Censura À Telenovela Modernizada: Os Primeiros Atritos Com a Obra De Janete Clair1
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 Censura à Telenovela Modernizada: Os Primeiros Atritos com a Obra de Janete Clair1 Guilherme Moreira FERNANDES2 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, BA Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR RESUMO Este artigo tem como objetivo apontar, com base em análise documental, os anos iniciais da censura federal (unificada) em relação aos primeiros trabalhos modernizados de Janete Clair na TV Globo, o que corresponde às telenovelas “Véu de Noiva”, “Irmãos Coragem” e “O Homem que Deve Morrer”. O recorte observou a categoria de “capacidade de compreensão” expressa pela “mentalidade censória” na produção dos pareceres do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). A principal conclusão que se chega é o aumento do rigor censório quando as telenovelas começam a retratar outras realidades, pois a modernização das telenovelas não era uma das vontades censórias. PALAVRAS-CHAVE: Telenovela; Censura; Janete Clair. Introdução “Quando publiquei meu livro ‘Comunicação Social: Teoria e Pesquisa’ (Petrópolis, Vozes, 1970), dedicando um capítulo à recepção das telenovelas [pesquisa realizada em 1967], fui hostilizado veladamente pelos patrulheiros de plantão...” (MARQUES DE MELO, 2010, p. 202)3. 2018 é um ano bastante peculiar, pois o ano de 1968 marcou a história do Brasil e do mundo – assim temos a “comemoração” referente aos 50 anos4. Neste texto nos interessa chamar a atenção para o processo de modernização da telenovela brasileira, momento em que as tramas passaram a ser mais realistas e a refletirem a sociedade 1 Trabalho apresentado no GP Ficção Seriada, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Professor adjunto do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CAHL/UFRB). Pós-doutorando em Jornalismo pelo Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutor em Comunicação em Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). e-mail: [email protected]. 3 Caro prof. JMM, obrigado por todos os ensinamentos e pela empatia. Guardo todos os seus ensinamentos e jamais os esquecerei, sobretudo a humanidade e simplicidade no tratamento interpessoal. Dedico a você este trabalho e agradeço por abrir as portas da academia para a pesquisa em telenovela. A pesquisa em Comunicação; as sociedades científicas da área; e particularmente eu; não seremos os mesmos sem você. Nunca existiu um agregador tão grande e generoso. Sua partida nos matou, mas seus ensinamentos e garra nos fará renascer e crescerá ainda mais a necessidade em semear os frutos que você tão bem os cultivou. Descanse em paz, mas nos acompanhe sempre. 4 Além da homenagem acima ao querido amigo JMM, fugindo das normas de redação científica, quero ainda fazer outra menção/homenagem aos 50 anos de “Beto Rockfeller”. Obrigado Bráulio, Lima, Cassiano, Tatá e toda a equipe. Somos um país que pouco valoriza a memória e essa notável efeméride vai passar despercebida. Mas não por mim. 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 brasileira. A telenovela “Beto Rockfeller5” é sempre lembrada como referência a esse processo, ao inserir a figura de um anti-herói, pondo fim ao maniqueísmo melodramático, marca das produções anteriores com papéis bem demarcados entre os vilões e os mocinhos, além dos elementos nacionais inseridos na trama. Anteriormente, outras telenovelas já buscavam modificar essa lógica: é o caso de “Ninguém crê em mim”, de Lauro César Muniz, exibida pela TV Excelsior de julho a outubro de 1966; “Os Tigres”, de Marcos Rey, exibida em abril de 1968 pela TV Excelsior; “Os rebeldes”, de Geraldo Vietri, exibida de 25 de setembro de 1967 a 30 de março de 1968; e “Antônio Maria”, exibida de julho de 1968 a abril de 1969. Como modificações, o conjunto dessas telenovelas propunha: atenuar os traços de vilania, permitindo que o telespectador se projetasse nos personagens, traziam cenas mais curtas e mais dinâmicas, presença de núcleos jovens e uso de costumes e gírias. Canções populares (nacionais e internacionais) também passaram a fazer parte das trilhas sonoras. (FERNANDES, 2017). Acostumado com um padrão diferente, a presença dos folhetins modernizadores causou certo desconforto no âmbito da censura. Ressaltamos que nessa época a censura ainda era descentralizada6, logo nem todas as telenovelas passavam sob o crivo do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SDCP) de Brasília, ficando a cargo dos órgãos regionais. Contudo, desde 1967 existiu a preocupação em unificar as normas censórias, sob a égide da Polícia Federal. Para exemplificar, vamos usar o longo parecer7/desabafo do censor José Augusto Costa ao analisar o primeiro folhetim modernizado da Rede Globo, a telenovela “Véu de Noiva8”, de Janete Clair, já em seus capítulos finais: 5 Telenovela de Bráulio Pedroso, com base em argumento de Cassiano Gabus Mendes e direção de Lima Duarte, exibida de 04 de novembro de 1968 a 30 de novembro de 1969, na faixa das 20h pela TV Tupi de São Paulo. 6 Falar em censura decentralizada significa dizer que ele era desenvolvida em cada um dos estados da federação e a decisão censória era válida somente para aquele território. Desde 1948 com a criação do Serviço de Censura de Diversões Públicas já se pensava em uma censura federal, todavia nem todos os tipos de diversões públicas era pensada como federal, como é o casa das telenovelas neste primeiro momento. Em 1969, com a Emenda Constitucional nº 1 a censura passou a ser una, cuja decisão tomada em Brasília deveria ser aplicada a todos os estados da federação. 7 O material desta telenovela está localizado no Arquivo Nacional de Brasília, Fundo: DCDP, Grupo: Censura Prévia, Série: Rádio e TV, Subsérie: Telenovela, Caixa: 005. 88 A telenovela “Véu de Noiva” foi apresentada pela TV Globo, às 20h, de 14 de outubro de 1969 a 6 de junho de 1970, totalizando 204 capítulos. Escrita por Janete Clair, com direção e produção de Daniel Filho. Sinopse: O enredo conta a história de Andréa (Regina Duarte), que termina seu noivado com Luciano (Geraldo Del Rey) no dia do casamento, depois de descobrir que ele tinha um caso com sua irmã Flor (Myrian Pérsia). Esta, grávida de Luciano, não deseja ter o filho. Andréa assume a criança e logo depois se apaixona por Marcelo Monserrat (Cláudio Marzo), um piloto de automóvel. Anos depois, Flor descobre que não pode mais ter filhos e pede a Andréa que devolva o menino, o que dá início a uma dramática disputa. A briga de Andréa e Flor pela guarda da criança mobilizou o país. Ao final, a mãe adotiva fica com a guarda da criança. (MEMÓRIA GLOBO, 2003, p. 19-20). 2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 Ao examinar os capítulos 164-181 da telenovela produzida pela Central Globo de Televisão, pude sentir toda a trama que envolve os personagens e suas consequências no aspecto censório. Contudo, é muito difícil para o Censor estabelecer de pronto em apenas alguns capítulos a impropriedade global para um drama que já se vem desenrolando e que ainda está para ser concluído [...]. A telenovela em questão aborda de maneira dramática, uma trama de caráter social e familiar, com implicações de assassinato, móvel ao que nos parece de todo o contexto, e outros envolvimentos relacionados com o procedimento dos personagens. Foi estabelecida desde o início de sua apresentação a impropriedade de 10 anos, talvez porque os capítulos inicialmente apresentados ao SCDP, assim indicassem, entretanto no decorrer dos capítulos e notadamente os examinados pelo Censor a novela tendeu a impor nova impropriedade no que resultou na concordância do produtor em, para satisfazer a censura, modificar quando necessários, cenas e falas. A nosso ver, esse tipo de novela e notadamente esta, não deveria ser liberada pelo SCDP para exibição antes de 21 horas. Isso porque esse gênero de teleteatro, envolve de tal maneira o público assistente em seu tema que às vezes se torna prejudicial principalmente para o público infantil, causando sua exibição prejuízos de ordem moral e psíquica em sua mente em formação. [...] Destarte, o mal que ela poderia ter feito ao espectador já fez. Os capítulos examinados poderão continuar na impropriedade anteriormente estabelecida, 10 anos, eles em si nada prejudicam ou alteram o pernicioso existente no contexto global da obra. [...]. O erro a meu ver foi nosso deste o início. Devemos tomar cuidado para o futuro... [...]. (PARECER aos caps. 164-181, 29 abr 1970, p. 1-2. Grifos nossos). No parecer, emitido após o censor examinar 18 capítulos da telenovela “Véu de Noiva”, ressalta a dificuldade de estabelecer juízos de valor para uma trama a partir da leitura de alguns capítulos, ainda mais quando a telenovela já está prestes a ser concluída. No seu argumento, o censor lista questões que, a seu juízo, seriam perniciosas: enfoque na família, assassinato e a própria abordagem “dramática”. Na sequência, o parecer enfatiza o prejuízo que a temática poderia causar junto ao público, notadamente o infantil. Nesse pequeno juízo de valor, observa-se que o argumento é em relação às influências diretas que a telenovela poderia ter sobre o público, que, ao assistir tramas relacionadas a temas perniciosos, estaria sob a influência “moral e psíquica” dessas discursividades, o que seria ainda mais danoso para as “mentes em formação”. Ou seja, no argumento moral, a exibição da telenovela levaria a instauração do mal, em confronto com o que poderia ser classificado como o bem e o bom.