Revista do Arquivo Público Mineiro Dossiê Revista do Arquivo Público Mineiro 73

Depositário de objetos e documentos de variada natureza que testemunham sobre alguns dos mais importantes autores contemporâneos de , Wander Melo Miranda Memória de papel o Acervo de Escritores Mineiros oferece espaço ao historiador e ao pesquisador literário para um trabalho interdisciplinar propício à reinvenção da memória. > Uma parábola de Murilo Rubião, guardada divulgar técnicas de investigação para o aprimoramento pesquisadores de várias partes do Brasil e do pinacoteca e mobiliário, compondo-se ainda de numa pasta que tem como etiqueta “Anotações antigas de estudos no campo cultural, artístico e literário. exterior, funciona como um museu vivo da literatura, manuscritos, fotografias e documentos diversos, tais para contos improváveis”, diz muito do trabalho do aberto ao público, especialmente alunos dos como correspondência, originais, primeiras edições, escritor e do pesquisador de seu acervo. O texto Situado no Campus Pampulha, no 3º andar da ensinos fundamental e médio, que, por meio de “marginália”, além de vasta documentação sobre a chama-se “Documento”. Biblioteca Central da UFMG, e ocupando uma visitas guiadas, podem entrar diretamente em contato crítica literária brasileira dos últimos 50 anos. São área de 900m2, o espaço do Acervo de Escritores com o ambiente de trabalho dos escritores e com o 4.637 livros e 3.101 periódicos, além de 4.205 Levou a vida inteira decifrando um documento. Mineiros foi concebido a partir de uma perspectiva processo da escrita literária. documentos. Destaque-se o conjunto de 45 cartas, Palavra por palavra. Cinquenta anos em cima museológica e cenográfica, recriando o ambiente cartões e telegramas de Mário de Andrade para a do documento. Um dia, alguém lhe diz: – Sabes de trabalho dos escritores. Inaugurado em 16 de A especificidade do projeto, ao tratar de autores escritora, no período de 1939 a 1945, resultado de que levaste a vida toda em cima deste papel, dezembro de 2003, é um local permanente de mineiros, pauta-se pela abordagem de questões locais uma fraterna amizade, como revela, ainda, a gravura em que estás velho e morrerás dentro em pouco. exposição, construído com o apoio do Fundo CT-Infra/ e nacionais, cujo raio de alcance, no entanto, expande- metal Mulher de braços erguidos (1945), de Portinari, O ancião olha o rosto no espelho, acaricia os Finep. Destacam-se, no Acervo, obras raras do se ao se articular com projetos similares, de nível que traz no verso a dedicatória “A minha querida amiga cabelos brancos. Pega no documento, sacode-o, período do modernismo brasileiro, valiosas coleções internacional. É o caso da Coleção Archives, da Allca/ Henriqueta Lisboa, esta lembrança do seu dia na rua e volta a decifrá-lo. de periódicos, de manuscritos e fotografias. Além do Unesco, voltada para a publicação de edições críticas Lopes Chaves/Mário de Andrade/S. Paulo, 11/II/45”. espaço reservado para exposição dos acervos, há uma de obras representativas da literatura latino-americana Esse e vários outros “documentos” fazem parte do área para o trabalho dos pesquisadores e bolsistas, e que, atualmente, tem entre seus colaboradores vários Fundo Murilo Rubião (1916-1991). Doado pela Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal com sala de reunião e infraestrutura operacional. membros do projeto Acervo de Escritores Mineiros. família em 1991, o acervo compõe-se de biblioteca, de Minas Gerais (www.ufmg.br/aem). Os acervos nele Sistema de iluminação, ventilação e segurança, pinacoteca, mobiliário do século XVIII e arquivo, guardados são fruto da generosidade de familiares dentro de padrões técnicos apropriados, garante a O apoio constante do CNPq e da Fundação de Amparo contendo originais de suas obras, vasta correspondência e amigos que doaram livros, manuscritos, fotos, conservação e preservação dos acervos. O Acervo de à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e o com escritores nacionais e estrangeiros, documentação quadros, mobiliário e objetos pessoais de Henriqueta Escritores Mineiros presta atendimento a visitantes e aporte financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos de ordem pessoal e profissional, fotografias, além Lisboa, Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior, Cyro pesquisadores e recepciona órgãos oficiais, culturais e (Finep) acrescentaram à generosidade dos doadores a de material relativo às inúmeras funções públicas dos Anjos, Abgar Renault, Octavio Dias Leite, Wander de imprensa, permitindo consultas no local, com acesso confiança institucional necessária para levar adiante desempenhadas pelo intelectual e escritor. Em Piroli, Fernando Sabino. Há ainda coleções especiais ao banco de dados da UFMG. um trabalho dessa natureza. A tarefa de organizar números, são 3.446 livros, 310 periódicos e 9.600 de Aníbal Machado, Alexandre Eulalio, José Oswaldo e preservar para as gerações futuras um patrimônio documentos. Relevante, além da biblioteca e de textos de Araújo, Valmiki Vilela Guimarães, Genevieve Naylor, Os pesquisadores que integram o projeto – docentes e valioso para a memória do país, no momento em que inéditos, é a coleção completa do Suplemento Ana Hatherly e José Maria Cançado. São cerca de 30 alunos – têm atuado no campo do trabalho arquivístico a informática vem substituir manuscritos literários Literário do Minas Gerais, do qual Murilo Rubião mil livros e 27 mil documentos. e da crítica genética, publicando textos acadêmicos e outros tipos de documento em papel, reforça a foi fundador e diretor. sobre o tema da pesquisa, coordenando edições necessidade de desenvolver, em todo o país, Os acervos estão alocados no Centro de Estudos críticas, participando de congressos e seminários no projetos similares. Fundo Oswaldo França Júnior (1936-1989). Doado Literários (CEL), órgão complementar da Faculdade país e no exterior, como forma de contribuir para o pela família em 1992, o acervo compõe-se de de Letras da UFMG, desde dezembro de 2007, tendo avanço dos estudos na área e de consolidar a memória biblioteca, pinacoteca, mobiliário, arquivo, originais, funcionado inicialmente como núcleo de pesquisa a literária no Brasil. Além da repercussão no meio Fundos do Acervo objetos pessoais, documentos audiovisuais (filmes, partir de agosto de 1989. O objetivo do CEL consiste universitário, a pesquisa tem obtido ampla acolhida nos vídeos, pôsteres), correspondência, fotografias, além de na captação, organização, preservação e pesquisa de meios de comunicação (jornal, rádio e televisão), o que Uma breve descrição dos diversos fundos que registros de sua vida profissional e literária. São 2.355 acervos literários, disponibilizando-os para consulta e comprova sua abrangência cultural e o reconhecimento compõem o Acervo de Escritores Mineiros serve de livros, 119 periódicos, 3.100 documentos, dentre eles estudos de pesquisadores e da comunidade em geral. da sua importância pela sociedade. amostra da sua importância. o manuscrito de um romance inédito. Como ex-oficial Visa ainda a promover pesquisas de literatura brasileira da Aeronáutica, cassado pelo golpe militar de 1964, e de outras literaturas, segundo perspectivas de ordem O espaço de guarda e exposição do material, Fundo Henriqueta Lisboa (1901-1985). Doado pela no arquivo do autor de Jorge, um brasileiro (1967), cultural e interdisciplinar, bem como desenvolver e além de atender em excelentes condições família em 1988, compreende biblioteca, arquivo, encontra-se toda a documentação referente à cassação.

74 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê Wander Melo Miranda | Memória de papel | 75 Retrato de Gustavo Capanema (Pitangui, MG, 1900 – , Fotografia de desenho com retrato de Mário de Andrade Retrato de Carlos Drummond de Andrade (Itabira, MG, 1902 – RJ, 1985) com dedicatória a Abgar Renault (Barbacena, MG, 1901 – (São Paulo, SP, 1893-1945) oferecido a Henriqueta Lisboa dois Capa de El ammanuense Belmiro, tradução mexicana Rio de Janeiro, RJ, 1987). Fotografia de Genevieve Rio de Janeiro, RJ, 1995). Fotografia de Elpídio. , 1938. dias antes da morte do escritor por infarto. São Paulo, SP, 1945. de 1954 do romance de Cyro dos Anjos. México, Editora Tezontle. Naylor. Rio de Janeiro, 1941. Reprodução: Reprodução: Foca Lisboa. Arquivo Centro de Estudos Literários/UFMG. Reprodução: Foca Lisboa. Arquivo Centro de Estudos Literários/UFMG. Reprodução: Foca Lisboa. Arquivo Centro de Estudos Literários/ UFMG. Foca Lisboa. Arquivo Centro de Estudos Literários/UFMG.

Fundo Abgar Renault (1901-1995). Doado pela família inglesa, tendo recebido, por essa razão, uma comenda de Andrade e o autor de O amanuense Belmiro, Fundo Wander Piroli (1931-2006). Doado pela em 1999, o acervo é constituído por documentos da rainha Elizabeth II, que faz parte do acervo. em fase de organização para publicação. família em 2006, contém objetos pessoais, mobiliário, manuscritos e datilografados (correspondência, fotografias, 1.766 livros, 2.126 cartas de amigos, originais de poesia, discursos, notas etc.), recortes Fundo Cyro dos Anjos (1906-1994). Doado Fundo Octavio Dias Leite (1914-1970). Doado intelectuais e artistas. de jornais, iconografia, mobiliário, produção literária, pela família em 2000, o acervo consta de pela família em 2006, compõe-se de biblioteca, numismática. São 5.976 livros, 1.800 periódicos, coleção bibliográfica, catálogos, correspondência, mobiliário, arquivo, objetos pessoais, fotografias, 3.010 documentos. Cabe destacar, como exemplo, iconografia, mobiliário, objetos pessoais, produção documentação de ordem pessoal e profissional. Como Coleções as primeiras edições autografadas de poetas como intelectual do titular, recortes de jornais, além do membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo fardão e do solidéu do escritor usados por ocasião da conviveu com vários escritores e artistas, tendo em Além dos fundos de escritores, o Acervo contém Neto, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, além sua posse como membro da Academia Brasileira de seu acervo valiosos livros autografados, destacando-se coleções especiais, formadas por conjuntos de livros, de uma valiosa shakespeariana, uma vez que Abgar Letras. São 2.117 livros e 2.623 documentos. Valiosa títulos hoje raros da editora Civilização Brasileira, à cartas, fotografias, manuscritos, que, embora não Renault era um renomado especialista em literatura é a correspondência entre Carlos Drummond época sob a direção de Ênio Silveira. constituam um fundo completo, enriquecem o Acervo,

76 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê Wander Melo Miranda | Memória de papel | 77 por se tratar de uma fonte valiosa para estudos de opiniões sobre o Suplemento Literário do Minas Gerais relaciona-se à capacidade de mobilização regional e intransferíveis. Sirva de emblema da interlocução literatura, história e política. e sua repercussão em Portugal. Doada pela escritora nacional de recursos intelectuais, técnicos e financeiros postulada o trabalho com o manuscrito de escritores: em 1995. com vistas ao bem comum. Para tanto, requer-se a o manuscrito é dado de arquivo, permanece arquivado, Coleção Valmiki Villela Guimarães (1934) – composta elaboração de uma metodologia adequada à pesquisa porque sem valor-notícia ou valor-novidade no sistema pela correspondência do militante político e escritor Coleção José Oswaldo de Araújo (1887-1975) – em fontes primárias, a organização de dados levantados contemporâneo de troca de informações, no qual o Octavio Dias Leite com amigos escritores, dentre eles composta por 56 livros raros, entre eles: Ingenuidade, em áreas de interesse específico de trabalhos futuros acúmulo tem valor mais forte do que o acumulado. Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, de Emílio Moura, Memórias sentimentais de João e em andamento, bem como a análise – a rigor Inserir o manuscrito nesse circuito é instaurar a Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso e Miramar, com dedicatória de Oswald de Andrade, interminável – do material pesquisado. A consolidação “lentidão” do tempo histórico da escrita no tempo real Georges Bernanos. Dessa coleção, constam ainda 56 Amar, verbo intransitivo, Idílio, de Mário de Andrade, de uma memória literária no Brasil depende de uma da mídia, abrindo novas redes de conexões e novos livros e 11 periódicos, como a coleção completa da e periódicos como a Revista Brazileira, de 1899, com perspectiva interdisciplinar de estudo da atuação de horizontes de leitura. revista Complemento, da qual foi colaborador o escritor destaque para o artigo sobre Páginas recolhidas, de certos grupos de escritores e da determinação do papel Silviano Santiago. Doada pelo seu titular em 1995. ; Revista do Brasil, de 1921, com desempenhado por eles na formação de vertentes É emblemático dessa situação o caso de Proust. o artigo intitulado “Lúcia, ou a menina do narizinho diferenciadas da tradição cultural, levando-se em conta Para melhor ressaltar a tessitura da obra literária e o Coleção Alexandre Eulalio (1932-1988) – composta arrebitado”, de Monteiro Lobato, e a Revista do seu maior ou menor grau de intervenção na produção ilimitado da reminiscência, Walter Benjamin refere- pela correspondência entre o escritor e a poeta e Brasil, de 1919, com o artigo intitulado “As classes literária da atualidade. se às provas da Recherche, que Proust devolvia ao crítica de arte Lélia Coelho Frota, doada por ela em conservadoras”, de Rui Barbosa. Doada em 1999 pelo editor Gallimard sem nenhuma correção gráfica, 1995, num total de 25 documentos, compreendendo o seu neto, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos. Essa perspectiva reveste o trabalho com os acervos de embora escritas até a margem, os espaços em branco período em que o renomado ensaísta esteve na Europa uma premente atualidade que se expressa, ainda, pelo totalmente preenchidos por um novo texto. Resgatar tal pela primeira vez, de maio de 1958 a março de 1959. Coleção Genevieve Naylor (1915-1989) – conjunto agenciamento de significações suplementares, capazes procedimento, hoje, diante dos volumes publicados de Dessa coleção, constam ainda fotografias e cartões- de 81 fotos que retratam o olhar da fotógrafa norte- de estabelecer intervenções pontuais e atividades Proust, ou de qualquer outro escritor, é restituir ao texto postais. É a única coleção completa de cartas pessoais americana sobre o cotidiano brasileiro nos anos 1940. interpretativas singulares no âmbito do material à sua gestualidade perdida de escritura, sua dinâmica de de Alexandre Eulalio de acesso público à pesquisa, Focaliza o caráter multirracial da população do Brasil disposição do pesquisador. Se atribuir sentido a um transformações, acréscimos, subtrações e apropriações. nas quais já se encontram delineados os interesses e e capta em imagens carregadas de uma extraordinária “texto” é conectá-lo a outro, é construir um hipertexto, É como se numa ampla rede discursiva cada variante traços principais característicos dos textos posteriores percepção as imensas contradições do país, o sentido será sempre móvel, em virtude do caráter fosse um ponto de inúmeras conexões, um rizoma cuja do escritor. contrariando os desejos da ditadura de Getúlio Vargas e variável do hipertexto de cada interpretante – o visibilidade o texto final não deixa entrever. as expectativas do Office of Inter-American Affairs, para que importa é a rede de relações estabelecida pela Coleção Aníbal Machado (1894-1964) – composta por o qual estava a serviço. A coleção foi adquirida pela interpretação. Daí a justificativa maior do trabalho O ato de recuperação mnemônica efetuado desloca a 300 documentos, entre manuscritos, fotografias, livros UFMG. em grupo, da pesquisa integrada, pois a função mais noção de texto como produto acabado ou integridade autografados, cartas, documentos pessoais e originais relevante do grupo é a de reunir os textos, comentários absoluta para a de escrita, entendida enquanto avulsos, e de correspondência entre amigos escritores, Recentemente foram doados o Fundo Fernando e anotações, fazendo-os proliferar e alargando suas memória espacializada, cujos contornos são fruto não entre eles João Cabral de Melo Neto, Monteiro Lobato, Sabino (1923-2004) e as coleções Acquiles Vivacqua potencialidades de sentido. de um sentido pleno ou de uma versão definitiva, Murilo Mendes, Cândido Portinari e Henriqueta Lisboa. (1900-1942), José Maria Cançado (1952-2006) e mas de um jogo de intensidades, marcado pela força Foi doada em 1996 pelo neto do escritor, Francisco Lúcia Machado de Almeida (1910-2005), em fase de Ao modelo privilegiado pelas atuais memórias de significação que cada elemento vai adquirindo no Aníbal Machado Gontijo. organização e catalogação. eletrônicas, o da clavis universalis, suscetível de conjunto significante que é o texto concluído e, nesse exprimir toda e qualquer linguagem, o trabalho sentido, nunca terminado. Assim, a gênese textual Coleção Ana Hatherly (1929) – composta pela arquivístico assim concebido propõe uma perspectiva deriva de articulações e construções lógicas que correspondência com amigos escritores, Affonso Ávila, Perspectiva interdisciplinar de elaboração da diferença cultural, capaz de vão se fazendo après-coup, da perspectiva de uma Rui Mourão e Murilo Rubião, dentre outros, num total dar conta, de maneira mais eficaz, tanto dos temporalidade não linear, antievolucionista, expressa de 35 cartas. A correspondência trata de considerações O trabalho com esse material tem demonstrado movimentos gerais de atribuição de sentido quanto por uma mnemotécnica capaz de se traduzir sob a sobre o panorama literário mineiro, envio de poemas, que todo ato de preservação de patrimônio cultural dos que se constituem no âmbito das particularidades forma de uma organização arquivística.

78 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê Wander Melo Miranda | Memória de papel | 79 Arquivar é, de certa forma, colecionar. A lógica do e agenciamentos textuais que permitem ampliar ou colecionador vale-se da singularidade, em oposição ao reverter o horizonte de expectativas do leitor. típico e ao classificável, atuando contra a reificação, que é uma forma de esquecimento. Como objeto A correspondência entre escritores – cartas, telegramas, colecionado, cada texto arquivado é um objeto cartões-postais, bilhetes – é um material valioso para a Arquivo Centro de Estudos Literários/ UFMG. Literários/ Estudos de Centro Arquivo lembrado, uma citação do que parece mais relevante análise e compreensão da gênese de obras literárias, o no conjunto da obra de um autor falecido. Citar os espaço de sua produção e recepção crítica, bem como mortos ou citar um texto é trazer o passado para o contexto social e político da época a que pertencem o presente, é infundir outra vida ao que foi citado. obras e autores. O trabalho com essa correspondência Análoga à reminiscência, a citação tende a modificar oferece possibilidades de compreensão dos bastidores o já fixado e a fazer emergir uma ordem correlacional da criação literária, desenvolvendo inesperadas direcionada ou apta a dar lugar a um novo cânone. articulações com a obra literária e novas hipóteses A questão do valor coloca-se, portanto, como uma explicativas dos textos. questão de memória: a lembrança torna valioso o objeto lembrado; mais do que isso, o objeto torna valiosa a lembrança, ou seja, redesenha as fronteiras Trabalho em progresso de uma tradição esquecida, que se mostra então plena de atualidade. Algumas teorias críticas relevantes do século 20 contribuíram para o gradativo apagamento do interesse O trabalho com os manuscritos conjuga o processo de pelas pesquisas com fontes primárias, ao ser valorizado anamnesis, que lhe é inerente, com a busca de traços o texto como objeto estético acabado e autônomo de uma identidade cultural diferida, cujos espectros – ou como reflexo da realidade social. De diferentes no duplo sentido de fantasma e refração – as versões perspectivas, o formalismo russo e a estilística, o new pré-textuais e as anotações marginais armazenam. criticism norte-americano e o estruturalismo francês Entrar nesses arquivos é deparar-se com um universo contribuíram para a constituição de um campo teórico de lembranças exteriorizadas, resíduo de um saber fundado na análise e interpretação imanentista do texto escritural em ritmo acelerado de apagamento; salvar literário, tendo em conta sua versão última, a única esses arquivos é fazer do resíduo a ponte para a digna de apreço para o olhar em close reading. fixação, sob óptica comparatista, de um corpus que possa oferecer respostas mais convincentes à indagação Com o advento e a consolidação da crítica genética, do que é escrever entre nós. desfaz-se a noção de uma versão única do texto e passa-se a trabalhar com suas variantes, tão Trata-se de individualizar o percurso de práticas significativas quanto a última versão dada a significantes de obras e autores distintos, com o público. A produção e a recepção textual, desse objetivo de detectar os mecanismos por meio dos quais ponto de vista, passam a ser um trabalho sempre uma tradição se transforma, construindo-se no processo em progresso, no qual a “última palavra” deixa de de sua conformação. Não interessa estabelecer ser um horizonte perseguido pelo crítico e o leitor. continuidades no interior de um sistema fechado – a Rascunhos e manuscritos, versões datilografadas ou Trecho de carta de Carlos Drummond de Andrade a Cyro dos Anjos (Montes Claros, MG, 1906 – Rio de Janeiro, RJ, 1994). Rio de Janeiro, 4/8/1936. Reprodução: Foca Lisboa. Lisboa. Foca Reprodução: 4/8/1936. Janeiro, de Rio 1994). RJ, Janeiro, de Rio – 1906 MG, Claros, (Montes Anjos dos Cyro a Andrade de Drummond Carlos de carta de Trecho tradição concebida como algo imutável e consolidado “corrigidas”, cortes e acréscimos, tudo converge para para sempre –, mas refletir sobre os deslocamentos uma concepção interminável do texto artístico, na sua

80 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê capacidade de gerar informações incompletas, pela consciência, realizar um exercício mental ligado à afinal, parece que se resolverá a minha vida: “Idade de Ouro” (carta de 1º de junho de 1938) ou, natureza especial de sua configuração. memorização e no qual quem escreve, ao constituir-se uma adesão imediata à superfície sensível das mais intensamente, a ausência/presença do pai e da como “inspetor de si mesmo”, torna-se apto a aferir as coisas e das criaturas. É verdade que isso custa mãe, na belíssima carta de 20 de fevereiro de 1954. Na pesquisa com acervos de escritores, disseminada faltas comuns e a reativar as regras de comportamento um pouco o que aquele “demonismo” que Vale a pena a citação de um longo trecho: em larga escala nos últimos anos no Brasil e em que é preciso sempre ter em mente. Parece que é na Você, amavelmente, observou em mim faz às outros países, reaparece, na forma de esboços, relação epistolar, tal como concebida pelo filósofo, que vezes as suas sortidas imprevistas; mas ainda Tenho andado numa roda viva de trabalho, e traços e rasuras textuais – não em abstrato, mas na o exame de consciência se formula como uma narrativa esse “demonismo” é talvez sede de ternura mal isso explica a relativa escassez de cartas. Além materialidade do seu processo –, a noção de que a escrita do eu, intencionada a fazer coincidir o olhar do aplacada ou desviada do seu leito. Você sorrirá, disso, na semana passada fui a Minas cumprir literatura é um trabalho sem fim com a linguagem. outro e o olhar que se lança a si mesmo, no momento quem sabe, dessa ternura alarmante, que não se um desejo de minha Mãe, que desejaria ter seus Em razão disso, emerge uma prática analítica voltada em que as relações cotidianas de amizade são medidas fartou ainda depois de tantos objetos propostos despojos reunidos ao de meu Pai, no cemitério para o estudo das fontes primárias, que revelam por uma técnica de vida. à sua fruição, ou que, pelo menos, ainda não de B. Horizonte. Assisti em Itabira à exumação um olhar revitalizador sobre a escrita literária: o se considerou realizada. Mas considere que o dos ossos, e ajudei a levá-los até ao Bonfim, “manuscrito será o futuro do texto”, assim se expressa nosso maior comércio é ainda com os homens, onde agora repousam junto aos do velho. Se lhe Jean-Louis Lebrave, um dos notáveis representantes Duas faces e que estes na sua quase unanimidade nos disser que não fiquei arrasado pela cerimônia, V. da crítica textual e genética francesas. Tal prática, desapontam ou nos ofendem; daí o deficit talvez se surpreenda; mas é que, nas duas horas paradoxalmente, ganha prestígio no momento em que A organização, a descrição e o estudo da sentimental que, em mim, se tenha manifestado e tanto que durou aquela pesquisa e recolhimento começa a perdê-lo: na atualidade, com o computador, correspondência de Carlos Drummond de Andrade em amargura e perversidade intelectual. Mas, de pobres ossos, me visitava o pensamento os rascunhos desaparecem, ao serem apagados pela (1902-1987) e Cyro dos Anjos (1906-1994) permitem repito, a velha Itabira vai fazendo a sua obra... consolador de que nada mais, nem alma nem eficiência de uma tecla que deleta o que se apresenta apreender elementos significativos referentes à gênese corpo, restava de minha Mãe, e ela era pura como pré-texto descartável para a obra final. e à recepção crítica da obra dos dois escritores, bem O tom abertamente confessional que reveste a escrita saudade dentro de mim e de algumas pessoas. como aqueles relativos à atuação que tiveram como torna a carta um espelho que se confunde com um Talvez este pensamento não se concilie bem Como parte integrante desse tipo de pesquisa, ressalte- intelectuais no cenário cultural e político brasileiro processo de desvendamento contínuo do sujeito cuja com o que me ocorreu depois, no Bonfim, ao se que a carta é um espaço textual privilegiado, pois, do século XX. São ao todo 176 cartas, telegramas, imagem vai se formando e deformando ao longo do encaixarmos a urna no jazigo: já então, parecia- sendo por definição destinada a outra pessoa, dá lugar radiogramas e cartões dos dois escritores, referentes tempo. Os eventos de natureza íntima – o cotidiano me que se celebrava uma última boda, dos restos também ao exercício do missivista: pelo gesto mesmo da ao período de 1930 a 1986, incluindo quatro poemas familiar, mas também a melancolia, a depressão, os dos restos de um com os restos dos restos de escrita, a carta age sobre aquele que a envia, bem como dedicados pelo poeta ao amigo. A correspondência de desejos frustrados – superpõem-se aos fatos advindos outra, e essa aproximação final dos despojos age, pela leitura e releitura, sobre aquele que a recebe. Drummond pertence ao Acervo de Escritores Mineiros das circunstâncias profissionais e políticas – as intrigas excluía toda tristeza e constituía uma vitória sobre Escrever é mostrar-se, fazer-se ver e fazer aparecer a da UFMG; a de Cyro dos Anjos, ao acervo da Fundação da vida literária, os meandros do favor no emprego as limitações do tempo, da natureza e da morte. própria face diante do outro. É, ao mesmo tempo, um Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. público, as regras duras do jogo político, ao qual Tudo isso, é claro, sentido mais do que pensado, olhar que se lança ao destinatário e uma maneira de assistem como coadjuvantes ativos. Eventos e fatos e isento de literatura. Não creio que me tivesse se dar ao seu olhar. A reciprocidade estabelecida pela Em carta do Rio de Janeiro, de 4 de agosto de 1936, compõem um quadro cuja figura que aí se desenha tem deixado penetrar por essas imaginações para não correspondência implica uma “introspecção”, entendida Drummond dá bem uma ideia da técnica de vida seus traços projetados para um mais além do tempo sofrer; o que suponho é que assimilei já de tal como uma abertura que o emissor oferece ao outro para que a troca de cartas com o amigo expressa: e do espaço da mera existência pessoal. “Que grande modo a morte de meus pais que é como se eles que ele o enxergue na intimidade. colecionador de tempo me tornei!”, exclama Drummond estivessem vivos a meu lado – e realmente estão, Suas notícias circunstanciadas da gente mineira ao agradecer os cumprimentos do amigo pelo aniversário pela frequência e intensidade com que os sinto, Enquanto maneira de o missivista apresentar-se a vieram satisfazer aquela minha necessidade de 63 anos, em carta de 1º de dezembro de 1965. como algo de incorporado a mim mesmo, ou seu correspondente no desenrolar da vida cotidiana, de ternura que lhe falei na carta anterior. melhor, a que eu próprio os haja incorporado. a carta atesta não a importância de uma atividade, Obrigado, e mande outras. Quero cultivar em Ao longo das décadas que passam, a datação mas a qualidade de um modo de ser. Para Sêneca, mim essa inclinação para o que antigamente das cartas vai resguardando e, simultaneamente, Essa incorporação talvez explique o tom melancólico fazer a revista da sua jornada é fazer um exame de eu consideraria uma matéria torpe e em que, assinalando o que não volta mais: as amizades da das cartas dos dois escritores, ambos funcionários

82 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê Wander Melo Miranda | Memória de papel | 83 públicos. É como se o missivista apresentasse ao amigo “De resto, o que mais em interessou em ‘Abdias’ foi a à renúncia de Vargas e ao fim do Estado Novo levam o um repertório de perdas pessoais a que a situação escrita em si, pois ando preocupado com esse problema, e poeta à conclusão que reafirma a aludida contradição: política do país – objeto de comentários constantes despreocupado de quaisquer ‘mensagens’ ou sentidos que “Nascemos todos incapazes para a política, mas – agregasse um inevitável beco sem saída histórico e a obra possa ter”. Em outro momento, discorda de Cyro fadados a sofrer no lombo suas transformações”. social para o intelectual e o artista que a imagem do em relação aos poemas do amigo Emílio Moura, em carta escritor traduz fortemente nos anos de 1930 a 1950. de 17 de novembro de 1986: Dessa forma, as cartas vão superpondo traços de um Da mesma forma, as referências à literatura, a par do ao do outro, compondo um largo painel intimista, tom irônico com que são feitas, acirram um sentimento Li seu artigo sobre o vate Emilio e teria valha o paradoxo, da vida literária e política brasileira de amargura, que resvala para o embate intelectual, a muita coisa a dizer sobre ele. Mas... um dia de um período crucial do século XX. As subjetividades exemplo da carta de 4 de agosto de 1936, já citada. conversaremos. Estou convencido de que o poeta em confronto no decorrer dos anos abrem novas não pode se alhear do espetáculo do mundo perspectivas de avaliação do trabalho intelectual, tendo Ainda não pedi notícias do seu romance, que me e que também ele tem uma missão social a como selo de garantia a maneira muito especial como interessa muito. É da maior necessidade que Você cumprir no momento – É a grande objeção que amizades e livros se escrevem. o conclua e publique, contribuindo para que se faço ao livro do Emilio: estar fora do tempo. retifique o conceito atual do romance entre nós. A As pesquisas no Acervo de Escritores Mineiros mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e Apesar da distância de vários anos de uma carta a propiciam a reinvenção da memória literária, que se anticrítica de aspectos de uma vida regional, como outra, a contradição do poeta, ora apelando para a vê revestida no presente da função cada vez mais fazem os rapazes do norte (entre parênteses: autonomia da arte, ora para seu compromisso histórico, inadiável de pensar, de maneira local, vias de acesso como escrevem mal!), nem essa literatura ressignifica a posteriori as atividades de sua geração e a uma possível cultura nacional brasileira em tempos “restaurada em Cristo” com que nos aporrinham da geração modernista, em última instância. Percebe- globais. Memória frágil e resistente como a escrita de os pequeninos gênios marca Lucio Cardoso. se um desconforto que não cessa de incomodar e Murilo Rubião citada no início deste texto. Tudo isso é literariamente bem insignificante e, a cuja estridência Mário de Andrade dera forma na acredito, não resistirá ao tempo. Mas é preciso célebre conferência O movimento modernista, proferida ir marcando as diferenças e trabalhando numa em 30 de abril de 1942 na biblioteca do Ministério direção nova, de que aparentemente não há igual de Relações Exteriores, no Rio de Janeiro. Após no quadro literário brasileiro do momento. Tenho passar em revista o movimento, o escritor volta-se muita esperança no “Amanuense” e o exorto, para sua atuação – “O meu passado não é mais meu civicamente, a pô-lo na rua. companheiro. Eu desconfio do meu passado” – e dela extrai a generalização que conclui a aguda reflexão O apelo cívico ao amigo visa abrir um outro caminho realizada: “Uma coisa não ajudamos verdadeiramente, para a ficção brasileira, mas também uma forma nova duma coisa não participamos: o amilhoramento de participação e esperança. A incitação para que Cyro político-social do homem”.

termine logo o Amanuense (1937) e, posteriormente, a Desenho de Henriqueta Lisboa (Lambari, MG, 1903 – alegria ao receber o exemplar de Abdias (1945) expressam A “missão social a cumprir” em Drummond assume, Belo Horizonte, MG, 1985). Sem local e data. Reprodução: Foca Lisboa. Arquivo Centro de Estudos Literários/UFMG. um ponto de fuga às inquietações existenciais e literárias por alguns meses em 1945, a forma da militância do poeta-missivista e aos constrangimentos políticos a político-partidária, ao aceitar o convite de Luís Carlos que os escritores estão submetidos. A linguagem sintetiza, Prestes para ser codiretor da Tribuna Popular. É

mais do que um empenho político, em rigor fadado ao também o ano de publicação de A rosa do povo, livro Wander Melo Miranda é professor titular de Teoria da desolamento e à decepção, um empenho ético com o mais empenhado do poeta. Na única carta a Cyro dos Literatura na UFMG e coordenador do projeto de pesquisa Acervo de Escritores Mineiros. tempo. Na carta de 11 de novembro de 1945, declara: Anjos em 1945, os acontecimentos políticos relativos

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