como ele apresentou na sua obra, mas como ressalta Bebiano, era como se estivesse implícito. No entanto, também não existia nada que dissesse o contrário, e sua narrativa tornava-se plausível ao apresentar os acontecimentos dessa forma. Se o escritor apresentasse apenas uma simples enumeração de dados, isso não o aproximaria mais de uma suposta realidade observada, considerando que para o autor existisse essa realidade com qual tentava aproximar-se. Por outro lado, suponhamos que Herculano tenha encontrado no documento que consultava uma narrativa com esses mesmos detalhes e o tivesse utilizado sem inserir grandes modificações. O que isso nos indicaria? Na realidade, apesar de nesse caso, o procedimento adotado pelo autor ser distinto, o fim é o mesmo. Ou seja, para o leitor do século XIX a quem essa obra era voltada, e que não olhava para o texto com as mesmas questões analíticas que nós, não importava se a narrativa copiava ou não o documento (discussão que já apresentamos anteriormente). Independente dos recursos que foram adotados pelo escritor, o resultado seria a mesma narrativa enredadora. A escrita bem trabalhada poderia levar-nos a cogitar que o autor não diferenciasse seu trabalho literário do histórico, o que não é exatamente verdade. Ele tem plena consciência de cada uma das duas instâncias de seu trabalho, ou seja, dos princípios que regem tanto a

228 BEBBIANO, Rui. “Sobre a história como poética”. In: As Oficinas da História, coord. de José d‟Encarnação. Lisboa, Edições Colibri – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2002. p. 49.

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escrita histórica quanto a literária. Herculano teria sido, no entanto, muito hábil na arte de contar e, talvez por isso, seu texto histórico tenha algumas características narrativas que também podem ser encontradas também nos seus romances históricos. Podemos pensar na metáfora do pintor que intenta elaborar sua obra a partir da copia da natureza, utilizada por Collingwood para simbolizar a relação do historiador com sua fonte. De acordo com o autor, apesar do intuito em ser fiel à natureza, o pintor está sempre selecionando, simplificando, esquematizando, descartando o que não lhe tem importância e aproveitando dela o que lhe parece essencial: “É o artista, e não a natureza, que é responsável por aquilo que surge na tela”.229 Assim também é o trabalho do historiador, nem mesmo o pior deles escreve sua obra apenas copiando suas fontes. Mesmo se fosse possível não acrescentar nada de seu ao texto que está escrevendo, algumas coisas que estavam no documento sempre acabam sendo deixadas de lado, ou seja, por um motivo ou outro, o historiador não utiliza todos os elementos que estão em sua fonte. Dessa forma, ele se torna responsável “pelo que se passa”, e não suas fontes. De acordo com Collingwood, portanto, o pensamento do historiador é, nessa medida, autônomo.230

As fontes do historiador falam-lhe desta ou daquela fase dum processo, cujos estádios intermediários ficam por descrever. É o historiador que procede à interpolação desses estádios. A imagem que ele da do seu objeto – embora possa consistir, em parte, em afirmações extraídas diretamente das suas fontes – consiste também (crescentemente com cada aumento produzido na sua competência de historiador) em afirmações atingidas dedutivamente, a partir das que estão de acordo com os seus critérios, as suas regras metodológicas e os seus cânones de importância. Nesta parte do seu trabalho, não depende nunca das suas fontes, no sentido de repetir o que elas lhe dizem; firma-se na sua capacidade pessoal, constituindo a si próprio como fonte de si mesmo, enquanto as chamadas fontes deixam de ser fontes para serem apenas provas.231

A interpolação seria o recurso utilizado pelo historiador para preencher lacunas que não estão descritas no documento, mas que parecem muito prováveis que tenham ocorrido de determinada forma. A imagem que ele transmite de seu objeto é formada a partir das informações extraídas de suas fontes, mas ao mesmo tempo de deduções baseadas nos critérios e bases metodológicas seguidas pelo próprio escritor. Salienta-se, portanto, a capacidade pessoal do autor de elaborar seu próprio texto. Collingwood nos apresenta um

229 COLLINGWOOD, R. G. A ideia de História. Lisboa: Editorial Presença, 2001. p. 359. 230 Ibidem. 231 Ibidem, p. 359-360.

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exemplo claro: “... as fontes dizem-nos que, num dia, César estava em Roma e, num outro dia, estava na Gália; não nos dizem nada sobre a sua viagem de um lugar para outro, mas interpolamos isto, com uma consciência perfeitamente clara.”232 Pensada dessa forma, a interpolação não é arbitrária nem meramente imaginativa, ela é necessária ou mesmo apriorística. Com isso, Collingwood quer dizer que a interpolação se baseia em hipóteses:

...o que é inferido desta forma é essencialmente algo que se imagina. Se olharmos para o mar e nos apercebermos da presença dum navio, e se, cinco minutos mais tarde, voltarmos a olhar e nos apercebermos de que se encontra num lugar diferente, somos levados a imaginar que ocupou posições intermediarias, enquanto não estávamos a olhar. É já um exemplo de pensamento histórico; não é de outro modo que somos levados a imaginar que César viajou de Roma até à Gália, quando nos dizem que ele esteve nestes diferentes lugares, em momentos sucessivos.233

E, dessa forma, o autor apresenta o conceito de “imaginação a priori” para explicar como o historiador preenche as lacunas entre as informações fornecidas pelo documento a fim de dar continuidade ao seu texto histórico, ou seja, não é novidade falar que o historiador faz uso da imaginação, mas o que precisa ser salientado é que a imaginação é utilizada em sua forma apriorística e não como fantasia. É ela que, em última instância, realiza o trabalho da construção histórica.234

3.1. Personagens

“Mas, em relação à vida, a verdadeira vida, como refazê-la?” (HARTOG)

Pensar o funcionamento das personagens é uma boa forma de adentrar na análise do discurso historiográfico. Seria praticamente impossível escrever uma história sem personagens, sejam elas da ordem que forem. Como tantos historiadores ao longo das décadas

232 Ibidem, p. 364. 233 Ibidem, p. 365. 234 Ibidem, p. 365-366.

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já apontaram incansavelmente, o objeto da história é o próprio homem. Ou os homens, como bem nos lembra Marc Bloch, para ressaltar a abordagem do indivíduo em sociedade.235 Dessa forma, quem seriam então as personagens da história senão o homem em si? Seja pensado individual ou coletivamente, na forma de herói ou anti-herói, abordado de maneira direta ou indireta, o homem é sempre o protagonista, o antagonista e o coadjuvante da história. A porta de entrada para a maioria das análises das personagens de Alexandre Herculano é invariavelmente a do romance histórico. Nem é tanto de se estranhar, visto que a própria ideia de personagem nos remete quase que de imediato à ideia de ficção, mesmo que saibamos que a definição de personagem vai muito, além disso. Apesar do romance histórico operar ao mesmo tempo com personagens reais e fictícias, o que irá diferenciar a personagem de um romance tradicional da personagem da História é exatamente a existência real atribuída a esta última. Nosso ponto de apoio para o desenvolvimento da análise pretendida será, portanto, o delineamento das características das personagens reais, que também chamaremos de referenciais, tanto dentro do romance histórico quanto da obra histórica, a fim de perceber quais seriam suas semelhanças e as diferenças. É sabido que Herculano foi tanto romancista quanto historiador. Há quem diga mesmo que foi romancista antes de ser historiador, afirmação justa se considerarmos a cronologia da publicação de suas obras. Ao que nos diz respeito, no entanto, importa-nos salientar essa linha tênue que durante o século XIX delimitava a história e o romance. Considerado o grande século da História, período de definição e normatização da disciplina a partir de preceitos científicos, muito se preocupou também em estabelecer quais seriam as delimitações do estudo histórico, apartado talvez em uma prepotência definitiva da literatura. Todavia, nosso interesse não está no que separa as instâncias do histórico e do literário, e sim no que as une. Nesse sentido, Alexandre Herculano pode ser tomado, juntamente com diversos outros autores românticos que se enveredaram pelo recém- inaugurado gênero do romance histórico, como um dos grandes estudiosos que caminharam por esse campo ainda incerto. Para compreender melhor essa questão, iniciamos estabelecendo o principal elemento que tradicionalmente diferencia o romance histórico da história, mesmo quando escritos pela pena de um mesmo autor: o compromisso com a verdade, que é assumido pelo relato histórico e relativizado no romance.

235 BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p.54.

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A liberdade, inerente a toda criação literária, não está ausente do romance histórico. Pelo contrário, e apesar das constantes atestações de veracidade (...), o romancista assume diretamente a sua falsidade ao aceitar, como Herculano, que o propósito de construir uma efabulação exemplar é mais forte do que a simples verdade dos fatos.236

Alexandre Herculano, enquanto autor de ficção e história, transita constantemente entre tais instâncias dicotômicas, ou seja, entre o documentado e o imaginado, entre o verdadeiro e o verossímil. Ponto em comum com muitos autores românticos foi o de afirmar a autoridade do romance histórico com base em documentos consultados, elemento narrativo este que pode ser considerado desde Miguel de Cervantes, passando ainda por autores como Horace Walpole, Manzoni ou .237 Como bem aponta Maria de Fátima Marinho, muitos dos textos de Lendas e Narrativas são transcrições de narrativas góticas adaptadas para a linguagem contemporânea, a exemplo de: “Arras por Foro d‟Hespanha”, que apresenta constantes referências à Crónica de D. Fernando, escrita por Fernão Lopes. Nesse texto, como em vários outros, Herculano muitas vezes apresenta a transcrição fidedigna do próprio texto medieval. Da mesma forma, como salienta a autora, “O castelo de Faria” e “O Bispo negro” são quase que transcrições do capítulo LXXIX da Crónica de D. Fernando e dos capítulos XXI a XXIV da Crónica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão, respectivamente.238 Encontramos um esquema muito semelhante quando nos detivemos na compreensão do processo de escrita da História de Portugal. Notamos que, também em diversos momentos dessa obra, Herculano segue muito fielmente o texto encontrado nos documentos medievais, fazendo a transcrição dos escritos góticos, como assinalamos no capítulo anterior. Característica crucial dos romances históricos e que os diferencia sobremaneira dos textos históricos é a criação de personagens ficcionais para ocupar o primeiro plano da narrativa, sendo a história apenas complementada com as personagens históricas que aparecem de forma não tão preponderante, mas crucial se pensarmos na elaboração do pano de fundo da narrativa principal. Essa opção pela ênfase nas personagens criadas pelo escritor faz muito sentido se pensarmos que tais obras são romances propriamente ditos e, assim

236 MARINHO, Maria de Fátima. “O Romance Histórico de Alexandre Herculano”. Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, Porto, n. 09, p. 97-117, 1992. p. 99. 237 Ibidem, p. 100. 238 Ibidem.

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sendo, têm como característica mestra a liberdade do autor para inventar livremente de acordo com seus propósitos de romancista. De acordo com Maria de Fátima Marinho, essa já era uma preocupação apontada por :

A cautela em atribuir a personagens referenciais atitudes e protagonismos que não corresponderiam às versões consideradas históricas, já levara Walter Scott e advertir, em The Monastery, para a necessidade de se acautelar a caracterização e funcionalidade dessas personagens: Mistakes of place or inanimate things referred to, are of very little moment; but the ingenious author ought to have been more cautious of attaching real names to fictitious characters.239

Como afirma Georg Lukács, a personagem histórica apresenta um tratamento diferente da personagem ficcional em sua construção. Analisando a obra de Walter Scott, o autor ressalta que os atores históricos aparecem prontos, sem grandes preparações pessoais ou psicológicas, pois o que realmente importa seria a construção objetiva e sócio-histórica: “Portanto, quando aparece diante de nós, ele está pronto em sentido psicológico, e é até obrigado a estar pronto, pois aparece para cumprir sua missão histórica na crise.”240 No entanto, nosso objetivo não é a análise específica das personagens históricas que aparecem nos romances, mas de como elas são construídas dentro da História de Portugal e as relações que podem ser estabelecidas com as mesmas figuras quando elas aparecem nas narrativas histórico-literárias. Dos textos literários escritos por Herculano, o que mais se relaciona com o início da história portuguesa contado no Primeiro Livro seria O Bobo. Publicado na forma de folhetim no Panorama ao longo de 15 números, a edição foi iniciada em 14 de janeiro e finalizada em 5 de agosto de 1843, mas apenas saiu como obra única em 1878, após a morte do autor no ano anterior. Um dos temas desenvolvidos no Primeiro Livro e que também aparece em O Bobo, trata do início da história portuguesa, período entre o governo de D. Teresa tendo ao seu lado o conde de Trava e o conflito armado com seu filho Affonso Henriques na batalha de S. Mamede, que viria a tornar Portugal um reino independente de Leão e Castela. Esse mesmo evento apresentado na forma romantizada foi objeto de estudos de Herculano tanto como

239 “Erros referentes a lugar ou a objetos inanimados, ocorrem em pequenos momentos; mas o autor engenhoso deveria ter sido mais cauteloso em vincular nomes reais à personagens fictícias.” (tradução livre) MARINHO, Maria de Fátima. “A falsa ingenuidade de Herculano”. Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento. Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras, 2013. p. 166 240 LUKÁCS, György. O Romance Histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 55.

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matéria histórica, sendo abordado na História de Portugal e nas Cartas sobre a História de Portugal - em que o autor se preocupava com questões como a formação da nacionalidade, a determinação da validade ou não da transmissão de terras e direitos de hereditariedade, sem falar na abordagem documental em que discute sobre a veracidade ou não de determinadas fontes. Da mesma forma, quando abordados na forma de romance, o mesmo tema alia às citadas personagens referenciais, outros tantos que são pura criação do autor, como o triângulo amoroso composto por Garcia Bermudes, Egas Moniz e Dulce, e o próprio Bobo da Corte, que dá o nome à narrativa, e é fundamental para o desenrolar dos acontecimentos. Portanto, os mesmos acontecimentos que são discutidos nas obras históricas, aparecem também em O Bobo, mas sem a preocupação de se determinar a validade ou não da transmissão de terras e direitos de hereditariedade ou a veracidade das fontes documentais, dentre outras questões semelhantes.

3.2. Quem é D. Teresa na História de Portugal?

No primeiro livro da História de Portugal, dentre todos os acontecimentos que são narrados e as personagens que são descritas e trabalhadas, D. Teresa - considerada por vezes como a primeira rainha de Portugal241 - ocupa um lugar de relativo destaque. Seja pela descrição de seus dotes físicos, como a beleza pela qual era famosa, seja por seu papel na formação do reino português após a morte de seu marido, o conde Henrique de Portugal, fato é que a rainha é uma personalidade de constante destaque tanto na História de Portugal quanto em O Bobo. A bela rainha de Portugal ou a “formosíssima infanta”242, para nos apropriarmos de um termo de época e pelo qual aparece referida nos documentos por seu marido, ficou muito conhecida também por seu controverso caso amoroso com Fernando Peres, conde de Trava. O que devemos levar em conta é que, apesar de todas as discórdias e os julgamentos

241 A questão do título de rainha de D. Teresa é um tanto controversa. Em dados momentos na História de Portugal ela é tratada como rainha e em outros como infanta. O que podemos dizer é que ela não chega a receber oficialmente o título de rainha, mas em muitos documentos contemporâneos foi tratada dessa forma por seus autores. 242 De acordo com Herculano, D. Teresa recebera em Leão e Castela o título de “infanta dos portugueses”. Ver: HERCULANO, op. cit., p. 89. Referida dessa forma também em O Bobo. Ver: HERCULANO, A. “O Bobo”. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, Lisboa, n. 56, p. 19-23, 21 de janeiro de 1843. p.20.

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advindos desse caso e que a fez ser muitas vezes julgada pelos seus conterrâneos, a rainha conquistara de fato o amante e a afeição manifesta do conde de Trava por ela, não teria sido apenas um jogo estratégico de poder. Sobre esse posicionamento, Herculano nota:

Apesar de entrada em annos, não cremos que na epocha a que se refere a nossa narrativa, este epitheto fosse inteiramente anachronico, porque nem a bastarda d‟Afonso 6. era ainda idosa, nem devemos imaginar que a affeição de Fernando Perez fosse crua e simplesmente um calculo ambicioso.243

Herculano se dedicou copiosamente na construção dessa personagem, pois tinha consciência não apenas da importância histórica de D. Teresa, mas também das contradições que envolveram a trajetória da rainha. Por esse motivo, encontramos na História de Portugal, uma grande mulher que é representada como a bela infanta de gestos angélicos, e que possuía, ao mesmo, ânimo muito vivo e sagaz. Embora seja sempre apresentada a partir de ressalvas mulheris, ou seja, o autor considera que lhe faltava o braço forte de guerreiro que pudesse sustentar o trono português, a rainha de Portugal era muito lembrada por sua “agudeza de espírito”, por ser extremamente astuciosa e inteligente. De fato, não haveria como ser diferente, pois era esposa e mãe dos dois grandes homens que fundaram a nação portuguesa. Assim, temos que Herculano reconhecia, de fato, a importância de D. Teresa na formação do reino e da nacionalidade de Portugal e se esforça por reabilitá-la:

A infanta de Portugal debaixo de gesto angelico escondia o animo sagaz e vivo que lhe atribue um escriptor, o qual devia conhece-la e tractá-la de perto, ao menos durante a sua residencia em Sahagun. Os factos de quatorze annos em que regeu a provincia cujo governo lhe legara o marido provam que o monge chronista se não enganara em assim a qualificar. É durante esse periodo que a nacionalidade portuguesa começa a caracterisar-se bem, e á politica de D. Theresa se deve até certo ponto, o nascer e radicar-se em Portugal aquelle sentimento de individualidade que constitue barreiras entre povo e povo mais solidas e duradouras que os limites geographicos de duas nações vizinhas.244

A rainha de Portugal é concebida sempre de forma controversa. Se por um lado é inegável sua importância como esposa do conde Henrique e herdeira do trono após a sua

243 Ibidem, p.20-21. 244 HERCULANO, A. História de Portugal – desde o começo da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. 8ª ed. Lisboa: Bertrand, 1875. Tomo II. p. 64.

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morte, por outro, sua fraqueza de mulher fez com que acabasse por trair a si e ao seu povo ao intercambiar as questões de política com sua vida pessoal e interesses próprios.

... Chegada ao acampamento, poucos dias tardou em semear ahi a discordia, persuadindo ao conde que, antes de tudo, exigisse a divisão dos estados leoneses que lhe fora promettida, lembrando-lhe que era rematada loucura arriscar a propria vida e a dos seus soldados só em proveito alheio. Deu-lhe Henrique ouvidos e começou a apertar para que se realisassem as promessas feitas.245

Como percebemos, ao construir a imagem de D. Teresa, Herculano se utiliza de dois recursos: as fontes consultadas e seu juízo de valor. Ou seja, continua seguindo o esquema narrativo pautado nos documentos que o amparavam, conforme já em diversos momentos, e concomitantemente insere seu ponto de vista e seu próprio julgamento. A rainha, independente de suas qualidades ou possíveis iniquidades, teria semeado muitas vezes a discórdia e incitado o marido a tomar certas decisões controversas. Quase como a Eva que incitou Adão a comer do fruto proibido ou Lady Macbeth que acendeu a chama da ambição no coração de seu marido, também D. Teresa teria instigado o conde Henrique a tomar caminhos tortuosos. Herculano fez uso, portanto, de uma opção moral em sua narrativa, que sem grandes novidades em seu período, apresentava a mulher como moralmente fraca e indutora do pecado. A ambiguidade está sempre em torno de D. Teresa. Se, como mulher, não poderia manter o trono da mesma forma como fizera seu marido, a condição de infanta de Portugal e filha do falecido rei de Leão e Castela agregam-lhe uma força de espírito que de outra forma, muito provavelmente não poderia possuir. Nesse sentido, D. Teresa torna-se uma rainha ambiciosa e enérgica, que não se dobrara à vontade dos inimigos que tentavam tirar-lhe o trono. De acordo com Herculano, ela teria então feito uso das armas que em sua débil condição se apresentavam possíveis, aproveitou-se da astúcia como forma de criar intrigas entre o rei de Aragão e sua esposa D. Urraca, a fim de se beneficiar com a desavença.

Sobravam á infanta ambição, energia, pertinacia: faltava-lhe um braço de homem para sustentar o bom ou mau direito que suppunha ter; faltava-lhe o ferro que a politica, em todos os tempos, costumou e costuma lançar na balança em que se pesam as contendas dos principes ou dos povos. Recorreu ás armas de que a sua fraqueza mulheril podia tirar tanta vantagem como o marido tirara do esforço e pericia militar: empregou a astucia. Por

245 HERCULANO, op. cit., p. 53.

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intervenção de um individuo de cujas artes se fiava, teve modo de persuadir o rei de Aragão de que sua mulher intentava dar-lhe peçonha, accusação, talvez, não inteiramente infundada.246

D. Teresa não seria a única rainha ibérica que teve seus amores ilícitos como causadores de fortes consequências na política de seu reino247. Sua irmã mais velha, D. Urraca, rainha de Leão e Castela, passara também por uma situação semelhante alguns anos antes, ao se relacionar com o conde Pedro de Lara. Interessante notar que, os casos extraconjugais dos reis, apesar de não serem algumas vezes bem vistos pela sociedade, não causam tanto furor como quando as rainhas resolvem estabelecer algum tipo de relacionamento fora do casamento oficial, mesmo após a morte do marido legítimo. Seja pelo julgamento moral a que estão sujeitas, seja pelo poder político que seus companheiros acabam por adquirir, fato é que tanto D. Teresa quanto D. Urraca foram duramente criticadas pela literatura histórica ao longo de séculos.

O filho de Pedro Froylaz achava-se revestido de uma auctoridade tal que nos documentos contemporaneos elle figura como igual ou quasi igual da infanta-rainha. Elevado á categoria de conde, entregues á sua administração immediata os districtos do Porto e Coimbra, os principaes dos estados de D. Theresa, e obcecada esta por uma paixão, segundo parece, violenta, é natural que Fernando Peres obtivesse, até, a supremacia sobre os outros condes ou tenentes do resto do paiz.248

Outra questão primaz envolvendo D. Teresa, e talvez a mais importante de todas elas, posto que derradeira, foi a grande disputa com seu filho Affonso Henriques pelo domínio das terras portuguesas. Essa querela é apresentada por Alexandre Herculano não como uma simples disputa de poder entre mãe e filho, mas como sendo uma conspiração política dos barões portugueses em protesto a Fernando Peres. Sendo assim, a batalha de S. Mamede, que tirara o poder das mãos de D. Teresa, fora para Herculano, um plano arquitetado desde a autocoroação de Affonso Henriques aos 14 anos de idade, da forma como faziam os antigos reis independentes.

246 Ibidem, p. 61-62. 247 De acordo com Herculano e ressaltando o caráter guerreiro da rainha, a relação entre ela e o conde de Trava teria iniciado nos campos de batalha: “Theresa, affeita á dura vida dos campos, talvez o acompanhava nesta guerra. Ahi, no meio das fadigas e riscos dos combates, despontaria essa affeição entre Fernando de Trava e D. Theresa que tão notavel se tornou annos depois e que veio a produzir em Portugal scenas analogas ás que se representavam então na Galliza.” HERCULANO, op. cit., p.83. 248 Ibidem, p. 110.

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... De feito, esta, tendo marchado para Guimarães com as tropas dos fidalgos gallegos e dos portugueses seus partidários, ahi se encontrou com o exercito do infante no campo de S. Mamede juncto daquella povoação. Foi desbaratada D. Theresa e fugiu: nesta fuga, porém, perseguida pelo filho, ficou prisioneira com muitos dos seus. A tradição refere que Affonso Henriques a lançara carregada de cadeias no castello de Lanhoso. Não desdiz essa tradição dos costumes ferozes do tempo; mas desdiz dos monumentos coevos, que não a auctorisam. O que é certo é que num só dia de combate o poder supremo, que o moço principe tanto ambicionava lhe caíra nas mãos.249

A derrota de D. Teresa é referida um tanto suscintamente nas últimas páginas do primeiro livro da História de Portugal. Apesar de ser um dos acontecimentos chave para o estabelecimento do reino português, Herculano não gasta tanto tempo narrando o episódio, como poderíamos esperar dada a proeminência do evento. Sabemos apenas que a rainha de Portugal, ao marchar juntamente com seus fidalgos e partidários para Guimarães, encontrou o exército de seu filho no campo de São Mamede onde a batalha de fato ocorreu. Tendo perdido a disputa tentou fugir, mas teria sido capturada e feita prisioneira por Affonso Henriques. Dado o rigor documental tido pelo historiador ao narrar todos os acontecimentos, podemos cogitar que lhe faltassem as fontes para desenvolver essa narrativa sem se comprometer com possíveis incoerências, ou que de fato, considere todo o desenvolvimento anterior dessa grande contenda como mais importantes do que a batalha final em si. Como ele próprio aponta, de acordo com a tradição, D. Teresa fora lançada “carregada de cadeias” no castelo de Lanhoso, mas isso não pode ser comprovado pelos monumentos, ou seja, não é uma narrativa documentada. Apesar de ser impossibilitado, portanto, de se aprofundar nessa matéria na História de Portugal, encontrou na novela histórica, a possibilidade de deixar a erudição documental em segundo plano e abraçar a tradição ao romantizar os últimos dias da rainha no trono de Portugal.250 De acordo com Maria de Fátima Marinho, o relato de Herculano sobre a prisão de D. Teresa, já apresentado no capítulo anterior, demonstra o aproveitamento feito pelo autor de um acontecimento histórico referenciado, mas que da forma como é narrado, aproxima-se por vezes, dos romances de terror.251 Podemos notar assim que, não obstante o interesse com que D. Teresa é retratada na História de Portugal, Herculano lhe reserva também um lugar de destaque na literatura,

249 Ibidem, p. 128-129. 250 Ver discussão já apresentada nas páginas 5 e 6 do capítulo anterior. 251 MARINHO, op. cit., p. 166.

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sobretudo, em O Bobo. Nessa obra, apesar das personagens centrais serem fictícias, o autor recria figuras históricas insuflando-lhes emoções e sentimentos. No entanto, é necessário salientar que, mesmo no texto literário, a imagem de D. Teresa também aparece maculada pelo envolvimento amoroso com Fernando Peres. Dessa forma, compreendemos melhor a relação existente entre a História de Portugal e as narrativas histórico-literárias publicadas quase que ao mesmo tempo. Temos na narrativa e construção da personagem de D. Teresa na obra histórica e na obra literária, uma forma de observar o trabalho de um mesmo autor, que hora é designado como historiador e hora como romancista. A força e preponderância de D. Teresa na formação da nação portuguesa aparecem nos dois formatos, no entanto, o romance permite uma maior ficcionalização de seus trejeitos, atitudes, sentimentos e mesmo falas ao interagir com personagens puramente inventadas. Nesse sentido, vemos em O Bobo, uma mulher carinhosa que ama sua protegida Dulce, de quem cuida inclusive em questões de matrimônio.

Pouco a pouco D. Thereza lhe ganhou amor de mãi. Até os vinte annos, que já Dulce contava, este amor não afrouxára, nem no meio dos graves cuidados que cercaram a infanta nos primeiros tempos da sua viuvez, nem com a louca affeição do conde Fernão Perez. As esperanças que a donzella dera se haviam inteiramente realisado. Dulce era um anjo de bondade e de formosura.252

Alexandre Herculano adota uma postura ambígua. Apesar de, em diversos momentos, apresentar algumas ações equivocadas de D. Teresa, elas podem ser compreendidas e mesmo desculpadas pelo que considera serem atitudes tipicamente femininas, como já citamos. Percebemos assim, um padrão narrativo que pode ser encontrado tanto na História de Portugal quanto em O Bobo. No entanto, ao final do primeiro livro da História de Portugal, o historiador faz um esforço sincero para reabilitar a imagem da infanta.

Os escriptores modernos, empenhados em salvar a reputação moral de D. Theresa como mulher, esqueceram-se de lhe fazer justiça como rainha ou regente de Portugal. Tem-se dissertado largamente sobre o seu consorcio com o conde Fernando Peres, que nada nos auctorisa a admitir, emquanto o valor historico do seu governo é perfeitamente desprezado. Todavia, durante quatorze annos os actos da viuva do conde Henrique mostram bem a

252 HERCULANO, A. “O Bobo”. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, Lisboa, n. 58, p. 37-40, 4 de fevereiro de 1843.p. 38.

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perseverança e destreza com que buscou desenvolver e realisar o pensamento de independencia que elle lhe legara. 253

Na obra literária, a redenção de D. Teresa aparece a partir do amor maternal que fica em suspenso quando se trata de seu filho (ele existe, mas não pode ser manifestado), e que acaba se desenvolvendo por sua protegida Dulce254. Essa relação funciona como uma humanização da figura da rainha, visto que a grande questão que se coloca, e um dos motivos por ela ser tão duramente criticada ao longo dos anos, foi ter se voltado contra seu filho ao tomar o partido do conde de Trava. A dualidade de D. Teresa, sendo mãe e amante aparece diversas vezes na novela.

A colera que nessa noite transbordára do coração do conde e a sède implacavel de sangue e de vingança que o devorava fizeram conhecer claramente á rainha que para Affonso Henriquez não havia esperar delle nem paz nem perdão.

Esta certeza avivára, emfim, na sua alma os sentimentos de mãe, sentimentos que já não podiam ser para D. Thereza senão uma nova causa de desventura. Tinha jurado perante os cavalleiros do conde sahir com eles á lide e, quando ousou fallar de reconciliação, o senhor de Trava com palavras de respeito hypocrita e de verdadeiro escarneo lhe recordou a promessa que tão recentemente havia feito. Subjugado pelo predominio infernal, que nelle alcançára Fernão Perez, aquelle pobre coração de mulher, que cria sentir em

253 HERCULANO, op. cit., p.130. 254 As personagens ficcionais que aparecem em O Bobo possuem recebem os ares românticos respirados pelo autor na primeira metade do século XIX. Como ressaltado por Fernando Moreirra: “As principais personagens dos romances de Herculano são como que encarnações dotadas de forças sobre-humanas, anjos ou diabos, consagrados a uma obra de maldição ou de santificação: (…) caso de Dulce, n‟O Bobo, que consegue ser duas vezes santa, uma pelo amor imaculado (que é uma forma romântica de santificação) que dedica a um cavaleiro, outra pela perfeita fidelidade, em vida e na morte, a outro cavaleiro, quem a ligam os laços também santos do matrimónio”. LOPES, Óscar; SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1979. Apud: MOREIRA, Fernando. “O Bobo, de Alexandre Herculano ou a busca incessante da identidade”. In: OLIVEIRA, A. (org,). Diálogos Lusófonos: literatura e cinema. Braga, Portugal: Centro de Estudos em Letras – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2008. p. 132. Essa intensidade de sentimentos acaba por se refletir também nas personagens históricas. D. Teresa, em, por exemplo, além de ser apresentada na magnificência de suas vestimentas reais, tem seu sentimentos de mulher, mãe e amante intensificados para sustentar o desenvolvimento romanesco. Ver a passagem a seguir:“Mas a sua viúva, a bastarda de Afonso 6 , era digna do ambicioso e ousado borgonhez. A leôa defendeu o antro, onde já não se ouvia o rugido de seu fero senhor, com a mesma energia e esforço, de que elle lhe dera tão repetidos exemplos. Durante quinze annos luctou por conservar intacta a independencia da terra que lhe chamava rainha, e quando o seu filho lhe tirou das mãos a herança paterna, só havia um anno que a altiva dona dobrára, até certo ponto, a cerviz á fortuna do jovem heroe Affonso Raimundez. Mas esta pedra preciosa, arrancada á força da coroa leoneza, nunca mais devia tornar a engastar-se nella”. HERCULANO, A. “O Bobo”. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, Lisboa, n. 55, p. 10-12, 14 de janeiro de 1843. p. 11.

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si os brios de um coração d‟homem, sabia apenas despedaçar-se n‟uma contínua alternativa de affectos. Temendo que as suas palavras revelassem ao mensageiro do infante a fraqueza materna, o filho de Pedro Froylaz lhe prohibíra o escuta-lo, reservando para si o regeitar todas as proposições que não fossem as de completa obediencia.255

Alexandre Herculano encerra a participação de D. Teresa em sua obra histórica ao final do primeiro livro. O historiador procura apresentar uma visão complacente dos atos da rainha ao longo dos anos:

Cedendo á força das circumstancias, não duvidava de reconhecer a supremacia da corte de Leão para obter a paz quando della carecia, salvo o recusar a obediencia quando cria possivel resistir. Associando-se habilmente aos bandos civis que despedaçavam a monarchia leonesa, ía creando no meio della para si e para os seus uma patria.256

O castigo de um erro, que, medido pelos costumes do tempo, estava longe de ser imperdoavel, parece-nos demasiado severo, e o procedimento dos barões portugueses para com ella merecerá dos desprevenidos a imputação de ingrato. D. Theresa foi victima de um sentimento nobre em si, mas ás vezes excessivo e cego, que ella tinha feito crescer, radicar-se, definir-se e que serviu de pretexto de rebeldia á ambição de Affonso Henriques, ou antes á daqueles que por meio do inexperiente principe esperavam melhor satisfazê- la. Este sentimento era o da nacionalidade.257

A partir dessa visão, a nação ou, mais ainda, a pátria dos portugueses, não fora criada no momento da separação de Portugal dos reinos de Leão e Castela, oficializada por Affonso Henriques. Na concepção do historiador, ela fora fruto de longos anos de desditas, estratégias e batalhas, que remetem ao conde Henrique de Portugal, mas, sobretudo, à D. Teresa, que a partir dessa colocação de Herculano, surge como figura central e inconteste da formação do reino e do sentimento de pertencimento dos portugueses ligados ao ideal de nação, que importava tanto a Alexandre Herculano conseguir resgatar. D. Teresa acaba, portanto, personificando o próprio início de Portugal, e se torna um ponto chave dessa historiografia tão cara ao autor e que emerge no meio de tantos problemas iniciais, mas com ferrenho intento de obter êxito e emergir no meio das dificuldades latentes. Nesse sentido

255 HERCULANO, A. “O Bobo”. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, Lisboa, n. 79, p. 202-206, 1 de julho de 1843. n. 79, p. 202. 256 HERCULANO, op. cit., p. 130-132. 257 Ibidem, p. 132.

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ainda, as atitudes de D. Teresa que foram, por muito tempo, consideradas como errôneas, são de certa forma perdoáveis tento em vista o bem maior: a formação e segurança de Portugal.

3.3. Os antagonistas – Diogo Gelmires e Fernando Peres De Trava

Se Herculano apela à nossa simpatia ao retratar D. Teresa, o mesmo não acontece com as personagens pelas quais ele próprio nutre um sentimento de antipatia. Nada melhor, portanto, do que dois homens extremamente controversos que tiveram importantes papéis nas relações políticas e sociais desse tempo: Diogo Gelmires, o prelado de Compostela e Fernando Peres, conde de Trava. Para seguir o caminho da análise, tratando dos eventos em torno da Batalha de São Mamede e mais intimamente relacionados à D. Teresa, abordaremos primeiramente a figura de Fernando Peres, que, como dissemos anteriormente, é invariavelmente referido como o amante da rainha. No entanto, vale ressaltar, que as atitudes de D. Teresa giram constantemente também em torno de Diogo Gelmires. Existe um contraste muito grande na forma como Herculano apresenta o conde de Trava na História de Portugal e em O Bobo. Na obra histórica, ele não aparece de forma tão preponderante, nem seus atos são tão questionáveis, é mesmo uma personagem secundária. Já no obra literária, Herculano “carrega as tintas” na hora de retratá-lo, transformando-o em um grande vilão interesseiro e violento. Se na História de Portugal, Herculano acaba por relativamente se abster de críticas em relação aos atos do conde, em O Bobo ele constrói uma personagem baseando-se em uma série de julgamentos próprios que nos transmitem a ideia de uma pessoa completamente odiável e que acaba por não conquistar a simpatia do leitor. Nesse sentido, Maria de Fátima Marinho ressalta a habilidade de Herculano em manipular as opiniões de seus leitores sobre as personagens referenciais, que já fazem parte do imaginário popular. O conde de Trava, por exemplo, não recebe o “benefício da dúvida” como D. Teresa, que não poderia ser descrita de forma demasiado negativa por ser a mãe do primeiro rei de Portugal: “... a ambiguidade de que se reveste esta personagem destina-se a retirar-lhe o ferrete da ignomínia que o Conde terá de suportar sozinho.”258 Já o conde foi

258 MARINHO, op. cit., p.172.

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um companheiro e um líder ilegítimos. Governou ao lado de D. Teresa sobre um reino que não lhe pertencia e esteve, assim, sempre cercado por uma série de maledicências. De forma distinta, na obra histórica, Diogo Gelmires não recebe o mesmo tratamento de indiferença que é dedicado a Fernando Peres. Muito pelo contrário, se em O Bobo podemos considerar o conde de Trava como o grande vilão dentre as personagens referenciais, no primeiro livro da História de Portugal esse posto é ocupado por Diogo Gelmires, o “Mephistopheles sacerdotal, cujo caracter é assás negro para ainda sobresair no quadro da anarchia e dos crimes que despedaçavam o seio da monarchia leonesa”.259 Como Mefistófeles, Gelmires seria a encarnação do mal principiada a partir da dualidade entre a figura demoniaca e sacerdotal.

Ainda durante o anno de 1116 o conde de Trava e o seu pupilo se haviam reconciliado com a rainha por diligencia de Gelmires, que, odiado do povo, constrangido a guerrear o conde, seu occulto alliado, e temido por D. Urraca, só assim podia saír de situação difficultosa em que a final o tinha collocado a dobrez e a perfídia do seu caracter.260

Ainda também, em diversas passagens, como as que apresentamos a seguir, Diogo Gelmires é retratado como uma das pessoas mais vis que rondaram a história portuguesa: “... entre sombras, o façanhoso Gelmires” (...) “Este homem, cuja vaidade era igual á sua cubiça, desejava ardentemente ver elevada a Sé de Sanctiago á categoria metropolitana”. 261 A animosidade de Herculano em relação a Gelmires pode ser vista também como uma prefiguração de toda a questão que se desenvolveu entre o historiador e o clero português, que deram origem a textos como A História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portuga, publicado em 1854. A crítica feita em relação à corrupção eclesiástica aparece também em diversos trabalhos posteriores do autor.

Capitaneando forças avultadas, cuja falta necessariamente devia embargar a continuação da guerra, este homem que, para segurar no rosto a mascara hypocrita de uma fidelidade em que a propria rainha não cria e da qual elle pedira ao papa o absolvesse, não duvidara combater os seus mais intimos alliados, nem destruir-lhes os castellos e propriedades; este homem vingativo e cruel sentiu um subito horror das atrocidades commettidas no territorio

259 HERCULANO, op. cit., p.96. 260 Ibidem, p.86-87. 261 Ibidem, p.92.

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português e um desejo invencivel de voltar ao exercicio de suas funcções episcopaes...262

É provavel que neste apuro a rainha preferisse congraçar-se com a irman a deixar impune aquelle homem desleal e hypocrita, contra o qual sentira odio tanto mais violento, quanto se vira por longo tempo obrigada a reprimi-lo e a disfarçá-lo.263

Maria de Fátima Marinho ressalta a habilidade de Herculano em construir um discurso capaz de moldar a opinião de seu leitor. E isso pode ser percebido nas próprias palavras que caracterizam suas personagens. No caso de Diogo Gelmires: façanhoso, vil, perfídia de caráter, o Mefistófeles, desleal, hipócrita. Não são palavras escolhidas ao acaso, elas refletem a própria opinião do autor, que acaba por indicar uma versão “correta” da interpretação histórica, deixando poucas margens para o julgamento do leitor.264

3.4. Afonso Henriques e a figura do herói

Se ao tratarmos das personalidades anteriores abordamos questões sobre a Rainha D. Teresa, amante e mãe, e sobre os controversos Conde de Trava e Diogo Gelmires, espécie de vilões dessa gênese da história portuguesa, abordaremos, por fim, uma figura completamente distinta, posto que considerada herói nacional inconteste: Affonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Affonso Henriques é citado no primeiro livro inicialmente com a idade de 14 anos e em seguida com 17 anos. Como afirma Herculano, poucas informações confiáveis existem sobre o início de sua vida, que é muito mais rica em lendas populares. Para explicar tal situação, Herculano faz um paralelo com os primeiros anos de vida de outros grandes fundadores de monarquias como Arthur ou Carlos Magno que, por não existirem informações disponíveis, se tornaram objetos de uma série de lendas e fatos inventados e maravilhosos para preencher essas lacunas. No entanto, ao mesmo tempo em que o historiador reclama dos “dourados sonhos que uma erudição mais patriotica e piedosa que illustrada recolheu e

262 HERCULANO, op. cit., p.99. 263 Ibidem, p.102. 264 MARINHO, op. cit., p. 175.

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perpetuou”, ele próprio acaba por elevar a importância de Affonso Henriques ao compará-lo com Carlos Magno ou Arthur. O esforço feito por Herculano, nesse caso, esteve em apresentar uma visão mais crítica e racional sobre a formação do reino português, deixando de lado as versões falaciosas e míticas tentando, como afirma, tirar de Affonso Henriques a aura sobrenatural e maravilhosa com a qual a tradição popular o havia honrado ao longo dos anos265. Note-se que seu objetivo não é negar ao fundador da monarquia portuguesa as honras e os méritos de seus feitos, mas observá-lo sob a ótica da história contemporânea. A própria auto-sagração de Affonso Henriques como cavaleiro, aos 14 anos, seguindo os costumes dos reis da Hespanha266, é de certa forma desmistificada tornando-se não ato isolado de força e virtude, mas parte de um grande arranjo dos barões portugueses para derrubar o poderio do conde de Trava.

Affonso Henriques, tomando grau de cavalleiro pela fórma que usavam os principes independentes e numa idade em que a espada era para elle um vão ornato, prestou-se em nosso entender a uma farça dos conjurados, que com esse acto queriam lavrar uma especie de protesto, não contra o dominio leonês, mas contra o de Fernando Peres, a quem, segundo se vê das subscripções dos diplomas desse tempo, elle era inferior na consideração da corte de sua mãe, que o ía affastando inteiramente dos negocios do estado.267

A figuração de Affonso Henriques é elaborada, portanto, observando-se exatamente a descrição documental encontrada na Crônica dos Gôdos:

Tal era a situação politica do paiz. Affonso Henriques, o moço cavalleiro, chegara á idade de dezesete annos. Era elle, segundo o testemunho de um seu contemporaneo, destro nas armas, eloquente, cauteloso e de claro engenho. Ajunctava a estes dotes, que devemos suppôr exaggerados por se attribuirem a tão curta idade, a nobreza da figura e a belleza do rosto.268

265 “Temo-nos até aqui abstido de falar em Affonso Henriques, ácerca de cuja infancia não faltam curiosas lendas nos nossos livros historicos. Como a de Carlos Magno ou de Arthur; como a de quasi todos os fundadores de antigas monarchias, a sua vida foi desde o berço povoada de maravilhas e milagres pela tradição popular.” HERCULANO, op. cit., p. 112-113. 266 “Na cathedral daquella cidade, no sacnto dia de Pentecostes, elle proprio foi tirar as armas de cavalleiro de cima do altar de S. Salvador e juncto delle vestiu a loriga e cingiu o cinto militar, segundo o costume dos reis.” HERCULANO, op. cit. p. 114. 267 Ibidem, p. 121. 268 Ibidem, p. 125-126.

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As qualidades apresentadas são postas pelo autor como possivelmente exageradas devido a pouca idade do futuro rei de Portugal, mas refletem o esperado de qualquer grande monarca: destro nas armas (ou seja, um bom guerreiro), eloquente, cauteloso e claro de engenho (a clareza de pensamento traria a ideia de racionalidade). E sua constituição física: figura nobre e rosto belo. Nada mais é necessário para a criação da imagem de um grande rei. Além disso, ele seria também, nobre e não vingativo: “Affonso Henriques não quiz ou não ousou aproveitar-se das vantagens obtidas para se vingar de sua mãe e do conde, contentando-se com expulsá-los de Portugal”.269

“O mancebo – diz um escriptor desse tempo – sabia a arte de reinar, e todavia, possuido de ardente amor de gloria, como a fragil canna facilmente se inclinava para onde quer que o sopro das auras o levava”. Cubiçoso de renome, valente, sem affeições profundas e duradouras, elle não houvera sido, talvez, apesar da sua aptidão para dirigir os negocios, um dos principes mais apropriados para tempos tranquillos; mas era-o para esta epocha, em que o enthusiasmo, o esforço, a ambição e, até, o desprezo de certas considerações da ordem moral se tornavam necessarios para pôr o remate ao edificio que este paiz ía laboriosamente construindo, o edificio da sua independencia.270

Affonso Henriques não apenas reunia todas as qualidades de um bom rei, mas também sabia reinar. Qualidade importante e apresentada como nata ao grande rei. Como aponta Herculano, talvez este não fosse o melhor dos reis para tempos de paz, mas sua valentia, cobiça, glória e até um certo desprezo por algumas questões morais, o tornaram um líder perfeito para o momento de lutas e afirmação da monarquia portuguesa em seus primeiros anos.

269 Ibidem, p. 129. 270 Ibidem, p. 143.

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CONCLUSÃO

Affonso Henriques aparece na grande obra com o intuito de coroar a independência de Portugal. Todo o enredo construído antes de seu surgimento levam ao desenlace na batalha de Batalha de S. Mamede. Assim, o desvelar da nação portuguesa não tem início com o primeiro rei português, já que seus pais tiveram uma responsabilidade inigualável na constituição do reino e, de acordo com Herculano, também os barões portugueses, cada um desempenhando seu papel num imenso jogo de interesses e paixões. Além disso, Herculano apresenta a independência de Portugal não como obra de um rei herói, mas fruto de um longo processo que envolveu diversos personagens não só do condado portucalense, mas também das outras monarquias espanholas. Podemos citar, por exemplo, as disputas entre D. Teresa e seu sobrinho Affonso VII, rei de Leão, que subjugaram o condado de Portugal pouco tempo antes da batalha que garantiria a sua independência. Dessa forma, uma das grandes preocupações de Alexandre Herculano em seus trabalhos foi abordar o nascimento da identidade nacional portuguesa, e para isso estabeleceu como marco inicial, a independência de Portugal das coroas espanholas. Nesse sentido, ele teria sido um dos primeiros autores a apontar o enfrentamento entre D. Teresa e Affonso Henriques na Batalha de São Mamede como sendo o acontecimento fundador de Portugal.271 A partir ainda da contraposição do primeiro livro da História de Portugal com a novela O Bobo, percebemos que a preocupação com a formação da identidade nacional dos portugueses é abordada tanto na história quanto no romance. Essa fase conturbada da gênese de Portugal é recriada na novela através de uma série de intrigas da aristocracia nacional que são representadas a partir de diversas cenas em que o autor recria as festas, as reuniões, o comportamento e o vestuário das personagens, além de todos os preparativos que levaram à guerra. Como ressalta Fernando Alberto Torres Moreira:

O castelo de Guimarães foi o local simbolicamente escolhido e nele ocorrem diabólicas intrigas políticas e paixões insustentáveis em ambientes recheados de portas secretas, caminhos escusos, traições, como convém a uma estética de filiação romântica. (...) 1128 é a data dos acontecimentos narrados n‟O Bobo, da batalha de S. Mamede que inaugura, na prática, aquilo que viria, em 1143, a ser declarado formalmente: a independência de Portugal. 272

271 CERCHIARI, Candice Q. B. “Contribuições dos cancioneiros satíricos galego-portugueses aos estudos da Idade Média Ibérica” in: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH . São Paulo, julho 2011, p. 2. 272 MOREIRA, Fernando. “O Bobo, de Alexandre Herculano ou a busca incessante da identidade”. In: Diálogos Lusófonos: literatura e cinema. Braga, Portugal: Centro de Estudos em Letras – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, março de 208, p. 132-133.

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A que seria a batalha mais importante da história do início do reino é, no entanto, abordada na História de Portugal de forma muito breve e simplificada. Sem abrir mão dos documentos que o apoiaram, Herculano nos diz apenas que, no momento do início da rebelião, muito provavelmente D. Teresa não estaria presente, pois a batalha entre mãe e filho acontecera apenas quase três meses depois do início dos conflitos.273

De feito, esta, tendo marchado para Guimarães com as tropas dos fidalgos gallegos e dos portugueses seus partidarios, ahi se encontrou com o exercito do infante no campo de S. Mamede juncto daquella povoação. Foi desbaratada D. Theresa e fugiu: nesta fuga, porém, perseguida pelo filho, ficou prisioneira com muitos dos seus. A tradição refere que Affonso Henriques a lançara carregada de cadeias no castello de Lanhoso. Não desdiz essa tradição dos costumes ferozes do tempo; mas desdiz dos monumentos coevos, que não a auctorisam.274

Diferentemente das outras batalhas que a antecederam, a de S. Mamede não possui nenhum detalhamento narrativo. Herculano não se detém na recriação das estratégias, nos embates ou nos detalhes da conquista. Simplesmente nos anuncia que as tropas se encontraram e D. Teresa, sendo derrotada, tentara inutilmente fugir, mas fora feita prisioneira. A razão mais provável para proceder dessa forma é que lhe teriam faltado informações confiáveis para estender seu relato, por isso finaliza a passagem dizendo: “O que é certo é que num só dia de combate o poder supremo, que o moço príncipe tanto ambicionava, lhe caíra nas mãos.”275 A História de Portugal, da mesma forma como O Bobo e os demais textos que se ocuparam dos anos iniciais da formação de Portugal, foram escritos em um momento em que o país buscava afirmar sua identidade em meio ao caos político e social em que o país se encontrava. Essas obras funcionariam ao mesmo tempo como uma proposta de retorno ao nascimento da nação portuguesa, onde os ideais ainda seriam honestos e a sociedade não havia ainda se corrompido. O nascimento apresenta-se como um momento de grande pureza e ao mesmo tempo abre um leque de possibilidades a serem seguidos dentro das melhores intenções possíveis. Ao mesmo tempo, a História de Portugal torna-se um convite para uma autorreflexão dessa sociedade oitocentista da qual Herculano fazia parte. Nesse sentido, a obra torna-se muito crítica, mas não no sentido apático de recriminações constantes que acaba

273 HERCULANO, op. cit., p. 128-129. 274 HERCULANO, op. cit., p. 128-129. 275 Ibidem.

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propondo apenas o retorno para um passado perfeito e idealizado, pelo contrário, o foco seria o de um autor socialmente atuante e engajado em resoluções práticas.

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131

ANEXO I

Ill.mo e Ex.mo Sñr.

Em conformidade da autorização que me foi concedida por officio de V. Ex.ª de 16 de Maio de 1843 passei a tractar de uma nova troca de livros dobrados com a Biblioteca Real de Berlin, segundo participei a V. Ex.ª em Março do anno próximo passado. Então remeti a essa Vedoria a avaliação authentica dos livros portugueses e castelhanos objetos da dita troca, bem como agora remeto a dos latinos sobre os quaes ainda naquela época não havia recebido resolução definitiva do Bibliothecario de S. M. El Rei de Prussia, Henrique Pertz. Uns e outros foram enviados a Berlin no valor de 170$200 a que montava duas listas. Uma remessa d‟igual valor me foi feita pelo dicto Bibliothecario como V. Ex.° verá da declaração especificada que pelo secretariado da Bibliotheca Real de Berlin me foi expedida. As despesas do transporte tirei-as do saldo que restava da pequena somma que ficara em minha mão da venda para Munich, deduzidas as despesas miúdas das duas biblithecas d‟Ajuda e Necessidades restando um saldo a meu favor de 4$746 reis como V. Ex.ª também verá da conta a este officio juncta. Dos livros encomendados á casa da Viuva Bertrand e Filhos faltam só o 5.° volume da Casa Rustica do seculo 19 o qual acaba agora de ser publicado e a continuação da Historia d‟Hespanha de Rossew-S. Hilaire, bem como da de Lavallée. Desejo que V. Ex.ª me auctorise para completar estas obras accetando as dictas continuações quando chegarem, se assim aprover a S. Magestade. Igual pergunta se me faz acerca das obras remetidas de Berlin, algumas das quaes são tão recentes que ainda não estavam completamente publicadas na ocasião da remessa, e que o conselheiro Pertz tomou sobre si remeter assim mesmo, pelo seu mérito e importância litteraria, avisando-me de que ira guardando as continuações até receber resposta minha, a qual não posso dar negativa o affirmativa sem resolução de S. Mag.ª. Vieram em papel, para evitar direitos, a maior parte dos livros mandados de Berlin e apenas alguns brochados. Estes podem conservar-se assim mesmo; porem aquelloutros ficarão inutilizados em quanto se não mandarem encadernar. Bastará fazer-lhes meias encadernações, e isto é uma despesa tão diminuta, que espero ser para ella auctorisado. Aproveito esta ocasião para recordar a V. Ex.ª o requerimento dos empregados desta Bibliotheca dirigido a S. Mag.ª no mez de Março do anno passado, requerimenro cuja bem fundada justiça então ponderei e que V. Ex.ª reconheceu, rogando agora de novo a V. Ex.ª queira protege-lo com o peso da sua opinião favorável perante S. Mag.ª. Tem decorrido já alguns dias de tempo estio, e ainda até hoje não apareceu ninguém das Obras Publicas para fazer o concerto dos telhados da Bibliotheca da Ajuda, ao passo que andam operários nos telhados do Palacio, e até nos da casa da guarda em frente delle. Cumpro minha obrigação avisando V. Ex.ª desta occorrencia, para que não seja attribuido a descuido meu qualquer damno que possa ocorrer na dicta Bibliotheca. Deos Guarde à V. Ex.ª Ill.mo e Ex.º Sñr D. Manoel de Porgugal e Castro. Real Bibliotheca 13 de Janeiro de 1845. a) A. Herculano.276

276 SANTOS, op. cit., p. 48-49.

132

Ill.mo Ex.mo Sñr.

Tendo sido authorisado por V. Ex.ª em officio de 24 de fevereiro do proximo anno preterido para mandar proceder á enquadernação de muitos volumes remetidos de Alemanha em troca de outros que para lá foram enviados; e isto em consequência de terem vindo em papel para maior facilidade de conducção, tenho a honra de pôr na presença de V. Ex.ª a conta do enquadernador para, na forma do officio de 24 de fevereiro proximo passado pode ser paga esta quantia (Docum, n°1). No supracitado officio me authorisou igualmente V. Ex.ª para mandar vir as continuações de varias obras recentíssimas cujos 1.ºˢ volumes se tinham obtido nas transações anteriormente apuradas. Da primeira verba do Documento n.º2 verá V. Ex.ª que a despesa até agora feita com este objeto não passa de 900 reis pelo 3.º tomo da Historia d‟Hespanha de S-Hilaire. A que pode ocorrer de futuro tambem não deve ser grande porque se limitará a poucas obras francesas como a continuação do Annuaire Historique, do Journal des connaissances utiles, etc. Quanto ás obras allemans espero obter essas continuações a troco de novas negociações de livros dobrados, de que darei ainda conta oppostunamente, evitando-se assim a despesa pecuniária; porque ainda que eu deseje enriquecer do modo possivel o estabelecimento a meu cargo, não desejo menos faze-lo em toda a justa economia da fazenda real. Tendo-me S. M. ElRei ordenado lhe remetesse um Diccionario Hespanhol para outra língua, e não havendo nesta Bibliotheca nem na das Necessidades, senão muito antigo e péssimo, e que lhe seria quase inútil, tomei sobre minha responsabilidade o fazer a acquisição do melhor dicionário Hespanhol-francez que hoje se conhece, e que passei ás mãos do conselheiro Dietz para o apresentar a Sua Magestade. O custo deste livro consta da 2ª. verba do Documento n.º2. Por esta ocasião eu pediria a V. Ex.ª posesse á minha disposição uma pequena somma para despesas miúdas, como tinta, papel, penas, escovas para os livros, etc. de que as Bibliothecas carecem, evitando assim as renovações frequentes de reclamações a essa Vedoria, limitando-se tudo a uma conta anual, e bastando talvez para esse decurso de tempo, por um calculo aproximado, de uma moeda a moeda e meia, e ainda tanto por causa do muito papel que necessariamente se consomme na extracção de bilhetes para o catalogo dos Manuscriptos da Bibliotheca da Ajuda. Manuscriptos que pela sua natureza, mais de collecções de documentos, que de codices, exige um catalogo extenso e volumoso.

Deus guarde a V. Ex.ª

Ajuda 9 de fevereiro de 1846. Ill. º e Ex. º Sr. D. Manuel de Portugal e Castro. a) A. Herculano.277

277 SANTOS, op. cit., p. 51-52.

133

ANEXO II

Citações no primeiro livro da História de Portugal

Abdel-halim. Hist. dos Sober. Mahom., p. 178. Acenheiro, Coronyqua dos Reis de portug., c. 2. Acenheiro: Chron. dos Reys de Port., c. 2. Achery. Spicilegium, t. 3, p. 418. Aguirre Concil. Hisp., t. 5, p. 26. Aguirre, Collect. Max. Concilior. Hisp., t. 3, p. 34. Al-makkari, Versão de Gayangos, vol. 2, p. 503. Arch. Nac., Gav. I, M. 7, n°6.

Annaes Compostellanos na Esp. Sagr., t. 23, p. 321. Annal. Tol., I, Esp. Sagr., t. 23, p. 387. Annales Toled. I na Esp. Sagr., t. 21, p. 386. Annales Toled. I na Esp. Sagr., t. 21, p. 386. Annales Toled. I na Esp. Sagr., t. 23, p. 386. Annales Toled. Na Esp. Sag. T. 23, p. 403. Annales Toledanos I na Esp. Sag., t. 23, p. 385. Chron. Compostell. na Esp. Sagr., t, 20, p. 611. Esp. Sagr. T. 17, p. 84. Esp. Sagr., t. 17, p. 81 e t. 22, p. 256 e 258 Esp. Sagr., t. 17, p. 83 e t. 22, app. 4 e 5. Esp. Sagr., t. 21, pag. 348. Esp. Sagr., t. 23, p. 314. Esp. Sagr., t. 26, p. 304. Esp. Sagr., t. 38, p. 347, e t. 36, app. 43. Flores, Esp. Sagr., t. 21, p. 56 e segg..

Chronica 1ª de Sahagun, Appendice I, p. 306 e 21 em Escalona, Historia del Monasterio de Sahagun, Appendice 1, p. 306. Consulte-se o erudito Berganza, Antiguidades de España, T. 2, p. 5. Escalona, Hist. de Sahag. App. III, Docum. 133 e 134. História de Sahagun, esciptura 138, apêndice III, fevereiro de 1104. Anonymo de Sahagun, c. 15. Anonymo de Sahagun, c. 17. Anonymo de Sahagun, c. 17e 20. Anonymo de Sahagun, c. 21. Anonymo de Sahagun, c. 21. Anonymo de Sahagun, c. 21. Anonymo de Sahagun, c. 21. Anon. De Sahag., c. 21. Anon. De Sahag., c. 21. Anon. De Sahag., c. 21. Anon. De Sahag., c. 21.

134

Anon. De Sahag., c. 21 e c. 23. Anon. De Sahag., c. 27 ad finem. Anon. De Sahag., c. 29. Anon. De Sahag., c. 29. Anon. De Sahag., c. 29. Anon. De Sahag., c. 30. Anon. De Sahag., c. 29. Anon. De Sahag., c. 29.

Art de vérif. Les dates, t. 2, p. 20 e 21 (ediç. De 1818). Art de vérifier les Dates, t. 3, p. 2, p. 14 (ediç. de 1818). Art de vérifier les Dates, t. 3, p. 2, p. 14, col. 2.

Berganza, Antiguidades de España, T. 2, p. 5. Berganza, Antguedades t.2, p.7.

Bernard. Vita B. Geraldi, c. 8 em Baluz. Micell., t. 3, p. 185. Bern. Vita B. Giraldi, c.5.

Barbosa, Catal. Das Rainhas de Portugal, p. 46 e segg..

Chron. Adef. Imper., l. I, 2. Chron. Adef. Imperat., L. I, 2. Chronica Adefonsi Imper,, L. I, c. I. Chron. del rey en Pedro de Arago, L. 2, c. 9, etc. Chron. Lamec. ad. aer. 1155. Chron. Lamec.: era 1154. Chron. Lusit. Chron. Lusit.: era 1155. Chron. Conimbric. Chronica Benedictina de Yepes, n. 12 no App. do 7º vol. Chronica de Fleury. Colecção de Concílios de Mansi (Veneza 1776), t. 21, p. 133. Colleccion de Fueros y Cartas Pueblas por la R. Academia de Historia, catalogo, pag. 32: Madrid, 1852. Colleccion de privileg. De la Corona de Castilla, t. 5, p. 28. Conde, p. 3, c. 22 e 23. Conde, p. 3, c. 25. Conde, p. 3, c. 25. Conde, p. 3, c. 25. Cunha, Hist. eccles. De Braga, p. 2, c. II, 4. Muntaner, Chron. del rey D. James primer, c. 297.

Ducange, verbo Arma, Miles e Capentier v. Milittia.

Anonym. Floriac. em Duchesne, t. 4, p. 96.

135

Anonymus Floriacensis, em Duchesne, Hist. Francor. Scriptores, t. 4. Duchesne, Hist. Cardinal. Francor. Cit. Por Baluz, Vita Mauritii Burdini (Miscell., t.3, p. 476). D. Ribeiro de Macedo, Nascimento e Genealogia do Conde Henrique, p. 89. Ribeiro, Dissert. Chronologicas e Criticas, T. 4, P. I, p. 20 a 31. Diss.Chron., T. 4 P. I, p. 31. Dissert, Chronol. T. 3, p. 1, p. 55 e 56. Dissert. Chronol., T, 4, P. I, p. 29. Dissert. Chronol., t. 3, p. I, p. 35. Dissert. Chronol., t. 3, p. I, p. 35. Dissert. Chronol., t. 3, p. I, p. 42, n° 126 e segg.. Dissert. Chronol., t. 3, p.I, p. 45 e 49. Dissert. Crhonol., t.3, p. I, p. 39, n°115. Idem, T. 3. J. P. Ribeiro, Dissert. Chronol., . 3, p. I. p. 45. Chronicon Lamenence nas Dissert. Chronol., t. 4, p. I, p. 174. J. P. Ribero, Dissert. Chronol., t. I, p. 174. Dissert. Cronol., t. 3, p. I, p. 45, n° 136. Dissert. Chronol., t. I, p. 149 e segg. E t. 5, p. 180. Dissert. Chronol. T. I, p. 156 e segg.., t. 3, p. I, p. 30 a 90, t. 4, p. I, p. 158 e 159. Dissert. Chronol., t. I, p. 245. Dissert. Chronol., t. I, p. 62, nota 4. J. P. Ribeiro, dissert. Chronol., t. 3, p. I, p. 65 e 66. Dissert. Chron., t. 3, p. I, p. 73. Dissert. Chronol., t. 3, p. I, n° 209 e segg..

Doação à Sé de Braga (maio de 1128) no Elucidario, t. 2, p. 352.

Estaço, Var. Ant., c. 12.

Flores, Reynas Cathol., t. I, p. 237. Flores, Reynas Catholicas, t. I, p. 231 e segg.. Flores, Reynas Cathol., t. I, p. 267. Flores, R. Cath., t. 2, p. 267.

Galvão, Chron. d‟el-rey d. Affonso Henriques, cap. 6. Galvão, Chronica d‟elrei D. Aff. Henriques, c. 4. Gayangos, versão de Al-makkari, vol. 2. Appendice C., p. 43. Estractos do Kitábu-l-iktifá. Gibbon, Decline and Fall of the Rom. Empire, c. 58,59, 60.

Hallam, europeu in Middle Ages, c. I, P. I.

Bulla de Pascoal II (1109) na Hist. Compostell., L. I, c. 39. Hist. compost, l. I, c. 64, 2 e L. I, c. 48. Hist. Compost. , L. I, c. 48 e c. 64, 2.

136

Hist. Compost., l. I, c. 64 e segg. Hist. Compostel., l. I, c. 64 , 2 e 3, c. 79, 5. Hist. Compostel., L. I, c. 64. Hist. Compostell., l. I, c. 27. Historia Compostellana, l. I, c. 64. Hist. Compostell., l. I, c. 68, 2. Historia Compostellana. Hist. Compostell., L. I, c. 73. Hist. Compostell., L. I, c. 73. Hist. Compostell., L. I, c. 73, 4. Hist. Compostell., L. I, c. 79. Hist. Compostell., L. I, c. 80. Hist. Compostell., L. I, c. 80. Hist. Compostell., L. I, c. 74 e segg. E c. 83 a 90. Hist. compost., L. I, passim. Hist.. compostell. L. I, c. 82. Hist.. compostell. passim. Hist.. compostell. L. I, c. 85, 87 e segg.. Hist.. compostell. L. I, c. 102. Hist.. compostell. L. I, c. 103 e l. 2, c.23. Hist.. compostell. L. I, c. 107 a 110 e c. III. Hist.. compostell. L. I, c. III, 3. Hist.. compostell. L. 2, c. 40 (1121). Hist.. compostell. L. 2, c.13, 2. Hist.. compostell. L. I, c. 117. Hist.. compostell. L. 2, c. 16 e segg.. Hist.. compostell. L. 2, c. 51, 2. Hist.. compostell. L. 2, c. 40. Hist.. compostell. L. 2, c. 51. Hist.. compostell. L. 2, c. 40. Hist.. compostell. L. 2, c. 40, 41, 42 e 51. Hist.. compostell. L. 2, c. 42, 1 e 2. Hist.. compostell. L. 2, c. 42, 7. Hist.. compostell. L. 2, c. 49, 3. Hist. Compostell. L. 2, c. 85. Hist. Compostell. L. 2, c. 52. Hist. Compostell. L. 2, c. 64, 2. Hist. Compostell. L. 2, c. 85 e 86. Hist. Compostell. Hist. Compost., L. 2, c. 85, I. Hist. Compostell.

Hist. de Malta, t. I, p. 17. Hist. Eccles., I, 13. Liv. Velho das Linhag. Na Hist. Geneal., Provas, t. I.

137

Kopke, Apontam. Archeol., p. 28.

Liv. Preto, f. 213 v. Liv. Preto, f. 28. Liv. Preto, f. 38. Livro Preto da Sé de Coimbra, f.10, 11 e 21. Livro Preto, f. 40. Liv. Preto, f.7. Livro Preto, f. 9 v, e f. 239. Liv. Preto, f. 234. Liv. Preto, f. 135. Liv. Preto, f. 239 v. Livr. Preto, f. 85. Livro preto, f. 85. Liv. Preto, f. 163, 223 e 245. Livro Preto, f. 2 e 1485 v. Liv. Preto, f. 126.

Lucas de Tuy. Lucas de Tuy, Chron. Mundi na Hisp. Illustr.,t. 4, p. 103.

Liv. Das Linhag. Attribuido ao C. D. Pedro, Tit. 21 e 40.

A Chron. Gothor., na Mon. Lus., t. 4, f. 272 v. Chron. Goth. ad. aer. 1147. Chron. Gothor. Chron. Gothor. Chron. Gothor. Chron. Gothor. ad aer. 1163 e 1166. Chron. Gothor. ad aer. 1163. Chron. Gothor. ad. aer. 1163. Chron. Gothor. ad. aer. 1166. Chron. Gothor. Era 1131, na Mon. Lusit., L. 8, c. 7. Chron. Gothor., ad aer. Chronica Gothorum era 1109, no Appendice da 3ª parte da Monarchia Lusitana. (e Introdução, Divis. III). Doc. D‟arouca, na Mon. Luzit., p. 3. Ap. Escrit. n 12. Doc. De Pedroso, em Brandão, Mon. Lusit., l. 9, c. 19. Liv. dos Testam. de Santa Cruz, na Mon. Lusit., p. 3, App. escrit. 15. Mon. Lus., p. 3, l. 9. C. 2. Mon. Lusit., l. 8, c. 15. Mon. Lusit., L.8, c. 22. Monarchia Lusitana Salvatus, Vita S. Martini Sauriensis, na Mon. Lusit., p. 3, f. 287.

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Salvatus,ibid.

S. Luiz, Mem. Do C. D. Henrique, nas Mem. da Acad., t. 12, p. 49. Mem. Da Acad, t. 4, p.2, p. 147. Chronicas Portug. Nas Mem. da Acad., t. 11, p. 2, p. 31-32. Memor. Sobre a origem e limites de Portugal (Mem. Da Acad., T.12), Art. 2 e 3. Mem. da acad., t. 12, p. 2. Liber Fidei, f. 54 v., nas Mem. da Acad., t, 13, p. I.

Mem. sobrea a orgem de nome e limites de Port., p. 43 e 44.

Mondejar, Orig. y Ascend. Del princ.. D. Ramon. Foral de Todela, referido por Moret, em Pagi, Crit. Annal. Baronii, t. 10, pç 580. Mabillon, De Re Ciplomat., l. 2, c. 20. Michaud, Histoire des Croisades, T. I e 2.

Nobiliario atribuído ao conde D. Pedro, tit. 7. Nobiliario atrib. Ao C. D. Pedro, tit. 7.

Rod. Tolet. L. 6, c.32 (?) ad fin. Rod. Tolet., l. 6, c. 33. Rod. Tolet., l. 7, c. 5. E l. 8, c. 34. Rod. Tolet., l. 9, c. I. e c. 2. Roder. Tolet., De Reb. Hisp., l. 6, c. 34, e l. 7, c. I e 2. Roder. Tolet., l. 6, c. 34. Rodrigo de Toledo. Rudericus Tolentanus, De Rebus Hispaniae, L. 6, c. 29. Rod. Tolet., l. 7, c. 2. Roder. Tolet., l. 9, c. 10.

Rodrigo Ximenes Romey

Pelagius ovetensis, Chronicon, p. 5 (ediç. De Sandoval). Bezerro d‟astorga, f. 79, citado por Sandoval, Cinco reyes, f. 94, col. I. Sandoval, Cinco Reyes, f. 91 v. Sandoval, Cinco Reyes, f. 94 e 96. Sandoval, Cinco reyes, f. 94 e 96. Sandoval, Cinco Reyes, p. 123.

Salazar de Castro. Hist. de la casa de Lara: passim.

Salvatus, Vita S. Martini Saur., 5, 6,7,8. Vita B. Geraldi, c. 8, em Baluz, Misc., t.3, p. 185. Wilken, Geschiche der Kreuzzuge, T. I (Leipzig, 1807).

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Yahya e Al kodai em Casiri, t. 2, p. 158 a 174. Yepes, Chron. de S. Benito, t.7, App. f. 24 v. Yepes, t. 7, escit. 33.

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ANEXO III

C. 21. CRONICA ANONIMA DE SAHAGUN. (ESCALONA, 1782, 306-308)

CAPITULO XXI

De las cosas que sucedieron despues de la muerte del Rey D. Alonso entre el Conde Enrique, y el Rey de Aragon.

Sobre todo es de saber, que el Rey D. Alonso de noblememoria, mientra que él viviese de uma manceba, pero bien noble, habia habido una hija llamada Teresa, la qual él habia casado com um Conde, llamado Enrique, que venia de sangre Real de Francia; el qual em quanto el Rey D. Alonso vevia, noblemente domó á los Moros, guerreando contra ellos; por lo qual el dicho Rey le dió com su hija en casamento á Coimbra, é á la Provincia de Portugal, que son fronteras de Moros, en las quales com el exercicio batalloso, muy noblemente engrandescia su Caballeria; pero pocos dias antes que el Rey ficiese fin de vivir, no se por qué saña, ó discordia se partió airado de él, é porque acquesto era ansí, no estuvo presente quando el Rey queria morir, é disponia de la sucesion del Reyno este Conde non era presente; por lo qual por zelo del Reyno movido, traspasó lon Montes Perineos por haber ayuda de los Franceses, com los quales guarnecido, é escoltado, digo esforzado, por fuerza tuviesse el Reyno de España. E como la flaqueza humanal sea sujeita á varios, é diversos acaecimientos, acaescióle uma desdicha, que fué preso, é detenido en prision; pero dios hubiéndole compasion, lo sacó. Em el tempo que el Rey de Aragon fuera desechado, é alanzado de la Reyna, retorábase, é porque él pudiese sin peligro passar por el Reyno de Aragon, dándole su fé, prometiéndole, que él en uno con él con todas sus fuerzas contra la Reyna, guerrearía con esta condicion, que todo aquello, que del Reyno de la Reyna ganase, fuse partido por la metade entre ambos. E así alegada gran huste, íbanse para Sepúlveda; lo qual como oyese el noble Conde, llamado Gomez, que em aquella sazon moraba en Burgos con la Reyna, con pocos en el campo de España fué contra ellos. E por quanto sin consejo con pocos acometió, grande, é dificile cosa, fuertemente peleando murió en la batalla, la qual vitoria acabava viniéronse para Sepúlveda. E así como morasen los nobles, que eran con la Reyna, enviaron Embaxadores al Conde Enrique, que le dixesen, que injustamente él facia contra la Reyna, é los nobles suyos, apartándose de ellos, é llegandose al tirano su enemigo. Mas que le rogaron, que luego se partisen del Rey de Aragon, é á ellos se traspasase, que ellos acabarian con la Reyna, que con él partiese del Reyno con suerte fraternal, y que esto habia de hacer de buena voluntad, recordándose de la amistad antigua, é compañía de ellos, é que él seria Capitan de ellos, y

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Príncipe del Exército. Las quales cosas oidas el Conde Enrique, habia consejo con los suyos, casi como quien va á ver sus heredades, partióse del Rey, y habiendo su fabla con el poderoso Fernan Garcia, vínose á um Castillo llamado Monzon, onde la Reyna entonces estaba, é el sobredicho pacto confirmo, lo qual como fuese manifestado al Rey, partióse de Sepúlveda, é fuese á mas andar al Castillo flerte llamado Peñafiel, é los hombres, que moraban allende el rio de Duero, é son llamados Pardos, em aquel tiempo seguian al Rey de Aragon; pero la Reyna, é el Conde Enrique allegada mucha gente, hombres de pie, onde á caballo, cercaron el Castillo de Peñafiel. E por quanto la natura le fortificó, é de ligero no se podia tomar el exército de la gente de armas, toda la gente que estaba al redor á fierro, y á fuego destruyó, é toda la sustancia robó. El bien lo merecia, por quanto los moradores despreciado el Señorio natural, allegáronse al tirano, é robador. Em esto estando, Doña Teresa, muger del Conde Enrique, fija del Rey D. Alonso, que habia quedado en Coimbra, vinose para él, é despues de pocos dias comenzó á incitar al marido, diciéndole: primero habia de el Reyno, segun que habia quedado, é despues debría echar al Rey. Decia aun más: gran engaño parece por honor, é Reyno de outro trabajar vos con los vuestros, é sudar por alcanzar al destruidor; é entre estas cosas, como es costumbe de las lenguas lisonjeras, la muger del Conde era ya llamada de los suyos Reyna, lo qual oyendo la Reyna, mal le sabia, mayormente como se viese desamparada del solaz varonil, é á su hermana verla con el ayuntamiento de varon sobresalir. E como á la division del Reyno fuese apremiada, llamó ocultamente un Consejero del Rey, que habia nombre Castano, fabló con él em poridad, é así quitaron la cerca, é se despartieron, é á Palencia se vinieron; é dados aí de la uma, é de la outra parte nobles, é prudentes varones, comenzaron á partir el Reyno por igual suerte; en la qual division entre todas las otras cosas sol a suerte del Conde cayó Zamora, que es Ciudad mucho abastada, é eso mismo el Castillo del nombre del rio llamado Ceya, el qual luego fué entregado en mano del conde. E estas cosas acabadas, estabelecieron, é ordenaron que la Reyna con su hermana Teresa se fuesen para Leon, é el conde se fuese á tomar á Zamora con los Caballeros de la Reyna, á los quales ella mandó secretamente, que no diesen la Ciudad al Conde; él la Reyna ya habia mandado á los de Palencia, que viniendo el Rey de Aragon, que le abriesen las puertas, ca ya habia enviado por él á Fernan Garcia; é todo aquesto se facia ocultamente, é la Reyna viniase á la Villa de Sant Fagun, é semejantemente mandó á los Burgueses, que abriesen al Rey las puertas; ca ya los Burgueses habian quitado el poderio del Abad, los Porteros, y puertas de la Villa, de manera, que si el abad, ó algun Monge queria entrar, ó salir, por debaxo de la cadena habia de passar, como un Labrador. Otrosí cortaban madera del Monte para facer, y alzar las Torres, sin licencia del Abad, ni aunque no fuese sobre ello demandado, ni sin facérselo saber.

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E la Reyna fuese luego para Leon dexada su hermana en Sant Fagun. E catad, que un dia el abad, y los Monges, no sabiéndolo, el Rey entró em la Villa é mandó á los suyos, que perseguiesen á la muger de Enrique, la qual, oyendo su venida, habia ya fuido, y ansí no la pudieron comprehender.

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ANEXO IV

Carta-testamento de Alexandre Herculano em posse da Biblioteca Nacional de Portugal.

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ANEXO V

Carta em posse da Biblioteca Nacional de Portugal, datada de 1843, em que constam encomendas de livros feitas por Alexandre Herculano.