PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO SOCIAL DOUTORADO

HEBE ARAJUIARA VETTER CARDOSO

REFLEXÃO SOBRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SEU PAPEL NA DINÂMICA SOCIAL: incursão em documentários de Eduardo Coutinho

Novo Hamburgo 2017

HEBE ARAJUIARA VETTER CARDOSO

REFLEXÃO SOBRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SEU PAPEL NA DINÂMICA SOCIAL: incursão em documentários de Eduardo Coutinho

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, da Universidade Feevale, como requisito para a obtenção do título de Doutora em Diversidade Cultural e Inclusão social.

Linha de Pesquisa: Linguagens e Tecnologias.

Orientador: Prof. Dra. Juracy Ignez Assmann Saraiva Coorientador: Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos

Novo Hamburgo 2017

UNIVERSIDADE FEEVALE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO SOCIAL

HEBE ARAJUIARA VETTER CARDOSO

REFLEXÃO SOBRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SEU PAPEL NA DINÂMICA SOCIAL: incursão em documentários de Eduardo Coutinho

Tese de doutorado aprovada pela banca examinadora em 23 de agosto de 2017.

Componentes da Banca Examinadora: Prof. Dra. Juracy Ignez Assmann Saraiva Universidade Feevale (orientadora)

Prof. Dr. Edgar Roberto Kirchof Universidade Luterana do Brasil - ULBRA

Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

Prof. Dr. Norberto Kuhn Junior Universidade Feevale

Agradeço à toda experiência sensível que envolveu esta tese.

"O samba é pai do prazer O samba é filho da dor O grande poder transformador" RESUMO

A presente tese objetivou legitimar a importância da experiência estética na dinâmica social, a partir do ponto de vista de que ela é um exercício de renovação da percepção e de articulação do sujeito com o social. A análise crítico-interpretativa se constituiu por meio de uma bricolagem teórica, que ofereceu referenciais sobre textos fílmicos, sobre a concepção de estética e de ética, sobre a participação do imaginário na representação do social e sobre fundamentos sociológicos. Essas contribuições interpelaram o objeto de forma interdisciplinar, adensando a discussão proposta. A interpretação dos dados da análise foi construída por meio da relação entre a teoria e o objeto de estudo, e, a partir dessa relação, a pesquisa estabeleceu suas conclusões. O corpora que possibilitou a abordagem interdisciplinar da experiência estética, enquanto objeto de pesquisa foram dois documentários representativos da obra do cineasta Eduardo Coutinho: Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002) . Desta forma, entende-se que o reconhecimento da experiência estética, a fim de aproveitá- la socialmente, passa pela tradução intercultural, vivenciada numa perspectiva contra hegemônica. No tecer da experiência entre saberes e práticas, se produz o significado de alianças que pretendam valorizar diferentes realidades e competências, capazes de diferentes entendimentos e construções sociais. Isso significa que a experiência estética promotora de emancipação pressupõe a inteligibilidade sensível e incompleta, e subentende a alteridade. Ela permeia os saberes, práticas e sujeitos, e por ser da ordem do sensível, alcança as questões existenciais do ser humano. A experiência estética se apresenta, ainda, como uma estratégia que parte de algum lugar da experiência social, portanto, das consequências sociais, que punge o receptor e o coloca em contato com causas de acontecimentos futuros, elaboradas no imaginário.

Palavras-chave: experiência estética, ética, tradução intercultural, emancipação social, Eduardo Coutinho.

ABSTRACT

The present thesis aimed to legitimize the importance of aesthetic experience from the point of view that it is an exercise of renewal of the perception and articulation of the subject with the social. The critical-interpretative analysis was constituted by a theoretical bricolage that offered references on filmic texts, conceptions of aesthetics and ethics, on the participation of the imaginary in the representation of the social and on the epistemological foundations of Sociology and its practices. These contributions interpellate the object in an interdisciplinary way, with the intention of adding to the proposed discussion. The corpus , on which the interdisciplinary approach of aesthetic experience as an object of research was placed, were two documentaries representative of the work of the cinematographer Eduardo Coutinho: The Strong Holy (1999) and Master Building (2002). The interpretation of the data of the analysis was constructed through the relation between the theory and the object of study, and, from this relation, the research established its conclusions. In this way, it is understood that the recognition of the aesthetic experience, in order to take advantage of it socially, passes through intercultural translation, experienced in a counter-hegemonic perspective. In between the experience of knowledge and practice, the meaning of alliances that valorize different realities and competences, capable of new understandings and new social constructions, takes place. This means that the aesthetic experience, which promotes the emancipation of subjects, presupposes sensible intelligibility and alterity.

Key-words: Aesthetic experience, ethics, intercultural translation, social emancipation, Eduardo Coutinho.

ZUSAMMENFASSUNG

Die vorliegende Dissertation hatte als Ziel, die Wichtigkeit der ästhetischen Erfahrung zu legitimieren, aus der Sicht, dass sie eine Aufarbeitung der Wahrnehmung und der menschlichen Verbindung mit dem Sozialen ist. Die interpretative-kritische Analyse bestand aus einer theoretischen Bricolage, die Referenzen über filmische Texte, ästhetische und ethische Begriffe, die Teilnahme von der Vorstellungswelt an der sozialen Repräsentation und die epistemologischen Grundlagen der Soziologie und ihre Praxen darstellte. Diese Beiträge sprechen dieses Objekt fächerübergreifend an, mit der Absicht, die vorgeschlagene Diskussion anzuregen. Das Korpus, das als Forschungsobjekt für das fächerübergreifende Konzept der ästhetischen Erfahrung diente, waren zwei repräsentative Dokumentarfilme von dem Filmregisseur Eduardo Coutinho: Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002) . Die Interpretation von der Datenanalyse berücksichtigte das Verhältnis zwischen Theorie und Studienobjekt, und daraus gründeten sich die Schlussfolgerungen von der Forschung. Grundsätzlich versteht man somit, dass die Anerkennung der ästhetischen Erfahrung, mit Rücksicht auf die soziale Nutzung, aus der interkulturellen Übersetzung in einer kontra- hegemonischen Perspektive besteht. Beim Ersinnen der Erfahrung zwischen Kenntnissen und Praxen, gewinnt man die Bedeutung von Zusammenschlüssen, die Wert auf verschiedenen Realitäten und Kompetenzen legen und zu neuen Verständnissen und Sozialbildungen fähig sind. Dies deutet darauf hin, dass die ästhetische Erfahrung, die die menschliche Selbstbestimmung fördert, eine sinnliche Verständlichkeit und eine Andersartigkeit bedingt.

Schlüsselwörter: ästhetische Erfahrung , Ethik, interkulturelle Übersetzung , soziale Selbstbestimmung , Eduardo Coutinho.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Lídia 56 Figura 2: Braulino e Marlene 59 Figura 3: Braulino 60 Figura 4: Thereza 62 Figura 5: Varal de Thereza (onde estão os espíritos) 67 Figura 6: Maria do Céu 78 Figura 7: Roberto 80 Figura 8: Daniela 82 Figura 9: Alessandra 84

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ______10 1 DOCUMENTÁRIO DE COUTINHO: À MARGEM DO CINEMA E NO CENTRO DO COTIDIANO ______15 1.1 FILME DOCUMENTÁRIO ______15 1.2 UM DOCUMENTARISTA DO COTIDIANO ______18 2 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO POSSIBILIDADE DE EXPANSÃO DO PRESENTE ______30 2.1 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SEU PROCESSO ______30 2.2 CONCEPÇÃO DE ESTÉTICA ______33 2.3 ONDE OCORRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ______35 2.4 O PAPEL DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ______39 2.4.1 No imaginário: objeto estético como representação ______41 2.4.2 Imagem: representação da representação ______44 2.5 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA SE ARTICULA COM O SOCIAL ______46 3 EXERCÍCIO ESTÉTICO E ARTICULAÇÃO COM O SOCIAL ______51 3.1 ENTRE A FAVELA E O EGITO ______51 3.2 MUNDO SINGULAR, MUNDO PLURAL ______75 4 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: AUTONOMIA E COMPROMETIMENTO ______89 4.1 DO PRAZER, DA FESTA E DO SEXO ______92 4.2 ENTRE A FAVELA E O EGITO, NA CORDA BAMBA DA LINHA ABISSAL ______96 4.3 MUNDO SINGULAR, MUNDO PLURAL: POR UMA ECOLOGIA DOS SABERES ESTÉTICOS ______100 4.4 O IMAGINÁRIO DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS E A TRADUÇÃO INTERCULTURAL ______104 CONSIDERAÇÕES FINAIS ______108 REFERÊNCIAS ______113

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INTRODUÇÃO

Esta tese é o desfecho teórico do estudo aprofundado de seu objeto de pesquisa, a experiência estética, mas antes disso, foi provocada pela experiência social da autora, que passa cotidianamente pela prática estética. O mote da pesquisa foi se construindo ao longo dos anos de formação acadêmica, na graduação em Artes Visuais e no mestrado em Processos e Manifestações Culturais, e na sua relação com o trabalho de produtora cultural. Os saberes acadêmicos da graduação forneceram elementos conceituais e formais tão complexos quanto rarefeitos. Eram estruturas formais cujos conceitos do sensível, do humano, da contestação, da perplexidade, enfim, da estética, não se integravam ao contexto social. A grosso modo, seus defensores estabelecem que quanto menos compreensível, menos acessível, maior o status artístico da obra. Em decorrência, pressupõem que a maioria das pessoas que não são do meio artístico não entendem as obras, não dialogam com elas e, portanto, não tem prazer em frequentar exposições. Ao contrário, constrangem-se e se afastam. Já os saberes acadêmicos do mestrado acrescentaram elementos das manifestações culturais e seus processos, e colocaram em xeque a falta de diálogo entre os processos culturais artísticos e os processos culturais populares. Estes saberes conjugados com a prática profissional da produção de uma orquestra, cujo termo já pressupõe a erudição, mas cuja prática exercita a desconstrução da forma e conteúdo eruditos, aliados ao fato de a manutenção desse trabalho ser via projetos de lei de incentivo, fomentou algumas provocações. Elaborar projetos culturais de incentivo fiscal é usar dinheiro público para democratizar o acesso. As pessoas “beneficiadas” querem ter acesso a algo que não as represente? Ou, as suas representações devem se tornar acessíveis? A arte institucionalizada representa quem? A arte é a promotora da experiência estética, em detrimento de manifestações diversas, sensíveis, próximas, cotidianas? Nesse trabalho de elaboração de projetos culturais está em jogo uma postura política, que subentende o uso de recursos públicos, subentende o dar visibilidade a determinadas representações e o agraciar determinados públicos, além de atingir expectativas de patrocinadores. Essa responsabilidade e a alegria de trabalhar com a cultura elegeram o objeto de estudo da tese e construíram uma abordagem possível para compreendê- lo no âmbito social. Entretanto, esta investigação avança até determinado ponto e inspira novas e prazerosas experiências. 11

Diante disso, problematizou-se, então, se a experiência estética pode ser suscitada por objetos não convencionalmente legitimados como arte e, simultaneamente, analisou-se o cinema documental de Eduardo Coutinho para verificar se ele pode provocar a experiência estética e constituir uma via de emancipação do sujeito social1. O fato de esta pesquisa estar inserida em um programa interdisciplinar – Diversidade Cultural e Inclusão Social - torna relevante abordar a experiência estética enquanto tema, já que ela perpassa toda e qualquer disciplina que se refira à experiência humana. Para comprovar essa importância, a investigação tomou por corpus obras do cineasta Eduardo Coutinho, as quais inserem a discussão na linha de pesquisa Linguagens e tecnologias, por meio das quais se discute a experiência estética como alternativa possível e disponível para uma prática social, marcada pela autonomia e comprometimento. No intuito de compreender a importância da experiência estética no aproveitamento da experiência social, se fez necessário um objeto de estudo contundente, capaz de evidenciar a tese proposta. Neste sentido, a obra de Eduardo Coutinho é ímpar. Considerado um dos mais importantes documentaristas da atualidade, falecido aos 81 anos de idade, em 2014, dirigiu vinte e sete filmes, entre longas e curtas metragens, sendo sete de ficção e vinte documentários. A condução da pesquisa orientou-se, pois, na direção da legitimação da função social da experiência estética, por meio de estudos como os de Boaventura de Sousa Santos, que alertam para a importância do aproveitamento da experiência do presente. Não há registro, até o momento, de pesquisas que apresentem um diálogo entre a obra de Eduardo Coutinho e a teoria de Boaventura, o que confere a este estudo certa originalidade. Algumas dissertações2 já tiveram a obra de Eduardo Coutinho como objeto de estudo, investigando-a na área da Comunicação. Apenas uma tese, também na área da Comunicação, de Laécio de Aquino Rodrigues (2012), sob o título "A Primazia da Palavra e o Refúgio da Memória: O cinema de Eduardo Coutinho”, do Doutorado em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas, tem como objeto a obra de

1 Embora se reconheça o mérito artístico do cinema documental de Coutinho, essa qualificação nem sempre é reconhecida, devido ao gênero documentário, que é frequentemente visualizado como simples transposição de entrevistas. 2 São 8 (oito) dissertações e 1 (uma) tese. Disponível em: http://bancodeteses.capes.gov.br/. Acesso em: 06 Março 2015. 12

Coutinho, discutindo a importância da memória e da oralidade como matéria prima da práxis cinematográfica. O aporte teórico de Boaventura tem sido utilizado em dissertações e em teses, nas áreas da Sociologia, Educação, Letras e das Artes Cênicas. Entretanto, a abordagem aqui proposta é inédita e relevante pelo caráter interdisciplinar, tanto em relação ao corpus, quanto à fundamentação teórica, e ela mostra sua aderência ao Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social. A investigação fundamentou-se em uma teoria conveniente ao objeto de estudo, a fim de valorizar a função social da experiência estética, visto que ela é um exercício de percepção e articulação social. O referencial teórico, através do qual a pesquisa foi desenvolvida, fundamentou-se, primeiramente, na Fenomenologia, voltando-se para a interpretação dos documentários, os quais se enraízam em determinado contexto cultural. A metodologia de trabalho orientou-se para uma análise crítico interpretativa, com base nas ideias do hermeneuta Paul Ricouer (2010). O autor enfatiza a importância do processo de compreensão e interpretação das formas simbólicas, considerando os aspectos ficcionais e históricos imbricados, além de entender que os fatos, ao serem abordados pela ficção, apresentam um princípio, meio e fim que permitem uma análise mais aprofundada de uma ação. A experiência estética, por constituir uma forma de experiência com o “real”, pode revelar representações sociais por meio de diferentes linguagens. Com esse pressuposto, o objetivo da tese foi valorizar a importância da experiência estética na dinâmica social, a partir do ponto de vista de que ela é um exercício de renovação da percepção e de articulação do sujeito com o social. Essa perspectiva foi sustentada pelos filmes selecionados como corpus da pesquisa. O primeiro documentário é Santo Forte (1999), que explora o universo da religiosidade de moradores da favela Vila Parque da Cidade, no , por meio de narrativas que expressam as crenças e as experiências das personagens. O segundo, é Edifício Master (2002), que mostra o cotidiano de moradores do prédio com o mesmo nome, em Copacabana, no Rio de Janeiro. As personagens moradoras do prédio têm particularidades que podem remeter a uma generalização sociológica, mas é a singularidade delas que é o foco do texto fílmico. Os filmes apresentam, como recorrentes, as questões de representação social e do imaginário coletivo, elaborados esteticamente pela linguagem fílmica. Ao mesmo tempo, cada um deles mostra diferentes aspectos culturais, tais como a religiosidade, 13

a diversidade de sujeitos e suas concepções de mundo, as expectativas pessoais e sociais, além dos processos de elaboração formal. Para que se pudesse estabelecer o processo de compreensão e interpretação do corpus e justificar a hipótese de que os documentários de Coutinho têm natureza estética, orientando-se para uma intervenção social, foram elencadas, como categorias de análise, a estética e a ética, a constituição das representações sociais e processos do imaginário. Além disso, a análise crítico-interpretativa se constituiu por meio de uma bricolagem teórica, que ofereceu referenciais sobre textos fílmicos, sobre a concepção de estética e de ética, sobre a participação do imaginário na representação do social e sobre fundamentos sociológicos. Foram selecionadas e analisadas as fontes fílmicas e bibliográficas adequadas à problematização da proposta. Em seguida, foram aprofundados os estudos da produção documental de Eduardo Coutinho e empreendida a análise do corpus, sob o ângulo da estética e da ética, das representações sociais e do imaginário simbólico. Em cada documentário foram selecionadas, analisadas e interpretadas cenas específicas, por meio de uma articulação teórico-crítica. Todas essas contribuições interpelaram o objeto de forma interdisciplinar, adensando a discussão proposta. A interpretação dos dados da análise elaborada epistemologicamente permitiu que a pesquisa estabelecesse suas conclusões. A tese está dividida em quatro capítulos: o primeiro aborda o gênero documentário e sua notabilidade no cinema nacional; também trata da representatividade e das características do método do cineasta Eduardo Coutinho. O segundo capítulo traz o referencial teórico que embasa a discussão proposta. Define a estética como percepção sensível, que afeta o pensamento do receptor e se complexifica como reflexão filosófica. A estética é, pois, visualizada sob o ponto de vista da recepção, sendo definidos vínculos entre ética e estética, o que pressupõe o espectador como coprodutor do objeto estético. Isso remete à experiência sensível que se estabelece entre o objeto estético e o sujeito afetado por ele, localizando-a, no universo cotidiano. Ao assinalar o lugar da experiência sensível, se desenvolve a discussão sobre a natureza simbólica da representação social e suas conexões com o mundo “real”. Essa relação admite a sincronia entre a experiência estética, que é simbólica, com a prática cotidiana. Em virtude disso, aborda, também, o imaginário e sua relação com o objeto estético enquanto representação, e a imagem, como representação da 14

representação. Este capítulo, também habilita a reflexão sobre a função social da experiência estética, elaborando o posicionamento adotado nesta tese, que reconhece o prazer estético como uma ação pela qual o receptor torna próprio aquilo que o sensibilizou e que o conduz à reflexão filosófica. No terceiro capítulo, estruturam-se as análises: Santo Forte (1999) é examinado na relação entre a palavra e a imagem, sob a luz das teorias levantadas no capítulo anterior, elucidada por meio das falas das personagens e das imagens selecionadas por conveniência, a fim de dar consistência à reflexão. Edifício Master (2002) é analisado a parir da proposta de Coutinho, visto de dentro, de perto, como um universo complexo e plural, na sua relação com seu contexto, aprofundando a análise crítico- interpretativa, por meio das categorias elencadas. O quarto e último capítulo foi escrito a partir do programa de doutoramento sanduíche no exterior (PDSE/CAPES) sob a coorientação do Professor Boaventura de Sousa Santos, cujos conceitos vinham sendo utilizados como fundamentação teórica. As leituras específicas indicadas e as discussões decorrentes do desenvolvimento da proposta até então permitiram relacionar a interpretação das análises com a perspectiva social pretendida, complexificando a argumentação que tornaram a tese plausível. As considerações finais apontam para as situações que envolvem a experiência estética enquanto metodologia prática de intervenção social, sua incompletude e também sua suscetibilidade em relação ao contexto social e, portanto, a necessidade de auto reflexividade cultural.

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1 DOCUMENTÁRIO DE COUTINHO: À MARGEM DO CINEMA E NO CENTRO DO COTIDIANO

1.1 FILME DOCUMENTÁRIO

A arte constitui um vasto universo da experiência humana, tanto na criação como na fruição. As formas de manifestação artística são plurais e, ao mesmo tempo, são singulares em suas especificidades técnicas e conceituais. Independentemente da forma de expressão que se analise, o conceito de arte como um todo, aplica-se a todas as suas diferentes linguagens, guardadas as devidas particularidades. Essas linguagens trabalham toda ordem de significados pertinentes à ação humana, diferindo entre si pelo seu significante. No objeto artístico, os conteúdos podem ser elaborados por processos que utilizam linguagens diversas e delas resultam enquanto forma, mas a forma e o conteúdo são inseparáveis. A linguagem não determina o significado, apenas apresenta o significante para que se estabeleçam significados a partir da relação singular entre sua forma e seu conteúdo. O cinema é uma das linguagens artísticas que, por sua característica de reprodutibilidade técnica3, tem a possibilidade de alcançar, simultaneamente, um grande número de espectadores. Certamente, a indústria cinematográfica e o mercado são determinantes nesse alcance, contudo o cinema é, por sua natureza, uma linguagem predisposta a um grande público. Nas manifestações cinematográficas, a diferenciação entre os gêneros ficção e documentário ocorre mais por uma questão de identificação, do que propriamente pelo antagonismo no tratamento de suas temáticas. Sobre isso, Aumont (2011) diz que qualquer filme é um filme de ficção, mesmo um documentário. Tendo em vista que um filme é um significante, portanto, uma representação e não a coisa em si, além de que nele é apresentado um sujeito transformado em personagem, ele é fictício, mesmo que seja um documentário. Ademais a cena mostrada está ausente no tempo

3 Sobre “reprodutibilidade técnica” ler: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 2012. p.179- 212 16

e no espaço, ela já aconteceu, em outro lugar que não na tela do cinema, e está ali transformada em objeto de fruição, ao alcance do imaginário. Visto por outro ângulo, Nichols (2012) diz que qualquer filme é um documentário, mesmo a mais extravagante ficção. A ficção como se conhece genericamente, segundo o autor, são documentários de satisfação de desejos, ou seja, documentam e tornam visíveis os frutos da imaginação (desejos, sonhos, pesadelos, terrores), oferecem mundos de possibilidades infinitas. Assim, tanto a ficção, quanto o documentário pedem que se acredite neles enquanto “histórias verdadeiras”. No caso do documentário, por mais verdadeiro que se apresente, também é ficção, por inserir-se no mundo pela representação. Segundo Nichols (2012, p.28), o documentário engaja-se no mundo de três maneiras. A primeira, por oferecer uma representação reconhecível do mundo, ou seja, veem-se pessoas, lugares e coisas que podem ser vistas fora do cinema. A segunda, por representar interesses tanto do cineasta, do patrocinador, quanto do sujeito ao construir a personagem. E, a terceira, por assumir um determinado ponto de vista, a fim de conquistar consentimento ou influenciar opiniões. Mesmo diante do potencial do cinema de atingir um grande público, quando se trata do gênero documentário, em termos de Brasil, essa possibilidade diminui imensamente. Eduardo Coutinho diz que o público, em geral, não sabe a diferença entre reportagem e documentário e, nesse caso, pensa que não precisa ir ao cinema, “reportagem pode ser vista na televisão” (In.: OHATA, 2013, p.292). Assim, o documentário acaba sendo uma linguagem que atinge um público elitizado, o que não é a intenção do diretor, mas segundo ele, uma limitação social. Sobre isso, Coutinho desabafa

Se você não muda o mundo sendo visto por 17 mil pessoas, você pode pelo menos ajudar a mudar o documentário e o cinema brasileiro um pouco. É extraordinário. E tem um imponderável efeito midiático em gente que faz esse tipo de coisa, que faz documentário, que pensa o Brasil, então não posso ficar chateado com esse público. (In.: OHATA, 2013, p. 292-293)

Coutinho acha irônico ser chamado de diretor premiadíssimo, quando seus filmes atingem, em média, 20 mil espectadores, e o produtor sequer recupera o dinheiro investido. Mas, apesar de marginalizado, o cinema documental atingiu melhores índices, no Brasil, a partir dos filmes de Coutinho. 17

Os resultados periódicos apresentados pela Ancine4 confirmam que o número de espectadores de ficção é maior do que o de documentários. Entretanto, a produção de documentários tem aumentado significativamente, ao longo dos anos, o que reforça a teoria de Coutinho, de que a margem de ação do gênero tem se ampliado. Na produção nacional, é clara a preferência do público pela ficção cinematográfica que, além de ser produzida em maior número do que os documentários, é mais reconhecida. Coutinho já sinalizava a dificuldade do público em diferenciar documentário de reportagem, de certa forma, desqualificando-o enquanto cinema. É nesse contexto, em que foram produzidos, são assistidos e analisados os documentários de Coutinho, selecionados como corpora desta pesquisa: Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002). Ambos pertencem à terceira fase da trajetória de Coutinho, descrita por Bezerra (2014) como Documentário de Personagem. O documentário Santo Forte (1999) inaugura essa terceira fase, e Edifício Master (2002) é relevante pela visibilidade alcançada tanto de público, quanto de crítica. Em relação aos quatro documentários produzidos no Brasil no ano de 1999, Santo Forte teve o segundo maior público. Este filme, que inaugura a maturidade do cinema de Coutinho traz consigo o crescimento de seu reconhecimento como diretor, tanto pela crítica como pelo público, e se reflete na visibilidade do segundo filme a ser analisado. Ainda segundo dados da Ancine, houve um crescimento de 150% na produção de documentários nacionais no período entre 1999 e 2002, quando foram lançados Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002). No mesmo período, a média nacional de espectadores de documentários aumentou 476,06%, e o público de Coutinho aumentou 372,25%. Esses dados mostram a crescente representatividade de Coutinho no cinema nacional, mas também, se tomados a fundo, apresentam a fragilidade do acesso à cultura. Coutinho não atribuía o pequeno público somente ao gênero, e sim ao contexto do cinema nacional. Ele considerava que cabia ao diretor fazer o seu melhor e, no que tange à produção, fornecer material para o acesso do público. Entretanto, sabe-se que um conjunto de ações culturais é que farão com que a produção seja

4 ANCINE- Agência Nacional do Cinema: agência reguladora da indústria cinematográfica nacional, vinculada ao Ministério da Cultura, com sede no Rio de Janeiro. Disponível em: http://oca.ancine.gov.br. Acesso em: Março, 2015. 18

distribuída de forma efetiva e democrática. Sobre sua importância nos números do cinema documental nacional, Coutinho dizia (In.: OHATA, 2013, p. 292) “Eu sou o melhor documentarista de mim mesmo”, observando a complexidade do trabalho em arte e a impossibilidade de comparação entre o trabalho de diferentes artistas do gênero.

1.2 UM DOCUMENTARISTA DO COTIDIANO

O cinema de Eduardo Coutinho se volta para o registro do cotidiano, que é apresentado ao espectador por uma personagem, construída por meio do que ela fala, pelo protagonismo que lhe é oferecido, enquanto fala, e o encontro próximo com o diretor. Esse conjunto confere expressividade à obra de Coutinho. O termo expressividade, segundo Jacques Aumont (2000), a partir de sua etimologia significa “espremer”, forçar algo a sair. Pode-se, assim, dizer que, pela proximidade de Coutinho com seu interlocutor e pela prioridade que é dada à fala do sujeito, esse estaria sendo desafiado a expor-se. A circunstância de estar consensualmente sozinho, em frente a uma câmera e a um estranho que, ao mesmo tempo pressiona e acolhe o sujeito que fala, cria a cumplicidade necessária para um momento quase confessional. Coutinho se compromete com o sujeito e se responsabiliza pela personagem na elaboração estética5 da narrativa, “espremendo” uma experiência que é servida ao espectador. Esse é o flagrante no qual a representação poética converte o agir e o padecer6 cotidianos em poema audiovisual. A poética, no sentido do fazer do artista, se dá na relação entre o diretor e o sujeito personagem, mas se dá, também, no fazer do receptor, que elabora o significado da obra, completando suas lacunas. A experiência do espectador diante do agir e do padecer do sujeito personagem é catártica e humanizadora, acomodando-se como repertório imaginário. O repertório

5 O termo estética será problematizado no próximo capítulo. Nesse capítulo deve ser considerado como percepção sensível, que afeta o pensamento do receptor e se complexifica enquanto reflexão filosófica. 6 Paul Ricoeur (2010, p.83) diz: “a poética transpõe em poema o agir e o padecer humanos”, com isso referencia a compreensão das ações e das paixões implícita na poética. 19

indexado ao imaginário é, também, a possibilidade de outras narrativas e da reinvenção dos narradores. O escritor Walter Benjamin (2012) prenuncia que o fim da narração e o declínio da experiência são inseparáveis, e talvez esse pressentimento de um fim, da morte da narrativa, legitime a narração ímpar de Eduardo Coutinho7, que passa necessariamente pela alteridade, pela escuta, pela incompletude do dizer, pela incapacidade de recuperar o passado e pela imponderabilidade do presente da narrativa. Para Benjamin (2012), morrer e narrar têm entre si laços importantes. A morte é a permissão para tudo o que o narrador está prestes a contar e, dessa forma, no documentário de Coutinho, é a morte do sujeito, que se transforma em personagem em frente à câmera, que o autoriza a criar-se como tal. Já a finitude da personagem, isto é, sua morte é definida pelo final do documentário, que, entretanto, permite ao sujeito entrevistado, que deu vida à personagem, recriar-se a partir do narrado. Coutinho também é narrador no documentário que chega ao espectador, e, nessa narrativa, ele estabelece uma relação com o outro no sentido de apropriar-se da narrativa dele ao legitimá-lo socialmente. Benjamin afirma: “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo” (2012, p.231). É plausível afirmar que a opção de Coutinho por ouvir as pessoas e apresentar dignamente suas experiências o coloque na categoria de grande narrador, e a importância que ele dá ao conjunto das experiências sociais liberta-o do julgamento das experiências individuais, transformando o que seria obstáculo, em pluralidade de conteúdo. A matéria prima da arte de Eduardo Coutinho é a narrativa ordinária, e suas ferramentas artesanais de produção de conteúdo são a pergunta e o tempo de escuta. O registro disso é relativo ao processo de instauração do objeto estético, que se constrói a partir de fragmentos do cotidiano de um sujeito e documenta uma personagem que se cria, enquanto fala. Assim como o conto e a fábula, cujo sentido é aberto à experiência social, ao inacabado, o documentário de Coutinho evoca a precariedade como elemento de empatia com o espectador

7 Os escritos de Walter Benjamin muitas vezes ofereceram elementos para as reflexões de Coutinho. Neles, o cineasta encontrava acolhimento para algumas de suas inquietações e, também, provocações para a sua prática. Busca-se na mesma fonte subsídios que possam qualificar a análise do trabalho de Coutinho.

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Ah, eu tenho fascinação, e tá um pouco nos filmes, ou não tá, por tudo que é inacabado, por tudo que é impuro, por tudo que é imperfeito, que é precário, entendeu?! (Coutinho, Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, 2015, 00:57:33)

Na condição de inacabados e abertos, os documentários de Coutinho apresentam uma narrativa viva, orgânica, gestual, em que a imagem não é apresentada para provar o que está sendo narrado. A narrativa é viva, porque nela a expressividade do corpo tem força e empatia, o que torna a sua presença, enquanto imagem, imprescindível. A narrativa é orgânica porque, na imagem, aflora a precariedade da experiência contida na riqueza da palavra. E é gestual, porque a dinâmica paradoxal do conjunto, do que é narrado e do que é mostrado, aciona a participação do espectador. Segundo Benjamin (2012), Proust em suas narrativas, joga com a imaginação, fazendo com que as histórias narradas se tornem interessantes por fazerem o receptor crer ser parte daquele contexto. Em seus documentários, Coutinho é o provocador da imaginação, tanto do sujeito- personagem, quanto do espectador. Assim, pela empatia com o ordinário, o diretor-narrador se vê no sujeito-personagem e o receptor se vê na imagem, naquilo que ela representa para si. Essa simbiose coincide com a experiência estética. Benjamin (2012) faz uma analogia para explicar o que chama de “sonhos habituais”, aqui entendidos como imaginários, que se transformam quando narrados

[...] a meia, que, quando enrolada na gaveta de roupas, tem a estrutura do mundo dos sonhos, sendo ao mesmo tempo “bolsa” e “conteúdo”. E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela numa terceira coisa - a meia -assim também Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem. (BENJAMIN, 2012, p. 41)

É no gesto, no fazer poético, próprio do cinema, que Coutinho transforma o sujeito e personagem em imagem, ou seja, forma e conteúdo em favor de uma experiência estética. A imagem documental de Coutinho se constrói entre a palavra e o gesto da personagem, que se afirma enquanto é narrada pelo sujeito. Por sua vez, a experiência narrada, embora seja semelhante à experiência vivida, não é, assim como aquela, plenamente acessível. Felipe Bragança (2008, p. 9) diz que as personagens não ficcionais de Coutinho, “não são pessoas reais a serem desveladas, são, sim, duplos fabulares”, 21

ou seja, a pessoa, mais a personagem criada ao narrar, que fazem o filme junto com o diretor. Essas três entidades situadas em um cenário enxuto fazem a densidade da narrativa contrastar com a austeridade formal do objeto fílmico, transformando o acontecimento finito da esfera do vivido, no ilimitado da narrativa. Um presente ficcional é apresentado objetivamente, no qual personagem e diretor parecem dispor de uma espécie de chave de acesso ao sujeito que narra e à tradução do narrado. Dessa forma, a experiência narrada e a partilha dessa experiência são desencadeadas a partir da figura do narrador. Ao se pensar em narração, inevitavelmente, encontra-se a palavra. Ela foi matéria-prima e encantamento para Coutinho que a pensava a partir de Benjamin e sua teoria sobre a queda da língua adâmica. Essa, seria uma linguagem primeira, que ao dar nomes pronunciava a verdade das coisas e que, a partir da expulsão de Adão do paraíso, as palavras não transmitiram mais a essência das coisas, ou seja, a palavra não é a coisa. Essa teoria coloca-se como um problema ideológico para Coutinho, que, em sua entrevista a Carlos Nader (2015), falou sobre o quanto a inadequação entre a palavra e a coisa enlouquece as pessoas. Ele exemplifica, mostrando que tal incongruência em situações cotidianas, provoca desde brigas na feira a assassinatos. Nader (2015) considera que Coutinho se desvencilhou do problema ideológico apresentado por Benjamin, compreendendo o narrador e compreendendo-se como narrador a partir da relação entre o ser linguístico e o ser biológico, o verbo e o corpo, portanto, a palavra e a imagem. O cinema de Eduardo Coutinho revela, justamente, o desejo de aproximar a palavra da coisa, reunindo o narrador, a palavra e a imagem que narra, sob a égide da personagem documental. Walter Benjamin (2012), em seu texto sobre o narrador, observa que a possibilidade de trocar experiências por meio do narrar e ouvir histórias, está cada vez menos presente no cotidiano. No mundo contemporâneo, reserva-se pouco ou quase nenhum tempo para ouvir o outro, há um suceder contínuo de informações que remetem a interesses individuais, tornando a interação prescindível ou limitada ao virtual. Entretanto, a experiência está implícita no cotidiano, à espera de ser aproveitada por um narrador que incorpore e ressignifique a personificação dos tipos arcaicos de narradores, descritos por Benjamin. Segundo o autor, o primeiro tipo é o viajante, o marinheiro, que traz, na narrativa, a distância espacial, é aquele que vem de longe, que tem muito para contar; o segundo tipo é o camponês sedentário que expõe, na narrativa, a distância temporal, sendo aquele que conhece histórias e 22

tradições. A reciprocidade entre os dois tipos de narradores suscitou a associação do conhecimento de terras distantes, ao passado recolhido. A associação dessa tipologia é um exercício de alteridade e, com isso, a narrativa permite partilhar a experiência vivida. Eduardo Coutinho, leitor de Benjamin (2012, p. 214-215), talvez tenha encarnado e articulado o “camponês sedentário” e o “marinheiro comerciante” e tenha se colocado em diálogo com a diversidade de narradores com quem se propôs fazer contato. Desses encontros, provocados pelo interesse de Coutinho pelo outro, legitimou-se a experiência social de personagens comuns, que até então, tampouco, se entendiam como narradores. Com sua figura esguia, de voz rouca, cabelos brancos desgrenhados, irônico e com o cigarro como companheiro inseparável, Coutinho parece ter sido o desconhecido atento, que reconheceu o outro. Ele acabou por construir de si próprio uma imagem, que se lhe tornou útil: ao mesmo tempo um estranho, pai, confidente, avô ou bisavô8. A ele foram narradas experiências reais e imaginárias por meio da oralidade, que, aliada à reprodução da imagem, lhe permitiu habilidosamente capturar confidências.

Nem sempre proclamamos em voz alta o que temos de mais importante a dizer. E, mesmo em voz baixa, não o confiamos sempre à pessoa mais familiar, mais próxima e mais disposta a ouvir a confidência. Se, portanto, não somente as pessoas, mas as épocas, têm essa maneira inocente, ou, antes, astuciosa e frívola, de comunicar seu segredo mais íntimo ao primeiro desconhecido, então, no que diz respeito ao século XIX, não foram nem Zola nem Anatole France, mas o jovem Proust, o esnobe sem importância, o trêfego frequentador de salões, quem ouviu, de passagem, do século envelhecido [...], as mais admiráveis confidências. (BENJAMIN 2012, p.41)

Essa habilidade instintiva, que acabou se delineando como estilo, a partir de 1984, fez com que o trabalho de Coutinho, premiado nesse ano, passasse a ser observado por olhos curiosos. O cineasta despertou o interesse de críticos, foi estudado pela academia e, aos poucos, tornou-se respeitado por uma obra, que, hoje, é um legado do cinema nacional. A morte, em 2014, aos 81 anos, em pleno exercício de sua arte, colocou em pauta o estilo coutiniano de fazer cinema, denominação de

8 Coutinho fala sobre a imagem que faz de si, em entrevista a Carlos Nader: “E cria então, essa imagem do que, do pai, do padre, e no meu caso, do avô, ou bisavô. (CARLOS NADER, 7 de Outubro, 2015, 00:50:35) 23

que, talvez, ele abnegasse, mas que, ainda assim, nomeia um conjunto estético legítimo. Cláudio Bezerra (2014) apresenta uma importante descrição da trajetória estilística de Eduardo Coutinho. O autor estrutura a carreira do cineasta e classifica sua filmografia em três fases, sendo a primeira delas chamada de “experimentação”. Ela corresponde ao período entre o Coutinho espectador, aficcionado por cinema, na década de 1940, ao bolsista do Idhec (Institut des Hautes Études Cinématographiques), nos anos 50, na França. Nessa época de experiências diversas, desistiu da faculdade de Direito, trabalhou como jornalista, frequentou ativamente o cinema clube do Museu de Arte Moderna de São Paulo, esteve no Festival da Juventude em Moscou, depois em Praga e chegou à Paris. Com cartas de recomendação de Alberto Cavalcanti, Paulo Emílio Sales Gomes e Vinícius de Moraes recebeu a bolsa no Idhec, onde estudou por três anos e se formou em direção e montagem. Embora esta fosse uma das primeiras escolas de cinema do mundo, ligada ao Ministério da Cultura da França, segundo Coutinho (BEZERRA, 2014, p. 18.), o curso era ruim, por ser ministrado por pessoas que não deram certo na profissão. Em 1960, ainda na França, teve experiências com o teatro, dirigindo a peça Pluft, o fantasminha, de . De volta ao Brasil, trabalhou com produtores teatrais como e participou do Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE (União Nacional dos Estudantes). Neste contexto aproximou-se de e Joaquim Pedro de Andrade, representantes do Cinema Novo, cujos interesses dialogavam com o neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa. Sob o mote, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, esse movimento do cinema nacional centralizou seu interesse na realidade popular em detrimento ao refinamento dos recursos técnicos, que eram uma dificuldade na época. Influenciado por esse ambiente, Coutinho colaborou no primeiro longa-metragem do CPC, o Cinco Vezes Favela. Sob forte direcionamento político, embarcou na caravana da UNE, que pretendia documentar problemas sociais pelo Brasil. Embora o filme Cinco Vezes Favela nunca tenha sido concluído, foi em sua passagem pela Paraíba, que conheceu a história do assassinato de João Pedro Teixeira e sua viúva, Elizabeth Teixeira, episódio que se transformaria em um marco em sua trajetória. O CPC convidou Coutinho para dirigir um filme que seria uma adaptação de poemas de João Cabral de Mello Neto, mas, como o autor não autorizou a adaptação, 24

Coutinho decidiu fazer um filme sobre João Pedro Teixeira, que abordaria a luta pela reforma agrária. O filme recebeu o mesmo nome dado a um poema de cordel, sobre o mesmo tema, escrito por , Cabra marcado para morrer. Após pesquisa e captação de recursos, as filmagens começaram em 1964 e logo foram interrompidas pelo golpe militar. Parte do negativo do filme foi apreendida e outra parte, que havia sido enviada ao laboratório, ficou preservada. O golpe militar exigiu de Coutinho um reposicionamento pessoal e também de sua carreira. Após roteirizar e dirigir alguns filmes de ficção, sem que isso o sustentasse economicamente e o satisfizesse esteticamente, em 1975, aceitou um emprego no Globo Repórter, seu laboratório por seis anos. Nas funções de editor, redator, tradutor e diretor, teve contato com os processos de produção de documentários, exercitando essa linguagem e esboçando seu estilo. Em 1975, Coutinho retirou do laboratório, clandestinamente, os negativos de Cabra marcado para morrer e guardou-os com o nome falso de A rosa do campo, na cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro. Cabra marcado para morrer que inaugura a segunda fase da filmografia de Coutinho, chamada por Bezerra de “gestação de um estilo”, é um marco no cinema documental no Brasil. Retomado, vinte anos depois das primeiras filmagens, deixou de ser uma ficção sobre um líder da luta pela reforma agrária, para transformar-se em um documentário sobre o filme que não aconteceu. Em 1984, Cabra marcado para morrer foi exibido, pela primeira vez, no Brasil, e arrematou prêmios em todos os festivais de que participou. Coutinho não se interessava especificamente pelo gênero documentário, mas o interesse por esse gênero foi surgindo na medida em que se apresentava como a possibilidade de fazer cinema. Paralelamente, a experiência o seduziu, visto que seu prazer decorria da prática de fazer cinema, e não da teorização sobre ela. A curiosidade pelo fazer e experimentar levou-o a criar, um tanto instintivamente, uma forma de encontro com o outro. Seguiram-se, assim, diversos documentários, como Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987), O fio da memória (1991) e Boca de lixo (1992). Nessa fase, não se reconhecia, ainda, o estilo autoral de Coutinho, mas ele já estava sendo concebido. A terceira fase da trajetória de Coutinho é denominada por Bezerra (2014), de “documentário de personagem” e ela manifesta um certo modo de fazer, um conjunto de procedimentos, um método. Nessa fase, Coutinho considera o método como uma 25

prisão que liberta, e sua substância é a imagem do narrador e a palavra, que se complementam ou se desmentem.

Eu tenho que ter uma regra. A diferença é a seguinte, é a prisão que você escolheu. E o fato de você escolher sua prisão te dá uma liberdade absoluta, porque o fato de ser uma prisão também, torna o filme mais barato, o fato de ser uma prisão torna o filme mais difícil, porque aqui eu tenho que encontrar um personagem, e nesse prédio só tem chato. Então, a prisão é escolhida. E outra coisa, porque o pior é quando me disserem, toma dez milhões de dólares e você não tem prisão nenhuma, eu me matava. (Coutinho, Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, 2015, 00:05:15)

Nessa fase, impõe-se o Coutinho entrevistador que transforma pessoas em personagens. A ausência de um tema ou seu enfraquecimento abre espaço para o diálogo, e este, para o aparecimento do narrador, que é também a personagem. Não importa se o narrado é verdadeiro, mas a verdade com a qual é narrado, já que, na estética coutiniana, o documentário tem como tema exatamente a impossibilidade de se chegar ao real (BRAGANÇA, 2008). O filme que evidenciou esta fase, Santo Forte (1999)9, antecipava a linguagem que seria apurada em Edifício Master (2002)10. Nele, o documentarista explorou um universo espacialmente mais abrangente, a pequena favela “Vila Parque da Cidade”, no Rio de Janeiro, com cerca de dois mil habitantes. Contudo, havia uma pré-disposição quanto ao assunto abordado, a religiosidade, devido a visita do Papa João Paulo II. A relação dos entrevistados com a religião e a religiosidade e a forma como expressam suas crenças é elaborada pela narrativa fílmica, sendo constituído um sincretismo entre a experiência religiosa e a poética artística. Edifício Master (2002), que é representativo da mesma fase, segundo Coutinho (OHATA, 2013), não foi realizado com cunho sociológico, embora parta de um espaço geográfico e apresente características sociais específicas (país, cidade, bairro, prédio e moradores). Assim, embora o prédio tenha particularidades que poderiam aludir a uma generalização sociológica, o foco são as pessoas, o diálogo com o outro. Coutinho não se interessava em procurar alguma verdade subjacente à conversa, mas, sim, procurar vestígios do imaginário das pessoas. Buscava a contingência de uma verdade subjetiva

9 Santo Forte (1999): Melhor Filme, Roteiro, Montagem e Prêmio da Crítica no Festival de Brasília; Prêmio Especial do Júri no XXVII Festival de Gramado de Cinema Latino e Brasileiro; Margarida de Prata da CNBB. Prêmio de Finalização do Filme OCIC (Office Catholique du Cinéma); Melhor Filme Brasileiro pela Associação Paulista de Críticos de Arte e Sesc. 10 Edifício Master (2002): Melhor Documentário no Festival de Cinema de Gramado; Margarida de Prata da CNBB; Prêmio da Crítica na Mostra de cinema de São Paulo. 26

e, portanto, imaginária, oriunda do que ele descreveu como: “uma mistura do que ela (a pessoa) é, o que ela pensa que é, e o modo como ela quer ser vista”11, ou seja, é uma representação, que tensiona o sujeito, a personagem, e o espectador12. Nessa terceira fase, também são significativos os filmes Babilônia 2000 (1999- 2000), Peões (2002-2003), O fim e o princípio (2005), Jogo de Cena (2007) e As canções (2011), nos quais foram diversos os pretextos13 para utilização do mesmo método de trabalho. Método que organiza a narrativa por meio do registro da palavra, da situação e da condição em que é expressa pelo corpo enquanto fala, simultaneamente, pela relação de proximidade física e pela sintonia com aquele que provoca a fala. O cinema de Eduardo Coutinho propõe a escuta do outro, o que ele realizou criando uma linguagem singular dentro do cinema documental. Mesmo sendo reconhecido por essa singularidade, Coutinho sabia da condição atribuída a esse gênero: “o documentário, em todo lugar do mundo, sempre foi, é e sempre será marginal, entende. Isso não vai mudar nunca. O que não quer dizer que você não possa aumentar a margem.”14. O alargamento da margem foi, certamente, sua grande contribuição ao cinema e à arte como um todo. Esse espaço conquistado deve-se, segundo Coutinho, também, ao fato de o documentário ter se desprendido do cunho ideológico e de ter passado a permitir o sonho, a identificação com o outro. Esse processo de interação é possível, porque o foco do cineasta é a singularidade da pessoa, que se torna uma personagem viva que conta sua história, sua verdade. Isso dilui a fronteira entre ficção e documentário, e o significado da narrativa passa a relacionar-se com a verdade da filmagem, a verdade estética. O inacabado, Últimas Conversas (2015) foi desenvolvido a partir do “Projeto Palavra”, cujas entrevistas foram gravadas no final de 2013 e estavam concluídas quando da morte de Coutinho. O material bruto das entrevistas compunha um arquivo de mais de 30 horas de filmagens. O projeto foi gravado com adolescentes do terceiro ano do ensino médio de escolas públicas cariocas, no entanto, refere-se não à educação ou a questões pedagógicas. São conversas desses jovens com Coutinho, sobre cotidiano,

11 Fonte: CARTA CAPITAL. A força bruta da palavra: Eduardo Coutinho recria seu próprio método no filme Jogo de Cena. São Paulo: Editora Confiança, Ano XIV, n.469, 07 nov. 2007. P.60 12 Os documentários Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002), representantes da terceira fase da carreira do diretor fazem parte do corpora desta pesquisa e serão analisados em suas especificidades, nos capítulos subsequentes. 13 Termo usado por Bezerra (2014). 14 Em entrevista concedida a Paulo Cesar Peréio, no programa Sem Frescura. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AKWejvKNhB4. Acesso em: 03 Abril 2015. 27

trajetórias pessoais e familiares, expectativas e visões de mundo, ou seja, apresentam um universo a ser conhecido ou reconhecido esteticamente. O filme foi finalizado por João Moreira Salles e Jordana Berg e lançado em 09 de abril de 2015 na sessão de abertura do “Festival Internacional de Documentários, É Tudo Verdade”. Sobre o cinema de Coutinho produziram-se inúmeras críticas, muitas vezes motivadas por sua desconcertante elaboração estética. O minimalismo da forma provocou e provoca discussões acerca de sua obra. Para Felipe Bragança (2008), cineasta, roteirista e subdiretor da revista Cinética, a contribuição de Coutinho para o cinema brasileiro contemporâneo, em termos de linguagem cinematográfica, está em seu argumento estético que funciona tanto como ferramenta de crítica e de entrega, quanto de ação metódica e paixão física pela imagem. Segundo o autor, o cinema de Coutinho se agiganta por sua capacidade de ser ao mesmo tempo máquina-formal inteligível e convite ao inesperado. O fato de ser um cinema marcado pela entrevista, não o limita ao sentido etnográfico ou sociológico, pois coloca seus entrevistados numa espécie de jogo, no qual Coutinho articula aspereza e austeridade estética com o teor dramatúrgico de suas personagens. Para Milton Ohata

Ao longo dos anos, e em condições muitas vezes desfavoráveis, Coutinho foi depurando um estilo hoje reconhecido à primeira vista: personagens anônimos, [...] ausência de roteiro e de narração em off, exposição das condições de filmagem, enquadramentos fixos e próximos ao entrevistado, planos longos em que a imagem e a palavra estão em pé de igualdade. (OHATA, 2013, p.5)

Embora estes procedimentos tenham fundado o estilo Coutinho, o cineasta se reinventava a partir do reconhecimento do outro. Ele se aproxima do outro sem objetivar previamente um resultado, ao contrário, aproxima-se das possibilidades e faz com que uma pessoa comum revele uma personagem com histórias que não julgava dignas de serem contadas, quiçá legitimadas. João Moreira Salles (In: OHATA, 2013) fala sobre a aposta de Coutinho na autossuficiência da palavra, cuja força ainda não havia sido explorada pelo cinema brasileiro. Para Salles, na concepção de cinema de Coutinho, a ênfase está na fala do outro, pela intensidade hipotética de um relato sobre a miudeza do cotidiano. Em seu cinema, o ato de narrar se sobrepõe ao conteúdo da narração, e o som deixa de ser subordinado à imagem. Salles lembra que, para Coutinho, o risco e a dúvida estão 28

sempre presentes. Seu cinema gravita em torno de uma ideia atribuída a Benjamin, segundo a qual os deuses só deram esperança aos homens em consideração aos desesperados e, por isso, ele era avesso a projetos de redenção: seu cinema se contentava a enxergar as coisas. Consuelo Lins (In: OHATA, 2013) localiza na obra de Coutinho dois eixos indissociáveis, as personagens e os espectadores. Segundo Lins, o modo de fazer cinema de Coutinho apresenta tanto a maneira como ele se relaciona com o outro, quanto a maneira como ele convoca o espectador a interagir com os filmes. Lins identifica, também, dois movimentos na obra do diretor, um horizontal, no sentido de refinamento de métodos e procedimentos de produção e, um vertical, no sentido de um movimento reflexivo dentro da obra, sobre a própria obra. Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva (In: OHATA, 2013) identificam um estilo ou método coutiniano no aprimoramento constante da limitação do uso dos recursos cinematográficos. Segundo eles, dessa forma, Coutinho expõe a relação básica constitutiva de qualquer filme, a relação entre quem filma e quem é filmado. Sua opção pela entrevista se torna a regra através da qual ele se dispõe a aprofundar o olhar. Assim, o que ocorre no set de filmagem de Coutinho, é que o entrevistado interpreta a si próprio e o entrevistador o dirige, algo muito próximo do teatro. Os narradores de Coutinho interpretam e improvisam a si mesmos, como que questionando as formas ficcionais, as personagens e as estruturas narrativas esquemáticas. Cláudio Bezerra (In: OHATA, 2013) diz que a potência do documentário de personagem de Coutinho está na capacidade humana de encenar a vida. Para ele, o diretor buscava pessoas capazes de desprogramar o previsto, os comportamentos e falas difundidos pela mídia. Segundo Bezerra, este seria o sentido político do documentário de Coutinho: trabalhar para que corpos tentassem burlar o padrão social da mídia, de mostrar tudo, para se refazerem numa performance oral diante das câmeras. Para Ismail Xavier (In: OHATA, 2013), Coutinho fazia com que a personagem evidenciasse algo singular, não o seu enquadramento social. Buscava que fossem, o que Xavier chamou, de “narradores de si mesmos”, que se autoconstroem como personagens. Xavier observa que o cinema de Coutinho faz avançar uma discussão entre as semelhanças e as diferenças, entre a performance como fala de si e a performance como prática teatral. E, ainda, o quanto essas perfomances trazem de experiência e de imaginário, processos que se entrelaçam para, então, se revelar. 29

Segundo Consuelo Lins, o modo de Coutinho de “fazer filmes com os outros, e não sobre os outros” (LINS, 2004, p.5) transparece tanto na forma quanto no conteúdo, sendo pertinente problematizar a percepção e a articulação social dessa experiência estética, quando da sua recepção. Há um pensamento crítico em torno da obra de Coutinho, que aborda diferentes aspectos de sua constituição formal e de conteúdo, assim como de sua abrangência estética. Esse conjunto de posicionamentos revela o estilo da obra de Eduardo Coutinho, que é reconhecido e legitimado pelos críticos. Assim, ela pode ser discutida a partir de referenciais teóricos apontados nas reflexões do próprio Coutinho e de seus interlocutores, como também, com base em estudos de cunho sociológico, estético e simbólico, no que se refere à função social da arte.

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2 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO POSSIBILIDADE DE EXPANSÃO DO PRESENTE

2.1 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SEU PROCESSO

Assim como Eduardo Coutinho prefere a verdade com que um fato é narrado, em detrimento da verdade do fato em si, Jorge Larrosa (2016), inicia seu livro Tremores, preferindo a experiência15 à verdade, para dar sentido a escrita. A relevância dada à experiência torna oportuno explorá-la enquanto palavra e enquanto significação. Segundo Larrosa, esta abordagem decorre de uma perspectiva existencial e estética, pois, considera a palavra ou a linguagem como produtora de sentido e não como mero instrumento de comunicação. A fim de investigar a experiência, manifestada na palavra, o autor parte da definição de homem, segundo Aristóteles, “zôon lógon échon” ou “ vivente dotado de palavra”. Para Larrosa, a tradução popularizada da definição – “animal racional” –, é uma traição ao seu melhor sentido, já que a expressão aristotélica significa que o homem está tecido de palavras e que seu modo de viver se dá na palavra e com palavra. É por meio da palavra que o homem dá sentido ao que ele é e ao que lhe acontece. Com efeito, Larrosa (2016, p.18), afirma que experiência é o que “nos passa”, “nos acontece”, “nos toca”, não o que se passa, o que acontece ou o que toca. Entretanto, de certa forma, tudo o que se passa, está organizado para que nada “nos aconteça”, havendo uma espécie de “proteção” ou de “vacina” contra a experiência, tornando-a cada vez mais rara. Segundo o teórico, isso acontece por quatro razões: pelo excesso de informação, que não dá lugar para a experiência; pelo excesso de opinião, baseada na informação, o que torna o sujeito incapaz da experiência; pela falta de tempo, uma vez que tudo acontece cada vez mais depressa, o que impede conexões significativas entre acontecimentos; a quarta razão é o excesso de trabalho,

15 Recorre-se a Jorge Larrosa (2016) a fim de compreender o que é a experiência. A abordagem trazida por ele é a da educação, o que parece adequado, quando problematizado em um programa de Pós-graduação acadêmico e interdisciplinar. 31

no sentido de ação, aquela na qual o sujeito está em constante atividade e atribui ao fazer coisas, a sua experiência.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2016, p. 25)

A partir desse ponto de vista, o sujeito não é o da informação, o da opinião, o da falta de tempo, ou o do excesso de trabalho. O sujeito é o da experiência que se constitui como um território da passagem dos afetos, um lugar que recebe, um espaço do acontecer, portanto, ele está em processo. Assim, o sujeito da experiência se define por sua passividade, no sentido de paixão, padecimento, paciência e atenção, por sua receptividade, por sua disponibilidade e abertura. Larrosa diz que o sujeito da experiência é o sujeito que abarca as dimensões da travessia e do perigo. Portanto, é o sujeito que pode ser derrubado pelos perigos da travessia, que padece, mas que se forma e se transforma na travessia. Assim, segundo o autor, a experiência pode ser captada a partir da lógica da paixão, sendo vista como padecimento pela assunção de algo anônimo ou público e como responsabilidade para com o outro, ao mesmo tempo em que é autonomia e liberdade. Há ainda, a paixão do amor, na qual o apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Assim, manifesta a experiência como acontecimento, no qual a dor e a alegria da alteridade, responsabilidade, autonomia e liberdade não estão no sujeito, mas na sua relação com o objeto de sua experiência. Larrosa afirma que a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Sobre o saber da experiência, Larrosa remonta ao conhecimento como compreendido antes da ciência moderna, como páthei máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que acontece ao sujeito.

Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. (LARROSA, 2016, p. 32)

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Para o autor, trata-se, portanto, da elaboração do sentido, ou do sem-sentido daquilo que “nos acontece”, e remete à existência finita de um indivíduo e sua comunidade. Por isso, o saber da experiência é particular, subjetivo, relativo, contingente e pessoal. Um acontecimento pode ser comum a dois indivíduos, mas a experiência não, porque ela é inseparável do indivíduo que a vive, da sua maneira de estar no mundo e da sua forma de ser no mundo. Conjugam-se, então, a ética e a estética, de que resulta a dialogia, isto é, uma experiência que funciona como um diálogo marcado pela lógica da diversidade. Assim como Larrosa explora a palavra experiência, aqui propõe-se explorar a experiência estética, para, então, abarcar seu papel social. Entendendo a experiência como aquilo que liberta de certas verdades ou do senso comum conservador e aniquilatório, pelo acontecimento do afeto, a experiência estética se qualifica como potência emancipatória. Susanne Langer (2011), fala sobre a obra de arte como um símbolo criado por seu autor, mas, ao mesmo tempo, criado para outras pessoas, um público, mesmo que hipotético. Segundo a autora, isso afirma que em sua essência, a arte traz a intenção social: estar em relação com o outro. Esse outro, o espectador, frui a obra a partir do ponto de vista da recepção, e a esse ato dá-se o nome de experiência estética. A autora refere-se à experiência estética, como “emoção estética”16, que ela define como sendo uma emoção real induzida pela contemplação do objeto estético. Esta “emoção estética”, não está expressa na obra, mas pertence à pessoa que a vivencia, razão por que pode ser denominada experiência estética. A experiência estética, por decorrer do sujeito historicamente situado e estar imbricada ao imaginário, é, ao mesmo tempo, criadora e criatura da experiência, como a descreve Larrosa (2016). A arte mostra, o espectador experiencia e, por isso, conjugam-se Larrosa e Langer: onde aquele fala em travessia e paixão, esta, em concepções de sentimentos e da realidade visual, factual e audível, em conjunto, sem a intervenção de trabalho intelectual consciente. Portanto, a experiência estética

16 O que Langer chama de emoção estética ou sentimento, prefere-se nomear como experiência estética. Isso, a fim de evitar relações com o movimento expressionista, cuja poética baseava-se na expressão de emoções, sentimentos e sensações. E, também, para afastar o equívoco relacionado à palavra arte, quando é utilizada de forma banalizada e superficialmente, com a significação de “emoção” ou “sentimento”. 33

reúne imaginação e sentimento, os quais integram o indivíduo espectador com o objeto estético, em diálogo com o seu ser e estar no mundo.

2.2 CONCEPÇÃO DE ESTÉTICA

Para compreender a experiência estética enquanto processo, é necessário examinar o uso e significado da palavra estética abarcados nessa expressão. Assim examinam-se concepções de estética para nelas fundamentar a experiência e refletir sobre o modo como ela acontece. O conceito de estética abriga inúmeras abordagens e, consequentemente, uma multiplicidade de interpretações que avançam sobre extensas superfícies e se aprofundam em compêndios filosóficos. Abarcar seu universo é uma pretensão inatingível, entretanto investigá-la e buscar em seu âmbito argumentos para analisar produções de Eduardo Coutinho é necessário, quando se tem a pretensão de legitimar a função social da experiência estética no cotidiano, por considerá-la um exercício de percepção e de articulação social. Etimologicamente, a palavra estética vem de estesia (Aisthesis), que significa sensibilidade, capacidade subjetiva e até física de sentir as coisas, de conhecê-las, significação cujo oposto é a anestesia ou a privação dos sentidos. A estesia não pressupõe apenas o prazer, mas também a dor, a tristeza, o medo, a angústia, a indignação, a inquietude. A estética então pressupõe o prazer e a dor, sentimentos subjetivos. Assim, segundo René Passeron (1997), a estética não está na forma, tendo em vista que inúmeras ocorrências informais nutrem a sensibilidade estética e grande número de formas nada tem a ver com a estética. Ou seja, a forma, compreendida como aquela percebida pela visão ou tato, não é o único meio de sensibilização estética, pois há aqueles cuja via de acesso são os outros sentidos. Então, para o autor, em termos de estética, forma e conteúdo não podem ser isolados. Nessa linha de pensamento, interessa a contribuição de Luigi Pareyson (2001, p. 23), que diz que “a forma é expressiva enquanto o seu ser é um dizer, e ela não tanto tem quanto, antes é um significado”. O autor defende a inseparabilidade entre forma e conteúdo, considerando que a expressividade, enquanto conteúdo ou 34

significado, está na forma, que, por sua vez, é significante, a parte material e concreta dos signos. O objeto estético é significante por apresentar forma e conteúdo inerentes a sua materialidade. Pode-se dizer que ele é um organismo vivo por conter em si a ação de significar. De acordo com Martin Heidegger (2008), para que haja a experiência estética, é preciso considerar o caráter de coisa da arte, ou seja, o objeto em si e sua materialidade

Há pedra no monumento. Há madeira na escultura talhada. Há cor no quadro. Há som na obra falada. Há sonoridade na obra musical. O caráter de coisa está tão incontornavelmente na obra de arte, que deveríamos até dizer antes ao contrário: o monumento está na pedra. A escultura está na madeira. O quadro está na cor. A obra da palavra está no som da voz. A obra musical está no som. (HEIDEGGER, 2008, p.13)

Segundo o autor, a obra de arte é algo material, mas, por meio da solidez de sua materialidade, é possível elaborar a liberdade de interpretar o mundo. O significado da obra é acessado pelo seu “ser coisa” que, então, promove a experiência estética. O objeto estético é o meio pelo qual se dá a apreensão estética, fruição ou experiência estética, que configura a relação entre o objeto e o sujeito, aqui denominado espectador. A compreensão desse fenômeno se dá através da Estética, enquanto ramo de conhecimento, que reúne tanto o sensível quanto o inteligível. Pareyson (2001) considera a Estética não como uma “parte” da Filosofia, mas a Filosofia inteira, pois, ao meditar sobre ela, implicitamente enfrentam-se todos os outros problemas da Filosofia. A Estética enquanto conhecimento se concretiza na experiência, e esta estimula o pensamento filosófico que, por sua vez, fomenta o imaginário. Entretanto, o entendimento primeiro é de que a Estética é da ordem do subjetivo, quando do acontecimento do fenômeno, mas que, ao tornar-se matéria de ponderação, elucubração, suscita o pensamento, sendo processada e traduzida objetivamente no cotidiano. Cabe dizer que esse processo é uma reflexão filosófica e diz respeito a tudo que concerne à criação humana.

[...] a estética tem um coração, tem uma cabeça, mas não tem mão. Somos todos estetas capazes de cantar diante do incêndio de Roma. É por estetismo 35

que sentimos tanto prazer na descrição do crime perfeito, ou no filme catástrofe [...]. (PASSERON,1997,111)

Passeron identifica um ponto importante a ser considerado nesta tese: todo e qualquer receptor, pungido, afetado esteticamente, é um esteta, ou um sujeito capaz de uma reflexão filosófica. O autor fala da estética viva como aquela que sofre os ultrajes da ambiguidade, e esta estética pulsante é que afeta o receptor e provoca pensamentos. O caráter pulsante da estética aparece em Heidegger quando fala da relação entre mundo e terra.

Mundo e terra são essencialmente diferentes um do outro e, todavia, inseparáveis. O mundo funda-se na terra e a terra irrompe através do mundo. Mas a relação entre mundo e terra nunca degenera na vazia unidade de opostos, que não têm a ver um com o outro. O mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a sobrepujá-la. Como aquilo que se abre, ele nada tolera de fechado. A terra, porém, como aquela que dá guarida, tende a relacionar-se e a conter em si o mundo. (HEIDEGGER,2008, p.38)

O autor usa os termos mundo e terra, para mostrar a relação dessa analogia na arte, dizendo que a arte é, ao mesmo tempo, o instalar de um mundo e o produzir da terra. É nesse pensar próprio da Estética, enquanto conhecimento, que se revela a experiência estética, na forma de uma interpretação de mundo, que recria a sua relação com a terra.

2.3 ONDE OCORRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Paul Valery (1999), em seu curso de poética, traz também uma importante contribuição para apreender a estética sob a abordagem da produção e a da recepção. Segundo o autor, estas abordagens não podem ser tomadas em uma mesma reflexão sobre a obra: “Não há olhar capaz de observar ao mesmo tempo essas duas funções, pois são dois sistemas separados. (...) A ideia que ambos fazem da obra são incompatíveis. ” (VALERY,1999, p.183). Produtor e receptor tem uma percepção ímpar sobre a obra, já que o primeiro se subjetiva a partir de um contexto e processo de produção, e o segundo, a partir de um outro contexto e processo de recepção, que se situam em diferentes espaços temporais. 36

Nessa concepção, o consumidor da obra, como denominado por Valery e aqui chamado de receptor ou espectador, torna-se produtor do valor da obra e do ser imaginário que fez a obra, o artista. O autor fala, também, sobre o espírito da obra, aqui interpretado como significado da obra, que, segundo ele, se manifesta tanto na produção quanto na recepção, quando se estabelece uma relação de liberdade com o fazer e/ou receber a obra. Parte-se, desta forma, da concepção da estética viva, que afeta o pensamento do receptor e se complexifica enquanto reflexão filosófica. A afecção do receptor, ou seja, sua experiência estética é determinante na dinâmica do imaginário social. Sendo assim, serão referidas contribuições de autores que possam conduzir a reflexão nesta direção e orientar este estudo para a função social da experiência estética. Ao abordar a estética pelo viés da recepção, há que se considerar o punctum pelo qual o receptor acessa a obra ou objeto estético. Roland Barthes (1984) cria esse conceito para a fotografia, que aqui é ampliado para a experiência estética. Para compreender o punctum, é necessário articulá-lo com outro elemento, o studium. Em um primeiro momento, o espectador, ao predispor-se a observar a extensão de uma obra, cena ou imagem, depara-se com o studium, uma espécie de afeto médio. Um investimento geral na observação, sem acuidade particular, um interesse vago. Portanto, sua participação no estágio do studium é apenas cultural. Em um segundo momento, pode acontecer que um elemento parta da cena como uma flecha e pique, punja o espectador. Este é o punctum, que não está necessariamente explícito na materialidade do objeto, mas sim na sua conexão com o espectador. Reconhecer o studium é uma espécie de acordo entre o objeto estético e o espectador, no qual o segundo aceita o convite para a experiência estética proposta pelo primeiro. Entretanto, o desfrute do convite, o prazer estético, se dá a partir do punctum, que intensifica e concretiza a experiência estética. A via de acesso ao prazer estético é pensada, neste texto, a partir de Hans Robert Jauss (1979). Segundo o autor, o significado implícito à palavra “prazer”, no idioma alemão, é o de participação e apropriação, além do significado específico de alegrar-se com algo. Por sua vez, “participação” em português traz consigo o sentido de atividade e cooperação, sendo a apropriação o ato de tornar próprio. Constrói-se, assim, o posicionamento, adotado nesta tese, que reconhece o prazer estético como uma ação pela qual o receptor torna próprio aquilo que o sensibilizou e que o conduz à reflexão filosófica. 37

Dessa forma, tendo o receptor acessado a objeto estético, deflagra-se o que se denomina aqui de experiência estética propriamente dita, que reúne, a partir do prazer, a sensibilidade, a subjetivação e a reflexão filosófica. Jauss (1979) corrobora essa concepção ao associar a poética aristotélica e a estética psicanalítica, que consideram a experiência estética o conjunto da poiesis (processo de criação), aisthesis (sentir, conhecer), e da katharsis (purificação, alívio). O autor relaciona estes três conceitos como fundamentais para a experiência estética, considerando cada um deles a partir da aproximação de diferentes autores que, ao longo do tempo, se dedicaram a estudá-los. Nessa acepção poiesis é a satisfação pessoal do artista por conceber e materializar a obra; aisthesis refere-se à percepção do receptor, via prazer estético; katharsis desenvolve-se do prazer estético ao imaginário, potencializando a dinâmica entre a experiência estética e o cotidiano, já que a aisthesis, ao subjetivar- se no sujeito, leva-o a agir na esfera social. Essas três instâncias conjugadas dão conta da interpretação e da tradução interculturais, por meio do conhecer, sentir, reconhecer, identificar-se, vivenciar e transferir a experiência estética, de modo particular, em um contexto coletivo. O prazer estético, através do qual o receptor acessa a reflexão filosófica, que se consuma como experiência estética, distancia-se de uma pretensa verdade da ciência e aproxima-se de uma concepção social desta experiência. Segundo Jauss (1979), essa aproximação é promovida pela função comunicativa do efeito catártico, de base aristotélica. Por meio dessa função, os afetos, provocados no espectador, o desestabilizam, influenciam-no e instalam um novo re-conhecimento da realidade, em uma relação ética. Neste ponto, faz-se necessário abordar o vínculo entre ética e estética, que é recorrente em diversos estudos e fundamental na sua relação com a função social da experiência estética. Segundo Platão (BOSI, 1985), a verdade sobre as coisas só pode ser encontrada por meio de critérios racionais, devido ao caráter efêmero dos sentidos. A contemplação das ideias deve alcançar o justo equilíbrio com o prazer, para a realização do bem em si. Assim, a ética estaria relacionada ao bem enquanto a estética estaria relacionada ao belo, este último criticado por Platão por afastar-se do modelo ideal – a essência da ideia –, para promover o apelo aos sentidos. Assim, tendo em vista que a experiência estética não pode ser compreendida exclusivamente por critérios racionais, abre-se uma outra forma de relação entre ética e estética. 38

Problematizando a ideia clássica de que a ética se refere ao bem e a estética ao belo, Amelia Valcárcel (2005) afirma que nem o bem nem o belo existem em si, independentemente das coisas, e, nas coisas, o bem e o belo, ou a ética e a estética relacionam-se, misturam-se. Assim, as definições do que seja o bem e do que seja o belo são instituídas como convenções intersubjetivas, porque provêm de comunidades de cultura, sendo da ordem do imaginário17. Há, também, proposições que não tratam da ética em si, compreendida filosoficamente, mas daquilo que expressa deveres e castigos. Esta é a ética variável do mundo teleológico. Sob este ângulo, a ética, compreendida como finalidade, como boa ação, traz em si raízes da ética filosófica, assim como toda boa ação traz em si raízes da estética, por se qualificar no âmbito do belo ou do feio. Valcárcel (2005) diz que a arte retira as máscaras da realidade, configurando- se este procedimento como a função moral da arte. Nesse sentido, a autora afirma que, ao revelar o que há de artificial na sociedade, a arte ensina sobre o que está oculto no social, apresentando-se como uma moral estética que tende a se converter em moral efetiva. A autora considera a moral como o procedimento do homem na sua relação com o outro em determinada cultura, e, consequentemente, que a arte possui um condicionamento moral em relação ao seu ser arte, ou seja, uma espécie de condição ou regulação próprias do fazer artístico em si mesmo, para tornar-se arte. A existência moral da arte condiciona-se a sua autonomia, a sua suficiência enquanto arte. Isso não a destitui de qualquer humanidade, contextualização histórica ou cultural, apenas garante que ela, em sendo arte, possa absorver, elaborar e explicitar o mundo, sem submeter-se a ele. Essa condição moral, interna à própria arte, ao explicitar-se, pode ser julgada imoral de acordo com os preceitos de um grupo no qual a obra esteja sendo recebida. Neste sentido, em uma obra, tanto o assunto, o argumento e sua elaboração quanto a forma que assumem podem, a partir do contexto moral do receptor, causar desconforto, ferir ou até ofender a moral dele. Entretanto, não é a obra de arte em si que é imoral, mas a equação que se estabelece entre aquilo de que trata, o modo como trata e o receptor, o qual pode atribuir uma avaliação negativa à

17Conforme a concepção de Durand (2002) e de Maffesoli (2001, p.76), “o imaginário é entendido como “cimento social” e é da ordem do coletivo. Segundo Maffesoli, o imaginário é um estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma comunidade, etc. O imaginário estabelece vínculo.” O imaginário é mais do que a cultura, é a aura que a ultrapassa e alimenta. 39

arte, quando seu posicionamento moral compromete seu envolvimento na experiência estética da obra. Diante disso, para um receptor datado, geográfica e culturalmente situado, o status de arte de uma obra não impede que ele a entenda como imoral. Entretanto, o julgamento de imoralidade que uma obra recebe de determinado grupo não a destitui de seu valor artístico, no campo da arte. Ainda, nessa situação, pode instaurar-se a experiência estética, como uma relação ético-estética, que afeta as ideias da razão pela repulsa. Essa situação, que foi relacionada à arte, pode ser ampliada em relação aos diferentes objetos passíveis de experiência estética. A prática ética pressupõe a alteridade, conforme afirma Pergentino Pivatto (2004). Esta se constitui sempre na relação de um sujeito com um outro, sendo esse outro condição da instalação da subjetividade. A alteridade não oferece, por si só, um código de conduta, mas define comportamentos que orientam a prática ética. Em decorrência, também a estética pressupõe a alteridade, a qual se funda na imbricação autor-contexto-objeto-receptor. Consequentemente, ambas, ética e estética, pressupõem a experiência do outro.

2.4 O PAPEL DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Boaventura de Sousa Santos (2011) refere-se a um senso comum emancipatório, ético e solidário, construído a partir de representações inacabadas da modernidade ocidental. Essas representações, segundo o autor, são constituídas pelo princípio de comunidade e de racionalidade estético-expressiva. Esses princípios, por sua vez, se ramificam em três dimensões necessárias para a construção de um novo senso comum, que são a solidariedade, a participação e o prazer. A solidariedade é a dimensão ética, a participação é a dimensão política, e o prazer é a dimensão estética. Conforme exposto anteriormente, estética e ética estão imbricadas enquanto produtoras da experiência estética. Sendo ela a sensação que afeta os sentidos, e o pensamento filosófico, que afeta as ideias da razão, a experiência é, então, ético- estética na recepção, aglutinando as dimensões da solidariedade e do prazer, sugeridas por Boaventura. E, como o prazer, segundo Jauss (1979), pressupõe a participação e a cooperação, conduz, também, à dimensão política. Portanto, a 40

experiência estética agrega os princípios da solidariedade, da participação e do prazer, propostos por Santos (2011) para a construção de um novo senso comum emancipatório. Tendo-se situado a estreita relação entre estética e ética e compreendendo-as como imbricadas, retorna-se à questão do prazer estético, ponto a partir do qual se fez a intervenção para a abordagem sobre a ética. Faz-se necessário diferenciar o prazer estético do prazer dos sentidos. O prazer dos sentidos caracteriza-se cotidianamente pela afetação corpórea dos sentidos, pelo consumo imediato do conhecimento e da beleza. Jauss (1979), diz que o prazer dos sentidos é fugaz, autossuficiente e não se relaciona com o contexto. O prazer estético engloba o sentido de ação, participação e cooperação atribuído à palavra prazer, além de referir-se à experiência desencadeada pelo objeto estético. Nesse sentido, é possível atribuir à experiência estética, uma função social, caracterizando-a pelo restabelecimento do vínculo entre prazer e trabalho, quebrado pela divisão social do trabalho na sociedade industrial. Jauss (1979) defende que o prazer estético está associado ao trabalho na medida em que afeta a experiência da descoberta da significação. Assim, o prazer estético, como ação, participação e cooperação, é resultante do trabalho de construção do significado da obra. Jauss (1979) atenta para o fato de que, enquanto a estética marxista vinculava o prazer ao futuro, atribuindo sua existência utópica a partir da desalienação do trabalho que produziu o objeto artístico, a estética psicanalítica vinculava o prazer ao passado, relação a partir da qual ele imergiria. Todavia, para ele, o prazer é da ordem do presente e se relaciona temporalmente com o passado enquanto referência e com o futuro enquanto possibilidade. Assim, a estética, enquanto pensamento filosófico se constrói a partir da experiência do prazer articulada com a experiência do contexto cultural do receptor, que, consequentemente, suscita a renovação dessa experiência. A função comunicativa da arte que, segundo Jauss (1979), corresponde a sua função social, refere-se ao fato segundo o qual a estética só se sustenta pela mediação do prazer. Este, de acordo com o autor, age enquanto liberação de alguma coisa e liberação para alguma coisa, por meio de três funções, já mencionadas: a poiesis, como a consciência produtora, aisthesis, na qualidade de consciência capaz de renovar a percepção, e katharsis, como o prazer que conduz o receptor tanto a possível transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua psique, aqui 41

compreendida como alargamento do entendimento. Essas funções agem de forma autônoma e relacional. A experiência estética, renovadora da experiência do presente, se realiza na recepção. Neste sentido, esta experiência estética contradiz a teoria do prazer desinteressado de Kant (1993). Em sua teoria, o filósofo afirma que, no juízo estético reflexivo, apenas a forma deve ser analisada, não o conteúdo do objeto estético. Ele considerava que o desinteresse pelo conteúdo asseguraria que a interpretação do espectador não interferiria no juízo estético. Em relação a isso, afirma-se, e, para tal, apresenta-se a contribuição de outros autores, para quem forma e conteúdo são indissociáveis. Desta maneira, a experiência estética pressupõe o interesse, inerente ao espectador e suscitado pelo objeto e por seu contexto cultural. Jauss (1979) corrobora essa afirmação ao dizer que a atitude estética exige interesse e que o espectador deve ser coprodutor do objeto estético. O prazer estético requer, pois, um momento extra, interessado, um posicionar-se. Por essa razão, a ação prazerosa continua, mesmo descolada da presença do objeto concreto, pois a transição do objeto à experiência estética permanece no campo subjetivo do receptor.

2.4.1 No imaginário: objeto estético como representação

A materialidade ou a representação de uma realidade objetiva não é, necessariamente, o que o receptor reconhece imediatamente em um objeto estético. Outrossim, ele reconhece algo de subjetivo nessa concretude, que se refere ao quão plural pode ser a realidade. Há nesse reconhecimento, a mediação do imaginário, que é acessado e elaborado pelo receptor na sua relação com o objeto estético. Este abandono do objeto concreto para o exercício da imaginação é o processo pelo qual se engendram as concepções individuais e, também, coletivas. O interesse imaginário, não pela concretude do objeto, mas por sua instigação, por aquilo que provoca, sugere a alteridade, ao permitir a participação do receptor em experiências representadas no e pelo objeto, e na sua relação com o imaginário coletivo. Essa relação com o objeto estético aproxima-se, também, da concepção dos “mundos possíveis” descritos por Umberto Eco (2002), considerados caminhos alternativos, percorridos pelo receptor da narrativa, que a elabora imaginariamente a 42

partir de indicações que têm por base o “mundo real”. Também, os chamados “passeios inferenciais” caracterizados por Eco (2002) podem contribuir para determinar a importância da experiência estética na dinâmica social. Segundo o semioticista, os passeios inferenciais possibilitam ao espectador sair da narrativa e explorar o seu próprio universo social, seu repertório cultural e, ao retornar ao texto, levar uma bagagem de informações que o auxiliam a desvendar suas possibilidades. A partir disso, solidifica-se o argumento para estabelecer o movimento contrário, ou seja, que a percepção do social pode valer-se da experiência estética para sinalizar possibilidades de compreensão e de intervenção da realidade. De acordo com o delineado até aqui, as implicações ético-estéticas, enquanto experiência, são oriundas do prazer estético do receptor, que, por sua vez é uma espécie de hub. Na informática, hub é o processo, ao mesmo tempo, concentrador e difusor de informações. Enquanto na informática este é um aparelho ligado a redes de computadores, na experiência estética, o hub está conectado em redes de natureza cultural, que são da ordem do imaginário do receptor, portanto, coletivas. A partir dessa compreensão, se faz necessário abordar o conceito de imaginário. Discípulo intelectual de Gilbert Durand, Michel Maffesoli retoma a importância do imaginário na construção da realidade, referindo-se a ele como “cimento social” (MAFFESOLI, 2001, p. 76), expressão que abarca a interação, a vivência, uma liga entre o objetivo e o subjetivo e tudo que lhes é pertinente nas relações humanas. Segundo Gilbert Durand (2004, p. 117), o imaginário define-se como

uma re-presentação incontornável, a faculdade da simbolização de todos os medos, todas as esperanças, e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da Terra.

Assim, o prazer estético como um hub, instalado no imaginário, que concentra e difunde o que há nele, é também uma das vias de circulação entre imaginário e ordinário. Considerando que o conteúdo imaginário tem um percurso temporal, como sugere Durand, essa profusão desorganizada, ao ser acessada e retornar ao ordinário, racionaliza e legitima condições e possibilidades sociais. O imaginário abriga em si um conteúdo oficial já sistematizado e manifesto, e um conteúdo 43

reprimido, desorganizado e latente. A dinâmica entre eles é que responde pela mudança. Os estudos do autor mostram que a mudança profunda no imaginário não está relacionada apenas a mudança de gerações, mas sim a narrativas familiares, ocorridas entre diversas gerações, encadeadas a fatores pedagógicos, políticos e socioculturais, que podem configurar uma dinâmica de aproximadamente cento e oitenta anos. Segundo o autor, esse seria o tempo aproximado para o imaginário familiar, tensionado pela diversidade externa, se transformar em um imaginário coletivo18. A racionalização do imaginário, acessado e traduzido pelo e para o ordinário, foi chamada por Durand (2004) de “teatralização”, que é a ação do sujeito de acomodar socialmente o conteúdo imaginário. Durand (2002, p. 41) apresenta o imaginário como um trajeto antropológico, no qual “a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e, no qual, reciprocamente [...] as representações subjetivas se explicam ‘pelas acomodações anteriores do sujeito’ ao meio objetivo”. Para compreender esta performance social se faz necessário abordar o conceito de representação19, que é determinante na experiência estética. Roger Chartier (2002, p. 66) considera que “não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e grupos dão sentido ao seu mundo”. A partir disso, articula-se a teatralização através da dinâmica do imaginário para o ordinário, como representação social, ou seja, uma adaptação, ou tradução cultural, a fim de dar sentido ao ser social. Segundo Chartier (2002) a noção ampla de representação social dá conta do conjunto das formas pelas quais indivíduos e grupos produzem uma imagem de si mesmos. Estas representações são parte constituinte da “realidade” social, assim, a “realidade” é composta tanto pelo “ser percebido”, quanto pelo “ser”. A partir desse entendimento, o mundo social pode ser visualizado por meio de um exercício relacional entre a representação e a percepção do receptor. Quando da experiência

18 Os estudos de Durand, aqui mencionados, datam dos anos 1977-1984, sendo necessário considerar que, atualmente, o avanço das tecnologias da informação impacta o imaginário mais intensamente, acelerando os processos de mudança. Entretanto, a simples “passagem” da informação não é capaz de tensionar o imaginário, circunstância que depende da afecção, provocada, entre outros, pelo prazer e pela experiência estética. 19 O termo representação está relacionado ao sentido de representação social a partir dos estudos de Chartier (2002). 44

estética, esse exercício intensifica-se na relação entre a representação do social, expressa no objeto estético, e a percepção do receptor. A relação entre a objetividade das práticas e estruturas, e a subjetividade das representações sociais coletivas está em as subjetividades comandarem atos, ou seja, as representações servirem de modelos para práticas sociais. A experiência estética afirma sua função social, também, ao impedir a fragilização da imaginação, que, segundo o autor, já foi e está a serviço do poder. Esta fragilização faz com que se tome o engodo por verdade, reconhecendo na representação indícios de uma realidade que não existe. A fim de reforçar a importância da imaginação e do imaginário para a função social da experiência estética, por meio de seu conteúdo primeiro, a imagem, aqui definida como a representação da representação, e objeto de análise nesta tese, delineiam-se, a seguir, os argumentos que permitem articular a imagem e o espectador.

2.4.2 Imagem: representação da representação

O termo imagem vem do francês image, que, por sua vez, se origina do latim imaginen, denotando cópia, aparência (CUNHA, 2000). No uso comum, uma imagem é um artefato que reproduz a semelhança em relação a um objeto físico ou pessoa, sendo aquilo que evoca uma determinada coisa pela semelhança ou por uma relação simbólica. Assim, a imagem é a representação mental de um objeto, de uma impressão, ou ainda, é produto da imaginação (FERREIRA,1999). Imagem em alemão é Bild. Hans Georg Gadamer (2014) relaciona as palavras Bildung e Bild. A primeira significando formação, no interior da qual se encontra a segunda, significando imagem, forma. Segundo o autor, a palavra imagem, Bild, contém dupla significação: o sentido de cópia, Nachbild (nach significa depois) e o sentido de modelo, Vorbild (vor significa antes). Essa duplicidade importa no sentido de latência, conter o antes, e o depois adere ao significado de imagem como representação da representação. Transferindo essas concepções para o objeto estético, ele é, ao mesmo tempo, cópia e modelo, pois nele forma e conteúdo se retroalimentam. 45

Gadamer atenta para o sentido da formação (Bildung), aqui utilizado para ampliar o sentido da imagem (Bild). Então é conveniente conduzir o raciocínio localizando a imagem como resultado de um processo de formação, ou seja, de transferência do devir para o ser. Compreende-se que essa transferência não acontece na imagem em si, mas no processo de formação da imagem, na dinâmica entre o antes e o depois, no presente. Esse processo ocorre tanto para o artista em seu processo de criação, quanto para o espectador em sua experiência estética. Posto isso, no sentido exegético da palavra, problematiza-se a imagem enquanto representação, e esta, em sua relação com o espectador. Segundo Jacques Aumont (2000), uma das razões essenciais para a produção de imagens ao longo das civilizações é sua vinculação com o domínio do simbólico. Esse vínculo faz com que a imagem esteja em situação de mediação entre o espectador e a realidade. Ao pensar a imagem na sua relação com o real, esse autor identifica o seu valor de representação ao remeter a coisas concretas, e, seu valor simbólico, ao assumir coisas abstratas. Em qualquer das situações, ele considera a imagem como representação, tanto de algo concreto, quanto de algo abstrato. Se está em situação de mediação entre a realidade e o espectador, a imagem tem como função estabelecer relações com o mundo, o que se dá por três modos: o simbólico, que acessa o domínio do sagrado, dos objetos ausentes, abstratos do imaginário; o modo epistêmico, que remete ao domínio do conhecimento; e o modo estético que instala sensações. É possível dizer que o modo estético agrega os demais e que seja qual for o modo de relação com o mundo, a imagem atravessa o domínio do simbólico20. Para Aumont (2000), o espectador e a imagem constroem um ao outro, sendo que o primeiro é um parceiro ativo, fazendo a imagem existir, ao fruí-la. O receptor coloca na imagem o não representado, preenchendo as lacunas da representação a partir dos “mundos possíveis do imaginário” (ECO, 2002). Caracteriza-se, então, a imagem como representação da representação. Sendo essa definição composta pela repetição de palavras que assumem diferentes significados, cabe distingui-los: segundo Aumont (2000) considera-se a representação (artística) a partir da constituição da materialidade da obra; o resultado do processo pelo qual se institui o objeto estético como representante de algo, que, neste contexto,

20 Simbólico compreendido a partir de Aumont (2000), como domínio das produções socializadas, utilizáveis em virtude das convenções que regem as relações interindividuais. 46

toma o lugar daquilo que representa. E, segundo Chartier (2002), a representação (social) dá conta do conjunto das formas pelas quais indivíduos e grupos produzem uma imagem de si mesmos. Então, trata-se da representação enquanto objeto estético que apresenta uma representação social. Essa caracterização ainda pode se desdobrar em representação da representação, da representação, como por exemplo, no caso de filmes. Neles há o objeto estético como representação e a encenação como representação da representação social. São camadas sobrepostas de significados.

2.5 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA SE ARTICULA COM O SOCIAL

No intuito de legitimar o papel da experiência estética no cotidiano é oportuno mencionar Antônio Cândido de Mello e Souza (2011) que nela vê um fator de humanização, defendendo o âmbito social de sua ação. Segundo o autor, a arte aparece como manifestação universal em todos os tempos, pois, sem o acesso ao imaginário simbólico, os homens não podem viver.

[...] humanização é o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. [...] (SOUZA, 2011, p.182)

Para Souza (2011), a arte é indispensável ao homem, assim como o são os meios que garantem sua sobrevivência física. O autor esclarece que a força humanizadora da arte é a própria arte, pois, como um bem incompressível, ela se justifica por meio do plano estético. O sociólogo considera a dinâmica incessante entre o popular e o erudito. Segundo ele (2011, p.193), “uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, e a fruição da arte [...] em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”. Fica, pois, patente, conforme fundamentado até aqui, o caráter social da experiência estética, seja a partir de objetos considerados artísticos ou não, contanto que se ampare no domínio Estético. Esse abrange o objeto, a experiência 47

de sua recepção e a área de conhecimento que reflete sobre a experiência estética propriamente dita, sendo a experiência estética a promotora daquilo que Souza (2011) chama de humanização. Compreendendo o exercício estético como possibilidade de percepção e de articulação com o social, retomam-se as implicações de se pensar o novo senso comum emancipatório, proposto por Santos (2011). Para o autor, ele é resultado da transformação do conhecimento científico que rompe com o senso comum conservador, instalando uma nova doxa. Transportando essa perspectiva para o domínio da experiência estética, que promove a ação, a participação e a cooperação que pressupõe o outro, considera-se emancipatório aquilo que gera autonomia e comprometimento. Assim, a experiência estética traz em si uma dinâmica de tradução cultural que estabelece uma relação dialética entre o imaginário e o cotidiano. Dessa forma, o acesso do espectador a esse domínio do conhecimento, via prazer estético, vislumbra um conhecimento não institucionalizado, mas possível. Santos (2011) registra que a emancipação tem o potencial de enriquecer a relação do sujeito com o mundo, mas que ela só pode ocorrer através de significações partilhadas do senso comum ético, político e estético. De acordo com o que se arrolou anteriormente, o senso estético abrange as demais esferas e as coloca em relação umas com as outras. Sendo assim, busca-se identificar como e por quais caminhos a experiência estética se insere enquanto dinâmica de conhecimento no cotidiano social. Com o propósito de situá-la como via de aproveitamento da experiência social tomam-se de empréstimo as reflexões de Santos (2004), que fala da necessidade de criar-se um espaço-tempo para conhecer e valorizar a experiência social em fluxo na sociedade. Para isso, o autor propõe o que chama de trabalho de tradução, que é um procedimento que estabelece a reciprocidade de significação entre as experiências possíveis e as disponíveis do sujeito, sem que elas percam sua identidade. A fim de que se evite o desperdício da experiência social, ele considera necessário expandir o presente, para o que sugere uma “sociologia das ausências”, e contrair o futuro, por meio de uma “sociologia das emergências”. Essa sociologia se dá a partir da crítica do modelo de racionalidade que tem por base a compreensão ocidental do mundo, manifestada por meio da razão metonímica21.

21 Segundo Santos (2004), a razão metonímica tem a ideia de totalidade. O todo prevalece sobre as partes, e estas, não tem existência fora da relação com a totalidade. Apregoa a 48

A homogeneização das experiências sociais seria um desperdício, um silenciamento da diversidade e uma violência contra ela. De acordo com Santos, (2004), a sociologia das ausências visa demonstrar que o que não existe é produzido como não-existente. A desqualificação da diversidade, por meio da invisibilidade, do descrédito e da irrelevância com que é tratada, por não se enquadrar no modelo homogeneizado, é utilizada para produzir a verdade desse modelo e, consequentemente, produzir as “não-existências”. Essas orbitam como fragmentos não socializados da experiência social. O autor afirma que o modo de produção da não-existência mais poderoso é o da lógica da monocultura do saber. Essa lógica permite que a ciência moderna e a cultura hegemônica se arroguem o direito de atribuir os critérios de verdade e qualidade estética ao que é produzido como conhecimento ou criação artística. Refutando esse modelo, a sociologia das ausências propõe transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças. Para Santos (2004), a monocultura do saber deve ser questionada e a diversidade dos saberes ser legitimada, por meio de sua presentificação. Para que isso ocorra, o autor diz ser necessária a imaginação sociológica, na qual se distingue a imaginação epistemológica, que permite diversificar os saberes, as perspectivas, a análise e a avaliação das práticas; e a imaginação democrática, que permite o reconhecimento de diferentes práticas e atores sociais. Reitera-se, assim, a validade da experiência estética como via de acesso à experiência social, tendo em vista que ela permeia o imaginário coletivo, entendido como “cimento social” 22 e atua na ampliação simbólica dessa experiência. Assim, chega-se à “sociologia das emergências”, defendida por Santos (2004), que contrai o futuro, na medida em que o presente foi dilatado, por uma experiência social da diversidade. Esse universo plural se lança como um futuro de possibilidades concretas, cuidado pela elaboração presente das alternativas contextuais. Mais uma vez, a experiência estética se coloca como veículo de acesso ao campo social, apresentando o presente sob outra perspectiva e em uma relação de espaço não- geográfico, atemporal. O espaço não-geográfico é aquele acessado independentemente da localização do receptor ou do objeto estético ou, ainda, daquilo

homogeneidade. O todo é uma das partes transformada em referência. Transforma interesses hegemônicos em conhecimentos verdadeiros. 22 Cf.; nota 1 49

que ele representa. A situação atemporal é responsável por permitir que, seja qual for o tempo no qual o objeto estético tenha se materializado, ele é o presente na recepção, ou seja, no momento da experiência estética. Diversas experiências estéticas, de diferentes presentes, coexistem no presente da recepção e são elaboradas pelo prazer, como ação, cooperação e apropriação de significação, em termos de conhecimento. A tradução proposta por Santos (2004, p. 802), que é o “procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis quanto as possíveis [...]”, investiga novas formas de pensar as totalidades e conceber as particularidades, considerando a incompletude das culturas como motivação para a tradução. Compreendendo a necessidade de a experiência estética estar inserida no cotidiano, ela problematiza, simbolicamente, no imaginário, o presente, que se manifesta como senso comum emancipatório, traduzindo-se em saberes e práticas. Então, defende-se o ponto de vista, segundo o qual a experiência estética, como instrumento social, oportuniza a tradução cultural entre saberes e práticas da diversidade. Por meio dela, experiências de grupos sociais são partilhadas, permitindo o encontro com o outro. A experiência estética dá significado ao mundo de cada um, ampliando as perspectivas de pluralidade e emancipação social. Por intermédio dela, vislumbram-se alternativas possíveis e disponíveis para uma prática social, marcada pela autonomia e pelo comprometimento político. A relação entre estética e política encontra argumentos em Jaques Rancière (2014), que afirma ser a constituição estética que dá forma a comunidade. Para ele, estética e política estão imbricadas, a arte como uma forma de inscrição no sentido de comunidade, e a política, cujo tema, são os modos de subjetivação social. Desta forma, ele entende a estética como determinante da experiência social sob a forma de subjetividade política. O autor aponta como uma primeira abordagem da relação estético-política, a ideia de que o sistema estético define as vicissitudes políticas como forma de experiência. Na relação entre experiência estética e emancipação, no âmbito da recepção, está implícita a política, como meio pelo qual se dão as relações sociais com vistas à ação. A amplitude do repertório imaginário do sujeito implica a perspectiva de atribuição de significados e a legitimação da experiência política. 50

O percurso teórico percorrido permite dizer que a experiência estética independe de uma vinculação artística, outrossim, tem no seu caráter sensível o acesso ao terreno filosófico. É no prazer da elaboração de um conhecimento sensível entre a subjetividade imaginária e as práticas sociais, que a experiência estética concentra seu potencial de intervenção no real. O sujeito da experiência se apropria significativamente daquilo que o afetou numa dimensão existencial, traduzindo-o para a dimensão política do sujeito social.

51

3 EXERCÍCIO ESTÉTICO E ARTICULAÇÃO COM O SOCIAL

3.1 ENTRE A FAVELA E O EGITO

Em 1997, Eduardo Coutinho foi contratado pela TVE para identificar dez temas importantes sobre a identidade brasileira. Estes temas seriam o mote para programas de TV, que acabaram não se realizando, contudo, a pesquisa forneceu subsídios que enfatizavam a religião como um tema recorrente ao se pensar sobre o Brasil. A presença da ideia de religiosidade, somada ao trabalho da antropóloga Patrícia Birman sobre trajetórias religiosas em uma comunidade carioca, ao qual Coutinho teve acesso, e a visita do papa João Paulo II ao Brasil definiram o tema, o local e o momento para a realização das filmagens de Santo Forte (1999)23. As filmagens iniciaram, ainda em 1997, no dia em que o papa João Paulo II celebrou a missa no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Segundo Lins (2004), as gravações, neste dia, serviriam para observar a repercussão da cerimônia junto aos moradores do espaço da realização do filme, que estivessem assistindo à missa pela TV. O diretor contou como pesquisa inicial, com entrevistas da também antropóloga Patrícia Guimarães, com moradores da Favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro. Essas entrevistas, que faziam parte da tese de doutorado da pesquisadora, foram importantes para identificar pessoas comuns que pudessem narrar suas experiências religiosas, independentemente de sua adesão a alguma religião específica. A antropóloga Patrícia e a equipe24 do filme pré- selecionaram cerca de quarenta moradores com os quais foram gravados alguns minutos de conversas em vídeo. Essas tomadas foram relacionadas com as informações levantadas nas entrevistas preexistentes dessa mesma antropóloga, e, então, apresentadas a Coutinho, para a seleção, o qual utilizou o critério da força narrativa, segundo explica:

23 Santo Forte (1999) foi incentivado pela Lei Rouanet, através da Funarte, patrocinado pelo Instituto Itaú Cultural, finalizado com recursos da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, por meio da Riofilme e apresentado pelo CECIP (Centro de Criação de Imagem Popular). 24 Equipe de pesquisa e produção do filme: Patrícia Guimarães, Cristiana Grumbach, Daniel Coutinho e Vera Dutra dos Santos, essa última, moradora da comunidade. 52

Meu critério é o seguinte: tem uma personagem rica e que conta ricamente a sua vida rica; isso é o ideal, isso é uma personagem de gênio. Tem o personagem que conta ricamente a sua vida rotineira: é maravilhoso! O essencial não é a vida que ele levou, é como conta. (COUTINHO In.: OHATA, 2013, p.278)

Nem todos os quarenta moradores entrevistados foram considerados personagens potenciais. Dos quarenta, apenas onze protagonizaram o filme, pois, segundo Coutinho, alguns moradores pré-selecionados soavam mitômanos, ou seja, tendiam para a mentira. O cineasta esclareceu que, embora não trabalhe só com a “verdade”, não se interessa pela mentira factual, considerando que isso seria outro tipo de filme. Para ele, a verdade da filmagem começa por um acordo tácito entre diretor e sujeito-personagem, no qual estabelecem que são diferentes, pois a partir da diferença assumida é que poderão respeitar a singularidade um do outro, “entender as razões do outro sem lhe dar razão” (In.: OHATA, 2013, p.377). Coutinho declarou, em entrevista (BRAGANÇA, 2008), que nunca participava das pesquisas prévias para seus documentários, pois o sujeito-personagem não contaria duas vezes a mesma história. Assim, é parte do método de trabalho do cineasta, que o primeiro encontro entre o diretor e a personagem seja o momento no qual a história seja contada pela primeira vez. Segundo Lins (In.: OHATA, 2013), Coutinho se referia aos procedimentos de filmagem como dispositivos, ao que também chamou de prisão que liberta. Na entrevista já citada, Coutinho falou de seu interesse pelo dispositivo, ou método, e que, para ele, a prisão espacial para a filmagem havia se tornado essencial. Mais importante do que o tema, era estabelecer o “como” fazer, que seria o “coração do trabalho”. Esse “como” fazer está intimamente ligado ao “o quê” será filmado, e, assim, o dispositivo pode variar em cada filme. Em Santo Forte, foi determinante o uso da gravação em vídeo, cuja extensão permite a gravação de duas horas ininterruptas de entrevista, enquanto a filmagem em película não possibilita o fluxo contínuo das conversas, visto que exige interrupções a cada 11 minutos, que é o tempo de duração de cada fita. O plano fixo para filmar conversas que precisavam de tempo para se desenrolar, parar, silenciar, continuar, incorporar os acasos, somente poderia ser registrado em vídeo. O método implica em chegar à locação com a equipe, montar o equipamento e ir conversando informalmente, em algum momento ligar a câmera e seguir conversando. Há todo tipo de ruído, latido de cachorro, gritaria de crianças, mas isso não interrompe a gravação, 53

segundo Coutinho, (In.: OHATA, 2013, p. 241) “para não perder o clima”. Em geral, uma segunda câmera grava, documentando as conversas, e as imagens dessa gravação podem auxiliar na edição, fornecendo ao diretor informações do entorno da filmagem. Na edição, são excluídos os ruídos que não fazem parte do momento da narrativa. Santo Forte foi editado durante um ano, tempo no qual o diretor convivia com as personagens e, teoricamente, poderia dispor das imagens como entendesse. Na edição que Coutinho exerce seu poder sobre a imagem, e essa ação exige comprometimento com o que a pessoa narrou. Nesse momento, o diretor impõe, a si mesmo, a necessidade de ser fiel à narrativa, à dignidade da pessoa e ao “personagem de si que ela criou” (In.: OHATA, 2013, p. 242). O material gravado em vídeo e editado passa por um processo conhecido como kinescopagem25. Jordana Berg, montadora de todos os filmes de Coutinho, a partir de Santo Forte, explica (In.: OHATA, 2013) que, após esse processo, perceberam que as imagens externas, como as estátuas de umbanda, inseridas na edição, tinham uma duração muito curta para a tela de cinema. A inadequação foi uma aprendizagem, já que, na montagem, trabalharam na tela de um computador, em que a varredura da imagem com o olhar é mais rápida do que na extensão da tela de cinema. Na edição, foram mantidas as imagens com a presença da equipe de filmagem, tornando explícita a ideia de um filme que se mostra sendo feito. O tema Santo Forte é a religiosidade e não a religião. Essa seara, por si só, é predisposta à ficção, não sendo possível determinar se o teor das narrativas é verdadeiro ou mentiroso, pois se trata do imaginário simbólico. Neste âmbito ambíguo, o filme mostra a religião vivida em casa, sincrética por elaboração simbólica, mas doméstica, no sentido de estar adaptada à intimidade do sujeito. As personagens realizam performances metaforicamente chamadas de “xamanísticas” (BEZERRA, 2014), nas quais o corpo é instrumento de trabalho, o narrador é sujeito e objeto da experiência narrada. O relato tem a força de uma experiência vivida, que transita por um universo imaginário de espíritos e entidades que se conectam com a realidade das personagens. A imagem, em Santo Forte (1999), evoca a encenação das subjetividades cotidianas que perpassam o imaginário brasileiro na sua diversidade de crenças e na

25 Kinescopagem diz respeito ao processo de passagem da gravação em vídeo analógico para película cinematográfica de 35 mm (filme); esse processo também é conhecido como transfer. 54

forma como as pessoas assumem ou silenciam sua religiosidade. Os narradores escolhidos por sua habilidade em narrar compartilham implicitamente, com sua comunidade, a experiência da religiosidade, o que os deixa confortáveis em sua performance, apesar da câmera. À frente dos narradores que contam suas histórias por meio do método definido pelo diretor, está o próprio diretor, como narrador que constrói o filme para apresentar outros narradores. Esse narrador que elabora o filme por meio da direção não apresenta, necessariamente, sua posição sobre o tema do filme, mas, sim, sobre o filme. Coutinho diz (In.: OHATA, 2013, p. 276) “Tem que filmar narrando”, narrando a história do filme. Um exemplo disso é quando Coutinho utiliza a transmissão da missa do papa pela TV, como fio condutor da narrativa fílmica, conectando as diferentes personagens, como também, situando o filme naquele momento de 1997. Os dispositivos, organizados a fim de possibilitar uma determinada relação de Coutinho com suas personagens no momento da filmagem, e os dispositivos de montagem referem-se à forma do objeto estético, ao mesmo tempo em que referem seu conteúdo. O conteúdo só emerge com a “verdade fílmica” exigida por Coutinho, por meio dos dispositivos criados por ele, e ela só se revela esteticamente na ação de significar. Os sujeitos só se construíram personagens naquelas condições específicas e firmaram sua existência como tal, por conta do objeto fílmico que se impõe como significante. A existência material desse significante possibilita a relação da personagem, narrada pelo diretor, com o espectador que, como o segundo eixo dos documentários, está implícito em Santo Forte (LINS, In.: OHATA, 2013, p. 376). Ele também é escuta para o personagem que narra, e, principalmente, é escuta para o narrador que dirige. Ambos os narradores desejam, além de serem ouvidos, que suas histórias encontrem o outro, caracterizando a experiência estética. O artista subentende o espectador em sua obra e é nele que o ciclo se completa. Segundo Aumont (2011, p.21), “o espectador reage diante da imagem fílmica como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que aparentemente está vendo”, o que evoca a presença de um lugar que não está na tela. Aumont chama esse lugar de fora de campo, um espaço invisível que prolonga o visível. Barthes (1984), ao comparar a fotografia com o cinema, identifica esse lugar como campo cego, ou seja, um esconderijo onde se escondem as imagens que saem de cena. Independentemente de como esse espaço seja nomeado, Aumont (2011) afirma que ele é indissociável do campo visível, e só existe em função dele, cabendo 55

ao espectador criar os vínculos imaginários entre um espaço e outro. Desta forma, o espaço visível e o invisível pertencem ao espaço fílmico como um todo. Barthes (1984) identifica a existência do studium e do punctum na fotografia e, quando se transferem esses conceitos para o cinema, a dificuldade do movimento se impõe. Não há, no filme, um studium fixado no qual se pode encontrar o punctum e adentrar o espaço invisível do filme. É preciso deixar-se levar no fluxo visível até colidir com o punctum. Esse envolvimento orgânico com o filme, uma espécie de participação, é que ativa o prazer estético, via punctum. Esta é uma viagem solitária mesmo que coletiva, o que pode ser observado pelas diferentes impressões que um grupo tem ao sair de uma mesma sessão de cinema, quando os diferentes êxtases estéticos começam a ser compartilhados enquanto experiência. Em Santo Forte (1999), como a imagem revela a fragilidade da experiência narrada, a ação do espectador é muitas vezes desencadeada pela palavra, ou seja, o punctum pode estar na palavra confrontada pela imagem que se apresenta. Um exemplo desse confronto é a fala da personagem Lídia26

[...] Eu tinha amor a ele e ele também me tinha amor. Eu sei que ele me tinha amor. Aí eu me enraiveci, quando foi depois, me enfezei, me aborreci! – Você se dane, sai da minha vida, senão eu te mato. Minha vontade era de matar mesmo! Muitas vezes eu tive vontade de botar água no fogo pra ferver, pra despejar nos ouvidos dele (marido). Porque eu ouvia falar isso, né?! Que o pessoal fazia isso, que as mulher faziam isso nos marido. Daí eu queria fazer também! [...] (Lídia, Santo Forte, 1999, 00:39:10)

Essa fala, que se desenrola no studium, vem num crescente de elementos narrativos que vão se desprendendo da imagem, numa espécie de dessintonia entre a fala e a imagem. O punctum, ou a experiência que afeta o espectador, pode estar radicado nessa contradição. A imagem mostra Lídia, uma senhora vestida em tons de rosa, com acessórios discretos, óculos, cabelos curtos bem penteados, braços entrecruzados, sentada em um sofá cor de rosa, apoiada em uma almofada estampada, em um canto de sala rosa. Apresenta-se visualmente como uma avó afável, de sorriso fácil. Nesse ambiente, ela descreve naturalmente sua vontade de despejar água fervente nos ouvidos do marido.

26 As personagens dos filmes, escolhidas para a análise seguem o critério da conveniência para a relação entre o objeto e o referencial teórico. 56

Figura 1 - Lídia

Fonte: filme “Santo Forte” (1999) de Eduardo Coutinho

A cena provoca, na experiência contextual do espectador, a transposição da imagem dessa avó, ou mãe, que poderia ser a sua, e o leva a considerar, hipoteticamente, que tais desejos poderiam perpassar as figuras maternas do seu entorno, que, como Lídia, parecem incapazes de engendrar tal tortura. A experiência estética se coloca a partir do conjunto da aisthesis (sentir, conhecer), da anamnesis (reconhecer) e da katharsis (purificação, alívio). Nessa situação, o sentir-conhecer, refere-se ao ser afetado pela narrativa de Lídia, por sua figura, sua voz, seu sotaque, suas pausas, é deixar- se ser apr esentado à Lídia. O reconhecer é encontrar na representação de Lídia, referências sociais, religiosas, de gênero e outras tantas. É, também, reconhecer Lídia em si, ou reconhecer-se diferente dela, é legitimá-la enquanto personagem, pela semelhança ou pela diferença. A purificação ou alívio vem por meio desse reconhecimento e pela empatia, o espectador se solidariza com a personagem, compreende-a, ou sua narrativa remete para o entendimento de algo. Ou ainda, ele assiste apenas por estetismo, pelo prazer. Dessa forma, estas três instâncias, na experiência do espectador, tensionam a reflexão filosófica sobre as contradições do humano a qual passa a agir no imaginário. Bragança descreve sua percepção enquanto espectador, afirmando haver, em Santo Forte, a manifestação de “máscaras que o encaravam e cuja densidade das palavras ia esgarçando o real cansado e frio” (In.: OHATA, 2013, p. 543). Podem-se relacionar essas máscaras com os “punctuns” que Bragança encontrou no filme: “Havia alguma coisa ali naquela obra que apontava uma lança afiada não para os 57

‘objetos’ revelados, mas para o próprio olhar do construtor de imagens (seja o cineasta, seja o público que constrói as imagens dentro de si [...]”. Essa lança atinge cada espectador a partir do seu lugar no mundo e na narrativa. É possível compreender o espaço fílmico, do visível e do invisível, como parte do percurso para o universo diegético. Segundo Aumont (2011) a diegese é mais ampla do que a história, abarcando também tudo o que evoca no espectador, ou seja, a forma como a história se elabora nesse receptor no rastro do desenvolvimento fílmico. A existência desse universo diegético torna possível o diálogo entre o que Consuelo Lins (In.: OHATA, 2013, p. 375) chama de dois eixos indissociáveis na obra de Coutinho: seus personagens e seus espectadores. Nesse universo, Lídia conversa com milhares de pessoas que não conhece e que não a conhecem, mas reconhecem nela, enquanto imagem e palavra, o outro, de caráter social, que apresenta a possibilidade de compreensão e de intervenção na realidade. O julgamento é atenuado e dá lugar à escuta, pois o espectador está assistindo ao filme e, por mais que se envolva, tem consciência de que ele não é real. O sujeito, ao construir-se como personagem, é, ao mesmo tempo, quem costuma ser, representando quem pensa ser, sob o olhar implícito do espectador, a quem quer causar determinada impressão. Dessa forma, Lídia é a senhora meiga ou a esposa vingativa? Ela é ambas e também nenhuma delas, pois a que se apresenta é a personagem criada por Lídia. Ela traz o paradoxo simbólico que é problematizado pelo receptor por meio do modo epistêmico, que foi acessado via prazer estético. O que chega ao espectador é a imagem de Lídia e, portanto, sua representação. Nessa imagem, o espectador reconhece uma mulher idosa sentada em um sofá, mas esse referente “real” é também o que a diferencia das outras mulheres idosas conhecidas desse espectador, o que explicita o valor simbólico daquilo que a imagem representa, traduzido no imaginário, na recepção. É o modo epistêmico que colhe as informações dos espaços visíveis e não visíveis do filme, de acordo com a penetração do espectador no studium e no punctum das imagens, acomodando-as no imaginário. Aliando as percepções de Bezerra (2014) e Nichols (2012), explora-se o cinema de Coutinho, a partir de Santo Forte (1999). O primeiro autor, define a terceira fase do trabalho do cineasta como “Documentário de Personagem” e expõe a ideia de que esse personagem é performático, ao moldar a palavra em ato expressivo. O segundo, argumenta que o documentário que se apresenta de modo performático realça suas dimensões subjetivas e afetivas por meio das peculiaridades das experiências 58

pessoais dos personagens, o que relaciona a performance ao caráter social do filme: “O documentário performático [...] tenta demonstrar como o conhecimento material propicia o acesso a uma compreensão dos processos mais gerais em funcionamento na sociedade. ” (2012, p. 169). Dessa forma, a materialidade do objeto fílmico contém a forma, que, por sua vez, contém a materialidade representada, onde se expõe a dinâmica social. Considerando o valor de representação da imagem em seus modos simbólico, epistêmico e estético, é plausível atribuir à experiência estética a possibilidade de elaboração subjetiva e objetiva do social. No que tange ao receptor que dialoga com os narradores de Coutinho, ele exercita, conforme referenciado, os princípios da solidariedade (dimensão ética), e da participação (dimensão política), por meio do prazer (dimensão estética). Em Santo Forte encontra-se um exemplo do diálogo fílmico com o receptor, quando Braulino mostra o paradoxo entre o sujeito e sua personagem e na própria personagem. Essa contradição é ética ao legitimar a fala de Braulino e ao revelar a dimensão política nela contida. O punctum narrativo, mais uma vez é confrontado na imagem, pela inquietação sutil entre uma representação simbólica e outra sociopolítica, por meio das quais Braulino constrói sua personagem

[...] Eu, graças a Deus tenho proteção de três ótimos guias, por que não dizer quatro. Eu tenho de Xangô, tenho Preto Velho Rei Congo, tenho Velho Brás Carneiro e tenho, o que é muito boêmio, né, [risos] Manuel Sambista. Brás Carneiro, ele foi escravo, ele foi um escravo, ele não frequentou senzala porque ele foi, como se diz: negro da cozinha. Então ele vivia no meio dos senhores e tal e tal e tal, né?! Quando a coisa acontece, eu mesmo sinto, que o que ele era, o que ele foi, eu sou. Eu sou muito, sei lá, eu sou muito bajulado e não é por pessoas humildes, entendeu o raciocínio da coisa? Por aí se vê a ligação que tem o Preto Velho com as pessoas de maior poder aquisitivo, é o que se passa comigo.[...] (Braulino, Santo Forte, 1999, 00:42:39)

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Figura 2 – Braulino e Marlene

Fonte: filme “Santo Forte” (1999) de Eduardo Coutinho

Coutinho, ao narrar a inserção dessa personagem, recorre à lembrança da entrevista das pesquisadoras, no dia da missa do papa, quando gravaram o depoimento de Braulino, que havia dito que era católico espírita, mas que não podia falar a respeito dos nomes espíritas. Assim, Coutinho pediu a Braulino que falasse sobre isso. Aquele sujeito que reprimiu o “espiritismo” diante da missa do papa, agora constrói sua personagem ancorada no simbolismo “espírita”. Ele discorre sobre as entidades com conhecimento e naturalidade e, em seu “né?!”, coloca o receptor, seja ele Coutinho, a câmera ou o espectador, em posição de diálogo. Subentendendo uma concordância, segue seu argumento no sentido de valorizar seus guias e, consequentemente, a si mesmo, porque eles representam suas características. A relação, em que o guia, que é um escravo situado socialmente acima dos demais, protege Braulino e em que as pessoas de “maior poder aquisitivo” o bajulam fazem o espectador abstrair-se do contexto de favela, da situação de pobreza, da imagem de um negro e idoso. Todas essas características, que sinalizam uma situação social desfavorável do sujeito, são subjetivadas simbolicamente, pela performance de uma personagem prestigiada por seus guias e seus díspares sociais. A imagem mostra Braulino, um homem de postura elegante e altiva. O som traz a voz grave e marcante, que enfatiza a performance quando diz:

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[...] Eu, pra dizer a verdade, me sinto bem em ser brasileiro, me sinto bem em ser negro [risos], tenho orgulho de ser negro. Porque preto é cor, negro é raça! (Braulino, Santo Forte, 1999, 1:12:00)

Figura 3 - Braulino

Fonte: filme “Santo Forte” (1999) de Eduardo Coutinho

Essa fala de teor político demonstra a luta e as conquistas do movimento negro. Mas, ao mesmo tempo, é ainda escudo e proteção para a fragilidade social dos negros no Brasil. Sobre isso, Coutinho (In.: OHATA, 2013, p. 282) observa que em muitas exibições de Santo Forte ouviam-se aplausos após essa fala de Braulino: “Todo mundo aplaude, o que é lindo e ruim num filme, porque, ao aplaudir uma frase, ao dar apoio a uma frase.... você perde a seguinte. Mas é muito engraçado isso, é exatamente uma visão otimista e ingênua”. É a performance narrativa exibindo diferentes faces de Braulino, aquele que por ser negro adere à luta por legitimação social, entendendo ser subjugado, ao mesmo tempo em que é privilegiado por seus guias e por pessoas de “alto poder aquisitivo”. As dimensões ética e política, contidas nas representações, são aquelas consideradas por Boaventura de Sousa Santos como facilitadoras da criação de um senso comum emancipatório. O personagem de Braulino representa percepções do senso comum interpretadas, mas que, ao serem dirigidas pelos dispositivos de Coutinho, concorrem para a construção do senso comum emancipatório, por meio da dinâmica estética criada entre diretor, personagem e espectador. Segundo Coutinho, seu interesse enquanto artista é conhecer o mundo, e não transformar o mundo com 61

um filme, “Temos que ter dados sensíveis, os filmes podem dar esses dados; se você não conhece, não pode transformar direito” (In.: OHATA, 2013, p. 281). Conhecer o mundo sob diferentes pontos de vista e traduzi-lo na experiência cotidiana presente do espectador faz parte do senso comum emancipatório, viabilizado pela experiência estética. Para oportunizar o caráter dialógico da experiência estética é essencial oferecer o espaço para que ela se desenvolva. Coutinho oferece no diálogo, no silêncio e no vazio da imagem, um espaço para o espectador penetrar no filme. Enquanto o sujeito constrói a personagem com seu repertório imaginário, ela está fazendo um autorretrato, que se apresenta entre a imagem e palavra, preenchendo de mistério o espaço invisível do filme. O tema religiosidade, certamente contribui para isso, cria um ambiente narrativo propício para que o mistério seja recebido e preenchido pelo espectador. A personagem Thereza materializa o mistério e subjetiva o real nas nuances narrativas sobre seu cotidiano. No diálogo entre Thereza e Coutinho aparece a dinâmica entre o ordinário e o imaginário, assim como entre a presença e o vazio, a fala e o silêncio.

Eduardo Coutinho: – O que é que são essas pulseiras no seu braço? Thereza: – Essa é dos meus guias. Eduardo Coutinho: – Mostra cada uma.... Thereza: – Eu sou espírita, católica e espírita. Amostrar? Eduardo Coutinho: – O que quer dizer cada guia dessas? Thereza: – Cada guia dessas é uma firmeza e uma segurança. Cada guia dessas pertence a um orixá. Eduardo Coutinho: – Pode mostrar cada guia dessas e qual o orixá? Thereza: – Posso. Vovó Cambina, Ogum, Xango, Oxossi e Oxum. Eduardo Coutinho: – E a senhora frequentou a Umbanda a vida toda? Thereza: – Eu frequentei muitos anos, agora eu parei. Eduardo Coutinho: – Por quê? Thereza: – (dar de ombros) Deixei por causa de muita (pausa) decepção, ingratidão.... mas eles não me abandonaram! Eduardo Coutinho: – Mesmo a senhora deixando? Thereza: – Mesmo eu deixando eu cuido deles. Eduardo Coutinho: – Como é que a senhora cuida deles? Thereza: – Por exemplo, hoje eu.... De sete em sete dias .... de sete em sete dias, segunda-feira, eu boto café pra minha véia. Café amargoso pra Vovó Cambina. (Coutinho e Thereza, Santo Forte, 1999, 0:16:41– 0:17:58)

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Figura 4 - Thereza

Fonte: filme “Santo Forte” (1999) de Eduardo Coutinho

A dinâmica entre o ordinário e o imaginário se destaca no uso de pulseiras e na oferta de café para o orixá. As pulseiras não são acessórios de moda, são símbolos de proteção. A quantidade e coloração delas não se referem a sua contingência material, mas a sua relação com as características daqueles orixás27. Colocar “café amargoso pra Vovó Cambina” não significa servir a bebida a uma senhora, e sim, um rito semanal de oferenda, de cuidado para com uma entidade protetora. É através da materialidade do objeto, do alimento, de suas cores e sabores, que, simbolicamente, são satisfeitos os caprichos dos orixás, o que confere à Thereza a sensação do compromisso cumprido e, portanto, de merecimento da proteção. O espectador adere ou não à interpretação da personagem, entretanto a narrativa, embora esteja centralizada no universo cotidiano, constrói-se de forma extraordinária, instalando empatia no espectador, por meio de seu imaginário. E, quanto maior for a distância entre o “real” da personagem e o “real” do espectador, tanto mais ele se remeterá à ideia de que está diante de uma ficção e, simultaneamente, diante de uma experiência singular, que renova seu modo de perceber o entorno.

27 Nome atribuído às divindades africanas que, trazidas ao Brasil pelos negros escravizados, foram incorporadas por várias denominações religiosas; trata-se de ancestrais divinos que se materializam em forças da natureza e/ou objetos, mediando as relações entre o homem e os seres. Disponível em: http://www.dicio.com.br/ Acessado em: fevereiro/2016 63

A possibilidade da fruição, da experiência estética, fornece dados significativos sobre o outro, seja ele um sujeito, uma personagem, um lugar, uma época ou diferentes formas de lidar ou de viver o cotidiano. Esses dados que chegam ao espectador de Coutinho foram elaborados pela direção e pela própria personagem. No caso de Thereza, a personagem expõe sua experiência religiosa que se caracteriza como explicação, superação ou compensação do “real”, por meio de uma performance “xamanística” (BEZERRA, 2014), que apresenta uma abordagem particular para uma situação problema.

Thereza: – Adoro, adoro o que eu faço! Sempre gostei de cozinhar. Ué, de repente em outras vidas eu fui alguma cozinheira das madames, daquelas sinhá, quem sabe? Eduardo Coutinho: – A senhora teve alguma vida, alguma coisa na ..., como é, conta pra mim?! Thereza: – Eu procurei saber, porque uma coisa que me preocupou muito, foi uma vez, aqui, só que era barraco de tauba, naquela época, porque aqui eu lutei pra fazer assim, de tijolo, né?! Então eu tava arrumando umas florzinha numa mesinha que eu tinha, numa salinha, e conversando com uma senhora que chama-se Marta.... ela até, agora, não mora aqui, não. E eu, ajeitando assim, e conversando com ela, e quando eu virei, pra ver ela, ela tava espantada me olhando. Eu fui e perguntei: o que foi Marta? Você está me olhando tão espantada. Ela me disse assim: mas eu não vi a senhora, dona Thereza, eu vi uma rainha! Eu falei: rainha? Você tá brincando! Ela disse assim: vi! A senhora eu não vi, eu vi uma rainha! A senhora já foi rainha, dona Thereza, em outras vidas? Eu digo, isso aí eu não sei. Porque eu nem sei o que que eu fui em outras vidas e vim nessa. Daí, eu fui procurar saber no centro dos meus patrão. Que no centro dos meus patrão não é Umbanda. É linha branca. Sabe como é que é? É a linha magnética. Eduardo Coutinho: – É com mesa, assim...? Thereza: – É mesa, e dá aqueles passo magnético na gente, é diferente de Umbanda. Não recebe aqueles guia de fumá, de bebê, que nem é na Umbanda, bate caixa, né, os guia fuma, bebe, dança ...., lá nos meus patrão não. É tudo assim, sabe, aí dá aqueles passo magnético na gente, dá aqueles ensinamento, o que é a vida, o que é que nós tamos fazendo nesse prano..... Eduardo Coutinho: – Ah, me diga uma coisa, lá a senhora confirmou a rainha, como é que foi isso? Thereza: – Lá eu confirmei perguntando a chefe, dona Sara, que é a chefe de lá. Eu digo: escuta aqui, eu nunca tive conforto na vida. Sempre vivi nas favela, nas casa ruim, nos barro, nas lama. Nunca tive nada, e tudo que eu tenho, porque que eu tenho? Eu tenho que lutar muito para ter. Agora, por que, que eu sou assim? Só gosto de vitrine cara, só gosto de cristais, essas coisas que eu sei que não é pra mim? Ela disse assim: não, tá errada, você foi uma rainha, do Egito, você teve isso tudo, ouro, pre... (como é que é?), ouro, prata, joias... e você hoje voltou. Mas nunca fica apagado tudo, porque a gente traz nessa vida alguma coisa da outra vida que nós fomos. Por isso que você é assim! Aí eu fui e falei: e essa rainha, eu fui rainha? E ela disse assim foi, você foi uma rainha. E eu falei: então eu devia ser ..., fui muito ruim dona Sara. Ela disse assim: mas naquela época as rainha eram ruins, mandavam bater, mandavam matar e tal.... Eduardo Coutinho: – A senhora acha que a gente .... que tá pagando um pouco dos pecados da rainha? 64

Thereza: – (concorda com a cabeça) Tô com a dívida, né?! A dívida que eu trouxe, por isso que eu vivo assim.... Mas eu gosto de coisa bonita, eu gosto de coisa boa! Eduardo Coutinho: – A senhora gosta de música? Thereza: – adoro música, eu adoro Beethoven. Tenho até um disco dele aí. Eduardo Coutinho: – Beethoven? Thereza: – (concorda com a cabeça) Eduardo Coutinho: – que música a senhora gosta mais, dele? Thereza: – Que já passei uma vida lá Eduardo Coutinho: – Como é que é? Thereza: – Eu já passei uma vida lá, na terra onde ele nasceu! Eduardo Coutinho: – Em outra vida a senhora teve na Alemanha? Thereza: – Nós temos várias vidas, várias encarnações..... Eduardo Coutinho: – A senhora teve uma vida no tempo do Beethoven? Thereza: – Tive! Eduardo Coutinho: – Por isso a senhora gosta? Thereza: – Por isso que eu gosto, porque eu sou analfabeta, eu não sei ler, eu não entendo nada, como é que eu posso gostar de Beethoven? O senhor não acha que é difícil isso? (Coutinho e Thereza, Santo Forte, 1999, 0:18:36 – 0:22:23)

Como se verifica, a abordagem de Eduardo Coutinho se dá pela escuta, fato que ele mesmo reforça em suas entrevistas (OHATA, 2013). Importa que a personagem conte sua experiência, alinhavando o real e o imaginário, a partir da memória. Thereza se singulariza e se legitima como personagem, apresentando um conteúdo concreto, subjetivado por sua crença, o que desconcerta o espectador, a quem cabe problematizar verdades estabelecidas. Consequentemente, o documentário revela para o público a concretude da experiência simbólica da personagem, transformando-a em experiência estética, na qual se investiga a insurreição, ou a possibilidade de romper com os limites do real. Segundo Canclini (1980, p. 32), “a arte verdadeiramente revolucionária, é aquela que por estar a serviço das lutas populares, transcende o realismo. Mais do que reproduzir a realidade, interessa-lhe imaginar os atos que a superem. ” É a partir da explicitação da socialidade narrada que se estabelece a alteridade, na qual personagem, diretor e espectador não se submetem um ao outro, mas exploram o reconhecimento no estranhamento e vice-versa. Thereza apresenta, gradativamente, em sua narrativa, a dinâmica de camadas de experiências vividas, cujas significações possíveis se colocam no jogo poético do filme. Como diz Salles (2005, p. 67), a representação de qualquer coisa é a criação de outra coisa. Assim, no universo narrativo de Thereza, ela cria seu lugar no mundo. Nele, ela cuida e é cuidada pelos seus Guias, cuida do marido, de seis filhos e oito netos; cuida e cozinha para os patrões e é cuidada no Centro Espírita que frequenta. Sua condição social é a expiação pelos pecados de uma rainha má, do Egito, e o 65

gosto por Beethoven é justificado por ter sido conterrânea dele em outra encarnação. Segundo ela mesma, esta é a explicação plausível para quem é analfabeta e não entende nada. Com efeito, a riqueza de sua narrativa está nas relações interculturais que se mantêm em conflito e que se mantêm vivas mesmo ao final da exibição do filme. E, assim colocados esteticamente, todos os problemas da filosofia, são acessados pelo prazer, pela fruição. Portanto, o cinema de Coutinho serve de exemplo ao que Canclini (1980), chama de arte revolucionária ou que Boaventura de Sousa Santos (2011) chama de conhecimento-emancipação, visto que suas produções não se ajustam à linearidade dos fatos e tampouco a relações confortáveis. Esse traço da filmografia de Coutinho pode ser explicado pelo termo Sorge, citado por Boaventura, que é a preocupação ou cuidado, pelo qual nos tornamos responsáveis pelo outro. A arte de Coutinho vê e dá a ver o outro, respeitando sua autoria como personagem, para que o espectador o reconheça ou o veja como um estranho. Posto isso, a reflexão gerada pelo exercício estético avança no sentido de relacionar o acima exposto àquilo que Santos (2010) se refere quando diz que a realidade não pode ser reduzida ao que existe. Desta forma, acredita-se que a experiência estética possa ser uma via para expandir o presente, sendo palco para uma sociologia das ausências, isto é, ela apresenta e faz proliferar totalidades latentes, conflitantes e coexistentes no espaço-tempo. Isso ocorre na narrativa de Thereza, cujo presente é o tempo em que estão ativas suas vidas passadas, seu trabalho, seu habitar e seu gostar. E, ainda, cada uma dessas totalidades também são partes que existem separadamente e se relacionam de diferentes formas com tantas outras therezas. O fruir e o pensamento filosófico, que se institui a partir daí, cria diferentes formas de compreensão e de relação com experiências diversas, o que pode ser análogo ao que Santos (2010) propõe como tradução. Os fragmentos da experiência social, traduzidos por meio da experiência estética, trazem, para o mundo das possibilidades, o que está invisível no cotidiano social. A experiência estética torna crível a diversidade das práticas culturais. Na narração de Thereza, entre o místico e religioso, escamoteia-se o preconceito do subalterno28 para com o subalterno, quando ela fala da diferença entre

28 Subalterno no sentido utilizado por Canclini ao caracterizar a cultura popular como excluída ou subsidiária na modernidade (CANCLINI, 2011). 66

a umbanda e o centro espírita de “linha branca”. A personagem descreve o ritual da umbanda pelo bater de caixa, pela presença dos guias que fumam, bebem e dançam, enquanto a “linha branca” dá passes magnéticos e ensinamentos. Thereza assume e legitima a religiosidade dos patrões como mais distinta ou civilizada do que a umbanda frequentada na favela. A própria ênfase dada à cor branca, ao nomear a linha espírita, confere-lhe mais virtude e respeitabilidade. A atribuição de valor ao centro espírita dos patrões, de onde veio a informação de que Thereza havia sido uma rainha do Egito, dá mais credibilidade à própria informação, o que automaticamente valoriza as encarnações anteriores da personagem. Assim, a situação social da personagem é uma circunstância na totalidade de sua vida espiritual, o que alivia o peso das dificuldades cotidianas que não são atribuídas ao contexto social, mas sim à dívida espiritual. Junto a isso, concorre a esperança por vidas melhores a partir desse sofrimento. É o subterfúgio, ao mesmo tempo insurgente e resignado, diante da impotência. Os receptores, cada um a partir de seu lugar, encontram a Thereza cozinheira, a conterrânea e contemporânea de Beethoven, e a rainha do Egito, pois, esteticamente, há majestade em sua narrativa. E sua conclusão confronta mais uma vez o espectador: “Por isso que eu gosto, porque eu sou analfabeta, eu não sei ler, eu não entendo nada, como é que eu posso gostar de Beethoven? O senhor não acha que é difícil isso?”. Se a analfabeta não poderia gostar de Beethoven sem a intervenção mística, o receptor, que não é analfabeto e não mora na favela, poderia gostar da história de Thereza sem a intervenção estética?

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Figura 5 – Varal de Thereza (onde estão os espíritos)

Fonte: filme “Santo Forte” (1999) de Eduardo Coutinho

Coutinho (OHATA, 2013) fala da imagem que só existe porque foi provocada pela palavra, ao justificar a filmagem dos vazios. Quando Thereza fala sobre os espíritos que estão em sua volta, com a certeza de quem os está vendo, Coutinho diz que se impôs a necessidade de mostrar o entorno, o vazio, ou o quintal com roupas no varal, ou os espíritos. O filme permite intuir que o diretor tenta mostrar, ao espectador, o que a personagem vê, e que, em sequência, o espectador passa a ver. O filme legitima a narrativa da personagem e o vazio poético, ou o imaginado, pode ser o punctum que desencadeia o prazer estético. O vazio anunciado está instalado em um cenário que, ao ser examinado, apresenta-se tão insólito quanto o narrado. Entretanto, pode pressupor conotações de outra ordem. Veem-se, no quintal de chão batido, elementos que compõem quase uma sala de estar: um sofá, com um grande bicho de pelúcia recostado, à sombra de uma bananeira, fica de frente para um banco de madeira; ao lado do banco, um triciclo infantil; ao fundo, a porta do barraco entreaberta é um convite a um universo particular, ao mesmo tempo em que é a possibilidade de fuga do mesmo. No centro desse ambiente, se entrecruzam as varas do varal, cujos cortes diagonais conferem um certo movimento ao olhar, conduzindo-o do chão a um recorte de céu. Se o significado é aquilo que se desloca e se esquiva constantemente (SANTAELLA, 2012, p. 81), a imagem aqui descrita, apresentada por Coutinho e narrada por Thereza, como um espaço ocupado por espíritos, explicita também, a 68

conotação da pobreza, da desigualdade, da falta de condições dignas de moradia, de acesso a bens materiais e toda ordem de privações, que essa condição social estabelece. Como o signo é uma coisa que representa outra coisa, o seu objeto, para alguém, os componentes do cenário, recortados da imagem fílmica, também são signos, cuja síntese remete à exclusão social. Há uma espécie de permanência do abandono e, por isso, a porta entreaberta que anuncia o pertencimento deste cenário a alguém, também o esconde, pois a situação social é tão desfavorável que sequer permite que um sujeito figure no cenário, atestando sua invisibilidade social. A imagem que existe provocada pela palavra é Bildung, a transferência do devir para o ser. Então, a imagem do vazio que questiona a palavra existe, tanto no sentido de cópia (Nachbild - nach significa depois) subjetiva do que foi dito, quanto no sentido de modelo, (Vorbild - vor significa antes) do que se constrói no imaginário do receptor. O mesmo resultado do vazio na imagem pode ser observado no silêncio de Thereza, que embaraça o diretor, e este, ao manter o silêncio no filme, transfere o embaraço ao espectador.

Eduardo Coutinho: – Dona Thereza, me diga uma coisa, a senhora é feliz? Thereza: – Ah, isso é uma pergunta que fica no ar... (suspiro – pausa), essa é uma pergunta (pausa) que dói muito pra eu responder. Porque, numa parte eu sou feliz (pausa longa – retoma com voz embargada), mas na outra eu não sou. (pausa) eu não quero chorar, hein! (pausa longa) Eu sou emotiva, né?! Na outra eu não sou e acho que nunca vou ser. (pausa) Eduardo Coutinho: – O que é a outra? Thereza: – (pausa longa) Eu tenho que responder essa pergunta? Eduardo Coutinho: – Não, a senhora não tem que... Thereza: – (pausa) Desculpa. (Coutinho e Thereza, Santo Forte, 1999, 1:09:40 – 1:10:49)

Assim como o vazio, o silêncio punge e dilacera a homogeneização das experiências sociais. Naquele momento, a experiência de Thereza se legitima porque é única e confronta a experiência do espectador que, por se perceber diferente de Thereza, também se reconhece como único. Personagem e receptor legitimam o diretor que, com isso, expõe a diversidade, porque cada um deles se revela como sujeito diante do outro. O vazio, que por um lado, mostra algo que não existe, produz no espectador a existência de algo, com o qual ele, completa a lacuna narrativa. Da mesma forma, o silêncio grita o que o produziu, indaga o receptor, tornando presente o que foi silenciado ou tornado invisível por um sistema que desacredita, para se afirmar. A sociologia das ausências (SANTOS, 2004) corrobora essa constatação e busca o 69

aproveitamento da experiência do presente, razão pela qual a experiência estética é investigada. No que diz respeito à religiosidade em si, há uma espécie de contrato entre as personagens de Santo Forte. Quase todas se dizem católicas apostólicas romanas, por apropriação do título, o que lhes confere um elo com os não adeptos das reinterpretações do catolicismo, da umbanda, ou das igrejas evangélicas pentecostais. Entretanto, o catolicismo funciona como uma chancela a partir da qual os sujeitos se lançam à procura de respostas espirituais para situações objetivas do cotidiano. Não o encontrando em uma ou outra religião, as personagens mantêm o vínculo cristão por meio do catolicismo e praticam o sincretismo religioso. Além de Thereza, outras personagens afirmam sua base católica, seja por convicção ou por influência da circunstância, a visita do Papa, mas é recorrente essa representação.

Braulino: – Eu sou católico, né (pausa) e a gente tem um pouquinho do espiritismo né, e mais o catolicismo, porque eu sou batizado na igreja católica, né! Então eu não deixo de ser católico. (Braulino, Santo Forte, 1999,00:07:10)

...

Alex: – No caso isso é uma água benta que nós arrumamos com o padre no dia da igreja. Eduardo Coutinho: – O padre sabia que tava dando água benta pra um batizado na Umbanda? Alex: – Sabia, sabia, o padre sabia. Ele não se importou, no caso, porque primeiro foi batizado na católica, depois na umbanda, então ele gostou de saber disso. Eu sempre coloquei na minha cabeça que o mais importante é a igreja católica. Não existe religião pra mim, e sim a igreja católica em primeiro lugar. Eu não sigo a ela, eu não vou aos domingos, nem missas, nem nada. Mas eu acredito muito nela. (Coutinho e Alex, Santo Forte, 1999,00:57:05)

...

Eduardo Coutinho: – Agora, se alguém te perguntar na rua, se você é, que religião você é, você diz que é espírita, umbandista, qual religião você é? Taninha: – Eu digo, sou Católico Apostólico Romano. Eduardo Coutinho: – Mas é umbandista, também? Taninha: – (afirmativa com a cabeça) Sou Católico Apostólico Romano (pausa) e Umbanda também. Eu gosto de acompanhar. Eu acho que todo mundo tem que ter um protetor, todo mundo, seja em qualquer religião. Precisa ter uma proteção na vida. E eu, tenho uma coisa, muitos espíritos me defendem. [...] Eduardo Coutinho: – Como é que eles baixam na Universal também? Taninha: – (dar de ombros) eu também não sei. Eu sei que as pessoas começam a se bater e cair no chão, o pastor vem, faz aquele escândalo, porque o que ele faz é um escândalo! Dá aquelas gritaradas: Sai demônio! Sai demônio! Aquilo é uma palhaçada! Sai demônio! Gritando, aí no momento ele bota a mão na cabeça da pessoa, acho que ele aperta, dá um apertão pra 70

pessoa sentir alguma dor, e levanta (risos). Porque, não existe. (Taninha, Santo Forte, 1999,01:06:00)

Retomando Chartier (2002), que apresenta a noção ampla de representação social, como aquela que dá conta do conjunto das formas pelas quais indivíduos e grupos produzem uma imagem de si mesmos, é plausível pensar que as personagens de Santo Forte se representam por meio da imagem do catolicismo no sentido tradicional, e a imagem da Umbanda no sentido do vivido. Contudo, as duas representações são uma só, a do sincretismo, ora pela fusão simbólica de seus elementos religiosos, ora pela fusão social de conduta, que oscila entre uma e outra, conforme se impõe o contexto. O filme mostra a representação de experiências religiosas que perpassam o cotidiano cultural e chegam ao espectador promovendo a experiência estética. O receptor, quando afetado pelo prazer estético faz uma nova conexão na rede cultural e, assim, como o hub, concentra tais informações e as difunde à medida que essas se fundem ao seu imaginário. É possível estabelecer uma correlação entre os documentários de Coutinho e outras linguagens artísticas, compreendendo que a experiência estética é promovida por essas linguagens que, independentemente da forma ou conteúdo que apresentem, o fazem no âmbito social. A exemplo disso convergem as obras de Coutinho e Hélio Oiticica. É na dimensão estética que a dinâmica narrativa de Coutinho e de suas personagens se manifesta, devido à inseparabilidade entre forma e conteúdo, como nos Parangolés de 1963, de Hélio Oiticica. Os Parangolés eram considerados por seu criador, que assim como Coutinho dividia a criação com a personagem que os interpretava, como um conjunto entre os materiais, cores, formas, música e palavras das obras de vestir, enquanto vestidas e dançadas, como a “totalidade-obra”29, a qual só se realiza e se revela pela ação. Assim como o Parangolé expressa o inconformismo por meio da coparticipação do artista com as pessoas marginalizadas, o cinema de Coutinho deixa expressar o inconformismo ou o conformismo de diferentes grupos sociais, legitimando suas histórias. Isso se dá no momento da narração, assim como um Parangolé em seu movimento.

29 Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3653/parangole Acessado em janeiro de 2016. 71

A criação partilhada entre diretor e personagem, o movimento dialógico e performático da narração e os dispositivos de Coutinho são a “totalidade-obra”, assim como no Parangolé. O que efetivamente difere entre essas duas linguagens é o alcance técnico do cinema, pois o espectador, em ambos os casos, está frente a um movimento a ser experienciado. A experiência de Thereza não pode ser alcançada. O que o espectador pode é deixar que ela aconteça como uma experiência resultante de sua interação com a personagem, pela qual ele é afetado, ao ser confrontado por sua narrativa, que se revela como objeto de fruição. O varal de Thereza é como uma remissão intertextual dentro da narrativa. Nele se veem representados os parangolés revoltosos de Oiticica, dançando e colorindo a favela e a luta que Thereza descreve, “nas lama”, “nos barro”, “no barraco de tauba”. O varal é mais do que a soma de peças de roupas que podem ter vindo de doação, compradas na promoção, ou pagas com sacrifício, em inúmeras prestações. Ele conta um pouco do dia-a-dia, dos lugares que Thereza frequenta, do clima, da família, e também denuncia a falta, o que não está ali, um uniforme de escola, de trabalho formal ou esportivo. Ele dança conforme a música da sociedade de classes, ao mesmo tempo em que dança com o vento de uma paisagem de cartão postal. Já a experiência do próprio Parangolé, não “nos acontece” em sua totalidade, conforme previsto por seu criador, como uma obra de vestir. O fato de estar institucionalizada, não permite que ele seja vestido e incorporado como fez “Mosquito”, o mascote da Mangueira. O espectador não tem acesso à totalidade da obra. Então, o significado do Parangolé, o que ele representa, pode ser experienciado a partir de outros signos que não ele mesmo, entretanto, para que ocorra o alargamento da experiência, é preciso um repertório imaginário. Nele, não importa se habitam Parangolés, Coutinhos e Caetanos, ou Carrancas, Suassunas e Gonzagas, o importante é que nele habitem subsídios para interpretar o mundo. No imaginário de Thereza talvez não existam subsídios de outra ordem, que não místicos, que permitam sonhar, desejar, desfrutar de algo mesmo sem possuí-lo. Isso se explicita quando ela diz: “Agora, por que, que eu sou assim? Só gosto de vitrine cara, só gosto de cristais, essas coisas que eu sei que não é pra mim?” O imaginário cultural hegemônico é demonstrado por Thereza ao considerar sua cultura inferior e, portanto, incapaz de dialogar com outra cultura, que ela considera superior a sua. Isso aparece como incorporação de uma divisão social 72

criada e mantida na própria cultura em que se insere Thereza enquanto indivíduo social, revelando um conformismo com a desigualdade de acesso a bens materiais. Segundo Thereza, o gosto deve estar subordinado ao poder aquisitivo, porque ela sabe o que é, ou não é, para ela, de acordo com seu poder de consumo. Quando pergunta, por que eu sou assim, subentende um erro, um pecado, ela não se autoriza gostar, sonhar, querer. A personagem Thereza conduz o espectador ao final da narrativa fílmica, definido como tal, por Coutinho. Ela convida Coutinho para ver os bisnetos e Vovó Cambina, em seu quarto. Em sua fala, os bisnetos e a entidade são seres da mesma ordem, como se Vovó Cambina fosse alguém da família ou os bisnetos, anjos ali adormecidos. Na conversa que antecede a cena final, gravada na noite de Natal, Thereza abre seu universo particular, e, com ele, Coutinho fecha sua narrativa. São imagens provocadas pelas palavras de Thereza que indiciam boa parte dos temas recorrentes no filme.

Thereza: – Meu dia foi ótimo! Trabalhei, cheguei no meu barraquinho. Os meus neto tá comemorando o Natal, na medida do possível ..... Eduardo Coutinho: – O que a senhora fez hoje? Levantou, foi trabalhar onde? Thereza: – Onde eu trabalho sempre. Eduardo Coutinho: – Que horas a senhora foi pra lá? Thereza: – Eu fui pra lá oito horas. Eduardo Coutinho: – Trabalhou até que horas? Thereza: – Trabalhei até às seis e meia. Eduardo Coutinho: – A senhora tava fazendo o que lá, hoje? Thereza: – Eu tava fazendo o preparo pra noite de Natal, a ceia deles, que eu faço todo ano. Eduardo Coutinho: – Qual foi a ceia que a senhora fez lá? Thereza: – Eu fiz um peru assado, regado com champagne, importada ainda, muito chique, né?! E fiz um presunto, todo cravejado de cravo da índia e passado melado. A gente corta, vai cortando, vai botando o cravinho da índia, depois passa o melado e bota no forno. Depois enfeita com fios de ovos, com pêssego, com cereja, pra ir pra mesa. Eduardo Coutinho: – Ficou gostoso? Thereza: – Ah, ficou uma delícia! Eduardo Coutinho: – Quer dizer que, então, a senhora não vai participar da ceia da família? Thereza: – Ah, não, não! Eu tava aqui quando me chamaram. Eu tava sentadinha, sozinha, com meu cigarrinho, é aqui no escuro. Aí eu fico pensando, penso muita coisa .... Qué vê meus bisnetinhos lá no meu quartinho? A velha ganhou outro vinho. Eduardo Coutinho: – Ah, é? Thereza: – Não qué lá vê? Mas ela só ganha moscatel, que é o que ela mais gosta. Eduardo Coutinho: – Vamo vê? Thereza: – Então, agora tá muito chique, eu deixei de botá o café... 73

(Coutinho e Thereza, Santo Forte, 1999, 1:14:54 – 1:17:45) Durante a conversa, Thereza oscila entre alegria e melancolia, mas o seu semblante se ilumina ao falar do prato preparado para a ceia dos patrões. Ela sorri com orgulho, explica o preparo e os ingredientes, naquela situação é que, efetivamente, aparece a rainha. Há um breve momento de realeza, convicta, segura e feliz. Ela já havia dito em outros trechos de seu amor pelo que faz, mas esse amor só transparece ao descrever sua prática, como se estivesse revivendo o prazer de seu ofício. Seus gestos presentificam o prato elaborado, e, nesse breve momento, o signo da realeza e a felicidade de Thereza são um peru de Natal que ela sequer comeu. Assim, por meio do convite, o narrador diretor entra no quartinho da personagem e mostra a profusão de signos que determinam o filme das personagens, o filme do diretor e o filme do receptor. Estão todos ali, representados enquanto sujeitos que compartilham um imaginário coletivo. A sequência de imagens inicia por um quadro com uma oração e, logo abaixo, outro quadro, este com um casario. À esquerda, um quadro de um cavalo, com uma pequena bandeira do Vasco encaixada entre ele e a parede. Abaixo dos quadros, no canto direito do quarto, há um televisor, cuja antena está suspensa na parede ao lado do quadro de cavalo. À esquerda da TV, há um objeto coberto por uma capa preta e sobre ele um guardanapo engomado, conjunto que serve de mesa de apoio. Sobre ela, uma pequena árvore de Natal, atrás da qual há um cartão de Natal escorado na parede. À esquerda deste aparador, encontra-se um aparelho de som coberto com um guardanapo, e, sobre ele, um abajour cuja base é o personagem Pato Donald, ladeado por dois sapos de argila. À frente desta linha de móveis, no chão, ao lado da cama, um bebê vestindo apenas fraldas, dorme sobre um colchão com um lençol azul claro. Sobre a cama, com lençol rosa claro, dorme outro bebê de fraldas, vestindo uma calcinha de babados. De cada lado do bebê, há uma almofada e, aos pés da cama, uma pilha de roupas dobradas. Contra a parede, do outro lado do quarto, há um colchão escorado e algumas sacolas, e uma mesinha que faz às vezes de um altar. Nele está a imagem de Vovó Cambina, ao lado de Nossa Senhora Aparecida e de outra imagem de santo. Junto aos santos, veem-se uma garrafa de vinho e outra de água, um copo, uma planta e alguns potinhos. Segundo Santaella (2012), um signo só pode representar algo para um intérprete, ou seja, um receptor, quando produz em sua mente a imagem mental de 74

alguma outra coisa, que aqui se identifica como resultante da experiência e do repertório do imaginário, que também é constituído, instalando um complexo de signos. Assim, encontram-se representados, nos objetos, signos, que instituem representações sociais, como o sincretismo religioso, a “estética” de classe e a questão de gênero. O sincretismo religioso está indiciado pelos santos, orações e oferendas, que perpassam toda a narrativa fílmica. A estética de classe está representada por uma composição de objetos discrepantes e pela adaptação de espaços e objetos, que podem ser observados em todas as casas dos entrevistados. A questão de gênero está subjacente ao uso das cores azul e rosa e da calcinha vestida sobre a fralda, e é recorrente na narrativa, tanto no uso das cores, quanto nas falas das personagens. Estes índices estão presentes no universo diegético do filme, ou seja, na narrativa fílmica, e constituem signos que devem ser depreendidos na recepção. A experiência estética, no que tange ao pensamento filosófico desencadeado pelo objeto estético, instala a produção de sentido. Constitui-se enquanto prática significante, na relação que o receptor estabelece com os signos, resignificando-os em seu imaginário ou reagindo a eles. A análise permite levantar elementos que comprovam a inserção do receptor no universo diegético do filme, provocando a experiência, que é intrínseca ao sujeito e está relacionada à sua elaboração do sentido, do saber, do conhecimento. E, no que tange à experiência estética, em seu modo epistêmico, está ainda mais entranhada, “nos acontece” antes, ao nível imaginário. O conhecimento estético é, então, inerente ao sujeito, relacionado à sua forma de ser no mundo. A experiência estética, portanto, torna o imaginário um terreno fértil para a elaboração de sentido da experiência em si. Então, a adesão do espectador à experiência estética acontece por intermédio do prazer. É ele que estabelece o vínculo entre o objeto estético e o sujeito, portanto, libera o objeto de sua materialidade para sua sociabilidade. Esse vínculo se dá por meio do sentir-conhecer, do reconhecer e do entender, constituindo-se em pensamento filosófico e indexando-se ao repertório do imaginário, transformando-se em significação e produção de conhecimento. A experiência estética promove um diálogo do receptor com o imaginário, com o contexto e com o outro.

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3.2 MUNDO SINGULAR, MUNDO PLURAL

O documentário Edifício Master (2002) pretende mostrar a realidade de uma metrópole por um ângulo nunca visto, isto é, por meio da vida íntima de seus habitantes, moradores de um grande conglomerado urbano, o edifício que dá nome ao filme. O prédio se situa em Copacabana, a uma quadra da praia, e conta com duzentos e setenta e seis apartamentos conjugados. Aproximadamente quinhentos moradores habitam o prédio de doze andares, com vinte e três apartamentos por andar. Para atingir seu objetivo, Eduardo Coutinho e sua equipe alugaram um apartamento no prédio e filmaram a vida de seus moradores durante o período de sete dias. Trinta e sete desses moradores são personagens do filme. Coutinho (OHATA, 2013) discorre sobre a dificuldade que os indivíduos têm de falar do que está próximo, ou seja, Edifício Master (2002) é um filme sobre pessoas comuns, sobre as quais é difícil tecer considerações complexas. Segundo o diretor, não se pode objetivar ou tipificar uma pessoa, sob pena de matar sua singularidade, sua moral. No caso do documentário, é a possibilidade de revelação da interioridade de personagens comuns, da diversidade e das especificidades de moradores do condomínio que enriquece a experiência ética-estética. Um universo comum, cotidiano, traz maior dificuldade em ser representado e também é mais difícil de ser percebido, visto que está, de certa forma, naturalizado. Entretanto, ao ser exibido na forma de cinema documentário, o comum apresenta-se de forma inusitada e provoca o olhar, escapa das totalizações imaginárias e revela a estranheza do cotidiano. Se o cotidiano é aquilo que prende intimamente, a partir do interior (CERTEAU, 2013), a experiência estética liberta intimamente a partir do exterior, por meio da função catártica, provocando a tensão ética e estética. Esta tensão é da mesma ordem daquela que se estabelece entre o eu e o outro, no processo de configuração da alteridade. Sob esse aspecto, Didi-Huberman (1998) diz que não há que escolher entre o que vemos e o que nos olha. Há que se inquietar com o “entre”. A experiência estética é o elemento capaz de nos situar no “entre”, na dinâmica processual do pensamento filosófico. Em vista disso, Edifício Master, situado no ângulo da recepção, permite explicitar como a dinâmica entre aisthesis, a sensação que punge os sentidos, e a 76

reflexão ou o pensamento filosófico desencadeado por ela, no âmbito da experiência, promove a irrupção, no cotidiano, de novos processos de significação. Nessa concepção, o documentário torna-se um objeto estético, sem a pretensão de uma obra de arte aurática, e atrai o espectador devido a esse despojamento. Ao oferecer-se e ser recebido, o documentário pode afetar o espectador e, então, desencadear a experiência estética. Tecnicamente, o documentário contém em si os elementos que o constituem enquanto arte, forma e conteúdo elaborados pelo processo criativo de seu diretor, que o qualificam como objeto artístico. Entretanto, tornar-se-á objeto estético para o receptor que se relacionar com ele, que dialogar com ele e lhe atribuir significação. Nessa perspectiva, a instalação da reflexão filosófica, instaurada esteticamente, pode vir a ser o caminho para o senso comum emancipatório do qual fala Santos (2011). O documentário rompe com o senso comum, colado na experiência, ao percebê-lo a partir de outro lugar, e transforma-se entre a dinâmica da experiência narrada e a experiência recebida. Conforme Ohata (2013), é possível que Edifício Master comece depois que termina: no próximo encontro com o outro. Esse filme é a representação da ficção de cada um. Cada apartamento guarda um mundo particular e, nos corredores, ocorre o cruzamento desses mundos, sem que isso signifique um encontro entre eles. O documentário mostra um universo em miniatura, que expõe uma diversidade de subjetividades, pelas quais o espectador é afetado. Segundo Coutinho, Edifício Master não tem um eixo temático, pois o desafio era extrair um material interessante de pessoas comuns. Para ele, as experiências de vida, individuais das personagens, eram menos atraentes, suas narrativas tinham menos força dramática, do que as das entrevistadas em Santo Forte, por isso, era essencial a diversidade de experiências. Sem eixo temático, os depoimentos foram montados de forma caótica, para que o espectador não subentendesse o que viria depois de cada personagem. Os moradores, que permitem a invasão de seu mundo particular por estranhos e constroem personagens para eles, fazem-no pela oportunidade de escuta. Isso coloca o diretor e o espectador numa relação ética com o sujeito-personagem, implícita na relação da alteridade. Susanne Langer (2011) diferencia expressão biológica de expressão lógica, o que pode ajudar a entender as instâncias expressivas do documentário. Ela diz que, 77

quando um símbolo não pode ser separado de seu sentido, ele não se refere a algo exterior a ele mesmo. Portanto, na arte, a função característica do símbolo não é a de referir, e sim, a de expressar. Contudo, esse expressar ocorre no sentido lógico e não no biológico, como na raiva, no choro, na gargalhada, no desânimo, na energia, ou no medo. Compreende-se, então, o sentido lógico da expressão como aquele que contém o sentido biológico como indício de uma rede de significados e que, por isso, não necessita de referência direta. As camadas narrativas do documentário induzem ao deslocamento contínuo entre a expressão biológica e a expressão lógica, a fim de que o espectador possa tecer sua própria rede de significação. A oportunidade de escuta revela a raiva, o choro, a gargalhada, o desânimo, a energia, ou o medo na expressão do sujeito-personagem, que é da ordem da expressão biológica. Entretanto, ao narrar-se, a personagem vai se construindo simbolicamente e assumindo o sentido de expressão lógica. Essa construção expressiva do sujeito-personagem provoca a elaboração de significados no espectador, que também passa por um processo biológico-lógico, que é identificado como aisthesis-anamnesis, segundo Langer (2011). Assim, a personagem se concebe simbolicamente, adquirindo consistência e legitimidade. A narrativa da personagem é ainda capturada conforme a expressão lógica do diretor que, na obra, transforma universos particulares em representações da diversidade, aliando a experiência imaginativa à experiência intelectual. Para a experiência do espectador, a expressão chega de forma simbólica, negociada eticamente entre o sujeito-personagem e o diretor. Então, se estabelece outra negociação ética, agora entre o espectador e o documentário, que se revela como objeto estético. Entre corredores lúgubres e a disciplina e a ordem, instituídas pela administração do condomínio, o espectador é desconsertado pela gargalhada de Maria do Céu. Sua narrativa exemplifica a expressão biológica contida na expressão lógica, em que o riso não pode ser reduzido a sinônimo de alegria. A personagem se constrói por meio do riso que oscila entre diversão, deboche, constrangimento e censura:

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Figura 6 – Maria do Céu

Fonte: filme “Edifício Master” (2002) de Eduardo Coutinho

Maria do Céu - Pode entrar! Ah, meu filho, aqui, antes do Sérgio...tem uma parte, de noite, aquela portaria ali (risos), era um lurgarzinho das mulheres descer, e beber, junto com os porteiros. Toda noite, toda noite, eu também descia. Lá por uma hora da manhã, eu ficava aqui dentro de casa, eu não tinha sono, eu ia descer também. A gente comia, daí os porteiros bebia, aí os porteiros ficavam bêbado. Depois um ia dormir, abria uma cadeira de praia e se escondia a dormir. A portaria ficava jogada. Eduardo Coutinho – A senhora está contando com uma alegria... Maria do Céu – (risos, risos) Olha, não era muito bom não, era bom na hora da brincadeira, mas na hora do pega.... Então, daí a pouco chegava uma, rodando a baiana (risos) aí chegava outra com canivete, é hoje! (risos) Aí ficava, e ficava, e ficava...eu disse pronto, aí a pouco chamavam a patrulhinha. Aí, quando vinha a patrulhinha, que acontecia briga, ela subia, acontecia briga. Aí na frente tinha um andaime que tavam pintando o prédio...daí a pouco descia um pela escada, pelas corda do andaime...(risos, risos). Oh, daí a pouco descia um, do sétimo, do oitavo, pelas corda do andaime, pá! Daí a pouco descia outro...eu disse, que porra é essa, meu Deus do céu? (risos) a noite toda a gente vai ter que.... (risos). E aí, no dia seguinte, a gente tinha, quem vai fazer a reportagem agora? Eu ou você, Conceição? Do que passou à noite, do que a gente viu de noite? Aí começava a reportagem, a gente contava uma pra outra. A gente dizia que tava fazendo reportagem. É, mas era uma baderna aqui. Agora o Sérgio chegou, graças à Deus, agora tá tudo silêncio. Agora tá muito bom, mas e logo, coitado como ele sofreu pra tirar os travesti daqui, a prostituição, as casa de massagem. Ai meu Deus do céu...ele toda hora em delegacia, coitado como ele sofreu. Toda hora ser testemunha, o porteiro ia ser testemunha...Agora está melhor! Tá bem! (Coutinho e Maria do Céu, Edifício Master, 2002, 0:05:55 – 0:08:21)

O relato de Maria do Céu ironiza a fase de transição do posicionamento moral da administração do condomínio. A moradora é uma pessoa adulta, do sexo feminino, maior de 60 anos, de classe média baixa, que mora sozinha. Cada uma dessas informações remete a uma sucessão de reflexões que, possivelmente, não coincidem estética ou eticamente com o sujeito ali representado. Maria do Céu assume a posição de personagem e, por sua decisão, dialoga com o diretor, que é, ao mesmo tempo, 79

um interlocutor social e o sujeito que tem o poder da câmera, da apresentação da representação dela. Assim, segundo Coutinho, o que está filmado, não é a verdade, mas sim a verdade da filmagem, que é uma verdade estetizada pelo diretor e por quem se deixa filmar. Ambas as estetizações criam a personagem, o que coloca um problema ético: O que se vê representa teleologicamente uma boa ação ao qualificar uma transição moral na administração do condomínio? Com efeito, a sequência de cenas apresentada é, no primeiro momento, um objeto artístico, porque é um provocador de afetos em potencial. Como tal, coloca um problema de ordem filosófica que surge da experiência estética que o espectador tem ao fruir a obra. Segundo Pareyson (2001), essa experiência é, simultaneamente, objeto de reflexão e verificação do pensamento. Esse, por sua vez, é resultado da experiência e guia sua interpretação. Reconhecer o impasse moral de Maria do Céu, entre a diversão no caos e a tranquilidade na ordem, é resultado dessa experiência e se torna repertório para apreciar o mundo. Enfim, a dinâmica da estética se dá em espiral, abarcando todos os problemas filosóficos que possam estar presentes na obra. Assim, a ética como par da estética, provoca a tensão entre a imagem, a palavra e o mundo. Se o que se vê tem a ética do diretor, que respeita o que lhe foi dado a ver, assim como a moral da arte em si, conforme explicado anteriormente, também mostra a ética teleológica narrada. Esta última, enquanto assunto, é apresentada esteticamente pela forma narrativa, que é a imagem de uma experiência coletiva. Nela, percebe-se a relação entre ética e estética, quando do riso de Maria do Céu, que se diverte ao narrar imoralidades que ocorriam no condomínio. O riso, ali, inicialmente não é ético, é estético, provoca o intelecto, mas converte o drama em comédia, ao denunciar a falsa moral. Segundo Valcárcel (2005), frente a esta possibilidade da moral estética, a moral efetiva tende a se apresentar como completude. Entende-se, assim, que essa completude se dá a partir do receptor, que reconhece o universo diegético do filme (AUMONT, 2011), situa-se nesse mundo possível (ECO, 2002) e se posiciona diante dele. Eduardo Coutinho diz que não se preocupa se seu entrevistado está dizendo a verdade, o que poderia ser um dilema ético. Entretanto, ele acredita que o que está sendo narrado, mais do que uma verdade, é uma experiência, que é um misto de memória do vivido, permeada pelo lido, pelo visto, pelo ouvido, ou seja, o narrado é uma verdade, ao mesmo tempo em que é fruto do imaginário. Desta forma, ao não 80

constituir um problema ético, no que tange à verdade, o episódio descortina a dimensão estética no prazer da narrativa e com ele se estabelece uma relação de continuidade entre a personagem, o sujeito, e a coletividade. O fato de se tratar de uma experiência coletiva, tanto no que a narrativa relata quanto em sua recepção, o episódio mostra um ajuste da consciência ético-estética, que brota do princípio da alteridade, aqui constituída por personagem, diretor e espectador. Boaventura de Sousa Santos (2011) fala do senso comum ético emancipatório, que deve ser construído a partir das representações mais inacabadas da modernidade que, segundo ele, são o princípio da comunidade e da racionalidade estético- expressiva. A narrativa fílmica traz a dimensão da comunidade narrada colocando-a em relação com a comunidade da recepção, por meio de um vínculo de dependência recíproca. Os relatos do documentário, o da personagem e o do diretor, elaboram esteticamente formas de solidariedade e de participação da comunidade, assim como revelam discursos de um senso comum anterior ao emancipatório. Cabe ao pensamento filosófico, gerado na recepção, a possibilidade de emancipar o discurso do senso comum. A personagem do camelô Roberto é um retrato estético da desilusão. A percepção de si, enquanto sujeito, parece ser formulada na narrativa, entre a autovalorização e a vitimização social.

Figura 7 - Roberto

Fonte: filme “Edifício Master” (2002) de Eduardo Coutinho

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Eduardo Coutinho – O senhor trabalha onde ? Roberto – Olha, eu trabalho de camelô. Eu já fui um homem bem de vida, eu tive muitas casas, mas a ..... eu morava em Santa Teresa, morava em Santa Teresa. Tive muitas profissões na minha vida, trabalhei muito nesse mundo. Enquanto muita gente ia tomar sua cervejinha, eu ficava trabalhando. Trabalhei muito dia e noite, sem parar. Mas, infelizmente eu fiquei doente, eu tive um derrame cerebral, fiquei seis meses num hospital, sem poder me mover. Olha, eu já tô com sessenta e cinco, vou fazer sessenta e seis anos, doente, nessas condições, quem é que vai me dar emprego? Pra dar emprego pra um garoto novo, tá difícil, quanto mais pra um velho cheio de problema. Então, não tem emprego pra uma pessoa igual a mim. O senhor quer me dar um emprego ? (Coutinho e Roberto, Edifício Master, 2002, 0:38:13 – 0:39:08)

A sequência de cenas acima mostra uma narrativa permeada de conteúdo político e social a partir do senso comum, que se revela na representação estética e na dimensão ética, com ênfase na moral do senso comum. Para Roberto, a representação de camelô necessita de uma argumentação que justifique essa condição social e que passa pelo discurso político da propriedade e do trabalho e pela especulação da moral. A narrativa compõe um conjunto de apelos estéticos mediante os quais Roberto reverte a situação e desconcerta Coutinho, quando, ao final de sua argumentação, busca a comprovação do que diz, ao pedir-lhe um emprego. Nesse momento, representante e representado, ou estética e ética produzem o efeito de verdade. Independente de que o narrado seja verdadeiro, o sujeito e sua representação manifestam o senso comum, ao mesmo tempo em que o fragilizam e o devolvem ao espectador. Desta forma, se dá a emergência da função social na experiência estética, da qual fala Pareyson (2001): ela não foi um fim perseguido, mas esteticamente alcançado. A função social inerente ao objeto estético, aqui explicita sua face política, aquela a que Jacques Rancière (2014) chama de política como forma de experiência. Segundo o autor, essa é a base estética da política, que, assim, está no que diz respeito ao que é comum, em recortes de tempo e espaço, no visível e no invisível, na palavra e no ruído, ou ainda, no silêncio. As práticas estéticas e políticas partilham de evidências sensíveis, da existência de um comum partilhado e de um exclusivo ou pessoal, no sentido psicológico. Essas instâncias se derramam umas nas outras e podem ser entendidas como o imaginário individual e coletivo. O condômino, o camelô, o cidadão Roberto está inserido em um contexto estético, do qual fala com um constrangimento elaborado pelo esforço não 82

recompensado, pela injustiça moral e social. Já o sujeito Roberto, o homem solitário e desacreditado, expõe a sua singularidade política ao comprometer o diretor e o espectador com o que diz respeito à responsabilidade social coletiva. Sujeito e personagem permeiam e são permeados pela particularidade de sua narrativa e pela publicidade que se dispõe a dar a ela, constituindo, assim, um objeto estético em que particularidade e publicidade interferem uma na outra, se colocando como limiar ao social. O momento presente que configuram, ao relacionar-se, é aquele que se coloca como espaço não-geográfico, atemporal, explicitado anteriormente. É preciso que o sujeito seja vivido em sua pessoalidade para constituir-se em personagem público. O vivenciado que é histórico é também alvissareiro, e é elaborado na narrativa como no arquétipo benjaminiano. A essencialidade do sujeito é apresentada de modo superficial ao ser publicizada por meio de suas representações sociais, e essa superficialidade se adensa quando da experiência estética. A personagem Daniela, caracteriza o acima exposto.

Figura 8 - Daniela

Fonte: filme “Edifício Master” (2002) de Eduardo Coutinho

Eduardo Coutinho: – Você é professora? Daniela: – Sim. Eduardo Coutinho: – De inglês, não é? Daniela: – É porque eu morei oito anos em New Orleans. Eduardo Coutinho: – Por que você morou lá? Daniela: – Porque a minha mãe era do consulado. Eduardo Coutinho: – Trabalhava no consulado? Daniela: – Sim. Eduardo Coutinho: – Você vive aqui com um gato, como é que é? 83

Daniela: – É eu moro sozinha com três gatinhas. Eu tinha gatos machos, mas como eu não castrei as bebês .... então eu, tive que abrir mão disso. Foi um golpe pra mim, muito duro. Mas, tudo bem, eu moro com as três, e metade da semana meu namorado vem, mas.... Eduardo Coutinho: – Seu namorado vem aqui, daí.. Daniela: – Ele vem....Eu tenho problemas, de neurose e de sociofobia, e a aglomeração típica do vai e vem em Copacabana, faz com que eu chegue em casa muito estressada, né? Eduardo Coutinho: – Multidão, essa coisa..... Daniela: – É, porque, eu não sei se são pessoas demais, ou calçadas muito estreitas, ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos. Eu sei que pode ser feio, tá, mas eu, muitas vezes, fico contente quando eu subo e desço no elevador, sozinha. Não porque, (hã) eu não vou perder tempo parando num andar, mas porque eu sei que eu não vou ter que ver e nem ser vista. Eduardo Coutinho: – Posso te perguntar uma coisa? Daniela: – Pode. Eduardo Coutinho: – Por que a gente conversa, e você não olha pra mim? Daniela: – não porque o que eu esteja dizendo não tenha veracidade, mas porque eu, não sei se eu tenho autoconfiança para encará-lo, sem talvez gaguejar ou piscar (hã) compulsivamente. Eduardo Coutinho: – Na pesquisa também, você olhava pra nada... Daniela: – Exatamente, eu tenho esse problema, eu só forço a barra quando, por exemplo, eu vou numa entrevista de trabalho, ou elas acham que você está mentindo: - “Você não está me olhando nos olhos, então você teme, você deve.” E como eu não to temendo, nem devendo....Aqui eu não tô devendo, mas eu tô temendo. Eduardo Coutinho: – Temendo? Daniela: – É, claro, você acha que o fator que impulsiona a pessoa não ter o teti a teti, é o que? É o medo, né?! Olha eu sinto bastante necessidade de escrever, como válvula de escape, mas ultimamente eu não tive inspiração pra poetizar né?! É isso. [...] O simbolismo me toca profundamente, né..... isso aqui, eu anotei o nome (segurando uma tela pintada e referindo-se à ela), é.... traduzindo, porque eu boto os nomes em inglês, é, A floresta do meu desespero, que fala de paranoia e desamor. A floresta é um lugar tão dúbio, a floresta é você explorar, é arborização, é oxigênio, é aventura e é enigma. É o que puxa a curiosidade, inclusive muito citada nas histórias infantis, né..... inclusive as que colocam mais terror. E aqui (aponta para manchas pretas na tela), são os olhares, que colocam a selva de pedra como um lugar em que há muita paranoia, e há muita invasão, e que de alguma forma parece que estamos sempre sendo assistidos. Mas é .... esteticamente é ridículo, mas eu não ligo, porque eu não tenho pretensão, e isso aqui, pra mim, no dia, foi balsâmico, eu resolvi muitas coisas... (Coutinho e Daniela, Edifício Master, 2002, 0:32:54 – 0:37:30)

Ao narrar-se com problemas de neurose e sociofobia, para um filme que subentende a exposição pública, Daniela personagem, contradiz o sujeito que narra. Entretanto, ela narra um sujeito quase ausente, que se escamoteia em uma digressão filosófica. Mesmo que a personagem esteja se construindo ao narrar-se, sujeito e personagem não dialogam, se colocam paralelamente, o que se explicita ao posicionar-se lateralmente para a câmera. Mesmo sujeito e personagem não dialogando, há momentos em que eles se conectam. Um desses momentos é quando Daniela diz que teme a interlocução com Coutinho ou com a câmera, mas ao perceber 84

o contato, retoma o percurso paralelo. Nesse interstício entre sujeito e personagem ficam as explicações de Daniela, como a da entrevista de trabalho ou da floresta. Benjamin (2012) diz que, “metade da arte narrativa está em, ao comunicar uma história, evitar explicações”, ou seja, Daniela constrói a personagem explicando o sujeito, diagnosticando-o, justificando-o, enfraquecendo a narrativa enquanto experiência narrada. Contudo, a abordagem do diretor narrador mostra a personagem como experiência de sua interlocução, fazendo com que aquilo que enfraquece a construção do sujeito personagem estabeleça o conflito na narrativa fílmica. Assim, o que poderia ser uma personagem de certa forma ausente, alarga o espaço para a presença do espectador. A apresentação, por Coutinho, do distanciamento da personagem, pode ser um punctum, ou seja, o interesse em ativar no espectador o prazer estético e desencadear a experiência por meio da função catártica, desestabilizando-o e estabelecendo a relação ética entre objeto, espectador e contexto. O diretor narrador oferece ao espectador a verdade do filme, independentemente da veracidade daquilo que as personagens narram. Ora apresenta esse dilema por meio de personagens que se ausentam, como Daniela, ora, por meio de personagens que se mostram, como Alessandra, que sobrepõe outra camada de dúvida entre a verdade e a mentira.

Figura 9 - Alessandra

Fonte: filme “Edifício Master” (2002) de Eduardo Coutinho

Eduardo Coutinho: – De onde você é? Alessandra: – Eu sou de Belo Horizonte. 85

Eduardo Coutinho: – E como é que foi tua infância? Alessandra: – Eu não tive infância. A minha infância ..... eu não tive infância, só isso. Eduardo Coutinho: – O que quer dizer isso? Alessandra: – Ué, porque eu não tive liberdade de, assim, pra ser uma criança normal, brincar ... eu não tive essa liberdade. Eduardo Coutinho: – Por que razões? Alessandra: – Não, porque o meu pai nunca deixava. Aí, eu com quatorze anos já fui mãe, acabou a infância. Eduardo Coutinho: – Como é que foi essa história de ser mãe, conta...foi a primeira vez que você transou? Alessandra: – Foi, foi o primeiro homem que encostei a mão, porque eu não saia de casa pra nada. Era escola, casa, essas coisas assim, meu pai não deixava. Ele quase me buscava na escola pra mim não chegar perto de homem nenhum, ele queria me proteger de qualquer jeito, de todo mundo. E aí foi assim, e quando ... foi a primeira vez que eu saí, que eu conheci o pai da minha filha, que aí eu pensei..... eu não sabia o que era paixão, eu tinha quatorze anos, eu achei que tava apaixonada. Aí eu fui e me entreguei, engravidei. Ai que ódio! Eduardo Coutinho: – e daí, você fez o que, abortou? Alessandra: – Não! Minha mãe não deixou, não! Eu falei com a minha mãe, eu nunca menti pra minha mãe. Eu falei com a minha mãe: - tá acontecendo alguma coisa estranha com meu corpo, eu acho que eu to grávida. Porque eu não tinha o quadril .... tava diferente, tava tudo diferente. Aí eu falei pra ela: - Eu acho que eu to grávida. Minha mãe ficou desesperada. Meu pai, a gente ficou sem conversar um ano, e depois a gente voltou a conversar. Depois que ele viu que não tinha nada a ver, que ele era culpado de tudo o que aconteceu comigo, aí.... Eduardo Coutinho: – E nasceu, então? Alessandra: – Nasceu! (sorriso) Eduardo Coutinho: – Filho ou filha? Alessandra: – Filha. Eduardo Coutinho: – Como é que chama? Alessandra: – Alexia Caroline. Ah, a primeira vez que eu fiz um programa foi muito legal. Eduardo Coutinho: – Como é, a primeira vez? Alessandra: – Primeira, meu primeiro programa. Foi muito legal, porque, assim... foi legal porque quando eu peguei aquele dinheiro, eu fiquei desesperada, eu nunca tinha pegado aquele dinheiro. Era o que, foi cento e cinquenta reais, mas pra mim aquilo foi tudo, falei: Nossa! Cento e cinquenta reais, eu trabalho um mês pra ganhar isso. Eu trabalhava, eu ganhava cento e trinta e seis. Eu falei: Nossa, aí eu falei com a minha filha, vamos, vamos pro shopping. Aí a gente comeu, comeu o dinheiro todo no Mc Donalds, sorvete, ai muito bom, muito bom! Hoje eu não tenho coragem de fazer isso, não! Tá é doido. Mas aquele dia foi muito bom! Eduardo Coutinho: – Não tem coragem de que? Alessandra: – De gastar cento e cinquenta reais no Mc Donalds, tá louco, hoje eu não faço, não, mas aquele dia pra mim foi igual a uma criança quando ganha um brinquedo que mais quer, ah, eu comi muito! Eduardo Coutinho: – E como é viver assim? Alessandra: – Como é que é .... ai, não é bom, não é o que o pessoal fala, assim, uma vida fácil, não é! Porque é muito, muito nojento. Você sai com a pessoa, e você pode até gostar dela, por ela ser uma pessoa interessante, uma pessoa inteligente, você gostar, depois no outro dia você acordar e essa pessoa te dar um dinheiro, não é bom! E não é um dinheiro fácil como o pessoal pensa. Que é muito difícil, a gente passa muita humilhação, escuta o que não quer. É humilhada, muito humilhada. Isso não é fácil pra pessoa. Eduardo Coutinho: – E sexo pago, tem prazer, às vezes não, tem que fingir, como é que é? 86

Alessandra: – Eu bebo pra fazer alguma coisa, eu tenho que beber. Normal eu prefiro nem trabalhar. Eu bebo. Por isso eu falei com eles, eu bebo todo dia. Porque eu tenho que trabalhar todo dia, porque eu tenho que sustentar minha filha, minha família. Então eu bebo todo dia, pra criar coragem, porque normal eu não consigo. Eduardo Coutinho: – E você assim, por exemplo, fora o dinheiro, você tem namorado? Alessandra: – (risos) Não .... Eduardo Coutinho: – Não tem nenhum namorado? Alessandra: – Não, tem rolo, poxa ... eu me considero uma adolescente, eu só tenho vinte anos.... Eduardo Coutinho: – e me diz uma coisa, você gosta de beber? Alessandra: – Eu gosto. Mas eu espero a minha morte a qualquer momento. Eu já falei pra minha mãe: a hora que eu morrer não chora! Porque eu vou estar melhor do que todo mundo aqui, né? Eduardo Coutinho: – Porque você acha isso? Alessandra: – Ah, porque quem morre tá melhor do que aqui. Porque aqui, esse mundo é muito ruim, tem muita pessoa ruim. Por isso que eu falo, a hora que eu morrer, eu vou ser é feliz. Eu não quero morrer, não, eu amo a minha vida. Mas eu não quero morrer, não, mas eu sei que eu vou parar de sofrer. Parar de sofrer, não vou ter que ficar me esforçando, não vou ter que trabalhar, oh, que bom! Acordar às sete horas da manhã é muito ruim. É verdade, eu não gosto de trabalhar, não. Eu não gosto, eu trabalho porque eu tenho que sustentar a minha filha, mas seu pudesse eu ficava na mordomia. Eduardo Coutinho: – Mordomia o que é? Alessandra: – Ah, acordar ao meio dia, almoço pronto, acho que eu tenho que casar com um milionário, almoço pronto.... Eu e minha filha ficar brincando o dia inteiro, enchendo o saco uma da outra, telefonando pra todo mundo, é isso, é isso que eu queria! Eduardo Coutinho: – Eu queria saber como é que você teve coragem de dar um depoimento corajoso, entende, porque você tomou a decisão de falar, porque é um filme que vai passar em cinema depois... explica isso. Alessandra: – É ... não é coragem, isso é normal, eu acho normal, isso pra mim é uma coisa normal, eu falei com ela, eu acho isso é normal. O pessoal hoje em dia, no mundo que a gente tá, o pessoal tem uma cabeça dos anos antes de Cristo, já passou, hoje no mundo é tudo normal. Nasce gente de tudo quanto é jeito. É homem com homem, mulher com mulher, né?! É cinquenta mulher pra cada homem. É cada coisa, que não deveria ser normal. É gente roubando gente, é político roubando gente. É ladrão roubando de pobre, né?! Ladrão pobre roubando de pobre, ladrão rico roubando de pobre, é gente roubando de gente, aquela coisa toda ... o pessoal acha normal. Porque eu fazer programa é anormal? É coisa de alguém vir me apedrejar? Eu acho isso... por isso que eu falo mesmo. Eu não tenho vergonha, no meu bairro todo mundo sabe, minha família toda sabe, e quem quiser gostar de mim, vai ter gostar assim. Eu não acho isso anormal. Eduardo Coutinho: – Vou te perguntar uma última coisa só. Você, quando sua filha crescer, tá com seis anos, né, você pretende dizer a verdade pra ela, ou? Alessandra: – Vou! Que é isso, minha filha, vou orientar a minha filha de tudo! Quando minha filha tiver com quatorze anos vou comprar remédio pra ela. Já falei com minha mãe, vou comprar remédio, porque não vou fazer igual a minha mãe fez comigo. Vou falar pra ela, oh, eu fiz isso, isso, isso.... eu não quero, nem ela, nem minha irmã. Eu não quero que façam o mesmo, eu vou trabalhar pra pagar os estudo, curso, tudo que ela quiser fazer, ela e minha irmã. O que quiser fazer, eu ajudo, eu pago, eu dou, faço tudo, pra não fazer o mesmo. Mas, se quiser fazer, você acha que eu vou proibir? Não vou não! Vai doer igual doeu na minha mãe, claro, é minha filha. Mas, paciência.... eu vou falar, olha, tá doendo, você tá me magoando ...mas, eu acho que não vou 87

falar isso não! Porque se eu falar isso, ela vai falar, você magoou minha vó e ela não falou isso pra você. Eduardo Coutinho: – Você disse assim, “eu minto muito”.. Alessandra: – Ah, eu sou muito mentirosa. Eu conto mentira, e eu acho que pra gente mentir, a gente tem que acreditar! A gente tem que acreditar na mentira, pra mentira ficar bem feita. E eu sou assim, sou muito mentirosa, muito mesmo! Eu até choro, pra mim acreditar na minha mentira. Depois eu até, as vezes tem disso, se sabe que tem mentira que eu até acabo acreditando que é verdade?! Eduardo Coutinho: – e uma coisa, o que você mentiu nessa conversa de hoje, nossa? Alessandra: – Ahh, agora eu não menti nada, não. Ontem eu menti pra eles. Eduardo Coutinho: – Ah é? Alessandra: – É, eu menti pra eles, porque eu não queria vim, eu tava com medo de fazer essa entrevista. Eu menti, falei vou sair, fala que eu, não sabe que hora eu vou chegar, não. Assim que eles saíram daqui, eu cheguei. Eu não queria, eu tava com medo. Mas hoje eu não tava mentido, eu esqueci mesmo, nem passava pela minha cabeça que eu tinha que fazer a entrevista, ihhh, tava viajando hoje, nem lembrava. Mas ontem eu menti. Pra você ver, como eu sou uma mentirosa verdadeira. Eu falo mentira, mas eu falo a verdade (risos). (Coutinho e Alessandra, Edifício Master, 2002, 0:40:53 – 0:48:40)

A experiência vivida e narrada por Alessandra não é um fato, não pode ser objetivada. Entretanto, a situação narrada é fato, é realidade social, tanto que são alarmantes as estatísticas de gravidez na adolescência, acentuadas nas classes pobres e com mulheres negras. Contudo, enquanto situação social, este fato está naturalizado. O que o coloca no patamar da experiência estética não é a verdade social dos fatos, mas sim a subjetivação deles. A narrativa constrói uma personagem que vai além de um dado estatístico, pois personifica o fato. Estabelece-se uma relação entre narrador, personagem e espectador com base na diferença, na particularidade do narrado e não na sua suposta veracidade. O enredo suscita especulações morais e éticas, ponderações de juízo e autocrítica, empatia e conexões políticas. A experiência pessoal, ao tornar-se comunicável por meio da narrativa, adquire relevância de argumento social tácito. Alessandra elabora um percurso narrativo que mostra a prostituição de adolescentes como consequência da gravidez precoce. Com isso, o abandono da escola, o ingresso no mundo das drogas lícitas e ilícitas e o desencanto com a vida. São mazelas quase invisíveis, conformadas a uma realidade social e tornadas despudoradamente visíveis pela personagem. As sucessivas camadas de verdade e mentira, ficção e realidade, sinceridade e malícia, fidedignidade e ironia, contidas na cena, revelam a humanidade plural. A felicidade da 88

morte e o amor pela vida, que espera o fim triste da morte para compensar a vida ruim, narradas por Alessandra, interpelam o espectador: o que é normal ou anormal? Em sua narrativa, dirigida por Coutinho, é como se Alessandra vestisse o Parangolé e incorporasse a revolta, proposta por Oiticica. A personagem possui o sujeito e constrói significados a partir da oscilação entre estes dois entes, fazendo, da experiência vivida, experiência artística e, desta, a experiência estética do espectador. A ética do comprometimento estético como agente ontológico instiga uma atitude diferente frente à realidade. Em pouco mais de oito minutos, Alessandra e Coutinho promovem a “parangolelização” do imaginário coletivo, personagem, diretor e espectador incorporam representações sociais contundentes, cada um, a partir do seu lugar, por meio da alteridade. O Parangolé de Oiticica, assim como o documentário de Coutinho, a poesia de Ferreira Gullart, a canção de Tom Zé, ou a obra de Bispo do Rosário, são um convite à mobilização, uma exigência de movimento filosófico. Ponderar sobre a efetiva emancipação do sujeito por meio da experiência estética é objeto do próximo capítulo.

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4 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: AUTONOMIA E COMPROMETIMENTO

É pertinente pensar na abordagem dos eventos, até este ponto, mencionando Didi-Huberman (1998, p. 77), quando este diz que “não é necessário escolher entre o que vemos e o que nos olha, há apenas que se inquietar com o entre”, ou seja, com a experiência estética que acontece entre o sujeito e o objeto estético. Considera-se o que Didi-Huberman (1998, p. 58) refere como “o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos”, como o início de uma relação de troca, que é a experiência em si, ela mesma, como alternativa na forma de inscrição do imaginário, no sentido político de comunidade. O lugar da experiência, sobre o qual se debruça este texto, é, inexoravelmente, o da recepção. Acredita-se que a recepção inclui em si, a experiência estética da criação / produção, entretanto trata-se de outro sistema simbólico de análise, conforme corroboram Valery (1999) e Pareyson (2001). Por isso, cabe lembrar que esses dois sistemas foram separados apenas para fins de análise; é nítido, porém, que são sistemas indissociáveis desde a criação propriamente dita, que subentende um receptor, a produção e difusão que o objetivam, e a recepção em si, condicionada pelos eventos que contextualizam tudo aquilo que a antecede e a si própria. Essa inerência está exposta ao longo do texto, assim como na sua relação com a emancipação social. Diante da construção epistemológica que se apresenta, é possível considerar que uma obra de arte não é, necessariamente, um objeto estético e tampouco é senhora da experiência estética. Outrossim, existe uma pluralidade de objetos estéticos dentro e fora da arte institucionalizada, e estes, na sua relação com a diversidade de sujeitos e de contextos, são possíveis promotores da experiência estética. Se existe uma pluralidade estética, conforme se anuncia, por que motivo ou razão há de se ter que investigá-la e legitimá-la? Não é por acaso que a experiência plural é sonegada: ela o é, em nome da sujeição a um modelo. Um modelo, cuja estrutura tem por base o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Este modelo econômico é denunciado nas discussões de Boaventura de Sousa Santos30, como

30 Neste capítulo, os conceitos do Professor Boaventura de Sousa de Santos são abordados a partir dos livros indicados nas referências, das aulas assistidas no período de estágio de doutorado 90

responsável pela desigualdade, discriminação e exclusão. O conhecimento do qual a ciência moderna se rogou depositária não foi capaz de abarcar a pluralidade, ao passo que se orientou pelo universalismo. Desta forma, com a vigência de um modelo hegemônico que domina as práticas, e a ciência que regula os saberes supostamente válidos, em detrimento da diversidade cultural, a experiência fica restrita. Na medida em que se afirmam práticas e saberes hegemônicos fazem-no sobrepujando, invisibilizando aquilo que não seja de seu interesse ou que não se encaixa no modelo. A pluralidade de experiências, então, está fora da “caixa” e, consequentemente, precisa ser reconhecida e valorizada. A compreensão da experiência estética, conforme foi construída neste texto, ampara a compreensão da perspectiva desta experiência como alternativa emancipatória e, portanto, uma alternativa de pensamento contra-hegemônico. Foram relacionados determinados aspectos de diferentes conceitos e autores, a fim de torná- los complementares, ao mesmo tempo que insuficientes, por delimitarem questões de natureza processual. Para acolher a perspectiva da experiência estética emancipatória, é preciso colocá-la no terreno em que ela se torna fértil, que é o da compreensão do conhecimento e da sociedade como não-universalistas e não- reducionistas. Desta forma, trata-se de um terreno que não existe ainda, de modo objetivo, e que, portanto, está a ser lavrado. A ferramenta que se apresenta nesta discussão, como provedora de argumentos combativos à normatividade moderna, são as Epistemologias do Sul. Por isso, cabe localizar o alcance proposto por essa ferramenta e as premissas que a relacionam à experiência estética. A partir das Epistemologias do Sul (Santos e Meneses, 2010), Santos sistematiza um pensamento capaz de abarcar o fundamento da desigualdade e suas consequências, que sinalizam ações possíveis. Segundo o autor, a sociedade moderna está dividida entre duas realidades incomensuráveis, as sociabilidades metropolitanas e as sociabilidades coloniais. Com base nas sociabilidades metropolitanas, foram pensadas todas as normas estéticas, políticas e jurídicas que determinam a relação hegemônico/subalterno. No momento em que foi criada uma normatização a partir de uma só forma de sociabilidade, automaticamente a outra foi excluída e, com ela, toda sua experiência passível de aproveitamento. Essa situação é a matriz do que Santos (2010) descreve como linha abissal. sanduíche (PDSE/CAPES) e das reuniões entre o professor e a pesquisadora, nas quais foram debatidos estes conceitos na sua relação com o tema da pesquisa. 91

A metáfora da linha abissal traça uma linha imaginária, com base nas linhas imaginárias dos tratados coloniais, para localizar o Norte e o Sul globais. De um lado está o pensamento hegemônico da monocultura da ciência e, do outro, a exclusão radical. Segundo Santos, a modernidade, por meio do conhecimento científico, eliminou da reflexão epistemológica o contexto social e político, portanto, cultural, da produção e reprodução do conhecimento, legitimando uma epistemologia dominante. Isso provocou o que o autor chama de epistemicído, que desacreditou a diversidade de saberes e práticas alternativas. Nesse contexto, ele sugere que se pense a partir das Epistemologias do Sul, no plural, que visam valorizar os conhecimentos decorrentes das lutas de resistência contra a dominação do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. O Sul mencionado não é geográfico, é uma metáfora e está em oposição a um Norte dominante que invisibiliza e nega o Sul, para subjugá-lo. O Sul são povos, grupos, sociedades que podem ser encontradas em qualquer parte do mundo. Para pensar em termos das Epistemologias do Sul, (Santos e Meneses, 2010, p. 9) é preciso “aprender que existe o Sul, aprender a ir para o Sul e aprender a partir do Sul e com o Sul”. Esse pensamento convida a pensar o pós-colonialismo, por meio do pensamento pós-abissal. Um pensamento não-abissal pressupõe aprender com o Sul, usando epistemologias do sul, reconhecendo formas de conhecimento além do conhecimento científico. Considerando que as lutas de resistência se dão entre forças socialmente desiguais, as Epistemologias do Sul só se realizam na sociedade. Estas forças desiguais são expostas por Santos (Santos e Meneses, 2010), na sociologia das ausências, por meio da qual ele faz uma crítica à produção de realidades inexistentes, pelo pensamento hegemônico, denunciando o que foi invisibilizado, conforme referido anteriormente, no capítulo 2.4.2.. Em simultâneo, a sociologia das emergências, que procura dar visibilidade, consiste em uma amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido, referentes tanto à compreensão quanto à transformação do mundo. Em conjunto com as sociologia das ausências e das emergências, a tradução intercultural é que procura articular a diversidade surgida a partir delas. Segundo Santos(2010), a tradução deve assumir como princípio a impossibilidade de uma teoria geral. Ela se realiza por meio de um trabalho intelectual, político e emocional, 92

capaz de identificar preocupações comuns e aproximações complementares, assim como contradições intransponíveis, entre grupos sociais e culturais. A tradução intercultural é um procedimento importante para a compreensão da experiência estética apresentada neste texto, como um saber propositivo. Algumas condições são indispensáveis para que haja a tradução intercultural e também para que se possa estabelecer a relação entre ela e a experiência estética, no intuito de legitimá-la. Uma destas condições são as zonas de contato, que são o campo onde conhecimentos e práticas se encontram, se chocam e interagem. A tradução, abordada pelo viés da experiência estética, visa dar sentido ao conteúdo imaginário, possibilitando novas práticas e saberes. Ao compreender que os procedimentos das Epistemologias do Sul podem promover a ascensão de diferentes saberes, faz-se necessária uma forma de abordá- los, sem restringi-los. Surge assim, a Ecologia dos Saberes, explicada, por Santos, a partir da impossibilidade de captar a infinita diversidade epistemológica do mundo e a exigência de procurar conhecê-la, para o aproveitamento da experiência social. A essa exigência, Santos conjuga a necessidade de uma metodologia não extrativista, ou seja, que, em termos de pesquisa científica, não se apoie em uma relação em que o sujeito social seja objeto de pesquisa, mas em que se empreenda uma pesquisa e uma ação baseada no fazer “com”. A experiência estética alinha-se, portanto, às Epistemologias do Sul, justamente neste ponto: ao inscrever-se na dinâmica social, poderá constituir-se como uma metodologia não extrativista. É neste contexto epistemológico que se assenta a experiência estética emancipadora. Libertar a experiência estética da opressão da arte institucionalizada, habilita-a a um percurso contra-hegemônico, a partir do qual se tornam imagináveis novas práticas sociais, capazes de gerar autonomia e comprometimento.

4.1 DO PRAZER, DA FESTA E DO SEXO

O caminho epistemológico construído nesta tese, acerca da experiência estética, a coloca no núcleo da tradução intercultural. Esta abordagem permite acessar a primeira premissa das Epistemologias do Sul que diz que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo. Sendo assim, as 93

teorias estéticas ocidentais devem ser articuladas no sentido de também possibilitar uma compreensão não-abissal. A experiência estética em si é não-geográfica e atemporal, mas condicionada ao contexto. Dessa forma, as experiências, em seus múltiplos contextos, podem ampliar a compreensão do mundo, mantendo-se abertas e úteis a circunstâncias não pensadas. Isso explica por que a experiência estética pode contribuir com as Epistemologias do Sul, mas há também a questão do porquê a estética precisa das Epistemologias do Sul. A estética, como capacidade subjetiva e até física de sentir e conhecer as coisas, implica tanto os sentimentos positivos quanto os negativos. Quando o espectador é afetado por um ou mais sentimentos diante de um objeto estético, instala-se o prazer, ele é arrebatado e se apropria daquilo que o sensibilizou, e é impelido à reflexão filosófica. No processo, o sujeito da experiência transita do subjetivo ontológico ao subjetivo hermenêutico, enfrentando questões de ordem filosófica. Essa dinâmica da ordem do imaginário faz uma travessia entre o simbólico e possíveis significados, acomodando-os desconfortavelmente. É justamente nesse ponto, na acomodação desconfortável, característica da inquietação filosófica, que se fazem necessários os princípios das Epistemologias do Sul. Para ampliar as capacidades de pensar o mundo, é necessário não assimilar pluralidades, mas inquietar-se com elas. A mera assimilação é uma prática arraigada tanto na ciência moderna, quanto no modelo dominante que assimila para o consumo e para a manutenção da ordem vigente. A inquietação, ao contrário, excita o pensamento. Assim, como Santos (2011) sugere, o prazer como forma de reencantamento epistemológico, a experiência estética, que é uma zona de contato entre os diferentes saberes e práticas, se dá, via prazer estético. O prazer reúne sensivelmente a ação, a participação e a cooperação no trabalho apaixonado de construção de significado na experiência estética. Esse prazer que foi desvinculado do presente, pela ciência, provocando o desperdício da experiência social, é o prazer provocador da reflexão, que, por meio da experiência estética, promove o alargamento da experiência do presente. O prazer estético aqui referido tem base em Jauss (1979), que entende que esse pode originar-se em qualquer objeto, que seja estético para determinado sujeito, em detrimento de ser ou não, objeto de arte. É no prazer erótico que Barthes (1987) localiza a fruição, aqui entendida como experiência estética. Para o autor, o lugar mais erótico do corpo é onde o vestuário se 94

entreabre, na própria encenação do aparecimento-desaparecimento. Ele faz essa referência ao prazer erótico da leitura, que se estende a toda a experiência estética. Este é o lugar da experiência, que se dá no limiar da apreensão entre o que se abre e o que se encerra. Segundo Barthes, no prazer estético se encena um compromisso entre a sensatez e um vazio, apto a tomar quaisquer contornos. Isso equivale à dinâmica no imaginário, entre o que lá está indexado e a desestabilização provocada. Embora a estética presuma a dor e a angústia, ou seja, os sofrimentos, e eles afetem o espectador tão intensamente via prazer estético, para Barthes, não é a violência em si, ou a destruição que o afetam, mas a perda que representam a fenda, o corte, o desvanecimento, que o tomam no íntimo da experiência. O desvanecimento da tirania simbólica permite repensar o mundo. Por isso, é importante atentar ao fato de que o simbólico se constrói na dialética entre a experiência social e o imaginário, portanto, ele acessa o “real” que é condicionado ao modelo hegemônico. Mikel Dufrenne31 refere-se à experiência estética como “festa”, como “apoteose do sentido” (PITA, 1995), e também como mote de reflexão filosófica. Entretanto, ele condiciona o objeto estético à metamorfose da obra de arte, quando da sua recepção. Para Dufrenne, é na obra de arte que existe a possibilidade do objeto estético. Essa percepção é restritiva, em meio a um universo de objetos estéticos possíveis. É o que propõe Maffesoli (1987, p. 179): uma revolução do olhar, que venha reconhecer a carga cognitiva do cotidiano. Este é o posicionamento que se defende ao longo deste texto, um reconhecimento que passa pela experiência estética, pois é preciso ser afetado por objetos estéticos comuns, ordinários, para que a riqueza cotidiana não seja desperdiçada. Entende-se que a arte institucionalizada também seja passível de experiência estética, contudo, ela se restringe da pluralidade do mundo. À medida que confere visibilidade a um conjunto de manifestações estéticas, um sistema das artes o faz inserido em uma lógica de mercado, e isso se incorpora ao significado dos objetos artísticos. As relações que eles podem suscitar é que efetivamente determinarão se promovem uma experiência emancipadora ou acabam por reforçar o pensamento abissal. A experiência estética advinda do prazer é próxima, é cotidiana, e, por isso, plural, atuando no imaginário concomitantemente com o presente social, com o qual

31 Sobre a estética de Dufrenne ver PITA, António P. A Experiência Estética como Experiência de Mundo. Porto: Campo das Letras, 1999. 95

estabelece diálogo. Ela, enquanto festa, subentende o outro com quem se festeja, sem o qual não existe experiência, nem prazer. Neste sentido, Adorno32 (SCHAEFER, 2012) traz uma metáfora muito apropriada, comparando a experiência estética à experiência sexual, ao orgasmo, onde os parceiros da construção do prazer (receptor / objeto estético), tornam-se um, sendo e sabendo-se diferentes. A experiência sexual que exemplifica de forma tão apropriada o prazer estético e que é naturalmente cotidiana, reitera a condição cotidiana do objeto estético. Contudo, Adorno, mesmo considerando que a experiência estética e a filosofia são indissociáveis, conclui que esse gozo só é possível por meio da obra de arte, quanto mais essa se distancie do sujeito, quanto menos lhe seja comum e quanto mais pareça estranha ao mundo. Essa concepção não é pertinente à metáfora utilizada, pois mitifica a experiência na especialidade da arte, traindo a natureza sexual da experiência, que é do cotidiano. Desta forma, entende-se a experiência estética por meio do prazer, da festa, do gozo, da pluralidade estética, a partir de objetos estéticos possíveis e disponíveis, visíveis e invisibilizados, hegemônicos e periféricos. Entendendo que o que foi invisibilizado é de conhecimento do visível, pois foi produzido por ele, como não existente. Partindo desse princípio, ambos se conhecem, um neutralizou o outro e para tal o observou; já o neutralizado conhece o visível, pois permanentemente é exposto a ele. Assim, as estéticas hegemônicas e periféricas se conhecem, mas não se reconhecem, contudo, habitam o imaginário uma da outra e atribuem diferentes significados aos seus universos simbólicos e se contaminam. Segundo Maffesoli (2001), o imaginário é uma dimensão ambiental, uma atmosfera, é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável. Para o autor, não se pode compreender a cultura caso não se aceite que existe uma espécie de “algo mais”, da cultura. Esse algo mais é o que se tenta captar por meio da noção de imaginário. A acepção de Maffesolli aborda o sujeito social como uma abstração, contudo entende- se que esta subjetivação se dá na sua relação cotidiana concreta, a partir dos saberes e práticas. Este “algo mais”, o imaginário, que ultrapassa a cultura, é o movimento, a dinâmica relacional entre a experiência estética e a cultura, na qual a experiência está

32 SCHAEFER, Sérgio. A teoria Estética em Adorno. 2012. 477f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 96

inserida. É algo sempre em processo, impalpável, que se infiltra na cultura dando-lhe unidade, ao mesmo tempo em que a vai desestabilizando.

4.2 ENTRE A FAVELA E O EGITO, NA CORDA BAMBA DA LINHA ABISSAL

Compreender o repertório estético como um conjunto plural e inesgotável de objetos passíveis de experiência estética significa que não apenas objetos reconhecidamente estéticos possam promover a experiência. Desta forma, a experiência está, ao mesmo tempo, condicionada ao acesso a um repertório estético hegemônico e independente dele, inclusive fornecendo-lhe elementos constitutivos. A experiência acontece interna e externamente ao repertório hegemônico, e na intersecção desses, subjetiva-se de maneira silenciosa e contagiosa. É a própria impossibilidade da assepsia. É possível interpretar em Rancière (2014), quando esse discorre sobre o comprometimento das práticas estéticas com a política, aquilo que se anunciou anteriormente, que na estética está tudo sobre o que versa a filosofia, principalmente a política, que determina as formas de inscrição do sentido de comunidade e, portanto, de cultura. Em termos de dinâmica política, a estética, conforme Rancière, apresenta, de um lado o movimento dos simulacros, oferecidos à identificação dos sujeitos e, de outro, o movimento autêntico próprio dos corpos comunitários. Esta concepção pode ser lida como a dinâmica estética entre os dois lados da linha abissal: um lado, em que simulacros representam a estética hegemônica; outro lado, em que a autenticidade dos corpos comunitários irrompe ao não se reconhecer no simulacro hegemônico. Entretanto, enquanto representação, a autenticidade não é asséptica, e os simulacros não são autênticos. Santo Forte (1999) revela essa complexidade, quando Coutinho mergulha no imaginário cotidiano popular, como lugar de alguma verdade narrativa, e faz o documentário “com” suas personagens. Ali dialogam a favela, o Egito e Beethoven que coabitam o imaginário de Thereza, que é fiel a sua estética umbandista, e Coutinho, com seus meios para produção de um documentário de estética minimalista, com conhecimentos adquiridos na academia em Paris e pelo mundo. 97

Contudo, Coutinho faz “com”, a partir de uma concepção estética que é pessoal, e da disponibilidade dos meios para tal. Esta situação permite acessar a segunda premissa das Epistemologias do Sul que diz que não faltam alternativas no mundo, pois o que falta é um pensamento alternativo de alternativas. Muita diversidade no mundo é desperdiçada, porque as teorias e conceitos desenvolvidos no norte global, e em todo mundo acadêmico, não identificam grande parte dessa diversidade. Ainda que o documentário não tenha sido produzido por iniciativa da comunidade da Vila Parque da Cidade, ele foi dirigido no sentido de identificar e valorizar vivências e práticas populares, ultrapassando o a priori da exoticidade. É possível que ele se constitua em objeto estético para o receptor, pela artesania entre os saberes do diretor e das personagens. E o receptor que lhe confere, então, o status de objeto estético, estará em diálogo com experiências sociais que ingressam no seu imaginário. Este é um processo estético em trânsito, simultâneo a processos hegemônicos, que tutelam representações sociais, e a processos que buscam instrumentalizar as periferias estéticas para que se auto-representem. A erupção de estéticas populares, ao mesmo tempo em que abre espaços de reconhecimento, as tornam matéria prima para cooptação destas pela estética hegemônica, confirmando a ideia de que a estética contém em si todos os problemas da filosofia, atentando-se, nesse caso, para a lógica do mercado. A estética popular sempre foi alimento para a estética dominante, e isso é uma forma de reconhecimento às avessas, pois simbolicamente acaba por invisibilizá-la enquanto pensamento alternativo, já que não é pensada e difundida por si mesma. Ora, também a estética popular se alimenta da estética hegemônica ao usar de seus elementos como contra-argumentos. Assim, o fato de o objeto estético não estar necessariamente vinculado à arte institucionalizada, possibilita-lhe certa resistência, desde que colados aos seus contextos e para além deles, articulando-se para se tornarem visíveis a partir do seu lugar de enunciação. A alternativa de auto representação da estética popular cria uma zona de escape. Entende-se por zona de escape aquela brecha que oportuniza o extravasamento, a vazão do que estava coibido, no sentido de expansão fecunda. Assim, a zona de escape promove a amplificação simbólica do saber estético como um todo, sendo que permite que sejam identificados, nem sempre reconhecidos, diferentes repertórios estéticos, mas que contaminam o imaginário e criam zonas de 98

contato. As zonas de contato tensionam, confrontando ou repelindo os diferentes universos simbólicos da estética hegemônica e da estética periférica que provocam a experiência social. Entretanto, por essas estéticas serem desigualmente legitimadas, o simples contato faz repetir padrões de experiência no imaginário. Ainda assim, o acesso à zona de contato permite uma dupla partilha, o que não garante o reconhecimento mútuo; entretanto, o não reconhecimento também é substância de reflexão. A zona de escape será tanto maior, quanto maior for a infiltração de repertórios imaginários, tendo em vista que a experiência estética não intervém imediatamente no “real”, mas age na desestabilização de sua representação. Ampliar a zona de escape fornece argumento imagético para um reconhecimento mútuo de experiências, o que oportuniza a tradução intercultural. Desta forma, verifica-se que a experiência estética traz em si uma dinâmica de tradução intercultural e que estabelece uma relação dialética entre o imaginário e o cotidiano. É preciso saber sensivelmente que existem invisibilidades produzidas e é preciso experienciá-las esteticamente, para não assimilá-las como um multiculturalismo reacionário33, que acaba por naturalizar a desigualdade. Trata-se de perceber as estéticas visíveis e as invisibilizadas, como parte do problema cultural que representam, mas também como parte da solução, pois nelas ainda há elementos sensíveis sobre o mundo representado e um universo de representações simbólicas de saberes e práticas pouco compartilhados. As representações simbólicas imaginárias, invisibilizadas, transitam oprimidas no interior do imaginário hegemônico, que funciona como uma embalagem de shopping center. A opressão simbólica se dá tanto no sentido de os sujeitos desejarem fazer, da estética hegemônica, a sua estética, quanto no sentido de desejarem que sua estética seja reconhecida. Há uma pressão interna à estética popular que, ao mesmo tempo em que agoniza, impulsiona o instinto de sobrevivência, intensifica-se e radicaliza-se. No interior da estética hegemônica também há um movimento de olhar a estética popular, primeiro, no sentido de automanutenção na lógica do mercado. Segundo, no sentido de evitar a cristalização e consequente perda de competência e rendimento, ou seja, como estratégia de dominação. E há, ainda, um terceiro sentido, que é a busca de um pensamento alternativo de alternativas, reconhecendo os limites

33 Sobre Multiculturalismo Reacionário ver Santos (org), 2004. 99

de esgotamento do sistema vigente. É no encontro deste escape de entendimento da estética hegemônica, com a radicalização por meio da qual resiste a estética popular, que são articulados diferentes saberes. Este espaço imaginário onde se encontram a zona de escape e a zona de contato das estéticas popular e hegemônica, é tratado por Santos (2011, p. 362) na analogia ao sfumato Barroco34, “ O sfumato é como um íman que atrai as formas fragmentárias para novas constelações e direções, apelando aos contornos mais vulneráveis, inacabados e abertos que essas formas apresentam. O sfumato é, em suma, uma militância anti-fortaleza.”. Este é o espaço de desestabilização da lógica hegemônica, onde se abre a possibilidade da percepção de um processo de construção de uma nova lógica. É, portanto, um espaço filosófico que envolve os sujeitos em todas as suas dimensões de humanidade. Referindo-se às várias dimensões do ser humano, (2008) cita a frase do músico e poeta , “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”, e esta frase expõe a natureza da experiência estética como aproveitamento da experiência social. São experiências concomitantes na corda bamba da linha abissal. A música completa, que traz a frase citada, é “uma coisa de cada vez | tudo ao mesmo tempo agora”. A música contém a coerência na incongruência e, no que tange à experiência estética, cada uma contém o tudo-ao-mesmo-tempo-agora social, acrescido da própria experiência. A própria linha abissal se faz palco. Nessa baila sobre a linha abissal, o objeto estético em análise subverte o condicionamento das representações, ao abordar a pluralidade de representações, ao mesmo tempo em que situa o imaginário popular em um lugar que é o da desigualdade na legitimação desse imaginário. Ainda nessa dança, o objeto estético se legitima enquanto arte por sua forma especial e única de abordar o tema do imaginário popular. É a parongolelização do imaginário. Como Hélio Oiticica, artista legitimado, cria o Parangolé para ser vestido e “incorporar a revolta” na dança de personagens do povo e, com isso, promove um diálogo entre si, a obra de vestir e a personagem que veste a obra, provocando o imaginário do receptor. No caso, a ação é legitimada por sua origem. A personagem, que presentifica o conteúdo da representação, confirma

34 Santos (2011) utiliza o barroco enquanto metáfora cultural para designar uma forma de subjetividade e de sociabilidadede, e para isso, recorre aos três sentidos do conceito barroco, como etilo artístico, como época histórica e como ethos cultural, juntos.

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seu lugar na desigualdade. Isso não destitui de valor a experiência estética, apenas demonstra a via de mão única da legitimação das pluralidades. A linha abissal permeia e é permeada pelo imaginário, e por ela transitam Parangolés e Santos Fortes, que caracterizam um pensamento alternativo de alternativas. Ainda assim, nessa linha abissal do imaginário há muita diversidade invisibilizada e enrustida, além daquela que transita travestida de inclusão. A representação estética inclusiva, por meio de critérios hegemônicos, reitera a exclusão.

4.3 MUNDO SINGULAR, MUNDO PLURAL: POR UMA ECOLOGIA DOS SABERES ESTÉTICOS

Um único prédio, uma caixa de concreto protegendo pessoas em, ou de, Copacabana. Isso subentende uma unidade, pois são pessoas com o mesmo endereço, sob as regras de um mesmo condomínio, expostas ao mesmo entorno e, portanto, arquivadas sob um mesmo código. Certo? Errado. Uma unidade, sim, quando vista de fora, moradores do Edifício Master, um mesmo código postal, mas a unidade termina aí. Visto de dentro, de perto, como propôs Coutinho, é um universo complexo, plural, sobre o qual o código postal quase nada diz. O bairro e a arquitetura do Edifício Master são representativos da estética dominante e funcionam como uma embalagem que contém um outro universo estético, que é subalterno e invisibilizado. Antes da intervenção do atual síndico, essa estética se expunha à noite, ganhava espaço, derramava-se pelos corredores e calçadas, provocava alegria e dor, amor e ódio por suas horas de soltura. Mas era ela, invisível, em uma breve aparição que confirmava sua invisibilidade naquele cenário. Entretanto, a invisibilidade da estética interna ao edifício contém em si o cenário, mesmo que para ele caibam as coxias de Copacabana. Após a intervenção do síndico, a estética subalterna do Master ficou confinada, não no prédio, nos corredores ou apartamentos, mas no imaginário dos moradores, indexada pejorativamente, inferiorizada, inexistente ao exterior e vexatória para o interior do prédio. A experiência estética a partir do objeto documentário contém uma cadeia de estéticas possíveis, que evidenciam a terceira premissa das Epistemologias do Sul: a 101

diversidade do mundo é infinita e nenhuma teoria geral a pode captar. O mundo singular é a noção de que o Edifício Master é auto representativo a partir de sua localização, suas dimensões e padrão imobiliário. O mundo plural é a noção de que o Edifício Master é a profusão de humanidades que pode ser contida por sua arquitetura e normatização e mais o que não pode ser contido fisicamente. Então, é uma tal subjetivação intangível por si mesma, mas apreensível em sua construção simbólica e consequente representação estética. Essa é uma cadeia dialética, pois parte de uma noção singular no sentido normatizante, generalista, adentra um universo plural e, no interior desse universo, reencontra singularidades, sujeitos únicos em suas relações sociais. Já no documentário Santo Forte, percebe-se o percurso dialético inverso, parte de uma noção de pluralidade, de uma comunidade, de uma religiosidade, e avança na direção da singularidade dos sujeitos personagens e por meio desses revela as relações com a comunidade. Daí que a experiência estética se apresenta como uma metodologia não extrativista para o aproveitamento da experiência social, pois suas dinâmicas são concomitantes e processuais. Há um compartilhamento imaginário, onde argumentos se formam e desestabilizam. Entretanto, são as mesmas forças que atuam sócio culturalmente, que atuam no imaginário. Porém, no imaginário há uma margem maior de intervenção, daquilo que a psicanálise (VANDENBOS, 2010) chama de ID, a fonte da energia psíquica (mental) que funciona segundo o princípio do prazer, pois se trata do lugar íntimo apesar de coletivo. Pode-se pensar essa relação em termos de uma analogia com a letra da música de Dinho Ouro Preto e Alvin L., “O que você faz quando ninguém te vê fazendo, ou que você queria fazer se ninguém pudesse te ver”. Por reconhecer o imaginário como aberto à subversão da ordem estabelecida, os excluídos devem apropriar-se da experiência estética enquanto metodologia, e representar o mundo como próprio, sem reafirmar a representação de mundo que lhes é imposta. É preciso observar e observar-se, inquietar-se com, comigo, conosco, confirmando que a experiência é algo que “nos acontece”. Isso pressupõe envolvimento e investimento físico e sensível, portanto, é uma metodologia prática. A experiência estética pode ser percebida desde a infância, o que reafirma o seu potencial metodológico. O texto de Benjamin (2012) sobre o brinquedo e a brincadeira pode ser relacionado à experiência estética, ou ainda, levar a conceber ambos, brinquedo e brincadeira, como experiência estética. Ele diz que o mundo perceptivo da criança está, ao mesmo tempo, marcado pelas gerações anteriores e 102

em confronto com elas. Mesmo que a criança exerça uma certa liberdade em aceitar transformar, por meio da imaginação, um objeto em brinquedo, não são as necessidades infantis que determinam os objetos brinquedos. Transformar o objeto em brinquedo é análogo à transformação do objeto em objeto estético, e há uma “certa” liberdade nisso, pois os objetos são dados. Assim como o repertório de objetos de brincar representam a epistemologia hegemônica, nas Barbies, nos Hot Weels e nos Games, o repertório estético disponível se apresenta na mesma lógica. O espectador, como a criança ao brincar, é que, por meio do prazer, transforma objetos em brinquedo / brincadeira, ou experiência estética. Se o repertório é disponibilizado por um sistema de mercado, a parcela de liberdade subversiva imaginária confronta- se com esse repertório. Contudo, na experiência estética, assim como na brincadeira, o “brincar outra vez” é referido por Benjamin como o ímpeto de repetição, que agrega o retorno ao prazer, como a possibilidade de acertar, ou ajeitar as coisas ao repetir. Fazer repetidamente ou narrar o feito, segundo Benjamin, é a essência da representação, é a perpetração do hábito, a devastação da experiência. Benjamin fala sobre o quanto as ações da experiência estão em baixa e o quanto isso empobrece a humanidade, levando-a à estupidez, mas também, que esse limiar impulsiona para a frente. Todavia, esse impulso para frente não significa o desejo da experiência, mas sim um devorar automatizado, o que hoje se tem cada vez mais claro no consumo. Segundo o autor, esse devorar gera a exaustão, e esta, o sono. Com o sono, a possibilidade do sonho, no qual se compensa o desânimo. O sonho pode ser o que se entende como a zona de escape. Nele, o prazer da experiência, da auto representação é a energia armazenada, transformada em energia cinética, por meio da qual é possível o movimento. A pobreza da experiência está no repertório estético hegemônico, repetido à exaustão, restringindo a experiência social, daí a importância das zonas de escape abertas pela estética popular, para atiçar o imaginário, complexificando as experiências. Embora saiba-se que o imaginário é estruturante das relações culturais, sabe-se também que ele é estruturado, em grande parte, por representações hegemônicas. Entretanto, demonstrou-se que não há assepsia nas experiências estéticas e, portanto, no imaginário ocorre um processo dinâmico e simbólico, cuja carga cognitiva vai e volta da experiência cotidiana, que é também popular. Assim como a crítica epistemológica inaugura o processo que pretende romper com a já esgotada reprodução de um sistema de desigualdade limítrofe, a crítica e a 103

legitimação da experiência estética pretendem romper com a estética hegemônica, que reafirma a exclusão, mostrando-se promotora do prazer do conhecimento emancipatório. Maffesoli (1987) afirma que estar atento ao imaginário pode reverter em consequências sociológicas, pois há cinestesia entre o imaginário e o cotidiano. A experiência estética enquanto metodologia não extrativista é a intensificação dos processos em trânsito no imaginário, absorvida por uma ação orgânica do sujeito da experiência, no mundo experienciado. Essa é uma forma de reaproximar o prazer da ciência, o empírico do teórico, entendendo-os como indissociáveis, até porque não é a ciência em si que é colonizante, mas o seu condicionamento universalista e hegemônico. Por outro lado, há conhecimentos populares que aniquilam esforços emancipatórios. Uma metodologia da experiência estética transforma o objeto da ciência em sujeito do conhecimento. Compreender a pluralidade de objetos estéticos passíveis de experiência pessoal e coletiva denota a multiplicação de saberes a partir dessas experiências. A Ecologia dos saberes proposta por Santos (2010) reconhece a impossibilidade do universalismo epistemológico, que desperdiça uma gama de saberes, ao mesmo tempo em que reconhece que, na diversidade de saberes e práticas, encontram-se pensamentos diferentes sobre o que é mudança, para que mudar e formas de mudar. Reconhece-se no Sul geopolítico epistêmico o lugar de uma estética que pode e deve se auto representar e diversificar o repertório do imaginário. A experiência estética constitui um saber propositivo, dinâmico e processual que articula toda a sorte de saberes. Esse mundo plural, da experiência, se infiltra em meio a detritos sedimentados do cimento social, o imaginário. Essa infiltração vai pela porosidade de um cimento hegemônico, que, por não dar conta de aglutinar e universalizar o conhecimento, não é suficientemente compacto. Aos poucos, as infiltrações acarretam manchas, deformações, fissuras, trincas e, enfim, danos estruturais, onde ficam expostas as fraquezas de um sistema totalizante e excludente. O Edifício Master mostra essa fraqueza que dilacera as singularidades quando não se admite a pluralidade. Maria do Céu, Roberto, Daniela e Alessandra representam um limbo social, que é uma classe média baixa, que ainda não figura nos índices calamitosos da linha de pobreza, mas estão muito próximos de patologias sociais e suicídio. Eles se auto representam nessa desconformidade, entre o desejo de adaptar-se a um modelo, e o não conseguir desejar adaptar-se a esse modelo, 104

adaptando-se, então, indesejavelmente, o que resulta nas representações do conformismo, depressão, sociofobia e determinismo. Isso revela o desperdício de experiências, aquelas que se dão fora de modelos sociais estabelecidos. Caso eles não precisassem se adaptar a modelos hegemônicos, poderiam ter outros tipos de experiência com o mundo, a partir das quais não fosse necessário se conformar, se deprimir, ter medo ou estar submetido a um destino.

4.4 O IMAGINÁRIO DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS E A TRADUÇÃO INTERCULTURAL

A perspectiva do investimento físico e sensível da experiência estética enquanto metodologia prática, portanto, artesania nas zonas de contato, para a tradução intercultural, remete à energia que é, ao mesmo tempo, força e sensibilidade. Essa dimensão da estética se coloca a serviço da quarta premissa das Epistemologias do Sul: a alternativa a uma teoria geral é construída em quatro passos: um, sociologia das ausências; dois, sociologias das emergências; três, ecologia dos saberes; quatro, tradução intercultural. Em se tratando da experiência estética, as ausências e as emergências ocorrem no interstício entre o imaginário e o cotidiano. Nesse interim, as ausências são tudo o que foi invisibilizado pela dominação hegemônica, mas que habita e transita oprimida, como energia potencial, à espera de uma ação, de um escape. Já as emergências são concernentes à energia cinética, como uma força que age na mudança de movimento dos corpos, o escape, a possibilidade de alargamento simbólico da experiência, que pode agir na descolonização do imaginário. O sfumato, mencionado anteriormente, como espaço imaginário onde se encontram a zona de escape e a zona de contato, onde é possível um processo de construção de uma nova lógica cultural, é citado por Santos (2011), ao falar sobre a subjetividade da transição paradigmática. Nessa perspectiva, a profunda dramaticidade em tempos barrocos tem em si uma subjetividade periférica, tanto a serviço do poder, quanto da subversão da ordem. Ela lança mão da estética da 105

mestiçagem35, da excentricidade e do desconforto do gosto, num movimento de desacomodação do imaginário, por práticas simbólicas tão impactantes quanto transitórias. Para que essa estética seja emancipadora e não opressora, ela precisa representar o multiculturalismo auto reflexivo e oferecer-se à tradução. Contudo, essa subjetividade barroca em sua concretude cotidiana encontra como conteúdo de subjetivação, destroços, restos, rejeitos da modernidade, com os quais exercita sua excentricidade a partir da perplexidade. Além das referências barrocas elencadas por Santos para caracterizar a subjetividade da transição paradigmática, cabe acrescentar o componente residual da contemporaneidade. O lixo do consumo e os fragmentos da dignidade humana e da natureza foram e são, material e conteúdo de diversas correntes estéticas, como a da acumulação, ou póvera36, onde se pode encontrar a arte “Merz”, criada a partir do lixo, por Kurt Schwitters37, ou a “A Flor do Mangue” escultura criada por Frans Krajcberg38, a partir de raízes e troncos calcinados, da Amazônia, ou, no poema “Rosa de Hiroshima” de Vinícius de Moraes, musicado por Conrad e interpretado pela banda Secos e Molhados, que revelam imagens dramáticas com os restos materiais e com os restos das promessas de futuro da humanidade. O barroco atualizado é dramático, pungente e urgente. É preciso olhar com a “Incredulidade de São Tomé”, de Caravaggio, colocando o dedo na ferida, buscando naquele oco o que se perdeu da experiência humana. Exacerbar os limites estéticos, que implicam na representação da fraqueza de um sistema que empobrece a experiência, requer abertura ao espanto, que sinaliza o perigo da naturalização dos males sociais e a radical necessidade do aproveitamento do caos. O fato de toda essa energia social existir colapsada remete a um atravancamento social, como ocorre em um congestionamento de trânsito. A energia

35 Existe mestiçagem sempre que duas ou mais referências, ações ou identificações sociais ou culturais autônomas se misturam ou interpenetram a tal modo que as novas referências daí emergentes patenteiam a sua herança mista. Sobre mestiçagem ver mais em Santos, 2010. 36 Arte póvera é um termo que se refere a um tipo de arte que procurou estabelecer novos parâmetros para a criação artística, aproximando-a de questões e materiais do cotidiano, como materiais orgânicos, efêmeros e aqueles utilizados pela indústria, e que dela restavam, como ferro, espelhos e lâmpadas. Disponível em: http://www.iberecamargo.org.br/novo- admin/public/files/uploads/limites-sem-limites-desenhos-e-traos-da-arte-povera.pdf Acesso em: Julho 2017. 37KURT, Schwitters. In:< http://www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/roteiro/PDF/44.pdf >. Acesso em Julho 2017. 38 . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: . Acesso em: 04 de Julho 2017. 106

sendo desperdiçada com a queima de combustível, sem que isso promova o movimento, mas contribua para a poluição do ambiente e a irritabilidade das pessoas. É possível pensar a experiência estética como a ação que possa promover o movimento, liberar o fluxo, via prazer estético, como o alívio com o trânsito que volta a fluir. Contudo, a fluidez do trânsito faz esquecer que, se tudo continuar na mesma direção, e da mesma forma, logo se formará novo engarrafamento. Portanto, é urgente uma experiência que vá em outra direção, ou seja, outros caminhos, trajetos e outras formas de se deslocar. Isso caracteriza uma experiência contra-hegemônica, que busca caminhos, formas e conceitos alternativos, para além das alternativas genéricas. A experiência em fluxo otimiza a energia consumida. A energia desperdiçada em congestionamentos provocados pela insistência em seguir na mesma direção provoca danos irreversíveis. Hoje, tem sido nesse vislumbre da irreversibilidade que se tem engendrado a tradução intercultural. O reconhecimento da experiência, a fim de aproveitá-la socialmente, passa pela tradução intercultural, vivenciada numa perspectiva contra hegemônica. No tecer da experiência entre saberes e práticas, produz-se o significado de alianças que pretendam valorizar diferentes realidades e competências, capazes de diferentes entendimentos e construções sociais. Isso significa que a experiência estética, promotora de emancipação, pressupõe a inteligibilidade sensível e incompleta e subentende a alteridade. Ela permeia os saberes, práticas e sujeitos e, por ser da ordem do sensível, alcança as questões existenciais do ser humano. A experiência estética se apresenta, ainda, como uma estratégia que parte de algum lugar da experiência social, portanto, das consequências sociais, que punge o receptor e o coloca em contato com causas de acontecimentos futuros, elaboradas no imaginário. Essa concepção pode ser relacionada aos já mencionados mundos possíveis de Eco (2002), nos quais o espectador sai do texto estético, busca em seu contexto cultural elementos que usa para voltar ao texto e interpretá-lo. Na experiência estética, o receptor, ao sair pela segunda vez do texto estético, leva essa interpretação sensível ao imaginário e ao cotidiano. A experiência estética e a experiência social se retroalimentam. Isso mostra que há um reconhecimento mútuo, interno ao universo do indivíduo, entre o estético e o contextual, o que volta a atentar para a importância da auto-reflexividade da experiência estética, ao identificar a possiblidade de que essa experiência possa apenas reforçar o modelo existente. É preciso comprometer-se para que haja o reconhecimento mútuo externo ao universo do indivíduo, ou seja, na 107

sua relação com o outro, com o social. É necessário retroalimentar-se do estranho, como numa experiência gastronômica. Nessa perspectiva, os documentários de Eduardo Coutinho anunciam a possibilidade de tradução intercultural, por meio da experiência estética, e o consequente alargamento da experiência social, com vias à emancipação. Entretanto, não há uma experiência estética isolada e milagrosa capaz de emancipar um sujeito ou uma sociedade. Isso seria a própria incoerência da experiência. Mas o espocar de experiências estéticas é o ponto sensível da possibilidade da emancipação. Sobre o alcance do sensível, é provocadora a fala de Santos39, a respeito do personagem Queni N.S.L Oeste, do seu livro Rap Global40

[...] o Queni sou eu, quando o discurso sociológico e universitário não chega para eu poder expressar toda a raiva que sinto pela desigualdade no mundo, pela discriminação, pela humilhação, pelos massacres a que são sujeitas populações inteiras, em nome de um modelo de desenvolvimento que é suicida [...] essa raiva que eu não consigo expressar em meus textos sociológicos, científicos, universitários, eruditos, que naturalmente são comedidos e cheios de notas de rodapé. E quando essa escrita não chega, vem a outra escrita, e essa escrita foi exatamente a que deu no Rap Global [...]

É urgente legitimar o sensível que é próprio da experiência estética. Ela apresenta-se como uma metodologia possível de emancipação. Trabalhar pela ampliação do repertório estético e pelo reconhecimento da pluralidade de saberes e práticas estéticas constitui-se como um importante instrumento epistemológico. Desta forma, a experiência estética como procedimento de tradução das experiências do mundo é concomitante às experiências do mundo. Essa tradução se dá em termos de expectativa no campo da sociologia das emergências e, por sua vez, no campo das experiências sociais. A ampliação simbólica promovida pela experiência estética presentifica tendências de futuro.

39 Transcrição de parte do depoimento gravado por Boaventura de Sousa Santos, para o lançamento da Ópera Rap Global. Disponível em: . Acesso em: Agosto 2014. 40 Livro Rap Global, obra literária de Boaventura de Sousa Santos, lançado no Brasil em 2010 pela editora Aeroplano. 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção epistemológica, até aqui apresentada, objetiva enfatizar a importância da experiência estética como exercício de renovação da percepção do contexto social e de articulação do sujeito com ele. Diante disso, o problema posto – se a experiência estética pode ser suscitada por objetos não convencionalmente legitimados como arte e, sob essa perspectiva, se o cinema documental de Eduardo Coutinho pode provocar experiências estéticas e constituir via de emancipação do sujeito social – se estabelece como tese e esperança.

Todas as coisas de que falo estão na cidade entre o céu e a terra. São todas elas coisas perecíveis e eternas como o teu riso a palavra solidária minha mão aberta ou este esquecido cheiro de cabelo que volta e acende sua flama inesperada no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de carne como o verão e o salário. Mortalmente inseridas no tempo, estão dispersas como o ar no mercado, nas oficinas, nas ruas, nos hotéis de viagem. São coisas, todas elas, cotidianas, como bocas e mãos, sonhos, greves, denúncias, acidentes de trabalho e do amor. Coisas, de que falam os jornais, às vezes tão rudes às vezes tão escuras que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

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Mas é nelas que te vejo pulsando, mundo novo, ainda em estado de soluços e esperança. Ferreira Gullar - Coisas da Terra

A esperança de que aqui se fala, sob a luz da experiência estética, é esta, cotidiana, possível, próxima, como a carne e a poesia pulsando em um mundo novo. Este mundo novo poético, sociologicamente, é pensado por Santos (2011) como aquele em que o sujeito partilha significados de forma ética e política, fortalecendo a experiência social. Por este estudo, ele é pensado como aquele em que a experiência estética alarga a experiência social e fomenta a emancipação. Conforme descritas anteriormente, as três formas de dominação apontadas por Santos, o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, servem a um mundo velho, exaurido, que se afirma, menosprezando saberes e experiências embrionárias de alternativas e soluções possíveis. Ao longo desta pesquisa, ao buscar legitimar a experiência estética, produziu-se um pensamento alternativo de alternativas, uma vez que se oferece uma visão alternativa para ampliar a experiência social, que é concomitante a ela e está presente na experiência estética. Esta experiência se engendra como um conhecimento emancipatório, que se solidariza com a diversidade de formas do conhecimento, em detrimento de uma matriz colonial. Walter Benjamin fala sobre a posição de um observador diante de uma fonte, de pequeno córrego, ou no vale dos acontecimentos. Toma-se de empréstimo sua metáfora, para situar a experiência social. A fonte dos acontecimentos está para a experiência social automatizada, onde os fatos não parecem ter força alguma em si, apenas se sucedem. E o vale está para a experiência estética, em que os acontecimentos podem ser observados e avaliados, em seu fazer-se. Por essa razão, ela permite conhecer, de forma sensível, os acontecimentos sociais em estado relacional. A experiência estética defendida é, então, solidária com o social e se relaciona com a diversidade. Se a diversidade de saberes e de experiências é sabidamente ilimitada, o é, justamente, pela possibilidade de combinação entre saberes e práticas. Entretanto, ser ilimitado não significa que seja emancipatório. Uma estética, um conhecimento ou uma prática catequizadora já provou ser a mera reprodução de um sistema colonial. O que pode fazer do diverso, uma alternativa? No decorrer do texto, algumas possiblidades se esboçaram, como a urgência em tornar visível aquilo que 110

não está dentro do modelo. É isso que Coutinho realiza, liberta a experiência estética do que convencionalmente se considera arte, ao manifestar-se por meio de documentários. Pensar essa liberdade da experiência a partir de um pensamento não abissal e, portanto, não dicotômico, é pensá-la, também, relacionando-a com a arte. É não desperdiçar a experiência social, que é cultural. Por isso, a experiência estética e a arte estão em pé de igualdade em termos de experiência social, compreendendo que o que as hierarquiza é um sistema de economia política. Legitimar a experiência estética alarga o universo de possibilidades, em termos de linguagens e, consequentemente, do alcance de tecnologias sociais a se desenvolverem a partir dessas experiências. A esse respeito, Gilberto Gil (2008), enquanto ministro da cultura do Brasil, defendeu a necessidade de se pensar a inerência entre cultura, política e economia. A exemplo disso, ele citou a percepção dicotômica entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, sobre a qual hoje já é possível pensar a partir de experiências de desenvolvimento sustentado, que provaram que o meio ambiente não é um custo e sim um valor. Então, segundo ele, deve-se compreender a dimensão econômica da cultura e a dimensão cultural da economia. Nessa abordagem, ele diz que as pesquisas acadêmicas devem desenvolver novas tecnologias em cultura, que devem considerar o desenvolvimento como um processo negociado entre agentes sociais. Isso vem ao encontro do que se diz da experiência estética como um exercício de renovação da percepção e de articulação do sujeito com o social. Desenvolver tecnologias culturais, portanto, sociais, significa ampliar a margem do visível. Coutinho, na sua prática estética se interessava em conhecer a diversidade, consciente de que não transformaria o mundo com um filme, mas que, com ele, forneceria dados sensíveis ao receptor, para que esse pudesse vir a ser um agente de transformação, ao traduzir esses dados para a experiência cotidiana. Os documentários de Coutinho são possibilidades de desconstruir um modelo popular estereotipado, formatado pela mídia. Romper com o padrão midiático é uma ação política implícita na estética de Coutinho. É o receptor que estabelece os vínculos entre a experiência estética, o imaginário e o cotidiano. Assim, quanto maior for o repertório estético em trânsito, tanto maiores as possibilidades de articulação de significados entre saberes e práticas sociais. Essa articulação entre saberes e práticas subentende que os saberes científicos e populares sejam equitativos, assim como 111

suas práticas, apresentando-se como um caminho no qual o justo valor da diversidade se reverta em justiça social. Santos (2008) diz que uma ecologia de saberes é ilimitada no que tange à diversidade de conhecimentos do mundo, ao mesmo tempo em que conjuntos de ecologias de saberes são limitados por um determinado campo negociado. Segundo o autor, esse campo não é negociado a partir de conhecimentos isolados das atividades sociais, mas constituído no contexto das práticas sociais, por isso ele nomeia essa negociação do campo, como artesania das práticas. Reconhecendo a artesania das práticas na constituição do campo de saberes, conforme Santos, e reconhecendo, a partir deste estudo, a experiência estética como processo sensível reflexivo entre saberes e práticas, pode-se falar em artesania de saberes. Artesania, porque remete ao trabalho cuidadoso, significativo e identificado com um coletivo fazedor. Artesania de saberes, porque remete ao saber que se faz a partir da significação que a experiência estética atribui à experiência social. Diante disso, pensar esteticamente é pensar na articulação entre saberes e práticas a partir de uma experiência sensível entre a auto-representação e o reconhecimento do outro. Entende-se que a experiência estética é emancipatória e para que seja efetiva é preciso tornar visível a diversidade cultural, para tornar possível a tradução intercultural e promover justiça social. Neste ponto, importa relacionar a tese aqui exposta com o programa de pós- graduação em que se constituiu. O título Diversidade Cultural é, ao contrário de um elogio romântico, uma crítica áspera. Sabe-se, romanticamente, da diversidade do mundo, mas ela não é reconhecida. É necessário criticar duramente esse saber que escolhe não reconhecer a diversidade. O conhecimento científico, juntamente com a arte institucionalizada, e os já mencionados modelos de dominação, escolheram e classificaram o que, entre a diversidade, serve para o modelo hegemônico e o que deve ser meramente ilustrativo ou totalmente invisibilizado. Portanto, pensar sobre diversidade cultural é um exercício constante de dar visibilidade ao que está fora do modelo, ao que está excluído. Assim, chega-se ao complemento do nome do programa, Diversidade Cultural e Inclusão Social. Se a diversidade cultural é, na sua imensa maioria, o que está excluído de um modelo de desenvolvimento e que, portanto, se reflete na desigualdade, a inclusão social trata daquilo que subentende a exclusão social. Então, seria simples, bastaria dar visibilidade à diversidade cultural para promover a inclusão 112

social. Entretanto, para dar conta de sua própria complexidade, o programa é necessariamente interdisciplinar. É assim que a estética, que é a interdisciplinaridade em si, precisa ser pensada transversalmente dentro e fora do programa, transversalmente ao imaginário e ao cotidiano, para tornar-se propositiva, já que tem o melhor dos aliados, o prazer. Por meio do prazer, o espectador, o sujeito da recepção apropria-se sensivelmente dos conhecimentos e práticas cotidianas, tornando possível a auto- representação e reconhecimento mútuo. A promoção do prazer estético é, então, facilitadora da inclusão social. Entretanto, é necessário voltar à diversidade cultural, pois sem dar visibilidade a ela não há renovação da experiência e, sim, repetição de modelos. Na interdependência de ambos, diversidade e inclusão, é que se pensa a experiência estética como uma metodologia prática. Se a experiência estética interessa enquanto metodologia prática, que reconhece a diversidade e a reciprocidade na negociação das regras de inclusão dessa diversidade, ela deve oportunizar o protagonismo da diversidade, por meio dos grupos sociais que a representam. Em relação a isso, adota-se o posicionamento de Benjamin (2012) que se refere à necessidade de domínio técnico que o protagonista da ação estética necessita, para empreendê-la de forma política, ou seja, para ter o controle de sua produção. Essa ação que é estética, mas também política, dá origem a objetos passíveis de prazer estético. A integração ou inclusão, via prazer estético, promove a cidadania. O diálogo estético pode transformar sujeitos potencialmente estéticos em sujeitos ativamente estéticos, que tenham domínio de sua atitude, para que possam partilhá-la. Ou seja, é na prática que se articula o fazer emancipatório. Com isso, é preciso considerar que políticas públicas, para democratizar o acesso, não devem se voltar para o envolvimento de espectadores com e em espaços culturais; antes disso, devem trazer experiências estéticas para um ambiente de troca. Democratizar a instrumentalização, a operacionalização e divulgação dessas experiências não devem ter o foco no produto cultural, mas no processo cultural. Reitera-se a importância de trabalhar pela ampliação do repertório estético, por meio de processos de reconhecimento da diversidade de saberes e práticas estéticas, e de promover o diálogo entre as mais diferentes linguagens com vistas à tradução intercultural e à prática social emancipatória.

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