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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO

RIO GRANDE DO SUL-UNIJUÍ

ANTONIO CARLOS GONÇALVES DO AMARAL

UM ESPAÇO PEDAGÓGICO DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA POSSÍVEL ÀS PESSOAS COM ESQUIZOFRENIA PARA O MELHOR CUIDAR DE SI.

IJUÍ/RS

2018

ANTONIO CARLOS GONÇALVES DO AMARAL

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UM ESPAÇO PEDAGÓGICO DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA POSSÍVEL ÀS PESSOAS COM ESQUIZOFRENIA PARA O MELHOR CUIDAR DE SI.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul-UNIJUÍ, como requisito parcial para obtenção do título de doutor em educação.

ORIENTADOR: PROF. DR.WALTER FRANTZ Linha de pesquisa: Educação popular em movimentos e organizações sociais. Área de saúde mental.

IJUÍ/RS

2018

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Catalogação na Publicação

A485e Amaral, Antonio Carlos Gonçalves do. Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si / Antonio Carlos Gonçalves do Amaral. – Ijuí, 2018. 221 f. : il. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Educação nas Ciências.

“Orientador: Walter Frantz.”

1. Esquizofrenia. 2. Grupo operativo-terapêutico. 3. Autonomia para o cuidar de si. I. Frantz, Walter. II. Título.

CDU: 616.89

Eunice Passos Flores Schwaste CRB10/2276

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DEDICATÓRIA E AGRADECIMENTOS

Dedico este trabalho àqueles que, ao longo desta caminhada, não tiveram voz e vez para enfrentar a exclusão da sociedade. Dedico este trabalho àqueles que ficaram à margem do social.

Dedico este trabalho aos meus familiares sempre presentes no meu mundo real e no meu mundo imaginário. Em especial, ao meu pai Epifânio e a minha mãe Ondina in memorian pelo esforço que fizeram para saírem das margens do social, e de dar melhores condições culturais a todos seus filhos: Elza, Iolanda, Marlene, Marli, Aldeci, Jussara e Antônio Carlos.

Dedico aos professores que tive ao longo da vida. Pelo idealismo e amorosidade com que me acolheram quando, pelo determinismo social, deveria ter ficado às margens.

Aos clientes, pela sua bondade de tolerarem minhas limitações e acreditarem no meu profissionalismo, permitindo que, ao lado de uma “técnica de atendimento”, estivesse presente a minha preocupação pelo humano no social.

Aos professores do mestrado e do doutorado em Educação nas Ciências da Unijuí, instituição que me acolheu com respeito e profissionalismo. Especialmente ao professor e orientador Walter Frantz, que muita luz trouxe para este tema tão complexo, qual seja, a associação entre educação e saúde.

Por fim, obrigado aos meus filhos Clarissa, Daniel e Carolina. A Isabela e a Elisa por serem a vida em continuidade... E àquela que me incentivou em todos os momentos com solidariedade e amorosidade sem limites, Profª. Roseli.

04/10/2018 PAZ E BEM.

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EPÍGRAFE Epitáfio Titãs

Devia ter amado mais Ter chorado mais Ter visto o sol nascer Devia ter arriscado mais E até errado mais Ter feito o que eu queria fazer

Queria ter aceitado As pessoas como elas são Cada um sabe a alegria E a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger Enquanto eu andar distraído O acaso vai me proteger Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos Trabalhado menos Ter visto o sol se pôr Devia ter me importado menos Com problemas pequenos Ter morrido de amor

Queria ter aceitado A vida como ela é A cada um cabe alegrias E a tristeza que vier

O acaso vai me proteger Enquanto eu andar distraído O acaso vai me proteger Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos Trabalhado menos Ter visto o sol se pôr.

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RESUMO

O estudo envolve as pessoas com esquizofrenia e seus familiares no CAPS II, na cidade de Ijuí, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil. No total, foram entrevistados vinte e um (21) usuários e vinte e um (21) de seus familiares. A pesquisa tem como problemática: “Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”. Trata-se de uma pesquisa qualitativa descritiva compreensiva de Minayo (2013), acrescida da análise de conteúdo de Bardin (2011). Contém um resumo histórico da reforma psiquiátrica no Brasil, associando-a com a fala dos usuários e de seus familiares no atual contexto da mesma. Adquirem destaque na reforma psiquiátrica os usuários e os seus familiares no papel de protagonistas na produção de conhecimento. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) recebe atenção especial por ser um indispensável referencial para o momento atual da saúde mental no Brasil. O CAPS II, como território pedagógico, por meio do grupo mostra o enfrentamento dos déficits cognitivos, frequentemente presentes nas pessoas com esquizofrenia, por meio de um relato da circulação dos usuários por diferentes “territórios culturais” da cidade de Ijuí e da região. No processo educativo, usa-se a educação popular como um método para dialogar com os usuários e seus familiares sobre esta nova realidade possível em saúde mental, qual seja, a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si. Associam-se, necessariamente, a participação familiar e sua observação da participação ativa e criativa dos usuários por meio da técnica do grupo operativo (PICHON RIVIERE 2009). Examina-se a autonomia como um processo de emancipação, na visão de Freire (2013) por meio de uma educação popular, e na contextualização de Foucault (2014) a partir do cuidado de si. O aprendizado da autonomia para o cuidar de si é o que se espera encontrar nas respostas dos usuários e de familiares tendo como pano de fundo o “grupo operativo-terapêutico”. É necessário que, além da inclusão social da pessoa com esquizofrenia inicialmente em sua família e na própria comunidade, se evidencie o quanto de empoderamento essas pessoas estão conquistando para o cuidar de si nesse processo de retorno à sua comunidade e à sua própria família. Observa-se ao longo desta investigação o quanto o “grupo operativo-terapêutico” pôde constituir-se num espaço pedagógico para a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si.

Palavras-chave: Esquizofrenia. “Grupo operativo-terapêutico”. Autonomia para o cuidar de si.

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SUMMARY

The study involves people with schizophrenia and their families at the CAPS II, in the city of Ijuí, in the state of Rio Grande do Sul, . In total, twenty one (21) users and twenty one (21) of their families were interviewed. The research has as problematic: "A pedagogical space of construction of the possible autonomy to the people with schizophrenia for the best care of itself". This is a comprehensive descriptive qualitative research by Minayo (2013), plus content analysis, Bardin (2011). It contains a historical summary of the psychiatric reform in Brazil, associating with the speech of the users and their relatives in the current context of the same. Users and their families are prominent in the psychiatric reform, as protagonists in the production of knowledge. The Psychosocial Care Network (RAPS) receives special attention for being an indispensable reference for the current moment of mental health in Brazil. The CAPS II as a pedagogical territory, through the group, shows the confrontation of the cognitive deficits, frequently present in people with schizophrenia, through an account of the circulation of the users by different "cultural territories" of the city of Ijuí and the region. In the educational process, popular education is used as a method to dialogue with users and their families about this new possible reality in mental health, that is, the construction of the possible autonomy for people with schizophrenia to take better care of themselves. The family participation and observation of the active and creative participation of the users are necessarily associated with the technique of the operating group (PICHON RIVIERE 2009). Autonomy is examined as a process of emancipation, in the vision of Freire (2013) through a popular education, and in the contextualization of Foucault (2014) from caring for oneself. The learning of autonomy to care for oneself is what one expects to find in the responses of the users and their relatives, against the background of the "therapeutic- operative group”. It is necessary that, in addition to the social inclusion of the person with schizophrenia, initially in their family and in the community itself, it is evident how much empowerment these people are conquering to take care of themselves in this process of return to their community and to their own family. It is observed throughout this investigation how the "operative-therapeutic group” could constitute a pedagogical space for the construction of the possible autonomy to the people with schizophrenia to the best care of itself.

Key words: Schizophrenia. “Operative-therapeutic group”. Self-care autonomy.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AIHS Autorizações para Internações Hospitalares AMA Auto Mútua Ajuda ASG Antipsicóticos de Segunda Geração AL Alagoas BA C Categoria CAAE Certificado de Apresentação para Apreciação Ética CAPS Centro de Atenção Psicossocial CEO Centro de Especialidades Odontológicas CNSM Conferência Nacional de Saúde Mental CNTRICS Cognitive Neuroscience Treatment Research to Improve Cognition in Schizophrenia- CTI Centro de Tratamento Intensivo DATASUS (SAI-SUS) Departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil Sistema de Informação Ambulatorial DATASUS (SIH-SUS) Departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil Sistema de Informações Hospitalares dlPFC Disfunção do Córtex Pré-Frontal dorsolateral DSM V Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ECRO Esquema Conceitual Referencial e Operativo ECT Eletro Choque Terapia ESF Equipe de Saúde da Família e-SIC Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão F Familiar FIDENE Fundação de Integração Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado FDA Food and Drug Administration HBP Hospital Bom Pastor HCI Hospital de Caridade de Ijuí HU Hospital da Unimed HUSM Hospital Universitário de Santa Maria IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INSS Instituto Nacional do Seguro Social

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MATRICS Measurement and Treatment Units for Research to Improve Cognition in Schizophrenia MS Ministério da Saúde OMS Organização Mundial da Saúde OPAS Organização Pan-Americana da Saúde P Paciente PA Pronto Atendimento PS Pronto Socorro PVC Programa De Volta Para Casa RAPS Rede de Atenção Psicossocial

SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SESC Serviço Social do Comércio SINITOX O Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas SIOP Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento SMS Secretaria Municipal da Saúde SRTs Serviços Residenciais Terapêuticos SUS Sistema Único de Saúde TO Terapia Ocupacional U Usuário UFSM Universidade Federal de Santa Maria UNJUÍ-RS Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

UPA Unidade de Pronto Atendimento

Erro! Indicador não definido.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Espiral Dialética ou Cone Invertido...... 41 Figura 2 - Mapa do Rio Grande do Sul ...... 73 Figura 3 - O Grito - Edward Münch - 1893 ...... 87 Figura 4 - Fases do Circulo da Cultura (segundo Freire 2016, p.78) ...... 94 Figura 5 - Esquema do processo educativo e o grupo operativo ...... 105 Figura 6 - Esquema do processo educativo e o grupo "operativo - terapêutico" ...... 106

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Classificação dos pacientes em relação à idade no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 ...... 79 Tabela 2 - Classificação dos pacientes em relação à escolaridade no CAPS II, Ijuí/RS - 2013...... 80 Tabela 3 - Classificação dos pacientes em relação ao estado civil no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 ...... 81 Tabela 4 - Classificação dos pacientes em relação à renda declarada no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 ...... 81 Tabela 5 - Tempo de participação dos pacientes no grupo no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 ...... 82

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1- Gastos em ações hospitalares ...... 111 Gráfico 2 - Gastos em ações extra-hospitalares...... 112

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...... 12

1 CAMINHO METODOLÓGICO E REFERÊNCIAS TEÓRICAS ...... 28

2 A REFORMA PSIQUIÁTRICA ...... 47 2.1 O MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL ...... 50 2.1.1 e o seu pioneirismo na Psiquiatria Brasileira ...... 50 2.1.2 Histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil ...... 53 2.1.3 A Reforma Psiquiátrica e a importância da participação familiar ...... 56 2.1.4 RAPS um referencial para o momento atual da saúde mental no Brasil ...... 62

3- A SAÚDE MENTAL E A COMUNIDADE LOCAL ...... 69 3.1 MUNICÍPIO DE IJUÍ (RS) ...... 72 3.1.1 A saúde mental no município de Ijuí no atual momento ...... 74 3.2 CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS II) ...... 78 3.2.1 Caracterização da População Pesquisada no CAPS II ...... 79 3.2.2 O CAPS II como território pedagógico ...... 83

4-O PROCESSO EDUCATIVO ...... 90 4.1 A EDUCAÇÃO EM SAÚDE MENTAL ...... 90 4.2 EDUCAÇÃO POPULAR ...... 92 4.3 O “GRUPO OPERATIVO-TERAPÊUTICO” ...... 99 4.3.1 “Grupo operativo-terapêutico”: espaço de contestação ao modelo biomédico...... 110 5- AUTONOMIA COMO PROCESSO LIBERTADOR PARA O CUIDAR DE SI...... 121 5.1 VENCER PRECONCEITOS PARA UMA NOVA SUBJETIVAÇÃO...... 122 5.1.1 Referenciais teóricos para uma nova subjetivação em saúde mental ...... 127 5.1.2 Autonomia um referencial indispensável para uma nova subjetivação ...... 135 5.2 AUTONOMIA COMO PROCESSO LIBERTADOR ...... 137 5.3 AUTONOMIA PARA O CUIDAR DE SI ...... 144 5.4 RESPOSTAS DOS USUÁRIOS E SEUS FAMILIARES ...... 149 5.4.1 Retrato Sociológico de uma usuária do CAPS II ...... 154 5.5 CIDADANIA ...... 177

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 181

REFERÊNCIAS...... 186

APÊNDICES...... 194

ANEXOS...... 210

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

OLHANDO O MAR, SONHO SEM TER DE QUÊ.

Olhando o mar, sonho sem ter de quê. Nada no mar, salvo o ser mar, se vê. Mas de se nada ver quanto a alma sonha! De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos, Em ruas ou em estradas ou sob ramos, Temos esta certeza e sempre e em tudo Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta Parecem, por longínquas, estar em festa. Quanto acontece porque se não vê! Mas do que há ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive. Quem ontem fui já hoje em mim não vive. Bebe, que tudo é líquido e embriaga, E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser. Motivos coloridos de morrer? Mas colhe rosas. Porque não colhê-las Se te agrada e tudo é deixar de o haver?

Novas Poesias Inéditas. (Fernando Pessoa ,20-1-1933)

No transcorrer deste estudo sobre o processo educativo em saúde mental conto frequentemente com a companhia de Fernando Pessoa para romper a convencionalidade, por vezes presente em um texto científico, e dividir com todos um pouco de sua emocionante e inquietante busca de seu eu, mas também com seu enfoque em temas universais, como o processo de individuação no social. Importante lembrar que este poeta também tinha um sofrimento psíquico crônico, transformado e sublimado em sua criativa obra poética. Nesta poesia o poeta expressa uma profunda inquietação por não conseguir decifrar o enigma do seu ser. O sujeito poético quer encontrar uma resposta para o mistério da sua existência como ser. Como não encontra essa resposta, passa a viver numa angústia e solidão interior. Passa então a sonhar para sair do isolamento, viver outra realidade, e não a vida como ela é. Com tantos e intensos questionamentos, de quais ele consegue se apropriar? Em que consistem suas experiências verdadeiras? E em que tempo? “Quem ontem fui já hoje em mim não vive.” São os seres humanos frutos desta eterna dialética de inquietações e sonhos? O poeta não oferece resposta a estas questões existenciais, mas sugere:

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“Mas colhe rosas”. Porque não colhê-las “Se te agrada e tudo é deixar de o haver”? Faz-se oportuno destacar algumas inquietações/motivações que me levaram a assumir o desafio de resgatar através da escrita e da pesquisa de doutorado um pouco de minha vivência como médico psiquiatra nessas possíveis e diferentes aprendizagens na saúde mental da rede pública na cidade de Ijuí/R.S. Assim, ao longo deste percurso, busco a apropriação de alguma dessas vivências, tornando-as verdadeiras experiências de vida. “Por que não colher rosas”?

A saúde pública brasileira, na conformação atual do SUS, data da recente redemocratização do país, tendo pouco mais de vinte anos. Embora a participação do usuário, na forma do chamado “controle social”, seja uma das marcas importantes e valiosas do novo sistema, a agenda do SUS (e do campo acadêmico da saúde pública) não incorpora ainda o usuário como coprotagonista da produção do conhecimento em saúde. (PRESOTTO 2013, p.2839)

Eis uma forte inquietação para a realização desta pesquisa: é possível trabalhar com os usuários do CAPS II na cidade de Ijuí/RS e seus familiares na produção do conhecimento, tornando-os protagonistas em um processo de pesquisa em educação na saúde mental? Considero que a participação dos usuários e de seus familiares na pesquisa em saúde é um dos temas cruciais no debate da saúde pública e para a construção de conhecimentos sobre o momento atual da saúde, em especial, a saúde mental, objeto de nosso estudo. O estudo tem como problemática “Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”. Esta pesquisa pode ser uma vivência prática do quanto essa participação das pessoas com esquizofrenia viabiliza a produção de conhecimentos para a saúde mental. É oportuno lembrar “Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2013, p.47). Outra importante motivação para a realização desta pesquisa se dá pela necessária aproximação entre as áreas da saúde e da educação. Esta aproximação vem ocorrendo ao longo de minha vivência profissional, pois iniciei minhas atividades profissionais com a formação básica em Farmácia, especialização em Análises Clínicas, como professor junto a alunos do ensino técnico em Análises Clínicas em escolas públicas e particulares na cidade de Santa Maria/RS, no fim dos anos 70, início dos anos 80. Esta oportunidade me possibilitou uma rica experiência de diálogo e aproximação entre escola e comunidade através das atividades de pesquisa e prevenção em saúde pública por meio de trabalhos na disciplina de

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Parasitologia Humana, entre eles a realização da pesquisa1 “Índice de Verminose na comunidade da Vila Maria”. Durante o curso de Medicina mantive o mesmo interesse pela atuação em saúde pública, como se evidencia na pesquisa: “Diagnóstico médico social de uma população pediátrica e sua relação com a desnutrição” (1989). Posterior à referida pesquisa, ocorreu o processo de educação em saúde com relação à desnutrição infantil nessa mesma comunidade carente, na cidade de Santa Maria. No período da residência em psiquiatria no serviço de residência médica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pude ter uma formação integrada e integradora com os diferentes saberes em saúde mental, pois o Serviço de Saúde Mental é composto por uma equipe interdisciplinar com atendimentos individuais e em grupos, situado em uma região com uma forte participação da comunidade local e regional. Esta formação, além de um aspecto dinâmico de orientação psicanalítica, propiciou uma visão integradora com aspectos orgânicos e sociais do adoecer, pois funciona junto ao Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) o ambulatório de saúde mental e uma unidade para internações psiquiátricas de curta duração. O interesse pela educação em saúde esteve muito presente na minha atuação profissional nesses anos de atividades na saúde pública como médico psiquiatra. No atual momento se faz por meio de uma vivência de aprendizagem no diálogo com os usuários, com os seus familiares e com os colegas na área de saúde mental por meio de um grupo “operativo-terapêutico”2 no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II), na cidade de Ijuí/R.S. Esse diálogo me permite refletir e modificar as minhas próprias e “dogmáticas” convicções profissionais inicialmente baseadas em um modelo biomédico de assistência em saúde para buscar um modelo biopsicossocial, ou seja, de um modelo baseado prioritariamente na doença e sua medicalização para um modelo baseado no atendimento do sujeito em seu contexto sociofamiliar. Encontro respaldo nas palavras de Benevides (2010, p. 135):

A produção do cuidado em saúde mental perpassa todo o processo terapêutico do indivíduo. Ao cuidar do sujeito, deve-se levar em consideração sua autonomia, seus

1 Índice de Verminose na comunidade da Vila Maria (1979) uma comunidade com alta vulnerabilidade social, na cidade de Santa Maria e que despertou em todos os envolvidos (alunos, professores, lideranças da comunidade) o interesse pelo processo de educação em saúde na referida comunidade.

2 No presente estudo tomo como conceito de grupo operativo aquele grupo que visam “operar” com uma tarefa definida, especialmente ligada ao aprendizado e podem ser divididos em quatro subtipos: ensino-aprendizagem, institucionais, comunitários e terapêuticos, e como grupo terapêutico o que permite o “insight” para mudanças. (ZIMERMAN apud PEREIRA, 2013, p.26). A tarefa nesta pesquisa é o conhecimento da doença mental associada a capacidade do usuário em cuidar de si. E terapêutico para significar que o aprender a cuidar de si está sendo um insight/empoderamento para o usuário. Sendo assim na presente pesquisa uso o termo “grupo operativo-terapêutico”. (grifo meu).

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valores e sua subjetividade. Com o trabalho em equipe (envolvendo trabalhador, usuário e família), percebe-se uma integração na busca de melhorias de vida para esses sujeitos.

Com a reforma psiquiátrica e o deslocamento do tratamento em saúde mental para a comunidade3 e não mais nos manicômios, faz-se necessário estudar as contribuições da comunidade local e, em especial, as contribuições educativas. Dessas, destaco: o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II), o grupo “operativo-terapêutico”, a terapia ocupacional, a arte terapia, as intervenções interdisciplinares, a participação dos familiares, a educação popular em saúde, as alternativas não formais da própria comunidade e a possibilidade de aproximação e intercâmbio com a rede ambulatorial de saúde na cidade de Ijuí. É nesse espaço territorial que efetivamente a vida das pessoas ocorre em toda sua complexidade. Constata-se ao longo desta pesquisa “Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”, o quanto as estratégias de atenção em saúde mental na própria comunidade precisam estar articuladas entre si. Disso decorre a necessidade de um espaço onde as contribuições educativas em saúde mental possam ser integrativas e integradoras na construção da autonomia possível em saúde mental. Neste estudo, o termo usuários refere-se às pessoas com sofrimento mental crônico, isto é, as pessoas com psicose crônica, em especial as pessoas com esquizofrenia. A esquizofrenia é das psicoses crônicas a mais grave pelas acentuadas limitações que provoca na vida cotidiana das pessoas com tal enfermidade. Tem como principais características as distorções do pensamento e da percepção, associadas a sintomas como delírios, alucinações, afeto inadequado ou embotado, possibilidade de déficit cognitivos, ambivalência e os sintomas de desorganização em suas atividades especialmente para o cuidar de si. Há diversos prejuízos funcionais na esquizofrenia, por exemplo, independente, funcionamento social, habilidades ocupacionais e autocuidado. Em relação aos déficits funcionais e aos prejuízos que causa a essas pessoas, tanto para suas atividades ocupacionais, quanto para os próprios autocuidado, Pontes & Elikis 2013, p. 38 destacam:

Em relação ao funcionamento ocupacional, menos de 10% dos pacientes trabalham em tempo integral em empregos competitivos, enquanto apenas 20% mantem-se em empregos assistidos por meio período. As deficiências no autocuidado se manifestam por meio das comorbidades médicas e são percebidas também no cuidado com a higiene básica. A gravidade desses déficits funcionais parece estar relacionada a aspectos como a capacidade de vida independente e o grau de adaptação social, acadêmica, e ocupacional antes dos primeiros sintomas da doença.

3 Comunidade: A comunidade tem um locus territorial especifico e logo a seguir ele cita: “Comunidade é uma coletividade de atores que partilham de uma aérea territorial limitada como base para o desempenho da maior parte das atividades cotidiana”. (Dicionário de Ciências Sociais, 1986, p.229).

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Existe uma forte correlação entre déficits funcionais e déficits cognitivos. Para Pontes & Elikis 2013, p. 18, os principais déficits cognitivos, quando presentes, encontram-se no âmbito da:

Atenção, da memória (verbal, não verbal e de trabalho), da habilidade visuoespacial, da fluência verbal e não verbal e das funções executivas; verifica-se, além disso, um baixo desempenho em avaliações do quociente de inteligência. Também foram descritas alterações na coordenação motora simples e complexa e déficit de linguagem expressiva e receptiva, ainda que estes prejuízos tenham sido considerados secundários às alterações na atenção, na memória e nas funções executivas.

Pela importância das funções cognitivas, especialmente para atividades diárias, fica evidente o prejuízo no desempenho do dia-a-dia das pessoas com esquizofrenia. Para Tufrey (2010), na área da esquizofrenia é consenso entre os autores que a disfunção cognitiva constitui uma característica elementar da patologia, sendo um fator de prognóstico importante no que diz respeito à autonomia, à qualidade de vida do doente e ao funcionamento em comunidade. Pesquisas que estudam o comprometimento cognitivo das pessoas com esquizofrenia podem enriquecer as alternativas terapêuticas a essas pessoas. Elas têm indispensável importância para viabilizar a inclusão social, com a autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental. Marder (2004) detaca o projeto Measurement and Treatment Units for Research to Improve Cognition in Schizophrenia (MATRICS) que envolve os centros norte-americanos de pesquisa acadêmica, a indústria farmacêutica e a Food and Drug Administration (FDA). Essa pesquisa visa identificar os déficits cognitivos da esquizofrenia e alternativas medicamentosas e intervenções psicossociais para serem utilizadas no tratamento desses sintomas. Sabe-se que existem diversas funções cognitivas que podem estar comprometidas pela esquizofrenia. Como parte integrante do projeto MATRICS foi criado em parceria entre os EUA e a Inglaterra o Cognitive Neuroscience Treatment Research to Improve Cognition in Schizophrenia- (CNTRICS). Com auxílio do pesquisador Carter (2007), estabeleceram-se neste centro seis parâmetros nos domínios cognitivos: Working memory, controle executivo, atenção, memória de longo prazo, recepção e processamento social/emocional para a investigação clínica das alterações neurocognitivas na esquizofrenia. Em relação aos déficits cognitivos nas pessoas com esquizofrenia considero indispensável destacar o papel da medicação antipsicótica, em especial neste estudo na cidade de Ijuí/RS, onde os usuários utilizam, prioritariamente, como medicação a clozapina,

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considerado um antipsicótico de segunda geração (ASG). Meltzer (2010) destaca que a clozapina foi o primeiro medicamento antipsicótico a mostrar eficácia para a melhora de alguns elementos da cognição, como fluência verbal, aprendizagem verbal e memória, embora nos seis primeiros meses pouco tenha alterado a memória de trabalho. Outra alternativa de tratamento aos déficits cognitivos que podem estar presentes na esquizofrenia são as “terapias de reabilitação neuropsicológicas”. Embora estejam presentes de maneira não formal nas contribuições educativas da presente pesquisa de doutorado, considero oportuno realçar o que Pontes & Elikis 2013, p. 61 destacam a respeito das terapias destinadas aos déficits cognitivos. Eis suas palavras:

Os termos reabilitação neuropsicológica, reabilitação cognitiva, treino cognitivo ou remediação cognitiva têm sido usados como sinônimos para descrever qualquer programa sistemático de terapia ou tratamento destinado a recuperação ou à modificação das capacidades cognitivas de um indivíduo […]

O estudo das terapias de reabilitação neuropsicológicas é relativamente novo mas muito poderá contribuir para o tratamento da esquizofrenia, especialmente, quando a terapia for precedida de uma minuciosa avaliação neuropsicológica (testes psicológicos) que também pode ser subsidiada pelos exames de neuroimagem cerebral. Esses podem demostrar não só alterações estruturais mas também déficits funcionais no fluxo sanguíneo, como no metabolismo dos lobos pré-frontais. São exames não invasivos que permitem avaliar o funcionamento de diferentes áreas do cérebro, antes e após diferentes alternativas terapêuticas. Levis (2002), em seus estudos sobre a psicopatologia da esquizofrenia, encontrou diversas evidências de que o déficit cognitivo está associado à disfunção do córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC). Jones (2006), em seus estudos, enfatiza que até o momento não há cura para a esquizofrenia e que o tratamento é mais eficaz quando usa uma combinação de farmacoterapia, psicoterapia e suporte familiar e social. Destaco que estes déficits funcionais e cognitivos possam ocorrer também pela falta de estímulos adequados (contribuições educativas) e pela privação de convivência em meios mais estimulantes e enriquecedores. Essa convivência passa a ser uma motivação fundamental para a atual pesquisa criar as condições de convivência adequada entre os usuários, seus familiares e os profissionais da saúde mental, em um espaço onde os “estímulos” enriquecedores e de forma regular possam ser vivenciados por todos.

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Neste cenário, é indispensável que se possa trabalhar o aspecto educativo do usuário com esquizofrenia em um serviço de saúde mental, inicialmente o entendimento de sua enfermidade, das limitações cognitivas que possam estar associadas a ela e as alternativas terapêuticas e educativas para enfrentá-las. Assim, é possível tomar consciência do quanto ele pode assumir-se nos cuidados de seus tratamentos, nos cuidados de si, indispensáveis para a autonomia possível e a emancipação libertadora. No contexto de frequentes déficits cognitivos nas pessoas com esquizofrenia, esta pesquisa passa a ser um intenso desafio, pois se propõe a avaliar a viabilidade de o “grupo operativo-terapêutico” constituir-se como um espaço4 para construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, na cidade de Ijuí. Esta problemática é avaliada com auxílio das diferentes contribuições educativas a todos envolvidos, em especial a participação dos familiares, considerando que a autonomia é um processo libertador, em construção por meio de uma metodologia de educação popular, vivenciado em uma técnica grupal para o cuidado de si. Estudo as contribuições educativas ao processo de autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental da comunidade e, de modo particular, a importância da participação de seus familiares em seus tratamentos, pois, embora a acentuada evolução e opções para o tratamento em saúde mental, ainda se reconhece uma severa dependência dos usuários ao CAPS II, na cidade de Ijuí/RS. Estudo a autonomia possível dos usuários em relação à dependência excessiva de suas próprias famílias, do CAPS II, do uso abusivo da medicalização, não só nas fases iniciais de seus tratamentos. Esta dependência excessiva possivelmente ocorre pela, ainda excessiva, vinculação ao modelo biomédico presente no CAPS II, na cidade de Ijuí, e/ou pela pouca valorização de terapêuticas que não priorizem a medicalização, como o “grupo operativo-terapêutico”, a terapia ocupacional, a arte-terapia e outras terapias que priorizem a escuta da pessoa com sofrimento mental e dos seus familiares. Entre as contribuições educativas é dado um destaque especial à participação dos familiares, pessoas que vivem a complexidade do cotidiano com os usuários do CAPS II. Como consequência da participação e do aprendizado dos familiares por meio do “grupo operativo-terapêutico”, espera-se que eles possam estar mais aptos para a compreensão e a solidariedade com seu familiar enfermo. Disto decorre a possibilidade de serem mais efetivos

4 Neste contexto, uso o termo espaço como um novo meio para novos e diferentes estímulos (contribuições educativas) que são oferecidos de forma regular e sistemática aos usuários (reuniões semanais do grupo com duração média de uma hora) e aos familiares (reuniões mensais)

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em suas intervenções (estímulos) e no apoio à construção da autonomia possível a esses usuários. A esta visão do atendimento da pessoa com doença mental em sua própria comunidade associa-se o pensamento de Heidrich5(2007), para quem o tratamento baseado no modelo hospitalocêntrico para a pessoa com psicose crônica, em especial a pessoa com esquizofrenia, redireciona-se para o tratamento na comunidade, através do modelo biopsicossocial, referenciado pelo movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. É oportuno, neste momento, recordar as ideias de Ferreira (2013) a respeito de como a Reforma Psiquiátrica apresenta novas possibilidades de pensar e lidar com o adoecimento mental:

[...] O movimento da Reforma Psiquiátrica apresenta novas possibilidades de pensar e lidar com o adoecimento mental, inserido em um processo de mudanças políticas, sociais e culturais, tem possibilitado o avanço para além das práticas manicomiais. As ações centralizam-se no fortalecimento do poder contratual dos sujeitos acometidos por um transtorno mental. Desta maneira, o novo modelo assistencial tem como eixo condutor a ampliação da autonomia. Para tanto, o objeto de intervenção deve se deslocar da doença mental para o sujeito inserido em seu contexto social (FERREIRA, 2013, p. 46).

Nesta pesquisa em saúde mental entendo a autonomia como um processo libertador do estigma de inválido para o de uma pessoa capaz de um cuidar de si. Noto (2012) destaca que na medicina o termo estigma é usado para representar um sinal de uma doença física. Acrescenta, porém, que no campo da psiquiatria: “é que o conceito de estigma segue importante para descrever a persistência quase universal de conceitos, atitudes e discriminação sociais imputados às pessoas que sofrem de transtornos mentais” (NOTO, 2012, p.82). Considero a autonomia6 como um processo libertador do processo condicionante das regras de normalidade, ainda presente na sociedade atual e indispensável para um melhor cuidar de si. Faz-se oportuno lembrar Freire (2013), que em seu livro Pedagogia da Autonomia, destaca que o processo de autonomia exige o reconhecimento de ser

5 HEIDRICH, Andreia Valente, autora da: Reforma Psiquiátrica à brasileira: análise sob a perspectiva da desinstitucionalização. Tese de Doutorado, (HEIDRICH, PUC 2007).

6 Autonomia: Assim, autonomia é um processo de decisão e de humanização que vamos construindo historicamente, a partir de várias, inúmeras decisões que vamos tomando ao longo de nossa existência. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo nas experiências de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 53)

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condicionado. Associo, também, a autonomia como um processo do cuidar de si, enfatizado na obra de Foucault (2014) História da sexualidade III: O cuidado de si. Utilizo as palavras empregadas por Noto (2013, p.188) para evidenciar a importância e a necessidade de se estimular a autonomia das pessoas com psicose crônica, especialmente, neste estudo, as com esquizofrenia:

Uma maneira de contribuir para que a pessoa com esquizofrenia se sinta integrada no ambiente familiar é incentivando sua autonomia nas tarefas cotidianas em que ela tem capacidade para mostrar sua eficiência. Isto pode contribuir para que ela se sinta capaz de enfrentar novas situações.

Estudar este processo de autonomia dos usuários de um serviço de saúde mental é considerar também que junto ao sofrimento psíquico crônico de cada um há sempre um aspecto criativo à espera de estímulo e valorização. É neste sentido que a presente pesquisa pretende ser um espaço de voz e vez aos sujeitos participantes, reforçando a ideia de que a autonomia é um processo de conquista dentro do contexto da educação popular em saúde em especial aos usuários de um serviço de saúde mental. A autonomia que se estuda é uma autonomia libertadora, portanto emancipatória,7 presente na metodologia da educação popular aplicada à saúde, neste estudo, à saúde mental. Autonomia que permita ao usuário um melhor cuidado de si, bem como uma maior e melhor inserção na sua própria comunidade, onde o seu “ser diferente” seja devidamente respeitado. Isto é, reconhecido, inicialmente e prioritariamente, em seu próprio meio familiar. Emprego o termo família nesta pesquisa em saúde mental a partir de alguns referenciais presentes na introdução deste tema em saúde mental no caderno de atenção básica nº 34, do Ministério da Saúde, com a pergunta o que é família:

Antes de qualquer proposição de trabalho com família, necessário será entender o que é família em sua complexidade, suspendendo juízos de valor, conceitos fechados, lineares e prontos, os quais produzem uma concepção reducionista de família. Pode ser útil compreender família como um sistema aberto e interconectado com outras estruturas sociais e outros sistemas que compõem a sociedade, constituído por um grupo de pessoas que compartilham uma relação de cuidado (proteção, alimentação, socialização), estabelecem vínculos afetivos, de convivência, de parentesco consanguíneo ou não, condicionado pelos valores

7 Emancipatória: O processo emancipatório freiriano decorre de uma intencionalidade política declarada e assumida por todos aqueles que são comprometidos com a transformação das condições e de situações de vida dos oprimidos, contrariamente ao pessimismo e fatalismo autoritário defendido pela Pós-Modernidade, como aponta o professor Jaime José Zitkoski (2006), e ao mecanismo etapista do marxismo ortodoxo, que afirma que o processo de transformação social como sendo “certo” e “inevitável” (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 146)

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socioeconômicos e culturais predominantes em um dado contexto geográfico, histórico e cultural (BRASIL, 2013, p.63).

Também recorro a Firmo (2015), que destaca a família como o local onde os cuidados entre seus membros tencionam-se entre tutela e libertação e o quanto estes elementos se farão presentes de uma ou de outra forma nas relações sociais, inclusive de forma especial em nosso estudo na área da saúde mental. Para o autor as relações de cuidado, poder e autonomia envolvidas revelam a família como produto e produtora das práticas de saúde (FIRMO, 2015, p.222). A respeito do que entende por “cuidado”, Firmo (2015) destaca em seu artigo “Experiências dos cuidadores de pessoas com adoecimento psíquico em face à reforma psiquiátrica: produção do cuidado, autonomia, empoderamento e resolubilidade” que cuidado não se trata meramente do emprego de técnicas, mas toma o “cuidado” como um processo de responsabilidade com os usuários, com os familiares, na produção de autonomia, empoderamento e resolutividade. Em suas palavras a esse respeito, cuidado não é apenas aplicação de técnicas, mas sim um processo de corresponsabilidade ante a busca pelo bem- estar junto de quem o demanda. Alves (2013) se refere a cuidado como o sentimento de compreensão por outro igual, que pode muitas vezes ter mais facilidade de compreendê-lo que um “técnico em saúde mental”. Destaca em suas próprias palavras o que pensa a respeito do cuidado estendido ao outro:

Falamos aqui de um cuidado estendido ao outro, a um "igual", que muitas vezes é mais capaz de compreender empaticamente seu sofrimento psíquico do que um profissional. Nesse processo, percebemos o lugar do usuário e do familiar como protagonistas desse cuidado, que se baseia na troca de experiências e na participação de cada ator como protagonista de sua vida, de suas histórias e peças importantes na reflexão e mudança de comportamento de cada um que ver no outro um agente empoderado (ALVES, 2013, p. 66).

Alves (2013) aborda o tema empoderamento na visão de usuários e familiares em seu artigo “A visão de usuários, familiares e profissionais acerca do empoderamento em saúde mental”. Acentua que o conceito de empoderamento apresentado por usuários, familiares e profissionais vislumbra a autonomia dos usuários e familiares, perpassando o poder de escolha, o poder de decisão e o poder de serem sujeitos com suas diversidades e semelhanças. Bandeira (2014) destaca que há pouca referência à inclusão dos familiares dos “pacientes” psiquiátricos na avaliação dos serviços embora a sua participação seja igualmente

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importante, em particular quando atuam como cuidadores dos pacientes. Essa é uma informação privilegiada, pois os familiares constituem os principais provedores de cuidados cotidianos aos pacientes (BANDEIRA, 2014, p.42). Bandeira (2014) em seu livro “Avaliação de serviços de Saúde Mental, princípios metodológicos, indicadores de qualidade e instrumentos de medida” apresenta indicadores de qualidade pertinentes para a realização de estudos avaliativos rigorosos sobre os pontos de vista subjetivos dos diferentes atores (“pacientes”, familiares e profissionais) e suas participações nos serviços de saúde mental. É necessário fazer reflexões a esse respeito, pois tais estudos podem ter importantes contribuições para o constante e saudável processo de reciclagem do movimento da reforma psiquiátrica em nossa comunidade. Nas particularidades do movimento da reforma psiquiátrica em nosso meio, esta pesquisa pode ser uma oportunidade de analisar e estimular a participação dos familiares nos tratamentos das pessoas com sofrimento psíquico crônico. Pode, assim, contribuir para reduzir o estigma e a sobrecarga que essas famílias carregam ao longo de suas vidas, e ajudá-las na construção da autonomia possível a essas pessoas com psicose crônica. A respeito do estigma em saúde mental procuro evitar na presente pesquisa o termo “paciente”8, pois ele pode estar associado a uma ideia de passividade. Do mesmo modo evito o termo “doente mental”, que pode ter um aspecto reducionista, organicista em que o indivíduo é reduzido a um órgão ou a uma doença, característico do “Modelo Biomédico”. Assim o fazendo, espero contribuir para a redução do intenso estigma que acompanha o “rótulo” de certas “doenças mentais”, associadas com a loucura (“o louco”). Ao contrário, de forma mais ampla e integradora, a dimensão da “pessoa” em seu contexto sociofamiliar está enfaticamente presente no modelo biopsicossocial. Outro termo associado a este modelo é o termo “usuário”, que implica os direitos de alguém que usa um serviço público, portanto estreitamente associado ao ato de cidadania. Essas mudanças conceituais se fazem presentes nesta pesquisa de doutorado, o que, por si só, considero um significativo aprendizado neste processo de construção da identidade profissional, tendo em vista que na pesquisa de mestrado (Amaral, 2013) ainda não tinha valorizado adequadamente essas diferenças conceituais, e que poderão ser vistas quando o referido mestrado for citado e onde aparecerá o termo paciente. Acrescento que essas

8 Paciente: A palavra paciente vem do latim "patientem": o que sofre, o que padece. Este sentido primitivo pode ser encontrado também na Gramática, onde dizemos que, na voz passiva, o sujeito que "sofre" a ação do verbo é o "sujeito paciente" https://www.dicionarioetimologico.com.br/paciente/ acessado em 14/09/2017

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mudanças a partir de meu aprendizado não se restringem apenas aos aspectos conceituais, mas também à forma como vejo e me relaciono com essas pessoas em meu cotidiano. Evidencio, assim, o quanto o Mestrado e o Doutorado em Educação nas Ciências podem contribuir na discussão integradora dos referenciais teóricos e práticos de forma construtiva para a reflexão da atuação e identidade profissional de seus participantes. Entretanto, a par desta importante preocupação com os diferentes referenciais teóricos utilizados em saúde mental, reputo oportuno caracterizar o que a literatura médica, de forma consensual, considera como os sintomas mais característicos da pessoa com esquizofrenia. Quanto aos sintomas apresentados por pessoas com esta psicose crônica (esquizofrenia), podem ser classificados da seguinte forma, utilizando-se o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (D.S.M. V) 2014, p.87:  Sintomas positivos: delírios, alucinações, desorganização do pensamento;  Sintomas negativos: diminuição da vontade e da afetividade, o empobrecimento do pensamento e o isolamento social;  Sintomas cognitivos: dificuldade de atenção, concentração, compreensão e abstração.  Sintomas afetivos: a depressão, a desesperança, e as ideias de tristeza e ruina, inclusive autodestrutivas. Apesar do alívio desses intensos sintomas em diferentes momentos na vida da pessoa com esquizofrenia, na atual realidade do CAPS II, na cidade de Ijuí, percebe-se que não basta a desinstitucionalização e que as propostas de tratamento na comunidade se referenciem somente em modelos interrogatórios (baseados no normal e anormal) e na medicalização. Portanto questiono o quanto é necessário um adequado espaço de atenção aos usuários e seus familiares onde possam ser oferecidas novas alternativas de tratamento à pessoa com sofrimento mental crônico em sua comunidade local. Uma possível solução é que nesse novo espaço a pessoa seja prioritariamente ouvida, não só em suas queixas, mas também em que contexto ocorreu seu adoecimento, quais seus desejos e suas possibilidades de realização. Na problemática desta pesquisa, o quanto este espaço pode viabilizar as diferentes contribuições educativas, em especial a participação do familiar no tratamento, o que pode ser indispensável para a conquista da autonomia possível à pessoa com esquizofrenia. Para Santin (2011), a partir dessa reformulação no atendimento às pessoas com sofrimento mental em sua própria comunidade, os sujeitos que antes viviam enclausurados nos hospitais psiquiátricos agora podem contar com um tratamento mais próximo de seus

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familiares e da comunidade onde vivem. Ao mesmo tempo, a referida autora questiona o preparo das famílias para receberem em seu meio e na própria comunidade essas pessoas que tanta descriminação sofreram ao longo de sua vida, e agora precisam ter dessas famílias uma atenção humanizadora. Nas palavras de Santin (2011, p 147):

Porém, nossa sociedade, bem como as famílias, estão pouco preparadas e amparadas para acolher o portador de sofrimento psíquico, havendo ainda uma lacuna entre o cuidado que se tem e o cuidado que se almeja ter em saúde mental. Por outro lado, muitos são os esforços empreendidos pelos serviços e pelos profissionais da saúde na busca por reverter a lógica de atenção à saúde mental arraigada na nossa cultura, em que prevaleceu por muitos anos, a exclusão e o preconceito.

No contexto da priorização da lógica de atenção à saúde mental na própria comunidade, considero adequado organizar a escrita desta pesquisa em cinco capítulos: No capítulo primeiro, Caminho Metodológico e Referenciais Teóricos, busco embasamento na pesquisa qualitativa descritiva compreensiva de Minayo (2013) e destaco os elementos técnicos utilizados neste estudo: a) Observação participante (processo interativo), observação das atividades: processo de organização das reuniões do grupo e assembleias, fragmentos de arte-terapia. Acrescento, também, a análise documental: questionários e prontuários da população pesquisada. b) Entrevistas dos envolvidos (usuários e familiares) acrescidas da análise de conteúdo, técnica de Bardin (2011), a partir das categorias reagrupadas por similaridade sob dois temas. c) Retrato sociológico de uma usuária do CAPS II (processo em movimento), associado à técnica da análise individual das disposições, metodologia proveniente da sociologia de Bernard Lahire (2004), especialmente presente em sua obra “RETRATOS SOCIOLÓGICOS Disposições e variações individuais”. Nos referencias teóricos relaciono autores que deram sua contribuição para a humanização das pessoas que estão às margens do social, neste estudo as pessoas tratadas na saúde mental (inclusão social). Estes mesmos autores perceberam que não basta incluir, é necessário oferecer práticas educativas que ajudem na emancipação (autonomia possível) dos marginalizados, ou seja, usuários de um serviço de saúde mental para um melhor cuidar de si. No segundo capítulo, A Reforma Psiquiátrica, o destaque inicial a Nise da Silveira deve-se ao seu pioneirismo na Psiquiatria Brasileira e faz parte do reconhecimento de que há

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muito tempo ela é merecedora pela sua dedicação na humanização do tratamento dos “doentes mentais” a quem ela chamava de clientes, numa maneira inovadora de referir-se ao doente mental, ao “louco”. É possível observar a evolução do discurso da loucura e sua relação com importantes autores e pesquisadores/as na área da saúde mental de diferentes nacionalidades e suas decisivas contribuições para a reforma psiquiátrica que modificou o olhar subjetivante para essa “pessoa diferente”. Faço um resumo histórico da reforma psiquiátrica no Brasil, associando-a com a fala dos usuários e de seus familiares no atual contexto da mesma. Constitui-se uma necessidade estimular o papel de protagonista aos usuários e aos seus familiares na produção de conhecimento em saúde mental. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) recebe uma atenção especial por ser um indispensável referencial para o momento atual da saúde mental no Brasil. Ressalto a necessidade de mudança do modelo hospitalocêntrico (Biomédico) para o de atendimento das pessoas com sofrimento psíquico crônico na sua própria comunidade (Biopsicossocial). Examino no terceiro capítulo, Saúde mental e Comunidade local, a contextualização de comunidade na pós-modernidade para chegar à realidade atual da cidade de Ijuí, e das contribuições formais e informais possíveis à saúde mental pela comunidade local, bem como questionar algumas resistências ainda presentes para um melhor acolhimento à pessoa com sofrimento mental crônico em seu próprio território (ambulatório) de referência. Estudo também as principais características das pessoas com esquizofrenia, usuários do CAPS II de Ijuí, que participam da presente pesquisa de doutorado. O CAPS II como território pedagógico mostra o enfrentamento dos déficits cognitivos, frequentemente presentes na esquizofrenia, por meio de um relato da circulação dos usuários por diferentes “territórios culturais”. Esses estímulos culturais permitem a cada um o enriquecimento de seu mundo interno e assim viabilizar melhores condições para conquistar sua própria emancipação. Destaco uma das atividades dos usuários deste serviço, enriquecida por um fragmento da arte- terapia, para mostrar uma alternativa terapêutica de que a saúde mental pode dispor frente ao forte estímulo ao uso excessivo de medicamentos que ainda teima em permanecer presente nos dias atuais. No quarto capítulo, O Processo Educativo, analiso a Educação Popular como um método para dialogar com os usuários e seus familiares sobre esta nova realidade possível em saúde mental, qual seja, a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si, necessariamente associada à participação familiar e a observação da participação ativa e criativa dos usuários por meio de um grupo “operativo-terapêutico”. Isso permite a esses usuários uma nova subjetivação que não a do “louco inválido”. Discorro,

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ainda, sobre o papel do grupo como espaço na comunidade onde devem ocorrer trocas de vivências entre todos os envolvidos, o que viabiliza a construção de novos relacionamentos, ajudando, assim, a pessoa com esquizofrenia a sair de seu isolamento. Destaco em especial o “grupo operativo-terapêutico” como um espaço de enfrentamento ao modelo biomédico de assistência em saúde mental o qual prioriza intensamente a medicalização. No quinto capítulo, Autonomia como processo libertador para o cuidar de si, inicialmente abordo a necessidade de o usuário e seu familiar vencerem preconceitos para criarem as condições para uma nova subjetivação, sem esquecer-se de outros temas que ainda se fazem presentes, de forma inquietante em nossos dias, tais como exclusão e inclusão social, cujos enfrentamentos são inevitáveis para que uma nova subjetivação, com autonomia, seja possível à pessoa com sofrimento mental crônico (psicose crônica). Destaco os referenciais para subjetivação em saúde mental, de maneira especial o de autonomia no processo de libertação para o cuidado de si. Examino a autonomia como um processo de emancipação na visão de Freire (2013) por meio de uma educação popular, e na contextualização de Foucault (2014) a partir do cuidado de si. O aprendizado da autonomia para o cuidar de si é o que se espera encontrar nas respostas dos usuários e familiares tendo como pano de fundo o “grupo operativo-terapêutico”. Essas respostas são reunidas como elementos a serem refletidos pela análise de conteúdo a partir da pesquisa de mestrado (2013) e aprofundadas na atual pesquisa de compreensão da autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental e sua relação com a participação familiar neste processo emancipatório e de construção da cidadania às pessoas com esquizofrenia. São acrescidas pela entrevista, em que colaboro na construção do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II, obtido no percurso da atual pesquisa. Este retrato sociológico é representativo, pois permite observar as resistências sociofamiliares que, atualmente, ainda dificultam o processo do cuidado de si aos usuários de um serviço de saúde mental. Discorro nas Considerações Finais sobre o processo construtivo da autonomia das pessoas que vivem às margens do social, neste estudo as que sofrem de esquizofrenia e, por consequência, de diferentes formas de discriminação e de opressão. Autonomia que significa para Freire (2013) dar-lhe poder e liberdade no contexto emancipatório, e para Foucault (2014) um novo discurso com elementos para construção de uma nova subjetivação, especialmente ligado à estética do cuidado de si. É necessário que além da inclusão social das pessoas com esquizofrenia, inicialmente em sua família e na própria comunidade, se evidencie o quanto de empoderamento essas

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pessoas estão conquistando para o cuidar de si nesse processo de retorno à sua comunidade, à sua família. Para que isto ocorra, observo ao longo desta investigação o quanto pode ser indispensável estimular uma maior participação/cooperação dos familiares no tratamento em saúde mental na comunidade de Ijuí e, em especial, no espaço do grupo.

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1 CAMINHO METODOLÓGICO E REFERÊNCIAS TEÓRICAS No caminho metodológico e referências teóricas registro, de diferentes maneiras, a participação dos usuários e de seus familiares em um grupo “operativo-terapêutico”. Ora faço isto através de uma observação participante, ora dando a palavra aos participantes da pesquisa por meio das entrevistas, especialmente associadas ao papel do grupo na contribuição em seus processos de emancipação. Considero, contudo, indispensável uma análise mais individualizada de uma usuária do “grupo operativo-terapêutico”, o que é feito por meio do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II, de Ijuí, e as diferentes disposições que possam contribuir ou dificultar o seu processo de autonomia possível.

A articulação lógica de toda investigação científica exige uma sequência de relações entre esses que compõem o trabalho de investigação, sem os quais o processo de elaboração do conhecimento cientifico será deficiente e sua qualidade será deficitária. Entendemos que esses elementos deverão estar, explicitamente ou implicitamente, presentes em todo trabalho cientifico, independente de seu maior ou menor grau de coerência e articulação (GAMBOA, 2007, p. 16).

Neste contexto, utilizei as palavras de Gamboa (2007), que considera indispensável a busca dessa articulação em uma investigação científica. A articulação dos elementos metodológicos e as técnicas utilizadas são indispensáveis para um entendimento do constante fluxo, e de suas sutilezas, entre o social e o individual no processo de contribuições educativas na construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, na cidade de Ijuí/RS. Na presente pesquisa investigo como problemática “Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”. Concebo esta investigação científica como uma consequência da pesquisa realizada no mestrado em Educação nas Ciências junto à Unijuí “Inclusão social de pacientes psicóticos: um enfoque educativo na psiquiatria por meio de um grupo terapêutico9” (Amaral,2013). Essa pesquisa foi realizada em 2013 e contou com a devida autorização pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unijuí com o nº C.A.A.E.: 08417512.70000.5350. A referida pesquisa foi realizada na comunidade de Ijuí a partir do trabalho em saúde mental com grupo terapêutico, no período de 2004 a 2012, quando percebi a necessidade de diferentes intervenções interdisciplinares no tratamento da pessoa com psicose crônica, na

9 Na pesquisa de mestrado (Amaral 2013) o termo mais adequado seria o de grupo operativo (tarefa de inclusão), pois só agora na atual pesquisa os usuários estão em condições de apropriarem-se de suas experiências (insight/empoderamento). Por isso passo a usar o termo “grupo operativo-terapêutico”. (grifo meu)

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busca de sua inclusão social. Na dissertação de mestrado (2013) defendi a ideia de que o grupo, por meio de uma educação dialógica entre seus participantes, constitui-se num espaço efetivo para o processo de inclusão social da pessoa com doença mental em sua comunidade e, em especial, em sua própria família. Com esse estudo avaliei o grupo e sua real competência como alternativa terapêutica para a inclusão social das pessoas com esquizofrenia em tratamento no CAPS II de Ijuí/RS, operacionalizada por meio de uma prática de ensino e aprendizagem num grupo de atividade interdisciplinar. Essa problematização foi necessária em razão do retorno das pessoas com esquizofrenia à sua comunidade após períodos prolongados de institucionalização e da necessidade de um local na comunidade para as práticas educativas e inclusivas em saúde mental, considerando o despreparo da família e da própria comunidade para recebê-las. Evidenciou-se ao final dessa pesquisa de mestrado o quanto o grupo constitui-se num espaço efetivo no processo de inclusão das pessoas com psicose crônica junto ao CAPS II, na cidade Ijuí/R.S. A inquietação desencadeada a partir dessa prática de inclusão social da pessoa com esquizofrenia refere-se à excessiva dependência dessas pessoas a suas famílias, ao próprio CAPS II e à excessiva medicalização, fazendo-se necessário um local adequado à discussão da autonomia possível na vida destes usuários, o que considero indispensável na construção de sua cidadania10. A presente pesquisa possibilita, também, abordar o movimento da reforma psiquiátrica e refletir sobre o seu atual momento na comunidade de Ijuí, o que pode ser feito com a ajuda de várias áreas de conhecimentos, especialmente da saúde e da educação, e que são tão caras a todos que trabalham em saúde mental. A partir da dissertação de mestrado, Amaral (2013), criaram-se as condições e motivações para a realização da presente pesquisa “Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”. Nesta pesquisa estudo, no período de 2004 a 2014, a viabilidade do grupo “operativo-terapêutico” ser um espaço para construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, na cidade de Ijuí. A pesquisa contou com a devida autorização pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unijuí com o nº C.A.A.E.: 61720416.0.0000.5350. Destaco que os grupos reúnem-se semanalmente, com duração de aproximadamente 50 minutos. Esses grupos

10 Cidadania: A cidadania em Freire é compreendida como apropriação da realidade para nela atuar, participando conscientemente em favor da emancipação[...] Todo ser humano pode e necessita ser consciente de sua cidadania. É necessário que seja consciente de sua situação e de seus direitos e deveres como pessoa humana. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 67)

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estudados são em número de três (3), cada grupo com média de oito (8) participantes, sendo que três (3) não preencheram as condições de participar da pesquisa, totalizando um número de 21 participantes. Todos os participantes da pesquisa preencheram os seguintes critérios de seleção: a) Usuários: - Ter idade igual ou superior a 18 anos e ser alfabetizado; - Ser usuário em tratamento prévio no CAPS II, de Ijuí/RS; - Ser uma pessoa em tratamento para psicose crônica (esquizofrênicos); - Fazer uso de medicação antipsicótica de segunda geração, ou atípica, isto ´é, com um mínimo de efeitos colaterais, preferencialmente clozapina. Quando do uso de clozapina, deverá ser considerada avaliação clínica prévia para excluir condições clínicas que contra indiquem o seu uso, bem como a realização de exames periódicos de controle hematológico; - Aceitar participar e apresentar condições psíquicas de responder ao instrumento de coleta de dados; - Participar de uma reunião semanal realizada com o grupo de usuários, com duração aproximada de 50 minutos; - Estar acompanhado de um familiar na 1ª reunião do mês realizada com o grupo de usuários; - O participante do estudo não pode apresentar três faltas consecutivas sem justificativa nas reuniões, conforme normas estabelecidas na constituição do grupo, pois isto implicará o seu desligamento do grupo. b) Familiares: - Ter idade igual ou superior a 18 anos e ser alfabetizado; - Acompanhar regularmente o seu familiar enfermo em seu tratamento; - Aceitar participar e apresentar condições psíquicas de responder ao instrumento de coleta de dados. c) Riscos: - Na ocorrência do usuário ou do familiar durante a aplicação do instrumento de coleta de dados apresentar qualquer alteração física ou psíquica, este receberá imediatamente atendimento adequado e poderá continuar como participante da pesquisa em outro momento, se assim o desejar; - Se suceder que algum dos participantes da pesquisa se sinta constrangido ou desconfortável em responder a qualquer uma das questões que compõem o instrumento de

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pesquisa, este poderá, a qualquer momento, interromper sua participação no referido estudo; - Caso algum dos participantes sentir dificuldade em responder a qualquer uma das questões do instrumento de pesquisa, esse poderá solicitar auxílio do aplicador. d) Benefícios: - Estabelecer uma prática de ensino e aprendizagem na construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, Ijuí/RS; - Propiciar ao usuário e seu familiar um ambiente acolhedor que favoreça a criação de vínculos mais saudáveis e que possam ser estendidos ao seu cotidiano familiar; - Permitir ao usuário um momento de reflexão sobre o seu atual estágio de autonomia para o cuidar de si; - Permitir aos familiares um momento de reflexão sobre a sua participação no processo de construção da autonomia possível ao seu familiar enfermo; - Propiciar à instituição (CAPS II) uma reflexão sobre a prática aplicada atualmente na “experiência” de inclusão social com autonomia aos seus usuários. Trata-se de uma metodologia de investigação qualitativa descritiva e compreensiva Minayo (2013), com elementos da técnica de: a) Observação participante (processo interativo); b) Entrevistas dos envolvidos (usuários e familiares), acrescidas da análise de conteúdo de Bardin (2011); c) Análise sociológica de Lahire (2004) à escala individual por meio do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II (processo em movimento). A esses elementos acrescentam-se, também, as referências da metodologia da Educação Popular. “O Método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza e politiza” Freire (2017), associado à técnica de grupos operativos segundo Pichon- Rivière (2009). Elementos das técnicas utilizadas que passo a descrever de forma mais singularizada: a) Observação participante (processo interativo) Tem como base a minha participação nos diferentes espaços de saúde mental junto à comunidade, em especial nos locais onde a pesquisa foi realizada. Entre eles destaco o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II), o “grupo operativo-terapêutico”, a casa de Auto Mutuo Ajuda (AMA) e a possibilidade de aproximação e intercâmbio com a rede ambulatorial de saúde na cidade de Ijuí. Nesses locais foram observadas diferentes atividades educativas: a participação dos usuários, a participação dos familiares, a educação

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popular em saúde mental, a terapia ocupacional, a arte-terapia, as intervenções interdisciplinares, as alternativas não formais da própria comunidade, além dos depoimentos dos diferentes profissionais que participam no grupo. Em referência à problemática atual, esta observação participante permite questionar: o grupo pode constituir-se como um espaço pedagógico para a construção da autonomia possível a estas pessoas por meio das diferentes contribuições educativas e, em especial, a participação familiar em seus tratamentos? É adequado destacar os elementos conceituais que compõem a metodologia do grupo operativo: ECRO (Esquema Conceitual Referencial Operativo) ao mesmo tempo que os utilizo para fazer uma diferenciação da pesquisa de mestrado (Amaral, 2013) e a atual pesquisa, objeto da tese de doutorado.  Um esquema conceitual é um conjunto organizado de conceitos universais que permitem a apreensão da realidade, uma abordagem da situação concreta a pesquisar ou a resolver:  Mestrado: Saúde mental e Inclusão social  Doutorado: Saúde mental e Autonomia  O esquema referencial refere-se ao campo, ao segmento de realidade sobre o qual se pensa e opera, assim como aos conhecimentos relacionados a esse campo:  Mestrado: A inclusão social das pessoas com esquizofrenia.  Doutorado: A autonomia possível às pessoas com esquizofrenia.  O aspecto operativo é baseado no estabelecimento de tarefas a serem trabalhadas por meio da aprendizagem das mudanças em um ambiente grupal:  Mestrado: A inclusão social dos usuários com esquizofrenia no CAPS II de Ijuí.  Doutorado: A autonomia possível aos usuários com esquizofrenia no CAPS II de Ijuí para um melhor cuidar de si. Ressalto que o grupo não pode ser visto só como um instrumento de pesquisa, mas como o próprio meio de socialização (inclusão social) e, se possível, de libertação a todos os envolvidos para um melhor cuidar de si (autonomia). b) Entrevistas dos envolvidos (usuários e familiares) acrescidas da análise de conteúdo de Bardin (2011). Têm como base as respostas dos 21 usuários com psicose crônica (esquizofrenia) e de seus familiares no CAPS II a partir da pesquisa de mestrado (2013), na cidade de Ijuí/ RS. Tais respostas são agora reagrupadas por categorias similares, constituindo dois grandes

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“temas” através dos quais faço uma análise das vivências dos usuários e de seus familiares e a relação com a problemática estudada. Na metodologia da Análise de Conteúdo considero oportuno dar destaque aos seus elementos técnicos:  As categorias No mestrado, (Amaral, 2013. p.9) as categorias, associadas às perguntas feitas aos pacientes e aos seus familiares, aparecem na seguinte ordem:  Categoria 1-Empatia com o sofrimento mental do outro  Categoria 2- Percepção do sofrimento mental  Categoria 3- Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito  Categoria 4: Socialização no ambiente familiar  Categoria 5-Confiabilidade no outro  Categorias 6: Capacidade de iniciativa em interações sociais  Categorias 7: Tempo gasto com o lar, trabalho e estudos  Categorias 8: Capacidade de autonomia. Na presente pesquisa, as categorias são reagrupadas por afinidade em dois temas, possibilitando uma melhor análise com a problemática atual, qual seja o grupo como espaço pedagógico para a construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, de Ijuí/RS. TEMA-I “CONHECENDO A ENFERMIDADE MENTAL”.  Categoria 1-Empatia com o sofrimento mental do outro  Categoria 2- Percepção do sofrimento mental  Categoria 3- Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito  Categoria 4-Confiabilidade no outro Essas categorias têm em comum os aspectos do reconhecimento da doença mental em si e no outro assim como o estigma e os medos que a acompanha. Em especial aos usuários que tanto necessitam deste entendimento, bem como do acompanhamento e do apoio de seus familiares. TEMA-II: “ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA”  Categoria 5- Socialização no ambiente familiar;  Categorias 6- Capacidade de iniciativa em interações sociais;  Categorias 7- Tempo gasto com o lar, trabalho e estudos;  Categorias 8- Capacidade de autonomia. No segundo tema, busco evidenciar a ocorrência de uma vivência libertadora, portando emancipatória, para os usuários associada à importante participação dos seus

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familiares em seus tratamentos. Relaciono as respostas dos usuários e as de seus familiares nas categorias em estudo com os dados que a literatura referenciada apresenta e sua relação com o tema proposto. Ao longo do presente estudo, as respostas dos usuários e as de seus familiares são apresentadas nesta nova ordem, de maneira especial na sessão “5.4- Respostas dos usuários e de familiares e a metodologia de Análise de Conteúdo”. Para facilitar o seu entendimento, poderão ser localizadas nos apêndices ao final da pesquisa. Destaco que os usuários são representados pela letra “U” e os familiares pela letra “F”, bem como a categoria abordada pela “C”. São acompanhadas do número que as identifica na ordem das respostas junto à pesquisa. Num total de 21 (vinte e uma) respostas em cada categoria, por razões didáticas e metodológicas foram escolhidas apenas 5 (cinco) com conteúdo representativo dos usuários e familiares  Unidades de registro Palavras-chaves (palavra ação) em suas respostas, agrupadas em relação à capacidade de aprendizagem dos usuários e dos familiares.  Análise de Conteúdo Realiza-se a partir da análise das respostas dos usuários e dos seus familiares visando avaliar o quanto o “grupo operativo-terapêutico” pode ser um espaço pedagógico efetivo para a conscientização: conhecimento da enfermidade mental por parte dos usuários e seus familiares; emancipatória: construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, na cidade de Ijuí. Esta problemática é avaliada com auxílio das diferentes contribuições educativas a todos envolvidos, em especial a participação dos familiares, considerando que a autonomia é um processo libertador em construção por meio de uma educação popular, vivenciada em uma prática de cuidado de si. A opinião de Minayo (2016) a respeito da análise de conteúdo (Bardin, 2011) destaca duas funções para a referida metodologia, ou seja, respostas para a problemática estudada e a descoberta dos conteúdos subjetivos. É oportuno destacar que o processo de análise de conteúdo (Bardin 2011), além de ser prioritariamente qualitativo, portanto, subjetivo, permite diferentes interpretações das que ora apresento. Porém considero prioritariamente uma metodologia científica, que permite aos usuários e seus familiares terem vez e voz, contribuindo, assim, para que possamos ter uma nova narrativa sobre a “doença mental”. c) Análise sociológica de Lahire (2004) à escala individual por meio do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II (processo em movimento).

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Cabe lembrar que na sociologia o estudo do indivíduo pode ser considerado um objeto bastante contemporâneo. Conforme Junior Lima & Massi, (2015, p.561):

Embora qualquer teoria sobre grupos sociais sempre pressuponha a existência de pessoas de carne e osso, a individualidade dessas pessoas pode ser considerada um objeto bastante contemporâneo para o tratamento sociológico. A própria proposta de elaborar uma sociologia do indivíduo pode parecer uma “contradição em termos”, na medida em que a nossa concepção de “social” estiver (equivocadamente) construída em oposição a qualidades e processos que só podem ser observados quando analisamos os indivíduos enquanto tais.

Dessa forma, Lahire (2004) procura estudar as exceções que possam ocorrer à medida que estuda o individual do deste contexto social, sendo assim uma maneira de contribuir para o aprimoramento da sociologia bourdieusiana. Para tanto busca uma análise do indivíduo sem desconsiderar as diferentes influências sociais (disposições) e considera, também, a sua possibilidade de mobilidade social. O que se espera na metodologia do retrato sociológico é justamente objetivar a subjetividade, identificando as marcas do social no individual, construindo uma ponte entre os contextos macrossociológico e microssociológico. A técnica dos retratos sociológicos de Lahire (2004) permite um novo olhar sobre uma usuária do CAPS II, participante do “grupo operativo- terapêutico” na medida em que esta técnica inscreve a experiência científica (em nosso estudo o adoecimento mental) e educacional (em nosso contexto a sua capacidade de aprendizagem de cuidar-se/autonomia) de um ator individual no contexto de sua trajetória social. No retrato sociológico de uma usuária do serviço de saúde mental (CAPS II-Ijuí), procuro dar destaque, de forma detalhada, à sua entrevista e assim ajudá-la a reconstruir sua própria história de vida e as dificuldades que a acompanham em seu contexto histórico e sociofamiliar no seu processo de autonomia. Para tanto, na análise individual de sua entrevista, busco aportes em Lahire (2004) e sua metodologia de investigação para a pesquisa em educação. Ao longo desta entrevista a complexidade de elementos que compõem sua história de vida podem ser vistos como “disposições”, conceito defendido por Bernard Lahire (2004) em seu livro “RETRATOS SOCIOLÓGICOS Disposições e variações individuais” e que se refere às múltiplas influências que o indivíduo pode receber ao longo de sua vida. Embora, quando analisadas separadamente, pareçam incongruentes e/ou incoerentes. Lahire (2004, p.23) assim se refere a respeito de disposição:

Na verdade, uma disposição só se revela por meio da interpretação de múltiplos traços, mais ou menos coerentes ou contraditórios, da atividade do indivíduo

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estudado, sejam eles produto da observação direta do comportamentos, do recurso ao arquivo, ao questionário ou à entrevista sociológica.

As disposições sugeridas para serem abordadas na construção do atual retrato sociológico serão: família; vida escolar; trabalho; amizades; lazer; saúde (cuidado de si); “religião”. Lahire (2004) distingue, sobretudo, três tipos de disposições: para agir, para crer e para sentir. Assim, as disposições são determinantes não somente das nossas práticas, mas das nossas maneiras de pensar e de falar. Junior Lima & Massi (2015, p.563) nos falam sobre as diferentes disposições que os indivíduos podem incorporar ao longo de suas vidas:

[...] É também prerrogativa desses indivíduos incorporarem novas disposições a cada nova experiência social duradoura com a qual se deparam, acumulando, ao longo da sua trajetória de vida, um patrimônio de disposições e competências irredutível a qualquer origem social.

O retrato sociológico também poderá contribuir para contextualizar as dificuldades de entendimento no contexto familiar do adoecimento e da necessidade de a equipe interdisciplinar do serviço de saúde mental ter acesso a esse entendimento e assim poder contribuir efetivamente na construção da autonomia possível aos usuários do referido serviço. É oportuno destacar que meus contatos prévios com a entrevistada foram apenas informais, em um “grupo operativo-terapêutico” no serviço de saúde do município de Ijuí. A motivação para entrevistá-la ocorreu em função de sua discreta participação nos referidos encontros, ocasiões em que permanecia praticamente no anonimato. Por outro lado, espero que esse retrato sociológico possa ficar à disposição da instituição e de seus profissionais, e assim contribuir para uma possível reflexão a todos os envolvidos. Ao longo deste retrato sociológico, também faço uso das palavras de Jorge Candido Assis (2013), pois se trata de uma pessoa com esquizofrenia, e um dos organizadores do livro: “Entre a razão e a ilusão desmitificando a esquizofrenia”. Também é vice-presidente da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRE). Tem participado e ministrado aulas no curso de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É membro consultor do Movimento Global de Saúde Mental. É indispensável o reconhecimento a este ex-aluno de física e de filosofia da USP e que carrega consigo a disposição e a vivência para superar o estigma da esquizofrenia, posto que, nos dias de hoje, essas pessoas ainda sofrem intensa discriminação e exclusão em nossa sociedade. Destaco suas vivências durante a entrevista da usuária do serviço de saúde mental,

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e acrescento o reconhecimento pela coragem, de revelar seus sofrimentos e seus sonhos, e assim dividir com todos o lado mais humano de cada um. Destaco a seguir os objetivos a serem trabalhados ao longo deste estudo sobre o tema saúde mental e a problemática de um espaço pedagógico na comunidade para a construção de uma autonomia possível a essas pessoas com esquizofrenia e as de diferentes contribuições educativas neste processo: a) Constatar o quanto esta prática grupal em saúde mental pode constituir-se em um espaço de educação dialógica, participativa e cooperativa envolvendo usuários e seus familiares na construção da autonomia à pessoa com esquizofrenia para o melhor cuidar de si. Uma metodologia de educação popular em saúde mental especialmente quando considera a autonomia como emancipatória para uma verdadeira cidadania. b) Evidenciar o quanto a pessoa com esquizofrenia pode participar na construção de sua autonomia possível para o melhor cuidar de si e assim constituir uma nova subjetivação que não a do “louco/invalido”, diminuindo a sua dependência como usuário ao CAPS II e à sua própria família. c) Avaliar o quanto é necessário estimular, na comunidade de Ijuí, a participação dos familiares nos tratamentos das pessoas com sofrimento mental crônico. d) Evidenciar as diferentes contribuições educativas para o processo de autonomia possível ao usuário de um serviço de saúde mental, para que elas possam ser efetivas, especialmente quando em uma prática integrativa e integradora. e) Observar o quanto a participação dos usuários e de seus familiares na presente pesquisa pode proporcionar a ambos uma oportunidade de reflexão sobre a autonomia como processo libertador, emancipatório para um melhor cuidar de si, em especial às pessoas com esquizofrenia. Isso possibilitará a estas pessoas a apropriação de suas vivências, tornando-as experiências de vida para uma nova convivência em seu cotidiano familiar. f) Evidenciar a possibilidade e a importância da atividade interdisciplinar no “grupo operativo-terapêutico” em saúde mental, criando condições de respeito, valorização e de colaboração aos diferentes profissionais envolvidos. Evitando, assim, que a própria prática em saúde mental seja incoerentemente excludente. Quanto aos referenciais teóricos, parto dos estudos do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Esses referenciais são didaticamente divididos em três domínios: a arqueologia do saber, a genealogia do poder e a ética do cuidado de si mesmo. É dado

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destaque, em sua primeira fase, ao trabalho que tanto contribuiu para a desconstrução do discurso da loucura: “História da Loucura na Idade Clássica” (1997), tema “dissecado” pelo autor e a sua consequente relação com a normalização e que ainda teima em permanecer vigente entre nós, através de rótulos de normalidade e de anormalidade. Também recebe um destaque especial a terceira fase de sua obra quando passa a apresentar a subjetivação na forma explicita através do cuidado de si, especialmente na sua obra: “A história da sexualidade III o cuidado de si” (2013). A relevância de Basaglia (1985), médico psiquiatra italiano, deve-se ao fato de ser considerado um dos precursores da reforma psiquiátrica. Em sua experiência exitosa na Itália, Basaglia (1985) criticava a postura tradicional da cultura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção clínica. No campo das relações entre a sociedade e a loucura, o autor assumia uma posição crítica para com a psiquiatria clássica e hospitalar, por esta centrar-se no princípio do isolamento do “louco” (a internação como modelo de tratamento), portanto, excludente e repressora. Questiona-se o quanto “a loucura” representava economicamente para os grandes manicômios que recebiam do Estado para cuidarem dessas pessoas diferentes, os “loucos”. Portanto, “mercadorias rentáveis” e que deviam ser deixadas à parte, segregadas. Nos dias atuais, Bauman (2008), filósofo polonês, nos fornece elementos para compreender o mundo de hoje e seus contextos de subjetivação e de socialização a partir dos quais pode-se fazer uma profunda reflexão sobre a transformação do ser humano em mercadoria.

[...] ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias. (BAUMAN, 2008, p. 20).

Para isso, o indivíduo é submetido a esse tipo de sociedade de massificação, inicialmente estimulado a consumir no mundo externo e posteriormente em seu próprio corpo em nome de uma estética narcísica. Bauman (2001, p.99) nomeia: “sociedade dos produtores- saúde como padrão para seus membros; sociedade dos consumidores- aptidão (fitness) como padrão para seus membros”. Em outro momento, o autor destaca o quanto isto implica abrir mão de nossa liberdade:

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Abrimos mão de nossa liberdade para não lidarmos com a responsabilidade, assim, abrimos mãos de pensar. O principal objetivo da teoria crítica era a defesa da autonomia, da liberdade de escolha e da autoafirmação humanas, do direito de ser e de permanecer diferente. (BAUMAN, 2001, p.37).

Nos tempos atuais da pós-modernidade11, estabeleço um comparativo com outro tipo de excluído “os estrangeiros” que, para Bauman (2001), são as pessoas diferentes, como são as mercadorias com defeitos, mercadorias não vendáveis, pois não “são produtivas”. Portanto, à margem dos processos sociais, incapazes de participar do processo de subjetivação. Surpreendentemente as pessoas “diferentes” nos mostram momentos de intensa e anônima solidariedade. Na saúde mental pude presenciar, em uma atividade sobre higiene no grupo, um usuário do CAPS II considerado perigoso por episódios trágicos em seu adoecimento prévio que se mostrou intensamente afetivo e cuidadoso ao fazer a barba e cortar o cabelo de um colega de grupo com limitações em seus cuidados gerais. Poderá ser esta solidariedade a que se espera dos familiares no processo de construção da autonomia possível ao seu familiar com esquizofrenia. Associo que possa ser esse tipo de solidariedade a destacada por Bauman (2001), embora em outro contexto, qual seja, do “estranho”, do “estrangeiro” em sua obra “Modernidade Líquida”. Ao introduzir as ideias referenciais em Freire (2010), considero oportuno destacar o livro “Aprendendo com a própria história”, um diálogo emocionante entre Paulo Freire e Sergio Guimarães (2010) que nos dá uma dimensão profundamente humana de Freire. O livro contém situações tão inusitadas e ricas em gestos de comovente solidariedade entre tantos envolvidos nos momentos de seu exílio. Muitos de seus textos e seus livros foram escritos nesse período. Eis as palavras de Freire (2010, p.89) a respeito de rememorar fatos passados:

Com relação a isso tenho uma observação a fazer: a meu ver, o grande interesse em se rememorarem momentos passados é o de vê-los como recursos que a gente, como leitor, como pessoa, pode usar com o intuito de melhor entender as ideias e melhor desocultar o contexto humano, social e histórico em que o indivíduo que escreveu estava inserido.

A respeito de emancipação e autonomia dos indivíduos, tema tão atual em nosso contexto social, em seu livro “Pedagogia da Autonomia” Freire (2013) se refere a um

22 Pós-modernidade, segundo o professor Juremir Machado, pode ser descrita como o momento em que (tomando Lyotard como influência) todas as grandes narrativas entram em crise. Lyotard “A pós-modernidade é esse desencantamento em relação à ideia de um futuro garantido, certo, promovido pelas leis da história, necessariamente melhor, redentor. “Ela [a pós-modernidade] é a construção de um presente possível”. Disponível em: http://colunastortas.com.br/2014/05/15/pos-modernidade acesso em 30/06/2017

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processo de vir a ser e que as experiências de autonomia venham acompanhadas de tomadas de decisões e de responsabilidade. Em suas palavras:

A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer em experiências respeitosas de liberdade. (FREIRE, 2013, p. 105)

Para que essas modificações possam ocorrer e permitir a construção da autonomia possível e consequentemente uma nova subjetivação, é indispensável um espaço de escuta e de novas relações sociais, que não a da exclusão, às pessoas com esquizofrenia. No espaço do grupo é onde se espera que possam ocorrer essas vivências na busca de empoderamento 12e emancipação. Referencio-me em Pichon-Rivière (2009), que, vindo da Suíça com seus pais, naturaliza-se argentino ainda criança. Psiquiatra e psicanalista tem seu embasamento teórico e prático no contexto da psicologia social, para ele centrada na aprendizagem através do grupo operativo e de seu Esquema Conceitual Referencial e Operativo (ECRO). Pichon-Rivière (2009) começou a trabalhar com grupos à medida que observava a influência do grupo familiar em seus “doentes mentais”. Sua prática psiquiátrica esteve subsidiada principalmente pela psicanálise e pela psicologia social, sendo ele o fundador da Escola Psicanalítica Argentina (1940) e também do Instituto Argentino de Estudos Sociais (1953). Para o autor, o objeto de formação do profissional deve instrumentar o sujeito para uma prática de transformação de si, dos outros e do contexto em que estão inseridos. Defende ainda a ideia de que aprendizagem é sinônimo de mudança à medida que deve haver uma relação dialética entre sujeito e objeto e não uma visão unilateral, estereotipada e cristalizada. Nesse contexto, Pereira (2013), que estuda “A Dialética na Obra de Enrique Pichon Rivière”, entende que o conhecimento está conceituado em sua obra como a busca da totalização, acrescentando o homem, para se apropriar da realidade, precisa ter uma visão de conjunto. O conhecimento na obra de Pichon Rivière é sempre a busca da totalização, Assim qualquer objeto que se possa perceber ou criar é sempre parte de um todo e, portanto, interligado a outros objetos, fatos ou problemas. Para que o homem possa se apropriar da realidade, precisa buscar uma visão de conjunto que, mesmo sendo provisória, coloca a apreensão da realidade num movimento crescente que gera teses e antíteses as quais, por sua

12 Dentro do amplo referencial freiriano, é importante realçar que o empoderamento não é apenas um ato psicológico, individual, mas um ato social e político, pois o ser humano, para Freire, é intrinsicamente social e político, é pessoa=relação. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 147)

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vez, geram sínteses que geram outras teses e assim por diante. Trata-se de um processo de totalização que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada. (PEREIRA, 2013, p.3). Para melhor compreender esta contextualização do autor, recorro ao esquema do “cone invertido” ou “espiral dialética” de Pichon Rivière (2009). Fig. 1 - Espiral Dialética ou Cone Invertido:

EXPLÍCITO: EXPLÍCITO:

Pertença – afiliação Comunicação – informação Cooperação – direção Aprendizagem – Pertinência – envolver- mudanças se Telê-trabalhar com o outro

IMPLÍCITO “AUTONOMIA PARA O CUIDAR DE SI” (Tese)

A espiral gráfica representa o movimento dialético de indagação e do esclarecimento que vai do explícito ao implícito, com o objetivo de explicá-lo. Analisar é tornar explícito o implícito. (PICHON RIVIÈRE, 2009, p. 69/70). Nota-se que Pereira (2013) propõe em seu artigo “Pichon-Rivière, a dialética e os grupos operativos: implicações para pesquisa e intervenção” uma síntese do pensamento pichoniano fundamentado na dialética13 como forma de construir sua metodologia para os grupos operativos. Grupos que considero uma ferramenta atual para o trabalho em saúde

13 Empregado por Sócrates na Grécia antiga, a dialética era entendida como a arte do diálogo, da argumentação capaz de esclarecer os conceitos envolvidos em uma discussão. Para Konder (1998), entretanto, a conceituação moderna de dialética pode ser entendida como o modo de pensar as contradições da realidade, compreendendo o real como essencialmente contraditório e em constante transformação. (Konder apud PEREIRA, 2013, p. 23).

13.Cont. Em Freire há visão dialética diferenciada em relação à tradição moderna. De uma forma distinta dos clássicos da dialética moderna (Hegel e Marx), há em seu pensamento uma significativa diferença no modo como fundamenta o processo dialético da vida humana em seu todo, pois parte da realidade concreta dos seres humanos desumanizados com o objetivo de problematizar seu mundo através do diálogo crítico e transformados das culturas. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 115/6)

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mental, especialmente como espaço de aprendizagem, de participação e diálogo entre usuários, familiares e profissionais da saúde mental. Contextualizo esta pesquisa como uma possibilidade de diálogo com outras produções científicas na área da saúde mental nesse enfoque da reforma psiquiátrica e de um espaço na busca de autonomia a estes atores na valorização da participação de seus familiares, bem com um olhar sobre a dialética pichoniana e os grupos operativos, associados a uma metodologia de educação popular, presentes nos textos a seguir: Heidrich (2007) propõe em sua tese: “Reforma Psiquiátrica à brasileira: análise sob a perspectiva da desinstitucionalização”, que a reforma psiquiátrica no Brasil tem a necessidade de envolvimento dos movimentos sociais, dos usuários e das universidades na construção de uma nova realidade, especialmente nos aspectos culturais de nossa sociedade, para que acolha efetivamente os “doentes mentais” em suas comunidades. Em relação à participação dos familiares no tratamento das pessoas com sofrimento psíquico crônico utilizo importantes referencias do livro “Entre a ilusão e a razão desmitificando a esquizofrenia” que tem entre seus autores Jorge Candido de Assis (2013), escritor com esquizofrenia e, mesmo assim, com profundas contribuições no meio acadêmico e em várias instituições/associações nacionais e internacionais de pacientes e familiares com doença mental crônica (esquizofrenia). No contexto de participação familiar, o artigo de Firmo (2015): “Experiências dos cuidadores de pessoas com adoecimento psíquico em face à reforma psiquiátrica: produção do cuidado, autonomia, empoderamento e resolubilidade” torna-se uma importante fonte de reflexão e avaliação dessas práticas da reforma psiquiátrica. Destaca o autor em seu artigo os eixos desta prática: “Além do eixo central das necessidades em saúde, que é enfatizado neste artigo, existem ainda o eixo da institucionalização das práticas de saúde, teoria e análise institucional e o eixo das políticas de saúde: financiamento, regimes jurídicos e recursos humanos”. (FIRMO, 2015, p. 222). Assim, Firmo (2015) reforça a importância da comunicação entre essas diferentes dimensões e que podem gerar ações emancipatórias ou restritivas de liberdade.

A forma com que a comunicação entre estas dimensões-além das relações intersubjetivas de ajuda-poder que se revelam e se organizam no ato de cuidar- configura a produção de cuidado, nos processos de trabalho em saúde, pode gerar interações e subversões potencialmente emancipatória ou restritivas das múltiplas liberdades humanas. (FIRMO, 2015, p.222)

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Para Firmo14(2015), empoderamento está associado à mobilização do povo, ao que eu acrescento característica que tem permitido expressivos avanços aos usuários dos serviços públicos ao longo das últimas décadas, especialmente na área da saúde e que foi indispensável para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e, em especial ao nosso estudo, na criação do Movimento da Reforma Psiquiátrica. A respeito de empoderamento, Alves (2013), em seu artigo: “A visão dos usuários familiares e profissionais acerca do empoderamento em saúde mental”, destaca o resultado encontrado em sua pesquisa que foi feita em um CAPS e num Centro de Convivência em Campinas (S.P.), envolvendo sete usuários, três familiares e vinte e quatro profissionais da equipe multiprofissional. A referida pesquisa apresentou como resultado a intensa relação entre a vivência de empoderamento em saúde mental e a construção da autonomia. Por outro lado, Bandeira (2014) destaca que, embora o expressivo desenvolvimento de serviços de saúde mental junto à comunidade que ocorreram em vários países, especialmente a partir dos anos de 1950, o tratamento das pessoas com doenças mentais continua deficiente, e dois terços dos usuários ainda não receberam atendimento adequado. Para Bandeira (2014), há uma deficiência no atendimento dos transtornos psiquiátricos no que se refere à baixa qualidade de diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos usuários. Para a Organização Mundial de Saúde, (OMS, 2008), o prejuízo gerado por esses transtornos é elevado, equivalente a 13% da carga mundial de pessoas doentes, maior que as pessoas com “doenças” cardiovasculares (9,7%) e câncer (5.1%), no ano de 2002. Embora esses dados sejam expressivos, apenas uma pequena percentagem (1%) do financiamento da saúde é destinado à saúde mental, principalmente nos países em desenvolvimento. A OMS (apud Bandeira 2014, p.20) destaca:

Diante dessa realidade, a Organização Mundial de Saúde (OMS)apresentou dez recomendações gerais para a saúde mental no mundo, entre elas, o desenvolvimento da pesquisa e do monitoramento dos serviços para avaliar indicadores da sua qualidade, em termos do acesso, formas de atendimento, intervenções preventivas e terapêuticas e os resultados do tratamento (0MS, 2001). A pesquisa e o

14 Nas palavras de Firmo: O empoderamento apresenta forte correlação com a possibilidade de mobilização do povo para reivindicação de seus direitos e a fiscalização do desempenho dos serviços, para o desenvolvimento da autonomia e o controle social, ou mesmo a sua redução. (FIRMO, 2015, p. 225).

Para Freire o empoderamento não é outorgado, pelo contrário, é resultado de uma práxis de reflexão e de inserção crítica das pessoas, provocada pelos problemas ou pelas perguntas problematizadoras que os colocam em ação. A essência do processo pedagógico de Freire consiste em “fazer a pergunta”. Mas não qualquer pergunta: a pergunta que liberta, isto é, que o empodera e, consequentemente, o faz sempre mais livre. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 147).

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monitoramento visam acessar necessidades, definir prioridades e investigar a efetividade do tratamento oferecido e dos programas de prevenção em serviços de saúde mental.

O tratamento em saúde mental, diante das novas orientações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2013), exige uma reflexão crítica de nossas práticas e seus referenciais teóricos. A este respeito, podemos utilizar o pensamento de Freire (2013, p. 24), no contexto da educação popular, quando o autor afirma que “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo”. Em nosso estudo, esta prática em saúde mental constitui-se não só de atendimentos individuais, mas também em grupos que buscam sempre a interdisciplinaridade15. Essencialmente constitutiva no processo de subjetivação de todos os envolvidos, o “grupo operativo-terapêutico” pode constituir-se num exemplo dessa prática interdisciplinar em saúde mental. Também estudo a viabilidade deste espaço constituir-se num importante estímulo para a atuação dos profissionais da saúde junto aos familiares dos usuários de um serviço de saúde mental. E de maneira particular, a necessidade de esses profissionais terem critérios para a compreensão da dinâmica familiar e criarem estratégias de atendimento interdisciplinar como as que são encontradas no texto a seguir:

Consolidada tal compreensão, os profissionais terão critérios para avaliar o enredo, a estrutura e a dinâmica do sistema familiar, elaborando um plano de trabalho interdisciplinar com as estratégias mais adequadas e possíveis. Sugerem-se formas de atuação da equipe que fortaleçam: (1) a competência da família em garantir a sobrevivência material dos seus membros utilizando sua rede social primária (parentes, amigos/as e vizinhos/as), as instituições e as redes sociais comunitárias; (2) suas relações afetivas e novas possibilidades de agir, pensar e conviver; (3) sua participação social e comunitária enquanto exercício de cidadania. (BRASIL. 2013, p.67).

Esses critérios são necessários para o estudo e a articulação das diferentes contribuições educativas em saúde mental na presente pesquisa. Apresento a seguir questionamentos que possam contribuir para um diálogo profícuo entre os diversos saberes envolvidos e na possível construção de uma nova subjetivação16aos usuários do CAPS II, na comunidade local:

15 A interdisciplinaridade é um princípio mediador entre as diferentes disciplinas, não sendo elemento de redução a um denominador comum, mas elemento teórico-metodológico da diferença e da criatividade. É o princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão dos seus limites e, acima de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade (ETGES, 1999 apud SANTO, 2007, p.15).

16 Subjetivação: basicamente, é o processo de tornar-se sujeito. Assim como a noção de sujeito, esse termo está ancorado em diferentes perspectivas nas ciências humanas. Subjetivação é o ato de produzir subjetividades.

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 A presença dos familiares no espaço do “grupo operativo-terapêutico”, junto com os usuários e os profissionais da saúde mental, pode contribuir para que no grupo e por prolongamento em suas famílias possam ocorrer melhores condições para que os usuários desenvolvam sua autonomia possível? E por extensão uma nova subjetivação, que não a de exclusão?  As diferentes contribuições educativas em saúde mental podem atuar de forma integrativa e integradora no processo de autonomia possível aos usuários do CAPS II, de Ijuí/R.S.?  A vivência da pessoa com sofrimento mental crônico em um “grupo operativo- terapêutico” pode ser experenciada por ela como um elemento significativo na construção de sua autonomia, e por extensão no seu processo educativo para uma nova subjetivação que não a “do louco excluído”?  Em um “grupo operativo-terapêutico” é possível ao médico psiquiatra trabalhar em coparticipação com os usuários, seus familiares e os demais profissionais da saúde mental, resistindo assim ao papel tradicional que lhe é dado no modelo biomédico?  É possível ao profissional da saúde mental dialogar com outras áreas, como a psicologia social, a filosofia, a sociologia, as artes e não fazer de sua formação um processo doutrinal fechado? Ao longo desta pesquisa, a partir de uma prática com grupos que viabiliza a participação de todos os envolvidos, espero encontrar as respostas a esses questionamentos, sem esquecer o quanto esta pesquisa se constitui, também, no estudo de um espaço para a educação em saúde mental, baseando-se no referencial da educação popular, associado a uma técnica de grupo operativo de Pichon Rivière (2009). Porém, prioritariamente, avalio a viabilidade do “grupo operativo-terapêutico” constituir-se como um espaço pedagógico para construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, na cidade de Ijuí. Esta problemática do grupo como um espaço pedagógico para a construção de autonomia possível às pessoas com esquizofrenia é avaliada com auxílio das diferentes contribuições educativas de todos envolvidos, em especial a participação dos familiares, considerando que a autonomia é um processo libertador em construção por meio de uma educação popular, vivenciado em uma prática de cuidado de si.

Para Alain Touraine, o processo de subjetivação é “a construção, por parte do indivíduo ou do grupo, de si mesmo como sujeito” (TOURAINE, 2006, p.119).

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Ao longo da reforma psiquiátrica no Brasil, assunto a ser abordado a seguir, percebe- se que não basta a inclusão social. É indispensável que essas pessoas que viviam às margens tenham oportunidade de participarem do processo de construção de sua autonomia possível para o cuidar si, caso contrário permanecerão vivendo às margens do social. Bezerra Júnior(2011) em seu artigo “É preciso repensar o horizonte da Reforma Psiquiátrica”, nos convida a pensar nos desafios que a reforma psiquiátrica precisa enfrentar nos próximos anos. Em suas palavras textuais:

“Estaria a Reforma dando sinais de exaustão?” Protagonista deste movimento desde seus primórdios, Ana Pitta pergunta com a autoridade de quem entrou para a psiquiatria nos tempos em que descrições fenomenológicas sutilíssimas se mesclavam a portas de ferro trancadas, aos banhos de sol em pátios de cimento nu, e ao cheiro insuportável e inesquecível dos hospícios. A Reforma mudou drasticamente este quadro, mas a história não para. A sociedade mudou e a psiquiatria não é mais a mesma. É preciso discutir a natureza dos desafios que a Reforma terá que enfrentar nos próximos anos para manter sua vitalidade e evitar sua entrada precoce na história dos movimentos sociais do passado (BEZERRA JÚNIOR, 2011, p. 4598).

Logo a seguir Bezerra Júnior (2011) destaca a importância de encontrar um modelo que valorize a capacitação profissional em alto nível e a integração com outras áreas de conhecimento que possibilitem a atuação profissional ir além de um fazer técnico e esteja enriquecida com uma capacidade crítica, especialmente aos condicionantes econômicos e interesses nada éticos que estimulam a fragmentação na atuação dos profissionais da saúde, em especial na saúde mental. Textualmente, assim Bezerra Junior se expressa:

É fundamental encontrar um modelo de formação que acople capacitação técnica especializada em alto nível e igual investimento na capacidade crítica dos pro fissionais, por meio da discussão das bases epistemológicas, filosóficas, éticas e científicas que subjazem às teorias e práticas que predominam nas três grandes áreas que formam nosso campo: psiquiatria, psicanálise e saúde pública. Essa estratégia permitiria contemplar a notória diversidade teórico clínica e política no universo da Reforma, limitando tanto o risco de fragmentação especializada quanto o ecletismo anêmico. (BEZERRA JÚNIOR, 2011, p. 4599)]

A reforma psiquiátrica não pode fixar-se somente na luta antimanicomial, pois corre- se o risco de desconsiderar-se o momento atual e as diferentes evoluções que ocorreram nas diversas áreas da saúde mental, incluindo a discussão dos diferentes diagnósticos associados à tecnologia da neuroimagem funcional do cérebro e a possibilidade de, assim, acompanhar as mudanças morfológicas e funcionais em diferentes áreas cerebrais com modernas terapêuticas, sob o risco de não valorizar essas conquistas como frutos da própria reforma.

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2 A REFORMA PSIQUIÁTRICA

"NAVEGAR É PRECISO; VIVER NÃO É PRECISO."

"Navegar é preciso; viver não é preciso." Quero para mim o espírito desta frase, transformada A forma para a casar com o que eu sou: Viver não É necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso Tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho

Na essência anímica do meu sangue o propósito Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir Para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. (Poema de Fernando Pessoa 1914)

O poeta faz inicialmente um convite ao leitor: viver com criatividade, tornar sua vida grande, o que associa com a colaboração, quase que impessoal, com sua pátria (mundo) e com a humanidade. Para engrandecer sua pátria e colaborar com a evolução da humanidade, não precisa viver a vida de forma egoísta, mas sim dedicá-la ou sacrificá-la pela humanidade. Neste momento, quando escrevo sobre a mensagem poética de Fernando Pessoa, me ocorre à lembrança um grande pensador de nossos tempos de “modernidade líquida” que assim viveu, dedicando sua vida e sua obra literária à humanidade, especialmente pelo tema da convivência humana, em especial com o “estranho” em nossa sociedade. Refiro-me a Zygmunt Bauman, falecido em nove de janeiro de 2017, na cidade de Leeds, no Reino Unido. A esse respeito, na reforma psiquiátrica, quantas pessoas dedicaram suas pesquisas, suas vidas, algumas de forma anônima, para que as pessoas em sofrimento mental crônico pudessem ter uma vida mais humana, mais criativa, mais verdadeira. Na presente pesquisa, acrescento a esses colaboradores anônimos também os usuários de um serviço de saúde mental, e que, ao participarem das entrevistas, além de terem um espaço de fala, deram, de forma autêntica, suas contribuições para que se tenha uma visão a partir de suas vivências de como veem e sentem o atual momento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, em especial, de como se sentem na comunidade local, na cidade de Ijuí, R/S. Portanto, passo a destacar algumas fontes inspiradoras para o movimento da reforma psiquiátrica, ou seja, pessoas que contribuíram com a humanidade, tornando a vida humana mais liberta. Procuro dar destaque à forma como contribuíram na discussão de poder,

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liberdade e criatividade neste processo. Começo com a contextualização a respeito da importante e indispensável contribuição do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) para tornar a “vida humana mais livre para o cuidar de si”. Teve papel relevante para “O Movimento da Reforma Psiquiátrica” o discurso da loucura analisado por Michel Foucault em seu livro História da Loucura na Idade Clássica (1961-1ª edição). Nesta obra o autor descreve o fenômeno da loucura desde o Renascimento até a Modernidade, mostrando que a maneira de tratá-la foi “mudando” através dos séculos. Os “diferentes” discursos sobre a loucura ao longo da história podem ser resumidos:  Renascimento (Nau dos loucos): O louco é visto como um errante. (Conflito entre razão e loucura);  Clássico (Encarceramento): O louco é um transgressor. (Domínio da razão sobre a loucura);  Moderno (Instituição Hospitalar/CAPS): O louco é visto como anormal. (A razão normatiza a loucura). Michel Foucault, em Microfísica do Poder (2004, p.83), destaca que só no século XVIII, em um processo “disciplinador”, os hospitais passam a contar com a presença do médico de forma regular e efetiva, pois até então essas instituições funcionavam como um “asilo”, especialmente controlado por “leigos caridosos” ou por instituições religiosas. Não era um local de cura e sim de exclusão onde pessoas carentes, consideradas vagabundas ou loucas, doentes em estágio avançado, eram deixadas para morrer ou salvar suas almas. O ato da medicina, até então, era um ato individual e fora do hospital. A partir do sec. XVIII o hospital passa a ser um local de produção de conhecimento médico sobre as doenças, embora em condições artificiais, pois o doente estava fora de seu ambiente onde inicialmente ocorria o adoecimento. Na “doença mental”, termo surgido nesse período, o “doente mental” era tirado de seu meio onde o adoecimento tem seu contexto próprio e colocado em condições artificiais para sua normalização através da disciplina. Surge, assim, a produção de conhecimento da doença mental através da psiquiatria e o tratamento de normalização proposto através da disciplina. Foucault (1987), ao pesquisar a respeito do processo de normalização e o poder psiquiátrico tão presentes no processo da doença mental, faz também uma retrospectiva das diferentes formas de discriminação. A reforma psiquiátrica em todo o mundo teve como importantes fontes inspiradoras as fortes críticas de Michel Foucault (1974) ao poder psiquiátrico tomado como uma forma de normalização da “doença mental”. Caponi (2009), em seu texto “Michel Foucault e a persistência do poder psiquiátrico”, procura estudar o curso que Michel Foucault ministrava

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nos anos de 1973-1974. Destaca a respeito desse curso que, enquanto em (1961-1ª edição), História da Loucura na Idade Clássica insistia na problemática do fechamento e violência às pessoas com doença mental, em 1974 sua preocupação será outra, será a de analisar o modo como se estabelecem e o modo como circulam as relações de poder dentro desse espaço médico que é a psiquiatria. (CAPONI, 2009, p.96). Esse curso foi publicado em 2003 com o nome de “Le ouvouir psytriaque”. O referido curso permite a Foucault (1974) abordar novos temas, como o poder disciplinador, a normalização, as estratégias e táticas de controle do tempo e espaço. Com o advento da psiquiatria, passa a prevalecer o poder psiquiátrico como normalizador do normal e do anormal, mas também seus instrumentos de diagnóstico e tratamento, quais sejam: o interrogatório, o uso de drogas e a hipnose. Portanto, esses temas, de alguma forma, serão questionados ao longo desta pesquisa para que novas condições de subjetivação possam ser vivenciadas. O “grupo operativo- terapêutico” em saúde mental, pela participação efetiva de todos os envolvidos, pode constituir-se em uma forma de resistência a essa forma tradicional de normalizar criada pelo “poder psiquiátrico”, pois permite que seus participantes tenham vez e voz. Como contribuições históricas à reforma psiquiátrica destaco que algumas experiências já vinham sendo feitas em diferentes partes do mundo na busca de humanização do atendimento ao “doente mental”, sem que as mesmas pudessem ser usadas como referenciais em uma discussão mais sistematizada. Cito como um exemplo as Comunidades Terapêuticas criadas por T. H. Main, em 1946, na Inglaterra. A consagração desse modelo de reforma psiquiátrica se deu em 1959, com Maxwell Jones. Amarante (2003a) define o modelo da Comunidade Terapêutica como sendo um processo de reformas institucionais predominantemente restritas ao espaço do hospital psiquiátrico, marcado por medidas administrativas e técnicas que enfatizavam aspectos democráticos, participativos e coletivos (Amarante apud HEIDRICH 2007, p. 39). Encontra-se outra fundamental contribuição à reforma psiquiátrica no trabalho de Franco Basaglia (1985), médico psiquiatra que abriu mão desse poder sobre a “doença mental” na busca da valorização da pessoa do “doente mental”. Na “Instituição negada” Basaglia (1985) baseia-se: nas comunidades terapêuticas e presumidamente na obra de Foucault (1961-1ª edição) "História da Loucura na Idade Clássica" para formular a "negação da psiquiatria" como discurso e prática hegemônicos sobre a loucura. Ele não pretendia acabar com a psiquiatria, mas considerava que apenas a psiquiatria não era capaz de dar conta do fenômeno complexo que é a loucura.

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Basaglia (1985) descreve que a partir da década de 60, em Gorizia (Itália) ocorre a substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, integrada por serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas para os doentes mentais. O sujeito acometido da loucura, para o autor, possui outras necessidades que a prática psiquiátrica não daria conta. Basaglia (1985) também denuncia o que seria o "duplo da doença mental", ou seja, tudo o que se sobrepunha à doença propriamente dita como resultado do processo de institucionalização a que eram submetidos os “loucos” em sua época.

2.1 O MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL Ao estudar como se constituiu o Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, procuro dar destaque a alguns atores desse movimento e de como suas participações foram importantes ao longo desta reforma. Inicio pelo pioneirismo que representou Nise da Silveira para a humanização do atendimentos às pessoas com doença mental, a quem ela chamava de seus clientes. 2.1.1 Nise da Silveira e o seu pioneirismo na Psiquiatria Brasileira Faço o resgate a uma figura humanizadora da psiquiatria brasileira e precursora na reforma psiquiátrica no Brasil, na medida em que Nise da Silveira humanizou a relação com o “diferente” especialmente o esquizofrênico. Nise, por razões não muito claras, deixa de receber o devido reconhecimento na grande maioria dos textos que aborda a reforma psiquiátrica no Brasil. Na década de 40 e 50, além das condições desumanas oferecidas às pessoas com sofrimento mental nos manicômios, os tratamentos eram primitivos, como a lobotomia, a coma insulínica e o eletrochoqueterapia (ECT). Nessas condições precárias e desumanas em que ocorria o tratamento das pessoas ditas “anormais” a partir de suas diferenças com “as normas vigentes”, considero oportuno o “reconhecimento” das ideias inovadoras e do trabalho pioneiro em saúde mental da médica psiquiatra brasileira Nise da Silveira, que esteve à frente de seu tempo em vários aspectos:  Ao ocupar, em sua época, o espaço no campo da ciência médica prioritariamente ocupada pelo gênero masculino;  Ao fazer seu trabalho de conclusão do curso de medicina com um tema considerado tabu em sua época: “Ensaios sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil”;

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 Pela sua atuação profissional como médica psiquiatra que permitiu modificar e humanizar uma prática em saúde mental para com as pessoas excluídas do convívio humano, especialmente através da arte como possibilidade de seus clientes manifestarem seus sentimentos e recriarem suas histórias de vida;  Pelo seu engajamento na política socialista de seu tempo, e que lhe trouxe perseguições políticas17 e impedimento de seu exercício profissional. Somando a todas essas características, acrescente-se o de ter o reconhecimento de seu trabalho junto a Carl Gustav Jung, um dos maiores pesquisadores sobre o tema do entendimento do inconsciente por meio da arte, em especial das mandalas e da figura do mito. Nascida em Maceió (AL) em 1905, Nise Magalhães da Silveira, aos 15 anos, foi para Salvador (BA) onde frequentou o curso de medicina. Ainda bastante jovem, aos 21 anos se formou. Além de ser a caçula do curso foi a única mulher a se formar entre 157 alunos. Outro fato a destacar foi seu trabalho de conclusão de curso: “Ensaios sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil”, considerando que Nise da Silveira formou-se no ano de 1926. Esses dados levantados por Motta (2008) mostram um pouco de seu pioneirismo já na sua formação. Depois de formada, foi morar no Rio de Janeiro onde começou a exercer função pública como médica psiquiatra no ano de 1933. Esquerdista, atuante na União Feminina do Brasil, precocemente foi afastada das suas atividades por perseguições políticas na ditadura Vargas. Motta (2008) associa nos seus estudos a respeito da médica psiquiátrica que o interesse da médica por atividades ocupacionais na saúde mental foi significativamente influenciado pelo período de um ano e meio que esteve como prisioneira política ao ver seus companheiros de cárcere buscarem atividades, especialmente culturais, para passar o tempo. Em 1944, a psiquiatra é readmitida no serviço público, retornando ao trabalho no antigo Centro Psiquiátrico Nacional, atual Instituto Municipal Nise da Silveira. Depois retorna ao Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, onde funda a Seção de Terapia Ocupacional no ano de 1946. Cria mais tarde o Museu das Imagens do Inconsciente (1952) a partir do material produzido nos ateliês terapêuticos. Nise, com auxílio de colegas, cria em 1956, no Rio de Janeiro, a Casa das Palmeiras, destinada ao tratamento e à reabilitação de egressos de hospitais psiquiátricos.

17 Conta-se uma pequena anedota: Nise foi denunciada por uma enfermeira à polícia política de Vargas por ser militante comunista e certamente portadora de ideias demais humanistas em seu atendimento aos doentes mentais. Uma “paciente” esquizofrênica, amiga de Nise, sabedora do ocorrido, deu uma tremenda surra na referida enfermeira, situação que Nise usava para dizer: vejam como o esquizofrênico pode ser afetivo e, eu acrescento solidário com a pessoa que lhe é importante.

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Ao enfrentar a psiquiatria da época e a própria arte conceitual, cria nos ateliês na Casa das Palmeiras e no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, um tratamento de vanguarda. Jovens psiquiatras e psicanalistas, psicólogos, poetas, críticos de arte e os próprios “pacientes” encontraram na médica um modelo para sonhar com seus projetos futuros. Acolhedora e com o rigor de um exame crítico, que lhe era peculiar, a psiquiatra recebia estudantes e pesquisadores de todas as áreas (Silveira, 2009). Nise da Silveira deu um passo extraordinário na direção de criar algo genuíno para a psiquiatria e para a psicologia modernas no Brasil. Exerceu seu trabalho de psiquiatria agregando suas reflexões psicológicas e sociais a um novo modelo de trabalho psiquiátrico, cujo objetivo maior era retirar o “paciente” de um mundo de clausura em que a arte e a vida se contrapunham e deslocá-lo para o interior de um moderno estilo de espaço que afugentava o mal-estar e o tédio. Assim, em seu tempo, na década de 40/50 procurou humanizar o atendimento às pessoas com doença mental a quem ela chamava de clientes como forma de reconhecimento aos direitos que essas pessoas tinham e têm a um adequado tratamento. Nise possibilitava através da arte-terapia18uma importante contribuição educativa, e que permita aos seus clientes expressarem seus sentimentos e reconstruírem suas histórias de vida. Tem-se em Nise da Silveira um pioneirismo no enfrentamento com diferentes áreas de saberes da época e uma intensa persistência para poder fazer prevalecer suas ideias e suas diferentes contribuições educativas na humanização da psiquiatria. Associo que as atuais contribuições educativas à reforma psiquiátrica na comunidade local, em um primeiro momento, também entram em conflito, especialmente pela hegemonia do “poder de contribuição” dos diferentes saberes envolvidos na saúde mental. Conflito que, se cronificado, pode vir a causar prejuízo no processo de inclusão social do “diferente” e na busca da construção de sua autonomia. Faz-se necessário que as diferentes contribuições educativas na comunidade possam respeitar o tempo de evolução e os desejos dos próprios usuários do serviço de saúde mental, e que estejam associadas a um planejamento de longo prazo pelas diferentes instituições envolvidas na comunidade local, permitindo que esse processo de autonomia possível atinja a todos os envolvidos. Essas contribuições podem constituir-se em uma verdadeira pedagogia

18 A arte-terapia usa a atividade artística como instrumento de intervenção profissional para a promoção da saúde e a qualidade de vida, abrangendo hoje as mais diversas linguagens: plástica, sonora, literária, dramática e corporal, a partir de técnicas expressivas como desenho, pintura, modelagem, música, poesia, dramatização e dança. Tendo em vista a formação do profissional e o público com o qual trabalha, a arte-terapia encontra diferentes aplicações: na avaliação, prevenção, tratamento e reabilitação voltados para a saúde, como instrumento pedagógico na educação e como meio para o desenvolvimento (inter) pessoal através da criatividade em contextos grupais. (REIS, A. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34 (1), 143)

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emancipatória, princípio básico da educação popular, o que é diferente de uma pedagogia elitista em que os “sábios e poderosos” decidem a vida dos demais “tutelados”. Na saúde mental, numa perversa repetição histórica, podemos ver essa prática por meio do modelo biomédico que privilegia prioritariamente a medicalização em detrimento de um modelo biopsicossocial que procura entender o contexto mais amplo do adoecimento mental e não apenas as alterações de neurotransmissores cerebrais. O conflito familiar sempre presente nas famílias e de modo mais intenso nas das pessoas com doença mental necessita ter uma abordagem prioritária e mais intensa nas políticas de saúde mental para que essas dificuldades sejam enfrentadas no cotidiano familiar, na construção de um ambiente mais humano e mais acolhedor a essas pessoas. Faz-se necessário que todas essas motivações pelo respeito às diferenças possam atualizar-se ao longo do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, em especial na realidade de cada comunidade local, assim como a esperança e a perseverança foram decisivas para que a vida profissional de Nise da Silveira pudesse ter tido um papel fundamental na humanização e modificações da psiquiatria brasileira. Fazer uma retrospectiva de como se consolidaram por meio da legislação essas contribuições ao longo da reforma psiquiátrica é o objetivo do estudo a seguir.

2.1.2 Histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil

Cronologicamente passo a destacar alguns dados marcantes na Reforma Psiquiátrica Brasileira. Heidrich (2007) registra que o estado pioneiro foi o Rio Grande do Sul, que aprovou a Lei 9.716, de sete de agosto de 1992, propondo a substituição progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção integral em saúde mental. Em 2001, após mais de dez anos de tramitação no Congresso Nacional, é sancionada a Lei nº 10.216, que afirma os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (HEIDRICH,2007, p.17). Os princípios do movimento iniciado na década de 1980 tornam-se uma política de estado. Formalmente, cria- se a Reforma Psiquiátrica a partir da referida lei. O Brasil entra, assim, para o grupo de países com uma legislação moderna e coerente com as diretrizes da OMS e sua representação junto às Américas, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Esta lei indica uma direção para a assistência psiquiátrica e estabelece uma gama de direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais; regulamenta as internações involuntárias, colocando-as sob a supervisão do Ministério Público, órgão do Estado guardião dos direitos de todos os cidadãos brasileiros. Observa-se no relatório final da IV Conferência

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Nacional de Saúde Mental realizada em Brasília no ano de 2010 a preconização de uma reforma psiquiátrica que produza desinstitucionalização, inclusão social e uma rede assistencial na própria comunidade. O Ministério da Saúde (2013), ao abordar o tema saúde mental, nos fornece alguns dados históricos referentes à evolução da legislação. Considero oportuno destacar os instrumentos preconizados a partir da lei 10.216 e que devem ser disponibilizados junto à comunidade. Na década de 2010, com financiamento e regulação tripartite, amplia-se fortemente a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que passa a integrar, a partir do Decreto Presidencial nº 7508/2011, o conjunto das redes indispensáveis na constituição das regiões de saúde. Entre os equipamentos substitutivos ao modelo manicomial podemos citar os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência (CECOS), as Enfermarias de Saúde Mental em hospitais gerais, as oficinas de geração de renda, entre outros presentes nas orientações do M.S. (BRASIL, 2013, p. 21/22). Para Santin (2011), esta nova lógica do tratamento em saúde mental implica a necessidade de a comunidade de maneira geral e não só os serviços de referência terem um outro olhar para com as pessoas com sofrimento mental. Eis suas palavras textuais:

A nova lógica de atenção à saúde mental requer compreender o sujeito como um todo, como um ser que sofre, que enfrenta momentos desestabilizadores, como separação, luto, perda de emprego, carência afetiva, entre outros problemas cotidianos que podem levá-lo a procurar ajuda. Dessa forma, este modelo deve prestar uma atenção à saúde voltada à integração social do sujeito, procurando mantê-lo em seu contexto familiar e comunitário. Assim, família e comunidade servem como suporte fundamental para que o sujeito crie vínculos, produzindo novos modos de viver em sociedade revertendo o modelo manicomial. (SANTIN,2011, p.148)

Na realidade atual da cidade de Ijuí, alguns questionamentos se fazem necessários: como entender e como acolher essas pessoas com esquizofrenia que estão retornando às suas famílias, à sua comunidade? Considero o “grupo operativo-terapêutico” um espaço de acolhimento a essas pessoas. Para tanto é indispensável um mínimo de entendimento do que ocorre com essas pessoas em seu adoecimento:

Numa visão psicanalítica o paciente psicótico sofre uma fixação em determinada etapa de seu desenvolvimento, especialmente pela limitação em lidar com frustração, causando-lhe uma visão fragmentada de mundo interno/externo, assim como de relacionamentos interpessoais tumultuados e suas representações distorcidas em seu mundo interno, resultando sempre uma visão assustadora de mundo externo. (AMARAL, 2013, p. 24).

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A partir deste entendimento psicanalítico, considero oportuna a reflexão sobre a necessidade de o usuário ter um espaço de fala em seu tratamento e que possa ser, também, um espaço para ser realmente ouvido. Para isso estudo sua participação por meio de suas respostas presentes na pesquisa de mestrado (2013). O retorno dos usuários às suas comunidades requer o conhecimento adequado desta complexa realidade para um melhor processo de ensino e aprendizagem de todos os envolvidos. Eis um exemplo pertinente a esta contextualização: ao questionamento de como prefere estar em casa, a resposta deste usuário evidencia a distorção da realidade em seu ambiente familiar e os intensos conflitos daí advindos: “Antes o relacionamento era ruim, achava que o pai queria matá-lo. Hoje ele percebe que isto não era verdade”. (U. 9, C. 5). Compete aos profissionais que atuam em saúde mental criarem condições adequadas na comunidade, através de espaços, como o “grupo operativo-terapêutico”, onde os usuários possam rever esses papéis distorcidos em sua vivência social. Nessa resposta do usuário pode-se também perceber uma mudança de opinião, qual seja, um melhor entendimento sobre a doença. Certamente essa mudança teve uma contribuição educativa do “grupo operativo-terapêutico”. Do mesmo modo o melhor conhecimento sobre a doença contribuirá para um melhor cuidar de si por parte deste usuário. A reforma psiquiátrica deve considerar essa distorção da realidade por parte dos usuários em seus retornos à comunidade, pois esta é uma característica crônica que os acompanha. Na pergunta: Em casa como prefere estar? A que espaço de liberdade para falar esse usuário se refere em sua resposta: “Eu não tinha tanta liberdade para falar sobre o tratamento. Hoje consigo me abrir mais” (U.7, C. 5). Será no grupo, em sua família ou em ambos? Como está sendo construído esse processo de liberdade para falar? Será este o respeito à singularidade a que Gonçalves (2001, p. 51) se referia e que ainda hoje pode ser considerado indispensável para a construção de sua autonomia e a reintegração à família e à sociedade?

O que se espera da reforma psiquiátrica não é simplesmente a transferência do doente mental para fora dos muros do hospital, “confinando-o” à vida em casa, aos cuidados de quem puder assisti-lo ou entregue à própria sorte. Espera-se, muito mais, o resgate ou o estabelecimento da cidadania do doente mental, o respeito a sua singularidade e subjetividade, tornando-o sujeito de seu próprio tratamento sem a idéia de cura como o único horizonte. Espera-se, assim, a autonomia e a reintegração do sujeito à família e à sociedade.

As pessoas que sofrem de transtornos mentais graves enfrentam um duplo desafio: lidar com os sintomas e as incapacidades resultantes da doença e com os preconceitos gerados

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pela falta de informações e por concepções erradas sobre as doenças mentais. (NOTO, 2012, p. 81).

2.1.3 A Reforma Psiquiátrica e a importância da participação familiar

A participação de usuários em projetos de pesquisa em saúde mental é uma experiência recente, tendo surgido na bibliografia internacional especializada nos últimos 20 anos. Configura-se como uma tendência que vem se afirmando, especialmente no Reino Unido, Canadá, Austrália e Estados Unidos. (Presotto, 2013, p. 2844)

No cenário brasileiro ainda é incipiente esta forma de participação. Para o mundo acadêmico da saúde mental no país, aos usuários e familiares cabe apenas o papel de “sujeitos de pesquisa” (PRESOTTO, 2013, p. 2844). A resposta do usuário, logo a seguir, permite afirmar que a presença dos familiares junto ao “grupo operativo-terapêutico” possibilita um novo processo de comunicação, baseado numa visão mais real entre ambos: usuários e familiares. Isso cria as condições para uma nova subjetivação, com menos preconceito aos envolvidos, “Sempre gostei da família, mas devido à doença que eu não entendia, tive momentos de dificuldade no relacionamento com os familiares.” (U.1, C.5). A comunicação com menos ruídos nos diálogos possibilita a todos envolvidos lidarem melhor com esses estereótipos e preconceitos que existem na doença mental, pela falta de informação e de participação efetiva dos envolvidos. Este adequado processo de comunicação é indispensável para o respeito às diferenças, no contexto dos conflitos familiares. O terapeuta de grupo Irvin D.Yalom (2006, p.34) assim se expressa sobre o papel terapêutico do grupo em relação aos conflitos familiares:

O importante é que esses conflitos sejam revividos de forma corretiva no grupo, pois uma nova exposição sem reparos, apenas torna pior uma situação que já era ruim. Deve-se, pelo contrário, explorar e desafiar continuamente os papéis fixos, estabelecendo regras básicas que incentivem a investigação de relacionamentos e o teste de novos comportamentos.

Os espaços de escuta, necessários e indispensáveis para esse entendimento, podem estar presentes não só na psicanálise formal, mas também no “grupo operativo-terapêutico”, na arte-terapia, na terapia ocupacional, embora essas práticas, para muitos, possam não ser consideradas como terapias, quando muito como terapias secundárias, referenciando-se a essas numa normalização hierárquica das terapias.

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A Reforma Psiquiátrica é entendida como processo social complexo que envolve a mudança na assistência de acordo com os novos pressupostos técnicos e éticos. Nesta mudança há necessidade de priorizarem-se novos espaços de escuta às pessoas com sofrimento mental crônico (psicose crônica) e aos seu familiares. O familiar, ao ser questionado sobre como a pessoa com psicose crônica prefere estar em casa, lembra que não se pode esquecer que, inicialmente, ao retornarem ao seu ambiente familiar, essas pessoas representavam uma importante sobrecarga pela intensidade de seus sintomas ainda presentes. E em muitos momentos pela dificuldade dos familiares lidarem com eles: “Não era bom! Havia muitos desentendimentos e discussão com a família” (F.20, C.5). Portanto, o habitual é um ambiente de sobrecarga no meio familiar. Como pode ser visto, esta realidade é observada na fala deste familiar ao participar do grupo, acrescida de seu intenso desconhecimento para lidar com tais situações, o que pode ser reforçado pelas palavras de Delgado (2014):

Os familiares de pacientes que sofrem com transtornos mentais graves e persistentes, quando assumem as incumbências do cuidado cotidiano, frequentemente relatam uma experiência de elevada exigência pessoal, que traz importantes limitações a sua vida diária. Este fato, designado na literatura científica como “sobrecarga familiar” (family burden), é um componente essencial para o entendimento dos desafios de longo prazo inerentes à mudança do modelo de atenção em saúde mental implantado pela Reforma Psiquiátrica no Brasil. (DELGADO, 2014, p.1104)

Com relação ao item “em casa como prefere estar”, os familiares mostram em suas respostas a preocupação com o comportamento agressivo, embora expressem sua compreensão de que isto faz parte da doença, incluindo neste aspecto a dificuldade que a pessoa com sofrimento mental tem de confiar no outro. “Brigava, maltratava todos, queria matar a mãe. Era muito difícil de conviver” (F.19, C.5). Esta resposta do familiar mostra o despreparo da família para receber e conviver com a pessoa que tem esquizofrenia, muitas vezes pela incapacidade do familiar para lidar com situações tão complexas, acrescidas de seu desconhecimento sobre a “doença mental”. Assim, o familiar pode ter contribuído, inconscientemente, para o encaminhamento prévio de seu familiar enfermo a institucionalizações crônicas, com a consequente quebra dos vínculos e referências dessa pessoa com a família e com a própria comunidade. É oportuno destacar que, embora o potencial para a violência que essas pessoas com psicose crônica possuem em suas crises, a grande maioria dos crimes de violência não envolvem pessoas com esquizofrenia como frequentemente se tenta associar, especialmente na mídia.

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Por outro lado, na seguinte resposta do familiar de um usuário em tratamento no CAPS II por meio do “grupo operativo-terapêutico”, percebe-se um importante aprendizado de convivência com seu familiar doente, “Me ajudou a ser mais paciente porque agora entendo que ele tem limitações e que ele não está doente porque quer” (F.1, C.2). Este aprendizado poderá ser útil em seu cotidiano familiar, criando assim um novo espaço de subjetivação. Portanto, quando se oportuniza aos familiares fazerem suas narrativas, percebe-se que são ricas em resiliência, superações, vivências de aprendizado, solidariedade e crescimento pessoal. Isso permite que se constitua em suas famílias um novo espaço de subjetivação à pessoa com sua “doença mental” que não o da exclusão, “interdição” e de isolamento. Constata-se, assim, o quanto os serviços de saúde mental, em especial os CAPS, devem investir na valorização da participação dos familiares no processo de reconstrução de um ambiente familiar acolhedor e que permita ao “doente mental” uma nova subjetivação, que não a da exclusão. Na fala a seguir de um familiar participante do grupo especialmente em relação ao tema preconceito, percebe-se o sentimento de compreensão pelo adoecimento do usuário, mas também o comprometimento em ser solidário, o que certamente não fica restrito somente ao grupo, mas pode ser vivenciado em seu cotidiano familiar, “Não é ele que quer ser assim, a família tem que aprender a suportar”. (F.8, C.3). Para a pessoa com sofrimento psíquico crônico esta solidariedade é indispensável para uma nova subjetivação, que não a da exclusão. Ao verificar subjetivamente as principais ideias de aprendizado da família ligadas ao tema preconceito e o quanto o mesmo está presente em seu cotidiano, logo aparece a percepção que os familiares têm, de forma significativa, desta realidade, causando um duplo sofrimento: lidar com a doença e com o preconceito que a acompanha. O habitual neste ambiente familiar é que muitos conflitos se façam presentes quando há desconhecimento da complexidade da pessoa com esquizofrenia por parte dos familiares, especialmente quando há falta de ações educativas neste meio. Isto contribui para que não haja uma adesão adequada ao tratamento pelo usuário, o que frequentemente ocasiona crises ou recaídas e reforça o estigma à doença mental. Com a próxima resposta do familiar reforça-se a convicção de que, para trabalhar uma nova subjetivação da pessoa com psicose crônica, o aspecto educativo da família é indispensável. A resposta indica uma maneira compreensiva e respeitosa para com o marido. “De acompanhar meu marido nos encontros e dos outros pacientes falarem a respeito do mesmo problema e de ver que às vezes não são iguais, mas passam pelas mesmas

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dificuldades” (F.11, C.1). A compreensão desta familiar, presente no seu cotidiano, cria as condições para o marido vivenciar uma nova subjetivação, com autonomia. Para Santin (2011, p. 150), de modo geral a abordagem familiar recai sobre os padrões relacionais e de comunicação no meio familiar:

Os estudos sobre família ganham grande visibilidade na década de 1950, através do surgimento das terapias familiares, especialmente as de abordagem sistêmica que têm seus conceitos oriundos principalmente da teoria geral dos sistemas e da cibernética. De modo geral, o enfoque das terapias familiares recai sobre as mudanças nos padrões relacionais e de comunicação dentro do sistema familiar. Esses conceitos foram incorporados ao trabalho dos profissionais brasileiros, mas é a partir do movimento da Reforma Psiquiátrica que se passa a dar maior atenção à relação da família com o portador de sofrimento psíquico.

Portanto, para que a família possa participar de forma adequada é indispensável que os profissionais da saúde mental estejam adequadamente preparados para essa tarefa educativa junto aos familiares. Ao questionamento de como o usuário prefere estar em casa, deve-se levar em consideração as dificuldades vivenciadas pelo familiar para lidar com o isolamento e a desorganização do seu familiar enfermo, “Antes era apático, se isolava, não saia de casa, nem da própria higiene cuidava, quarto todo desarrumado, parecia estar de mal com o mundo”. (F.1, C.5). Proporcionar um espaço educativo para enfrentar tais situações requer uma necessária capacitação de todos os envolvidos, tais como criar e valorizar espaços de escuta e diálogo na própria comunidade para usuários do serviço de saúde mental e seus familiares. Um espaço de ensino e aprendizagem para uma nova subjetivação, que não a “do louco excluído”, mas sim de alguém capaz de conquistar sua autonomia possível. Esta deve ser uma prioridade em saúde mental no atual contexto da reforma psiquiátrica. Portanto, é indispensável uma educação que se constitua num processo dialógico que permita trocas entre os diferentes participantes: usuários e seus familiares, na busca de mudanças a essa lógica tão excludente em saúde mental ainda presente em nossa realidade. Assim, o “grupo operativo-terapêutico” constitui-se num espaço de empoderamento aos seus participantes, um dos princípios básicos da educação popular. No atual momento da reforma psiquiátrica junto à comunidade local este tipo de educação é indispensável. Nas palavras de

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Vasconcelos19 (1997), a educação popular passou a ser um instrumento efetivo que fortalece as relações com as populações. “Ficava só deitada, se isolava da família, não gostava de sair” (F.15, C.5). Nesta resposta a respeito de como o usuário preferia estar em casa, o familiar, ao usar o tempo passado nos verbos desta frase (ficava, se isolava, não gostava), indica que ocorreram mudanças no comportamento deste usuário. Espaços como o “grupo operativo-terapêutico” oferecem condições para mudanças, especialmente pela escuta, diálogo e entendimento, principalmente quando essas terapêuticas são oferecidas nos serviços de saúde junto à comunidade. Não se pode esquecer que foi na comunidade e com a (in) voluntária participação da própria família que surgiu a iniciativa de internação/institucionalização do usuário “em tempos remotos”, essencialmente pelo despreparo da mesma em lidar com os conflitos. Esses fatos que não podem ser esquecidos pelo movimento da reforma psiquiátrica, considerando que esta possa estar sempre se reinventando em suas prioridades como movimento para superar essas resistências. Vencer preconceito e resistências é o que se pode pensar a partir do depoimento deste familiar, ao responder o questionamento de como seu familiar enfermo se sente afetado pelo preconceito, “Não queria muito participar, foi com diálogo, conversa e conselho, ele tinha muita vergonha do que os outros iriam pensar dele, mas enfim está em tratamento”. (F.9, C.3). Este entendimento é indispensável na busca de modificar o processo habitual de subjetivação da pessoa com doença mental, tendo como referências iniciais as normas de exclusão tão presentes em uma sociedade baseada essencialmente na produção e no consumo, em que o normal está associado ao ser produtivo, e o anormal ao estar improdutivo. Nesta contextualização, faz-se indispensável repensar novos espaços de subjetivação na própria comunidade com a participação de todos os envolvidos nesse processo em que se almeja autonomia com cidadania, reflexão esta contextualizada nos princípios da educação popular.

Lamentavelmente, ainda hoje muitas vezes a reforma psiquiátrica e a desmanicomialização se limitam a descentralizar essas velhas tecnologias de poder. Muitas vezes, por falta de estrutura, de medicação adequada ou de programas de inserção comunitária, essas velhas tecnologias de poder próprias da psiquiatria clássica se reproduzem nos centros psiquiátricos de referência que no Brasil conhecemos com o nome de CAPS. (CAPONI, 2009, p.102).

19 Assim, no setor da saúde, a educação popular passou a se desenvolver, entre tantas outras, como um instrumento de reorientação da globalidade de suas práticas, na medida em que dinamiza, desobstrui e fortalece a relação com a população e seus movimentos organizados. (VASCONSCELOS, 1997, p. 143).

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Caponi (2009) questiona o quanto ainda hoje a reforma psiquiátrica repete formas tradicionais de tratamento baseadas nos interrogatórios e no excesso de medicalização. Essa prática ocorre inclusive nos próprios CAPS, reforçando a necessidade de que esses espaços de escuta, de diálogo, de participação, constituam-se em uma alternativa às formas tradicionais de tratamento que ainda existem em serviços de saúde mental, e na própria comunidade em estudo. Especialmente por priorizar a dimensão da subjetividade ao “diferente”, uma das prioridades do movimento da reforma psiquiátrica é o atendimento da pessoa com doença mental na sua própria comunidade. Leandro (2008) destaca que é na comunidade que se reforça a subjetividade. A reforma psiquiátrica busca a mudança do modelo hospitalocêntrico para o biopsicossocial, modelo este que busca o atendimento do usuário em saúde mental na própria comunidade. O CAPS é um exemplo deste atendimento. Porém, esta nova postura pode, em um primeiro momento, mostrar o despreparo da comunidade para receber a pessoa com psicose crônica. É oportuno lembrar que a comunidade possa ter contribuído, por desinformação, para encaminhar essas pessoas a partir do próprio ambiente familiar conflitado a uma institucionalização crônica, trazendo a consequente quebra dos vínculos e referências dessas pessoas na família e na comunidade. Em Gonçalves (2001) já há registro de importantes contradições na reforma psiquiátrica. Para o autor o doente mental estava sendo entregue à família sem o devido conhecimento das reais necessidades e condições da família, especialmente das cuidadoras em termos materiais, psicossociais, de saúde e qualidade de vida, aspectos estes profundamente interligados. Percebe-se que nas condições atuais estas contradições ainda persistem, inclusive na comunidade local, na cidade de Ijuí. Daí a importância de criar as condições de informação e de educação para que estas famílias e a própria comunidade estejam mais bem preparadas para receber as pessoas com sofrimento mental crônico. O “grupo operativo-terapêutico” pode ser um espaço educacional para ajudar os familiares a estarem preparados para receber e acolher seus familiares com esquizofrenia. Por fim, reputo ser oportuno enfatizar a participação dos familiares nas atividades educativas junto aos usuários do CAPS II Ijuí (R.S.). Uso o termo participação associado ao cotidiano familiar a partir de um importante depoimento do pai de um jovem com sofrimento

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psíquico crônico e com intensas intercorrências clínicas. Sinto este pai extremamente solidário com o filho em seu complexo tratamento clínico e emocional. Faço o registo deste depoimento pelo intenso ensinamento que este pai proporcionou a todos nós: o de que a participação do familiar deve vir acompanhada da coerência no cotidiano familiar. Lembrando que o engajamento do familiar só poderá ocorrer a partir de um aprendizado que implica sua participação nos “grupos operativo-terapêuticos”, ou em outras atividades de atendimento nos espaços de saúde mental oferecidos na comunidade. Em uma das reuniões/assembleias mensais em que participam usuários, familiares e profissionais da saúde mental, este pai destacou de forma enfática: “Que não bastava participar das reuniões e depois não colocar em prática os ensinamentos compartilhados entre eles na reunião, se não fossem levados para o dia-a-dia do lar com seu familiar”. (palavras textuais). Devo lembrar que as diferentes formas de segregação ao “doente mental” sempre estiveram presentes ao longo da história. É oportuno destacar um dos mais importantes instrumentos para que a atual política de saúde mental possa consolidar-se como uma ferramenta de inclusão e emancipação a todos os seus usuários. Refiro-me à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

2.1.4 RAPS um referencial para o momento atual da saúde mental no Brasil O atual referencial para a saúde mental no território nacional baseia-se na Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Destaco o seu art. 2º que enfatiza as diretrizes para o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial: I - respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas; II - promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde; III - combate a estigmas e preconceitos; IV - garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar; V - atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; VI - diversificação das estratégias de cuidado; VII - desenvolvimento de atividades no território que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania;

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VIII - desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos; IX - ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares; X - organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado; XI - promoção de estratégias de educação permanente; e XII - desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular. A RAPS tem como objetivos gerais a ampliação do acesso à atenção psicossocial da população em geral, a promoção de vínculos das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e de suas famílias aos pontos de atenção à saúde mental e a garantia da articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências. E como objetivos específicos: a promoção dos cuidados em saúde particularmente aos grupos mais vulneráveis (criança, adolescente, jovens, pessoas em situação de rua e populações indígenas); a prevenção do consumo e a dependência de crack, álcool e outras drogas; a redução de danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras drogas; a reabilitação e a reinserção das pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas na sociedade por meio do acesso ao trabalho, renda e moradia solidária; mas ainda inclui a melhoria dos processos de gestão dos serviços, parcerias intersetoriais entre outros. É apropriado, neste contexto de referência para a saúde mental brasileira, destacar o art. 5º que enfatiza os componentes que devem constituir a Rede de Atenção Psicossocial: I - Atenção básica em saúde, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) Unidade Básica de Saúde; b) Equipe de atenção básica para populações específicas: 1. Equipe de Consultório na rua; 2. Equipe de apoio aos serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório; c) Centros de Convivência; II - Atenção psicossocial especializada, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) Centros de Atenção Psicossocial, nas suas diferentes modalidades;

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III - Atenção de urgência e emergência, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) SAMU 192; b) Sala de Estabilização; c) UPA 24 horas; d) portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro; e) Unidades Básicas de Saúde, entre outros; IV - Atenção residencial de caráter transitório formada pelos seguintes pontos de atenção: a) Unidade de Recolhimento; b) Serviços de Atenção em Regime Residencial; V - Atenção hospitalar formada pelos seguintes pontos de atenção: a) enfermaria especializada em Hospital Geral; b) serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas; VI - Estratégias de desinstitucionalização formada pelo seguinte ponto de atenção: a) Serviços Residenciais Terapêuticos; e VII - Reabilitação psicossocial. Finalizo esta contextualização sobre a RAPS com o art. 14, que se refere à responsabilização das três esferas de poder, ou seja, federal, estadual e municipal para operacionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)20, cabendo: I - À União, por intermédio do Ministério da Saúde, o apoio à implementação, financiamento, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial em todo território nacional; II - Ao Estado, por meio da Secretaria Estadual de Saúde, apoio à implementação, coordenação do Grupo Condutor Estadual da Rede de Atenção Psicossocial, financiamento, contratualização com os pontos de atenção à saúde sob sua gestão, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial no território estadual de forma regionalizada; e III - Ao Município, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, implementação, coordenação do Grupo Condutor Municipal da Rede de Atenção Psicossocial,

20 Fonte:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html, acessado em 10/03/18.

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financiamento, contratualização com os pontos de atenção à saúde sob sua gestão, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial no território municipal.

É pertinente, neste contexto, destacar três programas essenciais nas estratégias de desinstitucionalização presentes nas orientações da RAPS. São eles: a- Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) são elementos indispensáveis no processo de desinstitucionalização e reinserção social de pessoas internadas por longos períodos em hospitais psiquiátricos ou hospitais de custódia. Estes dispositivos constituem-se de moradias ou casas na própria comunidade, destinadas a acolher pessoas egressas de internação de longa permanência (dois anos ou mais ininterruptos), sendo um dos elementos essenciais de garantia de direitos, com promoção de autonomia, exercício de cidadania no processo de inclusão social. (BRASIL, 2015, p.22). Não se pode desconsiderar que muitos usuários egressos de longas internações não têm, muitas vezes, uma família para acolhê-los. Outra situação frequente é o despreparo das famílias desses usuários para os acolherem de forma adequada. Estas dificuldades de acolhimento exigem os serviços residências terapêuticos. Outra alternativa, que muitas vezes pode ocorrer, são os lares substitutos onde os cuidadores oferecem um local acolhedor. b- Nas estratégias de desinstitucionalização, integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) o Programa De Volta Para Casa (PVC), instituído pela Lei Federal nº 10.708, de 31 de julho de 2003, como componente de estratégias de desinstitucionalização. Este programa, por meio do pagamento de um benefício, se propõe a fortalecer o poder de contratualidade, favorecendo, assim, a inclusão social e o processo de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. O programa tem por finalidade contribuir efetivamente para o processo de inserção social dessas pessoas com doença mental, favorecendo o convívio social de forma a garantir o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de cidadania. (BRASIL, 2015, p.22). Considero pertinente destacar o quanto, neste estudo, o retrato sociológico de uma usuária do CAPS II pode mostrar as graves implicações que terá o fato de esta usuária estar com interdição plena para obter um benefício junto ao INSS. Este fato deve ser profundamente questionado pelos profissionais da saúde e do direito tendo em vista que o próprio programa De Volta Para Casa apresenta garantias de uma receita aos usuários sem que precisem recorrer a tal expediente, com sérias repercussões no exercício de sua cidadania. c- O terceiro componente a ser destacado na reabilitação psicossocial acentua a importância de estratégias que viabilizem o protagonismo de usuários e familiares para o

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exercício da cidadania através da criação e desenvolvimento de iniciativas articuladas com os recursos do território, nos campos do trabalho/economia solidária, habilitação, educação, cultura e saúde. Estas estratégias não se restringem a um local ou a uma ação isolada, mas a um processo que vise à construção de novos campos de negociação e de formas de sociabilidade (BRASIL, 2015, p.31). Logo a seguir o mesmo texto destaca a necessidade de os usuários dos serviços de saúde mental, integrantes da RAPS, terem mecanismos de acesso ao trabalho e à renda:

O acesso ao trabalho e à renda para pessoas em situação de desvantagem social tem sido uma questão prioritária para o governo federal, que em 2013 instituiu o Pronacoop Social, programa interministerial com o objetivo de avançar nos marcos legal e jurídico e nas políticas públicas de apoio ao Cooperativismo Social (Decreto nº 8.136 de 20 de dezembro de 2013). O Pronacoop Social tem como finalidade planejar, coordenar, executar e monitorar as ações voltadas ao desenvolvimento das cooperativas sociais e dos empreendimentos econômicos solidários sociais. (BRASIL, 2015, p.31).

É apropriado destacar também o caráter de educação presente na RAPS no contexto do eixo do Cuidado do programa Crack, é Possível Vencer. O Projeto “Caminhos do Cuidado” trata de uma formação em saúde mental destinada a agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem da equipe de Saúde da Família (eSF), com destaque para as necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, visando dar uma melhor atenção ao usuário e a seus familiares por meio da formação e qualificação dos profissionais da Rede de Atenção Básica à Saúde, baseado em um novo enfoque, qual seja, o da “Redução de Danos”. (BRASIL, 2015, p.34). Outro foco na estratégia de educação permanente presente na RAPS refere-se aos programas de residências em psiquiatria e residência multiprofissional para a formação de profissionais para atuarem na saúde mental. Neste aspecto, nos últimos anos, os editais para financiamento de vagas para residência têm priorizado a aprovação de propostas que indicam a realização de residências em serviços da RAPS e com proposta de formação na direção de superação do modelo manicomial. É adequado destacar a necessidade de investimento nas residências multiprofissionais em saúde mental, pois ainda são em número muito inferior às residências médicas em psiquiatria. (BRASIL, 2015, p.37). A RAPS, em toda sua plenitude, só ocorrerá com a efetiva participação da comunidade à medida que se reforça por meio de leis complementares no próprio município

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local onde pode ocorrer sua efetiva fiscalização por todos os envolvidos com a saúde mental. Destaco que no momento atual todos os programas citados são essenciais na RAPS para uma verdadeira inclusão social, mas ainda precisam ser incrementados com auxilio e fiscalização da própria comunidade, em especial por todos os envolvidos com a saúde mental também na cidade de Ijuí. É oportuno destacar que no município de Ijuí a regulamentação da saúde mental é complementada pela Lei nº 6519, de 27 de março de 2017. Esta lei foi recentemente criada com especial participação de um alguns setores da comunidade ligados à saúde mental. Seu texto completo aparece na parte dos anexos (p.211). Ressalto que essas leis devem ter mecanismos de viabilidade no contexto de inclusão social na comunidade local e dispositivos de fiscalização de sua aplicação no contexto das políticas públicas. Cabe aqui destacar as palavras de Boneti, 2006, p.72 a respeito da heterogeneidade no pensamento das pessoas que se relacionam às políticas públicas:

As pessoas, todavia, que entram em contato com as políticas públicas no decorrer de suas longas trajetórias, não pensam de modo uniforme, não tem a mesma interpretação de intervenção na realidade, etc. As políticas públicas, ao longo de seus percursos, são contaminadas por interesses, inocências e sabedorias.

As palavras de Boneti (2006) mostram a complexidade que é a constituição, a implantação e a fiscalização das políticas públicas. Nessas diferentes etapas, torna-se, portanto, indispensável a participação da comunidade. Para abordar o tema a seguir saúde mental e a comunidade local inicialmente recorro ao entendimento de Bauman (2003) a respeito de comunidade. Em seu texto percebe- se que esse lugar aconchegante já não existe mais, mas sim um lugar em que se deve estar em permanente prontidão. É oportuno considerar esses distintos momentos na reflexão a respeito comunidade:

Para começar, a comunidade é um lugar "cálido", um lugar confortável e aconchegante (...). Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. (BAUMAN, 2003, p. 7)

É na comunidade, este lugar cada vez menos acolhedor e cada vez mais assustador, que o outro passa a ser um estranho, e onde ocorrem os principais conflitos no acolhimento à pessoa com sofrimento mental. O esperado seria que as diferentes contribuições para esse acolhimento pudessem estar articuladas entre si, caso contrário estariam repetindo na própria comunidade um

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sintoma tão presente na esquizofrenia, qual seja, o de olhar a vida de forma fragmentada e assustadora.

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3 A SAÚDE MENTAL E A COMUNIDADE LOCAL TABACARIA Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo. que ninguém sabe quem é ( E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa, Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

(Álvaro de Campos, 1928)

Neste fragmento do poema Tabacaria21, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), o tema cidade perpassa todo o poema. Isso pode estar associado à profissão do poeta,

21 O poema “Tabacaria” pode ser considerado por muitos críticos literários um dos dez melhores poemas escritos por Fernando Pessoa, e um dos melhores da língua portuguesa. Seus aspectos físicos com versificação livre; e a preocupação de seu conteúdo, qual seja, o de relatar a subjetividade e descrença da vida, são trabalhados ao longo desse poema. Reproduz, assim, um ritmo acelerado, presente no cotidiano das grandes cidades. Simultaneamente, expressa os problemas internos do eu - lírico estes intensamente presentes na 21Cont.sociedade atual, moderna, sem tempo para refletir sobre a vida, com obrigações apenas de “seguir o bonde”. Essa ideia de rapidez pode ser associada ao estilo futurista, em que tudo é muito efêmero. Disponível em http://www.revistabula.com/522-os-10-melhores-poemas-de-fernando-pessoa-2/ acessado em 30/06/2017

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que é um engenheiro. Como poeta que é, deixa de lado o olhar de engenheiro e lança em muitos versos a literalidade em que expressa a condição do homem da sua época, já imerso num progresso emergente das cidades. Isto fica evidente em “Janelas do meu quarto” em que o autor observa o vai e vem da cidade. Neste aspecto poético, “janela de meu quarto” pode ser associado com o habitual isolamento em que os usuários de nosso serviço de saúde mental se encontram quando regressam para suas casas, para suas famílias e para suas comunidades vindos dos manicômios, das longas internações. É uma imagem de seu isolamento por onde podem ver a vida passar, sem suas participações efetivas na vida diária de sua comunidade. Espera-se que a autonomia libertadora incentivada em seus tratamentos seja estimulada pelos familiares e pelas diferentes contribuições educativas da comunidade local, ajudando-os a saírem de seu isolamento. No poema Tabacaria, o poeta olha sua comunidade e sua cidade através da janela de sua provável casa, ou de “sua própria alma”. E hoje, em que janela se observa nossa comunidade, nossa cidade, nosso mundo globalizado? Pelo Windows de nosso computador, pelo face book de nossos celulares? Ou somos nós observados, na era digital, por estes meios de informatização? Como pode ser entendido o papel da comunidade em um mundo globalizado? Ou as comunidades tradicionais estão sendo dissolvidas? Para refletir sobre estes questionamentos considero oportuno recorrer novamente a Bauman (2003) quando este refere que, com o advento da informática e seu fluxo de informação, a fronteira entre o dentro e o fora não pode mais ser estabelecida. Este fato é considerado pelo autor um golpe mortal no entendimento comunitário. BAUMAN (2003), ao falar da convivência humana nos dias atuais, destaca:

Que o golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação proveniente do transporte dos corpos. Desde o momento em que a informática passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte, a fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida. (BAUMAN, 2003, p. 18 e 19).

Lembro que Bauman (2003), em seu livro “Comunidade a busca por segurança no mundo atual”, aborda a dinâmica das convivências humanas em um mundo globalizado. Neste mundo, a liberdade e a segurança são colocadas nos pratos de uma balança, e o seu equilíbrio torna-se praticamente impossível.

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Quando conseguimos segurança, perdemos a liberdade, e quando conquistamos a liberdade perdemos a segurança. Este equilíbrio não é mais possível em nossos dias de modernidade líquida. Neste contexto, que tipo de comunidade é possível na atualidade?

Hoje, pela dissolução das comunidades tradicionais a identidade implica em “ser diferente”, ser singular. Constrói-se a sociedade do individualismo, passando a comunidade a ser dispensável, na construção do social, passamos a ter sociedades cosmopolitas. A comunidade passou a ser um lugar desnecessário, e até incomodo pela percepção das injustiças e desigualdades, que ela faz surgir. (BAUMAN, 2003, p.134).

Para Bauman (2003), construímos comunidades da estética, isto é, ocupada com a construção/destruição de identidades essencialmente associadas com a indústria do espetáculo midiático (sucesso individual e imediato), isto é, sem compromissos de longo prazo. Diferentemente, portanto, das comunidades éticas, onde os compromissos são/eram de longo prazo, de compartilhamento fraterno, compromissos de solidariedade, na construção das identidades. É possível desejar construir comunidades éticas em saúde mental como forma de resistência às injustiças, ao preconceito e ao estigma às pessoas com “doença mental”, e construir laços de solidariedade e sentimentos de pertença entre os participantes dos grupos operativo-terapêuticos? Sim, nesses grupos pode-se estimular a (con) vivência de pessoas com interesses comuns, quais sejam: conhecerem mais sobre suas enfermidades, construírem laços de solidariedade entre usuários e familiares e essencialmente a defesa de seus direitos, inicialmente o respeito às diferenças. E que esses mesmos direitos possam, a partir de seu cotidiano familiar, estenderem-se à sua comunidade local de forma mais duradora. Esta prática pode ser, assim, a vivência de uma comunidade ética. A afirmação de Samea (2008) reforça essa convicção por entender que os grupos são instrumentos privilegiados de intervenção nas populações marginalizadas e excluídas:

(...) os pequenos grupos nos parecem instrumentos privilegiados de investigação e intervenção no universo das populações marginalizadas e excluídas do tecido social, em um momento contemporâneo onde aspectos básicos como a cidadania, a ética e os direitos humanos se colocam em evidência e paradoxalmente apontam para os longos caminhos ainda a percorrer na direção de maior justiça social. (SAMEA, 2008, p. 87)

Porém, se esta vivência não se estender até suas comunidades de origem, os grupos, e por que não os próprios CAPS, transformam-se em guetos verdadeiros de onde as pessoas em

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sofrimento mental não poderão sair e separadas dos guetos voluntários onde essas mesmas pessoas não podem entrar. Não esqueçamos que, para Bauman (2003), gueto é a negação do conceito de comunidade. Porém, olhando sob uma perspectiva otimista, Bauman (2003) oferece uma alternativa: de como pode ser uma comunidade nos dias de hoje, ou seja, um espaço de compartilhamento. Para Bauman,

“Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e de responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos”. (BAUMAN, 2003, p.134).

A prática em saúde mental especialmente por meio dos grupos operativo-terapêuticos junto à comunidade poderá ajudar a criar esses espaços de compartilhamento e de cuidado mútuo, partindo do respeito à diversidade, mas prioritariamente respeitando seus direitos, especialmente os da inclusão e da autonomia. Os sentimentos de pertença e interesses comuns são os alicerces para sedimentar os elos duradouros entre os participantes de uma comunidade. Leandro (2008) lembra, de forma mais incisiva, que o sentimento de pertença e a existência de objetivos comuns são os alicerces para efetivar os elos entre os membros da comunidade, pois é o que mantém as pessoas unidas a despeito de todos os fatores que poderiam separá-las. “A dimensão subjetiva se coloca, assim, como mais significativa do que outras dimensões, como a da espacialidade, também inegavelmente associada à ideia de comunidade”. (LEANDRO, 2008, p. 157). É oportuno descrever de forma mais detalhada a comunidade local, pois é onde ocorre a atual pesquisa. Não só em seus aspectos socioeconômicos, mas também nos aspectos relacionados à saúde em especial o processo de construção da saúde mental em seus diferentes espaços públicos ou privados.

3.1 MUNICÍPIO DE IJUÍ (RS)

Ijuí está localizada na região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, a 395 km da capital Porto Alegre. O município de Ijuí 22ocupa a 22º colocação entre 496 municípios que abrangem o Estado. Com 83.089 habitantes, segundo dados do IBGE, publicados no Diário Oficial da União em junho de 2016, é o município mais populoso da região Noroeste do Estado. Por ser uma cidade universitária e com importantes recursos hospitalares, Ijuí tem um

22Ijuí é conhecida por Terra das Culturas Diversificadas, Cidade Universitária, Colmeia do Trabalho, Terra das Fontes de Água Mineral e Portal das Missões. Localizada no Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, em um entroncamento rodoviário que é passagem obrigatória para o MERCOSUL e a 395 km da capital Porto Alegre.

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fluxo de aproximadamente 100.000 pessoas, sendo o maior e mais importante centro populacional da região.

Fig. 2 - Mapa do Rio Grande do Sul

Portanto, o município possui expressão em âmbito estadual. Todas as suas potencialidades são expressas através de uma economia baseada no seu forte setor agropecuário, em seu comércio, indústrias e serviços; de seu ensino qualificado, conferido por escolas da cidade e pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e recentemente por outras faculdades instaladas no município; de sua saúde, amparada por hospitais muito bem equipados, que atendem de forma integral a toda região. Por reunir variados grupos étnicos, Ijuí é conhecida como "Terra das Culturas Diversificadas". Podem-se citar os seguintes: afro-brasileiros, índios, portugueses, franceses, italianos, alemães, poloneses, austríacos, letos, holandeses, suecos, espanhóis, japoneses, russos, árabes, libaneses, lituanos, ucranianos dentre outros. Uma cidade com tamanha diversidade étnica tem uma cultura de acolhimento à diversidade, ao “diferente” especialmente na saúde mental? Isto é, as pessoas com psicose crônica, em especial as pessoas com esquizofrenia, podem ter um ambiente mais acolhedor em seu meio? Ou esta diversidade cria uma velada competição entre as citadas culturas, tornando-se assim um meio menos acolhedor às diferenças e ao diferente? É oportuno lembrar Bauman (2003, p.60) a respeito de compartilhamento de soluções na atual sociedade pós-moderna: "Supõe-se que os problemas sejam sofridos e

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enfrentados solitariamente e são especialmente inadequados à agregação numa comunidade de interesses à procura de soluções coletivas para problemas individuais". Portanto, este pode ser um risco que essas diferentes coletividades(etnias), o de elas pensarem em soluções para seus problemas particulares em detrimento da possibilidade de pensar a comunidade numa “amorosidade solidaria”. Para isto, também é essencial que o poder público ofereça reais alternativas de participação a todos e não só aqueles que estejam associados a tão comum ideia política de eternização no poder.

3.1.1 A saúde mental no município de Ijuí no momento atual A cidade de Ijuí23 é considerada importante polo regional e estadual na área de saúde. Com uma estrutura tecnológica em processo de modernização, em um dos setores mais fundamentais para a comunidade, os serviços em saúde também contribuem para a 22ª colocação no ranking de municípios mais desenvolvidos do Rio Grande do Sul. Pacientes de vários lugares do Rio Grande do Sul vêm a Ijuí em busca de tratamento básico e avançado em várias áreas da saúde. É apropriado lembrar que, ao lado de uma necessária qualificação tecnológica no atendimento em saúde, esteja presente a preocupação com o aspecto social, isto é, com as condições em que ocorreu o adoecimento, com o aspecto emocional da pessoa enferma em qualquer que seja o nível de complexidade do serviço de saúde. Esta preocupação com o social é imprescindível para a instalação do modelo biopsicossocial em todos os níveis de atendimento ao usuário de um serviço de saúde, e em especial na sua própria comunidade. No entanto não se pode esquecer as intensas resistências especialmente ligadas a interesses econômicos para a instalação deste novo modelo holístico. Evidencio que ao longo dos últimos anos a saúde mental na cidade de Ijuí vem passando por um processo de evolução, com intensa participação dos profissionais da saúde mental, dos usuários e seus familiares, dos serviços de saúde do município. Também com importante influência das instituições de ensino superior, à medida que as mesmas formam profissionais para atuarem na área da saúde com uma visão mais humanista e mais comunitária, baseada em um modelo biopsicossocial. Mesmo assim é necessário considerar que, para as práticas educativas em saúde mental serem efetivas, as diferentes contribuições profissionais e institucionais devam ser mais integrativas e integradoras, na busca de uma atenção integral aos usuários dos diferentes serviços de saúde do município.

23 Esta informação encontra-se http://www.ijui.rs.gov.br/paginas/saude, acessado em 12/03/2018.

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Atualmente, no município de Ijuí, baseando-se no referencial nacional de saúde mental, ocorre o processo de construção da rede de atenção psicossocial (RAPS) composta pelos ambulatórios de referência, CAPS II, CAPS AD, CAPSi e hospitais. Nas crises, os usuários da rede podem ser referenciados aos Hospitais de Caridade de Ijuí (HCI) no que se refere às pessoas em sofrimento mental agudo (crises) e ao Hospital Bom Pastor (HBP) quando se tratar de avaliação e/ou internação para dependência química. Os serviços existentes e que fazem parte da (RAPS) são formados por equipes interdisciplinares, com profissionais da saúde que possuem diferentes referenciais teóricos. É prioridade que se consiga planejar o atendimento do usuário baseando-se em um plano terapêutico que possa ser utilizado nos diferentes tipos de atendimentos individuais ou em grupos, ambulatorial ou hospitalar. Busca-se, assim, evitar a cronificação das disputas pela hegemonia do poder entre as diferentes profissões que, muitas vezes, aproximam-se de um fanatismo nada cientifico e que sempre deixam os usuários e seus familiares em segundo plano. Evitar este facciosismo é condição indispensável para uma autêntica ação interdisciplinar. a) Pronto Atendimento e Rede Hospitalar O município conta com pronto atendimento (PA) 24 horas junto à sede da Secretaria Municipal de Saúde, local para onde os usuários da saúde pública do município de Ijuí são encaminhados após seu atendimento inicial na rede básica. As situações de maior complexidade são encaminhadas aos hospitais. Três hospitais equipados com a adequada qualificação tecnológica também compõem a estrutura de saúde pública local e regional. Acrescento que, associado à qualificação tecnológica, sempre há de se buscar um atendimento integral e humanizado. b) Hospital de Caridade O Hospital de Caridade de Ijuí (HCI) 24é um hospital macrorregional. Atende cerca de 1,5 milhão de pessoas de 120 municípios e tem 75% de sua capacidade destinada aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e demais convênios. A área de saúde mental vem constituindo-se como um espaço de humanização para as pessoas com necessidades de atendimento, não só como um local de acolhimento, via Pronto Socorro (PS), mas também como um espaço de curtas internações, em uma unidade integrada

24 O Hospital de Caridade de Ijuí (HCI) surgiu da necessidade de atendimento médico-hospitalar, a partir do crescimento da cidade, na década de 30. Em 19 de junho de 1935, formou-se a Associação Hospital de Caridade de Ijuí, e em 9 de junho de 1940, o primeiro pavilhão foi construído. A partir dos anos 80, foi aberto à comunidade, exigindo adequação e ampliação.

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com as demais junto ao HCI. Sempre que possível, os usuários são acompanhados de seus familiares e prioritariamente atendidos por uma equipe interdisciplinar. Um aspecto possível na evolução habitual de uma pessoa com psicose crônica, especialmente na esquizofrenia, é que podem ocorrer surtos psicóticos acompanhados dos riscos que a pessoa possa oferecer a si e a outros. Em situações extremas, faz-se necessário, para sua proteção, internação breve e se possível na própria comunidade, com a participação constante dos familiares, evitando-se, assim, seu isolamento e quebra de vínculos familiares. Para Louzã, (2007) “A meta primordial da hospitalização, quando ocorre, deve ser a de estabelecer uma ligação efetiva entre o usuário e os sistemas de apoio da comunidade”. Na atual realidade da saúde mental na cidade de Ijuí, a internação de um usuário do CAPS II ou dos diferentes ambulatórios que compõem a rede municipal de saúde, faz-se necessária durante um episódio de surto psicótico e não tem o caráter de isolamento ou de exclusão, pois o mesmo é internado na própria comunidade, na Unidade de Saúde Mental do HCI, que tem seis leitos individuais. Esta unidade é integrada às demais unidades do hospital, onde o usuário fica internado pelo SUS, de preferência com acompanhamento familiar. Este tipo de assistência permite um atendimento integral ao usuário e à sua família pela equipe interdisciplinar de saúde mental do HCI. Possibilita também que, se evidencie adoecimento familiar e não só do usuário do serviço de saúde mental. Esta avaliação/internação deve ser feita de forma integrada com os profissionais do CAPS II, ou dos ambulatórios de referência que acompanham o usuário quando em seu atendimento ambulatorial, facilitando o seu acompanhamento após a alta hospitalar. Esta possibilidade de atendimento interinstitucional valoriza as práticas integrativas e integradoras. É oportuno destacar que este tipo de atendimento interdisciplinar integrando o CAPS II ou o ambulatório em que o usuário é referenciado junto à comunidade e o serviço de Saúde Mental do HCI permitem internações breves, com períodos médios de uma a duas semanas, com objetivos bem definidos de internação/avaliação e tratamento da crise. Junto ao HCI atualmente existe um ambulatório de saúde mental para atender as pessoas de vários convênios de saúde que usavam, por diversas razões, a saúde mental na rede pública. Com isso, espera-se contribuir para diminuir a sobrecarga da própria rede pública. Este ambulatório destina-se a atender a uma clientela extra-hospitalar, mas também usuários dos diferentes serviços do hospital. Em especial dá-se destaque aos usuários do Centro de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), pessoas que muitas vezes não têm um espaço adequado para falar de seus complexos aspectos emocionais.

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Mais recentemente foi criado no HCI um serviço de residência médica em psiquiatria. Nos diferentes serviços prioriza-se a ideia de atendimento integral à saúde por meio de uma equipe interdisciplinar, na ótica do modelo biopsicossocial de assistência à saúde. Não só em atendimentos baseados nos processos de interrogatórios e de medicalização, característico do modelo biomédico de assistência, muitas vezes acompanhados de severos riscos como se pode perceber na atual demanda do P.S. do Hospital pelas frequentes intoxicações medicamentosas. Isso mostra que o enfrentamento do modelo biomédico, ainda presente, será um processo contínuo com retrocessos e com avanços. c) Hospital Bom Pastor De abrangência microrregional, o Hospital Bom Pastor (HBP) 25é uma entidade sem fins lucrativos e de caráter filantrópico. Atende cerca de 50 municípios da região, possuindo 42 leitos para internação. Está direcionado ao atendimento nas áreas da geriatria, dependência química e psiquiatria, porém atende ainda as áreas de clínica médica, cirúrgica, obstétrica e pediátrica. Nos últimos anos, o HBP priorizou, em parceria com a administração municipal, o atendimento em saúde mental, especialmente em dependência química, criando o ambulatório de dependência química: Centro de Atendimento Psicossocial em Álcool e Drogas (CAPS AD) e as internações psiquiátricas a pessoas com dependência química a drogas lícitas e ilícitas. Neste local, também é oferecido o Centro de Atendimento Psicossocial a Crianças e Adolescentes (CAPSi). Todos esses serviços contam com equipe interdisciplinar. d) Hospital da Unimed A Unimed Ijuí foi fundada em 20 de outubro de 1971. Em 1979, inaugurou sua primeira sede própria, na Rua Siqueira Couto. Já em março de 2005 inaugurou o complexo hospitalar Unimed. Recentemente na área da saúde mental, junto ao hospital da Unimed, foi criado um ambulatório de saúde mental com uma equipe interdisciplinar para atender seus conveniados. Destaco que este ambulatório em saúde mental foi criado junto a um ambulatório de medicina preventiva, o que mostra que o foco na saúde privada também está deixando de ser exclusivamente baseado no modelo hospitalocêntrico e dirigindo-se aos aspectos ambulatoriais e preventivos. Isto evidencia que o custo com ações extra-hospitalares é economicamente viável.

25O Hospital Bom Pastor (HBP), foi fundado em 18 de maio de 1981 pela Cooperativa Regional Tríticola Serrana Ltda (Cotrijuí). A meta era atender associados e produtores rurais de sua área de ação. Em dezembro de 1988, passou a ser administrado pela comunidade com a criação da Sociedade Hospitalar Beneficente Ijuí, que em janeiro de 2005 passou a ser chamada de Associação Hospital Bom Pastor de Ijuí.

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Todos esses serviços ambulatoriais e hospitalares, com exceção do hospital da Unimed, fazem parte da RAPS. Questiona-se o quanto esses serviços estão integrados e dialogam, efetivamente, entre si. Neste contexto, o CAPS II, que passará a ser abordado a seguir, tem um papel fundamental na integração dos demais serviços da RAPS, fundamentalmente um papel educativo para toda saúde mental no município de Ijuí.

3.2 CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS II) Uma das perspectivas dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços substitutivos de assistência à saúde mental de base comunitária e territorial26, é a proximidade e a possibilidade de intervenção no cotidiano da vida dos usuários. Essa condição permite explorar os recursos existentes na própria comunidade e viabilizar a realização dos projetos terapêuticos mais realísticos e individualizados e as adequadas contribuições educativas a todos os envolvidos no processo de adoecimento mental. Heidrich (2007) refere-se aos CAPS II como os serviços de médio porte que dão cobertura a municípios com mais de 50.000 habitantes. Tem sua equipe definida com a participação de no mínimo doze profissionais, e sua capacidade de atendimento próximo a 360 pessoas por mês. Deve funcionar em dois turnos, durante cinco dias da semana. Sua clientela deve ser formada por adultos com transtornos mentais severos e persistentes. Nos anos de 2016/2017 o número de usuários no CAPS II, na cidade de Ijuí, foi em média superior a 1000 pessoas, gerando um excesso de trabalho para todos os envolvidos. Existe uma dificuldade e uma resistência no fluxo da rede para referenciar a grande maioria dos usuários estáveis com quadros menos graves a seus ambulatórios de origem. Essa dificuldade associada a uma grande dependência desnecessária dos usuários ao CAPS II interfere no processo de construção da autonomia possível ás pessoas com esquizofrenia e que necessitam de um atendimento interdisciplinar mais intensivo. Este número excessivo de usuários gera a todos os profissionais envolvidos no CAPS II uma sobrecarga de trabalho. Também constitui-se em um obstáculo para uma melhor articulação entre as diferentes instituições participantes para que possam contribuir com ações educativas emancipatórias, em especial integradas e integradoras à saúde mental. Este excesso

26 Podemos compreender a territorialidade como uma espécie de âncora ou ponto de referência cultural onde é possível a vivência com os outros em um determinado período de tempo. Pesquisas realizadas na área de saúde mental, em cuja temática se inserem os CAPS como campo de estudo, apontam para a precariedade das ações territoriais e, consequentemente, para a necessidade da aproximação do serviço à comunidade. (VIEIRA FILHO E NÓBREGA, 2004, p. 375)

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de trabalho é, portanto, um forte elemento para a cronificação dessas pessoas junto ao CAPS II em nossa própria comunidade. Consciente dessas limitações para o trabalho educativo junto aos usuários com psicose crônica e a seus familiares, faz-se necessário avaliar a viabilidade de um espaço adequado na construção da autonomia possível a estes usuários em sua própria comunidade. E também analisar a importância das contribuições educativas, em especial a participação de seus familiares, em um processo de educação popular em saúde mental.

3.2.1 Caracterização da População Pesquisada no CAPS II Para caracterizar a população pesquisada utilizo os dados obtidos na pesquisa de mestrado de 2013 e por isso aparece nas citações o termo paciente e não o de usuário como no restante desta pesquisa. Considero o termo usuário mais adequado posto que associado aos direitos das pessoas. Nos vinte e um (21) pacientes entrevistados em relação ao gênero, os dados obtidos mostram que dezessete deles com transtorno mental (81%) são do gênero masculino e quatro (19%) são do gênero feminino. Dados comparativamente proporcionais aos encontrados por Durão (2004) em sua pesquisa com onze (11) entrevistados: oito (73%) são do gênero masculino e três (27%) são do gênero feminino. Na mesma pesquisa, a autora destaca que a esquizofrenia nas mulheres está associada a um melhor prognóstico: doses menores de medicação, menos hospitalizações, menos recaídas e melhor funcionamento social. Em relação à idade dos pacientes foram observados os seguintes dados Tabela 1 - Classificação dos pacientes em relação à idade no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 Idade Paciente Percentual 20 a 30 anos Um paciente 5%

30 a 40 anos Quatro pacientes 19%

40 a 50 anos Oito pacientes 38%

50 a 60 anos Sete pacientes 33%

> 60 anos Um paciente 5%

Total 21 pacientes 100%

Fonte; Amaral (2013)

Kaplan & Sadock (2016) enfatizam que o início da “doença” antes dos 10 anos ou após os 50 anos é extremamente raro. Cerca de 90% dos “pacientes” com esquizofrenia têm

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entre 15 e 55 anos. Considerando-se a entrada na 3ª idade aos 60 anos, de acordo com o Plano Nacional do Idoso (PNI), encontra-se na atual pesquisa que apenas 5% da amostra pode ser considerada no período de menor inserção no mercado de trabalho. Os dados acima nos permitem verificar que 95% de nossa população estudada estão em condições de se sentirem produtivas nos critérios de trabalho, em nossa sociedade. Na produção criativa, portanto associada a uma melhor qualidade de vida, deve-se incluir toda a nossa população, inclusive as pessoas com mais de 60 anos de idade. Com relação à escolaridade dos pacientes, foram encontrados os seguintes resultados:

Tabela 2 - Classificação dos pacientes em relação à escolaridade no CAPS II, Ijuí/RS- 2013 Grau Usuário Percentual 1º Grau incompleto Dezesseis pacientes 76%

1º Grau completo Dois pacientes 9%

2º Grau incompleto Dois pacientes 10%

2º Grau completo Um paciente 5%

Total 21 pacientes 100%

Fonte; Amaral (2013)

Pelo início precoce da “doença”, geralmente na adolescência, questiono como a baixa escolaridade pode estar relacionada a este fato e agravar as repercussões na capacidade cognitiva da pessoa com esquizofrenia. Associo também a um processo de exclusão sócio- familiar do ambiente escolar, relacionado como causa ou como consequência da doença mental. Ambos os fatores podem ser abordados em um processo educativo pelo “grupo operativo-terapêutico”. Durante um período significativo (três semestres), após as reuniões do “grupo operativo-terapêutico” foram oferecidas aulas de reforço aos usuários, incluindo o próprio “processo de alfabetização” para alguns. Este processo foi interrompido pelas dificuldades burocráticas que envolveram a Secretaria de Saúde e a Secretaria de Educação do município, mas também pela interrupção do apoio ao programa pelo Governo Federal.

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Na tabela relativa ao estado civil dos pacientes, os dados são os seguinte:

Tabela 3-Classificação dos pacientes em relação ao estado civil no CAPS II, Ijuí/RS-2013 Estado Civil Usuário Percentual Solteiro Quinze pacientes 71%

Separado Três pacientes 14%

Casado Dois pacientes 10%

Viúvo Um paciente 5%

Total 21 pacientes 100%

Fonte; Amaral (2013)

Como 85% de nossos pacientes são solteiros ou separados, isso nos permite inferir que existe uma relação direta entre a “doença’ esquizofrenia e um dos seus principais sintomas: o isolamento, o que repercute direta e intensamente na capacidade dessas pessoas terem relacionamentos, especialmente fora da família de origem”. Assim sendo, permite-se pensar a esquizofrenia como uma “doença” vincular, isto é, relacionada à capacidade de formar vínculos (BION, 2004, p. 103). A tabela a seguir registra a renda declarada dos pacientes: Tabela 4 - Classificação dos pacientes em relação à renda declarada no CAPS II, Ijuí/RS-2013 Renda Usuário Percentual Um salário mínimo (aux. Doença) Sete pacientes 33%

Um salário mínimo (pensão) Dois pacientes 9%

Um salário mínimo (aposentado) Seis pacientes 29%

Dois salários mínimos (aposentado) Um paciente 5%

Dois salários mínimos (ocupação) Um paciente 5%

Um salário mínimo (ocupação) Um paciente 5%

Sem renda Três pacientes 14%

Total 21 pacientes 100%

Fonte; Amaral (2013)

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Com relação à renda dos pacientes, os dados permitem questionar por que a grande ou absoluta maioria dos usuários está fora do mercado formal de trabalho. Questiono o quanto para estas pessoas as fontes de renda: auxílio doença, pensão, aposentadoria tornam-se um importante limitante ao trabalho pelo medo de perder o benefício. Além disso, esta limitação associa-se á baixa escolaridade e ao limitado preparo profissional. Não pode ser desconsiderado que há uma efetiva discriminação no mercado de trabalho às pessoas com “doenças mentais”, fazendo com que estas busquem essas rendas- benefício, inclusive por processos de interdição judicial, para assim auxiliarem no seu sustento mínimo ou ser complemento indispensável na renda familiar e para alívio financeiro da mesma. A tabela seguinte registra o tempo de participação dos pacientes no grupo Tabela 5 - Tempo de participação dos pacientes no grupo no CAPS II, Ijuí/RS- 2013 Tempo de grupo Usuário Percentual 0 - 2 anos Seis pacientes 28,57%

2 - 4 anos Oito pacientes 38,10%

4 - 6 anos Dois pacientes 9,52%

6 - 8 anos Dois pacientes 9,52%

8 - 10 anos Três pacientes 14,29%

Total 21 pacientes 100%

Fonte; Amaral (2013)

Verificou-se que 71,43% da população entrevistada estão nos grupos em um período igual ou superior a dois (2) anos. Questiono o quanto estas pessoas possam ter este local como um referencial importante em suas vidas. E esta regularidade aos grupos é por si um fator educativo na construção e manutenção de seus vínculos. As pessoas com este tipo de sofrimento mental crônico (esquizofrenia) antes de participarem das atividades junto ao CAPS II, especialmente junto aos grupos, viviam em um intenso isolamento em seu meio familiar. Portanto, tal modificação se constitui por si só em um intenso processo educativo na construção e/ou manutenção de vínculos sociais.

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3.2.2 O CAPS II como território pedagógico O CAPS II pode ser considerado um “território pedagógico” na medida em que aborda e apresenta alternativas de enfrentamento aos frequentes déficits cognitivos presentes na esquizofrenia. Também, na medida em que permite trocas de informações com a comunidade a respeito da saúde mental, reduz o preconceito baseado no desconhecimento do tema. Este processo de trocas com a comunidade é indispensável para que, em determinada fase de seus tratamentos, os usuários do CAPS II possam ser referenciados para seus ambulatórios (“território”) de origem. Faria (2009) se refere a território não só como um local de produção de bens materiais, mas também como um local para a investigação das relações sociais, em nosso estudo as relações na saúde mental:

É nesse sentido que a categoria território se mostra pertinente, tanto no que se refere ao alcance social dos bens produzidos pela sociedade moderna, quanto para a investigação das realidades sociais mais deploráveis. Se de um lado o território - cenário das relações sociais -, pode ser essencial para investigar a apropriação/dominação do espaço e sua relação com a saúde, de outro, torna-se importante para o planejamento de ações que permitam diminuir os impactos dessa apropriação na vida das pessoas. (FARIA, 2009, p.37)

Ao entender o território como apropriação social (política, econômica e cultural), é possível estabelecer as relações entre os territórios em diferentes escalas. Isso possibilita o trânsito entre as escalas territoriais locais (acesso aos serviços, qualidade de vida, moradia etc.) e sua relação com os mecanismos territoriais globais (políticas públicas, infraestrutura, economia etc.) e, a partir daí, estabelecer a relação com os processos sociais, como saúde, educação, renda etc. (FARIA, 2009, p.37). Considero que a construção cotidiana de novas relações sociais pode ocorrer neste trânsito entre as diferentes escalas territoriais locais, permitindo a todos os envolvidos o aprendizado da convivência com a diferença, possibilitando também que esse aprendizado possa ser assimilado pela comunidade local. Neste contexto do trânsito entre diferentes territórios, cito por meio da observação participante as diferentes atividades realizadas nos dias e nos horários do grupo, portanto vivenciadas pelos usuários e familiares do CAPS II, atividades que levam em consideração a necessidade do enriquecimento do mundo interno das pessoas com esquizofrenia, mundos internos tão empobrecidos pelos déficits cognitivos e funcionais. Para Fett (2011), estudos revelam que os déficits cognitivos com consequências funcionais podem atingir entre 20% a 60% das pessoas com esquizofrenia. Este autor destaca o empobrecimento em importantes

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áreas funcionais, como diminuição da autonomia no trabalho, lazer, aprendizado e manutenção das relações interpessoais. Para Fett (2011), o processo emocional é a capacidade de reconhecer as expressões alheias e emoções básicas, o que entendo ser indispensável para o reconhecimento de alterações mentais no outro e por espelhamento em si próprio. A percepção social pode ser entendida como a habilidade de compreender as regras e os papéis sociais, o que pode ser reforçado pelo aprendizado da convivência com o outro no “grupo operativo-terapêutico”. A teoria da mente é a habilidade de se colocar no lugar do outro (empatia) elemento, o que considero indispensável para uma educação dialógica, pois implica saber ouvir o outro. Por fim as atribuições sociais, o que implica o conhecimento sobre o comportamento orientado em situações sociais específicas, como o entendimento necessário para circular em “diferentes territórios”. Nas palavras de Noto (2012), os estímulos sociais podem ser mutáveis ao longo do tempo:

Diferentemente dos estímulos não sociáveis, os estímulos sociais podem ser mutáveis ao longo do tempo e imbuídos de significado pessoal. Quatro são os aspectos que englobam os processos cognitivos sociais; processamento emocional, percepção social, teoria da mente e víeis de atribuições sociais. (NOTO, 2012, p. 198)

Estes déficits cognitivos e funcionais, quando presentes, não devem ser desconsiderados no aprendizado em saúde mental, por isso prioriza-se a criação de um espaço acolhedor no grupo onde as pessoas possam ter novas atividades para superarem as carências de seu meio de origem. Essas atividades realizadas em “diferentes territórios” têm como finalidade possibilitar aos usuários e a seus familiares contato com novos estímulos, novos meios, viabilizando o enriquecimento de seus mundos internos. Esses estímulos são indispensáveis para a aprendizagem de socialização e para o processo emancipatório em saúde mental. Destacam-se as atividades realizadas pelo grupo neste contexto educativo para uma melhor socialização e uma menor dependência ao meio familiar, ao CAPS II e às terapias que priorizem tão somente a medicação. Essas atividades sempre contaram com a presença dos profissionais participantes do grupo, eis algumas realizadas nesse período de acompanhamento dos grupos: No território da agricultura familiar foram realizados passeios, de forma regular, à feira do produtor rural localizada próxima ao CAPS II onde os usuários puderam interagir com os produtores e consumir diferentes produtos, tais como frutas, sucos naturais e outros

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alimentos naturais. O contato dos usuários com este novo território dentro da própria comunidade possibilitou o aprendizado de socialização, isto é, que podem sair de seu isolamento. Também possibilitou aos usuários estarem mais próximos de pessoas com as quais puderam ter um diálogo enriquecedor sobre atividades ligadas à natureza e à produção de alimentos. No território cultural, o grupo, por meio de uma “biblioteca” de periódicos e revistas doadas ao CAPS II, ofereceu de forma regular opções de leituras aos usuários do serviço. Ao final do período da reunião, cada um poderia fazer um resumo daquela “manchete” que lhe tinha chamado atenção, possibilitando, assim, uma maior aproximação com outros contextos da realidade de seu interesse. Outro território cultural a que os usuários tiveram acesso foi a biblioteca pública municipal onde, com a orientação da terapeuta ocupacional, puderam ter acesso a esse universo enriquecedor. Foram feitas frequentes e regulares visitas, o que lhes permitiu o contato com diferentes produções literárias, de acordo com seus interesses de leitura. Considera-se esta atividade enriquecedora para o universo das palavras, das imagens de cada um dos usuários e facilitadora para seu processo de comunicação. No território do mundo do trabalho, os usuários puderam fazer visitas pré-agendadas a algumas indústrias produtoras de alimentos do município onde foram recebidos por um funcionário da empresa encarregado de mostrar as instalações e o funcionamento do processo industrial na produção de alimentos. Isto causou uma satisfação especial para alguns usuários, pois em outros momentos tinham trabalhado em tais indústrias. Enfatizo, como observador participante, que os usuários foram sempre tratados com muito carinho e respeito pelos diretores e funcionários dessas empresas onde sempre ao final da visita recebiam algum tipo de “mimo”. Com relação às atividades no território do lazer, pude acompanhar os frequentes “piqueniques” às áreas de lazer das mineradoras de águas minerais da Fonte Ijuí e Itaí onde sempre havia programação para o dia inteiro. O lazer incluía atividades esportivas, apresentações musicais e o tradicional churrasquinho organizado pelos usuários e seus familiares com a ajuda dos profissionais da equipe que os acompanhavam. Sempre que esses passeios implicavam um deslocamento mais longo, eram fornecidos ônibus pelas próprias empresas de transporte do município. Ainda como atividades de lazer e cultura, foram feitas visitas ao SESC. Sistematicamente esta instituição participa na organização de diferentes atividades culturais a todos os envolvidos, incluído peças teatrais e apresentação de filmes previamente escolhidos

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pelos usuários. Cabe destaque especial aos passeios que foram feitos com os grupos, em diferentes momentos, às ruinas de São Miguel pela possibilidade do contato com a cultura indígena e sua importância para toda região missioneira. Atualmente, local resgatado como patrimônio histórico da humanidade. Certamente esta circulação dos usuários por esses diferentes territórios enriqueceu o mundo interior de cada um com novos símbolos, com novas palavras, com novas memórias e, assim, ampliou a capacidade de comunicação, a capacidade cognitiva, permitindo e facilitando a convivência no grupo, na família e propiciando a cada um a apropriação de sua vivência social a partir da visão de território como um local com função social. Outra atividade que enriquece o mundo interno das pessoas com esquizofrenia é arte- terapia realizada no “grupo operativo-terapêutico” do CAPS II, na cidade de Ijuí. Este trabalho que contou com a orientação de uma artista plástica visa não só resgatar a própria capacidade dos usuários para diferentes atividades, mas também, promover mudanças na autoimagem desses sujeitos, isto é, deixarem de ver a si mesmo como um inválido. A arte- terapia também estimula a capacidade destas pessoas de apropriarem-se da realidade a partir de suas opiniões a respeito da releitura da obra, em estudo.  Um fragmento do trabalho dos usuários em arte-terapia Nos grupos com a orientação da artista plástica e com a participação dos usuários foram reproduzidas algumas releituras de obras de arte e viabilizada a manifestação de seus sentimentos ao produzi-las e observá-las. Esta é uma maneira de os usuários expressarem e apropriarem-se de seus sentimentos e, por extensão, de seus corpos, de suas histórias de vida, facilitando, assim, a reconstrução de uma nova identidade, que não a do “louco inválido”, mas sim de uma pessoa com capacidade de produção criativa. Portanto uma pessoa com direitos à inclusão social, à emancipação, ao reconhecimento e respeito à diferença, elementos tão importantes na metodologia da educação popular. A arte é uma forma de comunicação que ajuda a compreender e respeitar as diferenças. Conforme Monteiro(2009), referenciando-se na mitologia junguiana, a arte é a linguagem da alma; permite escutar a alma de outrem:

A arte é a linguagem da alma. Jung revela um universo repleto de mitos, símbolos, sonhos, religiosidade, arte e alquimia. Compreende o homem na sua totalidade e traz uma percepção de que a criação está dentro de nós e que, se quisermos conhecer o mundo, devemos mergulhar mais em nós mesmos. Se o processo analítico visa a “escutar” a alma de outrem, a arte será um veículo que torna essa “escuta” possível. Se visarmos compreender o social, um grupo de pessoas deveremos estar abertos às suas músicas, aos poemas, as pinturas, as danças, e as outras manifestações da alma. Tudo que se faz com arte se faz com alma. Por meio da expressão artística, realiza-

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se uma comunicação que está além das fronteiras, que não precisa estar baseada restritamente no código verbal. (MONTEIRO, 2009, p.21).

Apresento um recorte do trabalho em arte-terapia feito pelos usuários do CAPS II junto ao grupo e suas interpretações a respeito do mesmo, lembrando que a comunicação artística está além do código verbal. A obra da qual os usuários fizeram uma releitura foi “O grito” de Eduard Münch (1893), pintor expressionista, estilo em que se preservam mais a expressão das ideias e os sentimentos do artista do que a própria realidade. A obra parece retratar fielmente o que Münch sentia no momento. O retrato de sua revolta frente aos infortúnios que a vivência terrena lhe proporcionou. Fig. 3 - O grito - Edward Münch - 1893

Fonte: Amaral (2013, p.68) Eis a impressão dos usuários do “grupo operativo-terapêutico”, representados pela letra (U), sobre a obra produzida a partir de sua releitura: U.13: “O grito parece um pedido de ajuda, por um mundo melhor, sem poluição, com ar puro. Onde tudo consegue viver muito bem”. U.12: “Eu acho que ele está em pânico em cima da ponte”. U.7: “O quadro o grito significa talvez uma pessoa triste, pensativa, ele pode estar refletindo ou rezando sobre a sua vida”. U. 6: “O quadro do grito me lembra quando eu estava doente no meu quarto. Eu passava muita dificuldade”. U. 11: “O quadro o grito lembra quando estava no hospital pedi para a enfermeira me dar uma injeção para dormir, eu não aguentava mais”.

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U. 19: “O grito para mim significa tristeza porque o homem está sem orelha e está numa escuridão perto do mar, numa ponte. O mar parece estar agitado com ondas fortes”. U.17: “O grito me passa curiosidade o que está acontecendo?”. U.10: “Eu acho que o mundo está acabando para esta pessoa doente da cabeça. Não sabe o que está acabando ao ficar doente. Não vê o mundo ao redor”. Os usuários, ao expressarem seus sentimentos sobre esta obra, mostram também sua subjetividade. Esses sentimentos podem evidenciar sua preservada capacidade cognitiva de observação da realidade; sua capacidade de curiosidade por esta realidade; sua tristeza frente à finitude das coisas; mas também sua capacidade de pertencimento à espécie humana. Nota-se o quanto está presente a capacidade dos usuários de falarem de suas vivências que podem ser transformadas através do grupo em experiência, permitindo a cada um, em especial, a apropriação de seu corpo, de suas emoções e por que não de sua própria história de vida, em uma autêntica individualização no social. Viabiliza-se, assim, uma intensa e rica contribuição educativa não formal através da arte-terapia. Embora os exemplos relatados pela observação participante a respeito do trânsito dos usuários entre os diferentes territórios citados, inclusive no de arte-terapia, ainda há em nossa comunidade de Ijuí uma forte resistência para que os usuários que estão estáveis em seus tratamentos no CAPS II possam ser referenciados aos seus respectivos ambulatórios de origem. Todavia, não se pode deixar de registrar os esforços da equipe matricial do CAPS II para reduzir essas resistências. Questiono se esta resistência estaria associada ao próprio processo em construção de inclusão e de emancipação na saúde mental e indicaria que a reforma psiquiátrica sempre enfrentará resistências e riscos de retrocesso. As mudanças no processo da Reforma Psiquiátrica são desafios constantes aos profissionais da saúde mental, aos responsáveis pelas políticas públicas de saúde no seu cotidiano institucional. A esses agentes públicos cabe a tarefa de expandir e consolidar as mudanças numa rede de cuidados que tenha como base a compreensão de território, os princípios de integralidade e a participação popular. É indispensável a sua própria qualificação técnica e que sua vontade política parta dos desejos da população. Enfatizo que a mudança do modelo hospitalocêntrico para o modelo de tratamento na comunidade por si só não garante a transformação da prática realizada no campo da saúde mental especialmente enquanto as diferentes contribuições da comunidade na área da saúde mental não tiverem o mínimo de articulação e integração. Frente a estes desafios o papel do CAPS é fundamental junto às comunidades locais. Em nosso estudo, de maneira especial o do CAPS II junto à comunidade de Ijuí/RS.

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A seguir discorro sobre o processo educativo e de como ele pode ocorrer em saúde mental. Utilizo este espaço para falar da importância da educação popular no Brasil e na América e por que não de sua influência na pedagogia social tão utilizada na Europa. Destaco a utilização da educação popular como uma metodologia à qual se associa a prática do “grupo operativo-terapêutico”. Para tal, recorro a uma comparação entre as fases do círculo da cultura e as fases que ocorrem no grupo, tanto em sua tarefa inicial de inclusão social, quanto na consequente e necessária construção da autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental.

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4 O PROCESSO EDUCATIVO

Viajar! Perder países!

Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir. A ausência de ter um fim, E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem. Mas faço-o sem ter de meu Mais que o sonho da passagem. O resto é só terra e céu.

(Fernando Pessoa, 20-9-1933)

Viajar neste poema significa conhecer-se a si mesmo e não conhecer outros países. Ser outro constantemente, estar aberto a mudanças. Por a alma não ter raízes, não estar apegado ‘às coisas’. “De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir”. Este desprendimento, estar aberto a mudanças, é uma condição fundamental para que ocorra o processo educativo. Aprender é viver essa ansiedade da troca do conhecido e ir para esse lugar desconhecido. 4.1 A EDUCAÇÃO EM SAÚDE MENTAL Ao iniciar este tema, retomo o questionamento já levantado no mestrado (Amaral 2013) e que espero seja também pertinente nesta nova pesquisa a respeito do processo educativo em saúde mental. Educação inclusiva de quem? - Das pessoas com psicose crônica (esquizofrenia) para que aceitem suas “diferenças” em relação a um padrão de normalização do ser produtivo, tomado como sinônimo de ser saudável, ser normal; para que aceitem o estigma profundamente gerador de preconceitos; -Dos familiares para lidarem com sua culpa de não estarem formando/produzindo pessoas dentro da lógica de produção e consumo, o que agrava as desigualdades sociais, pois, por diversas razões, a psicose crônica dificulta a mobilidade social;

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-Dos profissionais que atuam em saúde mental e que precisam aprender a compartilhar seus saberes em uma hierarquização de poder discriminatório baseado predominantemente no paradigma biomédico. Esses questionamentos também poderão contribuir para a reflexão sobre a tensão atual existente em saúde mental: entre uma razão instrumental (prioriza os fins) baseada prioritariamente no modelo biomédico, e uma prática biopsicossocial, que se acredita baseada na razão comunicativa (prioriza a ação dialógica). Questiona-se quanto é possível uma nova formação profissional em nossa atual realidade que não priorize só a superespecialização em detrimento da visão do ser humano como um todo. Feuerweker (2001) já destacava a necessidade da formação de profissionais capazes de prestar uma atenção integral em saúde, que trabalhem em equipe e que considerem o ser humano integrado em seu contexto social atual. Feuerweker (2001) não desconsiderava a importância das contribuições da neurociência, em especial à saúde mental, mas, alertava de uma exigência social para que se mude o processo de formação profissional. Para que se formem profissionais diferentes, com formação geral, capazes de prestar uma atenção integral e humanizada às pessoas, que saibam trabalhar em equipe, que consigam tomar decisões considerando não somente a situação clínica individual, mas o contexto em que vivem as pessoas enfermas, os recursos disponíveis, as medidas mais eficazes (FEUERWEKER, 2001, p.12). Com relação a isso Pichon Rivière destaca:

A saúde mental consiste em um processo, em que se realiza a aprendizagem da realidade através do confronto, manejo e solução integradora de conflitos. Enquanto se cumpre este itinerário, a rede de comunicações é constantemente reajustada, e só assim é possível elaborar um pensamento capaz de um diálogo com o outro e um confronto com a mudança. (PICHON RIVIÈRE, 2009, p. 12).

No referencial de Pichon Rivière (2009) a respeito de como pode ocorrer a aprendizagem em saúde mental, o autor considera que a aprendizagem da realidade se dá através de um processo de diálogo com o outro e um confronto com a mudança. No contexto da aprendizagem da realidade, especialmente através de processos dialógicos, é necessário também considerar a opinião de Berberian (2012). Para este autor muitos estudos mostram que as pessoas com esquizofrenia podem apresentar déficits cognitivos, levando ao empobrecimento em diferentes aspectos funcionais, tais como a diminuição na autonomia para o trabalho, lazer, aprendizado e manutenção das relações

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interpessoais. Esses déficits, frequentemente presentes, exigem um tempo adequado e individualizado no processo de aprendizagem dessas pessoas. Cabe destacar que esses déficits cognitivos podem estar associados à distorção da realidade e aparecerem em diferentes estágios da doença, mas se manifestam com mais frequência após as crises ou os surtos psicóticos. Deve-se, portanto, considerar a importância da prevenção das crises, as quais tendem a desenvolver ou acentuar os referidos déficits. Ao falar sobre sua capacidade de identificar o sofrimento mental crônico no outro, o usuário evidencia um elemento indispensável para que ocorra o aprendizado, ou seja, sua motivação para ouvir os profissionais da saúde mental presentes no grupo e o quanto essa motivação pode compensar seu déficit cognitivo quando presente, “Ouvindo as explicações dos profissionais aprendeu a entender as coisas” (U. 21, C.1). A capacidade do usuário em identificar o sofrimento mental crônico, presente no outro certamente ajudará para ele perceber suas próprias alterações. Assim, poderá pedir ajuda para evitar suas crises e consequentemente proteger-se do empobrecimento cognitivo e evitar intenso sofrimento a si e a seus familiares. Dessa forma está adquirindo maior autonomia para se cuidar. 4.2.EDUCAÇÃO POPULAR Para ressaltar a importância da educação popular27, inicialmente faço o caminho inverso ao feito na abordagem da reforma psiquiátrica brasileira que abordava as influências externas, especialmente do filósofo francês Foucault (1987) e seu trabalho de desconstrução do discurso da loucura, e do psiquiatra italiano Basaglia (1985) com o seu modelo exemplar de uma inovadora atenção às pessoas com doença mental, em suas próprias comunidades. Para fazer tal caminho, recorro a Fichtner (2013), que aborda a educação popular no Brasil e na América Latina e sua influência na pedagogia social da Europa. Fichtner 2013, p. 348 assim se manifesta a respeito da tradição histórica da educação popular na América Latina e no Brasil:

A Educação Popular como prática e teoria tem uma história de mais de cem anos no Brasil e na América Latina. O processo de formulação de uma pedagogia que se nutre de diferentes abordagens filosóficas e de práticas educativas populares concretas está fortemente ligada a pedagogia de Paulo Freire. A relação fundamental entre sociedade e educação na obra de Paulo Freire permite compreender qual é o significado de educação, tomada como possibilidade de libertação humana, na nossa

27 Para Freire a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação libertadora, que é, ao mesmo tempo, gnoseológica, política, ética e estética. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curiosidade epistemológica, a problematização, a rigorosidade, a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o protagonismo dos sujeitos. (PALUDO, C., Dicionário Paulo Freire, Ed. Autêntica 2010, p.141).

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sociedade concreta contemporânea, o que pressupõe a construção de uma ética e de uma práxis radicalmente compromissadas com as transformações sociais.

Considerando o papel da Educação Popular e sua influência em diferentes momentos sobre a Pedagogia Social especialmente na Alemanha, onde procura responder a respeito do processo de integração do indivíduo à sociedade, tanto no aspecto teórico quanto prático, Fichtner (2013) assim se expressa: “A ideia básica da Pedagogia Social é promover o funcionamento social da pessoa: a inclusão, a participação, a identidade e a competência social como membro da sociedade” (FICHTNER, 2013, p.349). Ao ser mais incisivo, Fichtner 2013, p. 352 pergunta: O que a pedagogia social da Alemanha poderia aprender da Educação Popular? Em sua resposta ressalta que a pedagogia de Paulo Freire valoriza a participação ativa do sujeito no conhecimento de sua própria cultura. Destaca também as perspectivas de conscientização e emancipação social e política desse mesmo sujeito. De forma muito especial, este tipo de educação reconhece e legitima o saber popular, no contexto de sua própria cultura. Fichtner (2013), em seu texto A EDUCAÇÃO POPULAR UMA VISÃO EUROPEIA, destaca a importância que a educação popular tem de recolocar o “social” 28como categoria:

Obviamente a Pedagogia Social deve ser colocada no contexto das condições de vida de famílias, crianças, jovens, idosos, portadores de necessidades especiais, dependentes químicos, sujeitos em regime de privação de liberdade e todo lugar onde surgem problemas a partir das condições de vida existentes. A pedagogia social aposta no caráter emancipatório das práticas da vida cotidiana dos marginalizados, subalternos, da subclasse. (FICHTNER 2013, p.353).

Considero esta contextualização a respeito da influência da educação popular no continente europeu como indispensável para a sua própria valorização em nosso meio, e nesta pesquisa como uma importante ferramenta para auxiliar os usuários de um serviço de saúde mental em seu processo emancipatório a partir de uma ação grupal. Destaco um importante elemento metodológico da educação popular que é o círculo de cultura, “técnica” usada inicialmente no trabalho pioneiro na alfabetização de adultos em Angicos (R.N.), na medida que esta “técnica” tem afinidade conceitual com outro elemento metodológico desta pesquisa, qual seja o “grupo operativo-terapêutico”, local onde é possível vivenciar um processo de ensino e aprendizagem em saúde mental, sem a convencionalidade

28 O social representa algo autônomo, com um sentido próprio, que não pode ser reduzido às estruturas sociais, nem à sociedade, nem aos processos psíquicos internos dos indivíduos. A categoria do “social” é direcionada às relações reais- “submersas no indivíduo e na sociedade como um todo”. Fichtner B., 2013, p. 353, A EDUCAÇÃO POPULAR UMA VISÃO EUROPEIA, in Educação Popular Lugar de construção social e coletiva, STRECK.D; ESTEBAN, M.T. (orgs.) - Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

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da educação bancária. Em ambos, a apreensão da realidade passa a ser uma prioridade aos seus participantes. Vários movimentos da cultura popular retomam os procedimentos de dinâmica de grupos juntamente com uma crítica ética e, sobretudo, política, daquilo a que Paulo Freire deu o nome de uma educação bancária por oposição a uma educação libertadora. Nesta surgem e difundem-se práticas de ensinar e aprender fundadas na horizontalidade das interações pedagógicas, no diálogo e na vivência de aprendizagem como um processo ativo e partilhado na construção do saber (BRANDÃO, 2010, p. 69). EDUCAÇÃO POPULAR: FASES DO CÍRCULO DA CULTURA No “círculo de cultura”, o diálogo deixa de ser uma simples metodologia ou uma técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é aprender a dizer sua palavra (BRANDÃO, 2010, p. 69). No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica de grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo (FREIRE, 2017, p.15). Destaco que o coordenador (“observador participante”) deve ser conhecedor da realidade local dos participantes. Fig. 4 Fases do círculo da cultura (segundo Freire 2016, p.78)

Levantamento do universo vocabulário.

Palavra geradora: baseada na riqueza: silábica, fonética e pragmática. Construindo uma relação

com a realidade.

A fase da criação de situações existenciais típicas do grupo com o qual se vai trabalhar

A fase da elaboração de fichas indicadoras para auxiliar o coordenador na decomposição fonética.

Apropriação crítica desta realidade

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Considero fundamentais as diferentes fases do círculo de cultura e da aproximação destas com a técnica de grupo para a realização da presente pesquisa, baseada no estudo de processos de educação não convencionais na saúde, como a educação popular 29que é, acima de tudo, um processo emancipatório. Esta metodologia da educação popular pode ser usada na educação em saúde mental especialmente por meio da técnica de um grupo operativo. Essa pesquisa propõe-se a ser uma forma de documentação deste processo. Streck (2013, p. 17) destaca que a educação popular tem três grandes sentidos: o de reprodução de saberes das comunidades populares; o de democratização do saber escolar; e o trabalho de libertação através da educação. Esse papel libertador por meio da educação permite pensar-se em uma prática emancipatória, em nosso estudo, em especial na saúde mental. O familiar, quando questionado sobre sua capacidade de reconhecer o sofrimento mental crônico no outro, responde: “A convivência com as pessoas ensinou a agir de forma certa nas situações delicadas” (F.2, C.1). Assim, ele evidencia a presença dos sentidos da educação popular aprendendo na convivência com o outro, ou seja, a reprodução dos saberes das comunidades populares, o da democratização do saber e o trabalho de libertação pela educação. Torres (2013), referindo-se à educação popular e à sua prática emancipatória sempre presente, afirma que é uma educação que se recria, se reinventa por conta da pluralidade dos contextos.

Estas práticas não são tanto a aplicação de uma concepção educacional, mas sua recriação e reinvenção, por conta da pluralidade de contextos, temáticas e atores com os quais interage; em consequência, vem se gerando práticas e saberes emergentes, que devem ser documentados e tornar-se objeto de reflexão na busca da reconstrução da educação popular como pedagogia emancipatória. (Torres apud STRECK, 2013, p. 16).

Essa forma de trabalhar na educação em saúde mental envolve usuários, familiares e profissionais da saúde em um “grupo operativo-terapêutico” na comunidade e constitui-se em um processo de educação popular na busca de inclusão social com autonomia e cidadania, pois possibilita a participação de todos os envolvidos nesta prática de ensino e aprendizagem.

29Para Freire a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação libertadora, que é, ao mesmo tempo, gnoseológica, política, ética e estética. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curiosidade epistemológica, a problematização, a rigorosidade, a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o protagonismo dos sujeitos. (PALUDO, C., Dicionário Paulo Freire, Ed. Autêntica 2010, p.141).

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A seguir, procuro evidenciar que este processo vem ocorrendo de forma consistente, e por que não sistemática, já que os encontros dos grupos são semanais. O usuário, quando questionado sobre sua capacidade de reconhecer a doença mental no outro, mostra em sua resposta o desconhecimento que ele tinha sobre sua doença e como isso dificultava para ele lidar com a mesma: “Ajudou porque antes não conhecia nada sobre isto, sobre a “doença”, aqui começou a ver conversar com as pessoas e aprender a identificar”. (U. 6, C.1). A aprendizagem é feita, assim, na presença do outro, do colega que enfrenta as mesmas dificuldades com a esquizofrenia. Dessa maneira, essas contribuições educativas podem ser indispensáveis para desmitificar a “doença mental”, muitas vezes vista como um ato punitivo dos céus, ou da terra. A Educação popular em saúde mental através do grupo possibilita aos usuários trabalharem a aceitação da “doença mental”, o que não deve ser considerado como sinônimo de resignação, mas, sim, o reconhecimento das limitações. Isto contribui para uma nova subjetivação do usuário, não esquecendo que todo esse processo é acompanhado por seus familiares, o que permite que essa aprendizagem possa ser reforçada em seu cotidiano familiar. Os grupos no CAPS II são opções relevantes porque permitem não só as trocas de informações, mas também um caráter educativo e formativo, e com um alcance muito amplo na própria comunidade. Vasconcelos (2013), em seu artigo “Educação popular em saúde”, no livro “Educação Popular: lugar de construção social coletiva” reflete a respeito de como essas trocas nos serviços de saúde se estendem e se ampliam na comunidade.

“O debate continua para além dos espaços educativos da equipe de saúde, pois as conversas são muito intensas nas comunidades, gerando repercussões imprevistas. A valorização dos espaços educativos coletivos contribui ainda para o fortalecimento de uma cultura organizativa e cidadã na comunidade”. (VASCONCELOS 2013, p. 115).

Os profissionais da saúde que trabalham com o foco em educação na saúde potencializam por meio da comunidade o alcance que suas ações educativas têm para os usuários, para os familiares e para todos os envolvidos nesse processo educativo em saúde mental. Essa atuação junto à comunidade está no contexto de um modelo de assistência integral em saúde, qual seja, o biopsicossocial.

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Delgado 30(2014) discorre na educação em saúde mental a respeito de alguns importantes trabalhos sobre o aspecto educativo destinado aos familiares nos CAPS, mas acentua que esse trabalho não é feito de forma sistemática. O autor destaca ainda que essas estratégias para trabalhar a família da pessoa com “doença mental” precisam ser construídas com situações educativas, capacitação de habilidades para situações da vida diária, construção de estratégias de solidariedade e ajuda mútua. Nas respostas dos usuários e familiares constata-se que o “grupo operativo- terapêutico” constitui-se num espaço que permite o compartilhamento dessas experiências entre todos os participantes. O familiar na próxima resposta mostra sua intensa afetividade em relação ao seu familiar enfermo e também o seu aprendizado de perceber mudanças no comportamento, nos afetos deste usuário uma atitude de compreensão, de apoio nesses momentos através do diálogo, “Pela maneira de agir, de se portar parece muitas vezes que eles nos olham dizendo: precisamos de amor, carinho, compreensão, não só de remédios”. (F.1, C.1). Destaco, em especial, a parte final da resposta: “não é só de remédios que ele precisa”. A resposta a seguir fala explicitamente a respeito do aprendizado com o outro, na convivência com o outro, portanto uma educação essencialmente dialógica, “A convivência com as pessoas ensinou a agir de forma certa nas situações delicadas”. (F.2, C.1). Nesta resposta do familiar vê-se um exemplo de aprendizagem compartilhada entre iguais, sem que necessariamente o processo hierarquizado esteja presente, mas sim prioritariamente o desejo de aprender para lidar com situações que afetam diretamente seus cotidianos. Esta resposta constitui-se numa importante demonstração de educação popular, propiciada por esse ambiente de compartilhamento presente no grupo. Percebe-se que o processo educativo no grupo vem ocorrendo na relação informal dos seus participantes, pois a convivência dos familiares das pessoas com esquizofrenia permite a constante troca de informações sobre seus cotidianos. Por outro lado, de maneira formal, o grupo tem sido um espaço importante conforme as falas de seus usuários e familiares, inclusive nos momentos em que os profissionais são chamados pelo grupo a darem sua contribuição no esclarecimento de determinadas dúvidas ou em momentos de “ruídos” no processo de comunicação.

30Para Delgado (2014), o acompanhamento e apoio às famílias de usuários em atendimento na rede de saúde mental é um importante e urgente desafio da política pública. Os serviços de saúde mental, entre os quais os CAPS, apesar de realizarem, de acordo com as informações disponíveis, ações terapêuticas e de apoio dirigidas a familiares [...] não utilizam, de forma sistemática, estratégias de informação, educação em saúde e construção de autonomia, direcionadas a familiares de pacientes esquizofrênicos ou com outros transtornos mentais graves. (DELGAD0, 2014, p.1106).

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Os familiares, ao serem questionados sobre os efeitos que o grupo tem nos seus entendimentos do que ocorre com seus familiares enfermos, reforçam em suas respostas o papel educativo que o grupo em saúde mental tem para eles. Esses resultados evidenciam que o grupo constitui-se num espaço efetivo para o processo de ensino aos familiares no reconhecimento da esquizofrenia no outro e em seu familiar enfermo. O familiar, ao aprender a conviver com as diferenças, ajuda ao seu familiar com psicose crônica a prevenir as crises, a construir outro lugar nesta família, numa nova subjetivação que não a da exclusão. Vasconcelos (2013) destaca a importância da educação popular na construção de práticas educativas em grupos dentro do serviço de saúde e em atividades coletivas na comunidade. Embora não esteja referindo-se especificamente aos grupos operativo- terapêuticos em saúde mental, mas aos grupos de forma geral, mostra que a vivência em grupo permite o exercício de participação de iguais onde cada um tem seu lugar de fala e a quem falar. Torres (2001), em seu artigo “Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental”, destaca a importância do exercício participativo para a mudança da condição de usuário/objeto para usuário/ator, tornando-o sujeito político.

A construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político. Isso vem ocorrendo através de inúmeras iniciativas de reinvenção da cidadania e empowerment, como atenta Vasconcelos (2000), por meio de intervenções via associações de usuários ou de cooperativas sociais, ou ainda da participação política de tais atores nos mais importantes fóruns sociais de formulação de políticas da área, tal como nos conselhos de saúde e comissões de saúde mental (nos dois casos tanto em nível nacional, quanto estadual e municipal). (TORRES, 2001, p.86).

Para Delgado 31(2014), a proposta de “aprendizado através de parceiros”, também chamados de tutores, associada ao processo participativo na comunidade está constantemente em evolução. Cabe à educação popular no campo da saúde pública motivar, ordenar e sistematizar pedagogicamente essa participação, e não a mera audiência de “palestras cientificas”, em um modelo de educação bancária, respeitando assim as diferenças e os tempos adequados de aprendizagens de seus participantes.

31 A proposta de “aprendizado através de parceiros” (peer education), no campo da Saúde Pública, supõe que os tutores cujo saber tem grande aceitação e credibilidade, justamente por nascer da experiência, sejam eles próprios sujeitos da forma de transmissão do conhecimento que desenvolvem, sentindo-se “empoderados” em sua nova prática (TURNER; SHEPHERD, 1999), o que dificilmente ocorreria se os familiares se colocassem na mera posição de audiência de palestras científicas ou técnicas. (DELGADO, 2014, p.1113).

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Refleti a respeito dos referenciais de educação, em especial os de educação popular, e de como podem ser aplicados na educação em saúde mental. A seguir, passo a estudar os grupos operativo-terapêuticos como uma ferramenta (técnica) para trabalhar a metodologia da educação popular em saúde mental.

4.3 O “GRUPO OPERATIVO-TERAPÊUTICO” O grupo destina-se não só a transmitir conhecimentos, mas essencialmente a desenvolver e modificar atitudes. Por meio de seu processo interativo, ocorre a mudança de atitudes dos usuários e seus familiares, o que se constitui na tarefa do grupo operativo. A contribuição educativa do grupo proporciona ao usuário uma oportunidade para aprendizagem de como ele funciona em grupo: os papéis que desempenha as expectativas e fantasias inconscientes que tem de si mesmo, dos outros, dos grupos e os obstáculos que encontra no convívio com os outros e, em especial, com seus familiares. Ao ser questionado sobre a percepção de sua doença, o usuário fala das modificações que ocorreram em seu mundo interno quando diz que o grupo o ajudou a ficar mais forte, “O grupo ajudou a ficar mais forte, entender melhor as coisas”. (U.2, C.2). Quando ele fala de se ver mais forte, ou seja, da imagem que está tendo de si, está falando das modificações que estão ocorrendo em seu self (visão de si mesmo). Portanto, da mesma forma que o indivíduo age socialmente com relação a outras pessoas, ele interage consigo mesmo. Isto é a sua capacidade de percepção. Ao sentir-se afetado pelo preconceito com a “doença mental”, a resposta deste usuário indica o quanto se sentia inferior “aos” demais pessoas, “Eu me sentia inferior “aos” demais, pessoas. Tinha medo de tudo” ((U.7, C.3). A colocação dos verbos sentir e ter no passado indica que ocorreram modificações em como o usuário se vê, na imagem que tem de si, isto é, no seu próprio self. Esse espaço conquistado junto à comunidade, ou seja, o “grupo operativo- terapêutico” constitui-se num importante espaço para a pessoa com psicose crônica apropriar- se de seu corpo, de suas emoções, de seus sentimentos e de sua própria história. Criam-se, assim, condições para uma nova subjetivação com autonomia. O papel do grupo está relacionado a uma nova concepção clínica e fica evidenciado nessa resposta do familiar quando questionado sobre a capacidade de identificar a pessoa com esquizofrenia. Ele percebe o grupo como um espaço onde se pode compartilhar sentimentos e histórias de vida: “A convivência com as pessoas ensinou a agir de forma certa nas situações delicadas” (F.2, C.1). Essa convivência com o familiar é indispensável para o usuário

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vivenciar, na socialização do grupo, uma nova subjetivação e a construção de sua autonomia possível, o que deve se estender ao seu cotidiano familiar. “Sim aprendeu a compreender, a aceitar e a conviver com a doença da filha” (F.19, C.2). A resposta deste familiar ao ser questionado sobre a percepção da enfermidade mental mostra a necessidade que ele tem de obter informações sobre a doença mental. Para, compreender melhor o seu familiar com esquizofrenia, o que lhe possibilitará refazer os laços/vínculos com esse familiar enfermo. Pichon-Rivière (2009) destaca que o sujeito não é só um sujeito relacionado; é um sujeito produzido numa práxis. Nele não existe nada que não seja o resultado da interação entre indivíduos, grupos e classes. Para Pichon-Rivière (2007), as bases para sua teoria social consideram que o indivíduo é resultante de uma relação entre ele e os objetos externos e internos (teoria do Vinculo).

Uma psiquiatria concebida a partir das relações interpessoais, da relação do indivíduo com o grupo e/ou com a sociedade, nos dará dados para construir uma psiquiatria que podemos denominar Psiquiatria do Vínculo, quer dizer, a psiquiatria das relações interpessoais. (PICHON RIVIÈRE,2007, p.2).

Portanto, a técnica de grupo criada por Pichon-Rivière (2009) é concebida a partir de sua base conceitual da Teoria do Vínculo (2007), isto é, nas relações interpessoais consigo mesmo, com a família e com o social. Para ele o surgimento de uma psicose dentro de um grupo familiar está relacionado com a perda de prestígio do líder e também com a totalidade do que ocorre dentro desse grupo (PICHON-RIVIÈRE, 2007, p.7). Reforço, assim, a importância da família aprender a se relacionar com o seu familiar enfermo, especialmente quando este é possuidor de uma psicose crônica. Não se pode esquecer que a família sofre uma dupla carga, qual seja lidar com o estigma que acompanha a pessoa com esquizofrenia e prover os cuidados adequados no tratamento a seu familiar enfermo. Portanto, ela precisa de um local adequado para o aprendizado dessas questões. É oportuno refletir sobre as palavras de Noto (2012, p. 262) ao se referir sobre o atual momento das pesquisas no Brasil, sobre a participação dos familiares nos tratamentos em saúde mental, dando destaque à falta de intercâmbio entre as experiências que valorizam a participação dos familiares. Verifica-se que boa parte das publicações a respeito dos estudos da participação dos familiares no tratamento em saúde mental é resultado de iniciativas de pesquisas dos últimos dez anos.

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Faz-se oportuno destacar o quanto observo ao longo desta práxis com grupos em saúde mental a possibilidade de mudanças para os usuários e seus familiares, especialmente na reconstrução de seus vínculos. Inicialmente nas reuniões do grupo, mas espera-se que esta reconstrução se estenda ao seu cotidiano familiar. A vivência com as diferenças primeiramente se faz no dia-a-dia dessas famílias. Saliento, de maneira especial, a importância que as orientações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2013) 32na área de Saúde Mental dão ao papel dos grupos e de outros dispositivos no apoio aos familiares e aos cuidadores, ou seja, de serem espaços de produção de sentido para suas vidas associado a atividades prazerosas. O Ministério da Saúde (BRASIL, 2013) valoriza a práxis de Pichon Rivière (2009) associada à importância de as pessoas se sentirem participantes ativas no grupo, isto é, com o sentimento de pertencimento grupal. Assim, em nosso tempo atual, o grupo pode ser considerado como um elemento fundamental no cuidado em saúde mental.

O grupo deve ser proposto de tal modo a permitir que seus integrantes tenham voz, espaço e corpos presentes; se sintam verdadeiramente como integrantes ativos de um grupo. Não há participação verdadeiramente ativa em um grupo sem que os sujeitos que se colocam tenham condição de ser ouvidos em suas demandas, para depois poder ouvir e colaborar com a demanda alheia e proposta geral; constituindo, somente a partir daí, um verdadeiro sentimento de pertencimento grupal. (M.S. 2013, p.123).

Além da inclusão social da pessoa com esquizofrenia inicialmente em sua família e posteriormente na própria comunidade, é necessário que se questione o quanto de autonomia os usuários do serviço de saúde mental estão conquistando nesse processo da reforma psiquiátrica. Vejamos, a seguir, o que diz a esse respeito o Ministério da Saúde (BRASIL,2013) Se, por um lado, as propostas desses grupos organizam um modelo amplamente difundido, por outro, esgota-se a possibilidade de diálogo devido à manutenção da repetição do discurso, centrado no saber profissional. A primeira pergunta a ser realizada na proposição de um grupo, é se este atende ao objetivo de atenção integral com impacto na saúde e na autonomia das pessoas nas práticas de cuidado. (M.S. 2013, p.121).

32 [...] Essa atuação pode ser realizada de diferentes maneiras, como: – Oferecimento de acolhimento escuta regulares e periódicas; – Grupos de orientação aos familiares; – Grupos de cuidado aos cuidadores; – Intervenções domiciliares que diminuam a sobrecarga da família cuidadora; – Oferecimento de dispositivos da rede social de apoio onde os familiares cuidadores de pessoas com sofrimento psíquico possam ter garantido também espaços de produção de sentido para sua vida, vinculados a atividades prazerosas e significativas a cada um.( BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental, Departamento de Atenção Básica, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. (Cadernos de Atenção Básica nº 34) – Brasília: Ministério da Saúde, 2013, p.67).

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Verifica-se, ao longo deste estudo, o quanto a educação popular em saúde mental no espaço do “grupo operativo-terapêutico” pode contribuir para construção da aprendizagem de autonomia possível a essas pessoas e o consequente empoderamento (conceder poder a si). Reforço que o grupo operativo fundamenta-se no Esquema Conceitual Referencial e Operativo (ECRO). Segundo Pichon-Riviére (2009), é uma técnica constituída por:  Um esquema conceitual, que é um conjunto organizado de conceitos universais que permitem uma abordagem da situação concreta a pesquisar ou a resolver;  O esquema referencial refere-se ao campo, ao segmento de realidade sobre o qual se pensa e opera, assim como aos conhecimentos relacionados a esse campo;  O aspecto operativo é baseado no estabelecimento de tarefas a serem trabalhadas terapeuticamente em um ambiente grupal. Igualmente, os aspectos operativos (tarefas específicas) em um grupo operativo de aprendizagem nos mostram a importância do aprendizado das mudanças. Pichon-Riviére (2009), por meio do Esquema Conceitual Referencial e Operativo (ECRO), procura de forma interdisciplinar esclarecer o seu objeto de estudo:

O ECRO é um instrumento interdisciplinar, ou seja, articula contribuições de diferentes disciplinas, na medida em que sejam pertinentes ao esclarecimento do objeto de estudo. Essas contribuições são provenientes do materialismo dialético, do materialismo histórico, da psicanalise, da semiologia e das contribuições daqueles que trabalham numa interpretação totalizadora das relações entre estrutura socioeconômica e vida psíquica. A partir dessas contribuições, pode se construir uma psicologia que situe o problema em suas premissas adequadas. (PICHON-RIVIÈRE, 2009, p.239)

Ressalto que esta conceituação teórica (aspectos operativos) poderá referendar a prática defendida pela reforma psiquiátrica, especialmente no aspecto de ensino e aprendizagem que vem ocorrendo de forma autônoma, sem estar controlada e mecanizada em uma teoria única. Ela poderá reforçar a universalidade de determinados temas, tais como o processo de inclusão social de pessoas com psicose crônica, a sua individuação no social e o direito emancipatório da autonomia possível. As técnicas de trabalho com grupos foram desenvolvidas especialmente na América Latina com a substancial contribuição da psicologia social argentina que hoje nos oferece um amplo arcabouço teórico-prático com o qual podemos refletir e basear trabalhos em saúde pública, amparando-nos nas angústias e contradições que naturalmente surgem em situações novas e desconhecidas, como nos sugere o Ministério da Saúde (BRASIL, 2013, p. 121).

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Em BRASIL33(2013) valorizam-se os grupos como uma tecnologia de cuidado complexa e diversificada. No mesmo espaço destinado à valorização dos grupos como novas ferramentas que podem ser incorporadas pelos profissionais que atuam em saúde mental, o texto do Ministério da Saúde (BRASIL,2013) cita os referenciais teóricos de Pichon Rivière e José Bleger, associados especialmente à psicologia social argentina de que se valem para a produção de tão importante ferramenta. Ou seja, o grupo com um consistente arcabouço teórico/ prático e que nos dias atuais pode ser mais valorizado e mais utilizado em saúde pública. Segundo Pichon-Riviére (2009), o grupo é um espaço ideal para o usuário (re) aprender a vivenciar suas emoções. Isto, porém, só pode ocorrer após ele ter uma imagem corporal não fragmentada, isto é, uma realidade não distorcida, mas recuperada e reorganizada em seu mundo interno, ao longo do tratamento. A medicação adequada e o atendimento dos usuários nas diferentes áreas da saúde mental e em especial no grupo têm importantes papéis na recuperação do ego corporal. Após refazer a sua imagem corporal (ego corporal), a pessoa com esquizofrenia poderá vivenciar suas emoções em grupo e assim reconstruir um código de convivência social, indispensável a sua reabilitação psicossocial. Conforme destaca Ferreira (2013):

A Reabilitação Psicossocial é definida como um processo que implica na possibilidade de espaço de negociação para o paciente, sua família, para a comunidade e para os serviços que se ocupam dos pacientes, com a finalidade de aumentar a capacidade contratual dos pacientes. Sendo assim, a Reabilitação Psicossocial se responsabiliza pela produção de atos cuidadores que fortalecem a autonomia e, consequentemente a auto-organização, já que encontrar sentido para a própria vida, passar a ter controle da situação são atitudes capazes de aliviar ou transformar o sofrimento. (FERREIRA, 2013, p. 46).

A aprendizagem centrada nos processos grupais evidencia a possibilidade de uma nova elaboração de conhecimento, de integração e de questionamentos acerca de si e dos outros. A aprendizagem é um processo contínuo em que comunicação e interação são indissociáveis na medida em se aprende a partir da relação com os outros. A técnica de grupo operativo consiste em um trabalho com grupos cujo objetivo é promover um processo de

33 BRASIL (2013) por meio do Ministério da Saúde em seu caderno de atenção básica nº34, p. 121 em saúde mental valoriza os grupos, enquanto tecnologia de cuidado complexa e diversificada, são teorizados pelas mais diferentes molduras teóricas, podendo ser úteis nas formulações de dinâmicas grupais. Tais ofertas das formas de intervenção são derivadas das demandas recorrentes dos profissionais que desejam incorporar novas ferramentas de trabalho, perguntando-se “como faço grupo?”, “como saio do meu espaço clínico individual?”, entendendo este espaço como produtor de saúde e possuindo impacto nos determinantes e condicionantes de saúde dos sujeitos e coletividades. (BRASIL, 2013, p. 121).

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aprendizagem para as pessoas envolvidas. Aprender em grupo significa uma leitura crítica da realidade, uma atitude investigadora, uma abertura para as dúvidas, para as novas inquietações e para mudanças, características estas presentes na dialética pichoniana. A dialética é entendida por alguns estudiosos como um método cientifico; outros a consideram como consciência de classe; e outros a associam com a teoria crítica social. Para Pereira (2013, p.24), a diferença entre estes dois últimos entendimentos é de que a base ontológica da teoria crítica não é o proletariado, mas a essência humana negada e oprimida pelo capitalismo. Recorro novamente ao estudo de Pereira (2013) para reforçar a compreensão a respeito do uso que Pichon-Rivière (2009) faz do conceito de dialética. Nas palavras textuais de Pereira (2013) destaca-se o quanto Pichon-Rivière (2009) percebe o ser humano imerso em uma realidade concreta e sua possibilidade de transformá-la:

É possível concluir, também, que seu pensamento contém um posicionamento político-ideológico na medida em que concebe o ser humano como sujeito imerso numa realidade concreta, que pode transformá-la a partir de uma adaptação ativa, que envolve ação e criação. Seu conceito de adaptação não se relaciona à idéia de passividade, mas de ação humana orientada para a aprendizagem, para a mudança e para a transformação dessa mesma realidade, e é nesse sentido que o grupo irá instrumentalizar seus integrantes. (PEREIRA, 2013, p.27)

Neste estudo em consonância com o esquema conceitual, referencial e operativo de Pichon-Rivière (2009), é importante ressaltar que o termo dialética se refere tanto à natureza do ser humano quanto ao seu pensar. Traz, portanto, uma ambiguidade fundamental do humano: transcendência X contingência, considerando transcendência como característica humana inacabada, em constante transformação, e contingência como a característica humana de estar inserido em uma realidade, um sujeito histórico, socialmente datado e marcado (PEREIRA, 2013, p. 24). Yalom (2006), pesquisador americano, destaca que o grupo permite uma importante experiência emocional corretiva, isto é, a mudança. No campo comportamental e na camada mais profunda de imagens internalizadas de relacionamentos passados, ela não ocorre principalmente por meio de interpretação e do insight, mas por uma significativa experiência relacional no aqui-e-agora que rejeita as crenças patogênicas do usuário. A vivência das emoções no grupo é variada, desde as ansiedades com as mudanças (resistências) e o seu confronto com a motivação para tal, numa dialética educativa: resistências versos mudanças. A seguir destaco dois momentos distintos do grupo: Num primeiro momento, destaco o processo educativo do grupo operativo na tarefa de inclusão social dos usuários do CAPS II de Ijuí. (Fig.5).

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Num segundo momento, estudo a viabilidade do grupo “operativo-terapêutico” ser um espaço para os usuários do CAPS II de Ijuí construírem sua autonomia possível, objeto da presente tese. (Fig.6). Nos dois momentos, os usuários e os familiares se fazem presentes de maneira significativa, nas atividades dos grupos e em outra atividades ligadas ao grupo. Fig. 5 – Esquema do processo educativo e o grupo operativo A INCLUSÃO SOCIAL DOS USUÁRIOS DO CAPS II DE IJUI

USUÁRIOS FAMILIARES

Resistências a mudanças: Conflitos= Fantasias inconscientes Adesão ao tratamento= Diálogo Prevenção das crises= Estabilidade

Apropriação de: Seu próprio corpo: “atividades físicas” (T.O.) Seus Sentimentos: seus relatos, arte-terapia

Sua História de vida Verticalidade: família Horizontalidade: grupo

Sentimentos básicos: Pertença, cooperação e pertinência

INDIVIDUALIZAÇÃO- INCLUSÃO SOCIAL

Na figura 5, evidenciam-se de forma esquemática as diferentes fases de como foi viabilizado por meio do grupo operativo o processo de individuação e inclusão social dos usuários do CAPS II, Ijuí/Rs, mestrado (Amaral 2013).

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Fig. 6 – Esquema do processo educativo e o grupo “operativo-terapêutico”: A AUTONOMIA POSSÍVEL AOS USUÁRIOS DO CAPS II DE IJUÍ

USUÁRIOS FAMILIARES

INTERAÇÃO NAS RELAÇÕES

VÍNCULOS DE COMUNICAÇÃO-DIÁLOGO

APRENDIZAGEM (aprender: a aprender, a pensar)

PAPÉIS (porta voz, sabotador, bode expiatório, líder)

CONSCIÊNCIA: PAPÉIS (denúncia, resistência, exclusão, positivo)

T. O.- ARTE-TERAPIA=PARTICIPAÇÃO (sua capacidade.)

APREENSÃO DA REALIDADE (Aprendizagem das mudanças)

MUDANÇAS NA AUTOIMAGEM (Dependência-Suas Capacidades)

AUTONOMIA POSSÍVEL, PARA O CUIDAR DE SI

Na figura 6, estuda-se a viabilidade por meio das diferentes fases no “grupo operativo- terapêutico” do processo de autonomia possível aos usuários do CAPS II, objeto da presente tese. O grupo é uma prática efetiva a ser analisada pela viabilidade de constituir-se num espaço de aprendizado participativo de todos os envolvidos em saúde mental. Examina-se

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também, o quanto a participação efetiva dos familiares no grupo pode contribuir para a construção de um novo espaço de subjetivação, extensivo ao seu ambiente familiar. Faz-se oportuno expor o resumo de uma importante pesquisa feita por Durão (2004) com grupos e a associação com diferentes momentos do tratamento de pessoas com psicose crônica. A autora trabalha em sua dissertação: “Grupo de Acompanhamento de Pacientes e Familiares de Portadores de Esquizofrenia Medicados com Clozapina: O Impacto Sobre o Cotidiano de Suas Vidas”. Durão (2004) divide sua pesquisa em três momentos: o cotidiano dos pacientes sem o uso de medicação; o cotidiano dos pacientes com o uso da medicação; e em um terceiro momento o cotidiano dos pacientes com o uso da medicação e a participação no grupo terapêutico, em todas as situações com o acompanhamento dos pacientes e familiares. Durão34 (2004) destaca em suas observações do primeiro momento, quando os entrevistados estão sem o uso da medicação clozapina e sem o acompanhamento em grupo, que predominava o sofrimento e a agressividade. No segundo momento, Durão35 (2004) observa que, após iniciar o uso da medicação clozapina, mas sem participarem ainda no grupo, os participantes apresentavam melhora significativa na agressividade associada ao sofrimento dessas pessoas com psicose crônica. A autora pesquisa a importância do uso da medicação clozapina para a diminuição da agressividade no relacionamento entre os pacientes e familiares. Para isso, socorre-se dos pesquisadores Bechelli & Caetano, utilizados na citação a seguir:

A Clozapina é um medicamento antipsicótico atípico, com características que o distingue das outras drogas neurolépticas clínicas, tem um amplo espectro de atividades suprimindo tanto os sintomas positivos (delírios e alucinações) como os negativos (diminuição da vontade e da efetividade, empobrecimento do pensamento e isolamento social) da esquizofrenia, isto é com baixa incidência de efeitos extrapiramidais, mas com risco de agranulocitose. (Bechelli & Caetano apud DURÃO, 2004, p.5).

34O primeiro momento do estudo, analisado até aqui, permite-nos observar que antes do uso da clozapina e acompanhamento em grupo, o cotidiano dos pacientes e seus familiares era permeado por sofrimento e agressividade, aspectos estes que influenciavam negativamente o relacionamento com pessoas significativas pertencentes ou não ao ambiente familiar. A sintomatologia resultante da doença contribuía ainda para a diminuição do desempenho ou até mesmo para ruptura das atividades de trabalho, estudo e de convívio social. (DURÃO, 2004, p. 71).

35No segundo momento: Podemos observar que após o uso da clozapina, antes de realizarem acompanhamento em grupo, os pacientes apresentaram melhora significativa da agressividade, a qual era marcante e responsável por grande sofrimento psíquico tanto dos pacientes quanto dos familiares. Entretanto, embora tenha ocorrido melhora da agressividade, os sintomas negativos da doença permaneceram dificultando os relacionamentos, o trabalho, o estudo, as atividades sociais e outras atividades do cotidiano dos pacientes. (DURÃO, 2004, p. 78).

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Durão (2004) destaca a importância da moderna medicação clozapina usada no tratamento das pessoas com esquizofrenia, especialmente na diminuição dos sintomas de isolamento social, tão frequente na pessoa com esta doença mental. Os já referidos pesquisadores (Bechelli & Caetano) não deixam de citar o efeito colateral de agranulocitose que, pode ocorrer, isto é, a diminuição dos glóbulos brancos. Disto decorre a necessidade de controles hematológicos periódicos associados ao uso desta medicação. Preconiza-se o uso desta medicação associada a outras formas de contribuições educativas em saúde mental. Durão 36(2004) faz um convite à reflexão sobre os vários aspectos do cotidiano que podem ser destacados no terceiro momento quando associa a medicação clozapina e a participação no grupo. Ela observa que houve, segundo os depoimentos dos entrevistados, acentuada redução em sua agressividade, em seu sofrimento e de forma significativa houve redução em seu isolamento. Destaca também a importância do grupo terapêutico para a formação de novos vínculos em seus relacionamentos. A exemplo de Durão (2004), especialmente no terceiro momento da sua pesquisa, espero que esta práxis com “grupo operativo-terapêutico” em saúde mental, objeto da presente pesquisa de doutorado, venha a contribuir para que o usuário do serviço de saúde mental na sua comunidade possa, com o auxílio do grupo: - perceber que o seu fazer criativo, na presença do outro, ajuda-o a tomar consciência de que sua existência é merecedora de respeito; - construir um sentimento a respeito de si próprio; - possa ter consciência do sentimento de exclusão social, tão presente em seu meio; - possa deixar de se sentir excluído, passando a se sentir pertencente à sua família, ao seu meio, à sua comunidade; - sentir-se auxiliado na construção da sua autonomia possível, especialmente como um processo libertador para o cuidar de si. Após o estudo da sistemática de funcionamento do “grupo operativo-terapêutico”, associado à metodologia da educação popular como uma importante ferramenta para a inclusão com autonomia das pessoas com esquizofrenia, torna-se pertinente questionar qual o papel do grupo como alternativa terapêutica no atual momento do movimento da reforma psiquiátrica, constituído em 2001, pela Lei nº 10.216.

36 No terceiro momento: Quando questionados sobre os vários aspectos do cotidiano do paciente, após participação no grupo, foi possível observar que tanto os familiares quanto os pacientes expressaram satisfação com o tratamento que vem recebendo, o que pode ser observado através dos temas que emergiram de seus depoimentos. (DURÃO, 2004, p. 81).

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Para tanto, é indispensável refletir sobre as prioridades dadas aos recursos financeiros para a política de saúde mental, pois os mesmos estão associados à escolha de modelo de atenção em saúde a ser priorizado, ou seja, o biomédico ou o biopsicossocial. Certamente tal escolha está implicada com a viabilidade de uma verdadeira inclusão social e não apenas a desinstitucionalização das pessoas com doença mental. Para isto me apoio no estudo: “A análise do financiamento da Saúde Mental no Brasil após 2001”, feito por Edineia Figueira dos Anjos Oliveira37 que avalia os recursos para a saúde mental no período de 2001 a 2014. Em seu estudo, a autora realizou a pesquisa documental, utilizando: relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM); Relatório Nacional de Saúde Mental 2003- 2006, 2007-2010, 2011-2014; Saúde Mental em Dados nº11; dados do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) enviados pela Coordenação Nacional de Saúde Mental. Analisou ainda os sistemas de informações que se constituem em bancos de dados do governo Federal: Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) e Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Eis suas palavras a respeito de seus questionamentos:

Nosso questionamento se centra na reafirmação e nos princípios da Lei da Saúde Mental. As questões prioritárias são: os recursos estão sendo direcionados para tratamentos que visam, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio, considerando ser este um dos pilares que sustenta a lei? Os repasses de recursos para a rede hospitalar têm sido condicionados à garantia de tratamento em regime de internação que oferece assistência integral, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros, como inscritos na lei 10.216 de 2001? (OLIVEIRA, 2016, p.2)

No referido estudo, a autora também reflete sobre que modelo de atenção em saúde possa estar sendo privilegiado. Neste contexto, questiono o papel do “grupo operativo- terapêutico” no atendimento aos usuários de um serviço de saúde mental na comunidade de Ijuí. Especialmente aos usuários com psicose crônica (esquizofrenia) e as perspectivas de sua verdadeira inclusão social e não apenas a sua desinstitucionalização, considerando os aspectos que envolvem a política nacional de recursos financeiros para uma verdadeira política de inclusão social, objetivo maior da reforma psiquiátrica no Brasil.

37 Aluna do Programa de pós-graduação em política social (PPGPS) (doutorado) da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista da FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo).

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4.3.1 “Grupo operativo-terapêutico”: espaço de contestação ao modelo biomédico.

Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós (JOHN DONNE, Excerto “meditação XVII”).

Foi a partir deste belíssimo texto de John Donne (1623) que o escritor norte- americano Ernest Hemingway inspirou-se para o título do seu romance “Por Quem os Sinos Dobram” (1940). O “grupo operativo-terapêutico” não pode funcionar como uma ilha, pois sua importância deve ser melhor estudada pelo risco de a atual política de saúde mental ficar diminuída, especialmente como um espaço de oposição ao modelo biomédico de assistência à saúde. Quando se estuda a evolução dos recursos destinados à saúde mental, evidenciam-se algumas inversões gritantes naquilo que deveria ser a política participativa e emancipatória a todos os envolvidos. Como as demais políticas sociais no Brasil, a política de saúde mental brasileira sofre com a insuficiência de recursos, considerando que é do excedente econômico do capital que se utiliza para o financiamento das políticas sociais. No atual neoliberalismo brasileiro a prioridade do excedente é utilizado para o pagamento da dívida externa e seus juros. Os recursos destinados à saúde, em especial os gastos realizados na saúde mental ao longo dos anos, revelam a questionável prioridade dada a esta área por parte do Estado, considerando que, apesar do direito constituído e regulamentado por portarias, não se garantiram recursos satisfatórios para implementação plena dos serviços de saúde mental. Implementação que implica a mudança de paradigma do modelo biomédico, centralizado prioritariamente na medicalização para um modelo biopsicossocial de assistência à saúde que contemple todos os aspectos ambientais, sociais e familiares do adoecimento (OLIVEIRA, 2016, p.12). Nesse sentido, Oliveira (2016) destaca a necessidade de ampliação dos recursos destinados à saúde mental para possibilitar a implantação da rede assistencial proposta pela Portaria 3.099 de 201138, que caminha na direção da consolidação da proposta da reforma psiquiátrica e que tem como um dos seus objetivos que os gastos hospitalares sejam menores que os gastos extra-hospitalares, induzindo, assim, a mudança do modelo de atendimento em saúde mental. Destaco que não basta atingir este objetivo, mas que se avaliem criteriosamente

38 Estabelece, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), recursos a serem incorporados ao Teto Financeiro Anual da Assistência Ambulatorial e Hospitalar de Média e Alta Complexidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios referentes ao novo tipo de financiamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

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as prioridades no uso dos recursos e os critérios de atendimento quando se examinam os gastos hospitalares na saúde mental, mas também as prioridades nos gastos nas diversas ações extra-hospitalares.

Gráfico 1 - Gastos em ações hospitalares

Fonte: DATASUS (SIH-SUS)

Com a reforma psiquiátrica houve significativa redução de leitos em hospitais psiquiátricos ao longo desse período. Porém, percebe-se no gráfico acima que permanece elevado o número de internações psiquiátricas em hospitais psiquiátricos em proporção a este tipo de internação em hospitais gerais. De acordo com Oliveira (2016, p.12), somente a partir de 2006 alcançou-se uma das prioridades do movimento da reforma psiquiátrica, quando os gastos destinados às ações hospitalares passaram a ser menores que os gastos extra-hospitalares, mas permanece, segundo Oliveira (2016), um desrespeito aos princípios da reforma psiquiátrica, pois percebe- se um número elevado de pacientes que ainda continuam internados em Hospitais Psiquiátricos. Também percebe-se a desproporcionalidade entre os gastos com procedimentos em hospitais psiquiátricos e os gastos com tratamento em hospitais gerais, tidos como prioritários no atual momento para a reforma psiquiátrica no caso da necessidade de internação. A seguir a autora estuda os gastos em ações extra-hospitalares.

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Gráfico 2 - Gastos em ações extra-hospitalares

Fonte: DATASUS (SAI-SUS) Oliveira (2016), ao analisar a evolução histórica do gasto total com saúde mental no período de 2001 a 2014, constata que o aumento do percentual de recursos destinados às ações extra-hospitalares no período deveu-se à transferência de recursos dos serviços hospitalares para os serviços de base comunitária. Destaca que os recursos do Programa de Saúde Mental se mantiveram na média de 2,54% do total do orçamento da Saúde. A autora lembra que a recomendação da OMS define um percentual de 5%. Ou seja, em geral não ocorreu o aumento de repasse de recursos para a área de saúde mental em termos percentuais e sim um reordenamento das despesas. Para Oliveira (2016), merecem destaque os gastos com medicamentos que a partir de 2008 absorveram o maior percentual dos gastos extra-hospitalares, ficando acima dos gastos com os CAPS. Nos anos estudados pela autora o gasto com medicamentos representou mais de 30% dos gastos com ações extra-hospitalares, e a partir de 2010 esse percentual aumentou significativamente. E em 2013 chegou a 59% do total gasto; Em 2014, alcançou o percentual de 54% do total dos gasto em ações extra-hospitalar. Esses dados reforçam o quanto o modelo de atendimento em saúde mental ainda permanece centrado na medicação, o que reforça a necessidade de se buscarem alternativas de atendimento que não visem somente atender aos interesses da indústria farmacêutica, associado à prática da medicalização de todo e qualquer tipo de sofrimento que se apresenta no tradicional modelo biomédico de assistência em saúde, centrado no interrogatório associado a uma “anormalidade” a ser tratada com medicação. Oliveira (2016) desvela a prioridade que é dada aos recursos públicos na saúde como uma forma de privilegiar os interesses da classe dominante. Em suas palavras:

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A luta por mais recurso na saúde mental para construção e manutenção de serviços extra hospitalar reflete a correlação de forças sociais e os interesses envolvidos na apropriação dos recursos públicos. Revela o comprometimento da gestão do fundo público com os interesses do capital, evidenciando um Estado comprometido com os interesses da classe dominante, ainda que dispense algumas ações para atender as pressões das classes subalternas (OLIVEIRA, 2016, p.13).

Considero o grupo como uma alternativa efetiva e emancipatória a este modelo tradicional e predador dos recursos em saúde pública, os quais deveriam ser usados para uma verdadeira inclusão social. Neste contexto, a educação em saúde mental associada a uma metodologia de educação popular por meio de um “grupo operativo-terapêutico” passa a ser uma ferramenta relevante para a ação participativa dos usuários e de seus familiares. E de maneira efetiva o grupo é um local para a prática educativa da viabilidade do modelo biopsicossocial em saúde mental, em oposição ao paradigma hospitalocêntrico, prioridade do modelo biomédico. De forma enfática, Oliveira (2016) chama a atenção para o fato de que o percentual de recursos destinados à aquisição de medicamentos representou, em todos esses anos, um terço a mais do percentual gasto com ações extra-hospitalares, chegando em 2013 e 2014 ser maior que 50% do total desses gastos. Para a autora, há uma clara reprodução da lógica manicomial em que se criam novas instituições, mas estas não superam o paradigma hospitalocêntrico centrado no modelo biomédico que prioriza o medicamento associado à supremacia do corporativismo médico, a insuficiência de diferentes serviços de saúde mental nas comunidades e a influência das indústrias farmacêuticas. Essa realidade nos leva à compreensão de que a mudança paradigmática ainda está em processo incipiente, carecendo de superação da lógica curativa e assistencialista. Para a autora, ocorreu a desospitalizacão (saída da instituição hospitalar), mas não a desinstitucionalização (superação da lógica manicomial), necessária para a consolidação da reforma sanitária (OLIVEIRA, 2016, p.13). Os dados apresentados pelo SINITOX39 (1994) reforçam que o fenômeno da excessiva valorização da medicação que vem de mais longa data pode estar associado a consequências desastrosas à saúde dos seres humanos no Brasil. Em nossa comunidade, embora as preocupações em oferecer um local adequado de atendimento às pessoas em sofrimento

39 Medicamento é o principal agente tóxico que causa intoxicação em seres humanos no Brasil, ocupando o primeiro lugar nas estatísticas do SINITOX desde 1994; os benzodiazepínicos, antigripais, antidepressivos, anti- inflamatórios são as classes de medicamentos que mais causam intoxicações em nosso País (44% foram classificadas como tentativas de suicídio e 40% como acidentes, sendo que as crianças menores de cinco anos – 33% e adultos de 20 a 29 anos – 19% constituíram as faixas etárias mais acometidas pelas intoxicações por medicamentos). Bortoletto, Maria Élide e Bochner, Rosany: Impacto dos Medicamentos nas Intoxicações Humanas no Brasil (Cad. Saúde Pública, RJ 15 (4)859869-out/dez. l999).

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mental agudo e/ou crônico, seja ambulatorial, seja hospitalar, faz-se necessário o registro da mudança no perfil das pessoas que buscam os serviços de Pronto Atendimento (P.A) e de Pronto Socorro (P.S) em saúde mental em nossa comunidade, especialmente nos últimos anos. Anteriormente, as pessoas que procuravam esses serviços o faziam por graves quadros psicóticos em agudização, associados ao intenso despreparo das famílias e da própria comunidade em dar-lhes uma atenção adequada. Atualmente, um número expressivo de pessoas que procuram esses serviços o fazem por frequentes e graves intoxicações medicamentosas, seja por uma severa tentativa de suicídio, seja como uma forma de pedir socorro por seus conflitos sociofamiliares que estão intensamente agudizados. Necessário é que se considere tão frequentes e graves situações como um fenômeno de saúde pública a requerer um estudo mais acurado. Que razões estão presentes neste fenômeno” cultural” em saúde pública?  Será que este fato ocorre por um excesso de medicalização, especialmente na rede pública, muitas vezes associado à sobrecarga no trabalho dos profissionais e a suas dificuldades para uma escuta mais adequada das queixas de sofrimento do usuário e de seus familiares, o que, na maioria das vezes, por si só dispensaria a medicalização em excesso?  Pela falta de uma adequada ação educativa em relação ao uso da medicação?  Aos profissionais da medicina, pelo uso excessivo de várias medicações para uma “mesma queixa”, o que pode ser chamada de uma indiscriminada “polifarmacologia”?  Aos serviços de dispensação da medicação os quais, na maioria das vezes, dão a medicação para um período prolongado de tempo, às vezes por um período de meses, fazendo que o usuário leve para sua casa caixas e caixas de medicação?  Ao usuário que deposita um poder mágico na medicação, dispensando-o, assim, de uma maior responsabilidade com os cuidados de sua própria saúde?  Pela falta de um comprometimento familiar, em especial nas situações em que seu familiar enfermo está com sua saúde mental tão vulnerável que não tem condições de assumir os cuidados com sua medicação, fazendo-se indispensável a presença do familiar nos diferentes momentos do atendimento?

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 Outro fator extremamente frequente a considerar é a automedicação, fato tão intenso e frequente na saúde pública, mas tão pouco presente no processo de educação em saúde na maioria das áreas e não só na saúde mental. Esses questionamentos frente ao atual fenômeno de saúde pública na comunidade local no que diz respeito às emergências psiquiátricas reforça o papel que as ações educativas têm em relação à saúde e, em especial, no presente estudo à saúde mental. Ações educativas devem ter um papel fundamental na estruturação de um CAPS II, evitando assim que neste local ocorra apenas a desospitalizacão e passe a ocorrer efetivamente a desinstitucionalização necessária para a consolidação da Reforma Psiquiátrica. O estudo de Oliveira (2016) sobre a “Análise do financiamento da Saúde Mental no Brasil após 2001” reforça a necessidade de alternativas terapêuticas que não priorizem as velhas práticas de interrogatório normalizantes e a medicalização excessiva (“polifarmacologia”). Frequentemente para uma mesma queixa usa-se praticamente todo o “arsenal terapêutico disponível”. Entre essas alternativas reforço a importância do “grupo operativo-terapêutico” e a participação dos familiares no tratamento de seus familiares enfermos, especialmente com psicoses crônicas como o é a esquizofrenia. Porém essas alternativas terapêuticas devem ser efetivamente valorizadas na destinação dos recursos financeiros para gastos extra-hospitalares. No estudo de Oliveira (2016, p.8), verifica-se que o gasto com CAPS ocupa o segundo lugar no percentual de gastos extra-hospitalares. De acordo com sua pesquisa, a partir de 2012 ocorreu uma diminuição nos percentuais dos recursos federais para custeio dos CAPS. Surpreendentemente esses gastos vão decrescendo. Em 2001, com ações extra-hospitalares destinadas aos CAPS o percentual foi de 44,05%. Ao longo dos anos estudados registrou-se diminuição em termos percentuais, chegando em 2012 ao percentual de 22% dos gastos extra- hospitalares destinados aos CAPS, e em 2014 registrou-se o percentual de 16,30%. Constata-se assim uma redução gradativa no investimento em CAPS entre 2001 e 2011 e de maneira mais acentuada entre 2012 e 2014. Nas palavras textuais da autora:

A redução de investimento em CAPS associada ao aumento do percentual investido em medicamentos revela que a despeito do cerne das atuais diretrizes nacionais de política pública de saúde mental apontar para a efetivação do modelo de atenção psicossocial, na prática a prioridade tem sido o modelo hegemônico médico- medicamentoso. (OLIVEIRA, 2016, p.8)

As outras ações de reinserção social incluem o Incentivo a Serviço Residencial Terapêutico (SRT), Programa de volta para casa e Incentivo de Inclusão Social. O percentual

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de gastos com essas ações variou entre 3,63 % em 2003 e 3,55% em 2006 do montante gasto com ações extra-hospitalares. Surpreendentemente, a partir de 2007, o percentual gasto com as ações de reinserção social caiu, chegando em 2014 a 1,25% do total gasto com as ações extra-hospitalares. Com esses dados fica desnudado que as portarias que regulamentam estes programas não garantiram a expansão desses serviços de forma satisfatória que caracterize avanço no processo de desinstitucionalização (OLIVEIRA, 2016, p.9). Para o programa de incentivo aos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT)40,o Ministério da Saúde assegura dois tipos de financiamento: pelo repasse a fundo de incentivo no valor de 10 mil reais por cada módulo implantado com oito moradores, recurso que se destina a fazer pequenos reparos no imóvel, equipar a residência com móveis, eletrodomésticos e utensílios necessários, tido como recurso de investimento; pelo custeio das Residências terapêuticas, que é feito por meio da realocação das Autorizações para Internações Hospitalares (AIHs) - dos leitos psiquiátricos de longa permanência descredenciados do SUS para o Programa de Saúde Mental. Este último mecanismo mostrou-se insuficiente, pois as realocações das AIHs dos leitos descredenciados do SUS para a permanência dos moradores na Residência Terapêutica não são automáticas, mas dependem de pactuação entre os gestores municipais e estaduais para garantir que o recurso seja, de fato, utilizado para o custeio dos SRTs e permaneça no fundo estadual ou municipal. Em alguns estados ou regiões, tal ajustamento foi efetivo, porém em diversos municípios com número importante de leitos tais ajustes não se realizaram satisfatoriamente (OLIVEIRA, 2016, p.9). Esses indicadores mostram a necessidade de ampliação das verbas para ações extra- hospitalares de reinserção social: dos incentivos para as Residências Terapêuticas, do Programa de Volta para Casa e o Incentivo de Inclusão social. Considero um dos fatores que contribuem para esses limitados recursos na saúde mental para as ações de reinserção social a pequena participação da comunidade na fiscalização desses recursos e a acentuada desarticulação nas três esferas de poder: federal, estadual e municipal. Cabe esclarecer que no município de Ijuí não existem os Serviços das Residências Terapêuticas (SRT). Neste contexto, considero indispensável ressaltar que a falta deste serviço deixa inúmeras pessoas com esquizofrenia morando em condições precárias, sem as

40SRT, regulamentado pela Portaria nº106/GM/MS, de 11 de fevereiro de 2000, prevê o acolhimento de pessoas com internação de longa permanência (dois anos ou mais ininterruptos), egressas de hospitais psiquiátricos e hospitais de custódia sendo estratégicos no processo de desospitalização e reinserção social de pessoas longamente internados nessas estruturas hospitalares.

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mínimas condições de higiene, o que força estes usuários a terem uma maior dependência ao CAPS II e a uma maior dificuldade para conquistarem sua autonomia possível. Neste cenário, a luta por mais recurso à saúde mental para construção e manutenção de serviços extra-hospitalares torna-se indispensável, embora não se desconsidere a correlação de forças sociais e os interesses envolvidos na apropriação desses recursos públicos. Para Oliveira, 2016, p.13, esta intensa apropriação dos recursos públicos pelas classes dominantes: “Revela o comprometimento da gestão do fundo público com os interesses do capital, evidenciando um Estado comprometido com os interesses da classe dominante, ainda que dispense algumas ações para atender as pressões das classes subalternas”. Com este estudo e as importantes constatações feitas por Oliveira (2016) evidencia-se que há muito a ser feito na reforma psiquiátrica. Para tanto, torna-se indispensável a participação da comunidade para uma verdadeira inclusão social. É, portanto, prioritária a participação democrática das forças populares que atuam na comunidade para que possa ocorrer, efetivamente, resistência à espoliação do Estado pelos interesses econômicos, como o da indústria farmacêutica, que veladamente se articulam, em especial, pelo modelo biomédico de assistência à saúde para que, predomine uma medicina curativa em detrimento de uma efetiva medicina preventiva. Neste nosso estudo em saúde mental, a medicina preventiva está associada à construção da autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental na comunidade de Ijuí. O que se deseja é que essas pessoas com esquizofrenia sejam emancipadas e não tuteladas pelos próprios serviços de saúde da comunidade, e que possam dar-se conta de sua capacidade de cuidar-se na perspectiva de emancipação, um dos fundamentos básicos da educação popular.  O Modelo Biopsicossocial em Saúde Mental, uma nova realidade possível. É absolutamente indispensável contrapor-se aos discursos que buscam ser hegemônicos no modelo biomédico de assistência à saúde, pois que valorizam tão somente a medicalização e os procedimentos de alta tecnologia, ou seja, a biotecnologia na saúde, em que predomina a razão instrumental em detrimento de uma razão da ação comunicativa. Neste modelo de assistência à saúde, muitas vezes os padrões éticos dos diferentes segmentos envolvidos são questionáveis, na medida que submetem suas atuações exclusivamente aos interesses econômicos da indústria farmacêutica e da indústria de biotecnologia. O questionamento destes padrões éticos não implica desconhecer a necessidade do uso criterioso de medicamentos e a importância da biotecnologia para uma melhor expectativa e qualidade de vida.

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Observa-se que as dificuldades para a implantação do modelo biopsicossocial em saúde foram evidenciadas na pesquisa de Oliveira (2016), mas também em nossa atualidade, na criação de novos cursos de medicina em diferentes instituições de ensino e nas implantações de novas residências médicas em diferentes áreas junto às diferentes instituições hospitalares. Essas dificuldades se fazem presentes, sutilmente, nas frequentes e (in)conscientes lutas hegemônicas para prevalecer o modelo biomédico de ensino, especialmente onde se mantém o poder hierarquizado somente no saber médico em detrimento de uma aprendizagem respeitosa de trabalho em equipe com os diferentes profissionais da saúde. Na não valorização de outras áreas de saber fora das ciências da saúde que podem contribuir para o entendimento do usuário/enfermo em toda sua complexidade de adoecimento, mas também na acentuada limitação à participação dos usuários na ampla discussão das condições de saúde vigentes em nosso país. O médico que “se atreve” a fazer tais comentários não está, necessariamente, abrindo mão de sua identidade e autonomia profissional. Possivelmente, está sim dispondo-se a acrescentar à sua qualificação profissional a sua imprescindível função social no exercício de sua profissão. Essa função é indispensável para o médico não ser mais um profissional condicionado somente por razões econômicas ou extremismos ideológicos, em um ciclo vicioso e perverso que aprofunda as desigualdades sociais e a desumanização da raça humana pelas condições sub-humanas de sobrevivência daqueles que vivem à margem do social. Neste contexto de educação em saúde mental não se deve desconsiderar a presença na medicina de médicos psiquiatras, como Nise da Silveira (1992), Henrique Pichon-Rivière (2009), Franco Basaglia (1985), que tiveram papéis inspiradores para a humanização da saúde mental com sua atuação em diferentes países, associados a uma medicina revolucionária em suas diferentes épocas. Todos baseados em um modelo de assistência à saúde que pode ser considerado como precursor do atual modelo biopsicossocial, posto que viam o ser humano em sua integralidade. No modelo biopsicossocial em saúde deve-se buscar a valorização e a participação dos profissionais das diferentes áreas da saúde, na constituição de equipes interdisciplinares para viabilizar o entendimento das condições biológicas, sociais e ambientais do adoecimento bem como dos aspectos preventivos associados. Na presente pesquisa aprofundo a discussão dessa prática que prioriza, além da medicação, outras práticas de cuidado, associadas às diferentes contribuições educativas e de empoderamento aos usuários, tais como “grupo operativo-terapêutico), a participação dos

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familiares dos usuários junto ao grupo, buscando relacioná-la com a autonomia possível aos usuários. Neste estudo, o grupo prioriza a participação de todos os envolvidos, oportunizando, em especial aos profissionais participantes, uma vivência interdisciplinar que permite uma reflexão do momento atual da reforma psiquiátrica em nossa comunidade. Neste contexto, a participação das diferentes áreas de atuação profissional junto ao grupo é indispensável, pois evidencia um modelo de intervenção interdisciplinar não hierarquizada, como preconiza o modelo biopsicossocial, baseada nas demandas das próprias necessidades dos usuários do grupo. O registro desta participação foi feito a partir da pergunta, realizada no mestrado (Amaral 2013): De que forma sua área de atuação profissional pode contribuir em um grupo operativo- terapêutico de inclusão social de “pacientes” psicóticos? É indispensável ressaltar que as contribuições permanecem ocorrendo ao longo de todo o período de atividades do grupo, com destaque especial no período atual em que a pesquisa de doutorado vem sendo realizada, pois a mesma considera que não basta incluir, mas que é preciso criar condições de autonomia possível, de emancipação às pessoas com esquizofrenia, participantes do grupo. Para tanto as contribuições das diferentes áreas da saúde se tornam indispensáveis conforme se observa em seus relatos. Auxiliar de Assistência Social: “Quando iniciei na saúde mental (trabalhar “com loucos” como diziam há 25 anos) eram só medicamentos e hospício; ao passar dos anos foi então se transformando e eu sem formação nenhuma acompanhando, foram se formando equipes, assim eu vi encantada a evolução na saúde mental: o quanto é importante um grupo de inclusão social, o potencial de cada um, a capacidade, a alegria, o sorriso voltando em seus rostos”. Assistente Social: “A família do paciente que participa dos grupos também é atendida pelos profissionais do CAPS e pelo Serviço Social; a rede familiar é um dos eixos de sustentação do tratamento, sendo o resgate de vínculos, a conscientização do tratamento medicamentoso, e a importância do comparecimento ao CAPS. O Serviço Social trabalhou no grupo questões referentes aos direitos e deveres dos pacientes, tais como: Benefícios Assistenciais, Auxílio-Doença, Aposentadoria, Moradias, Habitação, entre outras...”. Artista Plástica: “Da experiência que tenho enquanto artista plástica considero toda forma de arte como uma verdadeira terapia. Arte-terapia atua como facilitadora, abrindo um caminho de reequilíbrio interior, resgate de identidade, autoestima, refletindo na melhora de sua conduta nas relações com o seu grupo, meio, sociedade”.

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Terapeuta Ocupacional: “Através de uma visão mais ampliada de sujeito. Acolhendo e respeitando as diversidades e tirando o foco do patológico. É pensar que o indivíduo doente mental é acima de tudo um sujeito que tem desejos, medos e potencialidades que se manifestam tanto no social quanto no coletivo”. Técnica de Enfermagem 1: “Com minha experiência de técnica de enfermagem posso contribuir, realizando medicações, sinais vitais, orientação de enfermagem, olhando o paciente num todo, escutando, ouvindo, dialogando”. Nutricionista: “Atualmente, vem se observando na população em geral um considerável aumento de pessoas acima do peso em sobrepeso ou em obesidade. Nota-se que isso está ocorrendo nos grupos em que trabalhamos no CAPS Colmeia”. Técnica de Enfermagem 2: “De várias formas, é só ter boa vontade, gostar de saúde mental, ex: nos grupos, nos passeios e na alimentações feitas no CAPS II”. Farmacêutica: “Viabilizando o acesso a medicamentos que apresentam uma resposta satisfatória, diante da demanda de um número considerável de pacientes esquizofrênicos, mantê-los fora de surto, com uma melhor qualidade de vida na família e na sociedade”. Evidencia-se, assim, que as contribuições educativas em saúde mental, mesmo que realizadas por esses profissionais em diferentes momentos do grupo, podem ser integradoras e integrativas, sempre respeitando as demandas dos usuários do grupo. Faço este registro da participação interdisciplinar como uma importante prática de contribuição educativa de todos profissionais envolvidos, em especial na prática do modelo biopsicossocial em saúde mental. Portanto este modelo de assistência à saúde está intrinsicamente associado à educação popular, posto que é essencialmente emancipatório, tal como a medicina preventiva deve ser. No próximo capítulo abordo os referencias para a subjetivação em saúde mental, o conceito de autonomia em diferentes referenciais. Na autonomia como processo libertador analiso as respostas dos usuários e seus familiares, utilizando a análise de conteúdo de Bardin (2011) para uma melhor compreensão de como o grupo operativo-terapêutico pode viabilizar esta libertação e emancipação aos usuários do CPS II, Ijuí/RS. Na autonomia como um processo para o cuidar de si destaco a história de vida de uma usuária do CAPS II, e as dificuldades e resistências que a mesma encontra em sua trajetória de vida. Para tanto busco subsídios na técnica do sociólogo Lahire (2004) “RETRATOS SOCIOLÓGICOS Disposições e variações individuais” para a análise de suas respostas em diferentes momentos de sua história de vida. No relato desta usuária, evidencia-se a importância do “grupo operativo-terapêutico” estar articulado com as intervenções interdisciplinares e ao próprio atendimento individual da mesma.

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5-AUTONOMIA COMO PROCESSO LIBERTADOR PARA O CUIDAR DE SI

NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO

Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é,

Atento ao que eu sou e vejo. Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem, Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser. O que segue prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: "Fui eu"? Deus sabe, porque o escreveu.

(Fernando Pessoa, 24/ 8/ 1930)

Fernando Pessoa neste poema “Não sei quantas almas tenho” reflete acerca de si próprio. Parece haver um sentimento de multiplicidade e de um questionamento que pode ser universal, tentando responder à questão “Quem sou eu”? Faz-se oportuno lembrar um estudo sobre o poeta Fernando Pessoa a respeito de seus conflitos emocionais e seu processo criativo, imortalizado como um dos maiores poetas da língua portuguesa. Eis o título do estudo: “Estudo Patográfico de Fernando Pessoa” feito por Albuquerque e Bastos 41(2009), apresentado no Congresso Brasileiro de Psiquiatria em 2010. Em seu resumo é destacada a preocupação em delinear seu “múltiplo perfil psicológico e

41 “Fernando Pessoa, incontestavelmente um dos maiores gênios da literatura universal, é objeto deste estudo patográfico. Através da análise de sua biografia e obra, os autores buscam delinear seus perfis psicológico e psicopatológico e caracterizar uma associação entre sua evidente bipolaridade e seu padrão criativo. Os dados do estudo revelam claramente um componente bipolar e sugerem haver influência de seu humor de base sobre a atividade literária, quanto ao conteúdo, número de poemas e estilo literário. Verifica-se a presença de múltiplas comorbidades: Dependência de Álcool, Transtornos de Ansiedade Generalizada, de Ansiedade Social, além de Fobias Específicas. Do ponto de vista caracterológico, constata-se um Transtorno de Personalidade Esquizoide, com evidentes transtornos da psicossexualidade. (ALBUQUERQUE E BASTOS, 2009).

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psicopatológico” (grifo meu para destacar a que ponto pode chegar a “microscopia da alma”), mas que não impediram a sua produção criativa por meio de suas obras poéticas, de reconhecimento mundial. Frente a esta caracterização, fruto de um cuidadoso estudo por parte de seus autores, quero destacar as palavras-chaves: bipolaridade; espectro bipolar; criatividade, utilizadas para caracterizar e facilitar a busca do assunto e, entre elas, de forma especial, a palavra “criatividade”. Frente a tamanho sofrimento psíquico do poeta Fernando Pessoa na busca de sua identidade, evidencia-se o caráter sublimatório em sua obra, dando a todos um legado primoroso sobre o conflito humano e a sua universalidade. Seriam esses traços “patológicos” característicos de sua pessoa que o tornaram diferente e com dificuldade de convivência social? Questiono: Não teria a sociedade da sua época, também, o isolado por ser “diferente”? Concebo esta questão como extremamente relacionada ao atual processo de subjetivação em saúde mental. Inicialmente nesta contextualização sobre subjetivação destaco as respostas dos usuários e de seu familiares no enfrentamento do preconceito como elemento importante para a construção de uma nova subjetivação, que não a do “louco excluído”, mas sim de uma pessoa com capacidades de cuidar de si, de ter sua autonomia possível.

5.1 VENCER PRECONCEITOS PARA UMA NOVA SUBJETIVAÇÃO A resposta deste usuário sobre o tema preconceito: “Eu aceitava que tinha que me tratar de alguma coisa, mas não aceitava a doença que eu tinha”. (U.1, C.3) mostra a possibilidade desta pessoa buscar ajuda, embora esteja expressando um intenso desconhecimento do que possa estar ocorrendo consigo. Percebe-se um componente de resistência em aceitar “a doença que eu tinha” relacionando-a a um possível medo de rejeição/exclusão com que a sociedade atual ainda insiste em tratar a pessoa com “doença mental” associado ao já tradicional poder de normalização do social. É pertinente pensar também no profundo sofrimento que acompanha a pessoa em seu adoecimento, pois existe algo que lhe é desconhecido e por isso se torna assustador, o que reforça a necessidade das contribuições educativas e esclarecedoras a este usuário. Novamente o tema preconceito aparece na resposta deste familiar: “Como as pessoas se referem ao CAPS II, que as que se tratam no CAPS II são loucas”. ((F.4, C.3). Percebe-se o quanto essa identidade “do louco” está presente não só na fala “das pessoas em geral”, mas também na discriminação sofrida pelos familiares dos usuários. Isto reforça a necessidade de os usuários e seus familiares terem um espaço em suas comunidades para ressignificarem este

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preconceito/estigma em suas vidas por meio das diferentes contribuições educativas na saúde mental. Ao ser questionado sobre sentir-se afetado pelo preconceito à “doença mental”, a resposta deste usuário impressiona pelo nível de sofrimento que ela expressa: “Antes do tratamento era amigo das pessoas. Hoje o chamam de louco porque vou ao CAPS. Sente-se acusado, maltratado.” (U.9, C.3). Tal exclusão construída ao longo dos séculos permanece e ainda se faz presente em nossos dias, É indispensável, neste momento, a reflexão a partir da obra de Foucault (1997) “História da Loucura na Idade Clássica” de como se construiu essa realidade de discriminação e exclusão ao longo dos séculos, e como essas se produzem a partir da divisão binária do normal e do anormal, numa repetição do discurso de poder e dispositivos disciplinares. Em suas palavras:

A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava. Todos os mecanismos de poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do anormal, tanto para marcá-lo como para modificá-lo, compõem essas duas formas que longinquamente derivam. (FOUCAULT, 1987, p. 165).

Enfatizo que na sociedade atual, baseada na produção e consumo, a exclusão em saúde mental tem um forte componente econômico, posto que o anormal está associado ao improdutivo. Esta norma está frequentemente referendada (in) conscientemente pelas próprias famílias das pessoas com psicose crônica e pela sua comunidade de origem através do preconceito e do estigma. O enfrentamento do preconceito e da prática de segregação à pessoa “improdutiva” associado a sua psicose crônica pode ser feito pela demonstração de seu processo de “produção-criativa” por meio das atividades realizadas junto ao “grupo operativo- terapêutico”. Este processo pode ser considerado uma contribuição educativa substancial, pois inclui produção criativa, inclusive na presença de seu familiar, possibilitando que este fazer criativo possa ter continuidade no seu meio familiar, viabilizando assim (novas) subjetivações aos seus participantes. Descrevo como produção criativa os trabalhos que os usuários podem fazer nas oficinas terapêuticas, a sua participação na organização das reuniões do grupo ou em outras atividades oferecidas no CAPS II. O processo de “produção/criativa” deve ser considerado importante e indispensável na (nova) subjetivação das pessoas com psicose crônica

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certamente não na lógica de “produção/consumo”, mas sim nas condições e no tempo adequado de aprendizado de cada usuário do serviço de saúde mental para que assim o indivíduo possa fazer e demostrar sua produção criativa, e enfrentar o estigma de inválido, excluído. Porém, há outros elementos que não só o econômico a serem considerados no processo de exclusão social das pessoas com adoecimento psíquico, inclusive com base em um referencial psicanalítico. Neste aspecto, Pichon-Rivière (2009) nos recorda que ocorre a discriminação prévia no próprio ambiente familiar, geralmente a partir de um conflito familiar e a ansiedade familiar decorrente e que é depositada em um dos seus membros.

Quando alguém adoece num grupo familiar há tendência de excluir esse membro, surgindo o mecanismo de segregação, de cuja intensidade dependerá o prognóstico do paciente. A marginalização produz-se porque o doente é depositário das ansiedades de seu grupo e, assim, trata-se de afastá-lo com a fantasia de que, com desaparecimento dele, desaparecerá a ansiedade. (PICHON-RIVIÈRE, 2009, p. 78).

Não se pode esquecer, porém, que o processo de ansiedade faz parte da vida do ser humano cotidianamente, acentuando-se em diferentes momentos e em distintas fases de sua vida, tendo em vista que todo processo de mudança gera ansiedade. Acrescente-se a isto o fato de que vivemos em uma sociedade de produção e consumo, que gera constantemente ansiedade pela necessidade da satisfação de “infinitos desejos”, o que por si implica escolha de um objeto de consumo em detrimento de centenas de desejos frustrados, numa perversa lógica mercantilista geradora de ansiedade. Nessa dialética de exclusão e inclusão dão-se as condições na comunidade local para que o movimento social pela reforma psiquiátrica possa estar continuamente se reciclando. Faz-se necessário um processo educativo que viabilize o enfrentamento do preconceito aos usuários do serviço de saúde mental e, posteriormente, uma menor dependência dessas pessoas a este serviço e aos seus próprios familiares (autonomia possível). A inclusão social que se busca nesse espaço de um “grupo operativo-terapêutico” em saúde mental por meio de uma educação popular é uma inclusão que possa estar inserida num processo de (nova) subjetivação, de autonomia e cidadania. Reputo oportuno destacar a resposta de um usuário ao assunto da improdutividade, já mencionado em outros momentos: “No começo me incomodava com o que as pessoas pensavam que CAPS era lugar de louco, que não fazia nada.” (U.6, C.3). Nesta resposta, há um intenso sofrimento vivenciado quando ele percebe que as pessoas associam CAPS II como “lugar de louco”. Questiono por que agora não se incomoda mais, pois usa o verbo no

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passado. Seguramente o grupo teve participação nessa mudança, podendo assim constituir-se num espaço para a construção de relações de solidariedade no enfrentamento ao preconceito por parte dos usuários do CAPS II. O aspecto do preconceito é possivelmente um importante fator de resistência para o usuário buscar tratamento em saúde mental. Por outro lado, reforça a competência do grupo para discutir o tema “preconceito” em relação à “doença mental”, ocasião em que o usuário pode encontrar outras pessoas com quem se identificar, dar e receber solidariedade. Percebi essa mudança em suas falas de modo subjetivo, mas também de forma clara nas palavras que usam em muitas de suas respostas ao tema preconceito. Destaco as condições adversas nos dias atuais para o processo de subjetivação, tendo em vista as intensas e constantes mudanças que se vive no mundo atual, considerado por Bauman (2001) “o mundo da modernidade líquida”, tamanha é sua fluidez, isto é, nada é sólido, permanente. Esse fato provoca constantes mudanças nos referenciais e valores no convívio social, dificultando o processo de subjetivação/identificação. Que outro tipo de subjetivação é possível nessa sociedade descrita por Bauman (2001) como modernidade líquida que não o das pessoas se tornarem mercadoria nessa lógica de produção/consumo? “Nessa modernidade líquida, o que escorre em nossas mãos e não podemos pegar é nossa liberdade”. E sem ela não é possível participar no processo de subjetivação; as pessoas permanecem no mundo das coisas, dos objetos, impedidos de conquistarem autonomia e cidadania. Na saúde mental é importante entender o sofrimento que a segregação causa à pessoa com psicose crônica, especialmente na esquizofrenia, sofrimento que pode ser compartilhado no “grupo operativo-terapêutico” onde se encontram presentes outros usuários, seus familiares e os profissionais da saúde mental. Este encontro permite que os participantes possam mediar e dar um novo significado a tal sofrimento, especialmente a partir da “produção-criativa” dos usuários, possibilitando-lhes, novas subjetivações que não a de “loucos/ inválidos”. Ressalto que o processo de “produção-criativa” dos usuários de um serviço de saúde mental deve ser considerado uma importante forma de resistência à “subjetivação-objetos”, possibilitando uma nova subjetivação às pessoas com sofrimento mental crônico para que possa ocorrer um novo olhar de si mesmo, de seu familiar e da comunidade, que não o do “vagabundo/inválido”. Ao ser questionado sobre como se sente afetado pelo preconceito da “doença mental,” o familiar participante do grupo mostra-se compreensivo e solidário ao usuário, “Não é ele que quer ser assim, a família tem que aprender a suportar” (F.8, C. 3). Porém,

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não podemos esquecer que, na maioria das vezes, a incompreensão, quando ocorre é por falta de conhecimento das pessoas envolvidas, até mesmo em nossos dias atuais. Ao observar-se a importância da participação dos familiares no tratamento da pessoa com psicose crônica, reforço a necessidade de iniciativas que promovam a educação e esclarecimentos aos mesmos, viabilizados pela participação no tratamento de seu familiar enfermo. O grupo é um importante espaço para tal participação. Para Delgado42 (2014), a falta de esclarecimentos aos familiares atrapalha o seu cotidiano, justificando assim a importância da educação em saúde mental. Em seu texto destaca a fala de um familiar: “pelo amor de Deus! Me explica o que é esquizofrenia! Me ensina a cuidar de minha filha”. Para Silveira (2005), o entendimento do processo de adoecimento é fator indispensável para prevenir crises ou recaídas que geram tanto sofrimento ao usuário e a todos os familiares de seu convívio. As palavras de Silveira (2005) a respeito da adesão ao tratamento:

Assim, o tratamento do paciente portador de doença crônica deve favorecer a adaptação a esta condição, instrumentalizando-o para que, por meio de seus próprios recursos, desenvolva mecanismos que permitam conhecer seu processo saúde/doença de modo a identificar, evitar e prevenir complicações, agravos e, sobretudo, a mortalidade precoce. Neste sentido, inclui-se no tratamento um item significativo, de relevância para o sucesso do cuidado e que representa um desafio para ambos – profissionais e pacientes – pelo intrincado de variáveis que traz em si, que é a adesão ao tratamento. (SILVEIRA, 2005, p 93).

Aprender a conviver e aceitar as diferenças (“limitações”) não implica aceitação passiva, sem buscar alternativas de tratamento mais adequadas a cada usuário e com a devida participação de seus familiares. A aceitação das diferenças na pessoa com psicose crônica pode ser muito efetiva no cotidiano na medida em que o familiar possa ter mais tolerância com o usuário, especialmente no tempo para a execução de cada tarefa a ser realizada, representado na seguinte fala: “Me ajudou a ser mais paciente, porque agora entendo que ele tem limitações e que ele não está doente porque quer”. (F.1, C.2). É oportuno destacar que considero a aceitação das diferenças (“limitações”) por parte da pessoa com psicose crônica e

42 A maioria dos familiares relatou que a ausência desse “esclarecimento” e de uma “explicação” atrapalham a lida cotidiana, o que justifica a existência de abordagens psicoeducativas e/ou educação em saúde mental. De acordo com eles, a falta de iniciativas das equipes dos serviços para orientação sobre como lidar com a situação é um problema. Apesar disso, alguns participantes reconhecerem que, a partir do tratamento no CAPS, passaram a entender e a lidar melhor com a situação, [...] “pelo amor de Deus! Me explica o que é esquizofrenia! Me ensina a cuidar da minha filha”. (DELGADO ,2014, p.1118-19).

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de seu familiar como “pré-requisito” à adesão ao tratamento e não como uma resignação passiva. O grupo permite a todos seus participantes vivência com as diferenças, algo tão indispensável nos dias atuais. Vivências que podem tornar-se experiências e que nas palavras de Bondía (2002) diferem de experimento, pois naquela há necessidade da ação ser vivenciada, apropriada por parte da pessoa que a vive enquanto neste apenas repetição da ação “sem ser tocada por ela”. Bauman43 (2001), referindo-se a outros tipos de diferenças, convida a todos para pensarem a respeito da arte deste aprendizado de convivência com as diferenças. Pondero o quanto este aprendizado da aceitação e do convívio com as diferenças passa primeiramente pela família para depois se estender ao social. E nos dias de hoje possa ser uma necessidade indispensável para a sobrevivência da sociedade como tal. Subjetivamente, na maioria das falas dos envolvidos na pesquisa, percebo o quanto os familiares são tocados por suas vivências compartilhadas no grupo, o que considero uma real experiência de ensino e aprendizagem. Esta lhes será de intensa utilidade para possibilitar que ocorra o processo de uma nova subjetivação, com a autonomia possível à pessoa com esquizofrenia no seu cotidiano familiar. Após abordar com auxílio das palavras dos usuários e de seus familiares o enfrentamento do preconceito às pessoas com doença mental, a seguir contextualizo alguns referenciais teóricos usados como subsídios para o estudo de uma nova subjetivação em saúde mental.

5.1.1 Referenciais teóricos para uma nova subjetivação em saúde mental a- Psicanálise Birman44 (2000), em seu livro “Mal-estar na atualidade A psicanálise e as novas formas de subjetivação”, nos lembra de que no modelo topográfico, na fase inicial da psicanálise (consciente, pré-consciente, inconsciente), o corpo não recebeu a devida

43 Para Bauman: A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade dos seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam [...] (BAUMAN, 2001, p.135).

44 Assim, institui-se uma demarcação estrita de territórios epistemológicos, de forma que a intervenção da psicanálise sobre o corpo-organismo foi excluída. Com isso, o corpo-organismo foi colonizado pela medicina e o psiquismo desencarnado foi entregue a psicanálise. Dessa maneira, o sujeito foi repartido entre saberes e práticas clínicas, para o prejuízo não apenas da psicanálise, mas principalmente das subjetividades sofrentes. (BIRMAN, 2000, p. 58).

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importância, levando consigo a desvalorização dos afetos. Para Birman (2000) as consequências dessa separação foram a apropriação do corpo pela medicina, e o psiquismo entregue à psicanálise. Subsidiado pelo atual modelo estrutural da psicanálise (id, ego, superego), o “grupo operativo-terapêutico” pode constituir-se num importante espaço de consciência corporal, (ego corporal) e de apropriação dos afetos. Inicialmente pelas atividades de coordenação motora para os usuários, estimuladas pela terapia ocupacional e pelos estagiários de educação física em diferentes momentos de seus tratamentos. Mas também no contato com seus afetos nas relações com “o outro”, possibilitando assim a aprendizagem do cuidado de si no processo de construção de uma nova subjetivação com autonomia. A resposta deste familiar é repleta de intensa solidariedade e respeito aos sentimentos do usuário: “Quando ele está assim passa até para mim, porque eu vejo nos olhos, no modo de agir, na tristeza que se abate nele, isto é uma coisa que dói até mesmo para aquele que ama e está perto” ((F.11, C. 2). Porém, essa resposta não seria adequadamente valorizada no modelo inicial da psicanálise, pois o corpo nessa fase não recebeu a devida valorização e, em consequência, os afetos também, O modelo topográfico de psicanálise não nos fornece elementos para trabalhar uma subjetivação que integre corpo e sentimentos. O usuário em tratamento no “grupo operativo-terapêutico” responde: “Noto que quando estou com dificuldade de me expressar com as pessoas é porque não estou bem, fico muito quieto distante” (U.1, C.2). Mostra em sua resposta a sua percepção de não estar bem quando tem dificuldade de comunicação. Este é um elemento indispensável para seu autoconhecimento e para o processo de uma nova subjetivação. O grupo pode constituir-se num importante espaço de consciência corporal e do contato com os afetos, viabilizando dessa forma a aprendizagem do cuidado de si, subsidiado pelo modelo estrutural da psicanálise (ego corporal). Reconhece-se o outro a partir de sua própria consciência corporal, de seus próprios sentimentos e de sua capacidade de comunicação, construindo-se assim uma subjetivação a partir do outro no social. Em relação aos seus sentimentos, quando questionado sobre a influência do “grupo operativo-terapêutico” para o entendimento de seu próprio sofrimento mental, o usuário respondeu que o grupo o ajudou a reconhecer seu próprio sofrimento ou a entendê-lo melhor com o auxílio do outro: “Conversando sobre o sofrimento deles e o meu assim me ajudou a me entender melhor” (U.14, C.2). Ao aprender a comunicar-se a partir da sua consciência corporal e do contato com seus sentimentos criam-se as condições para o usuário sair de seu

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isolamento, o que lhe possibilita a identificação com os outros participantes do “grupo operativo-terapêutico”. Por consequência, essas respostas dos usuários e de seus familiares nos lembram que a psicologia social, a qual pode ser considerada o aprofundamento da psicanálise no social, permite a Pichon-Rivière (2007) conceber a identidade a ser “tratada” (modificada) como o processo de aprendizagem de novos papéis: inválido versus capacidade de cuidar-se. Apoiado nesta concepção, cria o grupo como uma importante opção terapêutica.

b-Teoria do reconhecimento Abordo este tema da subjetivação na saúde e em especial na saúde mental também à luz da “teoria do reconhecimento”. Para tanto recorro ás ideias de Honneth (2003), que vê o reconhecimento como um processo de construção da identidade, atribuindo à identidade o sentido de liberdade individual e de autonomia. Neste processo, a intersubjetividade assume um papel central, pois esta identificação é construída por meio da interação social. O autor em sua obra “Luta por Reconhecimento a gramática moral dos conflitos sociais” sistematiza o conceito de reconhecimento tomando como base os escritos de Hegel, especialmente quando este autor se vale da filosofia da consciência. Na sua escrita, Honneth (2003) retoma os textos do jovem Hegel, que destaca: “o indivíduo só pode ter uma relação positiva consigo se for reconhecido pelos demais membros da comunidade” (WERLE, 2008, p. 188). Honneth45(1996) apresenta a distinção das três esferas do reconhecimento: a dos afetos e da autoconfiança; a das leis e direitos (do auto respeito); a da solidariedade social e da autoestima. Para Carmo (2015), são três os espaços onde o sujeito pode experienciar o reconhecimento: na família, onde o indivíduo é reconhecido como ser amante; no direito, o indivíduo é reconhecido como pessoa de direito; no estado, o indivíduo é reconhecido como sujeito socializado em sua unicidade. Para o autor esses espaços se relacionam entre si: na experiência do amor a possibilidade de autoconfiança; na experiência do direito, o autorrespeito e na experiência da solidariedade/estado a autoestima (CARMO, 2015, p. 7). As ideias de Axel Honneth (2003) são associadas à saúde em especial nos estudos de Carmo (2015). Em suas palavras:

45Axel Honneth nasceu em 18 de julho de 1949 na cidade de Essen (Alemanha). Filósofo e sociólogo é considerado, um dos principais nomes da terceira geração da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Professor da Universidade de Frankfurt, A partir de 2001 torna-se diretor do Instituto para Pesquisa Social da mesma universidade. Seus estudos sobre reconhecimento tornaram-se bastante relevantes, e o autor aborda o assunto no livro "Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais" (1996), In: (HONNETH, 2003, p. 29- 69)

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A luta por reconhecimento de Honneth (2003) tem nas relações intersubjetivas dos sujeitos a base para sua construção teórica. Compreender como se dão as relações interpessoais entre os sujeitos, identificando situações de conflitos, pontos de tensão moral, situações de desrespeito que motivem ações dos sujeitos é de grande importância para estudos das ciências sociais. Através deste estudo verificou-se a aplicação da teoria do reconhecimento de Honneth (2003) no campo da saúde e a importância desta teoria para os estudos nas ciências da saúde. (CARMO, 2015, p 5).

Na contextualização de Carmo (2015), vê-se a possibilidade de aplicar-se a teoria do reconhecimento na saúde, especialmente no respeito às diferenças, tema tão caro à saúde mental, especialmente associado à perspectiva de uma nova subjetivação que não a do “louco excluído”. Em suas palavras acerca do desrespeito e dos conflitos nas relações interpessoais, essas situações constituem-se habitualmente na forma de três tipos:  No primeiro, o desrespeito está ligado ao que toca a integridade corporal de uma pessoa. Apresenta-se nas formas de maus tratos em que o sujeito é destituído de seus direitos sobre o seu próprio corpo, destruindo assim sua autoconfiança. A tortura e a violação são exemplos práticos em nosso dia-a-dia. Na saúde mental, especialmente nos manicômios, “os corpos” deveriam ser disciplinados. Acrescento que nos dias atuais são disciplinados pela excessiva medicalização.  No segundo, o desrespeito ainda está muito presente em nossos dias, em se tratando de saúde mental e está associado ao sujeito excluído de determinados direitos dentro da sociedade. A privação dos direitos e a exclusão social representam formas desse desrespeito, ocorrendo neste caso a perda do autorrespeito. Incluo neste aspecto as interdições plenas ou parciais dos usuários os quais ocasionam severos prejuízos ao exercício da cidadania.  No terceiro, o desrespeito aparece na desvalorização social de indivíduos ou grupos. Na saúde mental, em especial, no preconceito e estigma que acompanham as pessoas com doença mental. A desvalorização de modos de vida individuais ou coletivos leva à experiência da ofensa ou degradação quando essas pessoas passam a ser chamados de “loucos e inválidos”. O sentimento de autoestima é profundamente atingido. Carmo (2015) destaca a importância de compreender a luta por reconhecimento entre os diferentes atores envolvidos na saúde a partir das situações de conflitos entre as diferentes visões de seus participantes:

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Compreender as relações de reconhecimento entre paciente e profissional da saúde, ou entre as categorias profissionais que interagem entre si. Identificar e compreender situações de conflito e desrespeito dentro da atuação da saúde como uma luta por reconhecimento de determinados grupos de indivíduos mostra que tais conceitos são de grande importância e precisam ser assimilados pelos pesquisadores da área. (CARMO, 2015, p 6)

Estudo também a constituição da identidade a partir da” Luta por reconhecimento” proposta por Honneth (2003), com apoio nas ideias de Bittar (2009. p.553) quando este afirma que “o direito à diferença é uma ampliação, no interior da cultura do direito, da afirmação de formas de luta por reconhecimento”. A questão do reconhecimento passa pela prática e decisão da solidariedade humana e é sustentada pela força imperativa da lei no que diz respeito ao reconhecimento legal dos sujeitos com sofrimento psíquico. Ressalto que não é possível constituir-se humano sem o reconhecimento do outro. O próprio Bittar, contudo, reconhece que a lei não manda no desejo. Para o autor o mero decreto de igualdade de todos perante a lei não salvaguarda a possibilidade de realização do reconhecimento pleno na vida social. Percebe-se que esta versão da igualdade está falseada pelo pressuposto liberal de que a justiça como igualdade de direito é suficiente para provocar um equilíbrio nas relações intersubjetivas (BITTAR, 2009, p.553). Construir a ideia de reconhecimento e trabalhar para que esta aconteça no cotidiano dos sujeitos excluídos pela sua condição mental faz pensar em ideais de vida que muitas vezes associam-se a utopias. Bittar (2009, p.553) aponta para esse mesmo caminho ao dizer: “que a noção de dignidade está, além do reconhecimento da igualdade jurídica, está também no reconhecimento da diferença”. Habermas (apud BITTAR, 2009. p.554) também traz sua contribuição ao tema do reconhecimento: “As condições concretas de reconhecimento, seladas por uma ordem jurídica legítima, resultam sempre de uma ‘luta por reconhecimento’; e essa luta é motivada pelo sofrimento e pela indignação contra um desprezo concreto”. Assim, sustentar a luta por reconhecimento dos sujeitos que se movimentam nas interfaces da saúde mental e da vida social permite pensar que a base da interação social é o conflito, e a gramática moral desse conflito é a luta por reconhecimento (WERLE, 2008, p. 186). Dessa forma, a vida é um contínuo movimentar-se. É buscar nas entrelinhas as verdades faladas, vividas, experimentadas, sofridas. Nessas andanças encontram-se as linhas e os retalhos para as costuras possíveis, sempre tão necessárias e um tanto utópicas.

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c- Cuidado de si Em outro contexto de subjetivação, Ortega46(2001), ao escrever sobre o assunto em “Corpo Afeto Linguagem a questão do sentido hoje,” convida a pensar sobre a mudança do eixo de poder para o da subjetivação, tão presente na fase posterior das obras de Foucault, especialmente em Histórias da sexualidade II: o uso dos prazeres (1994) e na História da sexualidade III: o cuidar de si (2014). Apresenta assim um caminho como forma de resistência ao processo de normatização, qual seja o da (nova) subjetivação, do cuidar de si. Foucault (2014) utiliza como objeto de estudo a moral presente no pensamento greco- romano no qual a ética está associada a um estilo de vida, e que serve como reflexão para “o cuidar de si” no contexto da realidade atual. O cuidado de si deve ser relevante para a construção do sujeito, isto é, para ele decidir sua própria vida, ou seja, ter autonomia. Portanto o cuidar de si é indispensável no processo de subjetivação do ser humano. Este processo do cuidar de si não ocorre de forma automática embora tão estimulado pelos intensos apelos estéticos em nossa atual sociedade de consumo e com fortes traços de narcisismo. Sem perceberem, as pessoas estão tornando-se mercadorias. Esta pode ser considerada uma das marcas da sociedade contemporânea. Nesta lógica consumista há intensa dificuldade de mudança, e o cuidar de si exige uma luta diária. Nas palavras de Touraine47 (2006), “Não há sujeito senão rebelde, dividido entre raiva e esperança”. E nesse cenário, criar as condições para que ocorra um novo processo de subjetivação torna-se um desafio para as contribuições educativas em saúde mental. Convém destacar no contexto atual a visão de Bauman (2005) a respeito das dificuldades das pessoas constituírem suas identidades numa sociedade globalizada, e em tempos de transitoriedade intensa na modernidade líquida.

Numa sociedade que tornou incertezas e transitórias as identidades sociais, culturais e sexuais, qualquer tentativa de “solidificar” o que se tornou líquido por meio de uma política de identidade levaria inevitavelmente a um beco sem saída [...] a política de identidade, portanto, fala a linguagem dos que foram marginalizados pela globalização (BAUMAN, 2005, introdução: p.12,13)

46 Com a introdução do cuidado de si e da estética da existência, Foucault efetuou em seu pensamento um deslocamento cuja principal consequência foi o privilégio do eixo da subjetivação em detrimento do eixo do poder. Com isso, o sujeito deixou de ser concebido como resultado de práticas disciplinares, passando a ser tematizado de forma autônoma [...]. (ORTEGA, 2001, p. 160).

47Para Touraine, (2006): “O sujeito se forma na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que impedem de sermos nós mesmos, que procuram reduzir-nos ao estado de componente de seu sistema e de seu controle sobre a atividade, as intenções e as interações de todos. Estas lutas contra o que nos rouba o sentido de nossa existência são sempre lutas desiguais contra um poder, uma ordem. Não há sujeito senão rebelde, dividido entre raiva e esperança”. (TOURAINE, 2006, p. 119).

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Como alternativa, Bauman (2001) convida a pensar em solidariedade como um importante caminho de resistência e de enfrentamento a essa modernidade líquida em nossa sociedade atual. Embora Bauman (2001) esteja se referindo a outra realidade, especialmente “os estranhos” no continente europeu, pode-se questionar o equivalente em saúde mental: será a solidariedade de ouvir o outro uma forma de respeitar as diferenças? Será a solidariedade da participação/cooperação do familiar no tratamento do enfermo uma forma de resistência à “coisificação” do outro? Na comunidade local, o “grupo operativo-terapêutico” tem demonstrado que pode ser um local adequado para esta prática de resistência, permitindo uma nova subjetivação em saúde mental. Por outro lado, a característica principal da doença mental crônica (esquizofrenia em especial) é a distorção da realidade, mostrando-a como assustadora e provocando forte isolamento social ao seu “portador”. Isto provoca acentuado sofrimento psíquico a essas pessoas e aos seus familiares que buscam evitar o intenso preconceito a todos os envolvidos, reforçando seu isolamento. Essas características reforçam a necessidade de criar um espaço de participação, de cooperação, de solidariedade aos usuários e seus familiares. O grupo pode contribuir na construção dessa (nova) subjetivação/identidade aos seus usuários e aos seus familiares a partir do compartilhamento de suas vivências e das suas esperanças. Ao viabilizar um novo espaço de identidade/solidariedade aos seus integrantes e ao permitir a essas pessoas apropriarem-se de suas vivências no cuidado de si, o grupo possibilita uma experiência de aprendizagem de autonomia, especialmente em suas atividades de vida diária. Ao longo desta pesquisa, essas aprendizagens estão sendo confirmadas, especialmente nos momentos em que se evidencia que as contribuições educativas são integradoras e integrativas. Consolida-se assim este espaço do “grupo operativo-terapêutico” junto à comunidade como um espaço de (novas) subjetivações para as pessoas com psicose crônica. O “grupo operativo-terapêutico” junto ao CAPS II viabiliza-se como um espaço para uma nova subjetivação aos seus usuários por meio da construção de laços de solidariedade entre si e com os familiares, reforçando o quanto é indispensável trabalhar a família da pessoa com “doença mental”. É também um espaço de aprendizado aos profissionais envolvidos na saúde mental ao conviverem com o diferente, mas também com suas próprias diferenças que não podem ser negadas a partir de seus próprios referenciais teóricos. A nova subjetivação com a autonomia possível que se constrói no espaço do grupo por meio de uma educação popular em saúde mental é uma subjetivação que permite um

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verdadeiro processo de emancipação à pessoa com esquizofrenia. Emancipação que lhe possibilita ser menos dependente de sua família, da medicalização e do próprio CAPS II para um melhor cuidar de si. Porém não se pode desconsiderar que ainda há um discurso em nossa sociedade: “o papel do louco” e que, apesar das importantes contribuições da reforma psiquiátrica, ainda persiste. Nos tempos atuais prolifera nos diferentes continentes o discurso do preconceito ao” diferente”, ao estranho, ao estrangeiro e às suas desumanas consequências de segregação. Isso reforça o quanto o tema preconceito ainda é universal, embora por diferentes motivações. É necessário examinar essa realidade na saúde mental e criar as condições para uma nova subjetivação que não a da exclusão, mas sim a da convivência e respeito às diferenças. Essas são as condições que considero indispensáveis para criar a autonomia possível aos usuários do CAPS II e a sua consequente cidadania, construindo assim o processo de uma verdadeira inclusão social a essas pessoas com esquizofrenia. A esquizofrenia, como já mencionada, é uma doença que tem seu início geralmente na adolescência quando aparecem seus principais sintomas associados a cobranças de desempenho pela família e pela sociedade. Ao longo da sua evolução, percebe-se que a capacidade cognitiva dessas pessoas pode estar afetada, o que é reforçado pelo tempo de aprendizagem, muitas vezes mais lento. Porém isto não é considerado nas frequentes cobranças de desempenho, na maioria das vezes pelo desconhecimento da doença e de suas limitações. Nas palavras do familiar de um usuário do grupo: “Sim é pouco, mas ele começou a ter vontade, mesmo pouco, em fazer trabalhos em casa é limitada ainda, mas em vista de antes é melhor.” (F.11, C.8) ao responder o questionamento do que o usuário consegue fazer (autonomia), percebe-se o quanto o familiar precisa aprender sobre a esquizofrenia e suas repercussões para poder lidar com as cobranças de desempenho, de sucesso, para que essas sirvam de estímulo e apoio no aprendizado das tarefas diárias de autocuidado por parte do seu familiar enfermo. Constata-se que o grupo pode ser um espaço para que esse processo educativo ocorra com auxílio de todos, especialmente de outros familiares presentes nas reuniões. O grupo pode constituir-se num espaço de resistência a esse tipo de cobrança de desempenho, permitindo aos usuários um processo de comunicação e entendimento entre iguais, refazendo assim o seu processo de subjetivação, diferentemente do papel que lhes é dado de estarem às margens de uma normalização baseada unicamente na produção e consumo. O fato de se contestar essa lógica de cobranças baseada unicamente na visão do ser

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produtivo não impede que se estimulem os usuários do serviço de saúde mental a serem criativos em suas atividades. Para isso é indispensável respeitar os seus tempos de aprendizagens, os seus tempos para realizarem suas tarefas e não o tempo imposto pela sociedade da “modernidade líquida”. Nessa dialética de invalidez e produção criativa dão-se as condições na comunidade local para que os profissionais atuantes na saúde, os familiares envolvidos e os usuários do serviço de saúde mental possam estar continuamente se reciclando, especialmente no respeito às diferenças, no tempo de aprendizagem de cada um dos usuários. “Hoje se sente mais tranquilo, mais calmo, antes não tinha paciência para atividades.” (U.21, C. 8). A mudança a que se refere este usuário ao ser questionado sobre autonomia é que antes sua ansiedade/agitação não lhe permitia ter persistência para as suas atividades. Será essa intensa ansiedade uma das dificuldades para que a pessoa com psicose crônica inicie e conclua suas atividades? Será que os familiares percebem como lidar com essas limitações no seu convívio diário? Trabalhar esses aspectos com o usuário e o seu familiar em um local que permita o diálogo educativo a ambos é indispensável para se responder a essas questões. A resposta deste familiar participante do grupo: “Depois que começou a participar do grupo ficou mais responsável, começou a ter mais interesse nas atividades”. (F.12, C.8) é resultado das suas observações das diversas mudanças em seu familiar enfermo e ocorre a partir das diferentes contribuições educativas no grupo. Essas mudanças podem ser uma motivação para que no cotidiano de sua casa o familiar possa continuar a dar o estímulo adequado para o usuário realizar suas atividades, participando assim ativamente na construção da autonomia possível a essa pessoa que vivia isolada. É imprescindível trabalhar e aprofundar esses aspectos do “cuidado de si” abordados no cotidiano familiar para que o usuário possa construir uma nova subjetivação, que não a do louco inválido. No contexto dos referenciais para uma nova subjetivação, é indispensável refletir sobre a autonomia que as pessoas com doença mental conseguem conquistar. 5.1.2 Autonomia um referencial indispensável para uma nova subjetivação A palavra autonomia48 tem origem no grego e significa: autos (si mesmo) e nomos (lei), indicando a capacidade de um indivíduo de se autodeterminar, autorrealizar. Qual a relação entre autonomia e saúde, em especial a saúde mental?

48 No dicionário Aurélio encontram-se os seguintes significados para autonomia: 1. Faculdade de se governar por si mesmo; 2. Direito ou faculdade de se reger (uma nação) por leis próprias;

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A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001) tem refletido em vários documentos a necessidade de respeitar o direito dos usuários, seus familiares e os profissionais que atuam na área de saúde mental, recomendando uma avaliação periódica e permanente aos serviços e programas de saúde mental. No que se refere aos efeitos sobre os” pacientes”, importa avaliar principalmente a satisfação com o serviço, a qualidade de vida, o grau de autonomia, o comportamento social e os sintomas psiquiátricos. A respeito da autonomia relacionada à prática médica destaco o quanto o atual código de ética médica (2009) considera indispensável respeitar a autonomia do “paciente” e de seus familiares, o que se faz presente em vários capítulos e artigos, como pode ser encontrado no respectivo índice remissivo. A autonomia dos familiares também está presente em diferentes momentos no código de ética médica. É a autonomia processo de total independência? Isto é realmente impossível na visão de Morin (1996, p.282). Para o autor é preciso superar a ideia ou o objetivo de se chegar a uma autonomia absoluta. Para tanto, é necessária uma concepção complexa da autonomia que passa a ter característica relativa e relacional, portanto inseparável da dependência. Associar esta visão com a autonomia possível em saúde mental não significa defender a autonomia do usuário de forma simplista, mas, o fortalecimento das relações entre usuários e os profissionais da saúde mental, entre usuários e seus familiares, entre usuários e a comunidade para que esses relacionamentos possam ser vistos como indispensáveis na construção da autonomia possível aos usuários, isto é, como um processo libertador para o cuidar de si. De acordo com Leal (1994), a produção de autonomia em saúde mental pode ser caracterizada em duas vias: “Primeiro, o abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e segundo, a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação” (LEAL, 1994, p.153). Assim, uma concepção possível para autonomia é pensá-la como o momento em que o sujeito (usuário) passa a conviver com seus problemas de forma a requerer menos dispositivos assistenciais do próprio serviço. Recorro a Flickinger49 (2011) para contextualizar o sentido pedagógico da autonomia. Baseando-se na argumentação kantiana, o autor relaciona autonomia ao

3. Liberdade ou independência moral ou intelectual; 4. Ét. Condição pela qual o homem pretende escolher as leis que regem sua conduta.

49 Para Flickinger o significado do conceito iluminista de autonomia é intimamente ligado ao da maioridade. Falar da maioridade expressa apenas o status legal e político da autonomia, que, por sua vez, traz consigo uma 49 Cont.conotação ético-moral. Ao esboçar sua resposta à pergunta: “Que é esclarecimento?”, I. Kant fez da maioridade o conceito-chave para explicar o que deveria ser entendido com o termo “esclarecimento” ou

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esclarecimento, associado à saída do indivíduo de sua menoridade e decidir seus interesses e sua atuação. Esta possível autonomia aos usuários de saúde mental será também um constituinte imprescindível para aliviar a sobrecarga dos cuidadores/familiares, favorecendo uma melhor convivência entre a pessoa com psicose crônica e seu familiar. Considero este melhor relacionamento no ambiente familiar indispensável para que ocorra uma nova subjetivação, que não a de exclusão. Assis (2013) evidencia a imprescindível participação familiar no tratamento da psicose crônica.

“A esquizofrenia é uma doença crônica e, como tal, necessita de cuidados continuados. Uma diferença importante entre esse transtorno e outras doenças orgânicas é que, no caso da esquizofrenia, não basta tomar medicações ou fazer uma dieta para manter a doença sob controle. Além do cuidado medicamentoso, é necessário o cuidado das relações entre os membros da família, pois são eles que dão o suporte necessário para alcançar a estabilidade. No caso da esquizofrenia, como em todas as doenças crônicas, a qualidade de vida não é uma opção: é uma necessidade” (ASSIS, 2013, p.193).

Saliento a importante participação dos familiares junto ao CAPS II no atual contexto da reforma psiquiátrica na comunidade da cidade de Ijuí, reforçada ao longo deste estudo pela literatura nacional a respeito da importância desta participação. Proponho a seguir um estudo sobre o quanto a autonomia pode estar relacionada a um processo de aprendizado libertador e emancipatório para o cuidado de si, possibilitando às pessoas com psicose crônica saírem de seu estigma de incapacitado e da consequente exclusão social. Eis algumas questionamentos que servem para introduzir o nosso próximo assunto, ou seja, autonomia como processo libertador: - em nossa sociedade tem-se a consciência de que somos seres condicionados? - pode construir-se a autonomia como seres isolados? - como construir a autonomia em um contexto libertador?

5.2 AUTONOMIA COMO PROCESSO LIBERTADOR

“De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem “nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade”. Falam de si como os que não sabem e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais.” (FREIRE,2017, p. 69)

“iluminismo”. A tarefa de tirar a pessoa do estado da menoridade, dando-lhe a competência de decidir sobre seus interesses e sua atuação, sem intromissão de outros, marca o centro da argumentação kantiana. Usar seu próprio entendimento é a virtude do homem esclarecido, que dele faz um ser autônomo. (FLICKINGER, 2011, p. 8)

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Este é um forte desafio para a realização desta pesquisa: é possível trabalhar em um processo de educação na saúde mental com outros critérios que não os convencionais, hierarquizados entre os que sabem, “os doutores”, e os indolentes, os enfermos, os que nada sabem, por isso eternamente incapazes?

“Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta de influências das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo”. (FREIRE, 2013, p. 53)

Em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, Freire (2013) lembra que o processo de autonomia exige o reconhecimento de ser condicionado e que o mesmo não se faz no isolamento, mas no tensionamento entre o herdado geneticamente e o herdado socialmente. Por sua vez, Alves 50(2013) dá atenção especial a respeito do pensamento de Freire acerca da necessidade de consciência crítica, especialmente de como as relações de poder na sociedade têm influência sobre as pessoas, mas também do papel de cada um para uma mudança social. Alves (2013) enfatiza a linguagem poética e política sempre presente na obra de Freire, mas é especialmente na sua teoria e prática que associa a autonomia como um processo de libertação a várias “categorias” de oprimidos que a atual sociedade globalizada produz e discrimina de forma intensa. Em “Pedagogia do Oprimido” (1968), obra escrita e publicada quando já exilado no Chile, é vivenciada por Paulo Freire como um processo de conscientização e libertação com os oprimidos. Neste contexto, sua contribuição está intimamente ligada aos movimentos populares, pois sua prática libertadora deu voz e vez ao povo oprimido. Tedesco (2009) destaca que os movimentos sociais constituíram-se nesse período (década de 70) como movimentos de resistência à ordem estabelecida, buscando obter melhores condições de vida, trabalho, salários, moradia, alimentação, transporte, educação e saúde. A respeito do papel de resistência dos movimentos sociais, Tedesco (2009) destaca:

Portanto, resistir não é simplesmente se opor. É algo muito mais difícil e complexo: é criar, é produzir rupturas, é afirmar outras lógicas, outras realidades.

50 Nessa perspectiva, busca-se o desenvolvimento de uma consciência crítica (FREIRE, 1980) envolvendo o entendimento de como as relações de poder na sociedade moldam as experiências e percepções de cada pessoa, e de poder identificar como cada um pode ter um papel dentro de uma mudança social. Isto é particularmente importante em situações de opressão, discriminação, desigualdade e assujeitamento, a partir das quais os indivíduos internalizam crenças e representações de invalidação sobre sua própria identidade e poder. (Freire apud ALVES 2013, p. 53).

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Diferentemente, os poderes, o Estado busca a organização, a ordenação, a hierarquização, a homogeneização das diferenças e das multiplicidades. Entretanto, não podemos esquecer como nos têm demonstrado alguns desses pensadores, que as mais diferentes forças-tanto ativas quanto reativas nos atravessam e nos constituem. (TEDESCO 2009, p. 53).

A partir dessas rupturas produzidas pelos movimentos populares, especialmente dos trabalhadores em saúde, criaram-se as condições para o movimento da reforma psiquiátrica. Heidrich (2007, p. 97) destaca que o processo conhecido como reforma psiquiátrica brasileira está em construção desde o final da década de 1970 quando surgiu o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental que deu origem ao movimento da reforma psiquiátrica. A construção de autonomia aos usuários do atendimento em saúde mental deve ser um dos grandes temas inspiradores da reforma psiquiátrica na atualidade, na medida em que busca inclusão social, com autonomia e cidadania. Por outro lado, é indispensável questionar- se o quanto é possível de autonomia aos usuários do atendimento em saúde mental nos serviços de sua própria comunidade. Autonomia é um processo de construção cultural, não é algo recebido de forma natural, mas necessita da relação do homem com os outros e desses com o conhecimento. Nesse processo, o ato de ensinar é fundamental. E para Freire, “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a produção ou a sua construção” (FREIRE, 2013, p.47). Na contextualização a seguir percebe-se como o tema autonomia em saúde mental já vem sendo preocupação para pesquisadores há mais de duas décadas. Leal51(apud SANTOS, 2000, p.47) reflete sobre qual critério usar para definir autonomia por todos os envolvidos, sugerindo que se abandone o critério de desempenho e que se criem outras perspectivas de vida a partir de outro padrão de subjetivação. Seguindo a sugestão deste critério, o usuário deve conquistar sua autonomia com um desempenho próprio à sua realidade e assim vivenciar um novo processo de subjetivação. Santos (2000) também questiona os próprios critérios de autonomia. Este autor considera que uma maneira de pensar autonomia seria o momento em que o sujeito passa a conviver com seus problemas de forma a requerer menos dispositivos assistenciais do próprio serviço. A isso eu acrescento menos dependência dos próprios cuidados familiares e na

51 Parece que o ponto nodal está em definir o que pode ser entendido como autonomia para nós e para a clientela assistida. De acordo com Leal a produção de autonomia pode ser caracterizada em duas vias: Primeiro o abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e segundo a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação. (Leal apud SANTOS, 2000, p.47).

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medida em que assume mais responsabilidade consigo mesmo em cuidar de si. Nas palavras de Santos (2000):

Pode-se observar que no Brasil a tradição de pesquisa sobre a produção de autonomia é ainda muito recente, principalmente na área com a qual estamos lidando. Um dos impasses é como avaliar ou quais critérios eleger [...] como autonomia para higiene, alimentação, medicação, ir e vir, trabalho e relações sociais (família, amigos, grupos sociais). No entanto, quando se trata de uma clientela específica como é o caso dos sujeitos psicóticos, a adoção de tais critérios não nos parece suficiente. (SANTOS,2000, p.48).

A resposta de um participante do grupo ao ser questionado sobre autonomia: “Estou com mais vontade de fazer as coisa como por exemplo: ir aos jogos, ir a igreja”. (U.20, C. 8) lembra a sua menor dependência ao próprio serviço a que se refere Santos (2000) ao abordar este tema, indicando que o usuário requer menos cuidados para si, podendo fazer o aprendizado para uma autonomia possível. Destaco que este aprendizado é um processo individualizado que requer um tempo adequado e o oportuno acompanhamento familiar em seu cotidiano. O familiar, ao responder sobre o item autonomia: “Depois que começou a participar do grupo ficou mais responsável, começou a ter mais interesse pelas coisas”. (F.12, C. 8), deixa claro o quanto acompanha a evolução no cotidiano de seu familiar enfermo. A resposta mostra também o quanto o usuário pode contribuir no cotidiano de sua família, não sendo visto como uma sobrecarga. Criam-se assim as condições para uma nova subjetivação: ter mais autonomia, inicialmente em seu próprio meio familiar. É oportuno lembrar que a característica principal da pessoa com esquizofrenia é a distorção da realidade, percebendo-a como assustadora, o que provoca o seu constante isolamento social. Isto causa um intenso sofrimento psíquico a essas pessoas e aos seus familiares que buscam evitar a exposição ao preconceito a todos os envolvidos, reforçando seu isolamento. A respeito das resistências do usuário em participar do “grupo operativo- terapêutico”: “Não queria muito participar, foi com diálogo, conversa e conselho, ele tinha muita vergonha do que os outros iriam pensar dele, mas enfim está em tratamento”. (F.9, C.3), percebe-se na fala deste familiar o intenso condicionamento e discriminação social que o usuário teve que enfrentar. Eis o que pensa Freire (2013, p.59) a respeito da discriminação de qualquer natureza em relação ao ser humano: “Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar”.

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Freire (2013) fala da raiva, da indignação e o papel formador que ela pode ter quando se direciona as injustiças, ao desamor [...].

Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade. (FREIRE, 2013, p. 41).

É imprescindível que os profissionais da saúde mental sejam solidários aos usuários e aos seus familiares nesta raiva, nesta indignação ao preconceito e ao estigma que ambos sofrem. Porém dos mesmos profissionais esperam-se estratégias adequadas para esse enfrentamento se transforme num processo libertador e de autonomia, não deixando a raiva transformar-se em raivosidade ou em um ativismo sem resultados efetivos. Portanto a construção do processo de emancipação implica um enfrentamento das adversidades por parte do usuário, uma cumplicidade solidária do familiar bem como uma atenção permanente de todos os envolvidos para que as mudanças nas políticas públicas de saúde mental não impliquem retrocesso das conquistas já obtidas. Para que essa mudança ocorra, isto é, o usuário sair de seu isolamento e enfrentar o duplo sofrimento: da doença e do preconceito, um longo caminho deve ser percorrido. Caminho de aprendizado participativo com todos os envolvidos no “grupo operativo- terapêutico”, especialmente o aprendizado dele e de seu familiar a lidar com as já referidas situações de sofrimento e assim criar as condições de um novo espaço de subjetivação no seu cotidiano familiar. Os usuários através de atividades participativas no grupo, como colaborar na organização do local de reunião, na agenda da reunião, na participação dos envolvidos, das “assembleias” mensais, podem vivenciar sentimentos de “ser útil”, “ser importante” (palavras textuais), isto é, vivenciarem o sentimento de empoderamento. As atividades participativas são vivenciadas também por seus familiares na medida em que estes participam das reuniões do grupo uma vez por mês. Evidencia-se que o grupo se constitui num estímulo para os usuários entenderem que as suas atividades de vida diária fazem parte do seus tratamentos e do processo de construção de suas emancipações. Essas atividades podem constituír-se em exemplos do que Freire (1998) se refere quanto ao ato de ensinar como um lugar para a produção e construção do conhecimento de forma participativa, criando assim as condições para a produção de

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emancipação, de autonomia. O espaço do grupo operativo/terapêutico constitui-se num espaço na comunidade para este ato de ensinar de forma participativa. Dessa forma se produz um aprendizado por meio das diferentes contribuições educativas a todos os envolvidos no grupo. Na medida em que se faz esse aprendizado com outro igual e por isso menos impositivo, menos autoritário, está se efetivando uma autêntica educação popular em saúde, em especial em saúde mental. Este processo educativo também pode produzir melhores práticas e vivências no cotidiano familiar dos usuários, construindo um novo ambiente para uma nova subjetivação, que não o da exclusão, “do inválido”. Nesta perspectiva, encontro subsídios no pioneirismo dos estudos de Santos (2000), sobre o tema autonomia. Em seu artigo: “A autonomia do sujeito psicótico no contexto da reforma psiquiátrica brasileira” faz uma reflexão e avaliação das práticas em saúde mental, especialmente no CAPS/MG. Com sua pesquisa procura contribuir com sugestões para o aprimoramento das referidas práticas. Destaca o autor a importância de os usuários poderem dispor de alternativas de tratamento. Entre tantas vantagens associa a menor frequência de internações hospitalares. Para o autor, no contexto da reforma psiquiátrica, um dos discursos frequentemente apresentados refere-se aos benefícios para os indivíduos que usufruem dos novos tipos de tratamento. Uma das vantagens apontadas pelos profissionais está no fato de os usuários não se reinternarem em hospitais psiquiátricos com tanta frequência como antes de iniciarem o tratamento no CAPS/MG. (SANTOS, 2000, p.51). O “grupo operativo-terapêutico” constitui-se em uma forma de tratamento que contribui acentuadamente para a redução das reinternações hospitalares. É um espaço para a construção da subjetivação/identidade a partir da identificação das pessoas com psicose crônica entre si. Permite, também, criar um novo espaço de identidade/solidariedade aos seus integrantes (usuários, seus familiares e os profissionais da saúde). A essas pessoas são dadas as condições de se apropriarem de suas vivências/experiências, especialmente aos usuários e seus familiares, possibilitando assim autonomia com cidadania, especialmente em suas atividades de vida diária. Porém, na modernidade líquida, criar as condições para que ocorra um novo processo de subjetivação torna-se um desafio para quem trabalha em saúde mental. Bauman (2001) convida a pensar em solidariedade como uma importante alternativa de resistência e de enfrentamento ao preconceito às diferenças, embora estivesse se referindo de uma forma mais ampla às diferenças no mundo da “modernidade líquida” onde o outro é sempre um estranho,

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“um estrangeiro”. Cabe aqui perguntar: a que solidariedade Bauman (2001) está se referindo? No contexto da saúde mental será a solidariedade de ouvir o outro, de respeitar as diferenças? Neste contexto associo a resposta de um familiar participante do grupo ao item empatia com o sofrimento mental do outro: "De acompanhar meu marido nos encontros e dos outros pacientes falarem a respeito do mesmo problema e de ver que às vezes não são iguais, mas passam pelas mesmas dificuldades”. (F.11, C. 1) como um modelo ao que Bauman (2001) se refere como solidariedade no respeito às diferenças. Esta solidariedade contribui para construir a autonomia das pessoas, em especial pelo respeito à diversidade. A autonomia é uma construção cultural, não é algo natural, depende da relação do homem com os outros e destes com o conhecimento. “Neste processo, o ato de ensinar é criar as possibilidades para a construção do conhecimento” (FREIRE,1998, p. 43). No atual estágio de conhecimento em relação à esquizofrenia, questiona-se o que pode ser entendido como cura: a ausência de crises e/ou a ausência de internações, a menor dependência dos usuários ao serviço de saúde mental, a menor dependência à medicalização, ou a menor dependência à sua família. Percebe-se a partir desses questionamentos sobre o conceito de cura a necessidade de se construir novos conhecimento a este respeito. Portanto faz-se oportuno trabalhar na construção de uma política da aceitação do diferente. Também não se pode esquecer que a diferença é um elemento indispensável na constituição da subjetividade, embora seja acentuadamente desconsiderada no processo de normalização, tão presente em nossa sociedade. Esta contextualização mostra que o atual conhecimento em saúde mental implica prioritariamente respeitar as diferenças e o diferente (cidadão) num constante processo de aprendizagem libertadora do estigma, do preconceito. Possibilita ao usuários a construção de uma autonomia possível, especialmente para um melhor cuidar de si. Na perspectiva de uma nova subjetivação em saúde mental, estudo a melhora dos usuários que assumem seus tratamentos no CAPS II Ijuí R/S, pois, além da redução acentuada na frequência de suas crises, passam a ocupar um novo papel em sua estrutura familiar, isto é, uma nova subjetivação que não a da exclusão. Neste contexto é oportuno lembrar Freire (2013), para quem a ideia de liberdade não exime a pessoa de sua responsabilidade. “Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir” (FREIRE, 2013, p.52). É pertinente lembrar um usuário que tinha frequentes e intensas crises antes de assumir seu tratamento junto ao grupo. Crises que causavam um intenso sofrimento a si e aos

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seus familiares, pois em seus surtos perdiam todo contato com o mesmo. Passava longos períodos desaparecido, vivendo como um “andarilho.” Atualmente este usuário encontra-se estável, fora das crises e novamente integrado em seu ambiente familiar. “Sim, voltei a estudar, passei para 5ª série, hoje moro num sítio com minha irmã e trabalho bastante, é muito bom estar ocupado”. (U.1, C.7). Os usuários, após as reuniões do grupo, participaram de atividades de alfabetização e reforço escolar durante três semestres, com a orientação de professoras cedida pela secretaria de educação do município de Ijuí. Certamente este foi um importante fator para motivar este usuário para voltar a estudar, além do importante apoio familiar. Este usuário está tendo uma participação responsável no processo de construção de sua autonomia possível. A construção desta emancipação, desta autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental constitui-se num dos temas prioritários para a reforma psiquiátrica atual na medida em que se busca inclusão social com autonomia e cidadania. Ratifico que o movimento de humanização da saúde mental no Brasil necessita constantemente estar revisando seus objetivos e as resistências a enfrentar, capacidade que considero indispensável para que os diferentes movimentos sociais não sofram desastrosos esvaziamentos. Está implícito na resposta deste familiar: “Hoje ele ajuda a fazer as atividades em casa, por ex.: lavar sua própria roupa”. (F.13, C.7), o que é possível de autonomia para o seu familiar enfermo em determinado momento. É oportuno voltar ao questionamento sobre o conceito de cura, e a enorme dificuldade para se trabalhar uma política de aceitação do diferente. Reputo como cura a menor dependência do usuário ao serviço de saúde mental e, porque não, ao seu próprio familiar. Evidência que pode ser reforçada pela opinião desse familiar, incluindo o seu grau de satisfação com a melhora de seu familiar enfermo, pois a opinião/participação do familiar não pode ser desconsiderada em nenhuma fase do tratamento.

5.3 AUTONOMIA PARA CUIDAR DE SI Na presente pesquisa avalio a viabilidade do “grupo operativo-terapêutico” constituir- se como um espaço para construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, para o cuidar de si, na cidade de Ijuí. Esta problemática é avaliada com auxílio das diferentes contribuições educativas a todos envolvidos, em especial a participação dos familiares. Estudo a autonomia no contexto de um processo libertador em construção por meio de uma educação popular, vivenciada em uma prática de cuidado de si.

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A relevância desta pesquisa é reforçada pelas considerações de Alves (2013) quando afirma a importância de os usuários e familiares estarem à frente da decisão de como cuidar- se.

Essa luta pelo outro só é alcançada se for permitido ao usuário e familiar estar à frente da decisão de como se cuidar, de como gostariam de ser cuidados, direcionando o foco tanto de militância quanto de crítica ao modelo manicomial, possibilitando assim a autonomia do sujeito. (ALVES, 2013, p.67)

Em consequência, estuda-se a autonomia como relativa, isto é, o cuidar de si possível, especialmente aos usuários de um serviço de saúde mental na cidade de Ijuí/RS. A pessoa com doença mental liberta do estigma e do preconceito de nossa sociedade atual tem melhores condições para participar no processo do cuidar de si. Para tal é necessário compreender o constante processo dialético: poder condicionante versus autonomia, presente ao longo do tempo em diferentes culturas. Ao estudar o poder na ótica de Foucault (2000), essencialmente em seu componente disciplinador/normalizador, isto é, criando regras do normal e do anormal, percebe-se como o poder se organiza como um processo disciplinador, a começar com base nos próprios corpos. As obras de Michel Foucault podem ser agrupadas em três domínios que destaco referenciando-me em Oksala (2011, p.9). Algumas obras citadas como exemplo dessas fases são acompanhadas do ano da publicação original. 1-Arqueológica: Nesta fase, o autor discute sobre a história das ciências, usando a palavra arqueologia como uma metáfora, pois procura “escavar” o conhecimento em camadas, associado à ideia de que a ciência não evolui de forma contínua. Procura estudar os modos gerais de pensamentos que influenciam as posições e descobertas individuais. Suas principais obras são: A História da Loucura na Idade Clássica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). 2-Genealógica: O autor dedica-se a estudar como ocorre o surgimento do poder (genealogia). Descreve o poder, a normalização e a repressão não como algo fixo, mas que circula nas diferentes instituições: hospitais, prisões, escolas, igrejas, famílias. Discute o poder não nas macroestruturas, mas sim como ele se constitui nas microestruturas. Destacam- se nesta fase: Vigiar e Punir (1975), História da sexualidade I- vontade do saber (1976), Microfísica do Poder (1979). 3-Ética: Aqui há um enfoque estético associado ao aspecto de subjetivação embora em suas fases anteriores o tema subjetivação também estivesse presente. Porém, é nesta fase

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que o tema é abordado de forma enfática, buscando subsídios na ética do período clássico para ser discutido e refletido como uma forma estética para a nossa atualidade. Nesta fase: A História da sexualidade II (o uso dos prazeres) (1984), A História da sexualidade III (o cuidado de si) (1985). Na genealogia do poder, que se constitui na segunda parte da obra de Michel Foucault, o autor faz uma análise sobre o poder. Primeiramente sobre o poder disciplinador e o desdobramento deste no biopoder (poder sobre os corpos). A organização social é constituída, em sua visão, pelas microrrelações de dominação que se encontram construídas e reforçadas nos espaços institucionais que garantem, a partir do século XVII, formas de controle sobre os indivíduos, utilizando para tal os seus corpos. A fragilidade de nossos corpos faz com que, por meio da disciplina, possam ser manipulados e com isso normalizados e regularizados. Na obra: Vigiar e punir, Foucault (2000) dedica-se a analisar o nascimento das prisões, mas também demonstra como uma concepção social do corpo como objeto se realiza nesse espaço. Percebe-se no pensamento foucaultiano a preocupação em esclarecer um pouco mais esta relação entre corpo e poder a partir da época clássica. Para Caponi52 (2009), podemos ver esta dialética entre o mundo dos direitos versus o mundo das exceções. Em seu artigo: “A persistência do poder psiquiátrico”, destaca que o poder disciplinador domestica o corpo. Eis suas palavras: “O psiquiátrico será esse lugar onde a vontade perturbada, as condutas indesejadas e as paixões pervertidas se defrontam com a retidão da moralidade socialmente esperada” (CAPONI 2009, p.101). Por outro lado, a autonomia para o cuidado de si é relevante para a constituição do sujeito, isto é, para ele decidir sua própria vida, ou seja, enfrentar o condicionamento social. Portanto, o cuidar de si é indispensável no processo de subjetivação do ser humano. Foucault (1985) enfatiza o “sujeito” como elemento presente em sua obra a partir de um processo de construção, especialmente em sua terceira fase quando procura estudar a arte de cuidar de si. Para tanto contextualizo, a obra de Foucault (2014): A história da sexualidade III o cuidado de si. Foucault (2014), baseado nas culturas dos gregos, dos romanos e registradas no pensamento de Platão, Sócrates, Sêneca, Marco Aurélio e outros filósofos, toma o cuidado de si como cuidado do corpo, alma e espírito, constituindo a autovaloração do ser. Na abordagem

52 Distinção entre o mundo dos corpos que devem ser cuidados e o mundo habitado por aqueles que têm o estatuto de vida nua, de vidas que foram postas “fora da jurisdição humana” de modo tal que “a violência cometida contra eles não constitui nenhum sacrilégio”. (CAPONI, 2009. p.102).

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deste tema no referido contexto é oportuno questionar quem deve cuidar de si. A resposta pode ser encontrada em Foucault (2014) quando o autor reflete a respeito do que os filósofos da época clássica recomendavam:

Mas que os filósofos recomendam cuidar-se não quer dizer que esse zelo esteja reservado para aqueles que escolhem uma vida semelhante a deles; ou que tal atitude só seja indispensável durante o tempo que se passe junto a eles. É um princípio válido para todos, todo o tempo e durante toda a vida. (FOUCAULT, 2014, p. 62)

Na História da Sexualidade III, Foucault (2014) nos traz a moral presente no pensamento greco-romano, no qual a ética destina-se a tornar a vida uma obra de arte, um estilo de vida. Constitui-se uma verdadeira estética da existência, muito relacionada com a ética e a moral greco-romana. A estética da existência pode ser compreendida como produção criativa de si, como prática de sujeição, como diferentes maneiras do sujeito de se constituir, e de ter uma conduta moral. Para Foucault (2014), a ética representa a maneira como o indivíduo se constitui um sujeito moral. Mostra a maneira como ele constrói as relações com o conjunto de regras e sente-se, conscientemente, impelido a aplicá-las. Para o autor, a moral é compreendida como o conjunto de regras, constituindo-se no sistema de prescrições e de códigos de conduta que são propostos ao indivíduo. Portanto, para Michel Foucault, a ética é parte da moral. Por outro lado, Foucault (2014) compreende o cuidado de si como uma maneira de agir em relação a si mesmo, a outros sujeitos e ao mundo; cria um direcionamento do mundo externo para o mundo interno. O sujeito busca apropriar-se de si mesmo pela articulação de condutas de si para consigo, buscando transformar-se por meio de práticas de interiorização. Não se trata de reproduzir os modos de vida da cultura greco-romana na atualidade, mas de um convite de Foucault (2014) para viver a vida com uma estética de liberdade na construção do cuidado de si. A partir dessas ideias faz-se necessário pensar em uma nova maneira de subjetivação na saúde mental que priorize uma verdadeira autonomia possível aos usuários para o cuidar de si. “Hoje ele limpa a casa, aquece sua própria alimentação (F. 15, C. 7). Na fala deste familiar, ao responder sobre o tempo dedicado às atividades domésticas, é possível perceber mudanças neste usuário a partir da convivência e das atividades propostas pelo grupo. Isso despertou nele o interesse e a percepção da sua capacidade de desenvolver atividades no grupo e também, por continuidade, dentro de seu círculo familiar, assumindo

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responsabilidades pelos seus afazeres, elementos essenciais no cuidado de si e para diminuir a sobrecarga familiar. Para os filósofos antigos, o cuidado de si deveria estar dentro da alma do sujeito, provocando uma reflexão sobre sua existência, ajudando a controlar seus instintos. O sujeito, ao cuidar-se, estaria também cuidando do outro visto como uma ética de responsabilidade sobre o outro. Um cuidado de diálogo com o outro e não de repressão. Foucault (2014) via esses cuidados presentes na antiguidade como um cuidado racional a partir do cumprimento de regras e condutas “apropriadas” pelo próprio sujeito (o homem virtuoso). Na época clássica, a subjetividade está muito relacionada aos cuidados de si. A respeito da atividade do cuidar de si, Foucault (2014, p.67) destaca que esta não é uma atividade solitária. Em suas palavras: “Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo; ela não constitui um exercício de solidão, mas sim uma prática social.” Para Gross (2008), o cuidar de si não é uma atividade solitária, mas considera a participação do outro indispensável para que isso ocorra. Para este autor, é preciso chamar o outro para nos ajudar a cuidar de nós mesmos. Na modernidade, a subjetividade está mais relacionada a cumprir papéis nesta sociedade de consumo, onde os sujeitos parecem adestrados para tanto. Dentro desta lógica, Foucault (2014) estuda o cuidar de si no livro “História da sexualidade 3: O cuidado de si” como forma de enfrentamento a esses modos (normas) de assujeitamento, mas também destaca a importância da pessoa assumir responsabilidades. O autor busca construir em seus estudos o sujeito a partir de um corpo e dos cuidados com este corpo (responsabilidades), isto é, o sujeito nasce a partir de sua relação consigo mesmo. Constrói assim o que Foucault chama de biopolítica e que ocorre de duas maneiras, em sua opinião: -através da docilização dos corpos pelo poder econômico e; -através das ciências, conhecendo os processos biológicos do ser humano e em conjunto com o governo passa a criar as políticas normativas de intervenção nas populações. Portanto, cuidar de si na modernidade implica sair deste assujeitamento, isto é, ter autonomia para construir sua própria história. Na saúde mental, o cuidado de si passa a ser um processo de construção que envolve a presença dos familiares para perceberem nas reuniões do grupo e depois em sua vida cotidiana na família o quanto o doente mental não é um inválido, mas um sujeito em construção que pode e deve ser estimulado a cuidar de si. Utilizo neste contexto um elemento da observação participante que considero oportuno, pois o cuidado de si faz parte do processo ensino e aprendizagem a cada um dos

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participantes do grupo operativo/terapêutico e envolve práticas a respeito de sua higiene, sua alimentação, seu vestuário, sua saúde de maneira integral. Estes temas são tratados nas reuniões regulares no grupo e reforçados na presença dos familiares. Quando se utiliza a reunião para tratar aspectos de higiene, como os que envolvem o corte de cabelo, barba e o posterior banho, de um usuário com excessivo descuido de sua higiene, está-se estimulando a todos os participantes a refletirem e praticarem o cuidado de si numa nova subjetivação. O familiar, quando questionado sobre como o usuário prefere ficar em casa, mostra em sua resposta: “Antes era apático, se isolava, não saía de casa, nem da própria higiene pessoal cuidava, quarto todo desarrumado, parecia estar de mal com o mundo”. (F.1, C.5), o quanto de mudança, em relação ao cuidado de si ocorreu a este usuário com auxílio do grupo, na presença de seu familiar. Este processo de ensino e aprendizagem deve ser levado para o seu cotidiano familiar, criando as condições para que ocorra uma nova subjetivação a pessoa com doença mental, que não a da exclusão ou “inválido”. A seguir, na análise das respostas dos usuários e de seus familiares, pode-se avaliar o quanto o “grupo operativo-terapêutico” está sendo viável para a construção da autonomia como um processo libertador e a autonomia como um processo para o cuidar de si. Este espaço também é uma forma de dar vez e voz aos usuários e seus familiares, o que por si só é uma forma de contribuir com sua autonomia.

5.4. RESPOSTAS DOS USUÁRIOS E SEUS FAMILIARES As respostas dos usuários e de seus familiares são reunidas em dois temas básicos: TEMA I “O CONHECENDO A ENFERMIDADE MENTAL” TEMA II “OS ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA” Nesses dois temas, as respostas são agrupadas por categorias afins, com destaque as unidades de registro e o seu aprofundamento pela análise de conteúdo Bardin (2011). Essas respostas podem ser encontradas de forma detalhada nos apêndices, ao final do trabalho, pois no espaço a seguir serão apresentadas de forma concisa. Na abordagem do tema I, a conscientização do usuário e de seu familiar, ou seja, a apropriação da realidade, é considerada “pré-requisito” indispensável para a construção da autonomia, pois o processo de libertação e do cuidado de si não ocorre de forma isolada, mas sim com o outro. TEMA-I “CONHECENDO A ENFERMIDADE MENTAL”  Categoria 1-Empatia com o sofrimento mental do outro  Categoria 2- Percepção do sofrimento mental

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 Categoria 3- Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito  Categoria 4-Confiabilidade no outro A seguir faz-se um resumo da opinião dos usuários e dos familiares a respeito dessas categorias.  Categoria 1 - empatia com o sofrimento mental do outro- Usuários/ Familiares Os usuários relatam que a participação do grupo os ajudou a conhecer quando alguém está em sofrimento mental. Também melhorou o entendimento dos usuários que conseguem conhecer tal sofrimento mental com mais facilidade. As respostas dos familiares permitem inferir o quanto o grupo pode ser efetivo no processo de ensino e aprendizagem, inicialmente no reconhecimento do sofrimento mental no outro, ajudando assim o familiar a aprender a conviver com as diferenças. Este ensino e aprendizagem às pessoas com esquizofrenia e aos seus familiares é um pré-requisito para o adequado tratamento e para o processo de emancipação, com a autonomia possível, à pessoa com doença mental.  Categoria 2 - Percepção do sofrimento mental em si-Usuários/ dos Familiares As respostas dos usuários e a análise subjetiva das mesmas clarificam o importante papel do “grupo operativo-terapêutico” na tarefa educativa de auxiliar o usuário a notar quando o outro não está bem, mas também de reconhecer-se no outro. O processo de reconhecimento da doença mental no outro e por espelhamento em si próprio através da participação do usuário no grupo constitui um processo de identificação, indispensável para a consciência de sua doença. Constitui assim em um processo educativo e preventivo para novas crises que tantos sofrimentos causam ao usuário e aos seus familiares. Nas respostas dos usuários observa-se que o processo de empoderamento inicia-se na medida em que ele consegue identificar o quanto o sofrimento mental do outro (colega de grupo) e o seu próprio não o impede de conviver melhor no social, participar de suas atividades, especialmente o de cuidar de si e de sua saúde. Em suas respostas percebe-se que este modelo educativo aplicados no grupo permite acompanhar de forma mais intensiva a evolução de seus participantes, assim como identificar precocemente os problemas que possam estar ocorrendo aos usuários, mas também com seus familiares e possibilitar intervenções adequadas. Os familiares, quando indagados sobre a participação do “grupo operativo- terapêutico”, declararam que este tem sido importante, pois os ajuda a entender melhor a doença mental em seu familiar e lidar com ele de forma mais adequada. O registro das falas dos familiares está associado a uma aprendizagem de observação, compreensão e aceitação

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para com seu familiar enfermo, o que permite refazer laços familiares. O usuário deixa de ser excluído e passa a ser pertencente à família. Este entendimento entre usuários e familiares é indispensável para um ambiente acolhedor no cotidiano familiar.  Categoria 03 – Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito- Usuários/ Familiares As respostas dos usuários em suas participações no CAPS II, através do “grupo operativo-terapêutico”, revelam suas maneiras de encarar o estigma e o preconceito. Observa-se uma evolução, pois inicialmente sentiam-se (verbo no tempo passado) inferiores, discriminados pelas pessoas, considerados como “loucos”, e o CAPS II como “lugar de quem não faz nada”. Na percepção dos familiares, as principais ideias ligadas ao tema preconceito são de que este existe na enfermidade mental, e de forma significativa está presente em seu cotidiano causando um duplo sofrimento: lidar com a “doença mental” e com o preconceito que a acompanha. Este empoderamento por meio da convivência com o outro, por sentir que não está sozinho, é indispensável no enfrentamento ao preconceito, na construção da autonomia possível aos usuários com esquizofrenia.  Categoria 4 - confiabilidade no outro- Usuários/ Familiares Na maioria das respostas dos usuários predomina o verbo no tempo passado ao se referirem a um sentimento comum, qual seja o de isolamento. Conclui-se que o grupo contribuiu nas mudanças ao ajudá-los a saírem de seus isolamentos (“era mais fechada, agora se relaciona melhor”). Percebe-se nas falas dos familiares o quanto o grupo tem papel fundamental para mudanças para ajudar o usuário a sair de seu isolamento; ajudá-lo a modificar sua forma de pensar; a perceber que pode estar distorcendo a realidade e vendo o mundo de forma assustadora. O processo de ensino e aprendizagem foi efetivo aos participantes do grupo, usuários e familiares para entenderem a doença mental, suas limitações e essencialmente como lidar com ela. Estas etapas são indispensáveis para que essas pessoas possam, a partir do conhecimento e apreensão de sua realidade, construir sua própria autonomia possível, especialmente para um melhor cuidado de si. Portanto num processo emancipatório, princípio básico para a educação popular. A abordagem do tema II nos permite aprofundar os elementos que possam ser considerados essenciais para a construção da autonomia possível aos usuários com psicose crônica (esquizofrenia) no CAPS II, na cidade de Ijuí R/S. TEMA II: “OS ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA”

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 5- Socialização no ambiente familiar;  6- Capacidade de iniciativa em interações sociais;  7- Tempo gasto com o lar, trabalho e estudos;  8- Capacidade de autonomia. A seguir faz-se um resumo da opinião dos usuários e dos familiares a respeito dessas categorias.  Categoria 5 Socialização no ambiente familiar- Usuários/familiares A presença dos usuários junto com a de seus familiares no “grupo operativo- terapêutico” permite a ambos um novo processo de comunicação, baseado numa visão mais real entre eles. Permite aos usuários em especial refazerem laços familiares, construindo uma nova subjetivação, com mais autonomia. Os familiares mostram em suas respostas o quanto esteve presente e aparece em seus registros a preocupação com o comportamento agressivo prévio de seus familiares enfermos. Embora expressem sua compreensão de que isto faz parte da doença, incluem neste aspecto a dificuldade que o usuário tem de confiar no outro. Este fato reforça a necessidade de os familiares terem um local adequado para discutirem essas preocupações. Ajudar o seu familiar enfermo a lidar com a agressividade é indispensável no processo de construção da autonomia possível à pessoa com esquizofrenia.  Categoria 6 - Capacidade de iniciativa em interações sociais- Usuários/familiares Em relação aos efeitos do grupo na convivência/comunicação dos usuários com as outras pessoas, identifica-se em suas respostas o aprendizado da convivência com os colegas de grupo, possibilitando a superação de uma dificuldade básica, a de relacionar-se com os demais e o seu consequente isolamento tão presente na esquizofrenia. Esta interação social é indispensável para o usuário construir sua autonomia. Os familiares, em suas respostas demonstram, de forma objetiva, um forte isolamento dos usuários previamente à sua participação no grupo. Os familiares, ao participarem no “grupo operativo-terapêutico”, puderam perceber uma significativa capacidade de comunicação dos usuários, elemento indispensável para formação de novos vínculos. Perceberam também o quanto os usuários conseguem, de uma forma libertadora, exercitar essa capacidade no próprio grupo e por extensão em seu meio familiar.  Categoria 7 – Tempo gasto com lar, trabalho, estudos- Usuários/familiares Em relação à escolaridade, 85% dos usuários que participaram deste estudo possuem o 1º grau (incompleto ou completo). A falta de melhores condições para que eles possam ter um trabalho digno e uma melhor inserção nas interações sociais se relaciona fortemente à

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escolaridade, o que se constitui em uma forte motivação para que o tema educação esteja constantemente presente nas discussões do grupo, mesmo que de maneira informal, na medida em que a educação popular prioriza a participação criativa de todos os envolvidos no processo educativo e emancipatório. Nos diferentes temas abordados, percebeu-se que na maioria dos usuários está presente a capacidade de simbolizar suas emoções, de vivenciar suas ações e também de adquirir novos conhecimentos embora sua capacidade cognitiva frequentemente possa apresentar algum tipo de comprometimento. Esta capacidade cognitiva pode e deve ser estimulada por um novo meio acolhedor e estimulante como o grupo, mas também em seu ambiente familiar facilitando o aprofundamento de questões como participação no lar, no trabalho e nos estudos.  Categoria 8 - Capacidade de autonomia- Usuários/Familiares A construção da autonomia é por si só um processo contínuo que não se esgota por uma determinada técnica, ou num determinado período de vida. O que se espera, e as respostas dos usuários mostram isso, é que o grupo possa ser um espaço onde a prática de educação popular, de vivência dialógica e participativa contribua para a construção da autonomia possível aos seus participantes. Conclui-se que no espaço do grupo é indispensável e fundamental a participação dos familiares no processo de emancipação, no cuidado de si às pessoas com sofrimento mental crônico, pois este processo educativo deve estender-se ao cotidiano familiar. As categorias agrupadas no Tema II mostram que os usuários, em sua grande maioria, após iniciarem no “grupo operativo-terapêutico”, permanecem vinculados a ele por longos períodos. Isto permite pensar no importante papel de socialização que o grupo pode exercer por meio de uma educação participativa, mas acima de tudo num papel libertador e educativo nos cuidados de si e com os outros usuários envolvidos. Observa-se a função educativa que o grupo pode ter para os usuários e seus familiares:  Por suas regularidades na frequência no grupo ao longo desse período;  Como suas referências a um lugar de encontro com outros usuários, seus familiares e os profissionais de saúde mental;  Pela construção de vínculos, o que para a pessoa com sofrimento psíquico crônico, especialmente o esquizofrênico, representa um grande desafio. Vínculos libertadores do caráter isolacionista;  Na intensa prática educativa nos cuidados de si na presença do outro. Todos estes elementos estarão presentes no tema a seguir.

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5.4.1 Retrato sociológico de uma usuária do CAPS II A seguir apresento a construção do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II, por meio de entrevistas no período de 13\05\18 a 14\12\18. Associado ao referencial utilizado para o cuidado de si permite o entendimento de que este é um processo com intensas adversidades em diferentes momentos de sua história. Momentos acompanhados por fortes posicionamentos das diferentes partes envolvidas, constituindo-se num complexo com sucessivos movimentos de disposições favoráveis e de resistência à construção da autonomia pela usuária e para sair de sua posição de dependência ao seu contexto sociofamiliar.  Você gostaria de falar a seu respeito?  Sou N.L.S., nasci no dia 29/02/1984. Desde pequena fui agressiva e desconfiada. Meu pai não tinha muito diálogo e resolvia as coisas no grito. Já minha mãe era e sempre foi muito atenciosa. Cuidava muito do nosso estudo e educação, tive uma infância sem muitos brinquedos, pois meus pais ganhavam pouco. Era um brinquedo para três irmãs brincarem, meus relacionamentos não duravam muito, pois eu desconfiava das pessoas e até hoje desconfio. Aos 15 anos comecei a juventude turbulenta, agredia as pessoas verbalmente e fisicamente. Começava a trabalhar e não durava nos empregos, pois a cabeça não ajuda e não ajudava. Quando comecei a fazer o técnico em enfermagem notei que precisava de ajuda psicológica e então busquei ajuda no CAPS desde 2010. No começo eu não aceitava que precisava de ajuda, mas notei que sem tratamento eu iria morrer ou ficar internada a vida toda em uma clínica psicológica. Tive alguns surtos e internações. Briguei várias vezes com meu pai ao ponto de um agredir o outro, meus vizinhos tinham medo do meu comportamento ou eu vivia trancada no quarto ou caminhando sem rumo na vida o dia inteiro. Hoje venho no CAPS faço tratamento e sei que não posso ficar sem o remédio e terei que tomar a vida inteira. Quando eu entrava em crise andava com algo para me defender tipo canivete e facas. Na adolescência eu jogava futebol pelo colégio e jogava bem. Na verdade eu tive pouco carinho dos meus pais acho que eles não sabiam como me tratar, pois eu era diferente. Análise e interpretação dos dados: Em sua resposta, é possível caracterizar as condições difíceis de sua infância, “Desde pequena fui agressiva e desconfiada. Meu pai não tinha muito diálogo e resolvia as coisas no grito”. Que disposição de subjetivação gera-se num ambiente onde não há acolhimento, escuta e sim autoritarismo e agressividade? Questiono também o quanto a entrevistada não

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consegue relacionar esta sua maneira agressiva de agir com a agressividade de seu ambiente familiar, especialmente por parte de seu pai. Percebe-se um diálogo desconexo que reflete a fragmentação de suas ideias, associado a sua forma de pensar. Esta forma de pensar e falar cria uma dificuldade de comunicação, e consequentemente de se relacionar. Ao longo de seu relato observam-se os sintomas iniciais: “Desde pequena fui agressiva e desconfiada”, “Aos 15 anos comecei a juventude turbulenta, agredia as pessoas verbalmente e fisicamente”. Em se tratando de uma pessoa com psicose crônica (esquizofrenia) são os sintomas que precedem e agudizam-se em seu primeiro “surto”. Questiono o quanto essa fase de sua vida (“aos 15 anos”) possa ser uma fase de maiores exigências sociofamiliares, as quais ela não consegue responder adequadamente. Reflito o quanto esta situação pode ser traumática a todos os envolvidos, pois é quando se evidencia a fragmentação de seu mundo interno e, por projeção, de seu mundo externo. Observa-se nesta jovem uma intensa luta para aceitar seu adoecimento psíquico e consequentemente buscar ajuda. “No começo eu não aceitava que precisava de ajuda [...].” Mas logo a seguir aparece o seu lado mais saudável, a sua capacidade em pedir ajuda, o que reforça sua intensa busca pela saúde, o que eu considero ser um incipiente, mas significativo passo na luta pelo cuidar se de si. Mesmo fora das crises, seu sofrimento maior está em conviver com suas desconfianças: consigo mesma, com as pessoas e com o mundo. Isso pode ser para ela um duplo sofrimento: lidar com o adoecimento associado às suas limitações e com as exigências de desempenho que, em muitos momentos, se fazem presentes em sua vida, especialmente na adolescência quando é frequente o aparecimento das primeiras crises. E os familiares como reagem? Assis 53(2013) observa as dificuldades que os próprios familiares encontram para agir habitualmente nos momentos de intenso conflito e sofrimento. Acrescento a isso o quanto se faz necessário neste momento um espaço de acolhimento e de esclarecimentos educativos ao usuário e ao seu familiar em sua própria comunidade. A “esquizofrenia” é tomada como um exemplo clássico das psicoses crônicas. Esta doença pode ser “controlada” e, mais do que isso, pode-se planejar o seu tratamento por meio

53Assis: “Os familiares normalmente ficam sem saber como agir quando um membro da família adoece com esquizofrenia, É uma experiência nova e que traz dificuldades, e os familiares podem ficar entre dois extremos: o conformismo, que leva a não procurar caminhos para melhorar os relacionamentos, ou a não aceitação, que leva a querer que as coisas se resolvam de uma hora para outra, seja mudando o medicamento, confiando em apenas um tipo de profissional da saúde ou não aceitando a doença”. (ASSIS, 2013, p. 28).

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de um plano terapêutico, com a participação do usuário, de seus familiares e de uma equipe interdisciplinar presente na comunidade por meio do CAPS II. Espera-se que o objetivo maior deste tratamento possa ser o de construir disposições acolhedoras para melhorar a qualidade de vida de cada uma destas pessoas com sofrimento psíquico crônico, viabilizando-se assim a construção de sua autonomia possível. Lembro que a construção de uma disposição implica exposição a um estímulo de forma regular e por um tempo maior, e está associada ao sentir, ao crer e ao agir. É isso que se espera que o usuário possa encontrar ao longo do tempo: um local acolhedor em sua participação em um “grupo operativo-terapêutico”.  Como você vê o seu tratamento no momento atual?  Hoje agradeço a Deus por estar fazendo tratamento no CAPS. Se não fosse o CAPS eu provavelmente estaria em um presídio ou internada em alguma clínica. Tem dias que não consigo controlar minha mente. Tenho vozes de comando e pensamento negativos, mas o que me incomoda é a perseguição das pessoas por estarem me cuidando. Quando vejo que estou em crise procuro ajuda dos profissionais do CAPS, na verdade eu só confio no meu psicólogo para falar da minha vida. Minha desconfiança e agressividade diminuíram com o uso da medicação clozapina, conheci várias pessoas no CAPS, algumas são minhas amigas. Na verdade o CAPS é uma família pra mim e me sinto protegida por estar vindo aqui, sei que preciso me tratar o resto da vida e que preciso tomar medicação e participar das terapias do CAPS. As pessoas me julgam por vir no CAPS, dizem que as pessoas que se tratam aqui são “loucas”, mas tenho orgulho de vir, pois me sinto protegida participando, mas Deus sabe o que faz, ele faz o melhor para cada um. Meus pais me cuidam muito bem. Sempre estão me dando atenção e cuidando o meu uso do remédio, eu sei que preciso tomar senão entro em crise e não controlo minhas atitudes, mas o importante é ter saúde que o resto a gente consegue. Análise e interpretação dos dados: Percebe-se em suas palavras que, neste momento, seu medo em não controlar a mente não diminuiu e tem a clara percepção dos riscos que corre: “Tem dias que não consigo controlar minha mente”. Permanece o que se pode considerar como os sintomas residuais, ou seja, vozes de comando, pensamentos negativos e sentimentos de perseguição. Ela tem consciência do lugar (CAPS II) onde pode buscar ajuda.

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Assis 54(2013) observa que em cada crise alguns vínculos são quebrados, o que se confirma nas vivências de uma pessoa com esquizofrenia. É necessário ressaltar que a esquizofrenia é “uma doença multifatorial” como demonstra a própria usuária do CAPS II ao longo de sua fala. Entre os fatores, o bioquímico é verificado pelo excesso do mediador químico dopamina presente nas pessoas com esquizofrenia. A clozapina é uma medicação antipsicótica muito utilizada nas psicoses crônicas. Não só pela sua característica básica, que é a de inibir o excesso do mediador químico dopamina, especialmente presente nas crises da esquizofrenia, mas essencialmente por contribuir na socialização dos pacientes. Tendo em vista que seus efeitos colaterais são mínimos, sua especificidade permite a redução do uso excessivo de medicação em tais situações. Relaciono a esses dados o papel de destaque que ela (usuária) dá à medicação clozapina, pois se trata de um antipsicótico de “última geração”, com importante papel na prevenção das crises e apoio para a socialização. Além do enfoque clínico-medicamentoso, não se pode desconsiderar a persistência que ela mantém há mais de cinco anos, qual seja a de buscar um ambiente “familiar” no CAPS, o que pode estar relacionado com sua motivação de encontrar um ambiente acolhedor e de proteção tendo em vista os frequentes conflitos mencionados anteriormente em sua própria família, associados a uma proteção de caráter autoritário (interditatório?), embora agora descritos como cuidadosos.  Que aspectos você considera importante destacar em seu tratamento?  Participo do CAPS desde 2010. Tenho acompanhamento psicológico, terapia ocupacional e psiquiatria (grupo). No colégio gostava da disciplina de português, mas tinha dificuldade em matemática, reprovei dois anos na escola. Sinto-me melhor quando participo do CAPS, se eu pudesse eu viria todos os dias participar. A comida e o almoço são muito bons e os profissionais dão atenção e se preocupam com os pacientes. Sinto falta do futebol que tinha no SESC as sextas com o professor de Educação Física.

54ASSIS destaca: Em um episódio psicótico agudo, a pessoa pode sofrer uma série de perdas; por isso, é importante procurar ajuda médica. O fato de ela acreditar nas experiências que está vivendo e de ter a capacidade crítica obscurecida pelos sintomas, causa perdas nos relacionamentos e perdas difíceis de recuperar na vida interior. Relacionamentos importantes e que servem de referência para a pessoa, muitas vezes, quebram-se de maneira que as situações criadas dificilmente são superadas. As vivências internas nas crises são reais, assustadoras e profundas que podem levar muito para serem compreendidas e causar desajuste social e perda de autoestima, ambas difíceis de serem superadas. (ASSIS, 2013, p.36).

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A gente jogava no SESC toda sexta, mas essa atividade não tem mais. Também gosto dos passeios do CAPS é muito bom passear com a equipe e os “pacientes”, participo de segunda e quarta no CAPS. Meus pais quando podem participam dos grupos e assembleias, mas eu procuro saber o tratamento certinho para não entrar em crise. Sei que não posso ficar sem medicação, pois entro em surto e não controlo minhas atitudes. Eu sempre tive o comportamento explosivo, mas hoje fazendo o uso da medicação, fico melhor. Tenho poucos, mas alguns amigos que conquistei participando do CAPS. Na verdade o CAPS é uma família e precisamos dar valor. Sinto falta dos passeios com a antiga T.O. (Terapeuta Ocupacional) que não faz mais parte do CAPS II, de Ijuí. Análise e interpretação dos dados Destaco, no primeiro parágrafo, a fragmentação de seu discurso, isto é, são frases que parecem não ter conexão entre si e decorrem de sua própria forma de pensar que, em muitos momentos, apresenta-se desconexa. Este processo é muito frequente no pensamento e na fala da pessoa com esquizofrenia, o que dificulta o seu processo de comunicação, aumentando assim sua propensão ao isolamento. As informações sobre a vida escolar são muito limitadas e parecem estar fora de contexto. É possível pensar que essas dificuldades estejam associadas a algum tipo de limitação cognitiva e/ou à sua percepção distorcida da realidade, vendo o meio externo de forma hostil, e/ou as suas frequentes desistências de suas atividades. Ela menciona em sua fala a redução das atividades fora do CAPS II, “A gente jogava no SESC toda sexta, mas essa atividade não tem mais”, como o futebol junto ao SESC, organizado por estagiários da UNIJUÍ e que deixou de existir. Essas interrupções nas atividades, especialmente as realizadas na comunidade e de caráter “extramuros” deveriam provocar algo de inquietante aos envolvidos nas políticas de saúde mental na comunidade de Ijuí, especialmente pelos prejuízos da descontinuidade nos tratamentos de seus usuários. Essa inquietação deve gerar alguns questionamentos: O CAPS não estará funcionando como uma ilha na comunidade? Qual o verdadeiro movimento do CAPS em direção à comunidade? Estarão esses estagiários sem o devido vínculo de continuidade com a estrutura pública de saúde mental, contribuindo assim para a interrupção de algumas atividades junto à comunidade? Que efeito tem para a usuária essas interrupções nas atividades? A usuária do CAPS II fala em algumas entrevistas das diferentes atividades as quais ela se sentia motivada a participar mas deixaram de existir. O que representa para ela as

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interrupções nos vínculos que ela começa a estabelecer com essas pessoas e depois são interrompidos de forma prematura ou não trabalhados adequadamente? Ao se referir à falta da terapeuta ocupacional que saiu, evidencia-se a sua provável capacidade (disposição) de formar vínculos. “Sinto falta dos passeios com a antiga T.O. que não faz mais parte do CAPS”. Ela também pode estar falando de sua dificuldade na elaboração de perdas. É indispensável um planejamento por parte do CAPS II de Ijuí para a construção de um programa de integração dos seus usuários, familiares e profissionais da saúde mental em atividades junto à comunidade, o que inclui o planejamento de um programa de estágio mais duradouro com as instituições de ensino superior, ou parcerias com outras instituições da comunidade. Essas questões estão profundamente associadas à efetiva criação de políticas públicas para inserção dessas pessoas com psicose crônica na comunidade, pois, para que uma disposição de participação se constitua como tal, é necessário um estímulo regular e contínuo. Essas são abordagens que considero indispensáveis na construção de relacionamentos para uma autonomia possível. Assis 55(2013), a esse respeito, refere que a pessoa com psicose crônica não perde suas qualidades humanas. Observo nesta usuária do serviço de saúde mental um profundo reconhecimento pelos profissionais que a acolhem e lhe dão atenção e carinho. “Sinto-me melhor quando participo do CAPS, se eu pudesse eu viria todos os dias participar. [...] os profissionais dão atenção e se preocupam com os pacientes”. Esta acolhida considero indispensável para desfazer a hostilidade do mundo externo que está tão presente em seu mundo interno. Esse acolhimento poderá ser estendido a seu ambiente familiar, pois pode ser sentido e visto nas atividades da usuária junto ao CAPS por seus próprios familiares, e por extensão poderá ser experenciado no seu cotidiano familiar. Esse novo ambiente poderá contribuir decisivamente para que ela possa ter condições de uma nova subjetivação que não a de exclusão (“do louco”). E na construção de uma nova disposição familiar mais acolhedora a essa pessoa com sofrimento psíquico crônico.  Quais atividades você estás planejando realizar, neste momento, em sua vida?

55Assis (2013), falando sobre a capacidade de estabelecer relacionamentos: “É importante compreender que a pessoa com esquizofrenia mantém suas qualidades humanas, e são estas que permite estabelecer relacionamentos, por meio dos quais o crescimento se torna possível. Muitas pessoas com esquizofrenia e familiares desanimam diante das dificuldades imediatas, mas é preciso ter em mente que os resultados são construídos com o tempo, como dissemos anteriormente. Sempre é possível melhorar, independentemente do número de crises agudas que se tenha vivido ou do grau de comprometimento que elas causaram”. (ASSIS, 2013, p.135).

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 Estou conversando com algumas amigas para voltar a jogar futebol. Faz muito tempo que não pratico atividade física, no momento estou dando muita atenção para a saúde de minha mãe que não está bem. Procuro ajudar em casa no que meu pai me pede. Gosto muito de vir no CAPS porque tenho amigos de verdade. Em casa tenho o hábito de ler livros de religião católica, também gosto de ver filmes de ação. Às vezes fico pensando o que será da minha vida, mas sei que sem remédio não posso ficar e preciso do acompanhamento do CAPS. A gente faz planos e Deus faz outros. O importante é ter saúde, o resto a gente dá um jeito, tenho vontade de viajar conhecer lugares diferentes, passear com a família porque a família da gente são quem realmente se importam. Agradeço a Deus pelo CAPS existir porque não sei o que seria de mim sem o acompanhamento psicológico e os remédios. Minha família sempre está presente procurando me ajudar e me auxiliar no tratamento. Eu entrego minha vida a Deus, pois ele faz o melhor pra mim. Às vezes fico pensando o que será da minha vida, o que Deus guardou pra mim? Mas eu acho que as pessoas têm algo para realizar na vida. Ninguém nasceu sem um motivo, todos têm algo para ensinar para outros. O mundo é muito sujo, as pessoas geralmente não se importam com ninguém e querem estar por cima pisando nos outros. Ganância, Inveja... Enfim temos que ter jogo de cintura para não cair. O mundo é muito sujo, mas ainda existem pessoas boas que fazem atitudes de coração aberto para ajudar os outros. Análise e interpretação dos dados Em sua fala aparece um intenso sentimento de apreensão com o seu futuro: “Às vezes fico pensando o que será da minha vida...”, associado a seu basal de medo e de desconfiança com a crueldade do mundo. Na continuidade, novamente o discurso mostra-se muito fragmentado, porém sempre está presente mesmo que de forma velada a sua preocupação com o seu futuro. Aparece também uma disposição, um sentimento de proteção ora associado à religião ora à família. Assis 56(2013), especialmente a respeito do papel da família na vida dessas pessoas, enfatiza

56 Assis: “Nossa forma de ver a esquizofrenia e a família parte da compreensão de que a doença não caracteriza o sujeito, e que ele, como qualquer outra pessoa, tem seu jeito de ser, seus desejos, suas qualidades e seus defeitos. Há situações em que o indivíduo com esquizofrenia necessita tanto receber cuidados, compartilhar a vida com a família. Muitas pessoas com a doença são exiladas dentro de sua própria casa. Essa é uma situação que pode ser mudada”. (ASSIS, 2013, p.168).

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que suas vidas não se restringem a sua doença e que necessitam compartilhar a vida com a família. Percebe-se nas palavras da entrevistada que sua família está presente em sua vida embora em alguns momentos com um forte componente de autoritarismo. Mesmo assim ela frequentemente procura fazer-se presente nas necessidades da família. Porém, isto não lhe basta para fazer a mudança interna: perceber o seu lado humano e prestativo, pois seu mundo interno projetado no mundo externo permanece sendo muito mau, muito sujo. Associo esta dificuldade à falta de estímulos adequados ao longo de sua vida, a um possível déficit cognitivo e/ou por “sequelas” de suas frequentes crises prévias embora seu esforço para construir as disposições mais adequadas: condições mínimas de apoio no grupo, no CAPS II, na família e, quiçá, na própria comunidade. Compreendo a angústia intensa que lhe provoca esse esforço e as limitações para construir objetivos de longo prazo, e isso faz pensar que este seu processo na busca de autonomia possível será contínuo, sofrido e possivelmente com momentos de recaídas, o que não impede que se façam questionamentos a respeito dessas dificuldades: -Será essa uma disposição que recebe de sua própria classe social e que lhe destina apenas objetivos limitados no tempo e no espaço, e que perpetua assim as injustiças e desigualdades sociais? -Será essa uma disposição em função de sua própria psicose crônica e que lhe dificulta planejamentos de longo prazo, o que de certa forma também lhe dificulta sua mobilidade social? -Ou será essa a disposição que lhe é oferecida pela sociedade pós-moderna que não sabe e ao que parece não quer aprender a respeitar o diferente? E em consequência não sabe respeitar a diferença de tempo de cada um em seu processo de aprendizagem e criatividade que não sejam os de produção para consumo em massa?  Como tem sido a sua rotina de atividades no CAPS II atualmente?  Ultimamente tenho ajudado em casa na limpeza. Venho no CAPS segunda e quarta, tenho o grupo de segunda e psicologia. Às vezes tenho crises e saio de casa sem rumo, moro com meu pai e mãe. Adoro vir no CAPS porque me sinto segura. Quando estou em casa procuro ocupar a cabeça fazendo alguma coisa, minhas irmãs vêm nos visitar são do interior. Não posso ficar sem o remédio porque me torno agressiva e paranoica, às vezes tenho escutado vozes de comando e sentindo que as pessoas estão contra mim, na verdade não confio em ninguém.

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Fiz vários amigos no aqui no CAPS e sinto falta deles, sei que vou ter que tomar remédio para o resto da vida porque ele me ajuda muito. No começo eu não aceitava que precisava tomar remédio, era agressiva e até agredi várias pessoas inclusive meu pai, nunca tive medo de ninguém. O que me ajuda muito é ter psicologia uma vez por semana para o eu contar um pouco do que acontece. Adoro vir no CAPS, às vezes fazem passeio eu gosto de participar. O almoço é muito bom e o café também. Sinto-me muito bem em vir no CAPS. O CAPS pra mim é uma família sempre procuram dar atenção para os pacientes. Não sei o que seria de mim se não participasse do CAPS provavelmente teria feito algo terrível. Estou seguindo a dieta da nutricionista do CAPS. Também venho quinta à tarde no grupo de canto. Quando não estou bem procuro a equipe do CAPS e digo o que está acontecendo, procuro ajuda se não pode acontecer algo. O remédio clozapina foi uma maravilha, me ajuda muito, meu pai me lembra sempre de tomar na hora certa, ainda bem que ganho ele pois não teria como comprar, estou emagrecendo e cuidando da saúde, fazendo o que o nutricionista me disse. Análise e interpretação dos dados Esta preocupação de ajudar em casa aparece com regularidade e sem associação com o sentimento de estar se sentindo vigiada como ocorre frequentemente em suas atividades fora de casa, “Ultimamente tenho ajudado em casa na limpeza”. A seguir ela faz um breve comentário sobre seus momentos de crise sem relacionar com algum desencadeante, “Às vezes tenho crises e saio de casa sem rumo, moro com meu pai e mãe”. Este relato pode estar associado a uma disposição para estar repetindo e fortalecendo, mesmo que inconsciente, o seu papel de uma pessoa doente, reforçado pelo fato de ela retornar a falar sobre suas atividades em casa. Será que sente algum tipo de interdição para realizar as atividades fora de casa? Em sua entrevista, percebe-se o relato, de forma inconsciente, de um intenso conflito: viver o papel de uma pessoa com doença mental e os benefícios que daí advêm. Por outro lado, há também sua busca por uma vida em que ela possa se libertar desse papel, podendo construir sua nova subjetivação, que não a do “louco/inválido”. Este esforço de libertar-se do papel de inválido aparece ao falar sobre ser responsável em suas atividades: “Quando estou em casa procuro ocupar a cabeça fazendo alguma coisa, minhas irmãs vêm nos visitar são do interior”. E continua ao falar nos cuidados consigo ao

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assumir seu tratamento em seus diferentes aspectos, inclusive o nutricional, mas também ao procurar sair de seu isolamento. Novamente busco nas referências de Assis57 (2013) elementos para refletir a respeito da superação e da qualidade de vida possível às pessoas com esquizofrenia e a sua integração social. Faz-se oportuno o questionamento dos valores de convivência que estamos perdendo ao longo de nossa caminhada civilizatória, tais como tolerância, solidariedade e respeito às diferenças.

 Que espaços de participação você e seus familiares têm tido no CAPS II?  Tivemos assembleia e cada familiar contou um pouco da rotina do “paciente”. É muito importante fazer o uso dos remédios e ajudar em casa. Ter higiene deve ser fundamental para o tratamento. O CAPS tem me ajudado muito, meu pai me ajuda no uso da medicação e nas atividades diárias, ajudo a organizar a limpeza da casa. O CAPS pra mim é uma família e sei que preciso tomar medicação para sempre. Caso eu não tomar entro em crise ficando extremamente agressiva e paranoica. No CAPS tenho amigos de verdade que fiz nesta trajetória. No começo eu não aceitava que precisava de tratamento, mas, devido as crises que tive minha família decidiu procurar ajuda e faz cinco anos que tenho participado do CAPS. Não tenho condições psicológicas para trabalhar mas procuro cuidar da saúde para não agravar o problema. Análise e interpretação dos dados Esta frase, presente em uma entrevista anterior, aqui se repete, “No começo não aceitava que precisasse de tratamento/estar doente”, o que mostra a sua dificuldade para aceitar limitações e para lidar com as mesmas. Por outo lado, embora a sua intensa característica fóbica/paranoide percebe-se que ela, no momento, consegue contribuir para um ambiente familiar menos conflitante. Suas respostas apresentam uma disposição para falar de sua doença, “O CAPS pra mim é uma família e sei que preciso tomar medicação para sempre”. Isto mostra a possível

57 Assis refere que uma boa qualidade de vida é o principal resultado da superação. Entendemos que a qualidade de vida é mais ampla que o conforto material e, seguindo os tratamentos, ela se caracteriza por relações familiares harmônicas, integração social e uma vida produtiva. Esses elementos são muito importantes para que a vida tenha sentido. A aceitação da doença, o autocuidado e a tranquilidade interior só são alcançado por intermédio desse sentido que cada um encontra para a própria vida. Nele, as estratégias e mudanças para a superação da esquizofrenia servem também para todas as pessoas que são comprometidas com a realidade que a vida lhe coloca. (ASSIS, 2013, p.193).

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visão que tenha de si como uma pessoa doente. Sua vida, suas atividades, suas relações são resultado desta visão que tem de si. Será possível refazer esta imagem que tem de si? Destaco o quanto este é um processo no qual a sua participação e a de seus familiares se tornam indispensáveis. E as reuniões do grupo, as assembleias, com a participação de todos os grupos juntos possam ser importantes espaços para tomar consciência desta forma de pensar e de viver condicionada pela narrativa do “louco/invalido” que vem se construindo ao longo de sua vida, viabilizando assim refazer sua imagem e vivenciar alternativas mais saudáveis para uma melhor qualidade de vida. As assembleias58 dos grupos operativo-terapêuticos são mensais e organizadas com a participação dos usuários e de seus familiares, “Tivemos assembleia e cada familiar contou um pouco da rotina do “paciente””. Esses usuários e seus familiares ocupam um espaço de destaque na “mesa diretora” de onde escolhem suas prioridades a serem debatidas. Os profissionais da saúde procuram exercer uma função de apoio nas assembleias. Essas assembleias vêm sendo realizadas de forma regular (mensalmente) ao longo desses anos, criando disposição de participação a todos esses usuários, o que pode ser incorporada a suas vidas e à vida de seus familiares. Assim, gera uma nova vivência participativa em família e em outras instâncias sociais, o que constitui um processo emancipatório, próprio da educação popular em saúde mental. A entrevistada percebe uma importante limitação para as atividades profissionais e a associa à sua “doença”. Porém, em outro momento, ela destacou que está tendo oportunidade de ser mais participativa em outras atividades, inclusive na área de lazer, o que pode repercutir em sua qualidade de vida. Será que a sociedade pós-moderna em suas diferentes instâncias, tais como família, escola, igreja, meios de comunicação, não reforçam em todos uma disposição a valorizar a vida apenas e tão somente no aspecto de ser produtivo numa sociedade prioritariamente de produção e consumo?  Como têm sido os seus relacionamentos afetivos no passado e na atualidade?  Desde pequena fui muito antissocial. Tive poucos amigos não confiava em ninguém. Os meninos e meninas mostravam (interesse) em ter algum relacionamento comigo.

58 Nas assembleias evidencia-se uma forte preocupação pelos cuidados preventivos para evitar uma recaída: medos dos sofrimentos advindos para o usuário e para os familiares. Os familiares num processo de trocas de informação horizontalizada e não hierarquizada relatam suas histórias de muito sofrimento com todos os envolvidos, especialmente quando o usuário interrompe seu tratamento, e ocorrem recaídas. Nas assembleias em alguns momentos alguns profissionais são convidados para debaterem temas específicos como prevenção de crises, cuidados de higiene e saúde, cuidados gerais em casa, sua participação nas atividades do lar, nas atividades de lazer, sempre direcionadas a sua autonomia.

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Até hoje eu não fico muito tempo com uma pessoa, pois começa a paranoia de que estão me traindo ou fazendo coisas por traz de mim. Eu posso até gostar da pessoa, mas no momento que perco a confiança nunca mais procuro ter contato com ela. Procuro me afastar do que pegar raiva, porque sinto vontade de agredir quem me faz mal. Eu não tenho remorso, no momento estou solteira, costumo contar da minha vida para a mãe e o psicólogo porque só confio neles. Meus relacionamentos sempre tiveram pouca duração eu não consigo me entregar por medo de me enganarem e me fazerem de idiota, mas uma hora vai surgir alguém legal que entenda e eu confie. Tudo tem seu tempo. O importante é ter saúde. Análise e interpretação dos dados Fica evidente o quanto é assustadora a sua visão interna de mundo (objetos internos), “Desde pequena fui muito antissocial. Tive poucos amigos, não confiava em ninguém.” Esta distorção em seu mundo interno lhe traz uma visão distorcida da realidade onde os objetos externos lhe são persecutórios, o que constitui assim a base de seu isolamento e a dificuldade de relacionamentos inicialmente em seu próprio meio familiar e, “por extensão”, fora dele. Esta usuária do CAPS II surpreende especialmente ao final de suas falas de intenso sofrimento quando aparece sempre uma perspectiva de esperança, mesmo que em alguns momentos com uma forte carga mística, “[...] mas uma hora vai surgir alguém legal que entenda e eu confie. Tudo tem seu tempo”. Será este componente místico/religioso uma disposição familiar? E se for esta uma disposição, o quanto de repercussão tem no “destino” de seus relacionamentos? Por outro lado, será este componente místico a motivação para ela buscar o controle e a estabilidade em seus momentos de impulsividade e agressividade? O controle de sua agressividade, por si só, não precisa estar associado ao conceito de “cura de sua doença”, mas ao de uma melhor qualidade de vida, de menos isolamento social.  Quais suas motivações para estudar ou para trabalhar?  Fiz dois cursos técnicos, enfermagem e farmácia. Na área de enfermagem trabalhei em curtos períodos, nesta função era muito cobrada e entrava em crises. Gostei do curso, porém não tenho competência para trabalhar. É algo que não gosto de fazer, me formei, mas não tive êxito na função. Meus colegas de trabalho sempre estavam cuidando o meu serviço pra ver se eu cometeria algum erro e falavam mal de mim pelas costas. Eu não tinha habilidade, esquecia de fazer as coisas e várias vezes brigava verbalmente com os colegas. A profissão de

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enfermagem mexeu muito com o meu psicológico, me abalou muito e agravou a paranoia da minha cabeça. O curso é muito bom, mas não foi feito para mim. Trabalhei várias vezes, mas por pouco tempo porque minhas atitudes cancelavam o contrato de experiência, eu sou uma pessoa muito fraca para trabalhar nessa área, eu não aceito a morte e isso me abala muito. Sei que a morte foi feita para todos, mas eu não aceito. Eu estudei muito isso agravou meu psicológico, neste curso eu aprendi que eu precisava de ajuda quando fizemos estagio no CAPS, e decidi buscar ajuda. Faz seis anos que me trato no CAPS, tenho atendimento e medicação, sei que vou ter que fazer uso da medicação para sempre se não entro em crise e acabo fazendo algo grave. Aprendi muitas coisas nesses cursos. O CAPS é uma segunda família pra mim, tenho amigos de verdade e se não fosse o CAPS eu já teria feito algo agravante. Eu tenho o conhecimento da teoria porem minha mente não me ajuda a realizar as coisas, cansei de tentar e não conseguir não adianta eu ter vontade e a cabeça não ajudar, isso me causa mais sofrimento. Análise e interpretação dos dados A que tipo de “interdição” esta usuária se refere quando afirma, “Gostei muito de meus cursos, mas não tenho condições de trabalhar”? Novamente percebe-se uma ambivalência: o seu esforço para buscar capacitação e a constante sensação de estar sendo vigiada em suas atividades, o que a faz desistir. Na entrevista, esta “interdição” mostra um aspecto de sua história assim como a de muitos usuários do serviço de saúde mental. Estará ela realmente interditada parcialmente ou de forma total? Este é um expediente usado por familiares, muitas vezes por orientação jurídica para assim ter acesso ao processo de benefício, isto é, a uma renda junto ao INSS. Nas condições de seu meio sociofamiliar (disposição), esta renda passa a representar um importante valor para o usuário e para a sua família. É oportuno refletir sobre as dimensões que esses aspectos podem ter no universo da saúde mental. No aspecto financeiro, quando ocorre o benefício, questiono se é uma renda supervisionada e associada a melhores condições de vida, moradia, escolaridade e profissionalização tanto quando possível a essas pessoas. Espera-se que essas interdições, quando ocorrem, não estejam associadas somente a benefícios financeiros dos familiares/cuidadores, mas que, acima de tudo, preservem sempre o aspecto ético da clínica (benefício clínico ao usuário) e o direito jurídico da reversibilidade

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para as referidas interdições, caso contrário poderão ser um severo agravante clínico e um prejuízo aos direitos dos usuários. Especula-se que poderão ser inúmeras as repercussões emocionais e legais que possam ter as interdições na vida dessas pessoas. Questiono se, neste aspecto, ainda estamos no período da história clássica, tão bem abordado por Foucault (1997) na “História da Loucura na Idade Clássica” quando o “louco” não possuía direito algum. Essas interdições, quando não associadas ao aspecto ético da clínica, em minha opinião, não são compatíveis com os novos referenciais para a saúde mental, quais sejam: para os usuários e aos seus familiares uma educação e uma prática em saúde mental que auxiliem o usuário na construção de condições para uma nova subjetivação de autonomia e cidadania e não a de exclusão. Princípios fundamentais na educação popular, pois que deseja ser emancipatória.  Você pode falar das suas rotinas no momento atual?  No momento estou preocupada com a saúde de minha mãe. Faz alguns dias que não consigo dormir e ando agitada. Esse benefício que eu recebo me ajuda muito porque não consigo trabalhar. E posso ajudar em casa nas despesas. Estudei muito, mas não consigo permanecer nos empregos por algumas paranoias que com o tempo surgem. Uma vez fui trabalhar no hospital e fiquei 15 dias, após me demitiram. Eu não consigo controlar alguns pensamentos, as vezes eu caminho o dia inteiro na rua sem rumo para pensar na vida e me distrair. O meu psicólogo me sugeriu fazer algum curso pra ocupar a mente e me distrair e estou pensando na possibilidade de voltar a estudar ou fazer um curso bom. Eu sei que não tenho saúde mental para trabalhar, mas vou me esforçar para ocupar a mente e melhorar minha situação mental. Eu já passei por muita coisa e se não fosse a ajuda do CAPS eu estaria muito mal. Quero voltar a jogar futebol, pois me ajuda mito a me distrair e passar o tempo, mas devagar as coisas vão acontecendo. Análise e interpretação dos dados Que luta atroz em sua mente na tentativa de sentir-se útil e ao mesmo tempo conviver com seu mundo interno, “Estudei muito, mas não consigo permanecer nos empregos por algumas paranoias que com o tempo surgem”. Quase todas as pessoas lhe parecem hostis o tempo todo. Em seu relato aparecem momentos de resignação: viver com benefício social

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para ajudar nas despesas da casa. Não estará, assim, reafirmando a narrativa de ser “doente mental”? Além deste componente psicótico (distorção da realidade) em sua mente, questiono o quanto essa sensação de fracasso possa estar associada a um componente depressivo, com uma intensidade melancólica, de morte, “Eu sei que não tenho saúde mental para trabalhar, mas vou me esforçar para ocupar a mente e melhorar minha situação mental.” Melancolia reforça seu isolamento e descrédito no mundo. Como vencê-la? Com mais medicação? Ou talvez a ouvindo mais, dando-lhe mais espaço para falar de suas inseguranças, oferecendo-lhe atividades (T.O.) que lhe permitam aumentar sua confiança, sua interação com o mundo? Será o esporte uma ponte para transitar, transpor desse mundo hostil para um mundo onde possa sentir-se uma pessoa conectada com a vida? Esta disposição para o esporte aparece com frequência em suas respostas, em seus projetos de atividades, “Quero voltar a jogar futebol, pois me ajuda muito a me distrair e passar o tempo, mas devagar as coisas vão acontecendo.” Em uma de suas respostas, fala da falta que lhe fazia a atividade do futebol associada às atividades da terapia ocupacional. Também busca um estímulo em seu psicólogo para se motivar e não desistir, tentar novamente. E esse parece ser um componente importante no retrato social de sua vida, um eterno conflito entre tentar e desistir.  Intervenção pontual da equipe Os profissionais de diferentes áreas que a acompanham no “grupo operativo- terapêutico”: assistência social, enfermagem, medicina psiquiátrica tiveram uma discussão informal do caso e após houve uma troca de opinião com o psicólogo que a acompanha em seu atendimento individual. Nesses encontros ficou evidenciada a preocupação com “algum tipo de interdição psicológica” que a usuária do CAPS II pudesse estar tendo e que estivesse interferindo em seu tratamento, pois, apesar de seu esforço, constantemente não persistia nas atividades. O grupo de profissionais questionou as repercussões que esta possível “interdição” pudesse estar provocando em sua vida, possivelmente aumentando seu componente paranoide em relação às suas atividades. Ficou combinado de comum acordo fazer um estudo com todos os envolvidos, incluindo a avaliação dos aspectos jurídicos para poder manter seu benefício e reverter sua interdição plena (dado obtido em seu prontuário), se possível para parcial ou retirá-la completamente, desde que não implicasse risco de perder o benefício.

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Após as preocupações com esses aspectos da “interdição,” ocorreram dois encontros dos profissionais que participam das atividades grupais com os familiares e com a usuária.  No primeiro encontro: Após essa discussão entre os profissionais sobre as suas limitações, ocorreu um encontro destes/as com a usuária do serviço de saúde mental com o seu pai, com sua madrasta, a quem ela chama de mãe. Durante esse encontro, verificou-se uma intensa preocupação dos pais com a limitação da filha para o trabalho, associado ao seu futuro e ao medo de perder o benefício. Benefício relacionado pelos pais e pela usuária do serviço à sua interdição plena e ao medo de que ao fazer qualquer atividade possa perdê-lo. Cabe lembrar que em várias ocasiões ela destacou o fato de sentir-se vigiada, “Estudei muito, mas não consigo permanecer nos empregos por algumas paranoias que com o tempo surgem”. Questiono novamente a respeito do quanto o seu delírio de ser vigiada em suas atividades possa ter relação com o benefício, com a interdição plena. Os profissionais manifestaram aos pais suas preocupações com as repercussões da interdição plena da filha e o quanto isso pudesse estar interferindo no seu tratamento, pois estavam acompanhando suas frequentes tentativas de se cuidar mais, tornar-se mais independente e suas frequentes dificuldades que vinham sempre acompanhadas de frustração e irritação. Sugeriu-se um período para que os familiares pudessem buscar junto à advogada que os orienta informações e esclarecimentos das possibilidades da retirada da interdição ou de uma interdição parcial, sem que isso representasse o risco de perder o benefício. Após um período de diálogo entre todos os presentes, encerrou-se o encontro fazendo-se uma referência escrita para os pais levarem à advogada, resumindo as preocupações da equipe em relação à interdição plena. A seguir combinou-se a realização de uma nova reunião.  No segundo encontro: O segundo encontro contou com os mesmos profissionais da reunião anterior, a usuária do serviço e os seus pais. Logo no início da reunião, todos ficaram surpresos pela postura do pai que se posicionou de forma categórica e definitiva de que a questão da interdição da filha não seria mais discutida, pois não queria de forma alguma modificar a interdição plena. Fez-se um silêncio total. O pai prosseguiu afirmando que ele e a esposa tinham muita preocupação com a incapacidade da filha de se cuidar, o que vinha desde a infância e que certamente a

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acompanharia por toda vida, afirmando que ela em muitos momentos entra em crise e se torna agressiva. Considero que neste momento evidencia-se a disposição familiar (pais) em ver e tratar a filha não só como uma pessoa limitada, mas mais ainda como alguém com invalidez total e permanente. Observou-se que durante a fala do pai a mãe fazia discretos gestos de concordância quando ele olhava para ela. A filha permanecia de cabeça baixa, reforçando para os profissionais o quanto ela poderia estar vivenciando um sentimento de medo. Frente ao silêncio de todos, o pai novamente repetia os mesmos argumentos anteriores. Adequadamente, a equipe ponderou ao pai, à sua esposa e à filha o respeito por sua posição, mas destacou o fato de ela permanecer interditada judicialmente não a tornava inválida para as suas atividades, inclusive cuidar de si. Da mesma forma, a equipe ponderou se era possível contar com auxílio dos pais para estimular a filha em suas atividades. A resposta dos pais foi sim, que eles iriam auxiliar a filha em suas atividades. Nesse momento, o clima tenso que envolvia a todos foi reduzindo de intensidade, pois com a intervenção da equipe aliviou-se o intenso medo do pai de perder o benefício. A partir desse momento passou-se a discutir como poderia ser o apoio da família para que a filha pudesse ser estimulada a se cuidar mais. Notou-se que com o clima mais ameno a mãe demonstrou intenso interesse de participar de atividades junto com a filha, tais como caminhadas, idas à academia, organizar sua alimentação. O pai acompanhava a tudo dando o seu consentimento de forma implícita. Ao final, perguntou-se à usuária qual era sua motivação atual, ao que ela respondeu que estava necessitando desse apoio da família para se manter com persistência em suas atividades. Nesse momento, a usuária do serviço estava com a cabeça levantada, olhando a todos e sorridente. Faz-se indispensável entender o medo desses pais e o quanto esse sentimento acabava interditando a usuária, ou seja, incapacitando a filha inclusive para cuidar de si. Isso se justifica pelo medo de perder o benefício que a filha vem recebendo. Destaco o esforço da equipe para contar com a ajuda do pai, evitando uma relação de hostilidade que só tenderia a prejudicar o tratamento. Os profissionais que atuam no grupo, e em especial em seu acompanhamento psicológico individual, poderão construir melhores condições para em outro momento tratar a referida questão da “interdição plena” da usuária. Interdição que pode estar relacionada a outros aspectos que não só o financeiro, embora este tenha sido o enfoque prioritário no momento.

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Este exemplo pontual de intervenção da equipe mostra o quanto é complexa a construção do processo de autonomia aos usuários do serviço de saúde mental e reforça a necessidade indispensável das diferentes contribuições educativas, em especial da participação dos familiares na discussão e na construção da autonomia possível à pessoa com sofrimento mental crônico. Ressalto o quanto a sobrecarga do CAPS II, já destacada anteriormente, especialmente pelo número excessivo de usuários, dificulta essas intervenções interdisciplinares, tão necessárias a todos os usuários do grupo para que sejam mais frequentes e assim possam propiciar mais benefícios a outros usuários do “grupo operativo- terapêutico” e aos seus familiares na construção da autonomia dos usuários e a sua menor dependência ao CAPS II, e por que não à sua própria família. Enfatizo que, para que ocorra uma maior participação dos familiares no tratamento dos usuário de um serviço de saúde mental, é indispensável uma maior disponibilidade dos profissionais da saúde. Neste estudo, em especial, dos profissionais que atuam no CAPS II, associada a sua motivação e preparo para uma efetiva atuação interdisciplinar.

 Qual a sua opinião sobre o encontro da equipe com os seus familiares na sua presença?  “Meus pais vieram conversar com a equipe do CAPS, isso me ajudou muito, pois eu estava muito parada sem praticar alguma atividade física ou ocupar a cabeça me distraindo. Meus pais estão me dando muita atenção e acompanhando meu tratamento, eles cuidam e ajudam na minha saúde. Estão me incentivando a continuar o tratamento. Eu prático caminhada três vezes por semana durante quarenta minutos e uma vez por semana jogo futebol no meu bairro isso me ajuda a relaxar o corpo e a mente. Meu pai me incentiva a praticar esportes, cuida do meu remédio e minha alimentação, a mãe cuida de mim em todos os sentidos sempre me lembrando de que preciso me cuidar melhor (banho, dentes, limpeza, organização). Estou vindo a pé ao CAPS e volto de ônibus. Minha mãe está cuidando muito de minha alimentação. Antes eu me servia bastante e agora me sirvo o suficiente, conforme a nutricionista me explicou. A alteração da medicação está me deixando mais aliviada, diminuindo um pouco a paranoia. Quando eu pratico futebol nós nos distraímos, conversamos e praticamos exercícios. Me faz muito bem conversar com os amigos para ocupar a cabeça”.

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Análise e interpretação dos dados Concluo que a postura de evitar confronto com o pai a respeito da interdição da filha foi positiva na medida em que ele e a esposa estão sendo mais participativos e estimuladores nas atividades da filha, “Meu pai me incentiva a praticar esportes, cuida do meu remédio e minha alimentação, a mãe cuida de mim em todos os sentidos, sempre me lembrando de que preciso me cuidar melhor.” Ressalto um detalhe a respeito do pai: ele foi desportista de destaque na década de 60 e 70 jogando futebol profissional em várias equipes do interior do estado. Destaco que, naquele período, os atletas eram mal remunerados, sendo este fato uma possível justificativa ao padrão modesto da família. Também considero que tal detalhe a respeito do pai possa estar relacionado à disposição da filha por atividades esportivas em um processo de identificação com as práticas esportivas do pai. Especialmente considerando que ela perdeu a mãe muito cedo, evitando fazer maiores referências a mesma durante suas entrevistas. A participação da madrasta, a quem ela chama de mãe, parece ser bastante intensa neste atual período, pois se aposentou e em suas palavras, “deseja aproximar-se mais da filha”, “Minha mãe está cuidando muito de minha alimentação. Antes eu me servia bastante e agora me sirvo o suficiente, conforme a nutricionista me explicou.” Estaria anteriormente mais afastada da filha? Que papel a madrasta tem em sua vida? São questões que poderão ser respondidas ao longo de seu tratamento, robustecendo a problemática de quão decisiva pode ser a presença dos familiares no tratamento do usuário dos serviços de saúde mental. Considero que a construção da presença efetiva dos familiares leva tempo e exige da equipe um preparo para que esta aproximação não se torne fonte de desentendimento entre os envolvidos, inviabilizando assim o tratamento. Evidencio neste momento a viabilidade da intervenção em equipe interdisciplinar e o profissionalismo das pessoas envolvidas para trabalharem de forma integrada e integradora, abrindo mão das frequentes disputas pela hegemonia de determinada categoria profissional. Essas disputas não beneficiam o usuário do serviço e impedem que o trabalho possa ocorrer de forma integrada, podendo cronificar-se em uma forma fragmentada de atuação. Esse tipo de intervenção durante o transcorrer das entrevistas lembra algumas características presentes na pesquisa-ação.  Atualmente participa de atividades fora do CAPSII?

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 Fomos na casa de Auto Mutuo Ajuda (AMA) e assistimos um filme no qual cada “paciente” falou um pouco da sua participação. Estou participando para me distrair um pouco e fazer amizades. São realizadas diversas atividades para ocupar a mente. Gosto muito de ir lá, os profissionais ajudam como voluntários e desenvolvem atividades. Eu gosto dos filmes e tomar chimarrão nas férias vou participar da casa. Vou convidar meu pai e mãe para irem comigo durante as férias no CAPS e na casa AMA. Estou praticando futebol e caminhada. Caminhada duas vezes por semana e o futebol uma vez por semana. A casa AMA me convidou para jogar no estádio do São Luiz futebol. Um evento em defesa da saúde da mulher. Representei o CAPS II e a casa AMA. Foi o prefeito e a mulher. O locutor... (cita o nome de um locutor esportivo), o fotografo... (cita o nome do fotógrafo de um jornal local) e algumas autoridades. Tinha água e lanche. As mulheres jogaram contra os homens. Foi muita gente. 4x2 para os homens e eu joguei de lateral direita. Eu nunca tinha jogado no São Luiz e foi muito bom. A juíza pediu um minuto de silencio em memória das vítimas da Chapecoense espero poder participar mais vezes. Análise e interpretação dos dados Em sua entrevista, a usuária mostra sua satisfação em participar das atividades junto à casa AMA, “Gosto muito de ir lá, os profissionais ajudam como voluntários e desenvolvem atividades. Eu gosto dos filmes e tomar chimarrão nas férias vou participar da casa”, o que pode estar relacionada à possibilidade de estar participando efetivamente de atividades na comunidade. Demonstrou durante seu relato uma expressão de alegria, o que não lhe é habitual, ao relatar os detalhes do evento, as autoridades presentes. “A casa AMA me convidou para jogar no estádio do São Luiz futebol. Um evento em defesa da saúde da mulher.” É oportuno destacar o carácter simbólico que pode ter para ela o evento dedicado à saúde da mulher. Este tema, embora não mencionado por ela em suas entrevistas, motiva uma expectativa de que este aspecto possa ser trabalhado em seu tratamento, isto é, a necessidade de dar voz a ela em seus aspectos de gênero, o que certamente será essencial em seu processo de subjetivação.

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Saliento novamente como a sobrecarga dos profissionais do CAPS59 II pelo número excessivo de usuários em atendimento dificulta um atendimento mais individualizado e com mais trocas entre os participantes da equipe interdisciplinar, sejam em seus atendimentos individuais ou em grupo. Este tipo de atendimento que deveria ser oferecidos a todos os usuários dos serviços de saúde mental, especialmente às pessoas com psicose crônica e consideradas mais vulneráveis, certamente contribuiria mais para a construção de sua autonomia possível e a sua menor dependência à instituição e a uma excessiva medicalização. Muitas vezes na saúde mental a equipe “interdisciplinar”, ao responsabilizar de forma generalizada o papel do médico psiquiatra pela medicalização, gera conflitos intermináveis entre as diferentes áreas, abrindo mão do papel crítico e transformador que a equipe junto com os usuários e seus familiares poderiam exercer sobre o poder público e suas políticas que, prioritariamente e de forma velada, valorizam os aspectos quantitativos (número de atendimentos) geralmente associados a interesses eleitoreiros em detrimento da qualidade do atendimento em um contexto emancipatório. Abrir mão dos anseios por um modelo idealizado em saúde mental e buscar a participação indispensável da comunidade local não exime o poder público de suas responsabilidades legais. Apesar das dificuldades para melhor auxiliar os usuários com psicose crônica na construção de sua autonomia e cidadania, considero que esse movimento extramuros em direção a casa AMA relatado pela usuária se constitui numa importante contribuição educativa e emancipatória, pois o serviço de saúde mental tem necessidade de buscar alternativas na comunidade local para auxiliar na construção de autonomia à pessoa com psicose crônica. . Saliento que o relato de satisfação da usuária do CAPS II em suas atividades na casa AMA é representativo de dezenas de usuários que estão fazendo esta caminhada em direção à comunidade. Assim pode estar se constituindo uma nova disposição para essas pessoas considerando que essas atividades podem ser regulares e duradoras. Esta aproximação com a casa AMA permite aos participantes dos grupos operativo-terapêuticos saírem para uma

59 Reafirmando Heidrich (2007) a respeito da sobrecarga do CAPS II: “o CAPS II deve destinar-se ao tratamento de 360 usuários, especialmente os com maior vulnerabilidade sócio familiar”. No momento o CAPS II da cidade de Ijuí está com mais de 1000 usuários. Entre tantos motivos, considero importante destacar que, no momento, não se tem um ambulatório de saúde mental funcionando em nossa cidade, para onde poderiam ser referenciados os usuários com menos vulnerabilidade e a dificuldade de referenciar os usuários, do CAPS II, estáveis em seus tratamentos para a rede básica, são fatores que certamente estão relacionados com a atual sobrecarga deste serviço especializado junto à comunidade local. (HEIDRICH 2007).

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atividade fora do CAPS II (“extramuros”) contribuindo assim para suas verdadeiras inserções na comunidade, local onde se espera que ocorra o respeito a suas diferenças e onde possam ocorrer suas inserções sociais, mantendo, sempre que necessário, seus referenciais de apoio na rede pública de saúde. Uma motivação atual dos usuários do CAPS II é a participação em atividades fora, isto é, a sua motivação para organizar atividades extramuros. Esta motivação tem facilitado a aproximação com a casa AMA (Auto Mutua Ajuda) de Ijuí, instituição ligada ao projeto Italiano “FARE INSIEME”60 (Fazer Juntos) do serviço de saúde mental de Trento, na Itália, que se constitui numa alternativa de acolhimento dos usuários do CAPS II na comunidade. Neste modelo de atendimento não existe a participação hierárquica. Estão todos no mesmo nível: os colaboradores voluntários que podem ser profissionais da saúde mental, os usuários e seus familiares. Constitui-se em um local de encontro para o livre exercício para diferentes atividades ocupacionais e atividades culturais (oficinas). A participação de todos os envolvidos com os grupos terapêuticos mostra o quanto é possível uma prática emancipatória por meio da educação popular em saúde mental, especialmente ajudando a criar nos usuários o desejo para atividades fora do CAPS II. Essas atividades são indispensáveis para a construção da autonomia e cidadania de seus participantes. Destaco que durante a entrevista houve um bate-papo informal com o pai da usuária com a finalidade de uma aproximação maior dele com o serviço. Durante essa conversa, várias vezes houve interrupção pela usuária para convidar o pai a ir com ela à casa AMA, sendo sempre afirmativa a sua resposta. O pai, em vários momentos, mostrava-se satisfeito ao ouvir as atividades relatadas pela filha. Ressalto, para finalizar, a importância de o pai ouvir o relato que evidenciou a capacidade da filha em realizar atividades, não podendo e não devendo ser tratada por ele como uma pessoa inválida. Reforço a importância da equipe não ter entrado em conflito com os familiares, tornando-os aliados no processo de tratamento da filha. Evidencia-se assim a necessidade de os profissionais de saúde mental estarem preparados para lidar com os intensos conflitos familiares que afloram nesses atendimentos. Procuro ao longo desta entrevista destacar algumas disposições que constituem uma história da vida de uma pessoa que, sei de antemão, tratar-se de uma pessoa com psicose

60FARE INSIEME: Neste modelo de atendimento não existe a participação hierárquica, mas sim estão todos no mesmo nível: os colaboradores voluntários, que podem ser profissionais da saúde mental e de outras atividades profissionais, os usuários, e seus familiares. Sendo, assim, um local de encontro para o livre exercício de diferentes atividades ocupacionais, e atividades culturais (oficinas).

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crônica, e que me despertou o desejo de entrevistá-la por saber muito pouco a seu respeito, especialmente dos temas disposicionais ao longo de sua vida. Em determinados momentos da entrevista, após a prévia e devida discussão com os profissionais da equipe, puderam ocorrer intervenções necessárias do entrevistador e de outros profissionais da instituição com a entrevistada e/ou seus familiares. Nesse momento a entrevista se aproximou de uma pesquisa-ação pela possibilidade de o pesquisador fazer intervenções ao longo do processo. Fica evidenciada ao longo desta entrevista a importância de um espaço para as contribuições educativas em saúde mental e, em especial, a participação dos familiares e o relato de suas dificuldades na participação do processo da autonomia possível às pessoas com sofrimento mental crônico, motivação para esta pesquisa no doutorado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ/RS.  Reflexão crítica sobre a entrevista na busca de construção do retrato sociológico da usuária do CAPS II: Chama atenção em sua fala as frequentes e repetitivas desorganizações de seu pensamento e as frequentes repetições de uma narrativa em que enfatiza o papel de “doente mental”, reforçado por aspectos familiares. Logo a seguir passa a falar da importância do CAPS II em sua vida. Será na esperança de encontrar outro modelo familiar onde possa ser ouvida e entendida em seus desejos de autonomia? Mesmo com alguns momentos de uma adequada intervenção interdisciplinar, tem-se a ideia de que a usuária não consegue apropriar-se dessas vivências tornando-as experiências de vida e assim levar para fora desses “muros” os benefícios destas terapias individuais ou em grupo. Portanto, sua vida permanece fragmentada. Que influência pode ter para o seu tratamento o fato de estar oficialmente interditada? Reputo que o atual processo terapêutico com essa usuária do serviço de saúde mental, apesar de todas as boas motivações dos envolvidos, pode estar viciado em sua origem, na qual a “interdição plena” desta pessoa faz parte da perversa influência de um sistema de produção e consumo que tudo deve transformar em ganhos financeiros, inclusive a “doença mental”. Porém não desconsidero que outros fatores associados ao seu processo de interdição possam ainda não terem sido abordados. Reforço que todas essas influências devem ser consideradas para a construção de um retrato sociológico, e também este poderá ser utilizado para a construção de um plano terapêutico personalizado e que ao longo do tempo poderá efetivamente contribuir na vida

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dessas pessoas. Lahire 61(2004) refere-se ao indivíduo ter diferentes “disposições” em momentos diferentes as quais não necessitam ter coerência entre si. Busco assim registrar as diferentes disposições presentes na vida desta usuária do CAPS II para permitir uma maior aproximação e entendimento da complexidade que envolve a vida de uma pessoa com psicose crônica, usuária do CAPS II de Ijuí. A nossa entrevistada apresenta diferentes disposições simultaneamente sem conseguir estabelecer prioridades para as mesmas, o que associo à própria fragmentação de seu pensamento tão presente em seu quadro clínico, ou a uma intensa repressão de seus conflitos mais íntimos. Isso dificulta a sua própria subjetivação, dificuldade que procurei, em parte, descrever ao longo desta entrevista na busca da construção de uma história de vida. É oportuno dar continuidade à abordagem destas complexas questões familiares através do próximo tema, qual seja, o processo educativo em saúde mental. Para tal utilizo inicialmente as ideias de Bauman (2001) quando o autor enfatiza a necessidade do aprendizado para a convivência com a diferença, pois do contrário corre-se o risco da autoperpetuação das normalizações classificatórias e a incapacidade de conviver com a pluralidade dos seres humanos.

A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade dos seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam [...] (BAUMAN, 2001, p.135).

O autor refere-se ao risco que se corre pelo não aprendizado da convivência com as diferenças em um amplo contexto social, mas penso que o mesmo pode ser aplicado em nosso estudo no que se refere aos conflitos familiares associados à doença mental. A emancipação é indispensável para o exercício da cidadania. Pode-se afirmar, usando as palavras de Loureiro (2009), que cidadania é o direito a ter direitos, além do dever de lutar por estes. Não é só isso, cidadania também representa a necessidade de reconhecimento de direitos e deveres. 5.5 CIDADANIA Como construir a cidadania aos usuários de um serviço de saúde mental? Que associações já existem na construção deste processo em saúde mental?

61 Segundo Lahire (2004), ao organizar uma lista das disposições de um indivíduo, fica claro que cada um “é o produto de uma mistura bastante sutil de disposições variadas” e que essas disposições “não mantém nenhum vínculo de necessidade lógica entre si”. (LAHIRE, 2004, p. 40).

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Na sociedade descrita por Bauman (2001) como “modernidade líquida”, que opção a pessoa tem que não a de se tornar mercadoria? Nessa modernidade líquida não se consegue pegar a liberdade e assim se permanece no mundo das coisas, dos objetos. Portanto impedida de constituir-se como pessoa emancipada, de conquistar sua cidadania. Na saúde mental a construção da cidadania é viabilizada inicialmente nas próprias associações de usuários.

Alguns estudos demostram que o envolvimento da família tem papel fundamental para o sucesso do tratamento do sujeito psicótico. Inúmeras são as associações de familiares e usuários que se organizam e se engajam na reivindicação por direitos à assistência digna, à integração social, ao resgate da cidadania. Contudo, este envolvimento é um processo recente, se considerarmos que, há cerca de uma década, o único modelo de atendimento era o manicômio. (SANTOS 2000, p. 52)

Nas palavras de Santos (2000), a família tem papel fundamental nesse processo como primeiro local de acolhimento do excluído em saúde mental. Destaca também que existem várias associações que lutam por esses espaços de resgate dos direito à assistência digna, à integração social, ao resgaste da cidadania. A seguir cito exemplos de associações que contribuem para o resgate da cidadania à pessoa com psicose crônica, usuária dos serviços de saúde mental. A Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRAE)62 foi fundada no ano de 2002 na cidade de São Paulo por um grupo de familiares, pessoas com Esquizofrenia, e seus amigos. A referida associação busca realizar ações em que seus membros através do diálogo entre todos os envolvidos exerçam seus direitos no processo de construção de sua cidadania. Ao acessar à página da ABRAE, encontramos no item seus direitos as seguintes leis: Lei 8.080 do ano de 1990, que regulamenta o funcionamento do Sistema Único de Saúde, e a Lei 10.216 do ano de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Estas e outras informações podem ser encontradas no seu site e em seu home Page, informações que visam contribuir para combater o estigma da “doença mental”. São notícias, informações, vídeos e diversas outras formas de interação entre seus participantes.

62ABRAE: Entre as principais atividades, desenvolve: grupos de apoio para familiares e para portadores; encontros públicos para conversar sobre questões relacionadas à esquizofrenia com a participação de profissionais, familiares e portadores; estratégias de informação por meio de informativos, boletins, materiais impressos e um site (www.abrebrasil.org.br).

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Destaco também, o projeto FÊNIX63 pró-saúde mental, associação sem fins lucrativos. Fundada em São Paulo em 1997, o projeto Fênix destina-se a dar apoio às pessoas com transtornos mentais e aos seus familiares, principalmente por meio dos grupos de autoajuda. No estado do Rio Grande do Sul existe a Associação Gaúcha de Familiares de Pacientes Esquizofrênicos (AGAFAPE), 64criada pelo engajamento dos familiares no apoio à saúde mental. A criação desta associação teve o apoio do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Sua fundação foi em 24 de junho de 1992 como sociedade civil filantrópica, sem fins lucrativos, partidários, raciais ou religiosos. Na cidade de Ijuí-RS, a casa de Auto Mutua Ajuda (AMA) pode ser considerada uma organização civil, sem fins lucrativos, que se ocupa da defesa das pessoas com transtornos mentais por meio de voluntários de diferentes níveis sociais e das diferentes áreas profissionais. A Associação de Saúde Mental de Ijuí (ASSAMI),65 que é uma associação civil de direito privado, sem fins lucrativos, sem distinção de raça, credo e cor, foi fundada em 28 de janeiro de 2008, com sede na rua Ernesto Alves n° 399, e foro na cidade de Ijuí-RS. Ela representa os interesses dos usuários, familiares, profissionais e apoiadores da Saúde Mental do Município de Ijuí, com tempo e duração indeterminados e de âmbito local. São objetivos da Associação:  Alterar a cultura existente frente ao sofrimento psíquico, rompendo com estigmas;  Propiciar a quem desejar espaços para assumir responsabilidades e PROTAGONIZAR;  Colocar à disposição oportunidades para melhorar a qualidade de vida de todos;  Compartilhar de experiências individuais e coletivas;  Identificar nos problemas possibilidades de mudança e que é possível ser feliz;  Crer que mudanças são possíveis;  Reconhecer que cada um tem o seu tempo e saber ver o tempo como um aliado;  Favorecer a humanização dos serviços e atuar na perspectiva da promoção da saúde. Outro local onde os usuários, familiares e profissionais da saúde podem buscar informações sobre a política nacional de saúde mental e sua legislação específica é no portal do Ministério da Saúde 66.

63 O site do projeto FÊNIX é www.fenix.org.br 64 AGAFAPE, seu site: http://www.agafape.org.br. 65 ASSAMI, seu site: http://redehumanizasus.net/5471-a-associacao-de-saude-mental-de-ijui-assami-um-espaco- coletivo-de-fazer-juntosespaco-de-co-gestao-co-participacao-co-r/ 66 Portal do Ministério da Saúde: http://portalms.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-mental

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Todos esses exemplos mostram a preocupação da sociedade civil e do Ministério da Saúde em organizarem-se e propiciarem condições para a defesa dos direitos de todas as pessoas portadoras de transtornos mentais e a consequente construção de sua cidadania. Neste capítulo, pôde-se observar também o quanto foi possível entender que não basta a inclusão das pessoas com sofrimento mental crônico, mas que se pode viabilizar um espaço de construção da autonomia possível para um melhor cuidar de si. Examinou-se inicialmente a autonomia como um processo libertador presente nas respostas dos usuários e de seus familiares, inicialmente agrupadas no tema 1, conhecendo a enfermidade mental, considerado como pré-requisito para conhecerem-se a si mesmos e as próprias limitações com as quais vão conviver e que também podem ser consideradas pré-requisitos para o tema 2, os elementos de construção da autonomia. Essas respostas foram analisadas com auxílio da análise de conteúdo de Bardin (2011). Em um segundo momento examinou-se a autonomia como um processo para o cuidar de si, por meio do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II, Ijuí/ RS. Esses processos analisados sempre levaram em consideração as diferentes contribuições educativas, especialmente a participação dos familiares das pessoas em tratamento. Todo este processo permitiu responder a problemática inicial, isto é a viabilidade do grupo como um espaço para a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia, especialmente para um melhor cuidar de si em um processo emancipatório, princípio básico da educação popular. Todos esses elementos analisados nos permitem encaminhar as considerações finais, o que certamente não as coloca como conclusões finais, mas fazem um convite para novos estudos e análises na área da saúde mental, especialmente sobre as contribuições educativas ao entendimento das pessoas com esquizofrenia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reputo que após o estudo sobre a contribuição do grupo para a inclusão social dos usuários de um serviço de saúde mental (Amaral 2013), criaram-se as condições para a presente pesquisa estudar a viabilidade do grupo como espaço para as diferentes contribuições educativas no processo de autonomia possível a essas pessoas e a relação com a participação de seus familiares no contexto de uma educação popular e emancipatória. Questiona-se que sonhos, que realidades são possíveis na saúde mental da comunidade local, na cidade de Ijuí/R.S. O espaço do “grupo operativo-terapêutico” ajuda a construir na saúde mental do município de Ijuí é uma realidade em que os usuários e seus familiares fazem uma generosa troca a respeito de suas dificuldades, de suas esperanças, de seus sonhos de serem felizes. Nos diferentes temas abordados, percebe-se que na maioria das pessoas com esquizofrenia a capacidade de simbolizar suas emoções, vivenciar suas ações e também de adquirir novos conhecimentos devem ser constantemente estimuladas, mesmo quando a capacidade cognitiva dessas pessoas possa ter algum tipo de comprometimento. As limitações cognitivas quando presentes nas pessoas com esquizofrenia não foram desconsideradas, pois houve efetivo estímulo para circularem em diferentes territórios culturais. Cada um recebia diferentes estímulos para o enriquecimento de seu mundo interno. Constatou-se que estas pessoas não têm indicação de “adestramento” (produção-consumo), mas sim a concepção de uma produção criativa em suas atividades, assim como a possibilidade de estudo e de trabalho como direito e como meio de conquista da sua liberdade para o cuidado de si. A partir dessa efetiva prática de participação que envolve os usuários, familiares e profissionais da saúde mental, constata-se que o empoderamento dos usuários e de seus familiares ocorreu na troca de informações e vivências entre todos os envolvidos no grupo e fez parte deste processo da construção da autonomia do usuário em relação ao CAPS II e por que não em relação ao seu próprio familiar. Considero que, para tanto, foi indispensável o empoderamento dos usuários de suas atuais vivências no “grupo operativo-terapêutico” no CAPS II, na cidade de Ijui/R.S, tornando assim essas experiências integrantes de suas vidas. Ao longo deste estudo evidenciou-se o quanto o movimento da reforma psiquiátrica, como os demais movimentos sociais, deve estar sempre reatualizando seus objetivos sob o risco de deixar de estar em sintonia com as efetivas prioridades de seus participantes. No atual momento da saúde mental no Brasil, referenciando-se na RAPS, faz-se necessário além da

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desisnstitucionalização uma verdadeira inclusão social das pessoas com esquizofrenia. Esta inclusão social só ocorrerá quando as pessoas com doença mental tiverem um local de vez e voz para as suas verdadeiras necessidades e assim conquistarem sua emancipação, sua autonomia possível para um melhor cuidar de si. Em nossa realidade vê-se que não basta a desinstitucionalização do “doente mental” e que as propostas de tratamento na comunidade se referenciem apenas em modelos interrogatórios, baseados no normal e anormal, prioritariamente associados à medicalização. O esperado é que as alternativas de tratamento possam oferecer outros tipos de atenção, isto é, que a pessoa possa ser prioritariamente ouvida, não só em suas queixas, mas em que contexto familiar ocorreu seu adoecimento, quais seus desejos e suas possibilidades de realização. Neste último cenário, constrói-se o modelo biopsicossocial. Portanto o grupo também deve ser considerado como um efetivo espaço de enfrentamento ao tradicional modelo biomédico de assistência à saúde. A análise das respostas dos usuários deste serviço evidenciam também o importante papel do grupo nas tarefas de ensino e aprendizagem para auxiliar o usuário do CAPS II a notar quando o outro não está bem, mas também reconhecer-se no outro. É indispensável que o usuário reconheça quando não está bem para que possa buscar ajuda, prevenindo crises e o seu consequente sofrimento, bem como o de seu familiar. O entendimento de não estar bem pode ser o início do processo libertador do estigma de inválido e assim poder melhor cuidar de si e na medida do possível prevenir o seu adoecimento. O melhor cuidar de si é indispensável para seu melhor convívio social e para a construção se sua autonomia possível. Em relação aos efeitos na convivência e na interação social da pessoa com esquizofrenia com os outros participantes do grupo identifica-se na maioria das respostas o aprendizado de um novo papel ao conviver com os colegas de grupo, o que a ajuda a superar uma dificuldade básica que é a de se relacionar com os demais e o seu consequente isolamento, tão presente nesta doença mental. Inserir-se em uma atividade no grupo é essencial, pois permite ao usuário as condições para o desenvolvimento de suas potencialidades, de sua valorização pessoal e para satisfação das necessidades básicas de socialização. O registro das falas dos familiares está associada a uma aprendizagem de compreensão para com seu familiar enfermo, o que permite a ambos refazerem laços familiares. O usuário deixa de ser excluído e passa a sentir-se pertencente a sua família. Observa-se em suas falas o quanto os familiares são tocados por vivências compartilhadas com os outros participantes dos grupos operativo-terapêuticos. Esta experiência de ensino e aprendizagem é de intensa

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utilidade para os familiares reconhecerem e compreenderem a enfermidade mental assim como reconhecer os mínimos sinais de reagudização em seu familiar enfermo e de como lidar com ela. Percebe-se assim que a família passa a ser um ambiente acolhedor a essas pessoas e de respeito às diferenças, fatores indispensáveis a cada um no seu processo de emancipação. Os familiares em suas respostas deixam transparecer de forma objetiva a visão de um forte isolamento dos usuários previamente às suas participações no grupo. Os familiares, ao participarem no “grupo operativo-terapêutico”, perceberam uma significativa capacidade de comunicação dos usuários, elemento indispensável para formação de novos vínculos. Também perceberam o quanto as pessoas com esquizofrenia conseguem exercitar a capacidade de diálogo no próprio grupo. A presença dos familiares no grupo com os usuários permite um novo processo de comunicação, baseado numa visão mais real entre ambos: usuário e familiar. Em especial, permite aos usuários refazerem laços familiares e assim construírem novas subjetivações, que não a” do louco, excluído”. Será que cabe aos profissionais da saúde mental uma velada culpa quando deixam os familiares afastados das alternativas de tratamento de seu familiar enfermo? Será que inconscientemente não se está reforçando a culpa do familiar no adoecimento de seu familiar com “doença mental”? Este é o momento de uma corajosa reflexão, pois o convívio dos profissionais da saúde mental com a pessoa com esquizofrenia é limitado enquanto o do familiar é diário e contínuo. Essas reflexões reforçam a convivência de que a tarefa educativa não se limita aos usuários, mas de forma efetiva e contínua deve estar presente junto aos familiares e por que não aos próprios profissionais da saúde. Conclui-se que a participação de todos no processo de ensino e aprendizagem em saúde mental é indispensável no processo de libertação para o cuidado de si à pessoa com esquizofrenia. Ao longo do processo educativo, a opinião dos familiares reforça a constatação de que o grupo mostra-se efetivo em sua tarefa educativa, especialmente ao ajudar os usuários na presença de seus familiares a construírem e vivenciarem seus processos de libertação e de cuidados de si. Além da inclusão social da pessoa com sofrimento mental crônico, inicialmente em sua família e após na própria comunidade, é necessário que se evidencie o quanto de autonomia essas pessoas estão conquistando nesse processo de retorno à sua família e à sua comunidade. Constatou-se ao longo desta investigação o quanto é possível estimular uma participação mais efetiva das famílias no tratamento em saúde mental na comunidade de Ijuí, em especial por meio de diferentes contribuições educativas no espaço do grupo, associadas a

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uma metodologia de educação popular em saúde. Essas contribuições educativas estão sendo decisivas na construção da autonomia possível a estas pessoas com esquizofrenia. Por outro lado, percebe-se que, a par deste processo de construção de autonomia possível aos usuários para o cuidar de si no espaço do “grupo operativo-terapêutico”, persistem práticas baseadas prioritariamente na medicalização, o que pode ser evidenciado pelo uso excessivo de medicação e as frequentes intoxicações medicamentosas. Este fenômeno evidencia o quanto ainda existe uma forte presença do modelo biomédico na saúde mental de nossa comunidade o qual baseia-se na valorização excessiva da medicação. Para este fenômeno ser estudado de forma mais consistente, é indispensável que haja um adequado registro e acompanhamento dos casos de intoxicações medicamentosas no momento do seus atendimentos pelos órgãos de saúde do município, do estado e da União. Estar atento a estes fenômenos que ocorrem em nossa comunidade é uma prioridade na construção da emancipação dos usuários e na sua menor dependência ao serviço de saúde mental, assim como perceber as resistências que ocorrem em diferentes contextos sociofamiliares para a emancipação e um melhor cuidar de si. Essas resistências aparecem ao longo do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II e que também estão associadas a um maior ou menor grau de dependência ao seu meio familiar. No retrato sociológico de uma usuária do serviço de saúde mental evidencia-se a importância dos familiares terem um espaço de aprendizagem sobre o adoecimento e o tratamento dos seus familiares enfermos para poderem ajudar em seu cotidiano familiar na construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia. Destaca-se que este é um processo lento e que requer adequadas articulações e intervenções interdisciplinares com os diferentes profissionais envolvidos no tratamento. Contudo, faz-se necessário destacar que o retrato sociológico de uma usuária do CAPS II mostra que o “grupo operativo-terapêutico” não dispensa as diferentes intervenções interdisciplinares. Também não dispensa o tratamento individual de muitos de seus participantes, bem como, em alguns momentos, de seus próprios familiares. Isso reforça que os diferentes tratamentos em saúde mental não são excludentes, mas sim complementares. Reconhece-se assim que há uma necessidade indispensável de contribuições educativas na saúde mental. E que há muito por fazer neste processo educativo, especialmente que deve existir um interesse relevante na participação familiar nas questões de saúde mental, no momento atual da reforma psiquiátrica no Brasil, em especial na comunidade de Ijuí. Faz- se necessário reconhecer a produção nacional como indicativa da necessidade de diálogo das famílias, dos profissionais e dos serviços em saúde mental. É também uma oportunidade de se

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articular uma rede de interlocução para despertar mais questionamentos e alternativas para as práticas atuais com as famílias. Este é o momento adequado para destacar algumas constatações que o espaço do “grupo operativo-terapêutico” gerou neste estudo:  Que as pessoas com sofrimento mental crônico (esquizofrenia) têm desejos;  Que é possível aproximar esses desejos de suas realidades atuais;  Que é possível ter-se uma ideia das dificuldades que os usuários do CAPS II enfrentam no seu dia-a-dia;  Que em algum momento de seus relatos pode ser indispensável algum tipo de intervenção interdisciplinar, com eles ou com seus familiares. O grupo constituiu-se como um espaço efetivo para a liberdade de diálogo e, a partir deste, para a construção do processo emancipatório, bem como a apropriação de sua capacidade em cuidar-se. Porém, neste processo, o olhar e as intervenções terapêuticas voltadas para o individual serão sempre indispensáveis, especialmente em um contexto interdisciplinar. Responde-se assim à problemática estudada de que o “grupo operativo-terapêutico” do CAPS II, na cidade de Ijuí constitui-se num espaço efetivo para a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia por meio das diferentes contribuições educativas em saúde mental e, em especial, a participação dos familiares que são fundamentais na construção da autonomia de seus familiares enfermos. Autonomia, na visão de Freire (2013) por meio de uma educação popular e emancipatória, portanto libertadora, e na interpretação de Foucault (1984) a partir do cuidado de si. Se esta escrita não puder ser compartilhada com a comunidade, tornando-se testemunho de que uma outra realidade é possível, estaremos sempre em um país distante onde a tristeza e a inércia predominam. Na lembrança do verso de Fernando Pessoa encontro motivação para crer que o compartilhar sempre é possível: “Mas colhe rosas”. Porque não colhê-las. Encerro esta escrita com os versos de da música Por Quem Os Sinos Dobram: “Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem, que eu sei que você pode mais”.

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APÊNDICES:

APÊNDICE A - Usuários: Categoria 1 – empatia com o sofrimento mental do outro

CATEGORIA 01: Capacidade de percepção Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários sobre sua da doença mental no outro Usuários participação no grupo e sua relação com os por parte dos usuários do referenciais teóricos. grupo:

O usuário relata que a participação do grupo o U.6 – “Ajudou porque antes Conhecer ajudou a conhecer quando alguém está em não conhecia nada sobre (conversar/identificar); sofrimento mental. Fica evidente que este isto, sobre a doença, aqui aprendizado fez-se a partir do diálogo/vínculos começou a ver conversar com os outros usuários. Portanto uma educação com as pessoas e aprender a dialógica, que permite a apropriação da realidade. identificar”. Freire (2013), Pichon-Rivière (2007, 2009). Dá condições ao usuário cuidar de si. Foucault (2014) .

O usuário observa uma associação entre doença U.7 – “Normalmente a Observar(aparência/ mental e aparência (papeis). Nesta resposta pode pessoa com problema doença); estar uma ideia de adoecimento e de descuidado psíquico tem a ver com sua (papeis). Pichon-Rivière (2009) aparência”.

O quanto a convivência/vínculos entre os usuários facilita o reconhecimento(realidade) de quando U.11 – “De tanto vir no alguém não está bem no grupo, em especial porque CAPS, conviver eu já Conviver suas reuniões são semanais. Pichon-Rivière conheço, vejo de longe”. (vejo/conheço); (2007,2009) A conscientização é uma categoria freireana que evidencia o processo de formação de uma consciência crítica em relação aos fenômenos da realidade objetiva. Freire (2017) U.12 – “Quando comecei no grupo dava para notar que os Destaca-se a capacidade do usuário perceber pacientes estavam mais Mudar mudanças na aparência dos colegas, ao longo de debilitados com o tempo e vi (debilitados/melhoras); sua participação no grupo (papeis)-Pichon-Rivière, suas melhoras”. 2009). A transformação social passa necessariamente pelo desenvolvimento coletivo de uma consciência crítica sobre o real. Freire (2016,2017).

Este usuário destaca a participação dos profissionais, em seu aprendizado (vínculos) de U.21 – “Ouvindo as Entender entendimento sobre o adoecimento mental. Pichon- explicações dos profissionais (explicações/ Rivière (2007) aprendeu a entender melhor profissionais). Este não é um modelo de educação bancária, mas as coisas” dialógica, não hierarquizada. Freire (2017). As intervenções dos profissionais ocorrem de acordo com as necessidades dos usuários.

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APÊNDICE B - Familiares: Categoria 1 – empatia com o sofrimento mental do outro CATEGORIA 01: Capacidade de percepção Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares sobre da doença mental no familiares. sua participação no grupo outro por parte dos familiares:

F.1 – “Pela maneira de O familiar mostra, nesta resposta, sua intensa agir, de se portar parece Perceber(necessidades/carê afetividade (vínculo) em relação a seu familiar muitas vezes que eles nos ncia); enfermo e também o seu aprendizado de perceber olham dizendo: precisamos mudanças (papeis-realidade) no comportamento, de amor, carinho, nos afetos do usuário, permitindo uma atitude de compreensão, não só de compreensão, de apoio nesses momentos através remédios”. do diálogo. Pichon-Rivère (2007, 2009)) Para Freire (2016), conscientização está associada ao tema da liberdade e da libertação

F.2 – “A convivência com Pela convivência este modelo de aprendizagem as pessoas ensinou a agir Conviver (aprendizado/iden (da realidade) permite identificar precocemente os de forma certa nas tificação); problemas que possam estar ocorrendo aos situações delicadas” usuários e possibilitar intervenções adequadas por parte de seus familiares Pichon Rivière (2009). Já Freire (2016) estimula o empoderamento das pessoas (usuários e familiares).

Estas intervenções estimulam os familiares a F.3 – “Nos ajudou no aprenderem a ouvir (relação=vínculo) e serem sentido de podermos ouvir Ouvir (opinião/ liberdade); mais solidários com seu familiar enfermo Pichon- a opinião de cada paciente, Rivière (2007). Especialmente em seu direito de onde eles conseguem ter ser ouvido. Para Freire(2013) a importância do sua liberdade de silêncio no espaço da comunicação é fundamental. expressão”

O reconhecimento da mãe pelo que passou com F.6 – “Pelo que passou Mudar o filho doente (realidade), e do quanto o grupo com o filho o grupo a (passou/melhora); ajudou seu familiar enfermo nas mudanças de ajudou pela própria melhora Pichon-Rivière (2009). Para Freire melhora do filho”. (2016): “Não basta incluir é preciso emancipar”.

O familiar mostra sua intensa afetividade em relação ao familiar enfermo, que acompanha de F.11 – “De acompanhar forma regular (vínculo) em seu tratamento, e meu marido nos encontros e também o seu aprendizado de perceber dos outros pacientes mudanças(realidade) no comportamento, nos falarem a respeito do Acompanhar afetos do usuário, permitindo uma atitude de mesmo (“problema”) e de (problema/dificuldade); compreensão, de apoio nesses momentos através ver que às vezes não são do diálogo. Pichon-Rivière (2007,2009) A fala iguais, mas passam pelas deste familiar pode estar associada ao desejo de mesmas dificuldades”. “ser mais” Freire (2013,2017).

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APÊNDICE C - Usuários: Categoria 2-percepção do sofrimento mental

CATEGORIA 02 Capacidade de percepção de seu próprio Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários sofrimento mental no grupo Usuários. sobre sua participação no grupo

Percebe-se a capacidade do usuário notar quando não está bem (apreensão da U.1 – “Noto que quando estou Notar (dificuldade/quieto); realidade) Pichon-Rivière (2009). O que lhe com dificuldade de me permite um melhor conhecimento de sua expressar com as pessoas é enfermidade, e a possível prevenção das porque não estou bem, fico crises. Poder cuidar de si. Foucault (2014) muito quieto distante” Para Freire(2017) humanização e desumanização são possibilidades dos homens como seres inconclusos.

U.2 – “O grupo ajudou a ficar Este usuário fala das mudanças que vêm mais forte, entender melhor as Entender (forte/melhor); ocorrendo com ele. Destaca-se o seu coisas” entendimento (aprendizagem da realidade), que está ficando mais forte. Picho-Rivière (2009). Isso viabiliza um melhor cuidar de si. Foucault (2014). Para Freire(2017), a auto desvalia é outra características a ser enfrentada pelos “oprimidos”.

U.14 – “Conversando sobre o O usuário destaca o diálogo/vínculo sofrimento deles e o meu e Dialogar (sofrimento/ (conversando com eles) como algo assim me ajudou a me entender entendimento); indispensável para entender-se melhor. melhor”. Pichon-Rivière (2007) “A saúde mental consiste neste processo, em que se realiza a aprendizagem da realidade através do confronto, manejo e solução integradora de conflito”. (PICHON-RIVIÈRE,2009, p.12).

A importância da participação dos U.15 –“Pelas conversas no profissionais, através de suas falas, grupo, o que os profissionais Conversar especialmente quando solicitados pelo falam”. (grupo/profissionais); grupo. Tem-se, assim, uma educação não hierarquizada, portanto uma educação não bancária Freire (2013). Cria-se uma relação vincular. Pichon-Rivière (2007) U.17 – “O grupo se preocupa em mostrar quando não estou Preocupar O auxílio do grupo para mostrar quando o bem, eles notam a diferença” (mostrar/diferença). usuário não está bem. Isto é indispensável para seu melhor cuidar de si. Foucault (2014).

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APÊNDICE D - Familiares: Categoria 2 – percepção do sofrimento mental

CATEGORIA 02: Percepção da doença mental em seu ‘familiar” Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares sobre após sua participação no familiares. sua participação no grupo grupo.

F.19 – “Sim aprendeu a compreender, a aceitar e a O familiar refere-se a uma aceitação, associada conviver com a doença da Conviver a uma compreensão (da realidade) sobre a filha”. (compreensão/aceitação); doença de seu familiar.) Portanto uma compreensão que reforça a importância da participação familiar no tratamento. Criação de Vínculos. Pichon-Rivière (2009,2007) F.11 – “Quando ele está assim passa até para mim, Que intenso vínculo de solidariedade é possível porque eu vejo nos olhos, no observar neste familiar que acompanha os Compreender modo de agir, na tristeza diferentes sentimentos de seu familiar enfermo. (solidaria/sofrimento); que se abate nele, isto é uma Por outro lado, o quanto é importante este coisa que dói até mesmo familiar não se sentir sozinho e ter um espaço para aquele que ama e está para ser ouvido. Pichon-Rivière (2007) perto”.

A importância do grupo para ajudar o familiar a F.10 – “Antes de eu Aceitar aceitar esta dupla carga: o seu sofrimento e o de participar do grupo não (participação/problema); seu familiar enfermo. O que permite mudanças aceitava a doença dele, hoje de papeis (aprendizagem da realidade). “O eu aceito o problema dele”. doente mental, então, é o símbolo e

depositário do aqui e agora de sua estrutura

social”. PICHON-RIVIÈRE (2009, p.40).

A importância da aprendizagem do familiar, por F.2 – “Ensinou a perceber meio de sua participação no grupo contrasta quando ele está diferente, Perceber com a educação habitual, convencional e sua maneira de agir”. (diferente/atitude); hierarquizada. Freire (2013)

Certamente este entendimento será levado para o cotidiano familiar. “Onde quer que estejam F.1 – “Me ajudou a ser mais Entender (limitação/doença). estes, oprimidos, o ato de amor está em paciente, porque agora comprometer-se com sua causa. A causa de entendo que ele têm sua libertação. Mas este compromisso, limitações e que ele não está porque é amoroso é dialógico”. doente porque quer”. (FREIRE,2017, p.111).

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APÊNDICE E - Usuários: Categoria 3 – capacidade de lidar com estigma e preconceito CATEGORIA 03- Lidando com estigma e Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários sobre sua preconceito ao dos usuários. participação no grupo frequentarem ao grupo:

U.7 – “Eu me sentia inferior Observa-se uma evolução neste usuário, pois, aos demais, pessoas. Tinha Sentir (inferior/pessoas); inicialmente, sentia-se (verbo no tempo passado) medo de tudo” inferior, discriminado pelas pessoas, com medo de tudo. Para Pichon-Rivière (2009, p.57): “A loucura é a expressão de nossa incapacidade para suporta e elaborar um montante determinado de sofrimento”.

U.1 – “Eu aceitava que tinha A identificação/vínculo com as pessoas do grupo que me tratar de alguma certamente contribuí para que o usuário saia de seu Aceitar coisa, mas não aceitava a isolamento e passe a aceitar sua doença. Pichon- (doença/tratamento); doença que eu tinha”. Rivère (2009). “Como posso dialogar, se me fecho

a contribuição dos outros, que jamais reconheço, e

até me sinto ofendido com ela?” (FREIRE, 2017, p.112).

O quanto este usuário vivenciou no grupo um local U.6 – “No começo me de resistência ao habitual processo de incomodava com o que as normalização, que não respeita as diferenças. E pessoas pensavam que CAPS Incomodar que tanto o incomodava. (vivência de papeis) era lugar de louco, que não (CAPS II/louco); Pichon-Rivière (2009). A consciência de seres fazia nada.”. condicionados, mas não determinados para Freire (2016) é indispensável, para o posicionamento dos seres no mundo.

U.9 – “Antes do tratamento Ao falar de suas perdas, este usuário retrata uma era amigo das pessoas. Hoje realidade que ainda teima em persistir em nossos o chamam de louco porque dias, ou seja, o da discriminação ao diferente. E Perder (amigos/respeito) vou ao CAPS. Sente-se uma associação do CAPS como um local de acusado, maltratado”. loucos. (vivência de realidade) Pichon Rivière (2009). Portanto o processo educativo deve considerar esta realidade.

A identificação com as pessoas do grupo certamente contribuiu para que o usuário saísse de U.11 – “Antes de fazer Ter seu isolamento e pudesse ter uma nova tratamento também tinha (preconceito/loucos). subjetivação, que não a do “louco” excluído. O que preconceito, como a considero indispensável para a construção de sua sociedade tem dos loucos”. autonomia. (criação de vínculos) Pichon-Rivière (2007)

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APÊNDICE F - Familiares: Categoria 3 – capacidade de lidar com estigma e preconceito CATEGORIA 3: Os familiares, quando questionados sobre sentir-se ou não afetados pelo Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares sobre sua preconceito ou estigma da dos familiares. participação no grupo doença mental ao frequentar o grupo terapêutico: F.4 – “Como as pessoas se referem ao CAPS II, que as Referenciar “De tanto ouvirem de si mesmos que são que se tratam no CAPS II são (CAPS II/loucos); incapazes, que não sabem nada, que não podem loucas”. saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade”. (FREIRE, 2017, p.69)

F.6 – “Fica incomodada Neste ambiente familiar muitos conflitos se fazem Abandonar quando a familiar larga seu presentes, especialmente quando há negação ou (incomodada/família); doente mental”. desconhecimento da doença por parte dos familiares. “Discriminação no ambiente familiar” (PICHON-RIVIÈRE, 2009, p. 78).

F.8 – “Não é ele que quer ser Aprender Para este familiar existe o preconceito à pessoa assim, a família tem que (suportar/doença); com enfermidade mental e de forma significativa aprender a suportar”. está presente em seu cotidiano, causando-lhe um

duplo sofrimento: lidar com a “doença mental” e

com o preconceito que a acompanha. F.9 – “Não queria muito participar, foi com diálogo, Participar resistência para este usuário buscar ajuda fica conversa e conselho, ele (diálogo/vergonha); evidenciada pelas palavras de seu familiar o tinha muita vergonha do que quanto o preconceito está presente, nos dias atuais, os outros iriam pensar dele, na própria comunidade. “Qualquer discriminação é mas enfim está em imoral e lutar contra ela é um dever por mais que tratamento”. se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar”.(FREIRE,2013,p.59)

F.10 – “Nunca me afetou e o que os outros pensam não me O intenso gesto de solidariedade do familiar interessa, o importante é eu e (vínculo familiar) não desconsidera que exista meu marido, e o que eu posso Afetar preconceito, porém a sua posição firme e solidária fazer para contribuir com o (outros/marido); constitui-se num exemplo para os demais usuários bem estar e saúde dele”. e familiares participantes do grupo. (Pichon- Rivière,2007)

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APÊNDICE G - Usuários: Categoria 4 – confiabilidade no outro

Análise das respostas dos usuários sobre sua CATEGORIA 04 Usuários Unidades de registro: participação no grupo. Confiabilidade no outro dos usuários

U.1 – “Sentia-se apático e se Sentir (apático/isolava- Nesta resposta do usuários predomina o verbo no isolava, não queria conversa se); tempo passado ao se referir a um sentimento com ninguém”. comum, qual seja o de isolamento. Conclui-se que o grupo contribuiu nessa mudança ao ajudá-lo a sair de seu isolamento. Aprendizagem de mudanças Pichon-Rivière (2009)

Percebe-se neste usuário que, apesar de sua Restringir participação regular no grupo, pois os de menor U.5- “Tenho relações mais (relações/limitadas); tempo de participação estão há dois anos, suas limitadas”. relações permanecem limitadas. Evidencia-se o quanto este processo de socialização tem o seu tempo individual. Aprendizagem da realidade Pichon-Rivière (2009)

As mudança no grupo não ocorrem de forma U.7 – “Hoje a minha família isoladas o que reforça a importância da e eu acreditamos mais no Acreditar participação familiar. “um nível psicossocial: tratamento, pois estamos (família/tratamento); refere-se as relações do paciente com cada um dos vendo mais progresso”. outros do grupo familiar”. Pichon-Rivière (2009,

p.68) U.14 – “Minha relação era boa, mas de longe não tinha Entender (isolamento/ No grupo, inicialmente, evidencia-se a inquietação, muitos amigos, estava em depressão); associada com o sentimento de “singularidade” depressão forte, ninguém me (sentir-se diferente), ocorrendo-lhe com a evolução entendia, o grupo me ajudou o sentimento de estar sendo melhor entendido através das conversas eu me pelos seus colegas. (criação de vínculos) Pichon- sinto melhor”. Rivière (2007)

Com ajuda do grupo ocorreu a mudança de sentir- se menos isolado, mais em contato com o mundo e U.21 – “Era ruim, não Conseguir descreve o processo como uma experiência de conseguia conservar as (amizades/trabalho). acolhimento. Cuidar de si, na visão de Foucault amizades no trabalho, (2014) está associado com o cuidado do outro. ninguém queria trabalhar Portanto o grupo pode contribuir muito nesta junto”. prática interativa: “bem vindos para a raça humana”.

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APÊNDICE H - Familiares: Categoria 4 – confiabilidade no outro

CATEGORIA 04 Familiares Confiabilidade no outro Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares sobre sua dos familiares participação no grupo.

F.1 – “Não queria ver Segregar O isolamento deste usuário está associado à sua ninguém, se escondia no (esconder/quarto) visão distorcida da realidade. Isto implica quarto”. considerar que esta visão possa ser refeita através da aprendizagem em um processo de comunicação com alguém igual e que pode entendê-lo e ser entendido por ele. Aprendizagem de mudanças, novos vínculos Pichon-Rivière (2009,2007) F.8 – “Consegue falar com A resposta deste familiar permite inferir que no família, antes do tratamento grupo criaram-se condições para a aprendizagem causava medo aos familiares, Causar de mudanças: ver o mundo de maneira menos com expressões de ódio, com (medo/agressividade) hostil, facilitando, assim, a construção de vínculos alguns momentos de mais saudáveis. Aprendizagem de mudanças. agressividade”. Pichon-Rivière (2009)

O isolamento deste usuário levou a seu isolamento

F.11 – “Nunca foi muito de em sua própria família, com um importante Conviver ter amigos, sempre foi calado empobrecimento de seu mundo interno. No grupo, (isolado/só); e eram pouca às vezes de ir criam-se condições para a aprendizagem da ou receber alguém lá em realidade: ver o mundo de maneira menos hostil, casa”. facilitando a construção de vínculos mais saudáveis. Pichon-Rivière (2009,2007)

F.12 – “Depois que ele entrou Melhorar O familiar reconhece o importante papel de no grupo melhorou o (relacionamentos/ socialização propiciado pelo grupo. Portanto uma relacionamento com os amigos); individualização no social. Esses novos vínculos amigos” são indispensáveis ao usuário no processo libertador de seu isolamento e para aprender a cuidar de si com a ajuda do outro. Foucault (2014)

.F.14 – “Antes muito fechado, muito agressivo O quanto este familiar reconhece o CAPS II, Ampliar vivia na rua com os como uma referência fora de casa para seu catadores, agora vai do CAPS (casa/ CAPSII) familiar enfermo. Formação de novos vínculos. II para casa e de casa para o Pichon-Rivière (2009,2007) CAPS II”.

202

APÊNDICE I - Usuários: Categoria 5 – socialização no ambiente familiar.

Categoria 05 – Socialização no Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários ambiente familiar: (usuários) Dos usuários sobre sua participação no grupo

O usuário reconhece o quanto seu U.1 – “Sempre gostei da família, adoecimento interferiu em seu mas devido à doença que eu não Desconhecer relacionamento familiar, associando com entendia, tive momentos de (doença/relacionamento); seu desconhecimento inicial sobre sua dificuldade no relacionamento doença. Aprendizagem da realidade. com os familiares” Pichon-Rivière (2009)

Para este usuário os familiares passam muito tempo fora e o deixavam isolado. Observa-se nesta resposta uma possível U.5 – “Sempre ficava sozinho Sentir dependência familiar para sua socialização, sem muito contato com (sozinho/isolado); o que reforça a necessidade da presença de familiares, trabalhavam fora”. seu familiar em seu tratamento. Necessidade de vínculos. Pichon-Rivière (2007)

U.7 –“Eu não tinha tanta Expressar liberdade para falar sobre o O usuário deixa claro que encontrou um (liberdade /tratamento); tratamento. Hoje consigo me espaço de fala, um lugar para ser ouvido, abrir mais”. especialmente sobre seu tratamento. Criação de vínculos. Pichon-Rivière (2007)

U.9 – “Antes o relacionamento Este usuário está refazendo laços familiares Distorcer era ruim, achava que o pai na medida em que se dá conta de que sua queria matá-lo. Hoje ele percebe (realidade/pai); visão de realidade estava distorcida. que isto não era verdade”. (aprendizagem da realidade). Pichon-

Rivière (2009). A presença do familiar junto ao “grupo operativo-terapêutico” com o usuário permite um novo processo de comunicação, baseado numa visão mais real entre ambos. (educação dialógica) Freire (2013)

U.10 – “Grupo ajuda, Constatar A reposta deste usuário mostra que o grupo (limitação/tratamento) não consegue ajudá-lo na melhora de seu conversando sobre o tratamento, relacionamento familiar. Portanto o grupo mas não ajuda no constitui-se um espaço importante no tratamento, mas deve estar atento aos relacionamento aspectos individuais de seus usuários. familiar(isolamento)”. Dificuldade para criar vínculos. Pichon- Rivière (2007)

203

APÊNDICE J - Familiares: Categoria 5 – socialização no ambiente familiar Categoria 5 – Socialização na Unidades de registro: Análise das respostas dos ambiente familiar: (familiares) Familiares familiares sobre sua participação no grupo

F.20 – “Não era bom! Havia muitos Constatar O familiar mostra em sua resposta desentendimentos e discussão com a (desentendimento/família) sobre o ambiente familiar o quanto família”! estava presente e aparece em seu registro a preocupação com a dificuldade de relacionamento, com seu familiar enfermo. “Discriminação familiar”. (PICHON-RIVIÈRE, 2009, p. 78).

F.19 – “Brigava, maltratava todos, Conviver Na fala deste familiar fica evidenciada queria matar a mãe. Era muito (violência/agressão) a sua sobrecarga para lidar com seu difícil de conviver”. familiar enfermo nas crises. Portanto uma das funções básicas do grupo deve ser propiciar ao usuário e a seu familiar a aprendizagem da prevenção das crises. Aprendizagem de mudanças. Pichon-Rivière (2009).

F.15 – “Ficava só deitado, se Isolar Nesta fala percebe-se a necessidade de isolava da família, fugia não gostava (deitado/fuga); um espaço para o familiar falar nas de sair”. situações concretas do seu dia-a-dia, com seu familiar enfermo e da aprendizagem de como lidar com tais situações.

O reconhecimento deste familiar na

função educativa do grupo para uma F.14 – “Grupo ajuda, antes era Mudar melhor convivência do usuário em agressivo, não havia conversa”. (agressivo/conversa); ambiente familiar. Este aprendizado

é baseado na convivência social no

próprio grupo. Aprendizagem de mudanças. Pichon-Rivière (2009).

O grupo propicia ao usuário esta F.1 – “Antes apático, se isolava, aprendizagem do cuidar de si, em não saia de casa, nem da própria Modificar diferentes situações, com frequente higiene pessoal cuidava, quarto todo (desarrumado/higiene). participação interdisciplinar dos desarrumado, parecia estar mal com profissionais que contribuem no o mundo”. processo de ensino e aprendizagem do

grupo. Cuidar de si. Foucault (2014)

204

APÊNDICE K - Usuários: Categoria 6 – capacidade de iniciativa em interações sociais CATEGORIA 06: Capacidade Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários de iniciativa em interações Usuários sobre sua participação no grupo sociais (usuários)

U.20 – “O grupo me ajudou a Conviver Na resposta deste usuário percebe-se sua conviver com as pessoas que (grupo/convivência); capacidade de aprendizagem para um melhor frequentam o CAPS”. convívio social. Esta condição pode ser indispensável na construção de sua autonomia (sua capacidade de fazer aprendizagem de mudanças). Pichon-Rivière (2009).

U.21 – “Melhorei bastante no O usuário se sente acolhido entre iguais, isto Aprender (amor/amigos); grupo, aprendi a ter uma vida lhe permite sair de seu isolamento, isto é, dar- normal, descobri o que é ter amor se conta de sua capacidade de relacionar-se entre amigos”. com os outros (amigos). Capacidade de criar vínculos. Pichon-Rivière (2007).

U.19 – “O grupo ajuda a conversar Nesta resposta evidencia-se uma relação de Conversar mais com as pessoas dando horizontalidade, na aprendizagem com o (conselho/colegas) conselho para o colega sobre o colega, diferente de uma educação bancária, tratamento”. em que os profissionais da saúde são os que sabem tudo. Cuidar de si é um processo que não exclui o outro Freire (2014)

Esta é a dificuldade maior para a pessoa com U.15 – “Hoje se aproxima mais das esquizofrenia poder aproximar-se mais do Mudar pessoas” outro, pois em seu ego tem uma visão (aproximacão/pessoas); assustadora do mundo externo. Portanto

estamos frente a uma importante mudança. Para Pichon Rivière (2009) a educação em saúde implica a aprendizagem de mudanças.

U.6 – “Bastante, antes não Aprender A consciência deste usuário das mudanças conversava com ninguém, não (sair/conversar). que lhe estão ocorrendo é indispensável para saia, se escondia, só dormia. Hoje se apropriar de suas vivências. Tem, assim, consegue sair bastante, conversa”. um aprendizado mais consistente e que lhe permite um real empoderamento de suas capacidades. Portanto, um processo de educação emancipatória. Freire (2016) estimula o empoderamento das pessoas (usuários e familiares).

205

APÊNDICE L - Familiares: Categoria 6 – capacidade de iniciativa em interações sociais CATEGORIA 6: Capacidade de iniciativa Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares em interações sociais Familiares sobre sua participação no grupo. (familiares)

F.1 – “Não queria ver Este familiar fala do isolamento prévio, algo ninguém, se escondia no Modificar intenso no comportamento habitual das quarto”. (escondia/mostrar-se); pessoas com a esquizofrenia, mas percebe- se que ocorreram mudanças pelo tempo verbal passado (queria, escondia). Para Pichon Rivière (2009) a educação em saúde implica a aprendizagem de mudanças

F.8 – “Consegue falar com Esta resposta mostra que o grupo funciona Conversar família, antes do tratamento como um espaço para a aprendizagem de (medo/conviver); causava medo aos familiares, mudanças: o usuário poder lidar melhor com expressões de ódio, com com sua agressividade, sair de seu alguns momentos de isolamento (socializar-se). Este é um agressividade”. empoderamento indispensável para sua emancipação. Pichon Rivière (2009)

F.10 – “Amigos se afastaram Assustar O quanto esse familiar pôde vivenciar um dele”. (afastar/amigos) intenso sofrimento ao perceber o afastamento dos amigos de seu familiar enfermo. Portanto, o familiar precisa de um espaço para compartilhar (criar vínculos) o seu sofrimento com outros familiares que o entendam. Pichon Rivière (2007)

Para este familiar ocorreu no grupo o F.12 – “Depois que ele entrou Melhorar processo educativo ao ajudar o usuário a no grupo melhorou o perceber a sua capacidade comunicativa em relacionamento com os (grupo/amigos); seu contexto social e também em seu amigos”. cotidiano familiar e, assim, sentir-se pertencente ao mundo. Lembro que não basta incluir é preciso ajudar os usuários na construção de sua autonomia. Freire (2013)

F11- Nunca foi muito de ter amigos, sempre foi calado e Será que este familiar percebe mudanças no Ser calado seu familiar enfermo, com ajuda do grupo. eram pouca às vezes de ir ou (Ir\receber amigos) Este isolamento é uma forte característica receber alguém lá em casa da pessoa com esquizofrenia. Portanto é necessário seu tempo para fazer mudanças. Aprendizagem da realidade. Pichon Rivière (2009)

206

APÊNDICE M - Usuários: Categoria 7 - tempo gasto com lar, trabalho, estudos

CATEGORIA 7: Tempo gasto Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários com lar, trabalho, estudos. usuários sobre sua participação no grupo (usuários)

U.1 – “Sim, voltei a estudar, Após voltar a estudar ele fala das melhores passei para 5ª série, hoje moro condições de vida, na medida em que passa a num sítio com minha irmã e Motivar (estudar/ocupação); ter um trabalho e que sente-se bem em estar trabalho bastante, é muito bom ocupado. O apoio familiar certamente estar ocupado”. contribuiu no aprendizado deste usuário estar mais confiante em si, podendo, assim, ter mais autonomia. Cuidar de si Foucault (2014)

Esta resposta evidencia o quanto é importante

U.3 – “Estando fora da crise, que o usuário saiba identifica quando não está Prevenir consegue realizar mais bem e consiga pedir ajuda, isto é, prevenir (crises/atividades); atividades”. suas crise. Isso foi citado anteriormente como

um pré-requisito para seu processo de emancipação. Aprendizagem da realidade. Pichon Rivière (2009).

Para este usuário o processo de U.6 – “Aumentou bastante, antes Conscientizar conscientização de como estava antes pode não fazia atividades domésticas. (vontade/atividades) ser considerado como uma condição Antes não tinha vontade, não tinha indispensável para dar-se conta, com a ajuda ânimo”. das atividades praticadas pelos colegas de grupo, de que ele pode tornar-se mais ativo, mais emancipado.

A resposta deste usuário evidencia uma forte associação entre fazer tarefas e sentir-se útil. U.7 – “Sim gosto muito das Não se pode esquecer que o familiar está Empoderar (tarefas/util); minhas tarefas, me sinto útil”. acompanhado neste aprendizado e poderá levá-lo para seu cotidiano familiar. O cuidar de si não ocorre no isolamento, mas com o outro. Freire (2014);

U.12 – “O grupo era no começo Sentir Com a ajuda do grupo terapêutico criam-se as mais triste e agora está mais (alegria/viver) condições necessárias para a aprendizagem alegre, transmite mais alegria, dá do reconhecimento de diferentes sentimentos mais vontade de viver e fazer as a este usuário. (“dá mais vontade de viver e coisas”. fazer as coisas”). Aprendizagem das mudanças. Pichon Rivière (2009).

207

APÊNDICE N - Familiares: Categoria 7 – tempo gasto com lar, trabalho, estudos

CATEGORIA 7: Tempo Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares gasto com lar, trabalho, Familiar sobre sua participação no grupo estudos. (familiar)

F.12 – “Sim é pouco, mas ele Começar A importância do familiar participar do começou a ter vontade, mesmo (ter vontade/fazer trabalhos) grupo está na possibilidade de ele deixar de pouco, em fazer trabalhos em ver o usuário pelo habitual processo de casa é limitada ainda, mas em normalização de nossa sociedade, como vista de antes é melhor”. um inválido. E assim ver sua capacidade de cuidar-se. Foucault (2014).

F.5 – “Hoje ele limpa a casa, Esta aprendizagem do familiar em relação Cuidar aquece sua própria às mudanças possíveis de seu familiar (casa/alimentação) alimentação”. enfermo lhe permite estimular para que esse processo continue em seu cotidiano familiar. Aprendizagem das mudanças. Pichon Rivière (2009).

F.8 – “O grupo não o ajudou, Percebe-se na resposta do familiar a Ajudar ausência de mudanças do usuário no grupo, ainda está parado nesta parte”. (grupo/inalterado); em relação à aprendizagem de poder cuidar-se mais, ter mais autonomia. Isto permite pensar o quanto o atendimento em grupo não deve dispensar a visão e a preocupação com o individual. Resistência as mudanças. Pichon Rivière (2009).

F.15 – “Muito pouco, Esta é uma característica da própria pessoa Permanecer com esquizofrenia a permanência por permanece ajudando pouco e (desmotivação/participação) longo tempo de sua desmotivação, mesmo assim quando é exigindo dos participantes a aprendizagem do quanto cada um tem seu próprio tempo solicitado de aprendizado. Resistência as mudanças Pichon Rivière (2009).

Esta aprendizagem do autocuidado, F.13 – “Hoje ele ajuda a fazer Aprender permite ao usuário um empoderamento de (atividades/autocuidado) as atividades em casa, por ex.: suas capacidades, que é indispensável para lavar sua própria roupa”. seu processo de autonomia possível. E ao familiar uma diminuição de sua sobrecarga. Freire (2013).

208

APÊNDICE O - Usuários: Categoria 8 – capacidade de autonomia

CATEGORIA 8: Capacidade de Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários autonomia. Usuário sobre sua participação no grupo U.20 – “Eu estou com mais Este usuário relata mudanças que podem vontade de fazer as coisas como, Sentir ser apropriadas por ele e tornarem-se (motivação/coisas); por exemplo: ir a jogos, igreja”. vivências de sua capacidade de fazer atividades. Consciência indispensável

para seu empoderamento. Aprendizagem das mudanças. Pichon Rivière (2009). Freire (2013).

A resposta do usuário mostra a U.21 – “Hoje se sente mais Acalmar importância que tem o processo de (paciência/atividade); tranquilo, mais calmo, antes não comunicação. Isto é, ser entendido em seu tempo para realizar suas atividades. tinha paciência para atividades”. Portanto o familiar também precisa fazer este aprendizado, que o tempo de entendimento e de execução de uma tarefa é diferente para seu familiar enfermo. Educação dialógica. Freire (2013)

U.22 – “Antes refere que tinha Será que este usuário está se referindo ao Regredir “antes de adoecer”, evidenciando, assim, mais atividades, hoje não sai mais (limitação/casa); uma percepção de que o adoecer lhe sozinha, a não ser para fazer trouxe severas limitações. Este aspecto de conscientização é indispensável para fazer compras perto de casa”. mudanças possíveis, especialmente no poder cuidar-se mais. Aprendizagem da realidade. Pichon Rivière (2009).

Esta resposta do usuário reforça o quanto Estacionar o grupo não dispensa atendimentos U.15 – “Pouca mudança”. (expectativa/mudança); particularizados do usuário e de seus

familiares para uma avaliação desta limitação, se possível por meio de intervenção interdisciplinar. Resistência as mudanças Pichon Rivière (2009).

U.14 – “Sim, estou feliz, é bom Estar Esta resposta surpreende pela intensidade fazer coisas novas”. (feliz/novidades); de sua emoção “estou feliz” associado ao

fazer coisa. Isto nos lembra: não basta incluir é preciso construir processos de emancipação. Freire (2013)

209

APÊNDICE P - Familiares: Categoria 8 – capacidade de autonomia

CATEGORIA 8: Capacidade de Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares autonomia(familiar) usuários sobre sua participação no grupo

F.2 – “Continua ajudando Esta resposta aparece com frequência, tanto raramente”. Estacionar por parte dos usuários, quanto dos (raramente/ajuda); familiares. Resistência as mudanças Pichon Rivière (2009). Reforça que o aspecto da construção da autonomia possível, do cuidar-se mais, é um processo continuo de aprendizagem para toda a vida

F.12 – “Depois que começou a Interessar (grupo/atividades); O grupo é representativo das diferenças, participar no grupo ficou mais pois tem participantes com uma mesma enfermidade, e que apresentam um nível de responsável, começou a ter mais aprendizado do cuidado de si, do ser mais interesse nas atividades”. responsável heterogêneo. Associo que isto está relacionado a um tempo de aprendizado diferente para cada um. Foucault (2014)

F.5 – “Hoje ele limpa a casa, Este familiar reconhece que houve Emancipar mudanças no aprendizado de seu familiar aquece sua própria alimentação”. (autonomia/ alimentação); enfermo, isto é, poder cuidar-se mais, especialmente em seu ambiente familiar. Portanto neste momento o grupo, em sua tarefa de ajudar os usuários a cuidarem mais de si, está sendo um espaço efetivo de ajuda. Aprendizagem das mudanças. Pichon Rivière (2009).

F.15 – “Muito pouco, permanece Esta resposta do familiar mostra a limitação ajudando pouco e mesmo assim Permanecer de mudanças do usuário. O quanto isto quando é solicitado”. (indiferente/solicitado); representa uma sobrecarga para o familiar, e a importância do grupo como um lugar onde ele possa falar de sua possível frustação, na expectativa de o enfermo poder ajudar mais. Resistência as mudanças Pichon Rivière (2009). F.11 – “Sim é pouco, mas ele começou a ter vontade, mesmo Há reconhecimento de que o processo do Iniciar pouco, em fazer trabalhos em casa usuário cuidar-se mais é lento e exige muito (vontade/motivação). é limitada ainda, mas em vista de de sua participação, inclusive para uma antes é melhor”. compreensão melhor do familiar. Aprendizagem das mudanças. Pichon Rivière (2009).

210

ANEXOS

ANEXO A - Termo de Ciência do Orientador

211

ANEXO B - Termo de consentimento livre e esclarecido de acordo com a resolução CNS 19696 -

212

ANEXO B1- Termo de consentimento livre e esclarecido de acordo com a resolução CNS 19696

213

ANEXO C - Autorização de pesquisa

214

ANEXO D - Termo de consentimento livre e esclarecido

215

ANEXO D1 - Termo de consentimento livre e esclarecido

216

ANEXO D2- Termo de consentimento livre e esclarecido

217

ANEXO E - Lei sobre a Rede de Atenção Psicossocial de Ijuí

LEI Nº 6519, DE 27 DE MARÇO DE 2017

Dispõe sobre a Rede de Atenção Psicossocial de Ijuí, e dá outras previdências

O Presidente da Câmara Municipal de Ijuí, Estado do Rio Grande do Sul. Faço saber que a Câmara de Vereadores decreta e eu promulgo a seguinte LEI:

Art. 1º - Compete à Rede de Atenção Psicossocial - RAPS - desenvolver a Política de Saúde Mental, com ênfase nas áreas de proteção, promoção, prevenção, assistência, reabilitação, ensino e pesquisa.

Parágrafo único. A rede de atenção psicossocial fundamenta-se nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde da universalidade e descentralização, bem como na integralidade na atenção, equidade, resolutividade, intersetorialidade, interdisciplinaridade, humanização na gestão, atenção e controle social.

Art. 2º - São diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial, conforme Portaria MS/GM nº 3.088/2011:

I - respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas;

II - promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde;

III - combate a estigmas e preconceitos;

IV - garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar;

V - atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas;

VI - diversificação das estratégias de cuidado;

VII - desenvolvimento de atividades no território, que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania;

VIII - desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos;

IX - ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares;

X - promoção de estratégias de educação permanente;

XI - desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular;

218

ANEXO E1 - Lei sobre a Rede de Atenção Psicossocial de Ijuí.

XII - organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado.

Art. 3º - São eixos estratégicos na implementação da RAPS, com a finalidade de promover serviços diferentes para as diferentes necessidades:

I - Eixo 1: Ampliação do acesso à rede de atenção integral à saúde mental;

II - Eixo 2: Qualificação da rede de atenção integral à saúde mental;

III - Eixo 3: Ações intersetoriais para reinserção social e reabilitação;

IV - Eixo 4: Ações de prevenção e de redução de danos.

Art. 4º - São atribuições da Rede de Atenção Psicossocial:

I - coordenar e integrar as ações e Serviços Municipais de Saúde Mental;

II - definir, juntamente com o Conselho Municipal de Saúde - COMUS, as prioridades e estratégias municipais em Saúde Mental;

III - participar do controle e fiscalização das ações e serviços públicos e privados na área da Saúde Mental;

IV - participar da edição de normas correlatas às ações e serviços previstos no inciso III, juntamente com o COMUS e em articulação com os gestores do SUS e a Câmara de Vereadores;

V - fomentar a pesquisa, o ensino, a política de educação permanente, visando à qualificação da atenção e da gestão no campo da saúde mental;

VI - potencializar ações coletivas voltadas à promoção de Saúde Mental;

VII - realizar vigilância epidemiológico-social;

VIII - promover o desenvolvimento de tecnologias em sua área de atuação;

IX - promover a ação integrada das instituições que compõem a rede de atenção psicossocial.

Art. 5º - São objetivos gerais da Rede de Atenção Psicossocial, conforme Portaria MS/GM nº 3.088/2011:

I - ampliar o acesso à atenção psicossocial da população em geral;

II - promover a vinculação das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção; e

219

ANEXO E2 - Lei sobre a Rede de Atenção Psicossocial de Ijuí.

III - garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências.

Art. 6º - São objetivos específicos da Rede de Atenção Psicossocial, conforme Portaria MS/GM nº 3.088/2011:

I - promover cuidados em saúde especialmente grupos mais vulneráveis, principalmente crianças, adolescentes, jovens, pessoas em situação de rua e populações indígenas;

II - prevenir o consumo e a dependência de crack, álcool e outras drogas;

III - reduzir danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras drogas;

IV - promover a reabilitação e a reinserção das pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas na sociedade, por meio do acesso ao trabalho, renda e moradia solidária;

V - promover mecanismos de formação permanente aos profissionais de saúde;

VI - desenvolver ações intersetoriais de prevenção e redução de danos em parceria com organizações governamentais e da sociedade civil;

VII - produzir e ofertar informações sobre direitos das pessoas, medidas de prevenção e cuidado e os serviços disponíveis na rede;

VIII - regular e organizar as demandas e os fluxos assistenciais da Rede de Atenção Psicossocial; e

IX - monitorar e avaliar a qualidade dos serviços através de indicadores de efetividade e resolutividade da atenção.

Art. 7º - A rede interinstitucional atuará pelo intermédio dos Serviços de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde e instituições governamentais, não governamentais e privadas.

Art. 8º - A Rede de Atenção Psicossocial é formada pelos seguintes componentes e seus respectivos pontos de atenção:

I - Atenção Básica em Saúde: Unidade básica de Saúde e Núcleo de Apoio a Saúde da Família;

II - Atenção Psicossocial Especializada: Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil, Centro de Atenção Psicossocial II - Colmeia, e Centro de Atenção Psicossocial AD álcool e drogas;

III - Atenção de Urgência e Emergência: SAMU 192, Pronto Socorro 24h em Hospital

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ANEXO E3 - Lei sobre a Rede de Atenção Psicossocial de Ijuí.

Geral e Unidade de Atendimento 24h da Secretaria Municipal da Saúde;

IV - Atenção Residencial de Caráter Transitório;

V - Atenção Hospitalar: Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral pelo SUS e Serviço Hospitalar de Referência de Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas;

VI - Estratégias de Desinstitucionalização: Programa de Volta pra Casa;

VII - Reabilitação Psicossocial: Casa de Auto Mútua Ajuda - Casa AMA - mantida pela Associação de Saúde Mental de Ijuí - ASSAMI.

Art. 9º - O Sistema Municipal de Saúde Mental será composto pelos serviços existentes e outros que poderão ser implantados de acordo com a necessidade da população.

Parágrafo único. São serviços atualmente existentes:

I - Centro de Atenção Psicossocial Infância e Juventude - CAPS Infanto-Juvenil, responsável pela organização da RAPS de Crianças e adolescentes até vinte e cinco (25) anos incompletos, para quem já é usuário do serviço;

II - Centro de Atenção Psicossocial para Adultos - CAPS II - Responsável pela organização da RAPS para a população de adultos com transtornos mentais, a partir dos dezoito (18) anos;

III - Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas - CAPS AD, responsável pela organização da RAPS para população adulta usuária de álcool e outras drogas.

Art. 10 - A Associação de Saúde Mental de Ijuí - ASSAMI - é reconhecida como parte integrante da Rede de Atenção Psicossocial de Ijuí.

Parágrafo único. A ASSAMI e a Casa de Auto Mútua Ajuda - Casa AMA - são instâncias de estímulo ao protagonismo de usuários, familiares, profissionais e apoiadores da comunidade por meio da metodologia do "fazer juntos".

Art. 11 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

IJUÍ/RS, EM VINTE E SETE (27) DE MARÇO DE 2017. Registre-se e Publique-se. Marildo Kronbauer, Presidente.

(https://leismunicipais.com.br/a1/rs/i/ijui/lei-ordinaria/2017/652/6519/lei-ordinaria-n-6519- 2017-dispoe-sobre-a-rede-de-atencao-psicossocial-de-ijui-e-da-outras-providencias) acessado em 15/03/2018.

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