CADERNO DE ENSAIOS

Primeiro MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Ministro de Estado Embaixador Mauro Luiz Iecker Vieira

Secretário-Geral Embaixador Sérgio França Danese

INSTITUTO RIO BRANCO

Diretor-Geral Embaixador Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

Diretor-Geral Adjunto Coordenador-Geral de Ensino Ministro Sérgio Barreiros Conselheiro Marco Cesar Moura Daniel de Santana Azevedo

Chefe da Secretaria Acadêmica Chefe da Secretaria Administrativa PS Luís Alexandre Iansen de Sant’Ana PS Márcio Oliveira Dornelles

Assistente Assistente TS Ricardo Kato de Campos Mendes TS Nadia El Kadre

Diretoria Secretaria Acadêmica OC Henrique Madeira Garcia Alves OC Saide Maria Vianna Saboia OC Carlos Alexandre Fernandes AA Fernando Sérgio Rodrigues Considera Recepcionista Osmar Jorge Pires AC Maria de Fátima Wanderley de Melo Contínua Jane Gonçalves da Silva TAE Juliana Kumbartzki Ferreira Contínua Graziely Pessego de Oliveira Contínua Vanessa Souza Caldeira Contínua Elisângela Pereira Silva Contínua Ana Luiza Ferreira de Oliveira Secretaria Administrativa OC Carlos Sousa de Jesus Junior Biblioteca “Emb. João Guimarães Rosa” ATA Adriano Cesar Santos Ribeiro BIB Marco Aurelio Borges de Paola TAE Éveri Sirac Nogueira

Setor de Administração Federal Sul, Quadra 5, Lotes 2/3, CEP 70070-600, Brasília-DF, Brasil +55 61 2030-9851 [email protected] www.institutoriobranco.mre.gov.br Ministério das Relações Exteriores

CADERNO DE ENSAIOS

Primeiro

Instituto Rio Branco

Impresso no Brasil 2015

Caderno de Ensaios / Instituto Rio Branco. – n. 1 (2015). – Brasília : Instituto Rio Branco, 2015-

232p.

Semestral

1. Relações Internacionais – Periódicos. 2. Brasil – Relações Exteriores – Periódicos. I. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. II. Instituto Rio Branco.

CDU 327 (05) ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ...... 7

PREFÁCIO ...... 9

Adriano Giacomet de Aguiar AS GERAÇÕES DE 1870 NO MÉXICO E NO BRASIL: DIFERENÇAS E COINCIDÊNCIAS DOS PROJETOS DE ATRAÇÃO DA IMIGRAÇÃO CHINESA ...... 23

Clarissa de Souza Carvalho FILHO DA DIPLOMACIA: PRÁTICAS DISCURSIVAS DE OSWALDO ARANHA SOBRE DIPLOMACIA, POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS (1935-1959) ...... 65

Flávio Beicker Barbosa de Oliveira AS IDEIAS SÃS: GUERRA, NEUTRALIDADE, RELAÇÕES INTERNACIONAIS E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PENSAMENTO DE RUI BARBOSA ...... 97

Gustavo Gerlach da Silva Ziemath O CONCEITO DE AUTONOMIA NA POLÍTICA EXTERIOR BRASILEIRA: MUDANÇAS E CONTINUIDADES ...... 127

Júlia Vita de Almeida O PATRIOTISMO EM JOAQUIM NABUCO ...... 165

Pedro Ivo Souto Dubra JOSÉ ENRIQUE RODÓ E EDUARDO PRADO: SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E ATUALIDADE ...... 195

SOBRE OS AUTORES ...... 231

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APRESENTAÇÃO

O Instituto Rio Branco tem grande satisfação em iniciar a pu- blicação dos Cadernos de Ensaios neste ano de 2015, em que celebra os 70 anos de sua criação. A publicação dos Cadernos, ademais de divulgar trabalhos de pesquisa e opinião realizados pelos alunos no âmbito de seus estudos no Instituto Rio Branco, procura, também, contribuir para o desen- volvimento do debate de ideias no campo das Relações Internacionais e da Diplomacia. Cada edição dos Cadernos reunirá trabalhos acadêmicos, sele- cionados para publicação pelos professores, dentre os apresenta- dos nas diversas disciplinas do Curso de Formação de Diplomata. Este primeiro número reúne alguns dos trabalhos apresentados na disciplina “Pensamento Diplomático Brasileiro”, ministrada pelo Professor Ministro Tarcísio de Lima Ferreira Fernandes Costa, que assina o Prefácio com breve apresentação dos textos selecionados. Os Cadernos de Ensaios terão uma pequena tiragem em papel e estarão disponíveis ao público na página do Instituto Rio Branco na Internet, no endereço www.institutoriobranco.mre.gov.br, sob o título “Publicações”, “Cadernos de Ensaios”. G.B.C.M.M.

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PREFÁCIO

Quando recebi o gentil convite do Diretor-Geral do Instituto Rio Branco para selecionar, entre os ensaios apresentados no âmbito da disciplina “Pensamento Diplomático Brasileiro”, aqueles que in- tegrariam o primeiro volume da série Caderno de Ensaios, comentei- lhe que não seria tarefa simples. Tinha presente que pelo menos uma dezena de trabalhos poderia ser mobilizada para atestar o em- penho com que a Turma de 2014-2015 assumiu a tarefa de produzir textos sobre a rica tradição de pensar o lugar do Brasil no mundo que nos anima desde os primórdios da Independência. Se a escolha recaiu sobre os seis ensaios, particularmente originais, que apre- sento a seguir, fica o registro de que não foi pela ausência de outras boas análises. O leitor verá que os ensaios diferem entre si quanto à natureza do objeto. Enquanto Júlia Vita, Flávio Beicker e Clarissa Carvalho optaram pela interpretação de escritos e pronunciamentos de de- terminadas personalidades – Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Oswaldo Aranha, respectivamente –, Pedro Ivo e Adriano Giacomet fizeram estudos comparativos: Pedro, um paralelo entre as visões finis- seculares de Eduardo Prado e de José Enrique Rodó; Adriano, um confronto dos fundamentos históricos e ideológicos que pautaram as

9 experiências de imigração chinesa do México e do Brasil. Já Gustavo Ziemath preferiu analisar a evolução do conceito de autonomia na política externa brasileira, sobretudo a partir dos anos trinta. São igualmente nítidas as afinidades entre os ensaios. Em pri- meiro lugar, coincidem em aferir o significado das ideias segundo os contextos político e normativo em que foram elaboradas. Elas não são vistas como noções atemporais tampouco como reflexos imediatos das relações de produção. Mais se assemelham a “atos linguísticos” que buscam influenciar a realidade política e dialogar com os paradigmas em voga de legitimidade. Em segundo lugar, os autores não se preocupam em caracterizar as personalidades e cor- rentes ideológicas como portadoras de visões brasileiras. Se alguns apontam particularidades nacionais nos textos e discursos, isto se dá não como premissa das análises, mas como ponto de chegada, após contraste com outras experiências. Em outras palavras, os jovens diplomatas mostram-se pouco propensos a atitudes ensimes- madas ou autorreferenciadas, o que me parece salutar. Por fim, os autores valorizam as fontes primárias e buscam apreender as ideias nelas expressas em suas múltiplas traduções ou ramificações te- máticas. Há um gosto implícito pela multidisciplinaridade. Passemos aos textos, iniciando por “O patriotismo em Joaquim Nabuco”. Sabe-se que a produção de Nabuco sobre sua vivência diplo- mática é ampla. Não faltavam registros escritos, portanto, para que Júlia Vita privilegiasse temas mais associados à experiência prática de Nabuco, como a participação na arbitragem sobre a Guiana, a di- plomacia pública que exerceu enquanto esteve, por desígnio do Barão do Rio Branco, como primeiro embaixador do Brasil em Washington ou mesmo a promoção do pan-americanismo. Mas Júlia ousou tratar da visão de Joaquim Nabuco sobre o patriotismo, à luz da militância transnacional por ele empreendida a favor do abolicionismo.

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O resultado foi plenamente satisfatório, para o que contribui a boa estruturação do ensaio. Após lembrar a centralidade da luta pela abolição na vida e no pensamento de Nabuco – em que recor- da a tese de que cumpria não apenas assegurar a emancipação dos cativos, mas também erradicar a “obra da escravidão”, inclusive no plano das mentalidades, por ser a variável que explicava com maior abrangência o atraso do Brasil –, a autora percorre os principais mo- mentos do ativismo internacional do abolicionista. Comenta a apro- ximação de Nabuco a seus pares ingleses e americanos, a atuação como correspondente em Londres e a audiência com o Papa Leão XIII. Ao longo dessa militância, esclarece a autora, JN contestou com ve- emência a crítica de que estaria conspirando contra o Brasil. Nos passos de Júlia, recordemos os argumentos de Nabuco. Ele é enfá- tico em repudiar a assimilação do Brasil à escravidão. Afirma que tal presunção de que todos eram cúmplices daquele estigma alimentava um patriotismo de casta, que, malgrado seu potencial mistificador, dividia a sociedade, em vez de uni-la. Somente a emancipação e o efetivo acesso dos marginalizados à cidadania permitiriam a emer- gência de um patriotismo efetivamente nacional. Amigo da barbárie, o patriotismo dos senhores tinha como marca o discurso sobera- nista. Já o verdadeiro patriota, amante de sua terra e de seu povo, saudava a limitação da soberania pelos “princípios modernos do direito internacional”, que reduziam a escravidão a um fato brutal, assim como o eram a pirataria, a perseguição religiosa, a mutilação de prisioneiros e outros crimes.

Apoiando-se em Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho, Júlia Vita lembra que a caracterização do abolicionismo como imperativo da civilização não foi exclusiva de Nabuco ou da experiência brasileira. Mas acrescenta, a meu ver acertadamente, que a falta de originalida- de não minimiza a contribuição de Joaquim Nabuco ao pensamento

11 diplomático brasileiro, em particular à leitura de que desviar-se dos padrões contemporâneos de legitimidade na convivência interna- cional, em função de rompantes nacionalistas e/ou teses conspira- tórias, depõe contra e não a favor do Brasil.

Em “As ideias sãs: guerra, neutralidade, relações internacionais e política externa brasileira no pensamento de Rui Barbosa”, Flávio Beicker é igualmente bem-sucedido no propósito de tratar sob um enfoque inovador um segundo integrante, por vezes indócil, do “círculo de sábios” que, no dizer de Nicolau Sevcenko, o Barão do Rio Branco reuniu em torno de si. O legado de Rui Barbosa tem sido reavaliado nos últimos anos. O idealista utópico e beletrista cede lugar ao intelectual público que buscou depurar a República Velha de seus vícios institucionais e atualizar, com a importância que atribuiu à questão social, o discurso liberal. Flávio dá sua con- tribuição ao aggiornamento de Rui também como ator da política internacional.

Muita louvação já se fez à atuação de Rui Barbosa em Haia, em 1907. Da réplica de improviso ao delegado russo Martens à semi- nal defesa de uma representação igualitária em foro que sucederia a Corte Permanente de Arbitragem, os feitos de Rui no Ridderzaal, de tão incensados, já lhe renderam a caracterização de patrono do multilateralismo brasileiro. Sem vocação para herege, Flávio Beicker enaltece o postulado por Rui Barbosa na II Conferência de Paz, mas logo passa a um criativo confronto com a palestra “O dever dos neu- tros”, proferida na Faculdade de Direito de Buenos Aires, nove anos mais tarde. De Haia à experiência portenha, Flávio vê inovação no discurso de Rui, que vem embutida em um continuado e contundente apego ao direito. O avanço passa pela releitura do conceito de neutralidade.

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Por conta de uma interdependência crescente das nações – que se revelaria nos efeitos disseminados da primeira guerra mundial sobre o crédito, o comércio e a “fortuna dos povos” –, não se justificaria a adoção pelos não-litigantes de uma atitude de indiferença diante da violação sistemática do direito internacional, dos preceitos acor- dados em Haia. A neutralidade teria de evoluir de “passiva” a “vigi- lante”, o que não implicava endosso a ações independentes por parte dos países de maior poder. A vigilância seria exercida por uma co- ordenação multilateral de esforços, com a mobilização da opinião pública internacional, a favor da paz, da democracia e do direito, bem como de uma ilustrada “consciência coletiva”. O desenlace da argumentação de Rui em Buenos Aires, lembra Flávio, é a qualifi- cação do conceito de soberania, quando antevê a necessidade de um modelo de coexistência interestatal que, à custa da abdicação pelos entes soberanos de “poderes e elementos”, assegure a harmonia in- ternacional.

O ensaio “Filho da diplomacia: práticas discursivas de Oswaldo Aranha sobre diplomacia, política externa brasileira e relações inter- nacionais (1935-1959)”, de Clarissa Carvalho, é um texto instigante sobre o ator diplomático talvez de maior relevo dos anos Vargas e do pós-guerra. Além da necessidade de construir o perfil de Aranha a partir de escritos de conjuntura – cartas, discursos, artigos e entre- vista –, Clarissa enfrentou o desafio de interpretar ideias expressas em um recorte temporal de duas décadas e meia por uma persona- lidade capaz de atualizar-se permanentemente. A solução foi meto- dológica. Atenta ao alerta de Foucault contra a expectativa de que o discurso produzido por cada autor, ao longo da vida, seja de todo homogêneo, Clarissa despreocupou-se em identificar um fio con- dutor nos argumentos de Aranha. Disso não resultou um apanhado descosido. Pelo contrário. Oswaldo Aranha sobrevive ao crivo de

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Clarissa Carvalho como uma personalidade animada por uma con- cepção liberal e desenvolvimentista do Brasil, mas sem peias no uso das “práticas discursivas” que julgasse mais ajustadas às circuns- tâncias e aos interesses do País.

A autora desenvolve sua análise do pensamento de OA em duas fases: a primeira, que abrange desde a designação como embaixador em Washington (1935) até o final do mandato à frente do Itamaraty (1945), traz visões de Aranha sobre o Hemisfério; a segunda, que se estende do pós-guerra ao final dos anos 1950, comporta leituras sobre a evolução da conjuntura internacional. Na primeira fase, Clarissa mostra como Aranha evoluiu de uma visão idealista da con- certação regional – fundada em valores que via abafados pelo tota- litarismo na Europa – para uma leitura pragmática da relação com a potência hegemônica. Seu propalado enunciado de que a política externa brasileira devia resumir-se no apoio aos Estados Unidos no mundo em troca de apoio ao Brasil na América do Sul – traduzido por muitos como a Doutrina Aranha – não impediu o Ministro das Relações Exteriores de Getúlio, afirma Clarissa, de usar os canais que havia cultivado em Washington para uma cobrança de contra- partidas efetivas pelo envolvimento na guerra. Nada mais indicativo disso do que o teor das recomendações a Vargas para o encontro com Roosevelt em Natal.

Quanto ao pós-guerra, os escritos esmiuçados por Clarissa Carvalho indicam acuidade no acompanhamento do quadro interna- cional e de seu impacto no cenário doméstico. Em palestra na Escola Superior de Guerra em 1953 ainda encontramos OA sensível aos supostos reclames da Guerra Fria por uma identificação sem subter- fúgios com o Ocidente. Mas discursos e entrevista concedida no final da década denotam tanto inconformismo com o agravamento de problemas globais – onde esboça posições sobre desarmamento,

14 desenvolvimento e descolonização, que viriam a ser aprofundadas por Chanceleres futuros, em particular Araújo Castro –, quanto com- preensão dos limites de empreendimentos com a Operação Pan- Americana para a ampliação da pauta com os Estados Unidos. Aranha tornara-se cético quanto à reação de Washington a nossos pleitos por investimento público. Apregoa o adensamento dos vínculos eco- nômicos com a Europa reconstruída e com a própria União Soviética.

Em “José Enrique Rodó e Eduardo Prado: semelhanças, diferen- ças e atualidade”, Pedro Ivo demonstra, além de capacidade analí- tica, um domínio virtuoso da linguagem. O autor elegeu, como objeto de análise, personalidades sem vínculo direto com a diplomacia, mas que são indispensáveis para a caracterização do ambiente intelectual e político que conferiu legitimidade aos modelos de inserção inter- nacional adotados no Uruguai e no Brasil na passagem do século XIX para o século XX. Rodó e Prado emitiram seus juízos contra o utili- tarismo anglo-saxão para audiências com afinidades externas talvez opostas. Rodó foi testemunha e, em certa medida, deu eco a um sentimento disseminado na América hispânica de desconforto com o intervencionismo crescente dos Estados Unidos em seu entorno, que culminou na guerra hispano-americana de 1898 e na posse de Cuba. Prado navegou contra a maré republicana e manifestou sem hesitação seu desacordo com a aproximação do novo regime aos Estados Unidos, que contrastava com o europeísmo do Império. A primeira metade do ensaio é dedicada aos condicionantes históricos e ideológicos e às linhas básicas de Ariel e de A Ilusão Americana. Testemunha da modernização econômica e social por que passou o Uruguai sob Battle y Ordoñez, Rodó, explica Pedro, foi um dos protagonistas da eclética geração do Novecientos, grupo de literatos, filósofos e ensaístas que buscou ir além do cânone posi- tivista e renovar o panorama intelectual do país. Múltiplas eram as

15 influências a que Rodó se dizia em débito: o espiritualismo aristo- crático de Renan, a metafísica renovada de Bergson e Renouvier, o cristianismo de Tolstoi e o sentimento heroico de Carlyle. Mas se proclamava um neoidealista, fiel à responsabilidade ética e à di- mensão social do trabalho intelectual. Ariel é uma obra pedagógica. Servindo-se do personagem shakespeariano Próspero, Rodó con- clama os jovens ao cultivo dos valores clássicos em um mundo cada vez mais mercantilista. Não por acaso o livro tornou-se emblemático, prossegue Pedro, do confronto entre a América supostamente es- piritualizada, tradicionalista e herdeira dos legados greco-latino e católico e a América pretensamente progressista, materialista e uti- litária de tradição anglo-saxã. Sem negar sua admiração pelo empre- endedorismo ou “obra titánica” realizada pelos norte-americanos, Rodó os vê desprovidos de uma “concepção alta e desinteressada do futuro”. De Eduardo Prado, egresso da elite paulista, Pedro Ivo traça um perfil impressionista, mas com atenção a traços essenciais. Lem- bra a formação jurídica de Prado e seu gosto por história, litera- tura e política internacional; o pendor cosmopolita, de resto comum aos jovens de seu estrato social; e o fervor com que se opôs à mu- dança de regime, manifesto em uma sequência de libelos, dos quais o mais rumoroso foi, por certo, A Ilusão Americana. Nele Prado situa o pertencimento do Brasil e dos Estados Unidos a um mesmo con- tinente como um acidente geográfico. Daquele país nos distanciariam a índole, a língua, a história e as tradições. Tampouco lhe parece digna de crédito qualquer promessa de solidariedade hemisférica, se considerados os atos de sedição e sabotagem cometidos sob os ditames de Washington nas décadas anteriores, inclusive contra o Império. Daí o lamento de Prado por estarmos seguindo o pendor

16 imitativo dos hispânicos e adotando instituições de todo alheias à nossa formação. No contraponto entre Rodó e Prado feito na segunda metade do ensaio, Pedro comenta duas afinidades e duas diferenças. As primeiras são o registro comum da emergência dos Estados Unidos como potência hegemônica e a correlata rejeição de valores associa- dos ao cotidiano norte-americano. Se despertados por acontecimen- tos distintos para os riscos que traria o novo hegemon – Rodó, pelo “Desastre de 1898”; enquanto Prado, pela proclamação da República, em 1889 –, eles partilham repertório comum e produzem escritos com ressonância política, o que é de fácil comprovação no caso do intelectual paulistano. Já Rodó é mais pródigo em exemplos do des- compasso entre a “pobreza espiritual” anglo-saxã e a maior “huma- nidade” latina. As diferenças estariam no emprego de conceitos diversos para expressar a americanofilia que combatiam – nordomanía, por Rodó; “ilusão”, por Prado – e, sobretudo, no juízo sobre a América Latina. Enquanto o intelectual uruguaio desenvolve sua crítica ao utilitaris- mo norte-americano para enaltecer a formação latino-americana ou, nas palavras de Pedro, a “comunidade de tradições compartilhadas” da qual o Brasil faria parte, Eduardo Prado projeta como espelho in- vertido do modelo anglo-saxão a eurófila monarquia brasileira. Con- sidera a América hispânica, fadada à instabilidade política, tão ou mais contaminada do que os Estados Unidos pelos vícios republicanos. O ensaio é arrematado com criatividade. Pedro Ivo argumenta que os Estados Unidos não são singulares no estímulo a sentimen- tos desencontrados quando de sua emergência como potência. A pro- dução de mixed feelings seria uma sina dos Estados em ascensão. Basta lembrar, afirma Pedro, que Beethoven dedicou a Sinfonia

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Eroica a Bonaparte para logo, decepcionado com o viés imperialista do corso, excluir da partitura a deferência. Ou o susto que a Weltpolitik da Alemanha de Guilherme II causava à opinião pública europeia. A fobia que a afirmação da China suscita em muitos seria a versão contemporânea desse fenômeno. Ao longo do século XX, afirma Pedro, usando a terminologia shakespeariana ao agrado de Rodó, os Estados Unidos, no uso do soft power, “descalibanizaram-se parci- almente e parcialmente se arielizaram”. Terá a China semelhante êxito com sua “ofensiva de charme”? É digno de registro o trabalho de pesquisa que resultou no ensaio “As Gerações de 1870 no México e no Brasil: diferenças e coincidências dos projetos de atração da imigração chinesa”, de Adriano Giacomet. O autor ampara sua análise não apenas nos es- critos de nomes decisivos da Geração de 1870 no Brasil e do grupo de Tuxtepec no México, mas em amplo leque de comentadores do contexto intelectual. Dota-se, assim, de recursos para mostrar que um tema de escopo supostamente limitado – como as políticas de atração da imigração chinesa – pode ser revelador dos contornos do debate mais amplo que então de desenrolava sobre a moderni- zação do Estado e da sociedade no Brasil e no México. O ensaio compreende a discussão dos fundamentos históricos e ideológicos e um balanço comparativo das políticas brasileira e mexicana de cap- tação de mão de obra chinesa nas últimas décadas do século XIX. Após a Guerra de la Reforma (1858-1860) – que, na vaga das mudanças que se seguiram à expulsão dos invasores franceses, opôs liberais e conservadores e propiciou, com a vitória liberal, a chegada de Benito Suárez ao poder –, uma geração de intelectuais e militares (“Geração de Tuxtepec”) atribuiu-se a missão de reinventar a nação mexicana, Adriano recorda. Entre os literatos com o encargo de prover o substrato ideológico da nova identidade nacional so-

18 bressaíam os nomes de Gabino Barreda, Telésforo Garcia e Matias Romero. Do meio castrense, que daria as bases de poder para a via- bilização do projeto, a personalidade de maior destaque foi Vicente Riva Palacio (também de apurada formação historiográfica e literá- ria). Lembra Giacomet que constavam da pauta de renovação do país as seguintes causas, com marca positivista e que viriam a ser assumidos por Porfirio Díaz como lemas maiores de sua extensa pre- sidência: afirmação da ordem e da integração nacional; construção do mestiço como elemento integrador da nacionalidade e relativiza- ção da importância de etnias brancas para o acesso à modernidade. A política de imigração chinesa vem à baila nesse contexto, com o propósito de ocupar e desenvolver áreas remotas e de baixa produ- tividade, favorecendo a integração territorial e a centralização política.

No caso do Brasil, afirma Adriano, a discussão sobre o tema também se deu em momento de transição, quando a crise do Segundo Reinado reclamou da heterogênea Geração de 1870 atenção à questão do trabalho e à reforma das instituições políticas. Embora republi- canos e abolicionistas não fossem confrarias coincidentes, a crítica à Monarquia contribuiu para o acirramento do debate sobre a subs- tituição da mão de obra escrava, em que, elabora Adriano, duas visões colidiam. A primeira privilegiava a imigração europeia, en- quanto a segunda, diante do malogro das experiências de colonato, via mérito em explorar alternativas, como a imigração asiática. Joaquim Nabuco é singularizado por Adriano Giacomet como expo- ente dos eurófilos e crítico contundente da ameaça de “mongoli- zação” do País, que traria, de resto, o risco de substituição de um regime servil por outro. Salvador de Mendonça é apontado como o melhor amigo da opção chinesa. Por encontrar eco nas associações agrícolas e no próprio Imperador, a corrente a que se associava

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Nabuco prevaleceu, dificultando a assunção pelo Estado do custo de traslado dos imigrantes chineses. Na identificação das semelhanças entre a experiência mexicana e a brasileira, Adriano Giacomet afirma que ambas se inscreviam em movimentos mais amplos de atualização e reforma das institui- ções nacionais, cujos protagonistas eram personalidades com tra- jetórias de relevo na academia e na política. As gerações de intelec- tuais também coincidiam na assimilação pragmática de teorias e conceitos cultivados na Europa. Citavam autores e bordões estran- geiros não por diletantismo, mas com o objetivo de interferir na gestão pública. Aqui iniciam as diferenças. Enquanto a imigração chinesa no México destinava-se, como já vimos, a fortalecer a integração do território e a consolidação da ordem, concorrendo, dessa forma, para a afirmação do Porfiriato diante do caudilhismo regional, Salvador de Mendonça e pares buscavam simplesmente equacionar a crise da lavoura, facilitando, com isso, a transição da escravatura para o trabalho livre. Adriano também indica que, no México, muito por conta da criação por Benito Suárez da Escuela Nacional Preparatoria, a intelectualidade e o poder estavam mais bem articulados entre si, o que permitia maior coesão no planeja- mento e adoção de políticas públicas. Vejamos, por fim, o ensaio “O conceito de autonomia na política exterior brasileira: mudanças e continuidades”, de Gustavo Ziemath. A opção por acompanhar a evolução de um conceito em décadas de história implica riscos. Um deles é o de dar margem a leituras li- geiras, que não captem as particularidades assumidas pelo conceito em cada uma das fases selecionadas. Se a familiaridade de Ziemath com o pensamento diplomático o poupa desse dissabor, ele é igual- mente favorecido pelo conhecimento que revela da metodologia historiográfica. Privilegia a escola contextualista de Cambridge e seu

20 apreço pelo resgate do significado histórico dos textos. Comenta, em particular, o tratamento dispensado por Quentin Skinner e James Farr ao tema da mudança conceitual. De Skinner, Gustavo recorda a preocupação com a influência das ideologias na ampliação ou redução da variedade semântica dos conceitos. De Farr, lembra tanto o entendimento de que as inovações conceituais podem resultar do esforço em “desatar nós” teóricos que tenham sido avivados pela busca de compreensão das transformações políticas, como a noção (investigada também amiúde por Skinner, em seu débito com a filo- sofia da linguagem) de “constituição linguística da política”. Reporta- se, ainda, ao fenômeno inverso do impacto da política sobre os con- ceitos, seja pela extensão das atitudes passíveis de atribuição de significado por um conceito, seja pela própria “ressignificação” de um determinado termo. De todo modo, mais importante do que o registro seletivo que Gustavo faz do método contextualista é seu interesse em usá-lo para percorrer as variações sofridas pelo conceito de autonomia ao longo das últimas décadas, configurando continuidades e desconti- nuidades no pensamento diplomático brasileiro. Após uma breve citação dos princípios que teriam pautado a construção pelo Barão do Rio Branco de um “alinhamento pragmático” em relação aos Es- tados Unidos, Ziemath alude ao intento da “autonomia possível” sob Vargas, apoiando-se no estudo de Gerson Moura sobre a “equidis- tância pragmática” entre Washington e Berlim, para logo concentrar- se no imediato pós-guerra e nos anos 1950. Aqui comenta o “prag- matismo impossível” em Dutra e no segundo governo Vargas, bem como as reflexões de Helio Jaguaribe e seus reflexos sobre as dire- trizes da Política Externa Independente. Faz referência à divisão feita por Jaguaribe das correntes de opinião em “cosmopolitas” e “nacionalistas”, sublinha a ênfase no desenvolvimento como impor-

21 tante legado desse teórico à PEI e visita as linhas mestras dos discur- sos de Afonso Arinos e de Araújo Castro. Nesse acidentado percurso, Gustavo sugere que alguns fatores persistiram, em composições vari- áveis, na definição do grau de autonomia do País, como a relação com a potência hegemônica e a disposição em universalizar os vínculos. O tratamento do conceito no período militar e após a redemo- cratização é realizado tendo como eixo a feliz dualidade cunhada por Gelson Fonseca: autonomia pela distância por oposição à autono- mia pela participação. Gustavo discrimina os elementos identificados por diferentes analistas nos governos militares para detalhar uma orientação definida por contraponto à agenda das grandes potên- cias: inclinação ao desenvolvimento autárquico, ausência do Conselho de Segurança e posições singulares em direito do mar, desarma- mento e comércio. Quanto à fase democrática, Ziemath comenta como a escolha de Gelson por caracterizar o discurso mediante a participação na regulação da ordem internacional inspirou, em alguma medida, os conceitos elaborados por Vigevani e Cepaluni de “autonomia pela integração” e de “autonomia pela diversificação” (voltado para os governos Lula). O ensaio é finalizado com pleito do autor para que o conceito de autonomia seja ajustado ao aden- samento em curso da interdependência global. Tarcisio de Lima Ferreira Fernandes Costa

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A GERAÇÃO DE 1870 NO MÉXICO E NO BRASIL: DIFERENÇAS E COINCIDÊNCIAS DOS PROJETOS DE ATRAÇÃO DA IMIGRAÇÃO CHINESA

Adriano Giacomet de Aguiar

RESUMO Este artigo analisa os projetos de atração da mão de obra chinesa coloca- dos em prática pelo Brasil e pelo México nas décadas de 1870 e de 1880, em contexto de emergência, nos dois países, de estratégias inovadoras de organização da sociedade e do Estado. Baseado nas ideias de expoentes da chamada Geração brasileira de 1870 (Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça e Visconde de Sinimbu) e da Geração de Tuxtepec (Gabino Barreda, Telésforo Garcia, Vicente Riva Palacio e Matías Romero), o estudo busca entender como a imigração chinesa integrou os esforços de desen- volvimento das sociedades mexicana e brasileira, bem como as idiossin- crasias sociopolíticas que influenciaram a adoção de diferentes estratégias diplomáticas de aproximação com a China.

PALAVRAS-CHAVE Imigração chinesa; Geração de 1870; Geração de Tuxtepec; política exter- na brasileira.

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INTRODUÇÃO Nos últimos trinta anos do século XIX, surgiam, na cidade do México e no , duas gerações de personalidades públi- cas que influenciaram intensamente seus países. Ambos os grupos eram formados por intelectuais, dos quais muitos se aventuraram no mundo político e passaram por traumas praticamente simultâ- neos, que moldaram as suas percepções de mundo. A guerra contra os franceses (1861-1867) e a Guerra do Paraguai (1864-1870) cata- lisaram transformações sociais e ideológicas que foram absorvidas por esses dois grupos, os quais, por sua vez, traduziram essas mudan- ças em projetos nacionais inovadores. A identidade desses grupos não advém da homogeneidade de seus pensamentos nem da novi- dade dos estudos teóricos que desenvolveram, mas da manifesta- ção política de interesses diversos que, indubitavelmente, aceleraram processos, tendências e debates represados em estruturas políticas e materiais que já não mais acomodavam as transformações por que passavam suas sociedades. No epicentro desses novos projetos nacionais, estavam a questão da mão de obra e o debate acerca da necessidade de estímulo à imigração. Não havia qualquer consenso acerca desses projetos nem mesmo havia convergência necessária de interesses e de pensamento entre o que mais tarde foi agrupado artificialmente como grupos geracionais coesos. Nunca o foram. Não por acaso, animaram projetos distintos de formação da nacio- nalidade e de integração nacional do Brasil e do México. O objetivo principal deste artigo é o de entender como as duas gerações conceberam seus projetos de imigração, principalmente a chinesa, no contexto de surgimento de grupos geracionais que se percebiam investidos de legitimidade para realizar grandes trans- formações nos respectivos países. Além disso, buscar-se-á compre- ender como se organizaram os argumentos raciais das duas gerações

24 e como eles se materializaram em estratégias diplomáticas no pro- cesso de atração da imigração asiática. O artigo é dividido em três par- tes. Na primeira, faz-se breve contextualização da imigração chinesa no século XIX, em que se destaca a impossibilidade de atrair a mão de obra chinesa que não por acordo direto com o Império Celeste, o que forçava a elaboração de uma estratégia diplomática de apro- ximação com o país. Na segunda parte, serão introduzidas algumas características da Geração de Tuxtepec1, bem como apresentados alguns traços do pensamento de quatro representantes desse grupo geracional (Gabino Barreda, Telósfero Garcia, Riva Palacio e Matías Romero), relevantes para entender quais foram os fundamentos sociais e ideológicos que viabilizaram a adoção da alternativa da imigração chinesa. Em seguida, passa-se à análise da Geração de 1870 no Brasil, na qual são ressaltadas as idiossincrasias que informa- ram o projeto brasileiro da imigração de mão de obra chinesa, por meio da análise dos escritos e discursos de dois autores que par- ticiparam ativamente dos debates acerca da estratégia brasileira de incentivo à vinda de trabalhadores asiáticos ao Brasil: Salvador de Mendonça e Joaquim Nabuco. Na conclusão, serão sistematiza- das as diferenças e semelhanças dos projetos de imigração chinesa no Brasil e no México.

1. IMIGRAÇÃO CHINESA: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO A imigração chinesa e o tráfico de coolies na segunda metade do século XIX, em termos de fluxo e destinação geográfica, secun- dou apenas o tráfico negreiro. Era um fenômeno mundial e, por isso, mobilizou a ação diplomática de inúmeras chancelarias, prin-

1 DÍAZ, Porfirio. Plan de Tuxtepec, 10 jan. 1876. Declaração de Porfirio Díaz que buscava destituir o governo de Sebastián Lerdo de Tejada. Foi assinada por generais próximos a Porfirio, os quais constituiriam núcleo duro da administração do Porfiriato, entre eles Vicente Riva Palacio.

25 cipalmente da Espanha, que buscava recuperar a produção açuca- reira do Caribe e do Reino Unido, que se utilizava da mão de obra coolie para suprir os braços da lavoura de suas colônias na Ásia e na América e dos Estados Unidos, que intentavam desenvolver o far west americano. Outro exemplo é o Peru, que, desde a década de 1850, recebia os coolies chineses em números muito mais signifi- cativos que o Brasil recebera até então2. Em 1875, o Peru já contava com mais de 100 mil imigrantes chineses no país3, enquanto no Brasil e no México eles não passavam de algumas centenas. Concentradas no período que se estende de 1870 a 1890, as tentativas do Brasil e do México de importarem essa mão de obra ocorreram em outro contexto sociopolítico tanto na China quanto na América latina, o que dificultou sobremaneira a bem-sucedida execução dos seus projetos de imigração e influenciaram negativa- mente os resultados dos seus esforços diplomáticos. Essa diferença de timing na realização dos projetos de importação de mão de obra gerou resultados contrastantes com as experiências do Peru e das potências europeias do período. A principal razão que explica as diferenças de resultados das iniciativas que ocorreram até 1870 e as posteriores a esse período é a alteração da posição inglesa com relação ao tráfico de coolies: de líder do tráfico a advogado de sua proibição. Motivada pelo seu desejo de impedir a criação de um tipo de mão de obra substituta à escrava e pressionada por grupos britânicos contrários à escravi- dão, a Inglaterra, em 18734, proibiu a saída de trabalhadores chi-

2 O Peru havia abolido a mão de obra escrava em 1854, em momento de grande exportação de guano aos europeus, o que impulsionou a crescente importação de trabalhadores chineses. 3 “Along with increasing opposition there [América Latina] to the use of slave labor, and the availability of cheap passages on steam vessels, this rapid development beckoned to the Chinese with the promise of jobs. Close to 100.000, for instance, had come to Peru by 1875”. SPENCE, Jonathan. The Search for Modern China. 2. ed. WW Northon & Company, 1999. 4 Manteve-se, entretanto, a possibilidade de emigração de chineses para colônias britânicas até 1874. Para mais informações acerca do tráfico de coolies nas colônias britânicas ver:

26 neses de Hong Kong e exerceu pressões sobre Portugal, para que Macau também proibisse a saída de coolies do seu porto, o que efe- tivamente ocorreu no ano seguinte. A partir desse momento, estavam fechadas as portas à imigração de coolies intermediada por ingleses e portugueses. A única forma de viabilizar o fluxo de trabalhadores chineses seria com base em acordos diretos com o próprio governo chinês, que se mostrava cada vez mais reticente com a emigração de sua população, impondo a necessidade de estabelecer relações com o Império Celeste para viabilizar o proje- to5. Não era mais possível contar com iniciativas de mercadores privados para realizar o transporte, sendo imperativo o estabe- lecimento do uso da diplomacia nacional para a concretização dos objetivos de atração de mão de obra. Toda discussão sobre a imigração, no Brasil e no México, encerrava a necessidade de cria- ção de uma estratégia política de aproximação do Estado chinês. Essas estratégias, embora gravitassem em torno do mesmo fim – a regulamentação da ida de trabalhadores chineses ao Brasil e ao México –, apresentaram divergências, tanto no que concerne às justificativas domésticas para o incentivo desse fluxo migratório quanto na própria forma com que foram conduzidas as nego- ciações com os chineses.

2. GERAÇÃO DE TUXTEPEC Assim como a Guerra do Paraguai e a crise política no Império brasileiro provocaram mudanças políticas e de mentalidade que

CAMPBELL, Persia. Chinese Coolie Emigration to countries within the British Empire. Londres, P.S. King & Son, 1923. 5 “The Macao traffic having been terminated, contract emigration could only take place at the Treaty ports under the terms of the Convention. (…) Until the end of the century, however, the Treaty ports were effectively closed to the system by the Chinese government, which, after the presentation of the report on the Cuban abuses, demanded guarantees for the welfare of its subjects(…)”. CAMPBELL, Persia, ibidem, p. 159.

27 fizeram emergir um novo quadro de transformações ideológicas, políticas e sociais no país, no México a guerra contra a invasão es- trangeira e o período das reformas no final da década de 1850, que levou a uma guerra civil (Guerra de la Reforma6), fizeram surgir, na década de 1870, uma nova geração de militares e de intelectuais que puderam vocalizar suas demandas, antes abafadas por estrutura política que os combatia.

O grupo de letrados era, em geral, “de classe média, proveni- entes do meio urbano e figuras de projeção nacional”, exerciam profissões liberais (juristas, médicos, advogados e jornalistas) e destacavam-se pela “capacidade oratória, que exerceram nas tribu- nas parlamentares, nas cátedras, na literatura”7. O grupo dos mili- tares, que incluía Porfirio Díaz, advinha de famílias mais humildes e possuíam educação precária. Exceção letrada do grupo dos mi- litares era Vicente Riva Palácio, uma das figuras emblemáticas do México no período, que, em paralelo à sua função de militar, desen- volvia estudos historiográficos, literatura e contribuía para os pe- riódicos da época, o que terá papel fundamental na promoção da imigração ao país. Como veremos, se o primeiro grupo proveria o substrato ideológico para um novo projeto de nação, o segundo daria as bases de poder para que esse projeto nacional fosse viabilizado. O novo momento da política mexicana pós-guerra civil depen- dia da afirmação de um novo corpo de doutrina capaz de diagnos- ticar os erros do passado que condenaram o México a posições de vulnerabilidade e, principalmente, de indicar um novo rumo para o país. Era necessário criar um novo projeto de integração e de iden-

6 Conflito armado, ocorrido entre 1858 e 1860, que opôs liberais e conservadores e que cul- minou na vitória dos liberais e na entrada de Benito Juarez no poder.

7 BARBOSA, Carlos; VIOTTI, Emilia (Org.). A Revolução Mexicana. Editora Unesp. p. 27. (Série Revoluções do Século XX)

28 tidade nacionais capaz de dar substância à concretização da forma- ção territorial do Estado. A Geração de Tuxtepec foi quem realizou esse projeto no período em que dominou a política mexicana e desenvolveu os dois pilares basilares da rationale orientadora do projeto nacional mexicano entre 1870 e 1910. O primeiro refere-se ao imperativo da ordem e da integração nacional; o segundo, à construção positiva da figura do mestiço como elemento integrador da nacionalidade e, consequentemente, à relativização da importância do elemento racial branco como meio de acesso à modernidade8. Esses aspectos fundamentais para a formação do Porfiriato serão essenciais para compreender as razões de a mão de obra chinesa ter-se tornado alternativa preferencial para esse regime. Será traçado a seguir um breve histórico de alguns elementos do pensamento mexicano que culminaram na noção de que a imigra- ção asiática era alternativa prioritária do projeto de desenvolvimento do país. O pensamento de Gabino Barreda e de Telésforo Garcia apon- tam para o ideal de integração, ordem e progresso; Riva Palacio as- socia esses ideais ao imperativo da imigração; e, finalmente, Matías Romero introduz a alternativa asiática como modelo imigratório preferencial e executa o projeto diplomático para atração dessa mão de obra.

8 “Durante aquellos aciagos años se identificaron plenamente con la pléyade reformista, enarbolando con ésta las banderas de la Constituición de 1857 y de las Leyes de la Reforma, como símbolos de la lucha contra la reacción y la invasión extranjera, símbolos que se convertirían después en el leitmotiv del partido liberal. Una vez terminada la guerra, el recuerdo de aquellas infaustas vivencias y el deseo de establecer una paz duradera llevaron a nuestros personajes a buscar la reconciliación nacional. [...] Todos compartieron una preocupación de orden político y moral al acercarse a la historia y ante el gran reto que significó la reconstrucción del país [...] y com ella reforzar el sentimiento de identidad nacional”. LLORENS, Antonia. La generación de Vicente Riva Palacio y el quehacer historiográfico. Secuencia, n. 35, FFyl-UNAM, 1996. p. 88.

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2.1. Gabino Barreda e Telésforo Garcia: o imperativo da ordem e o mestiço como base da integração conservadora Uma das primeiras manifestações que embasariam esse novo projeto político foi a obra de Gabino Barreda. O diagnóstico da realidade política mexicana feito pelo autor, em discurso intitulado “Oración Cívica”, serviu como referência para a construção dos novos projetos e da nova interpretação de base positivista acerca dos erros e acertos do passado. Segundo Barreda, se o positivismo comtiano nasceu de uma reação à anarquia da Revolução Francesa, no México, esse corpo de doutrina seria desenvolvido para superar a fragmentação do país após os conflitos das décadas anteriores.

[...] hasta lograr después de la más dolorosa y la más fecunda de nuestras luchas, el grandioso resultado que hoy palpamos [...] es, en fin, la de sacar conforme al consejo de Comte, las grandes lecciones que deben ofrecer a todos esas dolorosas colisiones que la anarquía, que reina actualmente en los espí- ritus y en las ideas, provoca por todas partes, y que no puede cesar hasta que una doctrina verdaderamente universal reúna todas las inteligencias en una síntesis común. [...] Hoy La paz y el orden, conservados por algun tiempo, harán por sí solos todo lo que resta.9 Barreda foi o criador e diretor, por mais de uma década, da Escuela Nacional Preparatoria (ENP), cujo objetivo primeiro era o de elaborar estudos científicos capazes de garantir a unidade e a ordem necessária para o desenvolvimento material do país. Dava- se, então, forma institucionalizada ao imperativo da educação cívica, essencial, segundo o autor, para superar as ideias conflitantes que condenavam o país ao estado de anarquia. A ENP foi frequentada por diversos dos principais expoentes que mais tarde desempenha- riam papel fundamental no Porfiriato10, o que viabilizou a formação

9 BARREDA, Gabino. Discurso proferido em 16 set. 1867. Guanajuato, México. 10 “Estos personajes, entre los que se encontraban Francisco G. Cosmes, Eduardo Garay, Telésforo García, Justo Sierra, Santiago Sierra, Miguel S. Macedo, Joaquín Casasús y José Yves Limantour, empezarían su labor propagandística con el periódico La Libertad (1878-1884).

30 de “uma unidade geracional de positivistas que dominou a hierar- quia do campo intelectual mexicano até o colapso revolucionário de 1910”11. Esse elemento institucional de ligação dos intelectuais não apresentou equivalente no cenário brasileiro e serviu como vín- culo entre a intelectualidade e o poder. Se não completamente au- sente no caso brasileiro, dada a existência de espaços de uniformi- zação ideológica, como as faculdades de Direito de São Paulo e de Recife e a faculdade de Coimbra, lócus de formação das elites brasi- leiras; a ligação entre intelectuais e o poder ocorreu apenas de forma fragmentada, não sendo imposta a partir de uma estrutura centra- lizada, tal como no caso mexicano. Telésforo Garcia, um dos membros mais destacados da ENP, seguindo os passos positivistas de Barreda, entendia que a infe- rioridade do país, demonstrada pelas intervenções estrangeiras ao longo da história, era mais resultado da debilidade mental da nação e das características inerentes à raça hispânica, do que da força das armas estrangeiras12. Não era uma preocupação eminen- temente racial nem uma condenação ao caráter mestiço do povo mexicano, mas à racionalidade latina que acometia também os lati- nos da Europa continental. O problema não era o mestiço, mas o legado da mentalidade branca franco-ibérica. Segundo o autor, o latino preocupava-se excessivamente com o que denominava “me- tafísico” (ideais utópicos), enquanto os anglo-saxões eram “prag- máticos” (desenvolvimento material), o que lhes dava vantagem relativa sobre o México, condenando-o à permanente interferência estrangeira e à posição de colonizado.

Posteriormente formarían la Liga Unión Liberal (1892), que se conocería como el partido del grupo de ‘Los Científicos’”. MARTÍNEZ, Juan Manuel. Telésforo Garcia: un emigrante mon- tañés en el Porfiriato. In: XV ENCUENTRO DE LATINOAMERICANISTAS ESPAÑOLES, Actas Congreso Internacional América Latina: la autonomía de una región, 2012. 11 GONZÁLEZ, Alejandro. La filosofía mexicana durante el régimen liberal: redes intelectuales y equilibrios políticos. Signos Filosóficos, vol. 12, n. 23, México, 2010. 12 ZEA, Leopoldo. El pensamiento latinoamericano. Editora Ariel, 2003. (Colección Demos)

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Para superar essa condição de inferioridade crônica, era ne- cessário investir no processo de integração do país, pelo meio da educação cívica que faria despertar a consciência nacional. A ideia inócua, se descontextualizada, representava, em verdade, enorme mudança no contexto político da época. A consciência nacional e a integração apontavam para a necessidade de superação do caudi- lhismo e o enfraquecimento de lideranças regionais. Falava-se, inclusive, da necessidade de uma “tirania honrada”13, capaz de unir o país, em contraposição à tirania local que o fragmentava.

The key to the transformation of liberalism was the appearance of the doctrine of scientific politics, hinted at by Gabino Barreda in 1867 but first systematically enunciated in 1878 by a ‘new generation’ of journalists-intellectuals in the newspaper La Libertad. The doctrine of scientific politics was drawn from French positivism of the 1820s and constituted a critique of classic liberal and democratic ideas, now branded as ‘revolutionary’ and ‘anarchical’, products of the ‘metaphysical mentality of an age gone by. [...] Their specific program was to strengthen government through constitutional reform, and they looked to the fledging regime of Porfirio Díaz to implement this program.14 O acesso à mentalidade pragmática dos ingleses e americanos, portanto, não seria alcançado meramente pela incorporação pro- gressiva do caucasiano que levaria ao progresso racial, mas pelo desenvolvimento material do país ordenado por meio de um Estado forte15. A raça branca, europeia, não era livre de vícios e, por isso,

13 “Los medios para llegar a la prosperidad son los ferrocarriles y la inmigración. Ahora bien, allá no se llega sin un poder central fuerte. Sierra admite que para lograr tal objetivo se re- quiere limitar el derecho democrático, ya que las instituciones políticas tienen en México uma nueva existencia ficticia. Se impone, pues, uma tiranía honrada”. MORALES, Ernesto. Tendencias educativas oficiales en México: 1821-1911. CEE-UIA, 1998. 14 HALE, Charles. The transformation of liberalism in late nineteenth-century. México: Princeton University Press, 1989. p. 245. 15 “Que el orden material, conservado a todo trance por los gobernantes y respetado por los gobernados, sea el garante cierto y el modo seguro de caminar siempre por el sendero florido del progreso y de la civilización”. BARREDA, Gabino, op. cit.

32 não era idealizada, como exemplificado pela análise de Telésforo Garcia, que criticava a ênfase dos povos latinos no metafísico. O elemento latino, portanto, não poderia ser referência positiva, uma vez que os principais inimigos históricos dos científicos eram os espanhóis, exploradores coloniais, e os franceses, que instituíram, no México, monarquia associada a grupos políticos que saíram der- rotados da guerra civil. Não por acaso, desenvolveu-se no país corpo doutrinário que via na tradição latina algo negativo e interpretava positivamente os povos anglo-saxônicos, o que relativizou a ideia de superioridade racial branca e instituiu a ideia de superioridade pela via do pragmatismo do desenvolvimento material. A mestiçagem, ao contrário do que ocorreu no Brasil, que se via como o bastião da cultura europeia nas Américas, não seria óbice à modernização, mas um dos vetores do progresso do país, desde que promovidas as condições materiais necessárias ao prag- matismo anglo-saxão. A nova identidade mexicana valorizava o mes- tiço como equilíbrio positivo entre extremos que poderiam levar à desagregação do país: o índio e a sua tendência à barbárie demo- crática e o latino usurpador. Dava-se uma forma possível à procla- mação da igualdade racial do período da independência16, mais adequada às elites mexicanas de um novo contexto histórico. A ênfase na mestiçagem buscava excluir o índio da narrativa oficial, o qual só recuperaria seu papel na Revolução de 1910, e não neces- sariamente valorizar o elemento europeu no caldeirão racial do país. Essa abordagem, no contexto de promoção da imigração ao México, gerará diferenças fundamentais em relação ao caso brasi-

16 “Insurgentes y realistas, al establecer la igualdad racial en la década 1810-1820, hicieron desaparecer legalmente la sociedad estamental de la colonia. El Soberano Congreso Consti- tuyente ordenó, el 17 de septiembre de 1822, que en todos los documentos públicos o privados, al sentar los nombres de los ciudadanos, se omitiera clasificarlos por su origen”. NAVARRO, Moisés. Las ideas raciales de los científicos: 1890-1910. Trabalho apresentado em 25 set. 1987 – Universidade do Texas, HMex, XXXXVII, 4, 1988.

33 leiro, no qual a preocupação com o embranquecimento da popula- ção era, por vezes, tomada como máxima para a superação do seu atraso relativo. A mestiçagem no México foi uma invenção ideoló- gica que serviu como meio de articulação integradora da nacionali- dade e como “una teoría de la identidad nacional que presupone la distancia creciente entre el pasado y el futuro”17. Se o positivismo foi o instrumento para estabelecer a ordem mental do novo país, o Porfiriato foi a expressão prática da nova ordem político-social mexicana. Os discursos de Barreda e García serviam como substrato ideológico de um projeto de integração na- cional; o Porfiriato, influenciado pela tentativa de conciliação entre o positivismo inglês e o liberalismo, foi a sua aplicação prática. O positivismo mexicano, portanto, sofreu diversas transformações que buscavam adequá-lo à realidade política mexicana18. Foi um “positivismo mexicano, adaptado a nuestras circunstancias”19.

2.2. Vicente Riva Palacio: a imigração como meio para a integração A ideia fundamental que animava o projeto ideológico positi- vista era a de que, para se modernizar, seria necessário integrar o

17 ZERMENO-PADILLA, Guillermo, Del Mestizo al mestizaje: arqueología de um concepto. Colômbia: Mem.soc, 12 (24), jan.-jul. 2008. 18 “El positivismo de Comte subordinaba los intereses del individuo a los de la sociedad; a la burguesía mexicana no le convenía esta doctrina. No sucedía lo mismo con el positivismo inglés, el cual procuraba justificar el liberalismo económico de su burguesía, contrario a cualquier interés colectivo que subordinase la acción del Estado a los intereses de la misma. (…) El grupo que había pedido el orden en nombre de la sociedad iba ahora a pedir la libertad en nombre de los individuos de esta sociedad”. LLOVERAS, Guadalupe. El posi- tivismo en México. Revista Trabajadores, México. No mesmo sentido, ZEA, Leopoldo, op. cit., p. 398, “Lo importante era formar la clase directora de la burguesía mexicana, cada vez más poderosa. El modelo conforme al cual debería ser esta clase lo ofrecían los países anglo- sajones. Los teóricos de la burguesía mexicana encontrarán bien pronto una teoría que justifique sus intereses. Ésta la ofrecieron los positivistas ingleses John Stuart Mill y Herbert Spencer, especialmente el último y, con ellos, el evolucionismo de Charles Darwin. Esta doctrina pareció ser la que mejor coincidía con los intereses que se querían justificar”. 19 LLOVERAS, op. cit., p. 30.

34 país sob um governo capaz de promover a ordem. Riva Palacio en- tendia haver um óbice fundamental à concretização desse projeto: os vazios demográficos das costas impediriam a união do país20. O objetivo da integração, portanto, dependia da expansão dos progra- mas de imigração de mão de obra. A imigração tornar-se-ia, dessa forma, um dos eixos fundamentais do projeto de ordem do país. Foi Riva Palácio quem primeiramente associou fluxos imigratórios como meio de integração e de manutenção da ordem em todo o território nacional. Um projeto de Estado para a imigração, com amplo consenso das elites e viabilizado pela coerção centralizadora, somente se tornou possível, no entanto, com a chegada de Porfirio Díaz ao poder, particularmente durante a maior centralização do regime entre 1876 e 1884. Riva Palacio foi o principal articulador da noção da imigração como constituinte da estratégia mais ampla de inte- gração territorial e discorreu sobre o tema em relatório ao Con- gresso mexicano. Esse relatório, apresentado em 1878, tinha como objetivo principal apresentar não apenas o resultado de seus tra- balhos a frente do seu ministério, mas também sua visão do processo de modernização por que passava o país. Embora não chegue a mencionar a imigração chinesa diretamente, o relatório permite entender como o programa científico abordava a questão da imigração e como essa lógica influenciou a decisão do governo Porfirio de incentivar a ida da mão de obra chinesa ao México. Desde o início do relatório, Riva Palacio enfatiza que a imigra- ção somente poderia ser viabilizada com o processo iniciado após

20 “Nada nuevo podrá decir la Sección sobre la importancia de la colonización; es materia dilucidada y sentenciada favorablemente. En un país extenso y despoblado como la Repú- blica Mexicana, la necesidad de adquirir brazos que cultiven sus feraces terrenos es evidente”. PALACIO, Vicente Riva. Memoria presentada al Congreso de la Unión por el Secretario de Estado de Fomento, Colonización, Industria y Comercio de la República Mexicana corres- pondente al año transcurrido de diciembre de 1876 a noviembre de 1877, México, Imprenta de Francisco Díaz de León, 1877. p. 443.

35 as guerras civis que obstaculizavam a instauração de um sistema científico capaz de ordenar a evolução do país rumo aos trilhos do progresso21. A organização se daria por meio da implementação da ordem vislumbrada pelos científicos, que consagrava a propriedade privada, a ausência de guerras, a centralização política e a inte- gração do território22. A imigração, segundo o autor, seria meio de concretizar essa estratégia ampla de integração nacional e de cen- tralização do poder organizada por métodos científicos.

Las mejoras materiales, llevadas a cabo unas, y en via de ejecución otras, tienden a favorecer la inmigración extranjera, que todos proclaman como uno de los principales medios que pueden emplearse para levantar a México de la postración en que se halla.23 A centralidade da imigração no projeto científico de Riva Palacio decorre da noção de que o influxo de mão de obra seria fun- damental para povoar regiões isoladas, que, por sua baixa produ- tividade, não despertavam o interesse dos locais. A ocupação, segundo o autor, seria um meio pelo qual se aliviaria o problema do localismo, bem como permitiria a integração de “vazios” demo- gráficos inexplorados e subdesenvolvidos à economia nacional. O argumento que inspiraria a imigração mexicana – a integra- ção territorial – estava ausente nos debates estabelecidos no âmbito brasileiro, por exemplo, sendo idiossincrasia da estratégia mexicana. A imigração, além disso, deveria ser realizada em conjunto com uma série de projetos em outras áreas que viabilizassem a integra-

21 “A la ciencia tampoco se le imponía la protección a que es acreedora en todos los pueblos cultos […]. En tales circunstancias, la voluntad más firme, la consagración más completa, habrian sido estériles, si los que me han precedido hubiesen intentado desarrollar un plan para imprimir inusitado movimiento á los trabajos que la ley puso bajo su dirección”. Idem, p. 6. 22 “Las bases fundamentales para obtener colonos laboriosos y honrados son la paz y la seguridad: conquistadas estas dos condiciones, puede decirse que el camino está ámplia- mente abierto para la inmigración extranjera”. Idem, p. 443. 23 Idem, p. 442.

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ção do território. Telégrafos e ferrovias, por exemplo, eram consi- derados essenciais para garantir fluxos imigratórios para áreas de maior isolamento do território mexicano. No Brasil, a imigração não fora concebida para cumprir esse propósito, porquanto se busca- va direcionar a mão de obra para os grandes centros produtores, ameaçados pelo que era percebido como a iminente perda de bra- ços com a provável abolição da escravidão. A imigração no México, segundo Riva Palacio, buscava o povoamento temporário que traria a possibilidade de integração de áreas remotas, ao passo que a imi- gração no Brasil tentava realizar a transição para o trabalho livre com menor impacto possível aos produtores. O melhor fluxo imigratório, para os mexicanos, era aquele que conseguisse contribuir ao projeto de modernização do país, não havendo uma eleição prévia da raça capaz de contribuir a esse pro- cesso. Seria Matías Romero, como veremos a seguir, quem apro- fundaria a ideia de que o europeu não era necessário ao projeto imigratório mexicano, podendo ser, até mesmo, prejudicial.

2.3. Matías Romero: a alternativa chinesa Matías Romero, membro proeminente da nova geração de libe- rais mexicanos e Ministro das Finanças do governo, foi quem perce- beu na mão de obra chinesa a possibilidade de viabilização de um dos pilares do esforço integrador e ordenador dos científicos24.

24 A imigração chinesa é primeiramente mencionada como alternativa viável à imigração em relatório de missão científica astronômica à China e ao Japão, em 1874. Nesse relatório menciona-se que as linhas de vapores utilizadas para trazer os coolies e as ferrovias que estes ajudariam a construir, tal como ocorrera na Califórnia, poderiam ser também utiliza- das para promover o comércio, facilitado pelo fato de que diversos países asiáticos utilizavam a moeda mexicana, dispensando, dessa forma, o intermediário europeu ou americano. Além disso, os cientistas da missão também realizaram análises sobre a conveniência de estabele- cer relações diplomáticas com os países asiáticos, bem como o cabimento da imigração asi- ática: “Una de las cosas que me llamó la atención al examinar las cuentas fiscales [do Japão] de 1871 fue la circunstancia de que todas las rentas y todos los gastos del gobierno estuviesen

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Produtor de café, Romero estava ciente das dificuldades de acesso à mão de obra europeia, bem como da tendência dos europeus de, ao se deslocarem para áreas já povoadas, afastarem-se do propó- sito de povoamento de áreas isoladas do país. Os europeus, nesse sentido, representavam mais um obstáculo do que um facilitador do projeto de integração, na medida em que a falta de infraestrutura em algumas regiões do país, onde eram necessários imigrantes, em- purrava os europeus para os grandes centros, nos quais a imigração não era considerada necessária25. Matías Romero foi o primeiro a analisar essa dificuldade. Desse diagnóstico resultava a conclusão de que imigrantes de outros países seriam mais úteis ao programa científico mexicano delineado pela Geração de 1870. Na imprensa da capital mexicana, Romero expunha a solução para o dilema da mão de obra:

It seems to me that the only colonists who could establish themselves or work on our coasts are Asians, coming from climates similar to ours, primarily China. The great population of that vast empire, the fact that many of them are agriculturalists, the relatively low wages they earn, and the proximity of our coast to Asia, mean that Chinese immigrants would be the

expresados en pesos mexicanos. Este hecho que es consecuencia de la supremacía de que goza nuestra moneda en Asia, aun sobre la moneda nacional, es a mi juicio una de las razo- nes que con más fuerza deben abogar por la conveniencia de que nuestro país establezca re- laciones comerciales directas con la China y el Japón. De esa manera no solamente tendríamos un mercado seguro para el consumo de nuestra casi única producción, sino que la vendería- mos sin el intermediario del comercio europeo que es, como lo hemos vendido hasta ahora, per- diendo em consecuencia todo lo que se gana [...]. Siquiera de paso hago estas indicaciones, porque se há hablado bastante en mi país de las ventajas que, según algunos traeria para México la inmigración china. [...] y desconocen por completo al japonés cuya inmigracion a este país sí juzgo realmente benéfica para la agricultura y para la creación de algunas industrias”. COVARRUBIAS, Francisco Díaz. Viaje de la Comisión Astronómica Mexicana al Japón. Para observar el tránsito del planeta Venus por el disco del Sol el 8 de diciembre de 1874. Reim- presión de la edición de 1875, apud LAKOWSKY, Vera. México y China: del galeón de Manila al primer tratado de 1899. In: Estudios de Historia Moderna y Contemporánea de México, v. 9, documento 107. 25 “European immigrants wished to settle near population centers, where they were not needed”. COTT, Kennet. Mexican Diplomacy and the Chinese issue: 1876-1910. Hispanic American Historical Review, 67:1, Duke University Press.

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easiest and most convenient for both our coasts. This is not an idle dream. Chinese immigration has been going on for years, and wherever it has occurred prudently, the results have been favorable.26 A superação pragmática do dilema, surpreendentemente, par- tia de um defensor da superioridade do imigrante europeu, tendo chegado a explicitar que um europeu valia, aproximadamente, quatro índios27. Deve-se, ressaltar, entretanto, que o julgamento de raças feito por Romero era mais baseado em um cálculo de produtividade, influenciado pelo desenvolvimento material das sociedades europeias, do que propriamente em aspecto inerentemente superior do cauca- siano. Para aqueles que consideravam a raça chinesa motivo de im- pedimento ao estabelecimento do fluxo imigratório, Romero argu- mentava que os proprietários do litoral dependiam dessa mão de obra, o que bastava para provar a conveniência da imigração chinesa28. A noção de que a imigração europeia era uma via bloqueada, bem como a percepção de que a imigração coolie para a Califórnia havia sido fundamental para o desenvolvimento de região inóspita nos EUA29, facilitou a predominância do projeto de imigração chine- sa pelos líderes do Porfiriato30. A centralização do poder por Porfirio facilitou a imposição desse projeto, o que contrasta com o caso brasileiro no final da década de 1870 e início da década de 1880,

26 ROMERO, Matías. Revista Universal, Cidade do México, 25 ago. 1875, apud COTT, op. cit. 27 “Como ‘las razas aborígenes...”. NAVARRO, Moisés. Las ideas raciales de los científicos: 1890- 1910. Trabalho apresentado em 25 set. 1987 – Universidade do Texas, HMex, XXXXVII, 4, 1988. 28 “To those who may find Chinese immigration anathema’ on racial grounds, Romero responded, ‘if proprietors of lands on our coasts were offered Chinese laborers, not only would they not reject them, but many would actively seek them, and this alone suffice to demonstrate the desirability of Chinese immigration”. COTT, op. cit., p. 66. 29 “Between 1850 and 1880, Chinese laborers had contributed significantly to the development of the western United States, and this had helped to convince parts of Mexico’s elite of the desirability of such immigration”. COTT, idem, ibidem. 30 “Jacobinos y conservadores querían latino, los positivistas no tenían preferencias; tratán- dose de peones sólo debía pensarse en la eficacia omitiendo toda razón de estética y de raza”. NAVARRO, op. cit. p. 576.

39 quando o empedernido embate entre conservadores e liberais, bem como a emergência de novos clubes políticos contestatórios, demons- trava os limites da aparente centralização de poder da monarquia. Nessas circunstâncias, Matías Romero conseguiu ir além de Riva Palacio, ao transformar suas convicções pela necessidade da imigra- ção em estratégia diplomática ampla, que envolvia não apenas o estabelecimento de relações com a China, por meio do envio de missão diplomática ao país31, mas também a criação de condições materiais para esse fluxo, como a constituição de compania de va- pores que realizasse a linha México-China. Além disso, as ferrovias que seriam construídas pelos chineses facilitariam a atração de in- vestimentos americanos e ingleses no campo de exploração mine- ral e agrícola. A imigração chinesa não era secundária, portanto, ao projeto porfirista, mas pilar essencial sobre o qual se modernizaria o país. Colocava-se, pela primeira vez, de forma estruturada, a imi- gração asiática como meio possível de concretizar o projeto econô- mico de Riva Palacio e o projeto de integração política e material vislumbrados por Barreda e García. Em 1882, Matías Romero foi enviado como representante di- plomático mexicano em Washington e trabalhou incessantemente pelo estabelecimento de relações entre o México e a China32. Enquan- to o Ministério das Relações Exteriores promovia a criação de com- panhias de navegação mexicanas33, Romero estabelecia contatos

31 ROMERO, Matías. Conveniencia de enviar uma legación mexicana a China y al Japón, El Correo del Comercio, 18 jul. 1876, apud LAKOWSKY, Vera. México y China: del galeón de Manila al primer tratado de 1899. In: Estudios de Historia Moderna y Contemporánea de México, v. 9, documento 107. 32 A continuidade pode ser percebida nos telegramas enviados por Matías Romero à chance- laria mexicana. Em 1893, por exemplo: “Nota de Matías Romero, enviado extraordinario y ministro plenipotenciario de Mexico em Estados Unidos, al ministro de China, referente a la intención del gobierno mexicano de celebrar um tratado com el de Su majestad de China, ba- sado em parte en el celebrado por China y Brasil”. Archivo Histórico de la Secretaría de Rela- ciones Exteriores, LE-1983 H/352 (72:51) "881"/1, apud LAKOWSKY, Vera, op. cit. 33 “[...] the result was the organization of the Mexican Pacific Navigation Company. [...] The company was guaranteed a subsidy for each voyage completed and an additional subsidy for

40 com representantes chineses em Washington, bem como negociava com companhias de navegação e de exploração mineral dos EUA34.

Between 1884 and 1889, Mexico eagerly sought ties with China as part of a multifaceted program of economic development. It hoped that trade would stimulate Mexico’s economy and revive the weakening peso, while an influx of Chinese workers would facilitate railroad construction and the expansion of agriculture and mining in parts of the republic where labor was scarce.35 Uma série de fatores, no entanto, confluiu para o fracasso da estratégia diplomática idealizada por Matías Romero. Para além da ausência e da saúde precária do representante chinês nos EUA que impediam que Romero desenvolvesse a negociação de forma satisfatória, as tratativas se deram em momento de crescente indisposição do governo chinês em negociar tratados que previs- sem a emigração da mão de obra chinesa. A resistência chinesa se explica pelos abusos sofridos pelos coolies, reportados por missão multinacional liderada pela China a Cuba e ao Peru36. Além disso, a each Asian worker imported. While all parties doubtless hoped that important trade between Mexico and Asia would quickly materialize, it did not, and from the outset the key to the company’s success became the transportation of Chinese workers”. COTT, op. cit., p. 67. 34 “Las opiniones de los autores citados fueron reforzadas a favor o en contra por la prensa mexicana. Destaca como propiciatoria la de Matías Romero (1837-1899), quien tuviera es- pecial preocupación por el desarrollo de los puertos del Pacífico. Escribió diversos artículos periodísticos formulando votos por el establecimiento de relaciones com China y Japón, a fin de evitar la intermediación inglesa em las transacciones comerciales. Subsecuentemente, los objetivos para establecer relaciones con China estuvieron referidos a la colocación de la plata mexicana em los mercados asiáticos, la atracción de migración china y obviamente comerciar com los tradicionales productos chinos. El 14 de marzo de 1881 se iniciaron for- malmente las gestiones para establecer vínculos directos com China. Sin embargo, esta ini- ciativa estaba siendo propiciada por intereses imperialistas, pues tras ‘bambalinas’ aparecían compañías de ramos diversos, entre ellas las ferroviarias, propriedad en orden de importan- cia de ingleses, franceses, alemanes y norteamericanos, quienes trataban afanosamente de imprimir celeridad para el traslado de mercaderías asiáticas y tenían especial empeño en la inmigración china para facilitar los trabajos de construcción de los ferrocarriles. Asimismo, al carecer de marina mercante, se estaban otorgando, por parte del gobierno mexicano, sub- venciones a compañías navieras propriedad de las naciones imperialistas [...]. Las gestiones para signar un tratado sino-mexicano estuvieron determinadas por ambas variables”. LAKOWSKY, Vera. México y China: del Galeón de Manila al primer tratado de 1899. In: Estudios de His- toria Moderna y Contemporánea de México, v. 9, documento 107. 35 COTT, op. cit. 36 METZGER, Sean. Ripples in the Seascape: the Cuba Commission Report and the idea of freedom. Afro-Hispanic Review, v. 27, n. 1, 2008.

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China passava por momentos conturbados no contexto asiático, como as guerras Sino-Francesa (1884) e a Sino-Japonesa (1894- 1895), o que prejudicava tratativas em outras áreas, como a emi- gração da sua população37. Outro fator que prejudicou as negocia- ções foi a pressão do governo americano contra a imigração chinesa ao México, na medida em que os coolies que chegavam ao México tenderiam a se dirigir à Califórnia em contexto de banimento da imigração chinesa pelo governo americano38. Em 1891, momento de arrefecimento das tensões geopolíticas na Ásia, a delegação chinesa em Washington demonstrou interesse em celebrar tratado de amizade, comércio e navegação. O governo chinês era motivado pelo seu interesse de garantir a segurança dos seus súditos e de expandir suas relações comerciais, enquanto o México buscava inserir cláusula que forçava o uso da moeda mexi- cana nas trocas. O processo foi conduzido por Romero até os mo- mentos finais do tratado em 1899, dezessete anos depois de o Brasil ter assinado o seu acordo com a China. A manutenção do interesse mexicano de atrair a mão de obra chinesa durou mais de vinte anos, o que demonstra, se não maior consenso político acerca da neces- sidade de imigração asiática, dado que existiam vozes contrárias a essa imigração também no México, ao menos a maior capacidade do governo de Porfirio Díaz de impor e manter a estratégia por longo período de tempo. Como resultado, teve-se a entrada de aproxima- damente 20 mil chineses no México até 192039. A centralização do

37 “El incierto ambiente provocado por el imperialismo contribuyó parcialmente a la tardanza. Modelo de lo afirmado fueron las guerras sino-francesa y la sino-japonesa, que originaron la imposibilidad de recibir y/o enviar los correspondientes cablegramas”. LAKOWSKY, op. cit. 38 “California Mail went so far as to suggest that Mexico should be warned that a Sino-Mexican treaty would be ‘inimical to the best interests of the United States and the Caucasian race’, and that if this warning was not heeded, ‘the US...might find cause to teach her a lesson’”. COTT, op. cit., p. 73. 39 INSTITUTO NACIONAL DE GEOGRAFÍA Y ESTADÍSTICA. Estadísticas históricas de México, 2009. Disponível em: . Acesso em: 8 dez. 2014.

42 processo decisório no México, portanto, contrastará radicalmente com a experiência brasileira, em que prevaleceu o dissenso no que concerne à atração da mão de obra chinesa e à incapacidade do go- verno liberal (1878-1883) de manter sua estratégia imigratória após sua saída do poder.

3. GERAÇÃO DE 1870 BRASILEIRA

O “bando de novas ideias”40 trazidas pela Geração de 1870 do Brasil, assim como ocorreu no México, no mesmo período, não constituía, como qualificado por Roberto Schwarz41, um debate fora do lugar. Não era mera cópia desorganizada e mimese tupiniquim de teorias que pautavam o debate europeu. Se, por um lado, recor- riam a conceitos e racionalizações que tiveram sua origem naquele continente, como o spencerismo, o positivismo comtiano, o darwi- nismo e o liberalismo, por outro, aplicavam esses recursos teóricos como meio de influenciar realidade política específica42. Não eram, portanto, argumentos desterrados, mas expressão genuína do Brasil daquele tempo, ainda que revestida de línguagem importada.

Nesse sentido, as gerações de 1870 do Brasil e do México se assemelhavam consideravelmente. Ambos eram movimentos inte- lectuais que integravam um movimento social mais amplo de ten-

40 COLARES, Camila. A obra de Silvio Romero no desenvolvimento da nação como paradigma: da dicotomia entre o positivismo e a metafísica à adoção do evolucionismo spenceriano na transição republicana. Prima Facie: v. 10, 10, 2011. 41 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. Livraria Duas Cidades/editora 34, p. 11. 42 “As abordagens que aceitam estas teorias nativas como conceitos concluem pela assiste- maticidade do universo intelectual porque sua circunscrição do campo deixa na sombra a significância política das obras. [...] Ao invés de obras teóricas, visando a formulação de sis- temas filosóficos próprios, os livros publicados pela geração de 1870 podem ser interpre- tados como intervenções no debate político”. ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a gera- ção 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 166. A autora reafirma a sua tese central na página 176: “a geração 1870 incorporou do repertório contemporâneo recursos teóricos e retóricos para gerar uma interpretação do contexto de crise política e mudança social no qual estava imersa”.

43 tativa de mudança de instituições políticas as quais não incorpo- raram ou privilegiaram interesses fundamentais de parte da elite dos dois países. Se, no México, como analisado, esse movimento traduziu-se em um esforço integrador do Estado e da nação, após um período de desagregação política, no Brasil, o movimento re- presentou um esforço de contestação ou de reforma da estrutura existente. Se, no primeiro, a geração de 1870 buscou legitimar o novo projeto político que era instaurado por Porfírio; o segundo surgia como meio de contestação da antiga estrutura, viabilizada pela fragilização do Império.

Meu argumento é que o movimento ‘intelectual’ contempo- râneo da geração de 1870 é uma dessas formas coletivas de contestação à ordem imperial formadas por grupos margina- lizados pelas instituições monárquicas.43 Outra importante similaridade com o caso mexicano é que os autores das publicações que marcaram o emergir dos novos proje- tos eram figuras com carreiras consolidadas no mundo acadêmico e político que eram ou se tornaram capazes de influir no destino do país. Combinavam o jornalismo com a ação legislativa e, como membros das elites culturais de seus respectivos países, teoriza- vam suas agendas em trabalhos historiográficos, literários ou em debates legislativos. Era uma reflexão intelectual que tomava como referência a realidade política de uma época e não uma teorização deslocada e abstrata44.

O conjunto de esquemas interpretativos, noções e argumen- tos que a geração 1870 escolheu no repertório ocidental de fins do século XIX pode ser sintetizado como política cientí-

43 ALONSO, Angela. Crítica e Contestação: o movimento reformista da geração 1870, Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 15, n. 44. 44 “A ideia de geração dá a chave para entender por que o movimento surge em concomitân- cia com a crise do Império. Seus membros vivenciaram uma mesma experiência social, com- partilhavam uma comunidade de situação: a marginalização frente às instituições centrais da sociedade imperial”. ALONSO, op. cit.

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fica, epíteto que Hale (1989) aplica ao congênere mexicano. Eram teorias da reforma social, forneceram esquemas con- ceituais a partir dos quais membros dos ‘grupos politicamen- te marginalizados puderam construir sua crítica às institui- ções’ e aos valores do Segundo Reinado numa linguagem nova, rompendo assim com a própria tradição liberal-romântica inventada pelos saquaremas.45 Dois temas principais, segundo Angela Alonso, permearam a agenda política desses atores: a questão do trabalho e a reforma das instituições políticas46. Esses temas, no entanto, apresentavam pontos de contato, na medida em que a crise política do Império viabilizou a emergência de vozes contestatórias, que reclamavam diferentes abordagens para a resolução da crise da mão de obra. Não raro, os debates sobre as reformas institucionais necessárias incluíam argumentos com relação à questão da força de trabalho e vice-versa. O republicanismo e a abolição, por exemplo, não raro eram apresentadas como “campanhas-irmãs”47. O último quarto do século XIX testemunhou a progressiva preocupação do Estado e de parte das elites com a mão de obra. Percebia-se tendência rumo à abolição do uso do escravo como os braços da lavoura e não se sabia naquele momento como seria equacionada a necessidade dos latifundiários por trabalhadores substitutos48. A imigração parecia despontar como alternativa

45 ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império, p. 167. 46 Idem. 47 “Ao fim da campanha abolicionista, quando boa parte de seus correligionários prosseguiu na campanha-irmã, a republicana, Nabuco se insulou num pequeno grupo de monarquistas, que vislumbrava a possibilidade de prosseguir com as reformas sociais sob a monarquia”. ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: diplomata Americanista. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1964). Brasília: FUNAG, 2013. 48 “Convencidos de que a escravidão estava destinada a desaparecer [...] os latifundiários brasileiros decidiram preparar-se para o inevitável. Já na década de 1850 fazendeiros das áreas cafeeiras – alguns dos mais necessitados de mão de obra – tornaram-se interessados em promover a imigração e em substituir os escravos por imigrantes [...]. Por volta de 1880, era óbvio que a abolição estava iminente”. VIOTTI, Emilia. Da Monarquia à República. 9. ed. Editora Unesp, p. 363.

45 preferencial naquele contexto, embora não houvesse projeto imi- gratório surgido como hegemônico, porquanto se disputavam dife- rentes aspectos das correntes migratórias a serem incentivadas pelo governo. Se, por um lado, o europeu era apresentado como alternativa preferencial, dadas as suas inatas características raci- ais, por outro, parecia esbarrar na viabilidade de atração, pois a competição com os EUA e , as características climáticas do país – percebidas como desfavoráveis aos europeus – e o preço alto da imigração branca pareciam impedir qualquer ambição de atraí-los. Além disso, devem-se ressaltar as experiências fracassa- das do sistema de parceria que foram colocadas em prática princi- palmente entre 1850 e 1870, as quais contribuíram para dificultar a política emigratória para o Brasil na Europa49, ensejando, inclu- sive, a proibição por parte de países europeus à emigração ao Brasil. Dever-se-iam fazer concessões raciais, leia-se permitir a imi- gração de povos ditos inferiores (asiáticos), em nome da viabilidade econômica do projeto? Ou a chegada de elementos estrangeiros indesejáveis era óbice absoluto ao processo de transição do tra- balho servil para o livre, considerando-se que se acreditava ser essa presença um empecilho para o acesso do país à modernidade? Como colocaria a Gazeta de Notícias, capturando o espírito da épo- ca: “será então o momento de perguntarmos a nós mesmos: – a que raça devemos dar preferência. Sim, porque não se podem servir dois santos ao mesmo tempo”50. A questão racial, portanto, subjazia, para a Geração de 1870, como problema de primeira ordem no debate sobre a questão do trabalho e da reforma das instituições monárquicas. Os diversos

49 “As queixas dos colonos que chegavam à Europa desestimulavam novos sonhos de emigração. As sindicâncias repercutiam mal junto aos governos estrangeiros”. VIOTTI, idem, p. 225. 50 GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, ano VII, n. 194, 21 jul. 1881.

46 projetos nacionais da geração de 1870 incorporavam as discussões sobre a questão escravista e, particularmente, como substituí-la e, ao mesmo tempo, promover o que entendiam ser a modernização do país. Não era, portanto, ao contrário do que ocorreu no Peru, mera transformação da exploração da mita indígena pelos coolies resultante da abolição da escravidão no país em 185451, mas uma discussão que levava em conta projetos de modernização do país por meio da imigração e o imperativo de reorganização da socie- dade por uma elite letrada52. Esse debate manifestou-se claramente nas discussões parla- mentares e jornalísticas acerca da imigração da mão de obra chine- sa, seja pela negativa ao projeto, seja pelo apoio incondicional. Dois nomes da geração de 1870 se destacaram nesse debate: Joaquim Nabuco e Salvador de Mendonça. Interessante notar que aquele, monarquista, colocava-se contrário à imigração da mão de obra “chim”, vista como saída para a crise do escravismo, um dos pilares da estruturação do regime monárquico no Brasil, enquanto o outro, republicano, defendia a entrada dos chineses, como meio de cor-

51 “European demand for guano began to exceed the supply of mined guano due in large part to the hazardous conditions that the captive laborers faced and the inefficient system that was used in the loading of the guano. "Delays could be in the order of two to three months. As many as 100 vessels were waiting at the north island when a British naval officer went there in 1853. In an effort to boost the supply of available laborers for the mining of guano, the Peruvian govermnent passed a law allowing for the importing of Chinese coolies. "The fate of these Chinese coolie laborers was to be even worse than the local laborers they had been brought in to replace, most dying from inhuman working conditions and torture. When the Peruvian govermnent banned slavery in 1854 a shortage of cheap labor resulted. Since a free slave labor force no longer existed in Peru the guano contract holders looked to the increased importation of coolies from China as a solution to the labor crisis”. SCHULTZ, Austin. American Merchants and the Chinese Coolie trade 1850-1880: contrasting models of human trafficking to Peru and the United States. Capstone and Seminar Papers, Western Oregon University, 2011. 52 “A exemplo do fim do século XVIII, que trouxera inovações para o vocabulário ocidental, com a introdução de ‘indústria’, ‘democracia’ e ‘classe’, a segunda metade do XIX analoga- mente criou palavras ou alterou o sentido de termos para nomear processos emergentes. Este é o caso de ‘civilização’, ‘crise’, ‘liberalismo’, ‘evolução’, ‘radical’, ‘revolução’, ‘modernização’, ‘progresso’”. ALONSO, op. cit. p. 171.

47 rigir a desagregação econômica do Império pelo esgotamento do sistema escravista53. Desses posicionamentos particulares, pode-se vislumbrar como as referências teóricas estrangeiras e as catego- rias científicas eram adotadas seletivamente e respondiam a con- textos políticos específicos, bem como que há “diferenças de ênfase em elementos do repertório político-intelectual; em modalidades de crítica ao status quo imperial; no gênero de explicação da crise do Império; e no programa de reformas proposto”54.

3.1. Salvador de Mendonça e o Visconde de Sinimbu: a imposição da imigração chinesa em contexto de fragmentação política

[...] hoje estamos innegavelmente sob pressão da crise da lavoura, que para nós quer dizer a crise do Estado.55 Salvador de Mendonça, um dos fundadores do Clube Republi- cano, talvez seja mais conhecido pela sua atuação como represen- tante do Brasil nos EUA durante os primeiros anos da República. Desempenhou, entretanto, papel fundamental em um dos debates mais intensos da década de 1870 e 1880: a imigração chinesa. Foi enviado, em 1876, como Cônsul-Geral do Brasil nos EUA, tendo-lhe

53 “[...] para novos liberais e positivistas abolicionistas, da Corte e de Pernambuco, a causa determinante é o complexo latifúndio-monocultor-escravista, enquanto para liberais republi- canos e federalistas científicos de São Paulo e do Rio Grande do Sul o nódulo é a forma mo- nárquica do regime político. Em consonância, cada grupo privilegiou uma reforma como crucial: a dos liberais republicanos da Corte foi a república; a dos novos liberais foi a abolição”. ALONSO, idem, p. 49. 54 “A contraparte nativa da política científica é uma releitura do repertório de símbolos e práticas do próprio império. Em períodos de transformação, os esquemas de pensamento e o repertório cultural cristalizado são não só contestados, como também interpretados. O movimento intelectual gerou parte de seu repertório a partir de uma apropriação e reinter- pretação dos esquemas de pensamento e formas de ação cristalizados como tradição político- intelectual nacional [...]. A principal dimensão da produção doutrinária da geração de 1870 é a construção de uma crítica coletiva às instituições, práticas, valores e modos de agir do status quo imperial”. ALONSO, Angela. Crítica e Contestação: o movimento reformista da geração de 1870, Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 15, n. 44. 55 MENDONÇA, Salvador de. Trabalhadores Asiáticos, Typographia do “Novo Mundo”, 1879, p. 17.

48 sido incumbida pelo Presidente do Conselho de Ministros, o liberal Sinimbu, a missão de escrever relatório acerca da conveniência de incentivar a imigração asiática, para ser discutido no Parlamento. Salvador de Mendonça expressou, nesse relatório, posição similar à adotada por Matias Romero, porquanto entendia que a prioridade era o “trabalho barato” e não a progressão racial56. Por essa razão, a mão de obra “chim” era alternativa razoável, pois apre- sentava preços de contratação muito inferiores aos europeus, bem como maior facilidade de adaptação ao clima. Além disso, buscou, sempre quando possível, relativizar o argumento racial desfavor- vel, por meio da ênfase nas qualidades do povo chinês, como o seu empreendedorismo, o “amor ao trabalho” e a sua polidez57. Para Salvador de Mendonça, os chineses seriam meio temporário de tran- sição da mão de obra escrava para a livre, independentemente da viabilidade da vinda do europeu.

No o povo não mediu ainda completamente a eminen- cia da necessidade que aconselha a immigração Asiatica, e por isso mesmo que a não conhece arreceia-se della. Mas nem os Norte Americanos teem rasão, nem entre nós a teem os que se oppoem á introducção do braço Asiatico, excellente instrumento de trabalho. [...] Ainda para os Estados Unidos, para onde afflue da Europa uma corrente continua de emi- gração espontanea, e se acham hoje mais prosperos do que nenhuma outra nação do mundo, podem deixar para realisar em um seculo sem o trabalho Asiatico o que com elle realisa- riam na terça parte desse tempo.58 Salvador de Mendonça, assim como Matías Romero, entendia que a mão de obra europeia era inviável59 e, por isso, os esforços

56 “Mas em toda extensão do Brazil é fato reconhecido que a primeira necessidade é trabalho barato”. Idem, p. 19. 57 Idem, p. 161. 58 Idem, ibidem. 59 “[...] ninguem emigra sinão para melhorar, e o Europeu não encontra ainda entre nós prehenchida a medida do seu almejo, quando quer adoptar nova patria. Esta proposição incontestavel, baseada no facto das tentativas e sacrificios infructiferos que temos feito até

49 diplomáticos deveriam ser direcionados ao Pacífico. Percebe-se, a partir desse relatório, a intenção de que os argumentos raciais con- tra a vinda da mão de obra chinesa se subordinassem ao imperativo de substituir a mão de obra escrava decadente. Como colocado por Quintino Bocaiúva, no opúsculo Crise da Lavoura, “a necessidade matou o preconceito”. A agenda de transição do trabalho servil para o livre, segundo percepção de Mendonça, seria realizada por meio da imigração chinesa e não da abolição imediata da escravi- dão. Não se tratava, certamente, de um esforço integrador da nação, como vislumbrado no México, mas da reforma de um dos pilares do Estado, o qual buscava evitar a fragmentação do sistema produ- tivo, devido à falta de braços na lavoura, e prolongar o uso do escravo. A diferença mais fundamental, no entanto, não estava nos argumentos utilizados para viabilizar a imigração chinesa, mas na recepção desses argumentos pelas elites brasileiras. O governo Sinimbu desenvolveu outras duas iniciativas, que deixariam claras as diferenças existentes entre o caso mexicano e o brasileiro: os Congressos Agrícolas de 1878 e a Missão Callado à China. O esta- belecimento de fluxo de imigrantes asiáticos ao Brasil foi um dos temas mais controvertidos dentre todos os debatidos nos Con- gressos Agrícolas do Rio de Janeiro e do Recife de 1878. Segundo André Luciano Simão, os simpáticos e os contrários a esse tipo de imigração se equivaliam, reproduzindo, de certa forma, a divisão que já era perceptível na imprensa durante toda a década de 187060. O temor da “mongolização” do País, dos hábitos deplo- ráveis dos chineses e do seu caráter racial negativo61, bem como a

hoje para attrahir ao nosso solo a emigração da Europa, contêm em si a solução do problema que nos occupa”. Idem, p. 17. 60 SIMÃO, André Luciano. Congressos Agrícolas de 1878: um retrato do reformismo ao final do século XIX. Dissertação de Mestrado – Departamento de Sociologia, UNICAMP, 2001, p. 98. 61 “Fracos e indolentes por natureza, alquebrados pela depravação dos costumes e hábitos que desde o berço adquirem, narcotizados física e moralmente pelo ópio, não poderão

50 noção de que os chineses poderiam representar uma alternativa temporária e viável62 foram reproduzidos nos Congressos Agrícolas. A oposição feita por Joaquim Nabuco é paradigmática de como a existência de manifestações contrárias à imigração influenciaram o resultado das negociações de forma não experimentada no Mé- xico, onde a força da centralização se impôs, por mais de vintes anos, às manifestações contrárias à estratégia de atração de chineses.

3.2. Joaquim Nabuco: a impossibilidade do consenso O ano de 1879, ápice da discussão acerca da conveniência da introdução da mão de obra chinesa no Brasil, marca o début de Joaquim Nabuco no Parlamento63. A coincidência, do tema e da personagem, deu origem a um novo momento do debate sobre a vinda dos “chins” ao Brasil. Joaquim Nabuco tornou-se o mais ferrenho opositor do projeto no Brasil, fazendo clara sua concep- ção sobre raça e teorias raciais, a qual, posteriormente, seria “menos direta, mais ambígua e até dissimulada”64. A entrada de Joaquim Nabuco no debate sobre a imigração chinesa ao Brasil marca, portanto, a emergência de duas situações peculiares. Primeira- nunca no Brasil suportar o árduo e penoso trabalho da cultura do café” – discurso de Christiano Ottoni no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878. Idem, p. 99. 62 “Neste caso, frente à crise do país a questão das raças era posta de lado e ressaltavam-se as qualidades de chins e coolies. Estes foram tomados como vítimas de preconceito ou ideias exclusivistas: argumentava-se que todos destacavam os defeitos do mau chinês, mas esqueciam-se que também existia o bom chinês, assim como o bom e mau alemão, o bom e o mal italiano, etc.”. Idem, p. 101. 63 “Sua ambição pessoal, como a expectativa social em torno do filho de um estadista do Império, era que sucedesse o pai na política. Foi o que fez quando a morte de Nabuco de Araújo o levou de volta ao Brasil em tempo de concorrer às eleições legislativas e estrear no Parlamento em 1879. A política roubou Nabuco da diplomacia”. PIMENTEL, op. cit. 64 “O debate parlamentar em torno da imigração de mão-de-obra chinesa é um dos poucos momentos onde se pode verificar uma utilização política das teorias raciais e justamente nos discursos de Joaquim Nabuco. Anos mais tarde, a forma como Nabuco se colocou diante das teorias raciais será bastante distinta, menos direta, mais ambígua e até dissimulada”. COSTA, Hilton. Joaquim Nabuco e a noção de raça nos anos 1880: entre o agir político e o agir intelectual. In: XII ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA ANPUH/RS, História, Verdade e Ética, 2014.

51 mente, não houve, na experiência mexicana, equivalente ao que representou Joaquim Nabuco no debate brasileiro sobre a imigra- ção chinesa. Em segundo lugar, não houve, na continuidade do pensamento de Nabuco acerca da abolição, a qual se desenvolveria ao longo da década de 1880, adoção tão ortodoxa das teorias raci- ais que inspiravam os debates sobre a questão chinesa.

No caso específico das teorias raciais o diálogo se deu de um modo mais próximo da ortodoxia racialista no combate à proposta de imigração chinesa para o Brasil. Na campanha abolicionista, por sua vez, a presença das teorias raciais seria mais heterodoxa. [...] se por um lado a ação de Nabuco, na questão da imigração chinesa, lembra os debates mais pró- prios do mundo intelectual, onde o diálogo com as teorias raciais fluía de maneira mais intensa, de outro seu posicio- namento na questão da emancipação estaria dentro das regras do agir político. Neste ponto ele atuou de modo mais moderado, “exercendo um papel sedativo, corrigindo o radi- calismo” e “poupando o país das intolerâncias”.65 A polarização sobre o tema da imigração chinesa, perceptível nos debates apresentados pelos jornais da época, bem como no Congresso Agrícola de 1878, criou condições para que o pensa- mento de Joaquim Nabuco se apresentasse de forma menos matizada. O chinês foi apresentado como elemento de degenerescência racial de um povo “já não [...] pouco mongolizado”, como colocaria Galdino das Neves em debate com Joaquim Nabuco no Parlamento66. O chinês era qualificado, por Nabuco, como “subserviente” e “imoral” e “imprimir[ia] à nossa civilização um movimento de regresso”.

65 Idem, ibidem. 66 “O Sr. Joaquim Nabuco – Mas, Senhores, não se trata simplesmente de travar relações com a China, de aproximar dois dos maiores impérios do mundo; trata-se de uma verdadeira emigração asiática para o Brasil, e essas relações diplomáticas que se quer abrir não têm outro fim, não têm outro intuito senão mongolizar o nosso país. O Sr. Galdino das Neves – Ele já não está pouco mongolizado. (Riso)”. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Sessão de 1º set. 1879, disponível em . Acesso em 3 dez. 2014.

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Segundo Joaquim Nabuco, a entrada dos chineses no Brasil inviabilizaria o destino de modernização e de progresso da nação. Temia que esse fluxo imigratório impedisse a modernização pela via racial, uma vez que a presença do chinês no território brasi- leiro tenderia a afastar a imigração europeia67. Ao contrário do caso mexicano, portanto, no qual o povoamento chinês de áreas re- motas era o objetivo fundamental da estratégia de incentivo à imi- gração, no Brasil, Joaquim Nabuco fez introduzir a noção de que esse povoamento funcionaria como lócus de propagação de povoa- ções mongólicas e “acabará por tornar-se [...] o senhor deste país”. Esse argumento ressoou no Brasil de forma muito mais intensa do que no México, dada a forma como foi construído o pensamento racial no País e que Nabuco incorporou, de forma excepcional, durante esse debate. A panaceia da modernização pelo embran- quecimento, noção compartilhada inclusive pelos defensores da imigração asiática68, dificultava a aceitação de fluxos imigratórios não europeus. Dessa forma, se o povoamento chinês no México era fator capaz de viabilizar a estratégia de integração e de desenvolvimento “pragmático”, ideal compartilhado da geração de científicos e impos- to verticalmente pelo Porfiriato; no Brasil, o povoamento seria fator desagregador e, por isso, explorado por Nabuco no seu discurso ao

67 “[...] o chim não pode vir ao Brasil sem que a população de origem europeia e a que essa tem assimilado a si desapareça”. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Sessão de 1º set. 1879, disponível em . Acesso em 3 dez. 2014. 68 Tal como expressou a Comissão nomeada pelos lavradores de São Paulo ao Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878: “Se bem que espíritos cultos e observadores tenham demonstrado à evidência a alta inconveniência social da introdução dos coolies no país, cujo caráter subserviente e imoral há de contaminar a nossa população e afastar imigrantes de procedência europeia, julgamos, contudo, de rigoroso dever externar com franqueza esta opinião: que podem eles prestar serviços à lavoura, e ser aceitos como um meio de transição”. In: SIMÃO, André Luciano. Congressos Agrícolas de 1878: um retrato do refor- mismo ao final do século XIX, Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia da UNICAMP, 2001, p. 98.

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Parlamento, como forma de galvanizar a oposição à liberação de cré- dito para a preparação de missão diplomática brasileira à China:

Realmente os primeiros chins serão poucos, mas se esses derem-se bem, hão de vir outros, e com eles há de vir a sua civilização, acabando por constituir-se para eles na América do Sul uma nova pátria. No princípio podia não acontecer assim, mas hoje onde eles vão fundam uma pátria chinesa.69 Essa resistência influenciou a condução da estratégia diplomá- tica brasileira. Primeiramente, porque a decisão de Sinimbu de criar uma missão diplomática para a China, com vistas a viabilizar o fluxo imigratório, foi interpretada mais como uma imposição do governo de Sinimbu do que como um projeto compartilhado pelas elites. Joaquim Nabuco, por exemplo, nas discussões sobre a aprovação de crédito para o estabelecimento da referida missão, colocava-se con- trário ao gasto com projeto que, para ele, não só não contribuiria para resolver o problema da lavoura, como também ameaçaria o futu- ro do País. Moreira de Barros, o ministro de negócios estrangeiros, que advogava a liberação dos créditos para a missão, ciente das resis- tências à estratégia de atração de chins ao Brasil, chegou a dissimu- lar os reais objetivos da missão, afirmando que os créditos não visa- vam à imigração70. Ficava claro, portanto, que a máxima de Quintino Bocaiúva de que “a necessidade matou o preconceito” não estava livre de relativizações, pois o preconceito contra os chineses e os negros era manifestado recorrentemente nos debates parlamentares.

69 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Sessão de 1º set. 1879, disponível em . Acesso em 3 dez. 2014. 70 “O Sr. Moreira de Barros – O crédito em nada tem com a imigração. O Sr. Joaquim Nabuco – Eu estimaria saber, senhores, que o nobre Ministro de Estrangeiros, com o seu crédito, tratando de abrir negociações com a China, não tem em vista a imigração chinesa; nós desejaríamos ter a este respeito explicações francas”. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Sessão de 1º set. 1879, disponível em . Acesso em: 3 dez. 2014.

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A cisão das elites na década de 1870 e a inexistência de ins- tituições como a Escuela Nacional Preparatoria e o governo centra- lizado de Porfirio no México, que incentivavam a formação de grupo com maior grau de homogeneidade, impedira a formação de consenso acerca da imigração asiática. A decisão de incentivá-la foi imposta por Sinimbu e ratificada a contragosto por parcela bastante consi- derável do Parlamento e das elites brasileiras, pois nunca se conse- guiu afirmar, tal como feito no México, a conveniência do projeto como uma alternativa modernizadora. No Brasil, a imigração chinesa nunca foi concebida para cumprir esse papel. Esse problema fez-se evidente na reação gerada quando da chegada dos resultados da missão brasileira à China, três anos depois da aprovação dos crédi- tos para a missão.

O plenipotenciário brasileiro, Eduardo Callado, não conseguiu inserir, devido a resistências chinesas, cláusula que previsse ex- pressamente a imigração chinesa ao País. No entanto, conseguiu abrir brecha para que fossem continuadas as tratativas por outras vias, principalmente por meio da negociação direta entre agentes privados brasileiros (Companhia de Comércio e Emigração Chinesa71) e a China Merchant Navigation Co. Além disso, deveria ser pago subsídio de cem mil dólares mexicanos à companhia chinesa para que fosse viabilizado o negócio, o que o governo brasileiro se recusou a fazer, transferindo a iniciativa aos latifundiários do café. Tornava-se claro que as resistências impostas por parte da socie- dade brasileira à imigração chinesa dificultavam a continuidade do envolvimento do governo nas tentativas de incentivar a vinda da mão de obra chinesa ao Brasil, o que foi expresso pela negativa de

71 “Está organizada a Companhia Commercio e Emigração Chineza, sendo seus organizado- res Antonio Augusto Monteiro de Barros, Dr. Francisco Leite Ribeiro Guimarães, João Baptista Vianna Drummond, Francisco Joaquim de Castro e Boaventura D. Barcellos”. GAZETA DE NOTÍCIAS. 28 jul. 1883, p. 1.

55 comprometer novos créditos à iniciativa, bem como de não parti- cipar da criação da Companhia de Comércio e Emigração Chinesa. A oposição feita por Joaquim Nabuco é paradigmática de como a existência de manifestações contrárias à imigração influenciaram o resultado das negociações de forma não experimentada no México, onde a força da centralização se impôs, por mais de vinte anos, às manifestações contrárias à estratégia de atração de chine- ses. Joaquim Nabuco continuou os ataques à imigração, enquanto era negociado o acordo, tal como evidenciado no Jornal do Commercio (RJ), em 30 de setembro de 1882. Após o término da missão, a questão ainda repercutia, como resta evidenciado na edição de 18 de abril de 1882 no jornal Diário do Brazil, em que relata a como- ção gerada pela defesa de Silveira da Mota à imigração chinesa:

[Silveira da Mota] principiou a falar das belas qualidades dos chins, surgiram protestos e contra-protestos, a reunião tomou uma feição tão animada que o Sr. Presidente teve de recorrer energicamente ao concurso acalmador da campainha.72 D. Pedro II reforçava o coro contrário à imigração chinesa, a- firmando em audiência com representante chinês da China Merchant’s Steam Navigation Company que o “sentimento anti-chinês era comum no Brasil” e que a vinda dos chineses “agravaria ainda mais o aspec- to heterogêneo do povo brasileiro”73.

A constatação do preconceito racial, a manifestação contrária de D. Pedro II à imigração chinesa, as inúmeras notícias de jornal reticentes quanto aos benefícios da incorporação do asiático na

72 DIARIO DO BRAZIL. 18 abr. 1882. 73 “Henrique Lisboa, secretary to Brazil’s special mission to China, reported that an audience with Emperor D. Pedro II left Tong convinced that anti-Chinese sentiment was common. The emperor informed Tong that the travel and housing subventions would come from the planters, not the government – in effect creating a contract system. [...] exclaiming after the meeting, ‘I am sure that the ethnic influence of these peoples will aggravate even further the heterogeneous aspects of our people”. LESSER, Jeff. Negotiating National Identity: immigrants, minorities, and the struggle for ethnicity in Brazil. Duke University Press, 1999.

56 sociedade brasileira e, finalmente, a negativa do governo em con- ceder os 100 mil dólares, que deveriam, então, ser pagos pela ini- ciativa privada, foram elementos importantes no fracasso da missão chinesa que veio ao Brasil negociar a vinda dos trabalhadores do Império Celeste. A iniciativa de trazer trabalhadores chineses ao Brasil seria ainda retomada anos mais tarde, mas sem o mesmo entusiasmo, o que demonstra a frágil estrutura sobre a qual Sinimbu se apoiava para promover a sua estratégia de superação da crise da lavoura e o contraste com a determinação mexicana de viabilizar uma das bases do seu projeto de modernização do País.

CONCLUSÃO Buscou-se, neste artigo, desenvolver um estudo comparativo entre as tentativas de incentivo à imigração da mão de obra chinesa para o Brasil e para o México nas décadas de 1870 e 1880 e o pensamento que justificava essa ação diplomática específica nas duas sociedades. Há inúmeras similaridades entre os dois casos que nos permitem desenvolver um quadro comparativo, o qual colocará em perspectiva mais ampla as estratégias adotas pelos dois países individualmente. Em ambos os casos, momentos de ruptura política pré-1870, como a Guerra do Paraguai no Brasil e a Guerra da Reforma no México, esgarçaram o tecido social e ideológico que sustentavam os regimes políticos nos dois países. Essa transformação viabilizou o surgimento de núcleos geracionais, antes obnubilados por es- truturas políticas que os marginalizava. Essas gerações desenvol- veram, teórica e pragmaticamente, projetos nacionais inovadores e introduziram uma nova forma de interpretar e de pensar os movi- mentos históricos de seus países. No Brasil, esse processo foi con-

57 duzido pela chamada Geração de 1870; no México pela Geração de Tuxtepec e, embora esses dois grupos não possam ser caracterizados por sua homogeneidade, dadas a heterogeneidade ideológica, polí- tica e de formação de seus membros (monarquistas e republicanos, abolicionistas e escravagistas, comtianos e spenceristas, civis e militares, intelectuais e com baixa educação formal), é possível interpretá-los como grupos que buscaram transformar a condução política dos seus países de origem. Fizeram-no recorrendo a inú- meros conceitos teóricos importados, como o positivismo e o libe- ralismo, o que, nos dois casos, foi interpretado pela historiografia tradicional como artificial, como um maneirismo europeu nos trópi- cos, descolado dos reais problemas do país. Nada mais longe da verdade. Ambos os grupos respodiam aos problemas de suas socie- dades adaptando e selecionando argumentos para justificar suas próprias agendas políticas internas. A imigração asiática foi um dos temas sobre os quais recaiu a utilização desses conceitos importados para questões centrais do debate político mexicano e brasileiro daquele período. Tanto no Brasil quanto no México, a questão da imigração asiática foi colo- cada no epicentro dos debates sobre a modernização nacional. Além disso, as estratégias diplomáticas adotadas pelos dois países foram debatidas em um mesmo contexto de transformação política internacional, como as mudanças de China e Inglaterra com relação à imigração de coolies, as quais dificultaram o desenlace bem-suce- dido das estratégias adotadas pelos dois países latino-americanos.

São as idiossincrasias dos dois casos, entretanto, que nos permitem compreender o que a introdução da mão de obra coolie significava nesses dois países e o papel político-ideológico que essa imigração cumpriu nos argumentos de transformação nacional propostos pelas Gerações de 1870 do Brasil e do México. A primei-

58 ra diferença fundamental entre os dois casos tem relação com a finalidade ulterior da imigração. O projeto modernizante mexicano buscava afirmar um projeto de ordem, de integração, em contexto de reconstrução do Estado e da sociedade. A imigração asiática, nesse sentido, era parte desse esforço de estabelecimento da ordem e da integração regional sob um governo forte e centralizado. O pro- jeto de ordem e integração primeiramente propugnado por Barreda e perpetuado pela Escuela Nacional Preparatoria, que se tornou referência do processo de reconstrução do país na década de 1870, foi incorporado pragmaticamente pelo Porfiriato visando ao forta- lecimento do seu poder. Os projetos de integração e a promoção da ordem, dessa forma, serviriam para fortalecer setores das elites fundamentais à perpetuação do Porfiriato, o que incluía a redução da autonomia regional e a subordinação de caudilhismos localiza- dos a um de abrangência nacional. Outro tema desenvolvido por Garcia, que será fundamental à promoção da imigração asiática, diz respeito ao fortalecimento da imagem do mestiço como formador da identidade nacional, o que relativiza o papel do europeu branco como meio de acesso à modernidade.

Riva Palacio, Ministro da Fazenda e expoente dessa geração, por exemplo, percebeu na imigração um meio de viabilizar esse projeto, na medida em que integrava regiões antes distantes do governo central, dada a inexistência de ferrovias e de exploração econômica relevante nessas áreas. Matías Romero aprofundaria a ideia da imigração como vetor da centralização e da integração nacional, entendendo residir na mão da obra chinesa um meio preferencial de concretização do processo centralizador do Porfiri- ato, dada a experiência bem-sucedida de introdução dos coolies na Califórnia e a pouca ênfase na necessidade de introdução da mão de obra europeia como meio de modernização pela via racial. Não

59 se buscava um elemento civilizador no sentido rácico, pela via do embranquecimento, mas pela capacidade do estrangeiro de desen- volver economicamente áreas de baixa exploração produtiva. Essa percepção foi finalmente traduzida em ampla estratégia diplomá- tica, conduzida pelo próprio Romero, que viabilizou a atração de imigrantes chineses em número considerável. No caso brasileiro, no entanto, a ideia de atração da imigração chinesa era apresentada como modernizante, porque seria um meio de transição gradual para o trabalho livre, em contexto no qual predominava a percepção de desagregação da produção por meio de braços africanos. Esse projeto foi advogado por Salvador de Mendonça e Sinimbu, o qual tendeu a relativizar preocupações raciais, dada a necessidade de encontrar meios para a resolução da crise da lavoura. O recurso a argumentos raciais, no entanto, era sintomático da mentalidade da época. Não por acaso, a esse projeto modernizante, contrapuseram-se outros, tais quais os discutidos no âmbito do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, no qual a questão racial se tornaria o principal obstáculo à implemen- tação do projeto do governo Sinimbu de atração de mão de obra não-europeia. Parte da elite intelectual e política durante os anos 1870 considerava a vinda do europeu branco como único meio de salvar o País da mestiçagem que o condenava, criticando a vinda de outras raças como retrocesso, ainda que pudessem desempenhar algum papel econômico relevante. Outros, como Joaquim Nabuco, criticavam-na com base na ideia de que seria a perpetuação da escravidão por outros meios, devendo ser descartada não somente pelo aspecto racial, mas principalmente pela possibilidade de per- petuação do sistema escravista. Essas não eram questões tão rele- vantes no caso mexicano, porquanto a lógica científica que organizava o processo imigratório não idealizava o papel do branco europeu nem

60 era tão sujeita às divisões políticas que atormentavam a política brasileira naquele período. Em síntese, pode-se afirmar que a fragmentação de organi- zações políticas que se manifestavam fora do âmbito tradicional do embate entre liberais e conservadores, a inexistência de institui- ções capazes de dar alguma coesão, ainda que frágil, às linhas de pensamento que surgiam no Brasil, como fora o caso da ENP no México, a maior penetração da ideia de construção de uma civili- zação europeia nos trópicos no Brasil e a mais contundente mani- festação contrária à imigração asiática, que aumentou o custo político da adoção de uma estratégia de incentivo à essa imigração, foram fatores que inviabilizaram a estratégia do governo liberal (1878-1883) de atrair os chineses ao Brasil.

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FILHO DA DIPLOMACIA: PRÁTICAS DISCURSIVAS DE OSWALDO ARANHA SOBRE DIPLOMACIA, POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS (1935-1959)

Clarissa de Souza Carvalho

RESUMO Este trabalho examina práticas discursivas de Oswaldo Aranha sobre di- plomacia, política externa brasileira e relações internacionais. Os discursos, entrevista e artigo analisados foram produzidos entre 1935, quando Aranha foi designado embaixador em Washington, e 1959, às vésperas de seu fa- lecimento. Observa-se como seu pensamento sobre o continente americano, inicialmente bastante idealista, buscou associar o pan-americanismo a objetivos universais, até desembocar na pragmática Doutrina Aranha. Investigam-se também as leituras de Oswaldo sobre os desafios enfren- tados pela sociedade internacional e pelo Brasil no pós-guerra. Conclui-se que sua personalidade complexa conciliava posições liberais e desenvolvi- mentistas, atualizando-as conforme as circunstâncias.

PALAVRAS-CHAVE Oswaldo Aranha; pan-americanismo; Segunda Guerra Mundial; desenvol- vimentismo; ordem internacional; política externa do Brasil.

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Esta metade do século vinte foi, em verdade, uma síntese de todos os tempos. As decisões adotadas em nossa época, em todos os campos do conhecimento e da vida, assemelharam-se à semana da criação porque deram novos meios e fins à família dos povos. O nosso país, igualmente, viveu uma era fecunda e crescerá de si mesmo, sob muitos aspectos excederá tudo que nos foi dado ver, fazer e até prever. [...] Não vivemos, pois, em vão. 1

INTRODUÇÃO Este artigo analisa as práticas discursivas de Oswaldo Aranha, no que concerne a seu pensamento sobre diplomacia, política ex- terna brasileira e relações internacionais. O recorte temporal esco- lhido inicia-se em 1935, quando Getúlio Vargas designou Aranha para o cargo de embaixador em Washington, e vai até às vésperas de seu falecimento, no Rio de Janeiro, em 1960. Por se tratar de uma abordagem no campo da história das ideias, examinamos discursos, entrevista e artigo de Aranha, sem nos aprofundarmos na descrição de suas inegáveis realizações como uma das figuras mais proeminentes da história brasileira do século XX. Conforme propõe Michel Foucault em A ordem do discurso, tratamos as manifestações de Aranha como uma prática, “uma violência que os homens fazem às coisas, não um mistério a ser decifrado”2. Foucault sustenta que não devemos ver o autor como fonte original e única de seus pronunciamentos, opõe-se à noção de continuidade, à impressão de que cada autor formula um discurso homogêneo ao longo da vida, e alerta para as condições externas que possibilitam a aparição e a regularidade do acontecimento discursivo.

1 Carta de Oswaldo Aranha a Flores da Cunha, 15 fev. 1959. 2 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 52-53.

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No primeiro capítulo, perscrutaremos as ideias de Oswaldo Aranha em relação ao continente americano, acompanhando sua tra- jetória desde a designação como embaixador em Washington (1935) até o término do mandato como Ministro das Relações Exteriores (1945). O capítulo divide-se em três partes. Primeiro, veremos como Oswaldo Aranha construía em seus discursos uma imagem ideali- zada dos povos americanos, reforçando narrativa que descreve a América como continente da paz. Segundo, examinaremos a trans- mutação desse idealismo regional em pan-americanismo universa- lista, fórmula empregada por Aranha ao rebater críticas de que a aproximação continental dava as costas para questões mundiais. Terceiro, analisaremos a chamada Doutrina Aranha, marco das re- lações Brasil-Estados Unidos, sem descuidar das preocupações do chanceler com a vizinha Argentina. O segundo capítulo divide-se em duas seções. Na primeira, analisam-se as ideias de Oswaldo Aranha acerca dos desafios enfren- tados pela sociedade internacional no pós-guerra. Examinam-se suas manifestações em fóruns internacionais como a II Assembleia Geral das Nações Unidas (1947). Na segunda seção, o foco recai sobre o discurso de Aranha na XII Assembleia Geral da ONU (1957), bem como sobre sua conferência na Escola Superior de Guerra (1953). Busca-se compreender a visão de Aranha sobre o tema do desen- volvimento, no contexto de sua crítica à Operação Pan-Americana (1958), e verificar em que medida ele antecipou conceitos-chave para a política externa da década de 1960, como os três Ds de Araújo Castro: desenvolvimento, desarmamento e descolonização. No Epílogo, retomaremos as principais considerações feitas ao longo do texto, em diálogo com o artigo que Aranha escreveu, em 1958, para a Revista Brasileira de Política Internacional, em que ele recomenda o reatamento das relações entre Brasil e União Soviética.

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1. NA TRILHA DO PARADIGMA RIO BRANCO: A LEITURA DE OSWALDO ARANHA SOBRE AS RELAÇÕES CONTINENTAIS (1935-1945) Nesta seção, discutiremos as ideias de Oswaldo Aranha em rela- ção ao continente americano3, acompanhando sua trajetória desde a designação como embaixador em Washington (1935) até o término de seu mandato como Ministro das Relações Exteriores (1945).

1.1. Do idealismo regional ao pan-americanismo universalista Pode-se argumentar que Oswaldo Aranha lia a história do continente americano sob as lentes de certo “idealismo regional”. Forjamos esse termo para sintetizar a maneira de engrenar passa- do, presente e futuro utilizada por ele em discursos e entrevistas. O “idealismo regional”, portanto, pode ser definido como o “regime de historicidade”4 que Aranha empregava ao refletir acerca da política externa continental e do Brasil.

A primeira base do idealismo regional de Aranha é o processo de formação das fronteiras sul-americanas, notadamente no caso brasileiro. Em 1937, já como embaixador junto aos EUA, Aranha proferiu palestra na Universidade de Bucknell, da Pensilvânia, inti- tulada “Limite, fronteira e paz”. Nesse texto, ele parte de pressu- posto análogo ao de Frederick Jackson Turner, de que as “ideias gerais da noção de limite dão a psicologia de indivíduos e de povos”5,

3 Ressalte-se que, para o Oswaldo Aranha desse período, as Américas formavam um todo político econômico e cultural, ou seja, uma civilização. O autor transita, portanto, sem atritos, entre a história das nações latino-americanas e a história dos Estados Unidos, conformando seu ideal pan-americanista. 4 HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. Sem nos aprofundarmos no conceito, pode-se compre- ender “regime de historicidade” como a maneira de uma sociedade se relacionar com o tempo (passado, presente, futuro) e, por conseguinte, com a história. 5 ARANHA, Oswaldo. Limite, fronteira e paz, p. 16. In: Oswaldo Aranha: discursos e confe- rências (1894-1960). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1994.

68 e argumenta que a delimitação das fronteiras entre o Brasil e seus vizinhos é uma síntese do espírito de conciliação e fraternidade predominante no continente. O discurso também busca explicar como um país tão vasto como o nosso conseguiu manter-se unido territorial e politicamente. Para tanto, o embaixador recorre a seus conhecimentos como ex-professor de Direito Internacional e opõe o limes e o fines do ambicioso Império Romano à noção contempo- rânea de fronteira, cuja delimitação é “o primeiro dever do Estado”, porque constitui “a própria base da paz”. Na sequência, Aranha his- toriciza com maestria o processo de formação das fronteiras sul- americanas (Inter Coetera, Tordesilhas, Madri, Ildefonso, Badajoz); menciona as rivalidades herdadas de Portugal e Espanha; e con- trasta o uti possidetis hispânico de 1810 com o uti possidetis do Visconde do Rio Branco, fonte do que Amado Cervo6 posteriormente chamaria de a “suficiência congênita” do Brasil: o País não necessita ampliar seu extenso território pela força, mas apenas conservá-lo pelo direito. Nesse ponto reside a conexão que Aranha estabelece entre a formação territorial do Estado brasileiro e sua vocação in- ternacional para a solução pacífica de controvérsias:

A capacidade revelada pelo povo brasileiro na descoberta, ocupação e conservação de tão imenso território [...] não poderia deixar de criar um espírito nacional, uma consciência jurídica e um poder político. Criou também uma vocação internacional. [...] Esta virtude política [...] estava destinada a contribuir para os Anais Americanos, na hora da demarcação dos limites das novas Nações do continente, com uma política de conciliação geral, de ordem continental e de paz.7 É possível que tal visão idealizada a respeito da história regio- nal não passasse de um recurso retórico de Aranha, a fim de fazer

6 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 2. ed. Bra- sília: Editora Universidade de Brasília, 2002. 7 ARANHA, op. cit., p. 19-20.

69 propaganda das virtudes brasileiras junto à opinião pública esta- dunidense, o que, de fato, fez parte de suas atribuições como em- baixador em Washington. Naquele ano de 1937, a imprensa norte- americana criticava ferinamente a censura e o estado de guerra implementados pelo governo de Getúlio Vargas. Embora condenan- do, em cartas pessoais a Vargas, a Constituição de Francisco Campos e os acontecimentos que levaram ao Estado Novo, Aranha rebateu as acusações da imprensa norte-americana, em inúmeras viagens, artigos e conferências, até as vésperas de seu retorno ao Brasil8. O idealismo regional do embaixador, entretanto, repetiu-se em discursos posteriores, proferidos em conjunturas e para plateias diversas, o que parece indicar traço permanente no pensamento diplomático de Oswaldo Aranha. Em homenagem ao presidente pa- raguaio9, realizada no Rio de Janeiro em 1939, o chanceler Aranha enfatiza que o nacionalismo dos povos americanos é diferente dos nacionalismos extremados que grassavam na Europa à época, pois se assenta na solidariedade. Toda manifestação contrária a essa solidariedade seria um anacronismo, segundo o chanceler, por- quanto oposta à interdependência econômica e ao alcance univer- sal da ciência, da filosofia e da religião. Constata-se que Aranha articulava, não sem exageros, idealização do passado, reflexão sobre o presente e expectativas de futuro, fazendo jus ao “otimismo cri- ador” que Vargas lhe atribuía10. Ainda no ano de 1939, em transmissão via rádio para os EUA, o chanceler chegou a afirmar que “a guerra nunca foi instrumento político na América”, em idealização evidente da história11. Talvez

8 ARAÚJO, João Hermes Pereira de. Oswaldo Aranha e a diplomacia, p. 152-178. In: CAMARGO, Aspásia; ARAÚJO, João Hermes Pereira de; SIMONSEN, Mário Henrique. Oswaldo Aranha: a estrela da revolução. São Paulo: Mandarim, 1996. 9 ARANHA, Oswaldo. Homenagem ao presidente paraguaio. In: ARANHA, op. cit. 10 Carta de Getúlio Vargas a Oswaldo Aranha apud ARAÚJO, op. cit., p. 111. 11 ARANHA, Oswaldo. Comemoração ao dia do armistício, p. 57. In: ARANHA, op. cit.

70 o ápice de seu idealismo regional, porém, tenha ocorrido em 1947, por ocasião de discurso aos membros do Dutch Treat Club12. Nesta fala, Aranha evoca o “Homus Americanus”, “descendente das velhas raças transformadas pela nova terra”, e em argumento que beira à democracia racial de Gilberto Freyre, caracteriza-o como tipo “sem preconceitos ou ódios”. A “civilização continental”, portanto, tinha uma contribuição universal a dar: assim como, no passado, os europeus transformaram a América, cabia aos americanos, no pós- guerra, contribuir para a transformação da Europa, não só por meio de assistência material – referência provável à participação brasileira no conflito e ao Plano Marshall em gestação – mas também com uma nova concepção de vida, baseada na solidariedade. Por meio dessa abordagem, o idealismo regional de Aranha desemboca no pan-americanismo universalista, tema da próxima seção.

1.2. Do pan-americanismo universalista à Doutrina Aranha A associação entre as noções de pan-americanismo e universa- lismo pode parecer contraditória, mas a atuação simultânea em diferentes eixos – nacional e universal, Norte e Sul, regional e global – se relaciona com debates recorrentes na cultura brasileira, e é uma constante no pensamento diplomático do século XX. Em carta ao poeta Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade já dizia que quanto mais nacionais fôssemos, mais universais seríamos13; desde, pelo menos, a Política Externa Independente (PEI), nossa diplomacia afirma que a aproximação Sul-Sul não se dá em detri-

12 ARANHA, Oswaldo. Aos Membros do Dutch Treat Club, ibidem. 13 OLIVEN, Ruben George. Cultura e modernidade no Brasil. São Paulo: Perspectiva, v. 15, n. 2, abr. 2001. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2014. Diversos artistas e intelectuais, mesmo antes do movimento modernista de 1922, já se debruçaram sobre essa tensão permanente entre aquilo que é nacional e aquilo que é universal na cultura brasileira, a exemplo de José de Alencar, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, para citar apenas alguns autores.

71 mento das relações Norte-Sul; e a criação do MERCOSUL, no marco do regionalismo aberto, busca justamente conciliar a integração sul-americana com a atuação crescente do Brasil no sistema multi- lateral de comércio. Em suma, conceber um pan-americanismo também universalista não era improvável para a mente brasileira de Oswaldo Aranha, o qual era, ademais, dotado de grande enge- nhosidade política.

Sem mais devaneios, vejamos como o próprio Aranha compre- endia a aproximação entre as nações americanas. Em discurso de homenagem ao Ministro das Relações Exteriores do Chile José Ramón Alliende, em 1938, o chanceler afirmava que

o pan-americanismo é uma política continental que procura adaptar o todo americano ao conjunto universal, levando o concurso das 21 nações colombianas para favorecer e propi- ciar a harmonia dos interesses e dos conflitos mundiais. [...] O pan-americanismo não é um fim, mas [...] um meio de atin- girmos finalidades mais amplas e fecundas, porque universais.14 O pensamento positivista de Aranha considerava a América como “o meio termo entre os extremos”. Nesse sentido, o fortaleci- mento do continente se daria em benefício de valores alegadamente ocidentais, como ordem, autoridade, justiça, e paz. Contra os tota- litarismos que ganhavam terreno na Europa e na Ásia, chegando a influenciar comunidades de imigrantes, a exemplo da alemã no sul do Brasil, o pan-americanismo devia proteger a segurança dos paí- ses da região, bem como sua integridade territorial, e impedir a pe- netração de ideologias consideradas exógenas. O pan-americanismo não equivalia, pois, a um estatuto político especial para a América, mas, sim, à defesa da cultura ocidental, no interesse da humani- dade. Em dois discursos de 1939, um à Sociedade Pan-Americana e

14 ARANHA, Oswaldo. Homenagem ao Ministro das Relações Exteriores do Chile, p. 31. In: ARANHA, op. cit.

72 outro em resposta à homenagem que lhe prestou Afrânio de Mello Franco15, Aranha buscou explicar mais detalhadamente a universa- lidade de seu pan-americanismo. No primeiro, descreve-o como “the inmost tendency of the human will”, que, numa visão evolucionista, transcende os planos individual, familiar e nacional, como o próprio ideal do progresso. No segundo, por outro lado, Aranha dedica-se à complementaridade das Américas, “formando um todo econômico, político e cultural de povos iguais e independentes”. Assim, aderir ao pan-americanismo garantiria, em vez de pôr em risco, a soberania das nações continentais.

Não era o que parecia crer a Argentina, porém. Quando ainda era embaixador em Washington, Oswaldo Aranha precisou lançar mão de sua habilidade diplomática como negociador-chave na Conferência de Buenos Aires de 1936. Em meio à agressão japonesa contra a China, à invasão da Etiópia pela Itália e à Guerra Civil Espanhola, o Presidente dos EUA F. D. Roosevelt decidira convocar uma conferência para tratar da segurança continental. Nessa ocasião, conforme Ricardo Seitenfus,

surge um fato novo e capital, pois vai durar até 1944: a opo- sição argentina a qualquer medida coercitiva dentro do quadro pan-americano [...]. A atitude argentina é ditada por sua diplo- macia universalista, que traduz a vontade de colocar em pé de igualdade as relações pan-americanas e as mantidas com a Europa.16 A fim de resumirmos o caso, podemos dizer que o Itamaraty propusera um pacto de segurança coletiva que, após sofrer altera- ções pelo Departamento de Estado, foi defendido pelos EUA na con-

15 ARANHA, Oswaldo. Aos membros da Sociedade Pan-Americana e da Associação BR-EUA, p. 37; Resposta à homenagem prestada por Afrânio de Mello Franco, p. 41. Ambos in: ARANHA, op. cit. 16 SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos (1930-1942). São Paulo: Editora Nacional, 1985, p. 125.

73 ferência de 1936. O projeto enfrentava resistências tanto no Congresso americano como no governo do argentino Augustin Justo, cujo chan- celer Saavedra Lamas se opunha tenazmente ao que lhe parecia uma revivescência da Doutrina Monroe17. Nesse contexto, Aranha esforçou-se para que ao menos uma declaração, reafirmando os princípios pan-americanos, fosse aprovada por unanimidade na con- ferência, como de fato ocorreu. Esse episódio demonstra que o pan- americanismo universalista, para além de um recurso retórico, também atendia a um objetivo político caro a Aranha: conciliar a crescente aproximação entre Brasil e EUA com a manutenção de relações ade- quadas com a Argentina18. Ao longo de sua gestão à frente do Itamaraty, Aranha tomou medidas favoráveis ao aprofundamento dos contatos entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, a exemplo do convite ao chanceler José Maria Cantilo para uma visita ao Brasil em 1938. Salvo por poucos produtos, não havia complementaridade entre as economias da região; ainda assim, Aranha patrocinou a assinatura do primeiro acordo comercial entre Brasil e Argentina desde 1856. No plano político-militar, o chanceler idealizou, sem sucesso, uma entente defensiva com Buenos Aires; envolveu-se pessoalmente nas negocia- ções que redundaram no Tratado de Paz entre Bolívia e Paraguai, encerrando a Guerra do Chaco; e fomentou projetos de integração ferroviária com esses países19. A ideia de que o mundo se tornava cada vez mais interde- pendente perpassou diversos discursos de Aranha, e, no pronuncia-

17 Carta do chanceler Macedo Soares a Getúlio Vargas apud ARAÚJO, op. cit., p. 137. 18 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Oswaldo Aranha – na continuidade do estadismo de Rio Branco, p. 700. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá. Pensamento Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1950). Brasília: FUNAG, 2013, v. 3. 19 PINHEIRO. Letícia. O Brasil no Mundo. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História do Brasil Nação: olhando para dentro (1930-1964). Rio de Janeiro: Mapfre e Editora Objetiva, 2012, v. 4.

74 mento que fez aos membros do Clube Nacional de Imprensa em Washington, o chanceler bem tentou cobrar a conversão do pan- americanismo em iniciativas mais práticas. Nas suas palavras,

quer na Europa, quer na Ásia, testemunhamos países que estão sendo integrados nessas unidades dominadas pelo muticismo nacional, que exploram todas as possibilidades de cooperação, a fim de chegarem a coligações mais poderosas. Devemos acaso, na América, nos manter indiferentes diante do que acontece nos outros continentes, conservar nossos países isolados sem cooperação, sem interdependência, nem desenvolvermos por um esforço recíproco as enormes poten- cialidades que neles existem em estado quase embrionário?20 Como se observa nesse discurso, porém, a postura de Aranha quanto à integração regional esteve muito associada ao contexto da Segunda Guerra Mundial. Da VII Conferência Internacional Americana, realizada em Lima, em dezembro de 1938, o pan-americanismo saiu reforçado, justamente porque se decidiu que qualquer país teria o direito de convocar reunião extraordinária se as circunstâncias con- tinentais o exigissem, além de que se reafirmaram os princípios de solidariedade americana contra qualquer intervenção extracontinen- tal21. O fantasma do totalitarismo era um dos principais estímulos à cooperação continental defendida por Aranha. Caso desunida, a América parecia-lhe vulnerável à sede de matérias-primas que mo- tivava as potências insatisfeitas do Eixo, compelidas por problemas de “super-população e super-industrialização”22.

Por outro lado, boa parte das demandas para converter os ideais pan-americanos em realidade concreta, isto é, em investimen- tos e crédito, o chanceler canalizou-as para as relações Brasil-EUA,

20 ARANHA, Oswaldo. Ao Clube Nacional de Imprensa, p. 35. In: ARANHA, op. cit. 21 SEITENFUS, op. cit., p. 238-239. 22 ARANHA, Oswaldo. Ao Clube Nacional de Imprensa, p. 35 In: ARANHA, op. cit.

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à medida que Vargas consolidava sua posição pró-Aliados. Finda a guerra – e em vista da menor importância do Brasil e da América Latina no cômputo das prioridades estadunidenses – o ímpeto in- tegracionista de Aranha pareceu perder força. Não surpreende, portanto, que em discurso à XII Assembleia Geral da ONU de 1957, examinado mais adiante, Aranha reformulasse sua posição sobre o continente nos seguintes termos: “we are not a bloc, nor do we want to be one. The American republics are not led by aspirations of an exclusively continental nature”23. Era o pan-americanismo univer- salista mais uma vez ação, que sobreviveria às frustrações surgidas com a Doutrina Aranha.

1.3. Do idealismo ao pragmatismo no contexto da Doutrina Aranha Na carta escrita por Oswaldo Aranha com instruções para o encontro entre Getúlio Vargas e F. D. Roosevelt em Natal (1943), o chanceler exprimiu as linhas mestras da doutrina que leva seu nome: “A política tradicional do Brasil pode resumir-se na seguinte fórmula: apoiar os Estados Unidos no mundo em troca do seu apoio na América do Sul”24. O epíteto Doutrina Aranha já aparecera no Herald Tribune de Chicago em 1936, após a elogiada atuação do embaixador na Conferência de Buenos Aires. Na ocasião, o jornal The New York Times descreveu o Embaixador Aranha como “expo- ente máximo do Monroísmo”25. Essa qualificação, contudo, deve ser lida com cautela, sobretudo se quisermos avaliar em que medida Oswaldo Aranha se situou na continuidade do estadismo do Barão do Rio Branco, como sugeriu Paulo Roberto de Almeida em artigo re-

23 Ibidem, p. 131. 24 Carta de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas apud GARCIA, op. cit., p. 75-76. 25 ARAÚJO, op. cit., p. 139.

76 cente26. Há importantes diferenças entre a leitura feita pelos jornais norte-americanos e o conjunto de ideias efetivamente associado à Doutrina Aranha. O New York Times acerta ao indicar que, na con- juntura prévia à Segunda Guerra Mundial, Aranha era simpático à criação de zona de influência norte-americana no continente, até para neutralizar possíveis interferências totalitárias. Nesse aspecto, o embaixador adotou postura análoga à do Barão, para quem a Dou- trina Monroe ajudaria a afastar ameaças imperialistas europeias27. Denominar Aranha “expoente máximo do Monroísmo”, porém, é evi- dente exagero, já que, se seguíssemos nessa linha argumentativa, Rio Branco seria pragmático, enquanto Aranha teria perfil mais alinhado, e não é o que verificamos no decorrer desta pesquisa. Em interpretações tradicionais da Era Vargas, certas opiniões de Aranha poderiam enquadrá-lo como o americanófilo que buscava um alinhamento com os EUA, ao passo que o polo dominante do governo enveredava pela trilha da equidistância pragmática28. Análise mais atenta de suas práticas discursivas, entretanto, não parece corroborar essa visão. Primeiramente, porque Aranha co- brava contrapartidas pelo engajamento brasileiro, não apenas em termos de prestígio político, mas sobretudo na forma de contribui- ções amplas e concretas à estratégia de desenvolvimento nacional29. Discursando, em fevereiro de 1939, aos membros do Clube Nacio- nal de Imprensa em Washington, o chanceler reclamou que o pan- americanismo carecia de sentido real e prático, na medida em que a tarefa de equipar economicamente o Brasil fora empreendida, até então, por outros países.

26 ALMEIDA, op. cit. 27 CERVO; BUENO, op. cit., p. 178-196. 28 MOURA, Gerson. A Revolução de 1930 e a Política Externa Brasileira: ruptura ou continuidade?. In: A Revolução de 30: seminário internacional realizado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getulio Vargas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 576. (Coleção Temas Brasileiros, 54) 29 GARCIA, op. cit., p. 79.

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Embora o Brasil represente a metade do continente sul- americano em área, população e recursos naturais, a parti- cipação dos Estados Unidos no desenvolvimento desta nação assume uma proporção insignificante [...]. Como país novo, o Brasil precisa, a fim de atingir um rápido desenvolvimento das suas riquezas naturais, da colaboração de um país industrializado, possuidor de tecnologia adiantada, e lastimo ser obrigado a dizê-lo, meus senhores: esta colaboração não nos foi oferecida no passado pelos Estados [Unidos]. Os clamores por um pan-americanismo “em bases concretas” repetem-se em outros dois pronunciamentos do chanceler no iní- cio daquele ano30. Comum aos três discursos era o contexto da Missão Aranha (fevereiro-março de 1939), que visitou os EUA a convite de Roosevelt e elevou as relações bilaterais a inédito patamar: para além de questões cambiais e relativas ao serviço da dívida externa, iniciaram-se conversações visando à cooperação militar e aos investimentos que culminariam na construção da Companhia Siderúrgica Nacional. A missão Aranha não apenas preparou o terreno para a cooperação bilateral na Segunda Guerra, como evidenciou mudança no seu pensamento diplomático, em direção a uma leitura mais realista do interesse brasileiro. Em carta a Vargas, o chanceler demonstra compreender as vantagens de uma ação nos moldes da equidistância pragmática, afirmando que “É necessário trazer essa gente à realidade mundial [...], à falta de seu concurso [dos EUA], o Brasil terá que aceitar o de outro ou outros países industriais [...] que estão a oferecer-nos os elementos exigi- dos pela nossa inadiável preparação econômica e militar”31.

30 ARANHA, Oswaldo. Resposta à homenagem prestada por Afrânio de Mello Franco. In: ARANHA, op. cit.; ARANHA, Oswaldo. Aos membros da Sociedade Pan-Americana e da Associação BR-EUA. In: ARANHA, op. cit. Ver, por exemplo, o trecho: “despite the fact that very little has been done to develop the economic interdependence between the two countries, in face of the vast possibilities in that direction, still our peoples aspire a union of sentiments between themselves”, p. 38. 31 Carta de Oswaldo Aranha a Vargas apud ARAÚJO, op. cit., p. 199.

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Se a postura demandante de Aranha com relação aos EUA ajuda a melhor compreender o lado pragmático de um homem liberal por princípio, democrata por convicção e otimista quanto ao futuro do Brasil, apenas essa posição não é suficiente para que o encaixe- mos na continuidade do estadismo de Rio Branco. Falta, ainda, ana- lisarmos qual leitura das fontes do poder nacional fundamentava a Doutrina Aranha.

Para o chanceler, era inevitável que o Brasil desempenhasse papel proeminente no sistema internacional, à medida que se desen- volvesse. Nesse sentido, Aranha recorreria às aspirações mundiais da política externa nacional como forma de pressionar sutilmente o governo norte-americano. Aos membros da Pan American Society e da Brazilian-American Association, Aranha chegou a afirmar: “certainly Pan Americanism is not the last synthesis within the vision of man, which can only be humanity itself [...]. But it is an important step toward larger goals” [grifo nosso]32. Em termos mais explíci- tos, na carta que escreveu a Vargas, às vésperas da Cúpula de Natal (1943), Aranha explica que, por seus recursos humanos e naturais, o futuro do Brasil, país “cósmico e universal”, não poderia “ser local, nem mesmo nacional, mas continental e mundial”, e demonstra toda a sua confiança de que “mais dia ou menos dia o nosso país será inevitavelmente uma das grandes potências econômicas e políticas do mundo”33. Era, porém, com realismo que Aranha formulava seu pensa- mento diplomático. Ciente de que o Reino Unido resistia ao envio de tropas brasileiras, Aranha assegurou à comunidade britânica no Rio de Janeiro, em 1942, que o País tem “pavor ao cabotinismo”, “não dá passo maior que a perna”, e tem consciência de não ser “uma

32 ARANHA, op. cit., p. 38. 33 Carta de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas apud GARCIA, op. cit., p. 77.

79 nação de força”. Nesse discurso, o chanceler esgrime outra ideia que reaparecerá em pronunciamentos futuros, a de que o Brasil não quer posições, nem tampouco deseja pedir a ninguém que “no- las [sic] venha trazer servidas em bandejas de prata”. Trata-se de um elogio à proatividade diplomática e de uma condenação impie- dosa da passividade nas relações internacionais34. Deve-se, contudo, relativizar o argumento sobre o Brasil não almejar posições – guerra alguma, aliás, favorece uma inserção puramente principista. Aranha defendia, por exemplo, a adesão do País à Carta do Atlân- tico e à Declaração das Nações Unidas, pleiteava um assento para o Brasil nos conselhos militares e a participação nacional em todos os comitês de estudo das Nações Unidas35. Além disso, na já citada carta de instruções à Cúpula de Natal, o chanceler é bastante direto quanto aos benefícios que o Brasil poderia auferir após o conflito:

a) uma melhor posição na política mundial; b) uma melhor posição na política com os países vizinhos pela consolidação de sua preeminência na América do Sul; c) uma mais con- fiante e íntima solidariedade com os Estados Unidos; d) uma ascendência cada vez maior sobre Portugal e suas posses- sões; e) criação de um poder marítimo; f) criação de um poder aéreo; g) criação de um parque industrial para as indústrias pesadas; h) criação da indústria bélica; i) criação das indús- trias agrícola, extrativa e de minérios leves complementares dos norte-americanos e necessários à reconstrução mundial; j) extensão de suas vias férreas e rodovias para fins econômi- cos e estratégicos; k) exploração dos combustíveis essenciais. Em síntese, tal como as propostas do Barão do Rio Branco, no início do século XX, a Doutrina Aranha, no contexto da Segunda

34 ARANHA, Oswaldo. Para a comunidade britânica. In: ARANHA, op. cit. Ver também Carta de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas apud GARCIA, op. cit., p. 77, no trecho em que Aranha assevera: “Querer afastar o Brasil da guerra e da paz ou mesmo deixar de estudar e trabalhar desde já pela posição que ao Brasil deve caber nesses acontecimentos seria erro de graves resultados”. 35 Ibidem.

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Guerra, não equivaleu a um alinhamento automático em relação aos EUA. Nesse sentido, Aranha seguiu o exemplo de pragmatismo do patrono da diplomacia brasileira, pois, ao observar as transi- ções de poder no sistema internacional, ele prestigiou a coopera- ção sul-americana e contribuiu para a equidistância pragmática, em que pese sua preferência pessoal pelo liberalismo democrático. Conquanto a Doutrina Aranha possa ser vista como o ápice da apro- ximação Brasil-EUA, ela também oportunizou, no seu pensamento diplomático, movimento em direção a uma análise mais pragmá- tica das relações internacionais.

2. FILHO DA DIPLOMACIA: DESAFIOS DA SOCIEDADE INTERNACIONAL E DO BRASIL AOS OLHOS DE OSWALDO ARANHA (1945-1959) Ao discursar em sessão comemorativa do centenário de Oswaldo Aranha, o então Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, citou palavras do homenageado dizendo que “O Brasil é filho da diplomacia”36. Oswaldo Aranha referia-se, segundo Amorim, à história brasileira. Talvez possamos empregar essa figura de lin- guagem também para compreender a história do próprio Aranha, após sua passagem pelo Itamaraty. Tendo-se tornado embaixador em Washington por designação de Getúlio Vargas, Aranha não acei- tava ser incorporado à carreira diplomatica, apesar de haver previ- são legal à época, para que o presidente da República nomeasse ministro de primeira classe pessoa não pertencente ao quadro do Itamaraty37. Vargas fê-lo de todo modo, o que não foi suficiente para manter Aranha no Ministério; ele pediu demissão, no contexto

36 ARANHA, op. cit. 37 ARAUJO, op. cit., p. 162

81 de fechamento da Sociedade Amigos da América, e voltou a exercer sua profissão de advogado. Antes de examinarmos se Aranha foi “o mais diplomático dos políticos brasileiros”38, vejamos qual para- digma de diplomacia inspirava Oswaldo.

2.1 Desafios da sociedade internacional no pós-guerra Nos discursos em que Oswaldo Aranha reflete a respeito da sociedade internacional, identifica-se um conjunto de ideias que podem ser consideradas o núcleo duro de sua visão de mundo. Entre elas, listemos sua crença na superioridade da democracia, na liber- dade política e econômica, no primado do direito, na solução pací- fica de controvérsias, na necessidade de uma ordem moral (ou, como ele dizia, “espiritual”), que deveria somar-se ao progresso material, por si só incapaz de garantir a paz e a comunhão dos povos39. Sem citar teóricos das relações internacionais, afinal era um homem de ação antes de tudo, Aranha fazia uma leitura realista dos desafios globais, ao mesmo tempo que confiava na evolução da humanidade, rumo a um mundo mais justo e equilibrado.

Em sua fala ao fórum Report from the World40, em Cleveland, 1947, Aranha elenca quatro causas para distúrbios internacionais da época, tais como nacionalismos, insegurança, expansão racial, ambições políticas, militarismo, pobreza. Primeira causa, as concep- ções políticas e as normas até então existentes haviam sido incapa- zes de superar as contradições e conflitos decorrentes do progresso, o que tornava necessário conceber uma nova ordem, material e moral. Segunda causa, havia incerteza sobre como “as novas maio-

38 A frase é de ALMEIDA, op. cit., p. 669. 39 Ver, nesse sentido, ARANHA, Oswaldo. Discurso de posse no cargo de primeiro vice- presidente da Sociedade dos Amigos da América, p. 75-80. In: ARANHA, op. cit. 40 ARANHA, Oswaldo. Report from the World, Cleveland. In: ARANHA, op. cit.

82 rias”, isto é, as recomposições das classes sociais após o conflito mundial, usariam seu poder uma vez no governo. O contexto dessa afirmação era o princípio dos Trente Glorieuses (1945-1975), período de extraordinário crescimento econômico, conciliado com bem-estar social, nos países industrializados. Nesse ponto, Aranha reconhece que os trabalhadores começavam a receber uma remuneração justa e merecida, mas alerta que tanto o avanço da Esquerda como a resis- tência da Direita “are being carried out in an unwise manner”. Ter- ceira causa, existiam inegáveis problemas na produção e na distri- buição da riqueza entre os países, tornando-os demasiadamente desiguais. Enfim, a quarta causa era certa inação, incompatível com uma população mundial crescendo velozmente e com os requisitos de expansão das civilizações contemporâneas.

São dignas de destaque três ideias-chave nesse discurso, por- que influenciariam reflexões e atitudes de Aranha nos anos seguin- tes. A primeira foi sintetizada nesta frase, bastante repercutida à época: “the people that disintegrated the atom has now the mission of integrating humanity”. Trata-se de uma chamada à responsabili- dade dos EUA, única potência nuclearmente armada àquela altura. Caso esse país adotasse uma postura de desengajamento e unilate- ralismo, a civilização ocidental e seus valores estariam em risco, devido ao avanço do autoritarismo materialista, visto como “the denial of our form of believing, of existing, and of living”. Cabia aos EUA ajudar a estender às demais nações os benefícios do American way, como progresso, democracia e federação. Em seguida, as raí- zes positivistas do pensamento de Aranha vêm à tona quando ele exprime sua visão reformista, e não revolucionária, do desenvolvi- mento social. Segundo ele, a história mostra que, quando as classes dominadas forçam sua ascensão, se rompe violentamente o ritmo natural do processo evolutivo, como lhe parecia ocorrer ao redor

83 do mundo naquele momento. Tal visão explicaria, em boa medida, atitudes como a oposição do Ministro da Fazenda Aranha ao au- mento de 100% no salário mínimo, defendido por João Goulart, no segundo governo Vargas. Por fim, Aranha constrói em Cleveland argumento posteriormente utilizado por Juscelino Kubitschek, no lançamento da Operação Pan-Americana, e pela diplomacia brasi- leira, na defesa de uma nova ordem econômica internacional: a miséria das massas e a desigualdade excessiva impedem a consoli- dação da democracia e da paz.

In my opinion, if we want to solve the problem of production and distribution of wealth (…) we must take immediate steps to increase not only the national income, but world income as well. [...] We must realize that the United States has more than one-half of the world’s income to take care off [sic] only one-fifteenth of the world’s population and one-nineteenth of the world area. (…) A steady yearly increase in the present world income, more equitably distributed and diffused, would I am sure contribute greatly toward the solution of our problems of welfare, and in a large measure assist in the consolidation of democracy and the prosperity of all countries.41 2.1.1. Oswaldo Aranha na Organização das Nações Unidas No governo de Eurico Gaspar Dutra, Oswaldo Aranha foi cha- mado pelo chanceler Raul Fernandes a encabeçar a delegação do Brasil junto às Nações Unidas, no momento em que o País era eleito para assento rotativo no Conselho de Segurança. Seu desempenho nessa função rendeu-lhe indicação para o posto de Presidente da Assembleia Extraordinária para a questão da Palestina e, subse- quentemente, da II Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), em setembro de 1947. Os pronunciamentos de Aranha na ONU

41 ARANHA, Oswaldo, op. cit., p. 84-85. Em outro discurso do mesmo ano, aos membros do Dutch Treat Club (EUA), Aranha afirma que as massas pendem para a esquerda, pois estão fracas e empobrecidas. Ver ibidem, p. 90.

84 aportam novos elementos para compreendermos sua visão sobre as relações internacionais e a diplomacia. Ao inaugurar a II AGNU, Aranha concentrou-se na caracteriza- ção daquele “período de convalescença” da sociedade internacional, após o maior conflito que a humanidade já testemunhara. Reiteran- do sua preocupação com “o caráter espiritual”, e não apenas material, que deve guiar os povos naquele momento de reconstrução, Aranha pauta-se por uma visão teleológica da história, segundo a qual a guerra passada “necessariamente produzirá uma paz baseada no consentimento universal”, rumo ao “aperfeiçoamento pacífico mate- rial e moral de todos os povos”. Para tanto, ele ressalta que devem ser proscritas as guerras, condenados os usos destrutivos da ciên- cia, e declarados ilegais as armas de destruição em massa e os ideais guerreiros. Racionalista, o Presidente da Assembleia crê no triunfo da razão, capaz de unir “as diversas raças, facilitando a convivência das religiões diferentes, universalzando as ciências e as artes”. Em tom extremamente idealista, Aranha conclama as Nações Unidas a construir “a humanidade com a qual sonharam os utopistas”. A retórica kantiana do representante brasileiro, entretanto, não deve impedir-nos de salientar sua perspicácia e seu pensamento crítico ao analisar o multilateralismo em gestação. Aranha demons- tra compreender, por exemplo, que a ONU é organizada pelos ven- cedores, para submeter os vencidos às suas regras, vistas, porém, como justas naquele momento. Refletindo sobre as práticas diplomá- ticas do pós-guerra, ele também reitera que “não serão as alianças nem as ententes as que cuidarão do equilíbrio mundial”, pois “o mundo não poderá desenvolver-se sob o poderio militar dos povos”, e “outros fatores econômicos, sociais e culturais terminarão por se impor”42. Nesse sentido, merecem destaque as considerações que

42 ARANHA, Oswaldo. II AGNU. In: ARANHA, op. cit.

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Aranha fez sobre o sistema multilateral em duas outras situações: no encerramento da II AGNU e na I Conferência Nacional das Organi- zações Não-Governamentais, realizada no Rio de Janeiro, em 194843. No primeiro caso, ele avalia os métodos de votação adotados pela ONU e considera necessários tanto o sistema de veto pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança quanto o sistema de maioria, vigente na Assembleia Geral. Sua rationale é primorosa:

The ban on the use of majorities as a weapon for the oppression of minorities is the very foundation of Democracy. I do not exclude our submission to the necessity of the concurrent vote of the five permanent Members in special cases regulated by the Charter. But I believe that just as we accept this rule, so it is necessary that the permanent Members equally accept the majority decisions. It would be an indefensible contradiction to reject the decision of the majority and, at the same time, demand respect for the “veto” of the five permanent members. No Rio de Janeiro, Aranha permite-se um tom ainda mais identificado com os países em desenvolvimento. Ele diz lamentar que as grandes potências se tenham reservado alguns de seus anti- gos poderes na Carta de São Francisco e critica a Guerra Fria como revivescência da “political power”, contrária aos valores que leva- ram os povos a se reunir nas Nações Unidas. É revelador de seu pensamento diplomático o trecho em que defende uma “paz fria”, ou seja, “uma obra vagarosa, paciente, mas tenaz e eficaz, da persua- são sobre a força, da razão sobre a necessidade, da livre discussão sobre a diplomacia secreta, da deliberação em comum sobre as imposições arbitrárias e unilaterais”44. Em outras palavras, o ex- chanceler, arguto observador das relações entre os Estados, cons-

43 ARANHA, Oswaldo. Encerramento da II AGNU; ARANHA, Oswaldo. I Conferência Nacional das Organizações Não-Governamentais. In: ibidem. 44 Ibidem, p. 111.

86 tatava a urgência de uma mudança drástica nos processos e méto- dos da vida internacional, mas, fiel a sua formação positivista e liberal, defendia uma transformação constante e paulatina, que deixasse ampla margem ao livre jogo das aspirações humanas.

2.2. Desafios da política externa brasileira: antecipando os os três Ds de Araujo Castro? Nas páginas seguintes, procuraremos averiguar em que medida o pensamento diplomático de Oswaldo Aranha antecipou os três Ds de Araújo Castro (1963) – desenvolvimento, desarmamento e descolonização. À primeira vista, parece improvável associar às ideias de Aranha, ícone do pan-americanismo e de uma relação especial com os EUA, as teses de Araújo Castro, um dos pais funda- dores da Política Externa Independente (PEI), sob o signo do uni- versalismo desideologizado. Começaremos, então, por analisar que tipo de inserção internacional Aranha defendia para o Brasil nos anos 1950. Em seguida, examinaremos o discurso de Aranha na XII Assembleia Geral das Nações Unidas (1957) e buscaremos compre- ender suas propostas relativas ao desenvolvimento nacional, ques- tionando por que ele criticou abertamente a Operação Pan-Americana de JK – a priori uma síntese dos ideais pelos quais o ex-chanceler se batera nos anos à frente do Itamaraty. Conforme expressou Oswaldo Aranha à Associação dos Ex- Combatentes do Brasil, passado um lustro desde a rendição alemã de 1945, a entrada do País na guerra suscitou uma revisão da política externa brasileira: de mero colaborador na ordem diplo- mática e jurídica, o Brasil passou a intervir direta e responsavel- mente nas relações internacionais. A ação externa brasileira, no entender de Aranha, não deixara de ser continental, mas passara a ser também, e de modo irrenunciável, uma política mundial.

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Deve-se matizar, contudo, a posição universalista de Aranha, visto que, a essa altura, sua opinião acerca do papel do Brasil no mundo se assemelhava mais à retórica dos círculos concêntricos de Castello Branco45 (embora com dose maior de pragmatismo), que ao universalismo da PEI. Evidencia-o outro discurso de Aranha, desta vez na Escola Superior de Guerra (ESG), em 1953. Frente a um cenário de baixa no relacionamento Brasil-EUA, às vésperas da crise de confiança que, no ano seguinte, desembocaria no suicídio de Getúlio Vargas, Aranha afirma que as relações brasileiro-ameri- canas nem sempre foram fáceis. Entretanto, sendo esses laços “cál- culo, realismo, plano, interesse”, era preciso superar a contradição e o conflito, naturais em qualquer amizade. Nas palavras do então Ministro da Fazenda, o lugar internacional do País é “no seio da civilização e da cultura cristãs e ao lado de todos os seus defenso- res”46. Ele reafirma, nessa conferência, as bases da Doutrina Aranha, mesmo admitindo que os EUA estavam relegando “para um segundo plano a velha e tradicional união com o Brasil”47. Tal comentário deve ser compreendido no contexto da crescente insatisfação latino- americana com Washington, cujos parcos recursos destinados ao continente contrastavam com a abundância de capitais fluindo em direção à Europa e à Ásia48. Tanto Aranha quanto os formuladores da PEI tinham consciência de que a política externa brasileira se tornava crescentemente universal e requeria uma diplomacia pro- ativa para manter as posições alcançadas. Apesar disso, enquanto aquele defendia a manutenção de solidariedade ostensiva vis-à-vis Washington, estes enxergavam o universalismo brasileiro no marco da diversificação de parcerias, independentemente de afinidade

45 CERVO, op. cit., p. 367-377. 46 ARANHA, Oswaldo. Discurso na ESG, p. 127. In: ARANHA, op. cit. 47 Ibidem, p. 124. 48 PINHEIRO, op. cit.

88 ideológica ou civilizacional. A opinião de Aranha mudará, à medida que nos aproximarmos dos anos 1960, mas, por hora, reproduza- mos o seguinte trecho, elucidativo de sua conferência na ESG:

A segurança não pode ser só nacional; mas terá de ser coletiva e internacional. O mundo de nosso tempo é menor, mais avizinhado e interdependente que os estados brasileiros há vinte anos. [...] Nada, pois, que ocorre no mundo nos pode ser indiferente, mesmo porque um conflito na Coreia é mais próximo de nós do que outrora era uma revolução no Rio Grande ou uma seca no Ceará ou um incidente de fronteiras na Bolívia.49 Quatro anos mais tarde, o Oswaldo Aranha que discursou na XII AGNU continuava a crer na interdependência entre as nações, mas admitia soar mais pessimista se comparado ao orador que fora em 1947. Em 1957, além dos EUA, a União Soviética e o Reino Unido já haviam explodido suas bombas atômicas, o que motivou a desaprovação de Aranha: “instead of disarming, the nations not only have continued to arm themselves, but they have even created dreadful weapons which a few great powers, possessing the technical and scientific resources, practically monopolize”50. O representante brasileiro reclama que, dos milhões de dólares dispendidos por Washington ao redor do mundo, fatia ínfima coube a seu próprio continente. Ele também exorta a ONU a dar mais atenção ao problema do desenvolvimento e aos desequilíbrios socioeconô- micos, que devem constituir a nova prioridade da organização, no lugar da tarefa de reconstrução, já exitosa. Entre os desafios con- frontando a comunidade das nações, ele enfatiza a necessidade de mais Estados reconhecerem a jurisdição da Corte Internacional de Justiça, de se emanciparem as áreas sob o Conselho de Tutela – isto

49 ARANHA, Oswaldo. Discurso na ESG, p. 126. In: ARANHA, op. cit. 50 Ibidem, p. 129.

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é, faz um apelo em prol da descolonização –, de se reduzirem ar- mamentos e forças armadas, enquanto se amplia a assistência técnica ao desenvolvimento. Estão aí, em um parágrafo, os três Ds de Araújo Castro. E Aranha ainda vai além, ao mencionar as causas subjacentes dos nacionalismos exacerbados, entre outras formas do justificável descontentamento popular de então.

Lack of understanding, inequitable distribution of economic and financial resources and of production and surpluses – all have created that and other justifiable forms of national and popular vindication. The less developed people, as well as those undergoing development, as is the case of Brazil, cannot really be blamed for the present trend towards mistrust, towards disbelief in a fair and rational world cooperation. Therefore it is natural that each people should wish to be the master of itself (…) to live with and for the all others instead of depending upon them. It is not our wish to impoverish the rich or weaken the strong. We want an equilibrium of powers and fairer access to the instruments of prosperity and to the sources of the well-being of mankind.

Seria tentador justificar o discurso de Aranha como mera retó- rica inflamada, por se dirigirem suas palavras ao “parlamento” das Nações Unidas. Essa interpretação, contudo, ignoraria a complexi- dade e o dinamismo de seu pensamento diplomático, sujeito a alte- rações como todo fruto da engenhosidade humana.

No âmbito doméstico, é digna de nota a crítica que Aranha dirigiu à Operação Pan-Americana de Juscelino Kubitschek, a qual precisa ser compreendida no contexto de recuperação econômica europeia e das frustrações surgidas na relação Brasil-EUA. Em entre- vista ao Jornal do Brasil, dia 26 de julho de 195951, Aranha explicou

51 Jornal do Brasil, 26 jul. 1959, p. 5. Disponível em: . Acesso em: 8 dez. 2014.

90 também seu ponto de vista acerca do desenvolvimento doméstico, das relações continentais e da conjuntura internacional. O título e o subtítulo da reportagem são, no mínimo, surpreendentes: “Aranha: O Brasil deve seguir os seus próprios caminhos – Capital estrangeiro, não; Reforma Agrária, sim e já”. Para o ex-chanceler, embora louvá- vel, a iniciativa da OPA não trouxera resultados concretos, nem os traria a curto prazo. Empréstimos estrangeiros sozinhos seriam in- capazes de fomentar o desenvolvimento do País, até porque frequen- temente se destinam a objetivos financeiros, não produtivos. Igual- mente, um processo de industrialização que ignorasse a urgência de uma reforma agrária estaria fadado ao fracasso. Aranha reconhece a relevância de se importarem máquinas e o valor estratégico da cooperação estrangeira, sobretudo técnica, mas conclui não serem bem-vindos capitais que nos fizessem imposições, como se fossem “visitas desejando escolher onde sentar e o que comer” em nossa casa. A América Latina precisava ser pragmática e realista: não re- ceberia um plano Marshall. A recuperação europeia e seus esforços de integração repre- sentavam uma alternativa à bipolaridade, principalmente tendo em vista a fragilidade da aliança entre os países subdesenvolvidos da África e da Ásia – referência provável ao movimento resultante da Conferência de Bandung (1955).

Os europeus redescobriram-se. Nós, os brasileiros, devemos nos descobrir também. E devemos partir do pressuposto de que será extremamente difícil fazer com que uma potência mundial determinada queira empenhar-se em nosso desen- volvimento, com o mesmo interesse que temos nele.

Em linha diametralmente oposta ao discurso na ESG, Aranha assevera: “a OPA não é uma política em si mesma. Deve ser um dos ângulos de uma política que o Brasil tem o direito de ter, dada a

91 sua força no concerto das nações”. O ex-chanceler clama por um exame de consciência nacional, a fim de identificar exatamente o que o Brasil deseja obter nas relações internacionais, e alerta contra “a confiança cega na lucidez dos outros”. Como que antecipando em cinco anos a participação norte-americana no golpe de 1964, Aranha menciona:

Hoje, para o cumprimento das suas obrigações estratégicas e políticas na América Latina, os Estados Unidos deixaram de apoiar as ditaduras oligárquicas e corrompidas. Mas insistem, como sempre insistiram [...] em apoiar as classes capazes de manter a ordem [...]. O ideal para os planejadores da política exterior norte-americana é a manutenção da ordem pelas classes conservadoras (burguesia e classe média) através das forças armadas dos países em questão.

Por fim, a reportagem conclui com um apelo claríssimo à inte- gração regional latino-americana, em bases autônomas, às vésperas da assinatura do Tratado de Montevidéu, responsável pela criação da ALALC:

Através da OPA conseguiremos transformar a unidade apenas espiritual da América Latina em realizações de ordem práti- ca, como a formação do Mercado Comum, a adoção de um padrão monetário comum, etc. Mas, se a OPA é boa, como todas as coisas boas deve começar em casa. Deve começar pelo Brasil. [grifo nosso]

O texto não deixa dúvidas de que o novo Brasil sonhado por Aranha não é mais a nação que forma ao lado dos EUA por uma ques- tão de sobrevivência. É, sim, um país para quem “o futuro já começou” e que se mostra progressivamente capaz de liderar a integração no seio da América Latina.

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EPÍLOGO Propomos neste epílogo uma retomada das principais carac- terísticas do pensamento de Oswaldo Aranha, contrastando-as com uma última fonte documental: o artigo que Aranha escreveu, em 1958, para a Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI)52, recomendando o reatamento das relações brasileiro-soviéticas, rompidas desde 1947. Vimos no primeiro capítulo que Aranha orientava seu pensa- mento acerca das relações continentais com base em certo idea- lismo regional. Seu raciocínio recorria à história da formação dos Estados americanos, acentuando e, por vezes, até exagerando seus traços pacifistas. O idealismo regional de Aranha, entretanto, não era ingênuo, na medida em que serviu para angariar a boa vontade dos países vizinhos em relação ao Brasil, vindo ao encontro das soluções conciliatórias buscadas por Aranha nas conferências pan- americanas. Pode-se concluir que a utilidade prática da cordialidade no trato com os vizinhos se reforçou ao longo da vida de Aranha e contribuiu para que ele transitasse do idealismo regional ao pan- americanismo universalista, primeiro, e do pan-americanismo para o incentivo explícito à integração latino-americana, mais tarde, con- forme sua entrevista ao Jornal do Brasil.

Na segunda parte do primeiro capítulo, abordamos a gênese da Doutrina Aranha, incialmente qualificada pela mídia americana como continuidade do monroísmo, para posteriormente ser ex- pressa pelo próprio autor, com maior profundidade, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Nesse ponto, comparamos Oswaldo Aranha ao Barão do Rio Branco, já que os dois identificaram bre- chas criadas pelas transições de poder no sistema internacional e

52 ARANHA, Oswaldo. Relações diplomáticas com a União Soviética. Revista Brasileira de Política Internacional. Rio de Janeiro: IBRI, ano 1, n. 2, 1958.

93 propuseram uma aproximação pragmática do Brasil aos EUA. Para ambos, por conjunturas históricas diferentes, a ameaça maior à sobe- rania nacional não provinha de Washington, mas, sim, da Europa, imperialista na época do Barão e totalitária no período de Aranha. Além disso, tanto o Barão monarquista como o Aranha democrata puseram de lado preferências pessoais quanto ao regime de gover- no quando foram chamados a servir o Estado brasileiro, republicano, no primeiro caso, e ditatorial, no segundo. Finalmente, o realismo e o pragmatismo de Aranha se explicitam muitíssimo mais ao findar sua vida, bastando uma referência ao artigo da RBPI para demonstrá- lo. Comentando temores de que o restabelecimento de relações com a URSS pudesse desagradar aos EUA, Aranha rechaça-os como “cau- tela verdadeiramente pueril”, pois “nossas tradicionais relações com aquele país [...] nunca foram ao ponto de anular o nosso direito de inciativa e a nossa capacidade de discernimento”. Deixamos, então, o plano continental, para perscrutar as ideias de Aranha sobre a política internacional, os desafios enfrentados pela comunidade das nações no pós-guerra, e pelo Brasil na busca do desenvolvimento. Identificamos existir um núcleo duro de valores, aos quais Aranha se refere ao discursar na ONU – demo- cracia, liberdade política e econômica, primado do direito, solução pacífica de controvérsias, e necessidade de uma ordem moral, para além do progresso material. Também notamos, contudo, que o oti- mismo de 1947 se reduz em 1957, em vista da persistência de pro- blemas globais que a instituição se mostrou incapaz de resolver, a exemplo da crescente desigualdade socioeconômica. Verificamos, a seguir, que Aranha, superando uma leitura aná- loga à dos círculos concêntricos de Castello Branco, acabou anteci- pando os três Ds de Araújo Castro – desenvolvimento, desarmamento e descolonização. Essa transição é mais bem compreendida simul-

94 taneamente à análise de sua crítica à Operação Pan-Americana. Está por trás de suas ideias uma visão mais pragmática, menos ideolo- gizada, e mais autônoma de desenvolvimento. É como se o libera- lismo econômico de Aranha tivesse sido matizado à proporção que o Brasil de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek se industrializava. Essa transformação pode ser evidenciada no discurso à RBPI, quando ele afirma que “industrialismo e isolacionismo são irreconciliáveis”, que um país industrial precisa “exportar para todos os mercados do mundo”, “pôr em prática uma política comercial mais agressiva”, a qual fracassaria se “por motivos doutrinários ou receio de contami- nação” evitasse fazer negócios com Moscou ou com a China comu- nista. O pensamento diplomático de Aranha, portanto, ganha em complexidade se continuarmos acompanhando suas ideias até 1959, às vésperas de seu falecimento, no Rio de Janeiro, em 1960.

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AS IDEIAS SÃS: GUERRA, NEUTRALIDADE, RELAÇÕES INTERNACIONAIS E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PENSAMENTO DE RUI BARBOSA

Flávio Beicker Barbosa de Oliveira

RESUMO O presente artigo trata do tema da guerra e da neutralidade bélica no pen- samento de Rui Barbosa, por meio da análise comparativa entre o discurso proferido na Faculdade de Direito de Buenos Aires, em 1916, intitulado “Os Conceitos Modernos de Direito Internacional”, também conhecido como “O Dever dos Neutros”, e sua participação na II Conferência da Paz de Haia, em 1907. Defende-se a tese de que há uma unidade de pensamento entre as ideias expostas nas duas ocasiões, verificando-se que houve uma trans- formação do caminho argumentativo escolhido por Rui em cada discurso, com consequências diferentes para as teses que procurou sustentar, vol- tadas tanto para a política externa brasileira quanto para as relações inter- nacionais como um todo.

PALAVRAS-CHAVE Rui Barbosa; relações internacionais; Primeira Guerra Mundial; neutrali- dade; direito internacional; política externa do Brasil.

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Que sou eu, afinal, para que possa tocar- me, neste cenário soberbo, o papel a que me elevastes? Apenas um velho amigo do direito, um cultor laborioso, porém estéril das letras, um humílimo operário da ciência. Nada mais. Toda a significação de minha vida se reduz a ser um exemplo de trabalho, de perseverança, de fidelidade a algumas ideias sãs.1

INTRODUÇÃO O presente trabalho procura analisar as ideias de Rui Barbosa acerca da guerra, da neutralidade bélica e da dinâmica das relações internacionais. A base principal dessa análise será a palestra profe- rida por ele na Faculdade de Direito de Buenos Aires, em 14 de julho de 1916, ainda durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). As concepções apresentadas na referida palestra, intitulada “Os Conceitos Modernos de Direito Internacional”, também conhe- cida como “O Dever dos Neutros”, serão discutidas e analisadas em contraste com as ideias que Rui defendeu na II Conferência da Paz da Haia, de 1907, na qualidade de chefe da delegação brasileira. Ambos os trabalhos tratam da diplomacia multilateral, tema que, segundo Eugênio Vargas Garcia, foi introduzido por Rui na diplo- macia brasileira2. Trata-se de trabalhos os quais, direta ou indi- retamente, refletem sua opinião e proposições acerca da política externa brasileira. De acordo com Rubens Ricupero, as transformações estrutu- rais da política externa da República Velha podem ser resumidas em três aspectos principais: (i) a “aliança não escrita” com os EUA;

1 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Pensamento e ação de Rui Barbosa. Brasília, 1999, p. 204. (Coleção Biblioteca Básica Brasileira) 2 Cf. Aspectos da vertente internacional do pensamento político de Rui Barbosa. In: Textos de História 4, 1996, p. 103-123.

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(ii) a sistemática de solução das questões fronteiriças e de coopera- ção com os latino-americanos; e (iii) “os primeiros lances da diplo- macia multilateral, na versão regional, pan-americana, ou global, da Liga das Nações”3. Este artigo baseia-se na premissa de que a contri- buição de Rui Barbosa para a diplomacia brasileira deve ser com- preendida sob esse último pilar da política externa republicana. Para tentar oferecer uma visão abrangente, de modo a per- correr as etapas que se julgaram necessárias para fundamentar as teses defendidas neste artigo, optou-se por estruturá-lo da seguin- te forma: no primeiro tópico, são apresentados subsídios biográ- ficos, os quais têm implicações no pensamento de Rui Barbosa e na forma como ele buscou expressar suas ideias; no item seguinte, discute-se, em bases sucintas, sua participação na II Conferência da Paz de Haia, a qual será confrontada, no tópico subsequente, com a palestra proferida na Faculdade de Direito de Buenos Aires, mais especificamente com as ideias acerca da neutralidade bélica; por fim, são apresentadas e discutidas as repercussões desse último discurso, bem como a militância de Rui em favor da entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial.

1. ALGUNS ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE RUI BARBOSA No tocante às ideias de Rui Barbosa, justifica-se uma introdu- ção biográfica, ainda que breve, pois suas trajetórias pessoal e pro- fissional também ajudam a compreender a dimensão de seu pen- samento e das ideias que pregou ao longo da vida, especialmente aquelas analisadas no presente estudo4. É difícil descrever de forma

3 Cf. A política externa da Primeira República (1889-1930). In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro. Brasília: FUNAG, 2013. v. 2, p. 336. 4 Essa resumida nota biográfica tem por base as obras de Silo Gonçalves (A águia de Haia: biografia de Rui Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Pongetti, 1952) e de João Mangabeira (Rui: o estadista da República. Brasília: Senado Federal, 1999).

99 sucinta sua trajetória, marcada pela multiplicidade das funções que exerceu. Foi deputado, ministro, advogado, jornalista, diplomata, senador e candidato à Presidência da República5. Seja como for, toda essa experiência acumulada ao longo dos anos se faz notar na ela- boração e defesa de suas ideias e concepções, inclusive aquelas que dizem respeito à política exterior do Brasil e ao lugar do País nas relações internacionais.

Rui Caetano Barbosa de Oliveira nasceu em Salvador, em 5 de novembro de 1849. Sua genialidade manifesta-se em conquistas individuais. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife aos 16 anos, tendo transferido o curso, posteriormente, para a Faculdade de Direi- to de São Paulo, onde entrou em contato com diversos intelectuais e artistas, dentre os quais se destacam Rodrigues Alves e Castro Alves. Nesse período de formação universitária, ganha destaque sua contun- dente e precoce atuação na imprensa. Sua inclinação liberal, contrá- ria ao Imperador, manifestou-se junto a colegas de faculdade, a exemplo do célebre episódio do banquete organizado em homena- gem ao Deputado José Bonifácio, o Moço. No ano de 1877, ingressou na vida política. Inicialmente, como parlamentar, ao ser eleito deputado para a Assembleia Legislativa da Bahia e, no ano seguinte, para o Parlamento Imperial. Desde esse período, sempre se ocupou de temas como educação (a exem- plo do ensino técnico e industrial, além da defesa da mulher no ensino superior), aprimoramento institucional e a questão do fede- ralismo, defendendo, ainda, a eleição direta e a liberdade religiosa, e participando da campanha abolicionista. Por sua atuação no Partido Liberal, muitas vezes defendendo

5 Aliás, é de acordo com sua trajetória profissional que a Fundação Casa de Rui Barbosa orga- nizou a coletânea de textos Pensamento e ação de Rui Barbosa (BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Brasília, 1999), muitos dos quais serão analisados no presente artigo.

100 pautas que coincidiam com as do liberalismo republicano – como a questão federalista –, foi convidado por Deodoro da Fonseca como um dos poucos civis a integrar, na qualidade de Vice-Chefe e Ministro da Fazenda, o Governo Provisório que liderou a transição do regime monárquico para o republicano. Em vista da proemi- nência de que Rui gozava no gabinete ministerial, o Generalíssimo Deodoro atribuiu-lhe a condução do processo de revisão do ante- projeto de constituição elaborado pela Comissão dos Cinco6. Se- gundo Aurelino Leal, Rui lhe teria confessado que sua pretensão era preparar, ele próprio, o projeto de constituição, aproveitando- se da oportunidade de rever o da comissão7. Em 1905, Rui Barbosa recusou a candidatura à Presidência da República em favor de Afonso Pena. Atuando como diplomata, chefiou a delegação do Brasil na II Conferência da Paz da Haia, em 1907, na qual faz a célebre e contundente defesa da tese da igual- dade jurídica das nações, por ocasião das tentativas das potências hegemônicas de excluir ou reduzir a participação dos países pe- riféricos em corte internacional a ser criada. As ideias que Rui sustentou na ocasião serão objeto de análise mais detida abaixo, quando se examinará sua proximidade ou contraste com a tese da neutralidade, objeto central do presente trabalho. Em 1909, lançou sua candidatura à Presidência da República, chamada de “Campanha Civilista”, por se contrapor à do Marechal Hermes da Fonseca, o qual saiu vitorioso do pleito. Membro fun-

6 Criada por meio do Decreto nº 29, de 3 de dezembro de 1889, a Comissão dos Cinco, composta por juristas e republicanos históricos (Joaquim Saldanha Marinho, presidente; Américo Brasiliense de Almeida Mello, vice-presidente; Antonio Luiz dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Antonio Pereira de Magalhães Castro), reuniu-se nos primeiros meses de 1890 para elaborar o anteprojeto a ser apresentado pelo governo provisório ao Congresso Nacional Constituinte. Cf. LEAL, Aurelino de Araújo (1915). História constitucional do Brasil. Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 203. 7 Cf. LEAL, op. cit., p. 209.

101 dador, Rui Barbosa foi presidente da Academia Brasileira de Letras (1908-1919) e do Instituto dos Advogados do Brasil. Em 1918, perdeu a eleição presidencial para Epitácio Pessoa, que o convidou para representar o Brasil na Liga das Nações. Rui recusou o convite em protesto pela intervenção federal em curso na Bahia. Ademais, envolveu-se em polêmica com o Chanceler Domício da Gama, de modo que a representação brasileira termi- nou a cargo do presidente eleito8. Rui acaba sendo eleito juiz da Corte Permanente de Justiça Internacional, cuja criação ecoava seus anseios pelo fortalecimento do direito internacional, como pressuposto da paz e da boa convi- vência entre os Estados. Por ironia do destino, nunca chegaria a ocupar o cargo, pois faleceu em março de 1923, em Petrópolis.

2. A IGUALDADE ENTRE AS NAÇÕES: A II CONFERÊNCIA DA PAZ DE HAIA (1907) A II Conferência da Paz foi convocada pelo czar da Rússia e realizou-se na Haia, em 1907. Conta-se que Joaquim Nabuco foi con- vidado pelo Barão do Rio Branco para chefiar a delegação brasileira. Diante da recusa, a imprensa e a opinião pública teriam lançado o nome de Rui Barbosa9.

8 Cf. NERY, Fernando. Rui Barbosa: ensaio biográfico. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1955, p. 134 e ss.; e VARGAS GARCIA, Eugênio. Aspectos da vertente internacional do pensamento político de Rui Barbosa, Textos de História, 1996. n. 4, p. 115 e s. Sobre a polêmica acerca da representação brasileira na Conferência da Paz de Paris, cf. VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial: a diplomacia brasileira e as grandes potências. Rio de Janeiro: IHGB, 1990, p. 187 e ss. 9 Acerca do convite a Rui e da preparação da delegação brasileira para a conferência, cf. MANGABEIRA, João. Rui: o estadista da República, Brasília: Senado Federal, 1999, p. 119 e s., e CARDIM, Carlos Henrique. A raiz das coisas. Rui Barbosa: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Civilização, 2007, p. 93-106.

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Durante a conferência, a participação de Rui Barbosa foi des- tacada em razão da sua réplica, feita de improviso na sessão de 12 de julho, a Martens, delegado russo presidente da IV Comissão, bem como do discurso proferido em 5 de outubro, quando pôde de- senvolver melhor sua argumentação em favor da igualdade jurídica entre os Estados soberanos, a propósito da representatividade dos países em corte internacional de justiça a ser criada mediante a re- formulação da Corte Permanente de Arbitragem, cuja criação fora resultado da I Conferência da Paz, de 189910.

Em seu discurso, Rui valeu-se do princípio da igualdade jurí- dica das soberanias como fundamento para introduzir outras ideias acerca de um sistema internacional organizado, como a de represen- tatividade igualitária dos Estados nas negociações internacionais, pilar central da diplomacia multilateral moderna. A diferença do discurso de Rui Barbosa em relação a outras teses semelhantes que alimentavam o idealismo no campo das relações internacio- nais era a vinculação desses princípios ao direito, tido como garan- tia única de que os mais fracos não se sujeitariam aos mais fortes.

Rui argumenta da tribuna na Haia que a igualdade é premissa essencial de uma paz duradoura. Essa igualdade, porém, deveria refletir-se na representação internacional dos Estados, inclusive na corte internacional que se pretendia criar, a fim de evitar-se que “o fraco terá de submeter-se à justiça do forte. Como regra geral, é o mais poderoso que tem menos razão de respeitar a Lei. Por que, então, devemos reservar para este o privilégio da autoridade judiciária?”11.

10 Para um relato minucioso da participação de Rui Barbosa na conferência, cf. CARDIM, op. cit., p. 115-211. 11 Cf. Obras completas, vol. XXXIV, t. II, p. 50.

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O questionamento contundente de Rui ecoou pela Ridderzaal, local em que se reunia o plenário da conferência12. Um relato dos desdobramentos das ideias de Rui Barbosa durante a conferência é dado por William Stead, jornalista inglês, observador dos eventos que se desenrolavam na reunião, alheio à importância da figura do representante no cenário político brasileiro e, portanto, acima de quaisquer suspeitas de mover-se por pretensões ufanistas. Segundo ele, mesmo diante da assimetria de poder em relação aos adversá- rios que se opunham à sua proposta,

[Rui] nunca trepidou, nem esmoreceu. Campeão de um prin- cípio em que acreditava fielmente, e avigorado por esta fé, não receava desigualdade. [...] O princípio de darem-se os melhores lugares do Tribunal às potências mais fortes foi renunciado.13 É possível traçar um paralelo entre a participação de Rui Barbosa na conferência da paz e sua atuação pública no caso Dreyfus14. A inegável vocação de Rui para a advocacia manifestou-se de diferentes formas. Mesmo na qualidade de estadista, ao revisar o anteprojeto da Constituição de 1891, preocupou-se com a proteção de direitos e liberdades individuais, a exemplo do uso e da defesa que fez da garantia do habeas corpus15. No caso Dreyfus, Rui teria revelado sua aptidão para a defesa de direitos dos injustiçados16, ao passo que sua vocação se estenderia também para a defesa, na Haia, das nações submetidas ao jugo das grandes potências17.

12 Sobre as etapas da conferência e a participação brasileira em cada reunião, cf. PENNER DA CUNHA, Pedro. A diplomacia da paz: Rui Barbosa em Haia. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1977. 13 Cf. MANGABEIRA, op. cit., p. 127. 14 Sobre a defesa que Rui faz do militar francês acusado de espionagem, antes mesmo de Émile Zola fazer o mesmo por meio do célebre artigo intitulado “J’accuse”, publicado no jornal L’Aurore em 1898, cf. GONÇALVES, op. cit., p. 122. 15 Cf. Obras completas, vol. XVII, t. I, p. 104. 16 Sobre a defesa de Dreyfus por Rui, cf. CARDIM, op. cit., p. 495 e s. 17 Cf. GONÇALVES, op. cit., p. 172 e 236.

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Celso Amorim argumenta que

Rui foi um visionário. Apenas com o poder da palavra, ajudou a construir as bases da doutrina que conduziria à aceitação universal do princípio da igualdade jurídica dos Estados, um dos pilares do multilateralismo contemporâneo.18 De acordo com a leitura de Paulo Fagundes Visentini acerca do desempenho de Rui na conferência, essas ideias teriam ajudado a acender o debate em torno do papel que o Brasil deveria desem- penhar no mundo e em sua região. Ainda segundo a análise desse autor, o debate suscitado por Rui serviria de elemento de conexão entre a posição brasileira na Haia e sua participação na Primeira Guerra Mundial e na organização do mundo após o encerramento desse conflito.19

De fato, a participação brasileira na Primeira Guerra Mundial e nas negociações internacionais que lhe seguiram encontra-se refletida, ainda que parcialmente, nas ideias defendidas por Rui na conferência proferida por ele em Buenos Aires, analisada a seguir. A unidade de pensamento que emerge da análise comparativa das duas ocasiões permite verificar a coerência e complementaridade dos argumentos defendidos por ele em momentos temporais dis- tintos. Essa conexão passa pela própria linha de pensamento que Rui Barbosa apresentou na Haia e em Buenos Aires. Ou seja, trata- se de discursos que dialogam entre si. Nas duas oportunidades, Rui não abre mão de ancorar seu ra- ciocínio no direito internacional, o que lhe confere impressionante coesão argumentativa. Nesse sentido, verifica-se a mesma contun- dência discursiva na defesa tanto de uma paz que pressupõe a

18 Cf. A diplomacia multilateral do Brasil: um tributo a Rui Barbosa, Brasília: FUNAG, 2007. 19 Cf. A águia de Haia: Rui Barbosa diplomata. In: WIESEBRON, Marianne L.; NAGLE, Marilene (Orgs.). Rui Barbosa: uma personalidade multifacetada. Brasília: FUNAG, 2012, p. 53.

105 participação igualitária dos Estados quanto de uma neutralidade bélica que não exime os países da responsabilidade de zelar pelo cumprimento do direito internacional, com vistas à pronta reso- lução do conflito mundial.

3. O DEVER DOS NEUTROS: A CONFERÊNCIA PROFERIDA EM BUENOS AIRES (1916) Ainda que de forma sucinta, é necessário apresentar o teor da conferência proferida por Rui Barbosa na Faculdade de Direito de Buenos Aires, em 14 de julho de 1916, após o banquete oferecido pelo Presidente argentino Victorino de la Plaza, ocasião em que re- cebeu o título de Profesor Honoris Causa. Na qualidade de Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário do Brasil20, Rui visitava cidade a pedido de Wenceslau Brás, por ocasião das celebrações que cer- caram o centenário da guerra de independência da Argentina21.

Intitulada “Os Conceitos Modernos de Direito Internacional”, posteriormente também reconhecida pelo título de “O Dever dos Neutros”22, a palestra de Rui é um libelo contra a guerra mundial que se encontrava em pleno curso. Muito embora tenha tentado evitar a imputação específica das causas da guerra a um ou alguns dos países beligerantes, o teor da conferência parece revelar que Rui julgou impossível se manter indiferente ao conflito que assolava

20 É preciso ressaltar que, muito embora a viagem de Rui Barbosa a Buenos Aires tenha sido em caráter oficial, em razão da celebração do centenário da independência argentina, Rui defendia que o discurso proferido na Faculdade de Direito não integrava o programa da visita, de modo que as ideias nele contidas já não foram expressas na condição de representante brasileiro no país. Conforme será visto no tópico a seguir, a questão suscitou polêmica entre os governos brasileiro e argentino. 21 As circunstâncias que cercaram o convite de Rui para representar o Brasil em Buenos Aires, formulado pessoalmente pelo chanceler Lauro Müller, são relatadas por MANGABEIRA (op. cit., p. 271 e s.), que teria presenciado o encontro na casa de Rui. 22 O texto da conferência usado na presente análise é a tradução do castelhano disponível em BRASIL, op. cit., p. 195-256.

106 o mundo. Sua reação contra o que julgava inaceitável contribuição de todos os países para o prolongamento da guerra foi munir-se de argumentos teóricos e práticos para fazer romper o ciclo de per- petuação da violência. O processo mediante o qual Rui constrói seu raciocínio será analisado no presente tópico. Dado seu envolvimento na campanha em favor da participação na Primeira Guerra, Rui Barbosa aproveitou a oportunidade para expor suas ideias acerca do conflito, do direito internacional e das relações internacionais como um todo. Com relação à preparação para a conferência, Luís Viana Filho relata que “veio, então, a hora aguardada havia quase dois anos”. Rui “conservara o maior sigilo em torno do tema da conferência e fizera-a traduzir para o espanhol, a fim de que nada sofresse o efeito imediato sobre o auditório”. Na plateia estava o chanceler argentino Murature23. O primeiro terço da conferência é uma reconstituição da his- tória, desde o processo de independência, e do pensamento político da Argentina. Rui revela-se profundo conhecedor do pensamento liberal que influenciou a política argentina no século XIX e início do XX, especialmente do publicista Juan Bautista Alberdi. Rui rende homenagens às “estrelas de primeira magnitude: os Sarmientos, os Alberdis, os Rivadavias, os Tejedores, os López, os Mitre, os Varelas, os Canés, os Echeverrías, os Lavalles, os Gutiérrez, os Indartes, os Irigoyens e tantos e tantos outros, onde se concentram e de onde se desparzem os raios mais luminosos da inteligência argentina”. A revelação da admiração de Rui pela obra de Alberdi deixa ainda mais explícita a filiação do brasileiro ao pensamento político de matriz liberal, o que fornece boas pistas para compreender grande parte das ideias defendidas ao longo da palestra.

23 Cf. A vida de Rui Barbosa. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 351.

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Rui prossegue em sua exposição recordando a participação argentina, chefiada por Sáenz Peña, na II Conferência da Paz de Haia. Nesse ponto, ele estabelece uma ponte entre os temas que emer- gem no contexto internacional da guerra (“a dissolução do meio moral do século”) e aqueles tratados na Conferência da Paz, “há perto de nove anos”. Essa recapitulação serve de transição na palestra, a fim de que Rui passe a tratar da igualdade dos direitos, além de re- velar a conexão que acima se sustentou entre as ideias defendidas na Haia e Buenos Aires. O brasileiro passa, então, a fazer uma crítica contundente ao militarismo, àquilo ao qual se refere como sendo “a sacralização da guerra e da força”, o que, alimentado pelo fogo dos nacionalismos, teria conduzido à erupção do conflito mundial. A moral universal estava sendo dilapidada “desde o terceiro quartel do século anterior, por um surdo trabalho de adaptação aos interesses que haviam de estalar nesse conflito e, com ele, sacudir, até seus fundamentos, a máquina da Terra”. Embora procure evitar referência explícita aos Estados beligerantes, o palestrante, por vezes, rompe essa orien- tação, bem como faz diversas remissões a autores europeus e suas obras apologéticas da guerra. Rui sustenta que essa combinação de fatores somente foi pos- sível por um equívoco teórico, da “corrente de ideias que põe, nas relações internacionais, a guerra por cima de todas as leis” e, por conseguinte, o Estado acima de todos os direitos. Segundo ele, tratar- se-ia de campo fecundo para a radicalização a cisão entre a moral individual e a do Estado. Essa cisão seria a causa da guerra, “redu- zindo a moral a lacaia da força”. Para Rui, no entanto, a moral seria única e indivisível, tampouco cabendo sua separação em moral teó- rica e prática.

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De acordo com Rui, a crescente interdependência da socieda- de mundial impedia a adoção de política abstencionista no seio das relações internacionais:

No tempo de hoje, senhores, com a internacionalização cres- cente dos interesses nacionais, com a permeação mútua que as nacionalidades exercem umas nas outras, a guerra já não pode insular nos Estados entre quem se abre o conflito. Suas como- ções, seus estragos, suas misérias repercutem ao longe, sobre o crédito, o comércio, a fortuna dos povos mais distantes. Escrevendo posteriormente sobre o isolacionismo e as guerras mundiais, Carlos Delgado de Carvalho sustenta a impossibilidade de manter-se indiferente diante de um conflito bélico, retomando argumentos semelhantes àqueles usados por Rui.24

Tomando essa ideia como premissa, Rui Barbosa passa a desen- volver uma argumentação crítica à neutralidade bélica que implicava indiferença. Ao contrário, a neutralidade implicava obrigações. O en- gajamento dos países no sistema internacional deveria pautar-se pelo valor da justiça e do direito. Segundo ele, “é mister que a neu- tralidade receba uma expressão, uma natureza, um papel diverso dos de outrora. A sua noção moderna já não pode ser a antiga”, sob pena de se perpetuarem ou inutilmente se prolongrem as violações às Convenções da Haia que Rui passa a listar.

Nesse ponto, Rui introduz conceito novo de neutralidade, qua- lificando-a. Segundo ele, a neutralidade aceitável deveria ser “vigi- lante e judicativa”, e não “inerte e surda-muda”. Essa qualificação consiste na oposição entre a neutralidade passiva, ou seja, aquela que assistia passivamente às violações da Convenção de Genebra, e a neutralidade vigilante, ou seja, conquanto imparcial, atuaria para impedir que o direito e o ideal de justiça fossem violentados.

24 História diplomática do Brasil. Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 376 e s.

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Rui advoga em favor da reforma das regras da neutralidade. “A reforma a que urge submetê-las deve seguir a orientação oposta: a orientação pacifista da justiça internacional. Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível”. Essa trans- formação do paradigma internacional tinha como destinatários os países do continente americano, entre os quais o Brasil, a Argentina e os próprios EUA, que apenas viriam a declarar guerra ao Império Alemão em abril de 1917. Rui defende a “vocação da América” como “elemento ativo na criação de um mundo internacional mais bem organizado”. Prossegue Rui com seu discurso: “os olhos de todos se voltam para a América. À humanidade é que nos dirigimos”. A conexão dessas ideias com o trabalho desenvolvido na Haia, na década anterior, parece clara. Rui resgata o espírito e o propó- sito daquela conferência para argumentar que haveria “o direito e o dever de constituir um tribunal de consciência, uma instância de opinião, uma alçada moral sobre os Estados em guerra, para lhes julgar os atos, e lhes reprovar os excessos”. É preciso notar, contudo, que o argumento de Rui é distinto do que propugna a superioridade daqueles que se creem em posse de uma “reserva moral”, que a invocam para distingui-los dos demais e autorizar ações unilaterais. Ao referir-se a um “tribunal de cons- ciência”, Rui ancora sua defesa da “neutralidade vigilante” na força do multilateralismo, o que é evidenciado por sua preocupação em reportar-se tanto ao direito internacional quanto à Conferência da Haia e a seu princípio da isonomia.

Em vez de se ater aos aspectos teóricos da construção de sua tese, Rui oferece mais detalhes acerca da ideia de neutralidade por ele defendida. O brasileiro passa a argumentar em favor de uma ação dos Estados neutros. Não se trataria de uma ação armada, mas do

110 exercício de uma opinião pública internacionalizada, concertada entre as nações. Segundo Rui, a promoção da democracia, a expan- são do comércio e o exercício de uma opinião pública internacional impediriam a proliferação da violência, cabendo aos neutros “pelo menos o dever de protestar”. Ele chega até mesmo a discutir a viabilidade e os efeitos do bloqueio de todo o fluxo de comércio entre países neutros e beligerantes.

Carlos Henrique Cardim argumenta que Rui se vale das pro- postas extraídas do livro America and the New World State, de Norman Angell, um dos mais renomados expoentes do idealismo liberal no campo das relações internacionais e cujo trabalho marca seu ativismo político em favor da paz25. É precisamente a essa matriz teórica que Rui parece filiar-se, ao sustentar, em Buenos Aires, que “a lei predominante na existência delas (as nações) é, cada dia mais intensamente, a cooperação”. Nesse ponto, Rui parece qualificar também a soberania estatal, ao vislumbrar a possibilidade de emergir, no futuro, um mundo novo, no qual as soberanias conviveriam, abrindo mão de poderes e elementos, na medida em que fossem necessários à harmonia in- ternacional. Essa concepção do poder estatal implica que a sobera- nia não seria irrestrita, como defendiam os diferentes países. Nesse momento, Rui também se manifesta pela necessidade de criação de um foro internacional. Esse foro acabaria sendo criado – a Liga das Nações é constituída no pós-guerra –, porém não seria dotado dos atributos preconizados por Rui.

Uma tradução da essência do discurso é oferecida por Eugênio Vargas Garcia, ao sustentar que a tese de Rui Barbosa seria a de que “os horrores do conflito e a destruição repercutiam longe e a

25 Cf. CARDIM, op. cit., p. 244.

111 ninguém era dado permanecer indiferente em face da barbárie. Os neutros sofriam as consequências da guerra tanto quanto os Estados beligerantes e a neutralidade, pois implicava obrigações claras”26. Aqui, emerge a denúncia dos tribunais, da opinião pública e da consciência coletiva, os quais não poderiam permanecer indi- ferentes aos crimes perpetrados em nome da guerra. De acordo com Raúl Antelo, o objetivo da palestra de Rui era “enaltecer o conceito de liberdade de sua ótica liberal idealista”27. De fato, imbuído desses valores e concepções, Rui passa a maior parte de sua fala tratando do tema da guerra e da neutralidade, solução que, indiretamente, ele parece advogar para países que se encontravam na periferia dos palcos principais do conflito mundial, como era o caso de Brasil e Argentina. A ousadia de Rui consiste em adotar um discurso pacifista, de fundo idealista, justa- mente em um contexto adverso, em que a guerra era vista como prática legítima e natural, vis-à-vis a penetração das ideias milita- ristas de Clausewitz em uma conjuntura internacional cuja princi- pal marca era o imperialismo estatal28. O idealismo liberal de Rui Barbosa emerge nas passagens em que sua argumentação se inclina para a pregação moralizante da sociedade internacional. Essa moral defendida por Rui, contudo, não se confunde com as regras implícitas na tese, então em voga na diplomacia mundial, da justiça feita pelos mais fortes. Ao contrário, a lei moral de Rui tem por base o direito internacional, ou seja, o império do direito sobre a força – ideia que, conforme havia sus- tentado na II Conferência da Haia, toma como premissa a igualdade entre as nações.

26 Op. cit., p. 114. 27 Cf. Rui Barbosa, a neutralidade e o estado de exceção. In: WIESEBRON, Marianne L.; NAGLE, Marilene (Orgs.). Rui Barbosa: uma personalidade multifacetada. Brasília: FUNAG, 2012, p. 60. 28 Para uma contextualização abrangente do período, cf. HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

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À luz dessas premissas, Rui passa a discutir o papel dos fracos em conflitos armados, momento no qual insere a questão da neu- tralidade bélica. Para ele, a neutralidade não pode ter natureza inerte e egoísta, movida pelo simples interesse na autopreserva- ção. Como visto, ele advoga que a neutralidade deve ser ativa, “vi- gilante e judicativa”, baseada na “reivindicação da lei moral rescrita”, quer dizer, do próprio direito internacional29.

Segundo a tese de Rui, a neutralidade não é um direito ou uma prerrogativa dos Estados, mas implica uma parcela de responsa- bilidade nos casos de enfrentamento bélico de outros países, ainda que essa responsabilidade seja diferente daquela que recai sobre os que efetivamente se alinham a um dos lados da guerra. Seja como for, essas responsabilidades não são tão diferentes entre si. A neu- tralidade não implica omissão diante dos abusos cometidos pelos países beligerantes. Ao contrário, exige uma reação com vistas a fazê-los cessar.

Parece, portanto, haver uma correlação entre as ideias de Rui acerca da responsabilidade dos Estados, sem distinção, na promo- ção da paz e os objetivos perseguidos com a criação de instituições como a Liga das Nações e as Nações Unidas. Essa lógica também se estende ao próprio Conselho de Segurança, ainda que os moldes em que essas instituições foram criadas não necessariamente refli- tam os ideais de Rui Barbosa, porquanto não se orientaram pela observância irrestrita do princípio da igualdade jurídica dos Estados, conforme defendido com tanta veemência por ele.

A neutralidade em Rui é submetida a uma ressignificação, para adequá-la a conceitos que são, modernamente, aceitos como defesa da paz no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a

29 No mesmo sentido, cf. ANTELO, Raúl, op. cit., p. 64.

113 exemplo do movimento de responsabilização coletiva internacio- nal por violações graves ao direito internacional, especialmente aos direitos humanos. Essa responsabilidade coletiva é expressa no que, atualmente, se denomina responsabilidade de proteger, con- cepção que emergiu na Cúpula Mundial da ONU, em 2005, junta- mente com a Comissão de Construção da Paz. Trata-se de novo arranjo que tem guiado a sociedade internacional em temas de paz e segurança, posto que mereça ajustes, conforme defendem vários países, entre os quais o Brasil30. Conforme já sustentado acima, não se pode compreender a visão de Rui Barbosa acerca do sistema internacional e suas propo- sições para as relações interestatais sem que se compreenda o papel- chave do direito nesse arranjo. É preciso salientar, nesse ponto, que Rui Barbosa não vislumbrava ou preconizava a criação de uma autoridade supranacional para regular os conflitos entre as nações. Rui compreendia o direito internacional, base fundamental para a pacificação internacional, como um “regime de coordenação, não de subordinação”, conforme observa Eugênio Vargas Garcia. Essa é a chave explicativa para as críticas de Rui, na Haia, à criação de corte internacional em moldes que limitassem a liberdade dos Es- tados, sendo mais um defensor da arbitragem, a qual se baseia no assentimento voluntário das partes. Ainda segundo o autor, Rui não era propriamente um revolucionário, tendo defendido “princí- pios gerais e abstratos que não pretendiam questionar as bases de legitimidade aplicáveis ao direito das gentes”31.

30 A respeito dos fundamentos e implicações do conceito de responsabilidade de proteger e da proposta brasileira de responsabilidade ao proteger, cf. BENNER, Thorsten. O Brasil como um empreendedor normativo: a responsabilidade de proteger. Política Externa 21, 2013. p. 35-46, e FONSECA JR., Gelson; BELLI, Benoni. Desafios da responsabilidade de proteger. Política Externa 21, 2013, p. 11-26. 31 Op. cit., p. 118 e 121.

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Não obstante chegasse a defender teses avançadas sobre o pa- pel do direito nas relações internacionais, Rui ainda parecia prender- se, em Haia, a conceitos tradicionais acerca do fundamento do direito internacional, a exemplo daquele que o vincula ao consenti- mento, ao voluntarismo de soberanias estatais. Conquanto nunca se tivesse filiado, expressamente, a determinados marcos teóricos no âmbito das relações internacionais32, Rui transformará suas posições acerca da diplomacia e do próprio direito internacional em seu discurso em Buenos Aires. Como visto, Rui acaba por abandonar suas convicções tradi- cionais para advogar em favor de uma revolução conceitual das regras da neutralidade e da própria soberania estatal, ambas sujeitas a limites impostos pela transformação das relações internacionais. Aqui reside a principal – e, possivelmente, única – distinção entre as ideias de Rui na Haia e em Buenos Aires. De resto, conforme argumentado anteriormente, permanece a conexão e complemen- taridade entre as teses de Rui, formando uma unidade de pensa- mento que liga ambas as ocasiões.

4. PENSAMENTO E AÇÃO DE RUI BARBOSA ANTES E APÓS BUENOS AIRES A Conferência proferida em Buenos Aires estremeceu as rela-

32 Ressalte-se que as leituras que Rui faz de Norman Angell, as quais emergem no discurso em Buenos Aires, não permitem afirmar que ele fosse um declarado subscritor dessas ideias e, com base nesse marco teórico, analisasse os eventos internacionais e a diplomacia brasileira, bem como oferecesse um conjunto de ações propositivas. Eugênio Vargas Garcia faz um estudo do pensamento de Rui na Haia e em Buenos Aires por meio da chave analítica que opõe as correntes do liberalismo e do realismo (op. cit., p. 119). Essa leitura, porém, vale-se de categorias teóricas que não estão presentes no pensamento de Rui, correndo o risco de incorrer em anacronismo. Segundo sustenta Quentin Skinner, “além da simples possibilidade de creditar a um autor o significado que ele poderia não ter pretendido expressar, uma vez que aquele significado não lhe estava disponível, há também o perigo (talvez mais insidioso) de facilmente ‘extrair-lhe’ uma doutrina que determinado autor poderia, em princípio, querer enunciar, mas, de fato, não tinha a intenção de expressá-la”. Cf. Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: History and Theory, 1969, v. 8, p. 9.

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ções entre o embaixador extraordinário e os governos brasileiro e argentino. Rui Barbosa havia declarado, posteriormente, já de volta ao Rio de Janeiro, que o Presidente argentino Victorino de La Plaza lhe teria dito que “o Sr. Rui Barbosa, com credenciais ou sem elas, será considerado sempre o mais legítimo representante do Brasil”33. O discurso de Rui em Buenos Aires encontraria ampla reper- cussão. Dois exemplos merecem destaque. Durante sua visita à Câmara dos Deputados argentina, ouve do Presidente da casa, Mariano Demaria, que “Rui nos deu a honra de escolher a tribuna de Buenos Aires para enunciar as mais elevadas ideias que se têm manifestado nestes trágicos tempos. Elas circularão pelo mundo, se- rão discutidas, aplaudidas, combatidas, vingarão ou serão vencidas”34. O ex-chanceler argentino Estanislao Zeballos também o teria sau- dado pelo discurso35. As ideias de Rui repercutiram no Legislativo francês, bem como entre políticos e intelectuais, a exemplo de Henri Bergson36 e Georges Clemenceau, o qual escreveu artigo inti- tulado “Iniciativa do Brasil”, em 21 de julho de 191637. De acordo com João Mangabeira, ademais, o discurso de Rui foi invocado em manifestação, endereçada ao presidente Woodrow Wilson, dos norte-americanos residentes na Europa38. As ideias de Rui Barbosa provocaram, no retorno ao Brasil, a reação dos germanófilos, os quais fizeram campanha pela cassação de suas credenciais39, pois, diziam, o embaixador do Brasil tomara

33 Cf. NERY, op. cit., p. 129 e s. 34 Cf. NERY, op. cit., p. 130. 35 Cf. VIANA FILHO, op. cit., p. 352. 36 Cf. CARDIM, op. cit., p. 254. 37 Cf. VINHOSA, op. cit., p. 28. 38 A mensagem ao Presidente diria que “já que nos não pertenceu essa iniciativa, sigamos, ao menos, esse exemplo [...]. Adotem as palavras de Rui Barbosa e façam o quanto puderem por emprestar-lhes maior força todos os americanos, que amam realmente o seu país e têm fé nos princípios da independência americana”. Op. cit., p. 271. 39 Cf. VISENTINI, op. cit., p. 56.

116 uma atitude contrária a seu governo40. O próprio governo o teria repreendido pelo teor da conferência proferida em Buenos Aires41. Vale notar, ainda, que o discurso suscitou reação da chancela- ria alemã e manifestação no jornal Berliner Tageblatt, o qual repro- duziu as declarações do ministro alemão. Carlos Henrique Cardim afirma que essa reação é demonstrada por telegrama da legação brasileira em Berlim, datado de 17 de julho de 1916, o qual discute como responder à manifestação, referindo-se ao incidente como o “caso Rui Barbosa”42. Segundo Luís Viana Filho, “o Brasil desculpara- se alegando não ter qualquer responsabilidade nas palavras que Rui proferira como simples jurista”43. O caso, porém, não teve repercussões mais sérias para a relação bilateral. Ao longo da conferência, Rui fez questão de ressalvar que suas opiniões não refletiam a posição oficial do governo brasileiro. Ele afirma que não se ocuparia de “política, mas do aspecto jurídico desses acontecimentos. Não foi ao embaixador do Brasil, cuja mis- são, aliás, já está concluída, que recebestes e elegestes membro ho- norário de vosso corpo docente: foi unicamente ao jurista”. Essa ressalva, que separa a figura “Embaixador Extraordinário e Pleni- potenciário brasileiro em Buenos Aires” do jurista e acadêmico Rui Barbosa, refletiria o debate interno em curso no Brasil a respeito da Primeira Guerra.

A imprensa estava dividida entre ambos os polos beligerantes do conflito. Esse clima de polarização não poupou Rui de ataques. Surgiram denúncias sobre gastos excessivos em Buenos Aires, es- pecialmente no jornal A Tribuna, ao passo que o Jornal do Comércio

40 Cf. MANGABEIRA, op. cit., p. 276. 41 Narra Luís Viana Filho (op. cit., p. 353) que a repreensão coube ao Embaixador Luís de Sousa Dantas, então Subsecretário do Exterior. 42 Op. cit., p. 256. 43 Op. cit., p. 352.

117 defendia Rui dessas acusações. Chamado às pressas de uma viagem aos Estados Unidos, o chanceler Lauro Müller, manifestando-se pu- blicamente no Pará e em Pernambuco, desautorizou o discurso de Rui Barbosa, sustentando que o dever do Brasil seria “conservar para com todos a mesma amizade”44. Luís Viana Filho anota que Rui ficou abatido com os inesperados ataques à sua pessoa45. Nesse contexto de acusações e tentativas de difamação, Rui considerava-se, contudo, autorizado a discorrer sobre o tema da neutralidade da forma como o fizera. Ele encontrava respaldo para sua conduta invocando o fato de que o discurso de Buenos Aires recebera do Congresso Nacional “a consagração mais autorizada”, mandando “reproduzir nos seus anais, fazendo-as assim suas as minhas palavras”46.

A despeito da neutralidade declarada pelo Brasil e por outros países sul-americanos quase imediatamente após a eclosão da Pri- meira Guerra Mundial, a evolução do conflito europeu suscitou inevitável debate político no País, envolvendo tanto a opinião pú- blica, fustigada pela imprensa, quanto o meio intelectual. Francisco Vinhosa e Eugênio Vargas Garcia observam que, entre os intelec- tuais, havia uma corrente germanófila – como Monteiro Lobato e Lima Barreto –, outra pela manutenção do neutralismo – a exemplo de Oliveira Lima e Alberto Torres – e uma a favor da Entente – como Olavo Bilac, Graça Aranha e Manuel Bonfim47. Rui Barbosa declarou-se, desde o início, favorável aos Aliados (Entente), conforme discurso no Senado, em 9 de outubro de 191448.

44 Cf. BARBOSA, Rui. O caso internacional. Revista do Brasil 42 (1919), p. 105, apud VINHOSA, op. cit., p. 30. 45 Op. cit., p. 357. 46 Cf. VINHOSA, op. cit., p. 28. 47 Cf. VINHOSA, op. cit., p. 32 e ss., e VARGAS GARCIA, op. cit., p. 113. 48 Cf. MANGABEIRA, op. cit., p. 271.

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A participação de Rui no debate não se restringiu a manifestações parlamentares ou na imprensa49. Seu envolvimento foi alçado ao nível da militância, quando, em 7 de março de 1915, ajudou a fundar e passou a presidir a Liga Brasileira pelos Aliados. Em setembro de 1916, a Liga pró-Aliados reúne-se no Teatro Municipal do Rio de Janeiro para homenagear Rui, que fora, “em Buenos Aires, o intér- prete da civilização contra a barbárie”50.

A respeito da atuação da Liga Brasileira pelos Aliados, Carlos Henrique Cardim observa que a entidade promoveu conferências públicas, difundiu material e reuniu personalidades nacionais, além de procurar fornecer ampla informação sobre as hostilidades que ocorriam nos teatros de operações, “obviamente, com as visões pró- Inglaterra e da França”51. Segundo Francisco Vinhosa, a Liga agia ati- vamente levantando fundos para a Cruz Vermelha, organizando manifestações e apresentando petições ao Congresso Nacional. Essa disputa ideológica a respeito da posição do Brasil na guerra tomaria, ainda, as páginas da imprensa durante todo o período52. João Mangabeira sustenta que, após Buenos Aires, “Rui não descansa”, “está presente em toda parte. Exalta a nação. E arrasta o governo, aos trambolhões, para a exoneração de Lauro Müller, para o rompimento da neutralidade, para a guerra”53. Em função da cam- panha pró-aliados, Rui participa de diversas manifestações popula- res no Rio de Janeiro, a exemplo da grande reunião que se seguiu ao torpedeamento do navio Paraná54. Segundo essa interpretação,

49 Sobre essas, cf. BARBOSA, op. cit., vol. XLVI, t. I, p. 245. 50 Cf. NERY, op. cit., p. 131. 51 Op. cit., p. 265. 52 Op. cit., p. 20-23 e 128. 53 Op. cit., p. 276. 54 Essa história é narrada pelo próprio Rui, na obra A Grande Guerra, Rio de Janeiro: Guanabara, 1932. Segundo Livia Claro Pires, a Liga persistiu nos ataques contra o chanceler Lauro Müller. “Nos manifestos em que a Liga requisitava o afastamento dos membros do

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Rui pagaria o preço por divergir abertamente do governo, em favor da declaração de guerra, na sucessão presidencial do ano seguinte. O episódio do torpedeamento do Paraná precipita a decisão do governo de ceder à opinião pública e optar pelo rompimento de relações diplomáticas com a Alemanha em abril de 191755. Após a queda do chanceler Lauro Müller, substituído por Nilo Peçanha, o governo decide declarar guerra aos impérios centrais, não cabendo, aqui, a discussão acerca dos motivos para a entrada do Brasil no conflito56. A declaração de guerra, contudo, suscitaria nova polêmi- ca, com Rui Barbosa no centro, a respeito da intenção do presi- dente Wenceslau Brás de decretar estado de sítio em todo o País57. Mesmo após a entrada do Brasil na guerra, a Liga Brasileira pelos Aliados ampliou suas atividades, passando, também, a esclarecer ao público o que era divulgado a respeito do conflito. Suas ativida- des encerraram-se somente em 191958. Por ocasião da aprovação da declaração de guerra no Senado, em 25 de outubro de 1917, Rui observa, em discurso, que:

a história dessa guerra, Sr. Presidente, nos mostra, de um modo eloquente, a inutilidade absoluta das organizações da força diante da resistência dos elementos liberais contra elas

governo e do funcionalismo público que haviam tomado uma postura pró-Alemanha, o ex- ministro era comumente mencionado, sendo a resistência do governo brasileiro em adotar as medidas sugeridas contra os alemães, segundo a entidade, uma herança da sua gestão”. Cf. PIRES, Livia Claro. A Liga Brasileira pelos Aliados e a formação da identidade nacional brasileira. Revista Ars Historica, 2013. n. 8, p. 256. 55 Cf. VIANA FILHO, op. cit., p. 354, e VINHOSA, op. cit., p. 109. 56 O torpedeamento do navio Macau levou ao reconhecimento do estado de guerra com o Império Alemão, por meio de decreto de 26 de outubro de 1917. Segundo Carlos Delgado de Carvalho, um mês mais tarde, “reunindo-se na capital francesa uma Conferência dos Aliados”, foi o ex-chanceler Olinto de Magalhães, ministro em Paris, encarregado de repre- sentar o Brasil. Op. cit., p. 382. Ademais, cf. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, p. 224 e ss., e VALLA, Victor V. Subsídios para uma melhor compreensão da entrada do Brasil na Pri- meira Guerra Mundial. Estudos Históricos, 1976. n. 15, p. 29-45. 57 A esse respeito, cf. MANGABEIRA, op. cit., p. 281 e s. 58 Cf. VINHOSA, op. cit., p. 24.

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congregados. O grande poder, Sr. Presidente, dos elementos morais na formação da resistência humana contra a força é minha convicção, Srs. Senadores, que a nós, brasileiros, que a nossos conterrâneos não nos falta, para que essas virtudes se desenvolvam, senão a convicção de que uma grande causa espera o seu concurso.59 Conquanto fosse declaradamente a favor da entrada do Brasil na guerra, evidentemente ao lado da Entente, tendo recorrido in- clusive à militância, Rui tomou o cuidado de defender a pacificação internacional por meio da redefinição da neutralidade, a que tanto se apegavam os Estados que se julgavam distantes dos principais teatros de operações. De acordo com a interpretação de Vargas Garcia, Rui vislum- brava para o Brasil o papel de grande democracia ocidental, filiada aos valores do liberalismo político. Por essa leitura, Rui acreditaria que a entrada na guerra “não vinha a reboque de nenhuma grande potência, mas era, sim, a consequência natural de uma convergência de interesses nacionais, ou melhor, de uma comunhão de valores”60. Em discurso no Senado Federal, em 25 de outubro de 1917, Rui diz que “a política hoje adotada (decretação do estado de beli- gerância) é a de que eu tive neste país, e dizem que neste continen- te, a primeira iniciativa. Custou-me então as mais rudes amarguras e as agressões mais indignas, que jamais curtiu a minha experiên- cia de cegueira e das maldades humanas”61.

CONCLUSÃO Segundo Quentin Skinner, a compreensão de textos ou discur-

59 Cf. MANGABEIRA, op. cit., p. 280. 60 Cf. VARGAS GARCIA, op. cit., p. 117. 61 Op. cit., vol. XLIV, t. I, p. 177.

121 sos e, portanto, das ideias neles veiculadas pressupõe a análise que abrange as duas pontas do processo de comunicação: o emitente e o receptor. De acordo com esse teórico da história das ideias, a tarefa de extrair significados e interpretá-los implica o entendimento tanto daquilo que o autor tinha a intenção de expressar quanto de como essa mensagem deveria ser apreendida pelo público destinatário62. No caso de Rui Barbosa e de seu pensamento acerca da neu- tralidade, da guerra e da política externa brasileira, o presente artigo buscou enfrentar esse desafio descrito por Skinner63, mediante a análise dos discursos em Haia e, principalmente, em Buenos Aires; da forma como Rui construiu sua argumentação em vista dos desti- natários do discurso; bem como do impacto dessas ideias sobre uma coletividade de atores políticos com a qual buscava dialogar.

Rui Barbosa é uma figura controvertida. Alguns o reconhecem como o “expoente maior do liberalismo político da República Velha”64. Outros veem nele uma caricatura do beletrista65, exemplo mais acabado daquilo que se pode chamar de bacharelismo liberal, cujo traço fundamental é o excesso de erudição e de formalismo orna- mental66. Nelson Saldanha observa que Rui foi “figura discutida, desde a questão de sua administração financeira, até à de sua au- tenticidade intelectual e de sua probidade pessoal; discutido pelo estilo, para uns era magnífico, para outros, oco e pomposo”67.

Seja como for, a obra e a imagem de Rui Barbosa têm sido rea- bilitadas recentemente, por meio do resgate de sua contribuição para

62 Op. cit., p. 48. 63 Ainda que não se tenha procurado seguir, à risca, a metodologia pregada por Skinner. 64 Cf. PAIM, Antonio. O liberalismo na República Velha, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 90; e VARGAS GARCIA, op. cit., p. 105. 65 Para uma mistura de críticas e elogios a Rui, cf. OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 370-396. 66 Acerca do tema do bacharelismo no Brasil, cf. SALDANHA, Nelson. História das ideias políticas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 68 e s. 67 Op. cit., p. 258 e s.

122 a atualização do discurso liberal brasileiro68. Bolívar Lamounier, por exemplo, rebate a “folclorização” da figura e do pensamento de Rui, relegados ao “limbo histórico”, destacando o esforço de “cons- trução institucional” que permeia toda a sua obra69, o que também deve incluir a política externa da República Velha. No campo das relações internacionais, como visto, as teses defendidas por Rui aproximam-se do idealismo em voga à época70, porém com uma distinção. A defesa da paz e da cooperação inter- nacionais é feita por Rui com referência explícita não somente à moral, no que o aproxima do pensamento kantiano, mas também do direito internacional. O direito, ao ancorar as expectativas de comportamentos entre os Estados, converte-se em elemento central, e não acessório ou suplementar, da paz internacional.

A defesa do direito, pleito incessante de Rui, acaba sendo in- corporada, em definitivo, no repertório da política externa brasileira. Na visão de Rui Barbosa e da própria diplomacia brasileira, confor- me ficaria mais evidente desde então, não há multilaterallismo sem direito internacional. Sua maior bandeira no campo das relações internacionais foi a defesa da incorporação igualitária dos diferentes atores estatais no sistema internacional. Essa igualdade dos Estados seria estendida, também, para fundamentar as responsabilidades comuns de todos que integram a comunidade internacional, ainda que a responsabilidade de cada um se sujeite a condicionalidades distintas.

68 A respeito da reformulação do discurso liberal brasileiro – mediante a incorporação de preocupações de fundo social –, em discurso de Rui no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, por ocasião da campanha presidencial de 1919, cf. COSTA, Tarcísio. Cidadania em Rui Barbosa: questão social e política no Brasil. In: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 335-342. 69 Cf. Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 52 e 65. 70 Ou do racionalismo, de “tradição grotiana”, conforme anota VARGAS GARCIA, op. cit., p. 118.

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Esse é o fio condutor que une as duas principais manifestações de Rui Barbosa acerca da política externa brasileira e do sistema que ele concebia para as relações internacionais como um todo. Não há, portanto, uma disjunção de temas ou conceitos entre as ideias defendidas por Rui Barbosa da Haia a Buenos Aires. Essa continuidade, como vista acima, é reconhecida pelo próprio Rui na conferência de 1916, ao sustentar que

a imparcialidade na justiça, a solidariedade no direito, a co- munhão na manutenência das leis escritas: eis aí a nova neu- tralidade, que, se deriva posteriormente das conferências de Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno. Conforme sustentado neste artigo, a única distinção entre os dois discursos diz respeito ao alcance do direito internacional. Se, na Haia, o direito ainda teria como fundamento último o consenti- mento dos Estados, em Buenos Aires, seu fundamento se modifica para acompanhar o movimento de transformação das relações internacionais em razão do aumento da interdependência, conforme sustentou Rui. Como consequência dessa transformação do direito, Rui defende a reformulação das regras de neutralidade, bem como a limitação da soberania. Embora toquem em aspectos distintos das relações interna- cionais e, ocasionalmente, se afastem da mesma linha argumen- tativa, ambos os discursos expressam o pensamento de Rui acerca do multilateralismo. Daí porque as ideias apresentadas na Haia e em Buenos Aires podem ser interpretadas como uma unidade de pensamento, cuja marca fundamental é a defesa de princípios estruturantes da ordem internacional e, em certa medida, também da política externa que Rui vislumbrava para o Brasil. Eis as “ideias sãs” de que Rui tanto se orgulhou ser um incansável advogado.

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O CONCEITO DE AUTONOMIA NA POLÍTICA EXTERIOR BRASILEIRA: MUDANÇAS E CONTINUIDADES

Gustavo Gerlach da Silva Ziemath

RESUMO O artigo apresenta as transformações por que passou o conceito de “autonomia” na política exterior brasileira. Para tanto, inicialmente é feita revisão teórica em relação às características da “história dos conceitos”, instrumental teórico relevante para o estudo histórico proposto. Na sequên- cia, é feita consideração acerca da significação do conceito de autonomia na América Latina. Segue-se apresentando os significados de autonomia surgidos ao longo da história da política exterior brasileira republicana, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Finalmente, são apresen- tadas algumas reflexões acerca do significado de autonomia na realidade internacional contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE História da política externa brasileira; história dos conceitos; autonomia pela distância; autonomia pela participação.

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INTRODUÇÃO Os debates no campo de estudo das relações internacionais são recorrentes e marcam a evolução da disciplina. Há cerca de 100 anos, quando as primeiras cadeiras universitárias de relações internacionais surgem na Europa e as primeiras obras sobre o tema ganham destaque, inicia-se o primeiro debate do campo, buscando definir qual seria a ontologia da disciplina: se pautada no dever- ser, como ilustrado na obra A grande Ilusão (1909), de Norman Angel, ou se embasada no estudo dos meios à disposição dos Estados para que esses pudessem garantir sua sobrevivência, como destacado na obra de Edmund Carr, Vinte Anos de Crise (1939). O segundo debate emerge nos anos de 1960 e começa a envol- ver a metodologia aplicada na disciplina. A influência do pensa- mento behaviorista dos estudos no campo da psicologia chega à área das relações internacionais e coloca, de um lado, autores clássicos, como Hedley Bull e Martin Wight, e, do outro, autores cientificistas, como Morton Kaplan. Enquanto aqueles defendiam o estudo das relações internacionais por meio da análise histórica, estes vislum- bravam que o futuro da metodologia em relações internacionais passava, necessariamente, pela análise estatística de dados especí- ficos, que permitiria aumentar o grau de previsibilidade do com- portamento estatal. Ao longo das últimas décadas, o debate em relações interna- cionais passa por outras transformações significativas. O debate acerca da cientificidade da matéria passa, então, a transcender o campo exclusivamente das relações internacionais, e passa a atingir, entre outros, o campo da história e do pensamento histórico. A história, como se pode observar em algumas correntes de pensa- mento do segundo debate, como a Escola Inglesa, já era entendida

128 como importante para se compreender as relações internacionais dos países. O que passa a ser cada vez mais recorrente nos estudos é a busca da compreensão do pensamento vigente nas diferentes épocas de análise, que serve de fundo ideológico-conceitual para as decisões políticas que se tornam fatos históricos. As decisões de po- líticos para iniciar guerras, para concluir acordos e para posicionar- se em foros multilaterais passam a ser interpretadas de maneira mais completa com as lentes do passado. Essa breve revisão de um tema característico da teoria das relações internacionais serve para introduzir a problemática do presente estudo. Na medida em que se buscará nas páginas se- guintes compreender padrões de continuidade e de descontinuidade na concepção de autonomia na política externa brasileira, é impor- tante, antes de mais nada, localizar o debate no campo maior das relações internacionais. O presente estudo tem como objetivo específico – além do objetivo central de compreender as nuances do conceito de autono- mia na política externa brasileira – analisar, ainda que brevemente, a evolução da história dos conceitos. Compreender a história do pensamento diplomático brasileiro em relação à concepção de autonomia na política externa passa por entender de antemão como os conceitos evoluem no tempo, respondendo a dinâmica conjuntu- ral das relações internacionais do País de onde o conceito é emanado. Esse objetivo específico servirá para embasar teoricamente as mudanças no conceito de autonomia dentro do pensamento diplo- mático brasileiro. Como será visto, a ideia de autonomia na política exterior brasileira não é coesa. Pelo contrário, há uma significativa polissemia, que reflete as diferentes maneiras como o próprio País se percebe na conjuntura internacional do momento, especialmente

129 em relação ao diálogo com os países centrais e à participação em foros multilaterais. Nesse contexto, o presente estudo se divide em três partes. Inicialmente, debater-se-á a evolução da história dos conceitos, trazendo argumentos de autores internacionalmente consagrados na área, como Quentin Skinner e outros autores do Grupo de Cambridge e da Escola Americana de estudo do pensamento político, sempre voltando as ideias para o campo das relações internacionais. Na sequência, o trabalho passa a analisar a contribuição de pensadores brasileiros e latino-americanos, para explicar questio- namento recorrente na análise da política externa brasileira: qual o grau de autonomia que a política exterior deve assumir. A pers- pectiva de pensadores diplomatas e de pensadores acadêmicos – brasileiros e regionais – será levada em conta, considerando ainda o momento em que eles desenvolvem suas ideias. Esse debate inclui, naturalmente, a noção de continuidades e descontinuidades na política externa brasileira, ou seja, como a percepção do concei- to de autonomia se transforma na PEB e como essas modificações influenciam a postura política brasileira diante de parceiros tradi- cionais, como Estados Unidos e países europeus. Será dado maior destaque para os momentos posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial. A noção do Barão do Rio Branco em relação à aproxima- ção com os impérios da época será lembrada como momento ini- cial na preocupação em relação ao conceito de autonomia, embora o foco recaia no estudo do período da Segunda Guerra Mundial, da Política Externa independente, do regime militar, e do contraponto estabelecido em relação a esse regime na década de 1990. Por fim, de modo a buscar promover indagações tentativas acerca do tema, busca-se analisar qual seria a noção de autonomia

130 que o Brasil deveria ter para si atualmente, no contexto de acele- ração das relações político-sociais e de intensificação das trocas comerciais na era da globalização.

1. A HISTÓRIA DOS CONCEITOS A difícil procura por um título para a presente seção é já re- presentativa da dificuldade intrínseca de se buscar analisar a vasta literatura acerca da mudança dos conceitos, ao longo da evolução da história, e as implicações políticas dessas mudanças. Inicial- mente se pensou em nomear a seção “Implicações dos conceitos na história política”. Além de excessivamente grande, o título não representava a dimensão histórica que merece grande destaque, vez que o presente estudo busca analisar a evolução do conceito de autonomia ao longo da história da política exterior brasileira. Optou- se, então, por um título homônimo do movimento acadêmico da Begriffsgeschichte, que estuda o campo das ideias.

De acordo com Richter1, a Begriffsgeschichte nasceu na Ale- manha, na mesma época em que autores americanos começavam a estudar a history of ideas. O movimento alemão, em razão das pu- blicações inicialmente na língua germânica, não ganhou destaque entre os países anglófonos, que desenvolveram correntes de pen- samento próprias dentro desse campo de estudo, como será visto a seguir. Não cabe aqui fazer análise aprofundada de quais seriam as distinções entre a corrente alemã e as correntes saxônicas. O que merece ponderação é que a definição de Begriffsgechichte acaba servindo para os fins desse artigo. De acordo com os autores2 dessa

1 RICHTER, Melvin. Begriffsgeschichte and the history of ideas. Journal of the history of ideas, abr.-jun. 1987. v. 48, n. 2. 2 Entre os autores, podem-se destacar Reinhard Kosseleck e Christian Bermes, atual diretor do periódico alemão Archiv für Begriffsgeschichte.

131 corrente, que escrevem com frequência no periódico Archiv für Begriffsgeschichte, a origem e as mudanças no significado dos con- ceitos decorrem da conjuntura cultural e linguística do momento. Nesse sentido, a história é essencial para compreender a evolução (mudanças) na significação dos conceitos. A concepção da Begriffsgeschichte aproxima-se daquela dada pela Escola de Cambridge em relação à evolução das ideias. Junto com a new conceptual history, mais forte nos EUA, a Escola de Cambridge se diferencia de correntes marxistas e francesas (como a Escola dos Anais), já que ambas contestam a concepção de que as ideias são algo sempre presente e que seriam apenas reinterpre- tadas por autores mais recentes. Lançando mão de recursos da filosofia da linguagem, da crítica literária e da história, os autores americanos e os da Escola de Cambridge contestam qualquer presun- ção de imparcialidade de discurso e defendem que é necessário constituir um método próprio para estudar a evolução das ideias.

Nada obstante, esses dois grupos anglo-saxões divergem quanto a alguns aspectos em relação ao estudo da história das ideias. Enquanto a Nova História Intelectual adota como princípio o en- tendimento de que existe uma relação próxima entre o intérprete e a obra, e que ambos coconstituem os significados dos conceitos, a Escola de Cambridge entende que há uma maior “passividade” na obra, e que o cerne da interpretação consiste na busca da identi- dade histórica do texto, mediante o resgate da intenção do autor ao escrever os conceitos da maneira como o fez. Optou-se, no pre- sente estudo, em adotar a perspectiva da Escola de Cambridge, que tem entre um de seus principais expoentes Quentin Skinner. A opção é justificada pelo fato de que essa vertente, embora não abandone a crítica literária e a filosofia da linguagem, busca na história as causalidades da determinação dos conceitos. Na medida em que o

132 trabalho adota uma perspectiva histórica de evolução do conceito de autonomia na política externa brasileira, foi dada preferência à abordagem de Cambridge que destaca o valor da história na “histó- ria dos conceitos”.

O primeiro aspecto que deve ser considerado é que um con- ceito não é uma palavra apenas. Nele estão incutidas uma ou mais interpretações. Skinner3 indica que uma sociedade passa a adotar conscientemente um conceito quando ela desenvolve um vocabu- lário dentro do campo semântico que nasce com o conceito. Nesse sentido, a ideia de autonomia, na sociedade brasileira, emerge, sim, como um conceito, porquanto em seu entorno existe um vocabulá- rio que visa a melhor delinear o próprio conceito. As ideias de “autonomia na dependência”, “autonomia pelo distanciamento”, “autonomia pela participação” e “autonomia pela diversificação” são apenas alguns exemplos que serão analisados nas próximas seções e que corroboram a ideia de que o termo autonomia não é apenas uma palavra, mas, sim, um conceito. Considerando que autonomia é um conceito, é importante também refletir acerca do processo que leva a sociedade a modi- ficar sua percepção em relação ao conceito. Skinner4 apresenta novamente ideias elucidativas. Para o autor, os conceitos não são estanques, sendo eles passíveis de sofrer com uma “polissemia genuína”. Tal polissemia decorre, na visão do autor, de diferenças ideológicas. Os defensores de determinadas ideologias iniciam cam- panhas para modificar a percepção social de um conceito, e, embora por vezes consigam determinar um significado único para ele, na maioria dos casos apenas conseguem ampliar os sentidos da ideia

3 Language and Political Change. In: BALL, Terence; FARR, James; HANSON, Russell (Ed.). Political Innovation and Conceptual Change. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 8. 4 Op. cit., p. 15-18.

133 veiculada pelo conceito. Tal concepção de polissemia no processo de significação dos conceitos pode ser encontrada no conceito de “autonomia”5. Como será visto, devido a fatores históricos conjun- turais, uma ideologia ou outra ganhou maior peso no pensamento diplomático brasileiro do último século. Tal ideologia trouxe consigo novas interpretações para a concepção de autonomia. Se, em alguns casos, ela poderia ser meramente relacionada ao pragmatismo ma- terial, como no caso da autonomia buscada por Getúlio Vargas na década de 1940, em outros a autonomia estava mais próxima da ideia de afastar-se das estruturas hegemônicas de poder, de modo a garantir maior independência na inserção internacional do País, como durante a Política Externa independente. Dados os aspectos de que autonomia pode ser visto como um conceito e que tal conceito recebe interpretações polissêmicas, cabe, agora, ponderar qual a relevância da história no processo de compreensão das visões que se produzem em relação aos concei- tos. Farr6 aponta que entender a mudança por que passa a signifi- cação dos conceitos é, em grande medida, entender as mudanças políticas, e vice-versa7. A mudança conceitual é uma consequência imaginativa da crítica produzida por atores políticos que buscam resolver as contradições que eles descobrem dentro de sua com- plexa rede de crenças e práticas, à medida que eles tentam compre- ender e mudar o mundo a sua volta.

5 Estudo sistematizado acerca do processo de polissemia dos conceitos pode ser observado em obras de sociólogos históricos. TILLY (1985; 1992) e MANN (1997), por exemplo, tra- balham com a polissemia do conceito de Estado e suas consequências político-econômicas, especialmente para países que ainda não possuíssem o aparato burocrático central tão con- solidado. 6 FARR, James. Understanding conceptual change politically. In: BALL, Terence; FARR, James; HANSON, Russell (Ed.). Political Innovation and Conceptual Change. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 25. 7 Aqui se deve destacar que tanto a mudança conceitual pode ser um reflexo da mudança po- lítica quanto o contrário: por vezes a mudança na linguagem leva ao novo conceito que embasa a nova política (FARR, op. cit., p. 31).

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Não é apenas a história que importa na compreensão das mu- danças conceituais. Também aquilo que Farr8 chama de “consti- tuição linguística da política” importa. O autor busca dar a devida relevância aos aspectos linguísticos por trás da evolução de con- ceitos políticos, uma vez que, como já prenunciava Hobbes em seus escritos, é impossível fazer política sem linguagem – e, como coro- lário, é impossível fazer conceitos políticos sem linguagem. A ideia de “constituição linguística da linguagem” vem imbuída de dois as- pectos. Em primeiro lugar, um número enorme de ações políticas só pode ser executado por meio da linguagem9. Em segundo lugar, crenças políticas são embasadas em conceitos que os atores polí- ticos sempre carregam para justificar seus atos. Não se pode dizer, contudo, que a prática política é completamente embasada em con- ceitos, na medida em que a prática muitas vezes gera consequên- cias que escapam do entendimento conceitual previamente existente e que podem vir a promover uma “reconceitualização”10.

Esse processo de reconceitualização, ou mudança nos concei- tos, pode acontecer em diversos graus. Hobsbawm11 aponta que a Era das Revoluções trouxe mudanças políticas profundas e, com elas, conceitos completamente novos ou totalmente ressignificados, como o de indústria e o de “liberalismo”. As mudanças nem sempre são tão profundas. Como aponta Farr12:

Conceptual change varies from wholesale changes across AN entire constellation of concepts [...] to more localized changes in, say, the reference or attitudinal expressiveness of a single concept.

8 FARR, op. cit., p. 26. 9 No campo da diplomacia, isso é especialmente verdade, uma vez que, por princípio, o diplomata busca sempre o diálogo como mecanismo de solução de conflitos, e jamais a força. O uso preciso de termos específicos em correspondências diplomáticas, como Notas Verbais, corrobora esse entendimento. 10 FARR, op. cit., p. 29. 11 HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1997, p. 17. 12 Op. cit., p. 31.

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Essa mudança tênue é a que pode ser observada na concepção de autonomia na política externa do Brasil. A mudança pode ser entendida, em grande medida, como uma mudança de atitude, como bem destacado na citação acima. O Brasil assume, ao longo do século XX e do início do século XXI, um padrão de referência de autonomia que reflete sua atitude em relação a grandes potências consolidadas e a sua vontade de promover uma inserção interna- cional o mais universal possível – ou mais restrita –, a depender da compreensão de autonomia da época. Resgatando em parte o debate sobre a importância da ideolo- gia no processo de formação e modificação dos conceitos, deve-se sempre ter em mente que os conceitos jamais se sustentam sozi- nhos. Eles são uma constelação de ideias que compõem um sistema de crenças. Esse esquema acaba sendo, na verdade, a teoria por trás do conceito. Nesse sentido, o leitor deve buscar compreender a concepção de autonomia na política externa brasileira de maneira integrada aos marcos teóricos mais fortes da época. Se, na década de 1950, o pensamento heterodoxo cepalino influenciava as ideias de autores como Hélio Jaguaribe (que já apresentava uma concep- ção de autonomia próxima daquela que seria desenvolvida nos anos da PEI), nos anos 1990 a teoria neoliberal tinha força na região sul- americana e exercia papel importante no projeto de autonomia pela integração, como será visto mais atentamente na próxima seção. Feito o debate conceitual basilar, parte-se agora para uma análise mais sistematizada da ideia de autonomia na política exte- rior brasileira. Essa ideia de autonomia não pode ser analisada per se, pois é parte do processo de continuidades e descontinuidades da prática de política externa. Nesse sentido, as nuances no concei- to de autonomia serão apresentadas a partir de uma perspectiva historiográfica latino-americana e brasileira que analisa as mudan-

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ças na política externa em geral e, dentro dessa grande política externa, as mudanças no conceito de autonomia.

2. O CONCEITO DE AUTONOMIA DENTRO DAS CONTINUIDADES E MUDANÇAS DA POLÍTICA EXTERIOR Compreender as mudanças de posicionamento da chancelaria brasileira não é tarefa simples, demandando grande revisão biblio- gráfica teórica e, principalmente, histórica. É necessário ter em mente que o padrão histórico de conduta do Itamaraty é composto por um acervo diplomático permanente que tende a variar dentro de uma continuidade13. Olhando, por exemplo, com especial atenção a participação brasileira nos organismos multilaterais14 e a busca pela autonomia, Cervo15 afirma que, apesar de esse acervo diplomático conformar uma linha de política exterior de relativa continuidade, há momen- tos de valorização kantiana do multilateralismo normativo, nos quais o Brasil apresenta uma visão de autonomia mais participativa, e momentos em que muitos dos governos de plantão se armam de um pragmatismo na condução da política externa que remete aos tempos do Barão de Rio Branco, tendo como consequência uma participação embasada em uma ideia mais autárquica de autonomia.

Esse é apenas um exemplo de âmbito onde se verificam varia- ções na política externa brasileira. Outros vários também já ganha-

13 VIGEVANNI, Tullo; CINTRA, Rodrigo. Política externa no período FHC: a busca de autonomia pela integração. Tempo Social, 2003, v. 15, n. 2, p. 31-61. 14 AMORIM (2007, p. 5) aponta que Rui Barbosa foi um pioneiro da diplomacia multilateral no Brasil, inaugurando, em 1907, na Conferência de Haia, uma linha de atuação que perdura até os dias de hoje, qual seja, a de defesa da democratização das relações internacionais e de igualdade jurídica entre os Estados. 15 CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 28-30.

137 ram destaque nas análises conceituais de acadêmicos e diplomatas, como o de continuidades e descontinuidades nas relações com os Estados Unidos – ganhando alcunha específica de “autonomismo” ou “dependentismo”, “entreguismo” ou “nacionalismo”, por exemplo.

De modo a melhor compreender esse questionamento recor- rente nas relações internacionais do Brasil, a análise aqui proposta concentrar-se-á em dois aspectos. Primeiramente, como a histo- riografia latino-americana aborda o tema, na medida em que se verifica que o debate acerca das continuidades de política externa não se restringe ao Brasil. Na sequência, serão apresentados alguns construtos conceituais que buscam servir de instrumental para melhor perceber qual era a significação que se dava ao conceito de autonomia em diferentes momentos da política externa, desde a década de 1930. O trabalho se concentrará no período histórico mais recente (a partir de 1930), como dito acima, embora faça re- ferências a momentos da Primeira República, nos quais a dimensão de autonomia já começava a ser debatida.

2.1. A perspectiva regional Antes de apresentar a visão que a historiografia regional tem do tema, deve-se fazer breve retrospectiva acerca da formação dessa historiografia, na medida em que ela, per se, resulta do recorrente debate entre autonomia e dependência, o qual dialoga com a ques- tão das continuidades e descontinuidades. Verifica-se que as raízes do pensamento historiográfico latino- americano se encontram nos debates que colocavam, de um lado, Sarmiento, ex-presidente argentino e defensor de uma perspectiva de política externa universalista para os países da região – como bem representa o seu associativismo às transformações globais no

138 período da pax britannica –, e, de outro lado, Martí, cubano que representava o ideal de autonomia e de ruptura16. Percebe-se, assim, que os debates entre as duas correntes de pensamento já se fazem presentes desde os tempos da formação dos Estados nacionais na região. Cabe destacar que tais questio- namentos sobre autonomia e dependência vão perpassar vários momentos históricos da história latino-americana do século XX.

Nos anos 1950, o problema da deterioração dos termos de troca e do desenvolvimentismo é levantado pelos teóricos cepalinos, mostrando, por meio de argumentos econômicos, a importância de romper com a perspectiva associativista. Autores como Raúl Prebisch e apresentavam a ideia de que os bens produzidos por países da região perdiam valor à medida que a renda interna- cional média aumentava e que os produtos importados pela região se tornavam constantemente mais caros, o que gerava dependên- cia econômica estrutural.

Na década de 1960, a Revolução Cubana resgata o ideal de Martí de que a ruptura é imprescindível para o desenvolvimento da região. A partir do final dessa década, trabalhos como o de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto dão destaque à dinâmica da de- pendência política dentro do quadro econômico de centro-periferia que começara a ser desenhado por autores cepalinos anos antes. Cardoso e Faletto17 atribuem grande parte da falta de desenvolvi- mento latino-americano à relação política de subordinação estabe- lecida entre os países da região e os países já desenvolvidos do Hemisfério Norte. O estruturalismo cepalino ganha reforço em sua

16 SARAIVA, José Flávio Sombra (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 20. 17 CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, 1970.

139 dimensão política, e seus reflexos serão facilmente observados nas propostas de inserção internacionais mais autônomas de vários países da região. Nos anos 1970, o nacionalismo de fins do paradigma desen- volvimentista da política externa brasileira representava a impor- tância da autonomia para o crescimento econômico e para o desen- volvimento da nação. A ideia de que a substituição de importações alcançava seus estágios finais como mecanismo do desenvolvimento industrial de países da região como Brasil, Argentina e México fazia com que o perfil autonomista ganhasse força. Ademais, as taxas de crescimento significativas, no caso brasileiro, corroboravam a ideia de que era por meio de uma autonomia autárquica que o Brasil al- cançaria o pleno desenvolvimento.

Nos anos 1980 e 1990, o regionalismo aberto, ainda que resga- tando o ideal de que a América Latina deveria abrir-se para o mundo, não deixa de atentar para algo há muito apontado como necessário por pensadores como Hélio Jaguaribe, já na década de 1950: uma verdadeira integração regional. A crise econômica que tornou a década de 1980 uma “década perdida” para países como Brasil, Argentina e México fez com que os conceitos de autonomia de suas políticas exteriores fossem revistos. Por fim, nos anos 2000, o de- bate sobre a autonomia ganha novos contornos, com o avançar da globalização e das cadeias de produção globais.

Raúl Bernal-Meza18, um dos pesquisadores que pensam de acordo com os quadros conceituais da historiografia latino-americana, debate tanto a questão da autonomia na região quanto o tema das continuidades nas políticas externas dos países da região.

18 BERNAL-MEZA, Raúl. América Latina en el mundo: el pensamiento latinoamericano y la teoría de relaciones internacionales. Buenos Aires: Nuevohacer, 2005, p. 251.

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Ao tratar da questão da autonomia, Bernal-Meza destaca a re- levância do tema para todos os países do continente sul-americano. Ao apresentar um estudo acerca das metodologias utilizadas na região, para se compreender as políticas externas nacionais, o autor mostra que, a despeito da dispersão de perspectivas teóricas, os estudos históricos convergiam para a análise de três questões em especial: a) a busca pela maximização da autonomia; b) o desenvol- vimento como objetivo nacional, para o qual a política externa tra- balhava; c) os Estados Unidos, como corolário automático da busca pela autonomia, na medida em que é país importante para a polí- tica externa de qualquer país do continente americano. No que se refere ao debate sobre continuidades e desconti- nuidades, o autor busca analisar os casos específicos de Colômbia, Chile, Brasil e Argentina. Mostra o autor que o trabalho em torno da ideia de “paradigmas”, desenvolvido pelo professor Amado Cervo, o qual será mais bem analisado abaixo, tende a ser um dos mais relevantes aportes historiográficos da região para a compreensão de mudanças significativas em política externa. Ademais, o autor ressalta que outros pensadores da região, como Mário Rapoport e José Paradiso, buscam compreender as continuidades e desconti- nuidades nas políticas externas da região por meio da compreen- são de que a política externa é um “todo indivisível”, que deve considerar as nuances nas estratégias de desenvolvimento dentro de uma visão sistêmica do mundo19. Verifica-se, por meio da obra de Bernal-Meza, que as questões da autonomia e da continuidade de política externa são recorrentes na historiografia latino-americana. A análise recairá, na sequência, sobre como autores contemporâneos do Brasil abordam esses temas.

19 Op. cit., p. 353.

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2.2. A perspectiva brasileira Os temas da autonomia e da continuidade de políticas de in- serção internacional, como visto acima, são recorrentes na historio- grafia regional. Na sequência, serão identificados alguns pensadores brasileiros que desenvolveram construtos conceituais acerca dos dois temas. A especificidade da análise de autores brasileiros faz-se neces- sária pelo peculiar padrão de desenvolvimento do Brasil. É impor- tante, nesse sentido, matizar o conceito de autonomia, na medida em que, como será visto, tal conceito, na perspectiva da política externa brasileira, é mais ponderado do que aquele desenvolvido por pesquisadores de outros países da região, em grande medida devido ao fato de que o nível de desenvolvimento econômico de um país afeta sua capacidade de formular decisões autônomas, bem como sua liberdade de ação internacional. Nesse sentido, o Brasil, com mais recursos materiais e um mercado doméstico muito mais significativo, seria menos vulnerável a decisões de países externos e teria capacidades suficientes para evitar a construção de uma política externa balizada por uma dicotomia simplista autonomia x associativismo, como acontece em outros países da região mate- rialmente mais dependentes de grandes potências externas20. O conceito de autonomia na política externa brasileira é tra- tado extensivamente na literatura nacional e internacional21 e pode remeter ao início do período republicano, quando o Barão do Rio Branco busca promover um alinhamento pragmático por meio da “aliança não escrita” com Washington22. A presente análise buscará

20 O autor agradece os comentários de Flávio José Sombra Saraiva em relação ao presente estudo, que facilitaram o desenvolvimento dessa ideia de que existe uma concepção própria de autonomia no Brasil que se diferencia daquela observada em vizinhos regionais. 21 Vide MOURA (1980); VIGEVANI (2003); BURNS (2003); FONSECA JR. (2014); VIGEVANI (2007); RESENDE (2009); DORATIOTO (2012). 22 RESENDE, op. cit.

142 compreender como o conceito de autonomia no País varia con- forme o contexto internacional desde os anos em que o Barão do Rio Branco esteve à frente da chancelaria, mas dando destaque maior ao período posterior à Segunda Guerra Mundial.

O pensamento do Barão do Rio Branco é extremamente com- plexo e merece estudos próprios. À guisa de síntese, pode-se dizer que a política de José Maria da Silva Paranhos Júnior foi norteada pelos seguintes princípios: intransigência da soberania nacional; definição das questões lindeiras; inteligência cordial na política regional sul-americana; recuperação do prestígio internacional do País e defesa dos interesses da elite agrário-exportadora, principal- mente no referente às exportações de café e imigração23. De modo a atender tais princípios, especialmente aquele rela- cionado à manutenção das exportações do País, que eram o susten- táculo da economia nacional do período, era necessário desenvolver as melhores relações possíveis com os Estados Unidos, maior com- prador do café brasileiro e potência emergente. Nada obstante, curvar-se aos interesses estadunidenses, a fim de promover o ingres- so de divisas estrangeiras no País, significaria, em alguma medida, ir de encontro ao princípio da intransigência da soberania nacional. Dentro desse quadro é que se desenvolveu o pensamento, por vezes entendido como visionário e ao mesmo tempo pragmático do Barão do Rio Branco. O Barão soube promover uma espécie de “alinhamento pragmático” em relação aos Estados Unidos, buscan- do garantir o máximo de autonomia possível ao Brasil, preservando, desse modo, a soberania nacional, sem descuidar, contudo, da promo- ção de uma “aliança não escrita”, termo cunhado pelo brasilianista

23 CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. A política exterior do Brasil. Brasília: Editora Universi- dade de Brasília, 2011.

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Bradford Burns. Em termos práticos, o Brasil buscou sustentar sua autonomia em momentos-chave, como durante a Conferência de Haia, quando divergiu dos EUA no tocante à promoção da igual- dade soberana dos Estados, buscando destacar, em outros momen- tos, como ao abrir a primeira embaixada do Brasil no exterior em Washington, a vontade do País em ser a ponte na relação entre a potência emergente e os países sul-americanos24.

Essa dimensão da autonomia, sobretudo em relação aos EUA, não foi nem mantida, na prática, nem pensada, em termos concei- tuais, por outros nomes de relevo da política externa, até os anos de 1950, quando o contexto de acirramento das tensões interna- cionais provoca nova onda de reflexões no pensamento diplomá- tico brasileiro. Grandes nomes da diplomacia da década de 1920, como Afrânio de Mello Franco, pensaram a inserção internacional do Brasil, embora em seu pensamento não estivesse presente a ideia de autonomia, ao menos de maneira sistematizada. Mello Franco tinha grande preocupação em aproximar o Brasil ao máximo do pan-americanismo, uma vez que o velho continente europeu era, para ele, sinônimo de discórdias e instabilidades. Dentro da busca do pan-americanismo, Mello Franco dava especial atenção à promo- ção do direito internacional e do comércio exterior como formas de intensificar a interdependência e reduzir a probabilidade de conflitos25.

A ideia da autonomia volta a se fazer mais presente no con- texto de acirramento das tensões internacionais, nos anos finais da década de 1930. Em sua tese de doutoramento, Gerson Moura26

24 RICÚPERO, Rubens. José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco): a fundação da política exterior da República. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá, (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1964). 1. ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. v. 2. 25 HILTON, Stanley. Afrânio de Mello Franco: a consolidação da estratégia de política externa. In: José Vicente de Sá Pimentel. (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964). 1. ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013, v. 2. 26 MOURA, op. cit.

144 destaca que o Brasil, no contexto da Segunda Guerra Mundial, bus- cava o maior nível de autonomia possível dentro de um momento insuperável de dependência em relação aos Estados Unidos, que se tornava a potência hegemônica global. A busca por autonomia não seria, contudo, um contraponto automático a Washington, buscando alinhar-se, na medida do possível, com o governo alemão. A busca por autonomia significava, na verdade, a promoção da equidis- tância pragmática. O Brasil não atuaria de maneira pendular entre Alemanha e EUA, mas, sim, de maneira autônoma, de modo a con- seguir a maior barganha possível na relação com os dois Estados. Getúlio Vargas atuava dessa forma, pois tinha consciência de que o Brasil, devido ao contexto geográfico e econômico, dependia, em grande medida, dos EUA. Contudo, o Brasil, diferentemente da Argentina, que adotara postura mais neutralista, consegue matizar o conceito de autonomia, de modo a barganhar ganhos materiais graças ao contexto internacional.

Nesse sentido, a construção conceitual de Gerson Moura de autonomia na dependência tenta descrever a natureza da relação política do Brasil com seu principal parceiro político-econômico da época – os Estados Unidos. Resgatando o arcabouço teórico acima apresentado, o conceito de autonomia ganhou um matiz muito próprio, decorrente da conjuntura política da época. A ideia central da significação do conceito não era complexa: dentro de um sis- tema de poder internacional onde polos conflitivos se estabeleciam e ameaçavam a estabilidade estadunidense, bem como sob uma condição política favorável, devido à aproximação comercial e ideo- lógica entre Brasil e Alemanha durante o início da década de 1930, era viável a um aliado subordinado, como fora o Brasil nos anos de 1920 em relação aos EUA, reter um grau de autonomia que lhe per- mitisse negociar com as grandes potências.

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No que se refere ao período democrático posterior à guerra, Bernal-Meza27 mostra que o Brasil caminhou de períodos de míni- ma autonomia, durante os governos de Dutra, Getúlio Vargas e Café Filho – pois era excessivamente dependente dos EUA em termos econômicos, e o contexto internacional era de crise pós-guerra –, para períodos de autonomia matizada, como o período de desen- volvimento associado, de Juscelino Kubitschek, e o período da Polí- tica Externa Independente. Sobre o período em questão, Resende28 faz análise pormenorizada da busca pela autonomia durante os anos conturbados da PEI. Verifica-se que o conceito de autonomia evolui do desenvolvimentismo associado do início do governo de Juscelino Kubitschek, passa pelos primeiros ensaios de maior auto- nomia com o lançamento da Operação Pan-Americana e ganha peso conceitual e prático na Política Externa Independente, quando San Tiago Dantas, Araújo Castro e outros pensadores e políticos nacio- nais passam a criticar abertamente o “congelamento do poder mun- dial” e a defender uma via independente – porém não neutra nem indiferente – de inserção internacional. Nos anos de Dutra e de Getúlio Vargas, o conceito de “pragma- tismo impossível”29 é representativo da ideia de autonomia pensa- da pelos formuladores de política externa da época. O Brasil sai da guerra sem ter mais o mesmo poder de barganha em relação aos Estados Unidos, uma vez que os principais problemas para a segu- rança da sociedade estadunidense passaram a ser observados na Ásia e em outras regiões afastadas das Américas. Além disso, o Brasil se colocava ideologicamente ao lado os estadunidenses.

27 BERNAL-MEZA, op. cit.. 28 RESENDE, op. cit. 29 HIRST, Mônica. O pragmatismo impossível: a política externa do segundo governo Vargas (1951/1954). Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1990.

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A autonomia observada nos movimentos da “equidistância pragmática” não mais existia, uma vez que a conjuntura política mudara. O Brasil promoveu uma política de “voto duplo” com os EUA no Conselho de Segurança, iniciou uma comissão econômica mista com Washington e assinou um acordo militar com os ameri- canos. Nenhuma dessas medidas, contudo, trouxe os ganhos que trouxera a política de Vargas durante a Guerra, uma vez que ficava patente que o País não possuía mais a mesma autonomia de inser- ção internacional, não tanto em razão da conjuntura doméstica, mas, nesse caso, principalmente em razão da situação da política internacional.

A significação do que seria a autonomia brasileira pode ser uma interessante chave de leitura para o impasse que existia entre os grupos vistos como “entreguistas” e “nacionalistas”, durante o governo democrático de Getúlio Vargas. Os “entreguistas” teriam uma leitura de autonomia menos impactante do que aquela dos “nacionalistas”, que perceberiam na autonomia a ideia de desen- volvimento autárquico, independente das relações com as grandes potências, especialmente com os EUA. Nesse sentido, os “entre- guistas” favoreceriam a troca de minérios brasileiros em nome da cooperação militar com os estadunidenses, pois isso não diminuiria nossa “autonomia”. Já os nacionalistas prefeririam a nacionalização dos processos produtivos de bens estratégicos, como aconteceu com o petróleo, por meio da criação da Petrobras. A polissemia dos conceitos, como visto em termos teóricos acima, se revela, na prática, nos anos inicias da década de 1950.

Diante do surgimento de teorias heterodoxas, como a da dete- rioração dos termos de troca e do avançar da “ameaça” comunista sobre países em desenvolvimento, o Brasil começou a rever sua

147 concepção de autonomia e seu projeto de inserção internacional no final da década de 1950. O pensamento de Hélio Jaguaribe, especialmente por meio da obra O Nacionalismo na atualidade brasileira, pode ser visto tanto como reflexo, na política externa, desses novos movimentos ideológicos e das mudanças políticas, quanto como a base do que viria a ser veiculado oficialmente pela Política Externa independente alguns anos mais tarde.

Em sua obra, Jaguaribe30 apresenta as ideias de “cosmopoli- tas” e “nacionalistas” acerca da política exterior. Essas ideias seriam, para os efeitos do presente estudo, os embasamentos ideológicos e políticos das diferentes visões de autonomia de política externa da época. Se os cosmopolitas entendiam que a PEB deveria aproximar- se dos ideais ocidentais, pois o País é culturalmente ocidental e tem uma economia complementar à dos países desenvolvidos, os nacionalistas percebiam que a ideologia por trás do alinhamento ocidental e da falsa complementaridade econômica minava aquele que deveria ser o principal vetor da política exterior: o desenvolvi- mento nacional. A autonomia, para os cosmopolitas, já vinham sendo exercida dentro de suas limitações naturais (ideológicas e econômicas). Para os nacionalistas, a autonomia significava muito mais: era a capacidade de promover o desenvolvimento nacional sem depender de outros países.

Para Jaguaribe, a linha de pensamento dos cosmopolitas de- veria ser revista, uma vez que era “anacrônico” para o estágio de desenvolvimento do País. A economia cada vez mais complexa e a sociedade cada vez mais urbana demandavam uma nova orientação de política externa. A perspectiva nacionalista seria melhor, desde que matizada, de modo a favorecer o desenvolvimento do País.

30 JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958.

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A ideia do desenvolvimento como vetor da política externa, que é gestada por Jaguaribe, ganha força no discurso oficial brasi- leiro durante a Política Externa Independente. Lançada quando da posse de Jânio Quadros, a PEI serviria de contraponto mais hete- rodoxo à política econômica ortodoxa a ser implementada pelo governo. A PEI, com sua concepção de autonomia que resgatava elementos do pensamento de Jaguaribe e de outros autores do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), foi um momento de ruptura, primeiramente no discurso e depois na prática, com relação ao projeto de inserção internacional prévio.

Durante a gestão de Afonso Arinos, primeiro dos chanceleres da PEI, houve os primeiros ensaios de maior autonomia: o Brasil colocaria-se-ia, no discurso, a favor do fim da descolonização, do fim da segregação racial e da diversificação do comércio exterior nacional31. Contudo, uma das críticas ao projeto iniciado por Afonso Arinos é o de que seria ele um programa de “neutralismo”, pouco implementado e afastado da dimensão do “desenvolvimento”, que deveria guiar a inserção externa do País32.

O pensamento de Araújo Castro, refletindo em grande medida a concepção de autonomia que visava dar ao Brasil o direito de se inserir na ordem internacional de modo a universalizar suas rela- ções e dinamizar o desenvolvimento doméstico, pode ser vislumbrado em seu famoso discurso dos Três Ds. Proferido por ocasião da abertura da Assembleia Geral da ONU de 1963, o discurso destaca

31 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Afonso Arinos de Mello Franco: atualidade e paradoxo. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1964). 1. ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013, v. 3. 32 CRUZ, José Humberto de Brito. Aspectos da evolução da diplomacia brasileira no período da política externa independente (1961-1964). In: Ensaios de História Diplomática do Brasil (1930-1986). Brasília: FUNAG/IPRI, 1989.

149 o desenvolvimento, o desarmamento e a descolonização como os princípios organizadores da política externa brasileira. O desen- volvimento, já analisado acima, era o vetor da ação externa, e tornava-se ainda mais central para o País naquele momento de ins- tabilidade interna, no qual o governo buscava implementar refor- mas estruturais em diversos setores da economia. O desarmamento sempre foi tema muito caro a Araújo Castro33, e já em seu discurso se observava a lógica de que desarmar o mundo serviria não apenas para promover a paz e a estabilidade, mas também o desenvolvi- mento, dado que aumentaria os recursos materiais para esse fim. Por fim, a descolonização figurou como elemento mais superficial no discurso34, havendo apenas a menção de que o País era contra qualquer tipo de colonialismo, político, econômico ou policial.

A PEI pode ser vista, assim, como um ensaio – primeiro no âmbito do discurso, com Afonso Arinos como chanceler, e depois no âmbito prático, durante as gestões de San Tiago Dantas e Araújo Castro – de autonomia em um contexto no qual o Brasil já mos- trava que seu desenvolvimento lhe garantiria um modelo de inser- ção internacional menos associado aos EUA.

Terminado o período democrático, com o governo militar surgiria um novo contexto político doméstico, bem como a política internacional passaria por transformações significativas, que cau- sariam, naturalmente, descontinuidades no projeto de inserção externa do País, e uma resignificação da noção de autonomia na política exterior.

33 SARDENBERG, Ronaldo M. João Augusto de Araújo Castro: diplomata. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1964). 1. ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. v. 3. 34 VARGAS. J. A. C. Um Mundo que também é nosso: o pensamento e a trajetória diplomática de Araújo Castro. Brasília: FUNAG, 2013, p. 126.

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A despeito do “passo fora da cadência”35 que foi o governo de Castelo Branco, momento em que há um retorno ao alinhamento com os EUA, o regime militar, em linhas gerais, aplicou o que Gelson Fonseca36 chama de “autonomia pela distância”. Conceitua- se “autonomia pela distância” como sendo uma política de não aceitação automática dos regimes internacionais prevalecentes e, sobretudo, a crença no desenvolvimento parcialmente autárquico, voltado para a ênfase no mercado interno; consequentemente, uma diplomacia que se contrapõe a certos aspectos da agenda das grandes potências para preservar a soberania do Estado nacional37. Atitudes que caracterizam essa perspectiva de autonomia são as recorrentes desavenças com os Estados Unidos em matérias como direito do mar, desarmamento e comércio, ou ainda a ausência da proposição de candidatura brasileira a assento não permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas de 1968 a 1988.

Sobre esse afastamento, Selcher38 destacou que o Brasil man- teve baixo perfil de atuação ao não demonstrar grande interesse na eleição para o Conselho de Segurança no período entre 1969 e o fim do regime militar, na medida em que dele participar acentuaria algumas vulnerabilidades políticas do País, como a leniência diante do colonialismo português na África, as relações com o regime de Pretória, as violações de direitos humanos e o regime de governo autoritário. Essa visão de que o Brasil, devido a algumas escolhas de polí- tica doméstica, estaria isolando-se no Conselho é compartilhada

35 CERVO e BUENO, op. cit. 36 FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais: poder e ética entre as nações. São Paulo: Paz e Terra, 1998. 37 VIGEVANI e CINTRA, op. cit., p. 31-61, 2003. 38 SELCHER, Wayne A. Brazil’s multilateral relations: between first and third worlds, p. 45.

151 por Araújo Castro, que, em telegrama de 196839, expressa, na posi- ção de embaixador brasileiro na ONU, que

faltaria ao meu dever se não confiasse a Vossência minha grande preocupação com a visível deterioração da posição brasileira na ONU, em virtude do acumulado de tantos votos negativos (contrários às posições africanas): prevejo grandes dificuldades para quaisquer pretensões brasileiras a posições eletivas na ONU, dado o desapontamento e mesmo a franca irritação de inúmeros países africanos, que já não escondem sua hostilidade para conosco. A dificuldade de eleição era patente, e, diante desse cenário, os líderes do regime militar não se esforçavam para garantir a pre- sença brasileira no órgão. Muito antes pelo contrário: a ideia vigente de um modelo de inserção internacional autônomo autárquico afas- tava qualquer interesse em superar as dificuldades que se coloca- vam para o Brasil no âmbito multilateral da ONU.

Em depoimento posterior ao período em que ocupou o cargo de chanceler, Saraiva Guerreiro apresentou sua visão de que seria irrelevante o Brasil ser eleito temporariamente ao órgão – pers- pectiva hoje pouco presente entre os principais formuladores da PEB, como se verá adiante. O ex-chanceler, que foi um dos grandes formuladores da política externa do regime militar e promotor da autonomia pela distância, indicou que:

Nunca fui partidário da presença continuada do Brasil no Conselho. Sempre considerei que o Brasil participar do Con- selho era bom para o Conselho, não necessariamente para nós; sobretudo não havia por que nos desgastarmos fazendo campanha eleitoral em disputas com pequenos países, mere- cedores de todo nosso apreço, em troca de nada. Pertencer ao Conselho, como membro temporário, não acrescenta ao nosso

39 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Telegrama nº 1.720 da Missão do Brasil junto às Nações Unidas para a Secretaria de Estado, de 12 de dezembro de 1968. Arquivo Histórico, caixa 390.

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prestígio, mas sim ao do Conselho. Hoje, com o fim da Guerra Fria, e a possibilidade de o Conselho funcionar, caberia uma reavaliação.40 É interessante destacar que o conceito de “autonomia pelo distanciamento” para caracterizar boa parte do regime militar não é pacífico na literatura especializada. Lessa, Couto e Farias41, por meio de estudos de caso da participação brasileira em regimes da época, como os de meio ambiente e de comércio, argumentam que não se pode englobar toda a ação multilateral brasileira no período da Guerra Fria dentro do marco conceitual de autonomia pela dis- tância. Os autores indicam que o Brasil esteve longe de manter sistemática distância, ausência, isolacionismo ou não participação, e que, mesmo quando esse afastamento existiu, ele não foi neces- sariamente decorrente de uma tática brasileira. No presente estudo, optou-se por seguir próximo ao argumen- to de Fonseca Jr., que é respaldado por vários outros acadêmicos42. Nesse sentido, cabe agora adensar um pouco mais o significado de autonomia pela participação, que teria caracterizado o modelo de inserção do Brasil ao longo da década de 1990 e seria o contrapon- to ao distanciamento do regime militar aos órgãos multilaterais.

Fonseca Jr.43 desenvolve o termo autonomia pela participação, que será adaptado por Vigevani e Cintra44, ao cunharem o conceito de autonomia pela integração. A ideia era de que o Brasil, desde a

40 GUERREIRO, Ramiro Saraiva. Lembranças de um empregado do Itamaraty. Rio de Janeiro: Siciliano, 1992, p. 42-43. 41 LESSA, Antonio C.; COUTO, Leandro F.; FARIAS, Rogério de S. Distanciamento versus engajamento: alguns aportes conceituais para a análise da inserção do multilateralismo brasileiro (1945-1990). Contexto Internacional, 2010, v. 32, n. 2. 42 Vide PINHEIRO (2004), LIMA (2003), VILLA (2006), VIGEVANI e OLIVEIRA (2007), VIGEVANI e OLIVEIRA (2003) e VIGEVANI e CINTRA (2003). 43 FONSECA JR. (1998). 44 VIGEVANI e CINTRA, op. cit., p. 283.

153 redemocratização, deveria aderir aos regimes internacionais, in- clusive os de cunho liberal, sem a perda da capacidade de gestão da política externa; nesse caso, o objetivo seria influenciar a própria formulação dos princípios e das regras que regem o sistema inter- nacional. O Brasil passaria a ser um global trader, e buscaria mitigar os efeitos nocivos da dependência excessiva diante dos EUA ou do afastamento conflitivo por meio da participação nos regimes inter- nacionais que se remodelavam no contexto internacional de fim da Guerra Fria. O Brasil mostrar-se-ia interessado por assuntos globais, como a reestruturação do Sistema Multilateral de Comércio, o aden- samento do regime de mudanças climáticas e o diálogo no regime de direitos humanos, bem como diversificaria suas relações comer- ciais, sem, contudo, assumir postura conflitiva diante dos EUA.

Não se pode perder de vista que a conceituação proposta por Fonseca Jr. atendeu às expectativas de, com uma sutileza de voca- bulário, apresentar o padrão de inserção internacional do Brasil em dois períodos recentes da história da política exterior brasilei- ra. A concepção de autonomia não perdeu sua relevância dentro do planejamento da política exterior brasileira; o que houve foi uma alteração nos meios para se alcançar a consecução das diretrizes autonomamente estabelecidas. A leitura proposta por Fonseca Jr. repercute até os dias atuais na determinação do projeto de inser- ção internacional, como se pode ver por meio da adaptação de seu conceito, em anos mais ressentes.

Vigevani e Cepaluni45 estabelecem que o governo Lula teria promovido novo tipo de autonomia, chamando-a de “autonomia pela diversificação”. A autonomia permaneceria, mas ela passaria a se caracterizar pela adesão do País aos princípios e às normas in-

45 VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Contexto internacional [online], 2007. v. 29, n. 2, p. 273-335.

154 ternacionais por meio de alianças Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais (China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio etc.), pois se acredita a que eles re- duziriam as assimetrias nas relações externas com países mais pode- rosos e aumentariam a capacidade negociadora nacional. Mecanis- mos de concertação como BRICS e IBAS seriam exemplos de como o Brasil buscaria exercer sua autonomia em um ambiente interna- cional economicamente mais multipolar. A ideia de autonomia pela diversificação pode ser encontrada também em outros estudos consagrados, que focam não necessa- riamente no aspecto da autonomia, mas, sim, no das continuidades e descontinuidades da política exterior brasileira desde a Procla- mação da República. O estudo de Cervo46 é emblemático nesse sen- tido. O autor utiliza a ideia de paradigmas – liberal-conservador, desenvolvimentista, normal e logístico – que pretendem organizar o objeto de observação – a política externa – e lhe dar inteligibilidade. São os paradigmas conceitos analíticos que fazem referência não necessariamente à política externa em si, mas ao papel do próprio Estado na conformação do projeto de inserção internacional do País.

Para o caso brasileiro, defende o autor que, ao longo da histó- ria imperial e republicana, o País passou por quadro paradigmas de política externa: (1) paradigma liberal-conservador, que predo- minou desde a independência até 1930 e foi basicamente orga- nizado por um Estado que manobrava a política exterior com vistas a atender os interesses de seus grandes dirigentes, ou seja, dire- cionava a inserção internacional brasileira em nome dos grandes produtores de bens agrícolas internacionalmente comercializáveis; (2) paradigma desenvolvimentista, que vigorou entre 1930 e 1989 e se pautava em uma visão realista e estadocêntrica de mundo, en-

46 CERVO (2008), op. cit.

155 tendendo ser a política externa o vetor do desenvolvimento indus- trial de uma complexa sociedade em transição e o Estado o grande promotor dessa mudança; (3) normal, ou neoliberal, que vigora entre 1990 e 2002 e representa o triunfo econômico do monetaris- mo sobre o estruturalismo cepalino, consignando ao Estado somente a função de buscar estabilidade econômica; (4) logístico, que vigora nos tempos atuais e mescla elementos dos dois paradigmas ante- riores, criando um “estado empresário”, indutor da atividade eco- nômica, pública e privada, e que buscaria auxiliar na realização dos diferentes interesses nacionais.

Cervo atribui as grandes transformações na política exterior à substituição de um paradigma de Estado por outro, por meio da transformação ou substituição das elites políticas. Ele identifica, especificamente, a Proclamação da República, a Revolução de 1930, a eleição de Fernando Collor de Mello e a eleição de Lula como momentos-chave de transformação. No primeiro momento, a Procla- mação da República introduziria o paradigma liberal-conservador, que fazia da política externa mecanismo para a promoção da ex- portação do café produzido pela elite nacional. A Revolução de 1930 introduziria novo paradigma, o desenvolvimentista, que visava a aumentar a intervenção estatal no desenvolvimento do País. Cabe ressaltar a importância de formulações teóricas – que influenciam a historiografia latino-americana atualmente – na conformação dos ideais do paradigma desenvolvimentista: o pensamento cepalino, o pensamento estruturalista e a teoria da dependência servem, segun- do Cervo, de arcabouço para a formulação do paradigma. A eleição de Fernando Collor de Mello significa nova ruptura paradigmática, introduzindo o Estado normal, alinhado aos ideais neoliberais de países centrais. Por fim, há o paradigma logístico, que consiste em modelo pós-desenvolvimentista de inserção internacional, no sen-

156 tido de que busca superar a tônica de dependência estrutural cepa- lina sem se deixar levar pelas estratégias de liberalização incontro- lada e de Estado passivo, como defendia o paradigma normal. O Estado logístico seria aquele capaz tanto de prover a estabilidade econômica quanto de transferir à sociedade parte das responsabi- lidades do crescimento econômico, sem deixar de auxiliá-la na con- secução do objetivo maior do desenvolvimento nacional.

Embora os objetos de estudo de Cervo, Fonseca Jr. e Vigevani e Cepaluni sejam distintos, a compreensão de um complementa o entendimento do outro: a leitura paradigmática é capaz de ofere- cer argumentos importantes para se compreender as mudanças na conceituação da autonomia dentro da política exterior brasileira. Pode-se considerar que o novo paradigma (logístico) de inserção internacional caminha em consonância com o conceito de autono- mia pela diversificação, acima apresentado: o Brasil, possuidor de recursos econômicos razoáveis, pondera seu conceito de autonomia por meio de inserção internacional diversificada, da qual fazem parte atores estatais e não estatais. É nesse contexto que se deba- tem, na sequência, quais os desafios que se apresentam para o futuro do conceito de autonomia e para o futuro do paradigma logístico no Brasil.

3. A SIGNIFICAÇÃO DE AUTONOMIA NO ATUAL CENÁRIO DE GLOBALIZAÇÃO A presente seção busca fazer breve reflexão acerca do futuro da noção de autonomia para a política externa brasileira que ainda se pauta no paradigma logístico para o Estado. Busca-se mostrar que esses pensamentos de autonomia e de inserção internacional não podem ir de encontro ao atual processo de globalização e de

157 internacionalização das cadeias produtivas globais. Deve, pelo con- trário, buscar incluir de maneira não alinhada e não automática os países no contexto da internacionalização da produção de bens de consumo de maior valor agregado. Segundo Cesar e Sato47, graças aos avanços nas tecnologias da informação, há hoje no mundo uma nova geografia do comércio internacional, ligada ao rápido avanço da globalização dos proces- sos produtivos. Nesse contexto, o comércio internacional deixa de se fazer por meio das trocas de produtos finais acabados e passa a ser caracterizado pelas trocas de componentes de um produto. Essa nova dinâmica, segundo os autores, vai de encontro à lógica de negociação adotada pelos Estados no sistema multilateral de co- mércio, marcadamente no que se refere às negociações da Rodada Doha. Estados como o Brasil, ao envidarem esforços em negocia- ções que reduzam as tarifas de bens finais, sem atentar para a importância de se estabelecer novo sistema para regras de origem e mecanismos antidumping de peças e componentes, não estariam atuando de acordo com a lógica do futuro, mas, sim, por meio da análise das trocas comerciais do passado. Os autores apontam que não se deve desmerecer a atuação da diplomacia brasileira no contexto das negociações multilaterais: o País logrou, por meio de mecanismos de concertação específicos, como o G-20, fazer parte do seleto grupo de países-chave para o avançar da Rodada – ainda que represente menos de 2% do comér- cio mundial. No entanto, o País não estaria aproveitando essa nova oportunidade para propor alternativas inovadoras que pudessem trazer a negociação para mais perto da realidade do comércio mun- dial, que já é bem distinta daquela de quando a Rodada foi lançada,

47 CESAR, Susan Elizabeth Martins; SATO, Eiiti. A Rodada Doha, as mudanças no regime do comércio internacional e a política comercial brasileira. Revista Brasileira de Política Inter- nacional [online], 2012. v. 55, n. 1, p. 174-193.

158 há mais de uma década. Esse exemplo do comércio internacional é aqui apresentado, pois é o que deixa mais clara a relação anacrônica que começa a se estabelecer entre a vontade das instituições gover- namentais de resguardar sua autonomia e a soberania do Estado durante negociações internacionais e o atual contexto de globaliza- ção, que permeia não apenas questões comerciais, mas todo o cena- rio internacional. Diante do exposto, indaga-se se é possível que venha a acon- tecer uma mudança na significação do conceito de autonomia na política externa. A resposta tende a ser afirmativa. As transfor- mações na interpretação de “autonomia” por que passou o Brasil nas últimas décadas podem servir de exemplo e de reforço da ideia teórica acima apresentada de polissemia conceitual e de mudança nos conceitos de acordo com o momento histórico. Faz-se sempre necessário adaptar o pensamento político e diplomático a novos contextos internacionais, de modo a barganhar o máximo de ganhos materiais para o desenvolvimento nacional. No atual contexto de intensificação da globalização, o conceito de autonomia precisa passar por uma revisão – seja no Brasil, em outros países latino- americanos e em vários Estados –, de modo a não ser compreen- dido como a contraposição ao “outro” ou como a vontade de desen- volvimento autárquico. A autonomia não deve ser perdida, mas deve ser equacionada, de modo a não prejudicar a integração dos países ao processo de adensamento da interdependência político- econômica global.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas considerações teóricas sobre a história dos concei- tos, pode-se concluir que a linguagem é o espelho da realidade social. Nesse sentido, o processo de mudança na sociedade é causa central

159 nas transformações por que passam os conceitos e as ideias aventa- das pelo mesmo conceito. Assim, utilizando um exemplo apresen- tado acima, se a ideia de autonomia na dependência surge no contexto político-econômico de necessária baranha nacionalista, em nome da consecução de interesses materiais – e por isso a concepção de dependência e de auxílio ainda se fazia presente no discurso – a percepção da autonomia pelo distanciamento do período militar já era outra. O Brasil da década de 1970 já não tinha uma comple- mentaridade econômica em relação ao mercado estadunidense, e já não precisava sustentar uma aproximação incondicional em nome de seu desenvolvimento. O conceito de autonomia ganhava novos contornos, pois a realidade social daqueles que pensavam a ideia de autonomia não era mais aquela das décadas de 1930, 1940 e 1950. O mesmo vale para distanciar a significação de autonomia du- rante o regime militar – embora não seja pacífico entre acadêmicos, hoje, que o pensamento diplomático efetivamente buscasse o dis- tanciamento – e o período imediatamente posterior. Durante a fase da política exterior considerada “normal”, nos termos do professor Cervo (2008), o Brasil adensou sua presença em regimes multilaterais. A ideia era a de que não se poderia influenciar a reconfiguração da ordem internacional do pós-Guerra Fria sem estar presente nos foros que debateriam tal reestruturação. Ademais, o Brasil não mais tinha tantas “hipotecas” que constrangiam sua ação externa, como a do apoio ao colonialismo e o não respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente, observadas durante o regime militar. A polissemia do mesmo conceito – “autonomia” – também pode ser verificada no estudo histórico. A ideia de autonomia não varia apenas de país para país na América Latina, mas também dentro do próprio Brasil e em um mesmo contexto histórico. A polissemia fica clara nos diferentes projetos de Brasil que se apresentavam na década de 1950 e, em alguma medida, nos anos iniciais da década

160 de 1960. Os “entreguistas” tinham uma visão de autonomia criti- cada pelos “nacionalistas”, e vice-versa. O estudo de Hélio Jaguaribe foi capaz de analisar de maneira precisa essa dicotomia que se desenhava e que tinha como pano de fundo central a percepção de que o projeto de Brasil deveria, necessariamente, se pautar na pro- moção do desenvolvimento nacional. A ideia do desenvolvimento como vetor de política externa segue presente no pensamento diplomático brasileiro. O desafio contemporâneo, contudo, é distinto daquele da década em que Jaguaribe escreveu O nacionalismo na atualidade brasileira. Atual- mente, a interdependência político-econômica demanda que os Esta- dos desenvolvam um significado de autonomia que não limitem sua integração aos processos produtivos internacionais. Entrar nas “cadeias produtivas globais” não significa abrir de maneira indis- criminada o País para o mercado internacional. Significa, isso, sim, aproximar-se de processos produtivos mais dinâmicos e eficientes, sem esquecer as lições que a história do conceito de autonomia pode fornecer.

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O PATRIOTISMO EM JOAQUIM NABUCO

Júlia Vita de Almeida

RESUMO Este artigo trata da militância transnacional de Joaquim Nabuco em favor da abolição da escravatura no Brasil. A mobilização da opinião pública internacional em campanha contrária à posição oficial do governo brasi- leiro foi vista por críticos da época como uma atitude antipatriótica. Busca- se, neste trabalho, demonstrar que, pelo contrário, Nabuco agiu conforme um conceito próprio de patriotismo, antecipando uma tendência que se consolidaria um século mais tarde.

PALAVRAS-CHAVE Campanha abolicionista; militância transnacional; patriotismo.

INTRODUÇÃO A concepção de Joaquim Nabuco sobre patriotismo, embora pouco estudada, tem seu lugar entre as maiores contribuições dessa personalidade ao pensamento diplomático brasileiro. Sua militân- cia transnacional pela causa abolicionista, que despertou grande polêmica à época, fundamentou-se na premissa de que a soberania nacional era limitada por considerações maiores de ordem moral e

165 humanitária. Nesse sentido, o exercício da diplomacia pública contra uma política interna de seu país não significaria falta de patriotismo, mas, pelo contrário, a afirmação do verdadeiro patriotismo. O verdadeiro patriota, para Nabuco, era aquele que zelava pelo interesse nacional sem, no entanto, colidir com o bem-estar e a segurança de outros povos. O amor à pátria consistiria, além disso, na leitura adequada desse interesse. Nabuco acreditava que a es- cravidão não o representava, porque era a variante sociológica que explicaria, de maneira abrangente, o atraso brasileiro. Sua campa- nha, portanto, não era pela simples emancipação dos escravos, mas, sim, pela destruição dos efeitos da escravidão. A articulação de forças externas contra o Brasil mas para o bem do Brasil traduzi- ria, assim, a postura verdadeiramente patriótica de Nabuco.

Essa atuação transnacional em prol de uma causa contrária à posição oficial do governo pode ser considerada vanguardista, na medida em que antecipou uma tendência que só se consolidaria no final do século XX. O argumento da limitação da soberania nacional em favor da proteção dos direitos humanos, advogado com ênfase pelos diplomatas ocidentais de nossa geração, só ganhou força a partir dos anos 1950 e demorou meio século para se universalizar. Mesmo assim, há, ainda, grande resistência em aceitar que o res- peito a regras internas não engendra impunidade do Estado no âmbito internacional. Para abordar de maneira global o tema em foco, o presente trabalho se valerá de todos os escritos e discursos de Nabuco que o tangenciaram. Iniciaremos nosso esforço analítico com algumas palavras sobre sua trajetória política que culminou na Campanha Abolicionista, seguidas de uma exposição sobre o conteúdo dessa campanha (Parte 1). A dimensão transnacional de sua militância

166 será abordada separadamente, o que permitirá ingressar na polêmi- ca que suscitou no âmbito interno (Parte 2). Na sequência, serão estudados os argumentos levantados por Nabuco para defender sua postura (Parte 3), antes de tecermos nossas considerações finais sobre a importância dessa contribuição à diplomacia brasi- leira contemporânea.

1. JOAQUIM NABUCO E A CAMPANHA ABOLICIONISTA 1.1. Formação do Nabuco abolicionista Filho do futuro senador José Tomás Nabuco de Araújo, Joaquim Nabuco nasceu em 1849 no Recife1. Passou sua infância no Engenho Massangana com a madrinha Ana Rosa Falcão de Carvalho e em contato direto com a escravidão. Ele afirma datar dessa época quase todos os seus moldes de ideias e de sentimentos, o que fica claro no seguinte trecho de Minha Formação:

Estive envolvido na campanha da Abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no entanto, a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesque- cido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando- me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madri- nha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando

1 O suporte factual para esta breve exposição biográfica foi obtido na cronologia elaborada por Manuel Correia de Andrade para o Catálogo do Arquivo Joaquim Nabuco da FUNDAJ (p. 6-11).

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mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vi- vera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.2 [grifos nossos]

Em 1857, após a morte de sua madrinha, mudou-se para a residência dos pais no Rio de Janeiro e lá realizou seus estudos de nível primário e secundário. Aos 17 anos, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e, três anos depois, transferiu o curso para a Faculdade do Recife, onde escreveu A escravidão e de- fendeu, em um júri, um escravo que assassinara seu senhor, escan- dalizando a elite local.

Após a formatura, retornou ao Rio de Janeiro para advogar no escritório de seu pai e se iniciar no jornalismo. Passou o ano de 1872 na Europa e, quatro anos depois, foi viver nos Estados Unidos como adido de legação. Essas duas experiências pioneiras no es- trangeiro foram relatadas e contrastadas em Minha Formação e são diretamente responsáveis pela consolidação do pensamento político do jovem Nabuco.

Ao retornar ao Brasil, foi eleito deputado geral pela província de Pernambuco. Durante sua legislatura, que se iniciou em 1879, inaugurou, juntamente com seus colegas deputados, a campanha em favor da abolição da escravatura. No ano seguinte, fundou a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, o que aprofundou as di- vergências com o seu partido, o Liberal, e prejudicou sua reeleição3.

2 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 182. 3 A respeito de sua candidatura, Nabuco comenta com Charles Allen: “foi uma tentativa muito ousada essa, de lutar contra a escravidão na cidade que dizem ser a capital do café. Se for derrotado, como conto ser, irei provavelmente para Londres por alguns anos, já que quase nada poderei fazer fora do Parlamento, exceto educar o povo através de panfletos e escritos e isso posso fazer melhor de Londres do que daqui”. NABUCO, Joaquim. Diários. Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, v. 1, 2005, p. 245.

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Derrotado nas eleições para a Câmara dos Deputados, em que disputava um assento pela Corte como representante dos abolicio- nistas, partiu para o que denominou de exílio voluntário na Europa. Em Londres, atuou como advogado e jornalista correspondente do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e do jornal uruguaio La Razón. Foi lá onde escreveu e publicou, em 1883, O Abolicionismo.

No ano seguinte, empenhou-se em nova campanha eleitoral para deputado por Pernambuco, defendendo a causa do abolicio- nismo. Seus discursos e conferências foram reunidos e publicados no livro A campanha abolicionista em 1885. Ao vencer a eleição e assumir o cargo, destacou-se pela defesa do projeto de libertação dos sexagenários, embora o considerasse demasiado moderado, e pelas críticas feitas às modificações que transformaram o projeto na Lei Saraiva-Cotegipe.

Não conseguiu, no entanto, reeleger-se, por isso decidiu dedicar- se ao jornalismo. Escreveu e publicou, em 1886, sérias críticas ao governo por meio de opúsculos como O Erro do Imperador e O Eclipse do Abolicionismo. Depois de uma eleição exitosa no Recife, conse- guiu voltar à Câmara dos Deputados, no ano seguinte, para concluir sua luta em favor da abolição.

Em 1888, teve uma audiência particular com o Papa Leão XIII para relatar o movimento pelo abolicionismo no Brasil. Teria, com isso, possivelmente influenciado o pontífice na elaboração duma encíclica contra a escravidão. Ainda nesse ano, apoiou a aprovação da Lei Áurea.

Esta breve cronologia da trajetória de Nabuco como político abolicionista termina aqui4, o que nos permite avançar para a aná- lise do conteúdo de sua memorável campanha.

4 Como diria Nabuco em Minha Formação, “a queda do Império pusera fim à minha carreira” (p. 239).

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1.2. Para além da emancipação dos escravos “Acabar com a escravidão não nos basta, é preciso destruir a obra da escravidão”5. Essa frase sintetiza muito bem o teor da Campanha Abolicionista de Nabuco, cujo objetivo transcendia a mera emancipação dos escravos. Ele trabalhou com um conceito amplo de escravidão, que norteou não apenas sua militância na causa abolicionista, como também lhe deu suporte para compre- ender melhor o Brasil e a identidade dos brasileiros.

Para Nabuco, a escravidão, mais do que o status jurídico dos negros, era um sistema social que conformava todos os âmbitos da vida pública e privada brasileira. Do trecho, a seguir, de O Aboli- cionismo é possível captar essa noção:

Assim como a palavra abolicionismo, a palavra escravidão é tomada neste livro em sentido lato. Esta não significa somente a relação do escravo para com o senhor; sig- nifica muito mais: a soma do poderio, influência, capital, e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no inte- rior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embru- tecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos; e por último, o espírito, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína.6 [grifos nossos] A escravidão era, assim, vista por ele como o princípio jurídico que definia toda a sociedade brasileira. No âmbito público, refletia-

5 NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife: Eleições de 1884. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 58. 6 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 29.

170 se na política e na economia; no âmbito privado, nas questões mo- rais e religiosas. Como resultado, a escravidão seria responsável pelo atraso de nosso país. No que tange ao espaço público da política, a escravidão fun- damentava o predomínio do Poder Executivo sobre o Legislativo. O raciocínio de Nabuco segue uma ordem lógica. A escravidão, por ser incompatível com a imigração espon- tânea, não convidaria ao influxo de ideias novas e, por ser incapaz de invenção, seria igualmente refratária ao progresso. Por conse- quência, ela teria impedido a formação de uma opinião pública, da consciência de um destino nacional. Sem essa força de transforma- ção social, nosso sistema representativo era “um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal, e senadores e deputados só tomam a sério o papel que lhes cabe nessa paródia da democra- cia pelas vantagens que auferem”7.

Além disso, continua ele8, o governo pessoal que aqui predo- minava não era resultado da prática de um regime monárquico, mas, sim, da prática da escravidão pelo País. Afinal, um povo habi- tuado à escravidão não poderia dar valor à liberdade e tampouco aprenderia a governar-se a si mesmo. Daí a abdicação geral das fun- ções cívicas e o indiferentismo político que tanto o caracterizavam. Já no que se refere à economia, Nabuco argumenta que a es- cravidão impediu ou atrasou o desenvolvimento de classes sociais no Brasil9. Dentre as classes cujo desenvolvimento foi impedido pela es- cravidão, ele menciona a dos lavradores não proprietários e a dos

7 Ibidem, p. 167. 8 Ibidem, p. 169. 9 Ibidem, p. 155-159.

171 moradores do campo ou do sertão – que, juntas, constituíam a quase totalidade da população brasileira. Sem meios nem recurso algum, ensinada a considerar o trabalho como uma ocupação ser- vil, sem mercado consumidor para seus produtos e longe da região do salário, essa população estaria condenada a uma vida de subsis- tência e de práticas clientelares com os senhores de escravos que as protegiam.

Como classes sociais cujo desenvolvimento foi postergado em razão da escravidão, Nabuco cita a dos operários, industriais e comerciantes em geral. A escravidão não consentiria com a exis- tência de classes operárias, pois não seria compatível com a digni- dade pessoal do artífice nem com o regime de salário. Por um lado, o operário, para diferenciar-se do escravo, imbui-se de um sentimen- to de superioridade avesso ao trabalho. Por outro lado, os empregado- res, habituados a mandar em escravos, não respeitam os operários. A escravidão tampouco seria compatível com a indústria, pois seu espírito mata cada uma das faculdades humanas de que provém essa última – iniciativa, invenção, energia individual –, e cada um dos elementos de que ela precisa – associação de capitais, abundância de trabalho, educação técnica dos operários e confiança no futuro. Em relação ao comércio, a escravidão fecha-lhe, por desconfi- ança e rotina, o interior, cujos consumidores só recebem a mercado- ria por encomenda da Corte ou por meio dos mascates. Os principais fregueses do comércio são os proprietários de escravos, já que fal- tam indústria e trabalho livre. Por isso, no Brasil, ele seria uma força inativa, sem estímulos e apenas um prolongamento da escravidão. O comércio não teria, afinal, como florescer em um regime que não lhe consentia entrar em relações diretas com os consumidores e que não elevava a população do interior a essa categoria.

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No que tange à vida privada dos brasileiros10, Nabuco proble- matiza o fato de a Igreja ser conivente com o mercado de entes hu- manos, o que lhe teria destruído a face ideal e explicaria seu cará- ter materialista, tornando-a incapaz de desempenhar na vida social do País o papel de uma força consciente. Ele chama atenção, ainda, para a imoralidade que a escravidão impõe à população, que se habitua a ela: “a escravidão passou sobre o território e os povos que a acolheram como um sopro de destruição”11. A concepção abrangente de Nabuco sobre a escravidão encon- tra respaldo no pensamento de Moses Finley, que, na obra Escravidão antiga e ideologia moderna12, desenvolveu o conceito de sociedade escravista. Por outros caminhos, Finley chega à mesma conclusão que Nabuco de que, nesse tipo de sociedade, a relação entre o senhor e o escravo é tão central que serve de modelo para todas as outras relações sociais. Sua linha de raciocínio começa pela distinção de uma socie- dade com escravos de uma sociedade escravista. Aquela sempre existiu em nossa civilização, ao passo que essa última só teve lugar na Grécia, em Roma, no sul dos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil. Nas sociedades com escravos, eles não são considerados mer- cadorias, ao contrário do que acontece nas sociedades escravistas. O tratamento do escravo como mercadoria, por sua vez, con- tamina as relações econômicas e políticas da sociedade de tal ma- neira, como vimos em Nabuco, que seu contágio alcança também a esfera privada dos cidadãos. Dentro dessa perspectiva ampla de sociedade escravista, a Cam- panha Abolicionista de Nabuco visava a conciliar todas as classes,

10 Ibidem, p. 163-165. 11 Ibidem, p. 149. 12 FINLEY, Moses. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991.

173 em vez de indispor umas contra as outras, e buscava a emancipa- ção no interesse não apenas do escravo, mas também do próprio senhor e da sociedade. Por essa razão, não concordava que a es- cravidão fosse suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos por insurreições ou atentados locais – “a propaganda aboli- cionista é dirigida contra uma instituição e não contra pessoas”13. Propunha que a emancipação fosse feita por lei, imediatamente e sem indenização – “não há nada que nos obrigue a continuar uma prática reputada criminosa pelo mundo inteiro, somente porque não temos dinheiro para desapropriá-la”14.

Partindo de uma definição ampla de escravidão, Nabuco en- tendeu o atraso brasileiro e deu um caráter específico a sua Cam- panha Abolicionista, conforme visto acima. Mas, além disso, essa visão lhe permitiu compreender a identidade dos brasileiros. Foram vários os efeitos da escravidão sobre a nossa popula- ção, segundo Nabuco. O primeiro foi a miscigenação entre negros e brancos, que ele qualifica como “a mistura da degradação servil de uma com a imperiosidade brutal da outra”15. Esse resultado nega- tivo não seria devido à miscigenação em si, mas ao contexto em que ocorreu – “não é do cruzamento que se trata; mas, sim, da re- produção do cativeiro, em que o interesse verdadeiro da mãe era que o filho não vingasse”16. Em outras palavras,

Admitindo-se, sem a escravidão, que o número dos africa- nos fosse o mesmo, e maior se se quiser, os cruzamentos teriam sempre ocorrido; mas a família teria aparecido desde o começo. Não seria o cruzamento pelo concubinato, pela promiscuidade das senzalas, pelo abuso da força do

13 NABUCO (2003), op. cit., p. 47. 14 NABUCO (2005a), op. cit., p. 50. 15 NABUCO (2003), op. cit., p. 128. 16 Ibidem, p. 132.

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senhor; o filho não nasceria debaixo do açoite, não seria leva- do para a roça ligado às costas da mãe, obrigada à tarefa da enxada; o leite desta não seria utilizado, como o de cabra, para alimentar outras crianças, ficando para o próprio filho as últimas gotas que ela pudesse forçar do seio cansado e seco; as mulheres não fariam o trabalho dos homens, não iriam para o serviço do campo ao sol ardente do meio-dia, e poderiam, durante a gravidez, atender ao seu estado.17 [grifos nossos] Além de impedir o aparecimento regular da família nas ca- madas fundamentais do País, a escravidão manteve os negros em estado puramente animal, negou-lhes a dignidade pessoal e fez deles o jogo de caprichos cruéis da outra raça. A escravidão, por ter sido praticada também no âmbito do- méstico da família, exerceu sobre a população brasileira uma ação psicológica mais extensa e profunda do que qualquer outro fator social. Ela cercou os brasileiros de um ambiente fatal a quaisquer qualidades nobres, humanitárias e progressivas dos seres humanos. Ela criou, ademais, um ideal de pátria grosseiro, mercenário, ego- ísta e retrógrado, bem como “uma atmosfera que nos envolve e abafa a todos, e isso no mais rico e admirável dos domínios da Terra”18. Ao conscientizar a população brasileira de todos esses efeitos que a escravidão tinha sobre sua identidade, seu desenvolvimento e sua dignidade, a Campanha Abolicionista de Nabuco esperava atrair para si, como instrumento de luta política, a opinião pública. Ele acreditava que a opinião pública, embora progredisse lenta- mente, tinha influência sobre o governo, que, por sua vez, era a única força capaz de destruir a escravidão. Sua campanha funcio- naria, portanto, como um catalisador da tomada de consciência nacional sobre a urgência da abolição.

17 Ibidem, p. 131-132. 18 Ibidem, p. 134.

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O nosso esforço consiste, pois, em estimular a opinião, em apelar para a ação que deve exercer, entre todas as classes, a crença de que a escravidão não avilta somente o nosso país: arruina-o materialmente. O agente está aí, é conhecido, é o Poder. O meio de produzi-lo é, também, conhe- cido: é a opinião pública. O que resta é inspirar a esta a ener- gia precisa, tirá-la do torpor que a inutiliza, mostrar-lhe como a inércia prolongada é o suicídio.19 [grifos nossos] O papel da conscientização dos brasileiros sobre os males da escravidão não se limitava a pressionar o governo pela emanci- pação dos escravos. Na visão de Nabuco, essa conscientização era fundamental para que os brasileiros fizessem uma reforma indivi- dual, de seu caráter, de seu patriotismo e de seu sentimento de respon- sabilidade cívica. Esse seria, segundo ele, o único meio de suprimir efetivamente a escravidão da constituição social20. Entendido o conteúdo da Campanha Abolicionista de Nabuco, largamente discutido na obra que serviu de base para a elaboração deste item – O Abolicionismo –, passemos agora para a sua execu- ção na prática.

2. MILITÂNCIA TRANSNACIONAL 2.1. Articulação de forças externas Conforme visto no item 1.1, a Campanha Abolicionista foi inau- gurada durante a legislatura de Nabuco na Câmara dos Deputados em 1879. Já no ano seguinte, ganhou espaço próprio com a criação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão (“Sociedade Brasileira”), inspirada na Sociedade Inglesa e Estrangeira contra a Escravidão (“Sociedade Inglesa”).

19 Ibidem, p. 184. 20 Ibidem, p. 205.

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A partir desse momento, Nabuco passou a trocar correspondên- cias com a Sociedade Inglesa para relatar as dificuldades que o movi- mento encontrava no Brasil e para angariar apoio internacional à causa. Como presidente da Sociedade Brasileira, Nabuco ainda enviou o Manifesto desta ao Ministro americano H. W. Hilliard e pediu sua opinião sobre os resultados da emancipação nos Estados Unidos. Embora, em seguida, a Campanha Abolicionista tenha perdido seu fundador, que partira em exílio voluntário para Londres, ela ganhou uma obra de extrema importância – O Abolicionismo –, que definiu seus fundamentos teóricos. Além disso, mesmo durante os quatro anos em que passou fora, Nabuco contribuiu diretamente para a campanha como correspondente do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e do jornal uruguaio La Razón.

Ao voltar ao Brasil, em 1884, Nabuco empenhou-se na luta abo- licionista como plataforma de sua campanha eleitoral para deputado por Pernambuco. Sua atuação, no Recife, foi documentada pela obra A campanha abolicionista. Seguiu militando pela causa durante sua legislatura de 1885 e, ao perder a reeleição, valeu-se do jornalismo como instrumento de pressão ao governo – os opúsculos O Erro do Imperador e O Eclipse do Abolicionismo são dessa época. Ele voltou a militar pelas vias institucionais ao vencer as elei- ções para deputado de 1887. De posse do cargo, conseguiu uma audiência particular com o Papa Leão XIII, para tratar do aboli- cionismo no Brasil, e apoiou a aprovação da lei Áurea. Como se percebe, há três momentos em que a Campanha Abo- licionista assumiu caráter transnacional: (i) primeiro, com a corres- pondência trocada por Nabuco com ingleses e americanos; (ii) se- gundo, quando sua obra mais importante foi escrita fora do Brasil, enquanto Nabuco atuava como correspondente em Londres para

177 um jornal brasileiro e um jornal uruguaio; e (iii) terceiro, com a audiência particular de Nabuco com o Papa. Comecemos pelo primeiro momento. A correspondência de Nabuco com a Sociedade Inglesa foi publicada21, recentemente, pela Fundação Joaquim Nabuco, o que nos permite acessá-la com facilidade. O episódio, registrado nessa correspondência, que demonstra mais claramente a atuação externa de Nabuco tem lugar no biênio 1882-1883. Em agosto de 1882, Nabuco avisou a Charles Allen, seu conta- to na Sociedade Inglesa, que o Institut de Droit International se reu- niria em Turim em setembro e lhe pediu que enviasse uma petição da Sociedade Brasileira clamando pela condenação pública da escra- vidão pelo Instituto em nome do direito internacional. No entanto, não foi possível incluir o assunto na agenda do Instituto nesse mo- mento, e Nabuco postergou o ato para o ano seguinte. Em 1883, compareceu com Allen à reunião – desta vez em Milão – como re- presentante da Sociedade Inglesa e, após proferir seu discurso de defesa, a petição foi aprovada em plenário22. Em carta escrita anos depois a Nabuco, Allen comenta:

Lembro-me sempre da visita que fizemos juntos a Milão para obter da Conferência a declaração de que o tráfico de escravos deveria ser assemelhado à pirataria e na qual, como sabeis, um membro da nossa Diretoria, Sir Alexander, apoiou habilmente a causa que o Senhor tão ardorosamente advogou.23 [grifos nossos]

21 NABUCO, Joaquim. Cartas aos Abolicionistas Ingleses. Organização e apresentação de José Thomaz Nabuco. Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1985. 22 Ibidem, p. 19-20. 23 Ibidem, p. 20.

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Ainda no que tange ao primeiro momento da militância trans- nacional de Nabuco, convém trazer à luz de nossa análise sua cor- respondência24, como Presidente da Sociedade Brasileira, com o Ministro americano H. W. Hilliard.

Em outubro de 1880, Nabuco lhe envia alguns exemplares do Manifesto da Sociedade Brasileira e pede sua opinião sobre os resultados da emancipação dos escravos nos Estados Unidos. Mais especificamente, ele estava interessado em se informar sobre:

As relações dos emancipados para com seus antigos se- nhores; a aptidão que elles têm para o trabalho livre; o estado da agricultura sob o regimen dos contractos; o progresso geral do paiz depois da crise inevitável, são pontos muito interessantes de estudo para nós que teremos que aproveitar, como os plantadores da Luisiana e do Mississipi, os mesmos elementos de trabalho, deixados pela escravidão, e o trabalho voluntario da mesma raça por Ella adscripta à cultura do solo.25 [grifos nossos]

O objetivo de Nabuco era utilizar a experiência norte-ameri- cana para convencer os senhores de escravos e os lavradores bra- sileiros de que o trabalho livre era mais conveniente ao progresso da agricultura do que o trabalho escravo. Em resposta, Hilliard expli- ca, em detalhes, a situação de seu país, sem antes fazer a seguinte ressalva:

Ainda que não esteja disposto a enunciar o meu parecer sobre nenhuma das instituições do Brazil, não me sinto com liber- dade para negar-vos a informação que desejais, porque o pe- dido para que manifeste o meu modo de ver procede de uma

24 SOCIEDADE BRASILEIRA CONTRA A ESCRAVIDÃO. Cartas do Presidente Joaquim Nabuco e do Ministro americano H. W. Hilliard sobre a emancipação nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1880. 25 Ibidem, p. 3-4.

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origem com direito à alta consideração, e porque a questão de que se trata é tão grande que excede os limites de qualquer paiz, appella para a civilisação do nosso sécu- lo, e interessa o circulo mais vasto da humanidade. Recordo- me do sentimento expresso por um poeta classico em uma das suas peças: “Sou homem e não posso ser indifferente a nada que affecta à humanidade”.26 [grifos nossos]

Esse raciocínio de Hilliard será, mais tarde, retomado por Nabuco para se defender das críticas que sofreu, no âmbito inter- no, por ter agido, no âmbito internacional, contrariamente à posi- ção oficial do governo de sua pátria. Mas nos debruçaremos sobre esse tema mais adiante.

Passando para o segundo momento da militância transnacio- nal de Nabuco, que foi o período em que atuou em Londres como correspondente internacional, a obra que nos servirá de suporte factual será Joaquim Nabuco: correspondente internacional 1882- 189127, organizada por José Murilo de Carvalho, Cícero Sandroni e Leslie Bethell.

A contribuição de Nabuco para a Campanha Abolicionista do Brasil como correspondente do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro limitou-se ao relato de uma ou outra repercussão do assunto na Europa28. Foi como correspondente do jornal uruguaio La Razón, durante o biênio 1883-1884, que sua contribuição é mais visível. Ele valeu-se desse veículo para divulgar no Uruguai o anda- mento do assunto no Brasil, o que fica evidente, por exemplo, na matéria de 24 de agosto de 1884:

26 Ibidem, p. 6. 27 CARVALHO, J. M.; SANDRONI, C.; BETHELL, L. Joaquim Nabuco: correspondente interna- cional 1882-1891. São Paulo: Global, 2013, v. 1 e 2. 28 Por exemplo, a notícia sobre a pergunta na Câmara dos Comuns sobre a escravidão no Brasil, publicada no Jornal do Commercio em 18 de abril de 1882. CARVALHO, SANDRONI e BETHELL, op. cit., p. 158.

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Por hoy puedo apenas decir algo que puede causar algún placer a los amigos de la humanidad y a todos aquellos que, en el Río de la Plata – olvidando rivalidades y resentimientos, que la nueva generación brasilera no conoce – hacen votos por el progreso y desarrollo de esta vastísima porción del continente americano: la nación, suceda lo que suceda, no ha de retroceder un paso del plan firmemente trazado por el actual ministerio; para todos los fines de la civilización brasilera y de la redención de los esclavos interesados por la esperanza en la suerte del projecto, las medidas o equivalen- tes – tal vez más, nunca menos – que los esclavistas definen como el pacto de la Corona con el señor Dantas, se hallan tan seguramente adquiridas para el porvenir nacional y para la transformación del Brasil-esclavo en el Brasil-libre, como si hubiesen sido votados por el actual Parlamento.29 Em matéria de dois de setembro do mesmo ano, ele ainda co- menta: “la esclavitud no es una institución, sino un régimen político y social completo, lo probó siempre la historia, en la antigua Italia como en los Estados Unidos, y lo está probando ahora en el Brasil”30.

Ainda sobre a estadia de Nabuco na Europa entre 1881 e 188431, é preciso notar que sua militância não se restringiu à publicação de O Abolicionismo e dos artigos de jornal acima analisados. Conforme relatado em seus diários, publicados recentemente, Nabuco partici- pou de inúmeros eventos em prol da causa abolicionista, como a sessão da Sociedade Abolicionista Espanhola, em Madri (23 de janeiro de 1881), e o almoço da Sociedade Inglesa em Londres (23 de março de 1881)32.

29 CARVALHO, SANDRONI e BETHELL, op. cit., p. 346. 30 Ibidem, p. 351. 31 Mais detalhes sobre a vida política de Nabuco nesse período, em ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 153-163. 32 NABUCO (2005b), p. 252-253.

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Finalmente, cumpre-nos analisar o terceiro – e mais controver- so – momento da militância transnacional de Nabuco, sua audiência com o Papa em 1888, relatada com intimidade em Minha Formação. O contexto que permitiu a Nabuco um ato dessa magnitude foi a declaração dos bispos brasileiros, por ocasião do aniversário sacerdotal de Leão XIII, de que o modo mais nobre de celebrá-lo seria a concessão de cartas de alforria pelos proprietários de es- cravos de suas pastorais. Para Nabuco, o tributo do Brasil ao Santo Padre, sob a forma desses cristãos libertos, era uma ocasião que lhe convidava interceder em favor dos escravos brasileiros.

Destas cartas de alforria depositadas diante de seu augus- to trono, Leão XIII pode fazer a semente da emancipação universal. Uma palavra de Sua Santidade aos senhores católicos no in- teresse dos seus escravos, cristãos como eles, não ficaria en- cerrada nos vastos limites do Brasil, teria a circunferência mesma da religião, penetraria como uma mensagem divina por toda a parte onde a escravidão ainda existe no mundo.33 [grifos nossos] A audiência particular teve lugar em 10 de fevereiro de 1888. Nabuco relatou ao Sumo Pontífice a situação do movimento aboli- cionista no Brasil e lhe fez o pedido acima citado. A resposta do Papa deu-se nos seguintes termos:

O Papa então repetiu-me que a sua encíclica abundaria nos sentimentos do Evangelho, que a causa era tão sua como nossa, e que o governo mesmo veria que era de boa política reconhecer a liberdade a que todo o filho de Deus tem direito pelo seu próprio nascimento, e que o Papa falaria ao mesmo tempo que da liberdade, da necessi- dade de educar religiosamente essa massa de infelizes, priva- dos até hoje de instrução moral.34 [grifos nossos]

33 NABUCO (1998), p. 215-216. 34 NABUCO, op. cit., p. 214.

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Infelizmente, por ação da diplomacia brasileira e do Ministério conservador então no poder, a Encíclica somente foi publicada depois de abolida a escravidão no Brasil. No entanto, esse atraso não prejudicou a Campanha Abolicionista, pois Nabuco divulgou, no mesmo dia da audiência, a benção do Santo Padre a sua causa pelo jornal brasileiro O País35. Para concluir este item, convém citar o trecho a seguir, de Minha Formação, em que Nabuco resume o significado de sua mili- tância transnacional:

A opinião pública do mundo parecia-me uma arma legíti- ma de usar em uma questão que era da humanidade toda e não somente nossa. Para adquirir aquela arma fui a Lisboa, a Madri, a Paris, a Londres, a Milão, ia agora a Roma, e se a escravidão tivesse tardado ainda a desaparecer, teria ido a Washington, a Nova Iorque, a Buenos Aires, a Santiago, a toda parte onde uma simpatia nova por nossa causa pudesse apa- recer, trazendo-lhe o prestígio da civilização.36 [grifos nossos]

2.2. Críticas no âmbito interno O alcance internacional da Campanha Abolicionista foi objeto de severas críticas no âmbito nacional. Nabuco foi acusado de antipatriótico e de articular a intervenção de forças estrangeiras nos negócios internos de seu país.

Durante a legislatura de 1880, diversos deputados da Câmara revoltaram-se contra a consulta feita por Nabuco ao Ministro ame- ricano Hilliard sobre os resultados da emancipação nos Estados Unidos. Em discurso na sessão de 25 de novembro, Nabuco teve a oportunidade de se defender, explicando, antes de tudo, que se diri-

35 Ibidem, p. 216-224. 36 Ibidem, p. 221.

183 giu não a um representante daquele país, mas, sim, a um dos homens mais importantes e conhecedores da questão.

Consultando a opinião do Sr. Hilliard, não procurou o orador a interferência do ministro norte-americano nos negócios do País. O partido abolicionista não é tão louco nem tão pouco patriota que chamasse em seu auxílio intervenção estrangeira, sabendo que por isso levantaria contra si a Nação inteira. Conhece, diz o orador, o povo norte-americano para saber que semelhante intervenção em negócios estra- nhos seria repelida por todos os partidos.37 [grifos nossos] Ele recorda, em seguida, que acusações de apelo ao estran- geiro foram também dirigidas a Eusébio de Queirós, ao Visconde do Rio Branco, ao Imperador e a todos aqueles que quiseram fazer o País maior do que é38. Por fim, ele evidencia a contradição dos deputados que lhe acusaram de antipatriótico, relembrando que os mesmos deputados aceitavam que estrangeiros possuíssem escra- vos brasileiros, mesmo sabendo que eles seriam, depois de liberta- dos, representantes de nossa nação. A audiência de Nabuco com o Papa também foi alvo de críticas na Câmara dos Deputados durante a legislatura de 1888, mesmo depois da promulgação da Lei Áurea. Na sessão de 24 de setem- bro, Nabuco responde aos protestos de que a autoridade moral do Papa não deveria intervir em questões de interesse material, como a escravidão:

Depois de entrar na análise da encíclica, no sentido de demons- trar que Sua Santidade não historiou rapidamente o escra- vismo no intuito de justificá-lo, mas de pôr em relevo a luta que o catolicismo teve que sustentar para aboli-lo, o orador aponta e aplaude o papel que Sua Santidade representa neste momento, pondo-se à frente de uma cruzada nobi-

37 NABUCO, Joaquim. Discursos Parlamentares. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983, p. 295. 38 Ibidem, p. 296.

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líssima que tem por fim extinguir para sempre a explo- ração do homem como escravo no continente africano, e, lembrando a estrofe de Castro Alves, quando invocava Deus, pedindo-lhe que ouvisse os brados de uma raça que há tantos séculos implorava a sua misericórdia, acredita que Deus afinal ouviu esses brados e que a hora da redenção che- gou para a infeliz raça negra.39 [grifos nossos] Em O Abolicionismo, Nabuco explica a lógica por trás das crí- ticas dos escravagistas aos abolicionistas. Seu argumento é de que aqueles sempre procuraram identificar o Brasil com a escravidão e, por isso, consideram todos que a atacam como coniventes com o estrangeiro e como inimigos das instituições de seu país – “atacar a Monarquia, sendo o país monárquico, a religião, sendo o país cató- lico, é lícito a todos; atacar, porém, a escravidão, é traição nacional e felonia”40, comenta ele com ironia. Ele atenta para o perigo desse tipo de associação, chamando atenção para o que aconteceu nos Estados Unidos. Lá, os escrava- gistas defenderam tanto a confusão entre pátria e escravidão que, ao serem pressionados para aboli-la, levantaram a bandeira sepa- ratista, mergulhando o país na Guerra de Secessão.

Nabuco explora, ainda, outro argumento levantado pelos escra- vagistas para desqualificar a causa abolicionista. A teoria era de que todos os brasileiros seriam responsáveis pela escravidão e não ha- veria maneira de lavarem suas mãos do sangue dos escravos. Não bastaria, segundo essa lógica, não possuir escravos para não se ter parte no crime – “quem nasceu com esse pecado original, não tem batismo que o purifique”41. O fundamento da responsabilidade dos brasileiros seria seu consentimento com a prática escravocrata.

39 Ibidem, p. 422-423. 40 NABUCO (2003), p. 165. 41 Ibidem, p. 203.

185

Em polêmica travada com José de Alencar em 1875, portanto antes do lançamento da Campanha Abolicionista, Nabuco já depa- rava com esse argumento. Alencar afirma:

A escravidão é um fato de que todos nós brasileiros assumi- mos a responsabilidade, pois somos cumplices nêle como cidadãos do Império. Nenhum filho desta terra, por mais adi- antadas que sejam suas idéias, tem o direito de eximir-se à solidariedade nacional, atirando ao nome da pátria, como um estigma, os erros comuns.42 O problema dessa teoria, na visão de Nabuco, era que ela ma- nipulava a realidade histórica. Ela ignorava o fato de os brasileiros, individualmente, repelirem a escravidão. E não enxergava que os brasileiros eram tão vítimas do sistema quanto os escravos, pois, ao serem acusados de responsáveis pela escravidão, ficavam des- providos de reação, em uma paralisia moral alimentada pela culpa. Nabuco acrescenta, com sarcasmo:

Os napolitanos foram assim responsáveis pelo bourbonismo, os romanos pelo poder temporal, os polacos pelo czardo, e os cristãos-novos pela Inquisição. Mas, fundada ou não, essa é a crença de muitos. E a escravidão, atacada nos mais melindro- sos recantos onde se refugiou, no seu entrelaçamento com tudo o que a pátria tem de mais caro a todos nós, ferida, por assim dizer, nos braços dela, levanta contra o abolicionismo o grito de Traição!43 Ao se defender desse tipo de crítica, Nabuco desenvolveu argumentos bastante sofisticados sobre a limitação da soberania nacional e sobre o conceito de patriotismo, que serão analisados com cuidado no item a seguir.

42 COUTINHO, Afrânio (Apr.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 119. 43 NABUCO (2003), p. 203.

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3. PATRIOTISMO E ESCRAVIDÃO 3.1. Limitação da soberania nacional

Nabuco dedica um capítulo inteiro de O Abolicionismo44 para demonstrar que a maior parte dos escravos de sua época eram homens livres criminosamente escravizados. O fundamento de sua tese é a Lei de 1831, segundo a qual “todos os escravos que entra- rem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres”. O fato de essa lei nunca ter sido executada não a desqualifi- caria, segundo Nabuco, como a carta de liberdade de todos os impor- tados depois de sua data. Afinal, ela nunca poderia ser abolida, pois o direito brasileiro não permitia a revogação de cartas de liberdade.

Como poucos escravos introduzidos no Brasil antes de 1831 estavam vivos, a grande maioria dos escravos existentes na década de 1880 eram, juridicamente, homens livres. Ao mantê-los em cati- veiro, portanto, o Estado brasileiro estava sendo conivente com um crime nacional. Depois de explicar a ilegalidade da escravidão segundo a lei brasileira, Nabuco chama atenção para o fato de, mesmo se a lei in- terna permitisse esse regime, ela não isentaria o Brasil de suas obrigações perante o direito internacional – “não me era neces- sário provar a ilegalidade de um regime que é contrário aos princí- pios fundamentais do direito moderno e que viola a noção mesma do que é o homem perante a lei internacional”45.

Para Nabuco, nenhum Estado deveria ter a liberdade de colocar- se fora da comunhão civilizada do mundo. As leis internas de cada país deveriam remeter a princípios fundamentais cuja violação im-

44 Ibidem, p. 99-106. 45 Ibidem, p. 107.

187 plicaria ofensa aos demais países. Esses princípios fundamentais seriam parte do direito natural, construído pela evolução do homem e que condena a escravidão assim como condena a pirataria, as perseguições religiosas, a mutilação de prisioneiros, a poligamia e outros crimes. “Esses princípios cardeais da civilização moderna reduzem a escravidão a um fato brutal que não pode socorrer-se à lei particular do estado, porque a lei não tem autoridade alguma para sancioná-la”46. Além disso, o Brasil feria o direito internacional ao escravizar estrangeiros. Se conseguiu fazê-lo com os africanos, é porque eles não gozavam da proteção de nenhum Estado. A ilegalidade da escravidão seria, portanto, insanável, tanto do ponto de vista interno, quanto do ponto de vista internacional. O governo, ao retardar sua abolição, feria o sentimento de honra do País, “compreendida como a necessidade moral de cumprir os seus tratados e as suas leis com relação à liberdade e de conformar-se com a civilização no que ela tem de mais absoluto”47. Dentro dessa perspectiva, a Campanha Abolicionista transna- cional de Nabuco não poderia ser taxada de antipatriótica. Muito pelo contrário. Nabuco, ao fazer referência aos princípios basilares do direito natural, estava construindo um conceito específico de pátria para os brasileiros.

3.2. O verdadeiro patriotismo Nabuco acreditava que a identificação entre Brasil e escravi- dão, tão cara aos escravagistas e tão enraizada na mentalidade dos

46 Ibidem, p. 109. 47 Ibidem, p. 110.

188 brasileiros, degenerou nosso patriotismo. Construiu-se, no Brasil, a ideia de patriotismo dos senhores, o que ficou evidente durante a Guerra do Paraguai, quando poucos desses senhores optaram por deixar suas terras e seus escravos para lutar por seu país48.

Esse patriotismo de casta, ou de raça, impedia a emergência de um patriotismo nacional e dividia a sociedade, em vez de uni-la. Na visão de Nabuco, para que o patriotismo se purificasse, era pre- ciso que os brasileiros livres, movidos pelo sentimento da indepen- dência pessoal e pela convicção de sua força e de seu poder, atra- vessassem o fosso que separa o simples nacional do cidadão que aspira a ser uma unidade ativa e pensante da sociedade a que pertence49. Ele reconhecia que era difícil definir o conceito de pátria, mas acreditava em um ideal:

A pátria varia em cada homem: para o alsaciano ela está no solo, no montes patrios et incunabula nostra, para o judeu é fundamentalmente a raça; para o muçulmano a religião; para o polaco a nacionalidade; para o emigrante o bem-estar e a liberdade, assim como para o soldado confederado foi o direito de ter instituições próprias. O Brasil não é a geração de hoje, nem ela pode querer deificar-se, e ser a pátria para nós, que temos outro ideal.50 [grifos nossos]

O ideal de pátria de Nabuco e dos abolicionistas era um país onde todos fossem livres; que atraísse, pela franqueza de suas ins- tituições e pela liberdade de seu regime, a imigração europeia; um país que trabalhasse para a obra da humanidade e para o adianta- mento da América do Sul51.

48 Ibidem, p. 165. 49 Ibidem, p. 165-166. 50 Ibidem, p. 204. 51 Ibidem, p. 205.

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O movimento abolicionista, nesse sentido, iria ao encontro dos supremos interesses de nossa pátria, ao contrário do que brada- vam os críticos escravagistas.

Quanto à falta de patriotismo, deixe-me fazer uma última pergunta: se não é mais patriótico denunciar os crimes da escravidão ao mundo, levando as classes dominantes e as instituições do governo à barra do Tribunal da opi- nião pública e envergonhando-as com a opressão de que são cúmplices, do que permitir que estrangeiros continuem a ter como sua propriedade, para açoitar e humilhar, homens que serão amanhã, por força da lei, cidadãos brasileiros, elei- tores brasileiros e soldados brasileiros?52 [grifos nossos] O verdadeiro patriota era, portanto, aquele que procurava modificar um regime que atrasava o Brasil, como afirma Nabuco em uma conferência em 1884:

O dever dos bons patriotas, dos que amam a sua terra e a sua gente, é procurar modificar o estado de coisas que existe e destruir os motivos que afastam a nossa popula- ção do trabalho e as causas que a impedem de trabalhar. Bem ou mal o Brazil é dos Brazileiros, e é dos Brazileiros – que elles tenham estimulos e facilidades para o trabalho e a propriedade –, que o estadista deve cuidar como do seu pri- meiro dever.53 [grifos nossos] Em suma, os abolicionistas eram os verdadeiros patriotas para a concepção de pátria formulada por Nabuco. Mais tarde, em Minha Formação, ele desabafa sobre sua campanha nos seguintes termos:

Se havia falta de patriotismo em procurar criar no exte- rior – tomado não como poder material, mas como refletor moral universal, que é para nós – uma opinião que nos che-

52 NABUCO (1985), p. 35-36. 53 CONFEDERAÇÃO ABOLICIONISTA. Conferencia do Sr. Joaquim Nabuco a 22 de junho de 1884 no Theatro Polytheama. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1884, p. 38-39.

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gasse depois espontaneamente com a grande voz da hu- manidade, não posso negar que fui um grande culpado...54 [grifos nossos] Conforme mencionado no final do item 1.2, a Campanha Aboli- cionista, baseada nesse ideal de pátria, pregava que a única maneira de suprimir, efetivamente, a escravidão da constituição social dos brasileiros era conscientizá-los para que reformassem seu caráter, seu patriotismo e seu sentimento de responsabilidade cívica.

Com isso, fecha-se o ciclo de pensamento de Nabuco sobre o abolicionismo. Sua concepção de patriotismo, portanto, não foi for- jada para que ele se defendesse das injustas acusações feitas por seus críticos – embora lhe tenha sido útil para esse fim –, mas para fundamentar o real objetivo de seu movimento. Afinal, para acabar com a obra da escravidão, era preciso, antes, que os brasileiros se conscientizassem sobre o verdadeiro significado da palavra pátria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho, ao discutirem a cam- panha transnacional de Nabuco, afirmam que ele, no fundo, recor- ria ao argumento usado por todas as sociedades abolicionistas55, de que a abolição da escravidão era um imperativo da civilização e do progresso e que não poderia ser impedida sob pretexto de um falso patriotismo. O verdadeiro patriotismo, para essas sociedades, consistia no esforço de incorporação do país ao mundo civilizado. A falta de originalidade do raciocínio de Nabuco evidenciada por esses autores, no entanto, não minimiza sua valiosa contribui-

54 NABUCO (1998), p. 214. 55 BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. Joaquim Nabuco e os abolicionistas britâni- cos: correspondência 1880-1905. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

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ção para a abolição da escravidão no Brasil e para o pensamento diplomático brasileiro. A estratégia de mobilizar a opinião pública internacional em favor da causa abolicionista foi não só brilhante, como essencial, para o êxito do movimento no Brasil.

Primeiro, porque esse movimento emergia em um país no qual a opinião pública nacional ainda não havia se mobilizado para a questão. Segundo – e mais importante –, porque Nabuco estava plenamente ciente da importância e do impacto da opinião pú- blica internacional, britânica em particular, sobre a elite brasileira e o Imperador56.

Foi a percepção, portanto, da conveniência de se fundar, no Brasil, um movimento afinado com as sociedades abolicionistas es- trangeiras que explica a genialidade da atuação de Nabuco. Por um lado, essa troca de experiências lhe forneceu subsídios teóricos e práticos para orientar a campanha brasileira. Por outro lado, deu- lhe a oportunidade de militar no âmbito internacional e, com isso, tornar suas ideias mais permeáveis aos tomadores de decisão no âmbito interno. A noção de patriotismo, defendida por Nabuco como funda- mento de sua tese abolicionista e de sua campanha transnacional, foi apenas em parte incorporada pelos brasileiros com a Proclama- ção da República. Afinal, a Constituição de 1891, ao excluir os anal- fabetos do direito ao voto, não permitiu, na prática, que a maioria dos ex-escravos se integrasse totalmente aos direitos da cidadania. No entanto, a História brasileira do século XX demonstra que essa noção foi sendo, paulatinamente, assimilada pelos brasileiros,

56 Ibidem, p. 35.

192 ao ponto de a Constituição de 1988 permitir, inclusive, a submis- são do Estado a tribunal penal internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. Pela primeira vez, também, estão explicitados no texto constitucional os princípios que regem o Brasil em suas relações internacionais, dentre eles o da prevalência dos direitos humanos. Ao antecipar uma tendência que se consolidaria no final do século seguinte, Joaquim Nabuco, sem dúvida, trouxe enorme con- tribuição ao pensamento diplomático brasileiro com suas noções de patriotismo e de limitação da soberania nacional em cumprimento a preceitos humanitários do direito natural e do direito internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos: correspondência 1880-1905. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008. CARVALHO, J. M.; SANDRONI, C.; BETHELL, L. Joaquim Nabuco: correspondente internacional 1882-1891. São Paulo: Global, 2013. v. 1 e 2. CONFEDERAÇÃO ABOLICIONISTA. Conferencia do Sr. Joaquim Nabuco a 22 de junho de 1884 no Theatro Polytheama. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1884. Disponível em: . COUTINHO, Afrânio (Apr.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. FINLEY, Moses. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991. GASPAR, Lúcia; BARBOSA, Virginia; MALTA, Albertina; RAMOS, Carlos; FALCÃO, Maria. Arquivo Joaquim Nabuco: Catálogo. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2008. Disponível em: . NABUCO, Joaquim. Discursos Parlamentares. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983. Disponível em: .

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______. Cartas aos Abolicionistas Ingleses. Organização e apresentação de José Thomaz Nabuco. Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1985. Disponível em: . ______. Minha Formação. Brasília: Senado Federal, 1998. Disponível em: . ______. O Abolicionismo. Brasília: Senado Federal, 2003. Disponível em: . ______(2005a). Campanha Abolicionista no Recife: Eleições de 1884. Brasília: Senado Federal, 2005. Disponível em: . ______(2005b). Diários. Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 2005. v. 1. SOCIEDADE BRASILEIRA CONTRA A ESCRAVIDÃO. Cartas do Presidente Joaquim Nabuco e do Ministro americano H. W. Hilliard sobre a emancipação nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1880. Disponível em: .

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JOSÉ ENRIQUE RODÓ E EDUARDO PRADO: SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E ATUALIDADE

Pedro Ivo Souto Dubra

RESUMO No presente artigo, busca-se analisar as obras do uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917) e do brasileiro Eduardo Prado (1860-1901), sobretudo Ariel (1900) e A ilusão americana (1893). Rodó e Prado pertenceram à mesma geração intelectual finissecular da América Latina que repudiou o utilitarismo identificado com a cultura anglo-saxã, mormente em seu des- dobramento norte-americano. Argumenta-se que tanto Ariel quanto A ilusão americana foram reflexões sobre os primeiros momentos da trajetória ascensional dos Estados Unidos rumo ao protagonismo planetário, com impactos políticos, econômicos e culturais sobre todos os quadrantes e riscos para os demais povos do Hemisfério. Tem-se por objetivo central a identificação de semelhanças e de diferenças entre os dois ensaios. Neste artigo, intenta-se, ainda, uma reflexão sobre o fenômeno contemporâneo de ganho de protagonismo mundial pela China, transpondo-se para o tempo presente a discussão sobre as angústias e os temores inevitavelmente de- sencadeados pelo surgimento de uma potência.

PALAVRAS-CHAVE José Enrique Rodó; Eduardo Prado; Ariel; A ilusão americana; política in- ternacional; relações América Latina-Estados Unidos; China.

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INTRODUÇÃO O século XIX assistiu à trajetória ascensional, lenta, mas segura, dos Estados Unidos. Episódios como o triunfo lindeiro sobre o Mé- xico no final dos anos 1840, a prevalência do industrialismo nortista obtida por meio de guerra civil de meia década e a vitória militar sobre a Espanha em 1898 sugeriam uma marcha inelutável rumo ao protagonismo geopolítico, finalmente confirmado no século se- guinte (como marco da inflexão global, cite-se a mediação do presiden- te Theodore Roosevelt para terminar com a guerra russo-japonesa, bem como a participação do país na Conferência de Algeciras para resolver a desinteligência marroquina entre França e Alemanha, am- bas ocorridas em 19051).

O debute do “Colosso Americano” como ator proeminente do sistema internacional não passou despercebido a intelectuais, artistas e homens de Estado de todos os quadrantes. No plano doméstico, personalidades tais quais o escritor Mark Twain alertaram para os riscos do intervencionismo imperialista2, próprio das potências da velha Europa, ao passo que outras, como o estrategista Alfred Mahan, prescreviam o incremento do poder bélico, sobretudo em sua ver- tente naval3. Na periferia do continente, a elevação do perfil estadunidense gerou mixed feelings. Se alguns consideravam os Estados Unidos um irresistível exemplo a ser replicado (“a beacon for the rest of mankind”, para citar a sugestiva expressão de Henry Kissinger4),

1 RICUPERO, Rubens. A política externa da Primeira República. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento diplomático brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1964). Brasília: Funag, 2013. v. 2, p. 337-338. 2 Ver TWAIN, Mark. Patriotas e traidores: anti-imperialismo, política e crítica social. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. 3 COMELLAS, José Luis. Los grandes imperios coloniales. Madri: Ediciones Rialp, 2001, p. 61-64. 4 KISSINGER, Henry. Diplomacy. Nova York: Simon & Schuster Paperbacks, 1994, p. 18.

196 outros tinham restrições severas à experiência norte-americana. Entre esses, figuravam o uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917) e o brasileiro de São Paulo Eduardo Prado (1860-1901). Suas obras mais famosas, Ariel (1900) e A ilusão americana (1893), respectiva- mente, são reflexões sobre a proeminência norte-americana, seus impactos políticos, econômicos e culturais e seus riscos para os demais povos do continente.

Neste trabalho, pretende-se cotejar as ideias de Rodó e de Eduardo Prado, tendo-se em conta que, guardadas as particulari- dades de estilo, de ênfase e de conclusão, ambos podem ser enqua- drados na mesma geração finissecular da intelligentsia da América Latina. Na próxima seção, apresentam-se sucintamente dados bio- gráficos do uruguaio e analisa-se sua produção intelectual (no que concerne a Ariel, sobretudo); na seguinte, tratamento semelhante é dado ao brasileiro (privilegia-se A ilusão americana). Na quarta seção, identificam-se convergências e divergências entre os autores. Nas considerações finais, realiza-se uma síntese do exposto e busca-se ampliar a discussão, relacionando-a com um dos temas mais relevan- tes da política internacional do presente, que é a ascensão da China.

Nem Rodó nem Prado foram diplomatas5. Tratar de seus escritos no âmbito da disciplina Pensamento Diplomático Brasileiro, contudo, constitui experiência proveitosa, uma vez que ambos identificaram a mudança irreversível no sistema internacional de seu tempo ocor- rida com a ascensão dos Estados Unidos, o novo representante da grandeza anglo-saxã em um momento em que se não intuía a de- bacle de um Reino Unido ainda orgulhosamente vitoriano. Se nomes como José Maria da Silva Paranhos Júnior, Joaquim Nabuco e Manoel

5 Eduardo Prado foi adido na legação brasileira em Londres. Essa experiência não pode ser comparada, contudo, às de Rio Branco, Oliveira Lima ou Joaquim Nabuco, diplomatas de carreira na acepção corrente do termo.

197 de Oliveira Lima sobressaíram como operadores e analistas da política externa, Eduardo Prado e José Enrique Rodó foram outsiders distantes das mesas de negociação que legaram considerações fun- damentais para recompor o ambiente intelectual da época e mesmo para se dizer algo sobre o tempo presente.

1. JOSÉ ENRIQUE RODÓ Nascido em 1871, ano da Comuna de Paris, e morto em 1917, poucos meses antes da eclosão da Revolução Russa, José Enrique Camilo Rodó Piñeyro contrariou os marcos cronológicos caros ao materialismo histórico que balizaram sua curta vida. Um apanhado de informações biográficas e contextuais pode ser útil para situar sua produção – afinal, como disse o conterrâneo Mario Benedetti, “la peor injusticia que puede cometerse con respecto a Rodó es no ubicarlo, al considerar y juzgar su obra, dentro de un proceso histórico”6. Sétimo filho de uma uruguaia de família criolla com um prós- pero comerciante catalão de convicções liberais e relações com a intelectualidade local, Rodó nasceu em Montevidéu um ano depois de as primeiras linhas ferroviárias haverem rasgado o país7. Sua infância e sua adolescência transcorreram durante a agitada etapa militarista (1875-1890), em que se promoveram reformas do ensino e se introduziu o positivismo na universidade.

6 BENEDETTI, Mario. Genio y figura de José Enrique Rodó. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966, p. 99. 7 Boa parte dos apontamentos biográficos de José Enrique Rodó contidos neste ensaio, bem como das informações sobre o contexto uruguaio da época, é devida a Belén Castro Morales, professora da Universidad de La Laguna. Foi ela quem dirigiu o projeto de criação de um sítio dedicado a Rodó dentro da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, mantida pela Uni- versidad de Alicante. CASTRO MORALES, Belén. El mundo de José Enrique Rodó (1871-1917). In: Biblioteca de autor José Enrique Rodó. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015.

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Em 1883, dificuldades econômicas familiares o levaram a aban- donar a escola privada onde estudava e a ingressar em uma insti- tuição pública. Rodó, que dera os primeiros passos intelectuais com um periódico editado aos nove anos de idade e escrevera textos sobre Bolívar e Franklin, continuou sua precoce atividade jornalís- tica. Em 1885, por ocasião da morte do pai, começou a trabalhar como amanuense de um escrivão. Nesse ano, iniciou a composição do poema “Oda a la Batalla de Caseros”, no qual louvava o triunfo dos unitários sobre o caudilho federal bonaerense Juan Manuel de Rosas em 1852. Em 1891, tendo um tio materno como pistolão, con- seguiu emprego no Banco de Cobranzas de Montevideo. Medíocre em quase todas as matérias escolares à exceção da literatura e da história, Rodó decidiu não cursar a universidade.

O ano de 1895 marcou a estreia “adulta” de José Enrique Rodó no jornalismo. Naquele ano, fundou, com Victor Pérez Petit e os irmãos Daniel e Carlos Martínez Vigil, a Revista Nacional de Litera- tura y Ciencias Sociales, marco do modernismo uruguaio. Esses foram anos dedicados à análise de obras de autores de língua espanhola de diferentes nacionalidades, bem como à defesa de um america- nismo literário. José Enrique Rodó costuma ser enquadrado na geração uru- guaia do Novecientos, um grupo heterogêneo de ficcionistas, filóso- fos, dramaturgos, ensaístas e poetas que fugiram ao cânone positivista, renovando o panorama artístico e intelectual do país, que testemu- nhava o aporte de imigrantes europeus, o desenvolvimento das comunicações e dos meios de transporte – impulsionado pelos in- vestimentos ingleses, a exemplo do que ocorria na Argentina – e as demandas por modernização político-administrativa. O grupo, com- posto em sua maioria por autodidatas, foi encabeçado, em termos de crítica e de ensaística, por Rodó, percebido como uma liderança

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“professoral”, e por Herrera y Reissig, no âmbito da poesia, esse a sobressair pela pose decadentista. O Novecientos uruguaio não estava desconectado das evolu- ções artísticas e literárias do mundo hispânico. Em 1895, ano da fundação da Revista, morria o escritor cubano José Martí, e Rubén Darío, nicaraguense fundador do modernismo hispânico, vinha a Buenos Aires passar uma temporada, com importantes impactos sobre a cultura platina. Além do influxo positivista, as letras uru- guaias de então estavam atravessadas pela temática nacionalista, pelo realismo histórico-documental e pela idealização romântica da cultura gauchesca. Os novecentistas promoveram a renovação em confronto com esse cânone, aportando uma nova atitude de defesa da subjetividade e da autonomia textual. Em parte desse grupo de diferentes tendências, subjazia a vontade de captar as sutilezas do espírito, supostamente ameaçadas pela (ainda incipiente) cultura de massas (Rodó criticara o perigo do flerte com o gosto médio no poema “La prensa”). Nesse sentido, a Revista trazia, em uma das edições de sua vida curta, uma ponderação curiosa, ao se mencio- narem “estos días de enervamiento y frivolidad, en que no existen centros literarios, y en que se fundan footballs, presenciándose, al revés del triunfo de la cabeza, el triunfo de los pies”8. Introduzia-se, àquela altura, no Uruguai, a voga neo-espiritualista. O neo-espiritualismo buscava dar contornos identitários a um indi- víduo perdido na massa e sujeito a determinismos de cunhos racial e genético. Em suma, intentava-se uma reconstrução metafísica de um homem despersonalizado. A essa tendência se juntava uma sé- rie de outras, desencontradas, mas que tendiam a fazer uma frente contrária ao positivismo: a ideia de super-homem nietzschiano, o aristocratismo intelectual de Henri Bérenger ou a estetização da vida de Oscar Wilde.

8 CASTRO MORALES, op. cit., s/p.

200

Sobre essa mescla de influências, Rodó escreveu que

La lontananza idealista y religiosa del positivismo de Renán; la sugestión inefable, de desinterés y simpatía, de la palabra de Guyau; el sentimiento heroico de Carlyle; el poderoso aliento de reconstrucción metafísica de Renouvier, Bergsón y Boutroux; los gérmenes flotantes en las opuestas ráfagas de Tolstoy y de Nietzsche; y como superior complemento de estas influencias, y por acicate de ellas mismas, el renovado contacto con las viejas e inexhaustas fuentes de idealidad de la cultura clásica y cris- tiana, fueron estímulo para que convergiéramos a la orienta- ción que hoy prevalece en el mundo [...] Somos los neo-idealistas.9 Rodó criticava o positivismo, mas, de igual maneira, buscava não resvalar no excesso decadentista, não perdendo de vista bali- zas como a reponsabilidade ética e o valor formativo da crítica. Não ignorava, em suma, a dimensão social do trabalho intelectual. Ariel, sua obra mais conhecida, trazia um vincado tom pedagógico e embutia um grande desejo de intervenção no debate intelectual. Antes do clássico, porém, veio outro texto, El que vendrá, em que o professoral Rodó lamentava que “los maestros, como los dioses, se van”. Seguia dizendo que “esperamos; no sabemos a quién. Nos llaman; no sabemos de qué mansión remota y oscura. También nosotros hemos levantado en nuestro corazón un templo al dios desconocido”10. Essa dimensão quase metafísica da espera encontrava- se com as expectativas da crua política internacional. Em 1896, ano de El que vendrá, estava em seus momentos iniciais a guerra de independência de Cuba. No ano seguinte, interrompida a publi- cação da Revista Nacional, Rodó criou uma coleção literária intitu- lada La vida nueva. Em 1898, vencida Madri, Washington iniciava

9 RODÓ, José Enrique. El mirador de Próspero. Montevide u: Ministerio de Instruccio n Pu blica y Previsión Social, 1965. tomo I, p. 44-45. 10 RODÓ, José Enrique. El que vendrá. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015.

201 sua intervenção em Cuba. Rodó lamentou, em páginas dedicadas a Rubén Darío, o “dolorido estupor” da Espanha, “madre de vencidos caballeros”, insinuando que poderia vir a escrever algo inspirado na atuação norte-americana no conflito11.

Terceiro produto de La vida nueva, Ariel seria publicado em fevereiro de 1900, dois anos após a derrota espanhola. Suas 142 páginas, impressas em tiragem inicial de setecentos exemplares, custeados pelo autor, revolucionaram e influenciaram duradoura- mente o panorama intelectual latino-americano. Em outubro de 1899, o jornal El siglo antecipava a seus leito- res que Ariel trataria da “influencia de la raza anglo-yankee en los pueblos latinos”. Rodó, contudo, no El día de 23 de janeiro de 1900, preferiu afirmar que o tema principal do trabalho era a defesa de uma vida espiritualizada em um mundo de crescente mercantilismo12. Ariel vem sendo considerado um ensaio sobre a crise hispâni- ca, que teve em 1898 seu paroxismo, refletindo uma perspectiva latino-americana pela oposição de dois conjuntos culturais: por um lado, a América progressista, materialista e utilitarista de tradição anglo-saxã; por outro, a América tradicionalista, herdeira dos lega- dos greco-latino e católico, uma América espiritualizada de valores clássicos e elevados. Assim como Domingo Faustino Sarmiento lançara mão de opo- sições em Facundo (com o sugestivo subtítulo de “Civilización y barbarie en las pampas ”), Rodó exploraria uma dicoto- mia em Ariel. The tempest, comédia tardia de William Shakespeare levada ao palco pela primeira vez em 1611, serviu-lhe de mote

11 RODÓ, José Enrique. Rubén Darío: Su personalidad literaria, su última obra. Montevidéu: Imprenta de Dornaleche y Reyes, 1899, p. 79. 12 CASTRO MORALES, op. cit., s/p.

202 inspirador. Na peça do dramaturgo inglês, dois personagens arque- típicos sobressaem: Ariel, espírito do ar servil, e Caliban, escravo disforme e rebelde. Além deles, há Próspero, nobre que se encontra desterrado em uma ilha, onde governam Ariel e Caliban. Tem-se aceitado a hipótese de que Caliban seria um anagrama de “canibal” (que, por sua vez, derivaria de Caribe/Caraíba), bem como a de que Shakespeare haveria sido influenciado pelos escritos de Montaigne sobre os antropófagos. Rodó não foi o primeiro nem o último a usar The tempest como metáfora e ponto de partida para novas imagens e interpretações: o filósofo e escritor francês Ernest Renan, por exem- plo, revisitou o texto no drama filosófico Caliban, suite de La tempête (1878), fazendo uma reflexão desabonadora sobre a democracia. Sete anos antes do aparecimento de Ariel, em perfil (ou, como se diz em espanhol, semblanza) do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, Darío também escreveu palavras interessantes sobre Caliban, imaginando-o a reinar En la isla de Manhattan, en San Francisco, en Boston, en Washington, en todo el país. Ha conseguido establecer el impe- rio de la materia desde su estado misterioso con Edison, hasta la apoteosis del puerco, en esa abrumadora ciudad de Chicago. Calibán se satura de whisky, como en el drama de Shakespeare de vino; se desarrolla y crece; y sin ser esclavo de ningún Prós- pero, ni martirizado por ningún genio del aire, engorda y se multiplica; su nombre es Legión.13 Rodó monta, no ensaio, uma pequena trama: há um velho mes- tre, alcunhado de Próspero, que tem, em sua ampla sala de estudos, um bronze que evoca a figura shakespeariana de Ariel. Próspero dirige-se em tom solene a uma audiência de alunos. A narrativa estabelece um clima de produção de conhecimento típico dos gre- gos da Antiguidade, sem que haja, contudo, diálogo entre o profes- sor e os aprendizes.

13 DARÍO, Rubén. Los raros. Madri: Editorial Mundo Latino, 1918, p. 20.

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Citando Auguste Comte, José Enrique Rodó, em seu avatar de Próspero, alerta para o perigo de que a especialização, necessária ao progresso material, avilte o humanismo totalizante, que tinha em Atenas, com seus cidadãos completos, mistos de atletas, seres políticos, polemistas e pensadores, o exemplo ideal14. Os jovens dis- cípulos de Próspero não devem tornar-se, como Caliban, “espíritus deformados y estrechos”15, tomados pelo utilitarismo, mas se inspi- rar, ainda que fosse aquele um momento único e praticamente irrepro- dutível da história humana, no “milagro griego”16. Demanda Próspero:

Yo os ruego que os defendáis, en la milicia de la vida, contra la mutilación de vuestro espíritu por la tiranía de un objeto único e interesado. No entreguéis nunca a la utilidad o la pa- sión, sino una parte de vosotros. Aun dentro de la esclavitud material, hay la posibilidad de salvar la libertad interior: la de razón y el sentimiento. No tratéis, pues, de justificar, por la absor- ción del trabajo o el combate, la esclavitud de vuestro espíritu.17 Parte da crítica identificou em Rodó um travo de elitismo, ao considerar a formação de tertúlias espiritualizadas que se desta- cassem da massa entregue aos ritmos degradados da matéria. Esse juízo deve ser matizado diante de sua defesa de uma educação igualitária, o que distingue Rodó de Renan, que desconfiava da democracia e de seus possíveis efeitos deletérios sobre a cultura. Transcreva-se mais um trecho de Ariel:

El deber del Estado consiste en predisponer los medios pro- pios para provocar, uniformemente, la revelación de las supe- rioridades humanas, donde quiera que existan. De tal manera, más allá de esta igualdad inicial, toda desigualdad estará jus- tificada, porque será la sanción de las misteriosas elecciones

14 RODÓ, José Enrique. Ariel. Montevidéu: Colombino Hnos. S.A. Editores, 1947, p. 33-34. 15 RODÓ, op. cit., p. 33. 16 Ibidem, p. 35. 17 Ibidem, p. 35-36.

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de la Naturaleza o del esfuerzo meritorio de la voluntad. – Cuando se la concibe de este modo, la igualdad democrática, lejos de oponerse a la selección de las costumbres y de las ideas, es el más eficaz instrumento de selección espiritual, es el am- biente providencial de la cultura.18 O tema do “espíritu de americanismo”, visto, então, na Europa, como “la concepción utilitaria, como idea del destino humano, y la igualdad en lo mediocre, como norma de la proporción social”19, constitui o cerne do trabalho de Rodó. “[…] Si ha podido decirse del utilitarismo, que es el verbo del espíritu inglés, los Estados Unidos pueden ser considerados la encarnación del verbo utilitario”20, pontifica Próspero aos discípulos. Os países da América hispânica, por ser turno, são encarados, diante dos “milagros materiales del triunfo”, como “tierra de gentiles”21. Ao poder de atração de “con- quista moral” e de “impresión de la victoria” exercido pela federa- ção do Norte, Rodó/Próspero contrapõe a necessidade de os latino- americanos considerarem “una herencia de raza, una gran tradición étnica [...] un vínculo sagrado que nos une a inmortales páginas de la historia, confiando a nuestro honor su continuación en lo futuro”22. O narrador de Rodó não é propriamente contrário à atenção dada ao sucesso norte-americano (“Comprendo bien que se ad- quieran inspiraciones, luces, enseñanzas, en el ejemplo de los fuer- tes”23; “[…] Ya veis que, aunque no les amo, les admiro”24), mas refuta a adoração acrítica de um modelo alienígena. O hemisfério de dois polos (o latino e o não latino) teria a ganhar não com “la imitación unilateral – que diría Tarde – de una raza por otra, sino a

18 Ibidem, p. 71. 19 Ibidem, p. 77. 20 Ibidem, p. 78. 21 Ibidem, p. 78. 22 Ibidem, p. 81. 23 Ibidem, p. 79. 24 Ibidem, p. 87.

205 la reciprocidad de sus influencias y al atinado concierto de los atributos en que se funda la gloria de las dos”25. Depois da gentileza da sugestão de reciprocidade de influên- cias e do inventário de qualidades pioneiras norte-americanas (fei- ta, em suma, “la formalidad caballeresca de un saludo”26), Rodó/ Próspero pergunta-se: “Realiza aquella sociedad, o tiende a realizar, por lo menos, la idea de la conducta racional que cumple a las legí- timas exigencias del espíritu, a la dignidad intelectual y moral de nuestra civilización?”27. Uma sugestão de resposta aparece nas pá- ginas seguintes:

Obra titánica, por la enorme tensión de voluntad que repre- senta, y por sus triunfos inauditos en todas las esferas del en- grandecimiento material, es indudable que aquella civilización produce en su conjunto una singular impresión de insufi- ciencia y de vacío. […] Huérfano de tradiciones muy hondas que le orienten, ese pueblo no ha sabido substituir la idea- lidad inspiradora del pasado con una alta y desinteresada concepción del porvenir. Vive para la realidad inmediata, del presente, y por ello subordina toda su actividad al egoísmo del bienestar personal y colectivo. [...] El norteamericano ha logrado adquirir con ellas [riquezas], plenamente, la satis- facción y la vanidad de la magnificencia suntuaria; pero no ha logrado adquirir la nota escogida del buen gusto.28 Admiro-os, não os amo, diz o mestre Rodó/Próspero, e essa é a mensagem a reter. A juventude latino-americana não precisava ignorar o sucesso norte-americano nem suas qualidades pioneiras, mas suas prioridades não deveriam ser as do Colosso nortenho. Em suma, defende Rodó/Próspero que

25 Ibidem, p. 82-83. 26 Ibidem, p. 83. 27 Ibidem, p. 89. 28 Ibidem, p. 90-93.

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Renunciemos a ver el tipo de una civilización ejemplar donde sólo existe un boceto tosco y enorme, que aun pasará necesa- riamente por muchas rectificaciones sucesivas, antes de ad- quirir la serena y firme actitud con que los pueblos que han alcanzado un perfecto desenvolvimiento de su genio presiden al glorioso coronamiento de su obra, como en el sueño del cóndor que Leconte de Lisle ha descrito con su soberbia ma- jestad, terminando, en olímpico sosiego, la ascensión poderosa, más arriba de las cumbres de la Cordillera!29 O sucesso de Ariel foi enorme e muito rápido. Grande referên- cia literária do mundo hispânico, o espanhol Miguel de Unamuno escreveu sobre a obra em 1901 (quando já era reitor da Universidad de Salamanca) e tornou-se correspondente de Rodó. Transcreva-se um trecho do comentário, um parágrafo que integrava um artigo sobre a literatura hispano-americana:

Aunque no exento de cierta hostilidad a lo utilitario, e injusto acaso en demasía con la vulgaridad, Rodó lo comprende al hacer sereno e imparcial juicio del americanismo y de la nordo- manía que amenaza deslatinizar a la América española (mejor es llamarla así que no Hispano-América como él hace).30 Em breve, formar-se-ia, na América Latina, uma corrente de pensamento denominada arielismo. Entre seus expoentes, figura- riam nomes como os mexicanos Alfonso Reyes e José Vasconcelos, bem como o argentino Manuel Ugarte.

Em 1902, José Enrique Rodó principiou uma carreira política como deputado, próximo do battlismo. Em paralelo, começou a es- crever Motivos de Proteo, que viria a ser publicado apenas em 1909. Em 1905, afastou-se da política e passou a divergir de Battle

29 Ibidem, p. 107. 30 UNAMUNO, Miguel de. Sobre Ariel (1901). In: Biblioteca de autor José Enrique Rodó. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015.

207 y Ordoñez. Três anos depois, retornou ao Parlamento, no qual per- maneceria até 1914. Rodó voltaria a apoiar o battlismo por breve período. Em 1913, lançou El mirador de Próspero. O ano de 1916 trouxe ao escritor a ansiada oportunidade de morar no estrangei- ro, com o convite da revista argentina Caras y caretas para ser seu correspondente na Europa. Rodó teria, contudo, pouco tempo de vida. A nefrite o impediu de chegar a Paris, destino privilegiado de seu périplo iniciado em Lisboa. Em 1º de maio de 1917, José Enrique Rodó morria em Palermo. Os restos do “maestro de la juventud” seriam solenemente repatriados em 1920.

2. EDUARDO PRADO Em artigo publicado em julho de 1898, o escritor português Eça de Queirós escreveu que “as Fadas benéficas [...] rodearam o berço”31 de Eduardo Paulo da Silva Prado. A interessante observação sobre esse membro do escol cafeicultor paulista que, dizem alguns, foi a inspiração para o dândi enfadado Jacinto de Tormes do romance eciano A cidade e as serras (1901) relaciona-se com a ponderação do biógrafo Cândido Motta Filho de que Prado haveria sido um “sibarita bem abastecido de saúde e dinheiro”32. Para Motta Filho, só com o tempo se foi desconstituindo esse estereótipo de playboy para se refazer a figura de um escritor engajado e coerente. Caçula de Martinho da Silva Prado e de Veridiana da Silva Prado, que tiveram quatro filhos e duas filhas, Eduardo Prado nasceu a 27 de fevereiro de 1860, em São Paulo, em uma ampla chácara lo- calizada na Rua da Consolação, vindo a morrer de febre amarela

31 QUEIRÓS, Eça de. Eduardo Prado. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2000. v. 3, p. 1602. 32 MOTTA FILHO, Cândido. A vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967, p. 3.

208 em sua cidade natal em 30 de agosto de 190133. Pertencia a um clã paulista bem estabelecido, que contava com ilustres membros nas elites política e econômica do País. O Barão de Iguape era seu avô materno e, entre os detentores do sobrenome Prado, encontravam- se Antônio Prado, primogênito de Martinho e Veridiana, conselheiro do Império, senador, ministro de Estado e lavrador, e Fábio da Silva Prado, prefeito de São Paulo nos anos 1930 e filho de Martinho da Silva Prado Júnior, este, um ardoroso republicano de primeira hora. Diz-se que Eduardo havia sido um menino interessado em lei- turas históricas, como seu futuro amigo José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco. Em 1881, formou-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, tendo frequentado o curso do a- famado professor João Teodoro Xavier de Matos. Em seu círculo de íntimos, encontravam-se jovens que viriam a se tornar persona- lidades da vida pública brasileira, como Júlio de Castilhos, positi- vista que presidiu o Rio Grande do Sul em duas ocasiões, Júlio de Mesquita, proprietário do jornal O Estado de S. Paulo, Pedro Lessa, ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1907 e 1921, e Afonso Celso, filho do visconde de Ouro Preto feito conde pelo papa e au- tor de Por que me ufano do meu país (1900). Em 1882, Eduardo Prado partiu para a costumeira temporada no estrangeiro dos jovens de sua condição. O itinerário foi variado, abarcando Sicília, Nápoles, Roma, Paris, Londres, Nova York, Chica- go, Cairo, Valparaíso, Wellington... Foram quatro anos de bons hotéis, restaurantes e banhos turcos.

As restrições à experiência norte-americana de materialismo extremo que viria a fazer anos depois parecem haver aflorado nesse período:

33 Boa parte dos apontamentos biográficos de Eduardo Prado contidos neste ensaio é devida a Cândido Motta Filho.

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Chicago é a cidade mais brutal do mundo. Estou na realidade extenuado com a viagem e ansioso para ver-me livre deste país que é uma fornalha e onde para abrir-se a boca paga-se um dólar e outro para fechar-se. Decididamente o mundo é Paris.34 Em paralelo às deambulações de globe-trotter, Prado desen- volveu atividade jornalística, assinando artigos de crítica literária e de política internacional. O Correio Paulistano foi um dos órgãos de imprensa em que deixou colaboração. Seu cosmopolitismo rendeu o livro de estreia, Viagens, publi- cado em Paris em 1886. Três anos depois, colaborou com o Barão do Rio Branco na edição de Le Brésil, trabalho publicado por ocasião da Exposição Internacional de Paris, que celebrava o centenário da Revolução Francesa.

Essa estância na Europa serviu para que travasse amizade com intelectuais do mundo lusófono. Por seu apartamento na Rue de Rivoli passaram o supracitado Eça, Ramalho Ortigão, Rio Branco, Domício da Gama e Joaquim Nabuco, entre outros. Foi em Paris que recebeu a notícia da Proclamação da República, que, em breve tempo, passaria a repudiar abertamente. Registre- se que essa má vontade com a forma republicana de governo parece não haver sido uma constante. De acordo com Cândido Motta Filho, as convicções de Prado na época da mocidade

Eram ainda inseguras, tanto mais que o cercava a natural atmosfera de rebeldia, própria do meio estudantil. Seu cato- licismo nativo sofria seus primeiros embates, e, pouco afeito ao conformismo, não recusava certa simpatia pelas promes- sas republicanas.35

34 PRADO, Eduardo. Viagens. apud SKIDMORE, Thomas E. Eduardo Prado: um crítico nacio- nalista conservador da Primeira República brasileira. In: O Brasil visto de fora. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 54. 35 MOTTA FILHO, op. cit., p. 6.

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Segundo Thomas E. Skidmore, Eduardo Prado

Até 1889 parecia ser pouco diferente dos outros aristocratas do café que passavam a maior parte do tempo fora do país. Com a queda do Império, no entanto, Prado repentinamente alarmou-se com a situação de seu país e rapidamente juntou- se ao movimento político monarquista.36 Seja como for, a vocação monárquica tardia veio à tona e pôde ser extravasada por meio da imprensa e dos livros. Já em 1889 Eça de Queirós franqueava a Eduardo Prado as páginas da Revista de Portugal, da qual era diretor. Nessa publicação, com o pseudônimo de Frederico de S., o brasileiro desancou o novo regime em uma série de artigos, mais tarde coligidos em um livro intitulado Fastos da ditadura militar no Brasil (1890). Sua verve antirrepublicana apareceria em outra obra, A bandeira nacional, livro publicado postumamente em 1903 no qual investia contra o novo pavilhão brasileiro, polemizando sobre a posição das estrelas no círculo azul que substituiu o brasão do Império contra o fundo de amarelo dos Habsburgo e de verde dos Bragança, que permaneceram. Nenhum desses trabalhos, contudo, foi tão célebre quanto A ilusão americana (1893). Eduardo Prado começa a obra anunciando o tom de reação e de veemência que terá o panfleto:

Pensamos que é tempo de reagir contra a insanidade da ab- soluta confraternização que se pretende impor entre o Brasil e a grande república anglo-saxônia, de que nos achamos se- parados, não só pela índole e pela língua como pela história e pelas tradições de nosso povo.37 A ilusão americana apresentará, ao longo de suas páginas, uma argumentação quase circular de negação da aproximação entre os

36 SKIDMORE, op. cit., p. 53. 37 PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Livraria e Officinas Magalhães, 1917, p. 1.

211 países, uma opção que conflita com o europeísmo sadio do Império – um Império chefiado por um monarca-cidadão que legou vida parlamentar estável, garantia de liberdade de imprensa, sólidos valores religiosos e até um punhado de sucessos bélicos na região do Prata – cujo desparecimento Prado pranteia. Sempre adjetivando fartamente, o autor argumenta que o fato de o Brasil e os Estados Unidos compartilharem o mesmo conti- nente é um “acidente geográfico ao qual seria pueril atribuir uma exagerada importância”38. O Velho Mundo é mesmo evocado como contraexemplo (“Pretender identificar o Brasil com os Estados Unidos, pela razão de serem do mesmo continente, é o mesmo que querer dar a Portugal as instituições da Suíça porque ambos os países estão na Europa!”39).

Os Estados Unidos são apresentados como uma nação que degradou a herança fundacional de “homens extraordinários, da velha extirpe saxônia, revigorada pelo puritanismo, e alguns deles bafejados pelo filosofismo”, homens que jamais fizeram “proselitis- mo de independência ou de forma republicana da América”40. Para Prado, foi a Inglaterra a grande protetora das independências ame- ricanas, não os Estados Unidos, que foram apoiados, aliás, pela França absolutista em sua própria guerra emancipacionista. A crença na Doutrina Monroe chega a ser tomada por “superstição”41.

Os norte-americanos aparecem como sócios potencialmente não confiáveis, sendo lembrado, por exemplo, o apoio que deram “aos governos que faziam pressão sobre o Brasil por motivo de ques- tões de presas marítimas no Rio da Prata [na época da Guerra da

38 Idem. 39 Ibidem, p. 2. 40 Ibidem, p. 8-9. 41 Ibidem, p. 17.

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Cisplatina]”42. Entre as muitas baixezas ianques mencionadas, como a histórica atuação intervencionista e belicosa no México e no istmo centro-americano, figura ainda o lamentável reconhecimento a Dom Miguel, “usurpador” da Coroa portuguesa, que deveria pertencer à sobrinha Dona Maria43. A velhacaria e a tendência à corrupção e à plutocracia aparecem como constantes norte-americanas que in- fluenciaram o relacionamento do país com os demais atores do sis- tema internacional ao longo do século XIX. Prado, ademais, evoca “o exemplo desmoralizador” dos Estados Unidos de “apego à escravidão”44. O Império teria sido, ao menos, menos hipócrita:

Enquanto no Brasil não houve escravocratas que tivessem o cinismo de querer legitimar a iníqua instituição, nos Estados Unidos, onde os senhores de escravos foram muito mais cruéis que no Brasil, publicaram-se livros, sermões, com a apologia científica e até religiosa da escravidão, e chegou o momento em que metade do país julgou que, para conservar e estender a es- cravidão, valia a pena sacrificar a própria pátria americana.45

Prado critica o “furor imitativo”, “ruína da América”46. Os países hispânicos teriam cometido um grave equívoco ao copiar fórmulas norte-americanas. O Império estabelecido em 1822 teria sido mais sensato:

O Brasil, mais feliz, instintivamente obedeceu à grande lei de que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos vivos, com a sua própria substância, depois de já estarem lentamente assimilados e incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela naturalmente tiver absorvido.47

42 Ibidem, p. 26. 43 Ibidem, p. 31. 44 Ibidem, p. 37. 45 Ibidem, p. 37. 46 Ibidem, p. 55. 47 Ibidem, p. 56.

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A partir do 15 de Novembro, começava-se a se cometer o mesmo erro dos hispânicos. Havíamos, em suma, caído na “longa, vã, tormentosa, sangrenta e já degradante e inútil tentativa, quase secular, de querer implantar na América latina as instituições de uma raça estranha”48. Contra esses vícios, insurge-se Eduardo Prado, cantando as vantagens da estabilidade do Antigo Regime:

As monarquias têm todo o interesse em adiar e evitar a gran- de crise do proletariado, porque as dinastias sabem que, numa grande catástrofe social, os tronos desapareceriam. Nas re- públicas não há esse interesse de conservação que leva os go- vernantes a querer bem governar por interesse próprio. Na república tudo é transitório; os homens sabem que, quer encham o seu país de benefícios, quer acumulem erros sobre erros e cheguem até ao crime, terão, em certo período, de deixar o poder, e, se a república comete faltas graves, mudam-se os homens, continuando sempre a república, ainda que seja para repetir as faltas que se procura, em vão, reprimir com a pe- riodicidade das revoluções.49 A ilusão americana teve uma trajetória editorial acidentada. A obra causou escândalo, e sua primeira edição foi apreendida pela polícia em São Paulo. Sentindo-se ameaçado, Eduardo Prado ru- mou para a Bahia e, de lá, para a Europa, onde continuaria sendo um crítico acerbo do novo regime. Seu retorno definitivo ao Brasil ocorreria apenas em 1900. Nos oito anos restantes de vida após a publicação de A ilusão americana, Prado aprofundou seu catolicismo, participando, em 1896, de um ciclo de conferências sobre José de Anchieta, que viriam a integrar o livro III Centenário do Venerável José de Anchieta, e dei- xando manuscritos inacabados sobre o Padre Antônio Vieira e o Padre Manoel de Moraes. Em agosto de 1901, dirigiu-se ao Rio de

48 Ibidem, p. 58. 49 Ibidem, p. 176-177.

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Janeiro a fim de tomar posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Na viagem à capital federal, contraiu febre ama- rela, doença que matara seu irmão Caio e que seria também a causa de sua morte aos 41 anos.

3. RODÓ E PRADO Como se tem afirmado, José Enrique Rodó e Eduardo Prado pertenceram a uma mesma geração da intelligentsia latino-americana. Nesta seção, proceder-se-á a um inventário de semelhanças e de diferenças entre ambos os autores.

Comece-se pelas similitudes, sendo a primeira delas a temá- tica da elevação do protagonismo norte-americano no sistema in- ternacional da época, comum aos dois trabalhos mais importantes dos ensaístas aqui estudados. Ambas as obras foram impulsadas por acontecimentos que tinham a ver com mudanças institucionais nas quais se sentia, direta ou indiretamente, a presença dos Estados Unidos.

No caso de Ariel, o grande elemento extratextual desencade- ador da obra foi, como se vem argumentando, a derrota espanhola no conflito de 1898. De acordo com Octavio Ianni,

Rodó escreveu Ariel na época em que a guerra hispano- americana de 1898 surpreendeu muitos latino-americanos. Em lugar da independência que almejavam, Porto Rico e Cuba foram submetidos pelo governo dos Estados Unidos. Neste momento, uma parte do pensamento latino-americano colocou-se não só contra o intervencionismo dos Estados Uni- dos, mas contra o modelo norte-americano de modernização.50 A ilusão americana, por seu turno, foi obra escrita na esteira da ruptura institucional do 15 de Novembro de 1889 – para parte dos contemporâneos, uma quartelada a que o povo, para evocar a

50 IANNI, Octavio. Apresentação. In: RODÓ, José Enrique. Ariel. Campinas: Editora Unicamp, 1991, p. 10.

215 célebre frase de Aristides Lobo, assistiu bestializado. Na agitação dos primeiros tempos pós-monárquicos, ensaiara-se o uso de uma bandeira com estrelas e listras, e a primeira Constituição daria, pouco tempo depois, o nome de Estados Unidos do Brasil à jovem república sul-americana. Conforme Thomas E. Skidmore, “ao atacar a posição pró-Estados Unidos da nova República, Prado havia esta- belecido uma nova e importante corrente no pensamento crítico sobre a nacionalidade brasileira”51. Tanto Ariel quanto A ilusão americana, portanto, são obras em que se buscava uma intervenção no debate político a partir de um evento muito recente. Ambas constituem, para empregar a expres- são cara ao crítico literário Antonio Candido, “literatura empenhada”52. Nesse sentido, importa menos se Ariel flerta com uma dicção hele- nizante apologética de uma educação refinadora das massas ou se A ilusão americana toma a forma de um panfleto virulento em que se lamentam o fim da monarquia e a procura dos Estados Unidos. No que respeita à ideia de assunto compartilhado em meio à diver- sidade de ênfase e de tratamento, a ponderação de Angela Alonso sobre a produção da Geração de 1870 parece servir aos dois textos aqui analisados. Segundo a socióloga,

Apesar das separações doutrinárias autoproclamadas, há uma unidade de temas de repertório político-intelectual e de sen- tido político entre os autores da geração 1870 usualmente classificados como extremos.53 Ainda no campo das semelhanças, há que se destacar a co- munhão de repúdio ao materialismo e ao utilitarismo identificados

51 SKIDMORE, op. cit., p. 59. 52 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007, p. 28. 53 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 169.

216 com os norte-americanos (e, de certa maneira, com setores de suas próprias sociedades que se aproximavam desses valores, não sendo desprezível a variável do incremento da imigração, potencialmente perturbadora dado o desenraizamento dos que chegavam). Rodó fala, por exemplo, de “Calibán, símbolo de sensualidad e de torpeza”54, “cierto falsísimo y vulgarizado concepto de la educación, que la imagina subordinada exclusivamente al fin utilitario”55, “helados desiertos de los espíritus”56, “asperezas del tumulto utilitario”57 ou de “la desorientación ideal y el egoísmo utilitario”58. Prado, por seu turno, escreve um parágrafo que dialoga diretamente com essas metáforas de pobreza espiritual e de baixos instintos:

A civilização norte-americana pode deslumbrar as naturezas inferiores que não passam da concepção materialística da vida. A civilização não mede-se pelo aperfeiçoamento material, mas sim pela elevação moral. O verdadeiro termômetro de civili- zação de um povo é o respeito que ele tem pela vida humana e pela liberdade.59 A ideia de que o utilitarismo excessivo dos norte-americanos teria uma contraposição em uma maior humanidade – ainda que imperfeita – dos latinos é avançada por Eduardo Prado mais adiante. Nisso, malgrado a diferença de conclusão sobre se constituiriam um bloco (como se verá adiante), parece haver alguma convergên- cia entre o uruguaio e o brasileiro:

O espírito americano é um espírito de violência; o espírito latino, transmitido aos brasileiros, mais ou menos deturpado através dos séculos e dos amálgamas diversos do iberismo, é um espírito jurídico que vai, é verdade, à pulhice do bacha-

54 RODÓ (1947), p. 16. 55 Ibidem, p. 31. 56 Ibidem, p. 32. 57 Ibidem, p. 86. 58 Ibidem, p. 99. 59 PRADO, op. cit., p. 236.

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relismo, mas conserva sempre um certo respeito pela vida humana e pela liberdade.60 Definidas brevemente as semelhanças, urge agora realçar no que se diferenciam os dois autores em suas duas obras mais representativas. A primeira diferença é conceitual. Rodó cunhou o termo nor- domanía, aparecido uma única vez em seu ensaio. Transcreva-se o trecho:

Se imita a aquel en cuya superioridad o cuyo prestigio se cree. – Es así como la visión de una América deslatinizada por su propia voluntad, sin la extorsión de la conquista, y regenerada luego a imagen y semejanza del arquetipo del Norte, flota ya sobre los sueños de muchos sinceros interesados por nuestro porvenir, inspira la fruición con que ellos formulan a cada paso los más sugestivos paralelos, y se manifiesta por constantes propósitos de innovación y de reforma. Tenemos nuestra nor- domanía. Es necesario oponerle los límites que la razón y el sentimiento señalan de consuno.61 Já Eduardo Prado entrega, no título, a ilusão, desdobrada no texto, gerada pelo poder de atração acrítica exercido pelos Estados Unidos sobre o Brasil. Para afastar de vez a quimera de que seria proveitoso à recém-criada república estreitar laços com os Estados Unidos, Prado recorda as palavras do primeiro dos norte-americanos:

George Washington, na sua mensagem de adeus, verdadeiro e sublime testamento, escreveu as seguintes palavras que a veneração americana tem conservado através das gerações: “Deveis ter sempre em vista que é loucura o esperar uma na- ção favores desinteressados de outra, e que tudo quanto uma nação recebe como favor terá de pagar mais tarde com uma parte da sua independência... Não pode haver maior erro do que esperar favores reais de uma nação a outra...”

60 Ibidem, p. 238-239. 61 RODÓ (1947), p. 78-79.

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Que o conselho de Washington não sirva somente para os seus compatriotas... Os brasileiros devem aceitar a lição, e sejam quais forem as fatalidades do momento, saibam eles repelir o estrangeiro que só conseguirá aviltar o país que aceitar os seus serviços.62 As ideias de mania e de ilusão têm alguma sobreposição se- mântica, mas não são exatamente intercambiáveis. Na primeira entrada do vocábulo manía contido no Diccionario de la lengua es- pañola da Real Academia Española, diz-se que se trata de “especie de locura, caracterizada por delirio general, agitación y tendencia al furor”63. Já o Dicionário Houaiss dá como uma das definições de “ilusão” a “fantasia da imaginação; devaneio, sonho, quimera”64. Curiosamente, Rodó, um grave heleno perdido nas imensidões pampianas, empregava um termo identificado à época com taras e patologias, ao passo que Eduardo Prado, um dândi panfletário e cosmopolita que não raro recorria a determinismos geográficos próprios de seu tempo, usava a noção mais incorpórea da ilusão. A grande divergência entre Rodó e Prado, todavia, reside no tratamento que dão à relação de poder Estados Unidos/resto do Hemisfério, com ênfase no último polo. Para Rodó, os latino-ame- ricanos constituem uma comunidade de tradições compartilhadas – existiria uma dualidade hemisférica. Segundo o ensaísta,

América necesita mantener en el presente la dualidad origi- nal de su constitución, que convierte en realidad de su historia el mito clásico de las dos águilas soltadas simultáneamente de uno y otro polo del mundo, para que llegasen a un tiempo al límite de sus dominios.65

62 PRADO, op. cit., p. 252-253. 63 Ver consulta no sítio . Acesso em: 11 fev. 2015. 64 Ver consulta no sítio . Acesso em: 11 fev. 2015. 65 RODÓ (1947), p. 82.

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Ainda que não se escreva o nome do Brasil no ensaio, subentende- se que o ex-Império de origem ibérica encontra guarida no polo latino. Não à toa, quando se organizou, em 2000, um ciclo de confe- rências para comemorar o primeiro centenário de Ariel, Rodó foi relacionado à integração mercosulina. Alberto Methol Ferré, profes- sor de história do Instituto Artigas del Servicio Exterior (a academia diplomática uruguaia), fez uma exposição justamente batizada de “De Rodó al Mercosur”. Transcreva-se um trecho:

El Mercosur, aunque muchos no lo sepan, es resultado de un largo camino del Ariel de Rodó. Y no todavía el final. Rodó nos exige profundizar y proseguir hasta la Unión Sudamericana. Eso nos corresponde a nosotros y a las generaciones que sigan. Pues se trata del «ser o no ser» de nosotros en y por América Latina. Ariel no terminó su tarea, ahora mucho más concreta y urgente. Ariel quiere incorporarse ya de una vez al mundo cotidiano, al pan de cada día. Llegar a ser ¡al fin! vulgar. Sólo así habrá realizado su misión.66 Eduardo Prado claramente diverge dessa solução integradora. Para ele,

A fraternidade é uma mentira. Tomemos as nações ibéricas da América. Há mais ódios, mais inimizades entre eles do que entre as na- ções da Europa. [...] A embrulhada e horrível história de todas estas nações é um rio de sangue, é um contínuo morticínio.67 Nesse sentido, sua ilusão americana pode ser lida não só como a expectativa irreal de que os Estados Unidos deveriam servir-nos

66 METHOL FERRÉ, Alberto. De Rodó al Mercosur. Conferência proferida em 17 out. 2000. In: VÁRIOS AUTORES. Prisma: arielismo y latinoamericanismo. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. 67 PRADO, op. cit., p. 3.

220 como modelo e parceiro, mas, também, de maneira ampliada, como a negação de que a procura do hemisfério republicano como um todo, sempre tratado com desconfiança pelo Império, seria benigna. Prado parece evocar o velho mito da Ilha Brasil, apartada do resto do continente pela comunicação das bacias do Amazonas e do Prata. De acordo com o autor,

Voltado para o sol que nasce, tendo, pela facilidade da viagem, os seus centros populosos mais perto da Europa que da maio- ria dos outros países americanos; separado deles pela diversi- dade da origem e da língua; nem o Brasil físico, nem o Brasil moral, formam um sistema com aquelas nações.68 As trajetórias pósteras de Eduardo Prado e de José Enrique Rodó também tiveram sentidos distintos. Ao propalar, em tom pe- dagógico, a espiritualização da juventude latino-americana, que deveria cultivar a beleza e se instruir para escapar à grosseria do utilitarismo identificado com os Estados Unidos e que potencial- mente aflorava nas sociedades periféricas em transformação, Rodó criou uma legião de discípulos e admiradores no conjunto de países de língua espanhola e, em menor escala, mesmo no Brasil. Perenizou- se, de maneira concreta, física, no imaginário cultural uruguaio, ao emprestar seu nome ao Parque Rodó, área verde de 43 hectares que também batiza o bairro próximo ao centro de Montevidéu. Na região, aliás, localiza-se o edifício-sede do Mercosul. Eduardo Prado teve uma trajetória menos gloriosa. Para Sergio Paulo Rouanet, mais do que os desafetos, foram os admiradores equivocados de Prado que prejudicaram sua reputação post mortem. De acordo com o ensaísta,

Há um mal-entendido de esquerda, que, partindo de sua crí- tica aos Estados Unidos em A Ilusão Americana, vê em Eduardo

68 Ibidem, p. 5.

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Prado um precursor do antiamericanismo atual. [...] Mas há também um mal-entendido de direita, que parte do monar- quismo e do catolicismo de Eduardo Prado para ver nele um pioneiro dos movimentos extremistas que se aglutinariam depois na França em torno de Maurras e da Ação Francesa.69 Na cidade onde nasceu, Eduardo Prado batiza uma alameda situada no outrora afrancesado bairro de Campos Elíseos, hoje si- tuado no perímetro da Cracolândia paulistana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS/ATUALIDADE Em 1981, o historiador francês Jean-Baptiste Duroselle lançou o livro Tout empire périra70. O título eloquente evocava a imperma- nência das hegemonias de poder, sugerindo certa maleabilidade na estrutura do sistema internacional e a possibilidade eventual de revisão das proeminências.

Foram variados, ao longo da história, os exemplos de Estados que, em seu processo ascensional, geraram reações desencontra- das entre intelectuais, artistas e políticos. É o caso de Beethoven, que dedicou a Sinfonia Eroica a Bonaparte para depois, decepcio- nado com a decisão do corso de constituir formalmente um Império, riscar a deferência escrita na primeira página da partitura71. A Alemanha de Guilherme II, com sua Weltpolitik reivindicante de “um lugar ao sol”72, por seu turno, assustava a opinião pública em

69 ROUANET, Sergio Paulo. Eduardo Prado e a modernidade. Folha de S.Paulo, Mais!, São Paulo, 23 set. 2001. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. 70 Ver DUROSELLE, Jean-Baptiste. Tout empire périra: théorie des relations internationales. Paris: Armand Colin, 1992. 71 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções (1789-1848). São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 135. 72 DÖPCKE, Wolfgang. Apogeu e colapso do sistema internacional europeu (1871-1918). In: SOMBRA SARAIVA, José Flávio (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 115.

222 diferentes lugares (em 11 de setembro de 1897, no jornal londrino The Saturday Review, lia-se que “if Germany were extinguished tomorrow, the day after tomorrow there is not an Englishman in the world who would not be the richer”73). O último kaiser, aliás, em cartas trocadas com o czar Nicolau II, falava no “perigo amarelo” representado pelo arranque do Japão moldado pela Era Meiji (um Japão que, tempos depois, derrotaria a Rússia)74.

Nesse sentido, os Estados Unidos não estavam sozinhos na pro- dução de mixed feelings, que comportavam tanto a admiração quanto o desprezo. Seu pioneirismo na refundação da forma republicana e no estabelecimento do constitucionalismo moderno, sua demogra- fia impressionante constantemente enriquecida pelo aporte migra- tório das “huddled masses yearning to breathe free”, como se lê na placa de bronze que existe no interior da Estátua da Liberdade, sua ausência inovadora de distinções nobiliárquicas, seu incentivo ao empreendedorismo do self-made man e ao registro de invenções e de patentes, contudo, faziam do país um exemplo de excepciona- lidade evidente. Soldada a unidade norte-americana com o fim da guerra civil, o país seguiu um itinerário no século XX que nem o per- calço de 1929 pôde interromper. A evocação da diatribe de Eduardo Prado e da meditação de José Enrique Rodó sobre o avanço estadunidense é produtiva porque a ideia de Império em gestação contida no ciclo duroselliano se ma- nifesta contemporaneamente no fenômeno da ascensão chinesa. Durante parte dos séculos XIX e XX, a sociedade norte-ame- ricana foi retratada como materialista, grosseira, pouco enraizada

73 O texto do jornal londrino The Saturday Review de 11 de setembro de 1897 foi republicado pela revista norte-americana mensal The Open Court de outubro de 1914. Ver England and Germany. The Open Court, Chicago, out. 1914. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. 74 DEZEM, Rogério. Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 147-160.

223 espiritual e culturalmente. Os ricos norte-americanos eram parvenus que buscavam o passado de que não dispunham em casa nas tem- poradas de férias ensolaradas nas velhas civilizações europeias. “When good Americans die they go to Paris. […] And where do bad Americans go to when they die? [...] They go to America”75, zombou Oscar Wilde em diálogos provocantes do romance The picture of Dorian Gray, publicado em 1891 e, portanto, praticamente contem- porâneo de A ilusão americana, de 1893. Ao longo do século XX, o estoque de soft power pelos Estados Unidos cresceu de maneira exponencial. Os Estados Unidos, para usar uma terminologia rodoniana, descalibanizaram-se parcialmente e parcialmente se arielizaram. Um símbolo cultural poderoso desse processo é o jazz, gênero que, primeiramente visto por frankfur- tianos empedernidos como música de massa degradada, tem sido percebido atualmente como um traço de elevada sofisticação inte- lectual de quem o consome76. O povo utilitarista de imaginação curta faria da fantasia cinematográfica uma fonte inesgotável de poder brando. Suas intervenções militares baseadas em uma ideia abstrata – a difusão da democracia – apontariam, de acordo com interpretações autocongratulatórias, para uma abnegação de con- quistas concretas imediatas em nome de um ideal de bem comum da humanidade.

Espiritualizados, em maior ou menor grau, os outrora crua- mente materialistas Estados Unidos, parece haver a China encam- pado o papel de rude Caliban rodoniano de nosso tempo. Os hábitos dos turistas chineses – cuspir no chão, atravessar a rua no sinal vermelho ou falar alto – estariam, para o próprio governo de Pequim,

75 WILDE, Oscar. The picture of Dorian Gray. Londres: Penguin Books, 1994, p. 48. 76 Ver BÉTHUNE, Christian. Adorno et le jazz: analyse d’un déni esthétique. Paris: Editions Klincksieck, 2003.

224 chamuscando a imagem do país, percebido como uma terra de gente pouco civilizada77. Sobre o relacionamento do norte-americano com a arte, José Enrique Rodó dissera que era caracterizado por “el des- conocimento de todo tono suave y de toda manera exquisita, el culto de una falsa grandeza, el sensacionalismo que excluye la noble serenidad inconciliable con el apresuramiento de una vida febril”78. Esse trecho do autor uruguaio bem poderia compor uma resenha de uma apresentação do pianista chinês Lang Lang, já chamado de Bang Bang por suas performances tidas como pouco sutis e despro- vidas de sentimentalidade79 (cite-se que o pianista acabou contribu- indo para dar razão a essas críticas talvez preconceituosas ao gravar um vídeo em que tocava um trecho de Chopin com uma laranja80). Por muito tempo orgulhosamente isolada dos “bárbaros” que periodicamente tentavam assediá-la comercialmente, a rica e inven- tiva civilização chinesa terminaria humilhada pelos tratados desiguais com o Ocidente no século XIX, atravessando, na centúria seguinte, caos, revolução e reconstrução até a busca de uma estudada inser-

77 Reportagens em jornais ocidentais têm registrado o fenômeno da expansão global de tu- ristas chineses. Ver BRANIGAN, Tania. Chinese tourists warned over bad behaviour overseas. The Guardian, Londres, 17 mai. 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. Ou, ainda, LEVIN, Dan. Wooing, and also resenting, Chinese tourists. The New York Times, Nova York, 16 set. 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. A reportagem do New York Times, aliás, começa de maneira interessante ao identificar uma linhagem turística que começa nos norte-americanos, passa pelos japoneses e chega aos chineses: “The Ugly Americans terrorized Europeans and Asians with their booming voices and tennis shoes in the years after World War II. Decades later, Japanese tour groups descended from their air-conditioned buses to flash peace signs as they shot photos of every known landmark as well as laundry on backyard clotheslines. Now it is China’s turn to face the brunt of complaints”. 78 RODÓ (1947), p. 94. 79 Ver SHARP, Rob. Pianist Lang Lang hits out at ‘Bang Bang’ critics. The Independent, Londres, 3 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. 80 Ver o vídeo no sítio . Acesso em: 11 fev. 2015.

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ção no sistema internacional a partir do governo de Deng Xiaoping. A China chegou à modernidade sem jamais seguir completamente o cânone ocidental westfaliano, sendo antes uma civilização-Estado do que um Estado-nação81. Pelo que representa de excepcional, a China, como os Estados Unidos dos tempos de Rodó e de Eduardo Prado, fascina e assusta. Autores como o historiador britânico Perry Anderson têm falado em sinomania82 (e em sinofobia, a outra face da moeda), assim como Rodó demonstrara preocupação, nos ester- tores do século XIX, com a nordomanía. Em sua busca de “ascensão pacífica” (ou de realização do “sonho chinês”, como a propaganda oficial tem preferido repisar recente- mente), a China cunhou o conceito de comprehensive national power, índice que conjuga elementos de poder brando e de poder duro, vetores com os quais ainda lida, para alguns analistas, dando mos- tras desencontradas de altivez e de insegurança83. Para tentar miti- gar as sensações ameaçadoras que sua cultura autocentrada e seu impressionante poderio econômico-demográfico despertam, o país tem buscado realizar uma “ofensiva de charme”, que inclui, por exemplo, o lançamento de filmes com referências mais palatáveis aos ocidentais e a disseminação de filiais do Instituto Confúcio (análogo à Aliança Francesa ou ao Instituto Cervantes) pelo mundo84. A discussão sobre a presença chinesa contemporânea na África, por exemplo, pode ser produtivamente abordada à luz dos comen-

81 Ver JACQUES, Martin. When China rules the world: the end of the Western World and the birth of a new global order. Londres: Allen Lane, 2009. 82 Ver ANDERSON, Perry. Sinomania. London Review of Books, Londres, 28 jan. 2010. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. 83 Sobre as potenciais contradições chinesas entre hard e soft power, ver SHAMBAUGH, David. China goes global: the partial power. Nova York: Oxford University Press, 2012. 84 Sobre a “ofensiva de charme” chinesa, ver KURLANTZICK, Joshua. Charm offensive: how China’s soft power is transforming the world. Binghamton: Caravan Books, 2007.

226 tários de Eduardo Prado sobre a ganância dos grandes capitalistas norte-americanos do século XIX. Tem-se disseminado a percepção de que os chineses na África agem visando ao lucro por meio de violações aos direitos humanos da mão de obra local (e mesmo de compatriotas que imigram temporariamente) e da corrupção de autoridades, em uma relação tida, por alguns, como assimétrica, “neoimperialista”, com os países receptores de seus investimentos e projetos de infraestrutura85. A essa ideia de relacionamento desi- gual pode-se contrapor a de uma aproximação entre iguais, que tem sido o discurso brasileiro de sucessivas administrações. Dife- rentes chefes de Estado e ministros das Relações Exteriores têm utilizado expressões que remetem à ideia de irmandade em suas menções ao continente86. Na aproximação entre sul-americanos, o Brasil à testa, e africanos, tem-se buscado escapar, nos últimos tempos, ao puro e simples discurso culturalista, com adoção de um tom mais pragmático e ênfase em aspectos econômicos e de segu- rança. Parece persistir, no entanto, a ideia de um substrato comum que remete ao chamamento de Próspero/Rodó feito à juventude da América Latina87.

85 Ver, por exemplo, OKEOWO, Alexis. China in Africa: The new imperialists?. The New Yorker, Nova York, 12 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2015. Autores como Paulo G. Fagundes Visentini, por seu turno, criticam o conceito do neoimperialismo chinês. Ver, nesse sentido, VISENTINI, Paulo G. Fagundes. A China e a Índia na África: imperialismo asiático ou cooperação sul-sul?. In: Ciências & Letras, Porto Alegre, Faculdade Porto-Alegrense, n. 48, 2010, p. 13-28. 86 Em 1960, o chanceler Horácio Lafer empregou a expressão “irmãos africanos” em discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. A expressão é literalmente repetida, no mesmo foro, no ano de 1974, pelo Embaixador Azeredo da Silveira. O presidente João Figueiredo, em 1982, também na Assembleia, falou em “países-irmãos da África”. Em 1994 e em 2005, o Embaixador Celso Amorim lançou mão das expressões “nações irmãs africanas” e “países irmãos do continente africano”, respectivamente. Ver SEIXAS CORRÊA, Luiz Felipe de (Org.). O Brasil nas Nações Unidas (1946-2006). Brasília: Funag, 2007. 87 Na abertura da terceira cúpula América do Sul-África, em 2013, em Malabo, na Guiné Equa- torial, a presidenta Dilma Rousseff falou, por exemplo, em “cooperação fraterna”. A íntegra do discurso da presidenta da República pode ser acessada no sítio

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Enquanto Impérios perecerem e surgirem (ou ressurgirem, como os chineses gostam de narrar, considerando o “Século da Hu- milhação” de 1839 a 1949 um simples acidente de percurso em meio a uma trajetória gloriosa), intelectuais, jornalistas, artistas e políti- cos, entre outros atores sociais, produzirão discursos reveladores de mania ou de fobia dos atores do sistema internacional que passam a exercer maior protagonismo. Nesse sentido, recuperar as ideias do uruguaio José Enrique Rodó e do brasileiro Eduardo Prado, mal- grado o datado e o maniqueísta que existem em muitas de suas ponderações, revela-se um exercício de reflexão que ajuda a com- preender o tempo presente.

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SOBRE OS AUTORES

Adriano Giacomet de Aguiar Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Foi bolsista pela China Scholarship Council para o estudo da língua e cul- tura chinesas.

Clarissa de Souza Carvalho Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de iniciação científica pela FAPERGS e pela PROPESQ/ UFRGS. Primeira colocada do Brasil no Concurso Histórico-Literário Caminhos do MERCOSUL.

Flávio Beicker Barbosa de Oliveira Bacharel e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi advogado, pesquisador da Escola de Direito da FGV e professor da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Bolsista de iniciação científica pela FAPESP. Intercambista do DAAD junto à Universidade de Munique (LMU), Alemanha.

Gustavo Gerlach da Silva Ziemath Possui graduação e mestrado em Relações Internacionais pela Universi- dade de Brasília (UnB).

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Júlia Vita de Almeida Formada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), atuou também como advogada na área de Arbitragem Internacional.

Pedro Ivo Souto Dubra Bacharel em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda e em Letras/ Português pela Universidade de São Paulo (USP). Foi jornalista, havendo colaborado com veículos de comunicação tais como o jornal Folha de S.Paulo e as revistas Bravo! e Época.

Impresso na Gráfica da Divisão de Serviços Gerais do Ministério das Relações Exteriores

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