ANNA MARIA BALOGH O obscuro objeto ANNA MARIA BALOGH é professora da Unip e da ECA-USP e autora de O Discurso Ficcional na TV (Edusp) e Conjunções, Disjunções, Transmutações. da Literatura ao Cinema e do desejo: à TV (Annablume). o corpo sedutor na arte e na mídia guram para uma trama que abarca o sentido positivo resultando no conhecido happy end hollywoodiano ou em narrativas de virtua- lização mais freqüentes em filmes de arte e minisséries, nos quais o sujeito do desejo não atinge o objeto desse desejo. A bissemia ou polissemia é comum nos termos que fazem parte do campo se- mântico do erotismo, tais como sedução, atração, amor, paixão, etc., e é o que se verifica também com a palavra desejo. No instigante ensaio de Marilena Chauí sobre o tema, ela nos lembra que desiderare tem sua origem em sidus, estrela, termo usado mais freqüentemente no plural sidera. A autora menciona a crença de que o alto ou os astros influenciam o destino humano, de onde viria sideratus, siderado, atingido edução, amor e erotismo sempre estiveram ou fulminado por um astro. De sidera nas- presentes na arte e na mídia como cem considerare, examinar com respeito e temas preferenciais reiterada- veneração, e desiderare, cessar de olhar os mente visitados ao longo da astros (Chauí, 1990, pp. 22-3). Ao deixar diacronia. Em seu rico vo- de olhar os astros, tomamos o destino em lume sobre O Erotismo, nossas próprias mãos, temos que decidir, Alberoni (1986, p. 183) obser- mas isso pode também significar por vezes va que “A poesia amorosa e estar fora de si, sentir um vazio; assim à erótica está destinada a provocar amor decisão se acrescenta uma carência. e prazer erótico no exterior e no mundo. Isso A maioria dos autores que estudaram vale para qualquer forma artística”. Se tal o tema, tais como Octavio Paz, Jean Bau- Safirmação é válida para as artes prévias, o drillard e Francesco Alberoni, situa o erotis- é em dobro, sem dúvida, para as artes do mo no âmbito da cultura. Para Paz, trata-se movimento, tais como o cinema, a TV e o da sexualidade socializada, submetida às vídeo, posto que o movimento constitui um necessidades do grupo, força vital expro- elemento vital na expressão do erotismo priada pela sociedade. A sexualidade seria através do corpo. indiferenciada e da ordem da natureza, en- quanto o erotismo seria da ordem da cultura e, portanto, do signo e do ritual. O corpo pertence primordialmente à EROS: SEDUÇÃO E DESEJO natureza, mas o corpo sedutor é decifrado, com toda certeza, no âmbito da cultura. O termo seduzir admite tanto a timia Como se manifesta a sexualidade do corpo eufórica, quando significa atrair, encantar, no interior da ação civilizadora da cultura? fascinar, deslumbrar, quanto a timia disfó- Como se percebe o corpo dentro da cele- rica, quando significa levar ao pecado, ao ridade de nosso quotidiano em ritmo de erro ou, ainda, inclinar de forma artificiosa “rock pauleira”? Qual percepção do corpo para o mal, conforme consta no dicionário. A permanece em nosso imaginário em meio acepção negativa do termo parece ter maior à voracidade e à obsolescência programada proximidade com sua origem lembrada dos produtos midiáticos que o representam? por Baudrillard: se-ducere, ou seja, levar Até mesmo os sex symbols criados pela aparte, desviar de sua via ou caminho. As mídia parecem destinados a uma vida útil narrativas sobre o tema em geral se confi- cada vez mais efêmera…

150 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 O CORPO SEDUTOR: A SOBREVIVÊNCIA DO MAIS BELO

Em recente programa transmitido pela GNT, A Sobrevivência do Mais Belo, título emprestado da obra homônima de Nancy Etcoff, à qual se faz referência constante, os diferentes segmentos apresentados pro- curavam demonstrar que, de fato, estamos geneticamente programados para sermos atraídos pelo mais belo, para poder perpe- tuá-lo através da procriação, para a salva- guarda da espécie. As reflexões de Flahaut sobre o tema reafirmam o que se propôs no mencionado programa:

“Les visages humains considerées comme na fotografia estática, no cinema e na TV beaux pourraient avoir certains traits, o trabalho de uma equipe de profissionais certaines formes fondamentales… les cher- concorre para acentuar as características cheurs estiment que la perception de ces mais belas mediante recursos de luz, cor, traits a dû être favourable à la survie de maquilagem, angulação, enquadramento, l’espèce…et ces traits pourraient être les entre outros, levando o fascínio ao paro- indices extérieurs de santé et de fertilité”. xismo, como bem analisou Barthes ao falar de Greta Garbo. Cenas do programa da GNT mostram que até mesmo os bebês, quando expostos às imagens de vários rostos, fixam seu olhar sempre de forma mais demorada no rosto O CORPO SEDUTOR E SEUS mais bonito. Em outros segmentos, o pro- grama faz menção aos resultados de extensa VALORES SIMBÓLICOS pesquisa feita junto a usuários da Internet sobre o conceito de beleza em relação ao O corpo é dotado também de fortes qual a maioria deles destacou as seguintes valores simbólicos consagrados no imagi- invariantes: uma pele boa, simetria, har- nário dos espectadores, dos quais a arte e monia e cor saudável. a mídia se servem com prodigalidade e aos O rosto se destaca naturalmente no quais agregam, por vezes, novos valores. Ao conjunto do corpo como elemento de ex- estudar a simbologia do corpo, o pensador pressividade privilegiada na manifestação Jean Yves Leloup (1998) nos lembra que a dos sentimentos humanos, e não por acaso boca se relaciona à fase oral e as maçãs do Gilles Deleuze denominou o plano próximo rosto ao ventre. Nota-se que alguém está de imagem-afeição. Para os usuários de In- em boa saúde quando as bochechas estão ternet consultados na pesquisa mencionada rosadas. Antes das inovações cosméticas, foram eleitas como características distin- com o surgimento dos mais diversos blu- tivas do belo no rosto olhos relativamente shes, inclusive com textura acetinada, a grandes e mais separados do que juntos, situação das moças era mais difícil. Em pômulos salientes, nariz reto e não muito filmes que retratam épocas pretéritas, sem comprido e boca carnuda. tais facilidades, com freqüência vemos Além dos traços próprios da beleza apon- cenas de moçoilas casadoiras correndo ao tados como preferenciais cabe lembrar que espelho para beliscarem as bochechas sem-

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 151 pre que a visita de um possível pretendente é seu timidíssimo advogado vivido por Marco anunciada. Nem mesmo a belíssima Scarlet Nanini. Um marco na trajetória humorísti- O’Hara deixa de recorrer ao estratagema co-erótica da TV brasileira. quando Rett Butler vem visitá-la em E o No filme O Amante, transposto por Vento Levou. Annaud da obra homônima de Marguerite Ainda em sua obra O Corpo e Seus Duras, a jovem francesinha que interpreta Símbolos, Leloup também discorre sobre a autora nessa história autobiográfica se os valores simbólicos dos pés lembrando apresenta de forma plena de simbolismo que eles significam nossas raízes, preservam em seu primeiro encontro com seu futuro as lembranças de nossa chegada à terra e amante chinês. A jovem tem um dos pés de como estamos plantados nela. Os pés apoiados nos canos da balaustrada da balsa nos contam se fomos desejados ou não, se que atravessa o Rio Meckong e no somos amados… O estudioso lembra ainda solo. Seu ar é infantil e ela mal se equilibra que, para Freud, o pé teria um significado num inadequado sapato de salto alto de fálico, enquanto o sapato seria um símbolo cetim preto com lantejoulas. De fato, ela feminino. Para Leloup (1998, pp. 29-30), não está bem plantada na terra. Ela é uma “o pé é um símbolo erótico tanto nos povos estrangeira sem os privilégios próprios primitivos quanto nos civilizados, podendo dos colonizadores: poder e dinheiro. Sua ser considerado como um excitante sexual”. família está arruinada, as relações entre Naturalmente, no processo evolutivo do ser seus membros são deprimentes e destituídas humano, a simbologia fálica do pé vai se de afeto sadio, ela não é amada. A entrada esvanecendo e o desejo se transfere para a do imponente carro do rico rapaz chinês área genital. na balsa é filmada de um ângulo que fica Os mencionados valores simbólicos e entre as pernas da mocinha: sim, ela será suas transições ou permanências fetichistas desejada. O rosto do rapaz chinês, sentado se manifestam em diversas obras artísticas no carro guiado pelo motorista, mal se dis- e midiáticas. Em A Pata da Gazela, de tingue atrás dos vidros. O que se vê bem, José de Alencar, a trama gira em torno de quando ele desce do carro, é o seu elegante um rapaz que fica siderado com a visão de sapato de cromo alemão… A ênfase nos pés relance de um par de mimosos e sensuais prenuncia de modo adequado a prevalência pezinhos num rápido levantar das longas do erotismo nessa difícil relação inter-racial saias para entrar numa carruagem da época. que se inicia. A questão é saber a que dama pertencem os pés fascinantes, dado que em sua trajetó- ria em busca da amada de pés mimosos o pobre rapaz depara também com algumas A LIBERTAÇÃO DOS CENTROS VITAIS “lanchas” amedrontadoras… No cinema e na TV muitos dos percursos Outras zonas importantes do corpo se eróticos se iniciam ou são sugeridos pelos manifestam nas trajetórias eróticas dos pés. Além da história modelar de Cinde- filmes, tais como o ventre e os quadris. O rela, plasmada em desenho animado por crítico francês observa que o ventre constitui Walt Disney, e de outras inúmeras versões um lugar importante do corpo, pois nele se fílmicas, há outros exemplos marcantes. encontram o alto e o baixo, o pai e a mãe. Na novela Brega e Chique, da Globo, Para Leloup (1998, p. 117), o ventre é um Marília Pera interpreta uma grã-fina caída lugar sagrado e ainda que ele e o coração na mais irremediável “pindaíba” da qual são os dois centros vitais de nosso corpo. procura sair usando os mais diversos es- A trajetória de Francesca, em As Pon- tratagemas imagináveis: o mais hilário é tes de Madison, traz cenas que ilustram quando se senta languidamente num sofá de forma contundente as simbologias estendendo pés e pernas de forma provo- mencionadas. Ela é uma mulher casada cadora e sensual para deleite-desespero de que vive um grande amor com o fotógrafo

152 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 Robert durante uma breve viagem de seus ter liberado a cultura anglo-saxã de boa familiares. A libertação das pequenas e parte de seu puritanismo e aberto as portas grandes prisões e rituais do quotidiano de para a liberação sexual dos anos 60, “paz e uma cidade pequena já começa a ser suge- amor”, principalmente amor. Tal problema rida quando ela passeia livre, sem sapatos, não parece tão presente em culturas como pela varanda da casa. Ao abrir seu vestido a brasileira, posto que um de nossos este- ela deixa o ventre e o peito livres para re- reótipos culturais é justamente o samba e o ceber a brisa que sopra. Depois, já em seu carnaval, presentes em abundância na TV e quarto, ela examina sua figura desnuda ao no cinema. Os centros vitais mencionados espelho, e a câmera se fixa em seu ventre e por Leloup, o coração e o ventre, parecem insinua parte dos seios como se Francesca ser mais livres em culturas como a nossa, estivesse interrogando seus centros vitais a tal ponto que, quando se tenta traduzir os sobre a difícil decisão de viver ou não uma termos que nos caracterizam nesse âmbito, paixão proibida. Como nos ensina Marilena tais como requebro, ginga, dengo e outros Chauí: desiderare, decisão e carência a um tantos, encontra-se bastante dificuldade, só tempo. Só depois dessa seqüência plena até mesmo para vocábulos medianamente de valores simbólicos e força dramática é similares em outras línguas. que Francesca terá a coragem de deixar o bilhete-convite para Robert pregado na ponte de Madison que ele deverá fotografar na manhã seguinte. AMOR X SEDUÇÃO: LIGAÇÕES Grande parte da sensualidade e do exo- tismo que atribuímos a elementos da cul- PERIGOSAS tura árabe se deve ao fascínio exercido em nosso imaginário pela dança do ventre. Na Para a maioria dos estudiosos, o amor novela , Glória Perez reaviva esses constituiria uma revelação, uma doação, um padrões da nossa imaginação por meio da “percurso epifânico” (Alberoni) de mútuo personagem Jade. Ela fascina e apaixona o conhecimento e fusão. seu observador dançando a dança do ventre Já o erotismo, além das acepções já plena de erotismo e que é vista através da estudadas, para José Paulo Paes (1990) cortina, sem o conhecimento da dançarina, representaria a possibilidade de fugir de pelo futuro amante mesmerizado desde o nosso destino genésico e permitir-nos a princípio por seus movimentos sensuais e busca real do prazer. Ainda para o autor, sua beleza acentuados por sua roupa cuja o maior estímulo erótico estaria não “na cor verde remete ao seu nome. liberdade de perseguir até onde quiser os A libertação e a movimentação do ventre seus objetivos, mas no interdito criador do nas mais diversas culturas trazem resultados desejo, em que Bataille vê a própria essência de altíssima voltagem erótica. Os sensuais do erotismo” (Paes, 1990, p. 15). requebros de Marylin Monroe aliados ao ba- Esse erotismo transgressor está mais lanço e generosa amostragem de seus seios próximo do sentido que Baudrillard atribui à e uma perturbadora ingenuidade em meio sedução e ao qual já se aludiu que, para ele, à sensualidade explosiva a consagraram sempre teria o caráter de jogo, de manipu- como sex symbol a partir da década de 50. lação. Como ele mesmo lembra, a origem Por volta da mesma época, o bonitão Elvis da palavra é se-ducere, desviar do cami- Presley revolucionava a música com o rock, nho. “Omissões, recusas, contemplações, o vozeirão e principalmente uns requebros rodeios, decepções, tudo isso tem como que lhe valeram a significativa denominação objetivo provocar a sedução” (Baudrillard, de Elvis, the Pelvis, e levaram as platéias de 1987, p. 103). Trata-se, pois, de um percur- jovens ao delírio. Em shows estilo família, so passional complexo muito denso e com como o de Ed Sullivan, era proibido filmar amplas oscilações entre momentos de tensão Elvis da cintura para baixo. Ambos parecem e relaxamento, atração e repulsão.

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 153 Como foi possível comprovar em aulas Nesse filme o jogo de omissões, rodeios, e palestras ministradas, o filme Ligações recusas e outros a que Baudrillard se refere Perigosas, na transposição de Stephen como inerentes à sedução se traduz de ma- Frears, constitui uma obra muito rica e neira primorosa nos movimentos corporais multifacetada sobre o tema e demanda algu- dos atores, na ocupação que eles fazem mas observações mais pormenorizadas que do espaço (proxêmica) e nos recortes e as anteriores. Tal característica não passa angulações da fotografia cinematográfica. desapercebida a Francesco Alberoni, como Traduz-se, enfim, em inúmeras situações se depreende de suas observações: e, sobretudo, numa visão de verdadeiros estrategistas das categorias da proximidade “Nas cortes, nas sociedades aristocráticas e distância dentro do jogo corporal entre como a França, a sedução era um meio po- sedutor e seduzido(s), de atração, repul- deroso de afirmação social, de prestígio e até são, contenção, provocação, assimetria, de revolta. Uma das obras mais fascinantes dissimulação, etc., num verdadeiro jogo sobre sedução foi escrita nesse período de esconde-esconde. Os próprios palácios por Pierre A. F. Chordelos de Laclos: As que os personagens habitam são cheios Ligações Perigosas. Os protagonistas são de espelhos, portas e janelas espelhadas, dois ‘libertinos’, uma mulher, a marquesa câmaras recônditas, sótãos, desvãos, etc., de Merteuil, e um homem, o visconde de propiciando um amplo e intrincado jogo Valmont. Eles dedicam todo o seu tempo nesse sentido. a manipular os sentimentos dos outros Cabe lembrar ainda que Chordelos de para torná-los escravos ou levá-los à ruína. Laclos, o autor do romance epistolar origi- Sabem usar os mais sofisticados jogos psi- nal posteriormente transformado em peça cológicos para que os outros se enamorem e esta em roteiro fílmico, era um militar. deles, e desfrutem o poder do amor. Usam- Tanto nos termos utilizados no romance nos para objetivos torpes, como vingar-se original quanto nas marcações espaciais de alguém ou simplesmente porque fizeram da movimentação dos atores no filme, uma aposta, e a corte poderá rir nas costas do com freqüência as mulheres mais ingê- ingênuo, que se deixou cair na armadilha” nuas e inocentes, como Tourvel e Cécile, (Alberoni, 1986, p. 167). são “tomadas de assalto, ou surpresa”, qual estratégia militar de ataque a campos ou fortalezas inimigas. Outro elemento asso- ciativo claramente presente nos processos de sedução do filme é o do caçador e da caça. Não é gratuita a saída de Valmont e seu empregado para caçar no castelo da tia onde começa a conquista de Tourvel. Valmont se mostra um autêntico predador à espreita de sua caça em inúmeras cenas. Força Cécile, outra vítima, a ter relações com ele depois de convencê-la a lhe dar a chave de seu quarto aparentemente para lhe entregar as cartas de seu amado Dancény. Freqüentemente Valmont se aproxima da frágil Mme. de Tourvel por trás, como se estivesse prestes a morder-lhe a jugular e carregá-la qual presa pelo pescoço, como o fazem muitos animais com as vítimas abatidas. Alberoni nos lembra que os grandes apaixonados são bem canhestros nas artes da sedução, o verdadeiro sedutor é muito

154 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 mais dissimulado, manipulador e calculista. juras apaixonadas e uma proximidade per- Tourvel está apaixonada por Valmont, que turbadora. Tourvel está ofegante e cai aos domina com maestria as artes da sedução, pés do visconde pedindo-lhe que a poupe sabe quando atiçar o desejo e quando aba- e não a possua. O visconde a levanta em fá-lo provocando fascinação e perturbação seus braços, a deposita no leito, abre parte ainda maiores na seduzida; ele mantém, de seu corpete para que respire melhor, se durante a maior parte da narrativa, um con- aproxima ao máximo do rosto dela e quando trole total sobre o jogo da sedução. a vê totalmente entregue levanta-se repen- Tal como declara em sua conversa inicial tinamente e chama os empregados dizendo com Merteuil, Valmont não quer subverter que Mme. de Tourvel está doente. Como os profundos preceitos morais de Tour- bem nos lembra Alberoni (1986, p. 73), “o vel, que é casada com fortes convicções grande sedutor tem paciência […] sempre religiosas. O visconde quer que ela ceda sabe bater em retirada, dar um passo atrás, apesar deles, de forma sofrida, para que o sabe sempre adiar sua urgência”. seu triunfo seja ainda maior. O inveterado Após tal incidente, Tourvel cai em pran- conquistador é mestre em perturbar a bela tos como uma criança. Trata-se de jogos de e venerável Tourvel utilizando jogos de máxima tensão e distensão que o sedutor palavras que não condizem com suas pos- domina friamente e a seduzida o faz de ma- turas físicas: ao mesmo tempo em que se neira canhestra e dolorosa. Tanto é assim, revela perdidamente enamorado da dama, que os centros vitais da jovem senhora estão Valmont se diz incapaz de desrespeitá-la visivelmente afetados, ela mal consegue por admirar sua virtude. Todas essas falas respirar, tal como já ocorreu quando bateu ocorrem na enorme sala do castelo de tia em retirada após os avanços do visconde Rosemonde. Eles estão sentados cada um no salão do palácio de tia Rosemonde, já em um sofá, face a face, em respeitável dis- mencionados. tância inicial. Logo após as palavras ditas, Na conquista de Cécile, embora a se- porém, ele salta rapidamente para perto de dução seja tão predatória que ela chegue a Tourvel, se ajoelha junto a ela com o rosto abortar um filho de Valmont, estando noiva bem próximo ao dela. O sedutor mais parece de um homem mais velho que a quer virgem um estrategista atacando a fortaleza inimiga, até o casamento, apaixonada por Dancény, ou um predador cercando a sua presa. Seus a jovem parece ter futuro com essa classe ataques não se resumem, no entanto, aos de imbróglios. Mais moça, mais maleável, espaços fechados onde os limites físicos sob a orientação da melíflua Merteuil, ao são mais claros. Quando Mme. de Tourvel que tudo indica Cécile seguirá no futuro passeia no imenso jardim do castelo o espaço passos similares aos de sua mentora. é totalmente aberto, mesmo assim Valmont O triângulo amoroso de fundação do não deixa de assediá-la colocando-se ora à relato é constituído por Merteuil, Valmont direita, ora à esquerda, ora atrás da jovem e Tourvel. A marquesa, com sua sutil per- senhora, perturbando-a com juras contínuas, cepção feminina, percebe muito antes do inquietando-a com suas contínuas danças e próprio visconde que ele está, malgré soi, contradanças no espaço. irremediavelmente apaixonado por Mme. de Um dos maiores golpes do visconde Tourvel, a quem ele pensa estar seduzindo ocorre depois de uma trégua mutuamente levianamente dentro dos moldes liberti- acordada no tocante aos avanços do nobre. nos. Merteuil vai exigindo cada vez mais Tourvel, com a guarda baixa, é acompa- provas do visconde, inclusive escritas, que nhada por Valmont até o seu quarto no incriminem publicamente a seduzida, cujo castelo. Ele pára na soleira da porta em marido magistrado está tratando de um caso atitude de aparente respeito. A conversa interminável em outra região da França. vai terminando e ela vai avançando para Quando madame de Tourvel finalmente o centro do aposento e eis que num átimo cede à sedução de Valmont, o amor, o cari- Valmont já está próximo dela com mil nho, a entrega são muito mais fortes do que

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 155 o visconde poderia admitir para si mesmo. A “[…] sous l’étiquette de l’amor goût. Ils (les arguta e perversa marquesa, ao se dar conta libertins) improvisèrent un art d’aimer à da paixão do visconde, resolve quebrar o la fois iconoclaste et rationnel que dévrait trato da aposta que haviam feito e não se établir le droit naturel à la promiscuité et à entrega a Valmont após a sedução de Tour- la volupté [...] l’hédonisme apparament ré- vel. Ela o desafia dizendo que ele não faz volutionnaire de l’époque dégénéra en une jus à sua fama de verdadeiro conquistador, sorte d’autolâtrie farouche et misantrope: que só cumprirá o trato quando o visconde le libertinage machiavélique de Valmont tiver a mesma força de um amigo dela cuja et Merteuil”. paixão estava se tornando o objeto de riso na sociedade libertina de então, motivo que Nesse sentido é muito instigante a análise o levou a terminar com a amante alegando do desenlace: passa-se do cinismo, do des- que fidelidade, paixões, etc. “estavam além comprometimento, da nonchalance do amor do seu controle” ou “escapavam a seu con- libertino, com seus jogos e manipulações trole” de conquistador nato. de poder e prestígio social, para um amor Para a perversa Merteuil tal história era desbragadamente romântico na trajetória exemplar da conduta que o próprio Val- de Valmont e Tourvel. mont deveria ter se quisesse manter a sua Declarada a guerra, os sedutores-mani- reputação de sedutor. Ele efetivamente faz puladores passam a denunciar suas mútuas o que a marquesa sugere, mas a um custo jogadas aos manipulados. Como conse- muito maior do que ele é capaz de aquila- qüência, Dancény e Valmont se batem em tar no momento da ruptura, mas que seu duelo. Ao contrário do clima primaveril corpo denuncia de forma veemente, pois, dos momentos de sedução, o duelo ocorre ao sair da casa da amante desprezada, ele no mais rigoroso inverno em meio à neve. está mortalmente pálido, cambaleia e quase Dancény atinge Valmont que, longe de es- desfalece junto ao batente da porta. capar, enterra ainda mais fundo a espada no Quando o visconde de Valmont descre- peito. Antes de morrer o visconde entrega ve vitorioso todos os detalhes da ruptura as cartas de Merteuil a Dancény dizendo com Tourvel, ao alegar que não a amava que no meio de todos os jogos “we were mais pois “escapava a seu controle”, não both her creatures”. Faz o rival prometer podia deixar de ser-lhe infiel “pois esca- que verá Mme. de Tourvel e lhe dirá que pava a seu controle”, etc., frases com as os momentos que passou com ela foram os quais deu estocadas fatais no coração da únicos felizes de sua vida, que não sabe o seduzida, Merteuil percebe que tamanha que fez, nem por que, e se arrepende profun- volúpia em infligir a dor só poderia escon- damente do dano que lhe causou. Dancény der uma coisa: a louca paixão de Valmont fala com Mme. de Tourvel moribunda no por Tourvel e, novamente, a marquesa convento, assistida pelas Volanges, mãe e se recusa a ter relações com Valmont. filha. Ela ouve e diz: “Enough!”, e falece. Eles, que antigamente eram cúmplices na Para uma sedução que começou nas mais perversidade, passam a lutar em campos puras regras da libertinagem à la Merteuil opostos: a guerra está declarada. Não se e Valmont, este último termina como Tour- deve esquecer, mais uma vez, que Laclos vel em alta voltagem romântica, morrendo era militar. de amor. Nesse, como em vários outros As últimas seqüências analisadas ofe- filmes, percebe-se que, quando a trajetória recem uma perfeita ilustração do grau de de Eros se vê seriamente truncada de algum perversidade e deterioração a que haviam modo, com freqüência a trama desemboca chegado as propostas do amor libertino tragicamente na pulsão freudiana opositiva: do século XVIII francês em sua fase final Thanatos. e à que Sturm, no prefácio a Oeuvres de Leloup nos lembra que “o corpo não es- Crèbillon, se refere com o conhecimento quece”, mesmo que já tenhamos afastado a de um especialista: lembrança de muitas de nossas experiências

156 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 vividas, boas ou não. Assim, os corpos de castelo da tia, Valmont descobre que Mme. Tourvel e Valmont glorificados no amor se de Volanges, mãe de Cécile, é a autora de desvanecem consumidos pela dor, de dife- copiosas missivas que alertam madame de rentes origens em ambos, mas caracterizada Tourvel contra ele, considerado um devasso. por um profundo arrependimento, maior A partir desse momento da trama os obje- ainda em Valmont porque foi ele quem tivos de ambos os nobres se conjugam e infligiu a dor a Tourvel, tanto é assim que começa o cruel jogo de perversões próprio morre enterrando mais fundo em seu corpo da nobreza ociosa, entediada e poderosa do a espada de Dancény: “quem com ferro fere, século XVIII francês que se caracterizou com ferro será ferido”. como o “amor libertino”. Tal associação entre as duas pulsões Ao contrário do perverso libertino freudianas extremas também foi observada Valmont, cujo final é romântico, cabe à por Alberoni (1986, p. 63) ao afirmar que marquesa de Merteuil recolher as con- seqüências sociais dos jogos de sedução “Georges Bataille, em seu livro O Erotismo, mortais praticados por ambos, típicos da deu muita importância a Sade, definindo o libertinagem. erotismo como presença da vida dentro da Merteuil acrescenta um caráter altamen- morte e presença da morte dentro da vida. te intelectualizado ao erotismo presente na Para Bataille, existem na natureza duas obra. Conhece mais que Valmont os jogos da forças, uma que tende ao individualismo, sedução a que Baudrillard se refere. Tanto e ao indivíduo que quer sobreviver. Outra é assim que as contenções, afastamentos, que tende à fusão, e dessa maneira, à de- rodeios, provocações que Valmont mal composição do indivíduo, à sua morte. Esta consegue manter ao final da sedução de segunda força é a violência. No erotismo as Tourvel, Merteuil os mantêm à risca com duas operam. O indivíduo quer permane- Valmont e não cede o menor terreno, nem cer ele mesmo, e, todavia , fundir-se com quando está prestes a beijá-la, ou quando o outro”. ele solicita módicas antecipações de paga- mento “em espécie” à marquesa à medida Como se pode depreender das cenas que suas conquistas avançam. Em uma analisadas, o corpo é mais revelador que a dessas cenas a marquesa recusa friamente palavra, instrumento de domínio cultural os pedidos do visconde quando se despe- mais consagrado. Por outro lado, o contrário dem. Ele, já na parte mais baixa da escada, também pode prevalecer em alguns casos. com movimentos desajeitados e infantis Guimarães Rosa nos lembra que “toda dos pés (erotismo), olha para cima onde ação começa por uma palavra pensada”. É ela se encontra, numa evidente situação de Merteuil a grande mentora intelectual de desvantagem denunciada pela proxêmica e tudo o que se passa na trama. Ao conversar acentuada pela câmera alta. com Valmont, no início do filme, revela que Em conversa lapidar com Valmont, deseja vingar-se de seu ex-amante Bastide, Merteuil lhe revela que ela foi obrigada a já com idade, mas desejoso de casar-se com “inventar-se a si mesma” numa sociedade uma virgem inocente. A candidata é Cécile em que a mulher é tolhida de todas as suas de Volanges, recém-egressa de rigorosa manifestações. Assim, teve de tornar-se educação num convento. Merteuil instiga uma “mestra da dissimulação”, sua forma Valmont a conquistá-la e fazer do futuro de encarar a sedução foi muito mais uma marido o motivo de escárnio da corte da forma de “conhecimento” que lhe permitia época. O visconde se nega por julgar a ta- “dominar o sexo masculino e vingar o sexo refa aquém de seus dotes de conquistador e feminino”. Tirando a evidente perversidade por estar interessado em Tourvel, hóspede de Merteuil que, como a de Valmont, pre- de sua tia. Merteuil considera o triângulo judica as vidas de todos ao seu redor e faz amoroso com uma pudica mulher casada parte das características do “amor libertino” um tédio; sem tratos, despedem-se. No em sua fase evolutiva final, permanecem

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 149-158, março/maio 2006 157 perguntas provocadoras sobre os limites sua inteligência e de sua sexualidade? Eis do poder de sedução da mulher, sobre a uma dúvida que caberia investigar. Afinal, aceitação do poder da mulher na sociedade e até mesmo no Brasil, aparentemente tão sobre o exercício da inteligência da mulher liberal nesses temas, os espectadores pe- junto com o exercício do prazer. diram a morte de Odete Roitman em Vale Ao final do filme, Merteuil é vaiada em Tudo como presente de Natal, uma mulher público no teatro depois que a sociedade rica, industrial inteligente, ambiciosa e toma conhecimento do teor de suas cartas e que tinha relações com César, garoto de ações. Já em casa ela tira toda a maquilagem programa. O mesmo público não pareceu (máscara) num fecho brilhante para uma especialmente indignado com o dr. Felipe narrativa que começou com a montagem Barreto, em , perverso paralela das seqüências das cuidadosas, de carteirinha, no universo mitificado dos demoradas e requintadas formas de vestir médicos famosos, e que não hesitou, entre dos poderosos e perversos nobres Merteuil e outras tantas maldades, em fazer uma aposta Valmont preparando-se de forma mais do que na qual se julgava no direito de usurpar o pertinente para as suas seduções fatais. privilégio do marido de ter relações com Sedução: cultura, estratégia de guerra, a esposa virgem em sua noite de núpcias. caçada de predadores na fase final e mais Jux prima noctis em pleno século XX!!! aterrorizante da libertinagem. Teriam sido Saudades dos tempos leves da “amizade todas as sociedades, até mesmo a do século colorida”? Terá a sedução uma faceta similar XVIII, autodenominada “libertina”, sempre à do “monstro de olhos verdes”, o famoso tão pouco condescendentes com mulheres ciúme shakespeariano? A pesquisa deverá, que ousaram fazer um livre exercício de sem dúvida, continuar…

BIBLIOGRAFIA

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