Maria Helena da Silva Gil da Costa

O MEDO E O DESENVOLVIMENTO HUMANO

Uma proposta de Educação de Adultos desde a inter-relação Criatividade e Motricidade Humana para uma vida “serena, útil e corajosa”

Dissertação de Doutoramento Área Científica – Educação

Orientadora – Professora Doutora Eugenia Trigo

UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

Vila Real, 2008

Este trabalho foi expressamente elaborado com vista à obtenção do grau de Doutor em Educação de acordo com o Decreto-Lei nº 388/70, de 18 de Agosto.

À Mãe e ao Pai

Agradecimentos

E agora, no final, é tempo de agradecer e de dar graças – não só por todas as vezes em que pedi e me foi dado, em que procurei e achei, ou em que bati e me foi aberto. Agora, no final, é também tempo de agradecer e de dar graças por todas as vezes em que me foi dado, mesmo sem ter pedido; em que achei, sem ter procurado; em que me foi aberto, sem ter batido. À Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, por ter acolhido este meu projecto. E porque são as pessoas que fazem as instituições, aos Coordenadores do Departamento de Educação e Psicologia, Professor Doutor José João Pinhanços de Bianchi e Professora Doutora Maria da Conceição Azevedo, e a tantos dos Professores e Colaboradores deste Departamento e da Universidade que, em muitas ocasiões, formais ou informais, sempre me fizeram sentir de dentro, mesmo sendo de fora. À Professora Eugenia Trigo, Orientadora desta tese – pelo seu rigor científico e busca incessante de coerência, pela sua capacidade de me fazer conciliar e olhar a tese e a vida numa perspectiva que eu não sabia ser possível, pelo seu acompanhamento permanente, pela sua persistência em descobrir novas formas de fazer tutoria que transformaram em proximidade os milhares de quilómetros que nos separavam. Aos Professores Maria da Conceição Azevedo e Luis Guillermo Jaramillo que, em diferentes etapas do projecto e com diferentes papéis, mas num mesmo sentimento de amizade e num mesmo espírito de exigência, acompanharam os meus trabalhos e, com os desafios que me colocaram, me fizeram crescer como investigadora e como pessoa. Ao grupo e a cada uma das pessoas do grupo de pesquisa colaborativa – à Conceição Barbosa da Cunha, à Maria da Conceição Azevedo, à Joana Cunha e Costa, à Mariana Salvador, ao André Vela, ao Ricardo Mota Leite, ao Rui Pedro Pereira, ao Vítor Briga. Pelo seu sim e pela sua amizade. Pela sua disponibilidade para se deixarem ser parte da pesquisa, pelo seu empenho na qualidade dos resultados, pela coragem de falarem das suas emoções e dos seus sentimentos, pela alegria que em tudo isso puseram. Sem eles o trabalho não teria sido possível. Com eles – nas palavras, nos gestos e no silêncio –, vivi momentos mágicos de relação e comunhão. À Universidade del Cauca, em Popayán, na Colômbia, nas pessoas dos Professores Magnólia Aristizábal e Pedro Yanza, por tão generosamente me terem acolhido e permitido estar presente, não só em diversos dos seus encontros e seminários da “Tercera Promoción do Doctorado en Ciencias de la Educación”, que foram decisivos na minha formação como investigadora, mas por também me terem permitido a experiência de me sentir parte de um dos seus grupos de estudantes. Com o Francisco Bohórquez, o Mario Loaiza, a Nubia Agudelo, o Luis Felipe Contecha, o Miguel Corchuelo e o Juan Martin Velasco comecei a descobrir a sabedoria e a generosidade da alma colombiana e que às vezes é preciso aprender a receber sem nada dar em troca. Ao Professor Scott Isaksen, Presidente do Creative Problem Solving Group, Inc., em Buffalo, nos Estados Unidos, que, na riqueza científica e humana da sua

equipa de Colaboradores e Associados (especialmente o Professor Don Treffinger, Brian Dorval, Ken Lauer e Jess Bergeron), não só me ajudaram agora na aplicação do VIEW e do Situational Outlook Questionnaire, como, ao longo dos anos, me têm ajudado a compreender e descobrir formas de potenciar a nossa capacidade criadora. Aos Professores Manuel Sérgio e Clara Costa Oliveira de quem, muito mais do que a validação das categorias de análise construídas, recebi importantes conselhos e incentivos. Ao Patronato de Santa Teresinha da Paróquia do Santíssimo Sacramento no Porto, muito especialmente ao Senhor Padre José Soares Jorge e ao Senhor João Sousa, por me terem disponibilizado os seus espaços para a realização dos diversos encontros do grupo de Pesquisa Colaborativa. À Universidade Católica, especialmente aos Professores Jorge Cunha e José Carlos Carvalho e ao Senhor Vítor Ventura que (muito para lá da cedência de uma sala de projecção para uma das sessões do grupo), com muita paciência estiveram disponíveis para encontrar os horários que melhor pudessem conjugar as minhas necessidades de trabalhar e de fazer a tese. À Guida e à Catarina pelo cuidado e carinho imenso que puseram na transcrição de tantas horas de gravação das sessões de trabalho de campo. E depois na recolha de textos, na revisão das minhas traduções, na impressão da tese, e etc. etc. etc. À Senhora D. Teresa Azevedo, e com muita saudade, pela sua amizade e capacidade de acolhimento, por todas as vezes que me recebeu na sua casa, por todas as vezes que se dispôs a vir à minha, por todas as vezes que organizou a sua vida pelas necessidades da minha tese, por todas as vezes que me alegrou a “alma” com os seus doces e coisas boas. Ao Richard que me ouviu, e ouviu e ouviu. À Guida, ao Zé, à Inês, à Mariana, à Catarina e ao Gonçalo, porque são a minha casa e durante sete anos não se cansaram de perguntar “quando é que acaba?”. À Mãe e ao Pai, junto de quem vejo o que é uma vida e um amor “sereno, útil e corajoso” – porque sempre acreditam, porque sempre estão.

Resumo

PalavrasPalavras----chave:chave: medo, desenvolvimento humano, educação de adultos, criatividade, motricidade humana, ecologia de saberes.

O medo, estado psicológico e mecanismo natural, está inscrito de forma indelével no mais profundo do nosso ser, mas, por força da aprendizagem e da cultura, pode sofrer alterações nas suas formas de expressão e no seu significado. Quando saudável, pode ser uma chamada para a acção, mas, quando se torna crónico, mesmo que não patológico, afecta a nossa capacidade de desenvolvimento e crescimento pessoal, a nossa relação com os outros e a nossa relação com o mundo.

Tendo como base esta preocupação e, como pressupostos, que o homem é um todo, a realidade é múltipla e complexa e a subjectividade é característica essencial do comportamento humano, esta tese assume e incorpora a necessidade de encarar a pesquisa nas ciências sociais e humanas com um acto criador. Assim, e enquanto Investigação Qualitativa que, em determinadas fases do processo, recorre à Pesquisa Colaborativa, pode ser sumariamente explicada a partir da interacção sistémica das quatro dimensões (os 4 P’s) da Criatividade.

O Produto, a tese – com o propósito de chegar a um conjunto de princípios educativos para lidar com o medo que possam ser aplicados em contexto de Educação de Adultos, esta tese incorpora: um conceito multidimensional de desenvolvimento humano; a noção de que os discursos são encarnados e que o investigador influi na construção do objecto do conhecimento; diferentes cosmovisões e diferentes linguagens.

A Pessoa, o investigador – para a criação de um produto com as características enunciadas, foi necessário que o investigador (singular ou colectivo, consoante as fases do processo), se dispusesse a conciliar a dualidade dos papéis de investigador e de investigado e, mais do que simples operador, mas como sujeito reflexivo, procurasse transformar o conhecimento em consciência.

A Pressão, a natureza do contexto da pesquisa – num clima que se procurou que fosse matizado por um conhecimento vivido, uma atitude de habitar a pergunta e uma vontade de jogar a inventar modelos.

O Processo, as operações realizadas – com correspondência entre as diferentes etapas e fases do processo da pesquisa e as componentes, estádios e fases do Processo de Resolução Criativa de Problemas, o processo de investigação foi percorrido em três diferentes caminhos: o caminho da reflexão e compreensão dos problemas e desafios encontrados; o caminho da execução e produção de resultados parciais e globais; o caminho da avaliação de todo o processo e que, como tal, encerra, mas também reabre para um outro ciclo da pesquisa.

Resumen

PalabrasPalabras----clave:clave: miedo, desarrollo humano, educación de adultos, creatividad, motricidad humana, ecología de saberes.

El miedo, estado psicológico y mecanismo natural, está inscrito de forma indeleble en lo más profundo de nuestro ser, pero, por medio del aprendizaje y de la cultura, puede sufrir alteraciones en sus formas de expresión y en su significado. Cuando es saludable, puede ser una llamada para la acción, mas, cuando se vuelve crónico, aunque no patológico, afecta a nuestra capacidad de desarrollo y crecimiento personal, a nuestra relación con los otros y a nuestra relación con el mundo.

Teniendo, como base, esta preocupación y, como presupuestos, que el hombre es un todo, la realidad es múltiple y compleja y la subjetividad es característica esencial del comportamiento humano, esta tesis asume e incorpora la necesidad de encarar la investigación en las ciencias sociales y humanas como un acto creador. Así, y mientras la Investigación Cualitativa, que, en determinadas fases del proceso, recorre a la Investigación Colaborativa, puede ser sumamente explicada a partir de la interacción sistémica de las cuatro dimensiones (los 4 P´s) de la Creatividad.

El Producto, la tesis – como el propósito de llegar a un conjunto de procedimientos y principios educativos para lidiar con el miedo que puedan ser aplicadas en contexto de educación de adultos; esta tesis incorpora: un concepto multidimensional de desarrollo humano; la noción que los discursos son encarados y que el investigador influye en la construcción del objeto de conocimiento; diferentes cosmovisiones y diferentes lenguajes.

La Persona, el investigador – para la creación de un producto con las características enunciadas, fue necesario que el investigador (singular o colectivo, consonante con las fases del proceso), se dispusiera a conciliar la dualidad de los papeles de investigador y de investigación y, más que simple operador, sino como sujeto reflexivo, procurase transformar el conocimiento en conciencia.

La Presión, la naturaleza del contexto de la investigación – en un clima en que se intentó que fuera matizado por un conocimiento vivido, una actitud de habitar la pregunta y una voluntad de jugar a inventar modelos.

El Proceso, las operaciones realizadas – en correspondencia entre las diferentes etapas y fases del proceso de la investigación y los componentes, estadios y fases del Proceso de Resolución Creativa de Problemas, el proceso de investigación fue recorrido en tres diferentes caminos: el camino de la reflexión y comprensión de los problemas y desafíos encontrados; el camino de la ejecución y producción de resultados parciales y globales; el camino de la evaluación de todo el proceso y que, como tal, cierra, mas también re-abre para otro ciclo de investigación.

Summary

Key WordsWords: fear, human development, adult education, creativity, human motricity, “wisdoms” ecology.

Fear – a psychological state of mind and a natural mechanism – is registered in ourselves in a permanent way. However, owing to learning and cultural differences, it may undergo changes in its meaning and in the way it is expressed. If healthy, it may be a call to action, but when it becomes chronic, although not yet pathological, it can affect our capacity for both development and personal growth, as well as our relationships with others and how we relate to the world.

With this in mind, and assuming that (1) man is a single entity, that (2) reality is both multiple and complex and that (3) subjectivity is an essential feature of human behaviour, then this thesis assumes and incorporates the need to view social and human scientific research as an act of creation. Therefore, as Qualitative Investigation (which, at some stages, uses Collaborative Research) it can be explained by systemic interaction of the 4 dimensions of Creativity (the 4 P’s) summarised as follows.

The Product, the thesis – aims to set out a number of procedures and educational principles for dealing with fear to use in an adult education context. It combines: different perspectives and visions of the universe and different languages; a multidimensional concept of human development; the idea that language is embodied in the person and that the researcher influences the construction of the object of knowledge.

The Person, the researcher – given the purpose of creating a product with the above- mentioned characteristics, it was necessary that the researcher (as individual, or as a group, depending on the stages of the process) was able (1) to conciliate the role of researcher with the role of object of research, (2) to be not only an operator, but a reflexive subject who tries to transform knowledge into consciousness.

The Pressure, or the nature of the research context – a climate which was intended to be of living knowledge; with an attitude of “inhabiting the question”, and a will to create its own research design.

The Process, the operations performed – links the different stages and phases of the research process with the different components, stages and phases of the Creative Problem Solving process. Consequently, the research process was done in three different paths: the path of problem and challenging understanding; the path of partial and global results production; the path of process assessment which, simultaneously closes and reopens into a new cycle of investigation.

Índice

Índice de Ilustrações iv Índice de Quadros vii Índice de Tabelas viii Índice de Mapas Mentais ix Índice de Gráficos ix Índice de Anexos ix

I. PROCESSO DA PESQUISA

Introdução 3 1. Fundamento Epistémico da Tese 4 1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o mundo 5 1.2 Implicações para a pesquisa 8 2. O Tema 15 2.1. Os caminhos que foram dar ao medo 15 2.2. O problema 20 3. A Pesquisa 23 3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa 24 3.2 Propósito e perguntas de investigação 28 3.3 Categorias de análise 34 4. Organização da Tese 37

Capítulo 1 – Roteiro 43 1. Criação do desenho da investigação 49 1.1 Os desafios do desenho da Complementaridade e do processo de Pesquisa Colaborativa no contexto metodológico da Investigação Qualitativa 49 1.2 Modalidades da investigação 53 1.3 Critérios de credibilidade 54 2. Itinerário e crónicas do caminho 55 2.1 Cronograma 57 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas 59 2.2.1 Etapa 0 – por outros caminhos 61 2.2.2 Etapa 1 – na procura de caminhos 63 2.2.3 Etapa 2 – caminhando 72 2.2.4 Etapa 3 – achando luzes 90

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2.2.5 Etapa 4 – novos caminhos 97 2.2.6 Correspondência entre processo criativo, processo da pesquisa e relatório da pesquisa 99 2.3 Processo de orientação da tese 101 2.4 Processamento de dados 106 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise 109 2.5 Aspectos éticos 113

II. CENTRAR

Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos 119 1. Eu Pessoa – Já alguma vez? 123 2. Eu Educadora – Memórias 134

Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros 143 1. O Medo 146 1.1 Omnipresença do medo 146 1.2 Vivendo com medo 174 1.3 Síntese do medo 198 2. O Desenvolvimento Humano 203 2.1 A inquietação do Ser 203 2.2 Contornos do desenvolvimento humano 214 2.3 Síntese do desenvolvimento humano 235 3. Campo de Criação 237 3.1 Educação de Adultos 238 3.2 Criatividade 243 3.3 Motricidade Humana 247 3.4 Inter-relação de conceitos 253 4. Educação Criativo-Motrícia 256 3.1 Enfrentando o medo 257 3.2 ConVIVENDO com o medo 277

III. AGIR

Capítulo 4 – Criar o caminho 285 1. Quem (somos os que fizemos parte da Pesquisa Colaborativa e constituímos o universo de estudo sobre o qual recai esta investigação)? 289 1.1 As pessoas 290 1.2 O grupo 302 1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações 317 1.4 Quem – excerto do mapa mental das categorias de análise 331

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2. O que (faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa)? 333 2.1 O disfarce do medo 333 2.2 Definição e caracterização do medo 337 2.3 Relação de medos e efeitos do medo 345 2.4 Síntese do “o quê” 353 2.5 O quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 355 3. Como (pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa)? 354 3.1 A vivência da totalidade 354 3.2 Formas de (não) lidar com o medo 360 3.3 Brincando com números 363 3.4 O processo de lidar com o medo 368 3.5 Síntese do “como” 373 3.6 Como – excerto do mapa mental das categorias de análise 375 4. Por que (razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus)? 377 4.1 Passagem de testemunho e contágio 377 4.2 As causas do medo 379 4.3 As causas do não medo como um dado insignificante muito significativo 386 4.4 O velho, o rapaz... e o medo 388 4.5 Conjugando e formulando uma resposta 392 4.6 Síntese do “por quê” 394 4.7 Por quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 397 5. Para que (serve uma vida serena, útil e corajosa)? 399 5.1 Ser parte do Universo 400 5.2 O medo para o desenvolvimento humano 401 5.3 O medo para a conservação social 403 5.4 O papel do medo na construção do humano 404 5.5 Ligações e reflexões 405 5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa 411 5.7 Síntese do “para quê” 412 5.8 Para quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 414

IV. CELEBRAR

O sentido do caminho 420 À maneira de conclusão 421 Proposta educativa 426

iii

Para abrir um novo caminho 436 Fechar o ciclo 437 Reabrir o ciclo 447

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 453

ILUSTRAÇÕES I.1 Imagem que, ao ouvir a sua conferência no IV Congresso Internacional de Motricidade Humana, o Prof. Manuel Sérgio (me) sugeriu sobre a nova forma de fazer ciência. 8 I.2 Inter-relação entre educação, ciência e desenvolvimento humano. 10 I.3 Da dicotomia à sinergia. 12 I.4 Caminhos. 15 I.5 Interligação entre conteúdo conceptual, processo de investigação e campo de criação. 34 I.6 Encadeamento das fases da pesquisa. 60 I.7 Primeira tentativa de definição do projecto de investigação. 62 I.8 Segunda tentativa de definição do projecto de investigação. 63 I.9 Objectivos e resultados da primeira fase das histórias de vida / escrita do eu. 65 I.10 Objectivos e resultados da segunda fase das histórias de vida / escrita do eu. 66 I.11 Construção do referencial interno. 67 I.12 Processo de revisão bibliográfica. 69 I.13 Linhas de orientação para a construção do itinerário da pesquisa e observação do trabalho de campo. 70 I.14 A pergunta como morada: caminho de construção. 71 I.15 Fotografias da sessão de relaxamento e construção das “caixas do medo”. 76 I.16 Fotografias da partilha da memória descritiva da “caixa do medo”. 77 I.17 Fotografias da partilha da aplicação da técnica ORA ao filme visualizado “A Vila”. 78 I.18 Fotografias da sessão de construção dos mapas mentais. 79 I.19 Fotografias do fim de semana no Gerês – caminhada nocturna e subida à serra. 80 I.20 Fotografias da preparação e da sessão do labirinto. 80 I.21 Fotografias da sessão de apresentação e discussão dos mapas mentais. 81 I.22 Fotografias do trabalho de construção de subcategorias. 91

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I.23 Construção de Sentido. 95 I.24 Fotografias de Orientadores e Orientanda. 103 I.25 Exemplo de um dos slides utilizados no primeiro encontro do grupo de pesquisa colaborativa. 114 II.1 Os próprios caminhos. 123 II.2 Querem ouvir uma história? 134 II.3 Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso pensar e sentir. 146 II.4 Síntese de definições de medo. 172 II.5 A diversidade do medo. 178 II.6 A ligação entre o medo e a organização perceptual. 194 II.7 Do domínio do medo sobre a acção ao medo impulsionador da acção. 198 II.8 “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A partir de Boff, 1998 e de Ribeiro Dias, 2000. 204 II.9 A dinâmica do Ser na perspectiva do Yoga Sutra. Adaptação de Esteves, 1999. 208 II.10 Higher Self e Ego. Reprodução, adaptação e tradução de Jeffers (1991:193). 210 II.11 Síntese de “Todos os nomes do Ser”. 213 II.12 A desumanização nas histórias dos homens. 214 II.13 A desumanização nas histórias dos homens. 217 II.14 A desumanização nas histórias dos homens. 219 II.15 Modelo ecológico de Bronfenbrenner. Reprodução de Papalia et al. (2001:14). 220 II.16 O círculo dos três caminhos. 226 II.17 Dinâmica do desenvolvimento humano. 236 II.18 Campo de criação – interligação das três dimensões. 237 II.19 Educação de Adultos: síntese do conceito. 240 II.20 Criatividade: síntese do conceito. 244 II.21 A abordagem sistémica da Criatividade. Tradução e reprodução de Isaksen, 1994. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission. 245 II.22 Motricidade Humana: síntese do conceito. 249 II.23 Relação entre os pilares da motricidade humana e as características do acto motrício. 250 II.24 Dimensões da corporeidade. Reprodução de Trigo, E. (2006). 253 II.25 Inter-relação dos conceitos de Educação de Adultos, Criatividade, Motricidade Humana e Desenvolvimento Humano. 254 II.26 O espaço dado ao Ser no processo de enfrentar o medo. 256 II.27 Dimensões da Educação Criativo-Motrícia. 258

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II.28 A pessoa-corporeidade. Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas). 259 II.29 O contexto/pressão-interacção da pessoa consigo mesma, com os outros, com o cosmos. Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas). 262 II.30 O processo-momentos da acção e da mudança. Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas). 265 II.31 O produto – consciência de si, consciência dos outros, consciência do mundo. 276 III.1 Passos 1 e 2 – análise e triangulação de actores e momentos da pesquisa. 387 III.2 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 290 III.3 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291 III.4 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291 III.5 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291 III.6 Fotografias de um encontro do grupo, três meses depois das sessões. 292 III.7 Perspectiva sistémica da criatividade. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission. 302 III.8 A importância do clima. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission. 302 III.9 Implicações do estilo de criação. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission. 310 III.10 Influências no comportamento criativo. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission. 310 III.11 Perspectiva sistémica das dimensões a considerar numa proposta de um programa educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano. 393 III.12 Sinergia dos movimentos horizontal e vertical das perguntas de investigação. 400 III.13 Construção do binómio individuação-solidariedade. 407 IV.1 Passo 3 – construção de sentido. 420 IV.2 Predomínios da utilidade e do agir. 423 IV.3 O predomínio da serenidade e do centrar. 424 IV.4 Predomínios do celebrar, mas sem coragem. 425 IV.5 A inter-penetração da serenidade, da utilidade e da coragem. 426 IV.6 A dinâmica do desenvolvimento humano na educação criativo-motrícia. 427 IV.7 Interacção sistémica dos princípios educativos de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano. 429 IV.8 Componentes e estádios de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano. 432 IV.9 Um tempo para terminar, um tempo para começar. 436

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IV.10 Voltando aos próprios caminhos. 438 IV.11 Símbolos do meu processo de crescimento. 440 IV.12 Aprendizagem quântica. 441 IV.13 “Era a mesma velha luta, mas eu estava a começar a partir de um lugar de maior liberdade do que antes” – Moffit (2001a:3) 447

QUADROS I.1 Síntese geral da pesquisa. 24 I.2 Caminhos, actores e tempos da pesquisa. 25 I.3 Perguntas, propósitos e categorias de análise da pesquisa. 29 I.4 Categorias de análise da pesquisa. 34 I.5 Resumo do índice da tese. 37 I.6 Desenho da pesquisa. 49 I.7 Cronograma da pesquisa. 57 II.1 Conceito de emoções primárias. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 156 II.2 Conceito de sentimentos de emoções universais básicas e subtis. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 157 II.3 Conceito de emoções secundárias. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 158 II.4 Conceito de emoções de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 159 II.5 Conceito de sentimentos de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 160 II.6 Cartografia elementar do medo. Reprodução e tradução de Marina (2006:33). 163 II.7 Propósitos do desenvolvimento humano. Reprodução de Trigo & Coego (2003). 277 III.1 Aplicação do SOQ – tabela comparativa entre os resultados do grupo de pesquisa e resultados de empresas inovadoras e de empresas estagnadas. 308 III.2 Resultados da aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa. 309 III.3A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (1ª parte). 318 III.3B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (2ª parte). 319 III.4A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (1ª parte). 322 III.4B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (2ª parte). 325 III.5A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (1ª parte). 328 III.5B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (2ª parte). 329 III.6 Relação entre “serenidade-utilidade-coragem” e o eixo central da categoria “como”. 369

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TABELAS I.1 O que é e o que não é “serenidade”. 31 I.2 O que é e o que não é “utilidade”. 31 I.3 O que é e o que não é “coragem”. 31 I.4 Interligação de conceitos. 32 I.5 Paralelos entre conteúdo conceptual, perguntas de investigação e campo de criação. 33 II.6 Correspondência entre etapas e fases da pesquisa e as componentes e estádios do processo de resolução criativa de problemas (versão 6.0 – Isaksen, 2000). 48 I.7 Sessões do grupo – síntese por sessão dos resultados alcançados e das perguntas e temas em aberto. 85 I.8 Correspondência entre o processo criativo e metodológico e o relatório da pesquisa. 99 II.1 Categorias de sentidos presentes nos significados lexicais e analógicos da palavra medo. 152 II.2 Paralelos entre expressões e atributos do conceito de medo. 173 II.3 Síntese de “Todos os nomes do Ser”. 213 II.4 Paralelos entre as condições-estados da vida plena sugeridos por Csikszentmihalyi, Sturner e as Escrituras Hindus. 226 II.5 Estádios do processo de desenvolvimento espiritual de Sturner. Reprodução, tradução e adaptação de Sturner (1994:57-58). 231 II.6 Paralelos entre diversas abordagens dos estádios de desenvolvimento humano. 234 III.1 Razões para participar no grupo de pesquisa. 293 III.2 Comparação entre razões para participar e expectativas em relação do trabalho de pesquisa. 296 III.3 Efeitos por participar no grupo de pesquisa. 298 III.4 Referências espontâneas ao clima do grupo de pesquisa. 303 III.5 Dimensões do clima: indicações de níveis altos, níveis baixos e indicações neutras nas sessões do grupo de pesquisa. 305 III.6 Aplicação do SOQ - diferenças entre os valores médios do grupo de pesquisa e das organizações inovadoras. 308 III.7 Aplicação do SOQ - comparação entre resultados das empresas inovadoras e das organizações estagnadas e os valores da amplitude do grupo de pesquisa. 307 III.8 Síntese dos resultados do grupo de pesquisa. 318 III.9 Correspondência dos sete corpos com tipos e efeitos de medo identificados no grupo de pesquisa. 351 III.10 Percentagens de categorias de efeitos do medo identificados no grupo de 352

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pesquisa III.11 Síntese da leitura. 354 III.12 Correspondência entre o eixo central da categoria “o quê” com o eixo central da categoria “como”. 361 III.13 Número de referências a formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento humano em função dos momentos da acção e da mudança. 364 III.14 Referências a formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento humano. 365 III.15 Razões para ter medo referidas no grupo de pesquisa. 382 III.16 Razões para não ter medo referidas no grupo de pesquisa. 387 III.17 O papel do medo na construção do humano. 405 IV.1 Paralelo entre perguntas da pesquisa, dimensões da criatividade, elementos de um programa educativo e os princípios didácticos de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano. 428

MAPAS MENTAIS II.1 Mapa geral das categorias de análise. 111 III.1 Quem – excerto do mapa geral das categorias de análise. 331 III.2 O Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 355 III.3 Como – excerto do mapa geral das categorias de análise. 375 III.4 Por Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 397 III.5 Para Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 414

GRÁFICOS III.1 Aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa – resultados médios. 307 III.2 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da orientação para a mudança. 312 III.3 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da forma de processar a informação. 314 III.4 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados das formas de decidir. 315

ANEXOS (disco compacto adjunto) 1ª Secção - Anexo 1 Glossário - Anexo 2 Biografias de autores citados

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2ª Secção - Anexo 3 Transcrição das sessões do grupo de pesquisa com marcação das categorias de análise Sessão 1 Sessão 2 Sessão 3 Sessão 4 Sessão 5 Sessão 6 Sessão 7 Sessão 8 Sessão 9 Sessão 10 Sessão 11 Sessão 12 - Anexo 3A Mapas mentais construídos pelo grupo de pesquisa (sessões 8 e 11) 1 Categorias de medos 2 Estratégias para lidar com o medo 3 Medo e Desenvolvimento Humano 3ª Secção - Anexo 4 Mapa mental das categorias de análise 1 Total 2 Parcelar – Categorias 3 Parcelar – Quem 4 Parcelar – O Quê1 5 Parcelar – O Quê2 6 Parcelar – Como 7 Parcelar – Por Quê 8 Parcelar – Para Quê - Anexo 4A Descrição das categorias de análise Introdução 1. Quem 1.1 As Pessoas 1.2 O Grupo 2 O Quê 2.1 Definição de medo 2.2 Relação e explicação de medos 2.3 Efeitos do medo 2.4 Perguntas do grupo que ficam em aberto

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3. Porquê 3.1 Causas do medo 3.2 Causas do não ter medo 3.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto 4.Como 4.1 Como os outros reagem aos nossos medos 4.2 Como se lida com o medo 4.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto 5. Para Quê 5.1 Para a conservação social 5.2 Para o desenvolvimento humano 5.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto - Anexo 5 Análise de dados – tabelas das categorias e subcategorias de análise Quem 1 Pessoas – total 2 Pessoas – razões para participar 3 Pessoas – expectativas 4 Pessoas – efeitos por participar 5 Grupo – total 6 Grupo – dimensões do clima O Quê 1 Total 2 Medos 3 Efeitos do medo Como 1 Total 2 Como outros reagem 3 Centrado na Conservação 4 Centrado no Desenvolvimento Humano – clima 5 Centrado no Desenvolvimento Humano – tomada de consciência 6 Centrado no Desenvolvimento Humano – assumir 7 Centrado no Desenvolvimento Humano – tomada de decisão 7 Centrado no Desenvolvimento Humano – estratégias Por Quê 1 Total 2 Causas do medo 3 Causas do não medo

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4 Pessoas/medo 5 Pessoas/não medo Para Quê 1 Total 2 Conservação Social 3 Desenvolvimento Humano – Eu 4 Desenvolvimento Humano – Outros 5 Desenvolvimento Humano – Cosmos - Anexo 6 Situational Outlook Questionnaire – resultados SOQ Chart SOQ Presentation SOQ Qualitative Analysis SOQ Themes for the verbatim responses - Anexo 7 VEW – resultados Group 1 Group Introduction to VIEW Presentation VIEW Group Results VIEW Hand Score Report VIEW Report Form 4ª Secção - Anexo 8 Diário da tese - Anexo 9 Diário de campo 5ª Secção - Anexo 10 Certificados do The Creative Problem Solving Group, Inc. CPS Advanced CPS – Creative Problem Solving Facilitator SOQ – Situational Outlook Questionnaire Administrator VIEW Administrator

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I. PROCESSO DA PESQUISA

2 Introdução

I. PROCESSO DA PESQUISA Introdução 1. Fundamento Epistémico da Tese 1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o mundo 1.2 Implicações para a pesquisa 2. O Tema 2.1. Os caminhos que foram dar ao medo 2.2. Explicando o tema 3. A Pesquisa 3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa 3.2 Propósitos e perguntas de investigação 3.3 Categorias de análise 4. Organização da Tese Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR O sentido do caminho Para abrir um novo caminho

3 1. Fundamento Epistémico da Tese

“A história é sobre uma pequena onda, a balançar pelo oceano fora, divertindo-se à grande. Goza o vento e o ar fresco, até que repara nas outras ondas à sua frente, a despenhar-se nas rochas. - Meu Deus, isto é terrível – diz a pequena onda. Olha só o que me vai acontecer! Aí chega outra onda. Vê a primeira onda (…) e pergunta-lhe: - Porque estás tão triste? A primeira onda diz: - Oh, não compreendes! Vamos todas despenhar-nos! Todas nós, ondas, vamos transformar-nos em nada! Não é terrível? A segunda onda diz: - Não, quem não compreende és tu. Tu não és uma onda, tu és parte do oceano”. Mitch Albom

As páginas que se seguem resultam de um exercício que é, simultaneamente, de humildade e de poder. De humildade, porque me sinto pequena frente à co-participação na imensa tarefa de quem, pelo acto de reflexão, procura fazer ciência. De poder porque, apesar disso, me sinto com a força e o atrevimento (talvez também com a ilusão e a ingenuidade) dos que, estando pouco mais do que a começar, entendem que tudo lhes é possível e que não há ventos, nem tempestades, que os possam demover do seu caminho e de, um dia, encontrar “o Grande Tesouro, “o Santo Graal”, por que tanto se dispõem a lutar.

Mas as páginas seguintes resultam igualmente (eu diria, até, essencialmente), de mais um exercício de procura de identidade, feito aqui no encalço de grandes investigadores e pensadores. São aqueles a quem, carinhosamente, gostaria de chamar “os meus heróis” no caminho da busca de sentido, que é o que, em última análise, significa fazer investigação.

- Heróis, porque, atiçando em mim o fogo da curiosidade, me ajudam a ganhar consciência da minha inquietação. - Heróis, também, porque sempre me fazem despertar para realidades desconhecidas, mas com que, numa certa dimensão interior, desde sempre me senti profundamente identificada. - Heróis, ainda, porque, pelo contágio da sua energia que me assegura que outro caminho é possível, permitem criar condições para responder à minha vontade e necessidade de saber.

4 - Heróis, finalmente, porque, em coerência*1 e enamoramento comprometido, são quem, em diversos espaços e tempos, se tem atrevido a pôr em causa o estabelecido, a alargar fronteiras e a descortinar novas formas de pensar, de fazer as coisas, de fazer ciência e ser parte do mundo.

Assim, e tal como a riqueza de uma nação passa pelo reconhecimento das suas origens, dos seus feitos, dos seus valores, dos seus homens e mulheres, também neste início do trabalho, para lá de uma prática académica de fundamentação-legitimação epistémica da pesquisa, eu gostaria de tentar fazer um ritual de reconhecimento de alguns daqueles que participaram na construção: - deste projecto de investigação – o que é o mesmo que dizer, de uma certa forma de ler o (meu-nosso) mundo; - das relações que estabeleci com (muitos) outros – e, de uma forma especial, com quem fez parte do trabalho de campo e da análise de dados – o grupo de pesquisa colaborativa; - daquilo que vou sendo – enquanto educadora, enquanto investigadora, enquanto pessoa… enquanto “mais eu” a descobrir.

É, por isso que, com vontade de pertencer a uma grande família, procurarei apresentar aqui alguns dos autores e conceitos que, em termos globais, inspiraram e justificam o chão-caminho-método em que esta investigação se desenvolve.

1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o mundo

“Se (...) centrarmos o nosso olhar no futuro, (...) duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão

1 * - Sinal que, ao longo da tese, remete para o glossário.

5 cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verosímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem- nos temer que o século XXI termine antes de começar. (...) Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambiguidade e complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita” (Sousa Santos, 1988: 6).

Estava pouco mais do que no início do meu curso de Sociologia (1989-94) quando, pela primeira vez, li “Um Discurso sobre as Ciências” do Prof. Boaventura Sousa Santos. Nessa altura andava lutando comigo mesma pelo entendimento das grandes questões epistemológicas, um campo das ciências que me parecia muito árido, crítico e analítico, distante de tudo o que era a simplicidade da minha experiência de vida e das minhas preocupações essenciais e, por isso, também distante da minha capacidade de compreender “por dentro” muito do que estava a estudar. Mas aquela leitura (não só com o que aí pude encontrar de questionamento e interligação de campos e conceitos mas, essencialmente, com tudo o que me fez reflectir sobre a ligação entre a ciência e o sentido da existência e do desenvolvimento humano), trouxe-me também a possibilidade de começar a entender o que, em muitos outros autores também, se pode situar num continuum de matizes que represente as múltiplas formas da relação circular entre fazer ciência e criar mundos.

- De um lado, uma forma de pensar o homem e de fazer mundo que separa corpo e alma, que reduz e divide a complexidade* humana. Um mundo que tanto ocasiona uma cultura materialista “do império dos sentidos”, como uma cultura espiritualista, desenraizada, “pairando soberanamente por sobre a densidade do real (...), refém das suas ideias, projecções e teorias” (Boff, 1998:61). Um mundo que se torna responsável por um desenvolvimento unilateral, “ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto” (Prieto, in Max-Neef, 1993:7). Uma cultura que favorece “a auto-afirmação em vez da integração, a análise em vez da síntese, o conhecimento racional em vez da sabedoria intuitiva, a competição em vez da cooperação, a expansão em vez da conservação” (Capra, 1982:prefácio).

- Do outro, uma forma de pensar o humano e de fazer mundo(s) na sua multiplicidade de identidades e possibilidades, cheio(s) de singularidades, pleno(s) de

6 intersubjectividades, em que, por força da sua natureza dinâmica, da unidade e da inter-relação de todos os fenómenos, “as descobertas científicas podem estar em perfeita harmonia com os objectivos espirituais” (Capra, 1982:28). Uma forma de entender e fazer ciência em que todo o conhecimento é local e total, em que todo o conhecimento é auto-conhecimento, em que todo o conhecimento científico se pode traduzir em sabedoria de vida (Sousa Santos, 1988, 2002). Uma forma de fazer ciência que tem consciência* de que “os padrões que os cientistas observam na natureza estão intimamente relacionados com os padrões das suas mentes, com os seus conceitos, pensamentos e valores” (Capra, 1982:17).

Daí em diante e, de uma forma especial, em todo o trabalho de preparação e desenvolvimento desta investigação, voltei mais vezes aos seus livros e, enquanto me acercava do pensamento de muitos outros autores, fui também procurando perceber, na perspectiva do “diálogo entre realismo e idealismo, entre razão e emoção, entre ciência e arte, entre o sim e o não” (Torre, 2008:2), as profundas interconexões e complementaridades que entre eles estão presentes, mesmo quando utilizam disciplinas aparentemente distantes ou diferentes2.

Assim, e ganhando consciência da importância de uma ciência em que realidades e utopias interagem, se pensam e se desafiam na complexidade, de uma ciência sonhadora-construtora da história e de novas realidades, de uma CIÊNCIA ENCARNADA E

COMPROMETIDA no mundo (Trigo, 2005a), comecei a encontrar (em mim, no meu mundo e, por inerência, na fundamentação desta pesquisa), as raízes da construção necessária e urgente do que é, como diz o Prof. Manuel Sérgio, um “novo paradigma do saber… e do ser”:

“Saber é encontrar as razões e os métodos que permitem a dimensão divina da realidade – dimensão divina, isto é, capaz, pela transcendência, de ruptura e profecia. Ruptura, em relação à ideia de que o ser humano é o Rei da Criação, seu conquistador e manipulador, que separou o sujeito do objecto e alguns sujeitos do seu semelhante (…);

2 Naquele mesmo texto acima referenciado, Saturnino de la Torre também escreve que “a perspectiva objectiva, estática, coisificada, a que nos acostumou o realismo científico, começa a vacilar à luz dos novos saberes que vão desde a neurociência à transpersonalidade e da física mecânica à teologia quântica”. Argumenta, por isso, sobre a necessidade de um encontro de saberes que, fluindo através de campos muito diversos, seja resposta à “ecologia dos saberes” de Moraes e à “religação dos saberes” de Morin.

7 ruptura, em relação a um crescimento, apenas técnico e científico, onde as “razões do coração” não se conhecem e onde a “religião dos fins” se substitui pela “religião dos meios”; (…) ruptura em relação ao domínio exclusivo, ditatorial do quantitativo e do físico (mesmo nas suas formas pedagógicas), que eliminou do desenvolvimento humano o não-mensurável, o não-formalizável, o não-biológico e não atribui ao ser humano senão funções sem referência a um projecto de vida; ruptura, por isso, em relação a políticas onde a afectação de recursos contemple tão-só a inovação tecnológica, a competitividade empresarial, a competência científica, sem outros valores, como a justiça social (…)” (Sérgio, 2005b:53-55).

Ilustração I.1 - Imagem que, ao ouvir a sua conferência no IV Congresso Internacional de Motricidade Humana3, o Prof. Manuel Sérgio (me) sugeriu sobre a nova forma de fazer ciência.

1.2 Implicações para a pesquisa

“Sim”, pensou, a respirar profundamente, “nunca mais tentarei fugir de Siddhartha. (…) Nunca mais me mutilarei e destruirei para encontrar um segredo oculto atrás das ruínas (…). Aprenderei comigo próprio, serei aluno de mim mesmo; aprenderei comigo próprio o segredo de Siddhartha”. Olhou de novo em seu redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, estranho e misterioso (…) e no meio de tudo estava ele, Siddhartha, o que despertara, a caminho de si mesmo – Hermann Hess.

Sou educadora e, no decurso da reflexão atrás referida, ganho, não só consciência de que é no “para quê” da ciência que encontro as razões para fazer o que venho fazendo há trinta anos, como essa consciência me leva também a definir propósitos e a

3 IV Congresso Internacional de Motricidade Humana, 2005, Porto do Son (A Coruña), Espanha.

8 estabelecer prioridades para esta pesquisa. Assim, e muito mais do que me colocar frente a opções metodológicas que tenham em vista o conhecimento pelo conhecimento, as minhas decisões passam a ser orientadas pelos propósitos que definem uma investigação aplicada4 – para que o conhecimento possa “ajudar as pessoas a compreenderem a natureza de um problema (...) e, por isso, possa permitir- lhes uma maior capacidade de controlo sobre o seu próprio ambiente5” (Patton, 2002:217).

Procurando, por isso, começar a dar notícia do modo como, nesta pesquisa, PROCESSO

INVESTIGATIVO e PROCESSO EDUCATIVO se cruzam e interpenetram, utilizo, como primeira referência, o que (de acordo com a Prof. Anna Feitosa, 1999:69) são as quatro perguntas fundamentais que E.F. Schumacher propõe como condição necessária para aceder à essência do DESENVOLVIMENTO HUMANO:

“1. O que é que se passa de facto no meu mundo interior? 2. O que é que se passa no mundo interior dos outros seres? 3. Como me vêem os outros seres? 4. O que é que eu observo de facto no mundo à minha volta?”

4 De acordo com Patton (2002) o trabalho dos investigadores na investigação qualitativa aplicada pode ser assim, resumidamente, descrito: - Trabalham com problemas humanos e societais. - A fonte das questões está nos problemas e preocupações vividas pelas pessoas e articuladas pelos “policymakers”. - Conduzem estudos que testam as aplicações da teoria básica e do conhecimento disciplinar em experiências e problemas do mundo real. - Utilizam campos interdisciplinares mais orientados para os problemas do que para as disciplinas. - Respondem a questões interdisciplinares do campo da economia antropológica, da psicologia social, da geografia política, do desenvolvimento educacional e organizacional, etc. - Apresentam as suas experiências e insights pessoais nas recomendações que possam emergir porque, durante o trabalho de campo, se colocaram especialmente próximos dos problemas estudados. - Têm consciência de que os problemas surgem dentro das fronteiras de um tempo e espaço específicos. Tipologia de Propósitos da Investigação Qualitativa (Patton, 2002:213): 1. Pesquisa básica (basic research): contribuir para o conhecimento fundamental e para a teoria. 2. Pesquisa aplicada (applied research): esclarecer uma preocupação social. 3. Avaliação sumativa (summative evaluation): determinar a eficácia de um programa. 4. Avaliação formativa (formative evaluation): melhorar um programa. 5. Investigação-acção (action research): resolver um problema específico. 5 “The purpose of applied research is to contribute knowledge that will help understand the nature of a problem in order to intervene, thereby allowing human beings to more effectively control their environment” (Patton, 2002:217).

9 Isto é, perguntas fundamentais que, no processo de construção de conhecimento, começam por ser perguntas de desconstrução de nós mesmos. Perguntas fundamentais porque, muito mais do que descrever ou explicar o que se estuda, permitem compreender o que se estuda porque disso se faz parte (Max-Neef, 1993). Perguntas fundamentais para que, operando dentro de nós mesmos e não permitindo incoerências e falsas separações de mentes e tempos de vida (Bohórquez & Trigo, 2006), se vá ganhando o direito de, em comunhão e respeito, aceder à observação do “mundo interior de outros seres”.

“Os cortes epistemológicos* ou são íntegros, Processo Desenvolvimento ou não. Os abarcam todo o nosso ser, ou Investigativo Humano reduzem-se a simples teoricismos que enchem páginas e páginas de livros inteiros, mas não chegam a modificar na realidade a vida das Processo pessoas e dos povos (Trigo, 2005:45). Educativo

Ilustração I.2 – Inter-relação entre educação, ciência e desenvolvimento humano.

Posto isto, e, primeiro, com o que aprendi com muitos daqueles a quem já chamei “os meus heróis”; segundo, num paralelo com o simbolismo dos “desafios [da união de opostos] que se colocam para a construção do humano” (Boff, 1998:119); terceiro, na medida da minha capacidade de autoconsciência, de autocrítica e de maturidade científica e de criação, passo a colocar os sete princípios-compromissos-intenções que procurei se mantivessem ao leme de todo o processo desta pesquisa.

1. Professar um sentido ético ► AUTONOMIA/DEPENDÊNCIA.

“Os resultados científicos que [os cientistas] obtêm e as aplicações tecnológicas que investigam estarão condicionados pela estrutura das suas mentes. Embora grande parte das suas pesquisas (...) não seja explicitamente dependente dos seus sistemas de valores, a estrutura mais abrangente dentro da qual essas pesquisas são efectuadas nunca será independente de valores. Os cientistas são, portanto, responsáveis, não

10 apenas intelectualmente, mas também moralmente, pelas suas pesquisas” (Capra, 1982:18).

Entendendo que o pensamento não emocional não existe, que é preciso atender às emoções, pois são elas que permitem “escutar o que acontece na profundidade de cada um de nós” e categorizar as experiências com a qualidade do “bem” e do “mal” (Damásio, 2003:183).

2. Voltar às coisas simples, formular perguntas simples, escrever com palavras simples

► SIMPLES/COMPLEXO.

Tentando não só colocar, como Einstein costumava dizer, as perguntas que “só uma criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma nova luz à nossa perplexidade” (Sousa Santos, 1988:6), mas também aí e, exactamente por isso, procurando ver como somos directamente responsáveis pelo nosso destino e pelo destino do nosso planeta (Berman, 1981).

3. Reconciliar e integrar diferentes cosmovisões, diferentes maneiras de conhecer,

diferentes linguagens ► REALIDADE/UTOPIA.

“Neste período [pós-moderno] não se concede um lugar privilegiado ou preponderante a nenhum discurso, nem se considera que alguma teoria particular seja a que possui a chave do conhecimento” (Martínez Salgado, 1996:42).

Dando espaço à narração e às metáforas das humanidades (Castro, 1996), procurando na ecologia de saberes e na harmonia da ciência moderna e da sabedoria oriental, uma visão do mundo que não faz distinção entre o animado e o inanimado, entre o espírito e a matéria... (Zemelman, 1996; Capra, 1982; Sisk & Torrance, 2001; Sousa et al, 1998; McCall, 2003, Torre, 2007).

Movendo fronteiras sem perder rigorosidade e coerência; tirando de distintos autores, aprendendo com todos e com tudo, com todos os saberes, sabedorias* e

11 sabores que ajudem a construir e interpretar a informação. Respondendo ao desafio do diálogo da ciência com diferentes formas de conhecimento, reabilitando o senso comum, a integração e a complementaridade (Sousa Santos, 1988, 2002; Feitosa, 1999). Não ficando amordaçada e prisioneira de um só lugar, por seguro que seja, mas que, afinal, não pode dar senão uma visão restrita na hora de compreender a complexidade do real.

Ilustração I.3 – Da dicotomia à sinergia.

4. Assumir, metodológica e publicamente, a dificuldade e a complexidade da distinção

sujeito-objecto ► SUJEITO/OBJECTO.

“Não se pode pensar em objectividade sem subjectividade. (...) Nem objectivismo, nem subjectivismo (...), mas subjectividade e objectividade em permanente dialecticidade. Confundir subjectividade com subjectivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingénuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjectivismo, que implica homens sem mundo” (Freire, 2003:37).

Abandonando a tentação de contemplar a sociedade de um “ponto de vista divino” (Morin, 2003:108), entendendo que a razão universal é impossível porque a mente é corporizada (Varela, 2000; Toro, 2005a), assumindo que, desde a selecção do problema, o investigador influi na construção do objecto de conhecimento (Sérgio, 2005a).

12 5. Expor(-me) e ser parte do objecto de observação, conciliando a dualidade dos

papeis de investigador e de “investigado” ► OBSERVADOR/OBSERVADO.

Sendo honesta comigo mesma e com os outros e, com isso, revelando o que sabemos estar muitas vezes a montante e a jusante das nossas investigações (motivações, interesses, fragilidades, descobertas, necessidades de crescimento e de amadurecimento …) (Bogdan & Biklen, 2006), mas que, por vezes, é tão difícil de revelar.

“Ser sujeito numa investigação é fundirmo-nos no investigado e com os investigados; (...) é possibilidade de existir e de alargar os nossos horizontes de vida (...). É ter a capacidade e inteireza de conceber a investigação como fonte de transformação pessoal e colectiva” (Jaramillo, 2006:116a).

Ganhando consciência de que a vida (e, por inerência esta pesquisa), não é uma substância, mas um fenómeno de inter-relação com o universo e com o outros, um fenómeno complexo que necessita de ser situado na interconexão do princípio dialógico (que permite a dualidade no seio da unidade), do princípio da recursividade (em que os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produz) e do princípio hologramático (pois a parte está no todo e o todo está na parte) (Morin, 2003).

6. Procurar-fazer-criar-descobrir novos caminhos e aceitar que, em tudo isso, haja,

seguramente, outros tantos retrocessos ► VIVER/MORRER.

“O desenho da investigação qualitativa não se especifica por completo no início, mas vai-se construindo conforme decorre o trabalho de campo (...). Isto exige, entre outras coisas, uma certa tolerância à incerteza e à ambiguidade que estarão presentes durante o processo” (Martínez Salgado, 1996:45).

Compreendendo as múltiplas implicações de que só a mudança é permanente e que, nos sistemas vivos, o desequilíbrio é condição necessária para o crescimento de sistemas dinâmicos (Prigogine, 1983). Perdendo, por isso, o medo do caos,

13 aprendendo a fluir com ele e a correr riscos já que, como também (e tão bem) ensina a sabedoria popular, o maior risco de todos seria não correr risco nenhum.

7. Terminar onde não comecei ► SABER/SER.

Não só do ponto de vista da investigação, mas, também (e como sinal do princípio de rede que nos inter-conecta com todos os outros e com o universo), enquanto pessoa-comunidade-mundo que cresce(m) à luz da pesquisa (Jaramillo, 2006b).

E que assim seja.

14 2. O Tema

Ilustração I.4 – Caminhos.

2.1 Os caminhos que foram dar ao medo

“O reconhecimento dos aspectos subjectivos e pessoais cujas raízes remontam inclusive à biografia do investigador é mais característico dos que trabalham a partir de algum dos "paradigmas alternativos" que floresceram nos tempos recentes. Essa consciência do papel das características e tendências pessoais do investigador é algo que se converte numa descoberta para todo aquele capaz de o enfrentar. Os "paradigmas alternativos" consideram necessário não só reconhecê-lo, mas também informar sobre esses elementos, incorporar o observador como importante componente que é do cenário que investiga” (Martínez Salgado, 1996:54).

Concluí o curso de educadores de infância em 1978. E, depois de uma breve passagem pelo trabalho directo com crianças em jardim de infância, fui chamada a colaborar na formação inicial de educadores de infância. Durante vários anos dediquei-me de corpo inteiro a essa tarefa, como se isso fosse a razão do meu viver. Até que, em determinado momento bem conhecido de todos os que são próximos desta área, foi colocado a todas as escolas de formação (até aí consideradas de ensino médio), mais um grande desafio – a passagem a escolas superiores de educação. Sem me alongar naquilo que foi todo esse demorado (e às vezes doloroso) processo de reconversão, diria só que, para além de muitos outros requisitos, se impunha um que dizia especialmente respeito a todas as educadoras que faziam parte integrante do seu corpo docente – a obtenção do grau académico de licenciatura. Assim, e depois de alguma reflexão sobre o conjunto de cursos a

15 que poderia ter acesso e que pudessem trazer algum contributo para o trabalho que realizava, optei pela licenciatura em Sociologia.

Durante cinco anos procurei conciliar as minhas funções docentes e, na altura, também já directivas, com o meu novo papel de aluna universitária. Foi um período de (ainda maior) clausura, em que permanentemente me obrigava a ultrapassar aqueles que julgara serem os meus limites de capacidade de trabalho – porque o trabalho docente não “encolhia” nem se compadecia com esta “vida paralela”; porque a exigência e qualidade profissional já conquistada se estendiam também à nova situação; porque era preciso, sempre e em todos os campos, fazer mais e melhor.

Foi, naturalmente, um período rico de experiências, de alargamento de fronteiras. Mas foi também, e por isso mesmo, um período em que durante muito tempo lutei comigo mesma para, além de mais, integrar uma visão do mundo bem diferente daquela que, até aí, me tinha estabelecido. É que, tendo sido formada como educadora numa escola católica (com um tipo de formação de grande implicação emocional e espiritual), e num período especialmente agitado e também idealista da vida nacional, encarava o trabalho com um imenso sentido do dever e da urgência das coisas, e a vida numa perspectiva de doação e serviço à comunidade – na convicção de que quanto mais trabalhasse mais poderia fazer bem e mudar o mundo.

Mas a sociologia (pelo menos como a percebia naquela altura), com a sua abordagem tão mental e, de certa maneira, desapaixonada, com a sua objectividade de análise e o seu espírito crítico, fazia-me ver que o mundo não era assim tão facilmente mudável e mostrava-me, “pela explicação das regularidades sociais, que havia uma multiplicidade de interferências em muitas das escolhas em que (...) eu julgara6 exercer opções verdadeiramente livres” (Ferreira de Almeida, 1994:21). Passei, por isso, a sentir que entre uma cabeça colocada nas nuvens, pela minha formação como educadora, e os meus pés bem enterrados na terra, pela minha formação como socióloga, havia um vazio que eu não sabia como preencher. E, por muito valiosa que tivesse sido a experiência, na hora da conclusão do curso, o cansaço era tanto que “só” me restava uma decisão: “aconteça o que acontecer, venham os requisitos que vierem, estudante, nunca mais!”.

6 O sublinhado é meu.

16 Foi ao longo deste processo que conheci a Prof. Maria da Conceição Azevedo, que também teve um papel importante no desenvolvimento e orientação desta tese. Rapidamente percebemos que partilhávamos muitos sonhos e inquietações. Mas foi (tantas vezes ainda é!) difícil perceber aonde ela queria chegar quando, em muitas ocasiões, me dizia: “tudo contribui para o bem”.

E ela tinha razão. Um ano depois, num congresso de educação de infância em que estive presente em Espanha, vi-me a assistir a uma conferência proferida pelo Prof. David de Prado sobre o tema “Criatividade”. Foi, como é ele próprio, uma conferência agitada e contundente. Mas, nesse momento, senti uma profunda afinidade com o tema, como se ali pudesse vir a encontrar respostas para o meu desassossego e para o reconhecimento das minhas próprias necessidades, um meio de preencher e totalizar o espaço deixado vazio pelas duas formações e, essencialmente, por aquele período de “semi-vida”.

Nesse mesmo dia tive conhecimento da existência do Master de Creatividad Aplicada Total da Universidade de Santiago de Compostela. E não tive dúvidas – o meu papel de estudante não estava terminado. Eu voltaria à universidade. Mas agora as razões eram bem diferente das razões anteriores – os requisitos agora eram meus. EU era a razão para voltar à universidade: eu e a minha capacidade de crescimento e de valorização pessoal; eu e aquilo que, na altura, não era ainda capaz de identificar claramente – a minha necessidade de autoconhecimento, de transgressão e de transcendência.

Foi assim que encontrei muitas pessoas (colegas e professores), de vários pontos do mundo, com muitos dos quais ainda hoje mantenho relações de trabalho e de amizade, e que me fizeram perceber não estar sozinha na busca de novos conceitos e novas formas de vida. Foi aí que conheci a Prof. Eugenia Trigo, Orientadora desta Tese, pessoa inquieta e “desesperantemente perguntadora” que nunca me deixa “jogar às escondidas”.

Não posso, e talvez não faça sentido, descrever aqui tudo o que representou a minha passagem por terras de Santiago. Diria, porém, que foi o tempo em que me compreendi peregrina do caminho de descoberta da minha vida: um caminho em que se é (sou) eternamente aprendiz; um caminho em que se percebe que o mundo (pelo menos o meu mundo) só muda se eu mudar – e que isso é que é urgente; um caminho em que constantemente se procura não desistir de se ser quem se é; um

17 caminho de centração na própria interioridade e que, por isso, se faz só; mas também um caminho que está cheio de bordões em que nos podermos (me posso) apoiar – desde que seja capaz de os descobrir naquilo que são as oferendas e os propósitos do universo.

Foi assim que, partindo da necessidade de uma consciência clara sobre a realidade do presente, comecei a vislumbrar, na vida e também na ciência, um meio de preencher o tal vazio. Tinha começado, mesmo sem o saber, a descobrir o paradigma da mente corporizada (Varela, 2000; Trigo, 2005a, Toro, 2005a). Tinha começado a descobrir que, para lá de todos os “devia” e dos “é preciso” do meu tradicional compromisso com o mundo, e para lá dos “o quês” e do “porquês” da ciência moderna, havia, também na vida, a urgência de aprender a perguntar pelos “para quês” e pelos “comos” da ciência encarnada. Tinha começado a perceber que ciência, porque é vida, é também poesia, é sonho, é sentir, é arte, é sabedoria, é criação.

Talvez por isso (seguramente por tudo isto), muitas outras coisas mudaram. Foram tempos de alguma... glória. Tão grande tinha sido já o caminho realizado que não podia deixar de dar frutos. Inclusive na minha acção profissional:

- deixei para trás todas as funções directivas, administrativas e burocráticas em que, durante dezasseis anos, tanto me ocupara; - comecei a ser chamada a trabalhar a temática da Criatividade com profissionais de outras áreas – designers para a indústria, médicos dentistas, quadros de empresas, operários...; - comecei a sentir estar chegando mais perto das pessoas; - comecei a perceber que a minha actividade profissional, porque era extensão de um trabalho interior, se tornava mais eficaz com menos esforço.

Mas o problema do caminho é mesmo esse, ser caminho – isto é, ser dinâmica, ser mudança. E se dele fazemos paragem ou estalagem, deixa de cumprir os seus propósitos. Não passou, assim, tanto tempo que não começasse a sentir que estava a ficar demasiado encantada, tranquila e segura com os resultados alcançados e que, por isso, começava a repetir-me a mim mesma. E, quando se deixa de estar vigilante, os velhos padrões de comportamento voltam a instalar-se. E eu estava (de novo!) dando demasiado tempo para a acção, pouco para a centração, ainda menos para a celebração – a também “velha fórmula” para evitar olhar honestamente para

18 dentro de mim mesma. Precisava, definitivamente, e sob pena de vir a revogar a minha condição de mulher-peregrina, de voltar a pôr os pés ao caminho. Precisava, ainda que paradoxalmente, de encontrar um meio de me “sentar” para tirar de mim o que estava escondido.

São muitos, naturalmente, os caminhos que poderia ter escolhido. Eu escolhi, e também por força do meu próprio percurso, voltar-me de novo para a investigação e busca de conhecimento, num projecto que fosse a extensão do meu trabalho e da minha vida, que me considerasse e me exigisse na globalidade e na inter-relação do meu ser pessoa e do meu ser profissional.

Foram várias as tentativas para encontrar o espaço onde desenvolver a minha pesquisa. Comecei por procurar no exterior do País. Há tantos lugares conceituados onde se trabalha a Criatividade de uma forma institucionalizada e sistematizada que parecia não haver solução que não fosse ir para esses lugares. Até que (surpreendentemente, ou não?) encontrei o espaço e as pessoas dentro da minha terra e das minhas relações – em termos geográficos e em termos afectivos. Mais uma vez a vida me provava que não havia necessidade de procurar fora aquilo que eu já tinha dentro.

O que foi, daí em diante, todo o processo de ler em mim o tema da tese e a forma de o desenvolver, está descrito no “Capítulo 1 Roteiro – 2. Itinerário e crónicas do caminho” e detalhadamente relatado no Diário da Tese (Anexo 8). Por agora, o que pretendo deixar claro é que, se uma tese principia no dia em que se começa a imaginar a possibilidade de a fazer, esse dia também não surge do nada. É essa a razão porque aqui descrevi parte do percurso que contem algumas das suas justificações mais profundas.

Assim, trabalhar “O Medo e o Desenvolvimento Humano” é consequência da minha própria história de vida: percebendo-me, percebendo os outros e o mundo, na distância que separa o meu Eu (a minha actualidade) do meu Mais Eu (a minha possibilidade), não me resta opção que não seja enxergar também os medos e bloqueios que povoam essa distância e limitam a minha capacidade de projectar, de transgredir e de transcender. E esta consciência, como julgo que ficou claro, não é fruto de um processo puramente mental – é também resultado de uma “percepção

19 tornada consciente do fundo onto-teleológico do meu7 Ser” (Azevedo & Gil da Costa, 2005:245).

2.2. O Problema

EL MIEDO GLOBAL Los que trabajan tienen miedo de perder el trabajo. Los que no trabajan tienen miedo de no encontrar nunca trabajo. Quien no tiene miedo al hambre, tiene miedo a la comida. Los automovilistas tienen miedo de caminar y los peatones tienen miedo de ser atropellados. La democracia tiene miedo de recordar y el lenguaje tiene miedo de decir. Los civiles tienen miedo a los militares, los militares tienen miedo a la falta de armas, las armas tienen miedo a la falta de guerras. Es el tiempo del miedo. Miedo de la mujer a la violencia del hombre y miedo del hombre a la mujer sin miedo. Miedo a los ladrones, miedo a la policía. Miedo a la puerta sin cerradura, al tiempo sin relojes, al niño sin televisión, miedo a la noche sin pastillas para dormir y miedo al día sin pastillas para despertar. Miedo a la multitud, miedo a la soledad, miedo a lo que fue y a lo que puede ser, miedo de morir, miedo de vivir. Eduardo Galeano

O medo que, segundo Damásio (1995), é uma das cinco emoções básicas, é um sinal valioso, a nossa resposta natural em situações de perigo. As suas reacções automáticas desencadeiam tensão muscular, aceleração dos batimentos cardíacos, alterações nos sistemas digestivo e imunitário, aumento da adrenalina e dos corticorteróides para enfrentar a ameaça... (Dreher, 2000). Mas se o medo (e, consequentemente, os seus efeitos) se torna crónico, afecta a nossa saúde, a nossa capacidade de desenvolvimento e crescimento PESSOAL, a nossa relação COM OS

OUTROS, a nossa relação COM O UNIVERSO.

Na verdade, até no futebol quem joga à defesa é quem tem medo de perder. E, muitas vezes, usa de violência. Mas o processo não produz os efeitos desejados porque, muito embora possa haver um êxito fugaz, quem está demasiado preocupado com a defesa da sua baliza no mínimo (ou no máximo), não ganha. Pode não perder, mas não ganha. As grandes equipas não ganham por 1-0, ganham por 4-2. Deixam entrar golos (aparentes derrotas) mas, mesmo assim, ganham. Porque arriscam. A sua maior preocupação é o golo (construir) e isso resulta mais e

7 O sublinhado é meu.

20 melhor do que a simples defesa (destruir). E o espectáculo é muito mais bonito, mas também muito mais raro.

Entendo que a violência do terrorismo (em qualquer das suas formas) é também isto. Mas entendo também (e é aí que especificamente quero colocar o tom deste trabalho) que viver nessa posição de excessiva defesa, e com a violência que lhe está inerente e que tantas vezes usamos contra nós mesmos, também é isto.

É o que, em termos genéricos, chamo MEDO DA VIDA. É o que, em termos específicos, se consubstancia nalgum (ou em alguns) dos seguintes exemplos de medos que, por agora, propositadamente apresento de forma não organizada:

Medo do sofrimento Medo de parecer ser Medo do desconhecido Medo de conhecer Medo de se perder Medo do fracasso Medo de arriscar Medo do prazer Medo do sucesso Medo de ter medo Medo da imaginação Medo da hierarquia Medo de ser criticado Medo da mudança Medo da desaprovação Medo de ser rejeitado Medo do risco Medo de Deus Medo da desilusão Medo da verdade Medo de ser diferente Medo da perda Medo do abandono Medo do ridículo Medo do eu desconhecido Medo da solidão Medo da opinião pública Medo de si mesmo Medo de perder a cabeça Medo de se abrir Medo do confronto Medo da entrega Medo dos começos Medo de dizer não Medo de expressar-se Medo dos fins das coisas Medo do silêncio Medo da intimidade Medo de ficar parado Medo de perder Medo da perda de amor Medo de estar só Medo de desiludir Medo do inesperado Medo de aborrecer Medo de ser activo Medo da represália Medo de escolher

A nossa capacidade de lidar com o medo pode, assim, definir muito da pessoa que somos e do que viremos a ser como pessoas: ou ficamos presos numa situação de constante MEDO DA VIDA (no que isso significa de bloqueios nas nossas relações intra e interpessoais), ou podemos, numa relação-acção caracterizada por intencionalidade e significado, ser construtores do nosso PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO HUMANO (Kolyniak, 2005)16 – isto é, caminhando no sentido de uma “sociedade sinérgica,

16 “Desenvolvimento Humano: processo contínuo e imprevisível de construção do ser humano, como espécie e como indivíduo, que ocorre na dialéctica entre natureza e cultura, referindo-se à totalidade complexa que se expressa como motricidade, afectividade e cognição, envolvendo, como constituinte, a praxis orientada por valores como busca de condições de existência material e espiritual dignas para

21 solidária e cooperante” (Sérgio, 2005a:21), no sentido do desenvolvimento máximo das nossas possibilidades, na descoberta da nossa própria interioridade, na passagem progressiva por aquilo que são, na perspectiva de Walt Whitman (Ribeiro Dias, 2000), os diferentes níveis de si mesmo – eu, eu-mesmo, eu-eu mesmo.

Trata-se, então, de perceber que este MEDO DA VIDA não é fobia, não é patológico17, não precisa obrigatoriamente de terapia. É “normal”, mas precisa, URGENTEMENTE, de ser educado. Se assim não for, fica a tristeza, se para tal houver coragem, de perceber (em termos pessoais e civilizacionais) a distância entre o que é e o que poderia ter sido, mas não foi.

todos os seres humanos, a ampliação da liberdade de pensamento, sentimento e expressão crítico- criativa, a promoção da solidariedade e do respeito à alteridade” (Kolyniak, 2005:33). 17 São patológicas as condutas que incapacitam para uma vida aceitável – as que são destrutivas para o sujeito e as que produzem dano a outras pessoas (Marina, 2006:111)

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3. A Pesquisa

As coisas têm vida própria, é tudo uma questão de lhes acordar a alma – Gabriel Garcia Marquez

Reconhecendo que “todas as capacidades do homem confluem para a constituição do nível máximo de consciência da própria identidade, da própria missão, do próprio destino” (Ribeiro Dias, 2000:92); perfilhando um conceito de Desenvolvimento Humano que vê a pessoa como “ser transcendente (possibilidade de ser ele mesmo), como alguém que se relaciona com o outro em posição de igualdade, sendo este outro parte importante na construção da sua identidade, em relação dialéctica com o mundo (o cosmos), criando e re-criando ambientes que o fazem cada vez mais humano” (Jaramillo, 2005a:90); considerando que “a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas” (Sousa Santos, 1988:55), para conseguir uma melhor compreensão da realidade estudada, esta pesquisa procurou: (1) deixar-se inquietar por diversas fontes de dados – dados objectivos, subjectivos e inter-subjectivos; dados expressos por publicações científicas, jornais e revistas; dados expressos com quem se partilham ideias; dados percebidos através da relação com o mundo....; (2) indagar de várias maneiras e por muitos caminhos; (3) utilizar a biografia da própria investigadora para, encarnando o projecto, não fechar o saber num enquadramento teórico explicativo, mas, compreendendo os processos e fazendo a descoberta de uma cultura que se concretiza na mente e nas acções de quem investiga, buscar o sentido do conhecimento na construção da vida (Patton, 2002; Morin, 2002; Torre, 2008; Zemelman, 1996; Jaramillo, 2006b).

O quadro I.1 é uma representação gráfica da síntese geral da investigação realizada e comporta os seguintes elementos: - enquadramento do tema e do processo da pesquisa no tempo global de vida pessoal, relacional e cósmico: eu-outros-cosmos; - enquadramento metodológico: investigação qualitativa; - actores e momentos da pesquisa: pessoa, educadora, autores, outros; - propósito da pesquisa: proposta educativa;

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- perguntas de investigação: “como?”; “o quê?”; “por quê?”; “para quê?”; - categorias de análise: quem, o quê, por quê, como, para quê.

O Medo e o Desenvolvimento Humano EU-OUTROS-COSMOS Eu Pessoa T

R ▼ I

Eu Educadora A

N ▼ G

Com os Autores U

▼ LA

Procurando com Outros Ç

Ã

▼ O Pessoa-Educadora-Autores-Outros

1. COMO pode o educador lidar com o seu Categorias de Análise medo e ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e terem uma vida serena, útil e corajosa? Quem 2. O QUE faz com que uma vida seja serena, Investigação Qualitativa Qualitativa Investigação O Quê útil e corajosa? 3. POR QUE o educador só pode ajudar outros Por Quê Proposta a enfrentarem os seus medos e a terem uma Como vida serena, útil e corajosa depois de ele ter Educativa Complementaridade-Pesquisa Colaborativa entrado no processo de enfrentar os seus? Para Quê 4. PARA QUE serve uma vida serena, útil e corajosa? EU – OUTROS – COSMOS Quadro I.1 – Síntese geral da pesquisa.

3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa

Trilhando os caminhos e aceitando os desafios da Investigação Qualitativa (nomeadamente os que são colocados pela Complementaridade e pela Pesquisa Colaborativa), o processo de investigação, que ocorreu entre os anos de 2001 e

2008, desenrolou-se numa sequência cumulativa e numa permanente TRIANGULAÇÃO entre diversos ACTORES E TEMPOS (quadro I.2):

Etapa 0. Por outros caminhos. - Construção de um projecto “clássico”.

Etapa 1. Na procura de caminhos. • Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa. - Emergência do tema a partir do trabalho pessoal (primeira parte do trabalho de campo).

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- Construção do referencial interno. a. Eu Pessoa ► Eu Educadora - Revisão da literatura, perguntas de investigação, desenho da investigação. b. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores

Etapa 2. Caminhando. • Fase de aprofundamento. - Trabalho com o grupo de pesquisa colaborativa – sessões do grupo (segunda parte do trabalho de campo). c. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores ► Procurando com Outros

O Medo e o Desenvolvimento Humano EU – OUTROS – COSMOS Eu Pessoa

T ▼ R

II

Eu Educadora A

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L Com os Autores A

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▼ Ã

Procurando com Outros O ▼ Investigação Qualitativa Pessoa-Educadora-Autores-Outros Complementaridade - PesquisaColaborativa EU – OUTROS – COSMOS Quadro I.2 – Caminhos, actores e tempos da pesquisa.

Etapa 3. Achando luzes. • Fase de leitura da informação recebida. - Trabalho com o grupo de pesquisa colaborativa – análise da informação. d. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores ► Procurando com Outros. - Interpretação-triangulação entre a realidade empírica, a realidade conceptual e a perspectiva da investigadora. e. Pessoa-Educadora-Autores-Outros • Fase de construção de sentido. f. Pessoa-Educadora-Autores-Outros • Fase de apresentação e discussão dos significados encontrados.

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g. Pessoa-Educadora-Autores-Outros ► Procurando com Outros. h. Pessoa-Educadora-Autores-Outros

Etapa 4. Novos caminhos. • Fase de identificação de novos projectos e novas perguntas. i. Pessoa-Educadora-Autores-Outros

Deixando para espaço próprio18 a explicação do que acima denomino “etapa 0 –

PROCURANDO POR OUTROS CAMINHOS”, passo directamente à explicação breve de cada uma das restantes quatro etapas.

A etapa 1, “NA PROCURA DE CAMINHOS” é construída a partir de dois tipos de trabalho. Relativamente à “emergência do tema a partir do trabalho pessoal – eu pessoa e eu educadora” (primeira abordagem do trabalho de campo) e “construção do meu referencial interno”, julgo que o que até agora foi apresentado é suficiente para compreender as razões que estiveram subjacentes às opções tomadas. Resta acrescentar que, na mesma perspectiva não dualista com que procuro encarar esta pesquisa, só em termos de discurso é possível separar o “pessoal” do “profissional” dado que os dois se completam e mutuamente se alimentam. Relativamente ao segundo, “com os autores” (o trabalho de revisão da literatura), não posso deixar de retomar a ideia de que, tal como observador e objecto de observação não são elementos estanques, mas duas faces da mesma moeda, também leitor e leitura não podem ser separados. Porque não existe leitura neutra e objectiva, porque o leitor é co-produtor da obra do escritor (Boff, 1998), todas as interpretações, selecções e conexões estabelecidas com o tema se baseiam em experiências de vida e, por isso, na subjectividade do sujeito-leitor. Também por isso, é daqui que nasce(m) pergunta(s) de investigação que se torna(m) “morada” (Jaramillo, 2006b) e, daí, se avança para uma nova configuração do desenho da pesquisa.

A etapa 2, “CAMINHANDO”, “fase de aprofundamento”, é, simultaneamente, a segunda abordagem do trabalho de campo e o início da pesquisa colaborativa (“procurando com outros”). Contudo, e muito embora este processo de

18 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

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investigação aponte como preferencial a participação de cada um dos membros da equipa em todas as fases do projecto, neste caso, e por força dos propósitos académicos em causa, desenvolveu-se mais numa perspectiva de cooperação (Trigo & Kon-Traste, 2001:57). Isto é, mais localizada no tempo de formação-educação de adultos e, na etapa seguinte (na fase de “leitura da informação recebida”), com o grupo mais restrito de informantes-chave.

A etapa 3, “ACHANDO LUZES”, é composta por três fases. A “fase de leitura da informação recebida” começa por ainda ser de pesquisa colaborativa, com um grupo de informantes-chave. Mas, logo a seguir, para fazer a triangulação entre a realidade empírica, a realidade conceptual e a perspectiva da investigadora (de interpretação e preparação do documento final) passa a ser de reflexão solitária (mas não isolada), pois, muito embora não fisicamente presentes, congrega todos os tempos e todos os intervenientes na pesquisa (“pessoa-educadora-autores-outros”). Tal como também acontece na fase seguinte, “construção de sentido”, é o tempo do meu regresso ao silêncio. Porém, a última fase desta etapa, “apresentação e discussão dos significados encontrados”, retoma o trabalho com o grupo de pesquisa colaborativa para fazer a afinação da análise.

A etapa 4, “NOVOS CAMINHOS”, sendo, de todos, o de menor duração, volta ao trabalho solitário. Para, por um lado, e pela explanação das conquistas realizadas e das dificuldades encontradas, encerrar o processo, mas, por outro, e pela definição de novos projectos e de novas perguntas, possibilitar a sua reabertura futura.

Finalmente, e no mesmo quadro I.2, “EU-OUTROS-COSMOS”, como contextualização de todos estes momentos e do tema, destacando que se situam num tempo ecológico de comunicação pessoal, relacional e cósmica. Primeiro, como sinal da crescente percepção de que (na vivência do tema e no desenvolvimento da pesquisa), a nossa importância e responsabilidade é tanta que, ainda que a repercussão da nossa acção só fosse reconhecida nos espaços imediatamente próximos, não pode também deixar de ser assumida nas ondas de repercussão

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maiores da sua/nossa própria existência19. Segundo, e porque o tempo ecológico é uma via de dois sentidos, como sinal da crescente consciência de que aquilo que fomos (e somos), aquilo que nos moveu (e move), está também imbuído das energias que nos circundam - com elas precisamos ganhar sintonia e nelas ler os propósitos.

“A partir do momento em que um indivíduo empreende uma acção, seja ela qual for, esta começa a escapar às suas intenções. Esta acção entra num universo de interacções e é finalmente o meio ambiente que a agarra num sentido que pode tornar-se contrário à intenção inicial. Muitas vezes a acção retorna sobre a nossa cabeça como um boomerang (…). A ecologia da acção é (…) ter em conta a sua própria complexidade, isto é, risco, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto, consciência das derivas e das transformações” (Morin, 2002:93).

3.2 Propósito e perguntas de investigação

• Propósito

A velha sabedoria oriental diz-nos que “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece” (Moffit, 2002b). O grande passo tem de ser dado pelo discípulo – porque não há aprendizagem sem motivação e não há motivação sem consciência da necessidade de aprendizagem; porque, mesmo tendo havido um empenho árduo em forçar a consciência da necessidade, só se ensina quando o outro aprende; porque o mestre é só aquele (ou aquilo) que facilita a criação das condições de aprendizagem.

Por isso, e considerando que “adulto” não é alguém biologicamente maduro, mas quem: - é capaz de pesar os ganhos e as limitações-desafios do já vivido; - tem a certeza de que pode fazer algo de único com a sua vida pois é possível atingir patamares mais elevados na sua condição de ser humano;

19 Também por esta razão, e na medida da nossa consciência e autocrítica, todos os momentos da pesquisa são descritos detalhada e “encarnadamente” no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma” e, em “IV – Reabrir um novo caminho” é feita uma reflexão sobre os efeitos (em mim e no grupo de pesquisa colaborativa) do trabalho realizado.

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- sabe (nas entranhas) que é pela sua actuação e compromisso que é possível mudar; - não matou a sensibilidade do olhar e a capacidade de projectar; - conserva o sentido da urgência das coisas (da vida) e a paixão pelo porvir; esta investigação teve como PROPÓSITO chegar a um conjunto de PROCEDIMENTOS E

PRINCÍPIOS EDUCATIVOS que possam ser aplicados, preferencialmente, em contexto de EDUCAÇÃO DE ADULTOS – não pela eventual dificuldade “técnica” de aplicação ou compreensão desses procedimentos e princípios, mas porque o seu uso (e eventual sucesso na criação de novas formas de vida), depende da capacidade (e vontade) do “discípulo” para (1) tomar CONSCIÊNCIA da presença dos seus medos e da consequente necessidade de fazer alguma coisa que modifique o estabelecido, (2) assumir a RESPONSABILIDADE, (3) tomar uma DECISÃO, (4) EXECUTAR o decidido.

O Medo e o Desenvolvimento Humano EU – OUTROS – COSMOS 1. COMO pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e terem uma vida serena, útil e corajosa? 2. O QUE faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa? 3. POR QUE razão o educador só pode Proposta ajudar outros a enfrentarem os seus medos Educativa e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus? 4. PARA QUE serve uma vida serena, útil e corajosa? EU – OUTROS – COSMOS Quadro I.3 – Perguntas, propósitos e categorias de análise da pesquisa.

• Formulação e explicitação do sentido das perguntas da pesquisa.

“Habitar a pergunta, ver-se no meio dela, (...) vê-la por muitas arestas e perspectivas que saem de tempos e lugares absolutos de uma cientificidade positiva; poderíamos dizer que a pergunta emerge ao constituir ela própria o seu tempo e o seu lugar. Deste modo, a pergunta faz-se presente enquanto é parte dos investigadores e não só uma indagação que lhes é alheia. A pergunta chega, é percebida constitutivamente, deixa de ser somente objectiva e teórica; poderíamos dizer, fenomenologicamente, que se constitui Morada, em indagação original na qual o

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investigador pode reconhecê-la e fazê-la sua, é co-dependente dela (e ela dele) e, graças a isso, é livre para decidir como desejaria construir o itinerário metodológico para resolvê-la” (Jaramillo, 2006b:xix).

A PERGUNTA CENTRAL e as PERGUNTAS DERIVADAS desta investigação são fruto de um processo que, para melhor compreender o significado do tema da pesquisa e corresponder aos seus propósitos, procurou fazer a articulação entre o trabalho pessoal e a fundamentação teórica. Assim, e num momento de “eureka” cujo disparador foi a leitura do texto de Csikszentmihalyi (1998) sobre vida plena, surge o esboço das primeiras perguntas de partida que, com o desenvolvimento do processo, acabam por vir a ter a seguinte formulação:

- PERGUNTA CENTRAL (em correspondência directa com o propósito da pesquisa). a) Procedimentos – Como pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa?

- PERGUNTAS DERIVADAS. b) Conceptual – O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa? c) Memória – Por que razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus? d) Existencial – Para que serve uma vida serena, útil e corajosa?

Duas questões presidem à PERGUNTA CENTRAL, dos PROCEDIMENTOS, do “como”. Por um lado, os significados de “percepção clara” e de “trabalho diligente” contidos nos verbos “enfrentar” e “lidar” e que remetem para o conceito de acção20 (Sérgio, 1986). Por outro (e estando já aqui implícita a pergunta do “por quê), a consideração da importância da presença de um educador que, consciente e intencionalmente, se faça também educando (Freire, 2003).

Preside à PERGUNTA CONCEPTUAL, do “o quê”, o entendimento da importância da presença na vida de três sinais distintivos (“serenidade”, “utilidade” e “coragem”) que, na sua mútua implicação, são considerados como antagónicos dos atributos do medo. Congregando, na sua inter-relação, o pensamento de Csikszentmihalyi (1998), Sturner (1996) e de Nolan (2001) e, na sua explicitação singular, o

20 Acção – “qualquer acto intencional (interno e externo; observável e não observável) – a interrelação entre pensamento, emoção, intenção, inquietude, consciência, energia” (Trigo, 2006:64).

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pensamento de Maslow (1991), Rogers (1970), Frankl (1994), Maturana (2000), Freire (2003), Morin (2003, 2006), Max-Neef (1993) e outros, tais sinais podem, em termos esquemáticos, ser caracterizados da seguinte maneira:

O que não é O que é Apatia. Alegria.

Conformismo. Sentido de Coerência. Centrar Satisfação das necessidades básicas. Auto-realização. Passividade. Silêncio-Harmonia-Paz – consigo mesmo, com os Outros,

Serenidade com o Cosmos. Consenso ou ausência de conflito. Unidade – descoberta de relação e sentido. Tabela I.1 – O que é e o que não é “serenidade”.

O que não é O que é Desempenho puro e simples de Sentido de vida pessoal. papéis socialmente atribuídos.

Correspondência pura e simples a Sentido de vida relacional. expectativas sociais. Agir Ajustamento. Adequação. Utilidade Nível de vida. Qualidade de vida. Níveis elevados de produtividade Uma mais valia (criatividade benéfica e positiva) para si e económica. para os outros. Tabela I.2 – O que é e o que não é “utilidade”.

O que não é O que é Temeridade. Confiança. Determinação. Imprudência. Capacidade de encarar problemas como desafios.

Capacidade de arriscar. Celebrar Capacidade de transgredir e de ser diferente. Capacidade de permitir que o futuro aconteça.

Coragem Arrogância. Capacidade de viver com o coração e de descobrir significados. Sabedoria – encontro do coração e do intelecto. Força para desfazer dicotomias e viver na plenitude. Tabela I.3 – O que é e o que não é “coragem”.

A PERGUNTA DA MEMÓRIA, do “por quê”, do presente do passado (consequência da pergunta dos procedimentos e da consideração de que se é educador-educando), tem na sua base a reflexão feita sobre a importância de dois momentos do processo educativo: o desenvolvimento pessoal do educador e o procedimento didáctico desse mesmo educador em relação às pessoas com quem trabalha. O que significa que só um educador que tenha aprendido a lidar com os seus medos (ou aquele que, pelo menos, já se tenha iniciado nesse processo), tem legitimidade para ajudar outros a enfrentarem os seus. Isto é, só o educador em processo, porque em movimento (qualquer que seja o ponto da espiral de crescimento em que se encontre), ganha o direito de “aplicar” procedimentos didácticos. Para além de uma questão de honestidade, é uma questão de eficácia – os processos que implicam o

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Ser não podem ser transmitidos senão pela utilização total do Ser. Não é a mente, nem a emoção, nem o corpo, nem o espírito (que, por si só, são “retalhos” do Ser), que podem substituir a acção do Ser.

Finalmente, a PERGUNTA EXISTENCIAL, que remete para o plano espiritual, para a autoresponsabilização e para o compromisso, é a pergunta da procura de sentido para uma vida que se vai tornando “serena, útil e corajosa” (Frankl, 1994; Feitosa, 2006).

• Interligação dos conceitos presentes nas perguntas de investigação.

PERGUNTAS VIDA PLENA ACÇÃO DESENVOLVIMENTO HUMANO INVESTIGAÇÃO INTENCIONAL - definição – - para quê - Uma vida Manutenção 1. Tomada de 1. Processo - como espécie e Consciência SERENA CENTRAR consciência contínuo de como indivíduo MEDITAR construção - na dialéctica de si de descoberta 2. Responsabilização do humano. natureza-cultura do outro de relação e simplesmente ser do cosmos sentido dos 3. Decisão diversos tempos de vida (pessoal, cultural, cósmico) Uma vida ÚTIL Produção 4. Execução 2. Implica uma - condições dignas Transformação AGIR praxis de existência portadora de CRIAR orientada material e um outro mundo é valor por valores. espiritual. possível o ser criador e - liberdade de criativo pensamento, sentimento, expressão crítico- criativa - solidariedade - alteridade Uma vida Ócio →→→→→→→ 3. Refere-se à - motricidade Felicidade CORAJOSA CELEBRAR ↑ consciência ↓ totalidade humana Partilhada ↑responsabilização↓ complexa. de plenitude, o prazer da ↑ decisão ↓ desfazer das unidade do ser ↑ execução ↓ dicotomias ←←←←←←← Tabela I.4 – Interligação de conceitos.

Ao longo de todo este processo de criação, muitos “outros e simultâneos” foram os tempos de incubação, os momentos de eureka, os tempos de avanço e os tempos de retrocesso que, para além da formulação das perguntas, levaram à consolidação daquilo que “procurei-descobri” ser sinal de coerência interna da pesquisa. Assim, e

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como explicação de como vejo que tudo se liga, coloco na tabela I.4 a correspondência entre o conteúdo conceptual das perguntas de investigação e: - os caminhos de criação e de vida plena (Sturner, 1996, Csikszentmihalyi, 1998; Nolan, 2001); - os movimentos centrífugo e centrípeto dos momentos da acção intencional e do processo da mudança (Sérgio, 2005a); - as ideias centrais do conceito de desenvolvimento humano aqui em causa (Kolyniak, 2005); - o “para quê” do desenvolvimento humano (Trigo & Coego, 2003).

A SERENIDADE da vida (tempo e fruto do centrar-alimentar, da atenção da pessoa sobre si mesma, do silêncio e da continuidade que dá sentido e força ao agir), é construída na consciência de quem se é e do para que se existe. A UTILIDADE da vida (tempo e fruto do agir, efeito da condição anterior e razão do celebrar) é transformação coerente entre diversos campos da vida. A CORAGEM (tempo e fruto do celebrar, do agradecer e do abençoar a unidade do Ser) é o fazer da paz e da felicidade partilhada e, por isso, o inspirar e comprometer num novo ciclo de vida.

• Interligação entre o conteúdo conceptual das perguntas de investigação, o campo de criação e o processo da pesquisa.

Resultou do tempo em que comecei entendendo que o CONTEÚDO CONCEPTUAL das perguntas, construídas inicialmente (só) com o propósito de orientar a compreensão do tema da investigação, tinha também uma interligação profunda, tanto com o

PROCESSO, como com o próprio CAMPO DE CRIAÇÃO da pesquisa (Tabela I.5 e Ilustração I.5). Aqui me descobri, finalmente, “habitando a pergunta” (Jaramillo, 2006):

Conteúdo Conceptual Perguntas de Investigação Campo de Criação Centrar, meditar, manutenção  “O que faz com que uma vida...?” Educação de Adultos Serenidade “Por que razão o educador...?”  Motricidade Humana Agir, criar, produção  “Como pode o educador lidar...?” Criatividade Utilidade  Celebrar, ócio  “Para que serve uma vida...?” Desenvolvimento Coragem  Humano Tabela I.5 – Paralelos entre conteúdo conceptual, perguntas de investigação e campo de criação.

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- Porque, pelas perguntas de “O QUÊ” e do “PORQUÊ”, se possibilita uma atitude e

um clima de CENTRAÇÃO e SERENIDADE – e isso é EDUCAÇÃO e MOTRICIDADE

HUMANA, descoberta da complexidade multidimensional, da essência, do sentido e da repercussão da própria existência do sujeito como Ser (Trigo, 2006; Azevedo & Louro, 2006).

- Porque, pela pergunta do

“COMO”, se possibilita uma

atitude de PRODUÇÃO e Conteúdo Processo CRIAÇÃO – e isso é conceptual das de perguntas investigação CRIATIVIDADE que acrescenta ao mundo alguma coisa, Campo nova e com valor (Isaksen et de criação al, 1994).

Ilustração I.5 – Interligação entre conteúdo conceptual, - Porque, pela pergunta do processo de investigação e campo de criação. “PARA QUÊ”, se possibilita o

prazer de quem CELEBRA a plenitude que se encontra no que se é e no que se

faz – e isso é a CORAGEM de se assumir na totalidade do DESENVOLVIMENTO

HUMANO (Kolyniak, 2005).

3.3 Categorias de análise

O Medo e o Desenvolvimento Humano EU – OUTROS – COSMOS

Categorias de Análise Quem? O Quê?

Como?

Por Quê?

Para Quê?

EU – OUTROS – COSMOS Quadro I.4 – Categorias de análise da pesquisa.

As categorias de análise são o resultado (revisto e aceite por três especialistas), do trabalho feito com os informantes-chave do grupo de investigação colaborativa sobre

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a transcrição das sessões de trabalho desse mesmo grupo21. Compreendem categorias, sub-categorias e sub-subcategorias criadas por via dedutiva (que emana do referencial interno e da revisão da literatura), e por via indutiva (que emana das transcrições das sessões e dos resultados da observação participante) que podem ser assim muito sucintamente descritas: a) Quem. Porque as relações que o ser humano estabelece consigo próprio, com os outros e o com o mundo são determinadas pela consciência / percepção de si mesmo (Guenther & Combs, 1980), (o que, por inerência, condiciona aqui o conteúdo das restantes categorias de análise desta pesquisa), esta categoria reúne todas as narrativas em que os participantes falam sobre si mesmos ou sobre o grupo em que estão inseridos. Apresenta duas grandes sub-categorias: a. As pessoas do grupo – caracterização geral, razões, expectativas e efeitos por participar. b. O grupo de pesquisa colaborativa – clima do grupo, dimensões do Situational Outlook Questionnaire (Isaksen et al, 1995); estilos de criação, dimensões do VIEW (Selby et al, 2003). b) O quê. Sendo a categoria conceptual, reúne as seguintes sub-categorias. a. Definições e caracterização do medo - os participantes dizem o que, na sua experiência, é o medo e descrevem alguns dos seus atributos. b. Relação e explicação dos medos – explicação do sentido de muitos medos, tanto experimentados em si mesmos, como percepcionados pelos membros do grupo em outras pessoas ou situações. c. Efeitos do medo – situações de causa-efeito, consequências não intencionais do medo (reacções automáticas, bloqueios, obstáculos, limitações, respostas imediatas, respostas reflexas), em termos físicos, emocionais, relacionais, mentais, etc., que, por si só, e porque actuam num círculo vicioso, nada acrescentaram às pessoas. c) Como. Sendo a categoria processual, reúne as seguintes sub-categorias: a. Como os outros reagem aos nossos medos – percepções- interpretações-reacções-valores-significados atribuídos por outras pessoas a alguns dos medos indicados pelos participantes (seja na perspectiva directa “do outro”, seja na leitura que o próprio faz das

21 Ver “Capítulo 1 – 2.2 Descrição do cronograma; 2.4 Processamento de dados”, “Anexo 3 – Transcrição das sessões do grupo de pesquisa” e “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”.

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reacções das outras pessoas relativamente às suas atitudes, sentimentos e comportamentos). b. Processo de lidar com o medo centrado na conservação –, congrega formas de reacção ao medo em que, muito embora haja consciência da acção, são estratégias de disfarce, de evitamento e de fuga pois pretendem a continuidade de uma dada situação através do auto- engano e da paralisação de actos e de pensamento. c. Processo de lidar com o medo centrado no desenvolvimento humano – formas de acção sobre o medo apresentadas e, de alguma maneira, experimentadas ou identificadas pelos participantes (por isso, não normativas), que promovem o desenvolvimento humano: num movimento duplo do exterior (universo) para o centro (nós), ou do centro (tomada de consciência e tomada de decisão) para o exterior (estratégias e execução) (Kolyniak, 2005; Sérgio, 1986). d) Por Quê. Sendo a categoria da memória, reúne as seguintes sub-categorias: a. Razões do medo – motivos que levaram à ocorrência do medo (tanto experimentados pelos membros do grupo, como por eles percepcionados em outras pessoas ou situações). b. Pessoas que influenciaram – indicações sobre pessoas que, em qualquer momento da vida, tiveram um tipo de actuação que, de uma forma ou outra, criou as condições para se ter medo. c. Razões para não ter medo – motivos que levaram à ausência do medo (tanto experimentados pelos participantes, como por eles percepcionados em outras pessoas ou situações). d. Pessoas que influenciaram – indicações sobre pessoas que, em qualquer momento da vida dos participantes, tiveram um tipo de actuação que, de uma forma ou outra, criou as condições para que se não tenha medo. e) Para quê. Sendo a categoria existencial, reúne as seguintes subcategorias: a. Para a conservação social – a possibilidade da utilização do medo como garantia do controlo e da reprodução social. b. Para o desenvolvimento humano – a perspectiva existencial do medo, em termos individuais e sociais, no sentido do desenvolvimento humano.

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4. Organização da Tese

I. Processo da Pesquisa Introdução Cap. 1 – Roteiro II. Centrar Cap. 2 – Descobrir os próprios caminhos Cap. 3 – Descobrir caminhos de outros III. Agir Cap. 4 – Criar o caminho IV. Celebrar O Sentido do caminho Reabrir um novo caminho

Quadro I.5 – Resumo do índice da tese.

O relatório deste estudo exploratório tem quatro partes (quadro I.5). A primeira, orientada para a explicação do PROCESSO DA PESQUISA, contém, para lá desta Introdução, o Roteiro do caminho percorrido. Cada uma das restantes três, orientadas para a apresentação dos RESULTADOS PARCIAIS E GLOBAIS da pesquisa, correspondem, a um dos estados ou caminhos de criação (Sturner, 1996).

• I. Processo da Pesquisa

INTRODUÇÃO: a introdução, que este ponto sobre a organização da tese encerra, procurou situar e fazer o retrato geral da investigação realizada – na sua perspectiva epistemológica, ontológica, conceptual e metodológica.

CAPÍTULO 1 – “ROTEIRO”: é a explicação do desenho da investigação e a descrição do caminho percorrido em todas as fases do processo da pesquisa. Enquanto processo criativo que é, este processo inscreve-se num sistema dinâmico que

engloba: (1) o PRODUTO, a tese, que, enquanto investigação aplicada e com o propósito de fazer inovação educativa e didáctica, incorpora diferentes cosmovisões e linguagens num conceito multidimensional de desenvolvimento

humano (Morin, 2003; Bachelard, 2002; Sousa Santos, 1988); (2) as PESSOAS, os investigadores, que, numa conciliação da dualidade de papéis de investigadores-investigados, se colocam na disposição e vontade de transformarem o conhecimento em consciência (Zemelman, 1996); (3) a

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PRESSÃO, o contexto da pesquisa, que, matizado por um “conhecimento saboreado-vivido”, incorpora uma atitude de “habitar a pergunta” e de “jogar a

inventar modelos” (Jaramillo, 2006b); (4) o PROCESSO, as fases e operações realizadas que, num desenvolvimento não linear, mas cíclico, passam pela compreensão do problema, pela produção de ideias e pela avaliação e planeamento da acção (Isaksen et al, 1994). São, por isso, duas as funções deste espaço. Por um lado, explicar a interligação e o sentido da complementaridade e da pesquisa colaborativa no contexto da investigação qualitativa. Por outro (e porque não procederam de um desenho pré-estabelecido), descrever detalhadamente as etapas, estratégias e actividades desenvolvidas ao longo de todo o processo para que, também por esse meio, se cumpram critérios de aplicabilidade e comparabilidade da pesquisa.

• II Centrar

A segunda parte da tese engloba o que, sob a égide dos caminhos de criação e de vida plena (Sturner, 1996), foi construído num caminho de centração. Isto é, um caminho que é feito no silêncio, na reflexão e na atenção da pessoa sobre si mesma e que, por essa via, permite aceder a uma maior consciência de si, uma maior consciência dos outros, uma maior consciência do mundo. Correspondendo à etapa 1 da pesquisa, “na procura de caminhos”, esta segunda parte compreende os dois capítulos que, genericamente, ajudaram a compreender e situar o tema e o problema da pesquisa.

O CAPÍTULO 2 – “DESCOBRIR OS PRÓPRIOS CAMINHOS”, feito a partir da reflexão sobre a minha própria experiência de vida pessoal e profissional e numa conciliação

dos papéis de observador e observado, integra o meu REFERENCIAL INTERNO – isto é, os conhecimentos extra-teóricos e empíricos produzido antes da revisão bibliográfica. Utilizando, no seu primeiro texto, uma linguagem metafórica, e, no segundo, recorrendo a memórias do vivido, é o produto daquela que foi a primeira abordagem do trabalho de campo.

O CAPÍTULO 3 – “DESCOBRIR CAMINHOS DE OUTROS”, é construído numa perspectiva de interdisciplinaridade e está mais voltado para a compreensão do problema

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numa perspectiva de ecologia de saberes* do que em função do estudo de uma disciplina específica (Patton, 2002; Torre, 2008). Tendo como espinha dorsal os principais temas da tese (medo e desenvolvimento humano) e a compreensão e explicitação dos conceitos do campo de criação da pesquisa, é resultado não só de um longo processo de revisão bibliográfica (que antecedeu, acompanhou e sucedeu à segunda fase do trabalho de campo), como também da interacção criativa entre o pensamento dos autores e a minha introspecção como investigadora. Porque é fruto de um trabalho feito no silêncio e na procura de compreensão do tema e do problema de investigação, está integrado na segunda parte, “centrar”.

• III Agir

A terceira parte da tese (enquanto prolongamento “natural” e inevitável da centração e do entendimento da responsabilidade que vem da consciência de si, da consciência dos outros e da consciência do mundo), é construída no caminho do agir. Fruto de um trabalho de execução, feito de dentro para fora, engloba o capítulo que corresponde à etapa 2 da pesquisa, “caminhando”.

O CAPÍTULO 4 – “CRIAR O CAMINHO”, utiliza as categorias de análise das transcrições das sessões da segunda abordagem do trabalho de campo para, a partir delas,

fazer a LEITURA E INTERPRETAÇÃO DA INFORMAÇÃO RECEBIDA. Com cinco pontos distintos, cada um deles parte de uma das principais categorias de análise (1. quem; 2. o quê; 3. como. 4. por quê; 5. para quê), para, pelo cruzamento e triangulação com as restantes, procurar responder a cada uma das perguntas da investigação. Constrói-se, assim, um texto interpretativo e de diálogo entre os vários actores e tempos da pesquisa.

• IV Celebrar

O MEDO, enquanto emoção, é uma resposta reflexa a O DESENVOLVIMENTO HUMANO é um movimento em determinados estímulos; enquanto sentimento, permite espiral, consciente e intencional, com ondas de a criação de uma estatégia de protecção; mas, repercussão que flúem entre os contextos micro e enquanto estado de alma (não patológico, mas macro, em princípio acessível a qualquer indivíduo

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encarnado, enraízado e subtil), é muito mais uma que, por criação própria e em busca de sentido na forma de estar no mundo – não uma coisa que se sua totalidade complexa, rompe as barreiras da tenha, mas uma condição em que se está e em que se gente cinzenta, sem graça e com medo, alarga as vive e que, em causalidade circular, tem, no modo de fronteiras da desconfiança, da apatia e da percepção do eu, a matéria prima da sua força e, na mediocridade feita norma e, com isso, assegura a dualidade e infidelidade a nós mesmos, um dos seus possibilidade de construção de mundos de alegria e efeitos mais desintegradores e limitadores. de paz.

Desembocando nas duas definições acima transcritas22, a última parte da tese retoma todos os pontos anteriores e, à maneira de conclusão, por um lado, CONSTRÓI E

ENCONTRA SENTIDO, e, por outro, REABRE UM NOVO CAMINHO.

“O SENTIDO DO CAMINHO”, que corresponde à etapa 3, “achando luzes”, é um processo de recriação dos aspectos mais significativos da tese e cumpre duas funções: - A primeira, apresentar o que quer ser um contributo para a construção de tipos- ideais que conjuguem os atributos comuns à média das distintas formas de lidar com o medo. É o meio encontrado para ajudar a perceber que o medo afecta a nossa vida de diferentes maneiras – se for construtivo e apropriado, é um incentivo para a acção criadora e transformadora da existência humana; se for destrutivo e desadequado, ou então, ignorado, disfarçado ou negado, pode converter-se num disparador de dualidades desintegradoras e limitadoras da unidade, totalidade e do sentido da relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo. - A segunda, e a partir da interacção de três áreas estruturadoras da construção do humano (Educação de Adultos, Criatividade e Motricidade Humana), criar e

enquadrar um conjunto de PRINCÍPIOS EDUCATIVOS que orientem um programa de educação de adultos: o princípio da individuação-integração (o sentido da mudança); o princípio da inquietação (a percepção-consciência do sujeito em relação); o princípio da coerência da acção e do reconhecimento de si mesmo (o motor, o provocador do movimento); o princípio do testemunho e do contágio (as condições do terreno).

“REABRIR UM NOVO CAMINHO” é o olhar a obra feita, é a avaliação-celebração de todo o processo, a que corresponde à última etapa da pesquisa, “novos caminhos”. Tal como o anterior, cumpre duas funções que se interpenetram – encerrar um ciclo e, nesse encerrar, abrir um ciclo novo. O encerramento do ciclo

22 Ver “IV Celebrar – O sentido do caminho – Proposta educativa”.

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corresponde, naturalmente, ao fim desta tese. Em jeito de “tempo da colheita”, regressa às suas bases para olhar e pesar o fruto – do ponto de vista epistemológico, ontológico, metodológico, mas também do ponto de vista do grupo da pesquisa e do ponto de vista pessoal. O abrir de um novo ciclo é, também ele, extensão da colheita feita. É o tempo dado para saborear as conquistas e pesar as dificuldades e, com ambas, imaginar as possibilidades e oportunidades futuras.

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Capítulo 1 Roteiro

I. PROCESSO DA PESQUISA Introdução Capítulo 1 – Roteiro 1. Criação do desenho da investigação 1.1 Os desafios do desenho da Complementaridade e do processo de Pesquisa Colaborativa no contexto metodológico da Investigação Qualitativa 1.2 Modalidades da investigação 1.3 Critérios de credibilidade 2. Itinerário e crónicas do caminho 2.1 Cronograma 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas 2.2.1 Etapa 0 – por outros caminhos 2.2.2 Etapa 1 – na procura de caminhos 2.2.3 Etapa 2 – caminhando 2.2.4 Etapa 3 – achando luzes 2.2.5 Etapa 4 – novos caminhos 2.2.6 Correspondência entre processo criativo, processo da pesquisa e relatório da pesquisa 2.3 Processo de orientação da tese 2.4 Processamento de dados 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise 2.5 Aspectos éticos

II. CENTRAR Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR O sentido do caminho Para abrir um novo caminho

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“O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. (...) Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural” (Sousa Santos, 1988: 48-49).

Foi um texto de Boaventura Sousa Santos que serviu de mote ao fundamento epistémico desta tese. É com o mesmo autor que, buscando seguimento, me preparo para começar a informar sobre o que foi o seu processo de indagação. E, no extracto acima colocado, identifico um conjunto de conceitos e de relações entre conceitos que considero especialmente relevantes:

método // linguagem linguagem da pergunta // linguagem da resposta conhecimento pós-moderno // total-local // condições de possibilidade revolução-inovação científica // pluralidade metodológica // transgressão metodológica

Isto é, conceitos e relações entre conceitos que, distantes de uma concepção metodológica linear e meramente técnica, também apontam a necessidade de se encarar a pesquisa nas ciências sociais e humanas como um acto criador (Bohm & Peat, 1988) – porque também ela se apresenta como uma situação complexa, com aspectos múltiplos e conflituosos, onde nem sempre as prioridades são claras; porque também ela se apresenta como um problema para o qual não há caminho nem solução previamente definidos; porque também ela se apresenta como um desafio novo que precisa de soluções inovadoras (Isaksen et al, 1994:34).

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É por isso que, agora, para informar sobre o processo de investigação desta tese, não posso dar só notícia das operações realizadas (etapas, métodos, estratégias e actividades desenvolvidos), mas preciso primeiro de o enquadrar no conjunto do sistema em que, como processo criativo que é, se integra e de que depende – o sistema dos 4 P’s (pessoa, processo, produto e pressão) que, porque operam juntos, definem a abordagem sistémica da criatividade (Isaksen et al, 1994:7).

Começarei, por isso, por reconstituir o que, no espaço da Introdução, especialmente nos princípios e compromissos então enunciados23, foi definido como sendo o “produto” desejado, para que depois, e em função das características-desafios que lhe estão associados, possa fazer a correspondência com o que, nos restantes elementos do sistema, foi necessário colocar em interacção.

1. O produto – a tese

Tendo como propósito específico chegar a um conjunto de princípios educativos que possam ser aplicados em contexto de educação de adultos, entendi que, enquanto propósitos gerais, esta tese deveria, em síntese, assumir e incorporar:

- Um CONCEITO MULTIDIMENSIONAL, ético, solidário e responsável de Desenvolvimento Humano (Morin, 2006).

- A ESCUTA DAS EMOÇÕES como meio para entender o que acontece na profundidade de cada pessoa (Damásio, 2003:183).

- A consciência de que a VIDA É UM FENÓMENO COMPLEXO de auto-eco-organização, de inter-relação com o universo e com o outros (Morin, 2003).

- A ideia de RESPONSABILIDADE PELO NOSSO DESTINO e pelo destino do nosso planeta (Berman, 1981).

- A noção de que todos os DISCURSOS SÃO ENCARNADOS e que o investigador influi na construção do objecto do conhecimento (Morin, 2003; Sérgio, 2005a; Varela, 2000).

- DIFERENTES COSMOVISÕES, diferentes maneiras de conhecer e diferentes linguagens (Sousa Santos, 1988, 2002; Zemelman, 1996; Feitosa, 1999; Capra, 1982; Sisk & Torrance, 2001; Sousa et al, 1998; Bachelard, 2002; 1998; McCall, 2003).

23 Ver “Introdução – 1.2 Implicações para a pesquisa”.

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2. A pessoa – os investigadores

Para possibilitar a criação de um produto com as características atrás enunciadas, passou a ser necessário que, enquanto investigadora, me preparasse e disponibilizasse para (Zemelman, 1996; Patton, 2002; Jaramillo, 2006b; Martínez Salgado, 1996; Castro, 1996; Bogdan & Biklen, 2006):

- SER PARTE DO OBJECTO DE OBSERVAÇÃO – conciliando a dualidade dos papéis de investigadora e de investigado para ajudar a ampliar a compreensão sobre o todo investigado; sentindo que o que queria observar é parte da minha própria natureza e cultura; utilizando a minha biografia na escolha do tema, na revisão da literatura, na interpretação dos dados e nos processos de alteridade estabelecidos com os outros membros do grupo e com síntese e construção de sentido.

- ESTAR PRESENTE COMO SUJEITO REFLEXIVO em todo o processo de investigação – não como simples operadora, mas seleccionando materiais, vislumbrando possibilidades, criando os meus próprios caminhos.

- UTILIZAR A SUBJECTIVIDADE – para me tornar sensível e reflexiva sobre tudo o que acontecesse na investigação, ou fora dela.

- TRANSFORMAR O CONHECIMENTO EM CONSCIÊNCIA – não só com paixão intelectual, mas como pessoa que quer estar comprometida com o que estuda e que aí procura encontrar o sentido do conhecimento na construção da história.

3. A pressão – a natureza do contexto da pesquisa

Na minha interacção como investigadora (sujeito-actor-construtor) e a situação que queria investigar, procurei que o contexto-clima da pesquisa ficasse matizado por um “conhecimento saboreado-vivido”, por uma atitude de “habitar a pergunta” e por uma vontade de “jogar a inventar modelos” (Jaramillo, 2006b):

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- CONHECIMENTO SABOREADO – porque o conhecimento está inseparavelmente entrelaçado com a minha/nossa história vivida, com o meu/nosso corpo, com a minha/nossa linguagem, com a minha/nossa história social.

- HABITANDO A PERGUNTA – porque houve três contributos para que a pergunta fosse sentida como algo que me pertence (como minha morada), em que estou implicada: (1) o papel dos afectos e da biografia na adesão ao tema da investigação; (2) a utilização de ferramentas distintas para ir buscar, não só dados objectivos nos livros, mas também dados subjectivos e inter-subjectivos; (3) o dar forma à pergunta indagando de várias maneiras e por múltiplos caminhos.

- JOGANDO A INVENTAR MODELOS – porque assumir o problema como morada também implicou que não fosse o modelo a determinar o problema, mas que fosse o problema a determinar o modelo e a dar forma ao desenho. É o efeito lúdico do desafio de criar o próprio caminho de investigação – procurando pistas, dando tempo, criando métodos, inventando, transgredindo, perdendo-me, encontrando-me, recriando.

4. O processo – as operações realizadas

O processo, que raramente é linear, é a dimensão que diz respeito ao modo como o acto criador tem lugar. Com correspondência entre as diferentes etapas e fases do processo da pesquisa (também elas não lineares) e as componentes, estádios e fases do Processo de Resolução Criativa de Problemas (CPS)24 (Isaksen et al, 1994; Isaksen

24 CPS – Creative Problem Solving, na sua versão original. “A Resolução Criativa de Problemas é um processo, um método, um sistema de abordagem de um problema de forma imaginativa que resulte numa acção eficaz” (Ruth Noller, Apud Isaksen, 1994:31). A abordagem do processo de Resolução Criativa de Problemas usa, de forma complementar, o pensamento criativo e o pensamento crítico para lidar com situações desconhecidas ou ambíguas. A um nível global, a versão 6.0 do Processo de Resolução Criativa de Problemas (CPS) compreende três componentes e seis fases: - Compreensão do Problema – construção de oportunidades; exploração de dados; enunciar problemas. - Produção de Ideias – produção de ideias. - Planeamento da Acção – desenvolvimento de soluções; construção da aceitação. A um nível mais específico, cada um dos estádios compreende duas fases que, no seu conjunto, enfatizam o equilíbrio dinâmico entre o pensamento divergente e o pensamento convergente. A primeira fase, de

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& Treffinger, 2004), o caminho percorrido, sintetizado na tabela II.6, é um dos caminhos possíveis. Consciente, também por isso, que outros caminhos permitiriam outras possibilidades (Feitosa, 1999:78), nos pontos seguintes deste capítulo apresentarei: em primeiro lugar, a fundamentação das principais escolhas feitas; depois, os procedimentos e aplicações práticas que configuraram o desenho da pesquisa.

Etapas e fases da Pesquisa Componentes e estádios do Processo de Resolução Criativa de Problemas Etapa 0 Por outros caminhos. Compreensão do Problema (1) Etapa 1 Na procura de caminhos. - Construção de Oportunidades - fase reflexiva e de aproximação à pesquisa. - Exploração de Dados - Enunciar Problemas. Etapa 2 Caminhando. - fase de aprofundamento. Produção de Ideias Etapa 3 Achando luzes. - Produção de Ideias - fase de leitura da informação recebida. - fase de construção de sentido. Planeamento da Acção - fase de apresentação e discussão dos - Desenvolvimento de Soluções. significados encontrados. - Construção da Aceitação. Etapa 4 Novos caminhos. Compreensão do Problema (2) - fase de identificação de novos projectos e novas - Construção de Oportunidades perguntas. Tabela II.6 – Correspondência entre etapas e fases da pesquisa e as componentes e estádios do processo de resolução criativa de problemas (versão 6.0 – Isaksen, 2000).

produção, é utilizada para produzir opções diferentes e invulgares. A segunda, de análise, é utilizada para analisar, desenvolver ou aperfeiçoar as opções anteriormente produzidas (Isaksen, 1994; 2000).

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1. Criação do Desenho da Investigação

As pessoas crescidas gostam de números. Quando lhes falais de um novo amigo nunca perguntam o essencial. Nunca vos dizem: “Como é a fala dele? Quais os seus jogos predilectos? Colecciona borboletas?” Perguntam: “Que idade tem? Quantos irmãos são? Quanto pesa? Quanto é que o pai ganha?” E só julgam que o conhecem depois disto. Se disserdes às pessoas crescidas: “Vi uma bela casa de tijolos vermelhos, com gerânios nas janelas e pombas no telhado…” elas não conseguem imaginar uma casa. É preciso dizer-lhes: “Vi uma casa de quinhentos contos”. Então exclamam: “Ai, que bonita!” – Saint-Exupéry, O Principezinho.

Quadro Geral do Desenho da Pesquisa

Modalidades de Paradigmas Metodologia Investigação Educativa Credibilidade Instrumentos

INDICADORES QUALITATIVOS Histórias de Vida SISTÉMICOS QUALITATIVA FINALIDADE: •Aplicada VERACIDADE: ALCANCE TEMPORAL:  •Complementaridade Triangulação - de Estudo de Caso •Longitudinal pessoas, momentos, especialistas e técnicas  PROFUNIDADE: Verificação do relatório Grupo ECOLÓGICOS •Pesquisa Colaborativa •Exploratória final Colaborador

MARCO EM QUE TEM LUGAR: FIABILIDADE INTERNA:  •De campo Triangulação - consulta de Observação especialistas Participante CONCEPÇÃO DO FENÓMENO EDUCATIVO NEUTRALIDADE NA ********** COMPLEXIDADE •Ideográfico ANÁLISE: Saturação de dados DIMENSÃO Elaboração de relatórios TEMPORAL: amplos Questionário SOQ •Descritiva Descrição minuciosa dos factos ORIENTAÇÃO QUE ASSUME SUBJECTIVIDADE •Aplicação APLICABILIDADE: Questionário Descrição rigorosa do VIEW contexto e do processo

Quadro II.6 – Desenho da pesquisa.

1.1 Os desafios da Complementaridade e da Pesquisa Colaborativa no contexto da Investigação Qualitativa

“Utilizamos a expressão investigação qualitativa como um termo genérico que agrupa diversas estratégias de investigação que partilham determinadas características. Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização

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de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivíduos que fazem investigação qualitativa possam vir a seleccionar questões específicas à medida que recolhem os dados, a abordagem à investigação não é feita com o objectivo de responder a questões prévias ou de testar hipóteses. Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação. As causas exteriores são consideradas de importância secundária. Recolhem normalmente os dados em função de um contacto aprofundado com os indivíduos, nos seus contextos ecológicos naturais” (Bogdan & Biklen, 2006:16).

Tendo definido como PROPÓSITO, não a busca de leis gerais, mas a inovação educativa e didáctica, e, como PRESSUPOSTOS, (1) que o homem é um todo, (2) que a subjectividade é uma característica essencial do comportamento humano, (3) que a realidade é múltipla e complexa, (4) que a conduta humana tem uma dimensão histórica e social e (5) que não há forma de fazer ciência, ou de evoluir cientificamente, sem pequenas ou grandes doses de criatividade capazes de romper com os paradigmas estabelecidos (Sousa Santos, 1988, 2002¸ Bohm & Peat, 1988, Patton, 2002; Morin,

2003; Sérgio, 2005), considerei que a INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA era o caminho adequado para a realização desta pesquisa.

Assim, e porque esta metodologia se situa nos paradigmas sistémicos, ecológicos, da complexidade e da subjectividade (que entendem que o investigador faz parte do todo investigado) e permite a utilização de técnicas e procedimentos quantitativos e qualitativos diversos, fiquei também, e por inerência, colocada perante o PRIMEIRO

CONJUNTO DE DESAFIOS E REQUISITOS METODOLÓGICOS (Patton, 2002; Martínez Salgado, 1996; Castro, 1996; Bogdan & Biklenm 2006; Trigo et al, 2001; Murcia & Jaramillo, 2003; Bohm & Peat, 1988):

a) que considerasse as pessoas e os cenários da pesquisa dentro do seu próprio quadro de referência, numa perspectiva holística, como um todo integrado, não reduzidos a variáveis; b) que, sob o pretexto da objectividade, não me quisesse separar dos factos e do investigado, pois, numa investigação educativa, a relação que se estabelece entre o investigador e o sujeito investigado tem repercussões decisivas sobre os resultados;

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c) que fosse sensível aos efeitos que produzia sobre as pessoas que eram objecto do meu estudo; d) que desse ênfase à validade na minha investigação.

Mas, além disso, a opção por uma metodologia qualitativa desencadeou duas outras escolhas: a do desenho da Complementaridade e a do processo da Pesquisa Colaborativa.

• Complementaridade

“Chamamos complementaridade à possibilidade que o investigador tem de reunir de forma inclusiva várias perspectivas e métodos de investigação com o propósito de compreender melhor um fenómeno social. Deste modo, considera o referido fenómeno da forma mais próxima possível da realidade vivida pelos sujeitos nele imersos e pressupõe que tal compreensão não se alcançaria na sua totalidade se a investigação se restringisse a pequenas observações por parte do investigador” (Jaramillo, 2006b:viii).

A opção pelo desenho da COMPLEMENTARIDADE também me colocou, por sua vez, e enquanto investigadora, perante um NOVO PAR DE DESAFIOS (Jaramillo, 2006b):

a) que desenvolvesse um estudo impregnado de interculturalidade epistémica que se pudesse sobrepor à monocultura do saber; b) que não investigasse por meio de um desenho pré-estabelecido, mas que criasse o desenho enquanto investigava.

O desenho criado no estudo acabou, assim, por ser composto por cinco etapas e seis fases que, como adiante será explicado25, se interpenetraram e cruzaram ao longo de todo o processo de investigação: etapa 0 – por outros caminhos; etapa 1 – na procura de caminhos (fase reflexiva e de aproximação à pesquisa); etapa 2 – caminhando (fase de aprofundamento); etapa 3 – achando luzes (fase de leitura da informação recebida; fase de construção de sentido; fase de apresentação e discussão dos significados

25 Ver ponto 2 deste capítulo, “2.2 descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

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encontrados); etapa 4 – novos caminhos (fase de apresentação e discussão dos significados encontrados).

• Pesquisa Colaborativa

Nascida de uma preocupação despertada pela investigação qualitativa no campo da educação, a PESQUISA COLABORATIVA (Trigo et al, 2001) foi a outra opção metodológica. Primeiro, porque permite que se congreguem propósitos de investigação com propósitos de desenvolvimento. Segundo, porque pode revelar-se como uma alternativa importante para uma educação eficaz e de qualidade: (1) porque, tendo como valores fundamentais a colaboração, a competência e a solidariedade, é (nomeadamente em contexto de educação de adultos), uma forma de dar vida aos quatro pilares da educação enunciados pela Unesco – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser, aprender a viver juntos (Delors, 1996); (2) porque coloca investigadores e educadores e outros membros da comunidade educativa numa mesma equipa e em processo de reflexão-acção; (3) porque, para além de investigadores e educadores trabalharem juntos no processo de construção do conhecimento (planificação, implementação e análise de uma investigação), eles também partilham a responsabilidade na tomada de decisões e na realização de tarefas que permitem resolver problemas imediatos e práticos dos educadores (Trigo et al, 2001:57-61).

Assim, e apesar de, por força dos objectivos académicos deste tese (e como adiante também será descrito), só ter sido usado numa perspectiva de cooperação nalgumas fases do projecto26, a opção por um processo de Pesquisa Colaborativa fez(-nos) enfrentar um TERCEIRO CONJUNTO DE DESAFIOS e compromissos (Trigo et al, 2001:57- 61):

a) o da criação de um clima de respeito e liberdade; b) o do atendimento de uma grande diversidade de expectativas;

26 De acordo com os autores, e baseando-se em Hord e Devís, embora a investigação colaborativa possa também ser apelidada de “investigação cooperativa”, cooperação e colaboração são conceitos diferentes: A “cooperação” remete para uma forma imperfeita de participação; a “colaboração” exige o compromisso de cada um dos membros da equipa em todas as fases do projecto da pesquisa (Trigo & Kon-Traste, 2001:57).

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c) o da criação de um espaço de assumir riscos, de criação colectiva e de compromisso social; d) o da abertura para a modificação das mentalidades dos intervenientes; e) o da melhoria das práticas de ensino dos educadores envolvidos; f) o da flexibilidade de desempenho, enquanto investigadora e de acordo com as fases da investigação, de uma diversidade de papéis.

1.2 Modalidades da Investigação

Utilizando os critérios de classificação definidos por Arnal et al (1994), as modalidades de investigação educativa presentes neste estudo são as seguintes:

- Segundo a FINALIDADE – INVESTIGAÇÃO APLICADA  A elaboração de uma proposta educativa para lidar com o medo em contexto de educação de adultos, em ordem a melhorar a qualidade educativa.

- Segundo o ALCANCE TEMPORAL – INVESTIGAÇÃO LONGITUDINAL (DIACRÓNICA)  Estudo realizado entre 2001 e 2008, parte de um trabalho sobre a minha singularidade-subjectividade (de auto-reflexão sobre a minha história de vida pessoal), continua com as singularidades-subjectividades dos outros (os membros do grupo de pesquisa colaborativa) e, no fim, regressa a mim.

- Segundo a PROFUNDIDADE – INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA  Porque não havia trabalho prévio, indagação para conhecer e compreender desde o início.

- Segundo o MARCO EM QUE TEM LUGAR – DE CAMPO  Numa situação natural, num tempo e num lugar de educação de adultos em meio urbano.

- Segundo a CONCEPÇÃO DO FENÓMENO EDUCATIVO – INVESTIGAÇÃO IDEOGRÁFICA  Estudo baseado na singularidade: as vivências do grupo de Pesquisa Colaborativa.

- Segundo a DIMENSÃO TEMPORAL – INVESTIGAÇÃO DESCRITIVA

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 Estudo de caso.

- Segundo a ORIENTAÇÃO QUE ASSUMIU – INVESTIGAÇÃO APLICADA  Orientada para a aquisição de conhecimento com o propósito de dar resposta a problemas concretos.

1.3 Critérios de Credibilidade

Porque se trata de um estudo de caso a partir do um ponto de vista qualitativo, a validação da pesquisa, feita a partir de três perspectivas (o modo de recolher os dados, os processos de interpretação apoiados pelos referentes teóricos e a subjectividade do investigador), utilizou os seguintes CRITÉRIOS E INDICADORES QUALITATIVOS (Trigo & Kon- Traste, 2001:129):

- VERACIDADE – CREDIBILIDADE / VALOR DE VERDADE  Triangulação de pessoas, momentos, especialistas e técnicas – diferentes tomas de dados, diferentes contrastações de teorias, reflexões e justificações metodológicas.  Verificação do relatório final por parte dos participantes.

- FIABILIDADE INTERNA – DEPENDÊNCIA  Triangulação – consulta de especialistas externos à equipa de investigação, tanto para o seguimento do processo de uma maneira sistemática e rigorosa, como para a confecção e validação dos sistemas de categorização e interpretação dos dados.

- NEUTRALIDADE NA ANÁLISE – CONFIRMABILIDADE / OBJECTIVIDADE  Saturação de dados.  Elaboração de relatórios amplos.  Descrição minuciosa dos factos.

- APLICABILIDADE – COMPARABILIDADE  Descrição rigorosa do contexto de recolha de dados, dos materiais utilizados, dos participantes e relações entre eles, com aplicação dos questionários SOQ e VIEW para melhor caracterização dos actores envolvidos.  Descrição minuciosa do processo seguido.

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2. Itinerário e Crónicas do Caminho

Quando partires de regresso a Ítaca, deves orar por uma viagem longa, plena de aventuras e de experiências, Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, um Poseidon irado – não os temas, jamais encontrarás tais coisas no caminho, se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime teu corpo toca e o espírito te habita. Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Poseidon em fúria – nunca encontrarás, se não é na tua alma que os transportes, ou ela os não erguer perante ti. Deves orar por uma viagem longa. Que sejam muitas as manhãs de verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos! Em colónias fenícias deverás deter-te Ítaca para comprares mercadorias raras: coral e madrepérola, âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie, compra desses perfumes quanto possas. E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito. Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem. É melhor que ela dure muitos anos, que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho, e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca. C. Cavafy (1911)

Tal como naquele, também aqui o testemunho do “meu regresso a Ítaca” é longo. Não só porque pretendo fazer uma apresentação minuciosa de tudo o que esteve implicado no processo metodológico da pesquisa, mas porque também aí descobri o meu processo criativo. São caminhos paralelos (não duas coisas separadas), ambos parte da minha natureza e da minha cultura.

Este ponto do capítulo é, então, composto por:

- Cronograma da pesquisa. - Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas.

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- Processo de orientação da tese. - Processamento de dados. - Aspectos éticos.

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2.1 Cronograma

JOGANDO A INVENTAR MODELOS INÍCIO FIM 2001-2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2008 ● ▼ ▼ ▼ ▼ ▼ ● Etapa 0 Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3 Etapa 4 POR OUTROS CAMINHOS Construção de um projecto segundo o modelo “clássico”. Diário da Tese COMPREENSÃO DO NA PROCURA DE CAMINHOS PROBLEMA (1) Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa Primeira abordagem do trabalho de campo – Histórias de vida 1 – trabalho de reflexão e escrita sobre mim mesma. Construção de Oportunidades Definição do tema de investigação. Continuação da primeira abordagem do trabalho de campo - Histórias de vida 2 – trabalho de reflexão e escrita sobre mim mesma

a partir do tema definido para a investigação. Construção de uma metáfora  referencial interno  temas e subtemas de estudo. Exploração de Dados Revisão bibliográfica  linhas de orientação geral. Concretização do problema de investigação – definição da(s) pergunta(s) de investigação. Enunciar Problemas Decisões metodológicas. PRODUÇÃO DE IDEIAS CAMINHANDO Fase de aprofundamento – trabalho com o grupo Constituição do grupo de pesquisa colaborativa. Segunda abordagem do trabalho de campo – sessões de trabalho com o grupo. Produção de Ideias Aplicação dos instrumentos de caracterização do grupo de trabalho – SOQ e VIEW ACHANDO LUZES

CONHECIMENTO SABOREADO CONHECIMENTO Fase de leitura da informação Constituição do grupo de informantes-chaveAnálise de dados - categorias. Interpretação/triangulação entre realidade empírica, realidade conceptual e perspectiva da investigadora. PLANEAMENTO DA ACÇÁO Fase de Construção de Sentido Desenvolvimento de Soluções À maneira de conclusão e proposta educativa. Fase de apresentação e discussão dos significados encontrados Construção da Aceitação Sugestões do grupo de pesquisa. Afinação da análise. NOVOS CAMINHOS Fase de identificação de COMPREENSÃO DO PROBLEMA (2) Construção de Oportunidades 2 novos projectos e novas perguntas HABITANDO A PERGUNTA

Quadro I.7 – Cronograma da pesquisa. 57

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2.2 Descrição do Cronograma – Procedimentos, Instrumentos e Técnicas

“Não se pode ignorar a facilidade com que se confunde rigidez e inflexibilidade com rigor, a frequência e a impunidade com que se sufoca o acto criador com uma mordaça metodológica que muitas vezes privilegia estéreis caminhos já trilhados e que levam a qualquer lugar ou, muitas vezes, a lugar nenhum, em troca de minimizar os riscos e elevar o nível de segurança” (Feitosa, 1999:66).

Sustentado pela investigação qualitativa e orientado pelo princípio da complementaridade, pretendi que, em termos genéricos, e como procurei assinalar no cronograma atrás colocado (quadro I.7 do ponto 2.1 deste capítulo), todo o processo da pesquisa fosse sendo matizado por três tons distintos (Jaramillo, 2006b):

1) O tom do “CONHECIMENTO SABOREADO” – criado por uma vontade de aceder a um conhecimento que, não sendo só teórico-disciplinar (mas também pessoal e relacional), permitisse a formação e o devir humano.

2) O tom de “HABITANDO A PERGUNTA” – criado por uma atitude de indagação e de aproximação ao objecto de estudo com uma pergunta que, além de objectiva e teórica, fosse também entendida inter-subjectivamente.

3) O tom de “JOGANDO A INVENTAR MODELOS” – criado por uma abertura criativa que permitisse desenhar múltiplas formas de produzir aproximações, reflexões, retrocessos e avanços na configuração do problema.

Recorrendo, por isso, a desenhos produzidos “à medida” e ao longo do seu próprio desenvolvimento, o processo acabou por ser composto por elementos e fases não independentes que, como fios que configuram um tecido, se interrelacionam, cruzam e, de certa maneira, se sobrepõem (ilustração I.6). Essa a razão porque, no cronograma atrás colocado, estão assinaladas as datas do início das várias etapas percorridas, mas não as da respectiva conclusão, pois, dentro das possibilidades, tudo foi sempre ficando em aberto e permitindo novas reconfigurações. Se, daqui em diante, a descrição dos procedimentos da pesquisa e o discurso de uma “metodologia encarnada” (que situa e descreve o PROCESSO CRIADOR), aparecem tão lineares, isso deve-se a razões de

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facilidade de discurso, não à existência de uma sequência rígida, ou desligada, entre cada uma das suas etapas e fases.

Ilustração I.6 – Encadeamento das fases da pesquisa.

Procurando, também por este meio, garantir a VALIDADE e a APLICABILIDADE da pesquisa, passo a apresentar em paralelo:

a) no desenvolvimento do texto – a explanação detalhada e rigorosa dos procedimentos em cada uma das etapas e fases do processo metodológico e criativo, nomeadamente no que diz respeito a contexto, factos, instrumentos e técnicas;

b) em caixas de texto inseridas lateralmente ao longo da apresentação – a indicação da correspondência em termos globais (já que, em termos específicos não pode ser estabelecida passo a passo), entre as etapas da pesquisa e as fases do processo criativo (modelo 6.0 do processo de CPS27), com uma muito breve explicação do seu significado.

27 Creative Problem Solving, na sua versão original (Isaksen et al., 2000).

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2.2.1 Etapa 0 – Por outros caminhos

Processo Criativo – Compreensão do Problema Construção de Oportunidades (1)

Permite fazer a transição entre o espaço em que o problema se situa de forma ampla e confusa e um espaço em que o problema se situe de uma forma mais definida e clara:

- Fase da descoberta das oportunidades e dos desafios que podem ser considerados. (Isaksen et al., 2000)

“A escolha de um método particular para estudar um ou outro objecto sociológico não tem nada de anódino. Compromete a pessoa que fará a investigação a uma determinada relação de campo, a certas práticas existenciais; contém em filigrana certas formas de pensamento e exclui outras. Em resumo, o que está em jogo na realidade são alguns anos de vida de um(a) sociólogo(a). Na medida em que ele/ela controle a escolha do seu método, a decisão será tomada muito mais em função de inclinações profundas do que de considerações racionais. E está muito bem que seja assim, porque para fazer um bom trabalho de investigação é necessário em princípio desejar fazê-lo. A paixão é o motor do descobrimento” (Martínez Salgado, 1996:54).

Com excepção do que diz respeito à redacção do diário da tese, a etapa 0 foi a única etapa/fase da pesquisa que, pelo menos aparentemente, começou e terminou em si mesma e, com isso, colocou uma fronteira (mais) definida com as restantes etapas e fases. Foi o tempo de tentativas de criação de um projecto de investigação segundo o modelo “clássico” da investigação quantitativa – definição de um problema a estudar, perguntas de investigação, hipóteses, metodologia...

A partir das leituras feitas e das preocupações profissionais então sentidas, na primeira tentativa estavam implícitas questões como estas:

- Tudo aponta para a necessidade/urgência de criatividade e inovação no sistema educativo português. Não será que as orientações curriculares (da Ed. Pré-Escolar) apontam para uma educação criativa e estamos, simultaneamente, matando a criatividade dos alunos (futuros educadores) no tempo de formação?

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- Relação entre autoconceito, relação com os outros, visão do mundo. Que autoconceito as escolas/professores estão fomentando nos seus alunos? - O aluno é uma pessoa. Que projectos educativos desenvolvem as escolas na formação de professores? Que ideal prosseguem? Como partilham os professores/formadores esses ideais? De que maneira as tradições e as rotinas das escolas se compatibilizam com esses ideais? - Relação entre corpo e mente. Que experiências/vivências corporais são facultadas aos alunos durante o tempo de formação?

1ª Tentativa de Criação do Projecto Tema: Criatividade e Desenvolvimento Interpessoal

PROCEDIMENTOS 1. Defino ideias e palavras- chave que identificam os meus contextos, interesses, inquietações... RESULTADO 2. Relaciono tudo com Demasiado abrangente. leituras. Pouco consistente 3. Construo um esquema com todos esses elementos. 4. Defino hipóteses de perguntas de partida.

Ilustração I.7 – Primeira tentativa de definição do projecto de investigação.

Na segunda tentativa, que partia de uma vontade de sintetizar os principais interesses de estudo, estavam implícitas perguntas como estas:

- Será que a introdução do yoga e de actividades criativas no plano de estudos de formação de educadores/ professores traz benefícios ao nível da autoestima, do autoconhecimento, da performance geral, do crescimento espiritual? - O clima criativo da sala de aula pode ser melhorado se o professor desenvolver regularmente práticas de interioridade?

Mas também este foi abandonado por não dar resposta adequada aos objectivos que me tinha proposto para a realização da tese. Contudo, se agora o refiro (e embora nessa altura tivesse ficado a sensação de trabalho perdido), é porque, tempos depois, acabei por verificar que, embora numa dimensão bem mais profunda, ele também ficou contido no projecto que se veio a definir.

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2ª Tentativa de Criação do Projecto Tema: Liderança Criativa através do Silêncio

PROCEDIMENTOS 1. Leio muito - recolho muitas citações e RESULTADOS “engordo” a minha Não traz nenhuma estante. promessa de 2. Desenvolvo um novo contribuição nova. esquema de tópicos de Continua a não conseguir pesquisa. atingir os objectivos 3. Defino novas perguntas pessoais propostos. de partida.

Ilustração I.8 – Segunda tentativa de definição do projecto de investigação.

• Diário da tese

O diário da pesquisa (Anexo 8), onde desde este início fui registando os tempos, lugares, circunstâncias, tarefas e as emoções associadas, tornou-se um instrumento- testemunha fundamental, não só das fases e procedimentos da pesquisa, como do processo criativo que lhe está associado, como ainda (e com todas as suas crises de crescimento), do processo de desenvolvimento pessoal, enquadramento importante para a definição e execução do próprio projecto.

2.2.2 Etapa 1 – Na procura de caminhos

Processo Criativo – Compreensão do Problema Construção de Oportunidades (2)

Permite fazer a transição entre o espaço em que o problema se situa de forma ampla e confusa e um espaço em que o problema se situe de uma forma mais definida e clara:

- Continuação da fase da descoberta das oportunidades e dos desafios que podem ser considerados. (Isaksen et al., 2000)

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• Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa

“Recuperar a consciência histórica é um desafio pois pressupõe, por parte do intelectual, ter que abandonar o seu espaço para se comprometer com a sua realidade. Mais que um compromisso, é uma paixão intelectual para encontrar o sentido do conhecimento na construção da história. Recuperar a consciência histórica no plano do conhecimento significa transformar o conhecimento em consciência” (Zemelman, 1996:33).

A etapa 1, como primeira abordagem do trabalho de campo, começa com a decisão de me dar tempo para CENTRAR28, me pensar e ver a mim mesma no meio do mundo, examinando-me nesse processo e nas relações que aí estabeleço com os outros. Na minha própria biografia e nos temas aí emergentes procuro encontrar, não só o tema da pesquisa, mas também entendê-lo como parte da minha natureza/cultura e assumi-lo como compromisso com o observado.

1. Primeira abordagem do trabalho de campo – histórias de vida e definição do tema de investigação

Tendo como condição o “abandono” do trabalho académico para me dedicar à tarefa de busca interior, dou início à criação das minhas próprias HISTÓRIAS DE VIDA (1). São estes os objectivos: - utilizar diferentes linguagens para compreender onde estou e como me sinto; - procurar a união natural entre o crescimento pessoal e a acção profissional; - descobrir que no eixo fundamental da minha vida está o tema da pesquisa.

A técnica de criação, embora por diversas vezes também utilize mais do que uma linguagem, é, essencialmente, a ESCRITA DO EU. Utilizando a escrita livre, procuro deixar fluir a mão e o pensamento para escrever (desenhar/pintar/dançar...) tudo o que surja, com o mínimo de censura possível.

28 O primeiro dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.

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“Quando usamos a expressão Escrita do Eu, referimo-nos a um exercício de investigação existencial que permite à pessoa tomar partes da sua vida concreta e analisá-las numa forma escrita com o objectivo de conseguir uma maior e mais progressiva vigilância activa sobre si mesma. Ao escrevê-las, a pessoa tenta ver as circunstâncias da vida de uma forma mais clara. A vida, tornada objectiva no texto escrito, exige que a pessoa assuma a responsabilidade de fazer a ligação entre “o que é” e “o que pode ser” (Azevedo & Gil da Costa, 2005:1329).

Ao fim de vários meses e de muitas páginas escritas, é possível identificar no conjunto dos trabalhos produzidos, a recorrência (explícita ou não) do tema do medo e da inquietação por níveis mais elevados de crescimento e amadurecimento pessoal. Fica definido o tema da pesquisa – “O Medo no Desenvolvimento Humano”.

Escrita do Eu / Histórias de Vida 1

OBJECTIVOS 1. Compreender onde estou e como me sinto. RESULTADOS 2. Procurar a união natural • Preciso de muito entre o crescimento tempo, “treino” e pessoal e a acção coragem! profissional. – Quando a auto-censura 3. Descobrir que, no eixo se instala, os resultados fundamental da minha são repetitivos e vida, está o meu tema e as “medrosos” . – Quando me permito ouvir minhas perguntas de a mim mesma, os partida. resultados começam a 4. Esquecer o trabalho ser espelho da minha académico e dedicar-me à alma. tarefa de busca interior.

Ilustração I.9 – Objectivos e resultados da primeira fase das histórias de vida / escrita do eu.

Daqui cresce a necessidade de continuar a escrever histórias de vida, mas agora a partir dos diferentes enfoques sugeridos pelo tema da pesquisa identificado (HISTÓRIAS

DE VIDA 2). É a forma de, pela análise em profundidade do tema de estudo, ir fazendo a descoberta de uma cultura que (também) se concretiza na minha mente e nas minhas acções (Zemelman, 1996; Jaramillo, 2006b).

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Escrita do Eu / Histórias de Vida 2 (sobre o Medo)

PERGUNTAS RESULTADOS SUBJACENTES • Começo a ficar envolvida Onde está o meu medo? e comprometida com o Por que não quero entrar que escrevo. nele? • Faço uma limpeza interior. Qual é o verdadeiro medo? • Dou-me ao direito de Porquê? chorar e rir. Para que serve? Afinal, não era assim Como enfrentá-lo? tão complicado!!! Vale a pena enfrentá-lo?

Ilustração I.10 – Objectivos e resultados da segunda fase das histórias de vida / escrita do eu.

E começo a vislumbrar outras perguntas de investigação. O primeiro esboço é este:

- Como podemos explorar novas maneiras de lidar com o nosso medo?

Fica, por isso, e a partir daqui, definido o propósito da pesquisa – dar resposta à necessidade sentida de criar uma proposta educativa para lidar com o medo em contexto de educação de adultos.

“O objectivo é a força de comando de uma pesquisa. As decisões sobre o tipo de desenho, de medida, de análise e de formas de apresentação da informação flúem do objectivo. (...) O objectivo da investigação aplicada é contribuir com conhecimento que ajude as pessoas a compreenderem a natureza de um problema de forma a intervir, ou até controlar o seu meio. (...) Na investigação aplicada os campos são interdisciplinares e estão mais orientados em função do problema do que em função de uma disciplina. (...) Os investigadores da pesquisa aplicada são capazes de trazer os seus insights e experiências pessoais para dentro de todas as recomendações que possam surgir porque durante o trabalho de campo estão especialmente perto dos problemas que estão a estudar (Patton, 2002: 213, 217)29

29 “Purpose is the controlling force in research. Decisions about design, measurement, analysis, and reporting all flow from purpose.

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2. Referencial Interno

“Brinque com metáforas, analogias e conceitos. Na maioria das investigações a rigidez de pensamento constitui uma praga. Envolvemo-nos com a recolha de dados num local específico e ficamos tão agarrados ao que lhe é particular, isto é, aos seus pormenores, que não conseguimos estabelecer relações com outras situações ou com todo o arsenal de experiências pessoais que trazemos connosco. Relativamente à situação, pergunte- se: «o que é que isto me faz lembrar?»” (Bogdan & Biklen, 2006:216).

Metáfora  Referencial Interno

PROCESSO • Recolho as palavras/ideias fundamentais nas minhas histórias de vida. • Divido-as em grupos e dou-lhes um título. • Ordeno-as numa sequência que corresponda à minha experiência de vida. • Procuro metáforas para cada uma das categorias encontradas. • Escrevo o texto.

O trabalho jorrou de dentro!

RESULTADOS • Começam a surgir temas e sub-temas da pesquisa

Ilustração I.11 – Construção do referencial interno.

A partir das histórias de vida (e continuando a deixar de lado todo o trabalho de revisão de literatura para que a análise indutiva não fique limitada – Bogdan & Biklen, 2006:105), escrevo um texto sobre o tema do Medo e do Desenvolvimento Humano30 sob a forma de uma METÁFORA. Com a redacção deste texto, com as interpretações e explicações que aí vão emergindo, vou criando o meu REFERENCIAL INTERNO – conhecimento extra-teórico, empírico, resultante do primeiro acesso ao campo do estudo (Jaramillo, 2006b).

(…) The purpose of applied research is to contribute knowledge that will help people understand the nature of a problem in order to intervene, thereby allowing human beings to more effectively control their environment. (…) Applied interdisciplinary fields are especially problem oriented rather than discipline oriented. (…) Applied qualitative researchers are able to bring their personal insights and experiences into any recommendations that may emerge because they get especially close to the problems under study during fieldwork” (Patton, 2002: 213, 217). 30 Ver “Capítulo 2 Descobrir os próprios caminhos – 1. Eu Pessoa: Já alguma vez?”.

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E, a partir do referencial interno assim criado, surge um CONJUNTO DE TEMAS E SUB-

TEMAS DE ESTUDO que há-de orientar a revisão da literatura: - o medo enquanto facto natural inerente ao ser humano; - o medo bloqueador; - o lado positivo do medo; - tipos de medo; - consequências do medo; - a inquietação do Ser; - como enfrentar o medo; - efeitos esperados depois do processo de intervenção dialógica: aproximação à natureza do Ser; liderança; Paz.

3. Revisão bibliográfica e linhas de orientação geral

Processo Criativo – Compreensão do Problema Exploração de Dados

Continuação da transição entre o espaço em que o problema se situa de forma ampla e confusa e um espaço em que o problema se situe de uma forma mais definida e clara:

- Fase da identificação, a partir de diferentes pontos de vista, dos dados mais importantes. (Isaksen et al., 2000)

“A revisão bibliográfica mais relevante pode ajudar a enfocar um estudo (...). Contudo, essa revisão pode criar dificuldades num estudo qualitativo porque gera predisposições no pensamento do investigador reduzindo a sua abertura para o que surja dentro do campo. É por isso que, por vezes, a revisão da literatura pode não surgir senão depois da colecta de dados. Alternativamente, a revisão da literatura pode ser simultânea ao trabalho de campo, permitindo uma interacção criativa entre o processo de colecta de dados, a revisão da literatura e a introspecção do investigador. Como em quaisquer outras questões do desenho qualitativo, a qualquer momento podem aparecer “trade- offs”31, pelo que há sempre vantagens e desvantagens em que a revisão seja feita antes,

31 Expressão que designa uma situação em que há conflito de escolha, em que se perde uma qualidade em troca de outra qualidade ou aspecto (http://pt.wikipedia.org/wiki/Trade-off - 28.04.08).

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durante ou depois – ou num base contínua ao longo de todo o estudo” (Patton, 2002:226)32.

Revisão Bibliográfica Ler →→→ Reflectir →→→ Registar →→→ Posicionar →→→ Enlaçar

Deixo de querer encaixar-me no pensamento dos autores: Eles tornam-se meus aliados. Eles ajudam-me a aprofundar o meu O desenho pensamento e as minhas intuições. do projecto São imensas as fontes de informação: vai Em muitos tipos de livros. tomando Nas pessoas com quem vivo e trabalho forma! Nos espaços em que me movo...

Ilustração I.12 – Processo de revisão bibliográfica.

Tendo por base o conjunto de temas e sub-temas antes encontrado, dou início ao trabalho de REVISÃO BIBLIOGRÁFICA (Ilustração I.12). Foi este o processo de leitura que,

COMBINANDO O REFERENCIAL INTERNO COM O CORPO TEÓRICO33, permitiu escrever / associar / escrever / projectar:

- ler e sublinhar textos de autores diversos e de origens diversas numa perspectiva da ecologia dos saberes (Moraes, Apud Torre, 200834); - escrever, sempre que adequado e necessário, uma reflexão sobre o texto lido; - registar os temas, ideias e conceitos mais relevantes das leituras realizadas no programa EndNote, versão 6; - recolher indicações de bibliografia e informações para consulta posterior; - posicionar as ideias mais importantes no conjunto temas antes definido.

32 “Review of relevant literature can bring focus to a study (…). Yet, reviewing the literature can present a quandary in qualitative inquiry because it may bias the researcher's thinking and reduce openness to whatever emerges in the field. Thus, sometimes a literature review may not take place until after data collection. Alternatively, the literature review may go on simultaneously with the fieldwork, permitting a creative interplay among the process of data collection, literature review, and researcher introspection” (Patton, 2002:226). 33 Ver “Cap. 3 Descobrir caminhos de outros”. 34 Ecologia dos saberes: um encontro de saberes que flúem através de campos como a física quântica, a neurociência, a psicologia positiva, as organizações, a epistemologia e os escritos sobre transpersonalidade e espiritualidade de alguns engenheiros como Deslauriers ou científicos como Goswami, Lazlo, Sheldrake, Capra, Zancollo (Torre, 2007:1).

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Aos poucos, a partir de PROCESSOS INDUTIVOS E DEDUTIVOS (e com o auxílio do programa Visual Mind™ para construção de mapas mentais35), vou reformulando- refinando os temas e sub-temas anteriores e, a partir deles, encontro as LINHAS DE

ORIENTAÇÃO GERAL que me vão permitir avançar na construção do itinerário da pesquisa e, mais tarde, começar a observar e compreender o que vai ocorrendo na segunda fase de acesso ao trabalho de campo (ilustração I.13).

Linhas de Orientação Geral

O MEDO Omnipresença do Medo  Vivendo COM Medo  O DESENVOLVIMENTO HUMANO A Inquietação do Ser  EDUCAÇÃO CRIATIVO-MOTRÍCIA Enfrentando o Medo  ConVIVENDO com o Medo

Ilustração I.13 – Linhas de orientação geral para a construção do itinerário da pesquisa e observação do trabalho de campo.

4. Definição das perguntas de investigação

Processo Criativo – Compreensão do Problema Enunciar Problemas

Última parte da transição entre o espaço em que o problema se situa de forma ampla e confusa e um espaço em que o problema se situe de uma forma mais definida e clara:

- Fase da formação de enunciados específicos para o problema. (Isaksen et al., 2000)

No processo de construção das linhas de orientação geral atrás descrito (ou, dito de outra maneira, das múltiplas interrogações suscitadas pela conjugação da base

35 Programa Visual Mind™, versão 6 business.

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pessoal, com o que vai surgindo da base teórica), as perguntas de investigação vão ganhando uma forma mais definida.

Ilustração I.14 – A pergunta como morada: caminho de construção.

Primeiro, de uma forma mais lenta e subtil, vai-se instalando a PERGUNTA CENTRAL (a indagação que dará directamente resposta ao propósito da investigação), a pergunta processual (como...). Depois, para completar o círculo, a formulação das PERGUNTAS

DERIVADAS – a pergunta conceptual (o quê...), a pergunta da memória (porquê...), que até já estava contida na pergunta processual, e a pergunta existencial (para quê...):

- Como pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa? - O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa? - Por que razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos (e a terem uma vida serena, útil e corajosa), depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus? - Para que serve uma vida serena, útil e corajosa?

Assim, sentindo-a(s) minha(s), e neste longo caminho de ir “habitando a pergunta”, vai surgindo a consciência do quanto nela(s) está abrangido e das múltiplas perspectivas com que podem ser encaradas.

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2.2.3 Etapa 2 – Caminhando

Processo Criativo – Produção de Ideias Produção de Ideias (1)

Procurando romper com padrões e hábitos estabelecidos, permite gerar um grande número de ideias e a abertura a novas perspectivas:

- Preparação do espaço de trabalho. (Isaksen et al., 2000)

• Fase de aprofundamento – trabalho com o grupo

Concretizado que está o propósito, formulado que está o conjunto das perguntas de investigação, novas opções devem ser feitas para que possa passar à

EXTERIORIZAÇÃO36 e segunda fase do TRABALHO DE CAMPO. Contudo, e antes disso, dedico um tempo à formação e participo num “Seminário de Tesis Doctoral”, sobre Investigação Qualitativa em Ciências da Educação, na Universidad del Cauca – Popayán/Colômbia, orientado pelos Professores Eugenia Trigo e Luis Guillermo Jaramillo, daquela Universidade, e pela Professora Maria da Conceição Azevedo, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Com o apoio, a partir daqui, do Professor Luis Guillermo Jaramillo, na qualidade de

ESPECIALISTA EXTERNO para fazer o seguimento do processo, decido vincular investigação e desenvolvimento através da conjugação entre PROCESSO FORMATIVO de acção-reflexão-acção, PESQUISA COLABORATIVA, ESTUDO DE CASO e OBSERVAÇÃO

PARTICIPANTE.

1. Estudo de caso – constituição e trabalho do grupo de pesquisa colaborativa

Recorro a um estudo de caso baseado na singularidade das vivências de um grupo de pessoas que, em regime de voluntariado, se constitua para trabalhar processos (1) de

PROCURA PESSOAL e (2) de CRIAÇÃO DE UMA PROPOSTA EDUCATIVA para lidar com o

36 O segundo dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.

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medo. Nessa sequência, procuro que o trabalho do grupo se desenvolva ao longo de um tempo e de um lugar que seja, simultaneamente, (1) de EDUCAÇÃO DE ADULTOS e (2) de PESQUISA COLABORATIVA.

A primeira tarefa é formar esse grupo. São feitos contactos pessoais com potenciais interessados de diferentes áreas, para apresentação do projecto e da proposta para participar. Os critérios de escolha dos participantes são os seguintes:

- pessoas que, directa ou indirectamente, estejam ligadas à formação e educação de adultos; - pessoas que sintam a necessidade de abrandar o ritmo, de mexer com o tema, de conversar sobre ele para, em conjunto, descortinarem situações-respostas que, para cada uma, sejam importantes; - pessoas com vontade de serem desafiadas pelas ideias dos outros; - pessoas dispostas a se encontrarem como pares, não como “papéis”; - pessoas que não tenham medo de se virem a sentir confusas ao longo do processo; - pessoas com disponibilidade para reunirem uma vez por semana, - pessoas que tirem vantagens de publicações e participação em congressos sobre o tema da pesquisa.

Rapidamente nove pessoas aceitam a proposta:

- GÉNERO – 5 mulheres e 5 homens.

- IDADES – entre os 27 e os 61 anos (média – 38.3).

- HABILITAÇÕES ACADÉMICAS – mínimas, licenciatura ou equivalente (concluída ou em fase de conclusão); máximas, doutoramento (concluído ou em fase de conclusão).

- ÁREAS DE FORMAÇÃO ACADÉMICA – artes, biologia, criatividade, direito, educação, educação da infância, filosofia, música, psicologia social, sociologia, teologia.

- ACTIVIDADES PROFISSIONAIS ENVOLVIDAS – professores ou equivalente (5); editor de conteúdos (1); padre (1); realizador de cinema (1); estudantes (3).

- NACIONALIDADES – portugueses (8); 1 espanhol (1); 1 angolano (1).

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Contudo, e porque, a partir da terceira sessão, há uma desistência, o grupo fica constituído por: Maria da Conceição Barbosa da Cunha, Maria da Conceição Azevedo, Joana Cunha e Costa, Mariana Salvador, André Vela, Ricardo Mota Leite, Rui Pedro Pereira, Vítor Briga e eu própria37.

A segunda tarefa é encontrar um espaço disponível para os encontros do grupo de pesquisa. A coordenadora de um jardim de infância, que faz parte do grupo, faculta o espaço: uma sala de motricidade, grande, arejada, tranquila, cheia de colchões, onde nos podemos sentar, deitar, correr, dançar, andar descalços e, por isso, desde o primeiro dia, ultrapassar as “cerimónias” e entrar na informalidade.

2. Segunda fase do trabalho de campo – trabalho com o grupo

Processo Criativo – Produção de Ideias Produção de Ideias (2)

Procurando romper com padrões e hábitos estabelecidos, permite gerar um grande número de ideias e a abertura a novas perspectivas:

- Criar e identificar ideias com potencial interessante para usar ou desenvolver posteriormente. (Isaksen et al., 2000)

“Desde Dilthey, a investigação nas ciências sociais é a transformação de experiências em vivências, facto que é resultado de uma interpretação subjectiva e, por isso, de um processo fenomenológico. As experiências não se podem viver desde fora; apreender a vivência implica estar dentro dela, fazê-la imanente, encarná-la. Para isso, é preciso situar-se no plano em que o sujeito e o objecto se tornam indissociáveis numa conexão de convergência no conhecer, sentir e querer fazer”38 (Córdoba, Bohórquez et al. 2005:210).

37 Apesar da identificação, com sua autorização e interesse, dos nomes dos membros do grupo de pesquisa colaborativa, o anonimato do que foi dito nas sessões de trabalho está garantido pela utilização de códigos (ver ponto 2.2.4 deste capítulo: etapa 3 – fase de leitura da informação recebida). 38 “Desde Dilthey, la investigación en las ciencias sociales es la transformación de experiencias en vivencias, hecho que es resultado de una interpretación subjetiva y por tanto de un proceso fenomenológico. Las experiencias no se pueden vivir desde afuera; aprehender la vivencia implica estar dentro de ella, hacerlas inmanentes, encarnalas. Para ello, es preciso situarse en el plano donde el objeto

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O tempo de formação/educação de adultos e da primeira parte da pesquisa colaborativa é composto por: - uma reunião semanal preparatória entre mim e cada uma das pessoas do grupo que, rotativamente, se dispõe a orientar a sessão; - onze encontros do grupo, em fim de tarde, ao longo de três meses; - um encontro de fim de semana no Gerês, onde, confrontados com a natureza e actividades de outdoor, podemos viver diferentes tipos de experiências pessoais e grupais.

Utilizamos uma metodologia de acção-reflexão-acção que, no contexto de uma educação criativo-motrícia39, estimula a vivência e a discussão do tema da pesquisa.

“Acredito que podemos mudar o mundo se nos começarmos a ouvir uns aos outros. Conversas simples, honestas, com dimensão humana. Não são mediação, negociação, resolução de problemas, debates ou reuniões públicas. Conversas simples, verdadeiras, onde cada um tenha possibilidade de falar, onde cada um possa ouvir e ser ouvido”40 (Wheatley, 2002:3).

Sem nenhuma sequência pré-definida porque, sem perder de vista o horizonte da pesquisa, o que interessa é o processo (o construir junto e o viver das situações criadas), as sessões do grupo acabam por, resumidamente, se desenrolarem da seguinte maneira41:

1ª SESSÃO - 4 ABRIL 2005

PROPÓSITOS - Dar início aos trabalhos do grupo de Pesquisa Colaborativa. - Criar um clima adequado ao trabalho de equipa. - Promover uma maior compreensão do âmbito do projecto. - Esclarecer sobre os papéis e compromissos envolvidos. y el sujeto resultan indisociables en una conexión de convergencia en el conocer, sentir y querer hacer” (Córdoba, Bohórquez et al. 2005:210). 39 Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 3. Campo de criação”. 40 “I believe we can change the world if we start listening to one another again. Simple, honest, human conversations. Not mediation, negotiation, problem-solving, debate, or public meetings. Simple, truthful conversation where we each have a chance to speak, we each feel heard, and we each listen well” (Wheatley, 2002:3). 41 Ver também Anexo 3 – transcrição das sessões do grupo de pesquisa.

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TAREFA FEITA - Apresentação dos participantes – dados pessoais mais relevantes, razões para participar, expectativas... - Apresentação e discussão em grupo dos propósitos e caminhos da pesquisa, formas de trabalho, condições, exigências, vantagens, cronograma... - Distribuição de documentação de apoio. - Organização do trabalho futuro – orientação voluntária e rotativa das sessões, redacção rotativa das actas das sessões, diários de campo individuais… - Proposta de um plano de acção com vista à apresentação de uma comunicação no Congresso de Motricidade Humana, em Porto do Son, Espanha.

2ª SESSÃO - 11 ABRIL 2005

Ilustração I.15 – Fotografias da sessão de relaxamento e construção das “caixas do medo”. PROPÓSITOS - Levantar, em segurança, experiências pessoais de medo – situações, circunstâncias, efeitos, pessoas, formas de ultrapassar... - Utilizar linguagens mais globais e menos racionais. - Apelar ao sentido e à linguagem do corpo (um corpo disponível para ir buscar memórias e torná-las presentes de forma visual). - Redescobrir o prazer de parar.

TAREFA FEITA - Leitura de um trecho de “O Pequeno Livro dos Medos” de Sérgio Godinho (1991). - Relaxamento orientado sobre o tema “medo”. - Brainstorming sobre o tema “caixa”. - Construção individual da “caixa do medo” com diversos tipos de materiais – barro, papel, arame, tecidos…

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- Registo individual da experiência vivida e da memória descritiva da “caixa do medo” (por quê, para quê...).

3ª E 4ª SESSÕES - 18 ABRIL E 2 MAIO 2005

PROPÓSITOS - Identificar experiências pessoais de medo. - Construir conhecimento a partir das experiências pessoais.

TAREFA FEITA - Apresentações individuais das caixas do medo e partilha das experiências da sessão anterior. - Registo de ideias e palavras-chave para posterior trabalho de construção de um mapa mental que leve a conceptualizar sobre o tema do medo e do desenvolvimento humano.

Ilustração I.16 – Fotografias da partilha da memória descritiva da “caixa do medo”.

5ª SESSÃO – 9 MAIO 2005

PROPÓSITOS - Utilizar o cinema como técnica pedagógica ao serviço da transformação. - Estimular a discussão sobre o medo a partir de outras perspectivas.

TAREFA FEITA - Apresentação do conceito do cinema formativo42. - Explicação da Técnica O.R.A.43 (a ser utilizada como trabalho de casa).

42 Cinema Formativo: - “Emissão e recepção intencional de filmes portadores de valores culturais, humanos, técnico- científicos ou artísticos com a finalidade de melhorar o conhecimento, as estratégias ou as atitudes e comportamentos dos espectadores” (Saturnino de la Torre, citado por Briga, 2003). 43 Técnica O.R.A (Briga, 2003): - Observação e Compreensão – descrição do contexto do filme; descrição do filme; compreensão do tema em reflexão, “o medo no desenvolvimento humano”. - Relacionar – destacar as (minhas) ideias principais do filme; relacionar as ideias com o tema em reflexão; interpretar as ideias à luz do tema em reflexão e retirar conclusões. - Aplicar – transferência para a realidade pessoal; inovação – aprendizagens para a vida: como aplicar as conclusões à minha realidade? Reflexão sobre a aprendizagem.

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- Visualização do Filme “A Vila” (de M. Night Shyamalan)44.

6ª E 7ª SESSÃO - 16 E 23 MAIO 2005

Ilustração I.17 – Fotografias da partilha da aplicação da técnica ORA ao filme visualizado “A Vila”. PROPÓSITOS - Fazer a ligação entre o filme “A Vila” e o medo na sua relação com o desenvolvimento humano. - Interpretar as ideias principais do filme à luz do tema de reflexão. - Fazer uma transferência das ideias do filme para a realidade de cada um.

TAREFA FEITA - Partilha da aplicação da técnica ORA (observar, relacionar, aplicar) ao filme visualizado. - Registo de ideias e palavras-chave.

8ª SESSÃO - 30 MAIO 2005

PROPÓSITOS - Sintetizar as ideias gerais das sessões anteriores. - Construir conhecimento.

TAREFA FEITA

44 Título Original – The Village. Ano de Lançamento (EUA) – 2004. Estúdio – Touchstone Pictures / Scott Rudin Productions. Sinopse do Filme: Em 1897, uma vila parece ser o local ideal para viver – tranquila e isolada e com os moradores vivendo em harmonia. Porém, este local perfeito passa por mudanças quando os habitantes descobrem que o bosque que o cerca esconde uma raça de misteriosas e perigosas criaturas, por eles chamados “aqueles de quem não falamos”. O medo de ser a próxima vítima destas criaturas faz com que nenhum habitante da vila se arrisque a entrar no bosque. Apesar dos constantes avisos de Edward Walker (William Hurt), o líder local, e de sua mãe (Sigourney Weaver), o jovem Lucius Hunt (Joaquin Phoenix) tem um grande desejo de ultrapassar os limites da vida rumo ao desconhecido. Lucius é apaixonado por Ivy Walker (Bryce Dallas Howard), uma jovem cega que também atrai a atenção do desequilibrado Noah Percy (Adrien Brody). O amor de Noah acaba por colocar a vida de Ivy em perigo, fazendo com que verdades sejam reveladas e o caos tome conta da vila.

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- Trabalho em grupos – início da criação de mapas mentais a partir das áreas identificadas nos registos das sessões anteriores.

Ilustração I.18 – Fotografias da sessão de construção dos mapas mentais.

9ª SESSÃO - 4 E 5 JUNHO 2005

PROPÓSITO - Romper com as rotinas. - Entrar na natureza e descobrir as sensações do corpo. - Trabalhar o contacto com o outro. - Sentir e entrar em caminhos não explorados. - Redescobrir o prazer de parar e de brincar.

TAREFA FEITA 1º dia - Encontro do grupo e viagem até Fafiães, Gerês. - Alojamento e jantar numa pensão da aldeia. - Marcha nocturna na serra45, sem lanterna – primeiro em grupo, depois cada um sozinho. - Reencontro na aldeia. 2º dia - Subida à serra. - Rapel. - Almoço e descanso. - Paralelas. - Tempo de reflexão sobre as vivências. - Celebração na serra. - Regresso à aldeia. Regresso ao Porto.

45 As actividades de marcha nocturna, rapel e paralelas foram realizadas com o apoio de monitores da Javsport, especializados e certificados pelo ICN e pelo IEPF.

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Ilustração I.19 – Fotografias do fim de semana no Gerês – caminhada nocturna e subida à serra.

10ª SESSÃO - 13 JUNHO 2005

PROPÓSITO - Proporcionar uma forma de experiência espiritual, significativa e vitalizante, que favoreça o encontro intra e interpessoal.

TAREFA FEITA - Apresentação do conceito e da simbólica do labirinto46. - Percursos de “o labirinto da construção de si” – primeiro, sozinhos, depois, em pares, com uma pessoa de olhos vendados sendo guiada por outra. - Registo e partilha da vivência.

Ilustração I.20 – Fotografias da preparação e da sessão do labirinto.

46 “A forma do labirinto é um arquétipo que se encontra por todo o mundo. No Ocidente, está associado ao palácio cretense de Minos onde estava encerrado o Minotauro. Contudo, encontramos formas semelhantes em outros locais como na China, no Egipto e mesmo nos corredores de acesso a certas grutas pré- históricas. Os labirintos foram muito populares na Idade Média, havendo vários nas catedrais góticas, dos quais o mais conhecido é, por certo, o de Chartres, que data do século XII. Uma enorme carga simbólica está associado à forma do labirinto, facto que não é alheio ao seu uso no âmbito da educação espiritual que recentemente tem aumentado. (...) Nos dias de hoje, muitas comunidades e grupos vêm redescobrindo os labirintos como forma de experiência espiritual: pelo facto de confiar no caminho, perdendo a necessidade de ter um controlo consciente sobre as coisas exteriores, as pessoas tornam-se mais receptivas aos seus estados interiores e abrem-se à surpresa e aceitação da realidade que as rodeia. Caminhando em direcção ao centro, aproximam-se também do centro de si mesmas e dispõem-se a receber como um presente a experiência que é atingir o centro do labirinto” (Azevedo, no prelo).

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11ª SESSÃO - 20 JUNHO 2005

PROPÓSITOS - Sintetizar as ideias gerais das sessões anteriores. - Construir conhecimento.

TAREFA FEITA - Trabalho em grupos – conclusão dos mapas mentais iniciados na 8ª sessão (Anexo 3A).

12ª SESSÃO - 27 JUNHO 2005 (com a presença de um dos especialistas externos e de dois convidados)

Ilustração I.21 – Fotografias da sessão de apresentação e discussão dos mapas mentais. PROPÓSITO - Dar a conhecer e discutir o trabalho de síntese feito pelos grupos. - Fazer o balanço das sessões de trabalho.

TAREFA FEITA - Apresentação e discussão dos mapas mentais concluídos na sessão anterior. - Avaliação individual do trabalho realizado ao longo das doze sessões. - Planeamento de futuros encontros do grupo. - Confraternização.

3. Observação participante

“É difícil encontrar o sentido de um grupo social só a partir da contemplação exterior a esse fenómeno; adoptando, por exemplo, uma posição de observador não participante com um amplo marco teórico referencial, ou somente a partir da intervenção activa dentro do fenómeno, sem ter um conhecimento alternativo teórico do mesmo. No primeiro caso, a descrição não transcenderia a realidade de sentido causal e, no

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segundo, ficar-se-ia só com a lista de eventos (acções e interacções) sem transcendência no plano real de significado” (Murcia & Jaramillo, 2003:92).

E, em tudo isto, o meu papel de OBSERVADORA PARTICIPANTE na vida real do grupo, como produtora e produto do processo. Trata-se de ir ao campo, não como líder, nem como orientadora, mas como membro do grupo e observadora, sem um rumo pré- definido:

- sendo discreta, procurando deixar que as coisas fluam, mas também estimulando experiências diferentes e o contacto das pessoas umas com as outras, numa atitude de “esforço prazenteiro” capaz de, também aqui, ultrapassar dicotomias; - só ajudando, se necessário, a centrar os temas, procurando participar com o que sou, não com o que sei ou estudei; - deixando que o processo e os temas demorem se isso corresponder às preocupações das pessoas; - aprendendo a viver na lentidão dos processos – dando tempo para escutar, processar, dialogar; - procurando ajudar a tomar consciência, mas respeitando o ritmo de cada um; - estando atenta aos meus próprios sentimentos e utilizando-os, tanto como fonte de partilha com o grupo, como fonte de reflexão sobre a pesquisa; - recorrendo à intuição para, em cada momento, decidir o que fazer, como fazer, até que ponto ser parte, até que ponto ser observador – muito “fácil” porque o clima do grupo permite e estimula a ser parte, a estar dentro, mas também “difícil” porque o propósito do trabalho obriga a ser “observador”, a estar fora...; - tratando de nunca esquecer que as pessoas são mais importantes do que os projectos (a tese é consequência, não objectivo, do trabalho que estamos a fazer – ela nos reuniu, mas não se sobrepõe a nós), mas também que há que ter projectos para implicar as pessoas.

4. Registos do trabalho com o grupo

As TRANSCRIÇÕES DOS REGISTOS ÁUDIO das sessões (Anexo 8) constituem o instrumento da pesquisa no que diz respeito ao trabalho com o grupo. São compostas por 319

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páginas que, à medida que vão sendo compostas, e para garantir a sua exactidão, são enviadas a todos os participantes para correcção.

Outros registos, como os REGISTOS DAS REUNIÕES PREPARATÓRIAS entre mim e os orientadores das sessões de trabalho do grupo e os DIÁRIOS DE CAMPO, os que são facultados por outros participantes e o meu (Anexo 9), são documentos criados ao longo das sessões (e onde se anotam observações, reflexões pessoais, sentires), que constituem material de informação complementar.

5. Aplicação do SOQ e do VIEW

Porque nos processos grupais o CLIMA afecta a comunicação, a resolução de problemas, a tomada de decisão, a aprendizagem e a motivação e influencia a eficácia e a produtividade da equipa na sua capacidade de inovar (Isaksen et al, 1995; Isaksen & Lauer, 2002; Isaksen, 2007), no final do conjunto das sessões é feita a aplicação de um instrumento de caracterização do clima do grupo, o SOQ47 (Anexo 6). O questionário, na sua versão portuguesa48, é aplicado on-line e os resultados são apurados por Jesse Bergeron, um dos elementos da equipa de Scott Isaksen, co-autor do SOQ e Presidente do Creative Problem Solving Group, Inc.49, detentor do respectivo copyright, com quem tenho vindo a trabalhar desde há anos.

47 SOQ – Situational Outlook Questionnaire. Dimensões do SOQ: - Desafio e Envolvimento – o nível em que as pessoas estão envolvidas nas tarefas diárias, nos objectivos a longo prazo e na visão do futuro. - Liberdade – a independência de comportamento exercida pelas pessoas do grupo. - Confiança e Abertura – a segurança emocional nas relações. - Tempo para as Ideias – a quantidade de tempo que as pessoas podem ocupar (e ocupam efectivamente) na elaboração de novas ideias. - Alegria e Humor – a espontaneidade e o à vontade dentro do espaço de trabalho. - Conflitos – a presença de tensões pessoais e emocionais (em contraste com a tensão de ideias na dimensão “debates”). - Apoio às Ideias – o modo como são tratadas as ideias novas. - Debates – a ocorrência de acordos e desacordos entre pontos de vista, ideias, diferentes experiências e diferentes conhecimentos. - Riscos Assumidos – a tolerância da incerteza e da ambiguidade presentes no local de trabalho. 48 Em 1997, e trabalhando com Ken Lauer, na altura Director de Investigação do Creative Problem Solving Group, Inc., fiz a primeira tradução do SOQ. Em 2004, Maria Oliveira juntou-se a esta equipa e a versão que, neste momento, está disponível on line tem a assinatura de nós as duas. 49 O “Creative Problem Solving Group, Inc., CPSB, é uma organização que se dedica à pesquisa e ao desenvolvimento que congrega um conjunto internacional de facilitadores, formadores e consultores altamente especializados no uso do Processo de Resolução Criativa de Problemas. Tem como missão:

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Ao mesmo tempo, e sabendo que, para além de implicações nas relações interpessoais e na dinâmica do grupo, os ESTILOS DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS (individuais e do grupo no seu todo), também influenciam os resultados obtidos, é feita a aplicação do VIEW50 (Anexo 7), pois permite caracterizar a forma como as pessoas percebem, processam e fazem escolhas e avaliar o estilo de criação presente no grupo (Selby et al, 2003). Aplicado também on-line, mas na sua versão inglesa (porque a portuguesa ainda não está disponível), os resultados são apurados por Don Treffinger, um dos autores do instrumento, com quem também trabalho desde há anos.

Assim que recebo os resultados, e porque estou credenciada para tal pelo Creative Problem Solving, Inc.51 (Anexo 10), faço um novo encontro com o grupo de pesquisa para apresentação e discussão dos respectivos resultados e reflexão sobre o modo como as características agora reveladas podem ter afectado o desenrolar do trabalho da equipa.

6. Grupo de pesquisa colaborativa – resultados alcançados, perguntas e temas

A tabela abaixo colocada (tabela I.7) foi construída a partir dos seguintes documentos:

- registos das reuniões preparatórias dos encontros do grupo de pesquisa colaborativa; - transcrições das sessões; - actas das sessões e diários de campo.

ajudar as pessoas a compreenderem e usarem os seus talentos criativos em desafios novos, importantes e complexos: ajudar as pessoas a promoverem sinergias, a diversidade e o trabalho de equipa; aumentar o uso produtivo do talento humano dentro das organizações de modo a melhorar a qualidade de vida numa sociedade (www.cpsb.com). 50 Dimensões do VIEW: - Orientação para a Mudança – descreve as preferências de resposta e de formas de lidar com a estrutura, a novidade e a autoridade quando se enfrenta a mudança ou a resolução de problemas. - Processamento da Informação – descreve as preferências sobre o como e o tempo em que a pessoa usa a suas energia interna e os seus recursos, e a energia e os recursos dos outros e do ambiente. - Formas de Decidir – descreve as preferências sobre o modo como, na análise de opções, na tomada de decisão e na execução, se equilibram e se enfatizam as preocupações com a tarefa e as necessidades pessoais ou interpessoais. 51 SOQ Certification Program (1997) e VIEW Certification Program (2003) do Creative Problem Solving Group, Inc (Buffalo – NY / USA).

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RESULTADOS ALCANÇADOS ALGUMAS PERGUNTAS E TEMAS EM ABERTO E SUA RELAÇÃO ORGANIZADOS EM FUNÇÃO DOS 4 P’S COM CATEGORIAS DE ANÁLISE DA PESQUISA 1ª Sessão - 4 Abril 2005 1) Ao nível do clima/pressão: 1) Como se lida com o medo – processo centrado no  Início da construção da identidade do grupo – “nós”. desenvolvimento humano:  Criação de um clima informal de abertura, motivação,  Como vai ser estruturado o trabalho? boa disposição, tranquilidade e disponibilidade.  Como fazer com que o trabalho seja produtivo no tempo que lhe está destinado? 2ª Sessão - 11 Abril 2005 1) Ao nível do clima/pressão:  Compromisso de confidencialidade no grupo.  Integração-construção do sentido de grupo a partir da experiência do relaxamento, da disponibilização do corpo e da linguagem das emoções.  Diário de Campo – “sinto que, no final de uma segunda sessão, não poderíamos estar mais longe do que estamos. É como se, pelo interesse e compromisso das pessoas, tivéssemos passado por cima do tempo de entrosamento e constrangimento inicial”. 3ª e 4ª Sessões - 18 Abril e 2 Maio 2005 1) Ao nível da pessoa: 1) Definição de medo:  Identificação de medos pessoais e de figuras  As polaridades do medo – realismo-fuga; construtor- significativas a eles ligadas – histórias, causas, bloqueador; imperceptível-atrapalhador; utilidade- efeitos, estratégias, formas de ultrapassar. inutilidade; força-fraqueza; ameaça-tentação, um 2) Ao nível do clima/pressão: tudo e um nada...  Integração no grupo a partir da forma como se fala 2) Como se lida com o medo – processo centrado no dos medos. desenvolvimento humano:  Acta da 4ª sessão: “o debate foi particularmente  A importância da presença de uma figura significativa animado – o que começou com uma partilha tornou- que seja testemunho de fortaleza. se motivo para outros elementos do grupo (por causa  Distinção entre medo e objecto de medo – a da identificação) também falarem dos seus medos e necessidade de enfrentar o medo eliminando o de formas de os controlar/curar”. (...) “As pessoas objecto do medo. despediram-se e foram felizes, e inquietas, para  A importância de saber viver bem com os medos. casa...”.  Como ganhar consciência das próprias limitações- 3) Ao nível do processo: possibilidades?  Extracto do relato da 3ª sessão – “Num trabalho  “Sei que sou [capaz, inteligente, corajoso...], mas não deste tipo parece-me que, andando rápido, podemos sinto que sou”. perder coisas preciosas” (colocar referência). - Por que é tudo tão claro no pensar, mas não Decisão do grupo – as coisas valem por si mesmas, no sentir? trabalha-se com a profundidade que o grupo precisar, - Como reconhecer e trabalhar as emoções? demore o que demorar; não há programa para Como passar do pensar ao sentir? Como cumprir, não é preciso chegar a nenhum lugar evitar estratégias exclusivamente ligadas à previamente definido. razão?  Extracto de um diário de campo (3ª sessão) – Não  De que sentires reais estamos a fugir? estou ainda convencida de que tenhamos ido às - Como utilizar vivências que nos ponham a «profundezas» do tema (...).” sentir coisas não sentidas? Como sentir o que  Extracto de um diário de campo (3ª sessão) – “Foi está colado na pele? uma sessão muito intensa. Não conseguimos mais - Como mexer, de verdade, com os medos do que ouvir sete pessoas. Isto é, ficámos pelo ligados à pele, ao toque, ao corpo? primeiro passo da sessão e, mesmo assim, não 3) Para quê – o lado positivo do medo: terminámos.  O medo como factor de maior consciência e aprendizagem; o medo que ajuda a superar objectivos.

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5ª Sessão - 9 Maio 2005 1) Ao nível do clima/pressão:  Extracto de um diário de campo – “No final do filme, que é intenso, o silêncio era total. Foram precisos minutos para começarmos a reagir. Toda a gente ficou mexida com o que vimos”.  Acta da 5ª sessão: “Após uma brevíssima reflexão conjunta sobre o filme (que a todos tinha deixado uma forte impressão), o nosso encontro terminou pelas 20.20 horas e, como se vem tornando hábito, as pessoas despediram-se e foram felizes e inquietas para casa...”. 6ª e 7ª Sessões - 16 e 23 Maio 2005 1) Ao nível do clima/pressão: 1) O quê – efeitos do medo:  Extracto de um diário de campo – “(...) sinto as  Relação entre medo e mentira, fantasia e criação de pessoas muito interessadas; mas sinto também (pelo mundos. menos nalgumas situações), que não abordam os  Quais as consequências de viver “congelado- seus sentires, mas os seus saberes, sobre o tema do paralisado ” no medo? Vive-se melhor, ou pior, sendo medo – em termos individuais e em termos sociais. alienado? (...) Mas também sinto que as pessoas estão bem  O medo entranhado (como parte de si, do corpo, do umas com as outras, desfrutam da companhia e que sentir, do viver), que leva a ter medo mesmo daquilo este trabalho está a fazer bem a todos”. que se sabe não ser real. 2) Ao nível do produto: 2) Porquê – causas do medo:  Extracto de um diário de campo – “Pelo caminho, de  Relação entre medo, sentimento de culpa e regresso a casa, conversei muito com a A. sobre os religiosidade. nossos trabalhos, sobretudo sobre o bem que nos 3) Para quê – o medo para a conservação social: têm proporcionado – contribuem muito para aliviar o  Relação entre controlo social e medo. O medo como stress do dia. Também nos interrogamos se, na alavanca ao controlo social; o medo como factor de verdade, estamos a ajudar (...) a alcançar o objectivo coesão e isolamento; a utilização da mentira para porque, às vezes, pode-se correr o risco de nos deter o poder e governar. esquecermos que estamos no grupo para uma 4) Como se lida com o medo – processo centrado no investigação!” desenvolvimento humano:  De tanto pensar, de tanto analisar, de tanto raciocinar, o que estou a esconder de mim mesmo? O que estou a evitar?  A importância dos processos interiores para superar o medo. A necessidade-capacidade de entrar em contacto consigo mesmo, com os valores profundos, para ter força para enfrentar os medos.  Se não houvesse limitações, se não houvesse medo, o que poderia ser feito? 9ª Sessão - 4 e 5 Junho 2005 1) Ao nível da pessoa: 1) Porquê – causas do medo:  Sentimento de identificação e fusão com o universo –  O papel do pensamento na construção do medo. pacificação interior. 2) Como se lida com o medo – processo centrado no  Somatização de emoções. desenvolvimento humano:  Experiência de ir até ao próprio limite num momento  Como explicar o que são medos interiores a quem só dado. é capaz de entender os físicos-exteriores?  Extracto de um diário de campo – “(...) na vida há  Como permitir o soltar das emoções e evitar o elogio momentos tão profundos que, por serem tão fácil que as faz conter? profundos, sentimos medos de os partilhar! Sentimos  Como aprender a não duvidar de si mesmo e a ter a medo, sim, porque às vezes as nossas palavras são força e a confiança suficientes quando, contra todos, ineficazes para expressar o verdadeiramente se intui estar no caminho certo? profundo que uma pessoa possa sentir!”  A importância do sentido de missão como forma de 2) Ao nível do clima/pressão: lidar com o medo – “faz o que tem de ser feito sem te  Sentimento de protecção, de segurança e de preocupares com as consequências, se isso fizer

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pertença que nasceu da sintonia do grupo no silêncio parte da tua missão”. e nas passadas do caminho.  Extracto de um diário de campo – “Com a sua sensibilidade, o K. soube tornar aquele momento num momento mágico de relação entre as pessoas. E no final alguma coisa tinha mudado. Posso dizer que foi um momento essencial de comunicação de almas e entrosamento das pessoas. Por tudo o que em conjunto vivemos, a serenidade e a paz que ali estavam presentes, tornámo-nos companheiros de viagem”. 3) Ao nível do processo:  Consciência da necessidade de dar tempo para que as vivências ganhem maior sentido. 10ª Sessão - 13 Junho 2005 1) Porquê – causas do medo:  O medo e o desejo da liberdade. O medo de falhar nas escolhas e de não chegar tão longe como se poderia. 2) Como se lida com o medo – processo centrado no desenvolvimento humano:  Qual é o labirinto da minha vida? Qual o monstro que hoje está lá no centro à minha espera?  O que se consegue no centro é uma conquista dolorosa.  O caminho que vai desde “pensar” o meu centro a “sentir” o meu centro.  A confiança de quando se acredita numa coisa muito forte e se sente que essa coisa muito forte está a indicar o caminho.  Deixando acontecer o não planeado recebe-se mais do que o sonhado. 11ª Sessão - 20 Junho 2005 1) Ao nível do produto:  Mapas mentais dos seguintes temas (Anexo 3A) - Medo – categorias de medos. - Estratégias para lidar com o medo. - Medo e Desenvolvimento Humano – medo destrutivo/bloqueador; medo impulsionador. 2) Ao nível do clima/pressão:  Extracto de um diário de campo: “Ao nosso grupo juntou-se o J. Foi bonito o seu contributo. Trabalhámos em harmonia. Trabalhámos e conversámos. 12ª Sessão - 27 Junho 2005 1) Como se lida com o medo – processo centrado no desenvolvimento humano:  Lidar com o medo e transformá-lo em energia positiva. Distinção entre medo bloqueador e medo impulsionador: - O medo bloqueador provoca: tensão, ansiedade, angústia, perda da noção do real, aumento do medo de nós próprios, viver para o exterior, excesso de projectos, viver em função da imagem, afastamento da própria

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essência. - O medo impulsionador possibilita: consciência, novas energias, auto- conhecimento, paz de espírito, viver no presente, liderança.  Não gostamos das pessoas por aquilo que temos em comum, mas por aquilo que vivemos em comum. Tabela I.7 – Sessões do grupo – síntese por sessão dos resultados alcançados e das perguntas e temas em aberto.

Síntese dos resultados alcançados e perguntas e temas em aberto nas sessões do grupo de pesquisa colaborativa

Resultados alcançados – organizados em função dos 4 P’s da criatividade: 1. Ao nível da pessoa.  Identificação de medos pessoais e de figuras significativas a eles ligados.  Experiência de ir até ao próprio limite.  Somatizaçáo de emoções 2. Ao nível do clima /pressão.  Integração-construção do sentido de grupo.  As pessoas estão interessadas, mas muitas vezes não se abordam os sentires, mas os saberes sobre o tema do medo.  As pessoas estão bem umas com as outras, desfrutam da companhia; o trabalho está a fazer bem a todos. 3. Ao nível do processo.  As coisas valem por si mesmas. Trabalha-se com a profundidade que o grupo precisar, demore o que demorar; não há programa para cumprir, não é preciso chegar a nenhum lugar previamente definido.  Consciência da necessidade de dar tempo para que as vivências ganhem maior sentido. 4. Ao nível do produto.  Os nossos trabalhos contribuem muito para aliviar o stress do dia.  Categorização de: medos; estratégias para lidar com o medo.  Distinção entre medo destrutivo/bloqueador e medo impulsionador.

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Perguntas e temas em aberto – organizados em função das categorias de análise da pesquisa.

1. O quê.  As polaridades do medo.  O medo entranhado que leva a ter medo mesmo daquilo que se sabe não ser real. 2. Como.  Como se lida com o medo – processo centrado no desenvolvimento humano. - A importância de saber viver bem com os medos. - A importância dos processos interiores para superar os medos. - A importância do sentido de missão como forma de lidar com o medo. - Lidar com o medo e transformá-lo em energia positiva. - De tanto pensar e analisar, o que estou a esconder de mim mesmo? - Como ganhar consciência das próprias limitações-possibilidades? - Como passar do pensar ao sentir? - Como utilizar vivências que nos ponham a sentir coisas não sentidas? Como sentir o que está colado à pele? - Como mexer, de verdade, com os medos ligados à pele, ao toque, ao corpo? 3. Porquê.  A importância da presença de uma figura significativa que seja testemunho de fortaleza.  O papel do pensamento na construção do medo.  Relação entre medo, sentimento de culpa e religiosidade. 4. Para quê.  O medo para o controlo social – o medo como factor de coesão e isolamento; a utilização do medo para deter o poder e governar  O medo para o desenvolvimento humano - o medo como factor de maior consciência e aprendizagem; o medo que ajuda a superar objectivos.

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2.2.4 Etapa 3 – Achando Luzes

Processo Criativo – Produção de Ideias Produção de Ideias (3)

Procurando romper com padrões e hábitos estabelecidos, permite a geração de um grande número de ideias e de abertura a novas perspectivas:

- Continuação da criação e identificação de ideias com potencial interessante para usar ou desenvolver posteriormente. (Isaksen et al., 2000)

A terceira etapa pode ser dividida em três fases distintas – leitura da informação recebida, construção de sentido e apresentação e discussão dos significados encontrados. A pesquisa colaborativa, embora ainda ocorra no início da primeira fase, sofre depois uma interrupção para só voltar a ser retomada na realização da última.

• Fase de leitura da informação recebida

1. Análise de dados

“Por «dados» entendemos as páginas de materiais descritivos recolhidos no processo de trabalho de campo (transcrições de entrevistas, notas de campo, artigos de jornal, dados oficiais, memorandos escritos pelos sujeitos, etc. Os seus próprios memorandos, notas de pensamentos que teve, comentários do observador, diagramas e a compreensão que adquiriu e registou devem ser manipulados da mesma maneira (...). Deve organizá-los de modo a ser capaz de ler e recuperar os dados à medida que se apercebe do seu potencial de informação e do que pretende escrever” (Bogdan & Biklen, 2006:232).

Com a colaboração de seis membros do grupo de pesquisa que se dispõem a continuar a participar na qualidade de informantes-chave, começa o trabalho de análise dos dados.

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As transcrições das sessões são divididas por pequenos grupos de colaboradores para um trabalho preparatório de identificação-criação de categorias e sub-categorias. Depois reúnem-se e discutem-se os resultados parcelares e os dados são recategorizados até, em CONSENSO e por uma SATURAÇÃO DOS DADOS que garanta a neutralidade na análise, chegarmos ao conjunto final das categorias52. O desenho de uma proposta educativa para lidar com o medo em contexto de educação de adultos (propósito da pesquisa) está contido neste conjunto final.

Ilustração I.22 – Fotografias do trabalho de construção de subcategorias.

Em termos gerais (e com mais ou menos detalhe de acordo com a necessidade sentida, e conforme se pode ver nos documentos contidos no Anexo 5, os passos dados para a construção das CATEGORIAS DE ANÁLISE foram os seguintes:

1. Criação de códigos de localização de todos os trechos dos relatos. Exemplo: 1A1/4 ... não sei se já senti medo… Não, sinto medo de ter medo, acho que é o único medo que eu tenho.

1A1/4 = primeira sessão, código de participante, primeira intervenção / parágrafo 4.

2. Leitura, análise, criação de categorias e sub-categorias de análise e marcação a cores do texto dos relatos das sessões – uma cor para cada categoria (Anexo3). Exemplos: 1A1/4 A) ... não sei se já senti medo… Não, sinto B) medo de ter medo, acho que é A. Quem, caract. pp o único medo que eu tenho. B. O Quê, relação de medos

52 O ponto 2.4 deste capítulo, sobre processamento de dados, relata o modo como as categorias de análise emergiram a partir dos resultados empíricos e dos estudos conceptuais.

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2V1/4 A) E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado, porque todas as A) O quê, relação de semanas estou a trabalhar com grupos diferentes e todas as semanas (e já medos são algumas centenas de grupos), mas todas as semanas tenho medo quando vou começar um trabalho. B) Os meus amigos dizem-me: “Já andas B) Como, como reagem as nisso há tantos anos… Como é que é possível?”. outras pessoas

9I9/1 Gostava de dizer uma coisa – eu tenho um bocado a ideia que, A) se eu hoje Por Quê, razões para não não tive medo no rappel, em grande medida era porque tinha que chegar lá em ter medo CONTINUA EM baixo rapidamente. 9J2/1; 9I10/1 9J2/1 A’) Tinhas uma missão, tinhas um valor muito grande. CONTINUAÇÃO DE 9I9/1 9I10/1 A’’) Nem hesitei, só tinha que descer. CONTINUAÇÃO DE 9I9/1

10U2/3 Para Quê, desenv. (....) E depois, deixando acontecer, surgiram-me coisas que não estavam humano, outros planeadas: recebi uma flor; recebi e dei abraços; dancei; dancei a valsa; tive sorrisos.

3. Compilação dos excertos do texto em função das categorias e subcategorias de análise encontradas (Anexo 5). Exemplo: Categoria: o quê / Subcategoria: relação de medos 1A1/4 – (…) medo de ter medo 1CA1/3 - (…) ter receio de fazer uma coisa. 1CA1/3 – (...) queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou qualquer tipo de sentimento que não sou capaz de expressar por medo. 2V1/4 - E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado, porque todas as semanas estou a trabalhar com grupos diferentes e todas as semanas (e já são algumas centenas de grupos), mas todas as semanas tenho medo quando vou começar um trabalho.

4. Identificação, quando necessário, de sub-subcategorias nos excertos compilados (Anexo 5). Exemplo: Categoria: o quê / Subcategoria: relação de medos Sub-subcategorias 1A1/4 – (…) medo de ter medo 1. Medo de ter medo 1CA1/3 - (…) ter receio de fazer uma coisa. 2. Medo de fazer alguma coisa 1CA1/3 – (...) queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou 3. Medo de expressar emoções ou qualquer tipo de sentimento que não sou capaz de expressar por sentimentos medo.

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2V1/4 – E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado 4. Medo de ser avaliado (...), mas todas as semanas tenho medo quando vou começar um trabalho.

5. Criação, quando necessário, de sub-sub-subcategorias – agrupando, cruzando, ordenando... desagrupando, descruzando, desordenando... sub-subcategorias (Anexo 5). Exemplo: Categoria: o quê / Subcategoria: relação de medos Sub-subcategorias Sub-sub-subcategorias Identificação do Classificação Relação Eu-Outros- Corpo de Origem Medo Cosmos 1. Medo de ter medo Medo do medo Eu Corpo mental 2. Medo de fazer Medo do compromisso Outros Corpo cultural algo 3. Medo de Medo da intimidade Outros Corpo emocional expressar emoções ou sentimentos 4. Medo de ser Medo da avaliação dos Outros Corpo cultural avaliado outros

6. Construção de um mapa mental para posicionamento de todas as categorias e subcategorias de análise53. Excerto:

7. Descrição das categorias54: identificação da categoria e das sub-categorias com indicação do respectivo código de localização no mapa mental geral; explanação dos conceitos subjacentes; apresentação, sempre que considerado necessário, de um conjunto de palavras-chave; um exemplo dessa subcategoria com identificação do respectivo código da localização no texto de análise.

8. Consulta de especialistas externos ao grupo de pesquisa, como garantia da sua fiabilidade interna, para validação dos resultados – a Prof. Eugenia Trigo, da

53 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.4 Processamento de dados” e “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”. 54 Ver “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”.

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Universidade del Cauca, o Prof. Doutor Manuel Sérgio, da Universidade Técnica de Lisboa e a Prof. Doutora Clara Costa Oliveira, da Universidade do Minho.

2. Interpretação/triangulação da informação recebida

É o tempo do meu regresso ao trabalho de investigador solitário para fazer a triangulação e interpretação dos dados.

“Bertraux recorda que os "objectos" que as ciências sociais examinam são falantes, mais do que isso, são pensantes e o que dizem tem significado; além disso, o investigador é um deles, um ser humano entre seres humanos. Com frequência as pessoas que ele estuda sabem mais do que se passa do que o investigador mesmo; contudo, este último tem algo a acrescentar, porque cada pessoa tem um campo de percepção limitado e é aí que começa o desafio da investigação: trata-se de dizer algo mais sobre o todo de que forma parte o grupo em estudo, de unir os fragmentos do conhecimento que encontrou por um e outro lado. É este o sentido que o autor reconhece à frase "análise da informação": um processo não só de análise, mas de síntese, um processo contínuo de concentração no âmbito tanto invisível como omnipresente das relações sociais” (Martínez Salgado, 1996:48).

Tentando sentir-me livre para interpretar, são estes os passos que dou para cada uma das perguntas e categorias de análise:

- faço uma introdução para identificar a palavra-chave, a perspectiva geral, o eixo da categoria; - explico como fui fazendo e como foi achado esse eixo; - faço a interpretação dos dados da categoria a partir desse eixo; - escrevo sobre todas as subcategorias à luz do eixo central; - preparo e envio para anexos os mapas intermédios, tudo o que foi feito para chegar a esta construção.

É um tempo longo de criação em que (utilizando a lógica, o raciocínio, mas também a percepção) procuro fazer como que uma hermenêutica – um texto interpretativo onde,

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em processo de triangulação, e a partir da minha subjectividade de investigadora, dialogo com as pessoas do grupo, com os autores, com o meu diário de campo.

É o verdadeiro acto criador do pesquisador. É um tempo de ligação entre tudo, de coerência da tese. É, inclusive, o tempo em que descubro que o tema do projecto antes abandonado (Etapa 0), também aqui está contido, mas agora de uma maneira mais profunda, porque vivenciado – afinal, “por outros caminhos”.

• Fase de construção de sentido

Processo Criativo – Planeamento da Acção Desenvolvimento de Soluções

Permite trabalhar uma solução promissora para que se torne exequível.

- Fase de desenvolvimento, fortalecimento, análise, avaliação, selecção e estabelecimento de prioridades de ideias e possibilidades promissoras. (Isaksen et al., 2000)

Análise da Análise da Categoria Categoria A+B B A

A+C B+C

Análise da Categoria C Legenda A+B / B+C / A+C = interpretação A+B+C = construção de sentido

Ilustração I.23 – Construção de sentido.

É, finalmente, o retomar todas as partes da obra feita – lembrando, actualizando, conjugando, sintetizando. Identificando a imagem global do que foi construído ao longo

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de muitos meses, compreendendo o que é essencial, concretizando a proposta educativa – para cumprir os propósitos. Para fazer (e encontrar o) sentido.

“[Bertraux] descreve a etapa da comunicação dos resultados. Esta exige, em seu entender, algo mais que um simples informe; o que importa é que a comunicação seja lida e que tenha sentido para as pessoas. Para isso estas requerem, entre outras, modalidades narrativas elaboradas com uma estrutura e uma linguagem muito distintas das que são usadas no artigo científico básico” (Martínez Salgado, 1996:48).

• Fase de apresentação e discussão dos significados encontrados

Processo Criativo – Planeamento da Acção Construção da Aceitação

Permite trabalhar uma solução promissora para que se torne exequível.

- Fase de consideração de diversas fontes de apoio e de resistência para desenvolver e avaliar as soluções. (Isaksen et al., 2000)

“A relação sujeito-objecto, além de cumprir uma função gnoseológica de apropriação, constitui o próprio objecto do conhecimento; daqui que não possamos aceitar que o desenvolvimento do conhecimento seja dissociável do desenvolvimento da consciência e auto-consciência do sujeito, de modo que permita avançar não só para etapas superiores do conhecimento, mas também da consciência do homem” (Zemelman, 1996:47).

Com tudo escrito, volto a convocar o grupo de pesquisa para apresentação e discussão da proposta educativa e dos significados encontrados no quadro de leitura da pesquisa. Dos nove, estávamos sete. Os outros dois estavam geograficamente muito longe.

É tempo de dar conta da tarefa feita, das decisões tomadas e das soluções encontradas. É, essencialmente, tempo para escutar e estar disponível para mudar o

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que, a partir daí, precise de ser mudado. Mas foi também, e de alguma maneira, tempo de festa, porque foi tempo de encontro.

Embora, depois da conclusão do trabalho conjunto, já nos tivéssemos voltado a encontrar em diversas ocasiões, esta foi a primeira vez em que, formalmente, nos voltamos a juntar para tratar do tema da pesquisa. Assim, e tendo também utilizado algum tempo para partilhar o que, para cada um, significa “dois anos e meio depois”, a grande decisão foi que vamos retomar os nossos encontros (já não para a tese, quiçá para outras teses), mas para nós mesmos – com uma forte componente vivencial, como espaço de reflexão, de desenvolvimento e amadurecimento pessoal. Dos nove, estamos nove.

2.2.5 Etapa 4 – Novos caminhos

Processo Criativo – Compreensão do Problema Construção de Oportunidades (1)

Permite fazer a transição entre o espaço em que o problema se situa de forma ampla e confusa e um espaço em que o problema se situe de uma forma mais definida e clara:

- Fase da descoberta das oportunidades e dos desafios que podem ser considerados. (Isaksen et al., 2000)

• Identificação de novos projectos e novas perguntas / conclusão do relatório da investigação

“Os investigadores qualitativos têm a “Utilize auxiliares visuais. Uma técnica de sorte de não terem um modo único de análise que tem recebido cada vez mais apresentar os resultados (....) Com a atenção diz respeito à utilização de prática, o seu estilo particular de auxiliares visuais (...). Figuras como apresentação acabará por surgir. Os diagramas, matrizes, tabelas, e gráficos estilos de apresentação podem ser podem ser utilizadas em todas as fases da visualizados num contínuo. Num dos análise de dados, desde o planeamento

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extremos encontram-se os modos formais até aos produtos finais. (...) Podem ajudá- ou tradicionais de organizar uma lo a resumir o seu pensamento, apresentação. (...) No extremo oposto permitindo-lhe apresentar mais facilmente podem encontrar-se os modos de escrita os seus resultados a outras pessoas” mais informais ou não tradicionais” (Bogdan & Biklen, 2006:217). (Bogdan & Biklen, 2006:256).

É também um tempo que demora tempo – porque é tempo de ler e reler e de dar a ler – ganhando distância, olhando o detalhe, confirmando a coerência.

É o tempo de fechar, de agradecer, repousar e CELEBRAR55.

Mas é também o tempo de, procurando e aceitando a importância do trabalho feito, aí descortinar novos caminhos, oportunidades, desafios e energias que o permitam reabrir. Logo que for o seu tempo.

55 O terceiro dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.

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2.2.6 Correspondência entre processo criativo (CPS), processo da pesquisa e relatório da pesquisa

CPS Processo da Pesquisa Relatório da Pesquisa Componentes Etapas e fases da pesquisa Produtos da pesquisa Capítulos e sub-capítulos do relatório da pesquisa - Fundamento - A pesquisa I. Introdução epistémico - Organização da Processo - O tema tese da Cap. 1 - Criação do desenho da investigação Pesquisa Roteiro - Itinerário e crónicas do caminho Etapa 0 – Por outros caminhos Referencial Interno Cap. 2 Etapa 1 – Na procura de caminhos  - Eu Pessoa – já alguma vez? Descobrir os Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa. Temas e sub-temas de estudo - Eu Educadora – memórias próprios caminhos 1. Histórias de vida (trabalho de campo I)  II 2. Revisão bibliográfica Linhas de Orientação Geral Centrar - O medo

Problema Problema Cap. 3  - O desenvolvimento humano

Compreensão do Compreensão Descobrir caminhos Perguntas da Investigação - Campo de criação de outros  - Educação criativo-motrícia Etapa 2 – Caminhando Cap. 1 Roteiro – 2.4.1 Mapa das categorias de análise Fase de aprofundamento. Observação-participação no Anexo 3 – Transcrição das sessões do grupo de pesquisa 1. Sessões de trabalho com o grupo de trabalho de campo Anexo 4 – Descrição das categorias de análise pesquisa colaborativa (trabalho de campo  Anexo 5 – Análise de dados II) III Anexo9 – Diário de campo Etapa 3 – Achando luzes Agir Categorias de Análise Fase de leitura da informação recebida. - Quem...?  Cap. 4 - Por que .....? Produção de Ideias Ideias de Produção 1. Análise de dados (c/ informantes-chave) - O que .....? Quadro de Leitura da Criar o caminho - Para que .....? 2. Interpretação/triangulação - Como…? Informação Recolhida Fase de construção de sentido.  3. Síntese e proposta educativa Síntese Fase de apresentação e discussão dos O sentido do caminho +

da Acção Acção da significados encontrados. - À maneira de conclusão

Planeamento Planeamento Princípios Educativos 4. Sessão com o grupo de pesquisa IV - Princípios de Educação de Adultos Etapa 4 – Novos caminhos Celebrar Para abrir um novo caminho Fase de identificação de novos projectos e - Fechar o ciclo  novas perguntas. - Reabrir o ciclo Novas perguntas Compreensão Compreensão do Problema 2 Problema do

Tabela I.8 – Correspondência entre o processo criativo e metodológico e o relatório da pesquisa.

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2.3 Processo de Orientação da Tese

Mentor

When no one noticed You saw me struggling. You could have passed but didn’t: Your thinking and your smiles Convinced me to excel. Your steadfast faith in me Compelled me to succed. And if by chance I didn’t You’d still be there for me. It is good to have Some one like you. Richard Kramer

O processo de orientação da tese, que permitiu e incentivou a abertura e disponibilidade para avanços, retrocessos e reconfigurações da pesquisa, foi um dos elementos essenciais do percurso metodológico-criativo atrás descrito. Estando vivamente presente em todas as suas fases (e não sendo, também ele, nem independente, nem linear), foi mais um dos fios que configurou o tecido criado. Entre ambos, processo de orientação e caminho percorrido, criou-se uma relação que, à maneira de Morin (2003), é uma relação-realidade complexa pois, mantendo-se duos na unidade, situaram-se simultaneamente no interior e no exterior um do outro e tornaram-se produto e produtores de si mesmos.

É, por isso (e, ao mesmo tempo, apesar disso), que, quando atrás fiz a descrição dos procedimentos e técnicas desta tese, não fiz a explicação do processo da sua orientação. Mas, é porque se trata também, e fundamentalmente, de um acto criador, que, sob o risco de omitir um elemento vital da pesquisa, não posso deixar de a fazer agora. Nessa continuidade, vou colocar esta descrição na mesma matriz (a matriz dos 4 P’s), já antes utilizada para situar o processo metodológico. Assim (e na medida das possibilidades de uma descrição que não deve tornar-se demasiado extensa), começo pela repetição do que, noutras ocasiões58, já serviu para a caracterização do produto desejado para que, também aqui, possa perceber-se como implicou e se conjugou com restantes partes do sistema.

58 Ver “Introdução – 1.2 Implicações para a pesquisa” e início do “Capítulo 1 Roteiro”.

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• Produto

Os propósitos gerais desta tese, que passo a renomear, incorporam os seguintes enunciados:

- Um conceito multidimensional, ético, solidário e responsável de Desenvolvimento Humano (Morin, 2006). - A escuta das emoções como meio para entender o que acontece na profundidade de cada pessoa (Damásio, 2003:183). - A consciência de que a vida é um fenómeno complexo de auto-eco-organização, de inter-relação com o universo e com o outros (Morin, 2003). - A ideia de responsabilidade pelo nosso destino e pelo destino do nosso planeta (Berman, 1981). - A noção de que todos os discursos são encarnados e que o investigador influi na construção do objecto do conhecimento (Morin, 2003; Sérgio & Toro, 2005; Varela, 2000). - Diferentes cosmovisões, diferentes maneiras de conhecer e diferentes linguagens (Sousa Santos, 1988; Zemelman, 1996; Feitosa, 1999; Capra, 1982; Sisk & Torrance, 2001; Sousa & al, 1998; Bachelard, 2002; McCall, 2003).

• Pessoa(s) e Pressão-Clima

Tal como já tive oportunidade de referir na Introdução desta tese, ao longo da pesquisa pude contar (num trabalho feito em parceria), com a orientação de três Professores com formações, sistemas e, até, nacionalidades diferentes. De uma forma continuada, com a orientação da Prof. Doutora Eugenia Trigo (da Galiza, Espanha, vinculada à Universidade del Cauca, na Colômbia); no início e escolha do tema e na fase da pesquisa colaborativa, com a Prof. Doutora Maria da Conceição Azevedo (Portugal, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro); em momentos pontuais de assessoria metodológica, com a orientação do Prof. Doutor Luís Guillermo Jaramillo (Colômbia, Universidade del Cauca).

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Orientadora(es) e Orientada, com papeis e responsabilidades diferentes, mas que, na complexidade e pela intercomunicação, se tornaram, à maneira dialógica de Freire, orientadora(es)-orientada(os) e orientada-orientadora – “porque a educação autêntica (...) não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2003:84).

Não quero, por isso, mas também por uma economia de palavras, separar aqui a descrição da dimensão pessoa da dimensão clima. Aliás, se tivesse de escolher uma única palavra que caracterizasse ambas, escolhia “cumplicidade” – pelo que pressupõe de confiança, discrição e compromisso; pelo que integra de comportamentos de escuta, de comunicação, de permanente trabalho de equipa.

Ilustração I.24 – Fotografias de Orientadores e Orientanda.

Do lado da(os) Orientadora(es) – tendo como primeira responsabilidade a focalização no processo, o jeito da(os) Orientadora(es) caracterizou-se globalmente por: - Buscar coerência e equilíbrio entre processo-conteúdo, tarefa-pessoa, divergência-convergência, inovação-adaptação. - Colocar e estimular um grande nível de energia e de desafio, um elevado grau de preocupação, interesse e sensibilidade. - Respeitar, mas também incentivar, o meu ritmo de produção. - Promover, sempre que necessário, e pela gestão de instrumentos e processos diversos, situações de ensino-aprendizagem. - Promover, sempre que necessário, e pela oferta (ou sugestão) de actividades diversas, tempos fortes de distanciamento e incubação. - Apontar o sentido, mas não a forma de lá chegar – de modo a que, mostrando que são possíveis muitos caminhos, preservar a minha autonomia, a minha responsabilidade e a minha capacidade de criação e de decisão.

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- Exigir tudo o que acreditaram ser possível – não numa atitude de quem aponta o errado (nem de quem corrige e faz pelo outro o que só ele deve fazer), mas ajudando a encontrar em mim aquilo que se acreditou ser possível encontrar.

Do lado da Orientada – sendo a pessoa a quem, em última análise, cabe a responsabilidade pelas decisões tomadas, por providenciar e organizar recursos e promover a acção, a atitude caracterizou-se por: - Estar genuinamente comprometida com o processo de desenvolvimento teórico- disciplinar e de desenvolvimento pessoal da pesquisa. - Ter flexibilidade de pensamento e abertura de coração para, em diversos pontos do percurso, aceitar o desafio de explorar caminhos diferentes dos inicialmente previstos. - Confiar na orientação e, por isso, fornecer e pedir toda a informação necessária, tanto do ponto de vista conceptual e metodológico, como do ponto de vista pessoal e relacional.

• Processo

Acompanhando todas as fases da pesquisa, o processo de orientação foi, também ele, constituído por uma grande diversidade de tempos de encontro:

Tempos de tutoria presencial Em Portugal, em Espanha e na Colômbia, com uma periodicidade que variou entre semanal e anual (mas esta com a duração de duas a três semanas a tempo inteiro), foram sempre tempos de questionamento muito fortes, de criação de novos impulsos e/ou de mudança de alguns rumos que se tornavam demasiado rígidos ou inadequados. Mas foram também ocasiões de encontro em que, às vezes, e à primeira vista, parecia que o foco de atenção não se colocava na tese. Porque a tese é vida e a vida é tese, os tempos de tutoria presencial também englobaram a proposta e execução de actividades e vivências muito diversas que, pelas sinergias desencadeadas, vieram a dar origem a novos espaços de criação.

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Tempos de tutoria virtual Inicialmente encarados, pela minha parte, com alguma preocupação, vieram a revelar-se uma forma diferente, mas também produtiva e eficaz, de ser orientada no processo da pesquisa. Com uma frequência que, em diversas épocas, chegou a ser diária, a tutoria virtual (tanto escrita, como falada), teve, inclusive, a vantagem de obrigar a uma maior disciplina, organização e estruturação do plano conjunto de trabalho.

Tempos de formação Integrados em contextos variados, e com o envolvimento de outros investigadores e especialistas, os tempos de formação incluíram: acções de formação no Departamento de Doutorado da Universidade del Cauca, em Popayán59; a presença em congressos, painéis e mesas redondas (em Portugal, Espanha e Colômbia)60, para que, a partir da experiência de apresentação e discussão pública do projecto da pesquisa, fosse possível repensar e/ou dar resposta às questões e situações que ali fossem colocadas.

59 2005 – 30 Janeiro a 12 Fevereiro - Seminário de Tesis Doctoral, com los estudiantes de la Tercera Promoción, Área Currículo, Doctorado en Ciências de la Educación, Popayán, Colômbia, orientado por los profesores Eugenia Trigo Aza, Maria da Conceição Azevedo e Luís Guillermo Jaramillo. 2006 - 23 Janeiro a 8 Fevereiro - “Educación y Pedagogia Contemporâneas en el marco de la configuración de las Ciências Sociales y Humanas. Una visión prospectiva para la formación de posgrado” – Seminário organizado por Rudecolombia, Doctorado en Ciências de la Educación, Universidad del Cauca, Popayán, Colombia. - Seminário de Tesis Doctoral, com los estudiantes de la Tercera Promoción, Área Currículo, orientado por los profesores Magnólia Aristizábal, Eugenia Trigo y Luís Evelio Alvarez, Rudecolombia, Doctorado en Ciências de la Educación, Popayán, Colômbia. 60 - Comunicação no II Encontro Internacional de Experiencias Significativas en Motricidad y Desarrollo Humano, entre 9 e 11 Fevereiro 2005, organizado pelo Departamento de Educación Física, Recreación y Deporte da Facultad de Ciencias Naturales, Exactas y de la Educación, da Universidad del Cauca, em Popayán, Colômbia. - Comunicação “O Medo no Desenvolvimento Humano – uma perspectiva curricular” no Colóquio/Debate “Problemas e Desafios da Educação Contemporânea”, em 24 Junho 2005, no âmbito do Curso de Mestrado “História e Problemas Actuais da Educação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – Pólo de Chaves. - Comunicação “O Medo no Desenvolvimento Humano – do medo da subjectividade à subjectividade do medo” no IV Congreso Internacional de Motricidad Humana – Motricidad y Desarrollo Humano, organizado pela Associación Internacional de Motricidad Humana, entre 30 de Junho e 3 de Julho 2005, em Porto do Son (A Coruña).

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Tempos de tutoria colectiva Conduzidos pelos Orientadores, e no prolongamento dos programas de formação, foram oportunidades de conhecer e reflectir com outros colegas de doutoramento sobre os diversos projectos envolvidos.

Tempos de assessorias diversas Tempos em que, por força da rede solidária criada nas actividades atrás referidas, doutorandos de diferentes proveniências, por sugestão dos Orientadores e/ou por nossa própria iniciativa, trocámos inquietações e respostas, textos e experiências – e, com isso, e pela minha parte, não só a possibilidade de realizar novos avanços e configurações da pesquisa, mas também de me abrir a novas possibilidades de acção e de relação.

2.4 Processamento de Dados

As coisas têm vida própria. É tudo uma questão de lhes acordar a alma. Gabriel Garcia Marquez

Tal como já tive oportunidade de explicar61, o trabalho de criação do quadro de categorias de análise foi feito com o grupo de informantes-chave, em CONSENSO (não por votação), sobre as 319 páginas de texto de transcrição das sessões do grupo de pesquisa e, posteriormente, revisto e aceite por três especialistas externos ao grupo de pesquisa – a Prof. Doutora Eugenia Trigo, o Prof. Doutor Manuel Sérgio e a Prof. Doutora Clara Costa Oliveira. Mais adiante, neste mesmo capítulo, coloco um mapa mental62, síntese do resultado encontrado, e, no Anexo 4, a descrição detalhada de cada uma das categorias e sub-categorias nele contidas.

Porque as perguntas da investigação estão redigidas no sentido de querer compreender o “como”, o “o quê”, o “por quê” e o “para quê” de uma vida “serena, útil e corajosa”, as primeiras categorias de análise a emergir foram aquelas que correspondiam directamente a essas interrogações.

61 Ver ponto 2.2 deste capítulo, “Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”. 62 Ver ponto 2.4.1 deste capítulo, “Mapa mental das categorias de análise”.

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Depois, e a partir delas (e da categoria “quem” que caracteriza a população em estudo), foi um processo de criação feito de permanente agrupamento/desagrupamento, construção/desconstrução/reorganização, que levou à emergência de um novo conjunto de sub-categorias que, em muitos casos, o grupo nem imaginava que lá estivessem contidas.

Foram utilizadas duas vias de criação:

- A VIA DEDUTIVA – a da criação a partir do referencial interno e da revisão bibliográfica, tal como vinham sendo conjugadas nas linhas de orientação geral.

- A VIA INDUTIVA – a da criação a partir das (novas) “sugestões” que emanavam das narrativas do grupo de pesquisa e de que a participação activa no trabalho do grupo permitiu fazer uma leitura.

São resultado da primeira, da via dedutiva, tanto algumas das sub-categorias directamente relacionadas com a identificação e caracterização do grupo de pesquisa (1. Quem), como algumas das sub-categorias relacionadas com a procura de respostas às perguntas de investigação (2. O Quê: 3. Porquê; 4. Como; 5. Para Quê). São elas:

1. As sub-categorias que contêm: - os conceitos de autoconceito e de identidade (Quem – 1.1.1.1 e 1.1.1.2); - o conceito corporeidade (ex: O Quê – 2.2.1.1.1 a 2.2.3.1.2); - o conceito de motricidade humana (Como – 3.2.2.2.1 e 3.2.2.2.2) e a compreensão do intercâmbio energético da interacção do ser humano consigo mesmo, com os outros e com o cosmos (ex: O Quê – 2.2.1, 2.2.2 e 2.2.3); - o conceito de desenvolvimento humano (Como – 3.2.2); - o conceito de acção (Como – 3.2.2.2), e os quatro momentos em que esta desenvolve – tomada de consciência (3.2.2.2.1.1), assumir (3.2.2.2.1.2), tomada de decisão (3.2.2.2.1.3) ; execução (3.2.2.2.1.4); - os conceitos de habitus, controlo e reprodução social (Como – 3.2.1 e Para Quê – 5.1).

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2. As sub-categorias constituídas pelas dimensões do Situational Outlook Questionnaire - SOQ (Quem – 1.2.1) e do VIEW (Quem – 1.2.2) para que se pudesse fazer a ligação entre duas fontes de dados – a espontânea, dos relatos dos participantes, e a formal, dos resultados da aplicação destes questionários ao grupo de pesquisa e, com isso conseguir melhor compreender: a) a percepção que os participantes tinham sobre o clima para a criatividade e inovação gerado no grupo (SOQ), respectivas implicações no tipo de resultados obtidos na pesquisa e onde, por isso, se colocam novos caminhos-desafios de investigação; b) os estilos de resolução de problemas presentes no grupo (VIEW) e, também aqui, as respectivas implicações no tipo de resultados obtidos na pesquisa e onde, também por isso, se colocam novos caminhos-desafios de investigação.

São resultado da segunda via de criação de categorias de análise, isto é, da via indutiva, todas as outras não referidas nos parágrafos anteriores.

Importa ainda dizer que, em diversas situações, foram feitas subcategorizações em função do significado atribuído ao contexto do discurso de que fazem parte, e não pelo que, eventualmente, pudessem parecer indicar fora desse mesmo contexto. Por exemplo, o “medo da normalidade” foi subcategorizado como “medo de não corresponder às próprias expectativas”, e o “medo do exercício físico” foi classificado como “medo da intimidade-comunicação consigo próprio”, pois assim se considerou ser o sentido do discurso de origem.

Chegámos, desta maneira, a um quadro de análise muito simples, despretensioso, possivelmente quase óbvio e, com isso (ou, talvez por isso), a uma certa coerência interna que, quando conseguida desta maneira, não se quis mais abandonar. É que, à medida que avançávamos em direcção à saturação de dados (o que aconteceu a pouco mais de dois terços da análise das sessões), fomos ganhando consciência de que estávamos num processo de criação que evoluía (e, com isso, ganhava sentido), do complicado para o simples e que esse simples era, simultaneamente, complexo pois, na rede das ligações estabelecidas (o que nos levou, em diversos casos, a atribuir títulos muito próximos a várias das sub-categorias criadas), parecia ter sido encontrado o sinal do princípio hologramático de que fala Morín (2003).

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2.4.1 Mapa mental das categorias de análise

Ver Mapa Mental na folha seguinte.

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2.5 Aspectos Éticos

“Ao assumir uma postura ética, um indivíduo tenta compreender o seu papel como trabalhador e o seu papel como cidadão de uma região, de uma nação, do planeta. No meu caso, eu pergunto: quais são as minhas obrigações como investigador científico, como escritor, como líder? Se estivesse sentado do outro lado da mesa, se ocupasse um nicho diferente na sociedade, que direito teria a esperar daqueles outros que pesquisam, escrevem, gerem, lideram? E, para ter uma perspectiva ainda mais alargada, em que tipo de mundo eu gostaria de viver (....)? Qual é a minha responsabilidade em fazer com que esse mundo aconteça? Qualquer [pessoa] deveria ser capaz de se colocar (ou de responder) este conjunto de perguntas relacionadas com o seu nicho ocupacional e cívico” (Gardner, 2006:8)63.

É sob a inspiração das perguntas colocadas por um grande investigador, Howard Gardner, que, para terminar este capítulo, procurarei fazer uma síntese dos aspectos éticos envolvidos no processo da pesquisa, de uma forma especial ao longo do trabalho com o grupo e no meu papel de observadora participante. Começo, por isso, por colocar algumas ideias retiradas do meu diário de tese e do meu diário de campo:

Antes do início do trabalho com o grupo

- Vou começando (...) a preparar o primeiro encontro. Queria que a primeira reunião fosse um tempo de apresentação e de “tirar dúvidas”, mas também um exemplo do esforço prazenteiro que deverá definir a nossa forma de trabalho em equipa. - Tento ter tudo muito em ordem – sinal de que não me sinto completamente segura? (...) Até que ponto devo dar informação? Dar muita, incomoda com dados e condiciona o trabalho; dar demasiado pouca, pode fazer dispersar por caminhos que não são os que interessam...

63 “As I use the term, “ethics” also relates to other persons, but in a more abstract way. In taking ethical stances, an individual tries to understand his or her role as a worker and his or her role as a citizen of a region, a nation, and the planet. In my own case, I ask: What are my obligations as a scientific researcher, a writer, a manager, a leader? If I were sitting on the other side of the table, if I occupied a different nich in society, what would I have the right to expect from those “others” who research,, write, manage, lead? And, to take an even wider perspective, what kind of a world would I like to live in, if (…) I were cloaked in a “veil of ignorance” with respect to my ultimate position in the world? What is my responsibility in bringing such a world into being? Every reader should be able to pose, in not answer, the same set of questions with respect to his or her occupational and civic niche” (Gardner, 2006:8).

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- Preparo diversos ficheiros em powerpoint para levar para a reunião e começo a sentir que estão concisos e claros. Alguns servirão de apoio à discussão durante o encontro; outros são para que cada um leve para sua casa e, a seu tempo, vá tomando contacto com eles. - Faço cópias do desdobrável do IV Congresso Internacional de Motricidade e Desenvolvimento Humano que, em Julho, se vai realizar em Porto de Som, na Galiza. É uma oportunidade interessantíssima para nos apresentarmos como equipa de pesquisa e darmos a conhecer o nosso trabalho perante um grupo de investigadores internacionais (...).

Como Trabalhar: esforço prazenteiro

Tema e Propósitos claros Instrumentos da Pesquisa • O tema: • Registos das sessões (audio e/ou – O Medo no Desenvolvimento Humano video). • Propósitos / “o para quê”: • Histórias de vida. – Procura pessoal • Diário(s) em que cada pessoa recolhe – Criação de uma estratégia didáctica o que acontece consigo própria. – ... Eixo de cada sessão Vantagens • Uma sessão semanal de 2 horas. • Desenvolvimento pessoal de cada um. • Trabalhos orientados por diferentes • Tese de doutoramento de Helena Gil pessoas do grupo. da Costa com a indicação da • Utilização de múltiplas estratégias – participação de todos. diferentes técnicas de criatividade. • Comunicação de todos no IV • Explorar/ estudar o medo tendo em Congresso Internacional de Motricidade vista a criação de um documento. Humana. • Síntese de cada sessão. • Publicação em co-autoria de documento(s) de natureza escrita ou outros.

Ilustração I.25 – Exemplo de um dos slides utilizados no primeiro encontro do grupo de pesquisa colaborativa.

Ao longo das sessões do grupo

- Tendo em conta o meu próprio processo, preciso lembrar-me da importância de não contaminar – pedir ao grupo o seu conceito de medo e de desenvolvimento humano antes de colocar definições de autores … - Foi abordada a questão da confidencialidade do nosso trabalho (...). Julgo que isso tanto passa por alguma insegurança relativamente ao resto das pessoas, que ainda são desconhecidas, como também pelas nossas próprias inseguranças relativamente ao tema. Mas todos assumimos esse compromisso. - Todo o trabalho se desenvolveu com seriedade. Sinto que, no final de uma segunda sessão, não poderíamos estar mais longe do que estamos. É como se, pelo interesse e compromisso das pessoas, tivéssemos passado por cima do tempo habitual de entrosamento e de constrangimento inicial.

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- (...) A descoberta de que vivemos um permanente deixarmo-nos conduzir e envolver pelo tema que nos congregou (que faz com que tudo demore mais tempo do que o previsto), um ir muito mais a fundo do que aquilo que alguma vez supusemos ser possível num grupo que, enquanto tal, nunca antes se tinha encontrado. - Muitas vezes nos colocamos esta pergunta: “será que, com este ritmo, conseguimos chegar onde queremos?”. (...) Aos poucos vamos percebendo que é tudo parte da dinâmica de um grupo – há que deixar que flua. Uma coisa é a tese, a outra, as necessidades das pessoas com um tema que também é delas. - Estou a aprender a levar os dois ritmos em paralelo – a tese é o pretexto para o que está a acontecer. Em pesquisa colaborativa não é preciso chegar a lugar nenhum previamente estipulado. Trabalha-se com a profundidade que o grupo precisa, demore o que demorar. Só tenho de fazer o grupo andar para a frente se ele estiver parado. - Quanto à minha forma de estar e sentir ao longo das primeiras sessões – oscilo entre a necessidade- vontade de estar completamente engajada e presente no trabalho que estamos a fazer, e a consciência de que me cabe um papel especial: uma visão mais ampla, uma atenção de observador constante e a responsabilidade com a logística, a atenção ao gravador, o fazer fotografias, etc. - As minhas sempre inquietações interiores – Até que ponto sou parte do grupo? Até que ponto, participando “demasiado” (isto é, fazendo muitas perguntas ou comentários), posso estar a arrastar o grupo para o trabalho que eu já fiz (por exemplo, induzindo-os para as categorias que eu, há tempos, construí)? Porque, na verdade, à medida que vamos avançando, falando e vivendo, eu não consigo deixar de, mentalmente, ir fazendo a triangulação com os outros momentos da pesquisa. Opto, por isso e em princípio, por uma posição mais discreta – deixar que as coisas fluam para, posteriormente, melhor poder triangular. Mas, procuro, também, ter sempre presente os princípios de uma investigação colaborativa – as coisas vão-se construindo entre todos, mas eu também sou parte e é justo e importante que coloque as minhas aportações. O grupo só agora começou, mas a tese já está a ser feita há muito tempo e o meu ponto de vista é mais um ponto no grupo. Preciso de me deixar levar pelas minhas intuições e pela minha experiência.

Julgo, então, estar em condições de dizer que foram cumpridos os princípios éticos de uma investigação qualitativa:

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1. Foram apresentadas e cumpridas as condições estipuladas para o funcionamento do grupo. 2. Cada pessoa do grupo aderiu voluntariamente e soube de antemão em que projecto se estava a envolver. 3. Cada pessoa tinha consciência do meu papel de observadora participante. Procurei sempre manter a minha posição como membro do grupo, não como líder, nem como orientadora, nem como quem já estudou ou “sabe tudo”. 4. Foi pedida autorização para fazer a gravação áudio das sessões e fazer uso das suas transcrições. 5. Foi pedida autorização para fazer e utilizar as fotografias do grupo. 6. Sem embargo de, com o seu consentimento e interesse, ser feita a apresentação dos nomes dos participantes no grupo como colaboradores no projecto da pesquisa, está garantido o anonimato do que foi dito em cada sessão. 7. Os resultados do trabalho foram apresentados ao grupo e as suas sugestões foram utilizadas para fazer a afinação da análise.

116 1.1.1.1 feita pelo próprio 1.1.1 caracterização geral de cada uma das pessoas do grupo 1.1.1.2 feita pelos outros

1.1 as pessoas do grupo 1.1.2 razões para participar de pesquisa colaborativa 1.1.3 expectativas em relação ao trabalho

3.1 como os outros 1.1.4 efeitos (no reagem aos nossos medos próprio) por participar

3.2.1 processo centrado na conservação 1.2.1.1 desafio e envolvimento

3.2.2.1.1 liderança 1.2.1.2 confiança e abertura

3.2.2.1.2 amor 1.2.1.3 liberdade 3.2.2.1 clima necessário 1. QUEM 3.2.2.1.3 confiança 1.2.1.4 tempo para as ideias

3.2.2.1.4 autonomia e responsabilidade 1.2.1 clima do grupo - dimensões (SOQ) 1.2.1.5 conflito

3.2.2.2.1.1.1.1 a) saber quem sou 1.2.1.6 debates

3.2.2.2.1.1.1.2 b) ser diferente 1.2 o grupo de pesquisa colaborativa 1.2.1.7 alegria e humor

3.2.2.2.1.1.1.3 c) perceber que posso 1.2.1.8 apoio a ideias 3.2.2.2.1.1.1 1. Ser 3.2.2.2.1.1.1.4 d) do 1.2.1.9 riscos assumidos pensar / falar ao sentir 1.2.2.1 orientação para a mudança 3.2.2.2.1.1.1.5 e) a minha 1.2.2 estilos de criação consciência de ser educador 1.2.2.2 formas de processar informação - dimensões (VIEW) 3.2.2.2.1.1.2.1 a) ver 1.2.2.3 formas de decidir de outra perspectiva 3.2.2.2.1.1.2 2. Poder Ser 2.1.1 definições e 3.2.2.2.1.1.2.2 b) sentido da missão caracterizações do medo 2.1 definição de medo 3.2.2.2.1.1 tomada de 3.2.2.2.1.1.3.1 a) 2.1.2 representações simbólicas do medo ganhar consciência do consciência / o que aprender medo 2.2.1.1.1 corpo emocional-mental

3.2.2.2.1.1.3.2 b) aprender a confiança 2.2.1.1 medo da decisão 2.2.1.1.2 corpo emocional-mental-espiritual ou transcendente 3.2.2.2.1.1.3.3 d) aprender a errar 2.2.1.2.1 corpo físico 3.2.2.2.1.1.3.4 c) aprender 2.2.1.2 medo da a resolver problemas 3.2.2.2.1.1.3 3.Processo de Aprendizagem 3.2.2.2.1 movimento centrífugo intimidade-comunicação 2.2.1.2.2 corpo consigo mesmo físico-emocional-cultural 3.2.2.2.1.1.3.5 e) aprender que é um processo demorado e difícil 2.2.1.3.1 corpo mental 3.2.2.2.1.1.3.6 f) viver aqui e agora 2.2.1.3 medo da loucura 2.2.1.3.2 corpo emocional-mental 3.2.2.2.1.1.3.7 g) não preocupar com as consequências 2.2.1.3.3 corpo físico-emocional

2.2.1.4 medo de não 2.2.1.4.1 corpo cultural 3.2.2.2.1.2.1 assumir a responsabilidade 3.2.2.2.1.2 assumir corresponder aos próprios 3.2.2 processo centrado 3.2 como se lida com o medo 3. COMO valores 2.2.1.4.2 corpo cultural-mental 3.2.2.2.1.3.1 a) auto-responsabilidade no desenvolvimento humano 2.2.1.5.1 corpo 3.2.2.2.1.3.2 b) 2.2.1 relacionados com o Eu espiritual ou transcendente reconhecimento do valor 3.2.2.2 acção 2.2.1.5 medo de não corresponder em causa às próprias expectativas 2.2.1.5.2 corpo emocional

3.2.2.2.1.3.3 c) sentido 3.2.2.2.1.3 tomada de decisão 2.2.1.5.3 corpo mental da necessidade de mudança / condições da mudança 2.2.1.6.1 corpo 3.2.2.2.1.3.4 d) confiança espiritual ou transcendente 3.2.2.2.1.3.5 e) método 2.2.1.6 medo do existencial 2.2.1.6.2 corpo mágico ou místico

3.2.2.2.1.3.6 f) pensar em positivo 2.2.1.6.3 corpo espiritual ou transcendente-cultural 3.2.2.2.2.1.1.1.1 relaxamento 2.2.1.7 medo do medo 2.2.1.7.1 corpo mental 3.2.2.2.2.1.1.1.2 bioenergia 3.2.2.2.2.1.1.1 com o Eu 2.2.1.8.1 corpo físico 3.2.2.2.2.1.1.1.3 meditação 2.2 relação e explicação dos medos 2.2.1.8.2 corpo inconsciente 3.2.2.2.2.1.1.1.4 utilização 2.2.1.8 medo do sofrimento físico da arte e da fantasia 3.2.2.2.2.1.1 1. O Tempo do Meu Mundo 2.2.1.8.3 corpo físico-espiritual ou transcendente 3.2.2.2.2.1.1.2.1 a pele da alma 3.2.2.2.2.1.1.2 com os Outros

3.2.2.2.2.1.1.3.1 2.2.2.1.1 corpo cultural harmonia com o universo 2.2.2.1 medo da avaliação dos outros 3.2.2.2.2.1.1.3 com o Cosmos 2.2.2.1.2 corpo cultural-emocional 3.2.2.2.2.1.1.3.2 silêncio 3.2.2.2.2.1 execução e estratégias 3.2.2.2.2 movimento centrípeto 2.2.2.2.1 corpo físico

3.2.2.2.2.1.2.1 esforço 2.2.2.2 medo da dependência 2.2.2.2.2 corpo emocional

3.2.2.2.2.1.2.2 ir em 2.2.2.2.3 corpo físico-emocional frente em função da missão 2.2.2.3 medo da 2.2.2.3.1 corpo emocional 3.2.2.2.2.1.2.3 intimidade-comunicação com procurar apoios e 3.2.2.2.2.1.2 2. O Tempo no Mundo os outros confiar 2.4.1 Mapa Mental das 2.2.2 relacionados com os Outros 2.2.2.4 medo de ficar só 2.2.2.4.1 corpo emocional 3.2.2.2.2.1.2.4 assumir Categorias de Análise riscos e responsabilidades 2.2.2.5 medo de mitos 2.2.2.5.1 corpo cultural 3.2.2.2.2.1.2.5 atenção e prudência 2.2.2.6 medo de ser diferente 2.2.2.6.1 corpo cultural

2.2.2.7 medo do compromisso 2.2.2.7.1 corpo cultural 3.3 perguntas do grupo que ficam em aberto 2.2.2.8.1 corpo emocional 2.2.2.8 medo do conflito 4.1.1.1.1.1 corpo emocional 2.2.2.8.2 corpo emocional-mental 4.1.1.1.1 ausência de unificação do Eu 4.1.1.1.1.2 corpo mental 2.2.2.9 medo do desconhecido 2.2.2.9.1 corpo emocional

4.1.1.1.2.1 corpo emocional 2.2.3.1.1 corpo físico 4.1.1.1.2 desejo 2.2.3.1 medo do cosmos 4.1.1.1.2.2 corpo mental 2.2.3 relacionados com o Cosmos 4.1.1.1 percepção do Eu 2. O QUÊ 2.2.3.1.2 corpo transcendente 4.1.1.1.3.1 corpo mental 4.1.1.1.3 imaginação 2.3.1.1.1 corpo mental 4.1.1.1.3.2 corpo emocional 2.3.1.1 alteração da vida quotidiana 2.3.1.1.2 corpo físico 4.1.1.1.4.1 corpo mental 4.1.1.1.4 noção do dever 2.3.1.1.3 corpo físico-emocional

4.1.1.2.1.1 corpo cultural 2.3.1.2.1 corpo emocional 4.1.1.2.1.2 corpo mental 4.1.1.2.1 dependência de pessoas ou coisas 2.3.1.2.2 corpo transcendente 4.1.1.2.1.3 corpo emocional 2.3.1.2.3 corpo mental

4.1.1.2.2.1 corpo emocional 4.1.1.2.2 experiências de 2.3.1.2.4 corpo inconsciente não integração / abandono 2.3.1.2 desistência do eu 2.3.1.2.5 corpo emocional-mental 4.1.1 razões do medo 4.1.1.2.3.1 corpo emocional 4.1 causas do medo 2.3.1.2.6 corpo físico-emocional 4.1.1.2.3.2 corpo físico 4.1.1.2.3 experiências de violência / desrespeito 4.1.1.2 percepção dos Outros 2.3.1.2.7 corpo 4.1.1.2.3.3 corpo físico-emocional mental-emocional-transcendente

4.1.1.2.4.1 corpo cultural 2.3.1.3 estimulação da acção 2.3.1.3.1 corpo mental 4.1.1.2.4 experiências 4.1.1.2.4.2 corpo mental 2.3.1 na relação com o EU ou previsão de fracasso 2.3.1.4 não consciência 2.3.1.4.1 corpo mental 4.1.1.2.4.3 corpo emocional 4. PORQUÊ 2.3.1.5.1 corpo emocional 4.1.1.2.5.1 corpo emocional 4.1.1.2.5 experiências do mundo afectivo 2.3.1.5.2 corpo mental 2.3.1.5 paralisação 4.1.1.2.6.1 corpo cultural 4.1.1.2.6 práticas culturais 2.3.1.5.3 corpo físico-emocional

2.3.1.5.4 corpo emocional-mental 4.1.1.3.1.1 corpo cultural 4.1.1.3.1 mitos 4.1.1.3.1.2 corpo transcendente-cultural 2.3.1.6.1 corpo mental 4.1.1.3 percepção do Cosmos 2.3.1.6 sentimento de culpa / avaliação 2.3.1.6.2 corpo emocional-mental 4.1.1.3.2.1 corpo espiritual ou transcendente 4.1.1.3.2 morte / finitude 2.3.1.7.1 corpo emocional 2.3 efeitos do medo 4.1.2 pessoas que influenciaram 2.3.1.7.2 corpo físico 2.3.1.7 sofrimento 2.3.1.7.3 corpo físico-emocional 4.2.1.1.1 corpo emocional 2.3.1.7.4 corpo emocional-mental 4.2.1.1.2 corpo emocional-mental 4.2.1.1 percepção do Eu 4.2.1.1.3 corpo transcendente 2.3.1.8 somatização 2.3.1.8.1 corpo físico

4.2.1.2.1 corpo mental 4.2.1.2 percepção dos Outros 4.2.1 razões para não ter medo 2.3.2.1.1 corpo cultural 4.2 causas do não ter medo 2.3.2.1 anulação da diferença 4.2.1.3.1 corpo emocional 2.3.2.1.2 corpo emocional

4.2.1.3.2 corpo físico 4.2.1.3 percepção do Cosmos 2.3.2.2 criação de dependências 2.3.2.2.1 corpo emocional

4.2.1.3.3 corpo transcendente 2.3.2.3.1 corpo mental

4.2.2 pessoas que influenciaram 2.3.2.3.2 corpo emocional 2.3.2.3.3 corpo emocional-mental 4.3 perguntas do grupo 2.3.2.3 dificuldade de comunicação que ficam em aberto 2.3.2 na relação os Outros 2.3.2.3.4 corpo físico-emocional 5.1 para a conservação social 2.3.2.3.5 corpo emocional-cultural

5.2.1 na relação com o Eu 2.3.2.4.1 corpo emocional 5.2.2 na relação com o Outro 5.2 para o desenvolvimento humano 2.3.2.4.2 corpo mental 5. PARA QUÊ 2.3.2.4 fuga das situações 5.2.3 na relação com o Cosmos 2.3.2.4.3 corpo físico 2.3.2.4.4 corpo físico-emocional 5.3 perguntas do grupo que ficam em aberto 2.3.2.5 resistência ao compromisso 2.3.2.5.1 corpo cultural

2.3.3.1.1 corpo cultural 2.3.3 na relação com o Cosmos 2.3.3.1 criação de um mundo irreal 2.3.3.1.2 corpo mágico

2.4 perguntas do grupo que ficam em aberto

II. CENTRAR

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Capítulo 2 Descobrir os próprios caminhos

I. PROCESSO DA PESQUISA Introdução Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos 1. Eu Pessoa – Já alguma vez? 2. Eu Educadora – Memórias Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR O sentido do caminho Para abrir um novo caminho

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“Entre em si mesmo e examine as profundidades de que brota a sua vida. Neste manancial encontrará as respostas às suas perguntas. Tome-as como são, sem interpretações” – Rainer Maria Rilke.

Este capítulo, o meu referencial interno na pesquisa, é uma das respostas dadas neste trabalho a três desafios diferentes mas, aqui, também complementares: o desafio de revelar os interesses, motivações e descobertas que estão a montante do processo de investigação; o desafio de conciliar a dualidade dos papéis de observador e observado/objecto de observação; o desafio de não limitar a análise indutiva na escolha dos temas e, por isso, entrar no mundo dos sujeitos (de ir ao campo), sem nenhuma, ou quase nenhuma, revisão da literatura (Bogdan & Biklen, 2006, Martínez Salgado, 2006; Jaramillo, 2006b). Foi, por isso, composto com os saberes e sabores (conhecimentos extra-teóricos e empíricos), que resultaram dessa primeira fase do trabalho de campo64. Dele também nasceram os temas que começaram por orientar a leitura dos autores e que depois (e numa perspectiva de ecologia de saberes), vieram a constituir as linhas de orientação da pesquisa – em função do seu desenho metodológico; em função da abordagem e observação da segunda fase do trabalho de campo.

É dos capítulos mais pequenos desta tese, mas, porque é resultado de um processo de busca interior, também é o que demorou mais tempo a redigir. Integra dois textos diferentes. “Eu Educadora – memórias”, de construção mais fácil, foi, como o nome indica, um trabalho feito a partir de uma selecção de recordações da minha vida de educadora. O outro, “Eu Pessoa – já alguma vez?”, de muito mais difícil construção, foi o primeiro de todos os textos públicos que escrevi. Parte das minhas histórias de vida e está escrito sob a forma de uma metáfora. Para explicar o que e como foi esse processo de criação, refaço algumas “folhas soltas” do meu diário da pesquisa:

Sobre as histórias de vida: Preciso de muito tempo de “treino” (e coragem também) para ser capaz de deixar fluir o pensamento e escrever tudo aquilo que surge. Num percurso cheio de avanços e retrocessos, confronto-me com duas situações. Quando a auto-censura se instala, os resultados são repetitivos

64 A razão por que nos dois textos deste capítulo, quando há alusão a alguns autores, não estão colocadas quaisquer referências bibliográficas. Quis manter na apresentação dos textos o mesmo princípio que norteou a sua redacção.

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e “medrosos” – dão notícias do sabido, do já alcançado, não se aventuram em terrenos desconhecidos ou difíceis. A (minha) mente, por si só, é capaz de encontrar 1.000 explicações para evitar ir muito mais a fundo. É tão fácil enganar-nos(me) a nós(mim) mesmos(a)! Mas, quando me permito, timidamente, ouvir a mim mesma, os resultados começam a ser espelho da minha alma. (...) Há dias em que as páginas escritas se sucedem umas às outras. Há dias em que é muito duro confrontar-me com as minhas sombras – e o estômago aperta. E, nesses dias, surge a dúvida: “Não estarei a exagerar? Não são todas as pessoas assim? Até parece que não sou uma pessoa normal”. Mas depois, e mais uma vez, confronto-me com a necessidade de fazer o que tantas vezes digo aos meus alunos: “Se queremos dar luz a um quadro, temos de lhe colocar a sombra. Temos de encarar as nossas Sombras para descobrir a nossa Luz”. Só me resta uma saída – continuar. (...) Começo a ficar envolvida e comprometida com o que escrevo. Dou-me ao direito de chorar e rir.

Sobre a metáfora Continuando a esquecer todas as leituras de autores, preciso escrever um texto sobre o tema do medo a partir das minhas histórias de vida. Devo recorrer a metáforas, à poesia, a desenhos. É-me sempre tão difícil começar uma nova etapa! E o pior é que preciso passar dos textos íntimos de descoberta e sofrimento para um texto de metáforas – e que vai ser tornado público! (...) Dou-me muito tempo para incubação. Já que não me organizo por dentro, ponho em ordem o que está fora: arrumo prateleiras, reordeno a minha biblioteca, classifico dossiers... Os dias vão-se sucedendo e não acontece nada. Não consigo encontrar a ideia ou o fio condutor do trabalho. Os dias vão passando. Quando já não sei mais como fazer, sento-me e releio, mais uma vez, as minhas histórias de vida e, simplesmente, sublinho o que considero serem as palavras e as ideias fundamentais. Organizo essas ideias e palavras em categorias, ordeno-as numa sequência que corresponda à minha experiência de vida e dou um título a cada uma delas. Procuro símbolos para cada uma das categorias: alguns, encontro-os nos meus textos; outros, vou buscá-los ao espaço da casa em que habito – a imagens, objectos, brinquedos... Começo a escrever o texto. Mas nem todos os dias são dias de produção – preciso de tempo, de silêncio, de não ser interrompida... Algumas partes saem “a ferros” (há dias em que passo toda a tarde à volta de duas

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páginas; às vezes até são mesmo dois parágrafos) – remoo e não avanço. Outras são escritas de um só fôlego. Saiu aos arranques – como quem vomita. A imagem pode não ser muito bonita ou elegante, mas é a que vem. Não me lembro de um texto que me tivesse sido tão difícil organizar. Mas é o que consegui fazer até agora. A primeira leitura final é inquietante. Sinto que há ainda muito para fazer – está cheio de repetições e de ideias desorganizadas. Também acho que tem algumas coisas interessantes. Deixo, por isso, passar alguns dias antes de o voltar a ler. Dou-o também a ler a quem me pode ajudar. Com a distância criada, a segunda leitura traz satisfação. Sinto que o trabalho, de facto, jorrou de dentro. É por isso que ele custou tanto. É o resultado de um processo muito longo. Ainda que não esteja completo, para já, está pronto.

Espero que façam sentido para quem as lê, como fizeram para mim depois de as ter escrito.

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1. Eu Pessoa: Já alguma vez?

Ilustração II.1 – Os próprios caminhos.

The Te of Piglet

Animal so shy and small, Dreaming you were Bold and Tall - You can be a guiding star, You hesitate, all sensitive, If you make the most of Who You are. Waiting for a chance to Live. And the sensitivity That you’re now ashamed to see Time is swift, it races by; Can be developed even more, Opportunities are born and die... So you can find the hidden doors Still you wait and will not try - To places no one’s been before. A bird with wings who dares not rise and fly. And the pride you’ll feel inside Is not the kind that makes you fall - But that You you want to see It’s the kind that recognizes Is not you, and will never be. The bigness found in being Small. No one else will ever do The special things that wait inside of you. Benjamin Hof

Nos frascos pequeninos – a importância das coisas banais

Já alguma vez ouviu dizer que é nos frascos pequeninos que se guardam os melhores perfumes e os piores venenos? Tal como com perfumes e venenos, também as coisas mais importantes da vida se revestem muitas vezes de uma aparência quase insignificante mas, no entanto, poderosa – para o melhor, e para o pior.

Contudo, e no que diz respeito aos venenos, nem sempre é fácil distinguir até que ponto um veneno é um veneno. Todos sabemos que, quando usado na medida certa, também pode ser capaz de curar. Por isso, o que o torna perigoso não é tanto o conjunto dos ingredientes da sua composição, mas a nossa ignorância em lidar com eles. A fronteira entre o seu poder curativo e o seu poder destruidor só será ultrapassada se não soubermos como doseá-los.

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Tenho 1.50 m de altura. Quando era criança só em casa me diziam “que grande tu estás!”. Em todos os outros locais da minha vida de menina sempre fui dos mais pequenos – dos que se sentavam nas primeiras filas da sala de aula para poderem ver para o quadro; dos que precisavam de ajuda para chegar aos locais mais altos; dos que sentiam a bola passar por cima quando se jogava ao volley ou ao “mata”; dos que se sentiam meio engolidos no meio de uma multidão... Mas sempre me disseram: “Não te preocupes, a altura não é o importante. Pode ser-se grande de outras maneiras”.

À medida que fui “crescendo”, fui deixando de acreditar nos contos de fadas – tornei- me mais realista, mais adulta, “maior”. Mas demorei algum tempo a perceber que “as outras maneiras” também queriam dizer que a sabedoria e o encanto desses contos não se encontravam na chegada mais ou menos gloriosa da fada que, de um momento para o outro, tudo muda, tudo resolve e a todos deixa “felizes para sempre”, mas antes na sua capacidade de antever o potencial de coche que existe em cada abóbora.

Assim, e num tempo em que o peso dos media é enorme; num tempo em que tanta gente nova quer a fama pela fama e, por causa disso, é capaz de se expor para lá dos limites da sua intimidade e integridade; num tempo em que a importância dos países, das instituições e das pessoas e das coisas, se pauta pelo PIB, pelos orçamentos, pelos sinais exteriores de riqueza, pelo seu valor de troca, julgo que é tempo de trabalhar o escondido, o desconhecido, o esquecido, o que não tem preço.

É por tudo isto que hoje quero reflectir sobre a importância das coisas pequenas e das coisas simples: são elas que mais vezes fazem parte da nossa vida; é delas que mais precisamos cuidar; é nelas que mais precisamos encontrar sentido – para que a vida se não torne, agora sim, demasiado pequena, demasiado simples, demasiado banal.

Mas, muito embora as coisas pequeninas não me obriguem a olhar para cima, não me abafem, não me façam sentir (ainda) mais pequena; muito embora eu seja capaz de as olhar nos olhos (sem erros de paralaxe!) e, com elas, ser capaz de descobrir potenciais e, aí sim, transformar, nem sempre é fácil. Diria mesmo, é para as coisas pequeninas de que mais coragem se torna necessária – porque são as que mais se

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escondem; porque são as que estão dentro de nós; porque exigem uma capacidade de abertura ao desconhecido que, muitas vezes, nos é difícil e tememos encontrar.

Há duas expressões de Cristo que me atraem. Uma é “não temais”; a outra é “a paz seja convosco”. E, curiosamente ou não, as duas são insistentemente repetidas após a ressurreição. Isto é, após um tempo de vida que leva à morte, e após uma morte que leva, de novo, à vida.

É nisto, então, que gosto de pensar. A vida é feita de ciclos e cada ciclo contém em si mesmo a sua morte e a sua ressurreição. E, para que tal aconteça, é preciso não temer e, com isso, ganhar a paz.

Julgo que muitos de nós, exactamente porque tememos, evitamos os processos de morte mas, com isso, perdemos também o tempo da ressurreição e da luz e, por inerência, a paz. Como vivemos, então?

O meu medo, o meu limbo?

Já alguma vez viu uma criança a aprender a andar? Quando ela começa a ser capaz de largar a mão da mãe, a ser capaz de deixar de se agarrar às coisas e, por isso, conseguir dar alguns passos sozinha? É tão bonito e entusiasmante. A sua cara de alegria e, ao mesmo tempo, de aflição; os seus passos que surgem como que delicadamente arrancados; o seu andar simultaneamente audacioso e “tremelicante”. Não deixa ninguém indiferente.

Mas também termina sempre da mesma maneira, não é? Por muito que consiga avançar, há um momento em que encontra um obstáculo, uma cadeira por exemplo, não consegue desviar-se e cai... e chora.

Já alguma vez reparou no que os adultos muitas vezes lhe dizem? “Bate na cadeira, a cadeira é má!”. Como se a culpa fosse da cadeira. Como se a responsabilidade não fosse sua. Tão só porque não se soube desviar. Como se houvesse necessidade de alguma coisa ter culpa por a criança (ainda) não saber andar. É tão mais fácil! O mal não está em não saber andar, em ainda se estar a aprender. O problema é buscar culpados fora de nós mesmos, querer evitar reconhecer que a única responsabilidade (que não é culpa!) está dentro de nós.

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Também quem tem de se sujeitar a exames médicos melindrosos e com resultados duvidosos sabe bem que, pior que uma má notícia, é o tempo de espera por essa notícia. A expressão “pelo menos digam-me alguma coisa” já terá sido dita por alguns de nós e, se assim foi, somos certamente ainda capazes de sentir no nosso corpo a ansiedade e angústia então vividas. No entanto, e nas outras situações de vida mais banais, muitas vezes optamos por atitudes bem diferentes. Procuramos fugir e não ver aquilo que até está entrando pelos olhos dentro. Como se assim pudéssemos escapar ao sofrimento.

É o fazer da nossa vida um estado de limbo – não é céu, não é inferno – é uma espécie mista de quem está à porta, mas, por medo, não entra no paraíso, mas também dele se não afasta.

Quantos de nós já pensámos, sentimos, ou dissemos “tenho medo!”? Em que medida é o medo que dita os nossos actos? Em que medida é o medo que traça o caminho da nossa existência? E não estou a falar em patologias ou fobias. E também não estou a falar daquele medo que nos faz sentir um frio na barriga, que nos faz suar as mãos, que nos faz tremer as pernas ou nos prende a voz quando nos encontramos perante o perigo.

Estou a falar do medo que está presente nas coisas banais. Estou a falar daquele medo, bem mais escondido (ou inconfessável), e, por isso, também mais esquecido e disfarçável – aquele que faz com que nos demos ao fracasso, aquele que nos coloca barreiras, limites e impossíveis, aquele que nos faz optar pelo que, na verdade, não queríamos. Aquele medo que existe em cada um de nós e que só é perigoso quando, exactamente, escolhemos não o olhar nos olhos, não o enfrentar disfarçando-o e, com isso, o deixamos comandar o nosso próprio destino.

Vamos lá a ver. Procuremos fazer um exercício de memória. Quais eram os meus sonhos em criança? O que queria ser quando fosse grande? Quantas vezes já disse “um dia vou...” e esse dia nunca chegou? Quantas vezes prometi a mim mesma “nunca mais...” e isso é que nunca aconteceu? Quantas vezes me imaginei a fazer isto, e mais isto, e ainda mais aquilo e tal nunca passou da minha imaginação?

O que terá acontecido? Mudei de opinião? Para melhor? Ou tive azar e “não me deixaram”, “a vida não me deu oportunidade”?

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Terá sido que alguém não me deixou, ou terei sido eu que não me permiti? Terá sido azar, ou terei eu mesmo escolhido ser assim?

Assumir nas mãos as rédeas da própria vida significa assumir a responsabilidade total pelas minhas decisões, pelo que me acontece, pelos meus actos, pelo meu futuro e, especialmente, pelo meu presente.

Não será que tantas vezes se tem medo daquilo que mais se quer? Não será que tantas vezes se escolhe exactamente aquilo de que menos se gosta?

Como deixamos que isto aconteça na nossa vida?

Tipos de Medo – ser rato que foge

Já alguma vez viu um rato, daqueles que nos roem as roupas nas casas antigas?

O que aconteceu quando o encontrou? Quem fugiu primeiro? A pessoa, ou o rato? Ou os dois?

Mas já pensou também na diferença que existe entre um rato “de verdade” e um rato dos desenhos animados? Do primeiro, ninguém quer ouvir falar – a não ser para cobaia de laboratório. Do segundo, não há quem diga que não é “bonitinho”, “riquinho”, “engraçadinho” – tantas vezes o verdadeiro herói que nem pelo gato se deixa enganar.

Acho que raras vezes na vida terei visto um rato (“de verdade”) passeando-se calmamente no jardim ou na rua. Parece que anda sempre correndo afogueado. Afinal, fugindo! De que maneira me sinto também rato?

Sempre que vivo sobrecarregada de coisas – às vezes parece que a vida nos engole com trabalhos, projectos e responsabilidades... Outras vezes carrego literal e fisicamente tudo nas costas – as nossas pastas e carteiras estão sempre demasiado cheias. E tudo coisas imprescindíveis!

Sempre que vivo sobrecarregada com o peso do sentido do dever – a agenda cheia de compromissos, as eternas e imensas listas de coisas para fazer, a caixa de

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correio electrónico atafulhada de emails para responder... Tanta coisa que TENHO que fazer! Tão poucas aquelas que QUERO fazer, que tenho PRAZER em fazer!

Sempre que só me permito viver quando tudo o resto termina, quando os outros e as coisas me dão licença para viver. E depois queixo-me: “o barulho é tanto... não dá para fazer!”, “estou tão cansada!”, “não me apetece!”...

Sempre que vivo demasiado presa aos dez mandamentos e desligada do sentido do amor. Aquele que é, afinal, o grande mandamento do tempo novo. E amor, primeiro, a mim própria.

Outras vezes até parece que a vida vai correndo de feição. Tudo tranquilo, o sucesso está lá, nada parece perturbar demasiado a existência e fazer pensar muito sobre o assunto. No entanto, um descontentamento contente (o oposto do amor de Camões e do sentido da existência criativa) fala baixinho do mais profundo do Ser.

E a pergunta permanece: não será que, como professora, como educadora, estou a ensinar aquilo que, afinal, preciso de aprender? Não será que sei todas as receitas, que conheço todas as mezinhas mas, no fundo, não as sei usar ou, pelo menos, não as consigo aplicar em mim? Onde fica a congruência de se ser professor quando, no mais íntimo de nós mesmos, sabemos estar a ensinar, ou a exigir, o que nós não fazemos ou não tentamos fazer?

Em suma, ser rato significa fugir ao esforço de mudança, evitar o confronto com o passo doloroso de buscar novos caminhos; significa evitar o assunto procurando desculpas.

Mas, atenção, aquilo que se procura, encontra-se – e às vezes mais do que se procurava!

Os efeitos, consequências – ser galinha num círculo de giz

Já alguma vez hipnotizou uma galinha?

É fácil. Primeiro faça um círculo de giz no chão. Depois pegue numa galinha, coloque-a dentro do círculo de giz, agarre-a pelo pescoço e obrigue-a a olhar para o

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círculo durante alguns minutos – não é preciso muito. Largue o pescoço da galinha. Observe: ela não foge, permanece olhando o círculo de giz. Dê agora um safanão à galinha – ela acorda e segue a sua vida.

Não sei se é muito adequado colocar aqui uma história de galinhas. Mas parece-me que há nela algumas palavras e ideias sobre as quais vale a pena reflectir. E vou só enunciar três:

1. Uma galinha – é considerada, habitualmente, um dos animais mais estúpidos. Em inglês, chamar a alguém “chicken” é o mesmo que chamar-lhe medroso, medricas. E ninguém gosta de ser assim chamado. 2. O círculo de giz – fechado, aparentemente intransponível, mas também, e afinal de contas, tão demasiado simples e fácil. 3. O safanão – aparentemente violento mas, simultaneamente, libertador.

Estar no círculo de giz significa viver na incapacidade de enfrentar obstáculos que, só aparentemente, são intransponíveis. É viver na repetição de nós mesmos – envolvidos em rotinas, talvez numa aparente busca da perfeição, numa aparente competência e naturalidade que, no fim, escondem e acarretam paragens e retrocessos, perda de eficácia, perda de satisfação, perda de espontaneidade, perda de coragem, perda de legitimidade.

Estar hipnotizado no círculo de giz é ter o medo espelhado no corpo, é ter um corpo em permanente crispação: um corpo rígido de quem tem medo de se libertar; um corpo fechado de quem tem medo de enfrentar o desconhecido e se agarra ao que domina; um corpo que não pisa o chão com firmeza, que parece estar sempre uns palmos acima da terra; um corpo encolhido, em permanente posição de defesa; um corpo passivo, carente de energia e luz; um corpo duramente silencioso de quem tem medo de verbalizar, medo da própria voz, medo, afinal, de existir.

Estar no círculo de giz é ser boneco abanado pelo vento de quem parece ter controlo sobre tudo, excepto sobre a própria vida. É engolir a própria vida. É o isolamento e a solidão de quem não se atreve a passar o risco, de quem não se aproxima das coisas, das situações e da vida e fica, apenas, olhando. É a afectividade escondida e esquecida, não comprometedora, não sofredora, mas também não vivificadora.

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Estar no círculo de giz é ser feito de celofane – transparente, invisível, não reconhecido, não lembrado. É esquecer os sonhos perdidos, os sonhos que se situam para lá do círculo. É ignorar que o risco de giz em que nos colocámos pode ser um mundo, mas não é O mundo.

Porque o SER não se cala – ser pato que nada

Já alguma vez reparou num pato a nadar?

Tão tranquilo, tão deslizante, tão harmonioso. Parece ser todo ele a imagem e o símbolo da paz.

Mas já pensou que o que permite esse movimento e essa tranquilidade não é mais do que a permanente agitação das suas patas no interior das águas? Será que paz e inquietude não são, cada uma delas, condição para a existência da outra?

Porque é difícil calar o Ser, a inquietação sempre permanece:”Onde estás tu no meio de tudo isto? Onde fica a tua fidelidade a ti próprio?”

Às vezes ser pato que nada revela-se no sentir da presença de uma bola dentro do peito. Como se estivesse pronta a rebentar, mas que não rebenta... ainda. Regressa para dentro do meu peito.

Outras vezes revela-se numa atracção, em dois sentidos, pela loucura. É o sentirmo- nos atraídos pelas coisas ou pessoas com vidas diferentes, ou sentir que se atrai tais coisas ou pessoas. Como se, no íntimo, se soubesse que é exactamente aí que mais se é.

Outras vezes também é uma ânsia imensa de sair e viajar – de dar o salto para o desconhecido, para aquilo que é inequivocamente diferente do que se é (ou do que se vive); talvez porque se pressente ser exactamente aí que se é igual.

Outras vezes, ainda, é o sentido angustiante do tempo perdido. É o sentir que a vida nos está dando presentes e que nos limitamos a tocá-los, talvez a abaná-los, mas nunca a abri-los – por falta de coragem em tirar-lhes a fita, rasgar-lhes o papel e enfrentá-los.

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Outras vezes, finalmente, e quando todos os outros falharam, é a vida que nos dá o safanão – como à galinha – e nos obriga, contra tudo, contra todos, contra nós mesmos, a mudar.

O que fazer? Ser Vasco da Gama

Já alguma vez ouviu falar de Vasco da Gama?

Claro, como não? Somos Portugueses!

Mas é que às vezes desconhecemos tanto da nossa História que talvez valha a pena lembrar que “Vasco da Gama” não é só nome de ponte, mas nome de quem descobriu caminhos. Caminhos que levavam onde outros já tinham chegado; caminhos que se julgava levarem a lugares sem retorno; caminhos que poucos quereriam, ou sonhariam, sequer, ser possível descobrir.

Mas porque ele descobriu esse caminho, o seu caminho, Portugal ficou mais rico, a Humanidade ficou mais rica, o mundo ganhou a capacidade de se sentir mais perto. E, se não fosse por isso, pela descoberta do seu caminho (o nosso, Português), talvez nunca ninguém tivesse algum dia ouvido falar dele.

Como estaremos nós na descoberta dos nossos próprios caminhos, da nossa história pessoal? Terei já, pelo menos, descoberto onde estou, vislumbrado para onde quero ir, e, com isso, começado por me fazer ao caminho?

Ser Vasco da Gama é o não se ficar pelo que já se sabe. Ser Vasco da Gama é estar-se disponível para partir – ainda que não se saiba qual é o caminho; ainda que seja o caminho que, exactamente, é preciso descobrir.

É, por isso, estar aberto e ter coragem de fazer um trabalho sobre mim mesma, um trabalho de criação pessoal – com tudo o que isso implica de descoberta da luz e de aceitação das sombras. É aceitar abrir espaços interiores de privacidade e intimidade. É aceitação (com carinho) das debilidades pessoais. É a capacidade de compreender que as fraquezas e as fragilidades se podem tornar forças se houver, pelo menos, a disponibilidade e a coragem de enfrentar.

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Ser Vasco da Gama é também ter a coragem e a ousadia de deitar fora – o que já não presta, o que já serviu mas não serve mais: ideias, preconceitos, atitudes, comportamentos. É estar preparado para mudar – deixar para trás, deixar ir, não reter, avançar e ficar livre.

É o dar-se tempo para pousar e repousar, pois é o dar-se o tempo que permite aceder ao espaço interior de riquezas por descobrir. Mas é também o saber que nenhum tesouro pode ser descoberto sem que se suje as mãos para o desenterrar.

É perceber que o esconder faz gastar mais energia do que o deixar que as coisas venham à luz.

É não ficar à espera; é aprender a dizer não. É ser pirata na própria vida, ganhar coragem de ir contra convenções e contra leis, inclusive contra aquelas que mais satisfazem o nosso ego.

É perceber que nem sempre tudo vai correr de feição. É saber que há que estar preparado para todos os “Adamastores” – os que vivem dentro de nós, mas também os que vivem fora. Mas é saber também que sempre haverá muitos “Velhos do Restelo” – que vivem dentro, e também fora de nós.

É perceber que a procura e descoberta desse caminho novo é um tempo de sofrimento, de luta. É o perceber que, quando se toca uma ferida, ela dói. É passar muito tempo em terra deserta, ou muito tempo em que só mar se avista – em que parece que o caminho nunca tem fim, em que se regressa, vezes sem conta, perdidos, ao mesmo local.

Mas é também correr o risco de não se ser Vasco da Gama, mas Cristóvão Colombo. Isto é, de percebermos que os nossos companheiros e a viagem não são aqueles que pensámos que seriam, mas que, com eles, podemos acabar por descobrir coisas diferentes do que procurávamos, podemos acabar por descobrir o que (talvez) nem sonhássemos existir.

Mas também é a convicção, sempre presente, ainda que também escondida ou por vezes esquecida, de que vale a pena e que nada nos pode impedir porque, muito simplesmente, “eu sou capaz!”.

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Resultado – ser David Copperfield

Já alguma vez leu “David Copperfield”?

O livro, sim. Começa assim: “Nasci. Se me tornarei herói da minha existência, ou se esse lugar será ocupado por outro, estas páginas o revelarão”.

Então, ser David Copperfield é ser o actor principal do livro da nossa vida. Tão simples como isso. Julgo que temos todos gasto demasiado tempo à procura e na construção dos papéis sociais que nos dizem que temos de desempenhar. Raras vezes temos a coragem de perceber que nada no meu exterior se altera se a mudança não começa no meu interior.

É a descoberta do sentido do Ser, é regressar a casa – uma casa renovada pelo caminho realizado -, é a descoberta do sentido do Ser, é a maior consciência do sentido da minha existência.

Gandhi dizia que “cada um dos nossos actos é ditado por uma de duas coisas – ou pelo Amor, ou pelo Medo”. Não é o ódio que é o oposto do amor, mas o medo. Ódio não é mais que ausência de amor. O medo é o seu oposto.

Então, trabalhando no sentido de erradicar o medo das nossas vidas, em dimensões e áreas cada vez mais abrangentes, chegaremos ao Amor. E o fruto do amor é a Paz.

“Não temais”; “A Paz seja convosco” – são, afinal, uma só e a mesma saudação. A única forma de VIVER!

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2. Eu Educadora: Memórias

Pois bem, ainda que pareça mentira, existiu, em tempos, um ser humano que não tinha medo pela simples razão de nunca o ter experimentado. O rapaz, chamado João, costumava perguntar ao pai: - Diz-me lá, papá… que é que se sente quando se tem medo? Sente- se um formigueiro…? É como quando se dorme e não se vê nada? E que forma tem o medo? É volúvel, como o fumo? Ou é pesado, como uma pedra?... - Mais cedo ou mais tarde saberás como é – respondia-lhe o pai – e, então, veremos se és tão valente como agora… À medida que passavam os anos, a curiosidade de João foi crescendo e, quando teve idade para viajar pelo mundo, não quis esperar mais. Pôs uma trouxa às costas e abandonou a povoação, disposto a conhecer o medo, onde quer que ele estivesse. Da história do “João sem Medo”

“Querem ouvir uma história?” É assim que começam alguns dos momentos mais mágicos que um educador vive com as crianças. E ouvimos as cores e vemos os sons e tocamos nos cheiros...

Ilustração II.2 – Querem ouvir uma história?

Queria contar aqui algumas histórias. É assim que agora eu queria começar. Não serão assim tão mágicas. Ou serão? Têm a magia da vida e das memórias do vivido. São histórias de vida de que, de algum modo, também fui protagonista em diferentes contextos e tempos da minha vida profissional. Nalgumas como impulsionadora dos acontecimentos; noutras como mera observadora. Nalgumas em que o tema do medo está bem explícito; noutras em que ele aparece um pouco mais “disfarçado”. Mas em todas encontro os seus sinais. E é isso que me tem vindo a dar a certeza de que, como educadores, precisamos encarar o medo como um “companheiro de percurso” que precisa da nossa atenção.

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A Paz

Há mais de vinte anos atrás, numa escola da cidade do Porto, foi proposto a um grupo de crianças de 5 anos que fizessem desenhos sobre a Paz. Entre todos os desenhos que a educadora desse grupo me mostrou na altura, lembro especialmente três. As legendas ditadas pelas crianças eram estas:

- A paz são balões que sobem para o céu. - A paz é quando a minha mãe à noite me vai dar um beijo à cama e me tapa com os cobertores. - A paz é quando o meu pai me diz “vai-te embora, deixa-me em paz”.

O mundo é assim! Ela tem de se defender!

Trabalhei muitos anos com famílias de crianças em idade de pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico. E não é segredo para ninguém que esse trabalho é também um dos mais difíceis que um educador tem pela frente. Como alguém diria, “os pais são as crianças mais difíceis”... Escola e famílias, confrontando-se muitas vezes em situações de forte carga emocional, podem acabar por desencadear relações mais ou menos conflituosas. Os professores/educadores, porque se sentem frequentemente postos em causa nas suas competências; os pais porque, também eles inseguros do papel a desempenhar, procuram encontrar no exterior as razões que justifiquem os seus próprios comportamentos tantas vezes descomprometidos.

A criança tinha oito anos. Era uma menina alta, esguia, uma cara “mistura de anjo e de boneca sofisticada”, filha de médicos. Tudo contribuía para que fosse inteligente, bem relacionada, com imenso poder de persuasão e de comando.

Muitas das outras meninas esvoaçavam constantemente à sua volta. Muitos dos meninos se perdiam de amores e paixão. Todos eles capazes de “dar um braço” para serem aceites, ou se manterem, no seu círculo privilegiado de amigos pois poucos eram os que aí conseguiam ter “lugar cativo”. De acordo com a sua capacidade de cumprirem as “tarefas” que lhes fossem designadas, tanto podiam ser parte, como, no dia seguinte, excluídos e, com isso, desprezados e humilhados.

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Poucos, muito poucos, escapavam à sua influência e viviam, sem sofrimento, distantes do seu “território”.

Foram muitas as tentativas para mudar a situação. Primeiro, com as crianças – mas não houve grandes resultados. Depois, com os pais da menina a quem, numa conversa convocada pela professora, foi exposto, com a maior delicadeza de que se foi capaz, tudo o que estava a acontecer.

Surpreendentemente (ou não?), a mãe disse: “É assim mesmo. Vivemos num mundo-cão, a minha filha tem de se defender. E ela é uma vencedora!”

Ida ao telhado

Há vários anos atrás (no tempo em que os cursos de educadores eram de educadoras), conversávamos numa aula sobre o quanto as crianças se aventuravam mais no desconhecido que nós, adultos. E uma aluna disse: “isso pode ser verdade para as pessoas mais velhas, mas nós somos jovens e, na nossa idade, ainda se conserva esse espírito”.

A aula decorria no primeiro e último piso de um edifício antigo. Fiz-lhes, por isso, uma proposta: “se assim é, desafio uma das alunas desta turma a sair pela varanda desta sala e ir ao telhado da escola”.

“Está a brincar”, disseram muitas. “Não, é uma proposta para levar a sério”, respondi. “Desafio uma das alunas desta turma a sair por aquela varanda e ir ao telhado da escola”.

A confusão instalou-se. Todas falavam ao mesmo tempo:

- Que disparate! E para que é que isso nos serve? - O que é que as pessoas que estiverem lá fora vão dizer? - Se estivesse de sapatilhas... - Se hoje tivesse vindo de calças em vez de saia... - Se...

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Fui escrevendo no quadro estes comentários à medida que eles foram sendo feitos. E, como eu continuava a insistir na proposta, uma das alunas disse: “Eu vou!”

Dirigimo-nos para a varanda da sala. Ao chegarmos lá fora “descobrimos” que a varanda até estava ao mesmo nível do telhado-cobertura das saídas das salas do rés-do-chão. Era muito fácil chegar ao telhado. Por isso, bem agarrada ao corrimão da varanda, a aluna alçou uma perna de cada vez e, sem grande esforço nem perigo, estava no telhado. Logo depois, e sem grande esforço também, voltou para dentro da sala.

- Oh, assim é fácil! - Isso também eu fazia! - Não era desse telhado que estávamos a falar! - ...

Relemos as frases que tinham sido escritas antes no quadro e tivemos um bom momento de reflexão. De facto, era fácil; de facto, qualquer um poderia ter feito; de facto, ninguém tinha especificado de que telhado se estava a falar; de facto...

Mas a verdade é que, num grupo de 50 pessoas, só uma se atreveu a tentar. Mais do que isso, num grupo de 50 pessoas, só uma saiu do seu lugar para ir ver como se poderia ir ao telhado. Todas as outras se tinham posto a “conjugar os verbos no imperfeito do conjuntivo”, sem se darem ao trabalho de verificar quão difícil, impossível ou perigoso era o desafio que lhes tinha sido colocado.

Relação com a vida

Durante muito tempo, também no curso de educadores de infância, só leccionei disciplinas que se situavam no primeiro e no terceiro (e último) ano do plano curricular. Conhecia os alunos no início da sua formação, tínhamos contactos acidentais ao longo do ano seguinte, e voltávamo-nos a encontrar em contexto de sala de aula quando chegavam ao terceiro.

Como tinham mudado! Se, no primeiro ano, era clara a sua imaturidade, ingenuidade e indisciplina, também era bem patente a vontade de trabalhar para dar vida aos seus sonhos. E muito embora fossem poucos, até então, os seus contactos

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com as crianças, havia sempre um encantamento e uma capacidade crítica (às vezes até demasiado apurada), frente a qualquer situação que considerassem menos adequada – pelo menos relativamente aos seus próprios padrões de exigência. Talvez por isso sempre me fascinou trabalhar com os alunos nesta fase da sua formação – é um tempo de descoberta em que nada parece impedir que se venha a acertar.

Mas encontrá-los de novo, já no terceiro ano, era sempre ocasião de imensas surpresas. Por um lado, porque era bem evidente o caminho percorrido, uma maior fundamentação, uma maior maturidade intelectual. Mas, por outro, já os sentia muito distantes da sua vontade de acertar, espartilhados que estavam por “regras institucionais” (quer elas fossem reais, quer também criadas por uma “galopante imaginação colectiva”) – muito mais dependentes daquilo que os outros (leia-se, as notas) ditassem como sendo o único modo (garantido) de fazer as coisas; com muito menos capacidade de arriscar; já com os primeiros sinais do desengano que se esconde por trás do discurso de que “uma coisa é a teoria, outra a prática” – o que é o mesmo que dizer, “uma coisa são os sonhos, outra a realidade e, entre os dois, escolhemos a segurança da segunda”.

Confiança

Acontece tantas vezes! Demora muito tempo para que os alunos deixem a posição de recostados nas cadeiras, pernas esticadas e braços cruzados sobre o peito (ganhando distância e “defendendo-se” do professor) e sejam capazes de se inclinar para a frente, com os olhos a brilhar, apaixonados por um projecto que, afinal, nos é comum!

Especialmente se nos aproximamos deles com propostas que saem um pouco fora dos padrões estabelecidos, a primeira reacção é desconfiar, criar muros, esperar para ver. Mas o pior é que, às vezes, alguns demoram mesmo demasiado tempo. E, por isso, quando, finalmente, “baixam a guarda”, quando se deixam entusiasmar e se comprometem, já muito se perdeu num tempo que é irrecuperável e nunca pode voltar para trás. Como se não entendessem(os) que entre a confiança cega (própria dos néscios ou de relações muito fortes e antigas) e a desconfiança total (própria de quem sempre suspeita e tem medo) há muitas outras matizes por que se poderia optar na relação entre as pessoas.

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Vista-se da pessoa que quer ser

Foi dos exercícios difíceis que propus a um grupo de alunos. Até porque, pouco mais que adolescentes, a preocupação com a imagem era muito grande.

Tratava-se de procurar compreender o que queremos para a nossa vida, de ter consciência de quem somos e de, sonhando, criar os próprios caminhos. Sugeri, por isso, que, na aula seguinte, cada um se vestisse da pessoa que queria ser. Isto é, se entendesse que na sua vida poderia haver falta de alegria e de espontaneidade, poderia vir vestido de palhaço. Se entendesse que na sua vida havia necessidade de maior simplicidade, poderia vir de pijama. Se entendesse que na sua vida havia necessidade de maior rigor, poderia vir vestido de cientista... E se vir vestido de alguma coisa pudesse ser demasiado difícil que, pelo menos, trouxesse um símbolo de um projecto de vida.

Na aula seguinte havia de tudo. Gente que tinha vindo vestida daquilo que queria ser. Gente que tinha trazido objectos. Gente que, pura e simplesmente, tinha vindo “assistir à aula”.

Começamos a aula a dançar, para nos sentirmos à vontade, para soltar, para que, entre todos, nos pudéssemos ver bem, para ganharmos energia. Depois sugeri que nos juntássemos em grupos de dois ou três e que cada um, num espaço de maior privacidade, contasse as suas razões e os seus projectos. E depois juntámo-nos todos e continuámos a conversar. E a conversa foi animada.

No fim fiz só uma pergunta: “se os nossos objectivos são assim tão claros (e isso já é MUITO bom), o que nos impede, então, de alcançá-los?” E um aluno respondeu: “o medo que tenho”. E perguntei: “É isso que nos impede de sermos quem somos? Temos medo de quê?”

O que se seguiu foi de uma “tranquilidade electrizante” que qualquer professor sabe que não acontece todos os dias. Num momento estávamos fazendo um brainstorming espontâneo, em que se partilhava, já não o que eram os objectivos de vida, mas aquilo que é bem mais difícil de partilhar: o que nos impede, ou nos limita, no revelar da nossa inteira humanidade.

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São estas algumas das minhas histórias de educadora. Serão, talvez, “histórias tristes”, mas, porque são histórias de inquietação, não deixarão, talvez, de ser mágicas. Não é daí que nasce a Paz?

E, para finalizar o infindável, talvez valha a pena uma reflexão muito breve, feita de pensamentos dispersos, sobre outros efeitos do medo na educação (na transmissão e na vivência de saberes), e que, por isso, corre o risco de se tornar uma caricatura de si mesma:

- Não estaremos ainda demasiado próximos daquilo que Freinet, há já tantos anos, assinalava como sendo uma escola preocupada em formar alunos, mas esquecida de educar pessoas?

- Gastamos tantas horas falando em cognição, conteúdos, conhecimentos, tecnologias da informação, rentabilização de recursos, avaliação de competências cognitivas e operacionais, mas pouco (ou nada) em criar espaços de reflexão sobre si mesmo, de auto-conhecimento, de interioridade e transformação pessoal!

- Não será que muitas vezes estamos simplesmente substituindo a velha fotocópia de estudo pelo novo “site” da disciplina, ou pela “banda larga” nas escolas, e, com isso, a querer(em) convencer-nos de que nos modernizamos e correspondemos ao apelo dos novos tempos?

- Qual a distância entre as reflexões sugeridas pelos resultados de tantas pesquisas e por pensadores preocupados com as ideias éticas de solidariedade, de responsabilidade e com a dimensão humana do desenvolvimento, e aquilo que, efectivamente, somos capazes de realizar nas nossas práticas docentes?

- Quantas vezes não somos como os professores a que Churchill se referia, mais interessados em encontrar o que ele não sabia do que aquilo que ele sabia?

- Fala-se tanto em preparar os alunos para o mercado de trabalho (para a Europa!), em desenvolvimento técnico-económico, em desenvolvimento sustentável, e tão pouco (ou nada!) em preparar pessoas conscientes do seu papel na construção de um mundo melhor e mais humano!

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Não será fácil ver, também aqui, os efeitos do medo? Do medo de errar, do medo de ser chamado incompetente, do medo de experimentar, do medo de ser chamado sonhador, utópico ou ultrapassado, do medo de fazer diferente, do medo de ir contra a corrente, do medo de ir contra os poderes estabelecidos?

Não será que, enquanto docente, tenho medo de falar de mim mesmo, do que se sinto, do que me emociona, do que vivo (não do que faço, do que li ou do que sei) evitando a real comunicação interpessoal a que um novo paradigma (também) docente inevitavelmente tem de conduzir?

Não será que, enquanto docente, formador, professor, educador, responsável ministerial… tenho medo de me questionar sobre os porquês e os para quê da minha actuação, tenho medo de conferir se, de facto, os resultados da minha acção correspondem às minhas intenções?

E se assim é, talvez valha a pena que nos comecemos também a perguntar se não estaremos a transformar o equilíbrio dinâmico dos pilares da educação, tal como em 1996 foram formulados pela Unesco (ser, saber, fazer, viver juntos), num “desequilíbrio resistente” de certas políticas e práticas educativas que, à custa da determinação em atingir, a qualquer preço, um também qualquer desenvolvimento técnico e económico e um pseudo rigor científico, promovem sim o desalento, o individualismo e a competição, destroem o ser humano e comprometem o nosso destino planetário.

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Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros

I. PROCESSO DA PESQUISA Introdução Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros 1. O Medo 1.1 Omnipresença do medo 1.2 Vivendo com medo 1.3 Síntese do medo 2. O Desenvolvimento Humano 2.1 A inquietação do Ser 2.2 Contornos do desenvolvimento humano 2.3 Síntese do desenvolvimento humano 3. Campo de Criação 3.1 Educação de Adultos 3.2 Criatividade 3.3 Motricidade Humana 3.4 Inter-relação de conceitos 4. Educação Criativo-Motrícia 3.1 Enfrentando o medo 3.2 ConVIVENDO com o medo

III. AGIR Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR O sentido do caminho Para abrir um novo caminho

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Quem se contenta com o que sabe, não sabe com o que se contenta – J. Gil da Costa

O propósito deste capítulo é dar espaço para o desenvolvimento de um trabalho feito “em parceria” com um grupo muito particular de actores da pesquisa – os autores de referência de todas as disciplinas que, de uma forma que procurei integrada, me ajudaram a um melhor entendimento do tema da investigação.

Depois de ter passado pelo processo de reflexão e escrita pessoal, que constituiu a primeira etapa do trabalho de campo e deu origem ao Capítulo 2 que inclui o texto “Eu pessoa: já alguma vez?”65, entrei numa fase de revisão da literatura que, não sendo fechada em si mesma, acompanhou, cresceu e se diversificou ao longo de todo o restante processo da investigação. Foi, por isso, uma fase de encontro com um grande número de autores a quem, na minha qualidade de simples aprendiz, me atrevo a chamar aliados, pois aclararam, fundamentaram e alargaram as minhas descobertas pessoais e, por via da ligação assim criada, ajudaram a criar caminhos e a ler o que se passou nas fases subsequentes da pesquisa (Patton, 2002, Bogdan & Biklen, 2006). Por isso digo ter sido um trabalho feito em parceria: tendo sido gerado na comunicação da imensidade de possibilidades que se abrem a partir das folhas dos livros, é fruto de uma relação de transcendência que ultrapassa os limites estreitos das grelhas do espaço e do tempo.

Assim, e na certeza do que até já vem da sabedoria popular, a do ponto que se acrescenta sempre que um novo conto se conta, procuro plasmar aqui o que foi a primeira parte de um processo de interacção criativa entre as palavras e expressões originais do pensamento dos autores e a minha introspecção como investigadora (Patton, 2002:226)66, de modo a que, no capítulo seguinte, possa continuar e completar

65 Tal como está referido no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma”, este trabalho foi realizado sem qualquer enquadramento teórico para não limitar a abertura ao que aí pudesse aí surgir (Patton, 2002). 66 Tal como já tive oportunidade de colocar no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.2 Etapa 1”, Patton escreve o seguinte sobre o processo de revisão da literatura: “A revisão da literatura mais relevante pode ajudar a enfocar um estudo (...). Contudo, rever a literatura pode criar dificuldades num estudo qualitativo porque, criando predisposições no pensamento do investigador, pode reduzir a sua abertura para o que surja dentro do campo. É por isso que, por vezes, a revisão da literatura pode não surgir senão depois da colecta de dados.

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esse processo de interacção com a leitura-triangulação dos dados recolhidos na segunda etapa do trabalho de campo.

Passo, então, a apresentar o que (a partir de campos tão diversos como os da Educação, Sociologia, Psicologia, Neurobiologia, Motricidade Humana, Criatividade, Comunicação, Espiritualidade, Literatura Universal, Sabedoria Oriental…), resultou da inter-penetração do trabalho pessoal com a revisão da literatura, construiu as combinações e as subdivisões do tema e constituiu o campo da pesquisa:

1. O Medo  Omnipresença do Medo  Vivendo com Medo

2. O Desenvolvimento Humano  A Inquietação do Ser

3. Campo de Criação  Educação de Adultos  Criatividade  Motricidade Humana

4. Educação Criativo-Motrícia  Enfrentando o Medo  ConVIVENDO com o Medo.

Alternativamente, a revisão da literatura pode ser simultânea ao trabalho de campo, permitindo uma interacção criativa entre o processo de colecta de dados, a revisão da literatura e a introspecção do investigador” (Patton, 2002:226).

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1. O Medo

“A maior falta do apóstolo é o medo. O que desencadeia o medo é a falta de confiança na força do Mestre; é esta que oprime o coração e aperta a garganta. O apóstolo pára então de professar. Permanece apóstolo? Os discípulos que abandonaram o Mestre aumentaram a coragem dos algozes. Quem se cala perante os inimigos de uma causa fortalece-os. O temor do apóstolo é o primeiro aliado dos inimigos da causa. “Obrigar a calar através do medo” é o primeiro passo da estratégia dos ímpios. O terror que se utiliza nas ditaduras é baseado no medo dos apóstolos. O silêncio possui a sua eloquência apostólica apenas quando não vira o rosto a quem nele bate. Assim, calando, fez Cristo. Mas com aquele gesto demonstrou a própria fortaleza. Cristo não se deixou atemorizar pelos homens. Saindo ao encontro da multidão disse com coragem: «Sou eu.»” - Cardeal Wyszyński.

1.1 Omnipresença do Medo

Ilustração II.3 – Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso pensar e o nosso sentir.

Quando todos os dias nos vemos imersos em notícias dos horrores que, pelo mundo, o homem inflige ao homem; quando, todos os dias, nos confrontamos com situações de violência, mesmo que simbólica, nas nossas relações de homem↔mulher adulto↔adolescente↔criança chefe↔subordinado↔colegas professores↔alunos↔colegas↔famílias serviços↔utente-cliente-beneficiário-consumidor Estado↔contribuinte-cidadãos...; quando, todos os dias, nos vemos aflitos ao antever as consequências de notícias como aquelas cujos títulos aqui reproduzi (ilustração II.3); quando, todos os dias, em tantas áreas (na educação, inclusive), encontramos quem sempre esteja interessado ou seja só capaz de, secamente, descortinar e revelar as nossas falhas, mais do que

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interessado ou capaz de reconhecer, estimular e divulgar o nosso valor; quando, todos os dias, vemos quem (qual vampiro de energia), julgue ser essa a única (e estranha) forma de resolver problemas e de encontrar o alimento de que, em si mesmo, carece, que herança nos está a ser transmitida e que herança estamos nós a transmitir? Somos e criamos filhos de quem, ou do quê?

São muitos os autores que nos dizem que vivemos numa cultura baseada no medo (Jeffers, 1991; Livsey & Palmer, 1999; Albisetti, 2003; Moffit, 2003a; Gil, 2005). E este medo, não sendo mais visto como uma activação emocional (isto é, pontual), em função de um sinal de perigo, mas sendo antes um PERMANENTE ESTADO DE ALERTA (Machado, 2004:77), permite, pela sua manipulação, a obtenção de vantagens aos mais diversos níveis – desde o nível dos círculos restritos da vida privada, até ao nível da legitimação, controlo e reprodução de uma qualquer estrutura social, política e económica por alguns desejada (Machado, 2004:165).

“É melhor ser amado que temido ou o inverso? Respondo que seria preferível ser ambas as coisas, mas, como é muito difícil conciliá-las, parece-me muito mais seguro ser temido do que amado, se só se puder ser uma delas. (…) Os homens hesitam menos em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torna temido, pois o amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus, se quebra quando surge ocasião de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um temor do castigo que nunca nos abandona” (Maquiavel, 1976:89-90).

Sendo visto por muitos como o manual prático do déspota, mas sendo vivido, por muitos outros, como uma difícil realidade com que é preciso gerir o quotidiano, “O Príncipe”, de Maquiavel, apesar dos quase cinco séculos de distância com que foi escrito, parece continuar a ser fonte de inspiração – tanto para detentores do poder político, como para a manutenção do poder, e dos poderes, em torno das classes e posições dominantes. Não foi, por isso, por acaso que escolhi aqui colocar este excerto. De uma forma muito directa, Maquiavel explica por que é melhor ser temido do que amado e como o medo de ser prejudicado pelos homens (que se considera serem maus), se disfarça na autoridade de um castigo infligido, ou na possibilidade e ameaça

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de o vir a infligir. Ou, dito de uma outra maneira, como Maquiavel explica como medo gera medo.

Contudo, usá-lo aqui não significa que me pretenda circunscrever a uma reflexão de cariz estritamente político e social, tal como não significa que o procure usar para colocar só dentro da ordem das coisas públicas os eventuais beneficiários das vantagens da manipulação do medo. Muito embora acredite que os poderes mundiais, políticos e económicos (de muitos tipos e quadrantes), têm interesse em manter o ser humano naquilo a que Boff (1998:118) chamou a “situação de galinha (…) e no apagar da sua consciência a vocação sacrossanta de águia”66, entendo também que público e privado se espelham mutuamente e que, em qualquer sistema de interacção humana e social (por mais escondida que ocorra no espaço dos afazeres domésticos), não há algozes e vítimas, nem ganhadores e perdedores – do ponto de vista ecológico da dignificação e da construção do humano que aqui interessa considerar, quando alguém perde, todos perdemos e, mesmo que isso só se revele a longo prazo, as maiores vítimas dos algozes são os próprios algozes.

Prefiro, então, continuar a procurar referências que, do ponto de vista individual (e, por isso, também social), possam ajudar a reflectir sobre a responsabilidade de cada um em todo este processo; e se, ao longo deste texto, surgem conceitos como os de “sociedade”, “fenómeno social”, “controlo social*”, “constrangimento social”, etc., compreender que tais conceitos não têm só implícita a imputação de responsabilidades a um qualquer sistema ou grupo mais ou menos anónimos e indefinidos – como “a instituição e a norma só existem na medida em que os actores as praticam e reproduzem” (Ferreira de Almeida, 1994:218), como os sistemas e os grupos são gerados (ou, pelo menos, alimentados) nos contextos sinérgicos do privado, também implicam a responsabilidade e a capacidade do fazer diferente de “cada eu”.

Deste modo, e porque acredito que uma investigação aplicada (ainda para mais desenvolvida na área da Educação de Adultos) precisa criar espaços de reflexão sobre a responsabilidade, decisão, e mudança individuais, procuro reforçar e manter presente

66 Para Boff (1998:113), a “galinha” expressa a situação humana no seu quotidiano, na dimensão de limitações e sombras que marcam a vida, enquanto que a águia representa a mesma vida humana na sua criatividade, na sua capacidade de romper barreiras, nos seus sonhos, na sua luz.

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uma das maiores lições que as Ciências Sociais me têm dado: o entendimento de que sou e como sou simultaneamente livre e condicionada, mas também o entendimento de que, quanto maior for a consciência do meu condicionamento, mais livre me posso tornar e, por isso, mais capaz de ser co-criadora da própria existência.

Assim, e apesar de, pela multiplicidade das interferências, não ser possível apresentar um quadro que cubra todas as situações, definições e relações do fenómeno do medo e do desenvolvimento humano, passo à apresentação das contribuições de alguns dos autores que mais me ajudaram a construir e situar esta questão nessa oscilação entre mentalidades individuais e imprinting cultural* – mesmo que, às vezes, esta distinção não queira significar mais do que o espírito com que, no momento, foi estabelecida.

• Todos os nomes do medo

Relembrando, como já tive oportunidade de dizer na introdução desta tese, que estou a deixar de lado as situações patológicas de medo – tanto as que dão origem ao pânico e às fobias, como aquelas que, sob qualquer forma ou dimensão, movem quem exerce violência com o firme propósito de fazer mal (agressores, torturadores, violadores, assassinos…); relembrando também que só pretendo estudar aquilo a que chamei “medo da vida”, isto é, “medos muito correntes mas que dificultam a vida de quem os sofre” (Marina, 2006:111), começo pelo princípio, isto é, começo pela consulta dos sentidos lexical e analógico da palavra medo.

1. Dicionário da Língua Portuguesa

Medo – sentimento de INQUIETAÇÃO que se sente com a ideia de um PERIGO REAL OU

APARENTE; terror; receio; apreensão; susto (Almeida Costa, 1998:1071).

2. Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa

Medo – PERTURBAÇÃO ANGUSTIOSA DO ÂNIMO por um risco ou mal que ameaça ou que se imagina; temor; susto violento. Receio ou apreensão de que aconteça algo contrário ao que se deseja (1992: 751).

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3. Nova Enciclopédia Larousse

Medo – sentimento de forte INQUIETAÇÃO, de ANGÚSTIA, na presença de, ou a pensar em um perigo, uma ameaça. Receio de, pavor perante uma determinada situação, temor, apreensão, receio de um dano ou mal, acompanhado ou não de perturbação emocional (1997: 4637).

4. Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa

Medo: TERROR, SUSTO, perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente. Acanhamento, apreensão, aquela, arreceio, assombração, assombro, atamento, atemorizamento, cagaço, cagueira, cafunfa, cativeza, cegonhão, cenofobia, cólicas, confrangimento, desassossego, encanho, encolha, encolhimento, enleio, estreiteza, estupor, fajeca, floreio, fugeca, grima, horror, lã, medão, medeiro, meduiço, mordedura, mordicação, ódio, pânico, patifaria, pavor, pejo, pequeninez, purgativa, pusilanimidade, receança, sobressalto, socórdia, sucho, surpresa, susto, temor, terror, timidez, vareio, vergonha, acagaçar, apesarar, assaranzar, desencolher, mijar, morder, mordicar, morsegar. (Bivar, 1948:1481-1483).

Causar medo: ASSUSTAR, ATEMORIZAR, HORRORIZAR. Afogar, alarmar, amedrontar, apavorar, assustar, ataburrar, atemorizar, aterrar, aterrecer, aterrorar, encobardar, encolher, enregelar, espavorar, espavorecer, espavorir, espavorizar, estarrecer, estremecer, horrificar, horripilar, horrorizar, intimidar, intimidecer, pavorear, retrair, sobressaltar, soterrar, temorizar, terrificar, terrorizar, tremer, varar, assustamento, alarmista, apavoramento, assustador, atemorizador, aterramento, aterrorização, caravela, descaro, estafermo, estarrecimento, estrampalho, fantasma, horribilidade, horror, jabiraca, juã-de-las-vinhas, sarronca, surraço, temibilidade, temor, terribilidade, terror, terrorista, trampalho, assustoso, abarbarado, apavorante, atataranhado, atemorizante, aterrador, aterrorizador, atro, endiabrado, enfiado, espavorido, estremecido, formidaloso, formidante, formidável, formidaloso, fulminante, horrendo, horrente, horribilíssimo, hórrido, horrífico, horripilante, horripilo, horrível, horrorífico, horrorizado, horroroso, infando, infernal, intimidação, intimidador, intimidante, intimidativo, larval, lôbrego, lúgubre, medonho, metuendo, pavoroso, sanhudo, temedoiro, temerando, temeroso, temido, tenebroso, terrível, terrificante, terrífico, terrorizante, tétrico, tetro, torvo, tremendo, tristonho, urco (Bivar, 1948:1481-1483).

Ter medo: TEMER – TER MEDO ou RECEIO DE

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Acaipirar-se, acanhar, acobardar, apoltronar-se, arrecear-se, assolhar, assombrar-se, assovacar-se, atemorizar-se, bisonhar, debilitar, entoar, esperdigotar, estarrecer, estremecer, palpitar, pejar, poltronear, recear, respeitar, respeitar, saltear, tataranhar, tremelicar, tremer, amedrontado, acaipirado, acanhado, acobardado, alarmado, apreensivo, arisco, arrolhado, arrolhador, assomado, assombradiço, assovacado, assustadiço, assustado, atadinho, aterrado, borrado, cagão, canhenho, coado, curto, débil, desanimado, desconfiado, duvidoso, efeminado, empachoso, encolhido, enconchado, entanguido, envergonhado, espantadiço, espantado, esperdigotado, formidoloso, fraco, imbecil, imbele, mafião, manco, matuto, medroso, meticuloso, partista, pávido, pejado, peludo, pusilâmine, receável, receoso, semetidinho, temeroso, temido, tímido, timorato, torpe, trémulo, trepidante, vergonhoso, zopeiro, cagarola, acanhadão, bandarrinha, bandurrinha, bicidódio, bisonharia, bisonhice, cagão, cagarrão, caguinça, caguinchas, cismador, cobarde, cobardia, cobardice, curteza, ecmofobia, ecmófobo, envergonhação, envergonhaço, estátua, fracalhão, fujão, galucho, manicaca, mãos-atadas, medrica, mijota, mirocha, molúria, ningresmingeres, panhão, peança, poltranaz, poltrão, poltronice, tabaréu, tabarca, tararaca, tataranha, tímido, tremelicação, tremelica, trengo, xoninhas (Bivar, 1948:1481-1483).

Tirar o medo: animar, desatemorizar, desacanhar, desapavorar, desassombrar, desassustar, desenvolver, realentar, refrescar, sair, desatemorizador, desatemorizado, desassustado (Bívar, 1948:1481-1483).

Sem medo: destemido, despavorido, destímido, impávido, impertérrito, intrémulo, intrépido, seguro, tafetudo, temido, desacanhamento, valoroso, destimidez, ananhanguera, atambia, desassombramento, intrepidez (Bivar, 1948:1481-1483).

E fico absolutamente fascinada com a quantidade e diversidade da riqueza cultural implícita no conteúdo deste último documento! Quis, por isso, e apesar da sua extensão, reproduzi-lo aqui quase na íntegra para que, mesmo que de forma rápida e intuitiva, o possa conjugar com os outros três. Isto é, seleccionar e organizar algumas das expressões neles contidas e, pela apresentação das categorias assim construídas, descobrir toda a gama de sentidos que nelas vejo envolvidas (tabela II.1).

Alcunhas de quem tem medo: Sentidos relacionados com a ausência/perda de paz: Imbecil; poltrão; medrica; xoninhas; trengo; mãos-atadas; Traiçoeiramente; sobressalto; susto; desassossego; cagarola; caguinchas; atadinho; assustadiço; fracalhão; surpresa; apreensão; ódio; terror; assustar; tímido; medroso; peludo; cobarde; envergonhado; assustamento; infernal; desconfiado; inquietação;

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acaipirado; cagão; acanhado… perturbação, angústia…

Sentidos relacionados com a perda de identidade ou Sentidos relacionados com as vísceras e fluidos de estatura: corporais: Encolhimento; pequeninez; curtamente; encolha; Cagaço; cagueira; cólicas; cagaçar; mijar; borrado; estreiteza; encolher; retrair; curto; encolhido; cagão; cagarrão; caguinça; mijota; purgativa; enconchado; semetidinho; curteza; vício de vontade… assovacado, cafunfa...

Sentidos relacionados com a perda de segurança: Sentidos relacionados com a fuga da realidade: Estremecer; tremer; varar; palpitar; apreensivo; trémulo; Enleio; floreio; cismador; fujão; arisco… trepidante; estremecer; tremelicação; tremelica…

Sentidos relacionados com o impacto interpessoal e Sentidos relacionados com a perda de energia vital: formas de lidar com as situações: Meticuloso; respeitar; timidez; vergonha; bisonhice, Enregelar; debilitar; débil; desanimado; estátua; afogar; atamento… fraco…

Alcunhas de quem não tem medo: Tirar o medo - Repor vida: animar; refrescar; sair; desenvolver; realentar… - Repor vida: animar; refrescar; sair; desenvolver; realentar… - Eliminar alguma coisa: desatemorizar; desacanhar; - Eliminar alguma coisa: desatemorizar; desacanhar; desapavorar; desassombrar; desassustar; desassustado desapavorar; desassombrar; desassustar; desassustado desatemorizador; desatemorizado … desatemorizador; desatemorizado …

Estar sem medo Destimidez; ananhanguera; atambia; desacanhamento; desassombramento; intrepidez. Tabela II.1 – Categorias de sentidos presentes nos significados lexicais e analógicos da palavra medo.

Correndo o risco de ter feito uma análise demasiado simples (talvez mesmo simplória e de senso comum), mas também aqui sem outra pretensão que não seja a de revelar o impacto e as interrogações que as palavras (me) provocam, não posso deixar de comentar o quanto me parece que, por si só, estes quadros ajudam a construir uma imagem bastante completa do conceito de medo. Mais do que isso, e atrevo-me a dizer, parece-me que estas categorias são, em si mesmas (e tal como noutros pontos deste capítulo terei oportunidade de referir67), uma certa forma de “validação” dos resultados da própria investigação científica. É como se a sabedoria popular, que é experiência de vida, se tivesse adiantado (inclusive ou, sobretudo (?), na sua versão mais “vernácula”), na compreensão daquilo que a pesquisa precisou de muitos anos para demonstrar. É como se, e mais uma vez, a relação entre a ciência e o saber popular não fosse

67 Ver ponto 1.3 deste capítulo (síntese do medo).

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mutuamente exclusiva, mas, sim, mutuamente inclusiva e, por isso, complementar (Sousa Santos, 1998, 2002).

Em jeito de síntese, ficam, para já, duas ANOTAÇÕES: 1. A quantidade de emoções e sentimentos que, implícita ou explicitamente, estão envolvidas nesta caracterização do medo: timidez, angústia, ódio, susto, … Todos se cruzam! 2. A diversidade de sentidos encontrados – os âmbitos e as relações que já aqui se pressente estarem implicados: a corporeidade*, a necessidade básica de segurança, a criação de uma identidade própria, a percepção do real, as relações interpessoais, a manutenção da fonte de vida, a construção da paz, …

Mas ficam-me, também, três INTERROGAÇÕES: 1. Por que será que, sendo uma emoção universal, inerente à natureza, as “alcunhas” de quem tem medo são tão depreciativas, tão humilhantes? 2. Por que será que as palavras que podem ser usadas como vocativos para quem não tem medo vão desde “valoroso” (isto é, o que tem valor), a “temido (isto é, o que faz temer, ou que mete medo), a “impávido” (isto é, o que se não deixa perturbar)? Qual o seu denominador comum? Alguma forma de poder? Que tipo de poder? Será que quem não tem medo mete medo? Porquê? Por que é diferente? Por isso tem valor? Será que tem medo quem intencionalmente mete medo? 3. Por que será que é muito menor o número de palavras usadas para significar “não ter medo” do que as usadas para “ter medo”? Será que, de facto, “a covardia é muito mais universal do que a bravura” (Neill, 1971:116) e a valentia* e, por isso (como não há tantas ocasiões para serem usadas), também não são precisas mais?

Mas, porque não quero deter-me, pelo menos por agora, numa reflexão demorada sobre esta minha “análise”, passo à apresentação dos resultados obtidos no estudo de outros enfoques sobre a relação do ser humano com o medo (bem diferentes destes e também entre si distintos), para que, no final, e pela identificação das ideias

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consideradas mais pertinentes, possa fazer uma reflexão global, síntese integradora de todas as abordagens apresentadas.

• Criação de um primeiro cenário de fundo – a palavra da neurobiologia

Damásio (1995), considerando que os sentimentos são o que revela quem somos e o que constrói a nossa humanidade, explica que a nossa mente está alicerçada nos sentimentos de DOR e de PRAZER como genealogias da regulação vital e que somos impelidos para dois tipos de movimentos – o movimento de procura e o movimento de recuo.

O MOVIMENTO DE PROCURA, de exploração e de curiosidade (alinhado com a ideia de recompensa e de prazer), leva à aproximação do meio ambiente, aumenta a capacidade de sobrevivência (mas também a nossa vulnerabilidade), e está associado a emoções positivas como a felicidade e o orgulho. O MOVIMENTO DE RECUO, de imobilização, de fechamento e de retracção (alinhado com a ideia de castigo e de dor), leva ao distanciamento do meio ambiente e está associado a emoções negativas como a angústia, o medo e a tristeza (Damásio, 1995).

Assim, e partindo de uma CONCEPÇÃO DO SER HUMANO como

“um organismo que surge para a vida dotado de MECANISMOS AUTOMÁTICOS DE

SOBREVIVÊNCIA” e ao qual a EDUCAÇÃO E A ACULTURAÇÃO acrescentam um conjunto de estratégias de tomada de decisão socialmente permissíveis e desejáveis que favorecem

a sobrevivência e servem de base à CONSTRUÇÃO DE UMA PESSOA” (Damásio, 1995:141), Damásio apresenta, ao longo das suas três mais conhecidas obras de referência, os resultados de estudos realizados no campo da neurobiologia das emoções e, com isso, desenvolve uma série de reflexões centradas na procura da compreensão das nossas emoções e dos nossos sentimentos. Passo a fazer uma breve síntese do pensamento do autor a partir da explicitação dos conceitos-chave contidos na concepção do ser humano acima transcrita: (1) mecanismos automáticos de sobrevivência; (2) educação e aculturação; (3) construção de uma pessoa.

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1. Mecanismos automáticos de sobrevivência

A HOMEOSTASIA, enquanto conjunto de processos de regulação automática inatos a todos os seres vivos, soluciona problemas básicos da vida – por exemplo, problemas de incorporação e transformação de energia e de manutenção de um equilíbrio químico adequado à vida e problemas de defesa do organismo em situações de doença e lesão física (Damásio, 2003:46).

À medida que ocorre a evolução biológica, estes DISPOSITIVOS AUTOMÁTICOS vão-se tornando mais sofisticados e, sem quase dependência da aprendizagem, criam diversos tipos de resposta – desde o simples retraimento e aproximação, até aos mais complexos de competição e cooperação. Assim, quando o organismo (num PROCESSO DE GOVERNAÇÃO E AVALIAÇÃO PRODUZIDO POR CADA UMA DAS SUAS CÉLULAS), detecta uma mudança no ambiente que possa alterar potencialmente o seu curso de vida (tanto em termos de ameaça, como de oportunidade de melhoria), responde de modo a criar um estado de equilíbrio e bem-estar mais benéfico para a sua auto-preservação.

Em jeito de metáfora, Damásio (2003:44-57) estabelece uma correspondência entre a máquina da homeostasia e “uma árvore bem alta e larga em que os vários ramos são fenómenos automáticos da regulação da vida” (2003: 47):

- Nos ramos mais baixos: o processo de metabolismo – componentes químicos e mecânicos; os reflexos básicos – ex: o sistema imunitário; reflexo de alarme ou susto. - Nos ramos médios: certas pulsões e motivações; comportamentos normalmente associados à noção de prazer (recompensa) ou dor (punição) – fome, sede, curiosidade, comportamentos exploratórios, comportamentos lúdicos, comportamentos sexuais… - Nos ramos próximos do cume: as emoções (as “jóias” da regulação automática da vida) – a alegria, a mágoa, o medo, o orgulho, a vergonha, a simpatia… - Nos ramos mais altos: os sentimentos.

Emoções universais = medo, zanga/cólera, nojo/aversão, felicidade/alegria, surpresa, tristeza =

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As EMOÇÕES, que se situam nos ramos próximos do cume, significam, literalmente, movimento para fora (Damásio, 1995:144ss; 2000:72ss; 2004,75ss):

a) São constituídas por RESPOSTAS REFLEXAS a um determinado estímulo e regulam a sobrevivência através da produção de uma reacção específica – fuga (flight), imobilização (freeze), ataque (fight), ou adopção de um comportamento agradável. b) São dependentes de dispositivos cerebrais inatos e ocupam um conjunto restrito de regiões cerebrais. c) São responsáveis por modificações na paisagem corporal e na paisagem cerebral – sistemas visceral, vestibular e músculo-esquelético e circuitos cerebrais. d) Embora sedimentadas ao longo da história evolucionária, podem sofrer modificações nas suas formas de expressão e no seu significado de acordo com a aprendizagem e a cultura. e) Apesar da variação individual e do papel da cultura, podem ser activadas automaticamente sem deliberação consciente. f) Constituem o substrato dos padrões neurais que formam os sentimentos de emoção.

Emoções Primárias, Universais, Básicas, Inatas, Pré-organizadas Medo, zanga/cólera, nojo/aversão, surpresa, tristeza, felicidade/alegria. - São reacções ou movimentos pré-organizados a certas características de estímulos – sons, tamanho, envergadura... - Desenrolam-se no teatro do corpo. - Apresentam diferentes tipos de perfis – de “explosão”, com início rápido, um pico de intensidade, uma decadência rápida (cólera, medo, surpresa, aversão); de “onda”, com características menos intensas (tristeza e emoções de fundo). - Não se confinam aos seres humanos. Quadro II.1 – Conceito de emoções primárias. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Sentimentos universais = de medo, de cólera, de nojo, de felicidade, de tristeza =

Situando-se nos ramos mais elevados daquela árvore, os SENTIMENTOS são os

SENSORES do interior do organismo (da sua harmonia ou do seu desacordo), e tornam possível uma maior flexibilidade de respostas. As respostas dos sentimentos permitem (Damásio, 2003:161ss):

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a) A percepção do objecto – a sensação da emoção em relação ao objecto que a desencadeou. b) A percepção do estado corporal – a relação objecto/estado emocional do corpo. c) A percepção das modificações de estilo e eficiência do pensamento – a criação, para lá da resposta automática, de uma estratégia de protecção alargada.

Sentimentos de Emoções Universais Básicas Sentimento de felicidade, de tristeza, de cólera, de medo, de nojo. - São o sentir dos estados emocionais, a consciência das emoções. - São invisíveis para o público – desenrolam-se no teatro da mente. Sentimentos de Emoções Universais Subtis Euforia, êxtase, melancolia, ansiedade, pânico, timidez, remorso, vergonha, vingança… - Baseiam-se nas emoções que são pequenas variantes das emoções básicas (da tristeza surge a melancolia e a ansiedade; do medo, o pânico e a timidez). Quadro II.2 – Conceito de sentimentos de emoções universais básicas e subtis. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

2. Educação e Aculturação

A educação e a aculturação “acrescentam um conjunto de estratégias de tomada de decisão socialmente permissível” (Damásio, 1995:141) – porque existem certos mecanismos que só são accionados depois da exposição a um estímulo específico; porque há razões e situações em que, ter medo, ou estar feliz, por exemplo, variam com a experiência individual e cultural. Assim, e ao terminar o desenvolvimento infantil, o cérebro (tendo passado pela intervenção da sociedade e aí cruzado o adquirido com o instintivo), está dotado de níveis adicionais de estratégias para a sobrevivência.

Emoções secundárias ou sociais = vergonha, ciúme, culpa, orgulho simpatia, compaixão, embaraço, inveja, gratidão, admiração, espanto, indignação, desprezo… =

O mecanismo das EMOÇÕES SECUNDÁRIAS desenvolve-se logo que começamos a ter sentimentos e a formar ligações sistemáticas entre as emoções primárias e determinadas categorias de objectos e situações Apesar de obtidas sob influência de disposições inatas, as emoções secundárias são representações adquiridas – por isso, únicas, individuais e personalizadas (Damásio: 1995:149ss). Esse mecanismo ocorre a três níveis:

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1. Avaliação cognitiva do acontecimento – considerações deliberadas e conscientes em relação a uma determinada pessoa ou situação. 2. A um nível não consciente – reacção automática e involuntária das redes do córtex pré-frontal aos sinais resultantes do processamento de imagens mentais, tem subjacente o conhecimento de como, na experiência individual, certo tipo de situações tem dado origem a certo tipo de respostas emocionais. 3. De uma forma não consciente, automática e involuntária – sinalização à amígdala da resposta destas disposições pré-frontais. Afectam o organismo de duas maneiras: a. Causando um estado emocional do corpo – as vísceras ficam colocadas no estado associado ao tipo de estímulo e provocam mudanças nos estados do corpo e do cérebro; a musculatura esquelética (expressões faciais e posturas corporais) completa o quadro externo da emoção. b. Causando um impacto importante no estilo e eficiência dos processos cognitivos.

Emoções Secundárias ou Sociais Vergonha, ciúme, culpa, orgulho simpatia, compaixão, embaraço, inveja, gratidão, admiração, espanto, indignação, desprezo… - São representações adquiridas. - Apresentam diversas combinações das componentes das emoções primárias (ex: o desprezo utiliza as expressões faciais do nojo). - Não se confinam aos seres humanos. Exemplo: MEDO ►Embaraço, Vergonha, Culpa Estímulo-emocionalmente- Identificação de um problema no comportamento ou no competente (EEC) corpo do próprio indivíduo. Consequências do Evitar a punição imposta por terceiros; reequilíbrio do desencadear da emoção próprio, do outro, ou do grupo; policiamento das regras de comportamento social. Base fisiológica da emoção Medo, tristeza, tendências submissivas. Quadro II.3 – Conceito de emoções secundárias. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Emoções de fundo = bem-estar/mal-estar; calma/tensão; irritação/relaxamento; letargia/entusiasmo; desânimo/esperança; bom-humor/mau-humor; fadiga/energia; dor/prazer, esperança/desencorajamento; estabilidade/instabilidade; equilíbrio/desequilíbrio; harmonia/discórdia… =

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As EMOÇÕES DE FUNDO estão mais próximas do núcleo interior da vida e têm um alvo mais interno do que externo. São causadas por um ou mais dos seguintes elementos: processos de regulação da vida; certas condições de natureza interna; processos de conflito mental manifesto ou escondido; processos fisiológicos; interacções do organismo com o meio ambiente.

Embora não especialmente proeminentes, mas representando um papel importante, podem ser detectadas através de manifestações subtis de:

a) Postura corporal – perfil dos movimentos, precisão, frequência e amplitude dos membros ou do corpo inteiro. b) Expressões faciais – quantidade e velocidade dos movimentos oculares e grau de contracção dos músculos faciais. c) Linguagem – música da voz, cadência do discurso, prosódia.

Emoções de Fundo Dor/prazer, bem-estar/mal-estar; calma/tensão; irritação/relaxamento; letargia/entusiasmo; desânimo/esperança; bom-humor/mau-humor; fadiga/energia; esperança/desencorajamento; estabilidade/instabilidade; equilíbrio/desequilíbrio; harmonia/discórdia… - Correspondem ao estado do corpo que ocorre entre emoções. - Apresentam manifestações subtis do corpo, linguagem e expressões faciais. Quadro II.4 – Conceito de emoções de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Sentimentos de fundo = sentimento de dor / prazer; bem-estar / mal-estar; calma / tensão; irritação / entusiasmo… =

Os SENTIMENTOS DE FUNDO, aqueles que, em íntima ligação com a consciência nuclear68, sentimos com mais frequência ao longo da vida, não têm origem em emoções, mas correspondem a estados do corpo que ocorrem entre emoções: a) São a nossa imagem da paisagem do corpo quando as emoções não estão activadas. b) Podem ser agradáveis ou desagradáveis, mas não são demasiado positivos nem demasiado negativos.

68“A consciência consiste na construção do conhecimento sobre dois factores: que o organismos está envolvido numa relação com um objecto e que o objecto presente nessa relação provoca uma modificação no organismo” (Damásio, 2003:40).

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c) Ajudam-nos a definir o nosso estado mental. d) São o sentimento da própria vida, a sensação de existir.

Sentimentos de Fundo Sentimento de dor / prazer; bem-estar / mal-estar; calma / tensão; irritação / entusiasmo … - Têm origem em estados corporais de “fundo” e não em estados emocionais. - Não são nem demasiado positivos, nem demasiado negativos. - Não se encontram no primeiro plano da nossa mente. - Permitem apreciar o tom físico geral do nosso ser. Quadro II.5 – Conceito de sentimentos de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Humores

Os HUMORES (mood)69, ainda que quase só tratado em nota de rodapé, são um outro tipo de estados emocionais referenciado por Damásio (2004) que me parece também ser relevante colocar.

“Quando os estados emocionais tendem a tornar-se razoavelmente frequentes ou até contínuos ao longo do tempo, é preferível referirmo-nos a eles como humores e não como emoções.

(...) Os HUMORES são emoções arrastadas, acompanhadas pelos consequentes sentimentos; transportam através do tempo os conjuntos de respostas que caracterizam as emoções: modificações endócrinas, modificações do sistema nervoso autónomo, modificações músculo-esqueléticas e modificações no modo de processamento das imagens” (Damásio, 2003:388-389).

Quando um determinado conjunto de emoções se desenvolve de forma não adequada e persistente durante um longo período de tempo, além de poder implicar um custo muito

69 Em Daniel Goleman (2005:180-181) também encontramos algumas considerações sobre o conceito de humor: 1. O humor está relacionado com as emoções, mas é diferente delas, especialmente na duração – as emoções podem aparecer e desaparecer numa questão de segundos ou de minutos, mas um humor pode durar todo o dia. 2. Quando temos uma emoção, conseguimos identificar o que a produziu, especificar o evento que a desencadeou e aquilo que a fez emergir. Mas não conseguimos fazer o mesmo com um humor. 3. Um humor pode ser provocado por três tipos de situações: - alterações internas não relacionadas com o que está a acontecer no exterior; - uma experiência emocional muito densa; - pensamentos subtis que decorrem em segundo plano na mente e de cujo controlo não nos conseguimos libertar só pela consciência da sua existência. 4. O humor intensifica as emoções e influencia e restringe a forma como pensamos.

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elevado na vida do indivíduo afectado, pode, inclusive, tornar-se patológico*70. Os humores ocorrem nas seguintes situações:

a) Quando a pessoa activa repetidamente a mesma emoção. b) Quando a pessoa modifica frequentemente o seu tom emocional de forma inesperada. c) Quando a pessoa emite uma nota predominantemente emocional de forma consistente, durante uma boa parte do tempo e a sua manifestação se torna um modo de ser físico e mental permanente.

3. Construção de uma pessoa

“A eliminação da emoção e do sentimento acarreta um empobrecimento da organização da experiência humana. (...) Na ausência de emoções e sentimentos sociais, mesmo que, improvavelmente, outras capacidades intelectuais se pudessem manter, os instrumentos culturais conhecidos como comportamentos éticos, crenças religiosas, leis, justiça e organização política não teriam emergido ou teriam emergido de uma forma bem diferente” (Damásio, 2003:183-184).

É por isso que, e também de acordo com Damásio, as estratégias de sobrevivência atrás descritas são também a base da construção de uma pessoa - criam um ponto de vista moral que, quando necessário, pode transcender os interesses do grupo e mesmo os da própria espécie.

Neurobiologia – síntese: 1. O medo está associado ao sentimento de dor e pode desencadear movimentos de recuo, imobilização, fechamento, retracção e levar ao distanciamento do meio ambiente. 2. O medo pode apresentar-se sob diferentes configurações e expressões: emoção e

70 A depressão é um dos exemplos típicos de humores – a emoção-tristeza que se prolonga durante dias e meses: o choro, a perda de apetite, os pensamentos melancólicos “tornam-se um permanente modo de ser, físico e mental” (Damásio, 2003:388).

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sentimento primários (medo); sentimento de emoções universais subtis (pânico, timidez); emoção e sentimento secundários (embaraço, vergonha, culpa); emoção e sentimento de fundo (dor, mal-estar...); humor. 3. Enquanto emoção, o medo é uma resposta reflexa. Enquanto sentimento, o medo permite a criação de uma estratégia de protecção alargada – desempenha, por isso, um papel regulador que conduz à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo. 4. O medo é responsável por modificações na paisagem corporal (sistema visceral, vestibular e músculo-esquelético) e na paisagem cerebral (circuitos cerebrais). Pode ser detectado através de manifestações (mesmo que subtis) na (1) postura corporal (perfil dos movimentos, precisão, frequência e amplitude dos membros ou do corpo inteiro); nas (2) expressões faciais (quantidade e velocidade dos movimentos oculares e grau de contracção dos músculos faciais); e na (3) linguagem (música da voz, prosódia e cadência do discurso). 5. Por força da aprendizagem e da cultura, o medo pode sofrer alterações nas suas formas de expressão e no seu significado – pode ser accionado pela exposição a um estímulo específico ou por razões e situações dependentes da experiência individual e cultural. Constitui, por isso, uma representação única, individual e personalizada. 6. Se o medo se desenvolver de forma persistente e não adequada durante um longo período de tempo, para além de ter um custo elevado na vida do indivíduo, pode, inclusive, tornar-se patológico*. 7. Ser humano é emocionar-se.

• Criação de um segundo cenário de fundo – a palavra da psicologia e da bioenergia

1. Da psicologia

Por considerar que, no léxico do medo, existe um conjunto de expressões que não estão bem definidas, José António Marina (2006:30-36) apresenta uma cartografia elementar para precisar os diversos sentidos dessas expressões (quadro 2.6). Assim, e

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a partir dos termos “inquietação” e “intranquilidade” (ou agitação, desassossego, nervosismo, etc.), que considera serem características afectivas partilhadas por diversas emoções, o autor define:

a) ANSIEDADE – uma intranquilidade desagradável.

a. ANGÚSTIA – uma ansiedade sem desencadeantes claros, acompanhada de preocupações recorrentes, com uma antecipação vaga de ameaças globais e com dificuldade de pôr em prática programas de enfrentamento71 (de fuga, luta, imobilidade ou submissão).

b. MEDO – ansiedade provocada pela antecipação de um perigo.

b) EXCITAÇÃO – uma intranquilidade agradável perante, por exemplo, uma boa notícia inesperada.

c. EXCITAÇÃO e ANSIEDADE – causam uma focalização da atenção e uma activação do sistema digestivo, respiratório ou cardiovascular.

Agradável: EXCITAÇÃO

INQUIETAÇÃO OU INTRANQUILIDADE Sem causa conhecida: ANGÚSTIA Desagradável: ANSIEDADE Com causa conhecida: MEDO

Quadro II.6 – Cartografia elementar do medo. Reprodução e tradução de Marina (2006:33).

71 Estratégias de enfrentamento – “os procedimentos com que enfrentamos as situações de stress, ansiedade, angústia ou medo” (Marina, 2006:39). Stress – “um sujeito experimenta stress quando a presença de acontecimentos, que exigem dele um esforço que ultrapassa os seus recursos mentais ou físicos, lhe provoca um sentimento desagradável, inquieto, debilitador, com sinais de activação fisiológica e incapacidade de controlar a situação” (Morin, 2006:38). Coping – “modo e maneiras de lutar contra os conflitos, problemas, angústias. Richard S. Lazarus (...) define-o como ‘os esforços cognitivos e comportamentais que se desenvolvem para lidar com exigências externas ou internas que o sujeito avalia como superiores aos seus próprios recursos” (Marina, 2006:40).

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Com esta distinção base, e considerando que os SENTIMENTOS (enquanto balanço consciente da situação vivida) indicam o modo como os nossos desejos ou expectativas se comportam perante a realidade, Marina faz uma ampla caracterização e reflexão sobre o medo. Porque vou voltar mais vezes a este autor, limito-me, para já, a destacar alguns desses atributos:

- O medo provoca um SENTIMENTO DESAGRADÁVEL, inquieto e de falta de controlo. - O medo leva à posta em prática de um PROGRAMA DE ENFRENTAMENTO* de fuga, luta, imobilização ou submissão. - O medo é um MODO DE PERCEBER o mundo que “surge da interacção de um pólo subjectivo – o sujeito que o sente – com um pólo objectivo – o que o sujeito sente como ameaçador” (Marina, 2006:78).

- O medo é uma EMOÇÃO INDIVIDUAL, mas, porque é CONTAGIOSA, também é uma

emoção SOCIAL.

- O medo é um FENÓMENO TRANSACCIONAL, isto é, de causalidade circular. “Tendemos a pensar que depois de uma causa vem o efeito. Mas aqui encontrámo-nos com influência recíprocas e o efeito converte-se em causa e ao contrário (Marina, 2006:16).

Em Daniel Goleman, encontro um outro conceito importante, o conceito de EMOÇÕES

DESTRUTIVAS72:

“Emoções destrutivas são emoções prejudiciais para o próprio e para os outros. (...) São destrutivas quando sentidas em contextos não apropriados ou não normativos. Quando o medo, por exemplo, é sentido numa situação familiar na qual não há nada a temer, é destrutivo. Mas se sentimos medo no momento em que um tigre está preste a saltar, então é apropriado e ajuda-nos a sobreviver” (Goleman, 2005:84; 210).

Destaco também duas implicações para a compreensão do medo (Goleman, 2005:189; 210):

72 Este conceito é apresentado no livro “Emoções destrutivas e como dominá-las” que, com narração de Daniel Goleman (2005), junta nomes como o de Francisco Varela, Richard Davidson, Paul Ekman, Alan Wallace e do Dalai Lama. É um diálogo entre o conhecimento ocidental e a sabedoria oriental para, compreendendo o papel das emoções destrutivas no sofrimento humano, se encontrem caminhos de construção da paz.

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1. Porque não pode ser categoricamente classificado como construtivo ou destrutivo, o medo tem instâncias negativas e instâncias positivas – o medo de ficar preso de angústias negativas pode, por exemplo, desenvolver a aspiração de libertação e dar azo a um estado espiritual de aspiração. 2. Uma pessoa não altera os seus sentimentos, mas pode alterar a sua acção – embora continuem a ter o mesmo impulso emocional, as pessoas são capazes de alterar a maneira como reagem a esse impulso.

2. Da bioenergia*

Em Alexander Lowen, criador da bionergia, encontro uma contribuição importante para o entendimento das relações que se estabelecem entre as distintas emoções e, especificamente, com o medo. De acordo com este autor, as emoções podem ser classificadas como SIMPLES ou COMPOSTAS. As primeiras têm apenas um tom sentimental, de prazer ou dor; as segundas contêm tanto elementos de prazer, como elementos de dor, e podem juntar-se a duas ou mais emoções para produzir uma reacção mais complexa. No ressentimento, por exemplo, há rancor e medo (Lowen, 1997:87-108).

Mas, além disso, também existem emoções que se constituem em PARES ANTAGÓNICOS. São pares de emoções em que existe uma correspondência tão grande que facilmente uma das emoções se transforma na outra. É o caso, por exemplo, do par RAIVA-MEDO73

(Lowen, 1984:163SS):

73 Lowen (1984:163SS) descreve outros dois pares antagónicos (pânico-furor e terror-fúria) que completam a compreensão do medo. Pânico-furor: Sem o controlo do ego, o medo pode degenerar em pânico pois precisa que aquele acrescente um elemento racional e limite o comportamento dentro de determinados padrões. A raiva pode transformar-se em furor quando a identificação do ego com o corpo diminui e o seu controlo é enfraquecido. Pânico e furor baseiam-se na sensação de estar numa armadilha. Manifestações físicas do pânico – corpo tenso, como em posição de fuga; peito inchado; garganta fechada, dificuldade de respiração, com sobrecarga na inspiração e incapacidade de expelir completamente o ar. O grito reprimido está subjacente à dificuldade de respirar. Manifestações física do furor: excitação muscular excessiva; perda de controlo das acções. O furor é normalmente destrutivo para a pessoa e para o seu ambiente. Terror-Fúria: O terror é uma forma de choque. Desenvolve-se em situações onde qualquer esforço para resistir ou escapar surge sem esperança. Manifestações físicas do terror: redução da sensibilidade do organismo; incapacidade de inspirar; sistema muscular paralisado com impossibilidade de fuga ou de luta. O terror representa a fuga para dentro. O terror é o efeito do furor dos pais sobre a

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a) O medo e a raiva activam o sistema simpático-supra-renal para que forneça energia para a luta ou para a fuga. O sistema muscular encontra-se carregado e mobilizado para agir. - Manifestações físicas do medo: mobiliza o movimento de fuga – movimento descendente ao longo das costas (ex: encolhimento da cauda do cão); carregamento para fugir. Se a fuga for impossível, a excitação fica presa no pescoço e nas costas, os ombros ficam levantados, os olhos arregalados, a cabeça para trás, a parte traseira recolhida, numa atitude que mostra que a pessoa se encontra num constante estado de medo, quer disso tenha, ou não, consciência. - Manifestações físicas da raiva: mobiliza o movimento de ataque – movimento ascendente ao longo das costas (levanta, por exemplo, os pêlos do cão), movimento da cabeça para a frente, ombros para baixo74.

b) O medo desenvolve-se quando a ameaça de dor é feita por uma força aparentemente superior. A escolha entre lutar ou fugir depende do indivíduo e da situação. A raiva serve para manter e proteger a integridade física e psicológica do organismo.

c) Tal como chorar alivia a tristeza, também expressar a raiva alivia o medo. Não expressar a raiva não é uma escolha, mas sinal de medo. - A pessoa a quem não é permitido expressar a raiva fica fechada, submissa, imobilizada numa posição de medo e de impotência. Pode tentar superar essa situação através da manipulação do seu ambiente.

criança. A imobilização dos movimentos acarreta a despersonalização, a dissociação entre o ego perceptivo e o corpo. Manifestações físicas do terror na criança: estrutura do corpo tesa, contraída ou frouxa, com uma tonicidade muscular fraca; superfície do corpo mal irrigada; olhos inexpressivos; a expressão facial como uma máscara; respiração bloqueada por espasmos nos músculos da garganta e dos brônquios, inspiração superficial; tórax na posição expiratória. A fúria, enquanto contrapartida do terror, é o ódio sem remorso com efeito destruidor – é fria, dura, representa o aspecto agressivo do ódio. 74 O impulso de morder é a primeira forma de manifestação da raiva. As inibições no morder são parcialmente responsáveis por distúrbios na expressão da raiva. A incapacidade de ficar com raiva manifesta-se por explosões histéricas e sentimentos persistentes de irritação (Lowen, 1984).

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Psicologia e bioenergia – síntese:

1. O medo não pode ser categoricamente classificado como construtivo ou destrutivo – tem instâncias positivas e construtivas. 2. O medo estabelece relações com outras emoções: com o ressentimento, a ansiedade, a raiva, o pânico… – a ansiedade é intranquilidade desagradável; a angústia é ansiedade sem desencadeantes claros; o terror é uma forma de choque em situações sem esperança. 3. Sem o controlo do ego, o medo pode degenerar em pânico e a raiva pode degenerar em furor. 4. Expressar a raiva alivia o medo. 5. Manifestações físicas do medo: ombros levantados, olhos arregalados, cabeça para trás, parte traseira recolhida. 6. Manifestações físicas da raiva: cabeça para a frente, ombros para baixo. 7. Manifestações físicas da ansiedade: activação do sistema nervoso central, sensações do sistema digestivo, respiratório ou cardiovascular.

• Criação de um terceiro cenário de fundo – a palavra feita de muitas outras cores e tons

Posto que está criado um pano de fundo semântico, analógico, neurobiológico psicológico e bioenergético, parece-me ser a hora de tentar construir um último cenário (feito de outras perspectivas e cosmovisões), para contextualizar as várias cenas em que esta pesquisa e os seus actores se movem. No entanto, e para não me alongar demasiado, destacarei só o que considero serem as palavras ou ideias-chave que, neste conjunto de definições e metáforas, explicam o que é o medo.

1. Palavras da bíblia

Livro do Génesis: “Mas o Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: “Onde estás?” Ele respondeu: “Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu”. O Senhor Deus perguntou: “Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te

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proibi comer?” O homem respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi.” O Senhor Deus perguntou à mulher: “Por que fizeste isso?” A mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi” (Génesis 3, 9-13). Palavras/Ideias-chave: o medo impedindo o desvelar da verdade de si mesmo; o medo não deixando assumir as responsabilidades pelos próprios actos.

Livro dos Provérbios: “O temor de Deus é o princípio da sabedoria” (Provérbios 9,10). Palavras/Ideias-chave: o medo como respeito e reverência; o medo como reconhecimento de Deus enquanto guia da nossa vida e o temor de O perder75.

Evangelho de S. Mateus: “Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: «Senhor, disse ele, sempre te conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te pertence». O Senhor respondeu-lhe: «Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo onde não semeei e recolho onde não espalhei. Pois bem, devias ter levado o meu dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, terias levantado o meu dinheiro com juros. Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o a quem tem dez talentos. Porque ao que tem será dado e terá abundância; mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. A esse servo inútil, lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt. 25, 24-30). Palavras/Ideias-chave: o medo impedindo o desenvolvimento de capacidades pessoais; o medo impedindo a capacidade de serviço.

2. Palavras de um professor de meditação vipassana

“O medo é normalmente descrito como uma resposta emocional a uma percepção de perigo que provoca certas reacções neuromusculares e químicas no corpo. Sente-se que ele surge em resposta a alguma coisa que se vê ou ouve, a sensações no corpo ou a pensamentos e emoções que aparecem na mente. A presença do medo pode resultar de uma percepção ajustada ou de uma percepção totalmente distorcida. De qualquer

75 www.loreto.org.br/mai2004_jovem.asp

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modo, é o facto de se acreditar na percepção e na interpretação das suas implicações no bem-estar que controla o nível de medo sentido” (Moffit, 2003b:2)76. Palavras/Ideias-chave: resposta emocional; percepção ajustada, percepção distorcida; acreditar na interpretação.

3. Palavras de um psiquiatra que investiga no campo da parapsicologia

“O medo é uma dissipação da energia” (Weiss, 1992:124). Palavras/Ideias-chave – dissipação da energia.

4. Palavras do esoterismo

“Medo – provém da influência de forças dos subníveis mais densos do nível astral terrestre. Enquanto a pessoa se mantém polarizada nos planos materiais, permanece susceptível a estes sentimentos. Os medos subconscientes são mais numerosos que os conscientes e estão directa ou indirectamente vinculados ao medo da morte, aos apegos e à incompreensão da verdadeira natureza do ser, que é imortal. Nos animais o medo apresenta características diferentes das que se notam no homem pois neste aumenta devido a elementos psicológicos e imaginativos. Como o medo deriva do envolvimento com as forças da matéria e as suas ilusões, o indivíduo unido à sua própria essência nada teme” (Trigueirinho, 1999:373). Palavras/Ideias-chave: influência de forças; pessoa polarizada; medos subconscientes mais numerosos que os medos conscientes; elementos imaginativos; o indivíduo unido à sua própria essência nada teme.

5. Palavras de um médico citando Magdalena Chasles

“O medo, religiosamente falando, é a força satânica do “príncipe deste mundo” que se iniciou no Éden e se estenderá até à grande tribulação apocalíptica. (…)

76 “Fear is usually described as an emotional response to a perception of danger, which elicits certain neuromuscular and chemical reactions in the body. You feel it arise in response to something that you see and that you hear, to sensations in your body, or to thoughts and emotions that appear in the mind. The presence of fear may result of an accurate perception as well as a completely distorted one. Regardless, it is your belief in the perception and your interpretation of its implications for your well-being that control the level of fear you experience” (Moffit, 2003b:2).

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O medo é a consequência imediata do Pecado Original: “a separação da consciência do homem do seu fundamento sobrenatural”. O risco que (…) subjaz a todos os temores é o da perda da individualidade” (Peña y Lillo, 1991:61). Palavras/Ideias-chave – do Éden ao apocalipse; separação da consciência do homem do seu fundamento sobrenatural; perda da individualidade.

6. Palavras de uma jornalista e perita em técnicas de auto-ajuda e desenvolvimento pessoal

“O medo é a doença crónica da liberdade” (Olba, 1996:27). Palavras/Ideias-chave – doença; liberdade.

7. Palavras da literatura universal

Siddhartha: “Seguindo vagarosamente o seu caminho, o pensador estacou, de súbito, dominado por esse pensamento, do qual outro emergiu imediatamente: “A razão por que não sei nada a respeito de mim próprio, a razão por que Siddhartha me permaneceu estranho e desconhecido, deve-se a uma coisa, a uma única coisa: tinha medo de mim próprio, fugia de mim próprio. Procurava Brame, procurava Atman, desejava destruir-me de mim, a fim de encontrar no âmago desconhecido de mim mesmo o núcleo de todas as coisas – Atman, Vida, Divindade, Absoluto. Mas, ao proceder assim, perdi-me no caminho” (Hesse, 1982:46). Palavras/Ideias-chave: o medo como fonte de auto-desconhecimento; o medo como causa de auto-destruição e perda do sentido da vida.

O Feiticeiro de Oz: “No momento em que ele falava, saiu da floresta um rugido terrível e, logo de seguida, um grande Leão saltou para a estrada. Com uma patada atirou o Espantalho pelo ar até à berma da estrada e depois atirou-se ao Lenhador de Lata com as garras afiadas. (…) O pequeno Totó, agora que tinha um inimigo pela frente, correu a ladrar para o Leão, que abriu a boca para lhe morder. Dorothy, temendo que ele matasse Totó, sem mesmo pensar no perigo, correu para diante e deu a palmada mais forte que conseguiu no focinho do Leão, gritando-lhe:

170

“Não te atrevas a morder o Totó! Devias ter vergonha, grande como és, de querer morder a um cãozinho pequenino!” “Eu não lhe mordi”, respondeu o Leão, esfregando o docinho no sítio onde Dorothy lhe dera a palmada. “Não, mas tentaste”, retorquiu ela. “Não passas de um cobarde.” “Bem sei”, disse o Leão, baixando a cabeça envergonhado. “Sempre soube isso. Mas como hei-de evitar?” (Baum & Zwerger, 2002:27) Palavras/Ideias-chave: o medo sob a forma de agressão e violência; o medo impulsionador da acção de defesa de quem se ama; o medo evitando assumir a responsabilidade das acções.

A cigarra e a formiga: “Tendo cantado a cigarra durante o Verão, Apavorou-se com o frio da estação. Sem mosca ou verme para se alimentar, Com fome, foi ter com a formiga, sua vizinha, Pediu-lhe alguns grãos para se saciar, Até vir a época mais quentinha! “Eu pagarei”, disse ela, “Antes do Verão, palavra de animal, Com juros e o capital.” A formiga não gosta de emprestar, É um dos seus defeitos. “O que fazia amiga cigarra no calor de outrora?” Perguntou-lhe com alguma esperteza. “Noite e dia, eu cantava, Sem querer dar-lhe desgosto.” “Cantava? Que beleza! Pois, então, agora dance!” (La Fontaine, 2006) Palavras/Ideias-chave: o medo, a focalização da vida exclusivamente no agir, o impedir da compaixão.

E porque foi um cenário feito de muitas cores e tons, opto por uma imagem para fazer a sua síntese:

171

O medo impedindo: • a verdade de si mesmo • a compaixão • a capacidade de serviço • assumir a responsabilidade

O medo criando: • respeito e reverência • a defesa de quem se ama

Ilustração II.4 – Síntese de definições de medo.

• Tentativa de enquadramento

Para terminar de forma integrada este ponto do capítulo a que chamei “omnipresença do medo”, mas sem nenhuma pretensão de esgotar as possibilidades de análise, vou

BRINCAR COM AS PALAVRAS e numa tabela (tabela II.2):

a) apresentar algumas das relações que vejo existirem entre (1) as categorias anteriormente construídas com as palavras e expressões dos dicionários lexical e analógico e (2) as definições e atributos do medo expressos pelos diversos autores referenciados;

b) identificar as capacidades humanas que mais imediatamente parecem ser tocadas nesta fase de compreensão do sentido do medo – para não fragmentar o humano e vincar a presença do todo na parte e da parte no todo.

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Capacidades Categorias de sentido Definição e atributos do medo humanas lexical e analógico abrangidas Relacionado com agitação / - Desagradável, inquietação (Marina) Emocionais ausência de paz - Ressentimento, dor, raiva (Lowen) - Ex: sobressalto; ódio; - Garras afiadas (Feiticeiro de Oz) inquietação; angústia Relacionado com vísceras e fluidos - Impacto fisiológico (Damásio, Lowen, Marina…) Energéticas do Corpo corporais Físico Ex: cagaço; assovacado; mijar Relacionado com fuga à realidade - Fechamento, distanciamento do meio ambiente Étnico-Globais Ex: enleio; fujão (Damásio) Do Pensamento - Fechado, submisso (Lowen) Emocionais - Percepção distorcida (Moffit) - Foi a mulher; a serpente enganou-me (Génesis) - Eu sei, mas que hei-de fazer (Feiticeiro de Oz) Relacionado com perda de energia - Custo elevado na vida (Damásio) Projectivas Perceptivas vital - Resposta reflexa (Damásio) Introspectivas Ex: descriminado; estátua; - Impotente (Lowen) Emocionais desalentado - Perda de talentos (S. Mateus) Do Pensamento - Dissipação de energia (Weiss) - Pessoa polarizada (Trigueirinho) - Doença da liberdade (Olba) - Auto-desconhecimento (Siddartha) - Perda de individualidade (Peña y Lilli) - Cantava? Que beleza, agora dance (La Fontaine) Relacionado com o repor vida - Papel regulador (Damásio) Do Pensamento Ex: Animar, refrescar, - Balanço consciente da situação (Marina) Projectivas realentar - Libertação (Goleman) Emocionais - Reverência (Livro Provérbios) Tabela II.2 – Paralelos entre expressões e atributos do conceito de medo.

Em resumo, e porque: a) autores de distintas disciplinas e distintas abordagens englobam muitas vezes num único conceito de medo o que a neurociência e a psicologia diferenciam de uma forma mais precisa; b) parece não fazer sentido entrar numa reflexão-delimitação-eliminação interminável sobre as variantes e sucedâneos possíveis do medo; c) o que aqui se procura compreender são, com excepção das situações patológicas, as várias ocorrências do(s) fenómeno(s) o mais próximo possível da realidade vivida e falada pelos sujeitos que a enformam; passo a colocar o que agora, e na sua complexidade, fica subjacente sempre que falar do medo:

1. Na natureza, o medo é uma resposta a situações de perigo que tem como fim

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criar um estado mais benéfico à auto-preservação dos organismos – está associado ao princípio da dor (ao movimento de recuo, imobilização e distanciamento do meio ambiente) 2. O medo serve aos propósitos de conservação da espécie, mas pode converter- se numa emoção destrutiva – isto é, prejudicial para o próprio e para os outros. 3. O medo, com as suas correspondentes relações-variantes (ansiedade, angústia, receio, inquietação, apreensão…), pode apresentar-se sob a forma genérica de emoção, sentimento ou humor. 4. O medo é natural e, enquanto impulso emocional, mantém-se. O que se pode alterar, de acordo com o significado da experiência, é a nossa maneira de agir. 5. O medo, enquanto produto do sistema homeostático, inscrito no âmago do nosso organismo, afecta a pessoa em todas as suas dimensões. 6. O medo é um fenómeno transaccional (de influências recíprocas e causalidade circular), é uma emoção individual mas contagiosa – por isso, social. 7. O medo, enquanto percepção (ajustada ou distorcida) do que atemoriza, constrói-se na experiência e está directamente relacionado com a acção. Como é uma representação única, individual e personalizada, pode ajudar ou prejudicar o processo de construirmos o humano.

1.2 Vivendo com Medo

“Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o que deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo, que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à acção” – Erasmo de Roterdão.

“Gostaria de ter trancado no quarto todas as humilhações, os choros engolidos, as mágoas, os medos, as revoltas. Mas não foi capaz. Mergulhou com eles no cheiro da cidade, como num mar sem ondas, denso de mistérios. Carrega no peito a bravura dos grandes heróis e, juntamente com os sonhos de menina, um cio de mulher” – Helena Magalhães.

Em 1980, numa análise crítica muito dura sobre tipo-ideais de educação familiar da sociedade portuguesa, Moisés Espírito Santo faz uma comparação (talvez perturbadora mas, por isso mesmo, também estimulante), entre o que chama modelo tradicional, próprio de um tipo de sociedade em que predomina a empresa familiar e o campesinato, e o modelo moderno, próprio de uma sociedade em que predomina o

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assalariato. Com uma caracterização da personalidade de base da cultura portuguesa e uma visão da educação das crianças e adolescentes que impressiona pela sua capacidade de, nessa altura, ver o que hoje, em muitos aspectos, já é uma evidência, o autor apresenta inúmeros exemplos de modos de ser e agir que, sob a aparência de um contexto de mudança, vieram a desaguar no que ele considera ser “uma sociedade imatura e não criativa marcada pelo desejo de protecção, pelo assistencialismo e pelo medo do risco elevados ao grau de ideal” (Espírito Santo, 1985:141)77.

Segundo o autor, a diferença entre os dois modelos é abismal: “enquanto o modelo tradicional visa a autonomia e a emancipação, o modelo moderno visa a interdependência e conduz a um estado de dependência generalizada e de complacência com situações de parasitismo” (Espírito Santo, 1985:135). E ainda que, ao longo do seu trabalho, a palavra “medo” não surja muitas vezes de forma explícita, entendo que o seu “espírito” está presente ao longo de todas as suas páginas. Quando, em jeito de conclusão, escreve que “…numa sociedade que deixou de ser predominantemente rural, a matriarcalidade tradicional terá forçosamente de sofrer uma distorção. No meio urbano, na sociedade baseada no assalariato, a mãe perde o controle da situação. Escapam-lhe os mecanismos económicos e toda a vida social: diluem-se os laços de vizinhança, não pode controlar os filhos desde que estes ponham o pé na rua, e até pode ficar reduzida à humilde condição de doméstica. Ela vai investir toda a sua energia tradicional nos filhos que são o seu único bem. Daí que ela se oponha, consciente ou inconscientemente, à sua emancipação: o seu desejo seria que eles ficassem sempre crianças: ensinar-lhes a serem autónomos seria apressar a sua própria solidão (…)” (Espírito Santo, 1985:146), retrata também, a meu ver, o que depois, com uma distância de vinte anos, numa abordagem bem diferente da realidade portuguesa, José Gil diz ser: “[Um medo] que continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente (…). [Um medo] interiorizado, mais inconsciente do que consciente, [que] acaba por fazer parte do «carácter dos portugueses» (…) passa de pais para filhos, de geração em geração (...). [Um medo que] nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a nossa potência de vida, a nossa vontade de viver… [um medo que], enquanto dispositivo mutilador do desejo, (…) predispõe à obediência. Amolece os corpos, sorve-lhes a

77 Em 1999, Moisés Espírito Santo republica este artigo e, com isso, actualiza e confirma a análise aqui citada.

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energia, cria um vazio nos espíritos que só as tarefas, deveres e obrigações da submissão são supostos preencher” (Gil, 2005:40, 78, 84).

E se a isto, passado essencialmente nos círculos mais restritos da vida privada, juntarmos o medo do terrorismo, da corrupção, do crime organizado, da violência urbana, da violência contra crianças, da impunidade, dos desastres naturais, das falências, do desemprego, do deficit, da inflação, do fisco, das dívidas, da fome, do cancro, do HIV, do buraco do ozono, da gripe das aves, das vacas loucas…, não será difícil perceber como (neste vaivém entre imprinting cultural* e mentalidades individuais), “nos tornamos78 menos abertos a novas possibilidades, menos exigentes e mais dispostos a desistir dos nossos direitos em prol de uma qualquer promessa de segurança” (Moffit, 2003b:1).

Isto é, como isso modela a nossa cultura e afecta as decisões que tomamos como pessoas, como cidadãos, como educadores, - esquecendo que “a condição humana consiste em lutar constante e permanentemente para mudar o mundo e melhorar a nossa própria existência, no sentido de reduzir ou eliminar a exploração de uns seres humanos por outros, em todas as frentes” (Garzón, 2006:10); - ignorando que a “busca do ser mais (…) não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires” (Freire, 2003:75).

É, assim, preciso perceber como cada sistema social e, antes de tudo, como “cada eu- educador”, pode, em cada momento em que a educação acontece, estar cultivando condições que conduzam à forma(ta)ção de pessoas que (sob a aparência de funcionarem bem no seu nicho social e de viverem felizes consigo mesmas e com o seu lugar na sociedade), não deixam também de estar AJUSTADAS, encaixadas, violentadas e podadas na sua individualidade por aquilo que alguém entendeu ser o melhor, ou mais conveniente, para o bem-estar comum (Guenther & Combs, 1980:133).

78 O sublinhado é meu.

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Então, se o propósito educativo de repetição se impuser e substituir o poder criador, precisamos procurar reconhecer (por muito que isso nos custe aceitar no plano individual), de que modo estaremos “CADA EU”: - contribuindo para que “o sistema” mantenha as aspirações das pessoas ao nível das necessidade mais básicas (Guenther & Combs, 1980), presas no princípio da escassez e da mediocridade vistosa de quem se alegra com as magnânimas empresas, com as festas e com os jogos (os “carnavais” até!) proporcionados regularmente pelo(s) “Príncipe(s)” da política, da economia, da comunicação social..., para distrair e divertir o seu povo; - concorrendo para o que Erich Fromm já há muito referia ser a padronização dos homens e a sua conveniência para o sistema (Neill, 1971:xviii), ou para o que Morin (2002:32) refere ser a normalização que reforça o conformismo; - revelando “a incapacidade da sociedade de acalentar e apoiar as imensas possibilidades de uma vida humana” (Moore (2000:8).

Por tudo isto e com tudo isto (mas também porque o propósito desta pesquisa é a construção de um conjunto de orientações didácticas em que o papel desempenhado por “cada eu” é fundamental), é sobretudo com uma abordagem mais centrada no individual e na educação pessoa a pessoa que, a seguir, procurarei trabalhar: a) o modo como em cada um de nós o medo encontra e se faz face; b) o terreno que propicia e como nos reconhecemos filhos do medo; c) o mundo que assim estamos a construir e a transmitir.

• Rostos do Medo

Pouco tempo depois de ter dado início a esta pesquisa, e para tentar saber de que temos medo, comecei a fazer uma lista de todos os medos que, com diferentes enunciados, em contexto informal, ou como resultado das leituras que ia fazendo, visse serem referidos. Não foi preciso esperar muito tempo para perceber que a lista crescia rapidamente. Demasiado rapidamente até. Por isso, a certa altura, e porque achei que poderia nunca mais ter fim, desisti.

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Ilustração II.5 – A diversidade do medo.

Mais adiante reproduzo79, só a título de curiosidade, e simplesmente na ordem em que foram registados, 241 dos medos que então recolhi. E são 241 por duas razões: a primeira, muito pragmática, porque são os que consigo, de forma razoavelmente legível, colocar em duas páginas; a segunda, de carácter mais simbólico, porque o somatório dos algarismos deste número perfaz 7, o número que “corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, às sete pétalas de rosa (…) aos sete ramos da árvore cósmica (…), a totalidade (…), a perfeição dinâmica (…), [o número que] indica o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva” (Chevalier, 1994:603).

Mas sete, também, porque (como aprendi numa aula com um aluno-professor, o Miguel Costa), como muitas palavras mágicas têm sete letras (alegria, carinho, sorriso, caminho, coração…), talvez possam ser, em si mesmas, fonte de inspiração para processos de transformação de uma palavra de 4 (medo) numa palavra de 7 (coragem).

Sete, em resumo, porque, sendo o número da perfeição e da mudança, poderia ser também símbolo de (dis)solução das muitas polaridades e dicotomias (vida-morte, criação-destruição, mente-emoção, sombra-luz, MEDO-DESENVOLVIMENTO HUMANO…), que, ao longo do percurso da pesquisa, tenho vindo a encontrar.

Então, à pergunta “de que temos medo?”, eu já posso responder: de tudo… ou de quase tudo. Se, por um lado, os medos são “induzidos por experiências traumáticas intensas ou repetidas” (Lelord & André, 2002:237), por outro, também: “Vivemos entre a recordação e a imaginação, entre fantasmas do passado e fantasmas do futuro, reavivando perigos velhos e inventando ameaças novas, confundindo realidade e irrealidade, quer dizer, feitos numa confusão. (...) Não há nada que seja um perigo em si (...). Todos os perigos são perigos-para. Necessitam de um sujeito paciente cujos planos ou situação ou interesses ameaçam.

79 Ver lista de medos no final deste ponto do capítulo.

178

(...) Tudo o que um sujeito considera que pode causar-lhe um mal de qualquer tipo (...) pode converter-se num perigo (Marina, 2006:13; 109-110).

Fica, por isso, uma outra pergunta: quem, de entre nós, poderá dizer, com toda a sinceridade e consciência, que nunca sentiu (ou sente), pelo menos “dois ou três” (ou sete… ou, talvez mesmo, “setenta vezes sete”80), dos medos daquela ou de outra lista?

Assim, e apesar de haver um tipo específico de pessoas com propensão para ter medo81 e para se deixarem dominar pelas emoções (Martin & Boeck, 1999:57), a reflexão que aqui procuro fazer não diz tanto respeito a um tipo específico de pessoas de temperamento medroso e, muito menos, a doenças do medo. A reflexão que aqui procuro fazer diz respeito, isso sim, a um outro tipo de medo – o medo com que muitas mais pessoas se confrontam nas suas práticas quotidianas e na dinâmica da sua vida interior, quer ele tenha, quer não, uma face exterior muito visível.

1. Tipos de medo

Medos normais e patológicos*; inatos e adquiridos; individuais e colectivos

A partir de uma classificação muito próxima das definições apresentadas por Damásio de emoções e sentimentos universais e emoções e sentimentos secundários, Marina descreve os seguintes tipos de medo (2006:21-30;101-103):

- MEDOS NORMAIS – adequados à gravidade do estímulo, não anulam a capacidade de controlo e de resposta.

- MEDOS PATOLÓGICOS* – com um alarme desmesurado, tanto na sua activação como na sua regulação.

80 Alusão a Mt. 18,22. 81 “As pessoas que têm propensão para ter medo (....) são frequentemente irritáveis e tímidas, andam tensas e nervosas. Têm uma grande necessidade de ser amadas e aceites, mas sentem-se frequentemente isoladas, dolorosamente diferentes das outras, e incompetentes. Por isso, preferem o conhecido ao desconhecido, buscam de forma instintiva a segurança, e onde se sentem melhor é num ambiente com que estão familiarizadas. Ao mesmo tempo são delicadas e sensíveis, têm muito tacto e muita fantasia” (Martin & Boeck, 1999:57-58).

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o Os critérios que os distinguem são muitas vezes encontrados numa avaliação estatística.

- MEDOS INATOS – tenazes e universais, são provocados por desencadeantes não aprendidos. o Ex: um susto provocado por estímulos intensos e repentinos, pela perda de orientação, etc.

- MEDOS ADQUIRIDOS – aprendem-se por condicionamento, por experiência directa, por imitação e por transmissão de informação. o Medos que resultam de acontecimentos traumáticos – acidente, separação dolorosa... o Medos que resultam de acontecimentos penosos e repetidos – pequenos traumas sofridos de maneira regular, humilhações, agressões... o Medos que resultam da aprendizagem social – imitação de modelos... o Medos que resultam da assimilação de mensagens alarmantes – uma educação centrada na ideia do perigo, o modo como na família se fala dos problemas... - MEDOS INDIVIDUAIS – porque o medo é uma emoção individual.

- MEDOS FAMILIARES E MEDOS SOCIAIS – porque o medo é uma emoção contagiosa. o Por exemplo: medos do milénio, medos da peste, medos baseados em crenças ou superstições, medo da perda da identidade nacional ou religiosa, medo do fracasso em certos tipos de sociedade...

Medos naturais e medos culturais

Lelord & André (2002: 226-232):

- MEDOS NATURAIS: medo de certos animais, das alturas, de espaços fechados… - MEDOS CULTURAIS: medo do fim do mundo, do diabo, das feiticeiras…

- MEDOS CULTURAIS LIGADOS A PERIGOS REAIS: medo de doenças infecciosas, medos relativos a alguns alimentos…

Medos físicos e psicológicos

Krishnamurti (2002:17-36):

- MEDOS FÍSICOS – muitos destes medos são sinal de inteligência.

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o Por exemplo: medo de uma serpente venenosa ou medo do fogo.

- MEDOS PSICOLÓGICOS – os que tiram a lucidez e a capacidade de ver em profundidade e impedem viver no sentido de uma felicidade tranquila e profunda. o Por exemplo: o medo que faz aceitar o condicionamento de uma determinada cultura ou sociedade... o Por exemplo: o medo que faz aceitar ser influenciado pelas pressões e pelas tensões da vida de relação, por factores económicos, climáticos, educativos, pelo conformismo religioso, etc.

2. Níveis de medo

Moffit (2003b):

- ESTADO NORMAL DE ALERTA o Está-se atento a qualquer mudança no ambiente.

- VIGILÂNCIA o Natural e saudável, ocorre no corpo-mente quando se percebe um possível perigo. Termina quando o perigo passa.

- HIPERVIGILÂNCIA o Quando há um estado prolongado de ansiedade ou medo. Cria um efeito de visão-túnel – a experiência da vida é feita através das lentes do medo ou da ansiedade. o Se for repetidamente desafiada, pode tornar-se um padrão na vida. A nossa sociedade actual apresenta sinais de viver num estado de hipervigilância.

- REFLEXO TRAUMÁTICO CONGELADO o Ocorre quando o perigo é constante ou quando o sistema nervoso perde a capacidade de perceber que o perigo passou. o Se as circunstâncias em que a pessoa vive a levam a evitar estar atenta a si própria (ou se a pessoa repetidamente contrai os músculos para se proteger contra abusos físicos e verbais), as respostas podem ficar permanentemente congeladas no sistema neuromuscular e podem ser activadas em situações de stress.

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o Quase toda a gente tem algum grau de medo bloqueado que precisa ser desobstruído. o Estes padrões de medo congelado podem ser detectados através de sensações de desconforto, da perda de sensações no corpo, da sensação de desconexão mental, ou ainda de sensação de não se estar no corpo.

Jeffers (1991:13-16):

- PRIMEIRO NÍVEL – o nível da superfície. Pode ser dividido em dois tipos: o Medos do que acontece – ex: envelhecer; ficar sozinho, desastres naturais, perda de segurança financeira, morrer… o Medos que requerem acção – ex: tomar decisões, mudar de carreira, fazer amigos, ser entrevistado, começar ou terminar uma relação…

- SEGUNDO NÍVEL – medos que envolvem o ego, mais relacionados com o estado interior do que com situações exteriores. Reflectem um sentido do self e a capacidade de lidar com o mundo. o Medo da rejeição, do insucesso, do falhanço, da perda de imagem, da desaprovação….

- TERCEIRO NÍVEL – o nível mais profundo, o maior medo de todos, o que bloqueia, o medo que está subjacente a todos os outros medos. o O medo de não se ser capaz de lidar com o que a vida trouxer. Exemplos: medo de não ser capaz de lidar com a doença; medo de não ser capaz de lidar com o insucesso; medo de não ser capaz de lidar com a rejeição...

3. Alguns medos (brevemente) explicados

Para me manter em harmonia com a simbologia atrás referida, e ainda que “muitos dos nossos medos tenham difícil explicação” (Marina, 2006:15), passo a apresentar 7 dos medos que constam da lista dos 241 e parecem ser dos mais comuns:

a) MEDO DA SOLIDÃO – acontece em pessoas emocionalmente dependentes. É o medo que faz com que, por exemplo, muitas situações de violência doméstica se

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mantenham pois a pessoa sente-se incapaz de enfrentar o mundo sozinha (Marina, 2006:121-122).

b) MEDO DE TOMAR UMA POSTURA FIRME – revela-se na incapacidade de afirmação e defesa dos próprios direitos. A dependência da avaliação dos outros pode ser tão exagerada que produz a anulação da própria identidade, integridade e dignidade (Marina, 2006:126).

c) MEDO DO DESCONHECIDO E DA MUDANÇA – “mudança” significa viajar por águas inexploradas e isso faz com que as inseguranças venham ao de cima (Maxwell, 1993:57).

d) MEDO DO SILÊNCIO – significa que se tem uma mente obsessiva, febril, que continuamente pede que se esteja activo (Osho, 2001:23). É o que impede ser capaz de estar sozinho, de explorar os próprios medos ou a dimensão interior (Phillips, 2003:64).

e) MEDO DO PRAZER – é também o medo da dor, não apenas física. Ocorre quando um impulso expansivo depara com uma área contraída e fechada do corpo que, amortecendo contra a dor, amortece também contra o prazer (Lowen, 1984:67- 69).

f) MEDO DO MEDO – é o medo de acordar a tristeza dos insucessos do passado que ainda vive no corpo e nas memórias (Phillips, 2003:20).

g) MEDO DE ACABAR – é o medo de se reconhecer o que se perdeu, ou o que se está em vias de perder. É também o medo de começar, porque tudo é um círculo (Phillips, 2003:189).

Em resumo, e porque nestes medos cabem todas as experiências de uma vida que, em tantas situações, vive o conflito, o desespero, a solidão, o desencanto, a violência de nos ajustarmos, imitarmos e seguirmos uma qualquer “moralidade” social ou a nossa “moralidade” pessoal peculiar (Krishnamurti, 2002), julgo que fica claro por que foi possível (e fácil) fazer uma interminável lista de “medos de tudo”. O que é o mesmo que dizer, por que foi fácil fazer uma lista do MEDO DA VIDA.

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• Outros rostos do medo

Mas tudo isto até poderia ser relativamente tranquilo e fácil de resolver se, para lá dos medos de que, apesar de tudo, as pessoas falam (ou reconhecem) com alguma facilidade, não houvesse muitos outros que (muitas vezes sob a auréola de uma falsa força ou coragem), são frequentemente esquecidos, disfarçados, encapuçados, encapotados.

“É o medo entranhado, o medo incorporado, o medo sem objecto (…) companheiro de todos os instantes, doença que se agarra à pele do espírito e por isso não se vê, podendo-se mesmo sentir como se em nós não estivesse inscrito” (Gil, 2005:77).

Ainda que brevemente, passo a apresentar exemplos de “medos disfarçados” que vi referenciados por alguns autores, mas que, em contexto informal (provavelmente porque, como tal, não são percepcionados), raramente vi enunciados.

a) A BRANDURA, A DOÇURA E A AMENIDADE – são transformação do medo da violência (Gil, 2005:75-76) ou do medo de ser magoado (Lowen, 1997:53).

b) A VERGONHA – é não se atrever, é sentir medo de fazer alguma coisa que se considera perigoso; deriva da necessidade de protecção do eu social (Marina, 2006:127-129).

c) OS ÁLIBIS DO MEDO – “dá muito trabalho”, “não se pode confiar”, “fica para a outra vez”, “já é demasiado tarde”... (Albisetti, 2003: 39-40).

d) OS “DEVO”, OS “TENHO QUE”, A PERMANENTE ATITUDE DE VÍTIMA – são a outra face do medo de assumir a responsabilidade pelo que acontece na própria vida (Jeffers, 1991:40).

e) A PRUDÊNCIA – como antípoda da paixão, mantém a “chama vital” uma saudável distância (Moore, 2000:26).

f) A PREGUIÇA – como uma forma de medo e o medo com uma das formas assumidas pela preguiça (Peck, 2002:300).

g) O SENTIMENTO DE CULPA – baseado no medo e na supressão da raiva (Lowen, 1997:93).

h) O STRESS – uma forma de reagir ao medo da mudança e ao medo de assumir a responsabilidade pelos próprios sentimentos (Hay, 1998:169).

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i) OS VÍCIOS – formas de encobrir o medo das emoções (Hay, 1998:75).

j) A LUTA PELO PODER – nasce do medo de se sentir impotente (Lowen, 1984:76).

k) A MEGALOMANIA – de quem procura mais ser temido do que ser amado (Russel, 2001:22).

l) O EGOCENTRISMO, O ETNOCENTRISMO E O SOCIOCENTRISMO – de quem se coloca no centro do mundo e considera como insignificante, secundário ou hostil tudo o que é estranho ou afastado (Morin, 2002:102). m) SENTIMENTO DE SOLIDÃO, SUSCEPTIBILIDADE, ESCRUPULOSIDADE, DESPOTISMO,

ARROGÂNCIA, IRRITABILIDADE, INVEJA – são os disfarces de um ego que se sente ameaçado (Calle, in Olba, 1996:14).

n) E MUITOS OUTROS, como os preconceitos, o controlo de pessoas e situações, o ciúme, o excesso de comida, a timidez, a vergonha, a agressividade, a competição, a necessidade desmesurada de sucesso e de dinheiro, também referidos por estes e outros autores.

Hennezel & Leloup (2001:68) escreviam: “Compreendo absolutamente S. João82 quando diz que o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O amor verdadeiro afasta o receio, liberta-nos dele”. Estará aqui presente a ideia de que todos os nossos actos ou são ditados pelo amor, ou pelo medo? Não será por isso que, sem muito esforço, esta lista de medos disfarçados também poderia chegar rapidamente aos tais simbólicos “241”?

• Filhos do Medo

O homem (qualquer homem) permanece na prisão durante muitos anos, mesmo que as grades não estejam fechadas. Ele pode sair, mas durante a sua permanência aprendeu a temer os possíveis perigos com que se poderia encontrar. Assim, chegou a sentir uma espécie de segurança e protecção por detrás dos muros em que esteve preso por vontade própria. A escuridão da prisão impede-o de ter uma visão clara de si mesmo e não está seguro de como será recebido no mundo que vê por detrás das suas grades – Powell.

É difícil colocar em poucas páginas tudo o que (tanto em desenvolvimentos bem sistematizados, como em referências mais ou menos pontuais), aprendi com os diversos autores sobre as causas e os efeitos do medo. A partir do momento em que se considera que vivemos numa cultura baseada no medo e que os medos podem nunca

82 S. João. 4,8 – “O perfeito amor afasta o receio”.

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mais ter fim, parece que nenhum campo de pesquisa, nem nenhuma dimensão humana, ficam fora do seu estudo ou do alcance da sua influência.

Mas nem sempre é fácil distinguir causa e efeito. Será que sou tímido porque tenho medo, ou tenho medo porque sou tímido? Será que sou preconceituoso porque tenho medo, ou tenho medo porque sou preconceituoso? Tendo, por isso, presente o conceito de medo como fenómeno TRANSACCIONAL83, coloco exemplos do que encontrei como matéria de reflexão sobre causas individuais e sociais (e políticas) do medo.

1. O ovo e a galinha – causas do medo a nível social e político

Mecanismos de amedrontamento

Marina (2006:43-75) explica que existem mecanismos de amedrontamento que podem ser utilizados pelo poder (por muitos tipos de poder!) para, pela apropriação da vontade da vítima, fazer com que esta se submeta à vontade de outrem:

a) A AMEAÇA – demonstra a capacidade de uma pessoa ou instituição provocarem algum tipo de prejuízo; o medo humilha e a humilhação deixa a vítima com menos recursos. - Ameaça de pena por não cumprir uma lei; ameaça de reprovação por não se estudar para exame; chantagem; extorsão... b) A SUSPENSÃO DA RECOMPENSA – facilita relações complicadas e destrutivas. - Medo de uma criança de perder o afecto dos pais; medo de uma mulher que, sofrendo de violência doméstica, sabe que tem de ser submissa para evitar os maus-tratos...

c) A PERSEGUIÇÃO – é o poder de, pela repetição sistemática de humilhações, ameaças e maus-tratos, tornar a vida impossível a outra pessoa. - Perseguição de uma criança por colegas na escola; perseguição no trabalho...

83 Com uma causalidade circular difícil de compreender. Ver também neste ponto do capítulo, “Criação de um segundo cenário de fundo – a palavra da psicologia...”.

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d) AS MÁSCARAS DE FÚRIA – feitas de gestos, de violência verbal e de gritos com o intuito de amedrontar outros. - A fúria como uma forma doméstica de impor o medo... e) O ISOLAMENTO – obriga a pessoa a romper com os seus vínculos afectivos e anula a sua possibilidade de comunicação. - Muito comum em situações de violência de género...

f) A MANIPULAÇÃO DE EMOÇÕES – ridicularizando, suscitando sentimentos de culpa ou de dependência amorosa; pode ser uma forma suave de intimidar. - Todos os sedutores são manipuladores afectivos...

g) O MEDO REVERENCIAL – fonte de grandes sofrimentos, é um tipo de amor misturado com medo por causa da grandeza do outro. - Presente na religião, na majestade e na honra...

Patologias colectivas do medo

Max-Neef (1993:25) sugere quatro tipos de patologias colectivas do medo que, sendo intencionalmente provocadas, conduzem ao ressentimento, à apatia e à perda da autoestima:

a) A CONFUSÃO SEMÂNTICA E OS EUFEMISMOS – usados frequentemente no campo político (chamando, por exemplo, liberdade e ordem àquilo que é prepotência), fazem com que as pessoas deixem de compreender e se tornem cínicas, alienadas ou impotentes, frente à realidade.

b) A VIOLÊNCIA – que perturba a necessidade de protecção e dá origem à ansiedade.

c) O ISOLAMENTO, A MARGINALIZAÇÃO E O EXÍLIO POLÍTICO – que destroem a identidade das pessoas e geram sentimentos de culpa.

d) A FRUSTRAÇÃO DE PROJECTO – que, devida a uma intolerância política, aniquila a liberdade e destrói a capacidade criativa das pessoas.

2. O ovo e a galinha – causas do medo a nível individual

“Todos vivemos na mesma realidade, mas cada um de nós habita o seu próprio mundo. Um valente e um cobarde não vêem o mesmo (...). Por isso, quando

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dizemos que o medo é o sentimento desencadeado pela aparição do perigo, estamos dizendo algo verdadeiro que acaba sendo falso pela sua singeleza (...). A perigosidade do objecto depende da avaliação que faz o sujeito e esta pode estar equivocada” (Marina, 2006:16-17).

Fundamentos psicológicos do medo

Num trabalho muito sugestivo sobre o medo e a felicidade, Peña y Lillo (1991:81-118), apresenta os fundamentos psicológicos do medo que, não sendo mecanismos totalmente conscientes, constituem as atitudes básicas erróneas responsáveis pela maioria dos sofrimentos inúteis do homem.

a) ANTECIPAÇÃO IMAGINÁRIA – enquanto percepção antecipada do perigo, o medo é produto e fruto da imaginação: - Por vezes mais angustiante na pre-visão e pre-caução em relação à ameaça do futuro, do que em relação a uma situação real do objecto do medo, transforma-se num pre-viver e pre-ocupar com o futuro que se teme como se ele tivesse a proximidade e a premência do presente. - Tem um poder de auto-realização84 – na sua capacidade criadora de expansão do espaço e do tempo, incorpora o imaginário no campo do real.

b) CONTAMINAÇÃO DO PRESENTE COM O PASSADO – a leitura do presente é feita através da utilização ilegítima das experiências do passado. O exagero da memória, particularmente da memória emocional, pode ser um factor limitador da plenitude da experiência psíquica. c) RESISTÊNCIA E RECUSA DO SOFRIMENTO – a infelicidade resulta, em grande parte, de uma resistência em aceitar o risco e o lado difícil e precário da vida. Para que o sofrimento e o medo se convertam numa experiência de maturidade, é preciso aprender o sentido da dor. d) DESEJO E AMBIÇÃO – o medo surge das falsas expectativas que aprisionam a vida do homem e submetem a sua liberdade a um conjunto de deveres auto- impostos.

84 São as profecias auto-realizáveis. Existem dois tipos: as auto-impostas, que ocorrem quando as próprias expectativas influenciam o comportamento, e as impostas e comunicadas por outros (Adler & Towne, 1999:68).

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- Apesar de o desejo (enquanto condição natural e necessária da vida), ser necessário para uma conduta prepositiva e para a criatividade humana, os desejos inferiores provêm de um eu imaginário e de uma invenção da consciência que mascara o eu real e se apoia no mundo exterior e nas expectativas do ego.

Avidyā (compreensão incorrecta)

No Yoga Sütra de Patañjali85 aparece o conceito de AVIDYĀ, um conceito importante para a compreensão do medo. Significando literalmente “compreensão incorrecta” e “ignorância”, a avidyā, profundamente enraizada em nós, está relacionada com a forma como percebemos as coisas86. É composta por quatro ramos que, tanto actuam individualmente, como em conjunto (Desikachar, 1995:9-11): a) Asmitā: ego – conduz-nos a pensamentos do tipo “eu sei que tenho razão”, “tenho de ser o melhor”. b) Rāga: fazer exigências – queremos alguma coisa hoje porque ontem foi agradável, não porque necessitemos hoje. c) Dvesa: rejeitar coisas (o oposto de rāga) – tivemos uma experiência difícil e, porque temos receio de a repetir, rejeitamos pessoas, pensamentos, situações. d) Abhinivesa: medo – estamos inseguros, temos dúvidas sobre a nossa posição na vida, receamos o julgamento de outras pessoas…

Queremos aquilo com que nos identificamos ou que nos dá prazer (raga = paixão); rejeitamos e pomos de lado o que consideramos que nos faz mal (dvesha = aversão); por isso temos medo (ABHINIVESHA) das coisas que nos magoam e temos medo de perder o que nos dá prazer. Se tivéssemos consciência de quem somos, não teríamos

85 Sistematizado pelo sábio Patañjali, é o texto mais universal sobre Yoga e o registo escrito mais antigo da cultura da Índia. Está focado na mente, nas suas qualidades e na forma como a podemos influenciar. 86 Desikachar (1005:9-11) explica de que forma a avidyā actua e como faz com que tenhamos tantas dificuldades na vida: (1) pode ser o resultado acumulado de muitos dos nossos modos de perceber e das acções inconscientes que, mecanicamente, carregamos ao longo de anos; (2) faz com que a mente se torne cada vez mais dependente, como se a claridade da consciência fosse coberta por um filtro; (3) confunde o desagradável com o incorrecto; (4) vai até ao ponto em que as acções de ontem passam a ser as normas de hoje.

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medo de nada. A forma de resolver isto é resolver a ignorância – isto é, caminhar no sentido de perceber quem somos.

Distorções cognitivas

Considerando que não são os acontecimentos que nos movem, mas a valoração que fazemos deles, Marroquín & Villa (1995:61-70) apresentam as DISTORÇÕES COGNITIVAS87 da comunicação intrapessoal. Estas distorções, porque exageradas e fantasiosas (feitas com pensamentos ou ideias irracionais, imagens, frases internas ou palavras soltas que, conscientemente ou não, repetimos sem cessar), desenvolvem uma interpretação da realidade capaz de gerar muito sofrimento inútil. Três exemplos:

a) FILTRO MENTAL – escolher e fixar-se num detalhe negativo de uma situação escurecendo o resto da realidade.

b) LEITURA DO PENSAMENTO – julgar adivinhar o que os outros pensam, as suas motivações profundas e prever os seus comportamentos em relação a nós.

c) ENUNCIADOS “DEVERIA” – tanto dirigidos à própria pessoa, como dirigidos aos outros.

Estrutura do pensamento

Krishnamurti, além de argumentar que a nossa transformação em seres humanos livres e diferentes não se faz pela compreensão verbal e intelectual88, considera que os medos psicológicos têm origem na ESTRUTURA DO PENSAMENTO pois o lugar do

87 As outras distorções cognitivas apresentadas por Marroquín & Villa (1995:61-70): - Polarização: avaliar as qualidades pessoais em categorias dicotómicas extremas (ou tudo ou nada – base do perfeccionismo). - Generalização Excessiva: chegar a uma conclusão a partir de um incidente num momento determinado. - Especulação Emocional: à falta de dados objectivos, tomar as nossas próprias emoções como prova subjectiva. - Personalização: situar-se no centro de uma qualquer problemática, assumindo a responsabilidade perante um facto negativo, mesmo sem fundamento. - Etiquetação: catalogar os outros, ou a si mesmo, de um modo simplista e rígido a partir de um pormenor isolado ou parcial. - Catastrofismo: expressar sempre o pior do futuro. - Evasão de Controlo: perceber a vida como algo sobre o qual não se tem controlo. 88Também a Bioenergia refere que “por mais que haja conversa ou compreensão, isso não aliviará significativamente as graves tensões musculares que oprimem a maioria das pessoas. Essas tensões bloqueiam a expressão dos sentimentos e só podem ser aliviadas através da plena expressão dos sentimentos” (Lowen, 1997:174).

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pensamento na vida é uma faca de dois gumes – se for lúcido, é indispensável à vida quotidiana, à ciência e à tecnologia; mas, se não for, tece uma rede de enganos (2002:23).

“A memória, a experiência e o conhecimento acumulado constituem o fundo, a base, de onde surge o pensamento. Portanto, o pensamento nunca é novo, o pensamento é sempre velho; o pensamento nunca pode ser livre, porque está preso ao passado e é, portanto, incapaz de ver qualquer coisa realmente nova. Quando nos apercebemos disto muito claramente, a mente torna-se serena, silenciosa. A vida é movimento, um constante movimento em relação e quando o pensamento procura impedir esse movimento, prendendo-se ao passado, como memória, fica com medo da vida” (Krishnamurti, 2002:28).

Relação entre medo, percepção e organização do campo perceptual (auto-conceito, relação com os outros, visão do mundo)

Premissas: 1. Os sentimentos permitem a percepção do objecto, a percepção do estado corporal, a percepção das modificações de estilo e eficiência do pensamento (Damásio, 2003). 2. “A PERCEPÇÃO é uma fonte primária de conhecimento do mundo” (Hacker, 1998:45).

3. A ORGANIZAÇÃO DO CAMPO PERCEPTUAL DA PESSOA, depende de dois conjuntos de factores (Guenther & Combs, 1980:93ss): a. De estímulos sensoriais, valores, necessidades, objectivos relevantes, informação, conceitos, ideias, eventos passados guardados na memória e evocados por serem pertinentes na situação actual. b. Da orientação perceptual, isto é, da “maneira individual e única de perceber que a pessoa desenvolveu através da sua experiência de vida”. A orientação perceptual inclui:

i. as percepções que a pessoa tem DE SI MESMA (o AUTOCONCEITO); ii. as percepções que a pessoa tem DAS OUTRAS PESSOAS;

iii. a percepção que a pessoa tem DA REALIDADE FÍSICA E SOCIAL. 4. “O COMPORTAMENTO é uma função do campo perceptual da pessoa no momento em que é emitido como comportamento” (Guenther & Combs, 1980:93 ss).

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Neste enquadramento, passo a apresentar algumas das muitas situações em que, de forma directa ou indirecta, diversos autores estabelecem uma relação entre as causas e vivências do medo e a percepção-sentimento-conceito de si mesmo, dos outros e do mundo.

a) EXPOSIÇÃO PROLONGADA A UM AMBIENTE HOSTIL – traumas de infância e a permanência numa relação psicológica ou fisicamente violenta, tanto no campo pessoal como profissional, produzem uma hipervigilância que leva a experimentar a vida através das lentes do medo e da ansiedade (Moffitt, 2003b:3).

b) DEFICIENTE AUTO-ESTIMA, CRENÇAS NEGATIVAS EM RELAÇÃO A SI MESMO, LIMITAÇÕES APRENDIDAS NO PASSADO – evidenciam-se num crítico interno que desvaloriza os próprios pontos de vista e utiliza estratégias de auto- desvalorização, de adiamento e de perfeccionismo; consubstanciam-se em dúvidas e medos da desaprovação, do fracasso e do erro (Aldana, 1996:60).

c) SENTIMENTOS DE ESTIGMATIZAÇÃO E A NECESSIDADE DE SER NORMAL – porque a sociedade categoriza as pessoas e os atributos considerados comuns e normais para os seus membros, a pessoa estigmatizada, não habilitada para a aceitação social plena, sente muitas vezes que está em “exibição” e tem tendência a tornar-se desconfiada, deprimida, hostil, confusa e ansiosa (Goffman, 1982:11;22).

d) A CULPA COMO SENTIMENTO DE NÃO TER O DIREITO DE SER LIVRE, COMO SENSAÇÃO

DE NÃO ESTAR À VONTADE NO PRÓPRIO CORPO – o comportamento é controlado por um superego que, funcionando abaixo do nível de consciência, não permite aperceber que as limitações das acções e dos sentimentos não decorrem do livre-arbítrio, mas da interiorização do genitor ditatorial (Lowen, 1997:15).

e) ARQUÉTIPO DO GUERREIRO POUCO ACTIVADO – o “Guerreiro89” é o que defende os limites dos “reinos” internos e externos; se estiver pouco activado, há mais

89 Enquanto símbolos com origem no inconsciente colectivo (conjunto herdado de todos os impulsos e energias inconscientes partilhados pela humanidade), mas também enquanto modelos de desenvolvimento

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dificuldade em perder o medo do conflito e em superar as desculpas com que evita fazer frente às responsabilidades vitais (Aldana, 2000:79).

f) IGNORAR A CAPACIDADE DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS – uma das principais causas do medo do novo, do desconhecido, da mudança e da liberdade é o desconhecimento de que das crises surgem oportunidades de aprendizagem e de abertura a novas possibilidades (Feitosa, 2006:62).

g) DETERMINISMO DAS CONVICÇÕES E CRENÇAS – impondo a força do sagrado, do dogma e do tabu, tem uma força coerciva que suscita conformismo, rigidez, bloqueios e medo (Morin, 2002:32).

h) PERDA DE CONTACTO COM A VIDA INTERIOR – a azáfama, o auto-desconhecimento, o afastamento do self90 profundo, o viver exclusivamente para o exterior, a prisão ao reino conhecido dos factos, a falta de familiaridade com os modos de actuação da vida interior impedem a atribuição de sentido à vida e a descoberta da segurança emocional (Moore, 2000:16-23).

3. O ovo e a galinha – efeitos do medo “Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz” – Platão91

O medo produz um TRIPLO ESTREITAMENTO NA CONSCIÊNCIA (Marina, 2006:24): a) Um ESTREITAMENTO CORPORAL – o corpo é sempre sentido como uma vivência opressiva; a palavra angústia, por exemplo, indica impossibilidade de respirar com amplitude.

b) Um ESTREITAMENTO PSICOLÓGICO – o mundo é visto como um lugar de ameaça, os estímulos neutros são percebidos como perigosos; dá-se uma visão de túnel, a atenção está sempre dependente da ameaça. pessoal, os arquétipos são facetas da personalidade que cada pessoa activa, em maior ou menor grau, segundo as circunstâncias da sua história de vida (Aldana, 2000). 90 Self – expressão utilizada por Moore para significar as necessidades ou potencialidades internas da pessoa; diferente do ego que está em contacto com a realidade externa e é dotado de consciência, intenções e vontade de controlo (Moore, 2000:7) 91 www.pensador.info/p/resumo_livro_quem_tem_medo_do_escuro/1/

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c) Um ESTREITAMENTO CONDUTIVO – todas as energias se concentram para, estando em alerta máximo, poder fugir ou realizar rituais que, momentaneamente, libertem da angústia.

Assim, e não esquecendo a PERSPECTIVA TRANSACCIONAL com que o fenómeno do medo precisa ser entendido, retomo os três elementos da organização do campo perceptual (auto-conceito, relação com os outros e visão do mundo), atrás colocados nas causas do medo, para agora, também a partir deles, perceber o alcance dos seus efeitos.

Autoconceito O medo na relação da pessoa consigo mesma

Relação Visão do com os mundo outros Para Lowen (1997:163), a tensão crónica é a equivalente física do medo. Mesmo que a pessoa não esteja disso consciente,

Ilustração II.6 – A ligação entre o medo qualquer músculo cronicamente tenso e a organização perceptual. está em estado de medo. É aquilo a que normalmente se chama “estar petrificado de medo”, “estar morto de medo”, etc. Três dos exemplos apresentados pelo autor:

a) O medo de se entregar provoca TENSÕES que prendem e restringem – boca contraída, maxilar projectado, ombros erguidos, pescoço contraído, peito inflado, ventre encolhido, pelve imóvel, pernas presas, pés estreitos (164).

b) A angústia emocional leva as pessoas a queixarem-se de DORES NA REGIÃO LOMBAR e a apresentarem SITUAÇÕES DE DISSOCIAÇÃO DO CORPO, de refúgio na

cabeça e de INSENSIBILIDADE (168). c) A raiva e o medo da raiva (que está no centro do medo de se entregar) dão

origem a TENSÕES NA BASE DA CABEÇA. Os impulsos emocionais sobem pelas costas, são bloqueados na base do crânio e, para que o impulso não irrompa, colocam como que uma tampa sobre o topo da cabeça (177).

194

De acordo com Neill (1971:123, 194), já Reich (de quem Lowen foi discípulo), tinha chamado a atenção para o facto de que uma criança que viva numa situação permanente de medo passa a vida a tomar o fôlego e a retê-lo. O medo de ser rejeitado ou abandonado por chorar, gritar ou por ser muito exigente, cria a incapacidade de

RESPIRAR encontrada em muitos asmáticos. Pelo contrário, a respiração livre e fluida indica que não se tem medo da vida.

E porque sou mulher, não quero deixar de também trazer aqui um extracto do livro “Corpo de Mulher, Sabedoria de Mulher”, de Christiana Northrup, médica ginecologista- obstreta. Trata-se de um livro em que a autora analisa as áreas do corpo feminino e em que, cruzando os problemas de saúde com comportamentos e circunstâncias de vida, explica a forma como aqueles podem ser afectadas pelo estado emocional e espiritual92. E se é certo que em nenhum lugar do texto aqui transcrito se lê a palavra “medo”, não será difícil perceber como ele está subjacente a todo o seu sentido:

92 Outros autores também estabelecem relações deste tipo. Bourbeau (2004), por exemplo, considera que um mal-estar ou uma doença são uma advertência para que tomemos consciência de que se atingiu o limite físico, emocional ou mental. Partindo de uma perspectiva holística que impede dissociar a pessoa, esta autora apresenta as causas profundas (não orgânicas) de um número larguíssimo de doenças. São tantas as referências relacionadas com o medo que me limito a colocar algumas das, aparentemente, mais comuns ou mais conhecidas: ANOREXIA E BULIMIA – a primeira está ligada ao medo da rejeição, a segunda está ligada ao medo de ser abandonado; produzem-se muitas vezes em pessoas rígidas que não estão em contacto com as suas necessidades e não se permitem realizar os seus desejos (79). CÃIBRA – produz-se muito em quem, por medo, se quer agarrar a alguma coisa ou a alguém (88). DIARREIA – relacionada com o medo de não ter alguma coisa, ou de não fazer o bastante, de fazer mal, ou de fazer em demasia; a sensibilidade emotiva está desordenada e a pessoa tende a rejeitar uma dada situação quando nela é confrontada com os seus medos (140). DOR NO PESCOÇO – a rigidez do pescoço que impede voltar a cabeça denota a inflexibilidade de uma pessoa que tem medo de ver ou ouvir o que se passa nas suas costas (311). FADIGA – quando é frequente e sem razão aparente, está relacionada com situações de pensamentos cheios de preocupações e de medos que bloqueiam e desgastam a energia. (180) LARINGITE – leva à perda de voz e indica que a pessoa evita falar porque tem medo de não ser ouvida, ou porque receia desagradar a alguém; a pessoa engole as palavras que ficam presas na garganta e podem causar dores (238). MAGREZA – a pessoa rejeita-se, sente-se pequena comparada com outros, tem medo de ser rejeitada e quer muitas vezes desaparecer – é do género apagado e muito delicado com os outros (249). OBSTIPAÇÃO – está relacionada com a abstenção de dizer ou fazer alguma coisa com medo de desagradar, de perder alguém ou alguma coisa (276). PESADELO – é a manifestação do inconsciente em relação a um medo que não é, ou não quer ser, consciente (309). PROBLEMAS DE ESTÔMAGO – estão relacionados com a intolerância e o medo perante o que não se gosta (172).

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“(…) Os fibromiomas* representam a nossa criatividade à qual nunca se deu asas, incluindo imagens de “fantasia” de nós próprias que nunca alcançaram a luz do dia e segredos criativos dos nossos outros “eus”. Os fibromiomas também se desenvolvem quando gastamos energia de vida para fins inúteis como empregos ou relações que já pusemos de parte. (…) Os fibromiomas estão frequentemente associados a conflitos relacionados com criatividade, reprodução e relações. (…) O facto de tantas mulheres apresentarem estes tumores é, talvez, uma evidência da nossa energia criativa colectivamente bloqueada da nossa cultura” (Northrup, 2004:177).

Finalmente, e porque o medo é uma “violência da pessoa contra si mesma” (Moffit, 2003b), as suas influências não se circunscrevem ao corpo físico. Alguns exemplos de outros efeitos que, aliás, até poderiam engrossar a lista de os “outros rostos do medo”:

a) ADIAR sistematicamente o agir, uma REDUÇÃO DOS MOVIMENTOS próprios da exploração, do investimento afectivo, da liberdade corporal, da espontaneidade e do desejo… (Gil, 2005:87,69).

b) Sentimento de INSEGURANÇA latente e um APEGO a coisas exteriores que o dinheiro pode comprar (Chopra, 2005:68).

c) Inquietação, fadiga da vida quotidiana e AMOR DA AGITAÇÃO (Russel, 2001:73,76).

d) PERDA DE CONTACTO COM A VERDADEIRA NATUREZA, a substituição da auto- referência (em que o ponto de referência interior é constituído pela nossa própria alma), pela referência ao objecto (em que as influências vêm do que acontece fora de nós – situações, circunstâncias, pessoas ou coisas) (Chopra, 2005:55).

e) IRRESPONSABILIZAÇÃO perante a própria vida (Trigo & Kon-Traste, 2001:24).

f) DIMINUIÇÃO DA CAPACIDADE DE VIVER e gozar a plenitude da vida (Peña y Lillo, 1991:23; Lowen, 1997:163 e ss).

g) Viver num ESTADO PERMANENTE DE DESAPONTAMENTO só porque se tem medo do desapontamento (Moffit, 2000a).

h) DILEMA entre a necessidade profunda de comunicação interpessoal e o medo da

rejeição e da incompreensão que leva à SOLIDÃO e ISOLAMENTO profundo em que tanto se vive (Marroquín & Villa, 1995:88).

i) PERTURBAÇÃO IRREMEDIÁVEL DA BUSCA DO SER MAIS (Freire, 2003:75).

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O medo na relação com os outros

“Todas as pessoas que sentem medo, criam bem no fundo um grande ego à volta do medo e estão sempre a bombear mais ar para esse balão do ego que se torna demasiadamente grande. Adolfo Hitler, Idi Amin do Uganda – esse tipo de gente fica muito inchada de orgulho. Depois começa a meter medo aos outros. Alguém que tenta meter medo a alguém sabe que, bem no fundo de si, também tem medo, caso contrário porquê? (…) As pessoas que têm medo metem medo aos outros para se sentirem bem” (Osho, 2002b:143).

Os efeitos do medo na relação com os outros estão em grande consonância com os efeitos do medo na relação da pessoa consigo mesma. Por isso, e sem mais desenvolvimento, listo alguns dos efeitos do medo recolhidos em Dreher (2000), Jeffers (1991) e Feitosa (2006):

- Acusação de outros - Intolerância da - Queixa permanente - Ciúme independência dos - Relação de - Comparação entre as outros dependência pessoas - Inveja - Tentativa de controlo - Exigência excessiva - Necessidade de de outras pessoas - Intimidação aprovação - Vingança

O medo e a visão do mundo

A crise da utopia e da perda da capacidade de sonhar; o derrotismo e a desmobilização; o individualismo exacerbado e o cinismo; o medo gerando a violência e a violência gerando o medo (Max-Neef, 1993). São as pessoas que, sentindo-se vítimas de um mundo hostil, “ (...) não podem dar genuinamente. Estão imbuídas por um sentido profundo de escassez no mundo, como se nada à sua volta fosse suficiente. Amor insuficiente, dinheiro insuficiente, reconhecimento insuficiente, atenção insuficiente – simplesmente insuficiente” (Jeffers, 1991:172)93.

93“People who fear can’t genuinely give. They are imbued with a deep-seated sense of scarcity in the world, as if there wasn’t enough to go around. Not enough love, not enough praise, not enough attention – simply not enough” (Jeffers, 1991:172).

197

Neill (1971:118) sentencia: “somente o ódio pode florescer numa atmosfera de medo”.

1.3 Síntese do medo

Ilustração II.7 – Do domínio do medo sobre a acção ao medo impulsionador da acção.

1. O medo, estado psicológico e mecanismo natural, inscrito de forma indelével no mais profundo do nosso ser, é nosso eterno companheiro de viagem – enquanto emoção, é uma resposta reflexa a determinados estímulos; enquanto sentimento, permite a criação de uma estratégia alargada de protecção (Damásio, 1995; 2000). Por isso, o medo, quando saudável, pode ser uma chamada para a acção e o impulsionador dos nossos maiores feitos. Entendo que é exactamente isto o que, na sabedoria popular, significa “tirar o medo", e se expressa como “refrescar”, “realentar”, “desenvolver” ou “animar” (Bivar, 1948) – o que, há muitas páginas atrás, congreguei numa única categoria que denominei “repor vida”.

2. Enquanto que, por um lado, o medo produz um triplo estreitamento na consciência (corporal, psicológico e condutivo) (Marina, 2006:24), por outro, “todo o acto verdadeiramente humanizado deverá estar impregnado de intenção* e a sede da intenção é a consciência” (Feitosa, 2006:58). Por isso, o medo, relacionado como está com a forma como percebemos as coisas, pode desencadear um conjunto diversificado de comportamentos que, por ausência de intencionalidade* operante (isto é, por não se traduzir em consciência, inquietação, auto-orientação, expressão de si mesmo, abertura

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à experiência da vida, aceitação dos outros e de si mesmo) são “acção sem sentido, mera agitação ou capricho” (Sérgio, 2005b:19). Julgo que é exactamente isto o que, na sabedoria popular, são outros nomes do medo: “estreiteza”, “enleio”, “tremelica”, “atamento” (Bivar, 1948) – o que, também há muitas páginas atrás, identifiquei na construção de categorias dos sentidos lexical e analógico como “ausência de paz”, “perda de identidade” e “perda de energia vital”.

3. São múltiplas as formas com que o medo se manifesta: - Manifesta-se na nossa cultura que, não sendo capaz de apoiar as imensas possibilidades da vida humana, se empenha, porque convém ao seu sistema, em padronizar os homens (Boff, 1998). - Manifesta-se em todas as formas de poder coercivo (político, económico, intelectual, hierárquico...) que detém o poder sem autoridade e que, por um lado, se gera resistência, por outro, gera gente estúpida, apática e descomprometida (Moffit, 2003b). - Manifesta-se no contentamento individual e social expresso na analogia do slogan publicitário “rabinho seco, bebé feliz” (talvez o formato moderno do “pão e jogos” da era romana), produzido por uma sociedade de consumo cheia de coisas e de barulho, criadora de dependências, angariadora de multidões e de falsas identidades, vivendo para a imagem, mas vazia de sentido de vida (Guenther & Combs, 1980; Cashman, 2000). - Manifesta-se na mentira, no insulto, no desprezo, na inveja, na indiferença e na atitude blazé de quem acha nada ter a aprender e a receber (Gil, 2005). - Manifesta-se na excessiva racionalização que evita a sensibilidade do corpo, das emoções e do espírito (Lowen, 1997). - Manifesta-se na saúde individual e colectiva, na rigidez, nas tensões e doenças crónicas (Lowen, 1984; Bourbeau, 2004). - Manifesta-se na atitude de queixa permanente, na mentalidade de vítima, mas também na incapacidade de nos interessarmos suficientemente por nós próprios (Aldana, 1996). - Manifesta-se numa moral que gere, predominantemente, sentimentos de culpa, em vez de gerar sentimentos de acção e criação (Lowen, 1997).

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- Manifesta-se nos talentos não potenciados que ficam eternamente escondidos (Mt, 25, 24-30). - Manifesta-se na busca desenfreada do “prazer”, do “curtir”, das sensações fortes e das emoções superficiais. - Manifesta-se..., manifesta-se…., manifesta-se….

4. Não podemos mudar o que sentimos, mas, de acordo com o significado atribuído a cada experiência, podemos mudar a nossa forma de agir (Goleman, 2005). Por isso, e parafraseando Sartre, o importante, não é tanto procurar saber o que o medo nos faz a nós, mas procurar descobrir o que somos capazes de fazer com aquilo que o medo fez ou faz em nós. É o desafio de, percebendo quem verdadeiramente somos, caminharmos no sentido da (dis)solução de mais um par de opostos: o encontro da nossa horizontalidade, da nossa matéria, com a nossa verticalidade, a nossa transcendência.

5. Tentando relacionar a parte e o todo, no texto abaixo colocado encontro um exemplo do paralelo que se possa estabelecer entre os movimentos de procura-exploração- curiosidade e de recuo-imobilização-fechamento do nosso organismo (Damásio, 1995) e o afã por se libertar do medo que está presente nos ciclos que traçam a história da humanidade (Marina, 2006:9):

“Podia ver que a longa história da humanidade iria ser impelida por estes dois anseios contraditórios. Por um lado, ultrapassaríamos os nossos medos devido à força das nossas intuições, devido às nossas imagens mentais de que a vida se relacionava com o atingir de uma determinada meta, com o fazer progredir a cultura numa direcção positiva que apenas nós, como indivíduos, agindo com coragem e sabedoria, poderíamos inspirar. (…) Por outro, seríamos amiúde dominados pelo outro anseio oposto, o anseio de nos protegermos do Medo, por vezes perdendo de vista o objectivo, caindo na angústia da separação e do abandono. Este Medo iria conduzir-nos a uma autoprotecção receosa, lutando para mantermos as nossas posições de poder, roubando energia uns aos outros e opondo sempre resistência à mudança e à evolução, sem tomarmos em consideração as informações novas e melhores que pudessem estar ao nosso dispor” (Redfiel, 2005:118).

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1. medo do sofrimento 44. medo de expressar-se 88. medo de inscrever 2. medo de conhecer 45. medo da dor 89. medo de acreditar 3. medo de arriscar 46. medo da intimidade 90. medo de criar 4. medo de ter medo 47. medo da perda de amor 91. medo de perder o controlo da 5. medo de sofrer 48. medo da perda da segurança situação 6. medo de ser derrotado 49. medo da vida 92. medo do rival 7. medo do fracasso 50. medo de causar uma impressão 93. medo de ser apontado como 8. medo de ser criticado que não corresponda à auto- incompetente 9. medo da desilusão imagem 94. medo do poder 10. medo da perda 51. medo de parecer incapaz 95. medo da impotência própria 11. medo de si mesmo 52. medo do inesperado perante o poder 12. medo das pessoas que nos 53. medo de ser rejeitado 96. medo de ser desmascarado desejam o mal 54. medo da represália 97. medo de parecer ter medo 13. medo do confronto 55. medo de um futuro colapso 98. medo do eu desconhecido 14. medo de dizer não 56. medo do desconhecido 99. medo de parecer fraco 15. medo de não conseguir levantar 57. medo do colega 100. medo de perder alguma coisa 16. medo de se envolver 58. medo do sucesso 101. medo de parecer ignorante 17. medo do silêncio 59. medo de cair 102. medo de “ir a exame” 18. medo de enfrentar a 60. medo da hierarquia 103. medo de ser julgado interioridade 61. medo do castigo 104. medo de escolher 19. medo de parecer medíocre 62. medo da desaprovação 105. medo do vazio 20. medo de ser passivo 63. medo de Deus 106. medo de sair 21. medo de desiludir 64. medo da pobreza 107. medo de ser apontado a dedo 22. medo das minhas sombras 65. medo do ridículo 108. medo de ser punido 23. medo de ser activo 66. medo de ser eu 109. medo de fazer amigos 24. medo dos adultos 67. medo de fantasmas do passado 110. medo de perder o emprego 25. medo de ser o que não sou 68. medo de lutar 111. medo de não saber 26. medo de parecer ser 69. medo de ser despedido 112. medo da exclusão 27. medo de saber o que os outros 70. medo de morrer 113. medo de perder pensam 71. medo de doenças 114. medo do medo vir à tona 28. medo da própria interioridade 72. medo de se abrir 115. medo de ser visto por todos 29. medo de não ser perdoado 73. medo dos começos 116. medo do aborrecimento 30. medo de envelhecer 74. medo dos fins das coisas 117. medo de “não estar à altura” 31. medo de se perder 75. medo de ficar parado 118. medo de ser descoberto 32. medo de não ter dinheiro 76. medo de falhar 119. medo de se tornar indesejável 33. medo do prazer 77. medo de viver 120. medo da opinião pública 34. medo de tomar decisões 78. medo de estar só 121. medo de ser considerado 35. medo da imaginação 79. medo de aborrecer perverso 36. medo da mudança 80. medo de decidir 122. medo do aborrecimento 37. medo do risco 81. medo de chorar 123. medo dos estranhos 38. medo da verdade 82. medo de rir 124. medo da liberdade 39. medo do abandono 83. medo de amar 125. medo de nós próprios 40. medo da solidão 84. medo de se comprometer 126. medo da luz 41. medo de ser avaliado 85. medo de sofrer uma decepção 127. medo da insegurança de amar 42. medo de perder a cabeça 86. medo da violência 128. medo de tomar uma postura 43. medo da entrega 87. medo de agir firme

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129. medo de ver 172. medo de falar em público 206. medo de começar a nossa 130. medo de ouvir 173. medo de se magoar própria viagem 131. medo de sentir 174. medo de não ser aceite 207. medo de sermos espirituais 132. medo do compromisso 175. medo de não suportar algo que 208. medo de saber que somos 133. medo de ser feliz mata um pedaço dentro de nós amados por Deus 134. medo da responsabilidade 176. medo da angústia 209. medo de perder o outro 135. medo de ser livre 177. medo da saudade 210. medo de não me saber proteger 136. medo de que magoem quem 178. medo de não conseguir 211. medo de não ser valorizado amo ultrapassar uma fase difícil 212. medo de não estar 137. medo de brincar 179. medo da novidade suficientemente seguro 138. medo de ter fé 180. medo de voar mais alto 213. medo do outro 139. medo de crescer 181. medo de mudar 214. medo de ficar só 140. medo de existir 182. medo de sair magoado 215. medo da possibilidade de 141. medo de experimentar 183. medo de não me rever no que acontecer 142. medo de sonhar mostro 216. medo de que os outros não 143. medo do que se sente 184. medo de ficar infeliz gostem 144. medo de pedir ajuda 185. medo de perguntar 217. medo da reacção dos outros 145. medo de ser diferente 186. medo de confiar 218. medo de me ouvir 146. medo de estragar 187. medo de reconhecer que não 219. medo de deitar para fora tudo o 147. medo de relaxar me conheço que sinto 148. medo de falar 188. medo de inovar 220. medo que me roubem os meus 149. medo de dizer o que se pensa 189. medo de renascer segredos 150. medo de se expor 190. medo de me sentir diminuído 221. medo de me exprimir perante 151. medo de ter tempo 191. medo de me expor muitas pessoas 152. medo de não estar à altura 192. medo de mudar da 222. medo da recriminação 153. medo do que vão dizer de nós superficialidade para um âmbito 223. medo de magoar 154. medo do nosso semelhante mais próximo do outro 224. medo de um caminho que não 155. medo da ameaça 193. medo de se implicar se sabe onde vai dar 156. medo de contar um segredo 194. medo de ser o que se é 225. medo de se perder o que se 157. medo do sobrenatural 195. medo do confronto cognitivo acredita ter 158. medo de viver em sociedade 196. medo de expor a minha criança 226. medo de se analisar a si mesmo aberta indefesa 227. medo de fazer figura de parvo 159. medo de dizer o que sente 197. medo de não ser compreendido 228. medo das expectativas das 160. medo de falar dos medos 198. medo de ser gozado outras pessoas 161. medo de ser vítima 199. medo de mandar 229. medo do desapontamento 162. medo de reclamar os próprios 200. medo de sermos nós mesmos 230. medo do fim das coisas direitos 201. medo do oculto 231. medo de ser estigmatizado 163. medo de falar a verdade 202. medo de tocar 232. medo de cenas violentas 164. medo de se desnudar 203. medo de sermos únicos e 233. medo do estranho 165. medo do conflito irrepetíveis 234. medo do aborrecimento 166. medo do novo 204. medo de assumir a 235. medo da instabilidade 167. medo do futuro responsabilidade de sermos 236. medo de expressar sentimentos 168. medo de se olhar ao espelho nós próprios 237. medo de protestar 169. medo de perder o que se 205. medo de aceitar as partes que 238. medo de defraudar acredita ter estão na sombra, fracas, 239. medo de se sentir culpado 170. medo da humilhação miseráveis, de nós mesmos 240. medo de gritar 171. medo do desapontamento 241. medo de respirar

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2. O Desenvolvimento Humano

2.1 A Inquietação do Ser

Viver é não ter vergonha de ser feliz Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz Eu sei que a vida deveria Ser bem melhor e será Mas isto não impede que eu repita É bonita, é bonita e é bonita. Luís Gonzaga Jr.

Porque “eu sou eu mais as minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset94), depois de ter trabalhado o Medo, e de aí ter encontrado muitos dos factores que constantemente condicionam e sugam os nossos pés para a terra das nossas vicissitudes, agora, para trabalhar o Desenvolvimento Humano, preciso perceber “quem sou” e “de onde venho” – para que, com os pés pisando firme na terra e mantendo os olhos postos no sol e no céu95, possa, também na linha de Ortega, “salvar as minhas circunstâncias e salvar-me a mim”. Volto, por isso, a colocar a pergunta que já atrás tinha colocado: Somos filhos de quem ou do quê? Que outra filiação nos pode garantir um novo rumo e o sentido de eternidade?

E procuro na mais simples lei da Física, a de Lavoisier (aquela, tantas vezes a única, que muitos estudantes nunca esquecem, mas que, provavelmente, não compreendem/os verdadeiramente em toda a sua extensão), uma explicação para as nossas origens e para o nosso destino:

“NADA SE CRIA, NADA SE PERDE, TUDO SE TRANSFORMA”.

O que encontro a partir daqui? O fantástico BIG BANG do universo de há biliões de anos, com uma natureza e razão de ser ainda não compreendidas... A nossa Via Láctea entre milhares de milhões de outras galáxias... O SOL, o ar... o planeta TERRA, o magma, a

94 http://en.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Ortega_y_Gasset. 95 E, pela junção do céu e da terra, formar o sete da totalidade. Porque que a terra é simbolizada pelo número 4 (dos pontos cardeais) e o três simboliza o céu (Chevalier, 1994). Aliás, mais adiante, desenvolverei a ideia dos sete corpos, dimensões ou tons presentes no homem e que, de acordo com os antigos, é reflexo da constituição septenária no homem e no Cosmos (Bohórquez & Trigo, 2006; Angel Livraga, 1994).

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água, as rochas... A VIDA, os dinossauros, os mamíferos, os primatas... E, há três milhões de anos, O HOMO... (Boff, 1998; Ribeiro Dias, 2000).

Então, se dessa explosão inicial, e na imensa cadeia de transformação que se lhe seguiu, nada mais se criou, nada mais se perdeu, mas tudo se transformou, “cada eu de nós” já estava lá!

Mas, que “cada eu”? Que humano? Que Homo?

Big Bang  Milhares de Milhões de Galáxias  Estrelas – Sol – Planetas  Planeta Terra  Oceano de Água  Continentes  Diluição do manto de poeira e o nascer e o pôr do sol de cada dia  A VIDA  O primeiro Anfíbio  Os Mamíferos  A primeira ordem dos Primatas  O HOMO

Ilustração II.8 –“Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A partir de Boff, 1998 e Ribeiro Dias, 2000.

• Filhos do Sol

Em Maturana descubro a origem do humano no EMOCIONAR DO AMOR. “Nós somos biologicamente diferentes dos chimpanzés (...) porque pertencemos a uma história de conservação do amor como fundamento do nosso conviver” (Maturana, 2000:74). Isto é, descubro os seres humanos, desde a sua origem:

- Vivendo em pequenos grupos, de cerca de cinco a oito indivíduos de todas as idades.

Por isso ainda hoje vivemos na INTIMIDADE de pequenos grupos, mesmo quando pertencemos a grandes comunidades. - Compartilhando a comida numa transferência directa de um indivíduo para outro.

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Por isso a nossa história de conservação do PARTILHAR como uma maneira de viver. - Participando nos cuidados dos filhos, brincando em contacto corporal, carregando, dividindo com eles, estando atentos.

Por isso o prazer e a alegria de CUIDAR dos nossos filhos.

- Sendo animais sensuais, acariciando, tocando, desfrutando do CONTACTO

CORPORAL. Por isso o bem-estar fisiológico que nos vem das carícias das mãos, da pele, da voz, do olhar, das palavras.

Em Moltmann descubro a humanidade da vida numa VIDA INTERESSADA E PARTICIPANTE

NUMA OUTRA VIDA:

“A vida humana não será nunca vivida simplesmente à toa como vivem os animais. (...) A pessoa estará viva na medida em que está interessada na vida e participa numa outra

vida, confirmando a vida comum e ABRINDO-SE COM TODOS OS SENTIDOS à aventura da vida. (...) Quando não se ama mais, mesmo a si próprio, quando nos tornamos indiferentes e não partilhamos nada com ninguém, morremos. Paralisa-se o corpo vivente na apatia da alma (...) Enquanto estás interessado estás vivo. Amortece o teu interesse pela vida, e começas a morrer. (...) A vida humana é biológica, tal como outra vida que a si mesmo se reproduz. A humanidade desta vida consiste no facto de que ela é recebida, afirmada e que ela é

enquanto tal uma vida interessada. A força para se ser pessoa reside na TOTAL

AFIRMAÇÃO e no AMOR SEM RESERVAS a esta frágil e mortal vida” (Moltmann, 2007:87).

E em Boff descubro o princípio da RECIPROCIDADE-COMPLEMENTARIDADE entre as espécies, os ecossistemas e o universo inteiro – o que faz com que a nossa realização pessoal também dependa da realização do nosso mundo:

“No universo todos os seres existem e vivem uns pelos outros, com os outros, nos outros e para os outros. Ninguém está fora desta relação includente. Mais fundamental que o

princípio de sobrevivência do mais forte (Darwin) é o da SOLIDARIEDADE-AMOR de todos para com todos (Bohr). É esse amor solidariedade que constitui a grande comunidade cósmica, terrenal e humana. É ele que dá origem também ao princípio da

RECIPROCIDADE-COMPLEMENTARIDADE. Um ajuda reciprocamente o outro a existir e a se

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desenvolver. Todos se complementam e crescem juntos: as espécies, os ecossistemas e o universo inteiro” (Boff, 1998:92).

• Todos os nomes do SER

São muitos os termos utilizados pelos diferentes saberes para se referirem a esta dimensão mais interior do homem que explica a sua capacidade de superação e de criação de novos ciclos de vida e o sentido da sua transcendência. Escolhi apresentar sete. Se foi este o número que usei para alinhar “todos os rostos do medo”, também agora o vou usar para encontrar “todos os nomes do Ser”.

1. Eu Real – Self Interior – Pessoa Pública

Para a compreensão do nosso sentido de identidade, Phillip Moffit (2003a) explica a relação que se estabelece entre Pessoa Pública, Self Interior e Eu Real:

A PESSOA PÚBLICA ou IDENTIDADE EXTERIOR: - É uma necessidade psicológica e social que se desenvolve automaticamente desde a infância e ao longo da idade adulta. Não é a identidade verdadeira, mas o resultado da interacção, ou fricção, entre as nossas experiências interiores e exteriores. - Inclui o conjunto de qualidades que se apresenta aos outros como sendo “eu” (simpático, competente, modesto…), e que exteriormente parece sólido, consistente e imutável. - Existe um filtro que (na medida do possível, e a partir dos milhares de pensamentos, impulsos e sensações corporais que diariamente se experimentam), escolhe a identidade que se quer revelar ao mundo.

O SELF PRIVADO ou IDENTIDADE INTERIOR: - É tanto “o que conhece”, que reconhece e responde aos estímulos, como “o objecto” do próprio conhecimento. Isto é, como cada um conhece e experimenta a vida dentro de si mesmo.

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- É parte do eu, uma interpretação da vida pessoal, subjectiva e única, mas, por isso, também cria a separação entre as pessoas e é fonte de todo o sofrimento. - Possui muitas características e sentimentos que podem entrar em conflito entre si e que não são revelados na pessoa pública porque a tornam vulnerável, ou não são aceites socialmente. - Tal como a pessoa pública, é impermanente.

O EU REAL - É a consciência da experiência de nos sentirmos um com o Absoluto – Deus, Brahman, Vazio… - É a capacidade de conhecer o Absoluto tal como este se manifesta na natureza e em tudo o que está no mundo. É a experiência de um “coração desperto”. É a experiência da vida sem medo ou vontades. É o sentimento de se estar vivo, ligado à vida.

2. Ishvara – Purusha – Citta

O Yoga, com origem nos Vedas, tem fundamentos que, ainda que aqui muito simplificados, vale a pena colocar (Desikachar, 1995):

Existe ISHVARA, o lugar privilegiado da nossa consciência: - É fonte de conhecimento96, não é atingido pelo tempo, não está afectado à matéria e não sofre os efeitos da ignorância.

Existe PURUSHA, o que observa e toma consciência da mudança: - É o eu profundo, mas não está associado a um corpo; está dentro de nós e podemos, ou não, tomar consciência dele. É Ishvara que dá origem aos nossos purushas.

Existe CIT, a forma única de ver as coisas (VISHAYA): - Quem chegar a cit tem um grau de humildade muito grande, não precisa provar nada. O fim do caminho é a pessoa liberta, a clareza total.

Existe CITTA, o mental, o psiquismo, e purusha observa através de citta:

96 Tem correspondência com Deus, embora o conceito cristão contenha outros elementos.

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- Se o mental estiver perturbado, a observação será perturbada; mas se o mental estiver puro, a percepção não será deformada. O que torna as pessoas diferentes é o mental (as experiências que tivemos e nos marcaram), mas, na essência, somos todos iguais. O que é percebido é real (o que sinto, o que vejo, o que sonho…), mesmo que as outras pessoas não vejam. O que é percebido muda e tudo está em constante mudança.

Tudo o que muda é PRAKRITI – a natureza, os sentimentos, os pensamentos… - O que não está bem pode ser transformado.

Existe, além disso, no fundo do esterno, um lugar privilegiado para encontrar purusha

ou cita. É KHA e, no centro desse espaço, a fonte do cit, ishvara. É por isso que, quando se diz “eu”, se aponta para este ponto, não para a cabeça (para o mental), pois, de alguma maneira, temos consciência de que o nosso eu se situa aí.

É também a partir de kha que surge

Ilustração II.9 – A dinâmica do Ser na perspectiva do Yoga Sutra. SUKHA (o bem-estar, a sensação de Adaptação de Esteves, A. (1999) - imagem de conferência pública. que algo se expande a partir daí), ou DUHKHA (o mal-estar não físico, que aperta e dói)97. Embora ninguém escape a dukha, o objectivo é passar de dukha a sukha, da contracção e aperto para a expansão. A avidya98, a ignorância e causa de infelicidade, resulta de não sabermos quem somos e de nos identificarmos com os nossos pensamentos, com a nossa maneira de ser, com o nosso trabalho, com o nosso sucesso ou insucesso – isto é, de ignorarmos a nossa verdadeira natureza.

97 Não está isto próximo do que Damásio refere como sendo a genealogia da nossa regulação vital, os dois movimentos que revelam o estado de vida do nosso organismo (o movimento de recuo, de fechamento e o movimento de exploração e curiosidade), que já tive oportunidade de referir no início do presente capítulo? 98 Tal como já foi antes explicado com a apresentação das causas do medo (ponto 1.2.3 deste capítulo), a avidyã é composta por quatro ramos que, tanto actuam individualmente, como em conjunto: Asmitā: ego; Rāga: fazer exigências; Dvesa: rejeitar coisas; Abhinivesa: medo.

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3. Higher Self – Ego

Higher Self Ego

Este? ou Este?

Mente Consciente

Subconsciente

Corrente de Corpo interior, energia externa emoções e do universo intelecto

Ilustração II.10 – Higher Self e Ego. Reprodução, adaptação e tradução de Jeffers (1991:193).

De acordo com Jeffers (1991:189), é na Psicologia Transpessoal* que surge o conceito de Higher Self e que a autora explica estar posicionado em relação ao Ego tal como se pode ver num modelo simplificado aqui reproduzido (ilustração 2.8). O Higher Self e Ego representam diferentes experiências da vida: se se ouvir o primeiro, a experiência da vida será plena de alegria, abundância e livre do medo; se se ouvir o segundo, a experiência da vida produz medo e impede a expansão pessoal.

O HIGHER SELF: - É a fonte de pensamentos e energia positivos, é o espaço da criatividade, intuição, confiança, amor, doação… de tudo o que reside no “coração do coração”. É capaz de um alto grau de sensibilidade e sintonia com a harmonia do universo.

O EGO - É a fonte de pensamentos e energia negativos, é o depósito de todos os input negativos, desde o tempo do nascimento até à actualidade. - Precisa de uma atenção constante e não sabe dar.

A MENTE CONSCIENTE - Envia ordens para o Subconsciente baseadas na informação que recebe do Higher Self e do Ego.

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- Pode escolher ouvir o Higher Self ou o Ego, mas, muitas vezes, não é consciente de que está a ser conduzida pelo Ego. Mas, mesmo se existir essa consciência, a mente consciente está tão habituada a ouvir o Ego que, nas práticas quotidianas, se “esquece” de ouvir o Higher Self. Precisa por isso, de ser constantemente recordada.

O SUBCONSCIENTE - É o armazém de uma grande quantidade de informação. Tem acesso à Energia Universal. - Recebe ordens da mente consciente e acredita no que esta lhe diz, quer seja verdade, ou não. Não questiona nem julga, não distingue o bem do mal.

- Utiliza a INTUIÇÃO99 para fazer a nossa ligação com o que procuramos.

CORPO INTERIOR, INTELECTO E EMOÇÕES - O subconsciente cumpre as ordens que recebe da mente consciente através da ligação que estabelece com o corpo, o intelecto e os sentimentos e repercutindo aí a energia (positiva ou negativa) recebida.

A ENERGIA UNIVERSAL - Sem a qual o mundo não existiria, produz a sensação de que não estamos sozinhos e estamos ligados a coisas que são maiores do que nós. - Aprender a confiar na energia universal assinala o fim do medo.

4. Eu e Eu, Eu Mesmo

Walt Whitman, poeta que celebra a natureza humana e a vida, distingue em si mesmo três componentes – o Eu (self), a alma (soul), o Eu verdadeiro ou o Eu, Eu mesmo (real me ou me myself) (Ribeiro Dias, 2000:125ss).

99 De acordo com Shallcross & Sisk (1989:3), a informação pode ser recebida por duas vias – externamente, pela via dos sentidos, e internamente, pela via da intuição. Quando se usam os cinco sentidos: presta-se atenção aos detalhes práticos e aos factos; está-se em ligação com as realidades físicas; presta-se atenção ao momento presente, o que é dito ou feito; vêem-se os pormenores da vida quotidiana; as experiências são realizadas passo a passo; deixa-se que os olhos digam à mente. Quanto se usa a intuição: percebe-se com a memória e a associação; vêem-se padrões e significados; projectam-se possibilidades para o futuro; usa-se a imaginação e lê-se nas entrelinhas; procura-se a imagem geral; têm-se palpites ou ideias vindas de lado nenhum, deixa-se que a mente diga aos olhos.

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O EU: - É a personalidade, ou pathos – uma persona*, uma série infinitamente mutável de identificações, revestida de uma couraça e com a máscara que o próprio escolhe.

A ALMA: - Por oposição ao Eu, é o carácter ou ethos – a natureza desconhecida; o ser humano como emergido do mundo das coisas.

O EU VERDADEIRO ou o EU, EU MESMO: - É a faculdade de conhecer – próximo da capacidade gnóstica de conhecer exactamente como se é conhecido. - É a dimensão da relação com o Mistério, a centelha do divino que actua em nós. - Vigia e conduz no caminho no sentido de vocação e de missão.

5. Carácter e Persona*

Num trabalho que estabelece a relação entre a capacidade de liderança* e a capacidade de crescimento pessoal e de descoberta da identidade interior, Cashman

(2000:44-45), distingue entre CARÁCTER e PERSONA100.

CARÁCTER - De presença pacífica, transforma e abre possibilidades e potencialidades. - O ser suporta a acção. - Guiado por: autenticidade, sentido, abertura, confiança, compaixão, coragem, inclusão, equilíbrio/centração, vontade de criar valor; fluidez e adaptabilidade.

PERSONA - De presença difícil, protege e limita possibilidades e potencialidades. - O fazer suporta a acção. - Guiado por: imagem, segurança, medo, interesse pessoal, fuga, exclusão, ganhar a qualquer custo, distracção, resistência à mudança.

100 Persona era o nome da máscara que os actores do teatro grego usavam. Por extensão, designa um papel social ou um papel interpretado por um actor - http://pt.wikipedia.org/wiki/Persona (24.04.08)

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6. Ser Central e Centro do Nosso Centro

António Blay (1988:274-275), num livro sobre relaxamento consciente como técnica de desenvolvimento de capacidades mentais e espirituais, ensina a capacidade de aceitação pessoal, de abertura ao nosso Ser Central e ao Centro do nosso Centro. E apresenta-os nos seguintes termos:

O SER CENTRAL - É a evidência profunda de mim mesmo, a fonte inesgotável de energia, de amor, de plenitude e de felicidade, a que se chega pela abertura da nossa dimensão horizontal.

O CENTRO DO NOSSO CENTRO - É donde recebemos a nossa força e o nosso sustento, a que se chega pela abertura da nossa dimensão vertical.

7. Condutor-Pedagogo-Mestre

E Ribeiro Dias, depois de nos conduzir pelos caminhos de muitos dos que, na história das ideias, têm procurado exprimir o fundamental da pessoa na descoberta do contexto, do lugar, do tempo e do sentido do mistério da nossa realização como seres humanos, escreve sobre o MESTRE no último parágrafo do seu livro “A Realização do Ser Humano”:

“O CONDUTOR ou PEDAGOGO ou MESTRE não pode deixar de ser O EU do próprio ser humano, não o eu dos acontecimentos a deixar-se levar por forças exteriores, nem o eu das conjunturas a pretender guiar-se de acordo com projectos e estratégias meramente

pessoais, mas o EU ESTRUTURAL, PROFUNDO, VERDADEIRO, O EU, EU MESMO, que ao reconhecer ter recebido tudo e ter-se recebido todo na sua Origem, quer tudo retribuir e retribuir-se todo, como forma de se realizar ele próprio e participar, também, na Realização do Universo” (Ribeiro Dias, 2000:141).

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Sabendo agora que o nosso corpo pessoal se relaciona com o corpo do universo, que o ego é a nossa máscara social e que o Ser é a essência do que somos (onde nem o medo nem a ansiedade estão presentes), tudo indica, então, que o processo de transformação de uma palavra de 4 letras (medo), numa palavra de 7 (coragem), precisa de uma palavra de 3 – precisa do Ser. Procuro, por isso, traduzir na figura e quadro seguintes o que encontro, leio, sinto e pressinto em comum nas reflexões atrás desenvolvidas e que re-asseguram e desafiam para a descoberta e encontro da nossa imanência com a nossa transcendência.

Energia Universal Centro do nosso Centro Ishvara Deus

Eu Real Higher Self Purusha Carácter A Alma Eu Verdadeiro Eu, Eu Mesmo

Pessoa Pública + Eu Privado Mente Consciente + Ego O Eu O Eu dos Acontecimentos O Eu das Conjunturas

Ilustração II.11 – Síntese de “Todos os nomes do Ser”.

Energia Universal, A Origem. Centro do nosso Centro A fonte do conhecimento. Ishvara, Donde recebemos a força e o sustento. Deus Transforma. Consciência de ter recebido tudo e ter-se recebido todo na Origem. Fonte de pensamentos e energia positivos – espaço da criatividade, intuição, Eu Real confiança, amor... Higher Self Conduz no caminho de vocação e missão. Purusha A faculdade de conhecer. Carácter Evidência profunda de mim mesmo. A Alma O que observa e toma consciência da mudança, a clareza total. Eu Verdadeiro Capaz de sintonia com o universo. Eu Eu Mesmo A experiência de um “coração desperto”. A centelha do divino de actua em nós. Deseja participar na realização do Universo. Pessoa Pública Protege. Eu Privado A personalidade – couraça e máscara. Mente Consciente O mental, o psiquismo, uma interpretação da vida pessoal, subjectiva e única Ego – é fonte de separação entre as pessoas; cria o sofrimento. O Eu dos Resultado da interacção entre as nossas experiências interiores ou exteriores. Acontecimentos O deixar-se levar por forças exteriores. O Eu das Conjunturas Fonte de pensamento e energia negativos. Tabela II.3 – Síntese de “Todos os nomes do Ser”.

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2.2 Contornos do Desenvolvimento Humano

“Escuta-me bem, meu pequeno. Não te esqueças que estás num campo de concentração. Aqui, cada um tem de lutar por si próprio e não pensar nos outros. Nem no próprio pai. Aqui, não há pais, nem irmãos, nem amigos. Cada um vive e morre para si, só. Dou-te um bom conselho: não dês mais a tua ração de pão e de sopa ao teu velho pai. Já nada podes fazer por ele. E assassinas-te a ti mesmo. Pelo contrário, tu é que devias ficar com a ração dele...”

Ellie Wiesel, “A Noite”.

Ilustração II.12 – A desumanização nas histórias dos homens.

“DESENVOLVIMENTO HUMANO – processo contínuo de construção do ser humano, como espécie e como indivíduo, que ocorre na dialéctica entre natureza e cultura, referindo-se à totalidade complexa que se expressa como motricidade, implicando, como constituinte, a praxis orientada por valores como a busca de condições de existência material e espiritual dignas para todos os seres humanos, a ampliação da liberdade de pensamento, sentimento e expressão crítico-criativa, a promoção da solidariedade e do respeito pela alteridade” (Kolyniak, 2005:33).

Citando Gilberto Gallopin, Max-Neef (1993:98) identifica três versões possíveis do futuro da humanidade. A primeira, a da possibilidade de extinção total ou parcial da espécie humana, como resultado da destruição do meio ambiente ou de um holocausto nuclear. A segunda, de que já há tantos sinais, a da barbarização do mundo, como resultado de uma distância que cada vez mais separe os poucos muito ricos (encerrados em diversos tipos de espaços-fortalezas protectoras – legais, económicos, habitacionais, comportamentais, etc.), dos imensos muito pobres que se estendam para lá dessas defesas. A terceira, mas que implica uma mudança de racionalidade, a da possibilidade da grande transição e transformação de uma dominante da competência económica a princípios da solidariedade de quem aprende a viver junto.

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É esta terceira versão do futuro aquela que aqui se quer sonhar, a que entendo estar presente na definição de desenvolvimento humano acima colocada. Por isso (e embora sejam como peças de puzzle que só fazem sentido pela relação que estabelecem com todas as outras), vou utilizar as suas palavras e expressões-chave para melhor perceber o alcance do desafio que provoca.

1. Desenvolvimento Humano

DESENVOLVIMENTO – “acto ou efeito de desenvolver”. Desenvolver – “estender o que estava encolhido; tirar do invólucro; tirar a timidez a” (Torrinha, 1990:399).

Isto é, procurar e encontrar dentro de si mesmo o que aí está escondido. Não um acréscimo, não “uma engorda”, mas sim um descobrir, um desvelar da verdade de si mesmo. É por isso que retrocessos, bloqueios, crises e tensões são parte da construção do humano, pois, como nos ensina a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine (1983)101, podem encerrar possibilidades insuspeitas que conduzam a estados mais elevados de desenvolvimento.

HUMANO – “próprio do homem”. Humanidade – “natureza humana; compaixão; benevolência” (Torrinha, 1990:659). Diferente de Hominização, que tem um “simples” sentido biológico (Trigo & Kon-Traste, 2001:35), Humanização tem um sentido relacional.

“A emoção fundamental ou o fundamento emotivo em que ocorre a vida da comunidade humana é a cooperação, o saber, a confiança mútua e o respeito mútuo nas relações interpessoais Os seres humanos ficam enfermos num ambiente de desconfiança, manipulação e instrumentalização das relações” (Maturana, 2000: 61).

101 Para Prigogine, “as estruturas dissipativas são sistemas dinâmicos sujeitos a transformações que vão do aparentemente caótico ao progressivamente mais ordenado a partir do momento em que tem lugar uma nova situação. Todo o sistema aberto funciona nos limites entre a estabilidade e a instabilidade devido às flutuações de energia. As estruturas dissipativas pressionam o sistema vivo para poder avançar mediante a mudança que gera a instabilidade para chegar a conseguir uma nova estabilidade numa fase mais avançada e complexa. Desse modo o sistema desenvolve-se mediante estádios de ordem, desordem e reordenação permanente” (Torre, 2008:7).

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É por isso que o melhor desenvolvimento é o que, elevando a qualidade de vida das pessoas, consegue satisfazer adequada e harmonicamente as NECESSIDADES HUMANAS

FUNDAMENTAIS102 - um desenvolvimento que ultrapasse a racionalidade económica e comprometa o ser humano na sua totalidade (Max-Neef, 1993).

2. Processo contínuo de construção do ser humano

Um processo não linear, não fragmentário, não somatório, não desagregado. Porque cada indivíduo é um ser sempre incompleto (Freire, 2000).

Desenvolvimento humano implica, por isso, um ganhar (ou ir ganhando) consciência do nosso eu (o nosso presente), e aceitar (ou ir aceitando) o risco de recriar a nossa existência em direcção ao projecto de “ser mais” (a nossa possibilidade) – um processo que não é de repetição de um qualquer modelo anteriormente (ou exteriormente) desenhado, mas um processo de transformação constante, imprevisível, inacabado

(Kolyniak, 2005), num MOVIMENTO CÍCLICO E ESPIRALADO de nascimento-morte- renascimento.

3. Como espécie e como indivíduo / na dialéctica entre natureza e cultura

Tanto na realidade objectiva do MUNDO SOCIAL institucionalizado, como na realidade subjectiva do MUNDO PESSOAL e individual – porque desenvolvimento social e desenvolvimento individual não acontecem de forma divorciada. É o desenvolvimento humano a partir de uma perspectiva ecológica, numa interacção mútua, múltipla e progressiva entre indivíduo e contexto. É o desenvolvimento humano que começa com e dentro de mim mesmo, pensando-me e comprometendo-me como sujeito do desenvolvimento – o único espaço onde tenho poder para mudar e, com isso, saber

102 De acordo com Max-Neef (1993: 21-23), as necessidades humanas são múltiplas e interdependentes, mas são as mesmas em todas as culturas e em todos os tempos. O que muda são os “satisfactores” de necessidades, não as necessidades humanas. Por exemplo, alimentação e abrigo não são necessidades, mas satisfactores da necessidade fundamental de subsistência. Um dos aspectos que define uma cultura são as escolhas dos seus satisfactores – quantidade, qualidade e/ou possibilidades de acesso.

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que, pela na dinâmica das inter-relações de crescimento, o mundo pode mudar também (Max-Neef, 1993; Azevedo & Gil da Costa, 2005).

4. Totalidade complexa

Um desenvolvimento humano que passa pelo corpo mas que, transpondo a dimensão visível de tudo o que somos (Feitosa, 1999:70), INTEGRA POTENCIALIDADES ESPECÍFICAS (o conhecimento, o emocional, o espiritual, o sensorial e o extra-sensorial, o simbólico...) em equilíbrio e harmonia.

“Rafael solta um grito, um grito de terror, de raiva e desespero. As pernas endireitam-se, os gritos tornam-se contínuos e espumantes. Desembesta, rompe o matorral, vem a terreiro, gritando, arreganhando os dentes, sangrando. Faz vacilar o pau e o selvagem rola pelo chão, mas já outros vêm sobre ele, aos aulidos. (...) Esquece as feridas, a fome e a sede, e torna-se o próprio medo, medo desesperançado em pés que voam, precipitando-se pela floresta a caminho da praia escampada! (...) - Nós vimos o vosso fumo. Que têm estado vocês a fazer? Uma guerra? Rafel anui com a cabeça. O oficial examina o pequeno espantalho que tem diante de si. - Não há mortos, pois não? Algum cadáver? - Só dois e desapareceram. - Dois? Mortos? Rafael faz outra vez que sim com a cabeça (...). O oficial sabia, em regra, quando alguém lhe dizia a verdade. Assobia de leve”. William Golding, “O Deus das Moscas”.

Ilustração II.13 – A desumanização nas histórias dos homens.

5. Praxis orientada por valores: dignidade, liberdade, criatividade, solidariedade, respeito pela alteridade.

Porque humanização tem um SENTIDO ÉTICO (o que implica a consciência de um destino comum), desenvolvimento humano exige: - a integração, a combinação e o diálogo permanente entre os processos técnicos e económicos e as ideias da solidariedade e da responsabilidade; e desenvolvimento humano rejeita:

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- as vias usadas por uma mundialização baseada na dominação que, sob múltiplas formas, levam a tantos tipos de colonização e escravidão; - o conhecimento vindo de um certo tipo de alfabetização e/ou ciência que leva à perda de outros saberes; - a hiper-especialização que leva à perda de aptidões do ser humano e da sua capacidade para enfrentar o destino; - o individualismo, o egocentrismo e a diminuição da responsabilidade individual que levam à destruição e perda de solidariedades e do respeito pela alteridade (Morin, 2006).

6. Condições de existência material e espiritual

Porque implica termos qualitativos e factores da ordem do espírito (Ribeiro Dias, 2000:14), desenvolvimento humano não se constrói numa lógica de rentabilidade que subordine o humano ao económico, que domestique os humanos ao serviço das máquinas, ou a natureza ao serviço dos humanos (Morin, 2006; Max-Neef, 1993).

Desenvolvimento humano é caminho para alcançar NÍVEIS MATERIAIS DE VIDA que permitam o acesso a uma gama crescente de bens cada vez mais diversificados, mas é também QUALIDADE DE VIDA no que ela significa de DESENVOLVIMENTO MENTAL, PSÍQUICO

E MORAL… É Conhecimento do que significa a vida, a paixão, o sofrimento, de tudo aquilo que escapa à quantificação e faz parte das características subjectivas da Humanidade (Morin, 2006; Max-Neef, 1993).

7. Para todos os seres humanos

Não faria sentido de outra maneira.

“Espero que chegue o dia em que cada um de nós seja o suficientemente valente para poder dizer com toda a honestidade: “Sou, e porque sou, tornei-me parte de…”. Parece- me que este é o caminho correcto a seguir se queremos pôr fim a uma maneira estúpida de viver” (Max-Neef, 1993:99).

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“Os gastos reduziam-se ao mínimo, as meninas eram baratas e viajavam no porão dos barcos em grandes caixotes acolchoados. Sobreviviam assim durante semanas, sem saber para onde iam nem porquê, só viam a luz do sol quando lhes calhava receber lições do seu ofício. Durante a travessia, os marinheiros encarregavam-se de as treinar e, ao desembarcarem em São Francisco, já tinham perdido toda a sua inocência. Algumas morriam de disenteria, cólera ou desidratação; outras conseguiam saltar para a água nos momentos em que as levavam à coberta para as lavar com água do mar. As restantes ficavam presas, não falavam inglês, não conheciam essa nova terra, não tinham a quem recorrer (...). Eram recebidas no cais por uma antiga prostituta, a quem o ofício deixara uma pedra negra em lugar do coração. Levava-as batendo- lhes com uma varinha, como gado, pelo centro da cidade, diante dos olhos de quem quisesse ver. Assim que atravessavam o umbral do bairro chinês, desapareciam para sempre no labirinto subterrâneio de quartos ocultos, corredores falsos, escadas sinuosas, portas dissimuladas e paredes duplas”. Isabel Allende, “Filha da Fortuna”.

Ilustração II.14 – A desumanização nas histórias dos homens.

• Conceitos adjacentes ao conceito de desenvolvimento humano

Mas outras propostas e conceitos existem que (para além de perfeitamente consentâneos com a definição aqui em causa e atrás desenvolvida), também explicam o desenvolvimento humano. Vou, por isso, e mais uma vez, seleccionar sete.

1. O modelo ecológico de desenvolvimento

Em primeiro lugar, e para não perder de vista a nossa herança universal e o quanto cada ser humano existe pela interacção com os outros seres humanos e com o mundo, começo por uma breve referência ao Modelo Ecológico de Bronfenbrenner (Papalia et al, 2001:14). Quebrando as barreiras entre as ciências sociais e criando pontes entre as suas diferentes disciplinas, parte do indivíduo e identifica cinco contextos de desenvolvimento, ou cinco níveis interligados de influência ambiental (ilustração II.15):

a) O MICROSSISTEMA – inclui relações pessoais face a face com influência interactiva. b) O MESOSSISTEMA – é um sistema de vários microssistemas.

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c) O EXOSSISTEMA – diz respeito a ligações entre dois ou mais contextos, sendo que pelo menos um deles só afecta indirectamente porque o indivíduo não está nele envolvido. d) O MACROSSISTEMA – feito dos padrões culturais, engloba crenças dominantes, ideologias, sistemas económicos e políticos. e) O CRONOSSISTEMA – acrescenta a dimensão tempo e, com isso, a influência da mudança, ou da estabilidade, no indivíduo e no meio.

Indivíduo

MICROSSISTEMA

MESOSSISTEMA

EXOSSISTEMA

MACROSSISTEMA

CRONOSSISTEMA

• Microssistema: casa, vizinhança, grupos de pares, escola, igreja, local de trabalho. • Mesossistema: casa↔vizinhança↔grupos de pares↔escola↔igreja↔local de trabalho. • Exossistema: sistema educativo, hierarquia religiosa, comércio e indústria, agências governamentais, mass media, sistema de trânsito. • Macrossistema: crenças ideológicas dominantes. • Cronossistema (dimensão do tempo). Ilustração II.15 – Modelo ecológico de Bronfenbrenner. Reprodução e adaptação de Papalia et al, 2001:14.

2. Os conceitos de identidade, individualização e individuação

Distintas das sociedades de insectos (onde existe um máximo de eficácia e um mínimo de individualidade), as sociedades humanas (no outro extremo da escala evolutiva do agrupamento social e com uma imensa variabilidade de formas de organização), possibilitam o surgimento da subjectividade, da consciência do valor e da autonomia do indivíduo e da capacidade de enfrentar os interesses do grupo, bem como o aparecimento da cooperação, do desvio e do conflito como características universais da sua dinâmica (Abad Márquez, 1993:28). Assim, quando um novo membro ingressa num grupo (qualquer grupo), tanto ele, como o grupo (e num processo de redefinição da dinâmica das suas relações), passam por um processo de transacções e de negociação que dá origem a uma nova situação social e a uma nova identidade. É por isso que a

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IDENTIDADE, construída interactivamente a partir das relações sociais, não pode ser definida como um núcleo estável e permanente da personalidade, mas como o “conjunto das relações que o indivíduo mantém com os outros objectos sociais (pessoas, grupos, instituições, valores, etc.)” (Abad Márquez, 1993:41).

Diferente de INDIVIDUALISMO, que indica a mera centração na vida privada, o conceito de

INDIVIDUAÇÃO remete para o “processo de assunção livre por cada uma das orientações do mundo que dão sentido à existência” (Teixeira Fernandes, 2001:58). No mundo de hoje, em que a sociedade moderna deixa de oferecer visões do mundo universalmente aceites, a individuação surge como uma tendência cada vez mais forte de escape à homogeneização. Neste processo (causa e efeito de mudanças no tecido social, mas também ele construído no relacionamento da pessoa com a sociedade), passa a pertencer cada vez mais ao indivíduo a escolha das suas pertenças sociais, das suas actividades culturais e das suas crenças, a reconstrução dos valores, o gerir da situação em que se encontra.

3. O conceito de pessoa

Mas, o que quer dizer “SER PESSOA”? Resumo, a partir de Viktor Frankl, algumas daquelas que ele mesmo denomina serem “teses sobre a pessoa em busca de sentido” (Frankl, 1994:106-115):

- A pessoa é um INDIVÍDUO – porque é uma unidade, não se pode subdividir. - A pessoa não é só um in-dividuum, mas também in-summabile – porque é uma

TOTALIDADE.

- Cada pessoa é totalmente UM SER NOVO – porque em cada pessoa que nasce se inscreve a existência de um novo ser.

- A pessoa é ESPIRITUAL – porque existe para lá do seu organismo psicofísico.

- A pessoa representa um ponto de INTERACÇÃO ENTRE TRÊS NÍVEIS DE EXISTÊNCIA – o físico, o psíquico e o espiritual.

- A pessoa é DINÂMICA – porque é na sua capacidade de se distanciar do psicofísico que se manifesta o espiritual.

- A pessoa é capaz de se TRANSCENDER e de se enfrentar a si mesma.

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- A existência da pessoa é um existir de acordo com um SENTIDO, mesmo que desconhecido.

4. O conceito de inteligências múltiplas e as mentes do futuro

Com uma concepção que reduz o elitismo e que, pela valorização e interpretação de diferentes sociedades relativamente às aptidões humanas, enfatiza a vertente intercultural, Gardner fez uma proposta de redefinição da cognição humana como habilidade plural para resolver e criar produtos (Gardner, 1999, 2006; Sisk & Torrance, 2001; Goleman, 2006, Salgado Gama, 1998; Gáspari & Schwarts, 2007). É o conceito de INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS (linguística, musical, lógico-matemática, espacial, corporal- cinestésica, interpessoal, intrapessoal103) que, enquanto alternativa para o conceito de

103 Divididas em dois grupos (do primeiro fazem parte as inteligências linguística, musical, lógico- matemática e espacial; do segundo, as inteligências corporal-cinestésica, interpessoal, e intrapessoal), as inteligências múltiplas apresentam as seguintes características globais: são relativamente independentes mas raramente funcionam de forma isolada; eventuais melhorias ocorridas numa das inteligências têm efeitos positivos na globalidade das funções cognitivas; do desenvolvimento das faculdades individuais pode decorrer o progresso do sujeito colectivo e da própria sociedade (Gáspari & Schwarts, 2007): Inteligência linguística – capacidade de lidar com sons, ritmos e significados das palavras, percepção das diferentes funções da linguagem; habilidade para usar a linguagem para convencer, agradar, estimular ou transmitir ideias. Inteligência musical – sensibilidade para ritmos, texturas e timbre; habilidade para apreciar, compor ou reproduzir uma peça musical. Inteligência lógico-matemática – capacidade para lidar com padrões, ordem e sistematização; habilidade para explorar relações, lidar com séries de raciocínios, reconhecer problemas e resolvê-los. Inteligência espacial – capacidade para perceber o mundo visual e espacial de forma precisa; habilidade para manipular formas ou objectos mentalmente e para criar tensão, equilíbrio e composição numa representação visual ou espacial. Inteligência corporal-cinestésica – habilidade para resolver problemas ou criar produtos através do uso de parte ou de todo o corpo, para controlar os movimentos do corpo e manipular objectos com destreza, para usar a coordenação grossa ou fina em desportos, artes cénicas ou plásticas. Inteligência interpessoal – capacidade para entender as necessidades e sentimentos dos outros; habilidade para entender e responder adequadamente a humores, temperamentos, motivações e desejos de outras pessoas. Inteligência intrapessoal – correlativo interno da inteligência interpessoal; habilidade para ter acesso aos próprios sentimentos, sonhos e ideias, discriminá-los e usá-los na solução de problemas pessoais; habilidade para formular uma imagem precisa de si próprio e usar essa imagem para funcionar de forma efectiva; só é observável através dos sistemas simbólicos das outras inteligências porque é a mais pessoal de todas as inteligências. Observação – Dorothy Sisk e Paul Torrance (2001) desenvolvem o conceito de INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL que definem como sendo a capacidade de auto-consciência profunda, das dimensões do self – não só como corpo, mas como mente-corpo e espírito; habilidade para a reflexão sobre questões inerentes à própria existência – finitude, transitoriedade, transcendência.

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inteligência como capacidade inata, geral e única do tipo QI, o conceito de inteligências múltiplas amplia a compreensão da pessoa total.

Contudo, mais recentemente, preocupado, não só com o tipo de mentes de que a pessoas vão precisar no futuro, como com as mentes que ele acredita que as pessoas deviam desenvolver no futuro (pois são o que lhes vai possibilitar lidar tanto com o que se antecipa, como com o que não se pode prever), Gardner descreve cinco tipos de mentes (2006):

- A MENTE DISCIPLINADA – domina, pelo menos uma forma de pensar, um modo distinto de cognição que caracteriza uma disciplina académica, uma técnica ou uma profissão.

- A MENTE SINTETIZADORA – recolhe informação a partir de fontes diversas, compreende e avalia objectivamente a informação e coloca tudo de forma a fazer sentido, tanto para o sintetizador, como para outras pessoas.

- A MENTE CRIADORA – desbrava terreno novo, apresenta novas ideias, coloca questões não habituais, conjura novas maneira de pensar, chega a respostas inesperadas.

- A MENTE RESPEITADORA – tem atenção e acolhe bem as diferenças entre os indivíduos e os grupos, tenta compreender “os outros” e procura trabalhar eficazmente com eles.

- A MENTE ÉTICA – pondera a natureza do trabalho que faz e as necessidades e desejos da sociedade em que vive, pensa como é possível ter propósitos que estão para lá do interesse pessoal e como se pode trabalhar de forma não egoísta e ao serviço de todos.

5. O conceito de vida plena

Para Carl Rogers (1970:162ss), o funcionamento integral da pessoa é a expansão e a maturação de todas as suas potencialidades, é a escolha de uma VIDA PLENA como processo de transformação:

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a) É UM PROCESSO, não um destino, seleccionado pelo organismo humano quando é inteiramente livre para se mover em qualquer direcção.

b) Implica uma ABERTURA CRESCENTE À EXPERIÊNCIA – o pólo oposto da atitude defensiva – a pessoa torna-se cada vez mais capaz de se ouvir a si mesma e de experimentar o que se passa em si.

c) Implica a CORAGEM DE SER – não necessariamente a escolha de uma vida feliz, satisfeita, agradável, mas de uma vida mais enriquecedora, apaixonante, valiosa, estimulante, significativa.

d) Implica uma TENDÊNCIA PARA VIVER PLENAMENTE CADA MOMENTO – a pessoa não é um controlador-adaptador a ideias pré-concebidas, mas um participante do processo de vivência existencial.

e) Revela uma CONFIANÇA CRESCENTE NO SEU ORGANISMO enquanto guia competente do comportamento que realmente satisfaz – uma capacidade de apreensão intuitiva das reacções internas e das soluções de comportamento frente a situações complexas e perturbadas.

f) Revela uma NOVA PERSPECTIVA SOBRE A LIBERDADE E O DETERMINISMO - a pessoa experimenta maior liberdade de escolha do comportamento e do que o pode satisfazer de um modo mais profundo.

6. O conceito de felicidade

De acordo com Peña y Lillo (1991), a felicidade, considerada por muitos como sendo o objectivo último da existência humana, só por poucos é percebida como prémio da auto- realização pessoal e da plenitude de uma vida. Utilizando os contributos de Ortega, Julián Marias, Fromm, May e de muitos outros cientistas e filósofos que, ao longo da história, se têm interrogado sobre este tema complexo e multifacetado, este autor procura mostrar tanto o que dela nos aproxima como o que não nos permite alcançá-la.

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- A felicidade é uma ATITUDE PERANTE A VIDA, coincide com o nosso próprio eu. Ser feliz é uma aceitação de si mesmo e da vida, com as suas luzes e as suas sombras, os seus dons e os seus limites.

- Os ACONTECIMENTOS EXTERIORES SÃO NEUTROS e somos nós mesmos que lhes atribuímos um significado. A felicidade não depende dos acontecimentos e não pertence à periferia reactiva da afectividade.

- A felicidade é um SENTIMENTO MAIS INTEGRAL QUE ABARCA O HOMEM POR INTEIRO, é uma abertura da totalidade do psiquismo na sua dimensão mais profunda e reflecte a vida autêntica. Não pertence ao campo restrito dos afectos como o gozo ou o sofrimento, não se limita ao aqui e agora.

- A busca da felicidade não é a mesma ao longo da vida. A sua realização,

deslocando-se progressivamente do exterior para o interior, VAI-SE TORNADO MAIS

SUBTIL E REFINADA ao longo da maturação progressiva da individualidade.

- A felicidade não é um facto moral, mas TEM UMA CONOTAÇÃO ÉTICA. Somos responsáveis pela nossa felicidade. Em última instância, aprender a ser feliz significa saber viver.

- Existem DOIS TIPOS DE FELICIDADE, a felicidade negativa e a felicidade positiva.

Atinge-se a primeira quando se percebe o SENTIDO FORMADOR DO SOFRIMENTO e a sua transformação em experiência e em plenitude humana. Obtém-se a segunda

por quatro vias fundamentais: a ESTÉTICA, através do gozo da beleza; a

INTELECTUAL, pela posse do conhecimento e da verdade; a VOLITIVA, na realização

de um ideal; a AFECTIVA, na percepção da bondade própria e dos outros.

7. O eterno círculo dos três caminhos de criação e de vida plena

Csikszentmihalyi, pioneiro da chamada psicologia do quotidiano, também se interroga sobre o que significa “viver plenamente, sem desperdiçar tempo nem potencial, expressando a nossa própria singularidade e, ao mesmo tempo e de forma íntima,

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participando na complexidade do cosmos” (Csikszentmihalyi, 1998:10) 104. E argumenta que o que fazemos durante um dia normal (o que absorve a nossa energia psíquica e proporciona a informação que atravessa a mente em cada dia), pode dividir-se em três grandes categorias de actividades – PRODUÇÃO, MANUTENÇÃO E ÓCIO. São as escolhas feitas dentro destes parâmetros que determinam a configuração dos nossos dias – uma massa indistinta e amorfa, ou, como diz o autor, uma obra de arte.

Relativamente a estes três parâmetros da vida plena, é possível encontrar noutras abordagens alguma coisa muito similar. Sturner (1996), por exemplo, compreende a vida criativa como uma sucessão dinâmica e contínua de três condições ou estados:

CENTRAR – o trabalho de atenção a si mesmo que leva à consciência de si mesmo;

AGIR – resultado da condição anterior, é o tempo da execução; CELEBRAR – um tempo e modo de descansar, de fazer a festa e agradecer por todas as coisas que foram feitas nas fases anteriores.

Csikszentmihalyi Sturner Escrituras Hindus

Manutenção Centrar Meditação Centrar Agir Meditar Criar Manutenção Produção

Produção Agir Criação Celebrar Ócio Ócio Celebrar Celebração

Tabela II.4 – Paralelos entre as condições-estados da vida plena Ilustração II.16 – O círculo dos três caminhos. sugeridos por Csikszentmihalyi, Sturner e as Escrituras Hindus.

Mas também nas escrituras hindus há referências ao “eterno círculo” de meditação- criação-celebração em que, num movimento de isolamento para a totalidade e da alienação para a integração, a realidade se constrói (Nolan, 2001:96): na MEDITAÇÃO, somos simplesmente, encontramos o nosso lugar na Criação e a Criação encontra o

104 Para este autor, poucas vezes sentimos a serenidade que se produz quando, havendo metas claras, o coração, a vontade e a mente estão em harmonia. Estes momentos excepcionais são estados de fluidez, aqueles que fazem com que uma vida seja plena: a pessoa está completamente centrada; a sensação de tempo fica distorcida; desaparece a consciência de si; a pessoa sente-se mais forte que habitualmente e sente a plenitude da experiência. É possível melhorar a qualidade de vida se nos assegurarmos de que objectivos claros, capacidades à altura das oportunidades de acção e as restantes condições dos estados de fluidez formam o mais possível parte da vida quotidiana.

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seu lugar dentro de nós; na CRIAÇÃO, tornamo-nos activamente conscientes do nosso eu constantemente criador e criativo; na CELEBRAÇÃO, gozamos o nosso ser unificado.

Em resumo: - Cada ser humano (uno, total e pluridimensional) existe na e pela interacção consigo mesmo, com os outros seres humanos e com o mundo. - Pela satisfação das necessidade e pelo desenvolvimento das faculdades individuais se gera o progresso do sujeito colectivo, se abrem possibilidades de liberdade, auto-realização e auto-superação. - A felicidade é abertura da consciência, aceitação de si mesmo e da vida. - Viver plenamente é processo contínuo de descoberta de sentido, de abertura e transformação, sinal duplo de distinção e de identificação com todos os outros e com a humanidade.

• Níveis de Desenvolvimento Humano

Porque desenvolvimento humano é processo, nele é possível identificar diferentes estágios ou níveis. Mas também sobre este tema são muitos os propósitos, os enfoques e as nomenclaturas utilizadas. Vou apresentar um novo conjunto de sete, na convicção de que, pesem embora as diferenças que entre eles existam, não será difícil encontrar muitos mais pontos de contacto.

1. Níveis de desenvolvimento humano (Dabrowski)

Dabrowski (Sisk & Torrance, 2001:24), polaco, psicólogo e psiquiatra, foi prisioneiro dos Nazis e dos Comunistas durante a segunda guerra mundial. Incapaz de compreender a crueldade, a superficialidade e a falta de compaixão, estudou a biografia de pessoas eminentes que manifestaram valores universais e que, em muitas circunstâncias, experimentaram o sofrimento e a rejeição por causa dos seus valores e das suas acções. Convencido de que os conflitos internos são parte da luta pessoal em direcção

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ao desenvolvimento, sugere que os níveis mais altos implicam uma mudança no modo de pensar e de estar no mundo.

Nível 1 – prevalece o EGOCENTRISMO, os indivíduos têm falta de empatia* e de auto- conhecimento, tendem a culpar outros quando alguma coisa corre mal, podem ser cruéis no seu desejo de poder.

Nível 2 – os indivíduos são influenciados pelo seu GRUPO SOCIAL, têm uma grande relatividade moral sem uma visão clara sobre os valores que os determinam.

Nível 3 – os indivíduos desenvolveram uma HIERARQUIA DE VALORES e o seu conflito interno é feito pela luta por viver padrões de vida mais elevados. Podem ficar deprimidos ou ansiosos com a percepção de não terem atingido os objectivos que tinham estabelecido para si mesmos.

Nível 4 – os indivíduos estão no caminho da AUTO-REALIZAÇÃO e descobriram a forma de atingir os seus objectivos. São líderes eficazes e manifestam altos níveis de responsabilidade, “juízo fundamentado”, empatia e autenticidade. São auto- conscientes e autónomos no seu pensamento e acção.

Nível 5 – são pessoas que DOMINARAM A SUA LUTA EM RELAÇÃO AO SELF e cuja

desintegração foi ultrapassada pela INTEGRAÇÃO DE VALORES E IDEAIS. Vivem a

vida ao SERVIÇO DA HUMANIDADE e de acordo com os princípios mais elevados do amor e da compaixão pelos outros. São os indivíduos que agem com preocupações espirituais, ao serviço dos outros e tendo resolvido os seus conflitos internos. Estão comprometidos com os princípios universais, identificam-se com a humanidade e as suas vidas reflectem a compaixão e o perdão que está no centro do seu ser.

2. Graus dinâmicos de auto-realização (Maslow)

Maslow, que, tal como ele próprio conta, tinha pensado em dar ao seu livro “Motivação e Personalidade” o título de “Alturas Máximas da Natureza Humana” por ser a frase que melhor condensaria a sua tese, estudou, por razões de ordem científica, ética, moral e

228

pessoal os problemas da saúde mental. Apresenta os seguintes graus dinâmicos de auto-realização105 (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980:137-142):

PESSOAS NÃO REALIZADAS: vivem pelo princípio da escassez, ao nível das necessidades deficitárias (manutenção fisiológica, segurança; amor, afeição e pertença a alguém ou a um grupo, auto-estima e estima pelos outros), em constante luta para alcançar o que necessitam e lhes faz falta.

PESSOAS EM VIAS DE REALIZAÇÃO: vivem ao nível das metanecessidades (necessidades de crescimento e necessidades do ser, necessidades de significação, sentido, auto-suficiência, naturalidade, justiça, beleza, conhecimento, auto-realização).

OS AUTO-REALIZADOS: vivem princípio da fartura, parecem ter o suficiente para manter os seus processos de vida, não precisam ocupar todo o seu tempo e esforço a preencher lacunas na sua vida e são livres para crescer.

OS TRANSCENDENTES: vivem numa economia de excesso. São capazes de ver os lugares e os momentos para as grandes mudanças e são capazes de as realizar e desencadear.

3. Níveis de realização (D. Chopra)

Deepak Chopra (2001:28-29), numa redefinição dos conceitos de saúde e das relações corpo-espírito, parte do princípio de que o sistema nervoso humano dispõe de sete respostas biológicas que correspondem a sete níveis de experiência divina. Apresenta, assim, sete níveis de realização:

Nível 1 – de perigo, ameaça e sobrevivência / RESPOSTA DE COMBATE OU FUGA: a vida é realizada através da família, da comunidade, pelo sentimento de pertença e dos confortos materiais.

Nível 2 – de esforço, competição e poder / RESPOSTA REACTIVA: a vida é realizada através do sucesso, do poder e da influência.

105 De acordo com este autor, as necessidades humanas, que são inatas, podem ser representadas numa hierarquia em termos da sua potência – quanto mais na base de situar a necessidade, maior é a sua força; quanto mais alta se situar, menor a sua força, mas também mais distintamente humana se torna pois só os seres humanos possuem as necessidades mais elevadas (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980).

229

Nível 3 – de paz, tranquilidade e reflexão / RESPOSTA DO SERENO ENTENDIMENTO: a vida é realizada através da paz, do equilíbrio, aceitação própria e silêncio interior.

Nível 4 – de introspecção, compreensão e perdão / RESPOSTA INTUITIVA: a vida é realizada através de discernimento, empatia, tolerância e perdão.

Nível 5 – de aspiração, criatividade e descoberta / RESPOSTA CRIATIVA: a vida é realizada através da inspiração, expansão da criatividade no campo das ciências ou das artes e da descoberta sem limites.

Nível 6 – reverencial, de compaixão e amor / RESPOSTA VISIONÁRIA: a vida é realizada através da veneração, compaixão, serviço devotado e amor universal.

Nível 7 – de unidade sem limites / RESPOSTA SAGRADA: a vida é realizada através da totalidade e da unidade com o divino.

4. Níveis de desenvolvimento moral (Kohlberg)

Kohlberg (Patrício, 1993:144; wikipedia, 2007106) criador da teoria dos estágios morais, postula uma sequência universal em que o nível mais alto, o da maturidade moral, só pode ser muitas vezes alcançado pelo adulto.

1º nível – PRÉ-CONVENCIONAL: as regras morais derivam da autoridade. Fase 1 – egocentrismo; obediência; exigência de evitar a culpa: a pessoa toma uma decisão com referência a outro sujeito e obedece para evitar o castigo ou para merecer uma recompensa; a justiça é definida em termos de poder e status. Fase 2 – intercâmbio instrumental; hedonismo; individualismo: inicia-se um processo de descentração, a pessoa começa a perceber que outras pessoas também têm os seus próprios interesses; a moral permanece individualista.

2º nível – CONVENCIONAL: compreensão racional, regra, regra universal, norma, o estabelecido Fase 3 – moralidade da normativa interpessoal: desejo de manter as relações interpessoais e de obter o reconhecimento social; preocupação em ser “bom menino” e “boa menina”; preocupação com as outras pessoas e os seus sentimentos.

106 http://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Kohlberg, 18.03.2007

230

Fase 4 – moralidade do sistema social: regência pela lei e pela autoridade legal.

3º Nível – PÓS-CONVENCIONAL: a pessoa é capaz de perceber que a norma existe para o bem, age em função do bem e não da norma e começa a perceber os conflitos entra as regras e o sistema. Fase 5 – estágio da moralidade dos direitos humanos: regência pelos acordos sociais e pelos direitos individuais; subordinação do indivíduo à sociedade. Fase 6 – estágio dos princípios éticos universais: regência pelos princípios morais que o próprio dá a si mesmo; perspectiva da posição moral do indivíduo racional.

5. Estádios do processo de desenvolvimento espiritual (Sturner)

Estádios Necessidade Estado de Experiência Primária Consciência 1. Fome, sede e segurança. Sobrevivência a Esperando: luta para assegurar a Sobrevivência qualquer custo existência. 2. Projecção do ego; propagação através Alargamento das Gozando: o ego necessita satisfazer Propagação do sexo, posse. próprias fronteiras as suas necessidades imediatas. 3. O poder de controlar os outros e os Expansão do sentido Auto-congratulando-se: expansão Controlo acontecimentos. do ego/self da consciência das fronteiras do ego-eu. 4. Relação e união com outros. Comunidade Em felicidade: união interior e Ligação exterior. 5. Auto-estima, sentimento de bem estar Apreço Em alegria: aceitação da própria Afirmação consigo mesmo, apreciação dos outros. palavra na relação com os outros. 6. Superação de velhos limites, risco e Vida como uma Celebrando: espalha energia da Actualização aventura, exploração do próprio aventura vida. potencial com sentido de propósito. 7. Expansão do sagrado e da experiência Encantamento Compreendendo: preenchida com a Centração espiritual. maravilha, a identidade espiritual, a centraçáo profunda e tranquila. 8. Junção de tudo, integração de crenças Mística na vida diária Fluindo: natural, serena, Integração e acções, vivência de uma vida activa- interpenetração do interior e do meditativa. exterior. 9. Amor da unidade com o Self, a força da Identidade inclusiva Amando: unidade interior, com Transcendência vida. outros e com a vida, fronteiras inclusivas. 10. Estar presente, o centro do estado de Totalidade, unicidade Brilhando: unidade, presença Ser consciência. espiritual com a Essência, a Fonte. Tabela II.5 – Estádios do processo de desenvolvimento espiritual de Sturner. Reprodução, tradução e adaptação de Sturner (1994:57-58).

Sturner (1994:54-63) reconhece a existência de nove estádios no processo de desenvolvimento espiritual, cada um dos quais pode ser descrito como sendo composto por três partes: uma NECESSIDADE MOTIVACIONAL, que estimula uma actividade; uma perspectiva ou ESTADO DE CONSCIÊNCIA, através do qual se entra na actividade; a

231

EXPERIÊNCIA CRIADA PELA ACTIVIDADE, através da fusão entre a necessidade motivacional e a perspectiva. Assim, e utilizando o trabalho de diversas proveniências (tal como o de Maslow e de William James, o sistema Hindu do Yoga Kundalini*, ou os escritos de místicos como João da Cruz e Teresa de Ávila), apresenta um modelo composto por dez estádios ou facetas do despertar da identidade do espírito humano (tabela II.5).

6. Estádios do desenvolvimento humano espiritual (Scott Peck)

Scott Peck (Peck, 2002; wikipedia, 2007107) apresenta quatro estádios do desenvolvimento humano espiritual que, correspondem a mudanças muito evidentes no indivíduo e marcam diferenças significativas na sua personalidade. Enquanto que a passagem do primeiro para o segundo estádio é muito clara, do terceiro para o quarto é gradual:

Estádio 1 – é um ESTÁDIO CAÓTICO, desordenado e irresponsável. A pessoa tende a desafiar e desobedecer, mas está disposta a aceitar uma vontade superior à sua. É o estádio em que se situam as crianças e muitos criminosos que nunca cresceram.

Estádio 2 – é o ESTÁDIO DA FÉ CEGA. Aqui aparece a humildade e a vontade de obedecer e servir. Muitos dos “cumpridores da lei” nunca saíram deste estádio.

Estádio 3 – é o ESTÁDIO DO CEPTICISMO CIENTÍFICO. A pessoa só aceita as coisas depois de convencida logicamente. Aqui se situam muitas pessoas ligadas à ciência e à tecnologia.

Estádio 4 – é o ESTÁDIO EM QUE A PESSOA SE DEIXAR ENCANTAR com o mistério e a beleza da natureza. Embora permanecendo céptico, é capaz de perceber padrões na natureza. Não aceita as coisas por causa de uma fé cega, mas por causa de uma fé genuína. Aqui se situam os místicos.

7. Níveis de desenvolvimento da humanidade (Cristo Martins)

Cristo Martins (1996), no seu trabalho “Pistas para a Realização do Humano”, explica que só podemos usar o que conscientemente possuímos pois todo o potencial e riqueza

107 http://wikipedia.org/wiki/M_Scott_Peck (15.01.07)

232

latentes precisam ser despertos antes de poderem ser utilizados. Por isso, se, por um lado, é na medida da consciência de si (reguladora da abertura e crescimentos humanos) que o Homem evolui, também é pela intensidade da interacção dinâmica entre o fisiológico, o psicológico e o espiritual que se determina o grau de autoconsciência de cada pessoa e se marca o estádio da humanização. Desta matriz resultam seis níveis de desenvolvimento da humanidade que correspondem também a seis níveis de autoconhecimento:

HOMEM SENSITIVO – no alvor da humanidade (em que o medo era/é um estado permanente) procura o agradável exigido pelos sentidos, age por impulsos, não age mas reage; inconsciência de si – estado de meninice.

HOMEM EMOCIONAL – procura a satisfação das emoções, dependente dos acontecimentos, dos ambientes e das outras pessoas; semiconsciência nublosa – estado de criança desadaptada.

HOMEM INTELECTUAL – procura o útil (o ter, o poder e o prestígio), procura conhecer as coisas, mas nada ou pouco sabe da Pessoa – desconhece que existem outras possibilidades; semiconsciência luminosa – estado de criança rebelde.

HOMEM INTUITIVO – procura o Bem, o Verdadeiro e o Belo; confia e tem fé na pessoa, começa a ter consciência de si e das suas potencialidades – estado de adulto.

HOMEM INTEGRAL – faz a descoberta da Unidade; vive no abraço da Ciência, da Arte e da Fé; começa a revelar uma ampla consciência de si, da humanidade e do universo; aqui se dá a verdadeira interacção do fisiológico, do psicológico e do espiritual – adulto auto-realizado.

HOMEM CÓSMICO – intensifica-se a vivência da Unidade; pessoas e coisas são suas irmãs; em todos e em tudo vê o positivo; cada pessoa é una e íntegra em si mesma, em unidade com o Todo, e tem consciência disso; consciência cósmica – pleniconsciência.

Porque em todas elas, se expressa a possibilidade de - deixar de lado a ideia de desenvolvimento como mero desdobramento ou concretização de modelos pré-existentes; - deixar de lado o estado catatónico, paralisador de actos e do pensamento, em que grande parte das pessoas vive; - deixar de lado as máscaras e apresentarmo-nos como somos;

233

- deixar de lado a obrigação de nos comportarmos como os outros pensam que nos deveríamos comportar; - aceitar os outros e confiar em nós mesmos; - nos abrirmos à própria experiência; - expressar em cada momento a liberdade de sermos nós próprios; e, em todas elas se distingue - um movimento – da homogeneidade à unicidade; - um caminho – do ego ao Ser, da não consciência à consciência; da reacção à intencionalidade, do medo ao sentido da existência, - um encontro – com o Eu, com os Outros, com o Universo, um encontro com a própria transcendência, procuro conjugar no quadro seguinte como entendo serem os paralelos entre as fases níveis ou estágios sugeridos, estas diferentes abordagens.

Hierarquia de Serviço da Egocentrismo Grupo Social Auto-realização Dabrowski Valores Humanidade Em vias de Não Realizados Auto-realizados Transcendentes Maslow Realização R. Sereno Entendimento R. Visionária Chopra R. de Combate ou Fuga Resposta Reactiva Resposta Intuitiva Resposta Sagrada Resposta Criativa

Pré-Convencional Convencional Pós-Convencional Kohlberg

Caótico Fé Cega Cepticismo Científico Encantamento Peck Sobrevivência Controlo Afirmação Centração Transcendência Sturner Propagação Ligação Actualização Integração Ser

Caótico Fé Cega Cepticismo Científico Encantamento Peck Homem Sensitivo H. Intuitivo Homem Intelectual Homem Cósmico C.Martins Homem Emocional H. Integral Tabela II.6 – Paralelos entre diversas abordagens dos estádios de desenvolvimento humano.

234

2.3 Síntese do desenvolvimento humano

“Imagine a woman who believes it is right and good she is a woman. A woman who honors her experience and tells her stories. Who refuses to carry the sins of others within her body and life. Imagine a woman who believes she is good. A woman who trusts and respects herself. Who listens to her needs and desires, and meets them with tenderness and grace. Imagine a woman who has acknowledge the past’s influence on the present. Imagine a woman who has walked through her past. Who has healed into the present. Imagine a woman who authors her own life. Who refuses to surrender except to her truest self and to her wisest voice. Imagine a woman who names her own gods. A woman who imagines the divine in her image and likeness. Who designs her own spirituality and allows it to inform her daily life. Imagine a woman in love with her own body. A woman who believes her body is enough, just as it is. Who celebrates her body and it rhythms and cycles as an exquisite resource. Imagine a woman who honors the face of the Goddess in her own changing face. A woman who celebrates the accumulation of her years and her wisdom. Who refuses to use the precious energy disguising the changes in her body and life. Imagine a woman who values the women in her life. A woman who sits in circles of women. Who is reminded of the truth about herself when she forgets. Imagine yourself as this woman”. Patricia Lynn Reilly, 1995108

1. A inquietação do Ser é a percepção da própria transcendência – porque, apesar de tudo, alguma coisa chama; porque, apesar de tudo, se sabe ser mais; porque, apesar de tudo, existe a certeza interior (mesmo que não manifesta), de que as coisas e a vida podem (e devem) ser diferentes. É o saber que, apesar de tudo, contra tudo e contra todos, é urgente buscar o próprio caminho e que (quando se começar a fugir do caminho “correcto”, “aprovado”, “normal”), muitas vezes vai ser preciso caminhar só. É o sentir-se, e apesar de tudo também, um pouco D. Quixote que, desejando entregar-se completamente a um sonho e sem se importar com o cepticismo ou a troça dos outros, anseia por se despir de todas as coisas aprendidas e, com isso, chegar a descobrir e conhecer o Ser (Ribeiro Dias, 2000; Boff, 1998; Moffit, 2003a; Blay, 1988; Jeffers, 1991). Assim, e utilizando a universalidade das explicações sobre a força dessa transcendência, a inquietação do Ser acontece quando:

- se busca ser o que realmente se é (Rogers, 1970);

108 http://stacywest.com/newinspiration.html

235

- se sente o apelo das necessidades do ser (Maslow, 1991); - se percebe que ser homem é estar preparado e orientado para algo que não é ele mesmo (Frankl, 1994:37); - se vislumbra o sentido de um destino criativo (Wechsler, 1996); - se sente o “homem educável” dentro do próprio eu (Trigo & Kon-Traste, 2001); - se sente a urgência da resposta ao convite “vai ao encontro de ti mesmo” (Azevedo & Louro, 2006); - se sabe ter talentos escondidos (Mt, 25, 24-30) que podem e só esperam por serem trazidos à luz; - (...)

2. “Imagina uma mulher que é a autora da sua própria vida, que recusa rodear-se de coisas que não sejam o seu próprio eu e a sua voz mais sábia”, diz o poema de Patricia Lynn Reilly que acima transcrevi. Foi isso que tentei fazer ao longo da reflexão que neste ponto do capítulo tenho vindo a fazer. Por isso agora, inspirada em Sérgio (2005), Morin (2003; 2006), Frankl (1994), Bronfenbrenner (Papalia et al, 2001), Lowen (1984, 1997), Max-Neef (1993) e outros, e considerando que as mudanças globais começam por ser mudanças pessoais, apresento a minha própria definição deste conceito:

DESENVOLVIMENTO HUMANO Movimento em espiral, consciente e intencional, com ondas de repercussão que flúem entre os contextos micro e macro, em princípio acessível a qualquer indivíduo que, por criação própria e em busca de sentido na sua totalidade complexa, rompe as barreiras da gente cinzenta, sem graça e com medo, alarga as fronteiras da desconfiança, da apatia e da mediocridade feita norma e,

Ilustração II.17 – Dinâmica do com isso, assegura a possibilidade de construção de Desenvolvimento Humano. mundos de alegria e de paz.

Contudo, quando aquele mesmo poema nos diz “imagina-te como sendo esta mulher”, preciso fazer um pouco mais – preciso começar a perguntar o que se pode começar a fazer para se ser assim. É isso que tentarei fazer nos próximos movimentos desta etapa da pesquisa.

236

3. Campo de Criação

You must give birth to your images They are the future waiting to be born. Fear not the strangeness you feel The future must enter you long before it happens. Just wait for the birth For the hour of new clarity. Rainer Marie Rilke

Diversas são as áreas do conhecimento que podem estudar esta ligação entre o Medo e o Desenvolvimento Humano. Contudo, porque o propósito desta pesquisa é chegar a um conjunto de princípios educativos para, em contexto de Educação de Adultos, lidar com o que ficou genericamente definido como Medo da Vida, julgo que, antes de mais, importa fundamentar o que considero serem as áreas estruturadoras do campo de criação aqui em causa e que, pela sua interacção sistémica, são via de construção do humano e constituem o terreno em que o trabalho de campo desta pesquisa decorreu: a EDUCAÇÃO DE ADULTOS, a

CRIATIVIDADE e a MOTRICIDADE

HUMANA (ilustração II.18).

E porquê estas? Porque, pela EDUCAÇÃO CRIATIVIDADE DE sua inter-relação, é possível ADULTOS encontrarmos vias de intervenção (não só de MOTRICIDADE HUMANA reconhecimento), de rebeldia (não de resignação), de possibilidades (não de

Ilustração II.18 – Campo de criação – interligação das três dimensões. determinação), de inserção (não apenas de adaptação) (Freire, 2000)109.

1. A EDUCAÇÃO DE ADULTOS é o contexto que permite a “intervenção”, aquele que consiste em:

109 Paulo Freire escreve: “é preciso (...) que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos” (Freire, 2000:87).

237

“Contribuir para criar condições para que todos os seres humanos, a começar por cada um de nós, se desenvolvam em todas as suas capacidades, crescçam, sejam, até à sua plena realização” (Ribeiro Dias, 2000:9).

2. A CRIATIVIDADE, é o alimento que permite a “rebeldia”, aquela que permite: “Viver a humanidade total (...), é como se a criatividade fosse sinónimo de autorealização, um aspecto sine qua non, ou uma característica definitória dessa humanidade essencial” (Maslow, 1991:258).

3. A MOTRICIDADE HUMANA é o sujeito em relação, em “inserção” no mundo, com o mundo e com os outros, aquele que precisa de: “Sentir o corpo como a pele da alma porque é sobre essa pele sensível que, de tarde em tarde, reclama um gesto amável, uma expressão de ternura ou um abraço, onde se experimenta mais profundamente o amor, a solidariedade, a possibilidade de que o abismo interior seja contido noutro corpo” (Cajiao, 1996:11).

Assim, e por força do carácter ambíguo ou, talvez, pol(iss)émico, com que muitas vezes estes conceitos são utilizados, passo à definição mais detalhada da perspectiva que está por detrás de cada um deles – para que fique clara a compreensão do papel que aqui lhes é conferido; para que possa explicar como se interrelacionam e dão origem àquilo que denomino “educação criativo-motrícia”.

3.1 Educação de Adultos

EDUCAÇÃO: - “É um processo contínuo do berço à tumba, do ser homem, porque se nasceu filho de mulher, ao Ser Homem, porque se construiu, ou se conquistou, ou se aceitou, a plenitude da realização humana” (Azevedo, 1997:16).

EDUCAÇÃO DE ADULTOS: - “A totalidade dos processos organizados de educação, qualquer que seja o conteúdo, o nível ou o método, quer sejam formais ou não formais, quer prolonguem

238

ou substituam a educação inicial ministrada nas escolas e universidades, e sob a forma de aprendizagem profissional, graças aos quais as pessoas consideradas como adultos pela sociedade a que pertencem, desenvolvem as suas aptidões, enriquecem os seus conhecimentos, melhoram as suas qualidades técnicas ou profissionais, e fazem evoluir as suas atitudes ou o seu comportamento na dupla perspectiva de um desenvolvimento integral do homem e de uma participação no desenvolvimento social, económico e cultural, equilibrado e independente” (Conferência Geral da UNESCO, Nairobi:1976, apud Rocha, 1988:199). - “Os objectivos da educação de jovens e de adultos, vista como um processo ao longo da vida, são o desenvolvimento da autonomia e o sentido de responsabilidade das pessoas e das comunidades, de forma a reforçar a capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na economia, na cultura e na sociedade como um todo, e a promover a coexistência, tolerância e a participação informada e criativa dos cidadãos nas suas comunidades; isto é, para capacitar as pessoas e as comunidades a assumirem o controlo do seu destino e da sociedade de forma a enfrentar os desafios que se lhes colocarem. É essencial que as abordagens da educação de adultos sejam baseadas na herança das próprias pessoas, cultura, valores e anteriores experiências e que as diversas formas com que estas abordagens são implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a tornar-se activamente envolvido e a ter uma voz” 110 (Unesco, 2003).

Não tendo pretensão, espaço ou interesse em trazer aqui uma síntese da história e dos grandes paradigmas em que a Educação se manifesta, procurarei antes:

- Por um lado, e porque “a nossa linguagem e as formas da nossa linguagem moldam a nossa natureza, dão forma ao nosso pensamento e impregnam as nossas vidas” (Hacker, 1998:14), chamar à consciência algumas das expressões com que no quotidiano nos referimos à educação e que, pela força que as palavras possuem, acabam (mesmo que subtilmente), por realizar o que significam e corromper o sentido essencial do acto e do processo educativo.

110 (http://www.unesco.org/education/uie/confitea/declaeng.htm: 2003-02-04): “The objectives of youth and adult education, viewed as a lifelong process, are to develop the autonomy and the sense of responsibility of people and communities, to reinforce the capacity to deal with the transformations taking place in the economy, in culture and in society as a whole, and to promote coexistence, tolerance and the informed and creative participation of citizens in their communities, in short to enable people and communities to take control of their destiny and society in order to face the challenges ahead. It is essential that approaches to adult learning be based on people’s own heritage, culture, values and prior experiences and that the diverse ways in which these approaches are implemented enable and encourage every citizen to be actively involved and to have a voice”.

239

- Por outro, e a partir da contribuição de alguns autores que, de uma forma ou outra, têm acompanhado o meu percurso, apontar o que considero serem alguns dos eixos estruturadores desta área do campo de criação aqui em causa, bem como da forma de pensar-sentir-agir com que procuro construir a matriz do entendimento do que é ser educador.

UNESCO

• 1968 – Coombs: “A Crise Mundial da Educação”.

• 1972 – Faure: “Aprender a Ser” – novos valores educativos.

• 1976 – Dupla perspectiva da Educação de Adultos: desenvolvimento integral do homem e EDUCAÇÃO CRIATIVIDADE participação no desenvolvimento social, DE económico e cultural. ADULTOS • 1996 – Delors: “A Educação Encerra um Tesouro” - pilares da Educação: aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos.

Palavras-chave:

• Processo contínuo; autonomia; responsabilidade; transformação; cultura; valores; criatividade; controlo do próprio destino. Fonte: Azevedo (1997); Trigo (2001) Ilustração II.19 – Educação de Adultos: síntese do conceito.

Quer se trate de Educação em geral, ou de Educação de Adultos em particular, muitas das expressões que lhes andam associadas colocam-se à volta do conceito de “forma” – “ser formador”; “receber formação”; “ser formado”, “informar”. Tanto em termos metafóricos, como reais, isto significa que, muitas vezes, se parte de uma forma (pré- existente), que nela se coloca qualquer massa (onde até aí moravam todas as possibilidades), se “aquece” e se espera o tempo devido (de acordo com a consistência final que se deseja) e que, de qual cadeia de montagem, o produto sai “forma(ta)do”. E o produto, tanto os educandos-educadores, como os educadores-educandos (pois “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” – Freire, 2000:25), são reconhecidos (e entre si se reconhecem), muito mais pela forma do que pelo seu conteúdo original e único que, em tantos casos, se esbateu com a pressão da forma. Isto é:

240

- reduzidos à condição de objecto pela pressão de um qualquer modelo, de uma qualquer norma, de uma qualquer convenção, de um qualquer poder; - com a pressão do que (ou de quem) recusa o que (ou quem) se situa nos limites ou nas franjas do sistema; - com a pressão do que (ou de quem) repudia também qualquer salto que abdique das (in)certezas do passado, que procure desafiar o presente e corra o risco de integrar o desconhecido e o inédito (Shallcross, 1996).

Em resumo, distantes do que, na sua essência e pelo compromisso com a acção, projecte o futuro, permita a transformação e construa o humano.

A libertação* autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É praxis, que implica a acção e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo (Freire, 2003: 67).

Estamos, desta maneira, muito longe do que há muito se vem sabendo (mas, talvez, só no mental) ser a importância da imaginação e da criatividade para a vivência* e consolidação do “APRENDER A SER”, do “APRENDER A CONHECER”, do “APRENDER A FAZER” e do “APRENDER A VIVER JUNTOS” (Delors, 1996).

Numa sociedade marcada pelo valor da produção, do consumo, do ter e da competição, em que a ambição pode, ocasionalmente, levar à riqueza ou ao êxito individual, mas não leva à transformação harmónica do mundo na sabedoria de uma convivência que não vai gerar nem pobreza nem abuso (Maturana, 2006), continuamos a ter uma educação marcada pelas notas, pelos créditos, pelos débitos; continuamos a ter uma educação que se verga ao peso daquilo a que Paulo Freire (2003) chamou “concepção bancária” – temos depósitos em vez de consciência intencionada; temos passividade, em vez de transformação; temos informação(ões) em vez de sabedoria; temos reprodução em vez de criação; temos competição em vez de cooperação; temos “incomunicação” e distância em vez de inspiração e contágio; temos demasiadas palavras em vez de expressão de nós mesmos; temos ruído em vez de silêncio; temos sofrimento em vez de paz.

241

“A fórmula é conter-se dia após dia (...). Treinar o cérebro para treinar os músculos. Conter as emoções, conter a palavra, baixar a voz (...). Treinar os músculos para não revelar mais do que desejamos, manobrar o olhar e o gesto da boca para mostrar ou deixar de mostrar. Um ser humano educado é um ser humano controlado. Assim, pouco a pouco, com perseverança e esforço, se chegará à maturidade com almas parecidas com esses corpos treinados colectivamente por uma cultura complexa e abarcadora que ensina a manejar a linguagem corporal de que, muitas vezes, não temos nem consciência” (Cajiao, 1996:32).

Um dia, num workshop de Doris Shallcross, professora do Master Internacional de Creatividad Aplicada Total da Universidade de Santiago de Compostela (1996), ouvi-a trazer a nós as palavras de um sábio: “se o trabalho de um professor não é mais do que transmitir conhecimentos, então é melhor mandar os alunos para a biblioteca porque está melhor equipada que qualquer professor”. Qual é, então, o sentido e a tarefa da educação já que, acredito, esta não será nunca criadora-inspiradora-contagiadora de pessoas-mundos-resultados que, de alguma maneira, não estejam de antemão presentes, mesmo que só em génese, nos seus actores, nos seus processos, no ar que se respira?

Numa tentativa, ainda que incompleta, de encontrar resposta(s), releio alguns autores. E deles registo e realço o que, no campo da Educação, pode, não só estabelecer o vínculo com as dimensões próprias da Criatividade e da Motricidade Humana111, como também, e enquanto tal, servir de fundamento-interligação com o ponto de reflexão seguinte:

- O sentido e a tarefa da educação encontram-se nas PESSOAS – “não é o ensino que garante a aprendizagem, mas sim a vontade de aprender e a prontidão para mudar,

pelo que professor, que é educador112, é O QUE PARTILHA O PROCESSO DE

APRENDIZAGEM” (Feitosa, 1999:71).

- O sentido e a tarefa da educação corporizam-se no seu CONTEXTO – “os VALORES não são para ser ensinados, mas PARA SER VIVIDOS” (Maturana, 2000:17).

111 Que adiante também serão explicitadas. 112 O sublinhado é meu.

242

- O sentido e a tarefa da educação realizam-se no seu PROCESSO – alfabetizar- educar113, é CONSCIENTIZAR, é “estabelecer intimidade entre os saberes curriculares e a experiência social”, é “aprender a escrever a própria vida como autor e como testemunha da história”, é problematizar, é “correr o risco de pensar autenticamente” (Freire, 2003:10-11; 61).

- O sentido e a tarefa da educação consubstanciam-se no seu PRODUTO – “se considerarmos o desenvolvimento da pessoa como vector fundamental no processo educativo, teremos de reconhecer que todas as capacidades do homem confluem

para a CONSTITUIÇÃO DO NÍVEL MÁXIMO DE CONSCIÊNCIA DA PRÓPRIA IDENTIDADE, DA

PRÓPRIA MISSÃO, DO PRÓPRIO DESTINO” (Ribeiro Dias, 2000:92). Educar é “educar

para a vida (...) é criar condições para a descoberta do núcleo da IDENTIDADE PESSOAL e para a relação com OS OUTROS, com O MUNDO, com o Ser” (Azevedo, 2006:111).

3.2 Criatividade

CRIAR: - “Inventar possibilidades” (Marina, 1993). CRIATIVIDADE - “Uma maneira especial de pensar, sentir e actuar que conduz a um resultado ou produto original, funcional ou estético, quer seja para o próprio sujeito ou para o grupo social a que pertence (Aldana, 1996). - “Concepção da criatividade em termos de auto-organização e vibração quântica transformadora - criatividade é deixar rasto: algo como uma energia vibracional que flúi do nosso interior ao conjugar potenciais mentais, emocionais, corporeidade e transpessoais (Torre, 2008:9). PERSONALIDADE CRIADORA - “Tenho a impressão de que o conceito de criatividade e o de pessoa sã, auto- realizada e plenamente humana estão cada vez mais próximos um do outro e talvez sejam o mesmo” (Maslow, Apud Moyer, 1995:84).

113 O sublinhado é meu.

243

UMA FÓRMULA PARA A CRIATIVIDADE: - C = ƒa (c, i, a) Criatividade é uma função de uma atitude interpessoal em direcção ao uso benéfico e positivo da criatividade em combinação com três factores: conhecimento, imaginação e avaliação” (Noller, Apud Isaksen, 1994:6).

Gerações no Estudo da Criatividade: 1ª - Ênfase no Pensamento Criativo • Avaliação e estratégias para o seu desenvolvimento • Guilford e Torrance 2ª - Solução Criativa de Problemas • Estratégias do hemisfério direito – analogias, metáforas, visualização, sonhos CRIATIVIDADE • Prince, Corvacho, de Bono, Isaksen 3ª - O Viver Criativo • Atitude Criativa - muitos bloqueios da criatividade são emocionais. • Rogers, Maslow, May Dimensões da Criatividade • Pessoa • Processo • Produto • Pressão Fonte: Aldana (1996) Ilustração II.20 – Criatividade: síntese do conceito.

Sendo, provavelmente, inerência biológica, um instinto tão básico como o comer ou o lutar (Sousa et al, 1998:46), e podendo ser explicada, em termos globais, pela interacção sistémica de quatro dimensões a que chamamos os 4 P’s114 - Pessoa, Processo, Produto e Pressão - (Isaksen, 1994), a Criatividade é um conceito dinâmico que muda à medida da nossa experiência. Tendo vindo a ser objecto de estudo ao longo de uma sequência cumulativa de três gerações (Aldana, 1996), encontro em cada uma delas um grande contributo para o desenvolvimento do nosso potencial humano que aqui procuro também traduzir.

114 Porque nenhuma definição de criatividade é capaz de, por si só, cobrir toda a complexidade do conceito, Mel Rhodes (1961), considerando que as diversas definições da criatividade não são mutuamente exclusivas, procurou identificar os vários temas presentes. Mais recentemente, Scott Isaksen, pela utilização de um diagrama de Venn, aqui reproduzido, procurou mostrar a relação existente entre eles. É aquilo a que normalmente se chama os 4 P’s da Criatividade (Pessoa, Processo, Produto, Pressão) (Isaksen, 1994).

244

Na primeira, há mais de cinquenta anos, as principais preocupações centravam-se no interesse em desmistificar o fenómeno a partir de uma PERSPECTIVA PSICOLÓGICA. Autores como Guilford e Torrance enfatizaram a pesquisa sobre o pensamento criativo, procuraram compreender as suas componentes e sistematizar a criação de um conjunto de estratégias metodológicas que o pudessem estudar e estimular. Um dos instrumentos mais conhecidos é o “brainstorming”115 que, tendo sido proposto por Alex Osborn, encontrou em Sidney Parnes e em David de Prado a possibilidade de um grande desenvolvimento e de utilização em contextos tão diversos como o do mundo empresarial e da educação.

ANÁLISE SISTÉMICA DA CRIATIVIDADE

PESSOA PROCESSO Características Operações Que Das Pessoas Realizam

PRESSÃO Clima, Cultura, PRODUTO Contexto Resultados

© The Creative Problem Solving Group - Buffalo, 2000. (traduzido por Helena Gil da Costa – 2001) Ilustração II.21 – A abordagem sistémica da Criatividade. Tradução e reprodução de Isaksen, 1994. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission.

Na segunda geração do estudo da Criatividade, a da RESOLUÇÃO CRIATIVA DE

PROBLEMAS, com uma ênfase mais pragmática, autores como Edward de Bono, Prince ou Scott Isaksen chamam a atenção para a necessidade de aprendermos a mudar de perspectiva sobre o significado e o sentido dos problemas. Não mais vistos como tragédias, mas como desafios e oportunidades para o desenvolvimento de novas capacidades, competências e soluções (Aldana, 1996), entende-se que é necessário equilibrar de forma dinâmica as estratégias do hemisfério direito (analogias, metáforas, visualizações, sonhos, etc.), com as estratégias do hemisfério esquerdo (memória, análise, comparação, crítica, etc.). Os autores desta geração procuram encontrar meios que, através do uso de uma série de procedimentos, instrumentos e técnicas de

115 “Chuva de ideias” em Português e “torbellino de ideas” em Castelhano.

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produção e de análise de opções, conduzam a soluções originais e eficazes em diversas áreas da vida quotidiana.

“A actividade criativa apresenta-se… como sendo simplesmente um tipo especial de resolução de problemas, caracterizado pela novidade, inconvencionalidade, persistência e dificuldade na formulação do problema” (Newell, Shaw e Simon, 1962, Apud imagens de conferências públicas, CPSB).

A terceira geração no estudo da Criatividade, que começa com a abordagem da Criatividade feita pela Psicologia Humanista (Rogers, Maslow, May), chama a atenção para a importância da auto-realização, de um auto-conceito positivo, do crescimento saudável em direcção ao desenvolvimento máximo das potencialidades pessoais, das questões motivacionais e da natureza das transacções que ocorrem nas relações interpessoais e de grupo (Treffinger, 1996). Porque os valores e as formas sociais vigentes (que amplamente enfatizam a aceitação e o conformismo) não fornecem mais soluções satisfatórias, porque muitos dos bloqueios da criatividade não são racionais, mas emocionais, chega-se à geração do VIVER CRIATIVO – que se consubstancia na atitude criativa e na abordagem criativa da vida diária com respostas novas e imaginativas (Aldana, 1996; Lowen, 1984; Wechsler, 1996).

“O meu conceito de criatividade na década de 70 estava imbuído pela concepção positiva do saber psicopedagógico do momento. A criatividade era entendida como a capacidade para encontrar múltiplas alternativas para os problemas. De facto, tinha que ver com a capacidade divergente para resolver problemas, qualidade que hoje refiro ao Pensamento Criativo. A conceptualização que hoje sustento é uma síntese holística do cognitivo e do afectivo, um encontro entre pessoa, meio, processo e resultado. É isso que procuro comunicar com a expressão “deixar marca”. (...) A marca pode ser desde o impacto e empatia pessoal até à obra com ressonância institucional e social. Existe uma considerável evolução entre o conceito de criatividade vinculado às potencialidades cognitivas e o actual, carregado de conotações atitudinais e afectivas. Quer dizer, um conceito aberto ao saber e à vida” (Saturnino de la Torre in PROCREA, 2006116).

A criatividade integral, entendida, assim, como um modo de vida da pessoa que se vê em permanente processo de transformação e descoberta, precisa de duas

116 http://www.manizales.unal.ed.co/procrea/saturnino1.php. 2006

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componentes essenciais – de SENSIBILIDADE, isto é, da possibilidade de utilizar toda a riqueza dos sentidos como ponto de partida para o contacto da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo; de COMPROMISSO COM A ACÇÃO, isto é, de ter como propósito algum tipo de transformação da realidade (Aldana, 1996). E sensibilidade e acção é, exactamente, o que é preciso para estabelecer a ponte com a terceira área do campo de criação aqui presente, a Motricidade Humana.

3.3 Motricidade Humana

MOTRICIDADE HUMANA: - “A energia para o movimento centrífugo e centrípeto da personalização. (...) É a energia para o movimento intencional de superação (ou de transcendência)” (Sérgio, Apud Sérgio & Toro, 2005:105). - “Forma concreta de relação do ser humano com o mundo e com os seus semelhantes (...). A motricidade refere-se (...) a sensações conscientes do ser humano em movimento intencional e significativo no espaço-tempo objectivo e representado, implicando percepção, memória, projecção, afectividade, emoção, raciocínio. Evidencia-se em diferentes formas de expressão – gestual, verbal, cénica, plástica, etc.” (Kolyniak, 2005:33).

A última área do campo de criação é a Motricidade Humana – aquela que, mais recentemente, estou incorporando na minha consciência e nas minhas inquietudes de construção do humano, mas também aquela que parece constituir a forma e a condição concreta em que as outras duas se movimentam. Contudo, o facto de aqui lhe ser dado um espaço um pouco mais alargado não corresponde a atribuição de uma maior importância relativamente às outras. Simplesmente porque, no discurso académico, é o conceito mais recente, talvez por isso o mais desconhecido, pareceu necessário apresentar de forma bem clara alguns dos princípios e dos termos que a enformam.

247

• Breve história da construção do conceito de motricidade humana

Herdeiros que somos de uma concepção do homem que, a partir dos sofistas e com os pré-socráticos, Sócrates, Pitágoras e Platão, a era cristã, a Idade Média, Descartes... faz a divisão entre corpo e espírito e acentua a ideia de “ter um corpo” como mero instrumento da mente/espírito, é só com Husserl, em 1891, que se desenvolve o conceito de “filosofia da fenomenologia” que, basicamente, posiciona o sujeito e o mundo numa mesma situação e influenciando-se mutuamente. Recuperando, assim, a concepção do ser humano como unicidade em comunhão com a natureza (própria das antigas civilizações), é Merleau-Ponty, em 1945, e no desenvolvimento da fenomenologia, que sublinha que a realidade corpórea do ser humano é a causa da relação sujeito-mundo – o autor evolui para a ideia do “ser corpo” e para o entendimento de que é na MOTRICIDADE HUMANA que operam todas as dimensões do ser humano. Mais tarde, em 1986, Zubiri substitui o conceito de “sou corpo” pelo conceito de “corporeidade” e introduz a noção de que a expressão não é algo que se tem, mas sim consequência da corporeidade (Sérgio et al., s.d.).

“A pessoa manifesta-se através e com o seu corpo, mas essas manifestações – emoções, sentimentos, pensamentos – são parte desse corpo (Damásio, 1995). Falar do corpo em toda a sua amplitude é transcender o sistema orgânico, para entender e compreender o próprio “humanes”. O ser possui um corpo, mas não é um corpo exclusivamente objectal, é um corpo que vive, que é expressão. O Humanes já não só “possui” um corpo (que só faz), mas a sua existência é corporeidade e a corporeidade da existência humana implica fazer, saber, pensar, sentir, comunicar e querer” (Trigo & Kon-Traste, 2001:75).

Bem perto de nós, e centrando-se no valor da ACÇÃO (enquanto componente do comportamento humano e eixo do conhecimento), e no valor da cultura (enquanto conhecimento vivido), Manuel Sérgio considera que ACÇÃO é um conceito que engloba pensamento, intenção, consciência, emoção e energia. Isto significa que uma ideia é uma acção, falar é uma acção, qualquer situação consciente é uma acção – não somente a conduta em si, a execução. Porque a acção começa na percepção, fora da acção há respostas imediatas, respostas reflexas.

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História da Motricidade Humana Husserl (1891) • O sujeito constrói a realidade, a realidade constrói o sujeito. Merleau-Ponty (1945) • “Ser corpo” – a motricidade do ser humano é a configuração em que operam todas as dimensões do ser humano. MOTRICIDADE Varela, Chengeux, Damásio, Von Glaseferd CRIATIVIDADE HUMANA • Unicidade do ser humano, necessidade de superar a departamentalização das ciências. Manuel Sérgio (1986) • Novo paradigma sobre o humano - conceito de acção que engloba pensamento, intenção, consciência, emoção, energia. Rede Internacional de Motricidade Humana (1999, 2006) • Corporeidade – 7 corpos • Pilares da M.H. – ética, acção, complexidade, Fonte: Sérgio et al. (s.d.) política, ludismo, ecologia, transcendência, amor.

Ilustração II.22 – Motricidade Humana: síntese do conceito.

Finalmente, e ao mesmo tempo que, em outras áreas do saber, se produz o desenvolvimento sistemático das neurociências, o reconhecimento da unicidade do ser humano e o reconhecimento da necessidade superar a departamentalização das ciências, com a constituição da Rede Internacional de Investigadores de Motricidade Humana e, nomeadamente em 1999, com os resultados da investigação da Equipa Kon-traste da Universidade da Corunha e da Equipa de Investigação da Universidade do Cauca (2006), são feitas duas novas contribuições que, a seguir, se expõem e, na ilustração 2.23, se sintetizam e se inter-relacionam – a identificação das características do acto motrício (os pilares da motricidade humana); a proposta dos sete corpos da identidade humana.

• Características do acto motrício e pilares da motricidade humana

“Acção motrícia – evento de manifestações da motricidade que consiste em mudanças da posição do corpo, na sua totalidade ou em partes, no espaço, configurando uma sucessão de estados que pode ser percebida e interpretada como fenómeno objectivo e subjectivo, quer dizer, como acção para que, tanto o seu sujeito como um observador podem atribuir significado. A acção motrícia pode ser considerada na sua forma genérica, em que expressa uma configuração e um significado que podem ser

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percebidos em manifestações de diferentes indivíduos, e na sua forma singular, em que se expressa uma configuração e um sentido específico, por isso único e irrepetível para determinado indivíduo” (Kolyniak, 2005:33).

Corpo Mental Corpo Emocional Corpo Corporeidade(s) Cultural Corpo  Físico Motricidade Corpo Corpo Mágico-Sensitivo Inconsciente Corpo Transcendente

Ilustração II.23 – Relação entre os pilares da motricidade humana e as características do acto motrício.

As características que definem um acto motrício, PILARES DA MOTRICIDADE HUMANA, são as seguintes (Trigo, 2006:64):

1. COMPLEXIDADE: pensamento crítico mais pensamento criativo e os sete princípios* expostos por Morin – sistémico, hologramático, circular retroactivo, circular recursivo, autonomia-dependência, dialógico, reintrodução do conhecimento em todo o conhecimento.

2. LUDISMO: sentido lúdico da vida, viver o tempo, viver o momento e o processo, fluir.

3. TRANSCENDÊNCIA: projectar-se e projectar, compromisso e pertença, caminhar em direcção à experiência possível.

4. ÉTICA: construção, não destruição, respeito pelas identidades e individualidades.

5. POLÍTICA: o compromisso social com as pessoas e os povos, revolução dos povos da terra em prol da sua emancipação.

6. ECOLOGIA: humana, planeta, universo numa relação intercomunicativa, impossível de separar; a relação eu-outro-cosmos; o compromisso humano com a vida.

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7. ACÇÃO: qualquer acto intencional (interno e externo; observável e não observável) – a interrelação entre pensamento, emoção, intenção, inquietude, consciência, energia. 8. AMOR: o sentimento que nos integra, nos harmoniza, não só entre os seres humanos, mas com Gaia e todo o sistema vivo planetário. Amar é encontrar na felicidade do ser amado a própria felicidade.

• As sete dimensões da corporeidade

“A corporeidade é uma construção, não um mundo dado, [mas] um processo histórico em que se vão gravando os sinais do tempo, por isso, um caminho pessoal, cultural, ético, político e transcendente” (Bohórquez e Trigo, 2006).

À semelhança da sabedoria antiga dos hindus e dos lamas e do número sete como símbolo de perfeição dinâmica nos egípcios, as dimensões da corporeidade correspondem ao entendimento de que a identidade humana se sustenta em sete corpos117. Enquanto DIMENSÕES QUE CONFIGURAM A CORPOREIDADE (pelo que se deveria

117 Outros autores apresentam também propostas deste tipo. Dois exemplos: 1) Considerando que o desenvolvimento humano se manifesta em aquisições progressivas e aprendizagens específicas, Roldán Vargas (1997) identifica as seguintes esferas de desenvolvimento das potencialidades humanas: Esfera orgânica-maturativa – relacionada com as condições que, na ordem da interacção entre o biológico e o ambiental (cultural), constituem o suporte do desenvolvimento nas outras esferas. Implica desenvolvimentos de tipo físico e neurológico. Esfera cognitiva – relaciona-se com aprendizagens de tipo intelectual. A meta coloca-se numa dupla perspectiva: o desenvolvimento da capacidade de resolver problemas; o acesso a formas e estruturas de pensamento que permitam ao ser humano compreender-se a si mesmo e ao mundo. Esfera erótico-afectiva – em que se colocam aprendizagens ligadas à construção da identidade humana, o autoconceito e em geral as relações vinculantes afectivas consigo mesmo e com os outros. Esfero ético-moral – referida a aprendizagens que tocam com a construção de normas que permitam ao indivíduo elaborar um projecto de vida e contribuir para o de outros. É o desenvolvimento do sentido do bem próprio e do bem comum como requerimento para uma convivência sã e para o desenvolvimento da autonomia, entendida como processo de auto-reflexão. Esfera linguístico-comunicativa – que aponta para a aprendizagem e desenvolvimento da linguagem e da comunicação, no plano oral e escrito, na pretensão de se aproximar do domínio dos processos simbólicos, de diálogo e argumentação em que seja possível o entendimento e a compreensão. Esfera política – que compromete a aprendizagem de formas de vida em comum. O desenvolvimento desta esfera permite a construção de formas de organização da vida privada e da vida pública, a construção da acção participativa com outros em áreas do bem comum e do bem próprio. Esfera lúdica – nela se reconhece o sujeito da liberdade – liberdade de explorar, pensar, criar e transformar. É o âmbito em que se inscreve o jogo, mas não se restringe a ele – é antes uma atitude vital.

251

antes passar a falar de interacção de corproreidades), constituem uma complexidade multidimensional que, tal como a música e a luz, se interpenetram e decompõem em notas, cores ou tonalidades (Bohórquez e Trigo, 2006). São eles118:

1. CORPO FÍSICO – capacidades energéticas.

2. CORPO EMOCIONAL – capacidades emocionais.

3. CORPO MENTAL – capacidades do pensamento. 4. CORPO INCONSCIENTE – capacidades introspectivas.

5. CORPO CULTURAL – capacidades étnico-globais.

6. CORPO MÁGICO-SENSITIVO – capacidades perceptivas.

7. CORPO TRANSCENDENTE – capacidades projectivas.

Esfera produtivo-laboral – a essência desta esfera é o mundo do trabalho, as aprendizagens orientam para a consolidação de uma existência criativa, produtiva e regeneradora. 2) Partindo de referências de tradições antigas, Angel Livraga (1994) indica a existência de sete veículos para a realização do homem: O físico. O formal – a parte prânica ou energética, de vibração mais elevada que o anterior, não tem forma em si mesmo. O emocional – é a parte psíquica, altera as partes energética e física e, inclusive, os pensamentos. A mente concreta – a mente racional, da vida corrente. A mente superior – a mente do abstracto, do filosófico. O da iluminação – intuição ou sabedoria que permite perceber directamente as coisas sem recurso à razão. O Espírito – a consciência que conhece todas as coisas, que conhece o Bem e o Mal. 118 Estes mesmos autores desenvolvem estes conceitos: Corpo físico – o nosso corpo material, orgânico ou biológico; é palpável, tocante e tocado, receptor e transmissor, a janela dos nossos sentidos e da alma; é presencialidade, carta de apresentação perante nós mesmos, perante os outros e perante o mundo. Corpo emocional – as emoções e os sentimentos que, entrelaçados com o nosso corpo racional, nos fazem humanos; somos o resultado imediato das nossas emoções. Corpo mental – cognição, pensamento, raciocínio, memória, análise, comparação, associação, argumentação, memória, crítica, linguagem; o que manifestamos ao ser conscientes do mundo. Mas nem o mental nem a linguagem são o cérebro, nem estão só no cérebro – a nossa mente é orgânica, emocional e espiritual e distribui-se em cada uma das suas células e descobre-se na interrelação entre o meio e o organismo. Corpo inconsciente – depósito de recordações condensadas, desejos reprimidos e impulsos primitivos a que não podemos aceder voluntariamente; é o responsável pelos nossos bloqueios, medos, sonhos, actos falhados e comportamentos involuntários movidos pelos nossos juízos morais que co- accionam a nossa possibilidade de ser. Corpo cultural – o saber popular, o saber em construção, o contexto, o simbólico, o como fazer do quotidiano, a nossa história, o imaginário colectivo; aproxima-se da ideia de inconsciente colectivo de Jung que postula um conjunto de conteúdos psíquicos comuns à humanidade em geral. Corpo mágico-sensitivo – o extra-sensorial, o que nos conecta com o cosmos, a intuição, o mítico, a lenda, os contos da nossa infância e a sabedoria que vamos ganhando com a maturidade. Corpo imanente-transcendente – o caminho do aqui e agora para a projecção, o desde-onde e para onde, os horizontes, as luzes que orientam no caminho, a criação, a espiritualidade.

252

Ilustração II.24 – Dimensões da corporeidade. Reprodução de Trigo (2006).

Em síntese, pode-se dizer que a motricidade se configura como

“processo cuja constituição implica a construção do MOVIMENTO INTENCIONAL a partir do

reflexo, da reacção mediada por REPRESENTAÇÕES a partir da reacção imediata, das

ACÇÕES PLANEADAS a partir das simples respostas a estímulos externos, da criação de

NOVAS FORMAS DE INTERACÇÃO a partir da reprodução de padrões aprendidos, da ACÇÃO

CONTEXTUALIZADA NA HISTÓRIA – por isso, relacionada com o passado vivido e com o futuro projectado – a partir da acção limitada às contingências presente” (Kolyniak, 2005:33).

3.4 Inter-relação de Conceitos

“A CRIATIVIDADE é um eixo transversal na MOTRICIDADE do humano. Não existe Motricidade sem criatividade, não existe Motricidade sem respeito pela capacidade inerente à pessoa de se desenvolver plenamente como tal. Se eliminarmos a criatividade

das nossas sessões [de ACÇÃO EDUCATIVA], eliminamos a essência “humana” de participar no projecto volitivo da auto-superação. Motricidade sem criatividade é mecanismo de um corpo material que reproduz as ordens externas para conseguir objectivos biológicos, de optimização do potencial “físico” (Rey Cao, 2000:129-130).

O que encontro, então, em comum entre estas três áreas – educação de adultos, criatividade e motricidade humana –, como se interrelacionam e tornam campo de

253

criação da pesquisa, o que as torna “parceiros vitais” no processo do Desenvolvimento Humano?

C r i a t i v i d a d e

e d a a d i n c a i r t m o u H M Educação de Adultos

Ilustração II.25 – Inter-relação dos conceitos de Educação de Adultos, Criatividade, Motricidade Humana e Desenvolvimento Humano.

1. As suas AFINIDADES: - Uma mesma natureza dinâmica. - Uma mesma rejeição da redução do humano a aspectos instrumentais, estritamente biológicos ou economicistas. - Uma mesma consciência de si mesmo, dos outros e do universo. - Um mesmo sentido ecológico, imanente-transcendente da construção da existência humana. - Uma mesma vontade de sentido de coerência entre diferentes facetas da vida. - Um mesmo propósito de transformação, de correr o rico de mudar, de ir contra o estabelecido e de compromisso com a acção.

2. As suas ESPECIFICIDADES:

- A Educação de Adultos é o terreno que cria condições, o contexto, o “ONDE”.

- A Criatividade é o provocador, o motor, a possibilidade, o “COMO”.

- A Motricidade Humana é o sujeito em relação, a percepção-consciência, o “O QUÊ”.

3. E o DESENVOLVIMENTO HUMANO? Como se posiciona e emerge neste campo de criação?

254

- O Desenvolvimento Humano é o “PARA QUÊ” – é o sentido do movimento, a autonomia-dependência, a transformação e a felicidade compartida.

Por isso, e de uma forma muito simples, é possível dizer que, para que o processo de Desenvolvimento Humano seja desencadeado, é preciso a confluência de três factores: um sujeito (o da Motricidade Humana), um terreno (o da Educação de Adultos), um alimento e motor (o da Criatividade).

Em resumo, o campo de criação aqui em causa (aquele que pretende dar origem a um conjunto de orientações didácticas para, em contexto de Educação de Adultos, lidar com o medo) é, simultânea e redundantemente, o campo da educação criativo-motrícia – isto é, da intervenção pedagógica a partir da criatividade e da motricidade. Por isso, sempre que neste trabalho se fala em Educação de Adultos está-se a falar de (Trigo, 2006):

- EDUCAÇÃO PARA A EXPRESSÃO E PARA A VIDA, não uma educação para a reprodução e legitimação dos sistemas estabelecidos.

- ESPAÇOS DE ENCONTRO (acção dialógica) para contribuir para a formação de sujeitos autónomos e criadores, não sujeitos dependentes da autoridade. - AULAS (FORMAIS E NÃO FORMAIS) PARA MOBILIZAR A REFLEXÃO PERMANENTE sobre a pessoa e a sociedade, espaços de transformação (aulas inteligentes), não aulas papagaio.

- UM ATREVER-SE A PROPOR OUTRAS FORMAS DE VER, DE SER E ESTAR NO MUNDO, não continuar a apostar no modelo em que estamos inseridos. - PROPOSTAS EM QUE O RIGOR, A COERÊNCIA, O COMPROMISSO, A

RESPONSABILIDADE, O OPTIMISMO E A ALEGRIA SEJAM O IDEÁRIO DA ACÇÃO dentro e fora da aula.

255

4. Educação Criativo-Motrícia

“No princípio existia o Verbo; e o Verbo E eu diria: estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio existia o Ser; e o Ser estava na No princípio Ele estava em Deus. Por Transcendência; e o Ser era a Transcendência. Ele Ele é que tudo começou a existir; e estava na Transcendência. Por ele é que tudo sem Ele nada veio à existência. Nele é começou a existir, e sem ele nada veio à existência. que estava a Vida de tudo o que veio a Nele é que estava a energia de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens. existir. E a energia era a capacidade de A Luz brilhou nas trevas, mas as transformação dos homens. A energia brilhou no trevas não a receberam” (João 1, 1-5) medo, mas o medo não a recebeu.

Ouso começar esta reflexão recriando, como síntese do até aqui apresentado e mote para o que se vai seguir, os primeiros versículos do Evangelho de S. João. Que me perdoem os teólogos o atrevimento por assim fazer o sumário da minha leitura das referências recolhidas em diversos campos do saber, mas pareceu apropriado – porque aqui procuro vislumbrar como fazer a (re)descoberta do Ser que, mesmo que imerso em múltiplas camadas de medo(s), continua residindo em cada um de nós; porque aqui procuro juntar o que, junto de diversos autores, pude encontrar sobre o processo de (re)conversão de “Filhos do Medo” em “Filhos do Sol”; porque, finalmente, aqui procuro compreender o que, de tudo isso, pode ser sinergeticamente desencadeado.

Ilustração II.26 – O espaço dado ao Ser no processo de enfrentar o medo.

Vou dividir o texto em duas partes:

a) A primeira, “Enfrentando o Medo”, busca a compreensão do que precisa ser accionado em quatro dimensões da educação criativo-motrícia para que se possa lidar com o medo.

256

b) A segunda, em contraponto com a que anteriormente chamei “Vivendo com Medo”, é aquela a que agora chamo “ConVIVENDO com o Medo”. Porque busca o entendimento do que se (vai) conquista(ndo) em todo o processo que o antecede, mas também lhe sucede, é a meta-caminho-meta sempre inacabada do Desenvolvimento Humano, é a responsabilidade-compromisso ético do estar no mundo, é a vocação ontológica para o ser mais – não feito, ou procurado, como mera teoria, sonho ou ilusão, mas encontrado na experiência e na sabedoria de quem já muito andou e sabe que não se é, mas se vai sendo.

4.1 Enfrentando o Medo Mudar de vida? É tão fácil dizê-lo! Será um longo e fundo meditar; Porém, quando o horizonte está cerrado, Com coragem, mirar-se no espelho Passado com futuro enrodilhado, E ver como de novo começar; Pior que refazer um mau novelo. Cá dentro virá um só conselho, Mudar de vida? Não chega apenas querê-lo! Palavra que jamais é de olvidar: Dentro de nós, ao ser tudo mudado, Não pôr remendo novo em pano velho! Quando na nossa vida há tanto errado Teremos de pesar como fazê-lo. J. Gil da Costa

Considerando que o campo de criação da pesquisa está configurado pelo conceito de EDUCAÇÃO CRIATIVO-MOTRÍCIA atrás explicitado, vou procurar organizar/co-criar o pensamento de diversos autores119 que, de distintas maneiras também, se debruçaram sobre “o medo e o desenvolvimento humano” na educação de adultos. Para tal, apresento e trabalho a partir de uma proposta de intersecção entre os elementos centrais explicativos da Criatividade e os da Motricidade Humana (Ilustração II.27):

1. A PESSOA na sua CORPOREIDADE e com tudo o que são as suas capacidades, competências e motivações.

2. A PRESSÃO, o contexto, a área da interacção da RELAÇÃO da pessoa CONSIGO MESMA, COM OS OUTROS e COM O UNIVERSO.

3. O PROCESSO que se desenvolve em MOMENTOS DA ACÇÃO E DA MUDANÇA.

119 Dado que, numa leitura mais abrangente, é imensa a quantidade de princípios-indicações-sugestões- estratégias-exercícios sobre modos de promover o Desenvolvimento Humano que também podem ser utilizados para lidar com o medo, vou sobretudo cingir a minha apresentação a autores que, explicitamente, referem esses mesmos princípios-indicações-sugestões-estratégias-exercícios no contexto da inter-relação entre o medo e o desenvolvimento humano.

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4. O PRODUTO que, enquanto novo e com valor para todos e cada um, desemboca

na CONSCIÊNCIA DE SI, DO OUTRO, DO MUNDO.

Educação Criativo-Motrícia

PESSOA PROCESSO Corporeidade Momentos da Acção e da Mudança

PRESSÃO PRODUTO Eu-Outro-Cosmos Consciência de Si, Consciência do Outro Consciência do Cosmos

Ilustração II.27 – Dimensões da Educação Criativo-Motrícia.

E sendo certo, primeiro, que só em termos de discurso é possível separar estas dimensões; segundo, que muito embora cada uma valha por si mesma, cada uma está relacionada e cria impacto com cada uma das outras; terceiro, que para compreender toda a questão do “Medo e Desenvolvimento Humano”, é preciso olhar para o sistema completo, passo à apresentação de alguns exemplos do que encontro como contributos para este tema.

• Pessoa / Corporeidade

“Penso que podemos ensinar as pessoas a aliviarem o peso da preocupação e do desespero e a encontrarem felicidade no momento presente. Podemos encontrar a alegria, por muito difíceis que sejam as nossas circunstâncias. O cérebro é tanto uma coroa de espinhos como uma varinha de condão – dependendo da forma como escolhemos usá-lo. Nós decidimos quem queremos ser, nós decidimos que lentes queremos usar para olhar a vida. Isto pode ser o paraíso, já agora, se soubermos

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manejar o nosso próprio processo de pensamento. É possível encontrar serenidade (Elaine de Beauport, Apud Sisk & Torrance, 2001:39-40)120.

Tendo em conta, como já atrás foi referido121, que (1) causa e efeito se confundem, (2) requisito é também resultado e que, neste caso, (3) “Pessoa” também é “Produto”, de que se precisa e o que acontece, na dimensão Pessoa-

EXTRA-SENSORIAL Corporeidade? •Intuição •“insight” •Eureka! •Corpo mágico 1. Competências emocionais básicas

SENSORIAL •Vista •Ouvido Definindo-a como capacidade de •Tacto •Gosto •Olfato reconhecer os nossos •Quinestésico sentimentos e os dos outros, de

Ilustração II.28 – A pessoa-corporeidade. nos motivarmos e de gerirmos Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas). bem as emoções em nós e nas nossas relações, Goleman (1999:323-324) indica cinco competências emocionais e sociais básicas da inteligência emocional122:

a) AUTOCONSCIÊNCIA – Saber o que sentimos no momentos e usar essas preferências para orientar a nossa tomada de decisões; possuir uma avaliação realista das nossas próprias capacidades e um sentido bem fundamentado de autoconfiança.

120 “I think we can teach people to remove the weight of worry and desperation and to find happiness in the moment. We can reach out for joy, no matter how awful our circumstances. The Brain is either a crown of thorns or an enchanted loom – depending on how you use it. You decide which one it’s going to be, you choose what lens you want to use to look at life. This can be paradise, right now, if you know how to manage your own thought process. It’s possible to find serenity” (Elaine de Beauport, Apud Sisk & Torrance, 2001:39-40) 121 Ver no ponto 1 deste capítulo “Filhos do medo”, causas e efeitos do medo. 122 De acordo com Goleman (1999:335), cultivar uma competência ao nível neurológico significa extinguir o velho hábito enquanto resposta automática do cérebro e substitui-lo pela nova. A fase final de mestria de uma competência chega quando o velho hábito perde a sua condição de resposta por omissão e o novo hábito toma o seu lugar. Regra geral é mais difícil mudar as atitudes profundas e os valores associados subjacentes que mudar os hábitos de trabalho – a distância que medeia entre o comportamento de base da pessoa e o novo comportamento tem uma enorme importância.

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b) AUTOREGULAÇÃO – gerir as nossas emoções de modo que facilitem em vez de interferirem com as tarefas que temos em mãos; ser consciencioso e protelar a gratificação para atingir objectivos; recuperar bem da depressão emocional. c) MOTIVAÇÃO – usar as nossas preferências mais profundas para avançar e nos guiar para os nossos objectivos, para nos ajudar a tomar a iniciativa e sermos altamente eficientes para perseverar face a contrariedades e frustrações.

d) EMPATIA – ter a percepção do que as pessoas sentem, ser capaz de adoptar a sua perspectiva e cultivar laços e sintonia com uma grande diversidade de pessoas.

e) APTIDÕES SOCIAIS – gerir bem as emoções nas relações e ler com precisão as situações sociais; interagir com harmonia; usar essas competências para persuadir e liderar, negociar e resolver disputas, para a cooperação e o trabalho de equipa.

2. Inteligências múltiplas e possibilidades de auto-superação

Tendo utilizado um dos modelos de Gardner para estudar os efeitos de experiências- vivências que estimulam o relacionamento da pessoa com o mundo, com os outros e consigo mesma, Gáspari & Schwarts (2007) indicam serem estas as possibilidades de liberdade, auto-superação e auto-realização que se abrem a partir de cada uma das inteligências:

a) Inteligência lógico-matemática – permite descodificar, analisar, sintetizar, compreender, avaliar e questionar modelos socialmente impostos e expressar

RESISTÊNCIA às possibilidades de manutenção ou transformação desses modelos. b) Inteligência linguística – permite o rompimento de barreiras, a SIMBIOSE e integração.

c) Inteligência naturalista – permite o reconhecimento de que se é dotado de um

corpo, com espaço ECOLÓGICO integrante, integrado e integrador homem- natureza e natureza-humana.

d) Inteligência interpessoal – permite mobilizar atitudes e valores no relacionamento – cooperação, respeito, paciência solidariedade, empatia, criatividade,

encorajamento... – e imprimir às experiências um carácter de UNICIDADE.

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e) Inteligência intrapessoal – permite a confiança, a intencionalidade, o auto-

controle, a curiosidade e denotar a INDIVIDUALIDADE humana.

f) Inteligência espacial – permite utilizar o modelo mental de espaços da realidade ecológica na ORIENTAÇÃO DE VIVÊNCIAS, provocando a substituição do eu determinado pelo eu espontâneo e favorecendo a canalização de energias sublimadas.

g) Inteligência corporal-cinestésica – permite a expansão de limites, colocar à prova sentimento e valores, SUPERAR a inibição de viver experiências com plenitude.

h) Inteligência musical – permite a SENSIBILIDADE e a comunicação do homem no e com o mundo real e a representação simbólica do ver-ouvir-sentir dos ritmos internos do corpo harmonizado com o exterior.

i) Inteligência espiritual-existencialista – permite a elevação para lá da realidade quotidiana, a resistência e a extrapolação dos limites sociais, a conexão e o sentido de comunidade, a libertação de restrições, a experiência de liberdade interior e do sentido da vida.

• Pressão / Eu-Outros-Cosmos

Que condições devem existir no contexto de interacção da pessoa (consigo, com os outros e com o mundo), para que o processo de mudança seja desencadeado? Maxwell responde:

“As pessoas mudam quando já sofreram o suficiente para perceber que TÊM DE mudar,

quando já aprenderem o suficiente para perceber que QUEREM mudar; quando já 123 receberam o suficiente para perceber que SÃO CAPAZES de mudar” (Maxwell, 1993:63) .

Aparentemente simples, não é? Então, segundo Maxwell, para que haja mudança, é necessário que exista: NECESSIDADE de mudar, VONTADE de mudar, CONFIANÇA na possibilidade de mudar. Mas porque, relativamente às duas primeiras (necessidade de mudar e vontade de mudar), já houve espaço para, nas dimensões anteriores,

123 “People change when they hurt enough they have to change; learn enough they want to change; receive enough they are able to change” (Maxwell, 1993:63).

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apresentar a respectiva fundamentação, vou agora centrar-me nas implicações da terceira – a confiança na capacidade de mudar PORQUE se recebeu bastante.

OSM ELC OS YO

Ilustração II.29 – O contexto/pressão – interacção da pessoa consigo mesma, com os outros e com o cosmos. Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas).

1. A figura do educador

Volto a Leonardo Boff para compreender o que cria essa confiança na capacidade de mudar e porque é possível mudar. E atrevo-me a recolher do que nele se encontra disperso: - porque existe um outro alguém que, dando-se conta da presença de uma natureza singular que jaz escondida no seu discípulo, dando-se conta dos pequenos sinais de inquietação pelo chamado do infinito, dando-se conta de que o brilho dos olhos já contem a semente do renascer... não desiste e, com firmeza, encontra forma de ajudar a superar o medo, de resgatar do cativeiro, provocar e convocar, de despertar do que, afinal, é só um longo esquecimento do caminho de uma vocação transcendente (Boff, 1998).

Não é essa a figura e a função de um Educador (de um Mentor, de um Líder, de um Mestre), muito para lá de um contacto de um seminário breve ou de um manual de procedimentos124? Não é isto o que faz o Pai quando o Filho Pródigo está a caminho de casa (Lucas 15, 11-32)? Não é isto o que também contido no postulado da sabedoria oriental, “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece” (Moffit, 2002)?

124 De acordo com Goleman (2000), o desenvolvimento da inteligência emocional não pode ser feito dentro dos espaços tradicionais de formação. Porque é preciso incluir o sistema límbico na formação, para ajudar as pessoas a esquecerem velhos hábitos comportamentais, é preciso muito mais tempo, um desejo sincero, um esforço intensivo e uma abordagem mais personalizada.

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2. O papel do educador

São três os modos como, de acordo com Moffit (2002), o mestre pode contribuir para o processo de mudança:

- Ser fonte de CONHECIMENTO, que não é o mesmo que instrução.

- Ser fonte de INSPIRAÇÃO, pelo seu amor e entusiasmo pela verdade espiritual, pelo interesse e energia que mostra pelo trabalho do seu aprendiz.

- Ser veículo de criação de pequenos e tranquilos momentos de CLAREZA

INTERIOR, que quase passam desapercebidos, mas que são capazes de, lentamente, reconfigurar uma vida.

3. Estratégias do educador

Ruth Noller (1997) apresenta como estratégias para a acção eficaz de um Mentor:

- Uma ATITUDE POSITIVA que encoraje a enfrentar a vida com entusiasmo e humor...

- Uma VALORIZAÇÃO que encoraje a examinar as próprias crenças, a estabelecer valores e objectivos pessoais, a acreditar em si mesmo...

- Um ESPÍRITO ABERTO que encoraje a considerar muitas alternativas antes de fazer quaisquer juízos...

- Uma INTERACÇÃO que encoraje a partilha, o cuidado, o reforço positivo, o estímulo, o aprender com os erros, a partilhar experiências, a celebrar os sucessos...

- Uma COMUNICAÇÃO EFICAZ que encoraje uma escuta activa, perguntas assertivas, respostas estimulantes, a consideração de outros pontos de vista...

- Uma ATITUDE DE DESCOBERTA que encoraje a pensar livremente, a ser curioso sobre as outras pessoas, lugares e coisas, a aprender a perguntar...

- Uma FORÇA e uma SINGULARIDADE que encorajem a usar os talentos que se possuem, a resistir à tentação da clonagem e da repetição...

- Uma atitude de CONFIANÇA que encoraje a assumir a responsabilidade pelos próprios actos...

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- Uma CONSCIÊNCIA que encoraje a ser consciente, intuitivo, sensível aos problemas, a usar todos os sentidos...

- Uma FLEXIBILIDADE que encoraje a adaptação nas atitudes e nas acções, a procurar alternativas, a ver as pessoas e as coisas a partir de diferentes perspectivas...

- Uma capacidade de ASSUMIR RISCOS que encoraje a ser um participante activo e não um espectador, a ser proactivo e não reactivo...

4. Quem dá o primeiro passo

Mas, que características tem o ambiente que não quer, ou não permite, a mudança? Não será tudo isto também uma questão de sorte? Por que razão, esta figura de Educador, plena de força, optimismo e coragem, é, para alguns, uma certeza e, para outros, parece nunca surgir? Por que razão parece que muitos outros nunca “receberam o suficiente para perceber que são capazes de mudar” (Maxwell, 1993:63)?

De acordo com Jeffers (1991: 89-108), é frequente que a pessoa que se dispõe a enfrentar o medo esteja rodeada de figuras significativas que se começam a sentir ameaçadas com a mudança e, por isso, desenvolvam estratégias de resistência e sabotagem para manter os padrões de interacção e o clima de negatividade há muito estabelecidos. São tentativas de preservar o contexto sobre o qual se construiu alguma segurança, mas que, por si só, também podem dar origem ao aparecimento de novos medos – o medo de continuar o processo de mudança, o medo de estar errado, o medo de perder as relações estabelecidas.

E também em Jeffers, encontro a solução, a residir, uma vez mais, na consciência e na responsabilidade – na consciência da energia negativa de que se está rodeado e com que se está sendo contagiado; na responsabilidade de se perceber que outro mundo é possível; na consciência de que não se está sozinho e que, saindo, procurando, contactando, tentando, se pode também criar o tipo de sistema de apoio que se deseja e precisa. É esse, afinal, o passo que o “filho pródigo” tem de dar para ir ao encontro do “pai” que há muito já está à sua espera. É isso o que significa “estar preparado” e o que faz com que “o mestre apareça”.

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• Processo / Momentos da acção e da mudança

O que fazer para que o processo de mudança aconteça?

“A consciência é a principal força do universo (...). Toda a mudança começa pela consciência – a consciência da situação existente, a consciência do potencial para algo mais elevado e a consciência da criatividade ilimitada que existe em cada um de nós para catalizar a transformação que queremos ver em nós próprios e nas gerações vindouras” (Chopra, 2005:19).

Sensação Querer / Fantasia Pensamento Energia percepção Imaginação não querer Cultura Desejos Emoção memória Ética Desejos Medos Desejos cultura conflitos Valores medos movimento TOMADA DE CONSCIÊNCIAASSUMIR TOMADA DE DECISÃO EXECUÇÃO

CENTRÍFUGO-CENTRÍPETO CENTRÍPETO- CENRÍFUGO

TEMPO TEMPO TEMPO TEMPO TIEMPO

pessoal cultural cósmico

TEMPOS SITUACIONAIS

TEMPO DE VIDA

Ilustração II.30 – Processo – momentos da acção e da mudança Reprodução de Trigo. E. (imagens de conferências públicas).

A mudança acontece, e desenha-se uma espiral de crescimento, sempre que se foge do círculo da repetição e se muda alguma coisa que é essencial para a definição do nosso caminho, para o desenvolvimento da nossa humanidade e para a evolução da espécie e do universo (Feitosa, 2006:77) – o círculo de repetição, em que nada se acrescenta, é formado pela pouca consciência125; um novo círculo da espiral é

125 O homem pode viver num nível de consciência de um vegetal – gostar de estabilidade, de fixação de segurança... – ou num nível de consciência de qualquer animal, desde o mais selvagem, manifestando interesse apenas pela sobrevivência e protecção de si próprio e da sua prole a qualquer custo, até à possibilidade de dedicar a sua vida, sua inteligência e seu trabalho para bem da humanidade e do planeta, num total despojamento de si próprio (Feitosa, 2006:57).

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desenhado quando se toma consciência da percepção, da responsabilidade, da decisão ou da execução (Feitosa, Kolyniak & Kolyniak, 2006)126:

a) TOMADA DE CONSCIÊNCIA – o tempo da percepção, da inquietação, do dar-se conta, da descoberta de sentido, em função do passado, do presente e do futuro.

b) ASSUMIR – o tempo de se atribuir a responsabilidade pelo passado, pelo presente e pelo futuro e, por isso, aceitar as implicações e os conflitos que daí possam advir.

c) TOMADA DE DECISÃO – porque a decisão depende de valores, de desejos, da cultura, dos medos, do pensamento, é o tempo de deliberar e da auto-criação das condições da mudança. d) EXECUÇÃO E ESTRATÉGIAS – o tempo da conduta.

1. Tomada de Consciência

“Não se pode escolher sabiamente uma vida a menos que a pessoa se atreva a escutar- se a si mesma, ao seu próprio eu, em cada momento da vida” (Maslow, 1991:XLV). Porque são humanos e naturais, não existem emoções e sentimentos bons e emoções e sentimentos maus, mas é preciso que sejamos capazes de perceber da sua adequação à situação em que ocorrem. De acordo com Marroquín (1995), isso depende de dois factores: da apreciação realista das diversas circunstâncias, experiências ou estímulos ambientais (o que pode ser difícil por causa do seu carácter subjectivo), e da necessidade de distinguir entre preferências ou necessidades imperiosas (o que pode ajudar a clarificar a subjectividade anterior).

126 De acordo com Moffit (2001a), Buda ensinou que existem cinco qualidades, ou capacidades espirituais, que podem ser uma grande ajuda num processo de a mudança. São elas: 1. Fé (saddha) – envolve clareza e confiança e si mesmo e nos outros. 2. Esforço (viriya) – energia. Existem três tipos de esforço: o que vem da fé – se não houve fé nunca se dá o movimento inicial em direcção à mudança; perseverança – durante os tempos difíceis que sempre acompanham a mudança; esforço que surge do próprio momento de esforço quando há compromisso com aquilo em que se acredita. 3. Estar alerta (sati) – que pode ser cultivada pela meditação. 4. Concentração (samadhi) – que reforça a intensidade do esforço. 5. Sabedoria (panna) – que permite redirigir o movimento da mudança sempre que se perceber que o objectivo estava incorrecto ou que o caminho tomado não era o adequado.

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O que fazer, então, para enfrentar o medo? É preciso que haja uma relação entre pensar e sentir. A pessoa totalmente autoconsciente percebe como os seus pensamentos se relacionam com os seus sentimentos e como estes condicionam os primeiros. Conhecer-se é uma função tanto cognitiva como sensível e, se o sentimento estiver divorciado do pensamento, a personalidade fica dividida – estar atento só a um deles é uma espécie limitada de autopercepção (Torre, 2005 e 2008; Lowen, 1984, 216- 217). Como todas as sensações são sentidas no corpo, se se estiver conectado com as sensações e tensões corporais, é possível ter um contacto directo com os sentimentos e uma melhor capacidade de os identificar (Moffit, 2002a).

E porque isto é uma tarefa de descoberta pessoal, porque o caminho para o auto- desenvolvimento é o auto-conhecimento, a pergunta “quem sou eu?” (com as suas respectivas implicações, “o que sinto”, “o que penso”, “o que quero”...), é a primeira questão para tratar o tema do auto-enfrentamento e, com isso, desmascarar o medo (Feitosa, 2006:53 e ss). Logo, e porque não se pode mudar o que não se reconhece, se se está completamente aberto à experiência, se não se nega nem se combate o medo como um inimigo, estar consciente dele, olhá-lo de frente, é, em si mesmo, transformador – não porque se fez com que o trauma ou as cicatrizes desaparecessem, mas porque, lentamente, se transforma o medo em aliado e com ele se desenvolve uma nova relação que deixa de exercer um poder controlador na vida (Moffit, 2002a).

“O verdadeiro e único antídoto eficaz contra o medo é alcançar a verdade profunda de si mesmo (...). É o esquecimento do «pequeno eu» o que nos permite libertar do medo. Aquele que só se ama a si mesmo viverá sempre no precário e no incerto. O que é capaz de amar o mundo (...), vive na paz imutável da vida” (Peña y Lillo, 1991:113-114).

2. Assumir

“Se você continuar a atirar as responsabilidades para cima do outro, lembre-se que permanecerá sempre um escravo, porquanto ninguém consegue mudar o outro” (Osho, 2002b:137).

Assumir não significa culpar-se pela situação que se vive, mas atribuir-se total responsabilidade por aquilo que acontece e pelos desafios que se apresentam. É a

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consciência da oportunidade, é compreender que todas as coisas que acontecem no presente são resultado de escolhas feitas no passado, quer disso tenha havido, ou não, consciência (Chopra, 2005:61,64).

Jeffers (1991:51-68) apresenta sete definições para a expressão “assumir a responsabilidade”: 1. Nunca acusar ninguém por nada que se esteja a ser, fazer, ter ou sentir. 2. Não se acusar. 3. Ter consciência de onde e quando não se esteja a assumir a responsabilidade para que, eventualmente, se possa mudar. 4. Estar familiarizado com as formas de intracomunicação. 5. Estar consciente das vantagens de se estar preso numa dada situação. 6. Perceber o que se quer na vida e agir de acordo com isso. 7. Estar consciente da quantidade de escolhas que se tem numa dada situação.

3. Tomada de Decisão

“Nada é tão fatigante como a indecisão e nada é tão fútil” (Russel, 2001:70).

“Educar para a decisão, para a responsabilidade pessoal e social é um objectivo educacional que só pode ser alcançado mediante outros princípios norteadores da educação, comprometidos com a construção de um homem novo, mais consciente de si e do seu papel de construtor do mundo em que vive” (Feitosa, 2006:64).

Considerando que o erro é uma parte essencial da vida, que não é possível obter sucesso em tudo o que se faz, que não cometer erros é sinal de que não se está a aprender, nem a crescer, e que escolhas diferentes simplesmente produzem experiências diferentes, Jeffers (1991:111-129) sumaria os passos que podem ser dados para se tomarem decisões dentro de um “modelo ganhador”127:

1. Antes de tomar uma decisão:

127 “Non-Lose Model” no original.

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a. Centrar no “modelo ganhador” – afastar os pensamentos de que se pode perder e só permitir pensamentos sobre o que se pode ganhar. b. Fazer o trabalho de casa – clarificar as intenções, ir buscar feedback a outras fontes, desde que venha das pessoas certas; isto é, que sejam pessoas que apoiam a aprendizagem e o crescimento em causa. c. Estabelecer prioridades – dar-se tempo para pensar seriamente sobre o que se quer da vida. d. Confiar nos próprios impulsos – o corpo fornece muitas pistas que indicam por onde ir. e. Tornar tudo mais leve – qualquer que seja o resultado, é possível lidar com ele.

2. Depois de tomar uma decisão: a. Deitar fora a imagem antes criada – muitas oportunidades não esperadas podem criar mais valor do que o previsto. b. Aceitar total responsabilidade pelas decisões – faz com que se fique menos zangado com o mundo e consigo próprio. c. Não proteger, corrigir – estar atento aos sinais internos (confusão e falta de satisfação) que ajudam a perceber que é tempo de mudar o rumo da decisão tomada.

4. Execução

“Qualquer acção humana consciente integra e move o ser (a sua corporeidade) na e com a realidade expressa em vivência. Vivenciar é um acto de compreensão que se dá simultaneamente em todos os níveis do ser: físico, mental, emocional, energético, cultural, político e espiritual. A motricidade é um terreno fértil para a vivenciação (viver em acção) que actualiza e integra as dimensões do ser humano proporcionando-nos o sentido do mundo” (Sérgio & Toro, 2004: 20).

Por último, o tempo de executar é, naturalmente, o tempo de passar à prática tudo o que foi feito antes. Mas o tempo de executar é também o tempo que (pelo movimento centrípeto que o enforma), pode provocar os que o antecedem – isto é, o tempo em que, pela vivência, se pode potenciar a tomada de consciência, o assumir e a tomada

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de decisão. É por isso que “enfrentar o medo” não significa lutar contra, nem fazer frente, muito menos combater. Significa, sim, colocá-lo na frente e aprender a viver com ele – o que Marina (2006:104) classifica como sendo dois tipos estratégias de enfrentamento*, as estratégias dirigidas para enfrentar o problema, as estratégias dirigidas para enfrentar a emoção provocada pelo problema128.

Finalmente, e antes de começar a apresentar alguns exemplos do que, não sendo terapias, pode ser encontrado em diversas abordagens e autores, resta-me colocar os critérios que estiveram na base da sua selecção:

a) Considerar a PESSOA EM TODA A SUA COMPLEXIDADE E DIMENSÃO – porque o ser humano é corporeidade e o medo é uma emoção holística. b) Permitir AUMENTAR CONSCIENTEMENTE A NOSSA ENERGIA – para que, enfrentando o medo, seja possível “devolver ao ser humano o seu PODER SOBRE SI PRÓPRIO, sobre a sua vida, sobre a sua oportunidade de construir o mundo” (Feitosa, 2006:31).

5. Estratégias para tomar consciência, assumir, decidir e executar.

“O que fazer para não ter medo?” foi a pergunta que, não há muito tempo, a Educadora Margarida Sá, do Jardim-de-Infância da Portela (Barros, 2006), colocou ao seu grupo de crianças que confessavam que “às vezes sentimos medo”. E elas, sabiamente, responderam: “fazer caretas ao medo”, “mandá-lo embora”, “agarrar no peluche”, “fechar a janela para o medo não entrar”, “chamar o pai e a mãe”, “dizer ao medo «Olá!»”, “trancar a porta de casa”, ou, ainda, “acender a luz”.

- E nós, adultos, o que fazemos ou podemos também fazer? Será que as nossas respostas ao medo são assim tão diferentes das das crianças, ou as delas são já metáforas de tudo o que também fazemos?

128 Vejo aqui também subjacente o conceito de “aprendizagem significativa” (Rogers, 1970): é mais do que uma acumulação de factos; provoca uma modificação - no comportamento do indivíduo, na orientação futura que escolhe, nas suas atitudes e personalidade; é uma aprendizagem penetrante – não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência.

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- Que se sabe sobre estratégias de enfrentamento (Marina, 2006), sobre formas de encarar o medo? - Que outros conselhos nos chegam pela mão de outros sábios, os diferentes autores que têm estudado esta questão?

Silêncio criativo e ligação com fontes mais altas

Thomas Merton (1997:57-64). SILÊNCIO CRIATIVO: - Ajuda a reunir as energias dispersas e dissipadas por uma experiência fragmentada. - Dá a oportunidade de nos entendermos melhor a nós mesmos. - Permite conseguir uma perspectiva mais equilibrada na relação com as vidas dos outros (sintetizando, integrando, redescobrindo – além das palavras, além da análise, além do pensamento consciente).

James Redfield (1994,126-129). Ganhar energia pela LIGAÇÃO COM FONTES MAIS ALTAS:

- A COMIDA é a primeira forma de ganhar energia – para que seja absorvida,

deve ser apreciada, saboreada, precisa de TEMPO.

- LUGARES que aumentam mais a nossa energia – aprendermos a ser capazes de nos abrimos, de nos ligarmos, de usar o sentido da apreciação. - A BELEZA E A SINGULARIDADE DAS COISAS – quanta mais beleza formos capazes de ver, mais evoluímos.

Não será isto “agarrar o peluche”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Implantar um pensamento consciente

Russel (2001:73-75). IMPLANTAR UM PENSAMENTO CONSCIENTE no inconsciente: - A técnica errada de lutar contra o medo é procurar pensar em qualquer outra coisa e distrair o pensamento.

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- Porque o medo aumenta se for ignorado, o caminho é pensar nele com calma, com concentração, até que ele se torne familiar, aborrecido, o que faz com que os pensamentos se desviem dele.

Caroline Myss (Sisk & Torrance, 2001:45). MEDITAÇÃO diária sobre cada um dos sete chakras129: - Começando pelo primeiro chakra e subindo até ao sétimo – perguntar se se está perdendo energia; se sim, identificar o medo que está a drenar o poder dessa parte específica do corpo, fazer uma respiração profunda e, conscientemente, desligar a energia desse medo. - Procedimento muito similar com as práticas da sabedoria tradicional e do misticismo oriental.

Não será isto “acender a luz”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Conselhos contra o medo

Marina (2006:183-187). Nove CONSELHOS CONTRA O MEDO: - Distingue os medos amigos dos inimigos. - Tu não és o teu medo. - Deves declarar guerra aos medos inimigos que invadiram a tua intimidade. - Tens que conhecer os teus inimigos e os seus aliados. - Não podes colaborar com o inimigo. - Tens que te fortalecer. - Fala contigo mesmo como se fosses o teu treinador. - Debilita o teu inimigo. - Procura bons aliados.

129 Temos sete centros específicos de energia nos nossos corpos, os chakras e estes centros, que ligam os nossos nervos, hormonas e emoções, têm uma localização paralela ao sistema imunoneuroendócrino e fazem uma ligação entre a anatomia da nossa energia e a anatomia física. Cada um dos sete chakras do corpo está associado a sistemas orgânicos e a estados emocionais específicos, cada um é reavivado ou enfraquecido pelas nossas crenças e sentimentos, pelo que medos e emoções específicos atingem determinadas áreas do corpo. Muito embora estas energias afectem simultaneamente todas as áreas do corpo, podem-se manifestar em problemas de saúde na área que for mais vulnerável (Northrup, 2004:87- 89).

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Não será isto “mandá-lo embora”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Diálogos e oficinas a partir da biologia do amor

Margaret Wheatley (2002). DIÁLOGOS que restauram a esperança no futuro: - Quando nos ouvimos uns aos outros de uma forma simples e honesta, podemos mudar o mundo. - Aconselha a prática dos seguintes comportamentos: aceitar os outros como iguais; sermos curiosos uns com os outros; reconhecer que precisamos da ajuda dos outros para sermos melhores ouvintes; abrandar para ter tempo para pensar e reflectir; lembrar que a conversa é o meio natural dos humanos pensarem juntos; saber ficar confuso algumas vezes.

Humberto Maturana (2000:26). OFICINAS a partir da biologia do amor como dinâmica constitutiva do ser humano: - Criar condições experienciais a partir das quais se viva o que acontece no campo das emoções.

Não será isto “chamar o pai e a mãe”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Afirmações positivas e bioenergia

Shallcross & Sisk (1989:20). AFIRMAÇÕES POSITIVAS E VISUALIZAÇÃO de um contexto de sucesso. - Permitem que as pessoas se tornem mais criativas e se sintam mais integradas e positivas em relação a si mesmas - sentimos ansiedade e sentimentos de inadequação quando fazemos afirmações negativas sobre nós mesmos.

Alexander Lowen (1984,1997). BIOENERGIA. - As discussões racionais não ajudam a perder o medo que está estruturado no corpo, mas, por si só, massagens em zonas de tensão crónica também não

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trazem um alívio significativo que afecte o comportamento (pois este só pode ser alcançado quando a pessoa encara o seu medo). - Exercícios que se baseiam na identidade funcional entre mente e corpo, de consciência do corpo130 - EXERCÍCIOS DE RESPIRAÇÃO que ajudam a perceber que

a vida é consequência da respiração (rir, gritar, chorar...); EXERCÍCIOS PARA

LIBERTAR A TENSÃO MUSCULAR que os conflitos estruturaram no corpo (expressar a raiva, relaxar, correr, chutar, socar...).

Não será isto ““fazer caretas ao medo”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Passos e Técnicas

Morris (2006). Os CINCO PASSOS para alcançar a valentia. - Preparar-se para o desafio – a valentia é uma virtude, a confiança é uma atitude. - Rodear-se de apoio – o êxito tem um aspecto social, interpessoal e comunitário. - Conversar consigo mesmo de forma positiva – o poder da mente. - Concentrar-se no que está em jogo – os grandes valores expulsam o medo. - Actuar adequadamente – o enfoque da acção em relação à atitude e à virtude.

David de Prado (1982:150-153; 1995:6-8; 2003; 2004). TI131 e RELAXAMENTO CRIATIVO. - TI – enquanto expressão livre, espontânea e incontrolada das ideias e das reacções emocionais e afectivas, pode ser usado como diagnóstico e técnica expressivo-projectiva da personalidade, da ansiedade, de problemas, gostos e tendências do sujeito que responde. - Relaxamento criativo - enquanto processo de recuperação do corpo alienado (sentir-se corpo), permite, entre outros, uma maior integração psico-somática e um maior equilíbrio emocional.

130 No Yoga existe uma série de posturas (asanas) que podem ajudar a abrir a caixa torácica, a alongar e relaxar os ombros e o pescoço. São acompanhadas de uma respiração lenta e profunda e com a intenção de relaxar a testa, os olhos, os maxilares e a língua. Alguns exemplos: tadasana (postura da montanha); setu bandha (ponte); adho mukha svanasana (cão de cabeça para baixo); savasana (postura do cadáver) (Serber, 1999). 131 TI – “Torbellino de ideas”, em castelhano.

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Saturnino de la Torre (2005, 2006, 2007). SENTIPENSAR, CINEMA E TÉCNICA ORA. - Critica a prevalência do pensar sobre o sentir no campo da educação – chama a atenção para a necessidade de educar em “sentipensar” (não com a finalidade de instruir, mas sim de facilitar o bem estar pessoal e social) e para um conjunto de estratégias criativas para a educação da dimensão emocional (por exemplo, cinema e o modelo ORA. - Cinema – porque as histórias de vida reais ou imaginárias dos filmes produzem emoções e sentimentos fortes e de índole diversa no espectador, o cinema é uma grande escola para o desenvolvimento das emoções. - ORA (observar, relacionar, aplicar132) – como instrumento conceptual, facilita a conversão da informação em formação; pode ser utilizado em climas e ambientes criativos, filmes, música, diálogos analógicos, cartas analógicas, textos poéticos ou literário, dramatizações, histórias de vida ou relatos, diários, etc.

Graciela Aldana (2000: 286-321). SONHOS, ESCRITA CRIATIVA, TRABALHO EM GRUPO. - Explora uma série de formas de trabalho para, enfrentando o medo do contacto com o mundo interior, recuperar, canalizar e desfrutar da riqueza pessoal e desenvolver uma atitude criativa em todos os espaços da vida.

- SONHOS – para detectar a presença simbólica e transformadora do inconsciente.

- ESCRITA CRIATIVA (escrita metafórica, diário, eventos significativos, diálogo interno...) – como uma das ferramentas mais poderosas para organizar o pensamento, expressar os sentimentos e criar novas possibilidades e realidades.

- TRABALHO EM GRUPO (EXPRESSÃO GRÁFICA, MANDALAS, DRAMATIZAÇÃO, RITUAIS...) – um cenário privilegiado para favorecer a aprendizagem em espelho, partilhar vicissitudes e experiências do mundo interno.

Não será isto “dizer «olá» ao medo”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

132 Observar a realidade prévia; relacionar as experiências ou vivências da vida quotidiana com algumas das emoções e sentimentos que se procuram destacar; aplicar, ao nível pessoal, algumas das ideias partilhadas em actividades concretas.

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Ensinar a compreensão

Edgar Morin (2002: 99-111). ENSINAR A COMPREENSÃO. - Para enfrentar os medos sociais que ganham a forma de egocentrismo, etnocentrismo, sociocentrismo, espírito redutor e indiferença. - Compreensão intelectual ou objectiva – inteligibilidade e explicação; “bem pensar” para, apreendendo em conjunto o texto e o contexto, apreender o complexo que são as condições do comportamento humano. - Compreensão humana intersubjectiva – ultrapassa a primeira e inclui um processo de empatia, de identificação e de projecção; introspecção que, como prática mental de auto-exame permanente das próprias fraquezas, é a via para a compreensão das fraquezas do próximo.

Não será isto “fechar a janela para o medo não entrar”, como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

• Produto / Consciência de si, dos outros, do cosmos

Consciência Consciência do Outro do Cosmos

Consciência de Si

Ilustração II.31 – O produto – consciência de si, consciência dos outros, consciência do cosmos.

“É o seu medo que faz de si escravo (...). Quando deixar de ter medo, deixará de ser escravo: na realidade, é o seu medo que o obriga a tornar os outros seus escravos antes que eles o façam a si” (Osho, 2002b:15).

Que resultado se obtém pela intersecção da pessoa com o contexto e com o processo atrás definidos? Um produto novo, com valor e em que todos ganham – o(s) produtos

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do Desenvolvimento Humano (quadro II.7): os produtos da consciência de si, onde cresce a autonomia, a vida autoconstrutiva, o pensar livre, o autocuidado, o autotelismo*; os produtos da consciência do Outro, onde se coloca o comunicar, o compartilhar, o respeitar, o espaço do Outro como Eu; os produtos da consciência do Cosmos, donde, pela inteligência e pelo interactuar, surge o tempo de transformação e de felicidade partilhada (Trigo & Coego, 2003).

D e s e n v o l v i m e n t o H u m a n o

Consciência de Si Consciência do Outro Consciência do Cosmos Autonomia O Outro como Eu Inteligência partilhada Vida autoconstrutiva Comunicar Interactuar Pensar livre Compartilhar Respeito Autocuidado Respeitar Autotelismo OUTRO MUNDO É POSSÍVEL Uma só raça Democracia mundial Ética Universal Repartição de riqueza Globalização socio-educativa- económica-cultural

Quadro II.7 – Propósitos do desenvolvimento humano. Reprodução de Trigo & Coego (2003).

4.2 ConVIVENDO com o Medo

É o efeito da transformação interna por se ir enfrentado o medo. É o assumir da condição humana e da complexidade do Ser. É o tempo em que o medo, deixando de ser adversário, se torna companheiro de jornada. É o tempo de chegada e, simultaneamente, o tempo de (nova) partida – porque nunca se chega e sempre se está partindo. Mas também é o tempo da transformação externa: porque tendo trabalhado “conscientemente na dimensão individual e no desenvolvimento da nossa humanidade, necessariamente tocamos e contagiamos o outro, contribuímos para a evolução da espécie e do Universo” (Feitosa: 2006:76).

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E encontro na literatura para a infância um exemplo do que isto quer dizer:

“Como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. Começou a encher os pulmões de ar e de coragem e mandou um berro que fez estremecer a casa. Os gatos fugiram, os canários calaram-se, o avô quase acordou, as plantas fecharam-se e as louças tilintaram; e as telhas juntaram-se umas às outras como se fosse chegar a tempestade. E o medo? O medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o outro, como se fossem dois velhos conhecidos que nunca se tinham visto. Silêncio e respeito. E depois o João falou, e disse: (...) Eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não fazer parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não fazem? De maneira que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada vez que começares a abusar, vai haver guerra. Vou saltar, correr, espernear, lutar, falar, responder, perguntar, ou muito simplesmente, pensar. Silêncio e respeito. O João estava cansado de todo aquele seu discurso. (...) Olhou à volta e não viu medo nenhum. Talvez tivesse voado pela janela aberta. Ou ardesse para sempre no cimo de um monte. Ou continuasse no fundo do mar, à espera de um polvo que por ali nunca passará” (Godinho, 2002:43-46).

Já não mais o viver com medo, já não mais o ter medo do medo, mas o conVIVER com o medo – lado a lado, em SILÊNCIO, em RESPEITO.

Se fossemos crianças, era capaz de chegar para compreender... Mas porque, quais pessoas crescidas do “Principezinho” de Saint-Exupéry” (que, num desenho tão simples - tão óbvio! -, não conseguiam ver a jibóia a digerir um elefante), precisam(os) sempre de mais explicações, vou procurar um pouco mais para perceber o que é aquele “silêncio” e aquele “respeito”. Ou o que, de alguma maneira, também são os “quinhentos milhões de guizos”133, aqueles que, afinal, talvez possam ser o som (ou a cor, ou o outro nome) de um mundo sem medo...

133 Mesmo no final do “Principezinho”, Saint-Exupéry (s.d.:91) escreve: “Agora já estou um pouco consolado. Isto é... não de todo. Mas eu sei muito bem que ele voltou para o seu planeta porque, ao romper

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• O silêncio

O cérebro esquerdo é PALAVRA e coordena a acção em sociedade; o cérebro direito é SILÊNCIO e coordena o nosso património natural. Mas como, no homo sapiens moderno, predomina a actividade do neocórtex e do hemisfério esquerdo, ficam reprimidas as manifestações instintivas, intuitivas e emocionais – o ruído do cérebro frontal esquerdo não deixa ouvir a sabedoria profunda do cérebro profundo e direito. Temos aqui um problema de comunicação pois perdeu-se o contacto com o verdadeiro real e o sentido da vida. Quando se recupera “a sabedoria profunda do cérebro profundo e direito”, o que se tem é... silêncio. E o silêncio é quietude da alma, contemplação, encantamento, âmago permanente, testemunha absoluta, sentimento de participar na criação permanente, reencontro de todos os lugares que vivem em nós (Smedt, 2003:169).

• O respeito

ConVIVER com o medo com toda a riqueza dos nossos sentidos, é fazer a passagem do olhar... ao ver, do ouvir… ao escutar, do tocar… ao acariciar, do cheirar... ao olfactar, do gostar… ao degustar, do fazer... à acção. Ou, dito ainda de uma outra maneira, é viver de acordo com o que (no respeito pela dignidade de si mesmo, dos outros e do universo), em sânscrito está contido numa só palavra: Namaste! - inclino-me perante ti134.

Tão simples. Tão óbvio.

do dia, não encontrei o corpo. Não era um corpo assim tão pesado... E, à noite, gosto de escutar as estrelas. É como se quinhentos milhões de guizos...”. 134 “Para fazer ‘Namaste’, colocam-se as duas mãos unidas junto do chakra do coração, fecham-se os olhos e inclina-se a cabeça ou então, como forma de profundo respeito, colocam-se as mãos unidas junto do terceiro olho, inclina-se a cabeça e depois descem-se as mãos até ao coração. Este gesto, utilizado na Índia, representa a crença de que existe uma chama divina dentro de cada um de nós e que essa chama está localizada no chakra do coração – é o reconhecimento de que a alma é uma com a alma de outra pessoa. Entre professor e aluno, tal como também é utilizada no Yoga, Namaste permite que dois indivíduos se juntem energeticamente num lugar de conexão, para lá do tempo, livre das fronteiras do ego. O professor inicia “Namaste” como símbolo de gratidão e respeito para com os seus alunos e para com os seus próprios professores e convida os seus alunos a também se ligarem com a sua linhagem, permitindo que a verdade flua – a verdade de que todos somos um quando vivemos a partir do coração” (Geno, R. The Meaning of "Namaste", www.yogajournal.com/newtoyoga/822_1.cfm. 2005.)

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Síntese:

1. As dimensões da Educação Criativo-Motrícia e o processo de enfrentar o medo: - Pessoa: competências sociais e emocionais básicas – autoconsciência, autoregulação, motivação, empatia, aptidões sociais. - Pressão: presença de um educador, líder, mentor, mestre – que se dá conta, não desiste e, com firmeza, encontra forma de ajudar/provocar/convocar/despertar. - Processo: momentos/movimentos da acção – tomada de consciência, assumir, tomada de decisão, execução. - Produto: o desenvolvimento humano – consciência de si (autonomia, pensar livre, autocuidado, autotelismo*); consciência do outro (comunicar, respeitar, o outro como eu); consciência do cosmos (transformação, felicidade partilhada).

2. Critérios para a selecção de estratégias para lidar com o medo: - Será que considera a pessoa em toda a sua dimensão e complexidade? - Será que permite aumentar os níveis de energia vital? - Será que devolve à pessoa o poder sobre a sua vida? - Será que permite a realização de aprendizagens significativas?

3. Algumas estratégias para tomar consciência, assumir, decidir e executar: - Silêncio criativo. - Implantar um pensamento consciente. - Meditação. - Bioenergia - Relaxamento Criativo. - Sentipensar. - Cinema Formativo. - Escrita Criativa. - Dramatizações - (...)

Muitos outros autores poderiam ter sido trazidos, e neles encontradas outras respostas, neste processo de interacção criativa entre a revisão da literatura, o trabalho de campo

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e a minha introspecção como investigadora (Patton, 2002:226). O que significa que bastaria outra pessoa, outro tempo ou outro lugar (outro Eu e outras circunstâncias, segundo Ortega), para, seguramente, ser diferente. Embora atraída (porque isto também é um processo de enamoramento), por todos aqueles que, mesmo aparentemente distantes, me ajudassem a desenhar um quadro coerente para compreender, transformar, transfigurar e transcender, fica sempre a certeza de que, tal como lidar com o medo, também a revisão da literatura é permanente descobrimento, em que o local de chegada é também de partida...

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III. AGIR

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Capítulo 4 Criar o caminho

I. PROCESSO DA PESQUISA Introdução Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR Capítulo 4 – Criar o caminho 1. Quem (somos os que fizemos parte da Pesquisa Colaborativa e constituímos o universo de estudo sobre o qual recai esta investigação)? 1.1 As pessoas 1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações 1.2 O grupo 2. O que (faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa)? 2.1 O disfarce do medo 2.3 Relação de medos e efeitos do medo 2.2 Definição e caracterização do medo 2.4 Síntese do “o quê” 3. Como (pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa)? 3.1 A vivência da totalidade 3.4 O processo de lidar com o medo 3.2 Formas de (não) lidar com o medo 3.5 Síntese do “como” 3.3 Brincando com números 4. Por que (razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus)? 4.1 Passagem de testemunho e contágio 4.4 O velho, o rapaz... e o medo 4.2 As causas do medo 4.5 Conjugando e formulando uma resposta 4.3 As causas do não medo como um dado 4.6 Síntese do “por quê” insignificante muito significativo 5. Para que (serve uma vida serena, útil e corajosa)? 5.1 Ser parte do Universo 5.2 O medo para o desenvolvimento humano 5.5 Ligações e reflexões 5.3 O medo para a conservação social 5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa 5.4 O papel do medo na construção do humano 5.7 Síntese do “para quê”

IV. CELEBRAR O sentido do caminho Para abrir um novo caminho

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You must give birth to your images They are the future waiting to be born. Fear not the strangeness you feel The future must enter you Long before it happens. Just wait for the birth For the hour of new clarity. Rainer Maria Rilke

Sinto que cheguei agora ao ponto central deste trabalho, aquele para o qual tudo vem sendo preparado e que congrega a participação-triangulação de todos os tempos e de todos os intervenientes na pesquisa:

- O tempo dos membros do grupo que, durante meses, tiveram a coragem de, expondo-se, fazer mexer em si mesmos o tema de “o medo e o desenvolvimento humano”.

- O tempo de todos aqueles que, de uma forma ou outra, colaboraram na criação da grelha de categorias de análise em que aqui me movo: os informantes-chave, os especialistas consultados, os especialistas que ajudaram na aplicação dos questionários SOQ e VIEW de caracterização do grupo de pesquisa e todos os que (com os seus conselhos e mesmo que informalmente), tornaram mais claros os caminhos a seguir.

- O tempo dos autores que ajudaram a configurar o quadro geral de referência, em termos temáticos e em termos metodológicos.

- E o tempo em que, trabalhando “sozinha”, procurei, pelo princípio de rede que nos interliga, romper com a dicotomia sujeito investigador / objecto do conhecimento e, com isso, enfrentar o desafio proposto por Bohórquez & Trigo (2006) de também levar o hologramático à vida académica.

É, por isso, com um sentimento de profundo respeito pelas contribuições de todos (“mas também e simultaneamente”, com uma vontade-necessidade de, qual artista que se

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descobre na mistura das cores, me sentir livre para interpretar), que agora me aproximo de uma tarefa que procura aceder um pouco mais ao entendimento da complexidade em que a nossa espécie humana se movimenta. É esta a forma, acredito, de, ganhando fundamentação sem me deixar prender demasiado pela “norma” confortável e segura do já feito, poder vir a ser criadora de uma leitura própria que possa construir caminho novo – por pequeno que seja.

Análise da Análise da Categoria Categoria A+B B A

A+C B+C

Análise da Legenda Categoria Passo 1: A / B / C = C análise de categorias Passo 2: A+B / B+C / A+C = interpretação Passo 3: A+B+C = construção de sentido Ilustração III.1 – Passos 1 e 2 – análise e triangulação de actores e momentos da pesquisa.

Assim, e procurando fazer um texto interpretativo em que dialoguem os vários actores e tempos da pesquisa, vou dividir o capítulo em cinco partes, cada uma correspondendo a uma categoria/pergunta específica. Na primeira parte, recorrendo mais a dados quantitativos (por isso, com contornos um pouco diferentes das restantes), farei a caracterização geral do grupo de pesquisa (“quem”). Em cada uma das outras quatro (“o quê”, “como”, “por quê”, “para quê”), começarei por identificar o eixo central nelas contido e, em função desse eixo, farei a (1) interpretação das respectivas subcategorias e (2) estabelecerei a rede de relações que entre todas possa existir.

Mas isto não significa que pretenda fazer uma leitura unicamente linear ou isolada de cada uma das perguntas e das categorias de análise – cada uma das partes atrás referida é também construída pelo cruzamento e triangulação das categorias entre si, das categorias com o referencial teórico, das categorias com os diários de campo e com a própria história de vida (ilustração III.1).

Finalmente, e antes de avançar, preciso relembrar uma ideia já antes colocada. Muito embora, e de acordo com o comentário de alguns participantes, as sessões de trabalho

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com o grupo tivessem sido muitas vezes “terapêuticas”, nunca houve intenção de fazer terapia, nem de, por qualquer meio, levar as pessoas a revelarem mais do que elas próprias estivessem espontaneamente interessadas em revelar. O propósito deste ponto do estudo situa-se na compreensão do que, num contexto muito específico, as pessoas envolvidas estiveram (ou não estiveram) dispostas a dar a conhecer sob as suas representações e vivências do medo.

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“O homem se distingue não por aquilo que tem mas por aquilo que deseja ter”. Raimundo Ferreira Ignácio

somos, então, os que fizemos parte da Pesquisa 1. QuemColaborativa e constituímos o universo de estudo sobre o qual recai esta investigação?135

Alguns dados sobre os membros do grupo foram já colocados no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2 – trabalho com o grupo” e podem ser relembrados e resumidos da seguinte maneira: 5 mulheres e 5 homens, com idades compreendidas entre os 28 e os 61 anos, com profissões diversas, mas abrangendo todas elas, de forma mais ou menos directa, a educação de adultos.

Mas o que aqui pretendo fazer é mais do que procurar saber o que somos, que pouco muda, e pode ser descrito em termos demográficos e sociológicos. Porque os homens constantemente mudam e as coisas não se repetem, vou procurar também ler quem fomos enquanto o trabalho de campo decorreu – para que, pela caracterização do enquadramento e do clima desta fase do trabalho, se possa também perceber e antever o que condicionou o conteúdo das categorias de análise e, evidentemente, alguns dos resultados obtidos na investigação.

Assim, e na sequência das sub-categorias que compõem a categoria “quem”, vou dividir esta análise em duas partes:

- A primeira, “as pessoas”, procura reconhecer algumas das percepções e atribuições de identidade pessoal que os membros do grupo revelam (ou não revelam) sobre si mesmos, bem como fazer a sua caracterização geral em função das razões, das expectativas e dos efeitos de participação que apresentam (ou não apresentam) e dão (ou não dão) a conhecer.

- A segunda, “o grupo” (que não deixa, evidentemente, de estar relacionada com a primeira), pretende olhar o grupo enquanto entidade colectiva e, pela conjugação

135 Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.

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dos dados das sessões com os resultados da aplicação do VIEW e do SOQ136, compreender e, de alguma maneira, antecipar as características do produto que de tal contexto nasceu.

1.1 As pessoas

• Esboços de uma apresentação

E começo por fazer a apresentação de cada um dos membros do grupo da pesquisa, em que também me incluo. Não a nossa identificação formal mas, em jeito de esboço rápido e só pela utilização das nossas próprias palavras (e com uma selecção que é da minha inteira responsabilidade), dar um pouco a conhecer a nossa identidade- individualidade-singularidade:

Ilustração III.2 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

- Uma das coisas que me fascina muito é a ordem. - Acredito que, em grande medida, as nossas vidas (...) Facilmente me fascino por pessoas que se são regidas pelas nossas emoções. 1N1/2 apresentam bem organizadas, com raciocínios bem conduzidos. 7K5/2; 7K10/2

136 Como já tive oportunidade de desenvolver, estes instrumentos caracterizam os estilos de criação e o clima para a inovação e para a mudança (ver “II Roteiro – procedimentos, instrumentos e técnicas”).

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Ilustração III.3 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

- Sou uma pessoa que sinto muito mais do que - Tinha a cabeça lá bem no meio da nuvens e (...) penso. Vivo muito mais do que penso (...). O que os pés bem enterrados na terra e eu não eu queria era a harmonia do mundo (...). Se cada conseguia fazer a ligação entre uma coisa e outra um de nós tivesse a possibilidade de descobrir o (...). Depois comecei a perceber que era bom que a pessoa tem e o desenvolvesse, o exactamente por força da criatividade que eu mundo seria fabuloso. 7A7/1; 7A7/4 conseguia fazer essa ligação. 1U5/1-4

Ilustração III.4 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

- Fartei-me daquilo (...) percebi que isso não era a - Ponho tudo cá fora (...). Preciso muito de dizer minha vida (...). Depois decidi deitar tudo fora (...) “gosto de ti, não gosto de ti, estou triste, estou e começar do zero. 3J4/9; 2J1/6 feliz...”. Sou super agarrada às minhas raízes. 1O1/5; 6O3/2,4-6; 6O8/2

Ilustração III.5 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

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- Tenho feito trabalho sobre mim mesma (...) e - Tenho vindo a fazer, de há alguns anos para cá, achei que não era por acaso que as duas coisas algum trabalho de formação pessoal (...) que me [o trabalho sobre mim mesma e esta pesquisa] se tem ajudado a crescer e a estar mais consciente e encontravam. 1E1/4 mais lúcido... mais por dentro de mim próprio. 1L1/1-3

Ilustração III.6 – Fotografias de um encontro do grupo, três meses depois das sessões.

- Sou muito céptico. Sou muito condicionado pelo - Não sei dizer não e sou muito curiosa e tenho lado do pensar (...). Acho que sou extremamente muita vontade de fazer muitas coisas e de duro comigo mesmo, (...) extremamente analítico aprender muitas coisas (...). Sinto uma grande e extremamente reflectido e, de certa maneira, necessidade de ser responsável pelos meus actos acabo por dar muito mais valor a este pensar do mas, ao mesmo tempo, manter uma grande que ao lado dos sentimentos. 6M1/6; 7M5/5 liberdade interna. Gosto muito de pensar por mim. 7I3/1; 7I17/3

Para quê este desvendar? Para, compatibilizando uma eventual homogeneidade de pertença de classe e de capitais aqui presentes (escolar, social, talvez até cultural, num certo sentido), com a diversidade de cada existência humana, tentar traduzir de alguma maneira a riqueza de diferentes histórias de vida e de diferentes perspectivas que constituem o universo desta pesquisa.

• Participação no grupo de pesquisa – razões, expectativas e efeitos

1. Razões para participar

O que levou este grupo de pessoas a participar (tabela III.1) num trabalho de pesquisa colaborativa sobre “o medo e o desenvolvimento humano”?

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Genericamente, e sobretudo nas duas primeiras sessões de trabalho, foram apresentados dois tipos de razões: a) razões cujo foco está colocado no próprio – “razões do Eu”: - “Interessa-me (...) pesquisar e compreender, ir à procura de resposta sobre o que tem que ver com (...) o mundo emocional da pessoa” (1N1/2); b) razões cujo foco está colocado nos outros – “razões dos Outros”: - “(...) o desejo de (...) colaborar com o que se vier aqui a realizar” (1L1/4-5); havendo, nestas últimas, e sem estranheza, alguma incidência nas razões relacionadas com a actividade profissional dos participantes que, em quase todos os casos, diz respeito a profissões de ajuda* no sentido rogeriano.

- “Interessa-me chegar a um conjunto de estratégias pedagógicas” (1I2/4). - “Estou aqui para carregar baterias em mim para ajudar os outros” (2J1/7).

Razões para participar F % Relacionadas com o Eu 12 43 Relacionadas com os Outros 16 57 Outras - - Total 28 100 Tabela III.1 – Razões para participar no grupo de pesquisa.

Ao todo foram apresentadas 28 razões para participar, com uma maior ocorrência nas razões relacionadas com os outros (16 = 57%) do que nas razões relacionadas com o próprio (12 = 43%) e, dentro destas últimas, só metade são razões relacionadas com a vontade, ou necessidade, de fazer um trabalho de desenvolvimento pessoal.

- “Porque nesta temática eu também tenho que me implicar, e tenho que ir ver quais são os meus medos, e como é que tenho reagido perante eles, e como é que posso viver com eles, e como é que posso, se é que posso, superá-los” (1E1/5).

Mas por que será que, apesar de cada um dos participantes ter aceite a proposta de integrar uma pesquisa que colocava o desenvolvimento pessoal e a reflexão sobre si mesmo como elemento central e irradiador de todo o projecto (o que implicava a necessidade de reconhecer em si mesmo a presença do medo e de medos), isso não é reconhecido publicamente com mais frequência? Por que será também que, na fase

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reflexiva da pesquisa137 (e de uma forma muito mais privada), demorei tanto tempo a escrever a minha história de vida e, ainda assim, com todo o “sofrimento” lhe esteve associado? Por que será tão difícil reconhecer o medo em nós mesmos?

- Porque, apesar de possuidores de uma preparação escolar e profissional que poderia promover e facilitar o contrário, a “Pessoa Pública” (Moffit, 2003a) continua a fazer com que seja difícil encarnar o princípio de que “no campo da compreensão (...) devemos enfrentar transformações que começam com e dentro de nós mesmos” (Max-Neef, 1993:98)?

- Porque a couraça e a máscara do “Eu” de Walt Whitman (Ribeiro Dias, 2000) é tão forte que, apesar de todas as circunstâncias, preferimos começar por prudentemente nos resguardarmos com razões de “interesse” ou “curiosidade” do que imediatamente nos confrontarmos e expormos com aquilo que consideramos serem as nossas fragilidades?

- Porque o clima adequado ainda não estava criado?

- Porque o argueiro no olho dos outros parece sempre maior do que a trave no nosso (Mateus 7, 3)?

- Porque, por muito que, do ponto de vista da neurobiologia, o medo comece por ser resultado de mecanismos biologicamente determinados e dependentes de dispositivos cerebrais inatos (Damásio, 2003), do ponto de vista cultural não deixa de ser aquilo que, com uma certa sagacidade, Nicola Phillips (2003:2) retrata como sendo “the other four letter ‘f’ word. The more unspoken of the two (...) the only four letter word not allowed in business”?

Será também a “Pessoa Pública” a razão porque ainda nos é difícil entender e levar à praxis o que Morin refere como sendo a necessidade de o investigador integrar o observador e o conceptualizador na sua observação e na sua conceptualização e, com isso, abandonar o “ponto de vista divino” (Morin, 2003:109) que nos impede perceber, ou revelar, que estamos possuídos por toda a sociedade?

137 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

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Não será também a dificuldade de abandonar esse ponto de vista (que, ironicamente, até nunca se alcançou), que impede nos tornemos “especialistas de nós mesmos” (Feitosa, 2006:25)?

Contudo, se (e como outra face da moeda), reunir a quantidade de medos que, ao longo das sessões do grupo de pesquisa, acabaram por ser mencionados (186)138 com a quantidade de medos encontrados nas obras de referência (inseridos no capítulo 3 sob o simbolismo do número 241), julgo que tudo indica estarmos perante um tema delicado e premente que (também no campo da educação de adultos), precisa de um “tratamento assertivo”. Isto é, de um “tratamento” que considere a presença efectiva de determinadas condições que, tal como é proposto pelas categorias de análise criadas, facilite os movimentos centrífugo e centrípeto dos momentos de um processo de mudança (Sérgio & Toro, 2005) centrado no desenvolvimento humano. Ou, dito ainda de outra maneira e em menos palavras, de um conjunto de procedimentos didácticos que permitam passar do conhecimento factual ao conhecimento pessoal, ou seja, ao conhecimento encarnado.

“Uma pessoa estudiosa e consciente (...) sabe que só o conhecimento que transforma é útil e pode converter-se em sabedoria” (Feitosa, 2006:88).

2. Expectativas dos participantes

Quando se trata das expectativas dos participantes relativamente ao trabalho de pesquisa colaborativa (tabela III.2), a situação inverte-se – as que estão “relacionadas com o Eu”, isto é, razões de desenvolvimento pessoal, passam a ter uma muito maior incidência (17 = 61%) do que as que estão “relacionadas com os Outros” (7 = 25%).

Exemplos de expectativas relacionadas com o Eu: - “As expectativas que tenho são pois obviamente estas: pronto a aprofundar mais, a entender mais, a compreender mais” (1N1/4). - “Ao longo das sessões, se calhar, vou ficar a conhecer-me um bocadinho melhor” (1M2/3).

138 Sobre este assunto, “relação e explicação de medos”, será desenvolvida reflexão detalhada no ponto 2.1 deste capítulo – “Definição e caracterização do medo”.

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- “Pode ser uma experiência que contribua para um crescimento pessoal muito interessante, assim como um descobrimento benéfico para todos, não só para o projecto” (2N1/2).

Expectativas em relação ao trabalho Razões para participar de pesquisa F % F % Relacionadas com o Eu 12 43 17 61 Relacionadas com os Outros 16 57 7 25 Outras - - 4 14 Total 28 100 28 100 Tabela III.2 – Comparação entre razões para participar e expectativas em relação do trabalho de pesquisa.

Então, e curiosamente, viemos para a pesquisa, em primeiro lugar, por causa dos outros, mas desejamos que, no final, os resultados do processo nos beneficiem particularmente. Que significa esta inversão?

- Será uma “distracção” da Pessoa Pública que revela o que gostaria de manter escondido? - Será um sinal da nossa dificuldade de integração e de congruência entre o que está presente na nossa consciência e o que está presente na nossa comunicação (Rogers, 1970)? - Será a marca do quanto, muitas vezes, tendemos a colocar nos outros a responsabilidade pelo que nos acontece e a entregar-lhes o poder de dirigir os nossos próprios processos de mudança (Osho, 2002a:137)? - Ou, com tudo isto, mais do que isto e para lá disto, o que está em causa é o peso do clima na capacidade de produção e criação das equipas (Isaksen et al, 1995)?

O que esperamos dos outros, então, para que os resultados desejados sejam atingidos? Confiança, confidencialidade, envolvimento – é o que está presente em quase todas as situações identificadas como “expectativas relacionadas com os outros”.

- “Tem de haver uma relação de confiança entre todas as pessoas para se sentirem cómodas e à vontade. O principal. Sem a confiança não sai nada” (2N1/2).

296

- “Levantei a questão da confidencialidade que o RP levantou aqui também, que achava que isto devia ser explicitado – só porque não ganhamos nada em ser implícito e acho que isso pode dar maior confiança a todos para fazermos aquilo a que nos propomos fazer aqui” (2I1/3).

- “E eu sentia que tinha estado a trabalhar durante muitos meses com um “filho” que agora está a passar para uma idade mais madura, mais adulta, em que, por isso, já não é mais meu e passa a ser de nós todos” (2U4/3).

Porém, quando se referem a “expectativas relacionadas com o eu”, alguns membros do grupo parecem, não só revelar bastante mais de si próprios do que quando se referem às razões que os levaram a participar na pesquisa, como também acabam por levantar um pouco mais do véu sobre o grau de dificuldade com que encaram o desafio deste trabalho em grupo.

- “Acho que é um desafio falar do medo... tratar este tema com tantas pessoas que eu não conheço é um desafio interessante. As minhas expectativas... ultrapassar esse desafio” (1I2/3).

- “Muito do que eu também quero tirar deste grupo para mim é (...) encontrar a forma de eu passar a sentir essas coisas [sentir o que sou]” (4U11/4).

- “De maneira que cá estou e acho que me vai fazer muito bem, apesar de não saber o que vai sair daqui. Acho que só pode ser para crescer, para melhorar, mesmo que passe por algum mau bocado” (1O1/4).

“Mesmo que passe por algum mau bocado” (1O1/4)! Sintetiza o que, estando provavelmente presente no espírito de outros participantes, corresponde ao que Anna Feitosa indica como sendo “a saída da zona de conforto implicada no pensar o novo e agir de outra forma” (2006:75), isto é, o que também parece ocorrer a quem se coloca na posição de aprender a lidar com o medo no contexto de um grupo.

Está, por isso, justificada a necessidade da atenção dada à problemática do clima – foi o que levou à criação de uma sub-categoria específica para caracterização deste grupo; foi o que motivou a aplicação do SOQ cujos resultados serão adiante analisados; foi o que deu origem à sub-categoria “clima necessário num processo centrado no

297

desenvolvimento humano”, parte integrante e fundamental da proposta educativa para lidar com o medo em contexto de educação de adultos.

E só depois, e inserida nas “Outras” expectativas (14%), surge uma única referência ao trabalho de investigação propriamente dito.

- “Começarmos a construir algum conhecimento do grupo” (2I9/2).

3. Efeitos por participar

Para terminar esta primeira leitura, falta reflectir sobre os “efeitos por participar” (tabela 3.3). O que aconteceu a quem se colocou numa situação que implicou colocar o desenvolvimento pessoal e a reflexão sobre si mesmo como elemento central e irradiador de todo o projecto?

Deixando para espaço próprio a análise da avaliação feita por todo o grupo no final do processo, procuro olhar aquilo que, de forma mais espontânea, foi sendo transmitido ao longo das sessões:

Efeitos (no próprio) por participar F % Interrogação-conhecimento sobre si mesmo 27 31.0 Prazer-alegria-confiança 27 31.0 Integração no grupo 12 13.8 Perturbação 12 13.8 Reconhecimento-gratidão 3 3.5 Interrogação sobre o processo de pesquisa 3 3.5 Desagrado 1 1.2 Outras 1 1.2 Total 87 99 Tabela III.3 – Efeitos por participar no grupo de pesquisa.

Considerando, como atrás referi, que as expectativas dos membros do grupo se encontram especialmente centradas no desenvolvimento pessoal (“expectativas relacionadas com o Eu”), parece que, de alguma forma, o trabalho correspondeu ao esperado pois quase toda a gama dos efeitos produzidos pelo trabalho do grupo atinge, de forma bastante directa, essa zona de interesses – “interrogação-conhecimento sobre si mesmo” (31%), “prazer-alegria-confiança” (31%), “integração no grupo” (13.8%)...

298

Porém, se pensar que o maior número de razões por que as pessoas dizem ter aceite fazer parte da pesquisa são razões do foro profissional (“razões relacionadas com os Outros”), então os efeitos produzidos parecem, pelo menos à primeira vista, não corresponder às razões enunciadas. Mas, quanto se considera que “todo o conhecimento é auto-conhecimento” (Sousa Santos, 1988:50) e que “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam” (Boff, 1998:9) e quando se recusam dualismos que separam a pessoa do profissional, então (e apesar de ainda haver muito para aprofundar nesta reflexão), a participação num trabalho deste tipo parece contribuir para a consecução de efeitos adequados e necessários.

O que está, assim, contido nestes conjuntos de respostas e que leve a crer ter havido tal correspondência com as expectativas e as razões apresentadas? Procurando fazer uma “leitura optimista” dos dados recolhidos (que não pode também deixar de ser encontrada na força e na beleza das palavras ditas), vale a pena fazer sobressair alguns exemplos que mostram como, ao longo das sessões do grupo, se pôde também chegar a uma comunicação mais pessoal e menos objectal* – para lá das “conversas banais e de discursos impessoais que tantas vezes139 encobrem intentos medrosos e subtis de uma comunicação mais profunda” (Marroquín, 1995:20):

Interrogação-conhecimento sobre si mesmo: - “Como estava a centrar a minha atenção para o que tinham sido os meus medos, (...) eu visualizei com uma certa ternura. Acho que olhei para mim mesmo com “estás a ir bem, estás a crescer”. Foi uma experiência engraçada” (3M1/1,2). - “Aprendi alguma coisa sobre os meus medos hoje” (9I1/4). - “Depois de me sentar pensei na vida, nas voltas que dou para encontrar o centro e como o centro está tão perto (às vezes, até se vê), mas ainda não se está lá, e é preciso continuar a caminhar para o centro” (10L3/3).

Prazer-alegria-confiança: - “Não sabia o que iria acontecer, mas não duvidei, em nenhum momento, que tinha de experimentar. Não sabia se iria sentir medo. (…) Mas gostei imenso de ter conseguido fazer aquilo” (9A1/14,16).

139 Os sublinhados são meus.

299

- “O mais interessante foi quando o L. cantou o Jorge Palma porque, apesar de ele não saber, o Jorge Palma e as letras dele acompanharam-me em momentos muito importantes da minha vida e aquela letra, em particular. (...) E começar uma caminhada nocturna, só com as estrelas, e depois deitados naquele bocadinho… Foi mágico levantar-me e ter alguém que cantou aquilo naquele momento. Se houve momentos bons na minha vida, aquele foi um” (9J1/3).

Integração no grupo: - “Gostei imenso da sessão que tivemos. Não sei como é que a U. conseguiu arranjar um grupo assim. Senti-me bem” (2A1/2). - “O relaxamento permitiu essa integração neste tempo. No fim do relaxamento abri os olhos e disse “ok, já faço parte da comunidade”. É muito mais simples do que se estivéssemos aqui a verbalizar não sei quantas coisas – porque é a linguagem do corpo” (2J3/1).

Reconhecimento-gratidão: - “Então, o sentimento que eu tive, ao aparecer aquela pergunta, foi um sentimento de gratidão. Como uma pessoa que me fez reflectir numa situação muito séria que eu sempre esquivei partilhar” (7K11/12).

Bonito, não é?

Mas será que o contido na sub-categoria “perturbação” (13.8%), (já para não falar nas categorias “desagrado” que tem um valor percentual muito baixo – 1.2%), não põe em causa a visão optimista acima apresentada (tabela III.1)? Alguns exemplos do que nela está considerado:

Perturbação: - “Isso deixou-me (...), devo confessar, que um bocadinho assustada… porque me perguntei, depois de sair daqui, até onde eu própria estou disposta a ir neste processo” (2E1/4). - “Congratulei-me porque não fui só eu que vinha com algum receio do que é que isto podia dar. (...) Isto de virmos aqui para, a partir dos nossos medos, fazer alguma coisa! É preciso primeiro dar conta deles e dar conta deles publicamente! E isso não é muito fácil” (2I1/4). - “Eu usei os argumentos para me justificar, mas escondi o argumento da verdade que eu tinha, que me levou a não falar daquela experiência. Mas, quando cheguei em casa, comecei a reflectir (...)” (7E4/5-7).

300

- “Acordei com a dor nas pernas que acordo sempre quando somatizo as emoções vividas ao longo do dia” (9J1/13).

Que reflexões a partir daqui?

a) Se o medo é uma emoção holística (Lowen, 1984, 1997), não pode ser “tratado” exclusivamente no foro do mental. As referências aos efeitos sentidos no corpo emocional e no corpo físico permitem ver que, pelo menos nalgumas situações, o trabalho deste grupo ganhou distância de uma abordagem exclusivamente teórica do tema. - “Acordei com a dor nas pernas que acordo sempre quando somatizo as emoções” (9J1/13)

b) Se o conceito de acção é parte intrínseca de um processo centrado no desenvolvimento humano, aqui existem indicações sobre a existência (ou promessa de existência) de três dos seus momentos: - Tomada de consciência – “é preciso dar conta deles” (2I1/4). - Assumir a responsabilidade – “eu usei os argumentos para me justificar, mas escondi o argumento da verdade que eu tinha” (7E4/5-7). - Tomada de decisão – “porque me perguntei (...) até onde eu própria estou disposta a ir” (2E1/4).

Julgo, por isso, que não fica em causa uma leitura (pelo menos moderadamente) optimista dos efeitos, pois aquela “perturbação” parece fazer parte do que também já foi identificado como sendo a saída do espaço de conforto inerente aos processos de mudança (Feitosa, 2006).

Mas poder-se-á concluir que os efeitos produzidos ao longo do trabalho com o grupo (já que, relembro, aqui está excluída a análise dos dados da última sessão), são todos “positivos”? Será que o “não-dito”, certamente tão real para os participantes como o “dito”, poderia dar origem a uma análise diferente? Será que foi criado o espaço- abertura-clima-tempo necessários para confessar medos ou desagrados que as sessões e o grupo possam ter provocado? Será que foi preciso defender a Pessoa Pública, evitar o confronto, ou dar uma imagem adocicada que não pusesse em causa os propósitos da investigação? Será?

301

Julgo, por isso, estar na hora de começar a examinar com cuidado os dados recolhidos na sub-categoria “o grupo de pesquisa colaborativa – clima do grupo e estilos de criação”, bem como os resultados da aplicação do SOQ e do VIEW.

1.2 O grupo

• O clima do grupo

PERSPECTIVA SISTÉMICA DA CRIATIVIDADE A IMPORTÂNCIA DO CLIMA

PESSOA PROCESSO Características Operações das Pssoas Que realizam

Liderança Clima Produtividade PRESSÃO Clima, Cultura, PRODUTO Contexto Resultados

Source: Ekvall and Arvonen, 1999.

© The Creative Problem Solving Group - Buffalo, 1999 © Selby, Treffinger, Isaksen, 2003. (traduzido por Helena Gil da Costa – 2000).

Ilustração III.7 – Perspectiva sistémica da criatividade. Ilustração III.8 – A importância do clima. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission.

Vou utilizar como sub-categorias de análise do clima do grupo as dimensões identificadas por Göran Ekvall e Scott Isaksen140 para a compreensão da influência do

140 Definição de Clima segundo Ekvall – “padrões habituais de comportamento, atitudes e sentimentos que caracterizam a vida no grupo tal como são experimentados, compreendidos e interpretados pelas pessoas” (Isaksen et al, 1995:1.8-ss). As dimensões do SOQ descrevem nove características importantes do clima para a criatividade e inovação (Isaksen et al, 2000:12-16): - Desafio e Envolvimento: o nível em que as pessoas estão envolvidas nas tarefas diárias, nos objectivos a longo prazo e na visão do futuro. - Confiança e Abertura: a segurança emocional nas relações. - Liberdade: a independência de comportamento exercida pelas pessoas da organização. - Tempo para as Ideias: a quantidade de tempo que as pessoas podem ocupar (e ocupam efectivamente) na elaboração de novas ideias. - Conflito: a presença de tensões pessoais e emocionais (em contraste com a tensão de ideias na dimensão “debates”). - Debates: a ocorrência de acordos e desacordos entre pontos de vista, ideias, diferentes experiências e diferentes conhecimentos. - Alegria e Humor: a espontaneidade e o à vontade dentro do espaço de trabalho. - Apoio a Ideias: o modo como são tratadas as ideias novas.

302

contexto na capacidade de inovar das equipas (Isaksen et al, 1995). Procurarei, assim, perceber (primeiro, a partir da análise do discurso espontâneo dos participantes e, depois, a partir dos resultados da aplicação do SOQ), as características do clima (PRESSÃO) gerado pelo grupo de investigação colaborativa (PESSOA’S) para, posteriormente, procurar antever e compreender algumas das possíveis influências produzidas nos resultados da pesquisa (PRODUTO).

1. As dimensões do clima no discurso espontâneo dos participantes

De acordo com a síntese dos resultados apresentada na tabela III.4, as 111 menções espontâneas ao clima do grupo que foram identificadas nas transcrições das sessões cobrem as nove dimensões definidas por aqueles autores. Entre eles vale a pena destacar:

Dimensões do Clima Referências % Confiança e Abertura 34 30.6 Desafio e Envolvimento 20 18.0 Alegria e Humor 18 16.2 Liberdade 11 09.9 Debates 10 09.0 Tempo para as Ideias 08 07.2 Apoio às Ideias 06 05.4 Conflitos 03 02.7 Riscos Assumidos 01 00.9 TOTAL 111 99.9 Tabela III.4 – Referências espontâneas ao clima do grupo de pesquisa.

a) CONFIANÇA E ABERTURA é a dimensão mais vezes mencionada, com uma percentagem de 30.6% (Ex: Acho que agora já me converti. Os dois medos que eu escondi, já os partilhei – 7K10/4) e uma grande diferença relativamente às outras – mais

12.6% que DESAFIO E ENVOLVIMENTO, que se situa em segundo lugar (Ex: Estou

apta a tudo. Estou com gás, para o que der e vier – 2O1/3) e mais 14.4% que ALEGRIA E HUMOR (Ex: Gostei particularmente do clima informal que aqui vivemos, das partilhas e da informalidade com que tudo foi acontecendo – 2L1/2).

b) RISCOS ASSUMIDOS, no outro extremo, apresenta uma única referência e uma percentagem de 0.9% (Ex: Posso dar uma explicação. Nestas circunstâncias, sem eu

- Riscos Assumidos: a tolerância da incerteza e da ambiguidade presentes no local de trabalho.

303

conhecer as pessoas, um relaxamento demasiado longo sobre um tema que pode ser… não fácil, tem riscos que eu não posso correr – 2I11/1).

c) A soma da percentagem das três dimensões com maior ocorrência, DESAFIO E

ENVOLVIMENTO, CONFIANÇA E ABERTURA e ALEGRIA E HUMOR apresenta um valor de 64.2% - o que deixa 35.7% para o conjunto das restantes seis dimensões.

Mas é preciso destrinçar um pouco mais o sentido dos discursos dos participantes e, também de acordo com a terminologia utilizada por aqueles autores, procurar distinguir se as referências apontam para níveis altos ou baixos141 de cada uma destas dimensões. Assim, olhando para a síntese colocada na tabela III.5, é possível verificar que:

141 Para fazer a distinção entre “níveis altos” e “níveis baixos” das dimensões do clima, continuo a ter como referência o trabalho de Ekvall e Scott Isaksen atrás indicado (Isaksen et al, 1995). Destaco, a partir daí, as palavras-chave da caracterização de cada um desses níveis em cada uma das dimensões. Desafio e Envolvimento. Níveis altos – motivação intrínseca; compromisso com o sucesso do grupo; dinamismo; energia. Níveis baixos - falta de compromisso; alienação; indiferença; apatia; interacção amorfa. Confiança e abertura. Níveis altos - abertura; franqueza; apoio pessoal; respeito. Níveis baixos – desconfiança; protecção; comunicação difícil. Liberdade. Níveis altos – autonomia para a definição do trabalho; actuação prudente; iniciativa; planeamento; tomada de decisão. Níveis baixos – linhas orientadoras; papéis definidos. Tempo para as Ideias. Níveis altos – discutir e testar ideias; prazos flexíveis; exploração de novas alternativas. Níveis baixos – pressão do tempo; rotinas planeadas; instruções. Conflito. Níveis altos – maturidade; introspecção psicológica; controlo de impulso; aceitação da diversidade. Níveis baixos – guerra interpessoal; conspirações; lutas de território; mexericos. Debates Níveis altos – perspectivas diversas; estímulo à apresentação de ideias. Níveis baixos – padrões autoritários; ausência de questionamento. Alegria e Humor. Níveis altos – atmosfera leve e descontraída; bom humor. Níveis baixos – gravidade; seriedade; atmosfera triste, tensa e sorumbática. Apoio a Ideias. Níveis altos – sugestões recebidas de forma atenta; oportunidades para experimentar novas ideias; atmosfera construtiva e positiva. Níveis baixos – “não” automático; contra-argumentos destrutivos; procura de falhas; criação de obstáculos. Riscos Assumidos. Níveis altos – iniciativas audaciosas; “andar no arame”. Níveis baixos – mentalidade prudente e hesitante; “lado seguro”; “dormir sobre o assunto.

304

Indicações de Indicações de Indicações Dimensões do Clima níveis altos níveis baixos neutras F % F % F % TOTAL Confiança e Abertura 31 91.2 1 2.9 2 5.9 34 100 Alegria e Humor 18 100.0 0 0 0 0 18 100 Desafio e Envolvimento 17 85.0 3 15.0 0 0 20 100 Liberdade 11 100.0 0 0 0 0 11 100 Debates 8 80.0 0 0 2 20.0 10 100 Apoio às Ideias 6 100 0 0 0 0 06 100 Tempo para as Ideias 1 12.5 6 75.0 1 12.5 8 100 Conflitos 0 0 3 100 0 0 03 100 Riscos Assumidos 0 0 1 100 0 0 1 100 TOTAL 92 82.9 14 12.6 5 4.5 111 100 Tabela III.5 – Dimensões do clima: indicações de níveis altos, níveis baixos e indicações neutras nas sessões do grupo de pesquisa.

a) No conjunto total das dimensões existem 92 (82.9%) indicações de níveis altos (Ex. CONFIANÇA E ABERTURA: Acredito muito em toda a gente. São todos pessoas fiáveis. Existe uma transparência grande entre as pessoas – 2A1/4), e 14 (12.6%) indicações de níveis baixos (Ex. DESAFIO E ENVOLVIMENTO: Mas senti que me distraí muito – 10I1/2). Existem também 4 (3.6%) referências neutras já que, mais do que caracterizar ou avaliar o contexto, se apresentaram como opiniões sobre o rumo a seguir numa dada situação (Ex. TEMPO PARA AS IDEIAS: Num trabalho deste tipo parece-me que, andando rápido, podemos perder coisas preciosas – 3J1/1).

b) ALEGRIA E HUMOR, LIBERDADE e APOIO A IDEIAS só apresentam indicações de níveis altos.

c) TEMPO PARA AS IDEIAS tem uma das percentagens mais elevadas de indicações de níveis baixos – 75% (Ex: Mas senti que tinha sido pouco e eu precisava de mais tempo do que aquele que, efectivamente, tinha acontecido – 9U4/8).

d) A única referência a RISCOS ASSUMIDOS, tal como se pode comprovar pelo exemplo já acima colocado, indica níveis baixos nesta dimensão.

e) Muito embora tenham sido encontradas três referências a CONFLITOS, foram feitas em relação a alguém que não fez parte do grupo de pesquisa (Ex. Depois o JR diz “estou a ver que não temos homem” já não sei a propósito de quem. E eu disparo ali e disse “não preciso fazer rappel para ser homem” (...). Por que é que, até agora, fiquei em silêncio e hoje disparei com toda a assertividade, ou até agressividade, aquilo que estava a pensar? Ah,

305

ok, se calhar já estou a defender-me a priori” – 9J1/15). Assim, porque se trata de

referências ao grupo, a dimensão CONFLITOS passa a ser a única sobre a qual não existe nenhum tipo de indicação – nem relativamente a um nível alto, nem, na sua versão oposta, aquele que indica (como os extractos acima colocados são um bom exemplo), “capacidade de introspecção psicológica” (Isaksen, 1995).

Contudo, e apesar do que já foi dito e pode ser motivo de reflexão, é preciso também fazer notar que uma maior ou menor ocorrência de referências a cada uma das dimensões pode não ser, em si mesma, muito significativa por não fazer uma caracterização geral do grupo mas, eventualmente, só indicar a consciência verbalizada de cada uma das dimensões. É preciso completar com outros dados.

2. As dimensões do clima nos resultados quantitativos da aplicação do SOQ

Considerando que: (1) o SOQ foi aplicado, depois do encerramento das sessões, a todos os membros do grupo de pesquisa que chegaram ao final do projecto (nove dos dez iniciais); (2) as respostas ao questionário foram dadas on-line e os resultados foram calculados e preparados pelo The Creative Solving Problem Group, Inc.142, detentor do copyright deste questionário143; (3) num encontro posterior, a cada pessoa foram dados a conhecer os seus resultados individuais bem como os resultados globais do grupo; (4) este grupo se apresenta com uma especificidade e limitação temporal de propósitos que, de certa maneira, o diferenciam dos grupos sobre os quais estão construídos os dados de referência144, parece ser interessante distinguir (gráfico III.1 e quadro III.1):

142 A razão por que os quadros com os resultados do SOQ se encontram em Inglês. 143 Ver também Anexo 6. 144 De acordo com os estudos que, a partir de Ekvall, têm vindo a ser conduzidos sobre o clima para a criatividade e para a mudança, as organizações distinguem-se em função da performance dos seus produtos e das percepções que as pessoas têm sobre o clima organizacional (Isaksen et al, 1995): - as organizações inovadoras são capazes de desenvolver rapidamente novos produtos e serviços e de os colocar no mercado; - as organizações estagnadas são incapazes de lidar eficazmente com a novidade e tendem a desaparecer rapidamente.

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Climate Chart

Challenge & Involvement 300 Risk-Taking 250 Freedom 200 150 100 Debates 50 Trust & Openness 0

Idea Support Idea Time

Conflicts Playfulness/Humor Inno Companies Stag. Companies Thesis

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Gráfico III.1 – Aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa – resultados médios. a) As médias obtidas pelo grupo de pesquisa colaborativa têm, em todas as dimensões positivas, um valor superior às médias das organizações inovadoras

e, na única dimensão negativa (CONFLITOS), um valor inferior. b) Porque só a partir dos 25 pontos se considera haver uma diferença significativa

nos resultados (Isaksen, 1995), as dimensões APOIO A IDEIAS, ALEGRIA E HUMOR,

DESAFIO E ENVOLVIMENTO e CONFIANÇA E ABERTURA são as que constituem os pontos fortes do grupo. A única diferença relativamente aos resultados das organizações inovadoras é que nestas o conjunto mais forte inclui a dimensão

LIBERDADE em vez da dimensão APOIO A IDEIAS. c) A diferença entre as médias do grupo de pesquisa relativamente às médias das organizações inovadoras (tabela III.6) apresenta, em quase todas as dimensões,

valores superiores a 25 pontos. A excepção é RISCOS ASSUMIDOS, com uma

diferença de 23 pontos. Contudo, só TEMPO PARA AS IDEIAS, CONFIANÇA E

ABERTURA, DEBATES e APOIO A IDEIAS apresentam uma diferença superior a 2 x

25 pontos. As restantes, ALEGRIA E HUMOR, DESAFIO E ENVOLVIMENTO e

LIBERDADE, estão abaixo dessa diferença.

307

Averages

Innovative Stagnated Company Thesis Company Climate Variables Averages Averages Averages

Challenge & Involvement 238 275 163

Freedom 210 241 153 Trust & Openness 178 264 128

Idea Time 148 252 97 Playfulness/Humor 230 276 140 Conflicts 78 11 140 Idea Support 183 278 108 Debates 158 235 105 Risk-Taking 195 218 53 Number of Comps. or Inds. 10 Companies 9 5 Companies

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.1 – Aplicação do SOQ – tabela comparativa entre os resultados do grupo de pesquisa e resultados de organizações inovadoras e de organizações estagnadas.

Médias das Médias do Grupo de Dimensões do Clima Organizações Diferença Pesquisa Inovadoras Tempo para as Ideias 252 148 + 104 Confiança e Abertura 264 178 + 86 Debates 235 158 + 77 Apoio a Ideias 278 183 + 65 Alegria e Humor 276 230 + 46 Desafio e Envolvimento 275 238 + 37 Liberdade 241 210 + 31 Riscos Assumidos 218 195 + 23 Conflitos 11 78 - 67 Tabela III.6 – Aplicação do SOQ – diferenças entre os valores médios do grupo de pesquisa e das organizações inovadoras.

Mas porque cada uma das dimensões apresenta uma grande amplitude (quadro III.2) e, por isso, valores extremos muito distanciados dos valores médios, fica, por um lado, a indicação da não existência de consenso quanto à forma como o grupo é avaliado, mas também, por outro lado, a possibilidade de uma maior variedade e riqueza de perspectivas. É preciso, então, ir um pouco mais longe e, pela conjugação dos diferentes dados disponíveis (quadro III.2 e tabela III.7), procurar fazer outras leituras:

a) Nos seus valores mais altos, os resultados do grupo de pesquisa atingem, em

quase todas as dimensões positivas (com excepção de DEBATES), o valor máximo (300), enquanto que na única dimensão negativa (CONFLITOS), o valor mais baixo é também o valor mínimo (0). Se entre o grupo de pesquisa e os

308

grupos de referência não houvesse a tal diferença de propósitos, com estes valores estaria constituído o grupo “quase-mais-que-perfeito”. b) As dimensões CONFIANÇA E ABERTURA, ALEGRIA E HUMOR, APOIO A IDEIAS e

DEBATES continuam a apresentar, mesmo nos seus piores casos, resultados mais altos que as organizações inovadoras.

Std. Deviation and Range

Thesis Climate Variables Averages Std. Dev. Range

Challenge & Involvement 275 32 200 –300 Freedom 241 75 100 –300 Trust & Openness 264 42 180 –300 Idea Time 252 44 167 –300 Playfulness/Humor 276 28 233 –300 Conflicts 11 14 0 –33 Idea Support 278 34 220 –300 Debates 235 38 183 –283 Risk-Taking 218 64 120 –300 Number of Individuals 9

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.2 - Resultados da aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa.

Médias das Amplitude do Grupo de Pesquisa Médias das Dimensões do Clima Organizações Diferença entre Organizações Inovadoras valores max. e mín. Estagnadas Desafio e Envolvimento 238 200-300 100 163 Liberdade 210 100-300 200 153 Confiança e Abertura 178 180-300 120 128 Tempo para as Ideias 148 167-300 133 97 Alegria e Humor 230 233-300 67 140 Conflitos 78 0-33 33 140 Apoio às Ideias 183 220-300 80 108 Debates 158 183-283 100 105 Riscos Assumidos 195 120-300 180 53 Tabela III.7 – Aplicação do SOQ - comparação entre resultados das organizações inovadoras e das organizações estagnadas e os valores de amplitude do grupo de pesquisa. c) Mesmo no seu pior caso (33), a única dimensão negativa (CONFLITOS), apresenta uma diferença bastante grande relativamente à média das organizações inovadoras (-45).

309

d) Nos seus piores casos, as dimensões DESAFIO E ENVOLVIMENTO, LIBERDADE e

RISCOS ASSUMIDOS apresentam valores abaixo das médias das organizações inovadoras. - O valor mais baixo de LIBERDADE está mais próximo das organizações estagnadas (+53) do que das organizações inovadoras (-110).

- RISCOS ASSUMIDOS está, no seu pior caso (120), quase equidistante das organizações estagnadas (+67) e das organizações inovadoras (-75). É, contudo, a penúltima dimensão dentro do conjunto de todas as dimensões (tal como as organizações estagnadas), enquanto que, nas organizações

inovadoras, RISCOS ASSUMIDOS se situa no quarto lugar.

e) Com uma amplitude >25 em todas as dimensões, LIBERDADE e RISCOS ASSUMIDOS surgem com a maior diferença entre os valores extremos (200 e 180,

respectivamente), logo seguidas de TEMPO PARA AS IDEIAS, CONFIANÇA E

ABERTURA, DESAFIO E ENVOLVIMENTO e DEBATES (133, 120, 100 e 100,

respectivamente). Só relativamente a CONFLITOS, ALEGRIA E HUMOR e DEBATES parece existir alguma semelhança de percepções dentro do grupo.

• Os estilos de criação presentes no grupo

INFLUÊNCIASINFLUÊNCIAS NO COMPORTAMENTOCOMPORTAMENTO IMPLICAÇÕESIMPLICAÇÕES DODO ESTILOESTILO CRIATIVO

Tarefa Capacidades PROCESSO Contexto Estilo Como pensa e se comporta Motivações Skills Outros

Estilo PRODUTOS Preferido Resultados que prefere

Pressão Comportamento Criativo Onde trabalha melhor

© Selby, Treffinger, Isaksen, 2003. © Selby, Treffinger, Isaksen, 2003.

Ilustração III.9 – Implicações do estilo de criação. Ilustração III.10 – Influências no comportamento criativo. © The Creative Problem Solving Group, Inc – Used with permission.

Continuando a ter subjacente que um processo de investigação é um processo criador, vou aqui utilizar como sub-categorias de análise as dimensões identificadas por Edwin

310

Selby, Don Treffinger e Scott Isaksen para a compreensão do estilo com que as pessoas resolvem problemas ou lidam com a mudança – isto é, para a compreensão de alguns dos traços que caracterizam a(s) PESSOA(s) dentro do sistema dos 4 P’s (Selby et al, 2003). Procurarei, assim, perceber (a partir da análise das sessões e dos resultados da aplicação do VIEW145), que estilos de criação estão presentes e qual o desenho produzido pela conjugação desses diferentes estilos para, a partir daí, poder fazer uma aproximação à compreensão do impacto desse desenho no processo de investigação (PROCESSO), no clima gerado no grupo de investigação colaborativa

(PRESSÃO) e nos resultados da pesquisa (PRODUTO).

“Vou ler tudo porque falo muito pouco” (2K1/3), “em termos profissionais, a minha atenção é na tarefa” (4M3/2) e “o K. é muito organizado” (3I7/1) são as três únicas referências a estilos de criação que puderam ser identificadas nos relatos das sessões do grupo de pesquisa colaborativa. Bem longe das 111 referências ao clima! Dá, de facto, a sensação de que, enquanto sobre este último, existe uma grande consciência da sua importância, sobre aqueles a sua influência é bastante mais desconhecida – o que, naturalmente, não lhes retira importância. Resta, por isso, encontrar nos resultados do VIEW os diferentes olhares presentes no grupo e o modo como, congregando diversos tipos de capacidades criativas, energias e interacções, adicionaram valor ao processo de pesquisa.

Assim, e tendo em consideração que (Selby et al, 2003): - este instrumento não mede o nível de capacidade criativa, mas sim preferências no estilo de resolução de problemas; - os resultados da maior parte das pessoas, em cada um dos estilos, se situam a meio de um continuum e que, à medida que se avança em direcção aos extremos, se encontram cada vez menos pessoas; - o estilo não indica o que a pessoa, ou o grupo, podem, ou não, ser, mas sim as suas preferências; - os resultados individuais são sempre relativos e ganham maior significado quando vistos no contexto de um grupo; - não há resultados melhores ou piores, certos ou errados; a diversidade é enriquecedora, mas precisa de ser bem gerida,

145 Ver também Anexo 7.

311

passo à análise dos resultados do grupo de pesquisa em função das três dimensões independentes e dos dois estilos que, em cada uma delas, estão incluídos: 1. Orientação para a Mudança – Explorador e Incrementador (E/I), 2. Formas de Processar a Informação – Externamente e Internamente (E/I); 3. Formas de Decidir – Centrada nas Pessoas e Centrada na Tarefa (P/T).

1. Orientação para a Mudança

“Gosto de fazer as coisas de uma forma radical” e “gosto de fazer com que as coisas funcionem melhor” (Selby et al, 2003:8-9) podem ser frases caracterizadoras dos dois estilos de resposta à autoridade, à novidade e à estrutura aqui presentes. Numa dimensão que tem uma escala que vai de 18 (forte preferência pelo estilo EXPLORADOR) a 126 (forte preferência pelo estilo INCREMENTADOR) e uma média teórica de 72, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes resultados (gráfico III.2):

RESULTADOS DA ORIENTAÇAO PARA A MUDANÇA

3

2 Count

1

0 18 23 28 33 38 43 48 53 58 63 68 73 78 83 88 93 98 103108113118123 Range

Explorador Incrementador

N = 9 X = 72,22 R = 51-86

© Selby, Treffinger, Isaksen, 2002. Preparado e traduzido por Helena Gil da Costa, 2005 Gráfico III.2 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa– resultados da orientação para a mudança.

a) Uma amplitude de 51-86 que abrange as duas direcções do continuum, mas sem se aproximar demasiado de nenhum dos extremos.

312

b) Uma média de 72.22, muito perto da média teórica, mas com uma ligeira

acentuação na direcção do estilo INCREMENTADOR, onde se situam cinco dos nove membros da equipa – isto é, com uma pequena preferência em termos médios por fazer melhor e trabalhar de uma forma precisa, metódica e consistente.

c) Na direcção oposta, situam-se quatro membros do grupo, sendo que um destes EXPLORADORES apresenta um resultado muito mais acentuado e distante da média teórica (-21) do que o Incrementador mais acentuado (+14) do outro lado do continuum. Aqui se colocam os que gostam de fazer diferente e se sentem limitados dentro das estruturas, os que desafiam a autoridade e dão ênfase à originalidade.

d) Em resumo: em termos médios e desde que em boa gestão (com evidentes repercussões no clima, no processo e no produto), este grupo apresenta-se

como “INCREMENTADOR MODERADO” – isto é, como um grupo flexível, com facilidade de compreensão e capacidade de, percorrendo os dois estilos, encontrar valor nas diferentes abordagens.

2. Formas de Processar a Informação

“Discutir ideias com outras pessoas ajuda-me a pensar” e “penso melhor sozinho” (Selby et al, 2003:11-12) podem ser as frases caracterizadoras dos dois estilos de processar a informação durante a resolução de problemas – através da gestão da energia pessoal (trabalhando as ideias internamente), ou através da energia dos outros (trabalhando as ideias externamente). Numa dimensão que tem uma escala que vai de

8 (forte preferência pelo estilo EXTERNO) a 56 (forte preferência pelo estilo INTERNO) e uma média teórica de 32, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes resultados (gráfico III.3):

a) Uma amplitude de 19-45 que abrange as duas direcções do continuum.

313

b) Uma média de 32.67, muito perto da média teórica, mas com uma ligeira

acentuação na direcção do estilo INTERNO, onde se situam cinco dos nove membros da equipa – isto é, com uma pequena preferência, em termos médios, por se ser cauteloso na discussão de ideias, por esperar por partilhar uma opção até que ela esteja bem elaborada.

RESULTADOS DA FORMA DE PROCESSAR A INFORMAÇÃOINFORMAÇÃO

2

1 Count

0 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 Range

Externamente Internamente

N = 9 X = 32,67 R = 19-45 © Selby, Treffinger, Isaksen, 2002. Preparado e traduzido por Helena Gil da Costa, 2005 Gráfico III.3 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da forma de processar a informação. c) Na direcção oposta, situam-se quatro membros do grupo. Aqui se colocam os que preferem processar a informação EXTERNAMENTE – são os que expõem as suas ideias antes de as terem pensado cuidadosamente, os que confiam que elas podem ser bem trabalhadas na e pela interacção com o grupo de pessoas que os rodeia. d) Os pontos extremos do continuum são equidistantes em relação ao centro (13) e, se bem que mais distantes entre si do que na dimensão anterior, não chegam ainda a colocar-se em posições demasiado marcadas. e) Seis dos nove membros da equipa de pesquisa apresentam resultados que, para além de muito próximos uns dos outros, estão também muito perto da média do grupo e da média teórica. Essa consistência de posições pode ter dado o tom ao trabalho da equipa e, pelas competências que lhe estão

314

associadas, pode também ter desempenhado um papel de “ponte” entre as preferências mais extremas.

f) Em resumo: em termos médios e desde que em “boa gestão” (e com evidentes repercussões no clima, no processo e no produto criados), este grupo

apresenta-se como “INTERNO MODERADO” – isto é, como um grupo flexível, com facilidade de compreensão e capacidade de, percorrendo os dois estilos, encontrar valor nas diferentes abordagens em presença.

3. Formas de Decidir

“Gosto de ter a certeza de que estamos todos no mesmo barco” e “gosto de garantir um resultado lógico” (Selby et al, 2003:14-15) podem ser as frases caracterizadoras dos dois estilos que traduzem o primeiro impulso e a primeira referência quando é preciso tomar uma decisão. Numa dimensão que tem uma escala que vai de 8 (forte preferência pelo estilo CENTRADO NAS PESSOAS) a 56 (forte preferência pelo estilo CENTRADO NA

TAREFA) e uma média teórica de 32, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes resultados (gráfico III.4):

RESULTADOS DAS FORMAS DE DECIDIR

3

2 Count

1

0 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 Range

Pessoas Tarefa

N = 9 X = 28,67 R = 13-45 © Selby, Treffinger, Isaksen, 2002. Preparado e traduzido por Helena Gil da Costa, 2005 Gráfico III.4 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados das formas de decidir.

315

a) Uma amplitude bastante grande de 13-45 que abrange as duas direcções do continuum. b) Uma dispersão bastante grande de resultados individuais, com uma quase concentração em dois blocos distintos que, se em boa gestão, podem ser fonte de riqueza e se, mal geridos, podem ser fonte de conflito. Como, neste caso, a “tarefa” também são as “pessoas”, diminui o potencial de conflito. c) Uma média de 28.67, não tão perto da média teórica como nas dimensões

anteriores, mas com um peso maior na direcção do estilo CENTRADO NAS

PESSOAS – isto é, com uma preferência algo marcada por pensar primeiro no impacto das decisões nos sentimentos das pessoas e por procurar criar harmonia e relacionamentos positivos. Aqui se situam quatro dos nove membros da equipa, sendo que, especialmente um deles, apresenta uma forte preferência por este estilo – -19 que a média teórica, enquanto que, no outro extremo, a distância é de +13. d) Quatro membros do grupo situam-se na direcção oposta. Aqui se encontram os

que têm um estilo CENTRADO NA TAREFA, os que preferem as escolhas e as decisões lógicas que podem ser objectivamente justificadas; aqui se encontram os que, quando se tomam decisões, têm mais interesse nos resultados e nos padrões de qualidade do que no impacto que causam nas pessoas. e) Com um resultado igual ao da média teórica, encontra-se um membro do grupo – o que, pelas competências que também tinha associadas, lhe deu, em diversas circunstâncias, a possibilidade de desempenhar um papel social de “ponte” entre as preferências mais extremas. f) Em resumo: ainda que este grupo apresente uma grande variedade de perspectivas (e com evidentes repercussões no clima, no processo e produto criados), em termos médios caracteriza-se como “CENTRADO NAS PESSOAS” – isto é, colocando as prioridades nas pessoas e num tratamento personalizado e atencioso, com preferência por apresentar os pontos positivos das opções; com

316

uma maior preocupação com as relações do que com os resultados; com tendência para evitar conflitos ou situações tensas.

1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações

Que ler, então, em tudo isto? Que implicações, enredos e lições descobrir nesta primeira fase de análise dos dados, aquela que, caracterizando o universo em que decorreu o trabalho de campo, antecede, mas também acompanha, a procura de respostas às perguntas da investigação?

Nesta tentativa de composição do retrato do grupo (e ainda que sem querer fazê-lo de um modo exaustivo que julgo aqui não se justificar), continuarei a utilizar as contribuições de Scott Isaksen, Brian Dorval e Don Treffinger (1994), mas agora pelo emprego (um pouco adaptado) de um instrumento de análise e desenvolvimento de opções146, que, pela utilização uma abordagem estruturada, me permite: a) Identificar as Vantagens (pontos fortes), as Limitações (pontos fracos ou desafios futuros) e as Qualidades Únicas (elementos novos ou úteis) deste grupo de pesquisa para, logo a seguir (e, de alguma maneira, abrindo já espaço para a síntese da pesquisa), sublinhar, a partir de dados do SOQ, algumas formas de ultrapassar as principais limitações (Ultrapassar as Limitações). b) Retomar alguns dos dados dos relatos das sessões, dos resultados quantitativos do SOQ e dos valores do VIEW (tabela III.8). c) Conjugando isso com a descoberta dos significados das palavras que estão para lá

dos números (CONTEÚDO DAS TRANSCRIÇÕES das sessões e RESPOSTAS NARRATIVAS do SOQ – quadros III.3.AeB; III.4AeB; III.5AeB) e com a reflexão de quem, como

OBSERVADOR PARTICIPANTE, registou o que nem nos números nem nas palavras está contido.

146 ALUo, na versão original – Advantages, Limitations, Unique Qualities, Overcome Limitations (Isaksen et al, 1995).

317

TRANSCRIÇÕES DAS SESSÕES RESULTADOS DO SOQ 1. Confiança e Abertura 31 1. Apoio às Ideias 278 2. Alegria e Humor 18 2. Alegria e Humor 276 3. Desafio e Envolvimento 17 3. Desafio e Envolvimento 275 4. Liberdade 11 4. Confiança e Abertura 264 5. Debates 08 5. Tempo para as Ideias 252 6. Apoio às Ideias 06 6. Liberdade 241 7. Tempo para as Ideias 01 7. Debates 235 8. Conflitos 01 8. Riscos Assumidos 218 9. Riscos Assumidos 00 9. Conflitos 11

ESTILOS (MÉDIOS) DE CRIAÇÃO Incrementador Moderado (I) – 72.22 Interno Moderado (I) – 32.67 Centrado nas Pessoas (P) – 28.67

Tabela III.8 – Síntese dos resultados do grupo de pesquisa.

• Vantagens – pontos fortes

Respostas Narrativas à Pergunta #1

Partilha, confiança e abertura 1. Humor, confiança, ausência de julgamento. 2. O anonimato e ouvir os outros. 3. A confiança e o respeito que existem entre todos os elementos do grupo. A partilha de experiências profissionais diferentes (…). 4. (…) O ambiente é feito de pessoas muito diferentes e com uma dose de sinceridade muito grande. 5. A disponibilidade e abertura do grupo. 6. A abertura e o tempo disponível para ouvir e pensar.

O à vontade 7. Trabalhar sentados no chão em forma circular, num lugar semi- fechado. O gesto de sentar no chão para mim é sinal de estar à vontade e confiante com os meus: amigos ou familiares. E com os meus eu sou criativo sem medo de errar porque ainda que eu erre e (…) Não foi recebida a resposta completa 8. Sentir que estou “em casa” (…).

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.3A – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (1ª parte).

1. Desafio e envolvimento

Quando nove pessoas, em regime de total voluntariado, aceitam fazer parte de um projecto em que os únicos interesses são o projecto em si mesmo e o desenvolvimento pessoal de cada um; quando essas nove pessoas se mantêm a trabalhar semanalmente, ao longo de doze semanas, em sessões que, quase sempre, se prolongaram bastante para lá da hora estipulada; quando nove pessoas, assumindo

318

pessoalmente todas as despesas, se dispõem a passar um fim de semana fora de suas casas para, num enquadramento diferente, se deixarem mexer pelo tema do projecto... tudo parece confirmar, e mesmo sem os resultados do SOQ, o alto nível de motivação, de profissionalismo e de compromisso pessoal (de DESAFIO E ENVOLVIMENTO), com a participação e o sucesso do que, em certa medida, passou a ser um propósito comum.

- Sessão 2 - L1/2: Estou motivado a estar neste grupo da forma que melhor contribua para que todo o processo se desenrole de acordo com aquilo a que nos propusemos.

- Sessão 2 – K1/7: Outra coisa que vinha comigo era a noção de que vinha para um desafio, onde certamente podia saber como começar, mas que não sabia como ia terminar. Um grande desafio mesmo. Lançar-se ao mar e saber como se lançar nele e não saber talvez como sair do mar.

- Sessão 10 – L3/2: Não me senti sozinho, senti que éramos todos a fazer a situação.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 8. sentir que (…) seja qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em acção.

Respostas Narrativas à Pergunta #1 cont.

Compromisso e envolvimento 9. (…) compromisso e envolvimento das pessoas do grupo.

Apoio a ideias 8. Sentir que (…) seja qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em acção. 3. (…) a solidariedade na implementação das decisões. 4. O facto de trabalhar com um grupo extremamente aberto a tudo o que é novo e diferente (…) 9. Receptividade (…)

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.3B – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (2ª parte).

319

2. Alegria e humor

Parece confirmado o ambiente de informalidade, espontaneidade e à vontade (de ALEGRIA E HUMOR) com que decorreu o encontro do grupo.

- Sessão 2 - K1/8: Posto no local vivi uma outra sensação - aumentou o grau de alegria que trazia ao entrar em contacto com o grupo. Achei que estava num grupo muito simples, com o qual me podia identificar facilmente. E também um grupo tranquilo. A tranquilidade expressou-se pelos nossos gestos. Estávamos sentados no chão e depois cada um à sua maneira – uns deitados, uns não sei quantos mais.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 8. sentir que estou em casa.

3. Confiança e abertura

Embora, nos resultados do SOQ, CONFIANÇA E ABERTURA perca o lugar destacado em que estava colocado nas transcrições das sessões, continua a ser forte e a não apresentar uma diferença muito significativa (≤25 pontos) relativamente a “Apoio a Ideias”, “Alegria e Humor” e “Desafio e Envolvimento” que apresentam valores mais altos.

- Sessão 2 – E1/4: Fiquei, posso dizer, deslumbrada com o clima de abertura e disponibilidade que senti em todas as pessoas.

- Sessão 7 – I2/8: Não sei se querem fazer perguntas, se calhar ajudava um bocadinho.

- Sessão 9 – L1/23 - Fundamentalmente foi isso, o desejo de, ontem e hoje, procurar estar numa atitude de confiança e de proximidade relativamente às pessoas do grupo.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 4. o ambiente é feito de

320

pessoas muito diferentes e com uma dose de sinceridade muito grande; 3. a confiança e o respeito que existem entre todos os elementos do grupo.

Mas, além disso, fica também a impressão de que, por causa de “um tema que pode ser… não fácil” (2I11/1), algumas das referências à confiança e abertura existentes também se deveram à vontade-necessidade-preocupação de cuidar de alguns, de confirmar que todos se podiam sentir seguros e protegidos.

- Sessão 2 – A1/3: acho que neste clima senti que estaria sempre implícito a confidencialidade. Está explícito hoje, mas acho que estava implícito em todos, porque tenho a impressão que existiu este eco, digamos assim, de clareza entre todas as pessoas.

4. Apoio a ideias

Muito interessante a diferença tão significativa entre os resultados das transcrições das sessões e os do SOQ relativamente a APOIO A IDEIAS já que, de seis únicas ocorrências no primeiro, se passa para o topo da “classificação” no segundo. Tudo parece indicar o quanto, através da comunicação não verbal, a atmosfera foi construtiva e positiva e a capacidade de suspensão de juízo crítico e de escuta activa estiveram presentes.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 1. ausência de julgamento.

- Sessão 2 – E7/1: Acho que isso também é positivo (...).

5. Incrementador-Interno-Pessoas

Uma configuração “Incrementador-Interno-Pessoas” (tal como no VIEW apontam os resultados médios do grupo e, como se verá, se confirma por algumas das respostas narrativas do SOQ), é potencialmente portadora de diversos benefícios num projecto de pesquisa desta natureza. Ser INCREMENTADOR é ter o gosto e a capacidade de

321

persistência, estabilidade, ordem e continuidade; ser INTERNO é ter o gosto e a capacidade de reflectir e de trabalhar uma tarefa em profundidade, bem como de criar um ambiente de tranquilidade e concentração; ser CENTRADO NAS PESSOAS é ser-se sensível em relação aos outros, é ter-se capacidade de se ser mais afirmativo quando são apresentadas novas formas de pensar (Selby et al, 2003).

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?): – 8. sentir que (…) seja qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em acção; 3. a solidariedade na implementação das decisões.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 8. no trabalho proposto e na empatia conseguida entre todos os elementos “todos por um e um por todos” não existiu nada que retraísse a minha criatividade.

• Limitações – pontos fracos e desafios

Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #2

Falta de tempo 1. Ter que dividir o tempo e o pensamento com outros projectos paralelos. 9. Limitação de tempo.

Evitar o risco do confronto 2. O relacionamento inter-pessoal, cuidado com os outros, (…). 5. Pensar nas expectativas que os outros elementos do grupo têm a meu respeito. 6. Não é muito assumido o risco pessoal; a divergência é evitada para não se correr o risco do confronto.

Actividades específicas 7. O ambiente de desporto radical: não sou muito adepto do desporto radical e nele eu não sou criativo. Fico muito retraído se assim posso dizer. Às vezes gosto de assisti-lo mas não praticá-lo.

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.4A – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (1ª parte).

322

1. Riscos assumidos

Ainda que, como se viu atrás (tabela III.6 e III.7), os valores de RISCOS ASSUMIDOS obtidos no SOQ (218) sejam bastante positivos se unicamente comparados com os valores das organizações inovadoras (195), numa análise mais cuidadosa é possível perceber que: (1) esta dimensão tem o penúltimo valor mais baixo no conjunto das nove dimensões (contra o quinto lugar das organizações inovadoras), só acima de “conflitos”; (2) as respostas narrativas do SOQ indicam claramente a existência de uma atitude algo prudente e de resguardo que não terá permitido iniciativas muito audaciosas.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 6. não é muito assumido o risco pessoal; 5. pensar nas expectativas que os outros elementos do grupo têm a meu respeito.

É este um dos riscos que corre quem, ao ser INCREMENTADOR, tende a cingir-se demasiado às regras estabelecidas, a tornar a estrutura e os propósitos da pesquisa mais um fim em si mesmos do que um meio para procurar opções radicalmente diferentes.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 2. não me afastar do objectivo; 11. excessiva preocupação com o resultado final da pesquisa.

De resto, pensar que, ao longo de tantas horas de trabalho conjunto, imperou um clima de “Alegria e Humor” sem que, em contrapartida e pelo equilíbrio dinâmico que só é gerado pelos opostos, tivesse havido espaço para as lágrimas (num tema tão sensível, quanto pessoal, emotivo e... “não fácil”147), parece confirmar a existência de poucos riscos assumidos – o risco que corre quem se permite revelar os sentimentos mais profundos (de medo, tristeza, raiva, dor, ou quer que seja) (Lowen, 1984, 1997); o risco que corre quem se permite expor para lá do que o discurso das palavras guarda e do que a “compostura” da Pessoa Pública e o refúgio no mental protegem.

147 Sessão 2 – “(...) um relaxamento demasiado longo sobre um tema que pode ser… não fácil (...)” (2I11/1).

323

2. Conflitos

Tanto nos resultados do SOQ, como nos relatos das sessões, a dimensão CONFLITOS parece apresentar valores demasiado baixos – o que, aliás, se confirma nas respostas narrativas e pode ser um dos efeitos dos poucos riscos assumidos.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 2. o relacionamento inter- pessoal, o cuidado com os outros; 6. a divergência é evitada para não se correr o risco do confronto.

É este o risco que corre quem, por estar tão CENTRADO NAS PESSOAS e na harmonia (Selby et al, 2003), evita as situações mais tensas e, por isso, pode também negligenciar outro tipo de resultados que os assuntos difíceis são capazes de proporcionar. É como se, por causa do medo do conflito, também se eliminassem os

DEBATES (que, aliás, apresenta um dos valores mais baixos no SOQ); é como se, em vez de se formar um coro a muitas e diferentes vozes, o grupo se tivesse contentado em ouvir, mesmo que atentamente, muitos solos.

Não será por esta razão que a sub-categoria “caracterização das pessoas do grupo – feita pelos outros” ficou uma sub-categoria quase vazia?

Não estará aqui um sinal de que, apesar dos níveis de “confiança e abertura”, e porque o conflito intragrupal não ocorreu, não se atingiu o desenvolvimento de uma maior coesão e maturidade do grupo (Sacadura, 1992, wikipedia, 2007148)? Por falta de tempo (para as ideias)? Por falta de desafio e envolvimento já que, em si mesmos, os

148 http://en.wikipedia.org/wiki/M_Scott_Peck (15.01.07) - Com base na sua experiência, Scott Peck refere que a construção de uma comunidade passa, tipicamente, por 4 fases: A pseudocomunidade – os membros fingem sentir-se à vontade uns com os outros e disfarçam as suas diferenças agindo como se elas não existissem. Caos – depois da pseudocomunidade ter falhado, as pessoas questionam-se umas às outras e revelam as suas diferenças e os seus desacordos. Vazio – as pessoas aprendem a esvaziar-se dos seus ego quando eles impedem a formação da comunidade; é um passo difícil porque envolve a morte de uma parte do indivíduo. Verdadeira comunidade – as pessoas estão em completa empatia umas com as outras; é um nível de grande compreensão tácita; as discussões, mesmo quando acesas, nunca se tornam desagradáveis e os motivos não são questionados.

324

resultados do projecto de pesquisa só produziam efeitos na vida das pessoas na medida em que cada um assim o permitisse ou desejasse?

- Sessão 1 – U18/1: “Um dos objectivos que deixamos presente sempre é o do desenvolvimento pessoal de cada um. O desenvolvimento vai até ao ponto que cada um quiser”.

Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #2 cont.

Redução de objectivos 2. (…) não me afastar do objectivo. 11. Excessiva preocupação com o resultado final da pesquisa.

Nada 3. Nenhum. 4. Nenhum. 8. No trabalho proposto e na empatia conseguida entre todos os elementos “todos por um e um por todos” não existiu nada que retraísse a minha criatividade. 10. -

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.4B – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (2ª parte).

3. Se calhar...

Uma curiosidade: ao longo dos relatos das sessões, a expressão “se calhar” surge mais de 200 vezes.

- Sessão 2 – U2/1 – “Se calhar vamos tratar dessa questão da supervisão, talvez cooperação, vamos ver...” - Sessão 3 – J4/5 – “Este, se calhar, é o primeiro dos medos que existe com quem trabalha com muita gente, que é o medo das primeiras impressões”.

Moda? Vício de linguagem? Insegurança? Dificuldade em fazer afirmações mais audaciosas? Medo de afirmação perante o grupo? Se calhar...

325

4. Reflexão sobre as limitações

Primeiro, porque houve riscos que não foram assumidos; segundo, porque o conflito foi evitado; terceiro, porque talvez se tenha optado mais pelo desenvolvimento de esquemas de continuidade em relação aos planos estabelecidos do que pela liberdade de criar, pode também ter-se perdido um olhar radicalmente novo e alguma da sabedoria que está para além do que nasce do mental, do consenso e do seguro.

Posto isto, e porque numa atitude criativa (que recusa a atitude de queixa e a crítica que paralisa), os problemas devem ser encarados como convites da vida para descobrirmos o melhor de nós mesmos (Aldana, 1996), passo a sintetizar sob a forma de perguntas, e tal como também aprendi com Scott Isaksen, Brian Dorval e Don Treffinger149, alguns dos desafios à transformação que aqui ficam sugeridos:

a) Como criar um ambiente seguro que permita iniciativas audaciosas? b) Como criar mais espaço para o fluir das emoções? c) Como ganhar coragem para lidar com o confronto? d) Como melhorar a capacidade de aceitar e lidar com a diversidade? e) Como tornar as pessoas mais seguras em relação ao seu papel e à sua posição dentro do grupo?

• Qualidades Únicas

E porque a originalidade é sempre relativa, vou procurar nas palavras dos membros do grupo o que, por eles, foi sentido enquanto tal.

149 Referência à forma de enunciar limitações durante a aplicação do ALUo: ser enunciada sobre a forma de uma pergunta; ter potencial para a produção de ideias; fazer a pergunta para que realmente se quer novas ideias; ser conciso; indicar propriedade; ser independente de critérios de avaliação; conter os seguintes elementos – um apoio de partida (Como...?; De que maneira...?), um verbo de acção, um complemento directo (Isaksen et al, 1994).

326

1. Possibilidade de discutir o que não estava planeado

- “Isto faz-me lembrar os problemas que encontramos na formação. Em que, tendo de ficar sujeito ao programado, acabamos por perder coisas muito importantes. A vantagem de um programa destes é essa – não temos programa e podemos ir ao fundo” (3J3/1).

Ou seja, a possibilidade de não estar sujeito a linhas orientadoras e a papéis restritos. A possibilidade de discutir e de testar ideias e sugestões novas que não estavam planeadas nem incluídas no programa.

2. Questionamento

- “Não entendi a sua pergunta no sentido de provocação. Mas acabou por ser uma pergunta que me levou a uma reflexão muito profunda” (7K2/1).

Ou seja, o estímulo de ideias, o questionamento, a discussão de diferentes pontos de vista.

3. Comunicação interpessoal

- “Estava encantado com estes dois momentos porque, de facto, são momentos únicos - pessoas que mal se conhecem partilharem desta forma o medo, ou aquilo que é a sua vivência (2J4/1). - “É a primeira vez que estou a partilhar esse medo” (2K6/2). - “Coisa engraçada, nunca pensei que iria dizer isto tudo. (...) nunca pensei que iria pôr aqui em comum. Mas somos todos um bocado sacerdotes – guardamos tudo cá dentro. Isto é uma partilha” (3A5/2). - “E começámos a caminhar. E começámos a falar da vida - falámos da vida, falámos de amizade. Não quis que a caminhada terminasse… A conversa estava sendo muito divertida - não em termos superficiais. E foi mesmo uma conversa muito profunda para mim. Falei de algumas coisas de que já não falava há três anos com pessoas assim” (9K1/11).

Ou seja, a abertura e a franqueza, o respeito e o apoio do grupo, a capacidade de ir para lá do habitualmente estabelecido, a possibilidade de falar de si mesmo, isto é, o espaço para uma verdadeira comunicação interpessoal.

327

4. Reflexão sobre as qualidades únicas

Curioso, não é? É como se a confiança-resguardo, o acordo-desentendimento, o atrevimento-cautela fossem, simultânea e paradoxalmente, os pontos mais fortes e os pontos mais frágeis de como o grupo se percepciona. Será possível? Estará aí, até nesse deficit, a sua originalidade? Mas por que não? Não é isso também um dos padrões distintivos de quem, porque muito se quer e na busca inquieta do “processo contínuo de construção do (...) humano”, (Kolyniak, 2005), só com um amoroso “contentamento descontente”150 camoniano se contenta?

• Formas de Ultrapassar as Limitações

Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho para melhorar o clima da criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #3

Mais tempo 6. Aumentar o tempo de trabalho (…). 8. Abolia o trabalho profissional de todos os participantes.

Mais debate e confronto 1. Fomentar a abertura mais profunda de todos os elementos. Estar preparado para o conflito que pode ser útil para a maturidade do grupo. 2. Maior confronto de ideias entre os participantes, aprofundar os pensamentos de cada um sem inibições. 5. Partilhar com os participantes os dados deste questionário e aferir com eles as finalidades e a organização do grupo.

Mais espaço de vivência 7. Organizaria um piquenique na praia. A praia para mim é símbolo de imensidão e diversidade. No mar encontramos águas numerosas, no mar encontramos muitas espécies, o mar leva-nos à profundidade no pensamento, enfim, o mar para mim é e será sempre uma novidade (?). 9. Menos espaço para verbalização; maior espaço para vivência.

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.5A – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (1ª parte).

- Como criar um ambiente seguro que permita iniciativas audaciosas? - Como criar mais espaço para o fluir das emoções? - Como ganhar coragem para lidar com o confronto?

150 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/Vds/camoes.html

328

- Como melhorar a capacidade de aceitar e lidar com a diversidade?

Foram estas as perguntas com que, atrás, procurei sintetizar as limitações recolhidas nos diferentes documentos em análise. Muitas outras poderiam ser colocadas. Contudo, e qual jogo de puzzle em que todas as peças se encaixam, estas poderiam ser também as perguntas a colocar a montante e a jusante das respostas dadas pelos membros do grupo à terceira pergunta narrativa do SOQ (Quadros III.5A e III.5B):

“Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho para melhorar o clima de criatividade?”

Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho para melhorar o clima da criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #3 cont.

Mais fundamentação teórica 3. Promover tempos de debate sobre os aspectos teóricos em que assenta o trabalho.

Mais aprofundamento dos temas 6. (…) utilizar um modo de comunicação mais aprofundado no tratamento dos temas propostos.

Nada 4. Nenhuma. O clima é de total abertura, criatividade, liberdade individual.

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.5B – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (2ªparte).

E, simplesmente, selecciono, de entre todas as respostas do grupo, as opções mais concretas: - 5. Partilhar com os participantes os dados deste questionário e aferir com eles as finalidades e a organização do grupo. - 6. Aumentar o tempo de trabalho. - 7. Organizaria um piquenique na praia. (...) o mar leva-nos à profundidade no pensamento (...). - 9. Menos espaço para verbalização; mais espaço para vivência.

329

Muito haveria a dizer a partir daqui e, seguramente, muitas outras opções haveria que procurar. Mas agora não é, nem o tempo, nem o espaço, para o fazer. Mas talvez as venha a encontrar quando, mais adiante, procurar responder àquela que é também uma das perguntas da pesquisa – “Como pode o educar lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos?”

Qual movimento de espiral que sempre “regressa a um ponto novo”, com toda a riqueza do hologramático aqui presente, parece que, mais uma vez, “tudo começa no sujeito e pelo sujeito do conhecimento, singular e plural consciente de si e do grupo, interessado na construção do conhecimento e do mundo compreensível. A saída da zona de conforto implica pensar o novo e agir de outra forma” (Feitosa, 2006: 77).

330

331

332 caracterização geral de feita pelo próprio cada uma das pessoas do grupo feita pelos outros as pessoas do grupo de pesquisa colaborativa razões para participar expectativas em relação ao trabalho

efeitos (no próprio) por participar

desafio e envolvimento

confiança e abertura

liberdade QUEM tempo para as ideias clima do grupo - dimensões (SOQ) conflito debates o grupo de pesquisa colaborativa 1.4 Categorias de Análise alegria e humor apoio a ideias

riscos assumidos

orientação para a mudança

estilos de criação - dimensões (VIEW) formas de processar informação formas de decidir

O QUÊ COMO POR QUÊ PARA QUÊ

A alma não tem segredo que o comportamento não revele. Lao-Tsé

faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa?151 2. O que

Esta é a pergunta conceptual da pesquisa para que quero encontrar resposta. Congregando o pensamento de Csikszentmihalyi (1998), Sturner (1994, 1996, 1997), Nolan (2001), Maslow (1991), Frankl (1994), Maturana (2000), Freire (2000, 2003), Morin (2002, 2003, 2006), Max-Neef (1993) e outros, são três os sinais que, na sua mútua implicação e enquanto antagónicos dos atributos do medo, dão forma a esta questão152:

- a SERENIDADE – construída pela consciência de quem se é e do para que se existe;

- a UTILIDADE – construída pelo valor e coerência em diversos campos da vida;

- a CORAGEM – construída na ligação entre a serenidade e a utilidade, o que leva a fazer a paz e a felicidade partilhada.

Contudo, quando olho para os resultados da análise dos dados correspondente (a categoria “o quê), e para tudo o que aí colocámos de medos e seus efeitos153, a resposta que fica mais evidente é à sua negação – “o que faz com que uma vida não seja serena, útil e corajosa?”. Vou, por isso, procurar no medos (nas suas múltiplas expressões, símbolos e formas) o que depois, através de um processo de transformação, me possa indicar o que seja tal vida.

2.1 O disfarce do medo

No início do trabalho com os informantes-chave (e porque isso correspondia ao sentido de uma das actividades realizadas pelo grupo de pesquisa154), havia a intenção de criar

151 Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo. 152 Ver também “Introdução – 3.2 Propósitos e perguntas de investigação””. 153 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise”. 154 Sessão 2 – trabalho de relaxamento em que, a partir da consideração de diversos períodos da vida, se procurou retomar memórias de experiências pessoais que suscitaram medo.

333

uma primeira subdivisão dos medos colectados nos relatos das sessões, que os organizasse como “medos da infância”, “medos da adolescência” e “medos da idade adulta”. Porém, quando, por força da pouca clareza de alguns discursos, se tornou impossível afirmar, para lá de qualquer dúvida razoável, a que período da vida muitos deles diziam respeito155, abandonámos essa pretensão.

Mas a interrogação sobre as razões dessa impossibilidade foi ficando em aberto. Por esse motivo, ao longo do trabalho de análise, ficámos também mais disponíveis para identificar alguns tipos de subterfúgios que, subtilmente e enquanto ESTRATÉGIAS DE

ENCOBRIMENTO, davam indicação das dificuldades sentidas em situar, compreender, encarar ou mesmo ter consciência dos próprios medos.

Algumas dessas estratégias estavam presentes na nossa COMUNICAÇÃO VERBAL. Por exemplo:

a) Considerar que os medos são “normais”. - “É o primeiro dos medos que existe com quem trabalha com muita gente, que é o medo das primeiras impressões” (3J4/5).

b) Não distinguir com clareza se os medos são do passado ou do presente. - “Estes outros medos de que falei também, da rejeição, de ficar sozinha (...). Ou pelo menos assim aconteceu em algum momento” (3E7/1). - “Mas a matrícula nunca mais vou esquecer. Nunca mais. Se eu vejo uma matrícula começada por A, eu lembro-me logo da matrícula. Se vejo um carro, lembro-me logo daquele carro. (...) Depois são aquelas coisas: a gente cresce, chegamos à puberdade” (3O4/9-10).

c) Negar os medos. - “E não tenho medo da morte. Tinha se ficasse à mercê de uma pessoa que me fizesse mal. Mas a morte, acho que é inevitável e não tenho medo” (3M2/9).

155 Tal como também é explicado na descrição das categorias de análise (Anexo 4), nos relatos das sessões muitas vezes não fica claro se os medos existiram na infância e adolescência e persistiam na idade adulta, se existiram na infância e adolescência, mas já não existiam na idade adulta, ou se só surgiram na idade adulta.

334

d) “Impessoalizar” o discurso. - “Queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou qualquer tipo de sentimento que não sou capaz de expressar por medo” (1N1/3). - “Os medos maiores são quando a gente decide enveredar por um caminho sem retorno” (10M1/3).

e) Encontrar razões para não enfrentar os medos. - “Evito os medos que não incomodam os meus sonhos” (6K7/2).

f) Pactuar com o medo e com o sistema que o provoca. - “Não tem medo porque aprendeu a viver com medo” (4M19/1).

g) Falar antes dos medos dos outros. - “Eu também já as virei e acho que acaba por ser muito positivo. Outro dia, uma amiga minha (...)” (7I23/1). - Ou quando, depois da visualização do filme “A Vila”, fazendo a aplicação da técnica ORA na 6ª sessão156, centrámos muito mais a nossa atenção em “observar” (os outros) e muito menos em “aplicar”, isto é, a falar sobre a própria experiência.

Outras estratégias, menos verbais e mais do campo das ATITUDES E COMPORTAMENTOS (por isso com uma forma ainda mais subtil de comunicar, mas também, provavelmente, mais marcante), deram origem ao que foi sentido e expresso noutros tempos ou aspectos do trabalho feito:

a) Situar o discurso mais no cognitivo e menos no afectivo ou vivencial. - Extracto de um diário de campo da 6ª sessão – “Sinto que, muitas vezes, não estamos a abordar os nossos sentires, mas os nossos saberes sobre o tema do medo (...). Sinto que assim estamos perdendo experiências de vida”.

b) Centrar a atenção no profissional ou no passado.

156 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

335

- Extracto de um diário de campo da 3ª sessão – “Muito daquilo que as pessoas estão trazendo são «revelações» de factos passados ou, essencialmente, de factos profissionais (...) deixando de lado aspectos mais pessoais da sua actualidade”.

c) Esquecer-resguardar experiências de interioridade. - Extracto da 12ª sessão – avaliação das sessões do grupo - “O trabalho do grupo não correspondia em nada à minha expectativa e eu achava que não estávamos nada... nem a atingir o que podíamos, nem a pôr na mesa aquilo que devíamos” (12I34/5).

d) Centrar a atenção no exterior. - Extracto de um diário de campo da 9ª sessão – “As conversas andavam à volta de ter medo [físico] de fazer aquele percurso. Mas ninguém tinha medo. Também não havia por que ter medo!...”.

e) Revelar uma “face luminosa” e esconder as “sombras”. - Ao longo da quarta sessão, por exemplo, foram categorizadas 28 formas de lidar com o medo: 26 centradas no desenvolvimento humano, “positivas” (“Na medida em que eu for capaz de perceber, por dentro de mim, que posso continuar vivendo, existindo e sendo eu para além disso [do que tenho receio de perder], sou capaz de me ir libertando do medo” – 4E16/1) e 2 centradas na conservação, “negativas” (“Uma estratégia que a gente fica tentado a fazer é ficar tudo morno (...) E há muita gente que prefere o nada para evitar o sofrimento 4J24). E, destas últimas, só uma foi apresentada na primeira pessoa.

f) Experimentar níveis baixos de riscos assumidos, de conflitos e de debates. - Exemplo: resultados do SOQ já apresentados em ponto anterior.

Por tudo isto considero que o eixo central da categoria “o quê”, que procura responder à pergunta “o que faz com que uma vida não seja serena, útil e corajosa”, é o DISFARCE

DO MEDO e que o sentido profundo desse disfarce é a NEGAÇÃO DE SI MESMO. O que isto implica, os seus fundamentos e formas utilizadas é o que procurarei desenvolver em seguida.

336

2.2 Definição e caracterização do medo

- “Defini o medo como a mobilização da energia para o recuo. E a mesma energia que mobilizamos para o recuo pode ser mobilizada para avançar. Porque há pessoas que, aparentemente, são fracas, mas descobrimos que não são assim tão fracas pela força que nos mostram ao recuarem em determinadas situações. Isto porque no medo canalizam muita energia para se protegerem. Aquela energia que andaram a esconder pode ser mobilizada para avançar” (3K2/14).

Não são muitas as DEFINIÇÕES e as CARACTERIZAÇÕES DO MEDO que se encontram presentes nos relatos das VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES dos membros do grupo de pesquisa colaborativa. A que acima está colocada é, aliás, das muito poucas absolutamente explícitas. Como se as pessoas, porque o “medo é uma coisa muito abstracta, não é possível explicar-se o medo” (1N1/3), fugissem de definir alguma coisa que, mesmo dentro de si mesmas e certamente por força de todos os factores envolvidos, têm dificuldade em compreender.

- “O medo, para guardar na tal caixa, ou a tal caixa para guardar o medo, é ambas as coisas e é também o que me conduz a elas. Por um lado, um nada a que me apego e que se avoluma, um nada que se esconde atrás da aparência de espaços preenchidos, um nada que eu avolumo, que me recuso a olhar de frente e escondo em espaços sucessivamente mais vastos. O medo é também uma energia “ocupada”, bloqueada, que se revela finalmente inútil e vazia. (…) o medo vai junto com as coisas boas, o medo de as perder. No mesmo sítio onde se escondem as coisas boas, esconde-se o medo” (3E3/4,5).

Contudo, tanto nas definições que enquanto tal existem, como nas situações em que o medo é explicado a partir das suas representações simbólicas (como é o caso desta

última definição acima transcrita157), não é difícil perceber a profunda AMBIVALÊNCIA que nele é sentida e que, aliás, tem paralelos com outros pares de opostos básicos identificados por alguns autores. Por exemplo:

157 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2, sessões 2 e 3, construção de «caixas para guardar o medo»”.

337

- com os sentimentos de PRAZER e DOR como genealogias da regulação vital do distanciamento e da aproximação e do fechamento e da curiosidade, explicados por Damásio (1995, 2000, 2003);

- com os ritmos de CONTRACÇÃO e DISTENSÃO como movimentos de manifestação da vida, apresentados por Blay (1988);

- com aquilo a que, numa linguagem mais poética, mas não menos precisa,

Gibran (1995) chamou a ALEGRIA e a TRISTEZA como pratos inseparáveis de uma balança que pesa o ouro e a prata com que o nosso coração se enche.

E porque aquela ambivalência, mesmo que nem sempre tão claramente verbalizada, é um atributo que se encontra presente nas diversas definições de medo do trabalho do grupo de pesquisa, é a partir da sua análise que procurarei começar por construir uma aproximação ao entendimento do que no medo está contido.

1. A universalidade e a particularidade do medo

- “Uma pessoa tem medo, tem receios, acho que há medos que são universais (...), há outros que, se calhar, têm a ver com o nosso percurso pessoal” (1M2/3). - “Tenho angústias que, umas vezes, não me perturbam a minha vida no dia-a-dia, mas que, outras vezes, perturbam. De maneira que essas angústias são os medos que nós temos e que, quer queiramos quer não, toda a gente tem” (1A1/10). - “O medo é o reflexo das expectativas que criámos” (6M15/1).

Três ideias estão especialmente presentes nos excertos aqui escolhidos para exemplificar esta ambivalência do medo.

A primeira, e a que mais claramente a explica, é que se o medo (enquanto emoção básica), é uma reacção pré-organizada do nosso organismo biológico a certos tipos de estímulos sobre a amígdala do sistema límbico, enquanto emoção secundária (e embora continue a ser resultado de disposições inatas), tem subjacente a experiência individual. Aí cabem, por isso, todos os condicionamentos, conflitos, desesperos,

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violências e desencantos de uma vida que fazem com que o medo também seja único e personalizado (Damásio, 1995; Krishnamurti, 2002).

A segunda é que, apesar de serem diversas as variantes das expressões que se referem a este impulso emocional que “toda a gente tem” (e que está associado ao princípio da dor e “perturba no dia-a-dia”) (Damásio, 1995; Marina, 2006), é pela forma como é usado que se faz a distinção entre os covardes e os heróis (Neill 1971).

A terceira é que se o desejo é condição necessária da vida (por isso, universal), já “as expectativas que criámos”, os desejos inferiores (Peña y Lillo, 1991), são resultado de uma criação social ou individual. São, por isso e muitas vezes, necessidades deficitárias falsas que desfiguram a verdade profunda da realidade do Ser e aprisionam no medo a vida do homem (Peña y Lillo,199; Guenther & Combs, 1980).

“O medo está relacionado com a perda do objectivo ou o objecto desejado. Estamos convencidos que, se falharmos, não conseguiremos obter aquilo que queríamos. Passaremos a ser uns falhados, uns perdedores. Seremos rejeitados. Sentiremos desprezo por nós próprios. (...) Ter esperança é bom, mas criar expectativas já não é. Onde existe a expectativa, a desilusão anda sempre a rondar por perto” (Weiss, 2000:100).

2. A evidência e a opacidade do medo

- “A minha caixa é um misto de vazio e de preenchimento. Na verdade são 1, 2, 3 4, 5 caixas que se metem umas dentro das outras como uma Matrioska, as bonecas que se metem umas dentro das outras. E o medo está lá, na última” (3E3/5). - “Então pus esta cor, que achei muito colorida e muito alegre, e que acho que é a minha fachada do medo – em certas alturas que estou com medo não o mostrar” (3M2/14). - “Acho que as bocas guardam os medos… pelo menos no meu caso, nunca falei muito sobre os meus medos às pessoas” (4L9/5). - “Este seria um peixe-balão, estes arames pretendiam ser aquelas espinhas e, ao mesmo tempo, a situação de engolir os medos (...). Dos medos se fazerem maiores (...), mais fortes, mais agressivos, mas de estarem lá dentro” (4L9/6).

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- “É como quem procura tapar buracos, colocando um tapete em cima para disfarçar. Numa hora de distracção pomos-lhe o pé em cima e caímos. O que será que eu guardo na minha caixa dos medos e que não quero recordar?” (6U7/13).

E nestas histórias de vida (porque as representações simbólicas do medo também foram representações de nós mesmos), leio outra ambivalência do medo – um medo que se revela quando, por medo, se esconde. Dissimulado de brandura, de prudência, de preguiça, de azáfama, de culpa, de poder, de tensão, de dogma... (Gil, 2005; Moore, 2000; Peck, 2002; Lowen, 1984; Russel, 2001, Morin, 2002), é um medo “tapado”, “guardado”, “escondido”, “silenciado”, “engolido” (por isso cada vez “maior, mais forte, mais agressivo”) que se perpetua num círculo de repetição e mora na pouca consciência das possibilidades de definição de novos caminhos (Feitosa, 2006; Trigo, 2006):

- na não consciência – porque a pessoa nem o reconhece; - na não responsabilização – porque a pessoa não o assume; - na não decisão – porque a pessoa não se resolve; - na não execução – porque a pessoa não faz e não cria a mudança.

É, por isso, e muitas vezes também, um medo “colorido”, “alegre” e fingidor que finge tão completamente que (talvez) nem chegue a fingir que é dor a dor que até (já) não sente158.

“Nosso medo pode ser paralisante, de modo que só podemos funcionar reprimindo e negando o medo. Eliminamos o sentimento tensionando o corpo e restringindo a nossa respiração, mas ao fazer isso eliminamos também a possibilidade da alegria” (Lowen, 1997:59).

3. A pluralidade e a singularidade do medo

- “Os medos eram sempre o mesmo medo” (3O4/4).

158 Alusão a Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente...” http://www.tanto.com.br/fernandopessoa-autopsicografia.htm (2007).

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Se, em capítulo anterior159, já foi possível apresentar uma relação simbólica de 241 medos diferentes recolhidos em diversas leituras e situações, nas transcrições das sessões do grupo de pesquisa foram identificados mais 186 – o que perfaz um total de 427 exemplos de medos aqui apresentados. Contudo, esta frase tão simples, “os medos eram sempre o mesmo medo”, faz-me reconhecer o que considero ser a segunda ambivalência do medo.

À medida que se procura avançar para níveis mais profundos de classificação, vai ficando claro que, na parafernália de medos com que diariamente lidamos (e nas imensas caras e máscaras com que ele se cobre e disfarça), reside um único medo que está subjacente a todos os outros medos, o medo de não sermos suficiente. Aquilo que Jeffers (1991) identifica como sendo o nível de medo mais profundo, o medo de não ser capaz de lidar com o que a vida trouxer – “Tinha medo de me deparar com uma situação que depois não tivesse maneira de escapar, nem de fugir, nem de pedir ajuda” (3O4/4).

Por isso, e muito embora estas duas frases tenham sido ditas, certamente, em relação a uma situação de vida muito particular, esta ambivalência de pluralidade/singularidade do medo tanto pode ajudar (sem preocupações de carácter teórico-metodológico), a pôr um termo na construção de uma lista que se afigura como interminável, como a acreditar (porque assim é possível circunscrever o medo), que alguma coisa pode ser feita no sentido de apaziguar com alguma eficácia o que de tanta dor se reveste.

4. O realismo e o irrealismo do medo

- “O medo é também parte de realismo. Agora até que ponto é que é realismo, e até que ponto é não querer ir lá... Mas os dois princípios são muito activos. O medo é princípio de realismo. Quem não tem medo é doido!” (4I1/2).

Tal como em Goleman (2005), também aqui podem ser identificadas duas espécies de medo – o medo construtivo, positivo, apropriado que, enquanto chamada para a acção, ajuda a sobreviver; e o medo destrutivo, negativo, desadequado que, sendo prejudicial para o próprio e para os outros, impede o processo de desenvolvimento humano.

159 Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros”.

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Mas o que marca a fronteira entre os dois? De acordo com Moffitt (2003b), não é o impulso emocional em si mesmo, mas a percepção-interpretação, ajustada ou distorcida, da situação em causa.

- “Outros medos (...) da rejeição, de ficar sozinha... também gestos que podem não significar nada, mas que eu interpreto como de rejeição” (3E6/1).

E isto deixa no ar uma outra pergunta, a mesma feita por Paul Watzlawick (1991) – será que “a realidade é real?”. Se, conforme este autor, existe uma realidade de primeira ordem (aquela cujas propriedades físicas e objectivas são acessíveis a um consenso de percepção e a uma prova verificável e científica), e uma realidade de segunda ordem (aquela que atribuindo um significado e valor a essa realidade, é constituída pelas percepções subjectivas, muitas vezes contraditórias), só no reino da ilusão e do absurdo se pode aceitar a existência neste campo de uma perspectiva única, de uma verdade eterna e... “real”.

Como, então, frente a uma realidade tão plural, criar condições para um discernimento que permita que o indivíduo não perca, por causa do medo, “a união com a sua própria essência” (Trigueirinho, 1999:373)? Em Lowen (1997:42) encontro uma resposta – é a capacidade de acção da pessoa que o sente que cria essas condições. Aquilo que, no conceito de ACÇÃO INTENCIONAL, implica “o verdadeiro agir do ser” (Sérgio, 2005:22) e nos remete para a ambivalência seguinte.

5. A força e a fraqueza do medo

- “Quis fazer a caixa de um material que facilmente pudesse amarfanhar, porque não quero viver com medo, porque sei que o medo perturba a vida” (3A2/16). - “Eu gosto dos meus medos. Na verdade chateiam-me imenso quando os tenho, mas depois, quando me ajudam a superar, a atingir objectivos, são fantásticos porque percebo que eles também foram importantes para isso. Eu não quero que eles fiquem aprisionados, quero que eles se transformem em algo. Então, aqui, nesta parte da caixa, entra “o medo que mete medo”; e, por aqui, sai “só medo”. (...) Aqui entra o medo que bloqueia, o medo que não permite avançar (“o medo que mete medo”), mas depois de ser filtrado pelas memórias, pela razão, pela ideia de que

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o medo é meu, e que é importante e que faz parte de mim, sai “só medo”. E “só medo” é a ideia de que é um medo que eu posso dominar, e que posso usá-lo a meu favor. Porque “medo que mete medo” não é “só medo” (3J4/24-25). - “Eu construí uma mão (...) pelo profundo simbolismo que lhe está associada: mão aberta ou mão fechada; a mão que me foi dada, a mão que me foi recusada; a mão que tenho contraída, a mão que tenho relaxada; a mão que dá e recebe (semi-aberta, disponível, que afaga) é a mesma mão que agride e que recusa; a mão que esconde, a mão que revela. Com todas elas eu estou, mas a mão é minha, é do meu poder e de mais ninguém” (4U6/2,4). - “A caixa que eu gostava de fazer para os medos era uma daquelas caixas dos três R’s, reduzir, reciclar e recuperar – (...) a tentativa de reduzir os medos, de os reciclar, de os reeducar e de os transformar em coisas positivas, de conseguir servir-me deles um pouco para o meu crescimento” (4L9/7).

“Porque «medo que mete medo» não é «só medo»”, a escolha entre “amarfanhar” ou “viver perturbado”, entre “ser dominado” ou “usá-lo a favor de si mesmo”, entre lutar ou fugir, depende da pessoa e da situação (Lowen, 1997) – porque “a mão é minha, é do meu poder, e de mais ninguém”. Por isso, quando a ACÇÃO se revela plena de sentido ou intencionalidade (Sérgio, 2005), revela também a bravura (talvez o segredo) de quem é capaz de transformar o medo em energia positiva (Neill, 1971) – “reduzindo”, “reciclando”, “recuperando”, isto é, “reeducando”.

Será por causa deste movimento oscilante entre força e fraqueza que o Sermão da Montanha me vem insistentemente à memória?

“Felizes os pobres em espírito porque deles é o Reino do Céu. Felizes os que choram porque serão consolados. Felizes os mansos porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mateus 5, 3-6).

6. A ameaça e o desafio do medo

- “Nunca tinha reflectido sobre o medo desde a sua perspectiva positiva! (...) Tive de reflectir em mim mesmo, nas minhas capacidades, nas minhas forças, buscá-las ou rebuscá-las para vencer

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certos medos (...) quando os considerasse verdadeiros obstáculos para singrar nos meus sonhos” (Extracto de um diário de campo da 1ª Sessão). - “Deixem que alguns dos meus medos continuem (...). Eles são um desafio para mim. Destes medos que são desafios eu não devo sentir medo. Ao contrário, são a minha força. Permitem que eu canalize a minha “energia de recuo” para avançar” (Extracto de um diário de campo da 12ª Sessão).

Muito ligada com a anterior, está esta sexta ambivalência. A fraqueza ou a força dos medos depende da forma como se olha para eles – enquanto ameaças ou enquanto desafios – e a forma como se olha para eles depende, em última análise, da forma como olhámos para nós mesmos, isto é, do nosso autoconceito (Guenther & Combs, 1980).

7. A permanência e a mutabilidade do medo

- “Eu não sei quantas vezes já fiz este exercício. Tenho sempre a mesma sensação de que, a meio, me perdi, que me enganei. Não sei como é. Faço isto quase todos os anos (...) e acontece-me sempre isto” (10E6/1). - “Qual é hoje o meu monstro que está lá no centro à minha espera?” (10E7/2).

Dizem os budistas que, na prática do Zen, o difícil (mas também o alvo da prática), é manter a “mente do principiante” – a mente que, sendo rica e suficiente em si mesma, é, ao mesmo tempo, uma mente vazia e uma mente pronta.

“Na mente do principiante há muitas possibilidades; na mente do perito há poucas. (...) Esse é também o verdadeiro segredo das artes: ser-se sempre um principiante” (Bercholz & Kohn, 1993:242-243)

Assim, tal como o segredo da prática Zazen não reside numa grande compreensão, mas numa mente aberta (já que só sabe quem não sabe, sabendo) também este atributo do medo nos faz compreender que qualquer ponto de chegada é ponto de partida pois o medo só deixa de o ser quando o é – porque não se é, mas se vai sendo.

344

2.3 Relação de medos e efeitos do medo

Tendo como pano de fundo um conceito de desenvolvimento humano que vê a pessoa “como ser transcendente (possibilidade de si mesmo), como alguém que se relaciona com o outro em posição de igualdade (...) e numa relação dialéctica com o mundo (...) criando e re-criando ambientes que o tornam cada vez mais humano” (Jaramillo,

2005a:90), os 186 MEDOS e seus EFEITOS experimentados ou percepcionados pelos membros do grupo de pesquisa e identificados nas transcrições das sessões, foram organizados em função160:

a) da relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o cosmos; b) do significado intrínseco que lhes foi atribuído no contexto de análise, c) da dimensão da corporeidade que aparece como mais visível.

E esta triple categorização, vista agora à luz dos disfarces e das dualidades do medo, também revela o que nos pode fazer perder na negação de nós mesmos e das nossas possibilidades humanas.

1. Os medos, nós e os outros... no mundo

Enquanto que os “medos do mundo” identificados na análise das nossas sessões estão, na sua quase totalidade, relacionados com medos físicos exteriores (medo do escuro, dos bichos, das alturas...), muitos dos “medos da pessoa consigo mesma” e dos “medos com os outros” sugerem dificuldades de comunicação intra e interpessoal – medo da loucura, da decisão, da avaliação, da dependência, do compromisso, de ser diferente, do conflito, da intimidade consigo mesmo e com os outros... – “temos medo da solidão estando sós, e temos medo de continuar sós, estando com outros. E que os outros nos deixem sós” (4E20/1).

“A comunicação interpessoal (...) é um veículo de configuração da nossa humanidade e daqueles que nos rodeiam. (...) A autêntica comunicação interpessoal parte de uma

160 Ver Anexo 4 – Descrição das Categorias de Análise.

345

interiorização que (...) supõe um encontro comigo mesmo - numa reflexão sobre as grandes interrogações da minha natureza e da minha missão relacional no mundo. Só assim a minha comunicação será rica e geradora de vida humana nos outros”. (Marroquin, 1995:21).

a) Temos medo de nós mesmos, mas também temos medo dos outros. - “Acho que um dos grandes medos que tenho é de mim própria e é da loucura. Esta coisa de não fazer o que devo… Sempre tive muito medo” (7I16/2). - “[Tenho] medo das amizades falsas” (3K1/16). - “Tenho medo da confusão, tenho medo dos conflitos” (7I2/4).

b) Temos medo da solidão, temos medo de estar ou de ser deixados sós, mas também temos medo de estar acompanhados e de partilhar a vida. - “O medo de estar deslocada, o medo de ser abandonada” (4U6/7). - “Medo de ficar só, ou medo de perder o controlo sobre o outro. (...) o medo de perder o filho” (6J33/2). - “Às vezes não fazemos coisas porque não queremos que os outros saibam que nós sentimos determinadas coisas” (6J31/2). - “O medo de tocar e de ser tocado” (6E11/10). - “Chegou a minha vez, que é enfrentar um dos meus medos, que é falar sobre as minhas vivências” (9L1/1).

2. Os medos e as necessidades básicas*

Vivemos preocupados com os efeitos que as palavras e os gestos têm, amedrontados connosco, com as pessoas e com o mundo porque não somos, ou não nos sentirmos, (suficientemente) amados, porque não nos amamos tal como somos. Por isso, a divisão dos medos em categorias independentes de “eu-outros-mundo” também é, em si mesma, uma ilusão. Dado que a relação com os outros e a visão do mundo são projecção do nosso auto-conceito (Guenther & Combs, 1980), ter medo dos “outros” ou do “mundo” é uma projecção do medo de nós mesmos, da nossa falta de auto-estima, das nossas inseguranças, nos nossos falhanços.

346

- “A maneira de olhar o exercício físico, que acaba por ser, de algum modo, o olhar o meu corpo” (3E8/1). - “Temos medo do mal que nós podemos fazer as nós mesmos e aos outros. E temos outro medo, que é o mal que as outras pessoas nos façam a nós. De certa maneira, é um pouco o medo da solidão – o medo do relacionamento interpessoal e de querer agradar e de querer ser amado. Acho que é quase um denominador comum de quase todas as conversas” (4M16).

Por isso, muitos dos medos identificados também indicam que, em diversas áreas da nossa vida, vivemos nos primeiros níveis das necessidades humanas – de manutenção fisiológica, de segurança, de pertença a alguém, de auto-estima e estima pelos outros (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980).

- “Medos mais... comezinhos: o medo de cair, de me magoar fisicamente (associado a tudo quanto é exercício físico)...” (3E5/1). - “Tenho medo de que não gostem de mim” (7I2/6). - “Tenho (...) algum receio do que os outros vão pensar, do que os outros vão dizer” (4L9/12).

Prisioneiros, por isso, do princípio da escassez (de segurança, de confiança, de amor....), que nos impede arriscar, avançar e crescer, precisamos muitas vezes de um “alimento” tão constante que temos de o ir buscar à permanente aprovação, apoio e bênção que (em constante movimento de causa-efeito), os outros possam dar à nossa existência.

- “Porque eu tinha que ter a responsabilidade de fazer com que as coisas corressem bem. (...) Mas o objectivo era as pessoas ficarem a achar que eu sou o máximo (4U22/1; 23/1)161.

3. Os medos e as necessidades do Ser

Mas, em “contraponto”, aparecem OUTROS MEDOS muito diferentes, os “medos de não ser”, que poderíamos chamar “medos de gente madura”. São medos que correspondem às necessidades de crescimento, de significação, de sentido, de auto-suficiência, de justiça, beleza, criatividade... – as metanecessidades, aquelas que, sendo as

161 Categorizado como “porquê – causas do medo”.

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necessidades mais elevadas, também são muito mais distintamente humanas (Maslow, 1991):

a) O “medo da dependência” que, nalgumas situações, é o medo de quem ama. - “E, neste momento, qual é o medo que eu tenho? É o de, na minha velhice, ficar assim mesmo e ter de viver na dependência dos meus filhos” (3A2/11).

b) O “medo de não corresponder aos próprios valores”. - “[Medo de] não fazer aquilo que devo” (7I17/3). - ”(...) Esse tem sido um dos grandes medos meus de, às vezes, não conseguir ser uma flor para aqueles que cruzam a minha história” (10K1/9).

c) O “medo de não corresponder às próprias expectativas”. - “Medo de (...) falhar profissionalmente” (3M1/10). - “Um medo que eu tenho constantemente é o medo da normalidade (...) o medo de ter uma vida comum. (...) Não me interessa muito a vida normal” (3J4/19).

Mas será que são medos, ou são desejos e sonhos? O medo pode ser tão difícil de interpretar quanto o sonho. Se o medo surge e não sabemos, muitas vezes, como nos possui, não poderá confundir-se com o sonho que nos surpreende e não sabemos, também muitas vezes, de onde vem e de que modo nos toma? Mas se os dois nos apoquentam, a diferença é que o medo nos limita e o sonho tantas vezes nos eleva. Então, se assim é, estes “medos de gente madura” não serão medos, mas desejos e sonhos.

4. Efeitos do medo – o sofrimento e a negação da acção

Se olhar a categorização dos EFEITOS DOS MEDOS A PARTIR DO SEU SIGNIFICADO

INTRÍNSECO, é possível ver que quase todas estas sub-categorias reúnem efeitos do medo que foram apresentados como sendo negativos e, dentro deles, muitos congregam efeitos que, de uma forma ou outra, são portadores de algum tipo de sofrimento:

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a) Sofrimento – “O medo em mim (...) é uma coisa incomodativa e é uma coisa que acaba por estar sempre presente de uma forma fininha” (4L9/6).

b) Somatização – “Deu-me um problema nas costas que eu fiquei lá parado” (3J4/15).

c) Sentimento de culpa / avaliação – “Culpava-me por não fazer o que devia” (7I3/1).

Por outro lado, quase todas as subcategorias dos efeitos do medo também podem ser vistas como tendo subjacente a negação de um ou mais dos movimentos da acção:

a) A não consciência. - “Criação de um mundo irreal” – “perturba a nossa realidade e, quando uma coisa nos ofusca os olhos, perdemos a noção do real” (3A1/16).

b) A não responsabilização. - “Criação de dependências”: “estava a precisar que me dissessem «pronto, não vai mais acontecer...»” (3O4/6).

c) A não consciência / Não responsabilização. - “Anulação da diferença” – “torna-nos todos iguais” (6U7/16).

d) A não execução. - “Paralisação” – “fiquei paralisada, sem saber o que havia de fazer” (6E13/4). - “Dificuldade de comunicação” – “atrapalha a vida em alguns aspectos, particularmente (....) os aspectos de relacionamento pessoal” (4L9/6).

São, por isso, efeitos que nos distanciam da possibilidade de aproximação à vivência como pessoas adequadas e, consequentemente de padrões de vida mais elevados:

“Pessoas adequadas (...) [são] pessoas, capazes de pensar por si, de examinar todos os dados presentes em cada situação e tomar ali as decisões mais acertadas e mais eficientes possíveis e de viver em conformidade” (Guenther & Combs, 1980:130).

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A única subcategoria de efeitos que tem subjacente um, ou mais, dos movimentos da acção e da mudança é aquela que denominámos “estimulação da acção”, a que congrega efeitos que podem ser considerados positivos e nos aproxima daquela adequação:

- “[São] positivos quando aprendo a enfrentar aquilo que me faz medo” (6I2/2). - “[Por causa do medo da normalidade] sou patrão de mim próprio” (3J4/17).

5. Medos e efeitos do medo – uma percepção holística

Reconhecendo que, embora não se pretendesse rígida, a CORRESPONDÊNCIA DOS MEDOS E EFEITOS DO MEDO COM OS SETE CORPOS (tabela III.9) é, em si mesma, uma artificialidade (já que a nossa identidade corpórea não é constituída por corpos independentes mas por uma complexidade multidimensional – Bohórquez & Trigo, 2006), pela interpretação geral dos resultados aí obtidos fica evidente que a dinâmica do medo, embora comece e acabe numa emoção e tenha no corpo físico o seu palco (Damásio, 2000), afecta o ser humano em todas as suas dimensões.

Assim, e apesar de quase não apresentarmos resultados que digam respeito ao corpo sensitivo e às nossas capacidades perceptivas (extra-sensoriais, intuitivas e místicas), fica claro que o medo, afectando cada um dos corpos constituintes da nossa corporeidade, afecta a nossa totalidade humana.

E se poucas são as referências ao corpo sensitivo, acredito que isso não se deve, muito pelo contrário, ao facto de esta nossa dimensão não ser afectada, mas ao desconhecimento e à nossa falta de consciência e sensibilidade em relação às potencialidades que nesse campo existem. É que, sendo quase todo o grupo de pesquisa constituído por pessoas portadoras de uma cosmovisão ocidental e de uma cultura urbana e com uma formação escolar de nível superior, terão, por “norma”, muito mais prática de utilização e aquisição de conhecimento a partir do hemisfério cerebral esquerdo, racional e lógico, do que do direito, intuitivo, holístico, integrador, emocional (Sisk & Torrance, 2001; Shalcross & Sisk, 1989; Sousa et al, 1998). Contudo, também por isto, tudo indica que, estando o todo presente na parte e a parte no todo, existe a

350

possibilidade de através do todo(s), consciencializar-assumir-sair-transcender a situação da parte.

Tipos de Medo Efeitos do Medo Corpo físico Medo de me afogar (4E17/1) Lembro-me de (...) ver a fotografia de um rapaz (...) e sentir enjoo, sentir náusea (3O4/6). Corpo emocional O medo que tem a ver (...) com os O medo às vezes tira a nossa alegria, a nossa relacionamentos afectivos (4L8/6). felicidade (6K4/4) Corpo mental Medo de perder o controlo sobre a nossa Planeava tudo (...) e, chegada a altura, surgia razão (6J31/2) sempre uma razão, ou um pretexto, qualquer coisa (7I3/1). Corpo transcendente Medo de morrer em pecado mortal O medo rouba a liberdade (6L1/2). (3A2/7). Corpo cultural Medo de não estar à altura (2J1/5). Tapamo-nos da cabeça aos pés, numa capa (...) que nos torna todos iguais (6U7/13). Corpo inconsciente Medo de alguns sonhos (3M1/4). O meu problema é das coisas que eu nem tenho consciência que poderia fazer mas que não faço porque tenho medo (4U38/2). Corpo sensitivo Medo da minha experiência [intuitiva] de = exemplo não significativo = Deus (7K4/3). Tabela III.9 – Correspondência dos sete corpos com tipos e efeitos de medo identificados no grupo de pesquisa.

6. O sentido dos efeitos do medo: a negação de nós mesmos

- “E lembro-me de todas as semanas ter de me ir confessar. Havia perguntas que os padres faziam que eu nem sabia o que aquilo era mas, pelo sim pelo não, eu dizia sempre que sim (...). E eu nem sabia o que eram maus pensamentos ou maus desejos, com sete ou com oito anos nesse tempo. Mas eu pensava (...) «pelo menos já me livro de tudo; levo alguma penitência, eu rezo tudo e a coisa fica»” (3A2/7). - “Seja o que for, eu, pelo sim pelo não, digo «desculpa». É absolutamente automático. Nem que não tenha nada a ver comigo muitas vezes. E depois é muito difícil retirar um pedido de desculpas” (7I16/1).

Quatro são as sessões que distanciam as situações relatadas que aqui coloco. Acredito, por isso, que os dois discursos não se influenciaram – mas, além daquela distância e de terem sido proferidos por pessoas diferentes, referem-se também a épocas, contextos, idades e estados da vida muito distintos.

351

Contudo, a semelhança entre as duas frases salta à vista pela ligação que estabelecem entre o medo e a culpa: um mesmo desconfiar de si mesmo; um mesmo assumir, “pelo sim pelo não”, de uma falta ou erro que não é seu; um mesmo querer libertar desse peso, nem que isso acarrete algum tipo de expiação. Em suma, um mesmo permitir que, pela fricção entre as nossas experiências interiores e exteriores, o eu dos acontecimentos se deixe levar por forças que, em última análise, desvirtuam ou impedem a verdade do Ser (Moffit, 2003b; Ribeiro Dias, 2000:141).

Categorias de Efeitos do Medo Referências % Alterações da vida quotidiana 6 4.26 Anulação da diferença 3 2.13 Criação de dependências 9 6.38 Criação de um mundo irreal 11 7.80 Desistência do Eu 20 14.18 Dificuldade de comunicação 18 12.77 Estimulação da acção 4 2.84 Fuga das situações 12 8.51 Não consciência 3 2.13 Paralisação 14 2.93 Resistência ao compromisso 4 2.84 Sentimento de culpa / avaliação 8 5.67 Sofrimento 14 9.93 Somatização 15 10.64 Total 141 Tabela III.10 – Percentagens de categorias de efeitos do medo identificados no grupo de pesquisa.

Por outro lado, se olharmos os EFEITOS DO MEDO a partir do PONTO DE VISTA

QUANTITATIVO (tabela III.10), a subcategoria que apresenta uma maior percentagem de ocorrências é aquela que denominámos “desistência do eu” (14.18%):

- “Não me importava nada de, de repente, aparecer com 60/70 anos” (3O4/13). - “O meu «mais eu» desconhecido porque nem me atrevo a olhar para ele” (4U38/4). - “O medo pode fazer com que abandonemos coisas que dantes gostávamos” (6K7/3).

Mas se esta subcategoria é aquela que congrega relatos em que, de uma forma mais directa, fica evidente a perda do sentido de identidade, entendo que esta perda também está subjacente em todas as outras – perde-se consciência do “eu real” de cada vez que se anulam as diferenças, de cada vez que se criam dependências, de cada vez que se foge das situações, de cada vez que se limita a comunicação, de cada vez que se sofre “sem sentido”, etc. - “O sofrimento “com sentido” é capaz de enfrentar o medo e permite chegar até à medida das nossas possibilidades. A verdadeira aprendizagem é a que nos possibilita descobrir o porquê,

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para quê, de toda a realidade. Só o “porquê” e o “para quê” unidos formam a ponte que nos permite superar o medo e depois vencer o “sem sentido” e tornar a realidade inteligível, com sentido e amada (6L1/2c).

Julgo, por tudo isto, que se quiser encontrar um denominador comum para os efeitos “negativos” do medo, o posso encontrar, exactamente, na “negação de si mesmo”.

7. Outra face dos medos e dos efeitos do medo – nós e os outros... no mundo

Mas se os medos, por si, só provocam efeitos, “mexer nos medos”, reflectir e trabalhar sobre eles, também os provoca. Em mais do que uma sessão do grupo, os redactores da acta concluíram-na assim:

- “O nosso encontro terminou pelas 20.20 horas e, como se vem tornando hábito, as pessoas despediram-se e foram felizes e inquietas para casa...” (acta da 5ª sessão).

Contudo, pelo menos neste caso, mexer nos medos em contexto de formação também levou a entender que estes, ao invés de sempre nos limitarem e separarem das outras pessoas e da nossa essência, também nos podem ajudar a ganhar consciência de que somos seres em relação, a perceber o que nos é comum e que todos estamos ligados:

- “O medo faz-me recordar que sou um ser finito, não suficiente e que preciso do outro (o próximo) e do Outro (o transcendente) para enfrentar a vida” – extracto de um diário de campo.

2.4 Síntese do “o quê”

Apesar de, em si mesmo, não ser coisa boa nem má, mas circunstância da própria existência humana, o medo afecta a nossa vida pela forma como é olhado e sentido.

1. Os medos, com os seus múltiplos DISFARCES, encontram “legitimidade” (força e espaço) nas ambivalências do medo. Com a justificação, consciente ou não, de que

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uma coisa pode ser (só) a outra, perdemos de vista a riqueza contida na totalidade dessa ambivalência e atribuímos os medos e suas motivações às circunstâncias ou

a outros. Deste modo, e utilizando muitas vezes RESPOSTAS REFLEXAS em vez dos movimentos da acção e da mudança, DESCONHECEMOS, RECUSAMOS ou NEGAMOS

também parte da VERDADE DE NÓS MESMOS e permitimos que o medo se converta

num disparador de DUALIDADES desintegradoras e limitadoras e se revele, por isso,

como INFIDELIDADE A NÓS MESMOS. Aí, e enquanto separação do “verdadeiro agir do ser” (Sérgio, 2005b:22), o medo mora na pouca consciência das possibilidades de definição de novos caminhos.

2. O que é, então, uma vida seja serena, útil e corajosa? Na introdução a esta

pesquisa, defini uma vida SERENA como sendo de descoberta de relação e de sentido dos diversos tempos de vida, uma vida ÚTIL como sendo portadora de valor

e uma vida CORAJOSA como sendo uma vida de plenitude. Agora, frente ao medo e à forma como pode ser olhado e sentido, posso dizer que uma vida assim é uma vida em que: em vez da negação de si mesmo, se reconhece a própria essência; em vez do disfarce, se vive a integridade; e em vez da dualidade, se constrói a totalidade.

“o que faz com que uma vida “o que faz com que uma vida não seja seja serena, útil e corajosa?”. serena, útil e corajosa?”. Disfarce Integridade Desconhecimento e Negação de si mesmo Reconhecimento e Unidade de si mesmo Dualidade Totalidade Tabela III.11 – Síntese da leitura.

3. Como se faz, neste caso, a passagem do “não ser” ao “ser” de uma vida assim?

Faz-se pela ACÇÃO. Este é o eixo central e o propósito do ponto seguinte.

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355

356 QUEM

definições e caracterizações do medo definição de medo representações simbólicas do medo

corpo emocional-mental

medo da decisão corpo emocional-mental-espiritual ou transcendente

corpo físico medo da intimidade-comunicação consigo mesmo corpo físico-emocional-cultural

corpo mental

medo da loucura corpo emocional-mental corpo físico-emocional

corpo cultural medo de não corresponder aos próprios valores corpo cultural-mental

relacionados com o Eu corpo espiritual ou transcendente medo de não corresponder corpo emocional às próprias expectativas corpo mental

corpo espiritual ou transcendente

corpo mágico ou místico medo do existencial corpo espiritual ou transcendente-cultural

medo do medo corpo mental

corpo físico relação e explicação dos medos 1. O QUÊ medo do sofrimento físico corpo inconsciente 2.5 Categorias de Análise corpo físico-espiritual ou transcendente corpo cultural medo da avaliação dos outros corpo cultural-emocional

corpo físico

medo da dependência corpo emocional corpo físico-emocional

medo da intimidade-comunicação corpo emocional com os outros

relacionados com os Outros medo de ficar só corpo emocional

medo de mitos corpo cultural

medo de ser diferente corpo cultural

medo do compromisso corpo cultural

corpo emocional medo do conflito corpo emocional-mental

medo do desconhecido corpo emocional

corpo físico relacionados com o Cosmos medo do cosmos corpo transcendente

efeitos do medo perguntas do grupo que ficam em aberto COMO POR QUÊ PARA QUÊ 1. QUEM 2.1 definição de medo 2.2 relação e explicação dos medos

2.3.1.1.1 corpo mental

2.3.1.1 alteração da vida quotidiana 2.3.1.1.2 corpo físico 2.3.1.1.3 corpo físico-emocional

2.3.1.2.1 corpo emocional

2.3.1.2.2 corpo transcendente

2.3.1.2.3 corpo mental

2.3.1.2.4 corpo inconsciente 2.3.1.2 desistência do eu 2.3.1.2.5 corpo emocional-mental

2.3.1.2.6 corpo físico-emocional

2.3.1.2.7 corpo mental-emocional-transcendente

2.3.1.3 estimulação da acção 2.3.1.3.1 corpo mental

2.3.1 na relação com o EU 2.3.1.4 não consciência 2.3.1.4.1 corpo mental

2.3.1.5.1 corpo emocional

2.3.1.5.2 corpo mental 2.3.1.5 paralisação 2.3.1.5.3 corpo físico-emocional

2.3.1.5.4 corpo emocional-mental

2.3.1.6.1 corpo mental 2.3.1.6 sentimento de culpa / avaliação 2.3.1.6.2 corpo emocional-mental

2.3.1.7.1 corpo emocional 2. O QUÊ 2.3 efeitos do medo 2.3.1.7.2 corpo físico 2.3.1.7 sofrimento Categorias de Análise 2.3.1.7.3 corpo físico-emocional 2.3.1.7.4 corpo emocional-mental

2.3.1.8 somatização 2.3.1.8.1 corpo físico

2.3.2.1.1 corpo cultural 2.3.2.1 anulação da diferença 2.3.2.1.2 corpo emocional

2.3.2.2 criação de dependências 2.3.2.2.1 corpo emocional

2.3.2.3.1 corpo mental

2.3.2.3.2 corpo emocional

2.3.2.3 dificuldade de comunicação 2.3.2.3.3 corpo emocional-mental

2.3.2 na relação os Outros 2.3.2.3.4 corpo físico-emocional 2.3.2.3.5 corpo emocional-cultural

2.3.2.4.1 corpo emocional

2.3.2.4.2 corpo mental 2.3.2.4 fuga das situações 2.3.2.4.3 corpo físico

2.3.2.4.4 corpo físico-emocional

2.3.2.5 resistência ao compromisso 2.3.2.5.1 corpo cultural

2.3.3.1.1 corpo cultural 2.3.3 na relação com o Cosmos 2.3.3.1 criação de um mundo irreal 2.3.3.1.2 corpo mágico

2.4 perguntas do grupo que ficam em aberto

3. COMO 4. POR QUÊ 5. PARA QUÊ

Os mestres da Índia relatam um conto muito significativo. Um leão estava sedento. Dirigiu-se a um lago que havia na selva com a intenção de aí saciar a sua sede. Quando ia beber nas suas águas, viu nelas reflectido o seu próprio rosto. Atemorizado, pensou: “Este leão deve ser o guardião do lago! É melhor não confiar!” E foi-se embora a correr. Mas como tinha muita sede, voltou pouco depois. Ao ver o leão na água, rugiu para o assustar e então viu o rosto feroz do guardião do lago. Aterrorizado, saiu a correr. Mas tinha tanta sede que não conseguiu resistir. Por isso voltou de novo ao lago, disposto a morrer por ele. Aproximou-se das águas. Ali continuava o guardião. Enfureceu-se, mas o leão do lago também. O leão estava aterrado, mas era tanta a sua sede, que rapidamente meteu a cabeça na água, esperando ser devorado pelo leão do lago. Então, a imagem desapareceu. O leão tinha confrontado o terror e o fantasma do medo tinha-se desfeito. Ramiro Calle

pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, 3. Como ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa?162

Com base na leitura dos dados da pesquisa, procuro agora responder à pergunta central desta investigação, aquela que (tendo subjacente a ideia da interligação entre o crescimento do educador e o crescimento do educando), procura perceber de que maneira se podem criar competências que, no processo de desenvolvimento humano, possibilitem lidar com o medo.

3.1 A vivência da totalidade

De entre o conjunto das cinco categorias-base que desenham os resultados da análise de dados, a categoria processual (“como”) é aquela que congrega uma maior concentração de sub-categorias criadas com base em referências da revisão bibliográfica do tema da investigação. Neste contexto e na distinção entre:

a) formas de lidar com o medo que se centram na CONSERVAÇÃO porque, embora conscientes, se revelam muitas vezes “sem sentido e não passam163 de mera agitação ou capricho” (Sérgio, 2005b:19);

b) formas de lidar com o medo que se centram no DESENVOLVIMENTO HUMANO porque são “o resultado (...) do nível de consciência que orienta o movimento e do poder da mudança” (Feitosa, 2006:89),

162 Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo. 163 Os sublinhados são meus.

357

o conceito de ACÇÃO e, nomeadamente, de ACÇÃO INTENCIONAL, aparece como central.

No seu sentido profundo implica TOTALIDADE e, por extensão e afinidade, COERÊNCIA.

Entre as várias manifestações que esta tríade ACÇÃO-COERÊNCIA-TOTALIDADE assume, quero começar por realçar especialmente uma que, trespassando várias das categorias- base, foi vivida como uma preocupação repetida ao longo do trabalho do grupo de pesquisa – a necessidade de perceber e encontrar a forma de, em contexto de educação de adultos, fazer uma ligação dinâmica entre o pensar e o sentir. Presente também em trabalhos de autores como Saturnino de la Torre e Maria Candida Moraes (2007)164 (e que eles sintetizam no neologismo sentipensar), esta preocupação ficou expressa nos relatos das sessões em situações como estas que aqui se colocam:

- “O que é que eu tenho que fazer para passar do saber ao sentir?165 / (....) O meu corpo mental pensa para um lado e o corpo emocional sente para outro. E o corpo emocional ainda não se livrou destes medos, destes abandonos, destes falhanços e dessas coisas …166 (...) (4U11/3 / 4UH12/1).

- “Por que é que eu nunca fui capaz de aprender a nadar? (...) À medida que for sendo capaz de perceber que as minhas forças são suficientes para me manter à superfície, sou capaz de lidar [com o meu medo de nadar, de me afogar, de perder o pé, de não controlar a situação]. É não pensar nisso” 167(4E17/1).

- “Uma das coisas mais perturbadoras destas sessões, entre muitas que aqui foram ditas, de ir para casa a pensar na questão, para mim foi esta do sentir e do pensar. E de pensar e tentar compreender onde está o equilíbrio em tudo isso”168 (7M5/1).

164 Tendo como referencial uma perspectiva integrada da realidade (o que sucede no nosso microcosmos é uma projecção do que existe no universo), de autores que, como Morin, Maturana, Varela, Capra, Damásio, Csikszentmihalyi e Prigogine e outros, configuram o paradigma eco-sistémico, Saturnino de la Torre e Maria Candida Moraes usam a expressão sentipensar para “ilustrar a mudança de paradigma na ciência e algumas das suas consequências na educação”. Pela fusão dos processos de perceber, sentir, pensar e actuar e pela promoção do desenvolvimento de estratégias adequadas na formação de professores, o projecto sentipensar, integrado no programa “Educando para a Vida”, procura diminuir a distância entre os saberes académicos e a vida real (www.sentipensar.net). 165 Categorização: como, pergunta em aberto. 166 Categorização: porquê, razões do medo. 167 Categorização: como, desenvolvimento humano, o que aprender. 168 Categorização: quem, efeitos por participar.

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Relacionando o contido nestas frases, isto significa que se “o corpo mental pensa para um lado e o corpo emocional sente para outro” (isto é, se existe dualidade e incoerência entre o pensar e o sentir), podemos deparar com duas situações: (1) a questão de que ser “capaz de perceber que as minhas forças são suficientes” não é perceber no mental, mas é sentir – no mental já percebe, já sabe, mas isso não leva a nadar; (2) questão de que, “para entender onde está o equilíbrio em tudo isso”, não basta que, no campo dos sentimentos, tenha sido vivido como “uma das coisas mais perturbadoras” – é preciso que também seja percebido no campo do mental. Estamos perante a necessidade de dois tipos de conhecimento – o conhecimento do pensar, que, tradicionalmente, tem sido privilegiado pela cultura ocidental; o conhecimento do sentir, que, tradicionalmente, tem sido privilegiado pela cultura oriental. “Enquanto os Ocidentais se apoiam em métodos de cariz científico, os Orientais apoiam-se nos factos básicos vividos, na experiência assimilada” (Sousa, 1998:126).

- “É interessante a distinção que se está a fazer entre o saber e o sentir. Só quem vive mesmo isso pode entender o que se passa aí. Saber que “eu sou inteligente” e “sentir que sou inteligente”. Quando falámos de nós mesmos, falamos do que sabemos. Falar do que eu sei de mim é muito diferente de falar do que eu sinto de mim” (4K1/1).

- “Será que se sabe o que não se sente?” / “Acho que eu posso saber e sentir o que sei. Mas nem sempre vou sentir o que sei!” (4J21/1; 4K2/1).

Assim, e muito embora esta questão do sentir-pensar não tenha sido dado por encerrada nas sessões do grupo, nem, na análise de dados, tenha ficado expressa numa subcategoria única e distinta (pois, como disse atrás, atravessa várias das categorias-base), ela está presente em toda a toda a proposta que aqui se desenvolve através da categoria/conceito de “acção”. Sendo ACÇÃO “qualquer acto intencional, interno e externo, observável e não observável” (Trigo, 2006:64), este conceito/categoria incorpora dois grupos de movimentos e dimensões (conceitos/sub- categorias dele derivados) que, afectando-se mutuamente, se podem transformar em “expressão da natureza humana em processo de estar sendo” (Freire, 2000:87):

359

a) Os “movimentos centrífugo e centrípeto em direcção à transcendência” (Sérgio,

Apud Sérgio & Toro, 2005:105) que, na sua perspectiva de TOTALIDADE, animam as dimensões da corporeidade humana. b) Os movimentos de tomada de consciência, de assumir, de tomada de decisão,

de decidir e de execução que, quando em COERÊNCIA, configuram a mudança (Trigo, 2006; Feitosa, 2006).

Neste enquadramento, e tal como não é (só) lendo livros que se aprende a subir à montanha, mas subindo e estudando a montanha, também aqui se mostra que não é fazendo um caminho isolado que se aprende a lidar com o medo – “não é só o caminho da testa para cima, mas é o caminho que envolve o meu ser total” (4U48/1).

Por isso e porque, confirmando o atrás já dito, o todo está presente na parte e a parte no todo, importa que a dinâmica da relação do pensar-sentir se faça presente no e pelo

MÉTODO VIVENCIAL para que, utilizando a parte, se possa aceder às certezas, forças e coragem do todo – isto é, às certezas, forças e coragem do Eu-eu mesmo de Whitman (Ribeiro Dias, 2000), das dimensões da minha identidade e dos laços de ser que estabeleço com os outros no mundo.

“Homem e mulher não são seres isolados, mas integrados na cultura, na natureza e no cosmos. Em consequência, existe uma estreita vinculação entre as operações mentais de perceber, sentir, pensar e actuar. Assim, pois, o Sentipensar não é mais do que uma proposta operacional de uma nova concepção na construção do conhecimento que melhor expressa o funcionamento da vida e da realidade” (Torre & Moraes, 2007)169.

3.2 Formas de (não) lidar com o medo

Encontro uma ligação muito estreita entre os resultados anteriormente apresentados na caracterização do medo e dos seus efeitos170 e as formas de lidar (ou de não lidar) com o medo que agora surgem na leitura dos dados – de algum modo, é o sentir que o eixo central da categoria “o quê” se converte no “modus operandi” que resulta da categoria

169 www.sentipensar.net/presentacion.html (01.10.07). 170 Ver 2.2 deste capítulo – “Definição e caracterização do medo”.

360

“como” (tabela III.12). É pela VIVÊNCIA da TOTALIDADE (do reconhecimento de si mesmo e da coerência), ou da DUALIDADE (da negação de si mesmo e do disfarce), que se vai sendo, ou não sendo, tal vida.

“O medo é uma emoção natural que todas as criaturas compartilham. Se a pessoa nega o seu medo, está negando a sua humanidade” (Lowen, 1997:236)

UMA VIDA SERENA, ÚTIL E CORAJOSA SIM NÃO Integridade = reconhecimento de si mesmo / Disfarce = negação de si mesmo / dualidade O Quê totalidade

ACÇÃO Como Desenvolvimento Humano = coerência / totalidade Conservação = disfarce / dualidade Tabela III.12 – Correspondência entre o eixo central da categoria “o quê” com o eixo central da categoria “como”.

E para melhor explicar o que encontro nos dados, começo por também reformular a pergunta da investigação agora em causa:

“Como pode o educador não lidar com o seu medo e, por isso, não ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e terem uma vida serena, útil e corajosa?”

Os resultados da análise fazem entender que, qual cão que morde a sua própria cauda, não lidar com o medo é, muitas vezes, alimentarmo-nos daquilo que nos faz sofrer. Isto

é, mantendo, também aqui, ESTRATÉGIAS DE DISFARCE E DE NEGAÇÃO DE NÓS MESMOS, é pela paralisação de actos e do pensamento, pela continuidade e CONSERVAÇÃO das situações criadas, que deixámos que “os medos [sejam] maiores que os sonhos” (4J23/1):

a) Não tomando consciência, mas FINGINDO ou AUTO-ENGANANDO-nos. - “Eu sei que, cá dentro, há qualquer coisa que é capaz de acordar um bocadinho o tal medo. Prefiro que esteja bem... desconhecido (3O5/1). - “Sou muito analítica e (...), às tantas, de tanto se pensar e analisar, fico sempre a pensar o que é que estou a esconder de mim própria - no que aquela razão toda, o que é que aquele raciocínio todo evita” (7I14/2).

b) Não assumindo, mas RELATIVIZANDO ou USANDO “POÇÕES MÁGICAS”.

361

- “Tenho esses medos que acho que são medos universais” (3M1/17). - “E ando sempre com xanax na carteira (...). Mas também é por uma questão de segurança” (3O4/20).

c) Não decidindo, mas FUGINDO ou EVITANDO. - “E durante esse exercício de relaxamento, eu dormi muitas vezes. A sério!!! Dormi muitas vezes… Mas sabe… talvez... foi uma forma de eu evitar o contacto com um certo medo da fase da minha adolescência” (2K3/3).

d) Não executando, mas ACEITANDO VIVER NA MEDIOCRIDADE. - “Uma estratégia que a gente fica tentado a fazer é ficar tudo morno (…). E há muita gente que prefere o nada para evitar o sofrimento” (4J24/1). - “Ao ter medo de ser abandonada então prefiro ficar só. (...) Aquilo de que eu tenho medo é exactamente a estratégia que eu uso para o evitar” (4U55/1;56/1).

Contudo, e da mesma maneira que atrás identificava “medos de gente madura” como marcas das necessidades do ser (e, por isso, não os considerava medos, mas desejos e sonhos)171, também um certo tipo de fuga, apesar de permitir a continuidade de uma dada situação, pode ser uma acção que, ao nível do não observável, promova o movimento e o poder da mudança (Feitosa, 2006:89).

- “Uso a fuga quando acho que não possuo força suficiente para vencer o objecto do medo, nem com a ajuda dos outros. Mas isso está na linha de algo que vejo que não interfere nos meus sonhos” (3K2/11).

- “Quando uma pessoa decide experimentar uma vez, e outra, uma determinada acção, (…) e resolve dizer «Não! Eu vou desistir disto, isto não é para mim» e, então «vou fazer outra coisa em que seja mais feliz!». Até que ponto é que isto é deixar para trás? Se calhar, o caminho, que não parece ser o caminho certo, é dizer «Não! Vou procurar qualquer coisa onde eu seja mais eu» (...). É sempre difícil avaliar aqui qual é o acto de coragem” (4M12/1).

O que distingue uma “fuga” da outra? Como se distingue o que é “fugir” ou “não fugir”?

Também aqui são os SONHOS, INTENÇÕES e ANSEIOS que, sob a forma de consciência e

171 Ver 2.3 deste capítulo – “Relação de medos e efeitos do medo”.

362

COMPREENSÃO DO SENTIDO DE VIDA, fazem com que “fugir, ou não fugir?” deixe de ser a questão. E porque “perante uma [mesma] situação quem está no exterior pode chamar imensas coisas – coragem, cobardia...” (6M20/1), só cada um, dentro de si mesmo, na sua interioridade, no conhecimento de si mesmo, o pode diferenciar.

“Poucas coisas acontecem sem um sonho. E para acontecerem grandes coisas, é preciso que haja grandes sonhos. Por trás de uma grande conquista existe um sonhador de grandes sonhos. São precisas muitas mais coisas do que um sonhador para fazer com que as coisas se tornem reais; mas o sonho tem de ser a primeira de todas” (Greenleaf, 1991:9).

3.3 Brincando com números

“Há uma nítida tendência em direcção a um conhecimento mais vivido, a um conhecimento mais visceral, mais próprio ao ser humano. Neste nível de conhecimento, estamos num terreno onde não falamos simplesmente de aprendizagens cognitivas e intelectuais, que sempre podem ser comunicadas em termos verbais. Ao contrário, estamo-nos referindo a algo mais «vivencial», algo que abrange a pessoa inteira, tanto as reacções viscerais e os sentimentos como os pensamentos e as palavras” (Rogers, 1983:4)

Nas nossas sessões de trabalho, identificámos 186 referências a “tipos de medos”172 e 193 indicações de “formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento humano” (tabela 3.13). Assim, e ainda que, pela falta de elementos para comparação, não saiba se, em si mesmos e/ou num contexto de trabalho deste tipo, os valores são altos, médios ou baixos, não deixa de ser curioso notar que as pessoas têm (ou revelam) tantos “padecimentos” quantos “remédios” ou “processos de cura”. Será que não ter revelado mais medos é outro sinal dos níveis baixos de riscos assumidos pelo grupo173?

172 Ver Anexo 5 – “2. O quê”. 173 Ver resultados da análise do clima do grupo – 1.2 deste capítulo.

363

Tomada de consciência, o que aprender Exemplo – “Se eu tenho medo de perder alguma coisa, o meu medo é tanto mais forte quanto mais me parece que eu sou e existo nisso que receio perder. (...) Na 116 medida em que eu for capaz de perceber, por dentro de mim, que posso continuar vivendo, existindo e sendo eu para além disso, sou capaz de me ir libertando do medo. Agora, esse caminho, fazer esse caminho, isso é que é o difícil” (4E16/1). Assumir a responsabilidade Exemplo – “Assumir que a responsabilidade é minha, isso é que é o difícil” 1 (6U21/1). Tomada de decisão, condições da mudança Exemplo – “Fica depois a possibilidade de uma escolha (...): ou retomar toda 33 aquela aparente tranquilidade, ou decidir mudar toda essa situação” (6U7/12). Estratégias e execução Exemplo – “Ia com os sentidos o mais alerta possível, por uma questão de 43 precaução” (9L1/11). TOTAL 193 Tabela III.13 – Número de referências a formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento humano em função dos momentos da acção e da mudança.

E se a esta incerteza sobre o número aparentemente elevado de “remédios” identificados nas sessões (pelo menos face ao número de “padecimentos”), acrescentar que, em todo o processo de análise, só foram categorizadas 17 situações em que os participantes apresentaram “razões para não terem medo”174?

Exemplos de razões para não ter medo: - “Eu estou na mão de Alguém que é superior a mim e que conduz a minha vida” (3A2/12). - “É o passar por essa experiência que nos fortalece e, se calhar, nos ajuda a vencer o medo e deitá-lo para trás das costas” (4M14/1).

Não confirma isto, como se dizia no exemplo de “tomada de consciência” acima transcrito (tabela 3.13), que “fazer esse caminho, isso é que é o difícil” (4EC16/1), ou, dito de outra maneira, que não é o “saber” que garante a “cura”? Como refere Marina, citando Richard S. Lazarus, as estratégias de enfrentamento são “esforços cognitivos e de conduta que se desenvolvem para lidar com solicitações externas ou internas que o sujeito avalia como superiores aos seus próprios recursos” (Marina, 2006:39).

Mas, mais do que (pelo menos para já), procurar encontrar outras respostas, talvez valha a pena continuar a brincar com os números da tabela III.13 para calcular e

174 Anexo 5 – “4. Porquê” – causas do não medo.

364

comparar os valores percentuais das referências aos “movimentos e momentos da acção e da mudança” aí referidos (tabela III.14).

Movimento e Momentos da Mudança Referências % Movimento Centrífugo a) tomada de consciência, o que aprender 116 60.10 b) assumir a responsabilidade 1 0.52 c) tomada de decisão, condições da mudança 33 17.10 Subtotal 150 77.72 Movimento Centrípeto d) estratégias de execução 43 22.28 Subtotal 43 22.38 Total 193 100,00 Tabela III.14 – Referências a formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento humano.

Também aqui a disparidade encontrada é muito grande.

a) Parece reflectir, por um lado, a atenção e importância dadas à necessidade de “tomar consciência” do que com a pessoa e com os seus medos se passa (60.10%) e, por outro, a quase nula atenção ou conhecimento da necessidade de “assumir a responsabilidade” por aquilo que nela se passa (0.52%).

b) Mas parece reflectir também alguma tendência para se ficar preso nos níveis não observáveis da acção, os do “movimento centrífugo” (77.72%), e para se ter dificuldade em passar à sua exteriorização, o do “movimento centrípeto” (22.28%). Correr-se-á o risco de se perder a dinâmica da totalidade, de se desperdiçar a força e o élan do movimento centrífugo da acção (Sérgio, 1999) e, com isso, de se ganhar a fragilidade e rigidez da dualidade?

E se, quem tem esta dificuldade assumir a responsabilidade de passar à exteriorização, for educador? Que riscos corre a sua capacidade de educar, a sua capacidade de liderança? Terá de se esquivar e dizer (como o coelho da história de “Alice através do Espelho”, de Lewis Carroll), “geralmente até sou muito corajoso, (...) mas o que acontece é que hoje estou com uma dor de cabeça” (Apud Sturner, 1997:159)?

Será isto só especulação? Será que, porque estes dados não foram criados para este fim, é abusivo fazer estas leituras? Talvez. Mas os números são curiosos e continuam a

365

desafiar a (minha) imaginação. Atrevo-me, por isso, e ainda só olhando para os números, a colocar outras interrogações, mesmo que também elas especulativas:

c) Será que, se aqueles resultados correspondessem (ou corresponderem?...) ao modo como as pessoas efectivamente lidam com os seus medos, poderíamos criar o cenário de que, apesar da consciência do terreno que se pisa, isto é, do/s medo/s que se vive/m (mas porque não se assume como responsabilidade pessoal o que nesse terreno existe), A PROBABILIDADE DE

DECIDIR E EXECUTAR A MUDANÇA É RELATIVAMENTE BAIXA (17.1 e 22.28%, respectivamente), em relação ao que se poderia esperar frente à consciência do que existe?

d) Será que aquela disparidade é, em si mesma, um outro exemplo de

ESTRATÉGIAS DE DISFARCE que (por não se assumir a responsabilidade daquilo de que se ganhou consciência), permitem alguma continuidade das situações criadas e limitam o acesso a níveis mais elevados de desenvolvimento humano? Será que aquela disparidade também pode corresponder ao que José Gil identifica como sendo “toda essa actividade saltitante do «toca e foge», esse constante desassossego dos portugueses” que constitui o “medo de inscrever, (...) de existir, de afrontar as forças do mundo desencadeando as suas próprias forças de vida”? (Gil, 2005:84;78)

e) Será que uma das razões para uma percentagem tão baixa de “assumir a

responsabilidade” reside nalguma CONFUSÃO ENTRE SER CULPADO E SER RESPONSÁVEL? Enquanto a culpa, especialmente “quando não é reacção à voz da consciência, mas compreensão da desobediência contra a autoridade e medo da represália” (Neill, 1971:xxi), pode tender para a imobilização (e a culpa é, só por si, um dos efeitos do medo), o assumir dinâmico de uma responsabilidade (pelo movimento centrífugo que desencadeia e pelo que de maturidade comporta) pode fazer “sair do círculo vicioso da culpabilidade (...) para adoptar uma postura mais activa: que posso fazer com os meus medos?” (Marina, 2006:23). Estaremos tão dependentes de “subsídios” alheios que não encaramos as possibilidades contidas na nossa própria autonomia para, assumindo como nossa a responsabilidade pela resolução

366

das situações criadas, sermos capazes de avançar para outras fases da mudança (Espírito Santo, 1985)?

f) Dado que “normalmente [quando] outros se acostumaram a interagir de uma certa maneira e esse padrão é quebrado, surgem conflitos em diferentes graus” (Jeffers, 1991:89), será que o importante não é saber o que os outros fizeram de nós, ou saber o que fazer com o que os outros fizeram de nós, mas aprender o que fazer com o medo daquilo que os outros ainda vão tentar fazer de nós?

g) Será que aquela disparidade confirma que lidar em profundidade com o

medo é, de facto, TAREFA PARA GENTE MADURA? Será que isso justifica que, no propósito desta pesquisa, se tivesse definido como preferencial o contexto de educação de adultos para aplicação dos procedimentos e estratégias didácticas?

h) Ou será que aquela disparidade-dualidade-incoerência é sinal da (sempre) DIFÍCIL RELAÇÃO TEORIA-PRAXIS? “A práxis (...) é reflexão e acção dos homens sobre o mundo para transformá-lo (...). O mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção crítica (acção já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objectiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro” (Freire, 2003:38). Sendo o grupo constituído por pessoas de elevado grau de formação académica (“intelectuais/mentais”?), maioritariamente professores-educadores, teremos mais facilidade em gerir mentalmente o conhecimento do que em encarnar (pensar-sentir) esse mesmo conhecimento?

Estas são algumas reflexões e perguntas por ter brincado com os números. Não obtive, talvez, muitas respostas, mas obtive, seguramente, mais inquietações. Preciso, por isso, ver agora para lá dos números e retomar as ideias que estão contidas nas categorias que lhes deram origem.

367

Assim, e deixando para momento próprio a descrição detalhada dos princípios educativos que podem servir de base a um programa de educação de adultos 175, passo a fazer a leitura do que, só em termos do PROCESSO, são as suas interligações com o que foi considerado como cerne desta categoria.

3.4 O processo de lidar com o medo

Depois de termos distribuído as “formas de lidar com o medo” identificadas pelos quatro momentos da acção e da mudança176, vimo-nos na necessidade de avançar para a produção de novas subcategorias que, esmiuçando a variedade de ideias e sugestões aí contidas, criassem a estrutura de uma proposta didáctica para lidar com o medo. E um dos momentos mais gratificantes da análise de dados aconteceu quando, já no seu final, nos pudemos distanciar do trabalho feito e olhar a imagem geral do quadro de categorização assim criado. Mais do que reunir, inter-relacionava o disperso nos diálogos do grupo e, nessa nova expressão da sua experiência e do seu saber, não só congregava e potenciava contribuições de diversos autores e quadrantes, mas também se tornava naquilo que Paulo Freire refere ser “uma devolução organizada, sistematizada e acrescentada”:

“Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos – mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada” (Freire, 2003:84).

É essa nova estrutura-expressão da experiência e do saber do grupo que agora passo a apresentar e comentar.

175 Ver “IV CO sentido do caminho – 2. Proposta educativa”. 176 Ver “Capítulo 2 Roteiro – 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise”.

368

Tal como “os valores não são para ser ensinados, mas para ser vividos” (Maturana,

2000:17), também o eixo central da categoria processual (“como”), “ACÇÃO-TOTALIDADE-

COERÊNCIA”, não é apenas o sustentáculo da metodologia a utilizar na aplicação da proposta educativa para lidar com o medo, mas tem uma relação profunda com o propósito de “serenidade-utilidade-coragem” desses mesmos procedimentos (quadro III.6).

COMO LIDAR COM O MEDO

Movimento Centrífugo Movimento Centrípeto

Tomar Consciência ⊳ Assumir ⊳ Decidir ⊳ Executar

Centrar Agir Celebrar    Serenidade Utilidade Coragem

Acção-Coerência-Totalidade TRANSCENDÊNCIA

Quadro III.6 – Relação entre “serenidade-utilidade-coragem” e o eixo central da categoria “como”.

Em primeiro lugar, porque falar de ACÇÃO é falar da necessidade de criar condições e espaços para lidar INTERNAMENTE com o medo e, com isso (e tal como fica plasmado nas subcategorias a seguir exemplificadas), estimular o desenvolvimento de um movimento centrífugo em que, no silêncio e na serenidade do centrar, se pode fazer a descoberta da utilidade e do sentido do agir:

a) Reconhecer o que se é. - SABER QUEM SOU – “Tenho noção que não sabia nada de mim. Nunca [tinha olhado] para dentro, nunca [tinha feito] uma retrospectiva da minha vida e da maneira como encarei as coisas – nem sabia fazer isto. E é fundamental para aprender a crescer, conhecendo-nos. Só assim ultrapassei mil obstáculos que nunca imaginei ultrapassar” (3O4/14).

- PERCEBER QUE POSSO – “Nós encontramos forças e passamos pelas coisas (...). Passei a saber que passava a maré. E isso faz-me ir andando de outra maneira – porque há ali algo importante que já sabemos e que dantes não sabíamos (7I23/1). - (...)

369

b) Descobrir o que se pode ser. - VER DE OUTRA PERSPECTIVA – “Por favor deixem que alguns dos meus medos continuem. Eles, sim, fazem parar a minha vida, mas é para reflectir nas minhas forças, buscá-las ou rebuscá-las, preparar-me melhor, fazer coligações, se for preciso, para enfrentar os objectos dos meus medos! Enfrentar e vencer. (...) Deixem que alguns dos meus medos continuem. Eles são um desafio para mim. Destes medos que são desafios eu não devo sentir medo. Ao contrário, são a minha força. Permitem que eu canalize a minha «energia de recuo» para avançar” (Extracto de um diário de campo – 12ª sessão). - COMPREENDER O SENTIDO DA MISSÃO177– “Se a pessoa não tiver sido treinada nessa capacidade de entrar em contacto consigo, com os valores profundos, com aquilo que é realmente o que se quer guardar até ao fim, a pessoa não vai ter força para enfrentar os medos” (7L14/3B). - (...) c) Aprender como se passa do que se é ao que se pode ser. - GANHAR CONSCIÊNCIA DO MEDO – “Verificar se o meu medo é real. Há muitos momentos em que (...) ela diz “não é real, não é real”. Verificar se o medo, afinal, está só dentro de mim, se o medo sou eu, ou se é algo que me está a ser atirado” (6J34/4).

- APRENDER A CONFIANÇA – “[O medo] pode ser transformado em confiança, em esperança. Não vale a pena ter medo” (3A3/1).

- APRENDER QUE É UM PROCESSO DEMORADO E DIFÍCIL – “Em relação ao labirinto, a primeira coisa que pensei foi ele parecer tão pequenino e tão longo ao mesmo tempo. E pensar (...) que, às vezes, é assim na vida. Parece que está ali ao lado e nós temos de percorrer, percorrer. Mas (...) as coisas têm mais beleza assim. Se calhar não tinha piada nenhuma saltar logo ali ao centro e ir buscar a flor” (10M1/1). - (...) d) Assumir a responsabilidade nas próprias mãos, reconhecer o valor em causa, perceber a necessidade da mudança, preparar, acreditar e pensar positivo. - “É uma coisa que tem de fazer sozinha. (...) Há decisões que a pessoa tem de tomar sozinha” (6E17/1).

177 No seu livro “Si Harry Potter dirigiera General Electric”, Morris (2006:71) escreve que “algumas das pessoas mais corajosas da história da humanidade contaram depois que não se sentiram especialmente valentes nos momentos dos seus grandes feitos, mas que simplesmente sabiam qual era a tarefa que deviam realizar e levar a cabo (...). Os seus valores impulsionaram a acção”.

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- “O amor, a justiça, a verdade, a convicção profunda, como os grandes pontos de apoio para superar o medo e vencer o sofrimento” (6L1/1). - “Tento buscar uma confiança também na ajuda dos outros à minha volta” (3K2/8). - (...)

Em segundo lugar, porque falar de ACÇÃO também é falar da necessidade de criar condições e espaços para lidar EXTERNAMENTE com o medo e, com isso (e tal como também fica plasmado nas subcategorias a seguir exemplificadas), estimular o desenvolvimento de um movimento centrípeto em que no sentido do agir se encontra a serenidade e o desafio de se ser o que se é:

e) “O tempo do meu mundo” que permite estabelecer e compreender a relação consigo mesmo, com os outros e com o universo. - RELAXAMENTO – “O relaxamento teve essa intenção de apelar, por um lado, ao sentido do corpo, um corpo relaxado, mas um corpo também disponível para se lembrar, para trazer as suas memórias do medo, pessoais (...). Achamos que essa era a maneira de podermos ser um pouco mais livres, uma forma de nos trazermos a nós próprios para aqui” (2I9/1).

- BIOENERGIA – “E chegámos à conclusão que havia várias pessoas que não podiam gritar (...). Vamos aproveitar, já que estamos aqui, para tentar gritar. Tem de vir tudo da barriga e do estômago – para vir” (9A3/1).

- UTILIZAÇÃO DA ARTE E DA FANTASIA – “Foi nessa altura que a fantasia começou a ajudar-me a viver melhor. E agora é o cinema e o teatro” (3J4/9).

- A PELE DA ALMA – “Era mais importante que nós aproveitássemos a noite e que fôssemos fazer este passeio (...) deixando-nos tomar pelo entrosamento da nossa relação que está num contexto diferente” (9U4/5).

- SILÊNCIO – “Isto [a actividade proposta] não é para eu sentir medo, ou para perceber quais são os meus medos desconhecidos. Isto é para me preparar para lidar com os meus medos conhecidos. Não venho à descoberta do medo, venho à descoberta da minha interioridade, da minha forma para lidar com os medos que eu sei que tenho. E ficou claro que a paz era resultado e meio para lidar com os meus medos” (Extracto de um diário de campo – 9ª sessão). - (...)

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f) “O tempo no mundo” que permite ir em frente em função da missão, com riscos, com esforço, com atenção e prudência, mas também com apoios e confiança: - “Se tens medo, não tens mais que fazer senão pôr-te a trabalhar para ver se o assunto se resolve” (7I2/6). - “Deixei-me estar no meu sítio e, quando chegou a hora, fui e pronto, passou” (9M1/8). - “E depois também havia uma certa confiança nos instrutores. Os que estavam em baixo também ajudaram. Apoiei-me muito na vossa instrução aí em baixo” (9K3a/2). - “E fiz por ser prudente” (9L1/5). - (...)

Em terceiro lugar, porque falar da COERÊNCIA que entre os dois tempos assim existe é falar da importância de criar condições e espaços que desafiem a coragem de manter os dois movimentos numa força única capaz de desfazer a tentação da dualidade. É o que os exemplos seguintes procuram mostrar: as inquietações e reflexões de duas pessoas que, perante a mesma situação e pela mesma razão (a missão de cada um), tomam decisões diferentes.

- “Até àquela altura ainda não tinha decidido (...). Mas, depois de algum tempo, tentei buscar os motivos. Por que é que eu ia descer? Por que é que eu ia fazer rappel? Eram doze horas (...) e a essa hora eu devia estar a (...). E entrei num conflito. E tentei buscar a causa Por que estava aqui? Por causa de umas pessoas (...). E deu-me um consolo. «Eu não vim fazer um piquenique. Não vim divertir-me em termos directos. Vim fazer um trabalho. Esse trabalho vai- me dar uma diversão, mas eu vim fazer um trabalho». (...) Esse problema ficou arrumado. (...). Quando enfrento os medos? Quando vejo que, por detrás do medo, está um valor. E qual o valor que encontrei? (...) «Pela (...) eu vou fazer rappel!»” (9K2/12;3/1,3).

- “Quando cheguei lá em cima, eu pensei logo: «Eu não faço, porque não tenho que provar que consigo vencer o meu medo através do esforço físico (...)». E depois comecei a pensar: «Então, o que é que me faz vencer o meu medo? É uma missão. É ter missão para o fazer (...)». E, então, há aquela frase, que eu tenho no meu quadro de cortiça desde que vimos o filme (...): «Faz o que tem de ser feito sem te preocupares com as consequências». Eu, logo à noite, quando chegar a casa, vou pôr: «Faz o que tem de ser feito, sem te preocupares com as consequências, se isso fizer parte da tua missão»” (9J1/18).

372

Finalmente, porque falar de TOTALIDADE é falar da importância de criar condições e espaços que, no seu apelo para a unificação das dimensões humanas, sejam oportunidade de celebração da própria TRANSCENDÊNCIA, “o mergulho no insondável Mistério de vida, de consciência, de comunhão e de amor” (Boff, 1998:110).

- “Quando parámos, ficámos em silêncio – gostei imenso de ter estado deitada a olhar para as estrelas. O sentir-me identificada com o universo é assim qualquer coisa de fantástico” (9A1/2). - “O K. soube tornar aquele momento num momento mágico de relação entre as pessoas. E, no final, alguma coisa tinha mudado. Posso dizer que foi um momento essencial de comunicação de almas e entrosamento das pessoas. Tudo o que em conjunto vivemos, a serenidade e a paz que ali estavam presentes tornaram-nos companheiros de viagem. (...) E demos beijos e abraços. E a proximidade de pele tornou-se maior” (Extracto de um diário de campo – 9ª sessão). - “Depois, houve um segundo momento [mágico], que foi o momento do caminhar sozinho. Isso, para mim, foi completamente mágico. Houve uma fase em que parei, abri os braços e agradeci mesmo. (...) E, naquele momento, senti uma sintonia muito forte com o universo e agradeci por estar vivo e por tudo” (9J1/3-4).

3.5 Síntese do “como”

É pela utilização de uma metodologia centrada na ACÇÃO que se encontra a forma de, fazendo uma ligação dinâmica entre o pensar e o sentir, passar do mero reconhecimento de uma realidade à transformação dessa realidade:

1. Criando condições e espaços para LIDAR INTERNAMENTE com o medo que também estimulem um movimento centrífugo de mudança.

2. Criando condições e espaços para LIDAR EXTERNAMENTE com o medo que também estimulem um movimento centrípeto de mudança.

3. Buscando a COERÊNCIA entre os espaços internos e externos. 4. Reconhecendo nos dois movimentos a capacidade de TOTALIDADE e transcendência humanas.

373

Deste modo, a tríade “totalidade-acção-coerência” não constitui só o sustentáculo da

METODOLOGIA de um programa de educação de adultos para lidar com o medo, mas estabelece uma relação profunda com a outra tríade, “serenidade-utilidade-coragem” que, enquanto sustentáculo de uma vida plena, constitui o PROPÓSITO desse mesmo programa: 1. Porque a serenidade pode ser encontrada no espaço interno do centrar. 2. Porque a utilidade pode ser descoberta no espaço externo do agir. 3. Porque a coragem de ligar o centrar e o agir numa força única celebra a possibilidade de uma síntese que construa o humano.

374

375

376 QUEM O QUÊ como os outros reagem aos nossos medos

processo centrado na conservação

liderança

amor clima necessário confiança

autonomia e responsabilidade

a) saber quem sou

b) ser diferente

1. Ser c) perceber que posso d) do pensar / falar ao sentir

e) a minha consciência de ser educador

a) ver de outra perspectiva 2. Poder Ser b) sentido da missão

tomada de consciência / o que aprender a) ganhar consciência do medo

b) aprender a confiança

d) aprender a errar

c) aprender a resolver problemas movimento centrífugo 3.Processo de Aprendizagem e) aprender que é um processo demorado e difícil

f) viver aqui e agora

g) não preocupar com as consequências como se lida com o medo 3.6 Categorias de Análise COMO processo centrado no assumir assumir a responsabilidade desenvolvimento humano a) auto-responsabilidade

acção b) reconhecimento do valor em causa c) sentido da necessidade de mudança tomada de decisão / condições da mudança d) confiança

e) método

f) pensar em positivo

relaxamento

bioenergia com o Eu meditação

utilização da arte e da fantasia 1. O Tempo do Meu Mundo com os Outros a pele da alma

harmonia com o universo movimento centrípeto execução e estratégias com o Cosmos silêncio

esforço

ir em frente em função da missão

2. O Tempo no Mundo procurar apoios e confiar assumir riscos e responsabilidades

atenção e prudência

perguntas do grupo que ficam em aberto POR QUÊ PARA QUÊ

“Baú de Memórias - Que tipo de diário eu gostaria de ter? Preferia um que se assemelhasse a uma arca velha, funda, ou a um armário espaçoso no qual guardamos, indiscriminadamente, todo o tipo de coisas. Gostaria, depois, de voltar a ver que as coisas fizeram a sua própria triagem, refinando-se e aglutinando-se, como misteriosamente acontece com os sedimentos, de uma forma suficientemente transparente para reflectir a nossa vida, mas estável, tranquila, compondo-se com o alheamento de uma obra de arte”- Virginia Woolf.

razão o educador só pode ajudar outros a 4. Por queenfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?178

É na memória, no presente do passado, que procuro saber se existem razões que justifiquem que (para além de “não ser o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educador em diálogo com o educando que, ao ser educando, também educa” - Freire, 2003:68), o educador precise ter dado início ao seu próprio processo de lidar com o medo, e de procurar o equilíbrio e harmonia de vida, antes de se colocar na posição de estimular e desenvolver esse mesmo processo junto do seu educando.

Para isso (e se bem que não seja possível, nem procure, estabelecer uma relação termo a termo entre os diversos tipos de medos e de causas apresentados), vou centrar a minha atenção, não só no que nas narrativas do grupo de pesquisa foi identificado como sendo as subcategorias “causas do medo” e “causas do não ter medo”, mas também no cruzamento destas com quaisquer outras que ajudem a construir uma visão mais ampla.

4.1 Passagem de testemunho e contágio

“Querido Pai, Perguntaste-me recentemente por que razão eu afirmo que tenho medo de ti. Como é habitual, não sabia o que responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de ti, em parte porque são tantos os pormenores que justificam esse medo que eu não

178 Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.

377

seria capaz de os manter minimamente coesos ao falar. E se procuro responder-te agora por escrito, só o conseguirei fazer de forma muito incompleta, porque também na escrita o medo e as suas consequências me embaraçam face a ti e porque a importância do assunto ultrapassa largamente a minha memória e o meu entendimento” (Kakfa 1993:7).

São muitas as referências presentes nos relatos que servem para justificar a presença do medo na vida dos participantes. Não são tantas, mas são muito diversas, as que justificam a ausência do medo. Contudo, e apesar de muito escassas (5 no total), quando se trata de identificar “pessoas que influenciaram o medo” e “pessoas que influenciaram o não medo”, as experiências de vida convergem – em cada uma das subcategorias, entre as duas subcategorias, em comparação, inclusive, com o que é descrito no texto da carta de Kafka a seu Pai, acima reproduzido. a) Medo – pessoas que influenciaram. - “Mas a figura do medo foi a figura paternal, sempre. O meu pai sempre foi um obstáculo àquilo que eu fazia como objectivo pessoal. Por exemplo, a primeira vez quando eu saio de casa, saio de casa com muito pouco dinheiro (...), não tinha trabalho certo. Lá ganhei coragem, arranjei um apartamento, fui viver sozinho e o meu pai disse logo «tens a certeza que és capaz?». E eu fui. Depois, passado um ano ou dois, tive que comprar um carro para ir trabalhar para fora. Decidi comprar um carro novo. O meu pai disse-me «achas que tens cabedal para comprar um carro novo?». Sempre que eu ia ter com ele, ele não me dava força. Dizia sempre «tu não és capaz»” (3J4/10). - “A minha mãe tratava os filhos como ignorantes se não tivessem sucesso escolar” (3K1/11). - “Há medos que eu não sei de onde vêm. Mas penso que há uma figura na minha vida que me incutiu muito medo, que é a minha mãe (...). Porque era alguém que vivia muito esse sentimento de culpa (...) e que nos incutia muito a culpa” (7I14/3). b) Não medo – pessoas que influenciaram. - “Eu sempre tive uns pais que me incentivaram a fazer tudo o que eu queria (…) E eles disseram- me «faz o que queres, és senhor da tua vida»” (3M1/11). - “A minha mãe foi a mulher coragem, a mulher forte do evangelho que sempre deu testemunho de uma fortaleza muito grande (...). Todos vivemos unidos a doença do pai com uma força e uma coragem muito grandes porque a mãe era o testemunho da força e da coragem (...).Talvez aquele modelo forte nos tenha sido transmitido” (3A4/3).

378

São três as razões que me levam a considerar haver convergência de experiências de vida nestas situações. Em primeiro lugar, porque em todas existe um “querido pai”, isto é, alguém que, sendo um outro significante, é uma pessoa com quem se tem uma interacção importante. Em segundo lugar, porque o que nelas levou ao medo, ou ao não medo, não foram tanto os eventos distintos, dramáticos ou especialmente intensos, mas sobretudo os “tantos pormenores”, os “sempre”, que, acontecendo subtil e repetidamente, se acumularam durante longos períodos da vida. Em terceiro lugar, porque constituindo- se como um conjunto de referências muito reduzido, podem ser excepção de algum “embaraço frente a ti” (Kakfa, 1993:7) que a outros não permitirá assumi-las publicamente.

Assim, e num contexto em que, por diversas vezes, o que falta e não está expresso em palavras é tão, ou mais, significativo do que aquilo que está patente, considero a ideia de PASSAGEM DE TESTEMUNHO e CONTÁGIO (com aquilo que comporta de liderança e de criação de um clima propício para a mudança), como sendo o pensamento central da categoria “por quê” que vai orientar a direcção da resposta à pergunta da pesquisa aqui em causa.

“A moral não deve somente ontologizar-se, mas também existencializar-se. Não podemos ensinar valores, devemos viver valores. Não podemos dar um sentido à vida dos outros: o que podemos oferecer-lhes no seu caminho para a vida é, melhor e unicamente, um exemplo: o exemplo do que somos. A resposta para o problema do sentido final do sofrimento humano, da vida humana, não pode ser intelectual, mas só existencial: não respondemos com palavras, mas toda a nossa existência é a nossa resposta” (Frankl, 1994:32).

4.2 As causas do medo

Da mesma maneira que são muitos e diferentes os enfoques teóricos sobre as causas do medo179, também os relatos dos participantes apresentam uma variedade considerável de situações (65 no total), em que se identificam “razões do medo”. Numa

179 Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – Filhos do Medo”.

379

leitura linear dos dados (e porque já foram reconhecidos 186 medos180), poder-se-ia dizer que, estatisticamente, e apesar de “a importância do assunto ultrapassar largamente a nossa memória e o nosso181 entendimento” (Kafka:1993:7), “ainda” somos capazes de reconhecer 1 razão por cada 2.86 medos. Porém, mais do que fazer uma interpretação deste tipo, que precisaria de dados comparativos para ganhar maior significado, quisemos organizá-las de modo a que, na variedade das razões encontradas, estas se pudessem tornar inteligíveis e “minimamente coesas” (Kafka, 1993:7) sem que se perdesse a riqueza da sua diversidade.

Assim, e numa categorização dessas razões com base numa concepção do medo como fenómeno transaccional182 (Marina 2006:16), o conceito de percepção e os conceitos que fazem parte dos níveis de categorização subsequentes integram referências oriundas de pensadores e cosmovisões distintos. Alguns exemplos:

1. Primeiro nível a) À semelhança de Bronfenbrenner (Papalia, 2001), Morin (2002), Freire (2003), Ribeiro Dias (2000), Sérgio (2005b), Kolyniak (2005), Guenther & Combs(1980) e outros, congregam razões que, no seu conjunto, revelam a nossa dimensão ecológica.

- Percepção do Eu – “Acho que sou mais ambiciosa do que devia porque as minhas ambições não correspondem às minhas capacidades. E depois tenho de ser muito formiguinha (...) para depois não falhar totalmente” (7I2/5). - Percepção dos outros – “Senti nessa altura (...) o medo do ridículo. O estremecer por confiar nos outros, por acreditar” (6E13/1). - Percepção do cosmos – “Segundo os mitos da aldeia, os que estavam em idade ainda fértil (...) tinham de apanhar água onde ela desaguava (...). Diziam que uma pessoa em idade fértil, se fosse até à água da nascente podia ter um filho ou uma filha sereia” (6K4/10).

180 Ver ponto 2 deste capítulo. 181 Os sublinhados são meus. 182 Para Marina, os sentimentos, e especialmente o medo, são fenómenos que apresentam uma causalidade circular: causa e efeito sofrem influências recíprocas. O “mundo” é o modo como a realidade surge perante o sujeito –“todos vivemos a mesma realidade, mas cada um de nós habita no seu próprio mundo” (Marina, 2006:16).

380

2. Segundo nível b) À semelhança de Peña y Lillo (1991), Marroquín (1995), Krishnamurti (2002) e outros, congregam razões de cariz psicológico.

- Imaginação: “O medo vem de uma amplificação, de uma imaginação do que pode acontecer. E, porque pode acontecer, se transforma na convicção de que vai acontecer. E é essa crença de que vai acontecer (que pode ter ou não fundamento) que paralisa as pessoas, que perpetua a própria crença e perpetua o medo” (6E11/5). - Desejo: “Preso a um determinado tipo de sonhos pessoais” (4MP13/1). c) À semelhança de Max-Neef (1993), Goffman (1982), Marina (2006) e outros, congregam razões de cariz social e cultural:

- Experiências de não integração / abandono: “Quando a gente deixa de ter o poder, desaparecem” (4U9/1). - Experiências de violência / desrespeito: “Isto ficou, isto foi contado como história de família. A raiva que eu senti das vezes que isto foi contado como história de família! – «Parece impossível! Por um lado, as pessoas crescidas contaram-me a história e agora acham estranho que eu tivesse acreditado?». (…) Não havia a intenção de ridicularizar, mas iam brincando com a situação” (6E12/3, 13/1). - Práticas culturais: “Eu tenho a idade que tenho e antigamente (...) abusava-se de Deus. E uma maneira de fazer com que as pessoas fossem boas era pregar este Deus Papão que leva os meninos para o inferno” (3A2/6). - Dependência de pessoas ou coisas: “Presos a um determinado tipo de sonhos (...) impostos pela sociedade, [por] um pai, [por] uma mãe, [por] um tio...” (4M13/1). d) À semelhança de Frankl (1994), Desikachar (1995), Moffit (2003b), Aldana (1996) e outros, congregam razões de dimensão transcendente e espiritual.

- Ausência de unificação do Eu: “A maior parte dos meus medos agora reflectem o meu ego. (...) É ego, é vaidade, é preocupação social. O mundo é mais do que eu, é mais do que isso” (3J4/20).

381

- Morte e finitude: “Não há mais nada do que ser agarrado à própria vida. Daí ser esse tal medo supremo, o medo da morte” (6M10/1).

3. Terceiro nível e) E à semelhança de todos eles, especialmente de Morin (2003), Lowen (1997) e outros, potenciam o entendimento de que, na sua complexidade, a dinâmica emocional do medo pode ser desencadeada por qualquer área da identidade- corporeidade humana.

- Corpo mental – “Vivo na base das obrigações” (4U19/2). - Corpo cultural – “Os pais protegiam muito as crianças para que não se misturassem com pessoas estranhas” (3K1/8). - Corpo transcendente-cultural – “Tudo era pecado” (3A2/7).

Neste contexto, e com as mesmas reservas anteriormente apresentadas183, é possível fazer algumas reflexões a partir da leitura de alguns dados quantitativos (tabela III.15).

Razões do Medo Referências % Percepção do Eu Ausência de unificação do Eu 10 15.38 Desejo 2 3.08 Imaginação 4 6.15 Noção do dever 7 10.77 Subtotal 23 35.38 Percepção dos Outros Dependência de pessoas ou coisas 8 12.31 Experiências de não integração / abandono 7 10.77 Experiências de violência / desrespeito 9 13.85 Experiências ou previsão de fracasso 3 4.61 Mundo afectivo 3 4.61 Práticas culturais 3 4.61 Subtotal 33 50.76 Percepção do Cosmos Mitos 7 10.77 Morte / finitude 2 3.08 Subtotal 9 13.85 Total 65 99.99 Tabela III.15 – Razões para ter medo referidas no grupo de pesquisa.

183 Ver pontos 2 e 3 deste capítulo.

382

1. Os outros como causa do medo

Em termos gerais, as razões para ter medo que mais vezes são referidas ao longo das sessões prendem-se com a “percepção que se tem dos outros” (50.76%) – isto é, razões que colocam o locus de causalidade no exterior da pessoa e fazem com que a capacidade e o poder de fazer sentir medo estejam, de algum modo, em mãos alheias.

- “Sempre pensei que ele era capaz de fazer mal à minha mãe, aos meus irmãos e a mim mesmo” (2K3/3).

- “Sabemos que, se não gostarem de nós, por muitas técnicas que usemos para tentar racionalizar a situação, a verdade é que alguém não gostou de nós” (2J1/5).

2. A ausência de unificação do Eu como causa do medo

Contudo, olhando as subcategorias derivadas da “percepção do eu”, vê-se que as razões de “ausência de unificação do Eu” (15.38%) têm um peso ligeiramente superior a qualquer uma das subcategorias derivadas da “percepção dos outros”. São razões que nascem da distância existente entre o higher self e o ego referidos pela psicologia transpessoal (Jeffers, 1991), entre o eu real e a pessoa pública descritos por Moffit (2003b), entre o eu e o eu-eu mesmo dos versos de Whitman (Ribeiro Dias, 2000:125), ou entre purusha e citta que, na linguagem aparentemente distante dos Yoga Sutra, o sábio Patañjali nos dá a conhecer (Desikachar, 1995).

- “Passei muito por isso, por desconfiar de mim própria. Quando fazia algo que, à partida, achava que fazia para os outros, depois via nisso utilidades para mim própria. E isso fazia-me desconfiar muito de mim” (7I17/2).

- “E não sei porquê, sem nenhuma razão aparente, eu senti um grande medo” (1O1/3).

- “E, de repente, comecei a dar conta que, para mim, era muito difícil perceber o que é que eu queria [efectivamente] fazer // porque estava habituada a pensar [só] naquilo que tinha de fazer” (7U9/2).

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3. O dever e os sentimentos de culpa como causas do medo

Na sequência do discurso, como já se nota no último extracto das sessões acima colocado, as razões de “ausência de unificação do Eu” (15.38%) estão muitas vezes associadas a razões de “noção de dever” (10.77%) – o que faz com que, no seu conjunto, estas duas subcategorias representem mais de 25% das razões apresentadas.

Mas as razões de “noção de dever” não contêm só o que se considera ser obrigação. Em diversas situações apresentam-se associadas a sentimentos de culpa e/ou a uma certa imagem de Deus e um certo tipo de concepção religiosa.

- “Ainda aqui há tempos alguém me dizia «achas que tens sempre culpa de alguma coisa». E eu tenho, de facto, muitas culpas” (...). Tenho medo de não fazer bem feito, mas, quando acho que não faço como acho que devia fazer, fico com a culpa” (7I5/1;6/1).

- “Tenho medo de me sentir culpado. Há opções que tomo na vida que, às vezes, tenho receio de não estar a fazer a melhor opção. Sinto-me culpado por causa disso. De não estar a fazer a vontade de Deus, ou de não estar a fazer a leitura correcta do que seria a vontade de Deus. E não é bem um medo, ou, se calhar, o medo de ser responsabilizado por isso. Mas vivo isso” (7L1/1).

Mas que culpa é esta a que está tão presente nas nossas narrativas e de que modo se torna visível nos resultados do processo de análise? Será a culpa, consciente ou não, um dos traços distintivos da nossa cultura? Lowen diz que sim:

“A maioria dos indivíduos na nossa cultura sofre de consideráveis tensões crónicas na sua musculatura (...). A tensão muscular crónica é o lado físico da culpa, porque representa as injunções do ego contra certos sentimentos e actos (...). A maioria [dos indivíduos] não tem consciência de sentir-se culpado nem do motivo da sua culpa. (...) A culpa é o sentimento de não ter o direito de ser livre, de fazer o que se quer (...) é a sensação de não estar à vontade no seu próprio corpo, de não se sentir bem” (Lowen, 1997:22).

No contexto desta pesquisa, e qual “pescadinha de rabo na boca”, a ideia de culpa, para lá de surgir com bastante frequência nos diálogos do grupo, surge também nos

384

diversos pontos da interpretação dos dados. Surge, por exemplo, na categoria “o quê”, nos “efeitos do medo”, no que foi identificado como sendo a “negação de nós mesmos”. Surge também na categoria “como”, nos “tempos do processo de mudança”, no que foi classificado como sendo a dificuldade em “assumir a responsabilidade” dinâmica por aquilo que se é e por aquilo que se quer ser. Surge agora na categoria “porquê”, entre as “causas do medo” que impedem “o direito de ser livre” referido por Lowen. É, em suma, uma culpa feita de auto-condenação e de auto-punição, porque se desconhece, se descrê e/ou não se aceita o que se é.

4. Primeira síntese

Com tudo isto em mente, volto a olhar os resultados globais da categorização das causas do medo para daí tentar tirar o primeiro conjunto de ilações: a) Se se entende que o auto-conceito, para além de conceito único e pessoal que cada um tem de si, também é o “quadro referencial a partir do qual [a pessoa] vê o mundo” (Guenther & Combs, 1980:97), então, e em última análise, todas as causas do medo (incluindo as da “percepção dos outros” e as da “percepção do cosmos”) dependem da “percepção do eu” (Moffit, 2003a). b) Se se entende que a “percepção do eu” é a causa do medo, então, se a percepção da pessoa sobre si mesma for alterada, o medo pode desaparecer. c) Se se entende que o medo pode desaparecer se a percepção da pessoa sobre si mesma for alterada, então, e porque pessoa é unidade, totalidade, transcendência... (Frankl, 1994:106-115), é preciso que vá conhecendo cada vez mais, não o eu da “não unificação”, ou “o eu dos acontecimentos a deixar-se levar por forças exteriores” (Ribeiro Dias, 2000:141), mas o Eu que conduz no sentido da missão – o Eu da evidência profunda de si mesmo, o Eu da sensibilidade e da sintonia com o universo, o Eu da consciência de se sentir um com o Absoluto (Desikachar, 1995; Moffit, 2003a; Blay, 1988).

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5. Um último comentário antes de avançar

Não posso, nem quero, com a orientação desta leitura de dados, ignorar ou diluir a importância do que, nos resultados da análise, ficou registado sobre casos de “não integração ou abandono” e de “desrespeito ou violência” vividos em contexto social (familiar, escolar, urbano, ou outros) e relatados pelos participantes do grupo de pesquisa. Representam, no seu conjunto, quase 25% das razões do medo apresentadas e são factos do passado que fazem parte das suas vidas. Contudo, o que também aí está em causa é a percepção que se tem sobre essas experiências, ou sobre outras bem mais graves que aconteceram na vida de muitas outras pessoas também. Mas, mesmo assim, o passado pode ser mudado quando quem o viveu, aprendendo com as circunstâncias, se torna capaz de as resignificar, olhar e sentir essas experiências a partir de outras perspectivas.

4.3 As causas do não medo como um dado insignificante muito significativo

Por força da dispersão do tipo de ideias aqui em análise, depois de uma primeira categorização das “causas do não medo” também em função da percepção pessoal, relacional e cósmica, optámos por passar directamente ao estabelecimento de correspondências com as “dimensões da identidade-corporeidade” que apareciam como mais evidentes. Porém, o que nesta categorização ganha mais visibilidade, não é tanto o que está presente e se manifesta nos resultados escritos assim obtidos, mas o que neles está ausente – enquanto que a listagem das “causas do medo” apresenta 65 razões do medo e ocupa 12 páginas, a listagem das “causas do não medo” apresenta 17 razões e reduz-se a 2 páginas184.

Será este um dos aspectos mais significativos desta pesquisa? Porém, e apesar do número reduzido e da dispersão de ideias que engloba, o conjunto de dados explícitos mostra resultados que, inclusive quando trabalhados em termos quantitativos (tabela III.16), permitem o paralelo com alguns dos dados precedentes.

184 Ver Anexo 5 – “4. Porquê”.

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1. A percepção do eu e o corpo transcendente como causas do não medo

Enquanto que, nos resultados anteriores, os participantes referiam mais vezes de forma explícita que as “causas do medo” se situavam fora de si mesmos (“percepção dos outros”), no caso das “causas do não medo” são as razões da “percepção do eu” (64.71%) e, dentro destas, as razões do “corpo transcendente” (que incluem razões de cariz espiritual e religioso) (52.94%), as que surgem nos diálogos do grupo com um peso mais elevado.

- “Desde que eu deixei de fazer projectos, acho que tenho confiado que as coisas que acontecem e que há uma mão que vai conduzindo a minha vida” (3A2/12). - “Eu nunca senti medo de Deus porque acredito que Deus é amor. E acredito também que Deus acredita nas minhas limitações” (7K4/3).

Razões para não ter medo Referências % Percepção do Eu Corpo emocional 1 5.88 Corpo emocional-mental 1 5.88 Corpo transcendente 9 52.94 Sub-total 11 64.71 Percepção dos Outros Corpo mental 2 11.76 Sub-total 2 11.76 Percepção do Cosmos Corpo transcendente 1 5.88 Corpo físico 1 5.88 Corpo emocional 2 11.76 Sub-total 4 23.53 Total 17 100 Tabela III.16 – Razões para não ter medo referidas no grupo de pesquisa.

2. A passagem do medo ao não medo

Neste mesmo grupo de subcategorias (“percepção do eu / corpo transcendente”), são igualmente significativas as razões com que se explica a passagem do medo ao não medo.

- “Quando fiz o curso de (...), até porque estudávamos religião com bastante profundidade, (...) não me ajudou a desfazer o medo do deus-papão. Esse medo desaparece quando sou mãe (...).

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Aquilo que eu começo a pensar é: «se eu sou imperfeita, gosto tanto dos meus filhos (...) Deus só pode ser amor. E, como amor que é, não há razão de existir o deus-papão” (3A2/14).

- “É o passar por essa experiência que nos fortalece e (...) nos ajuda a vencer o medo” (4M14/1).

O medo desaparece pela vivência, não pelo saber feito de informações e interacções verbais, e precisa de tempo de amadurecimento.

3. Segunda síntese

Ao mesmo tempo que as “causas do não medo” revelam menos necessidade de defesas e uma visão mais positiva e uma maior aceitação de si mesmo e do mundo, vão também consolidando a tese da importância da descoberta do sentido pessoal nas experiências de vida como meio para lidar com o medo e atingir um nível de consciência mais elevado.

Com tudo isto em mente, ficam-me algumas inquietações-lições que procuro enunciar sob a forma de perguntas: a) O que tem a nossa cultura que tanto nos provoca medo? b) De que precisam os educadores para que possam, de facto, ajudar outros a enfrentarem os seus medos? c) O que falta no ar social que respiramos para que sejamos capazes de enfrentar a vida de forma “serena, útil e corajosa”?

4.4 O velho, o rapaz... e o medo

- “Quando alguém me diz que vá, que vou conseguir, eu avanço” (9K3a/4).

Mas, como se distinguem, pelas suas atitudes e comportamentos, aqueles que nos podem levar ao medo dos que nos ajudam a ver de outra perspectiva, a passar do medo à coragem, da dependência das circunstâncias exteriores ao sentido de vida?

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1. Como os outros reagem aos nossos medos

Quando olho o que, na categoria “como”, foi identificado como sendo o modo “como as pessoas reagem” aos nossos medos, encontro:

- Reacções de surpresa – “Os meus amigos dizem-me: «Já andas nisso há tantos anos… Como é que é possível?»” (2J1/4). - Relativização –- “A minha mãe sempre relativizou muito, não gosta de ir ao fundo de nada, acha que tudo passa...” (3O4/12). - Não compreensão – “Até a minha irmã me perguntava: «Por que é que tens tanto medo do insucesso escolar se nunca o tens?»” (3K2/7). - Confirmação da razão dos medos – “Uma vez, quando desabafei com a minha mãe, a minha mãe disse-me: «Oh filha, disso ninguém está livre, não é?». (...) Eu estava à espera que a minha mãe dissesse: «Tem juízo! Nem pensar!». E, realmente, quando a minha mãe me pôs a hipótese em aberto, eu não estava preparada para receber aquela informação” (3O4/5). - Ajuda – “Meti-me numa casa (...) até que apareceram uns amigos nossos de mota. Eu expliquei- lhes o que se passava e eles foram atrás do homem…” (3O4/7).

Isto é, em cinco tipos de respostas, só uma, aparentemente, é adequada e corresponde às expectativas. Que efeitos produzem estes tipos de resposta? Será também por isso que temos tanta dificuldade em falar dos nossos medos?

Mamoru Itoh (1996) em “Quero falar contigo sobre os meus sentimentos”, uma metáfora de uma beleza e simplicidade muito grandes, como só as metáforas muitas vezes conseguem ter, escreve sobre a necessidade e os obstáculos à comunicação comparando-os com o jogo da bola:

“Se a pessoa a quem atiraste a bola do coração a apanha (...) então uma fase da comunicação foi preenchida. Mas algumas vezes nós sentimos que «Ele não a apanhou da maneira que eu queria!» (...). Nós temos muitas formas como estas de falta de comunicação. Quando se acumulam momentos de falta de comunicação, as nossas emoções ficam instáveis. Nós ficamos aborrecidos, preocupados, zangados, com preconceitos, hostis. De vez em quando, explodimos... Depois, aos poucos e poucos, começamos a não sentir nada... E, mais cedo ou mais tarde, estamos sozinhos” (Itoh: 1996: 30).

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Continuo, por isso, fazendo-me perguntas. Como será que educa quem “começa a não sentir nada” e se habituou a calar? Como será que educa quem viveu e foi educado com e pelo medo? Como será que educa quem tem medo? Continuamos legando-o ou, tentando inverter o processo, mas conservando os medos (e sempre contagiando), educamos os nossos filhos sem eles mas, no seu lugar, não somos capazes de oferecer valores alternativos pelos quais eles sintam valer a pena lutar?

“A actual obsessão pelo divertimento é uma reacção à vida horrível que somos obrigados a levar (...). A busca de entretenimentos surge da necessidade de fugir dos problemas, conflitos e sentimentos que parecem intoleráveis e avassaladores (...). A diversão como uma fuga relaciona-se com a ideia da escapada. Esta é a rejeição da realidade social, da realidade de propriedade de uma outra pessoa, dos seus sentimentos e até da sua própria vida” (Lowen, 1984:16-17).

Se assim é, tudo é fácil, tudo tem de ser imediato, tudo tem de ser já. Talvez já não tenha medo de nada, mas sou, seguramente, dependente de tudo – o que quer dizer que tenho medo de tudo. Não será que também é assim que o medo (ainda mais disfarçado, poderoso, hostil e... medroso), continua sendo herdado, passado “de pais para filhos, de geração em geração” (Gil, 2005:78), e que assim se fecha um novo círculo vicioso?

2. Liderança e clima como factores importantes para aprender a lidar com o medo

Em contrapartida, quando, na categoria “por quê”, olho como se descrevem os educadores que influenciaram o não medo, encontro o que não depende de quem seja “a incarnação abstracta de uma experiência escolar” ou “uma fachada, um papel ou uma ficção”, mas o que depende de quem é pessoa “unificada, integrada, congruente” (Rogers, 1970:255).

Pela impressionante proximidade que entre os dois existe, coloco em paralelo um extracto das sessões do grupo de pesquisa com um texto de Dorothy Sisk e Paul Torrance em que, com linguagens e a partir de contextos muito diferentes, descrevem esses educadores.

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“A minha mãe foi a mulher coragem, a mulher “Muitos grandes professores e líderes apresentaram muitos comportamentos e crenças que também nós forte do evangelho que sempre deu estamos a propor como sendo inteligência espiritual ao falarem e agirem de acordo com as suas testemunho de uma fortaleza muito grande. percepções e valores que reflectem uma perspectiva Todos vivemos unidos a doença do pai com mais ampla; e, como resultado, as suas palavras e acções despertaram em nós o reconhecimento de uma forma e uma coragem muito grande verdades universais (...). Muitos deles estavam em situações desesperadas, e, mesmo assim, porque a mãe era o testemunho da força e da encontraram maneiras de fazer a diferença. Através coragem. E, se calhar, ela também passou de uma vida de serviço e descoberta, utilizaram a inteligência espiritual para transformar realidades esse testemunho (...) para nós” (3C4/3). biológicas em transformação do espírito”185. (Sisk & Torrance, 2001:X).

E mais: quando olho o que, na categoria “como”, foi identificado como sendo parte do clima necessário para aprender a lidar com o medo, encontro:

- Amor – “O amor (...) ajuda-nos a passar melhor” (6J34/4). - Autonomia e responsabilidade – “Gostei mais quando ela me liderou indo eu à frente. Porque isso significava que eu tinha liberdade nos meus movimentos” (10J3/3). - Confiança – “O que me ajudou a vencer o medo (...) foi o confiar, confiar nas pessoas que tinham organizado isto” (9L1/13). - Liderança – “Como ela me deu segurança, procurei pôr os meus passos pelos passos dela. Senti-me também bem quando houve uma altura em que eu caminhei à frente, porque, só por me fazer assim para um lado ou para outro, ela estava-me a indicar o caminho certo” (10A5/1).

Porque clima se define como “padrões habituais de comportamento, atitudes e sentimentos que caracterizam a vida num determinado contexto” (Isaksen et al, 1994:18), é evidente que também é fruto das reacções e acções dos outros ou, pelo menos, de “alguns outros”, daqueles com quem se tem uma interacção importante. Por isso é que, e embora o tema da formação de educadores não seja presentemente o foco central de atenção, não quero deixar de colocar um texto que, na ligação que pode estabelecer com esta análise, pode também vir a servir de mote para uma outra fase da pesquisa:

185 “Many great teachers and leaders demonstrate behaviors and beliefs that we are proposing as spiritual intelligence by speaking and acting in accordance with perceptions and values reflecting a larger perspective, and as a resulta, their words and actions awaken within us the recognition of universal truths. (…) Many of them were in hopeless situations, and still they found ways to make a difference. Through lives of service and inquiry, they employed spiritual intelligence to transform biological reality into a transformation of the spirit” (Sisk & Torrance, 2001:X).

391

“A melhoria da qualidade da educação tem como um dos seus pilares estratégicos a formação de professores. Sem embargo, esta formação não pode ser reduzida à capacitação de procura desenvolver saberes, habilidades e destrezas que o qualifiquem de um ponto de vista exclusivamente técnico (...). A formação implica processos educativos que transcendam esta dimensão do fazer do professor e penetrem a sua própria prática vital como sujeito de desenvolvimento” (Roldán Vargas, 1997:1).

3. Terceira síntese

Procuro, também daqui, e antes de passar à resposta da pergunta da pesquisa, tentar tirar um outro conjunto de ilações: a) São muitas e variadas as reacções das pessoas perante as situações de medo dos outros; nem todas revelam a experiência, a sensibilidade ou a empatia necessárias para se ser capaz de entender o que sente quem enfrenta essas situações. b) Quem vive com medo, educa com medo. c) Educador e líder não é quem não tem a coragem de ser o que é, mas quem, consciente das suas limitações, procura viver de acordo com as suas percepções e valores e, por isso, também é capaz de testemunhar e despertar para a experiência de vida plena.

4.5 Conjugando e formulando uma resposta

Relembro a pergunta da pesquisa aqui em causa – “por que razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?” E encontro as seguintes respostas:

392

a) Por causa do CONTÁGIO. Um educador que tente ajudar outros naquilo que ignora em si mesmo, pode, pela força da “não unificação do eu” que demonstra e transmite, tornar-se ele mesmo uma das causa do medo. b) Por causa da PASSAGEM DO TESTEMUNHO. Algumas das extensões do “ama ao próximo como a ti mesmo” (Mateus 25, 31) são: vês o próximo como te vês a ti mesmo; vives com o próximo como vives contigo mesmo; ajudas o próximo como te ajudas a ti mesmo; educas o próximo como te educas a ti mesmo.

c) Porque precisamos de LÍDERES que, procurando o seu sentido de vida na unidade e totalidade do seu eu, sejam capazes de criar uma atmosfera de calor humano e de compreensão, um CLIMA de autenticidade, sinceridade e congruência. “Aquilo que tu és fala tão alto que não consigo ouvir o que tu dizes” (Ralph Waldo Emerson, Apud, CPSB, slides de conferências públicas). d) Porque assim se completa o quadro das dimensões que, numa perspectiva sistémica, podem fazer a diferença entre a futilidade-inutilidade ou a grandeza- sucesso (a serenidade, utilidade e coragem) de um trabalho educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano (ilustração III.11):

i. Um propósito de realização Dimensões a considerar numa proposta de um programa educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano humana. ii. Uma metodologia que permite

a acção. O A Educador Metodologia iii. Um clima que contagia e

estimula solidariedade, a O Os Contexto/Clima diversidade e a mudança. Propósitos iv. Um educador que testemunha a possibilidade de

transformação. Ilustração III.11 – Perspectiva sistémica das dimensões a considerar numa proposta de um programa educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano.

Então, e da mesma maneira que, para dançar uma pirouette, se precisa olhar um ponto fixo para não perder o equilíbrio e manter a direcção, também tudo isto vai levando a

393

entender que, para se fazer um movimento de transformação, se precisa de uma âncora que sustenha. Não de uma âncora, de alguém, que prenda ou amarre, mas de alguém que, pela sua referência e testemunho e pelo que de Bem inspira e contagia, permita fluir livre e espontaneamente na descoberta e construção daquilo que se é – consigo mesmo, com os outros, com o mundo e, por isso, com as gerações vindouras.

4.6 Síntese do “por quê”

1. Síntese a) Quando os participantes no grupo de pesquisa indicam quem influenciou o seu medo ou o seu não medo, indicam sempre uma pessoa com quem tiveram uma interacção importante durante um período longo da vida. b) Quando justificam a presença do medo nas suas vidas, fazem-no essencialmente com razões que se prendem com a “percepção dos outros”. c) Quando encontram em si mesmos razões para terem medo, identificam, antes de mais, razões de “ausência de unificação do eu”. d) Quando dizem por que não têm medo, indicam não só razões centradas na percepção de si mesmos, como também razões que estão ligadas com o seu sentido de crescimento e de transcendência. e) Quando se referem ao clima adequado para aprender a lidar com o medo, referem a necessidade de amor, autonomia e responsabilidade, confiança e liderança.

2. Ser educador é ajudar outros a irem à descoberta de si próprios.

Então, e para que o trabalho de um educador seja honesto (o que também é a maneira de ser eficaz), é necessário que aquilo que ele “ensina” esteja também sendo trabalhado e fundamentado dentro de si próprio. Isto não é, obviamente, encher-se de conhecimentos e informações, mas sim experimentar e activar continuamente em si mesmo o processo de desenvolvimento humano que procura estimular nos outros. Não sendo assim, acredito, tornar-se-á num risível (e bem perigoso) guia que julga ser capaz

394

de conduzir alguém só porque leu e decorou atentamente o roteiro de uma montanha.

Por isso, só tem direito de educar outros quem se educa a si mesmo. Nós educadores (professores, formadores, facilitadores, adultos com responsabilidades na formação de outras pessoas, quaisquer que sejam as suas idades), SÓ ganhamos o direito de educar quando somos capazes de nos desvelar (pelo menos perante nós próprios) e de nos encararmos na lisura da nossa integridade e totalidade; quando somos capazes de começar a deixar para trás as roupagens, os disfarces, com que quotidianamente nos cobrimos; quando percebemos que tais roupagens não dão senão a nós mesmos (não aos outros) a imagem daquilo que gostaríamos de ser; quando percebemos que essa máscara só desvirtua o que, de facto, somos e que, afinal, é o que de mais bonito e convincente temos e podemos transmitir.

E como ilustração, trago à reflexão uma das pessoas mais respeitadas em todo o mundo, uma das figuras que melhor encarnou os valores essenciais da realização humana – a figura “serena, útil e corajosa” de S. Francisco de Assis, símbolo da paz e da fraternidade. Tendo descoberto (desvelado) o seu caminho, só fica definitivamente preparado e pronto para o começar quando, contra tudo e contra todos, deixa para trás todas as suas roupagens e, nu, se põe ao caminho.

3. O desafio de uma pesquisa em educação.

Transformar os problemas em oportunidades, aprender a transcender certo tipo de experiências, passar do auto-conhecimento ao auto-aperfeiçoamento, é o grande desafio que a criatividade pessoal coloca em todas as áreas do processo de viver. Acredito, por isso que, ir além do conhecimento “do que é” para, nos dados, descortinar vias de transformação em direcção ao que “pode ser”, também é o grande desafio de uma pesquisa em educação.

395

396

397

398 QUEM O QUÊ COMO

corpo emocional ausência de unificação do Eu corpo mental

corpo emocional desejo percepção do Eu corpo mental corpo mental imaginação corpo emocional

noção do dever corpo mental

corpo cultural

dependência de pessoas ou coisas corpo mental corpo emocional

experiências de não corpo emocional integração / abandono razões do medo causas do medo corpo emocional

experiências de violência / desrespeito corpo físico percepção dos Outros corpo físico-emocional

corpo cultural

4.7 Categorias de Análise experiências ou previsão de fracasso corpo mental POR QUÊ corpo emocional

experiências do mundo afectivo corpo emocional

práticas culturais corpo cultural

corpo cultural mitos percepção do Cosmos corpo transcendente-cultural

morte / finitude corpo espiritual ou transcendente

pessoas que influenciaram

corpo emocional

percepção do Eu corpo emocional-mental corpo transcendente

razões para não ter medo percepção dos Outros corpo mental causas do não ter medo corpo emocional

percepção do Cosmos corpo físico corpo transcendente

pessoas que influenciaram

perguntas do grupo que ficam em aberto PARA QUÊ

Lembrei-me de quanto tempo passei a lutar para conseguir uma coisa que não queria. Por que o fizera? Não conseguia encontrar uma explicação. Talvez porque tinha preguiça de pensar noutros caminhos. Talvez pelo medo do que os outros iriam pensar. Talvez porque ser diferente desse muito trabalho. Talvez porque o ser humano está condenado a repetir os passos da geração anterior, até que (...) um determinado número de pessoas comece a comportar-se de uma outra maneira. Então, o mundo muda, e nós mudamos com ele. Mas eu não queria mais ser assim. O destino devolvera-me o que era meu e agora dava-me a possibilidade de me mudar a mim mesmo, e de ajudar a transformar o mundo - Paulo Coelho

Paz não é só o oposto da guerra, nem só o espaço de tempo entre duas guerras – paz é mais do que isso. Paz é quando agimos de forma certa e quando há justiça entre todos os seres humanos e todas as nações – Pensamento Índio.

serve uma vida serena, útil e corajosa?186 5. Para que

Perante aquela que é, na sua formulação, a pergunta mais simples da pesquisa, tento traduzir, na linguagem simbólica do movimento corporal, o significado intrínseco do processo de trabalho sobre cada uma das perguntas que presidem a esta investigação. E o que logo me vejo fazendo é:

- abrindo os braços, como quem quer abarcar (ou abraçar?) o mundo – quando procuro as respostas para o “o quê” e o “como”; - esgaravatando e metendo os pés e as mãos na terra, como quem quer buscar nas profundezas as raízes que sustentam – quando quero saber o “por quê”; - crescendo em bicos de pés e levantando os braços para o alto, como quem quer criar asas e levantar voo em direcção ao que é maior e que transcende – quando me interrogo sobre o “para quê”.

Se ficasse só pelo movimento horizontal (do “o quê” e do “como”), correria o risco de ficar pela produção-consumo de informação, perdendo a visão da formação humana que um educador-investigador precisa ter (Trigo, 2005b) . Se ficasse só pelo movimento vertical (do “por quê” e do “para quê”), correria o risco de perder a visão ampla que só quem se entranha no quotidiano pode ter. Contudo, quando os dois movimentos se encontram, cruzam e interpenetram (e porque são muitas as variações e combinações que a partir deles podem ser criadas), é possível partir à descoberta da teia de movimentos que são os caminhos da condição humana e da complexidade do Ser.

186 Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.

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Ilustração III.12 – Sinergia dos movimentos horizontal e vertical das perguntas de investigação.

É, então, neste cruzamento que me coloco perante a pergunta que, procurando contrariar o vazio existencial de quem não se interrogue sobre o sentido das coisas, remete para o plano espiritual, para a auto-responsabilização e para o compromisso.

5.1 Ser parte do Universo

Porque (con)sequência de classificações anteriores, nas narrativas do grupo de pesquisa foram identificados, sem grande surpresa, dois tipos distintos de referências sobre o “para quê” do medo – o medo “para a conservação social” e o medo “para o desenvolvimento humano”.

O primeiro pretende reunir todas as situações que, apontando para a dependência, paralisia, conformismo, isolamento, imobilidade pessoal e social, possibilitam a utilização do medo com um objectivo muito preciso – a dominação, o controlo, o totalitarismo (Marina, 2006; Max-Neef, 1993).

- “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão, mas isolava-a de todas as outras comunidades, das outras cidades” (6L1/1).

400

O segundo tipo pretende apontar, através da relação tridimensional eu-outros-cosmos, para aquilo que são propósitos de vida autoconstrutiva, de comunicação interpessoal e de possibilidade de construção de um mundo melhor (Trigo & Coego, 2003). - “Uma coisa que os medos nos podem ajudar a encontrar é aquilo que nós realmente valorizamos” (4L5/1). - “Hoje em dia, quando trabalho, gosto de trabalhar com pessoas que me dizem exactamente aquilo que pensam, mesmo que eu não goste de ouvir” (3M2/4).

Nesta classificação, e num conjunto de referências em que, como adiante se verá e já antes também tinha acontecido, muito do mais significativo não é tanto o que está explícito, mas o que, pelo menos aparentemente, fica esquecido, a expressão SER

PARTE DO UNIVERSO (com o que implica de fortaleza por se saber em interacção com os outros e com o mundo), representa o pensamento central desta categoria de análise.

5.2 O medo para o desenvolvimento humano

Para começar a vislumbrar o sentido de uma “vida serena, útil e corajosa”, vou procurar perceber o que está contido no que foi genericamente classificado como sendo o papel do “medo para o desenvolvimento humano”. Aí as referências à “relação com o Eu” são bastante amplas (41 no total), e podem ser divididas em quatro novos sub-tipos:

a) Auto-conhecimento e/ou auto-aperfeiçoamento – “Sentir medo pode levar-me a reflectir nas minhas forças, buscá-las, ou rebuscá-las, preparar-me melhor, fazer tudo o que for preciso para lidar com o seu objecto, os objectos dos meus medos” (3K2/12).

b) Consciência do que se valoriza – “Por detrás de um medo pode haver alguma coisa que eu valorize muito” (4L5/1).

c) Construção de uma nova realidade – “Os medos que impedem certos sonhos podem ter alguma razão de ser, podem-nos estar a avisar que alguma coisa tem de ser bem levada a sério e que não vale a pena insistir em determinado tipo de situações” (4M13/3).

401

d) Realização de objectivos – “Sempre que eu tenho um medo, ele depois é compensado (...) quando supero o objectivo para o qual eu tinha medo” (3J4/14).

Quanto às referências ao papel do medo na “relação com os outros”, e apesar de serem sendo bem mais escassas (8 no total), também podem ser divididas em quatro novos sub-grupos:

a) Capacidade de empatia -“Por tudo isto eu ganhei sensibilidade e empatia, capacidade de acolher e de fazer com que os outros se sintam integrados” (4U6/9).

b) Descobrir o desconhecido – “Porque se atreveu a enfrentar (...), descobriu que, no outro lado, havia o inimaginável” (6U7/15).

c) Menor dependência / melhor relação – “Neste momento a relação com (...) é muito interessante (...). Ele está no seu espaço e eu estou no meu. E sempre que vou estar com ele, eu estou saudável, sou independente, não preciso dele. Quanto menos eu precisei dele, mais gostei dele” (3J4/12).

d) Sofrimento – “Ele sofreu muito com isso porque era criticado por toda a gente, por ter essa necessidade de ser diferente” (6J4/1).

Contudo, no que diz respeito à dimensão mais ampla do sentido do medo no desenvolvimento humano, a da “relação com o mundo” – porque “todos se complementam e crescem juntos: as espécies, os ecossistemas e o universo inteiro” (Boff, 1998:92) –, não existe qualquer referência, nem nos relatos das sessões, nem nos diários de campo dos membros do grupo. A verbalização (pois não é possível afirmar se também a consciência), ficou limitada à importância das relações micro e foram resguardadas (ou ignoradas) as relações e as sinergias desencadeadas ao nível de sistemas mais amplos.

“A Humanidade deixou de ser apenas uma noção ideal, tornou-se uma comunidade de destino, e só a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, desde agora, sobretudo uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua a sua aventura

402

sob a ameaça da autodestruição, o imperativo tornou-se: salvar a Humanidade realizando-a” (Morin, 2002:123

Preciso, por isso, ver se, no “medo para a conservação social”, enquanto negação ou impedimento ao desenvolvimento humano, estão presentes elementos que completem o quadro das reflexões e das experiências do grupo e ajudem à leitura do que ocorre ao nível do macro e do cronosistema.

5.3 O medo para a conservação social

“Cada vez que me perguntam como explico que se possa chegar a um estado de vazio existencial, procuro assinalar o seguinte facto: contrariamente ao animal, os instintos já não indicam ao homem o que tem que fazer, e as tradições não lhe dizem o que deve fazer e, muitas vezes, nem sequer já parece saber o que quer. É por isso que se inclina tanto para querer o que fazem os outros, como para fazer só o que os outros querem. No primeiro caso trata-se de conformismo, no segundo de totalitarismo” (Frankl, 1994:16).

Em termos globais, e embora escassas (11 no total), as referências que constituem a subcategoria “medo para a conservação social” apresentam características curiosas: todas elas foram identificadas na sessão 6 do grupo de pesquisa colaborativa, a sessão em que foi feita a análise de um filme através da aplicação da técnica ORA187; todas dizem respeito à primeira e segunda fases de aplicação da técnica (observar e relacionar) e nenhuma à fase de aplicação do observado ao próprio contexto de vida.

- “O medo naquele filme é tratado, sobretudo, em termos sociais (...). Eu ali relaciono o medo com a fuga e com o controlo (...). Ele serve de alavanca ao controlo social” (6I1/1,2).

Algumas poucas referências também indicam que o medo começou, ou foi instigado, por “uma boa causa” (6V32/2), por se considerar que podia desempenhar um papel positivo no desenvolvimento e estabilidade social.

187 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2 caminhando”.

403

- “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão” (6L1/1).

- “O mito servia para o controlo social. Era para não turvarmos a água e, assim, os mais velhos, apanhando a água na fonte, levavam para suas casas água limpa” (6K4/12).

Noutras, porém, incluindo alguns dos casos “bem intencionados”, as referências indicam que o medo deu origem a situações ambíguas e/ou serviu para fins menos claros.

a) Criação de aparências/dualidades – “O fugir só leva a uma aparente tranquilidade” (6U7/11).

b) Criação de dependências – “Quando um pai e um filho (...), quando provocamos medo para controlar o outro, fazemos por uma boa causa. Só que, a certa altura, esquecemo-nos que o outro já consegue “andar no bosque” sozinho e, portanto, escusamos de continuar a insistir esse medo” (6J32/2).

c) Isolamento - “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão, mas isolava-a de todas as outras comunidades, das outras cidades” (6L1/1).

d) Legitimação do poder e controlo social – “[O medo] serve de alavanca ao controlo social (...). Na sociedade de hoje (...) há sempre o papão (...), chame-se ele comunismo, capitalismo, terrorismo (...). Há sempre um papão que serve para justificar, legitimar, uma via de maior imposição, de maior controlo social. O mesmo acontece muitas vezes nas famílias” (6I1/2).

5.4 O papel do medo na construção do humano

Considerando que o que consta do ponto anterior não diz tanto respeito a experiências individuais, mas a observações dos participantes do grupo de pesquisa sobre o que se passa em níveis mais amplos do sistema de interacção humana, começo por fazer um esquema de transformação e correspondência directa dos resultados aí obtidos com o

404

que possa ser o sentido do “medo para o desenvolvimento humano na relação com o mundo”:

a) No lugar da dualidade, a coerência. b) No lugar da dependência, a responsabilidade e a criação. c) No lugar do isolamento, a abertura e a fraternidade. d) No lugar do poder e do controlo, a autoridade, a liberdade e a paz de quem se coloca ao serviço daqueles que são as muitas vítimas do medo.

A partir daqui, e conjugando com todos os restantes resultados, crio um quadro síntese da perspectiva do grupo de pesquisa sobre as três dimensões do medo na construção do humano (tabela III.17):

O papel do medo na construção do humano Auto-conhecimento e auto-aperfeiçoamento. Consciência do que se valoriza. Na relação com o Eu Realização de objectivos. Construção de uma nova realidade. Capacidade de empatia. Descobrir o desconhecido. Na relação com os outros Menor dependência / melhor relação. Crítica e sofrimento. Coerência Responsabilidade e criação. Na relação com o mundo Abertura e fraternidade. Serviço, autoridade, liberdade e paz. Tabela III.17 – O papel do medo na construção do humano.

5.5 Ligações e reflexões

Em triangulação com outros autores (nomeadamente com Viktor Frankl, pelo quanto, desde a sua própria experiência e em situações limite, comprovou a essência e a possibilidade de se ser humano), e relembrando que o eixo central da categoria aqui em

405

análise é SER PARTE DO UNIVERSO, tento reflectir sobre algumas das ideias e observações até aqui apresentadas para que, a partir delas e da descoberta dos desafios que lhes estão implícitos, possa depois formular uma resposta para a última pergunta da pesquisa.

1. O desafio da CONSCIÊNCIA de que se é parte de um todo

Primeira observação: o entendimento da missão que cada um tem no mundo foi apontado, noutros pontos da análise188 das narrativas do grupo, como uma das componentes fundamentais do processo de lidar com o medo “centrado no desenvolvimento humano”. Contudo, quando se procura o sentido do “medo para o desenvolvimento humano” em esferas mais amplas do que as das relações e circunstâncias imediatas, a consciência do que aí acontece e do papel que cada pessoa aí desempenha parece começar a diluir-se. É preciso, por isso, pensar sobre as implicações dessa (pelo menos aparente), falta de sintonia e de coerência. Encontro em Frankl uma preocupação muito clara:

“Quem se fixa na auto-realização como meta, passa por alto e esquece que, em última análise, o homem só se pode realizar na medida em que atinge a plenitude de um sentido fora no mundo e não dentro de si mesmo. Por outras palavras, a autorealização foge da meta escolhida já que se apresenta como um efeito colateral, que defini como “autotranscendência” da existência humana”189 (Frankl, 1994:21).

Segunda observação: mesmo quando, nas narrativas do grupo, não se encontra o “medo para a conservação social” a desembocar directamente em situações ambíguas e/ou a servir fins menos claros, também é preciso pensar (apesar das “boas intenções” dos valores sociais que lhe sirvam de justificação), que espécie de homens e de sociedade assim estão sendo produzidos. Ribeiro Dias coloca a questão:

188 Ver ponto 3 deste capítulo. 189 “Quien se fija tal autorrealización como meta, pasa por alto y olvida que el hombre en último término puede realizarse sólo en la medida en que logra la plenitud de un sentido fuera en el mundo no dentro de sí mesmo. En otras palabras la autorrealización se escapa de la meta eligida en tanto se presenta como un efecto colateral, que yo defino como “autotranscendencia” de la existencia humana” (Frankl, 1994:21).

406

“A realização do ser humano (...) exige ser conduzida por quem? Pela liberdade e força de vontade do «Eu pessoal» correndo o risco de chocar com a orientação oposta dos outros eus, ou pela sabedoria de um «Eu supra-pessoal», tantas vezes confundido, por si ou por outros, com o Eu do Grupo, do Partido, do Estado ou até da Humanidade ou da Realidade, «fácies» do Duce, do Führer, do Big Brother ou mesmo do rosto intratável do próprio Deus, presentes em todas as formas de autoritarismos, ditaduras e fundamentalismos, capazes de conjugar as vontades individuais mas também de as contrariar, esmagar e destruir?” (Ribeiro Dias, 2000:19).

Não parece, por isso, possível fazer uma ilação directa dos resultados aqui obtidos. Apesar de oriundos de sub-categorias distintas, o “para quê” do medo assim encontrado, seria “classificado” num continuum entre dois extremos – de um lado, o do

INDIVIDUALISMO, com aquilo que ele significa de focalização na vida privada e fragmentação dos espaços da vida (Teixeira Fernandes, 2001:58); do outro, o

AJUSTAMENTO, com aquilo que ele se traduz em contribuição para o bem-estar comum a partir de um encaixe num nicho pré-existente (Guenther & Combs, 1980). Isto é, em última análise, os dois extremos representariam o medo para a conservação social.

Porém, se (pela harmonia e Ilustração III.13 – Construção do binómio individuação-solidariedade integração das polaridades), cada extremo se tornar no seu oposto, é possível encontrar um novo continuum. O continuum da INDIVIDUAÇÃO190/ SOLIDARIEDADE191 que, partindo do Eu Profundo, possa encontrar numa missão e no mundo a plenitude da existência humana (Teixeira Fernandes, 2001:58; Frankl, 1994:21; Ribeiro Dias, 2000:141).

190 Teixeira Fernandes define individuação como “processo de assunção livre por cada uma das orientações do mundo que dão sentido à existência” (Teixeira Fernandes, 2001:58). 191 Corresponde ao binómio autonomia-dependência do princípio da complexidade de Morin (2003, 2006).

407

2. O desafio da RESPONSABILIDADE por se ser parte de um todo

Quando, nas narrativas do grupo, se analisa o tema do “medo para a conservação social”, o discurso do “medo para o desenvolvimento humano”, em que o sujeito se revela na primeira pessoa, é substituído por um discurso em que o sujeito se torna indefinido.

- “Eu ali relaciono o medo com a fuga e com o controlo. (…) ele serve de alavanca ao controlo social. (...). Na sociedade de hoje também há sempre o papão – qualquer regime mais autoritário, mas, mesmo o regime democrático que assuma uma via mais autoritária tem sempre um papão” (6I1/2).

Deste modo, e deixando implícito que “alguém”, não identificado e longínquo, muitas vezes plural, “social”, é o responsável-causador das situações assim criadas, ficam também em aberto duas outras questões: - o papel desempenhado pelo sujeito individual no “medo para a conservação social”; - o papel desempenhado pelo sistema social no “medo para o desenvolvimento humano”.

Será isto uma outra marca192 da nossa dificuldade em “assumir a responsabilidade” (ou, pelo menos, a co-responsabilidade pela omissão) por aquilo que se vive? Será isto uma outra forma de inibição-limitação do “movimento centrífugo da mudança”, mas agora em termos sociais? Também em Frankl encontro para estas questões uma provocação aos educadores:

“Na nossa época, a educação deveria ocupar-se não só em transmitir conhecimentos, mas também de refinar a consciência para que o homem seja capaz de escutar em cada situação a exigência que contém. Numa época em que os dez mandamentos parecem perder a sua vigência para tanta gente, o homem deve estar preparado para perceber os 10.000 mandamentos que estão encerrados nas 10.000 situações com que enfrenta a vida. Então não só esta vida apareceria cheia de sentido, mas ele mesmo estaria imunizado contra o conformismo e o totalitarismo – ambos consequência do vazio existencial – pois uma

192 Ver ponto 3 deste capítulo.

408

consciência alerta torna-o capaz de «resistir» de maneira que não se entregue facilmente ao conformismo nem se desobrigue tão pouco do totalitarismo” (Frankl, 1994:31).

3. O desafio de se DECIDIR e REVELAR como único no todo

Por último, uma reflexão a partir do conteúdo de uma das subcategorias atrás identificadas, a subcategoria “sofrimento”, que, com uma só referência, indicia a presença da dor na descoberta do sentido do “medo para o desenvolvimento humano”.

- “Ele sofreu muito com isso porque era criticado por toda a gente, por ter essa necessidade de ser diferente” (6J4/1).

Estando o medo, na sua génese, ligado com o princípio da dor (Damásio, 1995), poderia supor-se que, pela capacidade de o superar e/ou de nele se encontrar um sentido, o pêndulo da regulação vital do organismo oscilaria “automaticamente” para o lado do princípio do prazer. É, aliás, o que, em princípio, parece acontecer com outras subcategorias atrás identificadas193 – por exemplo, com a “construção de uma nova realidade”, a “realização de objectivos”, a “capacidade de empatia”, o “auto- conhecimento e/ou auto-aperfeiçoamento”, etc.

- “Isso depois dá-me uma grande auto-estima, porque eu penso: “Ok, estou a dar a volta a isto” (...). E sinto-me outra vez forte porque aprendi com aquilo. (...) Já não sou dominado, eu continuo a dominar” (4J6/3).

Contudo, o que a referência da subcategoria “sofrimento” exprime com clareza (e que outras subcategorias também têm implícito), é que, qual grão de mostarda deitado à terra (Marcos 4,30-32), para que a transformação-criação aconteça e cada um se revele na sua unicidade e grandeza, é preciso aceitar que fazer essa escolha também é morrer para todos os outros possíveis:

Primeiro, porque é preciso perceber que dizer sim também é dizer não.

193 Ver tabela III.16.

409

- “«Pensar é morrer» (...) porque, quando penso demasiado numa coisa, e quando esse pensamento provoca uma mudança, provoca avançar num sentido diferente daquele em que vivíamos. E eu compreendo esse sentido de pensar é morrer, ou seja, deixar para trás uma coisa que éramos e começar a construir outra” (7M5/2) 194.

Segundo, porque é preciso deixarmo-nos tomar pela inquietação e perder o contentamento e a calmaria dos “mornos”. - “Seriam os mais alienados. Se calhar eram os que viviam melhor. (...) Às tantas, são os ignorantes – que passam ao lado e não questionam, aceitam… mais felizes; eventualmente são mais felizes” (6I3/1)195.

Terceiro, porque é preciso conviver com a incerteza, com a resistência, com a incompreensão, até mesmo com o distanciamento e ressentimento. - “Quem luta fica mais forte, quem foge, em princípio, fica mais fraco, porque não enfrentou e, portanto, interioriza a sua incapacidade; ainda que os que lutam só ficam mais fortes se ganharem ou não se magoarem – porque, às vezes, lutam e perdem, ou magoam-se e podem morrer, inclusivamente. No entanto, às vezes, perder é bom... Aquilo fez-me sempre andar como um pêndulo” (6I2/5).

Quarto, porque é preciso perceber que o medo não é o essencial, mas o circunstancial da pessoa, mas que isso provoca o vazio de quem fecha uma etapa para dar espaço a outra. - “Todos os labirintos na minha vida: (...) sempre que estou lá, penso “que chatice!”. (...) E depois, quando saio, digo “que chatice”!” – fico com a sensação de perda. Às vezes parece que estou farto de estar lá e, depois, quando saio, fico com sensação de perda” (10J2/4)196.

Olhar o medo de frente, buscar o sentido da existência, construir uma vida “serena, útil e corajosa”, é comprometer-se num processo permanente de mudança. A busca de sentido não se resume à procura da felicidade, nem pode, enquanto processo criativo de quem se atreve a escrever a própria história, confundir-se com o anseio por um tranquilo e definitivo porto de chegada. Pelo contrário, é entregar-se ao entendimento

194 Classificado como “para quê, desenvolvimento humano, eu”. 195 Classificado como “o quê, efeitos do medo”. 196 Classificado como “para quê, desenvolvimento humano, eu”.

410

encarnado de que o prazer não se encontra só nos resultados, mas, sobretudo, no desfrute e valorização de cada momento do processo.

“Precisamos superar a ideia de que o homem busca fundamentalmente a felicidade; o que quer, na realidade, é encontrar uma razão para ele. E quando encontra essa razão, o sentimento de felicidade apresenta-se por si só. Contudo, na medida em que a procura directamente, perde de vista o fundamento em que se baseava e o sentimento de felicidade desmorona-se. Por outras palavras, a felicidade deve ser uma consequência e não se atinge só pela vontade197” (Frankl, 1994:25).

5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa

Retomo e resumo o que já foi explicado sobre o essência das perguntas da pesquisa: a

SERENIDADE da vida é tempo e fruto do centrar-alimentar; a UTILIDADE da vida é tempo e fruto do agir; a CORAGEM é tempo e fruto do celebrar e do abençoar a unidade do Ser. Contudo, e neste momento da pesquisa, dou-me conta de que tal vida também representa o que Viktor Frankl diz serem os três caminhos da descoberta de sentido.

“O homem, por força da sua vontade de sentido, não só busca um sentido, mas também (...) o encontra por três caminhos. Antes de tudo, encontra um sentido em fazer e produzir algo. Além disso, encontra um sentido em vivenciar algo, em amar alguém. Mas, mesmo numa situação sem saída, com que se enfrenta inerme, pode, sob certas circunstâncias, encontrar um sentido; o que importa é a atitude e a firmeza com que enfrenta o destino inevitável e fatal. A firmeza e a atitude permitem-lhe dar testemunho de algo de que só o homem é capaz: converter um sofrimento numa conquista” (Frankl, 1994:33).

No caminho DO QUE SE FAZ E SE PRODUZ, descobre-se a utilidade; no caminho da

VIVÊNCIA E DO AMOR, descobre-se a serenidade; no caminho da TRANSFORMAÇÃO DO

SOFRIMENTO NUMA BÊNÇÃO, descobre-se a coragem.

197 Texto original: “… y no se puede lograr a voluntad” (Frankl, 1994:25).

411

Para que serve, então, uma vida serena, útil e corajosa, para que serve uma vida sem medo?

“Para recuperar essa harmonia fundamental que não destrói, que não explora, que não abusa, que não pretende dominar o mundo natural, mas que deseja conhecê-lo na aceitação e respeito para que o bem-estar humano se dê no bem-estar da natureza em que se vive. Para isso é preciso aprender a olhar e escutar sem medo de deixar de ser, sem medo de deixar os outros ser harmonia – sem submissão” (Maturana, 2006)198.

Tal como, quando perdidos numa estrada, precisamos orientações simples para encontrar a direcção do nosso destino, também agora, para esta pergunta de formulação simples, quereria formular uma resposta simples – serve para a realização de uma utopia realizável199. Uma utopia realista, segundo Morin (1998 e 2006). Serve para que a pessoa seja capaz de ser o que o mundo precisa.

5.7 Síntese do “para quê”

Nas narrativas do grupo de pesquisa foram inicialmente identificados dois tipos de sentidos para o medo – o “medo para a conservação social” e o “medo para o desenvolvimento humano”.

Contudo, ao longo do processo de interpretação dos dados, fica muito mais clara a ideia de que os sentidos do medo não se separam em blocos distintos, mas antes podem ser encontrados num continuum entre dois pólos – de um lado, o pólo do individualismo e do outro, o pólo do ajustamento. É, contudo, com a integração destas duas polaridades, numa dinâmica de individuação-solidariedade, que se encontra o desenvolvimento humano, se responde ao seu desafio e se encontra a fortaleza de se ser e sentir parte do todo.

198 www.angu.net/feijao/edu_maturana.htm. 199 Utopia realizável – “um conceito utópico em que acreditamos e vemos como possibilidade de realização no tempo” (Trigo et al., 2001:31)

412

Uma vida serena, útil e corajosa, uma vida sem medo, enquanto conceito utópico de uma realidade que se acredita possível, traduz-se, por isso, da seguinte maneira:

- Na relação com o Eu – auto-conhecimento e auto-aperfeiçoamento, consciência do que se valoriza, realização de objectivos, construção de uma nova realidade. - Na relação com os outros – capacidade de empatia, descobrir o desconhecido, menor dependência / melhor relação, sofrimento. - Na relação com o mundo – coerência; responsabilidade e criação; abertura e fraternidade; serviço, autoridade, liberdade e paz.

Pela interacção entre as três dimensões se dá a resposta de que o mundo precisa.

413

414

415

416 QUEM O QUÊ COMO POR QUÊ 5.8 Categorias de Análise para a conservação social

na relação com o Eu PARA QUÊ para o desenvolvimento humano na relação com o Outro na relação com o Cosmos

perguntas do grupo que ficam em aberto

IV. CELEBRAR

418

I. PROCESSO DA PESQUISA Introdução Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR O sentido do caminho À maneira de conclusão Proposta educativa Para abrir um novo caminho Fechar o ciclo Reabrir o ciclo

419 O Sentido do Caminho

Verdade

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. A porta da verdade estava aberta, Chegaram ao lugar luminoso Mas só deixava passar, Onde a verdade esplendia seus fogos. Meia pessoa de cada vez. Era dividida em metades Diferentes uma da outra. Assim não era possível atingir toda a verdade, Porque a meia pessoa que entrava Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Só trazia o perfil de meia verdade Nenhuma das duas era totalmente bela. E a segunda metade E carecia optar. Cada um optou conforme Voltava igualmente com meio perfil. Seu capricho, sua ilusão, sua miopia. C. Drummond de Andrade

O caminho foi feito. Ou, melhor, foi feito um certo caminho – um caminho possível, o da “meia verdade” da sabedoria do poeta, “conforme meu capricho, minha ilusão, minha miopia200” (Drummond de Andrade, 2005). Agora, sete anos decorridos, é tempo de parar, de recuar um pouco e de semicerrar os olhos para, do ponto em que me encontro, e sob uma certa luz, procurar Análise da Análise da Categoria Categoria A+B descortinar os contornos do B A caminho ou do desenho feito – A+C B+C analisando, avaliando,

Análise da Legenda Categoria escolhendo, compreendendo, C Passo 1: A / B / C = análise de categorias fortalecendo. Passo 2: A+B / B+C / A+C = interpretação Passo 3: A+B+C = construção de sentido

Ilustração IV.1 – Passo 3 – construção de sentido. Perceber é, assim, dar um sentido ao mundo e à vida; a um mundo e a uma vida que este trabalho construiu. Procuro, por isso, conjugar e ler, em duas partes distintas, a essência do que, ao longo da investigação, foi sendo colocado:

- Na primeira, e à maneira de conclusão, recapitulando/recriando alguns dos elementos mais significativos da tese.

200 Os sublinhados são meus.

420 - Na segunda, e numa proposta educativa, criando/enquadrando os princípios a ter em conta na educação de adultos – aquilo que é, afinal, o propósito da pesquisa.

• À maneira de conclusão

One of my uncles passed on to me a great story of a Cherokee grandfather talking to his grandson. The Grandfather explains, “there are two wolves that live within each of us. One is filled with anger, hate, lust, envy, jealousy and outrage at the injustices done to him. The other is filled with compassion, kindness, humility and understanding”. The grandson asked him “Grandfather, which is the stronger?”, and the Grandfather answered: “the one wee feed” – Autor desconhecido

Há algumas semanas atrás, ouvi contar que, entre os utentes de uma das linhas de autocarro da cidade, se discutia apaixonadamente a ideia de fazer circular um abaixo- assinado para que fosse pedida a criação de uma nova “lei” que proibisse os reformados (os “velhos que andam para cima e para baixo a passear”), de utilizarem aquele transporte público nas horas de ponta e, assim, de ocuparem “o lugar de quem trabalha”.

Fiquei a pensar, não só no que este episódio significa em termos sociais e culturais, mas também no que ele significa no contexto desta pesquisa, já que o senti como símbolo de tantas das coisas que foram objecto de reflexão e análise ao longo do processo investigativo:

1. Um conceito de valor e de direitos humanos que se mede por cálculos economicistas e rejeita o que não se encaixa nos padrões vigentes. 2. A focalização nos próprios problemas, com a consequente perda do sentido de identificação, de empatia pelos outros e de afinidade humana. 3. Um sentimento de ameaça do desconhecido e de não aceitação da própria natureza (ou das próprias sombras), aliado a uma vontade de impunidade de quem vive como se aquilo que não aceita (ou de que tem medo) fosse algo descartável de todos os possíveis.

421 4. Uma não consciência do papel que se tem na construção da realidade e do quanto, a partir do nível micro, se é co-responsável pelo que se vive ao nível macro. 5. O resultado de políticas que entendem que o tecnológico se sobrepõe ao humano, ou que o humano se resolve através do tecnológico. 6. Uma atitude de controlo e dominação, em muito semelhante à que leva à criação de guetos e/ou à colocação de carimbos, de estrelas amarelas (rosas, azuis, ou o quer que seja), para mais fácil identificação dos não desejados. 7. Uma necessidade de sobrevivência a qualquer custo que, por causa do medo, do interesse pessoal e do vazio que tudo rodeia, está ameaçando destruir o que em cada um é humanidade.

O medo afecta a nossa vida pela forma como é olhado e sentido – se for um medo construtivo e apropriado, constitui uma chamada para a acção; se for um medo destrutivo e desadequado, é prejudicial para o próprio e para os outros e impede o desenvolvimento humano. A grande dificuldade é que, como naquele episódio antes citado, o medo se disfarça repetidamente de muitas caras e máscaras (de indiferença ou de abnegação, de poder ou de brandura, de preguiça ou de azáfama, de tensão ou de euforia...) e, pelo seu desconhecimento ou negação, pode converter-se num disparador de dualidades desintegradoras e limitadoras da unidade, totalidade e interacção da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo.

Com esta preocupação em mente, e a partir das imagens que me suscitam o desafio da imanência e transcendência da nossa condição humana, retomo e sintetizo o que, à luz da complementaridade e na interpretação dos resultados da pesquisa, explica as diversas interrogações e dinâmicas que rodeiam uma vida que se quer serena, útil e corajosa.

Assim, e porque é resultado de um estudo exploratório, procuro apresentar o que poderá ser um subsídio para uma futura construção de tipos-ideais que conjuguem os atributos comuns à média das distintas formas de lidar com o medo. São QUATRO

MODELOS DISTINTOS que, enquanto modelos (ou pré-modelos), não existem puros na realidade, mas que, como tal, podem facilitar a compreensão das situações

422 intermediárias que vivemos e que, no campo da Educação de Adultos, precisam de um olhar atento.

Os primeiros três, sintetizando formas de viver com um medo desintegrador, representam respostas condicionadas pelo auto-desconhecimento, pelo disfarce e negação de si mesmo, pela dualidade, pela fragmentação do humano. O último, símbolo de uma vida destemida e com sentido, representa respostas de totalidade e unicidade.

1. Viver com os pés pisando firme na terra – o predomínio da utilidade e do agir.

Tão firme que, às vezes, os pés se enterram e ficam atolados; tão firme que só se consegue descortinar o sentido da utilidade e dos deveres da vida. Sem consciência de que pode ser de outra maneira, é o viver para o agir, ignorando (temendo) a consciência de si mesmo, as experiências e o sentido de interioridade e transcendência.

Ilustração IV.2 – Predomínios da utilidade e do agir.

Privilegiando as potencialidades do corpo mental e do corpo cultural, colocam-se aqui, e entre outros, os seguintes comportamentos e atitudes:

- centrar a atenção no profissional, no exterior, na matéria e no empírico; - situar o pensamento e o discurso mais no racional, lógico e analítico; - buscar o sentido da vida no fazer e no produzir.

423 Num mundo sem espírito, de desistência do eu, de anulação das diferenças, de limitação da comunicação e de sofrimento sem sentido, são exemplos de medos: o medo do existencial, o medo da intimidade-comunicação consigo mesmo, o medo da solidão, o medo de ser diferente, o medo do desconhecido...

2. Viver com os olhos postos no sol – o predomínio da serenidade e do centrar.

Olhando tão só para o alto que o corpo fica a pairar sobre a terra; tão distante da realidade física que só se consegue descortinar o sentido da luz, do sonho e do espiritual da vida. Sem consciência de que pode ser de outra maneira, é o viver para o centrar e para a serenidade, ignorando (temendo) as experiências e o desafio do quotidiano, das limitações e da matéria.

Ilustração IV.3 – O predomínio da serenidade e do centrar.

Privilegiando as potencialidades do corpo transcendente e do corpo intuitivo, colocam- se aqui, e entre outros, os seguintes comportamentos e atitudes:

- revelar uma “face luminosa” e esconder o que se acredita serem as “sombras” da matéria; - acreditar que no eu solitário se descobre a essência humana; - sonhar e projectar, mas não executar; - buscar o sentido da vida numa interioridade e num amor sem objecto.

Num espírito sem mundo em que se foge dos outros e se foge do mundo, são exemplos de medos: o medo do próprio corpo, o medo da decisão, o medo do compromisso, o medo da avaliação, o medo do conflito...

424 3. Viver sem os pés pisando firme na terra, nem os olhos postos no sol – o predomínio do celebrar, mas sem coragem.

Desligado da terra e distante do sol; tão longe de um e do outro que só se procura viver em função daquilo que são os interesses imediatos. Sem consciência de que pode ser de outra maneira, é o viver para o celebrar, desvirtuando, ignorando (temendo) tanto as exigências do quotidiano, como as reais necessidades de si mesmo, como ainda as demandas do espírito.

Ilustração IV.4 – Predomínios do celebrar, mas sem coragem.

Privilegiando as potencialidades do corpo físico e do corpo emocional, colocam-se aqui, e entre outros, os seguintes comportamentos e atitudes:

- fugir dos problemas, ignorar os próprios sentimentos e necessidades reais, criar dependências; - procurar a satisfação de necessidades deficitárias falsas, ser insaciável de emoções, de comida, de afectos, de dinheiro, de entretenimento, de segurança, de aprovação... - buscar o sentido da vida no individualismo, no facilitismo e no imediatismo.

Sem espírito e sem mundo, vivendo na paralisia e no conformismo, rejeitando a realidade e os desafios da vida e do Ser, são exemplos de medos: o medo dos outros e do mundo enquanto projecção do medo de si mesmo.

425 4. Viver com os pés pisando firme na terra, os olhos postos no céu e no sol e todo o resto do corpo fazendo a ligação entre os dois – a inter-penetração da serenidade, da utilidade e da coragem.

Enquanto conceito utópico de uma realidade que se acredita possível, a construção de uma vida “serena, útil e corajosa” é processo criativo de quem se atreve a escrever a própria história na unificação de todas as dimensões humanas, na coerência entre o tempo de interioridade e o tempo de exterioridade, na consciência da dependência entre a realização pessoal e a realização do mundo.

É comprometer-se num processo permanente de mudança, permitindo-se percorrer o caminho da missão, da integração da sabedoria de dois mundos e do testemunho de que outro modo de vida é possível. É compreender que, no caminho do que se faz e se produz se descobre a utilidade; no caminho da vivência e do amor, se descobre a serenidade; no caminho da unificação dos opostos se descobre e celebra a coragem.

Ilustração IV.5 – A inter-penetração da serenidade, da utilidade e da coragem.

Os medos de(sta) gente madura, que se confundem com desejos e sonhos, são os medos das necessidades de crescimento, de significação, de sentido, de justiça, de beleza, de criatividade – são, por isso, os medos e os desafios de quem ama.

• Proposta educativa

O objectivo deste ponto do trabalho é congregar um conjunto de princípios que, a partir da interacção de três áreas estruturadoras da construção do humano – Educação,

426 Criatividade e Motricidade Humana –, orientem a construção de um programa de Educação de Adultos sobre “o Medo e o Desenvolvimento Humano”.

C r i a t i v A Educação de Adultos é o terreno de i d a d e intervenção num tempo e num lugar. A Criatividade é o projecto de auto-

e superação. A Motricidade Humana é o d a a d i n c a i sujeito em relação, a forma e expressão r t m o u H M Educação de Adultos concreta da natureza humana estar no

Ilustração IV.6 – A dinâmica do desenvolvimento humano mundo. Os vínculos que entre elas na educação criativo-motrícia. existem, e que dão origem à EDUCAÇÃO

CRIATIVO-MOTRÍCIA, tornam-nas parceiros privilegiados, vitais, no processo de Desenvolvimento Humano:

a) porque têm uma mesma natureza dinâmica; b) porque manifestam uma mesma recusa da simplificação do humano a aspectos instrumentais, estritamente biológicos ou economicistas; c) porque pressupõem uma mesma ânsia de crescimento e de transformação; d) porque assumem um mesmo compromisso com a acção; e) porque apontam para um mesmo sentido ecológico, imanente e transcendente da construção da existência humana.

Além disso, considera-se que:

a) O MEDO, enquanto emoção, é uma resposta reflexa a determinados estímulos; enquanto sentimento, permite a criação de uma estatégia de protecção; mas, enquanto estado de alma (não patológico, mas encarnado, enraízado e subtil), é muito mais uma forma de estar no mundo – não uma coisa que se tenha, mas uma condição em que se está e em que se vive e que, em causalidade circular, tem, no modo de percepção do eu, a matéria prima da sua força e, na dualidade e infidelidade a nós mesmos, um dos seus efeitos mais desintegradores e limitadores.

427 b) O DESENVOLVIMENTO HUMANO é um movimento em espiral, consciente e intencional, com ondas de repercussão que flúem entre os contextos micro e macro, em princípio acessível a qualquer indivíduo que, por criação própria e em busca de sentido na sua totalidade complexa, rompe as barreiras da gente cinzenta, sem graça e com medo, alarga as fronteiras da desconfiança, da apatia e da mediocridade feita norma e, com isso, assegura a possibilidade de construção de mundos de alegria e de paz.

Neste duplo enquadramento, defino QUATRO PRINCÍPIOS GERAIS que, a partir do paralelo entre os resultados das perguntas da pesquisa, as dimensões da Educação Criativo- Motrícia e palavras clássicas de um Programa Educativo (tabela IV.1), e em interacção sistémica (ilustração IV.6), sustentam a planificação e aplicação de um programa sobre “o medo e o desenvolvimento humano”:

Perguntas da Dimensões da Educação Programa PRINCÍPIOS EDUCATIVOS Pesquisa Criativo-Motrícia Educativo Produto / Consciência de si, Para quê Propósitos 1. O princípio da individuação-integração. dos outros, do cosmos Quem Pessoa / Corporeidade Destinatários 2. O princípio da inquietação. Como Processo / Tempos da Metodologia 3. O princípio da coerência da acção e do O Quê201 Mudança reconhecimento de si mesmo. Pressão / Relação Eu-Outros- Porquê Ideário 4. O princípio do testemunho e do contágio. Cosmos Tabela IV.1 – Paralelo entre perguntas da pesquisa, dimensões da educação criativo-motrícia, elementos de um programa educativo e os princípios didácticos de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano.

1. PARA QUÊ – O princípio da individuação-integração (o sentido da mudança).

Com o intuito global de proporcionar ocasiões de consciência e vivência que permitam

(1) RECONHECER dualidades, disfarces e sentimentos de escassez que levam à perda do sentido de identidade, à paralisia e imobilidade pessoal e social, ao isolamento e controlo, ao conformismo e totalitarismo e (2) COMPREENDER e CONSTRUIR um processo de humanização em busca da emancipação do Ser Humano na sua relação consigo

201 Reúnem-se aqui os resultados de duas perguntas da pesquisa pois é pelo “como” que se tem acesso ao “o quê”.

428 mesmo, com os outros e com o mundo, um programa educativo sobre “o medo e o desenvolvimento humano” pode orientar-se em função da mobilização e aperfeiçoamento de três propósitos que se interpenetram numa mesma realidade da vida:

a) SERENIDADE – TOMAR CONSCIÊNCIA de que se é parte de um todo. - Centrar e aprender o silêncio. - Perceber quem se é e para que se existe – entender a missão, ter clareza de metas, descobrir o motivo da vida para se ser capaz de ser a pessoa de que o mundo precisa.

b) UTILIDADE – ASSUMIR A RESPONSABILIDADE por se ser parte de um todo. - Descobrir o valor e a coerência em diversos campos de vida. - Conhecer e explorar capacidades ocultas e potenciais criadores. - Construir projectos de intervenção pessoal e comunitária.

c) CORAGEM – DECIDIR-SE e REVELAR-SE como único no todo. - Celebrar o ser único e unificado, sem o qual o mundo seria diferente. - Descobrir ocasiões para valorizar e desfrutar os processos. - Aplicar projectos de intervenção pessoal e comunitária.

QUEM O QUÊ/COMO Inquietação Reconhecimento Coerência

POR QUÊ Testemunho PARA QUÊ Contágio Individuação Integração

Ilustração IV.7 – Interacção sistémica dos princípios educativos de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano.

429 2. QUEM – O princípio da inquietação (a percepção-consciência do sujeito em relação)

Simultaneamente princípio e fim, os destinatários de um programa educativo deste tipo são ADULTOS, com necessidade e vontade de reconhecerem em si mesmos a presença do medo e de acederem a um nível de consciência e de desenvolvimento mais elevado.

Contudo, porque se trata de um processo em que dar e receber se confundem (porque ensinamos e aprendemos simultaneamente), não existe uma separação rígida entre destinatários-educandos e destinatários-educadores – as condições que se colocam para os educandos são, simultaneamente (mas com a responsabilidade acrescida que, adiante, é explicitada), as condições que se colocam para os educadores. Os primeiros são educandos-educadores e os segundos educadores-educandos.

Isto não impede que, no desenrolar de um programa sobre “o medo e o desenvolvimento humano” (como, aliás, em qualquer outro programa educativo), haja papéis, competências e compromissos distintos. Neste caso, por exemplo, é necessário que o educador tenha capacidade de perceber os múltiplos subterfúgios, formas e expressões que fazem com que seja tão difícil situar, compreender, encarar, lidar ou até do medo ter consciência. Porque, como atrás foi dito, é encarnado, enraizado e subtil, é preciso:

a) Estar atento às ambivalências do medo. - A universalidade e a particularidade do medo. - A evidência e a opacidade do medo. - A pluralidade e a singularidade do medo. - O realismo e o irrealismo do medo. - A força e a fraqueza do medo. - A ameaça e o desafio do medo. - A permanência e a mutabilidade do medo.

b) Estar atento às estratégias verbais de encobrimento do medo. - Considerar que os medos são “normais”. - Não distinguir com clareza se os medos são do passado ou do presente.

430 - Negar os medos: - “Impessoalizar” o discurso. - Encontrar razões para não enfrentar os medos. - Pactuar com o medo e com o sistema que o provoca. - Falar antes dos medos dos outros.

c) Estar atento às estratégias não verbais de encobrimento do medo. - Situar o discurso mais no cognitivo e menos no afectivo ou vivencial. - Centrar a atenção no profissional ou no passado. - Esquecer-resguardar experiências de interioridade. - Centrar a atenção no exterior. - Revelar uma “face luminosa” e esconder as “sombras”. - Experimentar níveis baixos de riscos assumidos, de conflitos e de debates.

São, por isso, CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DO PAPEL DE EDUCADOR: - Experimentar e activar continuamente em si mesmo o processo de desenvolvimento humano que se procura estimular nos outros. - Ter a experiência, a sensibilidade e a empatia necessárias para ser capaz de entender o que sente quem enfrenta os problemas-desafios da mudança. - Estar consciente das suas limitações, mas procurar viver de acordo as suas percepções e valores.

É também por isso que um programa de educação de adultos baseado nos princípios que aqui se colocam é um PROGRAMA PARA LÍDERES* COMUNITÁRIOS – aqueles que lidam consigo próprios e lidam com os outros para fazerem transformações sociais.

3. O QUÊ / COMO – O princípio da coerência da acção e do reconhecimento de si mesmo (o motor, o provocador do movimento).

A partir de todo o tipo de situações e problemas reais (da vida e do mundo), em espaços educativos formais e não formais, utilizando as diferentes identidades- manifestações do potencial humano (sensorial, mental, emocional, cultural, espiritual, intuitiva e inconsciente), um programa de educação de adultos sobre “o medo e o

431 desenvolvimento humano” deve orientar-se por um caminho que, numa profunda interacção com a sua finalidade, permita fazer a passagem:

a) Do aprender ao apreender – porque o medo desaparece pela vivência, não pelo saber feito só de informações e de capacitação técnica.

b) Do “não sou/onde estou”, ao “sou-posso ser/aonde posso chegar” – porque, estando o todo presente na parte e a parte no todo, utilizando a parte se pode aceder às certezas, forças e coragem do todo.

c) Do mosaico à conexão – porque os processos de criação e transformação que implicam a harmonia entre o saber, o fazer, o ser e o viver juntos precisam de tempo de revitalização e de amadurecimento.

do medo ao desenvolvimento humano

, a v E ti i O D tu e A t T in n C T , e o E N l i M a c m O ri s p P V o n r O s o e E n c e e N n n E e i p O s , d D , l la e l a M A a r n r t e , U D tu p I n l a N e r r S u o D S m c d E , l, u O l z C a a u ir E n it N io ir c p o s m e E

O TEMPO DO MEU MUNDO O que é / O que pode ser / Do que é ao que pode ser Assumir / Decidir

Ilustração IV.8 – Componentes e estádios de um programa de Educação de Adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano

Deste modo, a ESTRUTURA DE UM PROGRAMA, com base na contínua inter-relação dos movimentos centrífugo e centrípeto de humanização e transcendência, pode compreender três COMPONENTES e sete ESTÁDIOS (ilustração IV.8):

432 1. NECESSIDADE E VONTADE. Ponto de partida, meio e fim da mudança, é a componente de que tudo depende e a que ajuda a fazer opções na construção de um programa específico. I. Sentidas em, pelo menos, uma das dimensões da corporeidade – emocional, mental, sensorial, intuitiva, cultural, espiritual ou inconsciente.

2. O TEMPO DO MEU MUNDO. Processos internos de criação de condições e espaços que, no silêncio, na serenidade e na harmonia do centrar, permitam aceder à descoberta da utilidade e do sentido do agir. II. Reconhecer o que se é – saber quem sou, descobrir o que sou com as coisas que sinto (do que gosto, o que me faz bem; do que não gosto, o que me faz mal)... III. Descobrir o que se pode ser – ver de outra perspectiva, perceber que posso e sou capaz, entender a exigência do que está contido em cada situação, compreender o sentido da missão... IV. Aprender como se passa do que se é ao que se pode ser – aprender a confiança, aprender a errar, aprender a resignificar, aprender a resolver problemas, aprender a viver aqui e agora... V. Assumir a responsabilidade nas próprias mãos – reconhecer o valor em causa, aceitar o para quê daquilo que se vive, perceber e atribuir-se a diferença e a necessidade da mudança... VI. Decidir a mudança – encontrar clareza de metas, criar as condições internas da mudança.

3. O TEMPO NO MUNDO. Processos externos de criação de condições e espaços que, no sentido do agir e indo em frente em função da missão, permitam encontrar o desafio e a serenidade de ser e celebrar o que se é fazendo a transformação da convivência. VII. Compreender, produzir e planear formas de relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

433 Contudo, esta estrutura funciona como um menu de possibilidades – isto é, sem uma ordem específica para a sua utilização, já que as escolhas e aplicações dependem da abordagem que, em função dos participantes e dos propósitos específicos de cada situação, for considerada mais adequada. Isto não significa, porém, que não apresente uma lógica interna. Tal como não é possível resolver de forma eficaz um problema se não existe uma compreensão clara do que nele está implícito, também aqui é preciso assegurar que se avançou nos processos internos (o mais difícil), antes de se querer encarar os processos externos (aquilo que, muitas vezes, porque mais evidente, as pessoas querem resolver em primeiro lugar).

Na PLANIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE UM PROGRAMA EDUCATIVO ESPECÍFICO, e porque podem ser empregues instrumentos e técnicas de origem muito diversa (de relaxamento, de bioenergia, da pele da alma, de criatividade, da arte e fantasia, de dinâmicas de grupo, de comunicação, etc.), devem ser aplicados CRITÉRIOS claros que orientem a SELECÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM e que garantam a aplicação e coerência dos princípios. Alguns exemplos de critérios-tipo de avaliação:

- Será que considera a pessoa em toda a sua dimensão e complexidade? - Será que permite aumentar os níveis de energia vital? - Será que permite a realização de aprendizagens significativas? - Será que permite a diversidade de respostas? - Será que permite que a pessoa assuma o poder sobre a sua própria vida?

4. PORQUÊ – O princípio do testemunho e do contágio (as condições do terreno)

Um programa educativo sobre “o medo e o desenvolvimento humano” deve criar o

CLIMA que melhor se ajuste aos seus destinatários e propósitos específicos. Contudo, na sua particularidade, tal clima não deve contradizer o que, em termos globais, se caracteriza pela presença dos seguintes PADRÕES DE COMPORTAMENTOS, ATITUDES E

SENTIMENTOS:

434 - Um espaço de encontro para a reflexão permanente, para a diversidade de perspectivas e formas de ser e estar no mundo, evitando um clima demasiado adocicado e/ou artificialmente consensual. - Níveis altos de autenticidade, sinceridade e congruência, de solidariedade, confiança e respeito pela dignidade, privacidade e liberdade de cada participante. - Um ambiente de esforço prazenteiro, de rigor, seriedade e compromisso, aliados à alegria, ao calor humano, à informalidade e à espontaneidade. - Uma comunicação pessoal, não objectal, centrada nas pessoas e num tratamento personalizado e atento às necessidades, autonomia e responsabilidade de cada um. - Abertura e tempo para assumir desafios e correr riscos, para revelar sentimentos mais profundos (de medo, alegria, raiva, optimismo, encantamento, dor...), para procurar e aplicar opções radicalmente diferentes, nem que o sejam só para os seus criadores.

Para a criação deste contexto, e uma vez mais, assume especial importância a FIGURA

DO EDUCADOR que, tendo coberto as condições atrás expostas, não pode ser uma imagem-função-abstracção de uma competência técnica. Tem de ser, sim, um facilitador, um mentor, um mestre, um líder que dá conta, que não desiste e que, com firmeza, encontra forma de ajudar/provocar/convocar/testemunhar/contagiar o reconhecimento e a capacidade de caminhar em direcção àqueles que são os propósitos do programa.

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Para um novo caminho

Todas as coisas têm o seu tempo, e tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora. Há tempo para nascer, e tempo para morrer; Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que se plantou; Tempo para matar, tempo para dar vida; Tempo para destruir, e tempo para edificar; Tempo para chorar, e tempo para rir; Tempo para se afligir, e tempo para dançar; Tempo para espalhar pedras, e tempo para as ajuntar; Tempo para dar abraços, e tempo para se afastar deles; Tempo para adquirir, e tempo para perder; Tempo para guardar, e tempo para atirar fora; Tempo para rasgar, e tempo para coser; Tempo para calar, e tempo para falar;

Ilustração IV.9 – Um tempo para terminar, Tempo para amar, e tempo para odiar; um tempo para começar. Tempo para a guerra, e tempo para a paz. Eclesiastes 3, 1-8

Li numa revista, que já não consigo identificar, a seguinte anedota: durante um naufrágio, enquanto todos procuravam desesperados arranjar lugar nos barcos salva- vidas, alguém, estendendo um embrulho a um dos marinheiros que ajudava as pessoas a entrarem para um desses barcos, implorava – “Por favor, salve a minha tese! Eu não importo, mas, por favor, salve a minha tese!”.

E, apesar do risível da história, imediatamente me perguntei até que ponto eu compreendia ou me poderia sentir identificada com tal personagem. É que, posto de lado o caricato da situação, a tese, em que tanto se trabalhou, durante tanto tempo, é como um filho – pois é um trabalho a que demos a vida. O que resta saber é se lhe demos literalmente a vida (e, por causa dela, qual filho tirano que nos esvazia, nos deixámos morrer), ou se, dando-lhe vida, criámos vida e dela saímos fortalecidos e com vontade de dançar.

Preciso, por isso, e nesta etapa final, de olhar o que está para trás para aí ler o que possa estar para a frente. Ou, dito de outra maneira (e porque, também aqui, e como no início202, “nada se cria, nada se perde, mas tudo se transforma”), procuro agora, não só descortinar as NOVAS PERGUNTAS e os NOVOS CAMINHOS que são deixados em aberto, mas também (e através da utilização de uma NOVA METÁFORA e de um outro olhar de vida), enfrentar um último desafio de coerência – o de uma tese que começou, mas também termina (e, por isso, renasce e se transforma), no trabalho interior.

202 Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 2. Desenvolvimento humano”.

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• Fechar o ciclo

Numa das primeiras fases da pesquisa, perguntaram-me se, na lista de medos que então estava a compilar, já incluíra o “medo de terminar uma tese”. E explicavam-me que esse medo que muita gente enfrenta (e que também é o “medo do que virá depois”), faz com que algumas teses se arrastem durante demasiados anos e só com muita dificuldade (ou sob pressão), sejam dadas por concluídas. Talvez também tenha sido o que aqui aconteceu... Contudo, e se assim foi, o que agora procuro é encarar esses (ou outros) medos e reflectir, mesmo que de forma breve, sobre a experiência vivida ao longo do processo investigativo.

Será este um exercício de auto-conhecimento? Acredito que também. Como diz Boaventura Sousa Santos, não é possível separar sujeito e objecto de estudo, nem separar processo e produto do conhecimento – sendo “o objecto a continuação do sujeito por outros meios, (...) todo o conhecimento científico é auto-conhecimento” (1988:52) que não pode, por isso, acontecer numa esfera desencarnada, mas na realidade diária do (meu) próprio existir.

Mas, além disto, reflectir e dar notícia de como investigadora e grupo de investigação cresceram à luz da pesquisa, é também um exercício de coerência – porque uma tese que começa no trabalho interior tem de terminar no trabalho interior; porque é necessária a coerência entre o que se investiga e o que essa investigação representa como opção de mudança e de transformação social.

Mas é também um imperativo do próprio tema da pesquisa. Se a pergunta central e os resultados obtidos indicam que o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos se ele próprio estiver no processo de enfrentar os seus, então, como investigadores-educadores, não nos podemos desobrigar deste último exercício, nem, de alguma maneira, dele dar testemunho. Vou dividir a resposta em duas partes. Na primeira, está contida a minha reflexão pessoal; na segunda, a reflexão do grupo e sobre o grupo de pesquisa colaborativa.

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1. De novo eu – Já alguma vez? Sim, muitas vezes...

Pegou na carteira e saiu. Dissera pouco mais que nada. Responderam-lhe nada. Para trás, naquela tarde, ficavam anos. Já não lhe pertenciam. Há muito que quase não falava. Sem o saber, tinha decidido que se eles sozinhos não tinham sido capazes de compreender, também ela não precisava, nem podia, explicar. Tinha preferido estar e ser só transparência, como formiga não visível em imensa escultura de metal. Naquela tarde, ela sabia, tinha morrido um pouco. Não, tinha morrido muito. Mas sabia que, naquela mesma tarde, também estava em vias de nascer. Tinha-se preparado com um enorme cuidado. Era como se o chuveiro que demoradamente tomara, como se o Ilustração IV.10 – Voltando aos próprios caminhos. cabelo que delicadamente esticara e como se o traço dos olhos com que realçara o tom intenso, fossem sinal e final dos dias e das horas que até aí vivera. O que usava era emprestado: o fato, da irmã; o colar, da vizinha; o perfume era seu, mas tinha sido oferecido - um presente de outros tempos. Também aqui o sinal e o final do que tudo passa, do que nada em definitivo lhe pertence - tal como ela que passa, mas não fica, se sente, mas ninguém segura. Pegou na carteira e saiu. O que pensavam de si os seus amigos, não sabia. Aliás, não lhe interessava nada, mesmo nada. Era como se, durante anos, tivessem estado todos fechados no mesmo quarto e, afinal, nunca tivessem falado a mesma língua. Era a destruição da completa ilusão dos que juntos julgavam ter rido, chorado e amado. Agora sabia que só tinha sido e existido verdadeiramente nos precisos instantes em que de manhã despertava. Aí, o que pensava era seu e só seu. Sentia, mas não entendia, que era aí onde estavam os seus infernos e os seus paraísos. Depois esquecia, mas eles, silenciosos, permaneciam.

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Como vultos ao fundo de uma sala, os seus sonhos, agora descobertos, tinham vindo a prepará-la para esta tarde em que, só a si, ousava revelar os seus prazeres e os seus vícios mais ocultos. E, como mãe de criança por nascer, perguntava-se: Como será quando for grande? Tempestade ou calmaria? Ternura que seduz pela frescura ou força da natureza que nada segura? Assim, naquela tarde, Maria do Vento pegou na carteira e saiu.

A vida é a tese, a tese é a vida – nada pode ser deitado fora.

Foi este um dos primeiros desafios. A tese não podia ficar à margem da vida, nem a vida podia ficar esquecida, ou em compasso de espera, à margem da tese. Assim, e perante a vontade de um conhecimento que ensine a viver, fica a pergunta: como, ao longo da pesquisa, me tornei uma pessoa mais serena, útil e corajosa? Ou, dito de outra maneira, e no final de um tempo que foi tempo para aprender-lembrar- reencontrar-sentir-viver-ser coisas importantes, o que aconteceu ou mudou desde que escrevi o primeiro texto da pesquisa, “Eu pessoa – já alguma vez?”?

Fui mordida por dois cães pretos.

Literalmente. Na montanha, em Puracé, junto de uma casa, mas longe de qualquer povoado. Vi-os, “são cães domésticos, não há problema”, avancei no seu território. Eles correram para mim e rosnaram. Eu tive medo e quis sair dali. Virei-lhes as costas. Fui mordida. Quem disse que “se rosnam, não mordem”? Mas eu tinha-lhes virado as costas. Por isso, fui mordida. Corri para junto dos meus amigos. Eles lavaram e espremeram a ferida, para sair o que pudesse contaminar. Deram-me a mão, o ombro, o colo, para, pelos afectos, aliviar a dor... e o medo. A ferida física não infectou, mas doeu durante várias semanas – curou, mas a marca ainda lá está. A outra, a das emoções, essa fortaleceu.

O que tem esta história a ver com a tese? Tudo. Ao longo da tese, muitas vezes, de muitas e diferentes maneiras, fui revisitada por outros cães. Às vezes até parecia que a tese tinha vida própria e, com isso, me obrigava a ganhar o direito de a defender.

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Porque a tese é a vida e a vida é a tese. E tive de fazer opções. Umas vezes afastei-os (aos cães, aos medos), mas não os coloquei em lugar nenhum – e eles voltaram, ou eu sei que hão-de voltar. Outras vezes a vida surpreendeu de uma tal maneira que a opção foi mesmo parar, enfrentar, perceber que o perigo (o medo) não está fora, mas dentro e, com isso, transformar e avançar.

Assim, e perguntando-me se, também aqui, a ordem dos factores não pode ser arbitrária, o que encontro agora na minha frente?

Para uma vida útil, o desafio da inquietação da coerência.

Figura 1 – Organizado, higiénico, seguro Figura 2 – Em expansão Figura 3 – Em expansão e coerência Ilustração IV.11 – Símbolos do meu processo de crescimento.

Há treze anos, durante o meu Master de Criatividade, simbolizei-me (a mim e ao processo do meu crescimento) entre a passagem da figura 1 para a figura 2. O fazer coexistir o organizado, higiénico e seguro com a necessidade de expansão e da aventura – o lado dos pés descalços, dos horizontes largos, do silêncio, dos entusiasmos, da certeza que há coisas loucas ou difíceis que valem a pena, mesmo quando, aparentemente, não se conseguem entender.

Hoje, por causa deste trabalho, acrescento a figura 3. É a vontade de decidir quem sou através da inquietação da coerência e interligação entre vários espaços de vida – dentro de mim mesma, com os outros, com o mundo.

Para uma vida corajosa, o desafio da alegria.

Para que perceba que somos destinados à alegria. Às vezes, tantas vezes, teimamos em viver miseravelmente. Estamos sempre a tentar provar que a nossa vida é a mais

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difícil, que somos nós os que estamos mais cansados, os que temos mais problemas, os que temos mais obrigações a cumprir. Gostamos de insistir nas nossas misérias. Mas estou e estamos destinados à alegria. É bom que não o esqueça.

Para uma vida serena, o desafio da esperança.

Frente a problemas e medos que tantas e tantas vezes se repetem, perceber que, nesse aparente eterno retorno dos ciclos de vida, é a imagem da espiral que se

constrói – é a passagem para Ilustração IV.12 – Aprendizagem quântica. novos patamares, (re)significados que se acrescentam, coisas pequeninas que mudam, lentes (re/des)coloridas que se tornam coisas grandes e são salto quântico que colocam outro olhar na vida.

2. De novo nós – O caminho da vivência das sessões.

Foram dois os tempos de balanço realizados pelo grupo de investigação colaborativa sobre os efeitos da fase formativa da pesquisa. O primeiro, logo no final dessa fase (na segunda parte da 12ª e última sessão do grupo), antes do início da análise de dados. O segundo, dois anos e meio depois, quando o grupo se voltou a reunir – para a apresentação e discussão dos significados encontrados na interpretação dos dados da pesquisa; para, re-avaliando e repensando o processo vivido, fundamentar nessa distância temporal as orientações curriculares atrás expostas; para, e ainda que tal não estivesse previsto, decidir sobre o seu futuro como grupo. Procurarei colocar, no cruzamento de dois vectores, o que nas duas ocasiões foi posto à reflexão – no primeiro vector, colocarei as vantagens e limitações encontradas; no segundo, os efeitos produzidos e sentidos ao nível das quatro dimensões envolvidas (pessoa, processo, produto e pressão).

Porém, e considerando que a fase formativa:

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a) tem características específicas que fazem com que “pessoa” e “produto” se confundam; b) englobou algum trabalho de sistematização do conhecimento em função dos propósitos da pesquisa, colocarei na dimensão “pessoa” as reflexões sobre os efeitos da fase formativa propriamente dita e, tanto quanto é possível fazer a distinção, reservarei para a dimensão “produto” as observações que possam estar mais directamente ligadas com o propósito específico da pesquisa.

Vantagens / Pessoa

Foram identificadas mudanças ao nível da TOMADA DE CONSCIÊNCIA – consciência da existência de alguns medos, melhor consciência daquilo que se é, maior consciência sobre a importância e necessidade de assumir responsabilidade por aquilo que se quer ser.

- “Identifiquei alguns dos meus medos” (E). Final da - “Descobri que tenho muito que aprender sobre mim (…). Aprendi que há medos fase que só nós os podemos enfrentar. Aprendi também que nunca os irei enfrentar de formativa uma só vez” (O). - “Fiz descobertas, vi coisas em retrospectiva” (K). 2,5 Anos - “Foi uma experiência importante em termos pessoais. Reflecti no que, de outra depois maneira, não faria, sobretudo no confronto comigo mesmo” (M).

Existe também indicação de que certos efeitos da fase formativa ultrapassaram a tomada de consciência e tiveram algum IMPACTO EXTERIOR.

- “Há uma frase que (…) para mim faz um sentido corporal. Foi uma frase que foi construída ao longo deste processo (…): “se fizer parte da tua missão (se fizer Final da parte da minha missão), faz o que tem de ser feito sem te preocupares com as fase consequências” (J). formativa - “Cada semana, cada encontro com o grupo, era psicoterapia para mim. Eu ia em paz, relaxada, feliz por ter estado «em casa»” (A).

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- “Já partilhei (…) que um dos meus medos é algum receio que tenho sempre de expor, de falar de mim e do que sinto. Neste grupo, esse receio, ou esse pouco à vontade, foi-se dissolvendo com o passar o tempo e com as sessões que fomos tendo e com a aproximação que se foi criando entre os elementos do grupo” (L).

2,5 Anos - “Vivi o relacionamento com as pessoas. Disse às pessoas que gostava delas. Não depois tinha feito isso até aí. É uma revolução na minha parte” (K).

Existe, finalmente, também indicação de que, como em muitos processos de mudança,

A TRANSFORMAÇÃO NÃO FOI (NÃO É FÁCIL), nem pacífica.

- “E estes encontros aqui (…) nutriram os meus passeios da noite e levaram-me a Final da questionar muitas coisas da minha vida e a fazer várias avaliações. E, em relação fase a alguns desses pormenores, exerceram o que eu sinto como que uma revolução formativa dolorosa nalguns aspectos” (M).

Vantagens / Clima

Confirmam-se os resultados obtidos na análise de dados anterior – níveis altos de

ESPONTANEIDADE, de À VONTADE e de SEGURANÇA EMOCIONAL nas relações.

- “Esta possibilidade de podermos falar sem sermos julgados – isto é uma dádiva. Eu não vinha à espera de tanto” (J). - “Tem sido uma experiência incomparável (…). Desde a primeira sessão senti-me Final da confortável para partilhar o mais profundo de mim” (O). fase - “Relativamente a este grupo e a esta pesquisa, isto foi das coisas que mais me formativa tocou desde o início – foi a forma informal com que as sessões foram acontecendo. Acho que foi um dos aspectos que me ajudou a sentir à vontade e liberto para me manifestar” (L). 2,5 Anos - “O termo-nos encontrado todos tão diferentes, mas sentindo-nos em casa uns com depois os outros, para mim foi a maior riqueza que eu pude ter” (A).

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Vantagens / Processo

Por um lado, a experiência da ida ao Gerês é exemplo do que teve impacto nas pessoas e na vida do grupo, pois reflecte a importância e a necessidade de uma formação que, muito mais do que circunscrita ao mental e conceptual, englobe

VIVÊNCIAS EM TODOS OS NÍVEIS DO SER (físico, mental, emocional, cultural…). Por outro, a importância de uma formação que é processo, que DEMORA E SE CONSTRÓI COM O

TEMPO.

- “Outro ponto importante para mim foi a ida ao Gerês e a experiência aí vivida de ir até ao limite das minhas forças, das minhas capacidades. Aceitar tentar e aceitar desistir. E ambas as coisas por mim mesma – sem recear o juízo de ninguém, sem

Final da recear o juízo de mim mesma, isto é, sem recear o fracasso” (E). fase - “A gente não gosta das pessoas por aquilo que tem em comum. Gosta das formativa pessoas por aquilo que vive em comum, aquilo que vivemos em comum. Nós, de facto, somos muito diferentes (…), mas aquilo que vivemos em comum aproxima- nos, principalmente quando vivemos sem as defesas. E isso também foi uma aprendizagem muito importante para mim” (J).

2,5 Anos - “Sinto-me no caminho de conciliação dos opostos. O aproveitamento das sessões depois é alguma coisa que só é feita ao longo de um caminho” (L).

Cômputo geral das vantagens identificadas = justificação da proposta educativa (1) =

Estão justificados os princípios educativos atrás apresentados, nomeadamente no que diz respeito ao “princípio da individuação-integração” e ao “princípio da coerência da acção e do reconhecimento de si mesmo” 203.

Fica também reconhecida a importância de: - Desenvolver programas e propostas de trabalho que, enquanto parte de projectos de auto-superação, integrem e permitam viver em acção as diferentes identidades-

203 Ver “IV O sentido do caminho – Proposta educativa”.

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manifestações do potencial humano. - Criar um clima com níveis altos (1) de esforço e compromisso aliados à alegria, informalidade e espontaneidade; (2) de autenticidade, sinceridade, congruência, solidariedade e repeito pela dignidade, privacidade e liberdade de cada participante.

Limitações / Pessoa

Mas, sobre o trabalho da fase formativa, foram também apresentadas diversas limitações que se, por um lado, e em situações futuras, precisam ser equacionadas, por outro, também reforçam a importância dos princípios curriculares atrás apresentados.

Neste primeiro conjunto de reflexões aqui colocado, identificam-se situações em que a capacidade de aproveitar as ocasiões para “ir ao fundo da questão” ficou limitada por questões de ordem pessoal – tanto relacionadas com a FORMA DE ESTAR NO PROCESSO

FORMATIVO, como com as RAZÕES POR QUE A ELE SE ADERIU.

- “O trabalho do grupo não correspondia em nada à minha expectativa e eu achava Final da que não estávamos nada... nem a atingir o que podíamos, nem a pôr na mesa fase aquilo que devíamos (…). Precisava de outra disponibilidade pessoal para formativa aprender o que tenho para aprender” (I). - “Viemos pela ... [investigadora-investigação], não pelo tema” (I). 2,5 Anos - “Hoje tenho pena de não termos arriscado mais. Não aproveitei para ir ao fundo da depois questão, não me expus, não fui ao fundo” (I).

Limitações / Processo-Produto

Existe também a indicação de dificuldades relacionadas com o processo e com o produto da pesquisa, nomeadamente por causa de alguma inibição perante a

UTILIZAÇÃO FUTURA das coisas ditas.

2,5 Anos - “Coibição… saber que o que se vai dizer vai ser interpretado. Sem ir para a tese depois poderia ser mais aprofundado” (M).

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Limitações / Pessoa-liderança

Finalmente, mas não menos importante, foram apresentadas limitações que (estando relacionadas com uma certa PREOCUPAÇÃO-CONFUSÃO-MISTURA entre os tempos e propósitos específicos da FORMAÇÃO e os tempos e propósitos específicos da ANÁLISE

DE DADOS e da construção do conhecimento), têm origem nos PROCESSOS DE

COMUNICAÇÃO E LIDERANÇA. Assim, e ainda que algumas das observações que aqui servem de exemplo até estejam justificadas pelos princípios metodológicos dos procedimentos e técnicos da pesquisa, na verdade foram sentidas como limitações por participantes do grupo e, como tal, precisam ser consideradas204.

Final da - “A sensação que tenho é que isto está tudo no começo. Foi feito algum caminho, fase mas não sei se era exactamente este o ponto a que se pretendia chegar” (L). formativa - “Tínhamos falado que isso poderia acontecer, mas depois as entrevistas individuais não foram feitas. Aí poderíamos ter feito uma recolha de dados muito maior” (K). - “Era preciso a colocação de mais exercícios reais” (L). 2,5 Anos - “Eu acho que não havia objectivos. Havia um ponto de partida, mas ficou a depois sensação de que nalgumas das sessões andávamos à deriva” (M). - “Eu introduziria algumas provocações – levar a estrebuchar, mais directividade, maior provocação, maior confronto; fazer questões interessantes, perguntas perturbadoras” (I).

Cômputo geral das limitações identificadas = justificação da proposta educativa (2) =

Ficam globalmente justificados os princípios “da inquietação” e “do testemunho e do contágio” da proposta educativa. Fica especificamente reconhecida a importância de algumas anotações contidas nesses princípios 205. Por exemplo:

204 Ver “IV Para um novo caminho”. 205 Ver “IV O sentido do caminho – Proposta educativa”.

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- Os destinatários de um programa educativo deste tipo são ADULTOS, com

NECESSIDADE e VONTADE de reconhecerem EM SI MESMOS a presença do medo e de acederem a um nível de consciência e de desenvolvimento mais elevado.

- Enquanto espaço de encontro e de reflexão, um programa educativo precisa (1) dar

abertura e tempo para CORRER RISCOS e REVELAR SENTIMENTOS MAIS PROFUNDOS de

medo, alegria, raiva, optimismo, encantamento, dor...; (2) EVITAR UM CLIMA

DEMASIADO ADOCICADO E/OU ARTIFICIALMENTE CONSENSUAL; (3) contar com a presença de um facilitador-educador que se dá conta, não desiste e, com firmeza, encontra forma de ajudar-provocar-contagiar o reconhecimento e a capacidade de caminhar em direcção a níveis mais altos de criação-superação e desenvolvimento humano.

• Reabrir o ciclo

Cumpre-me agora, e para terminar, não só apresentar um conjunto de PERGUNTAS E

PROJECTOS que sinto terem ficado em aberto, mas SERENIDADE também fazer os últimos comentários sobre as

principais CONQUISTAS E UTILIDADE CORAGEM UTILIDADE UTILIDADE CORAGEM UTILIDADE DIFICULDADES dos vários planos da pesquisa que, ao

longo do PROCESSO DE

CRIAÇÃO, se encontraram em

SERENIDADE permanente cruzamento e interacção – o plano Ilustração IV.13 “Era a mesma velha luta, mas eu estava a começar epistemológico, o plano a partir de um lugar de maior liberdade do que antes” – Moffit (2001a:3) metodológico, o plano pedagógico e o plano ontológico.

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Assim, e porque a obra também é imagem de quem a produz (dos seus valores e motivações, do seu contexto, das suas capacidades e do seu estilo), posso começar por dizer que, em termos gerais (mas com implicações bem visíveis na análise mais específica que a seguir desenvolvo), considero que o percurso realizado e os resultados alcançados naqueles quatro planos reflectem e são consequência de três grandes tendências206: uma tendência para alguma oscilação entre opções que procuram a liberdade de criar as próprias regras e linhas de orientação e opções que procuram o detalhe, a estrutura e a organização; uma tendência para considerar o impacto das decisões e das escolhas nos sentimentos das pessoas e na necessidade de harmonia e relações positivas; uma tendência para ganhar energia em situações de reflexão tranquila e de procura dos próprios pensamentos internos (Selby et al, 2003).

No plano epistémico e metodológico

Porque, além de tudo, se trata de uma investigação aplicada na área da Educação de Adultos (que, para promover o sentido da autonomia e da responsabilidade dos cidadãos e das comunidades, se baseia na reflexão das pessoas envolvidas sobre a sua própria experiência – Unesco, 2003)207, vejo como especialmente significativa a coerência que existe entre:

a) o conteúdo das perguntas de partida208 – que pressupõem a necessidade de um educador que se faça educando (Freire, 2003); b) o processo da investigação209 – que, concebendo a investigação como fonte de transformação pessoal e colectiva, fez com que o observador, ao investigar também sobre a sua própria experiência, se tornasse sujeito-objecto de observação (Morin, 2003; Jaramillo, 2006b);

206 Estas tendências correspondem às dimensões de análise do VIEW sobre os estilos de criação (ver ponto 1 do Capítulo 4, “Criar o caminho”). Como os meus resultados individuais estão muito próximos das médias obtidas pelo grupo de pesquisa, não houve grande descontinuidade de estilos (pelo menos em termos estatísticos), entre os meus tempos de trabalho independente e os tempos de trabalho com o grupo. 207 “É essencial que as abordagens da educação de adultos sejam baseadas na herança das próprias pessoas, cultura, valores e anteriores experiências e que as diversas formas com que estas abordagens são implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a tornar-se activamente envolvido e a ter uma voz” (http://www.unesco.org/education/uie/confitea/declaeng.htm: 2003-02-04). 208 Ver “Introdução – 3. A pesquisa”. 209 Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

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c) os resultados obtidos na investigação210 – que demonstram a importância do papel de educador que, consciente e intencionalmente, active dentro de si mesmo o processo de desenvolvimento humano que procura estimular nos outros.

É nesta coerência entre planos que, aliás, entendo residir grande parte da legitimidade da pesquisa. Nenhum dos intervenientes (e na diversidade de papéis desempenhados), ficou de fora, mas, de dentro, teve de se expor (quando não, comprometer), aos processos de transformação que advoga. Mas é também essa a razão (ou, pelo menos, uma das razões), por que o processo demorou tanto – tendo feito experiência(s) de vida, foi preciso dar tempo para ganhar consciência dessa mesma experiência.

Contudo, e ainda fruto de um estilo criativo que se sente mais confortável perante soluções moderadas e flexíveis (não se revendo, por isso, numa estrutura demasiado definida, mas também não se aventurando muito a fugir ao estabelecido), ficam outras possibilidades em aberto:

a) O desenvolvimento de uma pesquisa que, do ponto de vista da metodologia qualitativa, se atreva a ir mais longe – em que as etapas e fases sejam mais simultâneas e, por isso, e por exemplo, não precise separar a leitura dos autores da leitura da informação recolhida no trabalho de campo. b) A utilização das virtualidades e das dinâmicas própria da pesquisa colaborativa em todas as fases do processo da pesquisa. c) O aprofundamento do paralelo entre as etapas da pesquisa e as componentes e estádios do processo de resolução criativa de problemas, inclusive através da utilização mais explícita das dinâmicas e dos instrumentos próprios desse processo.

No plano pedagógico

Considero como mérito desta investigação o facto de, a partir de um conceito de educação criativo-motrícia, ter conseguido congregar e integrar dinamicamente o que, até aqui, andava disperso por diversos autores e por diversas abordagens. Isto significa

210 Ver ponto 4 do “Capítulo 4, Criar o caminho”.

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que, embora não apresentem elementos muito diferentes ou inovadores, os princípios educativos enunciados potenciam o desencadeamento de uma grande variedade de combinações e sinergias entre os diferentes princípios, componentes e fases que as integram. Porém, o que considero ser o grande êxito desta investigação é que o grupo de pesquisa, dois anos e meio depois do programa realizado, quer voltar a trabalhar junto.

Fica, todavia, por descobrir (e é esse o desafio que o grupo de pesquisa agora se coloca), o que poderia ter trazido ao tema uma visão radicalmente diferente. Fica, também por isso, em aberto a necessidade de desenvolver um novo projecto de investigação que (continuando a conjugar educação de adultos e pesquisa colaborativa), possa dar origem a soluções mais audaciosas:

a) Vivenciando mais – com actividades ou exercícios que impliquem (muito mais) todos os níveis do ser. b) Debatendo mais – com mais diversidade e mais provocação, desestabilizando mais. c) Garantindo que as razões da participação dos actores envolvidos se situam mais no processo de formação do que nos resultados da pesquisa. d) Colocando a figura de um educador (facilitador, orientador, líder) que, continuando a ser parte, mas exigindo mais, também consiga criar um espaço seguro para o fluir das emoções, para aceitar e lidar com a diversidade, a adversidade e o confronto.

Além disso, e porque este foi um estudo exploratório, confronto-me agora também com a necessidade e vontade de:

a) Aprofundar a compreensão do que existe na nossa cultura escolar, académica, estudantil... que tanto medo nos provoca ou, dito de outra maneira, compreender o que falta no ar social que respiramos para que sejamos capazes de enfrentar a vida de forma “serena, útil e corajosa”. b) Estudar a relação entre medo e poder e, com isso, aprofundar o tema do medo na liderança e na formação de líderes.

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c) Estudar o medo no contexto de formação inicial e contínua de educadores e professores para, a partir daí, ajudar a melhorar planos educativos e programas que ultrapassem as dimensões do saber e do saber fazer do professor e possam, por isso, propiciar as condições que o ajudem a tornar-se sujeito de desenvolvimento. d) Utilizar a proposta educativa aqui construída aqui construída para, num contexto concreto (educativo ou organizacional) e frente a um problema específico, fazer investigação-acção.

Entretanto, e muito embora o que há ainda que fazer, também muito já ficou definido como linhas de acção na valorização do ser humano para que se possa vencer o medo em tantas das suas formas e espaços.

No plano ontológico

Foi um exercício de revisão e mudança de olhar para compreender os fenómenos em que, enquanto observadora(es) e observada(os) estamos imersos – como investigadora, como grupo de pesquisa colaborativa.

Foi um exercício de reflexão sobre a própria experiência – passando de um primeiro projecto “técnico”, só focalizado na análise da experiência dos outros, para um projecto de quem, investigando e inovando a partir de si mesmo, procura dar sentido ao mundo e à vida.

Foi um exercício de incorporação, num conjunto que procurei coerente, das minhas diferentes áreas de formação académica e humana – enquanto educadora, enquanto socióloga, enquanto magister em criatividade.

Foi um exercício de passagem para um outro ciclo de vida – já que, neste momento, e em outros espaços de acção pessoal e profissional, são já visíveis importantes resultados.

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Quando partires de regresso a Ítaca, deves orar por uma viagem longa, plena de aventuras e de experiências... (....)

Que sejam muitas as manhãs de verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos! (...) Entre o medo e o

desenvolvimento humano Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem. (....)

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. C. Cavafy (1911)

Este é parte do texto com que, há muitas páginas atrás, dei início à apresentação daquele que foi aqui o meu regresso a Ítaca – a descrição dos procedimentos e técnicas desta pesquisa. Retomo-o agora, no fim dessa viagem, para (me) lembrar que, muito mais importante do que chegar, o importante foi fazer a experiência do caminho – aprendendo a viver com a lentidão dos processos; apropriando e ganhando consciência da experiência; dando tempo para escutar, para processar, para dialogar; não repetindo, nem me repetindo, mas fazendo pela primeira vez e aprendendo a ser aprendiz do meu próprio horizonte.

Tão simples foi. Talvez, por isso, tão complicado e doloroso muitas vezes também. Mas essa é, acredito, bênção da paz.

Obrigada Maria Helena Gil da Costa Porto, 9/12 de Maio 2008

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