Sentença De Vida Casamento, Literatura E Realidade Em O Condenado De Camilo Cristina A.M.De Marinho Universidade Do Porto

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Sentença De Vida Casamento, Literatura E Realidade Em O Condenado De Camilo Cristina A.M.De Marinho Universidade Do Porto Sentença de vida casamento, literatura e realidade em O Condenado de Camilo Cristina A.M.de Marinho Universidade do Porto «Eu tinha umas asas brancas, Asas que um anjo me deu, Que, em me eu cansando da Terra, Batia-as, voava ao céu.» Almeida Garrett1 O diálogo daquele que Luiz Francisco Rebello considera «o último grande drama do teatro romântico português»2 com a vida, precisamente com circunstâncias históricas, parece anunciar-se em complexidade, para além da já de si densa, dita perigosa, continuidade entre a leitura do Romantismo e a apropriação existencial dos seus heróis que a convenção teatral, dentro e fora de cena, só acentuaria3. 1 ALMEIDA GARRETT João Baptista da Silva Leitão de, Obras, Porto, Lello e Irmão, s.d., volume II, XIX, «As minhas asas»., p.125. 2 BRANCO Camilo Castelo, Patologia do Casamento, O Morgado de Fafe em Lisboa, O Condenado, com prefácio e organização de Luiz Francisco Rebello, Lisboa, Par- ceria A.M.Pereira, 2001, «Introdução», p.20: «(...) Interesse que, por outro lado, não é apenas de ordem histórica ou documental _ O Condenado é o último grande drama do teatro romântico português; um ano depois, as Conferências Democráticas do Casino iriam promover o realismo como nova expres- são literária, e nelas um dos conferencistas, Augusto Soromenho, denunciaria esse teatro como perverso, corrupto, falso e falto de probidade intelectual. (...)» 3 Camilo Castelo Branco, em Bohemia do Espirito, Porto, Livraria Civilização, 1886, na página 78, propõe o debate sobre a acção degradante da literatura sobre a conduta social, na tónica feminina, entre Antonio de Castro e o Conde. Retomaremos adiante em análise o que destacamos já: «(...) Conde Os romances nada ensinam bom nem máo. Os livros perversos é a sociedade que os ensina aos romancistas, não são os romancistas que os inventam para darem à sociedae noticias de crimes inauditos. (...)» 152 Cristina A. M. de Marinho Escrita madura, O Condenado ter-se-à longamente ensaiado na dramaticidade da também criação romanesca4, fértil, e não se querendo dissociar5, no plano temático, do uxoricídio perpretado pelo deputado José Cardoso Vieira de Castro, amigo de Camilo nas horas amargas da perseguição por adultério, supera-o na elevação livre de quem, interrogando os «profundos arcanos do coração humano»6, se pode surpreender ou fintar, na distância entre intencionalidade, invenção e recepção, do interior da sua própria arte. A crítica viu na evocação teatral da morte de Martha de Villalobos a da própria esposa do ilustre deputado, do mesmo modo lenta e dolorosamente envenenada pelo seu amantíssimo marido, enredo que do crime real Camilo jurará ao chorado amigo só quis retirar «hypotheses, 4 Eduardo Lourenço destaca a matriz teatral de toda a criação camiliana, em «O Tempo de Camilo ou a ficção no país das lágrimas», pp.815-816, in Actas do Congresso Interna- cional de Estudos Camilianos ( 24-29 de Junho de 1994), Coimbra, 1994. 5 A análise da Correspondência Epistolar entre José Cardoso Vieira de Castro e Camillo Castello Branco, Porto, Rio de Janeiro, 1874, oferece reflexões que suscitam intepretação ao longo da nossa exposição. A tensão confessada entre facto inspirador e criação literária assume matizes diversos. Assim, Camilo dirá que, p.58, tomo II, «O meu drama está mal tecido; mas há por lá dores, que é mais duradouro condão que o do estylo», nota ainda, desiludido, que mereceria o elogio de Vieira de Castro «se eu houvesse escripto o drama como eu sei que o podia fazer, cheio de inspirações da tua desgraça .» Na página 81, tomo II, considera: «Tenho diante de mim dous invencíveis empeços: um e principal o sagrado respeito que não deixava transferir d`ahi para um palco um homem como tu; o outro era o medo que a gentalha infamasse o escripto com as vaias da especulação. Desviei-me muito de ti, e apa- guei no meu espirito quanto pude a tragica poesia que paira sobre um tumulo. Bem viste que fiz gravitar a acção do drama para uma filha com que eu quis affrontar a suspeita de queeu ia pintar-te, a par e não sei que infame. (...)» 6 Vide Folhetim A José Cardoso Vieira de Castro, Golgotha: «Ergue a fronte abatida. Chora, mas chora aos pés de Deus. És culpado aos olhos do mundo, d`este mundo que ri e escarnece do mais atroz e pungente infortunio, e que collaborou indirectamente nas tuas acções; mas estás innocente, perante aquelles que conhecem os profundos arcanos coração humano.» Afigura-se curiosa a notícia que O Primeiro de Janeiro inclui sobre o uxoricídio: «(...) De José Cardoso Vieira de Castro não fallemos tambem; o seu proceder será avaliado pela justiça. Aguardemos o seu veredictum. (...) Como se sabe, Garrett / sobrinho do escritor Almeida Garrett/ foi a origem de todos esses graves acontecimentos d`ha pouco; foi elle que abusando da intimidade e confiança de Vieira de Castro, levou ao lar domestico a deshonra e a infamia. Não podemos deixar de extranhar aqui essa intimidade e confiança de Vieira de Castro com um homem desde ha muito conhecido pela sua perversidade e baixeza moral. Pois onde ha familia pode admittir-se um devasso e um infame, como este, já conhecido como origem de desgraças e discordias entre algumas familias? Aqui só podia andar a boa fé de Vieira de Castro. (...)» Setença de vida – casamento, literatura e realidade em O Condenado de Camilo 153 pretextos, inquadrações em que o dramaturgo ou romancista busca mostrar as correlações da tua catástrofe»7. Na verdade, o crime despertou na imprensa epocal todo um debate sobre a legitimidade de matar a adúltera, assim como produção folhetinesca que directamente remetia para o caso Vieira de Castro, a crítica teatral aproxima, em geral, o fogoso orador do degredado da peça, jornais de Lisboa ajuizam do prejuízo que a peça traz ao processo do uxoricida, receio que a actriz Lucinda Simões viria a exprimir quando a gravosa sentença veio a ser proferida8. Se Camilo quis entregar «em pessoa /.../ a cada jurado um exemplar com dedicatória», por isso se aplicava na velocidade de composição, evidenciava intenção de nexo e ajuda no processo judicial que, com a opinião pública, interpelará a peça, num efeito teatral caleidoscópico: o crime, a prisão do criminoso, as diligências judiciais prévias, enquanto espectáculo; a encenação, de resto convencionada, do próprio julgamento de Vieira de Castro; a exploração folhetinesca, por um lado, o debate social, nomeadamente jornalístico, como eco da própria representação das reacções do público dos Teatros, por outro, em cima do momento dos factos consubstanciando-se com estes. Vieira de Castro saberá encontrar a intersecção dos planos, quando nota ao escritor que «os vinte anos de degredo dão a entender que era a sentença que se esperava para mim»9, Camilo pede «perdão pelos desgostos novos que o meu drama te está grangeando», admite o seu espanto, pois «o que ahi / Jornal do Comercio /se diz do drama é tudo quanto eu não podia imaginar»10, referindo a negatividade, facto curioso, da imprensa 7 Idem, Correspondência Epistolar entre José Cardoso Vieira de Castro e Camillo Castello Branco, ed. cit., tomo II, pp. 81. 8 Ana Paula Costa Oliveira, sob a nossa orientação, procedeu ao levantamento documen- tal de folhetins, inspirados no uxoricídio de Vieira de Castro, e de crítica teatral relativa à representação da peça em estudo, in O Condenado de Camilo Castelo Branco, Laços do Teatro e da Vida, Dissertação de Mestrado em Texto Dramático, Porto, Facul- dade de Letras do Porto, 2007. Vide ponto 4.2 Entre o ciúme e a defesa da honra- a dis- cussão pública em folhetim e ponto 4.4. Laços do Teatro e da Vida em O condenado, com destaque para todo o apêndice final, respectivamente, pp.103-115, pp.125-133 e p.153. 9 Correspondência entre José Vieira de Castro e Camillo Castello Branco, ed. cit., vol. I, p.168. Na mesma obra, na página 60, Camilo manifesta o desejo de entregar a peça aos jurados. Neste sentido, Lucinda Simões, que desempenhou o papel de Eugénia, con- cluiu, na obra Memórias, Factos e Impressões, Rio de Janeiro, SA Litho-Typographia Fluminense, 1824, p.82, que foi «peça escrita com intenção agressiva, contra os juizes do processo de Vieira de Castro. Mas como o processo estava ainda na Relação, o resul- tado foi que, em vez de dez annos de degredo, dados na primeira instância, augmenta- ram no segundo tribunal, mais 5, e ficaram sendo quinze annos. Foi uma imprudência de Camillo, que custou caro ao pobre réo.» 10 Ibidem, volume II, p.89. 154 Cristina A. M. de Marinho de Lisboa. Pelo contrário, no Porto, respondendo ao estrondoso êxito de récitas sucessivas no Teatro Baquet, O Primeiro de Janeiro sauda «o brilhantíssimo drama de Camillo Castello Branco» que observa «os moldes eternos da vida real», ressalvando, contudo, o desempenho dos actores: o Visconde de Vasconcellos teria estado longe do «sofrimento intelligente e consciente»; Rodrigo exprimiria mal o afecto pela esposa; teria sido desa- gradável a cena inicial dos criados; Gavião Aranha não teria tido no actor Amaral «todo o seu verdadeiro relevo e personalidade»; Eugénia, excepção, encontraria em Lucinda Simões excelência «d`expressão e d`attitude»; refere- se a falta de rigor discursivo dos actores Emília Eduarda e de Taborda11. Tomam especial interesse as considerações sobre Jorge de Mendanha, «vulto homérico do drama», que exige do actor a justa medida entre sublime e ridículo, capaz de causar «impressão severa e pathetica», ao nível de um Romeiro de Garrett, desejando o jornalista salientar a dignidade do crimi- noso – dos dois... – neste relevo da reprovação de um actor de quem «só a figura condizia com a personagem» para destacar mais «a besta-fera» do que a severidade da nobre tragédia.
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