HOMENS DE LETRAS, HOMENS DE CIÊNCIA: DISCURSO RACIOLÓGICO NA LITERATURA BRASILEIRA EM CANAÃ, DE GRAÇA ARANHA. Ryanne F. Mont
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1 HOMENS DE LETRAS, HOMENS DE CIÊNCIA: DISCURSO RACIOLÓGICO NA LITERATURA BRASILEIRA EM CANAÃ, DE GRAÇA ARANHA. Ryanne F. Monteiro Bahia1 Resumo: Na literatura, busca-se um instrumento de compreensão dos imaginários sociais, ideologias, diferentes formas de leitura de mundo. Analisamos a relação entre literatura e produção de discursos que foram em determinado momento pautas científicas e políticas na história do Brasil do início do século XX. A pergunta de partida que norteia esse estudo é: de que forma o discurso raciológico se expressa na obra de literatura brasileira Canaã, de Graça Aranha? Este estudo tem por objetivo compreender um processo que é a construção de um discurso que qualificava o ser humano pelo critério racial e mediante o qual havia também uma classificação social. Nosso campo é a literatura brasileira. Através dessa obra Canaã de Graça Aranha, publicada em 1902, discutimos como a intelectualidade brasileira percebia temas importantes na época como imigração, “raça” e “civilização x barbárie”. Metodologicamente, procedemos da seguinte forma: analisaremos o lugar social do escritor, estrutura e pertencimentos (posição) social e intelectual, bem como o ambiente e as ideologias que marcaram o período em que a obra foi editada, além do próprio conteúdo da obra. Palavras-chave: Literatura. Raça. Graça Aranha. Homens de Letras. Pré-modernismo. INTRODUÇÃO: Neste estudo abordaremos “o lugar de fala” de Graça Aranha. Para melhor captar o que é dito em Canaã, é preciso adentrar na figuração social2 que compõe o campo literário brasileiro do início do século XX, e seu modo de funcionamento, sua ordem própria, bem como as idiossincrasias que delimitam o ofício de romancista/homem de letras. 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas (GEPE/ UFC). 2 Norbert Elias denomina figuração social ou configuração social, uma estrutura particular, que pode possuir diferentes dimensões para vários tipos de análise, desde um caso particular, micro relações como um jogo de cartas, até a análise da sociedade de corte de Luís XIV. 2 Insiste-se aqui na delimitação do termo homem de letras e sua diferenciação do termo romancista, tentando evidenciar a singularidade do caso brasileiro. Enquanto Flaubert conforme analisado por Pierre Bourdieu, representava o romancista (aquele que se dedicava somente à atividade artística e que cria uma “arte pura”), Graça Aranha seria um homem de letras, cuja obra possuía um caráter pragmático, que não tinha na atividade de romancista sua principal ocupação. Essa contextualização nos fornece chaves de leitura acerca do que não está dito diretamente no texto, apontando suas contradições e tensões. O termo “homem de letras” laureava uma categoria especial socialmente: pessoas altamente instruídas; sejam médicos, advogados, burocratas etc. Entre tais funções, poderia esse intelectual ser também escritor, tal foi o caso de Machado de Assis, Euclides da Cunha e Graça Aranha. Por esse motivo conheceremos um pouco do campo literário brasileiro. 1. CAMPO LITERÁRIO E A INSCRIÇÃO DE GRAÇA ARANHA NO MESMO Pierre Bourdieu (2011) define como mercado dos bens simbólicos as transformações da função do sistema de produção, circulação e consumo desses bens rumo a uma autonomização do que ele chama campo artístico. Essa autonomia significa dizer que as regras de um campo não são aplicáveis a outros, que, por exemplo, se determinada pessoa é um bom político não será necessariamente um “bom” artista. O Brasil até o início do século XX não possuía um mercado de bens simbólicos consolidado. Apenas tateava-se algo similar. Não se encontravam em 1902, quando Canaã foi publicado, as características que definiam a formação do mercado de bens simbólicos bourdieusiano: a) Crescimento de um público que foi se diversificando: poucos eram letrados, se totalizarmos a população como um todo. A formação de um público leitor era muito incipiente apesar da publicação de textos literários em periódicos, e efetivamente se iniciara com o romantismo e sua missão de “vender” uma ideia de brasilidade aos habitantes no pós-independência. 3 b) Crescimento de um corpo especializado que define as regras: a Academia Brasileira de Letras havia se recém-fundado em 20 de julho de 1897, com um corpo de intelectuais reconhecidos socialmente, porém, mesmo o seu presidente, Machado de Assis, não vivia apenas para sua arte, diferentemente de Flaubert, exemplificado por Bourdieu como exemplo de “artista puro”3. c) Multiplicação e diversidade de instâncias de consagração: além da ABL não sobravam instâncias alternativas, apenas o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, mas que se dedicava as ciências em geral. Os escritores brasileiros no início do século XX e nos períodos precedentes não dispunham da possiblidade de viver exclusivamente da atividade literária; eles comumente ocupavam cargos públicos ou outro ofício que coubesse a um bacharel ou “homem de letras”. Isto se dava em boa parte em virtude da não consolidação no país propriamente de um mercado de bens literários, ao menos não no sentido moderno, com públicos bem estabelecidos, produção massiva etc, o que ocorria também em função do grande analfabetismo na época. A literatura era um qualificador social destinado às pessoas abastadas com acesso ao código de apreciação da obra, nesse caso, a capacidade de ler. (CRUZ COSTA, 1991). A grande maioria da população brasileira não fazia parte do público leitor por dois motivos elementares: as sanções materiais (poucos poderiam adquirir os folhetins e os livros) e as sanções simbólicas (mesmo que possuíssem esses itens não partilhavam dos códigos de apreciação das obras). 1.1 A ESCOLA TEUTO-SERGIPANA E A PESPECTIVA RACIAL A Escola do Recife foi o ponto de partida da discussão racial no Brasil, conforme creditam diversos autores dentre eles Renato Ortiz (1994), Cruz Costa (1991), Paes (1992). Tobias Barreto foi professor predileto de Graça Aranha e amigo pessoal. Foi segundo o autor de Canaã em sua autobiografia, Meu Próprio Romance, sua maior referência intelectual. Pode-se dizer que Canaã expressa de certo modo, os debates que marcaram a juventude do autor durante sua formação na Faculdade de Direito. O modo 3 A “arte pura” era aquela que “não possuía preço”, não um valor venal, mas simbólico. A arte, nessa perspectiva seria uma expressão da alma do artista, distinta do artesanato ou do trabalho mecânico. O artista era visto como um “gênio criador”, possuidor de dons, qualidades especiais. 4 como a personagem Lentz debate com os diversos personagens que cruzam seu caminho acerca do “futuro do brasileiro”, do tema da evolução e da raça assemelha-se com o modo que Graça descreve a arte argumentativa de Tobias Barreto. (FREYRE, 1971). Outro aspecto pelo qual destacamos a figura de Tobias Barreto é a de este teria sido o pioneiro na discussão da raça no Brasil. O autor de Canaã foi enviado à referida faculdade quando contava apenas trezes anos de idade. Grande foi sua dificuldade de se adaptar não apenas a uma nova cidade, (saíra do Maranhão, onde estava acostumado aos cuidados familiares, e especial zelo da mãe), como também ingressava no ensino superior ainda muito jovem. A respeito de seu ingresso na Faculdade e suas primeiras aulas, o então universitário assim expressou-se: O que me ensinaram de filosofia do direito, eu não entendia. Era superior ao meu preparo, e professorado sem clareza, sem fluido de comunicação. José Hygino, o pesado, mestre spenceriano, nos enjoava e nós não o entendíamos. (ARANHA, 2003, 148). A formação em exatas de Spencer exigia um repertório vasto no campo da matemática e da física. O que aparentemente tornava as aulas de seu intérprete José Hygino demasiado complicadas e pouco atrativas. Em biografia, Graça Aranha demonstra grande entusiasmo quando se refere a Tobias Barreto, este teria “salvo” sua vida acadêmica. Em suas aulas, demonstrava repulsa ao direito natural e às explicações teológicas, era portador de “novos valores científicos”. Acrescenta: “Imediatamente Tobias Barreto se tornou o nosso favorito”. “Tobias, mulato desengonçado, entrava sob o delírio das ovações”. (GRAÇA ARANHA, 2003, p. 148) Graça Aranha se refere a Tobias Barreto como uma personalidade extremamente carismática, alguém a quem se acreditava (e conseguia que outros o fizessem) imbuído de produzir uma reforma no ensino universitário do direito, pondo abaixo questões sagradas a outros mestres como o prisma teológico e o direito natural. Nesse sentido, sua ação se torna, dentro do ambiente acadêmico, revolucionária. Sobre essa atração exercida sobre os jovens acadêmicos, ávidos por consumirem (ao menos na teoria) um produto novo, uma nova perspectiva; Graça Aranha assinala: 5 O mulato feio, desengonçado, transformava-se na arguição e nos debates do concurso. Os seus olhos flamejavam, de sua boca escancarada, roxa, móvel saia uma voz maravilhosa [...] O que ele dizia era novo, profundo, sugestivo. Abria uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a semente, sem saber como ele frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos transformaríamos. (GRAÇA ARANHA, 2003, p. 149). Em O Meu Próprio Romance, Tobias Barreto causa admiração aos alunos mesmo antes de passar no concurso para professor efetivo. Sua erudição durante a prova oral causou grande impressão aos que o assistiam e fascinou o adolescente Graça Aranha. Este narra seu encontro com o futuro mestre: Foi então que, tomado de um impulso irreprimível, saltei a grade e por entre as aclamações dos estudantes e [sic] deante do assombro da Congregação, atirei-me aos braços de Tobias Barretto, que me recolheu comovido e generoso. "Já é acadêmico?" perguntou-me, admirado da minha pouca idade. "Sim, calouro." Abraçou-me novamente. "Pois bem, vá á minha casa esta noite." Que deslumbramento! Não voltei aos meus [sic] collegas. [...] Nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barretto (GRAÇA ARANHA, 1931, p. 150). Alfredo Bosi (2006) se refere a Tobias Barreto como um grande admirador dos positivistas franceses e dos monistas4 alemães.