Machado De Assis Pelo Olhar Dos Outros: a Polêmica Entre Sílvio Romero E José Veríssimo
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Machado de Assis pelo olhar dos outros: a polêmica entre Sílvio Romero e José Veríssimo Renata William Santos do Vale (Doutoranda em História/UFF, com apoio do CNPq; pesquisadora do Arquivo Nacional) Orientador: Prof. Guilherme Pereira das Neves Em 1897 foi lançado Machado de Assis, estudo comparativo de literatura brasileira, pelo crítico sergipano Sílvio Romero. Uma das primeiras publicações “inteiramente” dedicadas à análise da obra de Machado de Assis, então já um eminente escritor e de reconhecimento nacional. Machado havia publicado no ano anterior o volume de contos Várias Histórias, e em 1891 publicou seu então mais recente romance, Quincas Borba. Romero coligia então alguns artigos que já havia publicado em outros periódicos, além de parte inédita, sobre aquele que era considerado o principal escritor brasileiro por seus pares, e que havia sido deixado de fora quando veio à luz a sua História da Literatura Brasileira, em 1888. O livro de Romero foi bastante discutido por estudiosos e interessados das letras em artigos na imprensa da capital da nova República, e por críticos de profissão, gerando intensa polêmica em torno de suas opiniões e conclusões que se arrastou durante mais de uma década, principalmente com o crítico paraense José Veríssimo, diretor da Revista Brasileira, e assim como ele próprio e Machado de Assis, membros da recém-criada Academia Brasileira de Letras. Sílvio Romero era um crítico literário egresso do grupo de intelectuais que ficou conhecido como Escola do Recife, nascido na Faculdade de Direito a partir dos anos 1860-70, grosso modo célebre pela introdução e adoção de postulados científicos para o desenvolvimento do pensamento brasileiro, inclusive na crítica literária, sobretudo ligados ao conceito de raça, ao determinismo do meio e ao evolucionismo. Outros intelectuais ligados àquela escola já ocupavam lugar de destaque entre os letrados brasileiros, como o também crítico Tristão de Alencar Araripe Junior, o crítico e historiógrafo João Capistrano de Abreu, o jurista Clóvis Beviláqua, todos cearenses, e o diplomata maranhense Graça Aranha, entre diversas outras personalidades de destaque entre os séculos XIX e XX. As relações entre Machado de Assis e Sílvio Romero remontavam aos anos de 1870, quando este surgiu como poeta e ensaísta e recebeu críticas duras do escritor fluminense quanto a seu estilo e sua poética. Em dezembro de 1879 Machado lançou um de seus mais importantes artigos de crítica literária intitulado A Nova Geração, publicado na já citada Revista Brasileira, que se refere à geração nascida no Nordeste brasileiro, e que ganhava destaque nacional. No artigo o crítico Machado diminui a importância do grupo, apesar de reconhecer talentos individuais e a qualidade de alguns textos e ideias, alertando para os riscos dos novos modismos científicos que vinham da Europa e que não necessariamente coadunavam com os valores nacionais ou teriam vida longa entre as muitas novas ideias daquele século1. No que tange a Sílvio Romero, diz Machado: O autor dos Cantos do fim do século é um dos mais estudiosos representantes da geração nova; é laborioso e hábil. Os leitores desta Revista acompanham certamente com interesse as apreciações críticas espalhadas no estudo que, acerca da poesia popular no Brasil, está publicando o Sr. Sílvio Romero. Os artigos de crítica parlamentar, dados há meses no Repórter, e atribuídos a este escritor, não eram todos justos, nem todos nem sempre variavam no mérito, mas continham algumas observações engenhosas e exatas. Faltava- lhes estilo, que é uma grande lacuna nos escritos do Sr. Sílvio Romero; não me refiro às flores de ornamentação, à ginástica de palavras; refiro-me ao estilo, condição indispensável do escritor, indispensável à própria ciência — o estilo que ilumina as páginas de Renan e de Spencer, e que Wallace admira como uma das qualidades de Darwin. Não obstante essa lacuna, que o Sr. Romero preencherá com o tempo, não obstante outros pontos acessíveis à crítica, os trabalhos citados são documentos louváveis de estudo e aplicação. Os Cantos do fim do século podem ser também documento de aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e para tudo dizer numa só palavra, o Sr. Romero não possui a forma poética. [ASSIS (2008): p. 1277, grifos meus em negrito]2 Não cabe nestas linhas uma análise completa desse artigo; interessa principalmente demonstrar que as relações entre os dois autores não começaram da forma mais amistosa, e a “acusação” de falta de estilo e de ausência de forma poética não seriam esquecidos. Embora Machado não fosse econômico em suas críticas a nenhum autor, dificilmente era tão criterioso e exigente com um autor principiante. Importa também dizer que para Machado de Assis a crítica era o principal e mais indispensável instrumento para o fortalecimento da literatura nacional e para o aprimoramento do escritor. Desse modo, pretendia que os autores não compreendessem as sugestões e comentários como ofensas ao estilo pessoal de cada um, mas, ao contrário, como um incentivo para o aperfeiçoamento do texto, do estilo e do próprio autor.3 Entretanto, Sílvio Romero não parece ter recebido bem as críticas ao seu estilo e menos ainda à geração da qual fazia parte. Esta parece ter sido uma das motivações para o estudo que publicou sobre Machado de Assis mais de uma década depois, quando era também um autor e crítico bastante respeitado no Rio de Janeiro. 2 Uma marca do estilo de Sílvio Romero sempre foi a linguagem combativa e muitas vezes até agressiva, na defesa de suas posições, o que frequentemente levou-o ao envolvimento em polêmicas diversas na imprensa e na ABL, e rendeu-lhe alguns desafetos. Esse tom aguerrido dá a tônica do livro sobre Machado e também das respostas recebidas às suas ideias. Passemos a ele, então. Dividido em 19 partes, além de prefácio e introdução, o livro dedica-se a estudar a obra de Machado em três momentos, entre 1859-69, fase inicial considerada por Romero romântica, além de pouco expressiva e de qualidade inferior; entre 1870-1879, chamada de fase de “transição”, como poeta, romancista e contista, na passagem do Romantismo para o estilo moderno então em voga; e depois de 1880, até o momento de publicação, a obra madura, como prosador, dedicada ao romance, ao conto e à crônica, considerada pelo crítico como a melhor fase. O que prevalece nos capítulos do estudo são os comentários ao talento poético de Machado, ou a ausência dele, e aos problemas de estilo. Mas o que chama mais a atenção é que no livro dedicado a Machado de Assis, boa parte do estudo seja dedicado à obra do poeta, crítico e jurista sergipano Tobias Barreto, considerado o líder daquela geração egressa da Faculdade de Direito do Recife, que comparada à de Machado, se mostra, na opinião de Romero, em tudo superior. A comparação e as conclusões sobre o estilo de Machado levam-nos a crer que o ressentimento provocado em 1879 por aquele ensaio de crítica não fora esquecido. No esboço biográfico do autor o tom usado por Romero para tratar de seu objeto é bastante elogioso tal como outros trabalhos apresentados por diversos admiradores da obra do escritor fluminense. Entretanto, ainda no prefácio o tom amistoso dá lugar aos objetivos do autor ao dedicar seu estudo ao célebre escritor: O presente livro, sabemo-lo a priori, vai desagradar, por mais de um motivo, a grande número e leitores, se, por ventura, os tiver. Consagrado a um ilustre brasileiro, que nos derradeiros trinta anos tem sido geralmente apontado como um dos pontos cardeais de nosso armamento espiritual, e destinado a mostrar que não é de todo exato o sítio em que o colocam na esfera estelar do pensamento pátrio, ele vai, com certeza, ferir susceptibilidades! Porque nós não estamos ainda habituados a ver duvidar de nosso feiticismo literário, quanto já nos habituamos a deixar zombar de nossos feitiços políticos. Machado de Assis é um dos ídolos consagrados em vida ao nosso beatério letrado. Em parte merece-o ele, mas só em parte, e a pequena redução que se deve fazer em seu culto é exatamente o que este livro se destina a provar, e tenta-o asseadamente, honestamente, sem preocupações nem rancores. E o digno escritor não desmerecerá em sentar-se em seu verdadeiro posto na história intelectual da nossa pátria, se este ensaio crítico houver de contribuir para designar esse posto. Bem-aventurados nas letras aqueles 3 que são objeto de estudos desinteressados e sinceros; porque ó deles o reino da glória. Machado de Assis é um desses. [ROMERO (1897): p. XII, grifo meu]4 Ao longo da argumentação, o tom varia, mas em geral vai tornando-se mais ácido, mais agressivo, e em alguns momentos ofensivo. A linguagem e a intensidade acabam por dar a tônica do texto e causar a mais forte impressão, principalmente naqueles que não concordam com os argumentos do crítico e que defendem Machado, o que praticamente ofusca alguns argumentos que pudessem ser considerados interessantes na análise da obra do escritor. Não estava em jogo para o sergipano apenas produzir uma crítica sobre o mais famoso autor brasileiro, ou revidar a forma como fora avaliado por Machado e como sua geração fora tratada em 1879, mas também lutar pelo estabelecimento de uma crítica pautada por parâmetros modernos, cientificamente embasada e profissionalmente estabelecida. No caso de Sílvio Romero, lutar por uma causa era papel primordial de qualquer homem de letras que se prezasse, e as causas eram muitas. A constituição de um campo de saber legítimo, a defesa da ciência como base para a literatura nacional, de suas ideias em relação à originalidade do povo, do melhor modelo de intelectual, do papel que esse deveria desempenhar no mundo, e da contribuição que este daria na construção da identidade, da cultura e das letras nacionais, todas essas questões estavam, de certa forma, em discussão no livro que Romero escreveu sobre Machado de Assis e Tobias Barreto.