Educadores Protestantes em no final do século XIX: estranhos, irradiadores de luz ou lobos em pele de ovelhas?

Thais Gonsales Soares Cesar Romero Amaral Vieira Universidade Metodista de Piracicaba, Programa de Pós-Graduação em Educação – Piracicaba/SP. Agência de Fomento: CNPq

Eixo: 8 - Pesquisa, Educação, Memória e Patrimônio. Categoria: Comunicação.

INTRODUÇÃO Na província de São Paulo, nas últimas três décadas do século XIX, em decorrência das dificuldades resultantes dos baixos recursos provinciais para a criação e manutenção de escolas públicas, o ensino primário e especialmente o secundário provincial, foram entregues à iniciativa particular. Neste período, uma das maiores dificuldades da manutenção das escolas, principalmente com relação ao ensino elementar (reduzido às primeiras letras), devia-se ao fato de que as despesas necessárias à instalação das aulas geralmente eram pagas pelos próprios professores, sendo instaladas em sua moradia ou em locais cedidos por terceiros, uma vez que as autoridades afirmavam a inexistência de condições para arcarem com as despesas de imóveis para essa finalidade. De acordo com Haidar (2009), a dificuldade em adquirir o material escolar também existia, devido à insuficiência de verbas e a inoperância da burocracia governamental. A partir de dados extraídos dos relatórios provinciais daquele período, este era o panorama da instrução pública provincial de um modo geral, e a cidade de Piracicaba não fugia à regra. Os dados apresentados pelo jornal Gazeta de Piracicaba1 no início da década de 1880 mostram que a cidade, neste período, contava com seis escolas públicas, três masculinas e três femininas, onze escolas particulares, além de três ou quatro cadeiras criadas em bairros rurais, desprovidas de professores, sendo que o total de crianças que recebiam instrução não ultrapassava a 413 (GP, 03/09/1882, p.2). A dificuldade para a manutenção das escolas públicas na cidade fica evidente nas diversas notícias que se referem à abertura e o rápido fechamento de escolas ou aulas particulares, assim como nas críticas à falta de estrutura das instituições públicas de ensino.

1 A primeira edição da Gazeta de Piracicaba [GP] foi em 11 de junho de 1882, quando iniciou suas publicações três vezes por semana. A folha tornou-se diária a partir de 27 de março de 1887, voltando a ser publicada três vezes por semana 17 meses depois. O Colégio Piracicabano, fundado em 1881, sob os auspícios da Woman’s Missionary Society of Methodist Episcopal Church - South2, tornou-se ao longo de seus primeiros anos de funcionamento uma instituição educativa de referência por possuir aspectos que o diferenciava das demais escolas da região. Elogios quanto ao método de ensino e a organização existente podem ser vistos nas principais páginas da Gazeta de Piracicaba (17/06/1882, p.2). Entretanto, foi após o anúncio da construção de um edifício próprio, o Principal, em 8 de fevereiro de 1883, que o Colégio diferenciou-se ainda mais dos outros estabelecimentos de instrução da cidade por ser a primeira escola que dispunha de um edifício apropriadamente construído de acordo com as prescrições pedagógicas modernas, em um contexto no qual as escolas geralmente eram instaladas em casas alugadas, sem espaço e mobílias adequadas. A criação do Colégio Piracicabano encontrou um grande apoio na emergente elite republicana da região (Cf. BARBANTI, 1977; MESQUIDA, 1994; VIEIRA, 2006). Longe de ser um quadro exclusivo, a aproximação entre protestantes norte-americanos e grupos de republicanos brasileiros foi uma ocorrência relativamente comum em diversas regiões do Brasil nesse período, conforme apontam diversas pesquisas que abordam sobre o tema.

DISPUTA ENTRE REPRESENTAÇÕES Como proposto no título dessa comunicação, analisaremos três diferentes representações atribuídas aos fundadores do Colégio Piracicabano por diferentes agentes sociais: “estranhos” na cidade foi como Martha Watts, diretora do Colégio, se auto classificou em carta escrita em 1882, para a Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas dos Estados Unidos. Para os republicanos do jornal Gazeta de Piracicaba, em 1883, o Colégio era identificado como portador de “esplêndida luz”. Por sua vez, para o pároco da cidade, os protestantes eram vistos como “lobos” de outras religiões que encobriam seus vícios e corrupção com a pele da ovelha. Tais representações trazem consigo, assim como destaca Chartier (1990), os interesses dos grupos que as forjam e a tentativa de legitimação e justificativa das visões de mundo e dos projetos defendidos. Para uma melhor compreensão dos aspectos que envolvem a constituição de tais representações, destacaremos elementos da pluralidade social existente a partir da identificação de características dos grupos envolvidos e do contexto em questão. Em 19 de maio de 1881, chegou a Piracicaba Martha Hite Watts, a primeira missionária enviada pela Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas nos Estados

2 Sociedade Missionária de Mulheres da Igreja Metodista Episcopal do Sul dos Estados Unidos - Essa sociedade sustentava missões educativas e foi responsável pela instalação de 15 escolas no Brasil no final do século XIX e início do XX. Unidos, em companhia dos pastores metodistas John J. Ranson, James W. Kogger e esposa e James L. Kennedy. É possível perceber um pouco das impressões que Watts tecia sobre sua chegada ao Brasil a partir da leitura de suas cartas e relatórios, encaminhados a Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas. Em carta escrita em janeiro de 1882, destinada à Sra. Butler3, Martha Watts informa sobre o panorama educacional de Piracicaba e externaliza sua condição de outsider, para empregar aqui uma expressão cara a Norbert Elias e John L. Scotson (2000)

Nós somos estranhos e protestantes, e a cidade está cheia de escolas e de professores, que ensinam a preços excessivamente baixos, e a probabilidade é de que teremos que esperar algum tempo para termos uma escola grande, pois somente alguns que dão valor a um sistema de educação melhor do que o fornecido por estas escolas nos darão suporte. (MESQUITA, 2001, p.36, grifo nosso)

Ao classificar-se como “estranhos e protestantes”, Watts se referia a um aspecto distinto da representação que possuía na cidade. Naquele período, ser protestante em um país oficialmente católico não oferecia muitas vantagens, pois, apesar de contar com o apoio de um grupo republicano, não tinha a aceitação de grande parte da população, como é possível se averiguar nos debates públicos veiculados nas principais páginas da Gazeta de Piracicaba. Além do estranhamento causado pela presença de protestantes na cidade, Martha Watts apontava para a existência de um grande número de escolas e de professores que ensinavam a preços baixos. Temos dados mais concretos das iniciativas particulares a partir de setembro de 1882, pouco mais de um ano após a chegada de Watts: os números apontados pela Gazeta de Piracicaba com relação às escolas particulares indicam a existência de 11 instituições, “O numero dos alumnos que frequentam as 11 escolas particulares que existem nesta cidade eleva-se a 238, sendo 163 do sexo masculino e 75 do sexo feminino” (GP, 03/09/1882, p.2). Nesse sentido, além da representação negativa atribuída por alguns setores da sociedade aos protestantes, outro fator de dificuldade para o estabelecimento do colégio metodista foi a concorrência de algumas iniciativas particulares que ofereceriam, de acordo com Martha Watts, preços excessivamente baixo. Apesar de o Colégio Piracicabano, representante de um país republicano e protestante, ter sido instalado em um país governado por um regime monárquico e ainda oficialmente católico, é possível notar o crescimento do número de alunas. Como destaca Jair Toledo Veiga em um levantamento sobre os primeiros alunos do Colégio Piracicabano, o número de matrículas em fevereiro de 1882 era de quatro alunos, enquanto no mesmo período do ano seguinte, registrava-se 42 alunos. Em fevereiro de 1884, o livro de

3 Foi secretária executiva e editora responsável por receber e publicar estas cartas no Woman’s Missionary Advocate, periódico da Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas (Cf. OLIVEIRA, 2007). matrículas já indicava o número de 88 estudantes, praticamente duplicando a quantidade de inscrições no período de um ano (JP, 24/05 e 07/06/1981). Embora, já bastante enfatizado por outras pesquisas citadas, é importante destacar o estreito relacionamento mantido entre os missionários protestantes e as elites republicanas da província. Se analisarmos a lista das primeiras alunas matriculadas, podemos perceber esta condição. A primeira aluna matriculada em 13 de setembro de 1881, Maria Azevedo de Escobar, filha de Ana Luiza da Silva e de Antonio Gomes de Escobar4, um escrivão, amante da música e jornalista anticlerical. Além de Maria Escobar, outros alunos se destacavam pela ligação de suas famílias com o movimento republicano na cidade, como exemplo, podemos citar os nomes dos filhos de Manoel de Moraes Barros5: Elisa de Moraes Barros e Jorge de Moraes Barros, matriculados no Colégio Piracicabano em março de 1882, Anna Maria de Moraes Barros, matriculada em abril do mesmo ano como aluna das segundas letras e Nicolau de Moraes Barros que ingressou em 13 de setembro de 1883, com seis anos de idade (JP, 31/03 e 14 e 21/06/1981). Em junho de 1882, também foram matriculados no Colégio Piracicabano Maria Amélia de Moraes Barros, que na época contava com 15 anos e Prudente de Moraes Filho, com oito anos de idade, ambos filhos de Prudente de Moraes Barros6 (JP, 14/06/1981). A evidência desta aproximação pode ser percebida nas lembranças de Nicolau de Moraes Barros em discurso proferido por ocasião das comemorações alusivas ao 77º aniversário do Colégio Piracicabano:

Guardo bem vivo na memória o dia em que, no velho solar de residência de minha família à antiga Rua do Comércio, apareceram duas senhoras cujo aspecto, trajes e maneiras denunciaram duas extrangeiras. Miss Watts era uma delas. Na carta de apresentação que traziam a meu pai, se dizia serem enviadas de uma associação de ensino americana, de caráter religioso, para aqui fundarem um colégio. Inteirado do objetivo, não disfarçou meu pai o seu contentamento, antes deu-lhe franca expansão acolhendo as visitantes com simpatia carinhosa e pondo-se a seu serviço. (BARROS, 1958, p.6-7)

É provável que o senador Manoel de Moraes Barros tenha hospedado Martha Watts e a esposa do rev. Koger durante aproximadamente dois meses, já que a narrativa de Nicolau de Moraes Barros indica que “decorridos dois meses abria-se o Colégio

4 Segundo Veiga (1981) diretor do primeiro periódico local “O Piracicaba”, dirigindo mais tarde o “Palavra de Deus” de tendência contrária a Igreja Católica. 5 Um dos líderes republicanos em Piracicaba. Nascido em Itu em 1836, mudou-se para Piracicaba em 1857, ao ser nomeado promotor público. Exerceu também os cargos de juiz municipal e delegado de polícia em Piracicaba. Foi senador pelo Estado de São Paulo de 1895 a 1902, e deputado provincial. 6 Nascido em Itu em 1841, mudou-se para Piracicaba em 1863. Foi presidente da Câmara Municipal de Piracicaba, deputado provincial em SP e Governador do Estado de SP no período de 1889 até 1891, cargo que renunciou para presidir como senador a sessão para a promulgação da Constituição Republicana, em 1891. Foi o primeiro Presidente Civil eleito pelo povo, com mandato de 1894 a 1898. Piracicabano, instalado em pequeno prédio alugado à Rua dos Pescadores” (BARROS, 1958, p. 8) Essa amizade pode ser percebida também nas palavras da própria Watts, que durante o período de férias no ano de 1883 escreve: “Eu tenho planos de passar uma semana no campo com a família do Dr. M. de M. Barros, e, quando voltar, devo colocar a escola em ordem para o reinício das aulas no dia 15 de janeiro” e ao final enfatiza dizendo que “o presidente do Conselho da Cidade é um bom amigo nosso – Dr. Moraes Barros” (MESQUITA, 2001, p.53,55-6). Essa ligação entre as lideranças republicanas da cidade e a direção do Colégio tornou possível a sustentação da instituição de ensino e a consolidação de relações recíprocas. Além do estabelecimento dos norte-americanos na cidade e a possibilidade de realização do trabalho missionário por meio também da escola, não podemos desconsiderar o interesse das elites republicanas da região em se aproximarem do modelo político norte- americano e seus ideais federalistas. O apoio republicano não se limitava aos metodistas, também estendia-se às demais religiões protestantes, como demonstra Vieira (1980) ao tratar, por exemplo, do apoio fornecido aos presbiterianos na província paulista. No início de 1883, fez-se necessário a construção de um edifício para abrigar o crescente número de alunas. A partir desse período, encontramos diversas considerações na imprensa sobre o evento de lançamento da pedra fundamental para a construção do prédio do Colégio Piracicabano, o Principal. Essas considerações nos permitem identificar as distintas perspectivas de agentes sociais do período e alguns aspectos da multiplicidade social que envolvia o Colégio. Diferentemente da auto representação de Martha Watts, para os editores da Gazeta de Piracicaba, o Colégio Piracicabano era sinônimo de uma “esplendida luz”:

Um facto altamente significativo acaba de dar-se n’esta cidade. Ante- hontem foi lançada a primeira pedra para a construcção do projectado edificio onde há de funccionar o Collegio Piracicabano, essa esplendida luz que seus benemeritos fundadores tão generosamente fizeram raiar no vasto horizonte de nossa patria. (GP, 11/02/1883, p.1, grifo nosso)

Não foi apenas esta a comparação utilizada, o jornal ainda afirmava que o ato de lançamento da pedra fundamental para a construção do prédio do Colégio era significativo, pois:

(...) acompanhando o tactear confuso ainda, da geração actual do nosso querido Brazil, vemos debater-se nas trevas o maior numero das nossas compatriotas a quem está confiada directamente a nobre missão de mães. Um facto altamente significativo, dizemos ainda, porque n’aquella pedra que ante-hontem foi lançada a terra, vae basear-se um estabelecimento de instrucção solida e companheira da verdade accordada com os progressos do seculo em que vivemos, e o que é mais, um estabelecimento de solida educação para a mulher, educação que afasta fortemente de si as velhas rotinas. (GP, 11/02/1883, p.1, grifo nosso)

A associação entre o Colégio e os “progressos do século” foi utilizada em oposição às iniciativas educacionais confusas, que estariam a “debater-se nas trevas”. Considerando que houve uma forte aproximação entre os metodistas fundadores do Colégio e os republicanos da cidade de Piracicaba, é possível compreendermos, em certa medida, por que os republicanos da Gazeta de Piracicaba classificaram o Colégio Piracicabano como um irradiador de esplêndida luz e representante do progresso. Tal representação não era uma atribuição exclusiva dos republicanos de Piracicaba às instituições educacionais protestantes. Como destaca Souza, a oposição entre luzes e trevas, razão e ignorância, foram representações características da concepção liberal de educação, que fez parte do projeto liberal dos republicanos paulistas, para os quais a educação teria se tornado uma estratégia de luta, além de um projeto social (1998, p.26). Essa correlação entre o Colégio Piracicabano, o progresso e as luzes, perpassou todas as notícias veiculadas pela Gazeta de Piracicaba sobre a instituição durante o período de análise desse trabalho. Em levantamento sobre as diferentes formulações teóricas e realizações que modificaram a Escola Normal da Praça, em São Paulo, durante o período de 1840 a 1930, Monarcha utilizou como um dos fios condutores de sua pesquisa a metáfora “luzes” e “trevas” para analisar as diferenças de sentidos e representações. Para o autor, no imaginário paulista da época o futuro estaria associado à máquina a vapor e ao trabalho, assim como ao nível de civilização. A participação dos produtos da indústria paulista na Exposição Internacional de Filadélfia, em 1876, é um demonstrativo dessa correlação. Para Monarcha, além da defesa da industrialização, da expansão das linhas ferroviárias e da educação, também existia nos relatórios oficiais dos administradores públicos da província de São Paulo a utilização de um vocabulário específico, tais como os termos “civilização”, “razão”, “progresso”, “luz”, entre outros (MONARCHA, 1999, p.75). Para ampliarmos a identificação dos discursos e das representações sobre o Colégio Piracicabano, destacamos outras representações a partir da crítica veiculada pelo jornal católico O Apóstolo sobre o evento do lançamento da primeira pedra do Colégio a partir da seguinte notícia:

Eis o caso: desde 1875, varios pastores methodistas têm-se esforçado para realisarem a fundação de um collegio (internato) protestante, para meninas! Brazileiras nascidas de pais catholicos! Manhosamente caminhando, a empreza conseguio no dia 8 do mez findo lançar a primeira pedra de um edificio proprio, permanente, consolidado, tendo o auxilio decidido do actual presidente da municipalidade da catholica cidade de Piracicaba! (O APÓSTOLO, 02/03/1883, p.1)

Podemos notar que o reforço da palavra “católico” (“brazileiras nascidas de pais catholicos!” e “catholica cidade de Piracicaba”) evidencia a representação do protestante enquanto outro, fora de seu lugar. Na sequencia do trecho apresentado, o articulista d’O Apóstolo cita um artigo do jornal Piracicabano que resume a história do Colégio, afirmando com ironia:

Depois dessa brilhante marcha da instituição protestante sanccionada na [sic] cidade catholica, não sabemos mais o que admirar: se a audaciosa temeridade dos Rvds. Ministros methodistas a afrontarem os brios religiosos de uma nação que herdou o catholicismo como precioso legado dos seus maiores; se a culposa indifferença e manifesta apostasia de pais catholicos, sacrificando o futuro de suas filhas, e aceitando uma educação inviscada do virus protestante; se a criminosa tolerancia deste nosso paternal governo, que jurou antigamente, e continua a jurar todos os dias que mantém a religião catholica como a religião do Estado. (O APÓSTOLO, 02/03/1883, p.1, grifo nosso)

Segundo essa citação, podemos intuir que a causa do espanto dos editores d’O Apóstolo pode ser identificada em uma conjunção de fatores que permitiu o desenvolvimento do Colégio: a indiferença dos pais, a afronta dos metodistas e a criminosa tolerância do governo. É possível notar que de acordo com o artigo publicado n’O Apóstolo, que a principal questão a ser discutida era a preocupação religiosa com a presença do “vírus” protestante na região. Tal preocupação fundamentava-se principalmente no proselitismo dos colégios protestantes. De acordo com Barbanti,

(...) não podemos esquecer que as escolas protestantes americanas tinham evidentes fins de proselitismo, funcionando como agências catequéticas: a manutenção de estabelecimentos de ensino acadêmico representava na realidade, uma das técnicas de evangelização mais largamente empregadas pela Igreja Reformada na América. (BARBANTI, 1977, p.45)

Se a preocupação principal apresentada no jornal O Apóstolo estava centrada na presença protestante e na evangelização realizada a partir das práticas da instituição educacional, não podemos desconsiderar a importância da educação como veículo de propaganda e transmissão de cultura. Considerando que a instituição escolar produz sua própria cultura, de acordo com as análises já realizadas por Julia (2001), existia dentro do Colégio Piracicabano aspectos que o diferenciavam das demais escolas e após o início de funcionamento no novo prédio esses aspectos se intensificaram: mobiliário importado dos Estados Unidos, com por exemplo, carteiras individuais que se distinguiam das carteiras coletivas das escolas católicas, a ausência de estrado nas salas de aula, que permitia a aproximação entre alunos e professor, a existência das bandeiras norte americana e brasileira no auditório onde os alunos se reuniam para ouvir a leitura da bíblia e cantar hinos religiosos, sugerindo uma aproximação entre Estados Unidos e Brasil, além da existência de laboratórios de química e física, com equipamentos importados, propondo a identificação dos alunos com a cultura norte americana (Cf. MESQUIDA, 1994). Essas características que diferenciavam o Colégio Piracicabano tornaram possível a criação de um espaço atraente que propunha pela arquitetura e organização do prédio uma cultura escolar e material diferenciada No mesmo mês de publicação da notícia sobre o lançamento da pedra fundamental do prédio Principal, recuperamos da Gazeta de Notícias a terceira representação proposta para análise. A qual, a partir da cópia de um artigo escrito na Provincia de S. Paulo, denunciava a forma como o padre da cidade referia-se aos responsáveis pelo Colégio Piracicabano, classificando-os como lobos “com a pelle da ovelha”:

De Piracicaba, escrevem o seguinte á Provincia de S. Paulo de hontem: “O padre Julio Marcondes acaba de converter o púlpito da matriz d’esta cidade – a cadeira da verdade – em cadeira da difamação e do insulto. (...) Passando, porém, a tratar de Judas, o traidor, foi logo dizendo que o mundo estava cheio d’esses, e indicando-os em seguida disse: “São Judas os pais de familia, que entregam a educação de suas filhas a verdadeiros lobos de outras religiões, que, encobrindo seus vicios e corrupção com a pelle da ovelha, têm-se introduzido n’esta população. (...)” E’ manifesta a allusão aos pais e alumnas do collegio Piracicabano (...). (GN, 29/03/1883, p.2, grifo nosso)

Por meio desse artigo que manteve reservada sua autoria, é possível identificar os discursos dissonantes presentes em alguns dos embates traçados na cidade em decorrência deste estabelecimento. A crítica realizada pelo pároco, dirigia-se não somente aos protestantes da cidade, mas também aos pais católicos que permitiam que seus filhos fossem educados por aqueles. Podemos identificar aqui uma estratégia de luta pela manutenção do espaço de domínio católico. As críticas do padre revelam a invasão de seu território pelo outro, representado pelo Colégio Piracicabano, que teria se introduzido entre a população. Como destaca Chartier, “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p.17). Nesse sentido, consideramos que a tentativa do clérigo católico da cidade de impor seus valores e recuperar seu domínio evidencia que a representação atribuída aos protestantes, lobos “com a pele de ovelha”, fazia parte da estratégia para a recuperação da influência entre os pais piracicabanos que matriculavam seus filhos em um colégio protestante. Não podemos negligenciar o fato de que se a influência republicana crescia, seu espaço de poder ainda não era legítimo nesse período, tendo em vista que a monarquia era o regime político vigente. Portanto, se os protestantes vinham para um país que tolerava constitucionalmente outra religião que não a católica e travavam embates em defesa de suas perspectivas, os republicanos também mantinham seus discursos e suas representações no campo da luta para o estabelecimento de maior influência e de efetivo poder, daí a importância do confronto no campo das representações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A disputa educacional estabelecida por católicos e protestantes na cidade de Piracicaba não se manteve apenas nos debates pela imprensa. Vinte dias após o lançamento da pedra fundamental, foi divulgada a notícia da realização da benção para o lançamento da primeira pedra de um colégio católico que seria criado com a intenção de se opor a presença protestante no campo educacional, também direcionado para meninas, assim como o Colégio Piracicabano. O início do funcionamento do Colégio (Católico) de Nossa Senhora da Assunção se deu em 1893, com base nos referenciais ultramontanos sob os cuidados das Irmãs de São José de Chambery (Cf. MANOEL, 1996). Nesse sentido, consideramos que as disputas entre protestantes e católicos em Piracicaba demonstram que, apesar de caracterizar-se como um embate localizado, não pode ser deslocado de uma análise que leve em consideração as conjunturas e circunstâncias históricas específicas de âmbito nacional e local, considerando que as disputas por influência na cidade se estabeleceram a partir da articulação de diferentes representações que não podem ser compreendidas se analisadas isoladamente, uma vez que fizeram parte do embate de forças entre os grupos. Classificar os protestantes quer seja como irradiadores de luz, quer seja como lobos em pele de ovelhas, muito além de demarcar as representações feitas por diferentes agentes, evidenciava ainda a defesa de alguns dos projetos políticos para o país no período, fosse o projeto republicano, com o apoio à liberdade religiosa e aos princípios do liberalismo norte americano, fosse o projeto considerado mais conservador, com a manutenção da monarquia e da forte influência da Igreja Católica.

FONTES GAZETA DE PIRACICABA [GP]. Piracicaba: Typographia da Gazeta de Piracicaba. 1882- 1883. GAZETA DE NOTÍCIAS [GN]. : Typographia da Sociedade Anonyma "Gazeta de Notícias". 1883. JORNAL DE PIRACICABA [JP]. Piracicaba: Typographia do Jornal de Piracicaba. 1981 O APÓSTOLO. Rio de Janeiro: Typographia do Apostolo. 1883.

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